Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
ANDRÉ SINGER L
O PUNICIONISMO PARECE
A ÚNICA ALTERNATIVA
QUE O 'PARTIDO
h
DA JIJSTICA' APRESENTA" l
@53
UMA S ELE/AO D E
TITULOS QUE VALEM
QUAL GRAMÁTICA
C ONFIGURA A F O R M A '
DA NOSSA REVOLTA?
BlAHCA SANTANA
ATÉ Ol?ANDO OS NEGROS
BRASILEIROS VAO ACREDITAR
OS 40 ANOS DO MOVIMENTO
LGBT NO BRASIL
e s • •
• •
RDITORIAt
Boa leitura.
Daysí Bregantini
OAVSIRRRVISTACULT.COM.RR
'IIRS
lk
B IANCA SANTANA 0 8 COLABORARAM NESTA EDIQAO
Dados de diferentes tempos nos informam JAMES N. GREEN . domar em Hrstn
como o Estado brasileiro está a serviro do capital,
contra pretos e pobres Est aos Brasrle res ira Uo v rsrdsde de Brown
ENTREVISTA
MARISA FERNANDES" n" , ire * r II t .,:»
16
0 cientista politico fala sobre seu novo livro, F mrnrti,rs I.e\I v.at
0 lul ismo em cnse.um quebra-cabeça do
periodo Drlma (201'I-20167 REGINA FACCHINI v rtm t>r' -rn C '
po JOAQUIM TOLEDO JR
5 ra na Unic,rnp e pesqursador cir N rrieod .
DOSSI8
RENAN QUINALHA do ot . r w R ie«oo.
Ini: a r onere u la IISP :.I r fe o r de D ert
ae I:tecla Pavlrttt I P o i txn I:con rn a
Apresentação, 34 l s li ri t r
po RENAN QUINALHA
SILVIO ROS* FILHO do uto i rl . . :I ;.
Visão retrospectiva, 34 . r rul .» • r• I 'Nrii'I .
po JAMES N GREEN
LIVROS 4 6
VLADI M I R SAPATLE 54
Qual gramática configura a forma da nossa revolta?
C ART~S 5 7
Sem titulo
¹EULEIOACULT 58 Acriirca sobre teta
120 x 100 cm
2017
COLUNA
I I hh
cvl
BiANCA SANTANA
U
m gradilcinza circunda as barracas parte disputando as sobras de quem tinha
coloridas onde está parte das pessoas perdido tudo, mas recebia doações que che-
desabrigadas pelo incêndio e o desa- gavam dia e noite. No dia 18, a rotina já se
bamento do edifício Milton Paes de Almeida, impusera, e o acampamento compõe a paisa-
na madrugada de I' de maio de 2018. Atrás, gem da cidade que caminha rapidamente, sem
em um amarelo destacado, a Igreja Nossa Se- atentar aos papéis pendurados na grade, in-
nhora do Rosário dos Homens Pretos, cons- formando a necessidade de manteiga, óleo,
trução finalizada em 1906 para receber a ir- alho e temperos.
mandade desapropriada anos antes. Na placa, "Muita gente já saiu daqui. Aceitaram ir
o nome do largo: Paissandu, homenagem a paraabrigo.Mas agenteprecisaé demoradia
batalhade 1864, que antecedeu a Guerra do permanente. Acho que o jeito vai ser ocupar
Paraguai, na cidade uruguaia de Paysandu. outroprédio",me dizia uma acompanhante,
Guerra que exterminou milhares de soldados quando pediu licença para se aproximar de
negros, livres ou escravos. Em uma imagem, uma mulher que chegava com notícias.
três tempos de uma mesma história, que per- Diversaspessoasse aglomeraram para ouvir
mite compreender como se dá o genocídio de que estavam começando os telefonemas da
pretos e pobres no Brasil. prefei
tura para quem tinha se cadastrado a
Na manhã de 18 de maio de 2018, uma espera de moradia.
mulher nina um bebé de pouco mais de dois —Vou lá falar com a assistente social, então.
meses. Dois homens conversam enquanto —Não adianta, tem que esperar eles telefo-
ajudam uma menina a se equilibrar no trici- narem no número que você passou.
clo.Algumas pessoas seposicionam pertodas — A gente vai é esperar para sempre!
grades, em alerta, cuidando da segurança. — Mas eu fui ontem na Câmara dos Verea-
Nas escadas da igreja, duas mulheres dobram doreseviquando o secretário prometeu que ia
roupas. Na mesa a frente da cozinha improvi- sair um ano de alugud social para todo mundo.
sada, um grupo pica vegetais. Todos negros. Dez —Um ano de aluguei sorial resolve o quê?Eu
dias antes, o cenário era de guerra: fumaça, recebi aluguei social desde quando a Marta fez
pessoas desesperadas, miseráveis de toda a e depoisdeseteanos estavasem rasa denovo.
â RE I N'233
— Equem acredita no que eles falam? no Palacete Martinico Prado, a prafa Antênio
— Mas se falou na frente de todo mundo, Prado, nome do prefeito que desapropriou
da televisão, ele vai fazer. Não ia mentir na pretos pobres. E hoje? Quem se beneficiará do
frente de todo mundo. terreno do prédio que desabou, onde viviam
As falas atropeladas parecem sempre ter- as famílias acampadas no Paissandu?
minar em reticências. Mesmo as afirmaVões Quanto ao destino das pessoas acampadas,
contundentesnão ressoam certezas.Uma for- a história também nos oferece inúmeros exem-
ma decomunicado desconfi
adaque evoca plos de como o Estado brasileiro responde as
lembranqas de vulnerabilidade e falta de aces- promessasfeitas apretos epobres.E não pre-
so a direitos. É provável que o cenário seja cisamos ir longe. 0 nome Paissandu, mais uma
outro quando este texto for impresso. E não é vez,faz referênciaa uma das batalhas que an-
possível prever onde e como cada um deles vai tecedeu a Guerra do Paraguai.
morar daqui para a frente. E eles sabem disso. Como sesabe,muitasdastropas brasileiras
Faltade moradia e remoqões fazem parteda foram compostas de escravos, que se alista-
história de muitas dessas pessoas. E também vam, não só com a promessa de alforria, mas
do Largo.Como já anunciado, a construção também pelo compromisso do imperador
amarela é outra materialidade de um passado Pedro II em abolir a escravidão. Ao final da
de limpeza urbana. Guerra, em vez de libertarão, em 1871, foi pro-
A Igreja Nossa Senhora do Rosário dos mulgada a Lei do Ventre Livre que, no papel,
Homens Pretos comeãou a ser construída nesse considerava em liberdade todos os filhos de
local em 1904. Por quase duzentos anos esteve mulheres escravas nascidos a partir daquela
na atual praga Antônio Prado, perto da rua XV data.Na prática,crianças negras nascidas li-
de Novembro, antigo largo do Rosário. Desde vres continuaram trabalhando nas mesmas
1721, a primeira igreja, construída por negras e condições das que nasceram escravizadas.
negros, foi um espa9ode organizadop olítica, Tantos dados, de diferentes tempos, no
social e religiosa. Proibidos de frequentar as mesmo território, nos informam como o
igrejas dos brancos, os membros da Irmandade Estado brasileiro está a serviu do capital fi-
dos Homens Pretos levantaram o templo que nanceiro. E nós? Assistimos a tudo isso?
podia ser desfrutado por forros e escravos, sin- Evocoa pergunta-provocaqão de um militante
cretizando rituais católicos a práticas de matriz do movimento negro durante o seminário
africana, especialmente de origem banta. "Justiças por Marielle e Anderson, Contra a
No início do século 20, Antônio Prado. Intervenqáo Militar e o Genocídio Negro",
primeiro prefeito de São Paulo, iniciou uma que aconteceu na 3'edição da Feira Nacional
reforma urbana higienista que afastava pobres da Reforma Agrária, em São Paulo: "Para o
e negros das regiões mais valorizadas do meu bisavô, disseram que ele deveria ser um
Centro. Uma versão anterior do processo de bom escravo,que a aboliqão logo viria.Para
gentríficaqão denunciado pelo movimento de o meu avê, prometeram que se ele trabalhasse
moradia contemporâneo. Ou o princípio dele. bastante, teria condições de vida. Para o meu
Em 1903, a Câmara Municipal aprovou uma pai, disseram que depois do ginásio, viria a
leique desapropriava os bens da Irmandade CLT. Para mim, foi o ensino superior. Mas
e cedia um lote pantanoso no Tanque do mesmo graduado, sou parado pela polícia e
Zuníga, atual largo do Paissandu, para a cons- não tenho emprego.Até quando vamos acre-
trução da igreja. 0 terreno desapropriado, ditar nas promessas?". tg
surpreendentemente, foi doado a Martinico
Prado, irmão do prefeito, que ali construiu o
primeiro prédio de escritórios de Sao Paulo,
onde hoje funciona a Bolsa Mercantil e de
Futuros. Sim. A Bolsa de Valores está sediada
N 235 ããíãí 9
COLUNA
ã
i s i i
s
MARCIA TIBURI
A
antropologia é uma ciência que se construiu a partir da ideia de inteligência artificial nos faz agir e não percebe-
que sepoderia tornar o ser humano um objeto da ciencia.Esse mos queesse agirnão apenas se dá em seu nome,
complexo objeto nos faz saber que estudar é uma coisa, mas que como também escondeque fomos apagados em
compreender é outra bem diferente. A questâo antropológica é filosófica nossa subjetividade nesses processos.
e está na base de todas as ciências humanas. Se a inteligência é terceirizada nas máquinas,
0 termo aníhroposde origem grega, que significa exatamente "ser o que resta a nós que já representamos, em outras
humano", nos pêe em contato com a complexidade irredutível a ideia de épocas,a ideia de razão ede dignidade humana?
uma espécie.Antigamente, era traduzido por "homem", como se o uni- Esse tipo de questão parece ter caducado em nos-
versalmasculino resolvesse o problema. sa época. Podemos nos perguntar se não seremos
Hojeéantiquado falar"homem" para definiro serhumano genérico mais humanos, ou se nos transformamos tanto
composto da diversidade humana. Antropólogos já abriram caminho para em nossa relat;ão com as máquinas que já nos
pensar que outras espécies também são "humanas" para si mesmas. Noutra tornamos híbridos com elas.Somos ciborgues.
linha, talvez seja igualmente antiquado usar a palavra "logos" com seu A velhaideia de humanidade ressurge como
velhosignificado de razâo. Em uma época obscurantista e irracional como uma artificialidade com consequencias éticas e
a nossa, falar de conhecimento também pode ser estranho. Além disso, a politicas.Embora possamos serciborgues,o que
ironia de fundo dessa questão pode ser perdida com facilidade. implica dizer que somos um pouco máquinas, não
Mesmo assim, as ciências costumam surgir em todas as épocas, e talvez somos apenas máquinas. E se a condição de má-
maisainda em momentos nos quais esforqos de compreensão nos encami- quina nos atinge, a condiqão humana também
nham a confiarna razão, na análise,na crítica, em vez de entrarmos na atinge a máquina. Quem assistiu aos filmes Bíade
primeiraigreja que há na esquina. 0 que se chamou de "razâo" na história runner.de Rídíey Scott,ou Tempos modernos, de
da filosofia nada mais é do que uma faculdade que existe apenas na espe- Chaplin, sabe que os reinos se confundem.
rança de filósofos. A análise e a crítica são procedimentos que surgem dessa Associados. em simbiose, não somos mais
esperanâa de que, com
preendendo umfe nômeno, se poderia melhorar apenasescravos de máquinas. Estamos prepara-
algum aspectoda vida e da existência. dos intelectual, cognitiva e afetivamente para
A antropologia digital ou ciborgue parte da ideia de que a vida humana enfrentara questâo antropológica que se coloca
hoje deriva de produtos humanos e não humanos. De que há todo um no momentoem que nossa fusão com a máquina
campo daexperiência humana que migrou para a internet e que devemos e com os aparelhos das tecnologias digitais atra-
compreenderesse novo território e o fenômeno humano que se desenvolve vessanossa vida> Somos capazes de pensar a ética
nele. Como o fenômeno da luteranocom máquinas e aparelhos, compu- e a politica que derivam disso? Iíí
tadorese celulares mudou nosso modo de ser.Hoje não temos apenas
relações sociais, e sim relações tecnossociais.
Desde que usamos próteses de conhecimento, não somos mais os mes-
mos. No limite, a inteligência artificial realmente pensa por nós. Mas isso
não é o aspecto mais complicado quando se trata de pensar esse novo ser
humano no qual estamos nos tornando. 0 problema maior é que essa
COLUNA
I i
• •
I I
WILSON GOMES
N
o Brasil da extrema polarização po- "esquerda" sempre foram torturadas ideolo-
Iítica, nomes não são meras designa- gicamente até que confessassem aquilo que
ções para as coisas e pessoas, mas cadalado gostariaque sedissesse.Mas como
rótulos e armas que se podem brandir contra o crescimento do número de pessoas e gru-
osadversários.No país em que asredes digi- pos que se admitem de direita se deu pari
tais transformaram desinformados e desinte- passa com o aumento da polarização política,
ressados por política em participantes ativos a compreensão do que "direita" quer dizer se
do debate público e partidários muito engaja- tornou ainda mais comprometida. Assim,
dos desta ou daquela identidade política, há temos cada vez mais pessoas reivindicando-
mais barulho do que argumentos, mais busca -se, de modo ostensivo e até orgulhoso, como
da treta pela treta do que desejo de esclareci- sendo de direita, ao mesmo tempo em que a
mento reciproco. JL medida que crescem o expressão vai se tornando ainda mais polis-
ativismo e a partícípaqâo, diminui a paciência sêmica e distorcida. E, para complicar, ainda
paraproduzir conceitos cuidadosos e conse- tem muita gente faturando em cima do en-
quentes. Aparentemente, precisamos mais de gano e do autoengano.
palavras de ordem para mover a massa e ci- Os bolsonaristas, por exemplo, aftrmam-se
mentar identidades do que de nuances e dis- de direita. Ao mesmo tempo que alguns dos
tinções que nos permitam sair da nossa zona seus ideólogos em redes digitais ridicularizam
de confortoe de raiva,pois de pressa e raiva quem os considera de extrema direita. 0 DEM,
hoje se faz a esfera pública brasileira. Estamos por outro lado, anda agora tentando garantir
todos ã flor da pele, constantemente furiosos, que ocupa o centro,quando atépouco tempo
perenemente ultrajados. atrássejuntavaao coro da retórica queassegu-
Uma prova desse estado de coisas é o uso rava que a distínCão entre esquerda e direita já
da palavra "direita" no debate politico hoje. havia sido superada. A propósito desta afirma-
Sim, eu sei que as designações "direita" e Cão, há muito emprego um princípio que se
iê BRI N'233
provou verdadeiro ao longo dos anos: se o su- Em qualquer lugar do mundo, um demo-
jeito diz que não existe mais "direita —esquer- crata de direita é o sujeito que acha que o Estado
da" pode apostar que é de direita. Pois, vejam não pode onerar a produrão metendo a mão no
que curioso, quando Bolsonaro se coloca na bolso das pessoas para tirar dai a grana que
direita, o DEM se desloca retoricamente para o usará para fazer distribuído de rendaou pres-
centro, que ocuparia junto com o PSDB, que os tar serviqos públicos universais. Que considera
bolsonaristas juram que é deesquerda. Não está que o Estado deve abster-se ao máximo de in-
fácil de entender. terferirnasreíaqões privadas do mercado ou na
Por outro lado, não faz muito tempo que vida íntima das pessoas e que o cidadão, sim, é
Maria do Rosário escreveu no Twít ter que "não quem deve interferir ao máximo na vida do
existe democracia com a direita no poder". Estado, uma vez que paga os impostos que o
Pode não ser a enunciarão de um princípio e sustentam. Que considera que políticas públicas
sim a descríVão afobada de uma circunstância, compensatórias ou distributivas não podem ser
mas expressa uma posiqão comum em muitos financiadas com recursos que deveriam ser usa-
ambientes de esquerda: direita e democracia dospara produzir riqueza — mas sobre isto as
são incompatíveis. Ora, qualquer manual de posívões podem ter matizes que devem ser con-
teoria democrática diz que as denominações sideradas. Enfim, um democrata de direita tí-
"esquerda" e "direita" são tipicas da experiên- pico acha que a vida social se baseia principal-
cia republicana, que, portanto, a direita é uma mente na livre competiqão e não em arranjos
das posiqões republicanas legítimas, uma típi- cooperativos entre as pessoas.
ca invenção da democracia moderna. Aliás, Como se sabe, a democracia moderna é a
mesmo do ponto de vista geométrico, só há democracia liberal, resultado da convergência
esquerda (e centro) porque há direita. e da combínavão resultante, entre a democra-
Pois Maria do Rosário nos leva a entender cia, sistema de governo baseado na premissa
que não é bem assim: na democracia só cabe da igualdade entretodos oscidadãos,eo libe-
a esquerda, toda direita é autocrática e toda ralismo, sistema político e ideológico voltado
esquerda é democrática. Geometricamente, paracontrastaro absolutismo. Se dademocra-
a experiência republicana só tem um lado, cia vieram os princípios da igualdade, da li-
que se chama esquerda apenas por esporte. berdade, da deliberaqão pública e o sufrágio
Aliás,para muitos da esquerda, nem o centro universal, do liberalismo vieram um tipo de
presta, também o centro é autocracia em es- Estado de Direito, garantias e direitos indivi-
tado puro. Ora, essa posiãão é a antitese per- duais, a ênfase nas liberdades privadas. As
feita da nova direitinha militante que tem cíívagens no campo democrático, entre direita,
certeza de que toda esquerda é fascista, co- esquerda e centro, derivam justamente das
munista e genocida, de que há incompatibi- tensões resultantes das acomodações dos dois
lidade entre esquerda e qualquer valor huma- sistemas: a democracia e o liberalismo.
no, inclusive decência e democracia. A direita republicana é fruto dessa acomo-
Nada há de errado na direita republicana, dação, ainda em processo, que produziu as
assimcomo no centro.Restabeleceradignidade democracias liberais. Por isso mesmo, um di-
política da direita republicana pode ser, talvez, reitista democrático pode até ser consideravel-
o melhor caminho para demarcar com clareza mente "antiestatista" e desconfiado com rela-
o espio sombrio da direita não republicana ção ao poder do Estado, porque foi moldado
que comeva a nos sitiar. 0 que nos daria um na luta contra o absolutismo, mas não pode
patamar que permitisse ao sujeito de direita (e abrir mão nem da liberdade das pessoas nem
eles serão cada vez em maior número) a distin- da igualdade política. Fora disso, é o Fascismo.
guir-s ecom precisãoda horda dosfeiosebrutos Assim, quando o sujeito que se diz de direita,
que usam hoje a direita como cavalo de Troia acredita que a igualdade política pode ser
paraatacara própria democracia. "flexibilizada" ante as "evidências" de que it
N'235 íããíí 13
COLUNA
uma determinada raCa (sic), gênero, orienta- A direita autoritária e autocrática chegou,
9ão sexual, ou qualquer outra forma identitá- paradoxalmente,na forma de uma geraCão de
riaem que secoloque, é superior a raCa,géne- garotos de vinte a trinta anos, que não-viu-
ro ou oríentaCão sexual dos outros, já estamos -nem-lembra. A p rimeiragerado de garotos
fora do segmento democrático. Se, por conse- que chega a idade adulta no Brasil republicano
guinte, considera que os outros não podem ter sem nunca ter vivido um período autoritário
os mesmos direitos, garantias e oportunidades éumag erado de... autoritários, por cuja mão
que ele e "as pessoas como ele", continua na a extrema direita, 109ã democrática. 909ã fas-
direita, mas republicano não é mais. cista, é reintroduzida como alternativa política
Assim como a esquerda não é mais demo- no Brasil. Junto com eles, legiões de feios, su-
crática quando abre mão das liberdades indi- jos e malvados de todas as cataduras: viúvas
viduais, como aconteceu seguidamente nas da ditadura que sairam de porões onde se es-
várias experiências históricas do socialismo, conderam por35longos anos,autoritáriosde
no exato momento em que, sob qualquer pre- direita que já não aguentavam perder eleiCões,
texto, a direita despreza o combinado demo- exóticos hidrófobos, como os do bolsonaris-
crático fundamental de que todos são poli- mo, que até então falavam apenas para nichos
ticamente iguais, de que todos têm direitos igualmente extravagantes, e um sortido de
e gozam de garantias legais, de que nas liber- parasi
tas,aproveitadores e mentes-fracas de «I
dades civis não se toca, a sua posiCão perde todos os tamanhos e formatos.
inteiramente a legitimidade democrática. Isto não é direita democrática, amigos. • •
Passado este ponto, a direita não pode mais Conceder-lhes o direito de se apresentarem co-
esperarrespeito nem consíderaCão dos demo- mo a direita republicana é como permitir que
crattts pelo que o direitista pensa ou pela ex- Marco Feliciano e Silas Malafaia sejam identi-
pressão pública do seu pensamento, simples- ficadoscomo a puraexpressãodo cristianismo,
mente porque ele e as suas ideias não cabem como eles reivindicam e desejam. Cristão sou
mais na democracia. E aí, sim, a sua posiCão eu, eles são apenas homofóbicos, iliberais e con-
autocrática é fascista, assim como a autocracia servadores que usam o cristianismo para bati-
de esquerda foi frequentemente o totalitaris- zar a sua maldade social. Analogamente, dá-se
mo. Aliás, fascismo e totalitarismo sempre o mesmo com a direita. 0 bolsonarismo, os
funcionam como poios de atracção para adi- intervencionistas militares, os que odeiam os
reita e a esquerda, puxando-se para fora do Direitos Humanos, os que lutam contra direitos
círculo mais restrito da democracia liberal. e reconhecimento das minorias políticas não
No Brasil, enquanto perdurou a indigna- são "a direita" republicana, mas uma versão
Cão social ante os horrores da ditadura militar desfigurada edegradada de uma direita quese
brasileira, a vergonha ou o medo do constran- poderia respeitar e que tem um lugar legítimo
gimentofuncionaram como focinheira demo- na democracia liberal. ítt
cráticaa conter os conservadores de direta e a
extrema direita. Afinal, haviam chegado aos
anos 1980 ainda com os dentes sujos de san-
gue. Passaram, a partir daí, pouco mais de
trinta anos negando que tenham tido alguma
coisa a ver com as trevas da ditadura militar,
quietinhos no armário ou mudando de casca
e roupa (como a Arena que virou PDS que vi-
rou FL que virou PFL que virou DEM que
agoradiz queécentro)parapareceroutracoi-
sa. Até que a noite do antipetismo chegou, em
2015, e as focinheiras foram retiradas.
14 íãããl N'233
ENTREVISTA AN DRÉ SINGER
"Torqo pela
retomada
da democracia"
JOAQ Jilvl rOI EDO Ja
tó EEI N 2 5
ísstt Qual a tese central de 0 lulisrno em Crias?
ANDRÉSINGRRA tese é que o processo de impeachment remeta, como comeqa antes da posse, quando ela decide mu-
uma recorrênciahistórica no Brasil,ao golpe de 1964. Claro que há dar adi recçã
odo Ministério da Saúde e compra
diferenças entre um caso e outro. A mais importante é que em 2016 uma briga com Henrique Eduardo Ahes
houve um golpe parlamentar, enquanto em 1964 houve um golpede (MDB), que viria a ser presidente da Camara.
Estado. No "Intermezzo histórico" do livro, chamo a atenqao para as 0 conflito com o MDB, portanto, não comeqa
coincidências entre o sistema partidário brasileiro nesses dois periodos. com Eduardo Cunha.Eu não vou afirmar que
Os três partidos principais do período 1945-64 (UDN, PTB e PSD) têm esses sejam os únicos elementos que explicam
semelhanças com os partidos maiores do período 1989-2014 (PMDB, o processode impedimento. Há outrascausas,
PSDB ePT) eo processo de impeachment, como o golpe de 1964,foi como as mudanqas na conjuntura economica
umareacçã oatentativas de reformas inclusivas que foram bloqueadas mundial.Mas o que chamo de "ensaio repu-
por uma reaqão conservadora. Na segunda parte do livro, reconstruo blicano", e areac
ção a ele,é um a parte impor-
de maneira factual os acontecimentos que levaram ao impedimento, tantepara entender o queaconteceu.
porque do contrário a tese não teria nenhuma base empírica. A quan-
tidade de eventos e de cruzamentos inesperados de atores, anões e pro- Quais os primeiros sinais de crise do período
cessos é infinita. Mas o livro tem também a ambiqão de associar a Dilma?
crônica a uma visão mais geral da política brasileira. Os protestos de junho de 2013, que mudam
toda a orientaqão da conjuntura, são o momen-
De que forma esse padrão do sistema partidário brasileiro e o rea- to de inflexão. Dilma, que vinha tendo uma
linhamento eleitoral de 2006, de que você tratou em Os sentidos do conduta coerente na economia e na política.
lrilisino (2012), se relacionam ao processo de impeachment? ainda que discutível, se torna errática, xdotan-
0 PSDB, embora não tenha sido a ponta de lanqa do processo de im- do diferentes políticas sem coerência futre si,
peachment, teve papel decisivo. A oposição ao lulismo não conseguiu prejudicando a governabilidade. E isso vai até
vencer as eleições em 2014 e teve que interromper o processo por uma abril de 2016, quando na prática o governo ter-
via lateral. e acabou patrocinando o impedimento de Dilma. Ou seja, mina. Tem um epilogo que é o julgamento pelo
não foi capaz de mudar a orientado do realinhamento eleitoral que Senado, mas a partir do dia 17 de abril, quando
incomoda a oposição desde 2006. Com a prisão do presidente Lula, que a Câmara aprova a continuidade do processo
é o principal candidato do campo lulista, nós não sabemos que caráter de impeachment, ela já estava fora.
a eleição de 2018 terá. Até aqui, o que podemos dizer é que houve uma
mudança nas regras do jogo, tirando determinados personagens de
cena. Essas mudanças fazem que o realinhamento de 2006 fique sus-
penso, não por razões estritamente eleitorais, mas porque houve uma
intervenção no jogo desde fora. Mas as intenções de voto no presidente
Lula, ainda que preso, mostram a vitalidade do lulismo.
Os pmtestos dejunho dão sinal de uma quebra Você sugere que, mais do que um sentimento,esseamor pela desi-
de expectativas em torno do projeto lulâsm? gualdade tem um papel estrutural na conformação da sociedade
Os reflexos da crise econômica mundial de brasileira.
2008 afetam diretamente a possibilidade de Isso remete as teses de Francisco de Oliveira sobre o capitalismo bra-
que o projeto lulista continue entregando uma sileiro. 0 Brasil se desenvolve com base em excedente de mão de obra,
perspectiva de ascensão social compatível com que eu chamo de subproletariado, seguindo um conceito formulado
o ritmo anterior. Alguns economistas estima- por Paul Singer. 0 nosso capitalismo não é atrasado, mas se desenvolve
vam que, para manter o ritmo de integraçao de maneirapeculiar.Há uma desintegração que parece sernecessária
do segundo mandato do ex-presidente Lula, o ao sistema. 0 que considero original no livro é a tentativa de ligar essa
crescimento da economia teria que ser em tor- formulação crítica sobre o capitalismo brasileiro ao nosso sistema par-
no de4,59ó,536.Mas cai em 2011 e em 2012, tidário e pensar esse sistema como representativo das grandes contra-
depois tem uma certa retomada em 2013 e cai dições de classe do país. Os três grandes partidos que existem no Brasil
definitivamente a partir de 2014. No ciclo lu- desde1945,queeu chamo de partido popular,partido daclassemédia
listahá aformação de uma nova classetraba- e partido do interior, representam ainda que indiretamente as classes
lhadora, que quer continuar melhorando de que essa formação específica do capitalismo produz. Por exemplo, o
vida. E a diminuição do ritmo de crescimento PT, que é originalmente um partido da classe trabalhadora, acaba se
econômico dá sinais de que isso não vai acon- transformando num partido de tipo popular, parecido com antigo PTB,
tecer. Eu acho que uma parte da explosão de porque ele tem que lidar com esse enorme subproletariado. No lulismo
junho pode ser associada a esse fenômeno. essesubproletariado ascendeu parcialmente,e talvezessaascensão seja
Mas é difícil saber exatamente qual parte, por- uma das explicaçoes da recente interrupção de seu projeto por um
que foi um fenômeno misto. partido de classe média.
H á um paradoxona combinação de relativa Você ídentifica também uma reação inesperada da burguesia nacional,
ascensão social no período Lula-Dilma com que você chama de "ensaio desenvolvimentista" do periodo Dilma.
a onda de conservadorismo político após 0 governo fezuma aposta política em uma coalizão de classes que se
junho de 20133 dissolveu. A Fiesp foi a ponta de lança no meio empresarial do im-
É um fenómeno mais antigo. A partir de 2006 peachment. Aparentemente, os industriais brasileiros têm mais horror
você tem os setores populares em bloco com ao fortalecimento do Estado do que a políticas antiprodutivas, mais
o lulismo e a classe média em bloco com o benéficas ao capital financeiro do que ao capital produtivo, e mais
PSDB. Esse movimento decorre de uma repul- benéficas aos importadores do que aos produtores em território na-
sade setoresda classemédia ao PT, movidos cional. Na opção entre um Estado que se fortalece ou políticas volta-
pelas denúncias de corrupção do chamado das para a associação ao capital financeiro mundial e a divisão inter-
mensalão, De 2013 até 2016 aparece um segun- nacionaldo trabalho, a burguesia acaba fi cando com essasegunda
do componente,que éa profunda rejeição da opção,como fi cou em 1964.
classe média â ascensão dos mais pobres. Essa
diminuição das distâncias provocou uma re- Você opta por avaliar a Lava Jato por suas consequências e nao por
ação pública mobilizada inédita. Parece que suas intenções, e aponta tanto o viés antilulista corno os efeitos de
se revelou um amor pela desigualdade que nós republicanização da operação.
não sabíamos que existia no Brasil. De um lado a Lava Jato é visivelmente seletiva, e incide sobre a política
de maneira a prejudicar o PT, o lulismo e o campo popular. Na visão
dos membros da força-tarefa, o ex-presidente Lula era o centro de todo
o processo que a operação buscava combater. Isso fica claro quando
o juizSergio Moro, em março de 2016,faz uso deuma gravação, con-
siderada ilegal pelo STF, para impedir a posse do ex-presidente na Casa
Civil. Com isso o juiz Sergio Moro faz política explícita, combatendo
politicamente o ex-presidente, a então presidenta Dilma e o conjunto
de forças que procurava sustentar o governo em uma situação já muito
difícil. Por outro lado, a Lava Jato revelou desvios de recursos na
sa íãííãí N'235
Petrobrás que chegam a bilhões de reais, todo. Quem tem poder compra o apoio polí-
atingindo praticamente todos os partidos tico, e o dinheiro é talvez a forma mais aca-
representados na Câmara. As delações pre- bada do poder social no capitalismo. Partidos
miadas da Odebrecht e da JBS provam que como o antigo PSD e o atual MDB, sustenta-
nâo há como deixar de reconhecer que a dos sobre esse tipo de mecanismo, se desco-
operaçãorevelou fatosque precisam serex- lam das classes, e tornam particularizadas as
plicados. Essa revelaçâo tem um efeito re- relações políticas. Ao mesmo tempo, a duali-
publicano, também objetivo. dade principal do sistema é a dualidade entre
o partido popular e o partido da classe média,
Você sugere que a Lava lato é também in- que são representativos de classes. Então você
dício da prevalência do escândalo poíítíco- tem uma mistura curiosa no Brasil, elementos
0 LULIEMO EM CRISE-
UM ciUESRA-CASEçA -midiático na política brasileira atual, e usa representativos e elementos não representa-
DO PERJODO DILMA a expressão "Partido da Justiça" para criti- tivos. De alguma maneira tanto o PT quanto
(2011-201d)
André Singér car alguns aspectos da operação. o PSDB se renderam a lógica do MDB. Essa
IRRíâííííãBJããgíígí 0 fenômeno do escândalo político-midia- lógica clientelista penetrou nos interstícios
tico assumiu uma centralidade sem a qual do sistema e isso fez com que uma operação
ãJEKã
não se entendem as democracias. Não só no como a Lava Jato questionasse o conjunto do
Brasil, as páginas de política dos jornais sistema. Por isso eu penso que todos os par-
foram tomadas por uma sucessão de escân- tidos têm que se renovar e responder ao de-
dalos, ficando parecidas com as páginas de polícia. A isso, e não apenas safio que foi colocado pelos aspectos republi-
no caso brasileiro, se junta um segundo fenômeno, que é o da judicia- canos da Lava Jato.
lização da política: os atores vão recorrer ao judiciário para obter ga- Tanto PT como PSDB fizeram gestos de
nhos no jogo que em tese deveria ser apenas eleitoral. No caso do Brasil, renovação. Já o MDB não fez essa autocrítica.
a conjunção dessas duas vertentes, o escândalo político-midiático e a Em que pesem os problemas do MDB, ele tam-
judicialização da política alcançaram um patamar talvez único em bém a seu modo expressa aspectos da socieda-
qualquer país. 0 que eu chamo metaforicamente de Partido da Justiça de brasileira real, e a democracia funciona com
para me referir a setores da Polícia Federal, do Judiciário e do Ministério base na sociedade real, e não da sociedade
Público, passou, em alguns momentos, a determinar os rumos do ideal. Como dizia o Chico de Oliveira, as ci-
Estado, ameaçando o sistema partidário que, com todos os defeitos, é ências sociais devem se abster de fazer previ-
representativo das classes e parte fundamental de nossa democracia. sões,porque em geralela não é boa nisso.
0 que vai ser colocado no lugari 0 punicionismo parece a única al- Então eu espero que esses partidos sejam ca-
ternativa que o "Partido da Justiça" apresenta. Combater a corrupção pazes de superar o momento difícil em que
é necessário, mas nao é possível pensar o conjunto do país a partir do estãoedeabriraperspectivadeuma retomada
combateâ corrupção.Essenão pode sero único programa para o país da democracia. A democracia brasileira, em
porque isso não corresponde as necessidades muito mais complexas que pesem as desigualdades da sociedade, fun-
de orientação da economia, da política social, das relações externas, da cionou bastante bem no período 1989-2014,
orientação da máquina pública. E os subprodutos do punicionismo mas no momento está seriamente ameaçada.
passam, por exemplo, pelo crescimento da extrema direita e pela can- Torço para que o resultado final seja de reto-
didatura do Bolsonaro a presidente da República. mada da democracia, e nao de retrocesso.IS
N i 255 R g I s r
0 movimento
LGBT brasileiro:
40 anos de luta
VISAO
retrospectiva
Desejotransformador
E REVOLUCIONARIO
Uma nova
PAUTA POLÍTICA
Múltiplas e diferentes
IDENTIDADES
AMPARO E
solidariedade
SENAN QUINALHA
Visão É~. y~
gf~
retrospectiva I
I
JAME5 N. GREEN
P
ara quem participou das primeiras tinha o seu próprio apartamento. A maioria
reuniões do Núcleo de Anão pelos era do sexo masculino. Poucas mulheres per-
Direitos dos Homossexuais em São maneceram por muito tempo nas reunioes,
Paulo durante o inverno de 1978, acompanhar cujos temas se concentravam, prioritariamen-
os avanCos do movimento LGBT brasileiro nas te, em questões enfrentadas por gays. Um certo
últimas quatro décadas é uma experiência nivei de misoginia difusa distanciava as lésbi-
muito especial. Realmente ninguém poderia cas que frequentavam os encontros nesse pri-
ter imaginado as transforma9ões que ocorre- meiro momento.
riam na sociedade brasileira. Em parte, o jornal Lampião da Esquina
Naquela época, nos sábados á tarde, dez ou incentivou a ideia de formar um grupo de ati-
quinze pessoas se juntavam num apartamento vistas. Em seguida, noticias sobre as reuniões
de algum membro do grupo em Pinheiros ou em São Paulo estimulavam a forma9ão de ou-
no Centro da cidade. Eram estudantes, fun- tros núcleos no Rio de janeiro, em Belo Hori-
cionários públicos, bancários, desempregados zonte e no Nordeste. já em 1980, falava-se do
e um ou outro intelectual. Movimento Homossexual Brasileiro (MHB).
Alguns pertenciam á classe média alta, mas A maioria dos membros de SãoPaulo tinha
a maioria não tinha muitas condiCões õnan- pouca ou nenhuma experiência politica. En-
ceiras. Muitos moravam ainda com suas famí- frentava-se também o problema da alta rotati-
lias, outros com amigos. Somente uma minoria vidade. Houve um pequeno número de pessoas
as EãE N'235
mais dedicadas, mas muita gente que partici- o namorado, o grupo queria sair a público
pava ocasionalmente das reuniões acabava não para protestar e denunciar.
permanecendo. Isso porque havia outras opções Tenho certeza de que os editores do jornal
e lugares de sociabilidade para gays e lésbicas Notícias Populares ignoraram a nossa carta,
se reunirem que não as reuniões pohticas que, mas isso não importava. 0 ato de afirmar-se,
para muitos, eram consideradas longas echatas. de exigir tratamento justo e igual, foi um fim
Também. para alguns, esse tipo de atividade em si mesmo. E a tentativa de sair do gueto gay,
não pareciadarresultados concretos. aquela zona de proteção contra um mundo hos-
De qualquerforma, o Núcleo,quemudaria til para enfrentar a sociedade e osseus precon-
o seunome para Somos: Grupo de Afirmação ceitos, marcou os rumos do movimento. Hoje,
Homossexual no começo de 1979, era diferente milhões de pessoas nas Paradas, uma visibili-
do Ferro's Bar, um espaço conquistado pelas dade positiva na mídia, as figuras públicas que
lésbicas, ou mesmo dos cafés, restaurantes, denunciam o assassinato e a violência, o con-
bares e discotecas dirigidos a um público gay. junto de trabalhos acadêmicos, além de mman-
Estava acontecendo alguma coisa única e es- ces, peças teatrais e filmes, parecem indicar que
pecial nessas reuniões. E as pessoas que ti- aquelecaminho desenhado há quarenta anos
nham um pouco de sensibilidade para mo- para criar um futuro glorioso de vitórias foi um
mentos históricos notaram que algo muito processo inevitável. Mas não foi. Exigia visio-
excepcional estava em curso. nários, como joão Silvério Trevisan, Aguinaldo
Silva e outros editores do jornal Lampião, Ma-
A PRIMEIRA CAMPA N H A risa Fernandes do Grupo de Ação Lésbico-Fe-
HO M O S SEXUAL: UMA CARTA AEERTA minista e outras lésbicas e, nos anos 1990, as
AO JORNAL NOTÍCIAS POPULARES
travestis pioneiras que elaboraram uma lingua-
Aos sábados,nassalasdeapartamentos peque- gem política para contestar o status quo.
nos e com poucos móveis, sentadas no chao,
as pessoas falavam sobre política, ainda que ALIANCAS COM AS ESQUEROAS
timidamente. Crescia o sentimento de que E OUTROS MOVIMENTOS SOCIAIS
mudanças possíveis estavam no ar. Havia qua- Como participante nos primeiros anos do mo-
tro anos o presidente General Ernesto Geisel vimento em São Paulo, tentei forjar alianças
prometia uma distensão. Com idas e vindas, com outrosmovimentos sociaiseasesquerdas
parecia que o país finalmente caminhava para parafortalecer o nosso trabalho. Discordava
uma abertura política. Houve uma expectativa de outros fundadores do movimento sobre as
crescente de que o Brasil poderia realmente suas visões relacionadas aos rumos que deve-
voltar a ser uma democracia. Poderia ser dife- riam ser tomados, mas, a despeito das diver-
rente para os homossexuais também. gências,considero aparticipação dessas pes-
Hoje em dia, a primeira campanha pública soas fundamental. Por causa do meu próprio
do grupo —uma carta aberta protestando con- envolvimento anterior nos EUA no movimen-
tra as reportagens negativas sobre osgays,as to de gays e lésbicas na Filadélfia e em São
travestis e ás lésbicas no jornal Notícias Popu- Franciscoantesdechegarao Brasilem 1976 e
lares —parece um esforço bastante modesto. depois pelas infiuências de um actor da esquer-
Mas, na época, constituiu quase um ato revo- da brasileira em que militei a partir de 1977,
lucionário. Primeiro, foi um esforço coletivo, eu trouxe uma análise marxista para as reu-
já que todos tiveram que discutir e decidir o niões do Grupo Somos, quando discutimos o
conteúdo, a linguagem e o tom da carta. Em mundo em mudança ao nosso redor.
segundo lugar,foium esforço público.Em vez No ano anterior á fundação de Núcleo e do
de simplesmente organizar reuniões de cons- jornal Lampiao, os estudantes voltaram ás ruas
cientização para discutir a discriminação, a depois de dez anos de repressão da ditadura
repressão,osproblemas com afamíliaou com militar para protestar contra as prisões -4
N'23 ÍE E 2 5
arbitrárias e para exigir liberdades democráti- CONTRA A OISCRIMIãIACAO OO
cas.Eu argumentava,nas reuniões do Grupo TRARALHAD OR/A HOM O SSEXUA L
Somos, que os estudantes abriram o espaço Hoje em dia, o panfleto que escrevemos há
para as possibilidades de outros protestos pú- quase quarenta anos parece incrivelmente pio-
blicos e que essas mobilizações refletiam o neiro e, ao mesmo tempo, bastante ingênuo e
desejo de efetivar mudanças sociais mais pro- tímido. Com os títulos "Contra a intervenção
fundas. Poi a minha elaboração precária na nos Sindicatos do ABC" e "Contra a discrimi-
tentativa de entender a realidade brasileira e a nação do trabalhador/a homossexual", um
sua relação com o nosso movimento. documento assinado pela Comissão de Ho-
Dentrodo grupo,váriaspessoas resistiram mossexuais Pró-I' de Maio veio a público.
a tal análise. Alguns tiveram experiências ne- Nele, eram analisadas as reuniões do Grupo
gativascom a homofobia de setores da esquer- Somos: "Entendemos que a abertura foi esbo-
da e na universidade de modo que se opuse- çada no Brasil a partir de 1977 devido, em
ram aideia de procurar ligações,diálogos ou grande parte, as grandes mobilizações dos
colaborações com o movimento estudantil ou estudantes e trabalhadores, principalmente os
com as esquerdas. Quando propusemos a metalúrgicos do ABC que lutaram contra a
participaçao no I' de Maio de 1980, durante política económica do governo e patrões." Ou
a greve geral do ABC e quando Lula estava na seja, nenhum processo político e social nos
prisãopor terviolado a Leide Segurança ¹ parecia isolado dos outros.
cional, um setor minoritário do Somos se opôs Depoisvieram asligaçõesentreostrabalha-
a este engajamento político mais aberto e re- dores em greve e os "setores oprimidos", uma
solveuabandonar o grupo.Outros perceberam expressão que poucos usavam naquele mo-
a importância do ato eforam a São Bernardo mento. "Este espaço conquistado estimulou
com faixas e propaganda —eu, inclusive. outros setores oprimidos da sociedad» negros,
mulheres e homossexuais começaram a se or-
ganizar e lutar contra a opressão constante
que sofrem numa sociedade machista e racis-
ta. Hoje em dia, a questão da intersecciona-
HOUVE UMA EXPECTATIVA CRESCENTE lidade é um conceito comum tanto a academia
DE QUE 0 BRASIL PODERIA REALMENTE quanto aos movimentos sociais. Naquele mo-
VOLTAR A SER UMA DEMOCRACIA mento, a proposta soava bastante nova.
PODERIA SER DIFERENTE PARA OS Tentamos elaborar uma crítica sobre a
condição dos trabalhadores homossexuais em
HOMOSSEXUAIS TAMBÉM
um ambiente em que ninguém, no Brasil, to-
cava neste assunto. Por isso, em boa medida,
apobreza das críticase dassoluçõesque pro-
pusemos. Porém, já naquele momento, apon-
tamos a discriminação "na fase da admissão
em entrevistas e testes psicológicos, etc." Re-
conhecemos as atitudes discriminatórias na
fase de promoção: "quando se descobre que o
trabalhador homossexual é impedido de ser
promovido". Anotamos que "no dia a dia,
quando descoberto, o homossexual tem que
produzir mais e melhor sob pena de ser des-
pedido a qualquer pretexto".
0 panfleto, escrito em uma linguagem
marxista meio crua demais, reconhecia que
zs ããRl N'235
"somos mandados embora se o patrão souber RETROCESSOS NO HORIZONTET
que somos homossexuais. Ou nem chegamos Uma foto de Lula com sua barba cheia e preta,
a ser admitidos. Somos furadosaes conder as preso em 1980 por ter liderado a greve no
nossas preferências fingindo uma padronizada ABC, é uma das imagens mais usadas atual-
masculinidade (no caso dos homens) ou igual mente na campanha para sua libertarão. É o
feminilidade (no caso das mulheres) para não Lulade 1979,que dizia que "não conhecia o
seralvos de piadas,agressões eisolamento".0 homossexual na classe operária", e o Lula de
conceito de heteronormatividade não havia um ano depois, 1980, que declarava que ele
entrado no vocabulário do militante, e a ex- não permitiria a exclusão de homossexuais da
pressão homofobia ainda não circulava no funda9ão do Partido dos Trabalhadores. É
BrasiLQuase ninguém entendiagênero como uma pessoa que estava cheia de contradições
"performance", e as ideias feministas circula- em 1979. E que segue, hoje em dia, também
vam entre poucas pessoas. Mesmo assim, as uma pessoa cheia de contradições. Naquela
ideias estavam implícitas na linguagem no época, ninguém poderia imaginar Lula tor-
panfleto e no entusiasmo para participar no I' nando-se presidente. Em 2011, quando ele saiu
de Maio de 1980. Aproximadamente, cinquen- do Palácio do Planalto com mais de 80/o de
ta gays e lésbicas juntaram-se a milhares de aprovad
o,ninguém poderia imaginar que ele
outras pessoas para apoiar a greve geral e de- fosse preso sete anos depois.
nunciar a prisão dos líderes sindicais enquanto Com tantos avanços domovimento LGBT,
protestavamcontra adiscriminado do(a) tra- existe uma tendência de certos ativistas de
balhador(a) homossexuaL pensar que é impossível voltar atrás. Argu-
Daqui a sessenta anos, quando um historia- mentam que as mudanças das quais os direitos
dor quiser escrever sobre "os cem anos do mo- LGBT resultam seriam tão profundas na
vimento LGBT brasileiro", certamente tais ca- sociedade brasileira que não poderia haver um
tegorias não existirão mais, e as identidades retrocesso efetivo. É uma leitura eufórica da
sexuais, que são tão importantes hoje em dia, históri a baseada na crenSa de que,com amar-
vao parecer conceitos curiosos do final do sé- cha do tempo, tudo melhora, de que o progres-
culo20 e o começo do século 21.De qualquer so é linear e sempre no sentido positivo, de que
modo, imagino que esses futuros historiadores não haverá uma derrota histórica.
vão registrar a pubflca9ão do jornal Lampião )ean Wyílys, deputado federal pelo PSOL,
como um evento fundamentalparao surgimen- estava na minha casa no dia da apura9ão das
to do movimento, junto com o Grupo Somos, eleições presidenciais estadunidenses em no-
entre outras agíutína9ões políticas de gays e vembro de 2016. Ele fazia um tour por várias
lésbicas que surgiram no final dos anos 1970. universidades na Costa Leste dos EUA. Naque-
Será que a partícípa9ão de ativistas LGBT la noite, a cada avanço de Trump no Colégio
no I de Maio de 1980 estará presente em tal Eleitoral, tentei convencê-lo de que a vitória do
compíía9ão histórica de fatos relevantes do candidato republicano era impossível. Falhei
movimento? Será que, no futuro, os observa- nas minhas previsões e, por isso, não quero
dores desse passado vão entender o contexto tentar predizer os resultados das eleí9ões pre-
em que se dava a discriminadoaosho mosse- sidenciais de outubro de 2018 do BrasiL Mas
xuaisna classe trabalhadora, na fábrica e na existe um candidato que representa um retro-
sociedade em geral? Será que perceberão a cesso total não somente para o movimento
"loucura" dos participantes do I' de Maio e LGBT, mas também para os movimentos ne-
seu envolvimento nessa a9ão política? gro, feminista e para as lutas por justiça social
e económica. Talvez nós, que participamos do
I' de Maio de 1980, tenhamos sido ingênuos
naqueles primeiros anos do movimento LGBT.
Mas, talvez, entendêssemos o caminho. 1E
Desejo transformador
e revolucionário
0 M OV I M ENTO DAS LÉSBICAS FEMINISTAS NO BRASIL
MARISA FERNANDES
0 COMEÇO DA ORGANIZAQIIO
DAS LÉSBICAS
N
os últimos quarenta anos de lutas por Em uma reunião geral do Somos de julho
c idadania e reconhecimento n o de 1979, auge do grupo, participaram 10 lésbi-
Brasil, as lésbicas organizadas se cas e 80 gays. Ainda que claramente minoria,
confrontaram com dificuldades tanto no mo- as lésbicas do LF apresentaram suas decisões:
vimento feminista quanto no LGBT. Elas co- encaminhar a discussão sobre machismo e fe-
meqaram a fazer parte do Grupo Somos/SP, minismo no Somos, apresentar um ternário
pioneiro no movimento LGBT, em fevereiro específico para ser discutido por todos, ter um
de 1979. Passados apenas três meses de ati- grupo de acolhimento e afirmaqão da identida-
vidades com os gays, perceberam atitudes de sópara lésbicas e buscar alianças com o
machistas e discriminatórias desses compa- movimento feminista. Nessa reunião, foram
nheiros de militância. Influenciadas pelo fe- hostilizadas e chamadas de histéricas. Feliz-
minismo, elas sabiam que suas especificidades mente receberam apoio de alguns gays doSomos,
como mulheres— enão apenas como homos- m aisabertos asquestões de gênero.Essa pri-
sexuais femininas — geravam dupla discrimit meira fase da luta do LF não foi nada fácil,
unirão. Como lésbicas feministas, decidiram pois se depararam com empecilhos que não
então atuar como um subgrupo dentro do haviam imaginado. 0 LF era bastante plural,
Somos, o Grupo de ASão Lésbico-Feminista tinha de empregada doméstica a programadora
ou apenas LF, com posicionamento político de software, mulheres que não vinham da Aca-
de independênciafrente a centraliza9ão do demia, mas dos "armários" e do "gueto". 0
poder masculino. ponto comum entre elas era o lesbianismo.
as E5 N'235
"SAPATONAS N O MOVIMENTO GALF: AGORA, TUDO NO FEMININO
FEMINISTA Em abril de 1980, em São Paulo aconteceu o I
Em 1979 e 1980, no movimento feminista, o Encontro Brasileiro de Homossexuais (EBHO),
LF integrou as Coordenações Organizadoras com 200 participantes de diferentes estados.
do H e do III Congresso da Mulher Paulista. Com presenãamajoritária degays,o LF esteve
A primeirae organizada apariãão do LF em presente trazendo discussões sobre as lésbicas,
público foi um escândalo, mesmo para as fe- o machismo e o feminismo. 0 I EBHO foi bu-
ministas. Nesses congressos, as lésbicas defen- rocrátic
o e cheio de discórdias que acabaram
diam que as mulheres lutassem pelo direito ao tensionando as relaqões dentro de um movi-
prazer e a sua sexualidade; que rompessem mento homossexual cada vez mais diverso e
com o círculo de opressão e subordinação amplo. Após a participaqão de algumas lés-
masculina que não aceitava o desejo da mulher bicas e gays do Somos na passeata do I * de
eque tornassem conhecimento de queheteros- Maio de1980 realizada em São Bernardo do
sexualidade era imposta a todas as mulheres Campo, instalou-se uma divisão irreconciliá-
como a única sexualidade "normal". Mas essas vel dentro do grupo. 0 LF reconheceu que não
ideias não eram bem-aceitas pela maior parte fazia mais sentido continuar brigando dentro
do movimento de mulheres e soava radical do Somos e assim, em 17 de maio, as lésbicas
para as feministas. Márcia Campos do grupo se retiraram de forma definitiva do grupo. 0
politico MR-8, por exemplo, questionava: "co- que fizeram foi tornar pública uma situado
mo pode uma mulher da periferia aceitar que que já havia de fato, qual seja, a autonomia
o seu movimento seja dirigido por lésbicas, total do LF. 0 nome então foi mudado para
como querem as mulheres de classe média do Grupo de A~o Lésbica Feminista-Galf. Agora,
movimento? A lésbica nega a sua própria con- tudo no feminino,
dição de mulher, não pode fazer parte de um 0 Galf atuava dentro do gueto de lésbicas
movimento feminino". Publicamente, duvida- vendendo boletins, panfletava folhetos de
vam da representatividade das Coordenaqões conscientizaqão sobre discrímina9ão e violên-
por nelasconter "sapatonas". Direito ao corpo cia contra as lésbicas e divulgava as atividades
e ao prazerera demais para ascompanheiras do grupo. Atuou fortemente contra a onda de
e camaradas da época. prisões arbitrárias, de torturas e de extorsão
Wilminha expressou bem a intenqão do LF: comandadas pelo delegado José Wilson Ri-
"Ora, se nossa principal questão era é visibili- chetti a partir de abril de 1980, ainda durante
dade, que nos vissem. Trazíamos uma postura a ditadura civil-militar de 1964. Os alvos da
sexual diferente e mal conhecida. um inusitado violência estatal eram homossexuais, travestis,
discurso sobre a sexualidade e uma determi- prostitutas, negros e desempregados. Grupos
nação em discuti-la. iremos lésbicas assumidas homossexuais organizados, o Movimento Ne-
no Brasil dos anos 80 e queríamos discutir les- gro Unificado (MNU) e grupos feministas
bianismo não mais como assunto privado, mas divulgaram uma carta aberta á populaãão re-
como questâopolítica."0 fato équeapresenqa pudiando essa violência e chamando todos
das lésbicas no movimento feminista impactou para um Ato Público no dia 13 de junho de
profundamente a discussão sobre sexualidade 1980 na frente do Teatro Municipal. Quando
junto as mulheres de baixa renda. Foi o início o ato saiu em caminhada pelo Centro de São
do desmonte da crença de que a mulher pobre Paulo,aslésbicascarregavam duas faixas com
não estava interessada em discutir sexualidade, os seguintes dizeres; Pela Prazer Lésbica e Con-
mas somente as desigualdades económicas. tra a violência policial. Esse evento político se
Além disso, a questão da sexualidade nâo ficou configuroucomo a primeira passeata LGBT
reduzida ao uso de contraceptivos, mas tam- da cidade de São Paulo. Mas a violência seguia.
bém envolvia a liberdade de eleger sua/seu Em 15 de novembro, o mesmo aparato policial
parceira/o de cama e de vida. fez uma operaqão de prisão delésbicasque,-ê
A PRESENCA DAS LESBICAS NO MOVIMENTO FFMINISTA
IMPACTOLI PROFUNDAMENTE A DISCUSSAO SOBRE
SEXUALIDADE JUNTO AS MULHERES DE BAIXA RENDA
ser 2
0 PODER DE NOMEAR
O
s nomes surgem como algo que nos Um exemplo é a atribuição do genérico
dão, que a nós atribuem. Contudo, nome "negros", surgido no século io, âs cen-
esses mesmos nomes são transforma- tenas de povos africanos explorados durante
dos, com a construsão que cada pessoa faz de o tráfico transatlântico, no período da escra-
si a partir de quem se considera ser, naquilo que vidão moderna que fundou as Américas sob
acatamos como nosso ou que mudamos para o a dominação europeia.
que melhor entendemos nos representar. Assim 0 termo,para além de se referir apenas
sedá com osindivíduos eosgrupossociais.Em as pessoas de pele escura, recebeu no século
geral ,ascriançassão chamadas carinhosamen- 15 uma carganegativa, contraposta a uma
te por nomes que lhes conferem dons, p rotec
ções suposta superioridade dos chamados "bran-
ou benefícios. Isso porque tendem a ser vistas cos". Também as pessoas trans —aquelas que
como parte relevante de quem lhes dá o nome. não se identificam com o gênero que lhes foi
0 mesmo já não ocorre com povos e grupos atribuído socialmente, ou seja, travestis,
sociais, principalmente quando estes são vistos transexuaise demais pessoas transgêneras
como "os outros". Isso é ainda pior quando —têm uma história mais antiga do que é co-
existe uma relaqão de poder desigual. mum pensar.
33 ESE N 235
SER TRANS NA HISTÓRIA
Anteriormente ao termo "transexual" havia Nos relacionamentos afetivos, tanto Hwame
"travesti"e,antes desta denominado,havia o quanto Aíyha eram refi:ridos pelos companhei-
"trans", do latim "além de". Ao juntarem o ros, respectivamente, como "marido" ou "espo-
trans ao "vestire", os latinos criaram o "trans- sa". Inclusive, as Alyha usavam a palavra mohave
vestire", referindo-se a quem exagerava na para clitóris a fim de sereferirem aos seus órgãos
roupa que usava. Os italianos do século 16 genitais, tal qual o termo "grandes lábios" para
popularizaram o termo, atribuindo-lhe um seus testículos e "vagina" para se referir ao seu
sentido adicional, a partir de expressões como ânus, o que também é uma prática comum entre
vhui ê travestito" (Eíe está disfarçado). mulheres transexuaís e travestis brasileiras con-
A palavra "travestito", com tal significado, temporâneas, que eventualmente aplicam a pa-
foilogo adotada pelos franceses,querelacio- lavra"grelo"ou "grelho" parao seu pênis.
naram o"disfarce"a um comportamento,tido
como ri dículoou falso,dehomem que se veste ENTRE 0 FAscJNIo E A AEJE()Ao
como mulher. Posteriormente incluída na lín- Em algumas culturas, as pessoas trans foram
gua inglesa, virou "travesty". Com os usos, o historicamente estigmatizadas, marginalizadas
adjetivo passou a ser utilizado, pejorativamen- eperseguidas devido acrença nasuaanormali-
te, para identificar uma popu Japão: a trans. dade. Isso porque o estereótipo do que seria
Entre os povos nativos norte-americanos, "natural" é que o gênero atribuído no nascimen-
pessoas que hoje identificariamos como trans to seja aquele com o qual as pessoas se identifi-
eram chamadas de "berdaches", atualmente cam por toda a vida e, portanto, espera-se que
mais conhecidas como two-spirit (dois espíritos), elas se comportem de acordo com o que secon-
referindo-se a ideia de que vivem papéis de dois sidera ser o "adequado" para esse ou aquele gê-
gêneros ou que são de um terceiro gênero. nero. No Brasil, ocorriam bailes de "travestis"
0 uso do termo "berdache" é criticado por no século 19, quando marinheiros eram recep-
ser antiquado e ofensivo, tendo em vista que não cionados no Río de Janeiro, dada a falta de mu-
era utilizado pelos indivíduos aosquais se referia: lheres com as quais dançar em momentos de
ele foi imposto por antropólogos que se basea- lazer, por homens vestidos de mulher.
ram na palavra Francesa para homem que se 0 fascínio misturado com abjecção tem sido
prostitui (garoto de programa, "michê"), "bar- praxe na rela9ão da sociedade brasilei
ra com as
dache", a qual, por sua vez, derivou-se do árabe travestis e as mulheres transexuais. A sociedade
"bardaj", que significa "cativo, prisioneiro". que sempre excluiu as travestis ainda não reco-
Para os Mohave, que habitam a região do nhece a plena humanidade de pessoas trans,
rioColorado,no deserto deMoj ave,pessoasque reagindo com histeria quando da visita ao Rio
identificaríamos como mulheres transexuais de Janeiro. em 1962, de Coccinelle, artista e can-
eram chamadas de Aíyha. Tratadas com nomes tora francesa conhecida mundialmente como
femininos, elas precisavam assumir hábitos estrel adatrupe ofi cialdacasanoturna Carrou-
considerados femininos, como costurar. Já os sel de Paris. Ela havia se submetido, em 1958, a
homens tidos por nós como transexuais eram uma cirurgia de redesígna9ão genital (antiga-
chamados deffivarne.Tratados como homens, m entechamada, de forma inadequada, de "ci-
seguiam, casados, os tabus requeridos dos ma- rurgia de mudan93 de sexo") e foi a primeira
ridos quando as esposas menstruavam. mulher transexual a ter o seu casamento,
N'235 EãE 33
DO55IÉ 0 M O VIMENTO LGBT BRASILEIRO. 40 ANOS DE LUTA
54 EãE N'235
Como parte desse clima de intensa descri- Brasileiro de Transmasculinidades. As travestis
minarão,a acusa9ão chegou a afirmar que brasileiras construíram, ao longo de mais de
Farina queria que "bichinhas" maiores de ida- um século, uma Cultura do Corpo única, fun-
de conseguissem ser operados. damentada na linguagem falada, constituindo-
Curiosamente, pouco tempo depois, já nos -se como uma "oralitura". 0 impedimento do
anos 1980, a modelo e atriz Roberta Close se acesso pleno ao ensino formal é um dos fatores
tornou a principal referência imagética para envolvidos nessa realidade, que obrigou a co-
mulheres transexuais brasileiras. Nascida em munidade a se proteger e transmitir seus co-
uma família de classe média que a apoiava, em nhecimentos fora dos métodos disponibilizados
1984 ganhou o título de vedete do Carnaval a grupos sociais privilegiados.
Carioca e ficou nacionalmente conhecida Esse conjunto de saberes e fazeres tem sido
quando saiu nacapa daedição demaio daque- historicamente invisibilizado ou apropriado
le mesmo ano da Playboy.A manchete da re- por outros grupos sociais e movimentos, de-
vista revelava o estranhamento da mídia, con- vido á transfobia (preconceito contra pessoas
dizente com o pensamento social vigente ante trans) e o cissexismo (crença na superioridade
a uma mulher tão atraente: "A mulher mais das pessoas cisgêneras) entremeados na socie-
bonita do Brasil é um homem". Isso apesar de dade brasileira. 0 Brasil registra o maior nú-
a retratada sempre ter se identificado como mero de assassinatos de pessoas trans por
mulher, independentemente da sua anatomia crimes de ódio no mundo.
genital. Em outro trecho da matéria, eviden- Com a introduSão dos conceitos de "tran-
cia-seuma visão da pessoa trans como falsa, sexualidade" e de 'transgeneridade" no con-
mulher que não seria "de verdade", no lingua- texto brasileiro e a populariza9ão das teorias
jar coloquiaL "Incrível. As fotos revelam por queer, durante as últimas décadas do século 20,
que Roberta Close confunde tanta gente". vai-se consolidando um modelo de militância
As convenqões sociais sobre masculinidade focado em uma agenda de promoâão de inicia-
e feminilidade então vigentes dificultavam o tivas institucionais inclusivas, representada
entendimento de que o gênero daquela mulher pda política do nome social e na ideia de visi-
independia de características genitais: muito bilidade. A emergência do transfeminismo, na
rmado, elanão queria con- segunda década do século 21, tem estimulado
ao contrário do afi
fundir, mas queria se revelar. a discussão de temas como a autonomia do
movimento trans diante de outros movimentos
A ORGAISIZAQAO POLIVICA sociais, a luta internacional pela despatologi-
DAS PESSOAS TRAISS zaqão, a diversidade sexual e de gênero das
Em termos de organizadop olitica, em 15 de identidades trans, os privilégios da cisgeneri-
maio de 1992, foi fundada a Associaâão das dade, o reconhecimento da infância e adoles-
Travestis e Liberados do Rio de Janeiro (Astral). cênciatrans,a reparaqão dos déficitseducacio-
A data é comemorada pelo movimento trans nais,ainser9ão no mercado de trabalho formal
fiuminense como o Dia do Orgulho de Ser e a representatividade nas artes e na politica
Trans e Travesti. Entidades que surgem em partidária, questões essas que vão formatando
seguida são a Assocíaqão das Travestis de Sal- pautas políticas amplas, no complexo cenário
vador (Atras) e o Grupo Filadélfia de Santos, dos novíssimos movimentos sociais. 1E
em 1995;o Grupo Igualdade,em Porto Alegre,
e a Associa9ão das Travestis na Luta pela Cida-
dania (Unidas), de Aracaju, em 1999.
0 começo do século 21 testemunhou o sur-
gimento de entidades nacionais como a Articu-
laâão Nacional de Travestis, Transexuais e
Transgêneros (Antra), a Rede Trans e o Instituto
N'235 Eã9 zs
Múltiplas e diferentes
identidades
É PRECISO CONECTAR A POLITICA AS ESTRUTURAS
DE PODER QUE INCIDEM DIRETAMENTE
SOBRE A VIDA DOS SUJEITOS
REGINA FACCHINI
INTENSIDADES POãfTICAS E
EMOCIONAIS DO MOVIMENTO LOBTI
1
ornar-se ativista é um modo de reins- Mais ainda, o lugar de acolhida das inquie-
crever a própria história, de construir tações, dos receios e das dores e de constr~o
possibilidades de voltar a habitar um da esperança e de projetos de vida possível de
mundo devastado pela violência, pelos apa- um conjunto muito diverso de sujeitos. Não são
gamentos e exclusões. Nos últimos quarenta quaisquer sujeitos. São as(os) socialmente
anos, o movimento LGBTI tem sido mais do marcadas(os) a partir de sua sexualidade ou
que meramente representante das múltiplas identidade de género divergentesda norma e,
vozes e demandas que se incluem direta ou por isso, chamados a disputar discursos de ver-
indiretamente no acrónimo pelo qual se faz dade sobre asexualidade e a subjetividade. Bases
conhecido. Tem sido aquele que conta as intensidades políticas e emocionais são indisso-
mortes e agressões, que reconhece os corpos dáveis das disputas acerca do melhor modo de
e zela pelo enterro digno daqueles(as) que dizer de si e de suas demandas, que constituem
não contaram com familiares que pudessem os fluxos de linguagem, práticas e sentidos que
fazê-lo, que alerta sobre os riscos e que faz atravessam asteiasde anões entre indivíduos
com que seus mortos tenham voz e conju- e ínstítuiqões que integraram o movimento
guem verbos. LGBTI ao longo de sua trajetória.
as Síís N 235
A NOhllOSSEXUALIDADE
COM O SUBSTANTIVO
As primeiras iniciativas ativistas reconhecidas Talmobilizado pmcuravaapaziguar asten-
como explicitamente politizadas datam do sões em torno de tomar a categoria homossexu-
final dos anos 1970. Entre o final dos anos 1970 alidade como um s tantívu Contudo, deixava
e meados dos anos 1990 há um momento em abertas as íntersecrpes entre sexualidade, gêne-
que se dá um "centramento" do então chama- ro e ra', que já haviam demonstrado sua im-
do Movimento Homossexual Brasileiro portãncia desde os primeiros momentos do
(MHB) em torno da unirão substantivada de movimento, mas também as tensões em torno
homossexualidade. da estabilidade da identidade sexual e do encap-
Ao finaldos anos 1970,momento em que sulamento da potendal fiuidez do desejo.
os primeiros grupos de refiexão eafirma9ão
do MHB iniciam suas atividades e constmem A CIDADANIZAQAO DOS SUJEITOS LOET
boa parte da pauta politica em torno da qual Os anos1990 e 2000 assistem a um processo
atua até os dias de hoje, o assumir-se" emerge de ddadaniza9ão dessessujeitos pogticos e um
como ferramenta política que era usada ainda descentramento" que faz emergir o movi-
por poucas pessoas eolhada com desconfian9a mento como LGBT. Tem como condi9ões de
por tantas outras. possibilidade a "redemocratfzs4ão"; a visibili-
Debates e tensões focalizavam oposiãões dade que o sensacionalismo midiático traz ao
como serou estarhomossexual ou criticavam associar aids e homossexualidade; a chamada
que setornasse homossexualidade como subs- "resposta coletiva a epidemia"; a apmxíma9ão
tantivo. Era um momento marcado por forte entre setores de Estado e movimento na for-
impeto antiautoritário e por projetos de trans- mula9ão, implementa9ão e avaliaqão de poH-
forma9ão social mais amplos. Outras tensões ticas públicas e a consequente insfitucionali-
nos primeiros grupos ativistas remetiam tanto zaqão do movimento; além de um cenário
a representa9ão de questões de gênero e de ra- permeável aos direitos sexuais e repmdutivos
9a na prática cotidiana dos grupos quanto a no ámbito das Na9ões Unidas.
diferentes projetos de transformaqão social, Intensificam-se lanqamentos de candida-
opondo autonomistas esocialistas. turas, criado de projetos de lei, incidência
A partir de meados dos anos 1980, apesar poútica dirffpda principalmente ao Legislativo
da reduqão expressiva da quantidade de gru- e ao Executivo, partic ipado em espaqosde
pos e das dificuldades trazidas pela epidemia diálogo socioestatal, como comites e conselhos
do HIV/aids, há mudanças significativas, com enas conferênciasdestinadas a embasar afor-
o crescimento da influência de ativistas cuja mulaqão e aavaliado depoliticas públicas.
atuaqão é mais pragmática e dirigida para os Embora a homossexualidade apare9a pela
direitos de homossexuais. primeira vez em um documento público fede-
É fundamental nesse pmcesso de "centra- ral não relacionado especificamente á saúde
mento", ou de produ9ão de um sujeito políti- ainda durante o governo de Fernando Henri-
co estável, a vitoriosa campanha que levou á que Cardoso, o ápice desse processo se dá ao
obtenãao de parecer do Conselho Federal de longo das gestões do Partido dos Trabalhado-
Medicina (CFM) e a retirada do "homosse- res no Governo Federal. Tem como marcos o
xualismo" do código de doenãas utilizado no lanqamento do Programa Brasil sem Homo-
Brasil, em 1985. fobia, em 2004, e a imagem do então presiden-
A demanda pela não discriminado por te Luiz Inácio Lula da Silva segurando a ban-
orienta9ão sexual levada á Constituinte de deira do arco-iris na abertura da I Conferência
1987-8 e a luta pelo direito a vida, representada de Políticas para LGBT. em 2008.
pelas demandas de combate á epidemia do HIV/ 0 diálogo socioestatal exigia dara delimi-
aids e á violência letal. colocaram em cena a taqão de sujeitos e demandas, o que levou a
mobilizapão da categoria orieutafão sexual. duas respostas diferentes.
A primeira, uma ênfase na clara delimita- ATIVISTAS LGBT FORTALECEM
qão de identidades e o consequente acirramen- SUA ORGANIZA/AO NO INTERIOR
to dos processos de disputa por visibilidade DE OUTROS MOVIMENTOS
no interior de um movimento no qual o sujeito
SOCIAIS, COMO 0 MST, E SEGUEM
poHtico se torna mais e mais complexo. Mul-
tiplicam-se as redes nacionais e regionais de DISPUTANDO ESPAQO EM
organizações,mas também as letrasdo acró- PARTIDOS POLÍTICOS E BUSCANDO
nimo que nomeia o movimento, cuja ordem REPRESENTAUAO POR 'VIA
seestabiliza apenas com a adoqão da formu- ELEITORAL
lagão LGBT — lésbicas, gays, bissexuais, tra-
vestis e transexua is —
na I Conferência Nacional
de Políticas para LGBT, em 2008. Criam-se,
ainda, articulações entre LGBT e outros "seg-
mentos", de modo a constituir grupos e redes
de negras(os) e de jovens LGBT.
A segunda resposta, a visibilidade massiva
protagonizada pelas Paradas do Orgulho, é,
em parte, complementar a incidência política,
visto que dava corpo, por assim dizer, a "co-
munidade", mas também a dotava deuma face VIR CENÁRIO RIELANCÓLICO NOS ANOS 2010
mais plural, produzindo deslocamentos em Embora conquistas como o reconhecimento judicial das "uniões ho-
relaqão a estratégias vitimistas. moafeti vas",o acesso a mudanqas corporaisparapessoas trans no SUS
A difusão de todo um vocabulário marca- e as portarias que reconhecem o direito ao uso do nome social tenham
do porcategorias como "populaqões","seg- transformado a vida de LGBT no país,o cenário no início dos anos
mentos", "especificidades" e "transversalida- 20IO era um tanto melancólico.
de" e as disputas por recursos sempre escassos, Por um lado, crescia no interior do próprio movimento uma in-
faziam com que comitês técnicos e plenárias quíetaqão com relaqão aos limites dos espaqos de particípaqão e ao
de conferênciasseconstituíssem como espaços escopo efetivamente alcançado pelas políticas direcionadas a LGBT.
privilegiados de conflito e de pactuaqão, de Por outro, intensificavam-se os sinais de uma "polítizaqão reativa" do
construção da unidade. campo religioso e da articulação dessareaqão com outrossetorescon-
Tratava-seainda decriarpontesentre clas- servadores no campo politico.
sificaqões oficiais e as formas de autoatribui- Isso nos leva ao cenário atual, no qual há uma diversificaqão nos
qao encontradas nas "bases". É esse o processo modos de fazer do ativismo, muitos dos quais deixam de ter na figura
que faz emergir demandas pelo reconheci- do Estado o principal interlocutor.
mento da necessidade de combater especifica- Este momento aprofunda mudanqas que já se faziam sentir desde a
mente a íesbofobia e a transfobiaeque,ao fi
desse momento, conduziu ao emprego da ca-
nal institucionalizadodosmo-
década anterior. Massificavam-se criticas ã
vimentos sociais e a possibilidade mesma de representaqão política, com
tegoria LGBTfobia. desvalorização do "essencialismo estratégico" e descrédito nas possibi-
lidades de obtenqão de direitos via diálogo com instâncias estatais.
Tal cenário tem sido marcado pelo desfinanciamento de organiza-
çõesnão governamentais,pela desvalorizaqão de formas institucionais
deorganizado eatuaqão e pelavalorizado da horizontalidade, da
autonomia, da "espontaneidade" e da instantaneidade da reaqão das
ruas e das redes e do artivisrno. É ainda atravessado pelo processo de
impeachment da presidenta Dilma Rousseff e pelo violento e rápido
ataque a estruturas governamentais, garantias legislativas, mas também
a lideranqas e formas de organizaqão políticas, que visavam combater
e corrigir desigualdades sociais no Brasil.
REENCANTA NDO A POLÍTICA
EM NOVAS PRENTES DE LUTA institucionais seguem incidindo sobre os ru-
Os efeitos da popularização da internet e do aces- mos da política sexual, especialmente em es-
so ao ensino superior, bem como o acesso facili- paços mais permeáveis. Ativistas LGBT forta-
tado a aportesteóricos,sefazem sentirnasgera- lecem sua organizafão no interior de outros
Sões mais jovens de ativistas, com destaque para movimentos sociais, como no MST, e seguem
a difusão dos estudos queer, de teorias intersec- disputando espaqo em partidos políticos e bus-
cionais e decoloniais e do feminino negro. candorepresentadoporvia eleitoral.
Novascategoriasdeidentidade eprocessos Vivemos um momento político permeado
de produção e mobifizaqão de identidades por altas voltagens emocionais, no qual o ter-
também ganham lugar. A ênfasena experiên- ror é evocado frequentemente pela acelerada
cia como base de legitimidade política cresce. retirada de direitos sociais, trabalhistas e se-
A mobílizafão da noção de lugar defala des- xuais e reprodutivos, pelo esvaziamento ou
loca o modo negociado como vinha se produ- destruiqão de projetos de futuro.
zindo a relação entre diferenças relativas a A atual ênfase na experiência funciona a
gênero e rapa e visibilidades, colocando o cor- um só tempo como forma de contraste em re-
po aocentro para autorizar ou barrara apari- lacão as políticas de identidade do período
ção dos sujeitos.Emergem também processos anterior, mas também como forma de reen-
de construvão de um "outro não marcado", cantar a política. conectando-a ao cotidiano e
protagonizados por sujeitos cuja visibilidade a estruturas de poder que incidem diretamente
foi insistentemente negada, como no caso da sobre a vida dos sujeitos e daqueles(as) que
produção e mobifizaqão das categorias cisgê- consideram como sendo os(as) seus(suas).
nero e cisnormatividade por ativistas trans. Apesardo cenário de forte retrocesso, re-
A própriaunirão de homossexualidade pra- tomar a trajetória do movimento e de seus
ticamente desaparece de textos acadêmicos e experimentos e apostas políticas evidencia os
do vocabulário político e a apropriação de re- avança, sobretudo aqueles que não serão des-
cursos teóricos, muitos oriundos de perspec- truídos porque se incorporaram aos próprios
tivas feministas, coloca ao centro as transiden- sujeitos. Evidencia também as várias frentes
ridades, as lesbianidades e as bichas, sapatões de luta e, embora parte significativa das(os)
e trans pretas elou periféricas, empoderadas e ativistas não espere mais construir unidade
com formas de visibilidade renovadas. política, ajuda a entrever possiveispontes ou
Entre as formas de atuagão mais institu- pontos de contato. 8
cionalizadas ou afeitas ao diálogo com atores
estatais, emergem mais fortemente enquadra-
mentos que enfatizam a dor e o sofrimento, a
partir das figuras das mães deLGBT, de LGBT
periféricos(as),de travestis e de transexuais e
das pessoas intersexo.
Desde meados dos anos 2000 intensificou-se
a incidência política de redes ativistas no Judici-
ário, com resultados importantes como as deci-
sões do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre
as"uniões homoafetivas"esobrea alteraqão de
registro civil de pessoas trans sem necessidade
de laudos, cirurgia ou decisão judicial.
Embora com menos acesso a recursos e
em um cenário político muito desfavorável,
as organizaqões e conexões construídas no
periodode maior ênfase no ativismo por vias
v'zss ~ sv
Amparo e
solidariedade
AS NOVAS FRENTES DE LUTA E RESISTÊNCIA
DA COMUNIDADE LGET
N
a pauta LGBT do século 2 1,muita luta Em 2011, o Supremo Tribunal Federal
ocorreu no Brasil, e osavança nãose (STF) decidiu pelo reconhecimento da união
deveram aoCongresso Nacional,te- estávd entre pessoas do mesmo sexo. Em 2013,
oricamente responsável por aprovar leis favo- foi a vez de o Conselho Nacional de Justi9a
ráveis á democracia. Na verdade, pouca coisa aprovar resolu9ão que permitia a todos os car-
evolui u desde quando aentão deputada federal tórioscelebrarem o casamento entre pessoas
Marta Suplicy apresentou o projeto da chamada do mesmo sexo. Em 2017, o STF decidiu ainda
Parceria Civil Registrada, em 1995. Passando mais: equiparou a união estável e o casamento
de "uniao civil" a "parceria civil registrada" e civil quanto aos direitos de herança.
"pacto civil de solidariedade", as mudan9as dos A comunidade LGBT saudou as vitórias e
sucessivos projetos foram desfigurando a ideia investiu pesado, seja na união estável. seja no
original. Ainda assim, a pauta continuou fir- casamento civil. No mesmo ano da sua apro-
mementebarrada pelasbancadas fundamen- vaqão,ocorreram 1.252 contratos de união
talistas. Depois de duas décadas, o osso ao qual estável no pais, passando para 2.044 em 2013.
os conservadores seagarravam como seu gran- Depois da permissão do Conselho Nacional de
de trunfo foi se mostrando desgastado. Além Justi9a, os casamentos homoafetivos saltaram
de se verem confrontados por novas questões de 3.701 em 2013 para 5.614 em 2015, Ainda
polémicas na pauta LGBT, aqueles parlamen- antes da decisão do CNJ, os Tribunais de Jus-
tares, que sejulgam detentores do poder divino tiqa de vários estados jí haviam editado norma
para abenqoar ou amaldiqoar as pessoas, se para os cartórios acolherem as solicita9ões de
viram atropelados pelo Poder Judiciário. casamento homoafetivo. Na cidade de São
40 REI N'235
Paulo, dos bairros mais populares aos mais 0 AVAIãgO DA VISIBILIDADE EOCIAL
sofisticados, foram registrados em cartório Ocorreuum verdadeiro furacão culturalquan-
cerca de dois contratos de união estável por dia, do Daníeía Mercury, uma das maiores cantoras/
em 2014. Muitos dos casais começaram a adi- compositoras brasileiras e queridissima pelo
cionar formalmente o sobrenome do(a) pííblico, anunciou seu amor por outra mulher,
parceir o(a)ao seu próprio nome. Como forma Malu Verbosa, profissional consagrada na área
de celebraãão massiva, em várias partes do país de jornalismo, TV e rádio. A cantora já era en-
ocorreram cerimônias coletivas de casamento tão mãe de cinco crianças, tres das quais ado-
homossexuaLEm dezembro de 2015,o projeto tadas,eavó deuma menina. Tinha acabado de
Justiqa Itinerante, do Tribunal de Justiqa de se separar amigavelmente do marido. Em 3 de
Alagoas, oficializou coletivamente a união de abril de 2013, Daniela postou no Instagram:
quatorze casais homoafetivos, em Maceió. "Malu agora é minha esposa, minha família,
As repercussões se multiplicaram em seto- minha ínspíraSão pra cantar". Esse comunicado
res até então inatingiveis. Com base em deter- sudnto, acompanhado de várias fotos de clima
minações judiciais, em 2013 a Justiãa Federal amoroso entre ambas, criou um atropelo na
de Pernambucoabriu precedenteao obrigar o mídia com pedidos de entrevistas. A repercus-
Exércit o a reconhecercomo dependente ocom- são chegou também a outros países.
panheiro de um sargento. Em 2015, por sua vez, 0 Brasil inteiro acompanhou o evento —in-
o STF determinou aretirada dostermos "pede- clusive por algumas midias sensacionalistas,
rastia" e "homossexual" do Código Penal Mi- que surpreendentemente se manifestaram com
litar. Em 2016, um soldado da Brigada Militar respeito eadmirado. Umareportagemjorna-
(PM gaúcha) obteve autorizaãão para vestir o lística resumiu o rima criado: "0 canto da ci-
uniforme de gala na cerimônia de casamento dade e do país, ontem, foi de Daniela Mercury.
com seu companheiro, em Porto Alegre. Aliás, Começou de manhã, quando acantorafezuma
o soldado Miguel Martins só decidiu usar a emocionada declar
adodeamoraoutramu-
farda em represália aos comentários homofóbi-
cos de que foi alvo nas redes sociais. Como disse
lher. E terminou á noite, com outra declarado
de Daniela — desta vez de guerra — ao pastor
o comandante-geraldaBrigada gaúcha,coronel Marco Feliciano (PSC-SP), presidente da Co-
Alfeu Freitas Moreira, ao dar a autorizagão: missão de Direitos Humanos da Cãmara, acu-
"Quanto mais os policiais militares estiverem sado de racistaehomofóbico."De fato,em um
bem na vida particular, melhor será." comunicado ã imprensa, ela afirmou: "Numa
época em que temos um Feliciano desrespei-
tando os direitos humanos, grito meu amor aos
sete ventos. Quem sabe haja ainda alguma lu-
cidez no Congresso Brasileiro".
Pelas redes sodais. 13aniela e Malu deixaram
claroque setratava,além de tudo, de um gesto
de afirma+ política dos direitos da comunida-
de LGBT,enão pouparam ataquesaos funda-
mentalistas. Como disse Daniela: "Duas mulhe-
res juntas é um tapa na cara dos machistas". De
todas as partes, os grupos LGBT manifestaram
comta;ão e alegria. Em Brasília, pessoasque pro-
testavam contra Marco Feficiano diante do Con-
gresso Nacional cantaram o maior hit de Danie-
la, "Canto da cidade". Em Teresina, manifestantes
usaram fotos com o msto de Daniela para pro-
testar contra os fundamentalistas. •0
NOVOS DIREITOS, NOVAS
Sem nenhum interesse em esconder a foiqa RESPONSABILIDADES
do seu amor, Daniela e Malu se casaram for- É claro que esses novos focos de resistência
malmente em 12 de outubro, poucos meses criaram novas responsabilidades e maior com-
após anunciarem seu amor. A cerimónia esti- plexidade, pelo nivel de ineditismo. Um deles
veram presentes familiares das duas noivas, foi o direito ã adoCão de crianças por casais
algumas pessoas amigas e os filhos de Daniela, homoafetivos e bissexuais. Após muitas con-
agora também de Malu. Vestidas de noivas, trovérsias no passado, a questão se resolveu
trocaram alianças entre si e acrescentaram o com aequiparadodedireitos das uniões e ca-
sobrenome de uma ao da outra. No livro Da- samentos homoafetivos aos heteroafetivos. Ju-
nielu e hfaíu: umu história de amor, escrito pelo ridicamente, isso levou ao corolário de que
casal, Daniela dizia esperar que "nosso teste- LGBT atendem a todos os requisitos do Estatu-
munho inspire mais gente a viver na luz" e que to da Criança e do Adolescente (ECA), sem
o seu compromisso matrimonial "simbolizou nenhum ponto de atrito com o direito de fami-
um século de conquistas por igualdade". lia. Assim, tornou-se fato consumado a legali-
0 casamento dessas duas mulheres valoro- dade da adoCão homoafetiva, seja individual-
sas selava a inevitabilidade de novos tipos de mente seja como casal em contexto familiar.
núcleo familiar, com a inclusão de famílias ho- Mas não foi uma batalha fácil. Em 2010,
moafetivas e sua luta pela adocão de filhos. no casode adoqão por um casalde mulheres,
Como dizia Judith Butler, criaram-se amálga- após oposição do Ministério Público do Rio
mas diferentes das estruturas familiares tradi- Grande do Sul, o Superior Tribunal de l ustra
cionais, pois a famiTia também é uma formaCão deu parecer favorávelde que nenhum estudo
histórica, cuja estrutura e cujo significado mu- indicavaqualquer inconveniência na adoCão
dam aolongo do tempo e do espaco. de crianças por casais homossexuais, "impor-
tando mais a qualidade do vínculo e do afeto
no meio familiar em que serão inseridas".
Com a decisão, a Corte abriu precedente para
a adoqão de crianças por casaishomoafetivos.
M as sóem 2015 a adoCão nesses núcleos foi
A ABERTURA DE TANTAS
considerada definitivamente constitucional
POSSIBILIDADES IDENTITÁRIAS pelo Superior Tribunal Federal, que se baseou
IMPULSIONOU 0 ACIRRAMENTO nos entendimentos de 2011 e 2013 de que o
DE "TRIBOS" DENTRO DA conceito de família inclui uniões entre pessoas
COMUNIDADE LGBT — FENÓMENO, do mesmo sexo, portanto "o conceito contra-
DE RESTO, VISJVEL EM OUTROS rioimplicaria forcar o nosso Magno Texto a
GRUPOS EMANCIPATÓRIOS incorrer, ele mesmo, em discurso indísfarCa-
velmente preconceituoso ou homofóbico".
ea Egl N'235
própria subversão das sexualidades não norma- 0 conceit o deempoderamento, tão em vo-
tivas. Com sua gr~ espontânea, apontam para ga etão pretensamente progressista,nãopode
uma benfazeja ruptura dos padrões da beleza significar que o poder de um grupo acabe por
hegemônica e estereotipada, que bombardeiam se impor, ainda que inadvertidamente. sobre
a sociedade contemporanea. outros. Tal virada de mesa mobiliza ressenti-
Por outro lado, a abertura de tantas possibi- mentos históricos que não levarão senão a um
lidades identitárias impulsionou o acirramento becosem saída,se de fato visamos a constru-
de "tribos" dentro da comunidade LGBT —fenô- ção de estruturas legitimamente democráticas,
meno, de resto, visível em outros grupos eman- vale dizer, diversificadas por natureza. As lutas
cipatórios. Na contramão das solidariedades por sociedades mais igualitárias implicam ne-
afetivas, o fenõmeno do politicamente correto cessariamenteabrirespaqo para a imensa di-
atingiu níveis de alerta vermelho. Tal como se versidade de cidadãos e cidadãs —venham suas
pode constatar nas redes sociais, sempre que as diferenqas de onde vierem. A democracia não
lutas emancipatórias levam a uma exacerbaqâo cabe em estreitas cartilhas de bom mocismo
impositiva e irracional, a "indignago" acarretou (nem de direita, nem de esquerda) que são fon-
uma onda de narcisismo doentio. Paradoxal- te de confrarias disfarçadas. De resto, há um
mente, nessesmomentos a corre@o política pas- risco autofágico muito comum entre movimen-
sou a praticar o mesmo nível do autoritarismo tos de liberaqão com políticas de afirmaqão
que pretendiacombater. toscas. 0 risco existe quando o tal movimento
Tal fenômeno veio acontecendo com a de "empoderamento"acaba se confundindo
multiplicação das letrinhas identitárias. Dis- com arrogância ou prepotência. Chega-se en-
putas, nem sempre surdas, passaram a ocorrer tão a um resultado daninho: a possível com-
entreosvários agrupamentos quase cifrados partímentalízaqão de cada luta específica, que
para gente não iniciada. As siglas variaram de mata a solidariedade e leva ao isolamento po-
LGBTT,LGBTTT, LGBTTTI até LGBTTTIQ+ lítico. Não é pouca coisa para uma comunida-
ou mesmo LGBT; em que o asterisco (") com- de desamparada,quando eladeixade amparar
preende um et cetera interminável. Isso que já a si mesma. As letras de um alfabeto se com-
abrangia uma parte considerável do alfabeto, pletam para formar signos de comunicaqão,
e tende a aumentar, corre o risco de atropelar não para criar novos armários. Não por acaso,
os fundamentos das políticas identitárias, le- na oficina "Artivismo da Fechaqâo", em 2017,
vando a um limite de saturaqâo e neutraliza- o coletivo Revolta da Lâmpada tinha como
qão mútua. Na ótica da solidariedade, que tema de um dos debates: "Estratégias de luta
deveria mover o ativismo dos excluídos, surge para rachar menos e somar mais." (Excerto de
inevitavelmente a pergunta: os direitos de um capítulo inédito da nova edição do livro De-
oprimido podem ocorrer em detrimento dos vassos no paraíso, a ser publicado no segundo
demais? Tal questão, e muitas outras por vir, semestre de 201S). 8
evidenciam aspectos incêmodos na luta pelos
direitos dos oprimidos, que também podem
ter sua cota como opressores.
Nâo sou daqueles que preferem esconder os
paradoxos da liberdade, sob pretexto de forta-
lecerosantigos opressores.Paraalém da para-
noia instaurada na base dessas disputas, acre-
dito que iluminar as contradições, por mais
constiangedoras que sejam, só faz enriquecer
o debate. Afinal, o que seestá almejando é uma
sociedade igualitária, e nâo a substituição dos
antigos donos do poder por novos senhores.
N'235 íããâl 43
D E S IG N
rasOTnr
'l~ — H
HNHOQ
cnOT rr co
A ARTE DA
REVOLUÇÃO
Há cem anos, eram criados na União
Soviética os Ateliês Superiores de Arte e
Técnica, cula efervescência revolucionária
inspirou a Bauhaus e o MoMA
4
uando assumiu o comando da recém- "As novas pedagogias adotadas nos Vkhutemas e em toda a Rússia
-formada União das Repúblicas So- se originam de um processo revolucionário que visava a mudanSas ra-
cialistas Soviéticas (URSS), Vladímir dicaisna educaqão,com o objetivo de form arecapacitarocidadão para
Lênin (1870-1924) não negligenciou um univer- o socialismo, gerando assim uma diferenciaãão histórica, política e ide-
so que muitos lideres políticos costumam tratar ológica em relação ao resto do mundo", explica o pesquisador da história
com desdém: a arte. Entre 1918 e 1930, o gover- do design e artista têxtil Celso Lima, cocurador, ao lado de Neide Jalla-
no revolucionário instituiu e fomentou, em geas, da exposição Vkhuremas 1918-2018: ofuturo em construfão, em
Moscou e Petrogrado (hoje, Leningrado), os cartaz no Sesc Pompeia de 26 de junho a 15 de setembro — aprimeira
Atdiês Superiores de Arte e Técnica (conhecidos mostra sobre o tema realizada nas Américas. Com cerca de 250 pe9as,
em russo como "Vkhutemas" —acrônimo de entrecartazes,fotografiase projetosarquitetônicos,a exposição tem o
VyschieKhudôj estvenn o-Tekhní tcheskie Msrster- intuito de "propiciar ao público uma ideia concreta e material do que
skfe), formados por cursos universitários de seria o novo mundo sonhado por esses artistas e designers", segundo
artese ofícios, como arquitetura, cerâmica e Jallageas, que também é pesquisadora de cinema e arte russa.
design, cuja proposta pedagógica articulava arte 0 primeiro esforçou de Lênin no sentido de criar uma nova escola
e revoluqão. Em seus poucos anos deexistência, artística soviética veio na forma dos "Svomas", ateliês livres de artes
e mesmo com recursos escassos,os ateliêsnão fundados em 1918, dentro dos quais eram propostos, pensados e deba-
somente contribuíram para a cría9ão de um tidos novos meios de ensino de artes e de design. Embora ainda não
novo pensamento sodalista, que desaftaria a até fossem cursos universitários, os Svomas se destinavam a capacitarão de
então hegemônica estética capitalista ocidental, alunos para escolas superiores de artes, arquitetura e design de objetos.
como também ditaram o design do século 20, Em 1920, a partir das experimentações dos Svomas, foram criados os
chegando a inspirar a escola alemã de Bauhaus Vkhutemas, cursos superiores de artes e ofícios que tinham um funcio-
e a arte moderna norte-americana — até serem namento incomum para aépoca,marcado pela igualdade entre alunas
completamente apagados da história durante o e alunos e por agendas inclusivas, que pensavam o fortalecimento das
regime stalinista, que, temendo sua prontidão reía9ões eaqões comunais, mesmo em um período de grande severidade
crítica, os desarticulou. econômica, logo após a Primeira Guerra Mundial e os primeiros tempos
de instabilidade política na União Soviética. nOs Vkhutemas colocaram
o conceito de arte de ponta-cabeka", afirma Jallageas. "Não mais para
decorarsalões,casas,igrejase palácios,mas para movimentar o pensa-
mento,propiciarnovasformas de percebero mundo", completa.
Desse ambiente multidisciplinar, livre e fértil, onde Wassíly Kan-
os designara e artistas gráhcos varvara stepanova dinsky deu aulas, por exemplo, surgiriam grandes artistas, entre eles
e Aleksandr Rodtchenko, 1923 Varvara Stepanova, pintora e fotógrafa; Lazar Lissitzky, arquiteto e
44 íãããl N'235
0
(5? 0
M7-
designar, e Aleksey Shchusev, arquiteto respon-
sável pelo projeto do mausoléu de Lênin. A li-
berdade que emanava dos Vkhutemas chegou s
aatrairo então diretordoMoMA, Alfred Barr, ut'lttesu
que modificou a estrutura do museu, tornando-
-o multidepartamental com base naexperiência
russa. Segundo Celso Lima, a própria Bauhaus,
aberta em 1919, teria sido inspirada nos projetos
e programas de ensino soviéticos, que o arqui-
teto Walter Gropius, fundador da Bauhaus,
visitara em outubro de 1918. "Ambas foram
berços da modernidade no século 20, e suas
linhas são uma heranqa poderosa para nós um
século depois", diz o curador. Ironicament, os
Vkhutemas entraram para a história simples-
mente COmO uma eSpéCie de sBauhaua ruSSa".
No entanto, embora a estrutura revolucio-
J l
nária e livre dos Vkhutemas Fosse inicialmente
encorajada,foiesta mesma característica que
levou ao fim da experiênciiL Durante o regime
stalinista, o espírito crítico cultivado nos ateliês
passaria aser visto com maus olhos e, a partir
de 1926, durante a implantaqão das novas dire-
trizes económicas de Stálin — oPrimeiro Plano
Quinquenal, que priorizava investimentos em
indústrias estruturais —, a ínstituiqão passaria
por um processo de sucateamento, no qual seus
ateliês livres passaram a ser marcados pela téc-
nicaem vez da experimenta~o. Em 1930, a
escola foi abruptamente fechada, e os ateliês
No alto, capa de Sophie
transformados em institutos independentes Lrssitzky-Kúppers e
controlados pelo Estado totalitário. "As riquís- Lazer Lrssitzky para
a revista URSS em
simas experiências de vanguarda dos anos 1920 em dar visibilidade a empreitadas socialistas Construção, n 2-3,
foram substituídas por ideias ultrapassadas de como esta ainda épequeno,em razâo do domí- 1940; e acima, cartaz de
Aleksandr Rodtchenko,
monumentalidade e obsolescência, na constru- nio cada vez maior do capitalismo. "0 impor- Knigui(uvrosk anúncio
ção de uma mentira épica de triunfo do socia- tante, neste momento, é que a escola seja ple- para o departamento
de Lemngrado da
lismo revolucionário, e a partir dos anos 1930 namente resgatada em termos de conjunto e Editora Estatal,
foram literalmente apagadas da cena histórica interdisciplinaridade, conforme foi concebida", utilizando retrato de
russa e soviética", resume o curador. Lilia Bnk, 1925
afirmaele — edaía im portância deuma expo-
Ainda hoje não existe um arquivo único siqão da envergadura de Vkhutemus 1918-2018:
que agregue toda aproduqão dos ateliês.Após ofuturo em construfão.Jallageas concorda:
o seu fechamento, conta Lima, muitas das obras "Propusemos essamostra de reconstru9ão, aqui
criadas em 12 anos de Vkhutemas foram des- no Brasil, para o espio dasofi cinas do Sesc
truidasou perdidas,'confinadas aosporôes dos Pompeia, pensado por Lina Bo Bardi principal-
museus e proibidas de serem exibidas em pú- mente para ser uma antiescola, um antimuseu,
blico", e só ganhariam o mundo no inicio dos em que arte e cultura estejam inseridas na vi-
anos 1990, com a dissoluqão da União Sovié- vênda da escola", declara ela, sintetizando o
tica. Mesmo assim, para o curador, o interesse espírito dos Vkhutemas. 18
N'235 Blgí 45
ESTANTE CULT
i) I ~
EXE RCÍ CIOS
DE RADICALI
WELINDTON ANDRADE
óó R5 N ' 2 35
• . I . 4 I • • '
• •
'
• •
• • '
' I • •
• • ' ' •
• •
• I • • I .
.
• I .
• I • • • •
'
• •
' I I '
• , •
• . . • • . •
• . • • •
• > • I I I • •
. I . •
'
• • • •
I • • • • I • ' • •
' • I
• I • • I . I • • '
'
•
• • • • • • • • '
• •
• , • '
. • . . . • . • • I I . • '
• •
'
•
'
•
•
'
• • •
• • I • . • . . • ' • • . • I •
• '
• I • • . • • • • •
'
• • • •
• • • • • •
I • • • • I
• • • I • • • • • • • ' • • ' •
'
• '
• • .
• ' •
• •
• I I • \ ' • •
. • • '
I • I I I • • • I •
• I • . • • I . • •
• • •
• • • . •
• • • • •
• I I • • e • . . . 4. . • • • • I • • • , •
• • .
• I I • I
'
•
' • • I I
• . • I • • • • . . I •
Í1
C IC C I Á
THEÁTRO
)I!"
cia Fosap '
M U N I C I RÁ E
richard str au ss
1 5a 2 5 d e ju n h o
Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo
Caraf Paulistano
fbdserto Minczuk, direcção musicale regência
Pablo Maritano, diregão cênica
l l s Itt co
48 âEIE N'rss
QUE MISTÉRIOS TEM CLARICET FRUTO E ORIGEM
0 enigma Clarice Lispector está presente em Clarice 0 título original do livro da qua-
não somente na epígrafe do livro de Roger Mello, ilus- drinista sueca Liv Strómquist ; f~~,'
trado por Felipe Cavalcanti — "... certos silêncios fazem resume-se a0 fruto do conheci-
meu fllho dizer: puxa vida, os adultos são de morte", mento. Em português, entretan-
como também dá nome a própria obra, constituindo to, a metáfora foi substituída por
um símbolo condensado que se desdobra em vários um torneio frasah A origetn do
sentidos ao longo da leitura. A cíta9ão clariciana foi mundo: uma história cultural da
retirada da crónica "Nos primeiros comeqos de Brasí- vagina ou a vulva versus o pa- A ORIGEM DO MUNDO
lia", publicada no Jornal do Brasil em 20/6/1970. A mes- UMA HISTÓRIA
triarcado. Apoiada já no início CULTURAL DA VAGINA
m a cidade em que nasceu o escritore onde a narrativa da obra por uma provocante OU A VULVA VERSUS
ocorre, nas décadas de 1960 e 1970, quando a capital "lista de homens que se interes- OLivPATRIARCADO
strómquist
do país vivia a sombria condi9ão de centro irradiador saram um pouco demais por raaousao Kristm Garrubo
de uma ditadura militar. É lá que vivem Clarice e seu aquilo que se costuma chamar RESERVE)ggggl
primo Terso.Além do nome da menina abandonada de 'genitália feminina'" e fazen-
pelos pais que protagoniza a história —ele talvez por ser do uso de um humor ora leve-
simpatizante ao regime; ela menteirônico,oraacentuadamente mordaz, aautoramos-
possivelmente por ser-lhe uma tra por meio de seus textos e desenhos as mais variadas
ferrenha opositora —, Clarice tentativas de padronizar, reprimir e até mesmo castrar o
também é o nome da escritora sexo feminino ao longo da história, percurso que a leva a
cujoslivros o paiesconde para partir da Idade da Pedra, passar pela mitologia hindu, pela
a mãe. Sobre esconder, ocultar, vida social da Grécia Antiga e pelos modos de representa-
fazer desaparecer, então, é que 9ão alegóricadaslendasefábulasmedievai spara chegar ã
trata o livro —que em inspirado modernidade de Sigmund Freud e Jean-Paul Sartre, des-
jogo de metalinguagem adverte dobrada na pós-modernidade do escritor Stieg Larsson e
para o perigo que livros repre- do rapper Dogge Doggelito, seus conterrãneos. Radical em
sentam, embora igualmente sua franqueza e coloquialidade, a obra —cujo título em
realce a espécie de fonte da vida português, cumpre notar, evoca a famosa tela pintada por
CLARICE
que eles constituem. Em tem- sugar Mello Gustave Courbet — indaga o porquê de as sociedades ali-
pos de aversão ã leitura e ã de- mentarem uma relação tão conflituosa e problemática-
mocracia, nada mais atuaL hostil,até— com a vaginaatravés dosséculos.
l 8ãÉÉãÉ
ÉI
RREB
N'235 Agl 49
LIVROS
AVENTURAS DA
DESOBEDIÊNCIA
Na república de Frédéric Gros, a formaqão politica
se dá em nome de uma dissidência cívica e diz
"não" a toda obediência irresponsável
I
riste espetáculo seria dado pelos leitores deste livro, se acaso se
contentassem com a posísão de espectadores. Assistindo as múl-
tiplas formas de obediência e aceitando as que o autor considera
inaceitáveis, duplicados no papel de coadjuvantes, os leitores teriam
saltado, sem perceber, da plateia para o palco onde se vai prolongando
a grande e monstruosa peSa da obediência. Um dos pressupostos de
Desobedecer —assim no livro como no ato de leitura que ele implica — é
que essa visão teatral da obediência nao apresenta —antes, limita-se a
silenciar, a representar —exigências intransferíveis, tais como a de to-
mar a palavra, ter a coragem de dizer a verdade, assumir a responsa-
bilidade pela verdade que se diz... Exigências demais, provavelmente,
sobretudo para aqueles "atores" que só podem ser mencionados entre
aspas, pois têm não apenas injuriado e agravado a miséria dos atores
de verdade, como têm sustentado a farsa e silenciado a catástrofe de
uma democracia acrítica.
Desobedecersignifica,portanto,aprofundar osporquês da obediên-
cia, desenvolvendo formas específicas do inaceitável. Significa, ao mesmo
tempo, defender a ideia de democracia crítica —no caso em pauta: uma
combinadopeculiar de exercícios de liberdade, igualdade e solidarie-
dade, com o imperativo da desobediência política. Significa, adernais,
propor um tipo de iniciado ã resistência ética. Não há dúvida de que
existem, no livro, muitas formas instigantes de reversibilidade, da sub-
missão a rebelião, da subordinavão ao direito á resistência, do confor-
mismo ã transgressão, do consentimento a uma certa acepi;ão de deso-
bediência civil. Nelas, os venenos de aceitai;âo mítica e ideológica é que
permitem extrair, a cada caso, um antídoto próprio. Sucede que cada
antídoto formula, por seu turno, o pmblema de novos e distintos níveis
de obediência-limite, ora nos ãmbitos da vivência social ou familiar, ora
nas esferas da experiência económica ou política.
Quem se aproxima do núcleo de sentido da submissão, por exemplo,
nele encontra o elemento da rebelião social do homem escravizado,
assim como é chamado a considerar o nível de uma superobediência da
servidão voluntária, no questionamento e na desmistificaSão operados
50 íãã9 H'235
porLa Boétie.Q uem sedescobrena passagem da subordinaqâo familiar pela consciência nítida de valores transcen-
ao direito de resistência, é interpelado a pensar a experiência-limite da dentes, pela convicqão, esclarecida por um
fllha de Fdipo, Antígona, nas leituras de Hegel, Hólderlin, Lacan, sentido moral superior, de leis que dominam
GeorgeSteiner.Q uem ultrapassa o conformismo, aproxima-se do ponto a humanidade e o tempo. 0 dissidente faz so-
de transgressão eni que é preciso interrogar, com Hannah Arendt, o bretudo a experiência de uma impossibilidade
processoEichmann, que "continua a obcecar a reflexão ética contem- ética. Ele desobedece porque jã não pode con-
poranea porque põe em movimento a dialética vertiginosa da respon- tinuar a obedecer". Diferentemente do objetor
sabilidade e da obediência"; perguntar-se também, com Gúnther Anders, de consciência,que desobedece em nome de
pelo processo da modernidade técnica como fermento do totalitarismo, uma obediência superior, o dissidente cívico é
levantando a questão dos efeitos éticos da extensão da máquina. "Frag- aquele queofaz a experiência súbita do intole-
mentaqão das tarefas, segmentaqão das atividades, o mundo técnico- rávd eseconscientiza. Ele experimenta uma
-burocrático fabrica individuos moralmente anestesiados". impossibilidade que o obriga a ruptura: não é
Depois da submissão, da subordinar,ão e do conformismo, quem possível continuar! 0 'não' da dissidência cí-
explorar o quarto núcleo de sentido da obediência. onde cada umobe- vica é um não em dobro: impossivel não fazer.
decee consentecomo cidadão,chegará ao ponto deinf lexão em que a 0 dissidente não pode continuar anã odizer e
politica é entendida como artícuíaCão racional de um "querer-viver jun- secalar,fingirnão saber,não ver.Essa dupla
tos". Percorrendo os modelos de Hobbes, Locke e Rousseau, diremos negaqão da dissidência não é dialética, não
com Frédéric Gros que, se há contrato social, "somos nós que queremos produzaafl rmaqão como realizar,ão e sintese.
fazerpolíticajuntos",m asse o contratoem causa não forfraudado, di- Ela provoca ruptura, estrondo".
remos que se trata de fazer, sobretudo, "comunidade política". Os mo- Se nunca é cedo demais para ser livre, se
vimentos de desobediência civil — os coletivos de contestaqão, não os nunca é tarde demais para fazer a coisa certa,
protestos atomizados —estão convidados a acompanhar o autor no ca- a prova dos nove dessa negad
o não dialética
pítulo oA caminhada de Thoreau", no qual se apresenta não somente a se daria no caso da desobediência ao poder
vida selvagem de um "ícone da ruptura" ou de um "símbolo da subver- formal (pseudoinstitucionalidade governa-
são", mas a caracterizar,ão da ideia mesma de desobediência: como ir- mental, jurídica e parlamentar), assim como
redutível a casos de objecto
de consciência (Arendt, Rawís); como pos- se daria no caso não menos concreto do poder
sibilidade de encontrar na desobediência "o princípio de uma conversão real (a economia política em exercício). Um
espiritual" (Tolstoi, Gandhi, Martin Luther King); como ato de um hegeliano em dissidência poderia, de resto,
"sujeito indelegável", aquele cuja fórmula é resumida exatamente pelo apreciar esta última passagem do veneno ao
próprio Thoreau ("Se não for eu, quem o será em meu lugar?" ) e cuja antídoto.Em suma: manda quem não deve,
réplica ecoa há muitos séculos, na voz de Hi- desobedece quem tem juízo. }R
lel
,o A nciao:"Se eu não forpormim, quem o
será? Seeu for só por mim, quem serei eu? E se
} EDEGER '" "' " " " " '
orrooroc r '" oroo DemOCraCia tranSCendental, POrtantO}
. R'"" " " Nestepasso a resposta seria "sim", conquanto
atravessássemos o pensamento de Kant e a
ÉDã re leitura de Foucault, sem perder de vista o
[)p que remanesce de subversivo na forma ambi-
.oo" DEGER
D " ;' vale nte da recusa socrática. Pois é justamente
R ruuoro~orrooroo eSSaluZ grega que O liVrO Sugere e VaireenCOn-
O
DESGí}EDEGER' trar na liqão de Meríeau-Ponty: sócrates tem
uma maneirade obedecer que é uma forma
de resistir". 0 passo seguinte consiste, agora,
Frédéric G roo em dar a palavra ao autor; oo demónio socrá-
'rrrOO«ao cairo Eoooido tiCOpermite abOrrlar O que eu CliamO de dia-
EEKER sidência cívica'. Entendo por isso uma deso-
HRER)REI
IEEED bediência que não é forqosamente sustentada
N'235 íãííãí 51
LIVROS
AMANDA MASSUELA
CORPO
M
ário de Andrade escreveu Mctcunu-
ítittt em seis dias. Em dezembro de
DE PIÁ.
amuleto roubado por um gigante comedor de
gente.Uma jornada que Oswald de Andrade
chamou de"nossa Odisseia" e que, 90 anos
sê íãããl N'235
Nascido de uma índia tapanhumas "no Macunaíma, frustrado por não conseguir reaver sua muiraquitã e a fim
fundo do mato-virgem", o herói de Mário de dese"vingar" dogigante Piaimã, vaiao Rio deJaneiro parasesocorrer
Andrade é ora índio negro, ora branco. 0 per- em "Exu diabo em cuja honra se realizava uma macumba no outro dia".
sonagem surge da bricolagem dos muitos mi- "Num momento em que pajés são acusados de satanismo e terreiros de
tos, lendas e contos indigenas lidos e anotados candomblé são queimados, o transformador rríckster Macu naíma tem
pelo autor ao longo de muitos anos. Sua traje- muito a nos ensinar em termos da pluralidade da nossa cultura numa
tóriacome9a a ser rascunhada nas margens época em que se tenta uma homogeneíza9ão tão grande", conclui Sá.
do segundo volume de Vom Roraima zum A professora afirma que„em termos de forma e conteúdo, a obra é
Orinoco, obra do etnólogo alemão Theodor o resultado do trabalho de um escritor para quem o ato da escritura
Koch-Griinberg. É ele quem registra, em 1917, não se manifestava como simples exercício do "mito da originalidade",
o mito de Makunaima, herói dos povos pe- mas como recriaqão,pesquisaecomposiqão de uma verdadeira"colcha
mons, habitantes do norte da América do Sul, de retalhos". "Macunaíma se constitui de muitas origens e histórias, o
entre Brasil e Venezuela — e que, etimologica- que torna a obra perfeitamente adequada para esse momento em que
mente,significa "o grande mau". o que vemos é justamente uma niultiplicidade de identidades", diz.
"Só que o Macunaima de Mário não é 'o A cantora e compositora lara Rennó ían9ou em 2008 um disco
grande mau'", observa Noemi Jaffe. "Ele tem inspirado na obra de Mário de Andrade, Macunaíma Ópera Tupí. "0
um lado bom, inocente, muito fascinado pelas personagem representatodas asquestões queestamos debatendo ainda
coisas. Mas é muito egoísta, intantil, tem 'cor- hoje,a questão indígena,negra,a opressão branca em cima de outras
po de adulto e cabeãa de piá', praticamente culturas e os reflexos socioeconômicos disso", afirma. Dois anos depois,
como o Brasil." 0 protagonista tem preguiqa, o álbum se desdobrou em uma "ópera-baile" montada no Teatro Ofi-
mente, dissimula, trai, transforma-se em for- cina. "No corpo de baile, os 'macunaímas' eram como marginais, me-
miga, pé de urucum e em um "lindo príncipe" noresabandonados,porque oprotagonistadeMário também representa
para conseguir o que quer. É um "herói sem essaspessoas que estão fora do sistema, os oprimidos".
nenhum caráter", mas não só pela falta de su- Mucunuíma estabeleceu uma rica e variada interlocuãão com o ci-
postos valores morais, como também pela nema,no fi
lme homonimo de Joaquim Pedrode Andrade, de 1969;com
ausência de características sólidas, como apon- o carnaval, no samba-enredo da Portela, em 1975; com o teatro, naaã
ta a leitura do crítico José Miguel Wisnik. 0 antológica montagem dirigida por Antunes Filho, ã frente do então
próprio Mário de Andrade escreveu, no pri- grupo Pau Brasil, em 1978. Na área da critica literária, deu origem a
meiro prefácioda obra, que "o brasileiro não inúmeros artigos, ensaios e livros, entre os quais se destacam Morfologia
tem caráter porque não possui nem civilizaqão do Macunaíma (1973), de Haroldo de Campos, e 0tupi e oalaúde: uma
própria, nem consciência tradicional". interpretafão de Macunaíma (1979), deGiid a e Mello e Souza. Ao com-
Professora titular de Estudos Brasileiros na pletar nove décadas, o título que constitui uma das invenções formais
Universidade de Manchester, no Reino Unido, mais importantes do modernismo brasileiro continua com muita dis-
LúciaSá afirma que a capacidade de transfor- posí9ão para estabelecer ainda outros diálogos. tg
ma9ão e a criatividade de Macunaíma não
devem ser vistas numa chave maniqueísta,
positiva ou negativa, entre o bem e o mal. "Co-
mo todos nós,ele é cruel,sádico e covarde,
mas também pode ser herói. Vejo Macunaíma
como uma fi gura que transforma a sociedade
brasileira e nos mostra a beleza das tradirões
intelectuais indígenas e de outras tradiqões que
formam a cultura brasileira".
No sétimo capítulo, por exemplo, ele narra
pela primeira vez no romance brasileiro um
ritual das religiôes afro-brasileiras quando
N 235 íããgí aa
COLUNAi
I . z
0
G
ã
I I I
I I
z 3
VLADIMIR SAFATLE
J ~ que p o deria ser a necessidade Ele parece ter uma espécie de neutralidade po-
para tal revolução linguística lítica. Pois destruir uma linguagem existente e
se demonstrarmos que a lin- construir uma nova em seu lugar só poderia
guagem exist ente e suaestrutura são funda- implicar a anarquia da vida social e a ameaça de
mentalmente adequadas âs necessidades do desíntegraqão da sociedade.
novo sistema? A antiga superestrutura pode No entanto, de certa forma, Stalin tinha
e deve ser destruída e substituída por uma razão. Há uma anarquia, uma quebra da arché,
nova no curso de alguns anos, a fim de dar uma eliminadod a ilusão da origem e do fun-
livre curso ao desenvolvimento das forvas damentoquando uma linguagem entra em
produtivas da sociedade, mas como poderia dinâmica de ruptura. Poderíamos partir desse
uma linguagem existente ser destruída e uma ponto a fim de nos perguntarmos sobre em
nova construída em seu lugar no curso de al- que condiqêes paralisaqões políticas ocorrem.
guns anos sem causar anarquia na vida social Por que há momentos nos quais a ímagínaqão
e sem criara ameaça de desíntegraqão da so- política parece entrar em compasso de blo-
ciedade? Quem a não ser um Dom Quixote queio, nos quais, mesmo sendo atravessada
poderia dar a si mesmo tal tarefa?" Stalin, por descontentamentos profundos, revoltas de
Marxisrn and linguistics. toda ordem, sociedades parecem não ter mais
Estas são palavras de Josef Stalin a respeito forqapara se transformar? Não seria exata-
de um debateque marcou época na antiga mente porque há uma linguagem nova que
URSS. Aquestão girava em torno da relação deveriaemergir e,no entanto,elanão emerge,
entrelinguagem e revolução. Uma revoluqão ou seja, a linguagem não aparece como motor
politica modifica ou não a estrutura da lingua- de transformagão política?
gem? Seria a linguagem uma superestrutura Comecemos por uma questão de princípio.
transformada quando rupturas sociais funda- Poisnosperguntemos pelascondições de pos-
mentais ocorrem? Como se vê, a resposta de sibilidade daquilo que podemos chamar de
Stalin é negativa. A vida da linguagem passaao lutas e conflitos sociais. Essas mesmas lutas e
largo das transformações econômicas e sociais. conflitos que fornecem a base da experiência
aa EãE NL235
política. Não se trata aqui de operar nesse registro imediato da presenqa
de experiências de sofrimento social e injustiqa. Faqamos uma questão
aindamais elementar,asaber,como sociedades traduzem experiências
de sofrimento social, como elas interpretam processos de injustiqa. Pois
há aqui uma questão vinculada necessariamente a dimensões de "in-
terpretaqão" e"traduvão".Podemos sentirsofrimento,mas háum exer-
cicio suplementar que consiste em traduzi-lo sob a forma de uma de-
manda social, interpretá-lo sob a forma de avões coordenadas. Uma
sociedadeéfundada,entre outrascoisas,em uma gramática deinscri-
qão de experiências sociais de sofrimento em modos específicos de
articulação de demandas.
Insisto nesse ponto porque creio que se trata de salientar a existência
de algo que poderíamos chamar de "gramática social de conflitos". Essa
gramática é a condição de possibilidade para toda experiência política.
Tal gramática determina a forma possivel das demandas e das lutas,
ela configura a estrutura dos sujeitos politicos e define as modalidades
gerais de agencia possível. Na verdade, tal gramática determina os li-
mites do que é possível e do que é impossivel para uma sociedade rea-
lizar e imaginar. A gramática define o que pode ser ouvido e percebido,
o que pode nos afetar. Neste sentido, ela é similar a uma gramática
linguística, com sua sintaxe, sua semântica, seus princípios gerativos.
Chamo atenção para esse aspecto porque uma questão fundamental
consiste em se perguntar sobre qual gramática social de conflitos res-
peitamos,qual gramática configura aforma da nossarevolta.No fundo,
continuamos a respeitar a mesma gramática que define os modos nor-
mais de funcionamento dos nossos vínculos sociopolíticos. Por isso, as
demandas de ruptura que enunciamos tendem a reiterar os modos
gerais de determinaqão social. Nós falamos a mesma linguagem da-
queles contra os quais nós nos batemos. Por isso, podemos dizer que
há uma gramática que se fortalece agindo em nós, agindo através de
nós, mesmo quando parecemos encenar nossa revolta e desejo de rup-
tura. Vladímír Maiakovski dizia que não há arte revolucionária sem
forma revolucionária. Nós podemos dizer algo semelhante: não há
política revolucionária sem forma linguística revolucionária. Forma
capazde romper agramática socialde conflitoshegemónica em socie-
dades determinadas.
Pararompê-laénecessário apoiar-se naquilo queégramaticalmente
impossivel, fazer circular enunciados políticos gramaticalmente impos-
síveis que constituem enunciadores emergentes. Nesse sentido, uma
questão fundamental seria: o que na atualidade é gramaticalmente im-
possível de enunciar? É em direcçã o ao ato de dar corpo ao impossivel
que caminha a emergência dos processos de transformaqão social. Pois
é possível que enunciados impossíveis sejam atualmente aqueles que são
falasdesprovidasdelugar,queabrem um campo de implicaqão genérica
na qual todo e qualquer pode assumir tal fala. Elas são falas marcadas
por uma universalidade destituinte, ou seja, universalidade cuja emer-
gência destitui as formas atuais de presenqa e existência. Isí
CARTAS
DOSEIE
C ULT
QUEM Stêto E 0 QUE A edigão 234 está recheada de
PENSAM AS "NOVAS" comentários extremamente coerentes
e argumentos válidos. A revista está de
DIREITAS BRASILEIRAST
0 uso das aspas iem novasi é parabéns, não consegui parar de ler.
Parabéns a equipe!
assenctal. Afinal, o novo nesse
I'Iattteus F.r«-
espectro é a falta de vergonha em se Lvtmta Id t ' x, Rv h
expor. 0 cheiro de naftahna exala.
suei ne Pe.et, ENTREVISTA
A direita brasileira está JESSÉ SOUZA
aparentemente crescendo, embora Na CULT 23d parece haver um
tenha vários grupos. A esquerda reducionismo, reconhecido pelo
próprio autor — "Claro, mas eu não
preasa saber se unir. Parabeniza mos
estou querendo reduzir tudo a luta pela
a CULT pelas várias análises sobre
as direitas brasileiras. Portanto, igualdade", e a redurâo se dá no ódio
tenho a audáma de sugenr o
ao pobre. Há neste reducionismo uma
constante acom negacão de uma constru cão que
panhamento da perstste há vmte e cinco séculov apenas
politica brasileira nos seus próximos
exemplares. os homens adultos, propnetános e
gregos partiapavam efetivamente da íÍÍÍIÍÍ Ílií
vida politica da pólis. Ainda somos uma
Importante que uma pubiicagão com sociedade que exclui mulheres, criangas Eacgsvá-Nos
e velhos, e estrangeiros, Praga 5anto Agostinho, 70 t 10' andar
o rigor da CULT aborda esta pauta
os negros e outras minonas. Paraiso • 5ão Paulo-SP• CEP 01533-070
sobre a direita, sobretudo para
úu t, . Á J Ám a , t te cartastgrevistacult.com.br
desmontá-la em sua essenaa: a
formulagão teórica.
BIANCA SANTANA
Pedro 2amba da d. Artuio
Hole, tendo acesso mais profundo ao
De liberal só tem a fachada mesmo, debate académico sobre miscigenagão,
não acho que a chave racial binária negro
na reahdade apenas exercem agões
x branco seis a mais adequada para o WILSON GOMES
de cunho conservador e que mantém
nosso pais Uma identidade mesttga me Gostei espeoalmente do texto de Wilson
o status quo. Nada de novo sob o sol.
parece agora mais interessante por dar Gomes sobre a geragâo de bolsonarotas
mais condtgões a um debate que não tem nenhum pudor de sertão
Só pra dizer que comprei a edigão na
intersecmonal que possa abrangera estúpida Texto muito interessante, mas
complexidade das discriminagões no é uma pena que essa legião nunca vailer
banca e foi grata surpresa ver que o
Brasil, que perpassam tanto "rega" ou entender algo assim.
dossiê desta revista conta
fundamentalmente com a contribuigão quanto localidade e classe P. » I ' , F'u a I I o
socioeconomica
de pesquisadoras. Mar* Telles, Rosana
Pmheiro-Machado e Tatiana Vargas • RRÁta
Mais, Camda Rocha, além da presenga D Ie e temente dc publicado na entrevista
honrosa do Mároo Moretto Que bom A miscigenação não passa de uma falsa ccm JatteSouza,osooolmtc as r fe u
democracia racial. A forma de acabar m atasde dtnhsio ac eendidstnc
ver mulheres tendo voz sobre tema tão apa tamento sadapo GeddeilteraLicms
com o racismo é a luta do ema I dor, ms ai s dedinhe o
necessáno de se debater
afrodescendente, as politizas de ações t a sportsdatpcrRodrigoRocha Lo ret.
5yd . M e lo
afirmativas, voltada para o povo negro.
Ane 5 Iva
x
o
0
tttttV ' l d
~
\ I'I u 8
tt
x
o
0
g4'(Á
o
N'235 EIÍE 57
«EULEIOACULT
<U LT
I •
3i.,
ga
Ora
@bamboletras @botocorderosa
Agora tem Revista CULT na Livraria Maisuma novidade aqui na Boto!
Bamboletras Agora temos a Revista CULT
• ., il''r
I
@chariesnascimento @alegrias.violentas
Quando a CULT traz dossiês sobre Difícil aceitar a morte de Hilda Hilst,
suas escritoras favoritas justamente num ano em que seu
trabalhoestá mais vivo do que nunca
EE íaja si'235