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piauí fevereiro
_ 197

genocídio s.m.
(c. 1945) extermínio
deliberado, parcial
ounossototal,
Acesse de t.me/BRASILTRASH
Canal no Telegram: uma
comunidade, grupo
étnico, racial ou
religioso

ANAIS DA INTENTONA _ Com reportagem de Breno Pires, análise de Fernando de Barros e Silva e ensaio de Miguel Lago
piauí_197_R$ 32,00_ano 17_fevereiro_2023
00197
RELEMBRAR PARA
NUNCA ESQUECER
Livro-reportagem que reconstrói a tragédia da
boate Kiss baseia nova série ficcional da Netflix

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Nesta reconstituição sensível e inédita da tragédia de Santa Maria (RS), a premiada


jornalista e escritora Daniela Arbex realizou centenas de horas de entrevistas com
sobreviventes, familiares das vítimas e equipes de resgate — ouvidos pela primeira
vez neste livro.

Usada como prova durante o julgamento do caso para sinalizar a sequência de erros
que levou à tragédia, a obra é uma homenagem às vítimas e um passo fundamental
para a construção da memória coletiva no Brasil. Sem memória, não há justiça.
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piauí 197 _
capa A tragédia
colaboradores_4 Quem fez o quê na edição de fevereiro
imagens Caio Borges

esquina_6 Restauradores do Senado recolhem os cacos da destruição bolsonarista; a militante que é o braço
direito (e esquerdo) da primeira-dama; histórias e lendas de um lugar mítico da música brasileira;
o jornalismo mudou, Fatima Ali continua a mesma; um indígena desaparece na beira de um rio;
devoção a uma beata agita Santana do Cariri; a torcida pelo Marrocos nos rios do Pará
imagens Andrés Sandoval

O POÇO
anais da intentona I_12 A vida depois do 8 de janeiro
Breno Pires + imagem Diego Bresani

QUATRO ANOS EM QUATRO HORAS


anais da intentona II_18 A apoteose do bolsonarismo e um conto de fadas
Fernando de Barros e Silva

PRENDAM OS PERFIS!
anais da intentona III_20 O futuro do bolsonarismo depois da quebradeira
Miguel Lago + imagem Beto Nejme

GUERRA E PAZ
portfólio_24 Dois ensaios fotográficos mostram a glória e o horror em Brasília
Diego Bresani e Gabriela Biló

UMA SOLUÇÃO RÁPIDA E SATISFATÓRIA


arquivos do golpismo_32
Acesse nosso Canal no Como os militares brasileiros
Telegram: ajudaram seus colegas bolivianos no golpe de 1971
t.me/BRASILTRASH
Walter Sotomayor

O HACKER E O DELEGADO
questões policiais_36 A Polícia Civil e o conluio com um criminoso para investigar Márcio França
Allan de Abreu + imagem Vladimir Živojinović

“EU PREFERIA IR PARA O HAVAÍ”


questões da imprensa_42 Janio de Freitas e a construção do furo jornalístico que sacudiu a República e marcou sua trajetória
Ricardo Balthazar + imagem Ricardo Borges

O REI QUE O BRASIL NÃO SOUBE VENERAR


heróis do gramado I_48 A vida de Pelé e a morte de Edson Arantes do Nascimento
Marcos Caetano
A imagem da capa desta edição é um
detalhe da cesta acima, que foi trançada O MINUTO 122’43”
em cipó-titica por yanomamis
foto_Egberto Nogueira
heróis do gramado II_52 O instante em que o mundo quase caiu. Depois, a explosão da alegria.
Mas o que estávamos comemorando?
Marcela Mora y Araujo + imagem Gastón Pérez Mazás

UM ARTISTA CONCRETO
questões estéticas_60 Allan Weber leva a realidade e o imaginário da favela para o mainstream das artes plásticas
Matias Maxx

AS ESTRADAS DE JOSÉ
memória_66 Escrevo entre duas devastações: uma delas acomete o corpo de meu pai e a outra é coletiva
José Henrique Bortoluci + imagem Caio Borges

ANASTÁCIA E A MÁSCARA: SETE VARIAÇÕES


poesia_70 Rainha ou princesa escravizada: a negra santa imaginada
Henrique Marques Samyn + imagem Gustavo Magalhães

SÉRGIO ABREU, OU OS MISTÉRIOS DA LUTERIA


obituário_71 A vida e a obra de um violonista excepcional
João Camarero + imagem Glauber Rocha

cartas_72 Incredulidade, macumba e uma capa destruída


CLASSIFICADOS – THE PIAUÍ HERALD
despedida_74 Foi demitido? Acabou a mamata? Anuncie conosco!
Olegário Ribamar

piauí_fevereiro 3
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colaboradores_ fevereiro

CAIO BORGES
Breno Pires Diego Bresani Gabriela Biló Henrique Marques Marcela Mora Walter Sotomayor

Breno Pires [O poço, p. 12], repórter da Columbia em Nova York e na Sciences editor da Folha de S.Paulo e correspondente a ser lançado em março pela editora
piauí baseado em Brasília, foi jornalista Po Paris. Ilustração de Beto Nejme. do Valor Econômico nos Estados Unidos. Fósforo. Ilustração de Caio Borges.
investigativo no Estadão.
Diego Bresani [Guerra e paz, p. 24] é fotógrafo Marcos Caetano [O rei que o Brasil não Henrique Marques Samyn [Anastácia
Carol Ito [Cartuns a partir da p. 14], e diretor de teatro. Gabriela Biló é fotojornalista soube venerar, p. 48], cronista, é especialista e a máscara: sete variações, p. 70]
jornalista, quadrinista e ilustradora, criou e trabalha para a Folha de S.Paulo. em comunicação e comentarista esportivo. é escritor e professor de literatura na
a série em HQ Novo Anormal, publicada Uerj e autor de Levante (Jandaíra) e
nas redes sociais da revista Tpm. Ganhou Walter Sotomayor [Uma solução rápida Marcela Mora y Araujo [O minuto 122’ 43”, Uma Temporada no Inferno (Malê).
o Prêmio Vladimir Herzog na categoria e satisfatória, p. 32], jornalista e escritor, p. 52] é jornalista e escritora argentina Ilustração de Gustavo Magalhães.
Arte pela criação da HQ Três mulheres da é autor de Relações Brasil-Bolívia: especializada em futebol sul-americano.
Craco, publicada na piauí em 2022. A Definição das Fronteiras (Verbena Tradução de Rubia Goldoni e Sérgio Molina. João Camarero [Sérgio Abreu, ou os
Editora) e Relaciones Brasil Bolivia: mistérios da luteria, p. 71], músico,
Fernando de Barros e Silva [Quatro anos em La Construcción de Vínculos (Plural). Matias Maxx [Um artista concreto, p. 60], dirige o IREE Cultura e é editor no selo
quatro horas, p. 18] é repórter da piauí e jornalista, fotógrafo e documentarista, Dissonante da editora Contracorrente.
apresentador do podcast Foro de Teresina. Allan de Abreu [O hacker e o delegado, p. 36], codirigiu o filme Juntando as Pontas.
repórter da piauí, é autor dos livros O Delator, Olegário Ribamar [Classificados, p. 74]
Miguel Lago [Prendam os perfis!, p. 20], Cocaína: A Rota Caipira e Cabeça Branca José Henrique Bortoluci [As estradas de é o patriota-chefe do periódico mais
cientista político, é diretor executivo do (Record). Fotografia de Vladimir Zivojinovic. José, p. 66] é doutor em sociologia pela reacionário do Brasil. Seus ghost-writers
Instituto de Estudos para Políticas de Universidade de Michigan e professor da são Roberto Kaz e Afonso Cappellaro.
Saúde (Ieps). Cofundador do Meu Rio Ricardo Balthazar [“Eu preferia ir para o Fundação Getulio Vargas (FGV- EAESP). 
e do Nossas, lecionou na Universidade Havaí”, p. 42] é jornalista. Foi repórter e O texto é um trecho do livro O que É Meu, Ilustrações de Esquina por Andrés Sandoval.

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Curadoria de Joice
Berth, Alexandre
Até 24 de fevereiro
Araujo Bispo e Sesc Carmo
Tadeu Kaçula
Com foco em experiências artísticas que não foram visibilizadas pela Semana
de Arte Moderna, exposição promove reflexão sobre a história e a identidade
paulistanas, e atualiza a questão: quem habita as margens da arte?

Fotografia: Carlos Moreira, 1974 | Registro: Everton Ballardin

Sesc Carmo | Rua do Carmo, 147 - Sé Visitação:


4 /sesccarmo | sescsp.org.br Segunda a Sexta, 10h às 19h
O idioma que usamos todos
os dias é explicado aqui
por um grande conhecedor
da língua portuguesa

Com o intuito de expor o trajeto de


formação da língua portuguesa, o
novo livro de Caetano W. Galindo
instiga o leitor a se questionar
sobre o idioma que utiliza no dia a
dia. Por meio de uma prosa fluida e
envolvente, o autor não só
reconstitui a história de nosso
idioma como também fala sobre os
desvios que formam Acesse
e modificam
nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILTRASH
a língua desde sua criação.

“ Não contente em ser um dos


melhores tradutores do país,
Caetano Galindo também nos
presenteia com uma das
melhores leituras da nossa
língua, sua história, seus
aspectos e usos. Este livro é um
passeio, uma navegação pelo
português e pelo Brasil.”

NOEMI JAFFE

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esquina

ANDRÉS SANDOVAL_2023
DEPOIS DA BARBÁRIE
Restauradores do Senado recolhem os cacos da destruição bolsonarista

“P
osso dar uma espiada?”, per- rava pinturas e fotografias. Numa tacada “Não faço ideia”, respondeu a si mesma, altura), e a moldura, feita de jacarandá
guntou Urbano Villela Neto. só, Villela retratou desde José Egídio Ál- achando certa graça da situação bizarra. maciço, é folheada a ouro. Por sorte, os
Andando lentamente, com os vares de Almeida, o marquês de Santo É um problema inédito para os restaura- bolsonaristas não conseguiram o que
braços cruzados à frente do corpo, ele se Amaro (1767-1832), primeiro presidente dores do Senado – talvez da República. queriam. “Imagina se isso cai em cima
aproximou dos quadros na parede. “Nos- do Senado, até o próprio Sarney. A partir Naquela tarde, depois de conversar com deles. Mata um”, comentou Monteiro.
sa... que coisa triste.” Diante dele, uma de então, o artista atualiza a galeria sem- o filho de Urbano Villela, Monteiro rece- “Gente... é muita ignorância”, respon-
extensa galeria com 69 retratos de ex- pre que um novo presidente do Senado beu duas servidoras do Instituto do Patri- deu o assessor parlamentar.
presidentes do Senado pintados a óleo. é eleito. Até hoje, foram apenas homens. mônio Histórico e Artístico Nacional

V
A última fileira, com os quadros maisAcesse O último a ganhar
nosso um retrato
Canal Davi (Iphan)t.me/BRASILTRASH
no foiTelegram: para que elas analisassem a tape- estindo jaleco branco, Raimundo
recentes, havia sido massacrada. Quatro Alcolumbre (União Brasil-ap). Concluí- çaria e ajudassem a pensar em soluções. Nonato e Priscila Rocha – ele, espe-
retratos estavam rasgados: dois de Renan da na pandemia, a pintura ainda não foi No dia 8 de janeiro, Monteiro estava cialista em restaurar quadros e obje-
Calheiros (que presidiu a Casa em duas exposta e assim escapou dos vândalos. em casa, dando uma festinha para uma tos tridimensionais; ela, em recuperar
ocasiões), um de José Sarney e um de Villela, que já começou a pintar Ro- amiga de sua filha. Recebeu a notícia papéis – puseram sobre a mesa algumas
Ramez Tebet. Os cortes eram sempre no drigo Pacheco (psd-mg), agora terá de da invasão pelo celular. Ao ligar a tevê obras de arte depredadas. No dia 13 de
rosto dos senadores. Outro retrato de refazer dois Renan Calheiros, um Sarney e assistir à quebradeira, ficou inconso- janeiro, sexta-feira, as peças já tinham
Sarney (que ocupou o cargo três vezes) e um Ramez Tebet. Felizmente, apesar lável. “Pensei: ‘Já era o museu. Já era o sido retiradas do museu e aguardavam
havia sido apenas borrado. da idade avançada, o pintor é bastante painel de vidro da Marianne Peretti.’” tratamento no laboratório de restauração,
Villela Neto já tinha visto, na im- ativo. Os retratos demandam até dois me- Teve uma crise de choro. “Invadiram e que fica dentro de um galpão em um dos
prensa, as imagens do estrago. Mas quis ses de trabalho e devem custar em torno estão destruindo a minha casa. A sensa- estacionamentos do Senado. A salinha
conferir pessoalmente. Os 69 retratos de 9 mil reais cada. “Destruir obra de ção era essa.” Felizmente, o painel de parece uma oficina, com martelos e cha-
são obra de seu pai, o artista Urbano Vil- arte é uma coisa que não tem justificati- Peretti, vitralista que deixou obras em ves de fenda pendurados na parede. Usan-
lela. As depredações foram feitas pela va. O que isso tem a ver com ideologia vários prédios de Brasília, sobreviveu do luvas azuis, a dupla avaliava os estragos
turba bolsonarista que invadiu a Praça política?”, reclamou Villela Neto. En- ileso ao dia de destruição. em um tinteiro de bronze – amassado por
dos Três Poderes no dia 8 de janeiro. quanto ele caminhava pelo museu, fun- Monteiro chegou cedo no dia se- bolsonaristas – que foi usado por senado-
“Meu pai ficou demolido naquele dia. cionários de uma empresa terceirizada guinte para avaliar os danos. O museu res do Império, em um quadro pintado
Chegou a chorar. A percepção do artista derrubavam o que restou das vidraças estava tomado por estilhaços de vidro e por Guido Mondin (1912-2000) – molha-
é diferente da nossa”, disse Villela Neto, quebradas. Outros pintavam o teto dani- por bolas de gude atiradas com estilin- do e espetado por cacos de vidro – e no
que administra o ateliê do pai, hoje com ficado do Palácio do Congresso. gue por alguns bolsonaristas. Um pó retrato rasgado de Sarney.
80 anos. O Museu Histórico do Senado esverdeado produzido pelos extintores “Aqui nós vamos pontilhar com tin-

U
Federal, onde ficam expostas as pintu- m assessor parlamentar entrou pela de incêndio cobria o chão, que estava ta. Vai ficar imperceptível”, explicou
ras, está em frente à rampa do Congres- porta do museu, olhou para o chão molhado por causa das mangueiras usa- Nonato, examinando a pintura de Mon-
so, invadido pela multidão golpista. e fez cara de dor, como se tivesse das pelos invasores. Havia, aqui e ali, din. Reparos no rosto retalhado de Sar-
No dia 11 de janeiro, quarta-feira, Vil- sentido uma pontada: “Ai... o Burle pedaços de madeira arrancados de uma ney não seriam satisfatórios: “De perto,
lela Neto confirmou o que já imaginava: Marx.” Estirada no piso de mármore, cer- mesa dos tempos do Império. A equipe você ainda conseguiria ver o rasgo”, ex-
não havia restauração que desse conta cada de pontaletes, estava uma tapeçaria do museu suspeita que os vândalos te- plicou o restaurador.
daqueles rasgos. O único que se salvou colorida feita pelo paisagista em 1973. nham usado esses fragmentos para ras- Os quadros destruídos de Villela pas-
foi o quadro manchado de Sarney. Como A peça, de quase 5 metros de largura, fica- gar os quadros de Villela. saram por uma autópsia. O tamanho dos
não chegou a ser perfurado, o retrato será va exposta em uma das paredes do Salão “Os caras subiram aqui nesse quadro cortes foi medido com régua e anotado
restaurado pelos especialistas do museu. Negro, bem ao lado da entrada do mu- e ficaram sacudindo para ver se derru- numa ficha. Embora sejam irreparáveis,
Coincidentemente, foi Sarney quem en- seu. No dia seguinte à invasão, foi encon- bavam”, disse Monteiro, em frente a nenhum dos retratos será descartado.
comendou os quadros, vinte anos atrás, trada longe dali, em frente ao plenário do uma pintura centenária de Gustavo Ficarão, por enquanto, guardados no la-
quando assumiu a presidência do Sena- Senado, rasgada e encharcada – não ape- Hastoy que retrata o presidente Deodo- boratório. “A ideia é que futuramente a
do pela segunda vez. O senador e ex- nas de água: o tecido cheirava a urina. ro da Fonseca, cercado de ministros, no gente possa mostrar os danos feitos no
presidente da República, apreciador das “Como é que limpa xixi?”, perguntou momento da assinatura da Constitui- 8 de janeiro”, disse Priscila Rocha. “Va-
artes e das formalidades, quis padronizar em voz alta a coordenadora do museu, ção de 1891. O quadro é enorme (tem mos guardar para contar a história.” J
o acervo do museu, que até então mistu- Maria Cristina Monteiro, de 51 anos. 4,4 metros de largura por 2,9 metros de Luigi Mazza

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A SOMBRA DE JANJA Como boa parte dos militantes, Janja visitá-lo na Polícia Federal – duas vezes. sângela Silva, não a esposa do Lula. Hu-
A militante que é o braço direito saiu da vigília e se dirigiu à praça. Preten- “Lula era muito grato ao povo que estava mana como ela é, valoriza o trabalho das
(e esquerdo) da primeira-dama dia ir ao fosso do palco com Lurian Cor- no acampamento. Ele se preocupava mui- mulheres, e eu a levo no coração, é uma
deiro Lula da Silva, filha do presidente, e to conosco”, afirma. “Curitiba é uma terra pessoa digna da palavra amizade”, afir-

E
la percorreu a Esplanada dos Minis- a advogada Gabriela Araujo, mulher de muito fria. A gente passou inverno, passou ma Oliveira, comovida.
térios no Rolls-Royce presidencial, Emidio de Souza (atualmente deputado tempestade, a gente levou tiro.” Ela também se emocionou no casa-
caminhou logo atrás de Lula no dia estadual pelo pt-sp), que tinham acesso mento de Lula e Janja, em maio de 2022,

N
1º de janeiro, indo do topo da rampa do vip. Mas Oliveira quase barrou a entrada ascida em Celso Ramos, cidade ca- do qual foi uma das duzentas pessoas
Palácio do Planalto até o Parlatório, e da futura primeira-dama. Ricardo Stu- tarinense de menos de 3 mil habi- convidadas. “Ver Lula conseguindo amar
estava perto do presidente quando ele ckert, fotógrafo oficial de Lula e hoje che- tantes na divisa com o Rio Grande novamente, passar por cima de tudo, de-
chegou ao tradicional coquetel para os fe da Secretaria Nacional do Audiovisual, do Sul, Oliveira tinha 7 anos quando a sua pois de tudo que enfrentou, me deu in-
convidados da posse. Não, não se trata viu a cena e agiu rapidamente para liberar casa foi inundada, em decorrência de um clusive um sentido de esperança para a
aqui da socióloga Rosângela Lula da Sil- Janja, que nem chegou a notar que por vazamento na barragem da Usina Hidrelé- minha vida”, diz. “Eu considero Lula e
va, a Janja, mas da chefe de gabinete da pouco teria sido vetada. Logo depois, Ni- trica de Machadinho. O infortúnio levou Janja um exemplo de superação.” J
primeira-dama, Neudicléia Neres de Oli- cole Briones, então responsável pelas re- seus pais a participarem do movimento Thais Bilenky
veira, mais conhecida como Neudi. des sociais de Lula, chamou Oliveira para dos atingidos pelas águas da barragem e
Na antevéspera da posse, Oliveira uma conversa discreta. Explicou que o a receberem lideranças em casa. A filha
teve a oportunidade de, a bordo do presidente, de dentro da cela, havia pedi- cresceu nesse ambiente de luta. Quando O CLUBE NÃO ERA NA ESQUINA
Rolls-Royce, sentir a brisa dos novos do que cuidassem bem de sua namorada ela estava com 15 anos, a lavoura de seus Histórias e lendas de um lugar
tempos no Cerrado soprar em seu rosto. – e que a namorada era Janja. pais foi afetada por um novo vazamento, mítico da música brasileira
Foi ela que ocupou o lugar da primeira- A militante buscou então se aproximar agora da barragem da Usina Hidrelétrica

P
dama no veículo durante o ensaio geral da socióloga, que, com o namorado tran- de Campos Novos, na região para onde rimeiro, a história. No final dos
do evento. Quando os ventos mudaram cafiado, andava carente. As duas passa- sua família havia se mudado. “Daí, então, anos 1960, uma turma de amigos
na capital federal, no dia 8 de janeiro, ram a conviver intensamente: jantavam, eu fui pro mundo”, conta Oliveira. Ela foi costumava se encontrar à noite em
domingo, ela estava ao lado de Janja iam a shows e militavam juntas. A amiga viver de maneira independente e ajudou Belo Horizonte para conversar, tocar vio-
para inspecionar a destruição causada também acompanhava Janja quando ela a organizar uma mobilização do mab em lão e cantar. O resultado da amizade foi
pelos vândalos bolsonaristas no Planal- fazia declarações de amor sob as janelas Alto Uruguai, no Norte do estado gaúcho. um disco luminoso, lançado em 1972,
to, no Supremo e no Congresso. da carceragem, colocando músicas mar- Oliveira foi uma das cinco indicadas com o nome de Clube da Esquina. As
Desde que foi convidada para ser a cantes do casal em volume bem alto para pelo mab para cursar jornalismo na Uni- suas canções abriram um novo horizon-
assessora da socióloga na pré-campa- Lula ouvir. Quando Oliveira fez aniversá- versidade Federal do Ceará, numa turma te à mpb, sintetizando muitas aspirações,
nha eleitoral, em setembro de 2021, a rio, em 13 de novembro de 2019, Janja especial organizada pela Via Campesina, poucas certezas e várias angústias de
catarinense de 32 anos não sai de perto publicou na sua página no Instagram: um movimento internacional de campo- uma juventude que vivia sob a ditadura
do “primeiro casal”. Não mesmo: até E você chegou assim na minha vida, neses. Em 2013, ela se formou e foi esco- militar. Já é hora do corpo vencer a ma-
nas viagens, ela se hospeda em um ane- de mansinho, ressabiada, mas de cora- lhida para fazer um curso de especialização nhã/Outro dia já vem e a vida se cansa
xo à suíte presidencial. ção aberto. Me deu a mão e nunca mais do mab em parceria com a Universidade na esquina/Fugindo, fugindo pra outro
Oliveira se considera antes de tudo soltou. Foi puro acolhimento e carinho e Federal do Rio de Janeiro (ufrj) cujo lugar, pra outro lugar, dizia a canção cha-
uma amiga da primeira-dama. O cargo eu te amei naquele
Acesse nossomomento
Canalem as tema era “energia
noqueTelegram: e sociedade no capita- mada, justamente, Clube da Esquina.
t.me/BRASILTRASH
como chefe de gabinete vem depois, ela lágrimas escorriam do meu rosto e você lismo contemporâneo”. Três anos depois, Depois, o mito. No bairro Santa Te-
diz. As duas tiveram o primeiro contato simplesmente me abraçou e me acalmou. mudou-se para São Paulo a fim de tra- reza, a esquina formada pelas ruas Divi-
em 2018. Quando Lula foi preso, no dia Te amo com toda força do meu coração. balhar como coordenadora de comu- nópolis e Paraisópolis se tornou um dos
7 de abril daquele ano, militantes da Oliveira nega que tenha sabido do rela- nicação do mab, cuja sede é na capital pontos históricos de Belo Horizonte. Até
Central Única dos Trabalhadores (cut), cionamento entre Lula e Janja antes que paulista. Filiada ao pt desde 2011, Olivei- uma placa foi afixada na frente da casa
do Movimento dos Trabalhadores Ru- ele se tornasse público. “A minha postura ra foi enviada a Curitiba na época da que se alonga pelas duas vias, para infor-
rais Sem Terra (mst) e de outras organi- enquanto dirigente de uma organização prisão de Lula, e só deixou o Paraná ao mar que ali nasceu o Clube da Esquina
zações montaram acampamento em social era defender o presidente Lula. lado dele e de Janja, em 2019, todos pron- de Milton Nascimento, Fernando Brant,
frente à Superintendência Regional da O que Lula faz na vida pessoal dele não tos para iniciar a campanha presidencial. Toninho Horta, Wagner Tiso, Beto Gue-
Polícia Federal em Curitiba. A chegada me diz respeito. Sempre respeitei muito Esse percurso demonstra a dedicação des, Flávio Venturini e dos irmãos Már-
foi confusa. Ativistas viraram noites até isso”, diz à piauí. Mas ela soube, sim. Du- de Oliveira às causas que elege e também cio e Lô Borges.
estruturar banheiros, barracas e cozi- rante os 580 dias de prisão, trocou cartas seu afinco em conquistar espaço. Ela Só que essa versão oficial “não corres-
nha. Oliveira estava entre eles, como com Lula e foi das poucas escolhidas para sabe se impor com afagos, favores ou, se ponde à realidade fidedigna dos fatos”,
militante do Movimento dos Atingidos preciso, até com cotoveladas. Colecionou revela o cantor e compositor Lô Borges.
por Barragens (mab), fundado em 1991. críticos e, às vezes, desafetos, que a consi- Imaginar que os músicos do Clube da
Ela ganhou espaço já naqueles primei- deram uma pessoa que cria problema Esquina compuseram naquele trecho de
ros dias em Curitiba, ajudando a resolver para vender solução. “Não precisa ser ruas algumas de suas canções mais co-
todo problema que aparecesse pela frente. dura, rígida, para ser profissional, mas é a nhecidas foi uma “licença poética à es-
Fazia segurança, comida, faxina e asses- forma com que ela foi construindo sua quina”, diz ele, contando que não se
soria de imprensa, assumindo a interlocu- trajetória”, diz Alexania Rossato, colega amofina com a leve distorção da realida-
ção com jornalistas que cobriam a Vigília do mab. “Não vou dizer que seja uma pes- de e que “está liberado pensar o que qui-
Lula Livre. No dia 28 de abril, os militan- soa doce, sabe? Mas ela é querida, gosto ser”. E arremata, parafraseando uma
tes foram alvos de tiros no acampamento muito da Neudi”, acrescenta, sorrindo. frase do filme O Homem que Matou o
durante a madrugada. Oliveira estava lá e No entorno de Lula, o grude de Janja Facínora, de John Ford: “Quando a lenda
testemunhou o tiro que feriu Jefferson e Oliveira rendeu um apelido à dupla: se torna muito forte, imprime-se a lenda.”
Menezes, do sindicato dos motoboys de Xuxa e Marlene Mattos. Uma dá o show,

O
Santo André, na Grande São Paulo. a outra faz acontecer. A chefe de gabine- s Borges se mudaram para a Rua
te engole sapo, mas desfruta do poder e Divinópolis em 1952, ano em que

J
anja frequentava a vigília, mas os do prestígio de ser o braço direito e o Lô nasceu. Em 1963, um proble-
acampados não sabiam que ela era esquerdo da primeira-dama. Assessores ma na fundação da casa obrigou a famí-
namorada do prisioneiro célebre – seu do presidente consideram que a atuação lia a se mudar para o Edifício Levy, no
relacionamento com Lula só viria a públi- de Oliveira esbarra em certo amadoris- Centro de Belo Horizonte, enquanto se
co no ano seguinte. Em 1º de Maio, Dia mo: ela não preza pela discrição, aparece fazia a reforma. Ali, Márcio e Lô fize-
do Trabalho, as centrais sindicais promo- nas fotos oficiais, ocupa um espaço dis- ram amizade com um vizinho – Milton
veram em Curitiba um grande ato na Pra- putado a tapa e cheio de intrigas. Há Nascimento, o Bituca. Quando a famí-
ça Santos Andrade, com shows de Beth uma coisa, porém, que evita: melindrar lia voltou a Santa Tereza, Lô estava com
Carvalho, Ana Cañas e outros artistas. a amiga e chefe Janja. “Conheci a Ro- 16 anos e logo se enturmou com o pes-

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O estudante de medicina “arranhava E ELA ESCREVEU “ORGASMO” Kama Sutra das estenodatilógrafas, ou
um violão”, como ele mesmo diz. Acom- O jornalismo mudou, Fatima Ali seja, das secretárias que transavam com
panhado de dois colegas de faculdade – continua a mesma o chefe. Não era. Era da mulher que
um clarinetista e outro violonista –, escolhia com quem queria ficar. Eu
Casarões costumava sair à noite para fazer oda mulher pode sentir prazer no nem ligava. Também fui estenógrafa.”
serenata na porta dos pensionatos “cheios
T amor. Você também; 12 Mulhe-

A
de meninas bonitas”. Gatinha Manhosa, de res contam como faturam milhões nove meses de completar 80 anos,
Roberto e Erasmo Carlos, estava entre as no mercado das finanças (que já foi só com três filhos e quatro netos, Fa-
canções mais populares do repertório do dos homens); Explore as vantagens de tima Ali é uma decana da geração
trio. Na saída para essas noitadas musicais, morar sozinha. Com os cabelos brancos que rompeu o cercadinho masculino do
ele via a turma de garotos que se reunia desarrumados em um corte arrojado e jornalismo no final da década de 1960
soal do bairro. Os irmãos, segundo Már- para conversar e cantar na sua esquina. óculos imensos de armação preta, a jor- chegando pelas bordas, a partir das fun-
cio, a essa altura já estavam “superamigos “Eles tomavam uma cachacinha compra- nalista Fatima Ali está sentada na sala ções permitidas para mulheres: secretá-
do Bituca, que continuou frequentando da no bar mais próximo e comiam lingui- com paredes de vidros de sua casa em rias ou pesquisadoras nos arquivos.
nossa casa, mesmo após a mudança”. ça assada em fogareiro”, lembra o médico. São Paulo. Ela comenta as chamadas Filha de um sírio e de uma descenden-
“Militante da esquina”, como se quali- Desde a origem, o bairro de Santa Te- de capa da primeira edição da revista te de libaneses, Ali parou de estudar aos
fica, Lô conta que o local era frequentado reza tem a vocação de abrigar os mineiros Nova, que chegou às bancas em outu- 16 anos para procurar emprego. Virou
pelo pessoal do seu quarteirão, “os garotos que vêm do interior para Belo Horizonte. bro de 1973, trazendo uma modelo com secretária em agências de publicidade.
da pelada”. À noite, eles se encontravam “Do ponto de vista histórico, a região foi olhar assertivo e decote abusado. “Está Aos 21 anos, bateu na porta da Editora
na calçada da esquina para tocar violão e ocupada inicialmente pelos imigrantes vendo? Era uma coisa incrível”, diz ela. Abril, pedindo para trabalhar na revista
tomar umas biritas, que eles mesmos leva- que trabalharam na construção da nova Ali lançou e dirigiu por dezessete anos Manequim. Não foi considerada sufi-
vam. “Márcio é seis anos mais velho do capital e não tinham condições financei- a versão brasileira da Cosmopolitan, revis- cientemente elegante para isso, mas vi-
que eu e não tinha tempo de ficar ali. Mil- ras para se estabelecer dentro da Avenida ta secular  relançada  nos Estados Uni- rou a primeira mulher a vender anúncios
ton Nascimento, Toninho Horta, Beto do Contorno, na parte planejada da cida- dos em 1965 para ser uma grande ruptura na empresa. Seu excelente desempenho a
Guedes e Flávio Venturini moravam em de”, diz Flávio Carsalade, professor da do jornalismo feminino. “Antes, as revistas catapultou, aos 23 anos, para a direção da
outros bairros. A música Clube da Esqui- Escola de Arquitetura da ufmg. para mulheres falavam de marido, de fi- Manequim – o que, diz ela, provocou um
na se refere à minha experiência, à minha Como é comum nas capitais brasilei- lho, de decoração, de jardim, de culinária. pedido de demissão coletivo da equipe,
história pessoal”, acrescenta. No ponto de ras, a especulação imobiliária alterou A mulher não existia. Veio a pílula anti- que se recusou a ser chefiada pela jovem
encontro, Lô ganhou fama de craque em muito a face do bairro, mas a casa de Ma- concepcional e as coisas mudaram. Nova e inexperiente vendedora de anúncios.
tocar Beatles e Chico Buarque. ria de Freitas resistiu, com mudanças: em foi a primeira a usar a palavra ‘orgasmo’ na

Q
Os irmãos Borges lembram que Mil- 1974 a proprietária construiu um segun- capa, a falar abertamente ‘mulher solteira uando completou 29 anos, Ali sou-
ton, Horta, Nelson Angelo e Naná Vas- do pavimento para abrigar uma sobrinha pode ter sexo’. Foi um escândalo”, lembra. be que a Editora Abril faria a versão
concelos às vezes paravam na esquina recém-casada. “Por mais que as constru- Realmente, foi um fuzuê. No auge da brasileira da Cosmopolitan e se ofe-
para ouvir o que os meninos estavam ções nos pareçam ‘imóveis’, na verdade ditadura militar, Ali todos os meses preci- receu para dirigi-la. “Pensei: ‘Essa revista
cantando. Corrigiam harmonias no vio- elas apresentam uma mobilidade muito sava submeter uma cópia da revista, antes fala com mulheres como eu’ – e eu era
lão e ensinavam acordes novos. Naná grande”, diz Carsalade. “Elas se adaptam da publicação, aos censores em Brasília, um típico produto do meu tempo. Fui
chegou a tomar emprestadas panelas naAcesse ao crescimento
nossonãoCanal planejado
nodasTelegram:
famí- que devolviam as páginas rabiscadas,
t.me/BRASILTRASH morar sozinha cedo, tinha um impulso
cozinha de Maria Fragoso Borges, a lias e, ao longo do tempo, às diferentes com textos e fotografias vetados. Mes- grande de ganhar dinheiro e, com a liber-
dona Maricota, matriarca da família, necessidades que vão surgindo.” mo com a censura prévia, dois números dade exagerada que veio depois da pílula,
para promover uma sessão percussiva A casa da esquina foi se adaptando às de Nova foram apreendidos nas bancas. dormia com todo mundo, não tinha pro-
com a garotada. Mas essas eram ativida- idas e vindas de seus diferentes ocupan- A revista também enfrentou fogo blema, eu não queria casar”, diverte-se.
des eventuais: não foi na esquina que se tes. Casarões deixou-a logo depois de se amigo. Jornalistas antiquados rejeita- Ali se tornou a primeira mulher a as-
gestou o Clube da Esquina. “Onde a formar, em 1972, quando voltou à cida- vam o formato. “Eles achavam que o sumir uma vice-presidência na Editora
gente se reunia de fato era num bar do de natal. Sete anos depois, uma tragédia jornalismo feminino era uma coisa me- Abril, na época um portento que publi-
Centro chamado Saloon”, conta Lô. Ou pessoal – a morte de sua primeira mu- nor, uma besteirada”, diz Ali. “E a liber- cava mais de cem títulos e tinha cerca de
na casa dos Borges ou na de Fernando lher em um acidente de carro – deixou-o dade sexual que as matérias emanavam 10 mil funcionários. “Eu era um corpo
Brant, de acordo com Márcio. O Saloon, desgostoso com Conselheiro Lafaiete. era motivo de gozação na imprensa.” estranho, foi dificílimo”, recorda. “Uma
que não existe mais, ficava na Rua Rio de Refez a vida como geriatra em Belo Ho- Colunista do Jornal da Tarde conhecido vez, em uma reunião, um colega come-
Janeiro, 1027, em frente ao antigo Cine rizonte e se casou novamente. Mas só pelas tiradas ferinas, Telmo Martino fez çou a gritar e me chamar de vagabunda.
Palladium (hoje Sesc Palladium). voltaria ao bairro de Santa Tereza no parte da velha guarda que desdenhava Mantive a linha e respondi da mesma
início dos anos 1990, quando viveu por Nova. “Ele dizia que a revista era o forma que os homens falavam comigo:

C
omo é difícil contrariar uma lenda alguns anos com a tia na casa da esquina
popular, a esquina deve permane- lendária. Mudou-se para um apartamen-

ANDRÉS SANDOVAL_2023
cer um dos atrativos turísticos de to em 1996.
Belo Horizonte. “O povo bate na cam- Ainda em vida, Maria de Freitas pas-
painha o dia inteiro, perguntando se pode sou a casa para uma das tias de Casarões
entrar”, conta a advogada Daniela Arru- e para a mãe dele, que transferiu sua
da, que até o fim do ano passado morava parte para o filho. Depois, ele comprou
na Rua Paraisópolis, 770 – exatamente a parte da tia. Em 2008, divorciado e pai
onde essa via encontra a Rua Divinópo- de três filhos, Casarões começou a se
lis. Ela deixou a casa da esquina quando relacionar com sua nova companheira, a
se separou do médico Roberto Casa- advogada Daniela Arruda. “Em 2011,
rões, que ainda mora lá, agora sozinho. reformamos a casa e nos mudamos para
Casarões conheceu a esquina pouco lá. Pintamos de azul”, ela recorda.
antes da época em que Lô Borges pas- Agora que a união chegou ao fim,
sou a frequentá-la. Em 1966, ele se mu- Casarões não sabe ao certo se permane-
dou de Conselheiro Lafaiete para Belo cerá no encontro das ruas Paraisópolis
Horizonte, a fim de cursar medicina e Divinópolis. “É uma boa pergunta.
na Universidade Federal de Minas Ge- Não sei. Estou no limbo”, diz ele, pau-
rais (ufmg). Foi morar no número 770. sadamente, com a experiência de quem
A casa pertencia à sua tia Maria de Frei- aprendeu que talvez a vida lhe faça do-
tas, professora, que a comprara e refor- brar outra esquina. Ou fugir para outro
mara nos anos 1950 – a construção lugar, para outro lugar. J
original deve ser da década anterior. Silvana Arantes

8
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‘Você está nervoso? Está menstruado?’ buik Rikbakta tinha 18 anos, era casado familiares de Savio, o soldado mergulhou
Mas cheguei em casa e desabei no cho- e vivia na Aldeia Boa Esperança, em nessa área, mas nada encontrou. Se um
ro.” A jornalista foi ainda uma alta exe- Juína, no Noroeste de Mato Grosso. No corpo não está preso no fundo do rio, es-
cutiva da tevê: lançou e dirigiu por dia 6 de fevereiro do ano passado, ele pera-se que suba à superfície em 24 horas,
quatro anos a mtv brasileira. desapareceu. A última vez que o jovem diz Calazans de Souza. Ele conta que já
Em todas essas posições, diz, sobrevi- indígena foi visto estava na margem do atendeu ocorrências de afogamento nas
via porque gerava lucro – e fazia o que Rio Juruena. “Eu não consigo entender quais a vítima estava alcoolizada. “Dois
queria. Enlouquecia os colegas, pois era a o que aconteceu com esse menino”, diz meses antes, recebemos um chamado no-
única a ter duas secretárias. “Eu tinha três Elizete. “Antes de eu viajar para Cuiabá turno e fizemos o resgate do corpo de um
filhos e casa para administrar. Eles não para fazer uma cirurgia, achei ele muito indígena que caiu na água embriagado.”
precisavam fazer isso”, explica. Nos anos estranho, totalmente diferente, eu não Mesmo depois do afogamento, o corpo
1980, Ali convocou todos os seus funcio- sabia o que estava acontecendo. Tentei ainda cheirava a álcool.
nários para eliminar um boato pela raiz, conversar, mas ele não me falava nada.” Os bombeiros também procuraram
confirmando que ele era verdadeiro: sim, Meses antes do desaparecimento, em por Savio na mata. Depois de três dias, as
ela estava namorando uma mulher. “Du- outubro de 2021, o irmão de 2 anos de buscas foram encerradas. A Polícia Judi-
rou poucos meses, em uma fase em que Savio morreu afogado. “Com a morte do ciária Civil do Estado de Mato Grosso até
eu estava me separando do meu marido. irmãozinho, ele começou a sentir uma hoje não conseguiu dar alguma resposta
A fofoca se espalhou, chamei todo mun- tristeza”, conta a mãe. “Senti que ele não para a família. Também não respondeu
do, disse que não tinha nada a esconder e era mais a mesma pessoa. Disse que esta- ao pedido de entrevista feito pela piauí.
encerrei: ‘Agora vamos trabalhar.’” va sem vontade de viver. Pedi para ele não

E
O mundo corporativo desbravado por se sentir assim. Eu ia para Cuiabá, mas m 2021, um relatório do Conselho
ela derreteu. A maioria das revistas que quando eu voltasse a gente conversaria.” Indigenista Missionário (Cimi)
dirigiu não existe mais, a mtv já não é a O rapaz ligou, chorando, para Elizete apontou 355 casos de violência con-
mesma. Mas Fatima Ali continua por aí, quando ela estava em Cuiabá. Falou que tra indígenas, catalogados em dezenove
jogando granadas nos mecanismos regu- sentia a falta dela e lamentou não ter diá- categorias, como homicídio, tentativa
latórios do comportamento feminino. logo com o pai – os dois brigavam muito. de homicídio, estupro, lesões corporais e
O pai reclamava das saídas do filho para ataques racistas. Foi o maior número de

“E
xclusivo! Saiba quem é a mu- beber com os amigos no distrito de Fonta- ocorrências desde 2013, quando o estudo
lher mais velha apontada nillas. Na época, os pais de Savio estavam começou a ser feito. Em 2020, foram regis-
como affair de Tiago Ramos”, se separando. “Ele era um filho bom para trados 182 assassinatos de indígenas; no
estampou o site BuzzFeed, em outubro do mim. Mas, quando fez 15 anos, ficou di- ano seguinte, 176. Também em 2021, hou-
ano passado. Influenciador que namorou ferente, não era mais o menino tranquilo “A falta de emprego faz os rapazes saí- ve 148 suicídios de indígenas – de novo,
a mãe do jogador Neymar – Nadine San- e caseiro que costumava ser. Ficava muito rem para a cidade e eles bebem por lá. o maior número registrado desde 2013.
tos, 31 anos mais velha –, Ramos passou agressivo quando bebia. O problema dele Trazem cachaça pras aldeias. Ficam sem Elizete tem esperança de que seu filho
pela edição de 2022 do reality show A Fa- era a bebida”, diz Elizete. “O pai precisa futuro”, afirma Elizete. O cacique Nilo não fará parte dessas estatísticas. Ela não
zenda, da Record. Antes de ele ser expulso ser amigo do filho, instruir. O Savio que- Amuã, da Aldeia Primavera (vizinha da acredita na hipótese de suicídio. “Chamei
do programa porque arrumou uma briga, ria isso. Carinho
Acesse nosso e atenção.
Canal Eu tinha que Aldeia Boat.me/BRASILTRASH
no Telegram: Esperança), viu Savio crescer um pajé de outra localidade para me dar
outro participante contou, no ar, uma his- ser pai e mãe desse menino.” e testemunhou muitos jovens indígenas notícia. Ele disse que Savio está vivo.
tória apimentada: Ramos, de 25 anos, te- O rapaz também não estava se enten- como ele se perderem no álcool. “A gente Muito longe. Na mão de um branco”,
ria sido flagrado pelo ex-namorado com dendo com o sogro, na casa de quem mo- vivia do artesanato com penas. Matava as conta a mãe. “Desde que meu filho su-
uma mulher de mais de 70 anos. rava com a mulher grávida e um bebê aves, comia a carne e usava as penas. miu, sempre senti dentro de mim a pre-
Os sites que cobrem televisão crava- que ela tivera de outra relação, por quem Mas o Ibama proibiu”, diz ele. “Era mui- sença dele como de uma pessoa viva.” J
ram: a mulher era Fatima Ali. “Sou ami- Savio nutria muito afeto. “Na casa do so- to importante ter aqui um projeto de Tiago Coelho
ga do Tiago, mas essa história toda é gro ele precisava trabalhar para manter a marcenaria, ou alguma outra coisa para
uma grande fofoca”, diz a jornalista. Em família, mas estava sem trabalho. A vida que os jovens pudessem aprender uma
seguida, retoma a velha verve: “Eu na- estava difícil para ele na questão de di- profissão, para trabalhar e ganhar dinhei- MÁRTIR DA CASTIDADE
moro homens mais novos. Aos 79 anos, nheiro. Ter uma família sem ter uma ren- ro. Eles saem da aldeia para buscar em- Devoção a uma beata
minha libido segue a mesma.” da é uma coisa dura”, continua Elizete. prego e se perdem na bebida.” agita Santana do Cariri
Em tempos de famílias mosaico, gêne- Entre novembro e abril, trabalhadores do

N Ó
ros fluidos e conteúdo correndo solto pela povo Rikbaktsa, como Savio, participam o dia em que desapareceu, Savio foi rfã de pai e mãe, Benigna Cardoso
internet, Ali acredita que publicações da colheita da castanha, mas a renda ob- visitar o pai e ficou na casa dele até da Silva foi criada por tias e estava
pensadas apenas para mulheres perderam tida com esse trabalho é insuficiente para por volta das quatro da tarde. Ao com 13 anos quando começou a ser
o sentido. Mas, se relançasse a Nova cobrir as despesas de muitos meses. sair, disse que iria comprar fraldas e ver a assediada por Raul Alves, de 17. Recha-
hoje, que conselhos distribuiria? “Os mes- mulher na Casa de Saúde Indígena de çou as investidas do jovem, até que ele a

A
mos que dei para minhas filhas: Não case pedido de sua mãe, Savio chegou a Juína. Deixou as fraldas em sua casa, mas agarrou de surpresa perto da cacimba
com homem rico – ele vai querer dominar buscar auxílio psicológico para tra- não foi visitar a mulher. No caminho, en- onde ela buscava água e tentou estuprá-
você; não compre roupas, é uma besteira tar do alcoolismo. Esse é um pro- controu amigos e foi beber com eles em la. Benigna resistiu, e então Alves, enfu-
que entope o planeta de resíduos – renove blema sério em aldeias indígenas, como uma mercearia. “Sabe como é o jovem de recido, matou-a com golpes de facão.
o look comprando sapatos quando os seus apontam as psicólogas Liliana Guimarães hoje. O sogro estava no meio. Depois, O crime se deu em 1941, no distrito
estragarem; participe de sua comunidade e Sonia Grubits no estudo Alcoolismo e Savio não voltou mais para casa”, diz Eli- de Inhumas, em Santana do Cariri, ci-
– faça alguma coisa para melhorar o seu Violência em Etnias Indígenas: Uma Vi- zete. Ela inquiriu os conhecidos do filho dade cearense a 530 km de Fortaleza.
entorno.” E ela fecharia com a sua lei pé- são Crítica da Situação Brasileira, publi- na aldeia, mas não conseguiu informa- Eram tempos de violência e machismo
trea: “Seja sempre você mesma!” J cado na revista Psicologia & Sociedade, ções úteis. Soube apenas que havia dois exacerbado no sertão nordestino, mas
Angélica Santa Cruz em 2007. As autoras dizem que a expan- carros estacionados à beira do Rio Jurue- esse assassinato comoveu o povo, e Be-
são de empregos precários nas aldeias – na, onde Savio foi visto pela última vez. nigna passou a ser venerada como san-
como o trabalho assalariado temporário e Oficiais da 14ª Companhia Indepen- ta. Passados 82 anos, a crença popular
TERCEIRA MARGEM frentes de extrativismo – ameaça “a inte- dente Bombeiro Militar fizeram buscas. foi reconhecida pela Igreja Católica,
Um indígena desaparece gridade do ambiente em que vivem as O soldado Jeferson Calazans de Souza que em 2022 beatificou a Menina Be-
na beira de um rio etnias indígenas”. Com o sistema tradi- participou desse esforço. Percorreu 20 km, nigna, como ela é conhecida entre os
cional fragilizado, os indígenas estão de barco, margeando o Juruena. Morado- fiéis. A beatificação é uma etapa no ca-

V
ai fazer um ano que Elizete Ukba mais vulneráveis à bebida alcoólica e a res disseram ter sentido um cheiro forte, minho para a santificação.
Rikbaktsa não tem qualquer notí- transtornos mentais – e mais propensos talvez de um corpo em decomposição, “Pelo menos desde 1942, um ano de-
cia sobre o paradeiro de seu filho ao suicídio e à violência. O caso de Savio nas proximidades do cais de Fontanillas, a pois do assassinato, a gente sabe de tro-
primogênito. O indígena Savio Hatsa- cabe bem nesse quadro geral. cerca de uma hora de Juína. A pedido dos peiros e ciganos que passavam pela

piauí_fevereiro 9
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babosa. Mas, antes, tive fé nela, porque projeta-se sobre a tela, atrapalhando a vi- nández. Passa a sofrer com a pressão

ANDRÉS SANDOVAL_2023
aqui, em Santana, ela sempre foi santa.” são. Mesmo assim, a semifinal da Copa marroquina, mas responde rápido. “Me-
Maroly já estava com cirurgia mar- do Mundo do Catar promete espantar a eeeeeeeeentira!”, berra um homem na
cada para o joelho doente quando a pasmaceira da viagem: há algo para ver. fileira da frente, diante da segunda chance
irmã recomendou que ela rezasse a Be- Navegando pelo Rio Acará até o seu de gol perdida pelos franceses, aos 35 mi-
nigna e tomasse o chá. Nos exames pré- encontro com o Guamá, a Lady Ligia nutos. Perto do fim do primeiro tempo,
operatórios, descobriu-se que a cirurgia Maria costuma levar pouco mais de o marroquino Jawad El Yamiq mete uma
não seria necessária. “O médico me uma hora para chegar ao destino. Veí- bola de bicicleta na trave e põe às claras
perguntou o que eu tinha feito para es- culos e pedestres adentram a embarca- para que lado pende a torcida na Lady
tar curada, mas eu não quis falar a ver- ção por uma passarela de metal pintada Ligia Maria. “Vai dar zebra!”, prevê o
dade porque muitos não acreditam de verde e amarelo. Há acomodações vendedor de café e chás, que nem podia
nessas coisas”, diz a aposentada. para os passageiros nos dois andares da enxergar a tevê de onde estava. E acres-
Nas mensagens de celular que troca- barca. O andar superior oferece mais centa: “Merece esse título!”
va com a irmã, Maroly costumava dizer cadeiras, mas é no de baixo, onde há O Marrocos mereceria mesmo. Foi a
que Irismar era “sortuda” por poder par- menos lugares, que está a tevê. primeira seleção da África a alcançar
ticipar da festa de beatificação. Estava Naquela quarta-feira, dia 14 de dezem- uma semifinal. Na fase inicial, foi o pri-
resignada a assistir às celebrações pela bro, a fileira da frente, voltada para a tela e meiro lugar de seu grupo, e em seguida
televisão. Oito dias antes da cerimônia, com doze lugares, está toda ocupada. Um derrotou Espanha e Portugal. Na últi-
veio a surpresa: “Sem eu saber, meus passageiro dorme, outro mexe no celular, ma Copa, o time africano esteve na po-
filhos organizaram toda a viagem.” mas a maioria assiste à partida. Na fileira sição do underdog: aquele que vem de
de trás, com vista para o estacionamento, baixo e, com talento, garra e sorte, ven-

O
processo de beatificação foi inicia- um rapaz torce o tronco para acompanhar ce quem é mais reputado. E quem não
região e, quando ouviam a história de do pela Diocese de Crato em 2010. o jogo. A certa altura, um homem impro- gosta de um underdog?
Benigna, desviavam o caminho para ir Até então, a Igreja Católica ignora- visa seu camarote: traz um banquinho

N
até o local do martírio para fazer orações va a devoção à Menina Benigna, que marrom de três pés e o coloca entre as fi- os acréscimos do primeiro tempo,
e pedir graças”, conta Maria da Penha transformou Santana do Cariri em lugar leiras. A barca ganha velocidade, e o vento aos 46 minutos, o Marrocos perde
Pereira, de 60 anos, que participou da de romarias. Em 2013, foi concedido à abafa a voz do locutor. um ataque de bobeira e um ho-
comissão de beatificação e faz trabalhos menina o título de serva de Deus, e em mem de voz rouca exclama, desalentado:

O
voluntários na capela em homenagem a 2019 o papa Francisco autorizou a beati- s passageiros sentados assistem à “Aaaaaaaahh!” A torcida circunstancial
Benigna, erguida em 2005 em Inhumas. ficação. Ela é a primeira beata do Ceará. partida em silêncio. Mais distantes agora está entrosada, e os comentários se
Lá se conservam inúmeros ex-votos de A região do Cariri já era reconhecida da tevê, três homens encostados em multiplicam. “Ele aproveitou que o cara
madeira, cartas e outros artigos em agra- nacionalmente pelo turismo religioso, cen- uma grade falam alto sobre futebol. A con- se segurou um pouquinho e se jogou.”
decimento pelas graças alcançadas. Pró- trado em Juazeiro do Norte, onde cresceu versa não é a respeito do jogo em curso, “Saiu! Saiu essa bola!” Aos 50 minutos, o
ximo à capela de pedra cariri construída padre Cícero Romão Batista (1844-1934), mas da Seleção Brasileira. O mais falante francês Mbappé é derrubado. Um moto-
pelo povo, há uma área de 48 mil m2 na o Padim Ciço, nascido, contudo, em Cra- do trio acredita ter decifrado o motivo da ciclista acha que a queda foi encenada e
qual o governo do Ceará realiza obras de to. Personagem controverso, ele teve suas desclassificação da equipe de Tite no jogo solta exclamações irônicas. Pouco de-
ordens sacerdotais
um novo santuário, com pontos de apoioAcesse nosso suspensas
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Croácia. “O Brasil quer jogar para pois, com uma troca de passes efetiva, o
para os romeiros que visitam a região. por causa de uma disputa em torno de um dar espetáculo. As outras equipes jogam Marrocos quase chega ao empate. “Que
alegado milagre. Em agosto de 2022, os para ganhar”, diz, com a convicção de um jogada, que frieza!”, comenta um passa-

B
enigna consegue ao mesmo tem- devotos tiveram uma feliz notícia: o papa Casagrande. Ele desdenha a habilidade do geiro. “O zagueiro foi muito bem!”, retru-
po sensibilizar a moral católica autorizou o início do processo de beatifi- goleiro croata – “a maioria das bolas foi em ca outro, com uma gostosa gargalhada.
tradicional – é considerada uma cação de Padim Ciço, que, mesmo quan- cima dele” – e assevera que, apesar de tu- “Vai empatar. E, se empatar, vira!”,
“heroína da castidade” – e mobilizar do esteve afastado da Igreja continuou do, o título poderia ter sido nosso: “O Bra- profetiza alguém quando está quase
causas seculares como a luta contra a atraindo milhões de católicos a Juazeiro. sil tinha time para ganhar da França.” acabando a primeira metade do jogo.
violência sexista. A data de sua morte, Em outubro passado, na semana em Nas margens do rio, galhos cheios de No intervalo, a tevê volta a ser um obje-
24 de outubro, entrou para o calendário que Benigna foi beatificada, o papa ro- folhas de um verde intenso balançam to indiferente, atrás de um fio de luzi-
oficial do Ceará como dia de combate gou a Nossa Senhora Aparecida que li- ao vento, roçando o marrom das águas. nhas de Natal apagadas e entre dois
ao feminicídio. Foi nesse dia que, no vrasse o Brasil do ódio. A fala repercutiu A França abre o placar pouco antes dos pratos decorados – um deles exibe um
ano passado, ocorreu a cerimônia de no país. No Cariri, porém, celebrou-se cinco minutos, com o gol de Theo Her- tucano vermelho, azul e amarelo; o ou-
beatificação, no Parque de Exposição outra declaração de Francisco. “Um tro traz a inscrição belém-pa. Os passa-
de Crato, cidade próxima de Santana do aplauso à nova beata”, ele pediu. A decla- geiros vão até o balcão onde o vendedor
Cariri e com mais estrutura para rece- ração de Francisco deixou Irismar eufó- vaticinou a virada do Marrocos. O ca-
ber os 60 mil fiéis que compareceram. rica. “É uma felicidade grande ver que fezinho custa 2 reais, o café com leite,
Santana do Cariri está desde então algo por que a gente lutou tanto se reali- 6 reais. A barca passa lenta por uma mata
celebrando a sua beata. Bandeiras ver- zou. Aquela semana foi só de choro, todo cheia de açaizeiros. Contrapostos a uma
melhas e brancas enfeitam as ruas. São mundo aqui não tem mais lágrimas”, ela nuvem branca, voam vários urubus.
cores associadas à menina: ela usava diz. “É Benigna na boca do papa, o Ca- Pela metade do segundo tempo, a bar-
um vestido vermelho com bolinhas riri na boca do papa.” J ca desacelera para atracar no cais, o que
brancas quando foi morta. Nas ruas, Lianne Ceará permite ouvir o som da tevê com mais
homens e mulheres vestem-se com esse clareza. Mas logo os veículos são ligados
padrão, e o vestido figura nas vitrines (entre eles, um caminhão de Ananin-
do comércio local. A imagem oficial de COPA NA BALSA deua, também no Pará, com uma placa
Benigna está presente na maioria das A torcida pelo Marrocos na qual se lê “rápido loucura – Rafi-
portas e portões das residências. nos rios do Pará nha o Big Love – Deus proverá”), e o
Moradora da cidade, Irismar Bráulio ronco dos motores encobre a narração do

A
de Souza, de 81 anos, usava o vestido ver- barca Lady Ligia Maria parte de jogo. A água bate barulhenta na balsa.
melho de bolinhas brancas quando visitou Barcarena, cidade do Norte do Pará, Todos são obrigados a desembarcar.
a capela de Benigna, no dia da beata. Vi- com destino a Belém, capital do es- Aos 33 minutos do segundo tempo,
nha acompanhada de sua irmã, Maria tado, quase no exato momento em que a Randal Kolo Muani cravou mais um
Maroly Bráulio de Souza, de 76 anos, que seleção do Marrocos dá o toque inicial gol, selando a vitória francesa. Mas, a
vive em São Paulo, para agradecerem do jogo contra a França. Passageiros se essa altura, a Lady Ligia Maria prova-
juntas pelas graças que alcançaram. Iris- acomodam perto da televisão, instalada velmente fazia a viagem de volta a Bar-
mar acredita que Benigna a curou de um em frente a um balcão onde se vende carena, com outra torcida a bordo. J
cisto na garganta. “Tomei um chá com café e chás. O reflexo do Sol nas águas Duanne Ribeiro

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anais da intentona I

O POÇO
A vida depois do 8 de janeiro

BRENO PIRES

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O
deputado Marcos Pereira, vel. Afinal, o autor do tuíte, além de pre- disse, e explicou o que é preciso fazer Aos 50 anos, Marcos Pereira está no
presidente do partido Repu- sidir o Republicanos, é bispo licenciado daqui em diante. “Nesse contexto do seu primeiro mandato como deputado
blicanos, que formou a base da Igreja Universal do Reino de Deus, que aconteceu, eu acho que a direita, a federal, mas já é um político veterano.
de apoio ao governo de Jair denominação evangélica que se sentou centro-direita, vai ter que organizar, se Foi ministro da Indústria, Comércio
Bolsonaro, estava em seu na primeira fila de apoio à eleição, ao reorganizar, e mostrar para a sociedade Exterior e Serviços, no governo de Mi-
apartamento, em São Paulo, no início da governo e à reeleição de Bolsonaro. Dois que nós não somos radicais, como se viu chel Temer, e vice-presidente da Câma-
tarde de domingo, 8 de janeiro. Ao lado dias depois do tuíte, quando recebeu a aí nesses atos.” Em seguida, sem ser in- ra dos Deputados. Desde 2011, preside
de sua mulher, assistia a um show de fi- piauí no escritório da produtora de ví- dagado sobre o próximo passo, comple- o Republicanos, antigo prb, que for-
nal de ano de Roberto Carlos, no YouTu- deo do partido no Lago Sul, em Brasília, tou: “E buscar um novo líder.” Pereira mou o tripé de apoio a Bolsonaro, ao
be. A certa altura, Pereira zapeou seu Pereira havia acabado de expulsar um suspeita que Jair Bolsonaro não serve lado do Progressistas (pp) e do Partido
celular e levou um susto: Brasília estava filiado do Republicanos: o empresário mais – e, na conversa, ele próprio já tra- Liberal (pl). Em 2018, seu partido tinha
entrando em transe, com milhares de Maurício Nogueira, de São Paulo, dono tou de tomar distância do ex-presidente. 1 senador e 30 deputados. Agora, fez
bolsonaristas atacando os prédios dos três de um dos ônibus que levaram bolsona- “Eu nunca estive colado [nele]”, disse mais dois senadores e chegou a 41 depu-
poderes da República. Ficou mesmeriza- ristas ao levante golpista. Em uma nota o dirigente partidário, para esclarecer tados, formando a sexta maior bancada
do e começou a pular de live em live, que à imprensa, explicou-se: “O partido de- que jamais se considerou um bolsona- da Câmara. Em seus quadros parlamen-
transmitiam a quebradeira inédita na verá expulsar todos os filiados que forem rista de coração e alma. “Algumas vezes, tares, abriga bolsonaristas da gema,
história brasileira. Político habilidoso, identificados que tenham participado da até fui criticado, quando, por exemplo, como Damares Alves, a ex-ministra que
tomou pé de detalhes da situação pela destruição e que excederam a manifes- estava como presidente do Congresso virou senadora, e Hamilton Mourão, o
imprensa, ouviu correligionários e, às tação democrática pacífica.” (Até o fe- em exercício e prorroguei a cpi das Fake ex-vice-presidente que também ganhou
16h33, marcou sua posição no Twitter: chamento desta edição, quatro legendas News.” Ele prossegue: “Ou quando au- uma cadeira no Senado.
“Os atos de vandalismo que estão ocor- haviam expulsado filiados por envolvi- torizei o requerimento de informação Com Bolsonaro enfraquecido, Perei-
rendo hoje em Brasília são reprováveis mento na tentativa de golpe em Brasília: de um deputado do pt para que a Secre- ra já tem até uma lista de nomes com
sob todos os aspectos. Nós, do Republica- Republicanos, psd, Cidadania e Solida- taria-Geral da Presidência apresentasse potencial para ocupar a posição de “novo
nos, repudiamos qualquer manifestação riedade.) No escritório no Lago Sul, Pe- o exame de Covid do Bolsonaro.” E con- líder”. Ele diz que há quadros impor-
que ultrapasse os limites democrático, reira, que é pouco afeito a entrevistas, clui: “Eu sou por aquilo que o regimen- tantes na direita entre os governadores
seja ela da direita ou da esquerda.” estava calmo. Fez questão de dizer que to, a Constituição e as leis determinam. que venceram em outubro, como Tarcí-
A reprovação e o repúdio vieram de o vandalismo golpista não representa a Se eu fosse colado, eu não teria autori- sio de Freitas, em São Paulo, filiado ao
forma moderada, mas o efeito foi sensí- direita brasileira. “É a extrema direita”, zado essas medidas.” seu partido, Ratinho Junior (psd), no

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DIEGO BRESANI_2023
Acesse nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILTRASH

O vandalismo: entre sexta e domingo, a Abin distribuiu sete alertas nos quais mencionou seis vezes o risco de “ações violentas” e quatro vezes a ameaça de “ocupações de prédios públicos”

Paraná, e Romeu Zema (Novo), de Mi- pessoal não representa a direita. São Bolsonaro feita pelo seu partido, o pp, sigilosos de investigação policial e por
nas Gerais. Incluiu na lista até seu cor- extremistas, anarquistas, alguma coisa foi um erro grave e que, depois do 8 de crimes contra a saúde pública durante
religionário Hamilton Mourão, que assim.” Para ele, a liderança da nova di- janeiro, o ex-presidente “já não serve a pandemia. Agora, antes de completar a
condenou o vandalismo em Brasília e reita cabe aos governadores. “Somos mais como líder político em busca de primeira quinzena como ex-presidente,
logo emendou uma crítica às numero- vários, temos boas propostas e vamos mandato para ninguém”. A quebradeira já ganhou outra investigação: está arro-
sas prisões, que atribuiu às “raízes mar- estar caminhando juntos.” golpista rendeu à senadora até “infla- lado entre os investigados pela suspeita
xista-leninistas” do governo federal. Na Nos dias seguintes à tentativa de gol- mação no nervo ciático de tanto desgos- de ter alimentado a delinquência dos
corrida para ocupar o lugar de Bolsona- pe, a piauí conversou – pessoalmente, to”. O senador Alvaro Dias, do Podemos golpistas. A suposição começou dois dias
ro, Mourão é o bolsonarista quântico: por telefone ou WhatsApp – com mais pelo Paraná, que perdeu a cadeira para depois da baderna, quando Bolsonaro
ora tenta vestir a fantasia impossível do de vinte parlamentares, a maior parte da o ex-juiz Sergio Moro (União Brasil), diz postou nas redes sociais um vídeo em
“bolsonarista moderado”, ora rasga a direita. Entre eles, são comuns as avalia- que a delinquência golpista daquele do- que um procurador de Mato Grosso do
fantasia e radicaliza com a fúria reacio- ções de que Bolsonaro se meteu num mingo foi “uma rajada de metralhadora Sul, Felipe Gimenez, afirma que Lula
nária de um latifundiário prussiano. buraco do qual terá muitas dificuldades na alma do bolsonarismo radical” e não foi eleito, mas sim “escolhido pelo
“A direita precisa se estruturar, preci- de sair, se é que conseguirá. Nas conver- aposta que parte dos parlamentares bol- serviço eleitoral e pelos ministros do Su-
sa mostrar que tem propostas, porque sas, como a política abomina o vácuo, sonaristas vai simplesmente aderir ao premo Tribunal Federal e do Tribunal
não é com quebra-quebra que se resolve logo aparecem nomes para “novo líder” governo Lula. “Com décadas de Con- Superior Eleitoral”. Bolsonaro apagou o
as coisas, não”, disse o governador Ro- da direita. Além dos políticos citados gresso, eu conheço o fisiologismo da vídeo três horas depois – o que, na era do
meu Zema, enquanto participava da por Pereira, surgem menções a Ronaldo política brasileira. As luzes do Planalto compartilhamento em massa, é inútil.
marcha ao Supremo Tribunal Federal, Caiado (União Brasil), reeleito para o são atrativas, são fascinantes para a Sua situação jurídica já era compli-
liderada por Lula no dia seguinte ao le- governo de Goiás, e o último dos tuca- maioria dos políticos”, disse. cada, mas piorou depois que agentes da
vante, depois de uma reunião no Palá- nos, o governador gaúcho Eduardo Lei- Polícia Federal fizeram uma busca na

J
cio do Planalto com os 27 governadores te, que não apoiou Bolsonaro, mas air Bolsonaro deixou a Presidência casa de Anderson Torres, o ex-ministro
ou seus representantes. O ar pesava, a também não apoiou Lula. da República com quatro inquéritos da Justiça de Bolsonaro, onde encontra-
noite estava pouco iluminada e o giro- Entre políticos que nunca se alinha- no Supremo Tribunal Federal. É in- ram a minuta de um decreto presiden-
flex das viaturas policiais ao redor cria- ram à extrema direita bolsonarista, a vestigado por espalhar mentiras sobre o cial em um armário. O documento, de
vam um clima distópico. Zema, que fez ruína de Bolsonaro é dada como certa. processo eleitoral e as urnas eletrônicas, três páginas, estabelecia um estado
campanha aberta pela reeleição de Bol- Em conversas reservadas, a senadora por interferir na Polícia Federal para pro- de defesa dentro do tse, que, na prática,
sonaro, prosseguiu: “Acho até que esse Kátia Abreu tem dito que a aliança com teger a família e aliados, por vazar dados virava a mesa: permitia a revisão do re-

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bolso, só manterá o apoio a Bolsonaro que faltou liderança, e como é movi-


CAROL ITO_2023
se lhe for vantajoso. Mais tarde, ele re- mento sem liderança faltou a eles a ma-
calibrou o discurso e resolveu culpar o lícia para evitar a invasão e depredação
próprio governo federal pelos ataques. do patrimônio público.” Para Sóstenes,
Nos bastidores, comenta-se que Costa “o maior responsável” pelo vandalismo
Neto percebeu que a aliança com o bol- golpista de 8 de janeiro “é o Supremo Tri-
sonarismo foi uma armadilha – lucrativa, bunal Federal, quando descondenou um
que resultou numa engorda espetacular condenado por corrupção e deu a ele
do fundo eleitoral do partido e um aces- possibilidade de elegibilidade”. O deputa-
so privilegiado às tramoias do orçamento do está na fileira dos que prometem um
secreto, mas ainda assim uma armadi- combate sem tréguas: “Lamentavelmen-
lha –, da qual ele agora não sabe como te, não viveremos anos de paz enquanto
sair. Costa Neto anunciou que expulsa- o descondensado governar o país.”
ria filiados do pl que participaram na A deputada Alê Silva (Republicanos-
tentativa de golpe, mas, até o fechamen- mg), sob uma foto da invasão do Congres-
to desta edição, não fez nada. Entre os so, escreveu: “As pessoas que realmente
delinquentes presos, há pelo menos oito amam este país.” O deputado general
ex-candidatos pelo pl. Girão (pl-rn), que já defendeu a criação
A bancada de direita e centro-direita de uma “milícia de cacs”, não gostou
que saiu das urnas de outubro é forma- nem de ver um punhado de policiais
da por 369 deputados que pertencem a militares que, postados à entrada da Pra-
doze legendas diferentes. Entre eles, o ça dos Três Poderes, tentaram impedir o
Departamento Intersindical de Assesso- acesso dos golpistas com a mais frágil
ria Parlamentar (Diap) estima que há barreira policial já formada pela pm na
pelo menos cinquenta bolsonaristas hi- história do Distrito Federal. No Twitter,
drófobos – e, até agora, não há sinal de chamou-a de “uma fortaleza medie-
que deixaram de ser da extrema direita. val” para afastar “o verdadeiro sobera-
sultado da eleição de outubro, vencida tura que desaguou no 8 de janeiro, que Entre eles, estão nomes óbvios, como no do brasil”. (Um dos comentários
por Lula, com o objetivo de manter eu chamei de o ‘dia da infâmia’.” os deputados Eduardo Bolsonaro, Car- que recebeu foi “kkkkkkkk”.)
Bolsonaro no poder. O decreto ainda O deputado Luciano Bivar (União la Zambelli e Luiz Philippe de Orleans Entre os bolsonaristas, já se faz um cál-
autorizava a quebra de sigilo dos minis- Brasil-pe), um dos primeiros políticos e Bragança, aos quais se juntam os culo de pragmatismo explícito. A piauí
tros do tse e criava uma “Comissão de em posição de comando na direita bra- recém-eleitos Ricardo Salles e Eduar- ouviu aliados do ex-presidente que não
Regularidade Eleitoral”, composta por sileira a romper com Bolsonaro – e o fez do Pazuello, ex-ministros bolsonaristas. estão preocupados com a sua inelegibi-
15 membros. Entre eles, 12 seriam antes do levante golpista – tem uma A deputada Bia Kicis é outra que conti- lidade, nem mesmo com a sua prisão.
apontados pelo Executivo, dos quais 8 previsão sombria para o ex-presidente. nua onde sempre esteve: militando por Dentro do próprio pl, são poucos os
viriam do Ministério da Defesa. O de- “O melhor cenário para ele será a ine- Bolsonaro e pelas fake news. (Kicis su- que duvidam que Bolsonaro não perde-
legibilidade”,
creto ficou conhecido pelo que de fatoAcesse nosso diz.Canal
“Eu não notenho dúvi- biu à t.me/BRASILTRASH
Telegram: tribuna para “denunciar” que rá pelo menos os direitos políticos. Eles
era: a “minuta do golpe”. das de que ele ficará inelegível.” Bivar é uma bolsonarista idosa fora presa e acreditam que o ex-presidente seguirá
Até hoje, apesar de seus discursos e presidente do União Brasil, partido que morrera encarcerada. “É preciso ainda como um líder de massa, com forte apoio
suas lives, não havia surgido uma evi- resultou da fusão entre o Democratas e confirmar essa informação, mas recebi popular, seja qual for o seu futuro jurí-
dência tão didática das intenções golpis- o psl, e saiu das urnas do ano passado de mais de uma fonte.” Depois, nas re- dico. Portanto, continuará servindo para
tas de Bolsonaro e seu entorno. Torres, com 59 deputados e 10 senadores, a ter- des sociais, identificou a fonte: a oab, dar aquilo que mais interessa aos par-
que foi escalado pelo governador do ceira maior bancada nas duas Casas. entidade que representa os advogados. tidos que orbitam em torno da extrema
Distrito Federal para ocupar o cargo de Na eleição de 2018, Bivar comandava o Era a segunda fake news do dia: a “in- direita: o empuxo decisivo para eleger
secretário de Segurança Pública e aca- psl, que abrigou a candidatura de Bol- formação” era da oacb, a Ordem dos bancadas robustas.
bou demitido depois das ações crimino- sonaro. Agora, acha que, com a ação Advogados Conservadores do Brasil. Deve ser por isso que logo depois de
sas dos bolsonaristas em Brasília, está dos criminosos em Brasília, Bolsonaro Kicis se desculpou, não pela mentira, indignar-se com os ataques à democra-
preso desde o dia 14 de janeiro. Nas re- chegou ao fim da linha. “O bolsonaris- mas pela confusão das siglas.) cia, Romeu Zema, flertando com o elei-
des sociais, disse que a minuta do golpe mo, como veículo político, mostrou a Para a extrema direita do Congresso tor radicalizado, atacou quem defendeu
lhe foi dada por alguém (que não iden- sua cara. Ele não representava aqueles que continua alinhada com o bolsona- a democracia. Em entrevista à Rádio
tificou) e seria destruída. Os temores de 50 milhões de pessoas que votaram rismo, a ordem tem sido condenar a Gaúcha, disse: “Me parece que houve
que faça um acordo de delação premia- nele. O bolsonarismo era um núcleo quebradeira, mas justificar o golpismo. um erro da direita radical, que é uma
da se espalharam entre os bolsonaristas radical que usava essas pessoas para um O deputado Sóstenes Cavalcante (pl- minoria, e houve um erro também, tal-
mais graúdos, apesar da negativa do seu projeto extremamente antidemocráti- rj), que lidera a centena de parlamenta- vez até proposital, do governo federal,
advogado. No primeiro depoimento que co”, diz Bivar, dando-se ao direito de já res que compõe a bancada evangélica, que fez vista grossa para que o pior acon-
prestou à polícia, ficou calado. conjugar os verbos no passado. foi rápido no gatilho. Às 16h32 do do- tecesse e ele se fizesse de vítima.” E, re-
No Congresso, a minuta do golpe mingo, com a quebradeira ainda em correndo ao truque retórico mais usado

N
caiu mal. Os aliados de Bolsonaro ale- o cenário pós-quebradeira, duas curso, já estava no tuíte: “Na democra- por Bolsonaro – o de fazer graves acusa-
gam que o documento não tem a digital questões passaram a rondar o cia toda manifestação tem um recado ções e em seguida dizer que não tem pro-
do ex-presidente, mas os adversários sus- mundo político. A primeira: não claro! O que é inaceitável é a violência vas –, Zema completou: “É uma mera
tentam que ampliou a chance de vincu- seria prematuro considerar que Bolso- e depredação do patrimônio público, suposição, mas as investigações é que
lá-lo à quebradeira golpista. No Supremo naro é uma carta fora do baralho? não compactuo com esses atos! Que a vão apontar se foi isso mesmo.”
Tribunal Federal, o rascunho do golpe No próprio domingo do golpe, Valde- ordem seja retomada. Ver um descon-

A
deixou a situação de Bolsonaro ainda mar Costa Neto, presidente do pl, o par- denado virar presidente causa revolta!!! segunda questão que galvaniza a
mais delicada. “Não é revelador de boa tido de Bolsonaro, apareceu nas redes Deus tenha misericórdia do Brasil.” atenção do mundo político é mais
intenção em relação à preservação dos sociais. Gravou um vídeo de um minu- Em conversa com a piauí, Sóstenes essencial do que o destino pessoal
parâmetros da democracia”, disse o mi- to, que começa dizendo “hoje é um dia – que é pastor da Assembleia de Deus de Bolsonaro: se o ex-presidente estiver
nistro Gilmar Mendes, o decano do stf, triste para o Brasil”. Condenou o vanda- Vitória em Cristo, presidida pelo furio- fora do páreo, isso significa um enfra-
em entrevista à jornalista Renata Lo lismo golpista – “é uma vergonha para so pastor Silas Malafaia – diz que não quecimento real da extrema direita?
Prete, no Jornal da Globo. O ministro todos nós” –, mas poupou o ex-presi- houve “nenhum ataque à República e A primeira resposta das forças demo-
recordou os ataques de Bolsonaro ao dente. “Isso não representa o nosso par- muito menos à democracia”. Até mini- cráticas teve um poderoso valor simbó-
Congresso, ao Supremo, os dois Sete de tido, não representa o Bolsonaro.” Um mizou a depredação que antes conde- lico: a reunião e depois a marcha de
Setembro, as ameaças, os xingamentos. dirigente partidário do calibre de Costa nara. “Não acho que teve nenhum erro. Lula e dos 27 governadores ou represen-
“Tudo isso faz parte desse caldo de cul- Neto, que faz política com a mão no Acho que tristemente foi um episódio tantes, na noite seguinte à quebradeira,

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GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO, POR MEIO


DA SECRETARIA DE CULTURA E ECONOMIA CRIATIVA,
E FUNDAÇÃO OSESP APRESENTAM

até a sede depredada do Supremo Tribu- intransigência na punição, levem a cabo


nal Federal, do outro lado da Praça dos qualquer punição a deputado ou sena-
Três Poderes. Lula liderou um ato que dor. Não acredito que os presidentes das
prestigiou a mesma corte que, há quase Casas subam esse degrau. Se vier algu-
cinco anos, mandou-o passar 580 dias ma punição, deve ser do Supremo.”
na cadeia. Na marcha, estava o governa- Ainda assim, é mais fácil isolar a ex-
dor Tarcísio de Freitas, que cogitou não trema direita dentro do Congresso do
comparecer à reunião com Lula em que fora dele. No governo, nas carreiras
Brasília, mas voltou atrás. Estava, tam- de Estado, o bolsonarismo aparelhou am-
bém, a governadora interina do Distrito plos setores da administração pública,
Federal, Celina Leão, do pp, que é evan- com destaque para as áreas de inteligên-
gélica, amiga da atual mulher de Bolso- cia e segurança. Na sociedade, há setores
naro e ex-chefe de Ana Cristina Valle, intoxicados com o extremismo de direita.
uma das ex-mulheres do ex-presidente. Estima-se que pelo menos 15% do eleito-
Encerrada a cena de apoio ao stf, co- rado está convictamente abraçados com
meçou a temporada mais importante: a o fanatismo bolsonarista. Por isso, o en-
de responsabilização, tanto dos vândalos, fraquecimento de Bolsonaro pode não
quanto dos financiadores e aliados no ser sinônimo de enfraquecimento da
Congresso Nacional. Até o fechamento extrema direita. As franjas radicalizadas,
desta edição, das 1 406 pessoas presas em até onde se pode ver, continuam organi-
flagrante, 464 foram soltas e 942 passa- zadas e mobilizadas.
ram para o regime de prisão por tempo Letícia Cesarino, doutora pela Uni-
indeterminado. A polícia e a Justiça terão versidade da Califórnia, em Berkeley, e
agora que identificar quem participou professora do Departamento de Antro-
ativamente da quebradeira e quem estava pologia da Universidade Federal de
na aglomeração, mas conseguiu se com- Santa Catarina, acredita que o extre-
portar como cidadão de bem. (Estima-se mismo de direita continua com a mes-
que havia 20 mil pessoas, das quais 4 mil ma força. Ela destaca que há uma
vandalizaram o patrimônio público.) diferença entre a repercussão do golpis-
Entre os financiadores das caravanas gol- mo baderneiro no campo político e no
pistas, 52 pessoas e 7 empresas foram campo metapolítico, onde se situam as
identificadas nas primeiras semanas, e redes sociais e as mídias bolsonaristas.
18,5 milhões de reais foram bloqueados “Eu não apostaria num enfraquecimen-
pela Justiça para garantir o ressarcimento to do bolsonarismo no campo metapo-
aos cofres públicos do que foi destruído. lítico”, diz ela. “Talvez até o contrário,
A Procuradoria-Geral da República, por na medida em que as eventuais puni-
sua vez, já denunciou 98 pessoas e pediu ções foremnosso
Acesse retroalimentando
Canal no a revolta
Telegram: t.me/BRASILTRASH
bloqueio de 40 milhões de reais. Os in- dos ‘patriotas’.” Ela prossegue: “Consi-
vestigadores estimam que pelo menos dero muito difícil desradicalizar os radi-
200 pessoas serão formalmente denuncia- calizados. Eles podem ficar acuados, se
das pelo vandalismo. dispersarem por um tempo, mas a força
Na frente de punições no Congres- sempre estará latente, pronta para ser
so, a cúpula do Senado dá como certa a mobilizada, inclusive offline.”
abertura de um processo no Conselho Marcos Nobre, presidente do Cen-
de Ética, talvez a instalação de uma tro Brasileiro de Análise e Planejamento
cpi. “O Legislativo deve dar o exemplo (Cebrap) e professor de filosofia da Uni-
e ser o primeiro a responsabilizar aque- versidade Estadual de Campinas, avalia
le parlamentar que, comprovadamente, que há uma divisão entre os extremistas.
atentou contra a democracia, contra o Um lado aposta que o triunfo do projeto
Legislativo”, diz o senador Rodrigo Pa- autoritário poderá se dar com uma vitória
checo (psd-mg). Ele acrescenta: “Acho na eleição presidencial de 2026 ou, antes
que o ex-presidente Jair Bolsonaro tam- disso, com a derrubada de Lula por meio
bém deveria concentrar esforços na pa- de um impeachment. É a via da tomada do
cificação do país. A legitimidade das poder por dentro das instituições. O ou-
urnas, o resultado das eleições, tudo isso tro lado, composto pela turba golpista do
são fatos superados.” A senadora Soraya 8 de janeiro, quer o golpe já. “O Bolsona-
Thronicke (União Brasil-ms), que ficou ro está com um pé em cada canoa”, disse
em quinto lugar na corrida presidencial, Nobre, em sua participação no episódio
já recolheu número suficiente de assina- #236 do Foro de Teresina, o podcast de
turas para instalar a cpi. “Se alguém co- política da piauí. Para ele, o governo Lula
meteu algum crime, não importa o lado, precisa trabalhar pesado para emparedar
fique sabendo que vai ter que responder essa extrema direita em conflito interno,
por ele. Simples assim”, diz ela. devolvendo a hegemonia desse campo
Nem tão simples. Há bolsonaristas ideológico à direita democrática. “É pre-
que apostam que não haverá punição ciso trazer as pessoas de volta para a de-
alguma de parlamentares. “Se estivesse mocracia”, diz Nobre. salasaopaulo.art.br
na linha de frente e quebrando vidraças Antes da eleição e ainda agora, o es-
ou invadindo os poderes, aí, sim, mas cudo democrático mais eficaz tem sido
temos que individualizar as condutas”, o stf – que assumiu esse papel diante APOIO REALIZAÇÃO

diz o deputado Delegado Waldir (União da circunstância histórica de um gover-


Brasil-go), ex-líder do governo Bolsona- no que açulou o golpe durante quatro
ro que não se candidatou à reeleição. anos. Não é por acaso que o bolsonaris-
“Não acredito que Rodrigo Pacheco e mo elegeu o ministro Alexandre de Mo-
Arthur Lira, por mais que manifestem raes como inimigo a ser eliminado. Nas

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todo o país], houve aumento do núme- aglomerassem diante do seu q.g. em Bra-
CAROL ITO_2023
ro de fretamentos de ônibus com desti- sília durante dois meses. Nesse período,
no a Brasília para este final de semana. houve uma noite de fogo e quebradeira
Há um total de 105 ônibus com cerca de na capital federal, quando uma turba
3 900 passageiros. Mantêm-se convoca- tentou invadir a sede da Polícia Federal.
ções para ações violentas e tentativas de Depois, a polícia encontrou um artefato
ocupações de prédios públicos, principal- explosivo ao lado de um caminhão-tan-
mente na Esplanada dos Ministérios.” que com quase 70 mil litros de querose-
n 15h40: “Em Brasília, continua che- ne, perto do Aeroporto de Brasília. Três
gada de manifestantes no q.g. do Exérci- comparsas – bolsonaristas – foram iden-
to. Vias da região estão bloqueadas para tificados. Eles tramaram o plano dentro
veículos. Há pequeno grupo de manifes- do acampamento em frente ao Quartel-
tantes na Esplanada dos Ministérios, General do Exército, em Brasília, e che-
próximo à Alameda das Bandeiras. Eixo garam a acionar a detonação da bomba,
Monumental encontra-se bloqueado que, por sorte, não funcionou. Diante
para veículos na altura da Biblioteca Na- disso, o ministro da Justiça, Flávio Dino,
cional. Não há registro de incidentes.” chamou a aglomeração no q.g. de “incu-
n 16h50: “Em Brasília, continua che- badora de terroristas”. Por dois meses, os
gada de manifestantes no q.g. do Exército. militares acharam que não era preciso
Não há registro de ações de manifestan- remover os acampados. Eram todos pací-
tes fora do q.g. do Exército. Permanecem ficos. (Do trio terrorista, dois estão pre-
convocações e incitações para desloca- sos. O blogueiro bolsonarista Wellington
mento até a Esplanada dos Ministérios, Macedo de Souza está foragido. Ele foi
ocupações de prédios públicos e ações assessor da ex-ministra Damares Alves.
violentas, mas sem coordenação concre- Segundo a Agência Sportlight, que se
ta para tais ações.” dedica ao jornalismo investigativo, Sou-
n 10h30 do domingo, dia 8: “Em Bra- za esteve duas vezes no Palácio da Alvo-
eleições, na condição de presidente do nandes da Hora, aparentemente discutin- sília, continua chegada de manifestantes rada em 2021. Uma vez no dia 14 de
Tribunal Superior Eleitoral, Moraes ex- do com policiais da tropa de choque da no q.g. do Exército, mas em fluxo menor abril, quando ficou duas horas no palá-
pandiu seus poderes para conter fake Polícia Militar para impedi-los de prender que o registrado ontem. Houve incre- cio. A outra vez em 11 de maio, quando,
news e sabotagens. Agora, como titular os baderneiros que depredavam o palácio. mento significativo no número de barra- de acordo com os registros obtidos pela
do inquérito dos atos antidemocráticos, Tornou-se, ali, não um agente da ordem, cas de ontem para hoje, inclusive com agência por meio da Lei de Acesso à In-
destituiu o governador do df, Ibaneis Ro- mas da baderna. O caso está sob investiga- instalação de estruturas maiores. Perma- formação, ficou um longo tempo: das
cha (mdb), e mandou prender o ex-minis- ção. O bgp, cuja única razão de existir é necem convocações e incitações para 7h43 às 15h53.)
tro da Justiça de Bolsonaro, Anderson defender os palácios presidenciais, tem deslocamento até a Esplanada dos Mi-

N
Torres, e o ex-comandante da pm do Dis- um efetivo de 1 mil soldados e não foi se- nistérios, ocupações de prédios públicos o rol das inúmeras diferenças en-
trito Federal, o coronel Fábio Augusto,Acessequer acionado.
nosso NãoCanal
foi por falta
nodeTelegram:
aviso. e açõest.me/BRASILTRASH
violentas. Em votação, decidi- tre o golpismo na Praça dos Três
todos eles por suspeitas de não terem agi- A piauí teve acesso a sete alertas produ- ram que a marcha só iniciará quando Poderes em Brasília e no Capitólio
do para conter o levante golpista. (Para zidos pela Agência Brasileira de Inteligên- todas as caravanas chegarem e estão em Washington, a mais sensível é a par-
reforçar a oposição a Moraes, bolsonaris- cia (Abin), que fica sob o guarda-chuva evitando divulgar um horário para o iní- ticipação dos militares. Lá, por tudo que
tas gostam de fazer crer que o ministro do Gabinete de Segurança Institucional cio. Há um pequeno grupo de manifes- se investigou nesses dois anos, as Forças
age sozinho, com poderes ditatoriais. Po- (gsi). Os alertas foram enviados por meio tantes na Avenida das Bandeiras.” Armadas tiveram um papel exemplar,
de-se questionar as decisões do ministro, de uma conta de WhatsApp que reúne n 13h30: “Em Brasília, grupo de ma- seguindo o mandamento constitucional.
mas todas elas – inclusive a expansão de 48 órgãos federais integrantes do Sis- nifestantes iniciou marcha desde o q.g. do O general Mark Milley, maior autorida-
poderes durante a eleição – foram apro- tema Brasileiro de Inteligência (Sisbin). Exército em direção à Esplanada dos Mi- de militar dos Estados Unidos, até se
vadas pela maioria do plenário do stf.) O primeiro alerta é feito antes das 8 da nistérios. Ocupam duas faixas da n1 [nome desculpou por ter posado numa foto ao
noite de sexta-feira, dia 6. O último saiu de uma pista]. Não há anormalidades.” lado de Donald Trump pouco antes da

C
elso Rocha de Barros, doutor em às 13h30 do domingo, pouco antes do co- Menos de uma hora e meia depois do invasão do Capitólio porque sua presen-
sociologia pela Universidade de meço da quebradeira em Brasília. A lei- último alerta, o Congresso Nacional esta- ça deu a impressão de apoio político.
Oxford, diz que ninguém – ne- tura dos avisos é inequívoca de que havia va sendo invadido. O gsi, ao qual a Abin “Foi um erro”, disse. “Devemos defender
nhum estadista, nenhum partido – esco- risco de violência: é subordinada, recebeu alertas que repe- o princípio de um Exército apolítico.”
lhe a sua tarefa histórica. Agora, coube ao n 19h40 da sexta-feira, dia 6: “A pers- tiram seis vezes que havia risco de “ações Aqui, a cada camada nova que as inves-
pt a tarefa de salvar e reorganizar a demo- pectiva de adesão às manifestações contra violentas” e quatro vezes que os golpistas tigações revelam, brotam novas evidên-
cracia brasileira. “É uma coisa que o pt o resultado da eleição convocadas para tinham a intenção de fazer “ocupações de cias de que muitos militares se dividiram
nunca fez”, comentou Rocha de Barros, Brasília para os dias 7, 8 e 9 de janeiro prédios públicos”. Não tomou nenhuma entre os omissos e os cúmplices. Já está
no episódio especial de fim de ano do Fo- permanece baixa. Contudo, há risco de providência diante dos relatos. Pior: na evidente que ficaram na arquibancada es-
ro de Teresina. Isso porque, nos anos 1980, ações violentas contra edifícios públicos e sexta-feira, até dispensou o pelotão de perando o circo pegar fogo. Os militares
quem cumpriu essa tarefa foi o velho autoridades. Destaca-se a convocação por choque que protege o Planalto. bolsonaristas – expressão que é quase um
pmdb. Aos trancos, conseguiu, mas se parte de organizadores de caravanas para Em outra cena de conivência dos pleonasmo – apostam que confusão, tu-
dissolveu ideologicamente. O desafio do o deslocamento de manifestantes com militares, o jornal Washington Post trou- multo e tensão são uma oportunidade
pt será salvar a democracia brasileira acesso a armas e a intenção manifesta de xe a informação de que o general Júlio para abocanhar novos nacos de poder,
sem se diluir em meio aos inevitáveis invadir o Congresso Nacional. Outros Cesar de Arruda, então comandante do quem sabe o próprio poder. É a tigrada do
compromissos políticos. edifícios na Esplanada dos Ministérios Exército, impediu que policiais do Dis- nosso tempo. Lula percebeu isso ainda no
Para cumprir essa tarefa história, o pt poderiam ser alvo de ações violentas.” trito Federal prendessem os bolsonaristas calor dos acontecimentos. “Houve, eu di-
terá de enfrentar o nó mais recorrente na n 10h30 do sábado, dia 7: “Em Bra- acampados em frente ao Quartel-Gene- ria, incompetência, má vontade ou má-fé
vida brasileira – que, antes do governo Bol- sília, há registro da chegada no q.g. do ral do Exército, uma zona de segurança das pessoas que cuidam da segurança pú-
sonaro, até parecia satisfatoriamente re- Exército de dezoito ônibus de outros à qual ninguém costuma ter acesso. blica do Distrito Federal”, disse, no pró-
solvido: a chamada “questão militar”. Os estados para participar de manifesta- Segundo o Post, que atribui a informa- prio domingo. Por isso, decretou uma
militares das Forças Armadas são o sujeito ções. Mantêm-se convocações para ações ção a duas pessoas que testemunharam “intervenção civil” na segurança do df,
oculto na baderna golpista de 8 de janeiro. violentas e tentativas de ocupações de a cena, o general disse ao novo ministro delegando o comando ao jornalista Ricar-
Às vezes, nem tão oculto. Um dos vídeos prédios públicos, principalmente na Es- da Justiça, Flávio Dino: “Você não vai do Cappelli, secretário executivo do Mi-
da invasão do Palácio do Planalto mostra planada dos Ministérios.” prender ninguém aqui.” nistério da Justiça, em vez de recorrer à
o comandante do Batalhão da Guarda n 12h: “Conforme a antt [agência Na realidade, nada disso foi surpresa. Garantia da Lei e da Ordem (glo), uma
Presidencial, coronel Paulo Jorge Fer- que cuida dos transportes por terra em O Exército permitiu que bolsonaristas se operação comandada por militares.

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A glo era a medida esperada pela sábado, dia 21. O governo demitiu o ge- A troca no comando deu algum fôlego duais.” Ele acrescenta: “Ninguém pode,
caserna. Já no domingo à noite, Hamil- neral Júlio Cesar de Arruda do comando ao ministro José Múcio, autor da inesque- por exemplo, deixar de cumprir uma
ton Mourão, o ex-vice-presidente, tinha do Exército, função que ocupava havia cível declaração de que os acampamentos ordem, um comando, uma determina-
dado a dica. Responsabilizou o governo 23 dias. Afundado na sua trincheira ideoló- diante dos quartéis eram formados por ção legal porque não combina com
do df pela baderna – isentando os braços gica, Arruda vinha se recusando a desfazer gente pacífica. Depois do vandalismo gol- suas preferências pessoais. E isso é mais
militares do Exército que nada fizeram os acampamentos golpistas e era refratário pista, Múcio passou a defender a punição forte ainda nas corporações armadas,
– e então completou: “Caso [o governo à punição dos delinquentes do domingo, de todos os envolvidos, civis ou militares. porque elas exercem o monopólio do
local] não tenha condições, que peça ao até que se recusou a revogar a designação Na sua avaliação, as Forças Armadas estão uso legítimo da força. Uma corporação
governo federal um decreto de glo.” Ao de outro bolsonarista raiz, o tenente-coro- hoje divididas em três correntes: a dos bol- armada não pode ser uma milícia a ser-
preferir a intervenção civil, Lula evitou nel Mauro Cesar Barbosa Cid, para a che- sonaristas radicais, a dos bolsonaristas que, viço de facção.”
colocar a capital federal sob tutela mili- fia do 1º Batalhão de Ações de Comandos, apesar de tudo, defendem a legalidade e, Por sorte, os sinais de legalismo estão
tar. Dias depois, explicou: “O Lula deixa em Goiânia. Foi a gota d’água. (O tenen- por fim, a dos lulistas – que outros prefe- começando a aparecer. Assim que assu-
de ser governo para que algum general te-coronel, ex-ajudante de ordens de Bol- rem classificar, não como lulistas, mas miu a função de interventor do df, Ri-
assuma o governo. Quem quiser assu- sonaro, está sendo investigado no stf por como “burocratas”. A grande maioria, diz cardo Cappelli, encontrou-se com os
mir o governo, dispute a eleição e ganhe. fazer pagamentos em dinheiro vivo para a Múcio, é composta por bolsonaristas lega- chefes das forças que atuaram no 8 de
E por isso eu não fiz glo.” família Bolsonaro.) listas, como o novo comandante do Exér- janeiro – entre eles, a comandante do
A necessidade de descontaminar as O novo comandante do Exército é o cito. A ideia do governo é atrair essa Corpo de Bombeiros do df, coronel Mô-
instituições armadas, radicalizadas pelo general Tomás Paiva, chefe do Coman- corrente legalista, pois considera que os nica de Mesquita Miranda. Logo depois,
bolsonarismo, faz parte das missões do do Militar do Sudeste desde abril de radicais são irrecuperáveis. Cappelli passou a receber apelos para
novo governo. Até o fechamento desta 2021. Dias antes da sua nomeação, ele Flávio Dino, titular da Justiça, avalia demiti-la, acompanhados de mensagens
edição, o governo havia demitido 26 dos fez um discurso à tropa em que defen- que só se combate o bolsonarismo radi- informando que a coronel era bolsona-
27 superintendentes da Polícia Rodoviá- deu o respeito ao resultado da eleição cal nas Forças Armadas reforçando o rista e tinha fotos na companhia de um
ria Federal – o vigésimo sétimo pediu presidencial e à democracia. Na primei- legalismo. “Essa noção se perdeu nos deputado do pl. Ele desprezou as men-
para sair – e os chefes da Polícia Federal ra reunião do Alto Comando do Exérci- últimos anos quando se implantou no sagens. “Quando ela chegou perto de
em 18 estados. Em Brasília, segundo to, realizada na terça-feira, dia 24, já Brasil uma espécie de guerra de todos mim, ela falou: ‘Secretário, eu quero di-
levantamento do portal uol, dispensou mostrou serviço. O ministro da Defesa, contra todos, de lei do mais forte, de zer ao senhor que sou republicana.’” Em
pelo menos 140 militares. Entre eles, José Múcio Monteiro, aguardava o saldo vale-tudo”, diz. “Então o que nós ofere- seguida, Cappelli completou: “A linha de
estão integrantes do gsi, que, apesar da da reunião na sua sala no nono andar. cemos às corporações armadas do Esta- corte não pode ser se é bolsonarista ou
posse de Lula, ainda era o ninho bolso- Estava ansioso para saber o resultado. do é uma cultura da legalidade. Não lulista. A linha de corte tem que ser a le-
narista formado pelo ex-chefe do órgão, Quando foi comunicado que o Alto Co- importa, portanto, em quem você votou galidade, o respeito à Constituição e às
o general Augusto Heleno, amásio de mando decidira suspender a indicação e em quem você votará. O que importa instituições democráticas. Senão, a gente
tramas golpistas desde os anos 1970. do tenente-coronel sob investigação, é que você cumpra a lei, cumpra o seu não vai a lugar nenhum.” A coronel Mô-
O movimento mais firme até agora, no respirou aliviado. “Pronto”, disse a um dever. E obviamente descontamine as nica continua na chefia dos bombeiros e
entanto, deu-se nas primeiras horas do interlocutor. “Que notícia boa.” instituições dessas preferências indivi- comanda 10 mil homens. J

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anais da intentona II

QUATRO ANOS
EM QUATRO HORAS
A apoteose do bolsonarismo e um conto de fadas

FERNANDO DE BARROS E SILVA

T
odos conhecemos o slogan da era mo, a materialização da síntese do Plano A transmissão da depredação por Ins- causa da placa, não por causa de suas
jk – “50 anos em 5”. Foi com esse de Demolição levado a cabo diutur- tagram ou WhatsApp tinha certamente teses sobre a organização do Estado.
bordão que Juscelino Kubits- namente pelo governo que foi a duras uma finalidade política, podendo desen- Ou por outra: a violência contra a pla-
chek se elegeu presidente em penas derrotado nas urnas, mas que se- cadear ondas de fúria país afora, o que ca é propriamente a sua ideia, exibida
1955, foi com ele também queAcesse gue nas nosso
ruas comoCanal
um zumbi.
no Telegram: até se esboçou timidamente em alguns
t.me/BRASILTRASH em público como programa político.
anunciou seu Plano de Metas, do qual a É bastante significativo que a depre- estados, sem maiores consequências. A violência – contra a placa ou con-
síntese era justamente a construção de dação tenha ocorrido simultaneamente A motivação do que ocorreu, no entan- tra os prédios da Praça dos Três Poderes
Brasília. Inaugurada em 1960, a capital no Congresso Nacional, no Palácio do to, parece extrapolar o cálculo estratégi- – é propriamente a ideia do bolsonaris-
encarnava já em sua concepção as aspi- Planalto e no Supremo Tribunal Fede- co. Quando se olha mais atentamente mo. E ponto final.
rações do país à modernidade, ao mesmo ral. Além de ter como alvo os três pode- para a ação dos criminosos, dois tipos Intitulado A morte e a morte, o artigo
tempo que apontava para a interioriza- res – entendidos todos como usurpadores de comportamento se destacam. Parte de- foi escrito meses depois do início da pan-
ção do desenvolvimento e a integração do verdadeiro poder que emana do povo les age com automatismo e até com cer- demia, quando já estava claro como Bol-
do nosso imenso território. Mais do que (ou emena, como li numa faixa patrióti- ta displicência, executando tarefas como sonaro lidaria com o problema. Moreira
uma cidade projetada, e para além do ca nas ruas de São Paulo) –, o ataque se fossem funcionários de uma empre- Salles identifica dois padrões de compor-
marco que representou na arquitetura indiscriminado aos edifícios seguiu uma sa de demolição. Outra parte atua de tamento do então presidente diante da
do século xx, Brasília prometia ser a ma- lógica muito peculiar, que inverte a rela- forma visivelmente amadora, alternan- morte ou do sofrimento alheio: o júbilo
terialização de uma sociedade nacional ção entre causa e efeito mais comum do acessos de fúria e momentos de de- ou a indiferença. Esta última, fartamente
finalmente integrada. nesse tipo de situação. Em geral, quando sorientação, como quem não sabe o que documentada, podia ser sintetizada no
Como sabemos, não deu muito certo. se trata de um golpe de Estado, a violên- fazer ou para onde ir. São comuns expres- “E daí?” com que Bolsonaro reagiu ao
O Brasil jamais superou seus abismos e cia é um instrumento para a tomada do sões de deleite e gritos de euforia com o ser apresentado a números alarmantes de
não vingou como país decente. A própria poder. No 8 de janeiro bolsonarista deu- celular nas mãos. mortes pela Covid. Quanto ao júbilo,
capital frustrou suas promessas, sitiada se o contrário: tomou-se o poder para exer- O ar triunfante e o exibicionismo des- basta dizer que nada o excita tanto como
desde muito cedo por cidades-satélites citar a violência. Não seria essa, aliás, ses patriotas diante dos destroços lem- uma pistola – sua tara por armas é tão
que foram se multiplicando e passaram uma boa definição do governo Bolsona- bram a cena de Daniel Silveira e Rodrigo escancarada, tão pornográfica que senti-
a reproduzir a tragédia urbana e social ro? Tudo o que passamos nos últimos Amorim – então aspirantes à Câmara dos mos receio de baratear demais a noção
disponível por toda parte. A criação de anos pode, afinal, se resumir a isso: o Deputados e ao Legislativo fluminense de inconsciente ao invocar o inevitável
Brasília, de qualquer forma, pertence a direito de ser bárbaro. E – como ele gos- – empunhando a placa de rua com o “Freud explica”. Não é necessário muito
um capítulo da história brasileira cheio de ta de dizer – ponto final. nome de Marielle Franco partido ao treino psicanalítico para identificar a fu-
esperanças e novidades, que os “50 anos Ao se apossar das instalações do po- meio. A energia mobilizada nos dois ca- são entre júbilo e indiferença – um amál-
em 5” de jk souberam capturar numa der, a turba em nenhum momento sina- sos é a mesma, brutal e covarde, de gozo gama de “bota pra foder” com “foda-se
fórmula feliz. lizou que aquilo seria uma invasão associado à aniquilação do outro. tudo” – na dinâmica do 8 de janeiro.
De maneira um pouco bruta e por recreativa. Estavam ali para barbarizar. O que me faz voltar ao texto neste mo-

A
contraste, poderíamos resumir o que Como não havia ninguém dentro dos o tratar do episódio ocorrido em mento, porém, é sobretudo a passagem
aconteceu no último dia 8 de janeiro prédios para ser eventualmente lincha- 2018, em texto publicado na em que Moreira Salles vê na atividade
através do slogan “Quatro anos em qua- do, trataram de chutar, bater, rasgar, piauí_166, quase dois anos depois, do garimpo uma chave para decifrar o
tro horas”. O ataque ao coração de Brasí- furar, estilhaçar, arremessar, quebrar, em julho de 2020, João Moreira Salles modo de ser bolsonarista. Eu cito:
lia não foi apenas uma tentativa de golpe sujar, mijar, cagar, pilhar, incendiar, escreveu o seguinte: O cartão-postal da visão de mundo
de Estado, mas, antes disso, um ato de inutilizar tudo que encontraram pela Não existe bolsonarista sem pulsão bolsonarista é o garimpo, no qual todas
destruição que precisa ser pensado em frente. E registraram ao mesmo tempo de morte. Rodrigo Amorim, o então as dimensões da existência estão avilta-
seus próprios termos, como um fim em si a transformação de objetos em escom- candidato a deputado estadual que par- das: saúde, meio ambiente, relações de
mesmo. O que vimos naquele domingo bros para disseminar nas redes as ima- tiu a placa de Marielle Franco no alto trabalho, norma jurídica. Não por acaso,
foi a expressão apoteótica do bolsonaris- gens da devastação em tempo real. de um palanque, é bolsonarista por nas raras vezes em que esboçou uma pers-

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A Praça dos Três Poderes em construção: o que vimos em Brasília no dia 8 de janeiro de 2022 foi a materialização da síntese do Plano de Demolição levado a cabo pelo governo Bolsonaro

pectiva de futuro para a Amazônia, Bol- abundantes recursos privados ao lon- Enquanto o motorista buzina sem ces- Não se tem notícia de que a sra.
sonaro lhe atribuiu um papel central. go de dois meses e se fortaleceram à luz sar, a mulher do general acena aos mani- Villas Bôas conhecesse esses rapazes
Ao Globo, declarou que pretendia criar do dia como chocadeiras do golpe. festantes pela janela e, a seguir, aponta todos. Nem, tampouco, que soubesse da
“pequenas Serras Peladas” Brasil afora. Nada disso seria possível sem a omissão com o indicador para a parte de trás do surpresa de Natal que os patriotas reser-
A terra devastada que o garimpo dei- das políciasnosso
Acesse estaduais. Mas, sobretudo,
Canal veículo, adaptado
no Telegram: para cadeirantes, su- vavam ao povo brasileiro na forma de
t.me/BRASILTRASH
xa para trás é a materialização da esté- nada disso prosperaria sem a cumpli- gerindo que ali está seu marido. Não é bum! Mas Maria Aparecida certamente
tica bolsonarista e do que seus adeptos cidade criminosa do Exército. Tudo que possível identificar Villas Bôas pela ima- conhece a história do Riocentro, quan-
apreciam: destruição, ruína, bruteza. hoje parece óbvio foi subestimado. gem, mas seu nome é gritado pelos do setores de extrema direita do Exérci-
O 8 de janeiro transformou a Praça acampados. A cena de confraternização to planejavam atentados para melar a

H
dos Três Poderes numa espécie de Serra á pelo menos dois vídeos na inter- se dá em 28 de dezembro, a poucos dias redemocratização do país. É possível até
Pelada. Os patriotas seriam, na verdade, net que registram a interação da da posse de Lula. que tenha se lembrado daqueles tempos
garimpeiros da política – destruindo mulher do general Eduardo Villas Entre a primeira e a segunda visita de difíceis ao ouvir que andam por aí deto-
tudo e produzindo ruínas em busca de Bôas com golpistas que acamparam em Maria Aparecida, o acampamento teve nando torres de transmissão de energia
alguma salvação. frente ao q.g. do Exército em Brasília. ligação com dois episódios bastante gra- para instalar o caos no país. Até a sra.
A rigor, a lógica do garimpo já havia Villas Bôas é o autor do famoso tuíte dis- ves. O primeiro deles foi a depredação Villas Bôas sabe que ninguém estava
se alastrado muito antes pelo país. Não parado em abril de 2018, na véspera do de Brasília na noite de 12 de dezembro, acampado em frente à sede do Exército
me refiro ao extrativismo criminoso que julgamento do habeas corpus de Lula no horas depois da diplomação de Lula em Brasília para jogar dominó.
invadiu as reservas indígenas com o pa- stf, que poderia livrá-lo da prisão. Pres- pela Justiça Eleitoral. Um grupo de vân-

A
trocínio do governo Bolsonaro e tem re- sionando o Judiciário, o então comandan- dalos tentou invadir a sede da Polícia sujeira se precipitou depois de 8 de
lação direta com a tragédia humanitária te do Exército dizia o seguinte: Federal, espalhou botijões de gás pelas janeiro. Quando, naquela noite, o
que se abateu sobre o povo Yanomami. “Asseguro à nação que o Exército ruas, arrancou postes, quebrou lojas, general Júlio Cesar de Arruda, no
Penso aqui nos acampamentos desses brasileiro julga compartilhar o anseio incendiou carros e ônibus, e por muito comando do Exército Brasileiro, impediu
outros “garimpeiros de bem” que prolife- de todos os cidadãos de bem de repúdio pouco não conseguiu atirar um desses a prisão imediata da turba que tinha volta-
raram por toda parte para clamar por à impunidade e de respeito à Constitui- veículos de cima de um viaduto – o ôni- do para o aconchego das barracas depois
intervenção militar desde a derrota de ção, à paz social e à democracia, bem bus ficou pendurado. As investigações de ir até ali brincar de fim do mundo,
Bolsonaro nas urnas. como se mantém atento às suas missões comprovaram que os responsáveis pela ele já não sabia se estava protegendo co-
Contemporâneas de bloqueios de es- constitucionais.” noite de terror estavam acampados no nhecidos da sra. Villas Bôas, fanáticos
tradas, saques e incêndios, as aglomera- No dia seguinte, os ministros rejeitaram recanto dos patriotas frequentado pela olavistas, vândalos de ocasião ou terro-
ções na entrada dos quartéis sobreviveram o habeas corpus do petista por 6 votos a 5. sra. Villas Bôas. ristas profissionais. Muitos deles, antes
às formas de protesto abertamente vio- O primeiro registro de Maria Apare- No dia 24 de dezembro, véspera de camuflados, vestiam mais de uma fan-
lentas e foram ficando lá, como se fos- cida Villas Bôas entre os golpistas de Natal, uma bomba foi encontrada em tasia. Não havia mais como sustentar
sem inofensivas. As afinidades desses Brasília é do dia 20 de novembro do ano um caminhão-tanque nas proximidades que eram “todos patriotas”.
grupos com seitas de fanáticos imersos passado. Identificada por um dos acam- do Aeroporto de Brasília. Ao ser preso e Ao trocar o comando do Exército,
em seus delírios particulares certamente pados como uma “celebridade” e a se- depor, em 19 de janeiro, um dos crimi- Lula de certa forma responde politica-
contribuíram para que fossem tratados guir “esposa de celebridade”, ela sorri ao nosos admitiu ter recebido a bomba de mente, com anos de atraso, ao tuíte de
quase como uma curiosidade antropoló- ser filmada de camiseta amarela e se outro comparsa, também preso, dentro Villas Bôas. Não se trata de revanchis-
gica, e não como um problema político, despede no vídeo com a conhecida sau- do acampamento em frente ao q.g. do mo, não se trata de caça às bruxas. Isso
uma ameaça à ordem democrática. dação militar – “Selva!”. Exército. O terceiro terrorista envolvi- se chama estado de direito e democra-
Assim, como se fizessem parte da No segundo vídeo, Maria Aparecida do na tentativa de atentado trabalhou cia. Funciona um pouco como aquela
paisagem, ou como se fossem presépios passa por duas vezes na frente do acam- com Damares Alves no antigo Ministé- máxima de Damares: militares na caser-
e devessem ser de alguma forma admi- pamento, sentada no banco do passagei- rio da Mulher e estava foragido até o na, civis nas ruas. Ainda estamos muito
rados, os acampamentos receberam ro de uma van que trafega lentamente. fechamento desta edição. longe desse conto de fadas. J

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anais da intentona III

PRENDAM OS PERFIS!
O futuro do bolsonarismo depois da quebradeira

MIGUEL LAGO

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á quase dez anos, uma mul- Quase dez anos depois, ocorreu uma a segunda-feira, 9 de janeiro, o Lula ordenou uma intervenção federal
tidão avançou sobre a Praça imagem parecida: uma multidão sobe país já estava familiarizado com na capital, colocando o policiamento
dos Três Poderes e subiu no no teto do Congresso, mas, dessa vez, o saldo de um dia extraordinário local sob o controle do governo cen-
teto do Congresso Nacional. invade um patrimônio da República de violência política promovida por mi- tral. De Orlando, na Flórida, Bolsona-
Foi no início da noite. As para destruir tudo o que vê pela frente. lhares de militantes de extrema direita ro respondeu aos eventos de domingo
imagens desse acontecimento ficaram É tentador comparar Junho de 2013 na Praça dos Três Poderes. Nas ima- com uma curta sequência de posta-
para sempre registradas. Quando olha- com o 8 de janeiro de 2023, assim como gens de vídeo chocantes, eles correm gens nas redes sociais, em que defen-
mos as fotos, parece que as linhas e também é irresistível traçar paralelos pela rampa de acesso ao Palácio do Pla- de seu governo, mas, covardemente, se
formas de Oscar Niemeyer estavam com o 6 de janeiro de 2021, quando mi- nalto, pelos escritórios presidenciais, distancia da invasão dos prédios públi-
esperando o momento para compor litantes trumpistas invadiram o Capitó- percorrem os corredores do prédio, van- cos. O influencer que presidiu o Brasil
com a multidão. Naquela noite, em lio, em Washington, na tentativa de dalizam o Supremo Tribunal Federal, por quatro anos incentivou diariamen-
nenhum momento se manifestou o po- impedir a diplomação de Joe Biden. Há cujas janelas foram quebradas e as cadei- te todo tipo de violência política, mas
der destruidor que acompanha um volu- paralelos importantes – que virão mais ras arrancadas. Nas redes sociais, vídeos quando ela ocorreu, sequer teve a digni-
me importante de pessoas organizadas. adiante neste texto – mas, desde já, é mostraram incêndios dentro do prédio dade de defender seus seguidores. Teve
A mensagem era: poderíamos entrar e fundamental registrar que o 8 de janeiro do Congresso. Móveis foram quebrados, ainda a petulância de dizer: “Ao longo
quebrar tudo, poderíamos ocupar, mas é único, representa uma nova etapa da jogados de um lado para o outro, obras do meu mandato, sempre me mantive
estamos apenas demonstrando nosso gramática bolsonarista e consiste num de arte foram danificadas, objetos e docu- dentro das quatro linhas da Constitui-
potencial. O movimento foi um exercí- aprofundamento da violência política mentos foram roubados. Furto, depre- ção, respeitando e defendendo as leis,
cio de potência, não de força. A res- na sociedade brasileira. Daí que muito dação, urina, fezes, uma barbaridade a democracia, a transparência e nossa
posta, no entanto, não tardou: gás de se tem falado sobre o enfraquecimento escatológica nunca antes vista. sagrada liberdade.”
pimenta, bomba, bala de borracha. Os do ex-presidente Jair Bolsonaro, mas os Classificando aqueles que participa- Mais do que os eventos em si, os três
manifestantes foram duramente repri- episódios de janeiro mais parecem um ram dos ataques de “vândalos”, “fascis- acontecimentos – o 8 de janeiro de 2023
midos pela Polícia Militar de Brasília. indício de que o bolsonarismo venceu. tas” e “nazistas fanáticos”, o presidente à luz das Jornadas de Junho de 2013 e do

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BETO NEJME_2023
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Golpe dá muito trabalho: é de se perguntar se o novo tipo de intervenção militar, adequado ao século XXI, não seria o da insubordinação, do “deixa acontecer”, de permitir o caos

6 de janeiro de 2021 – nutrem uma rela- mas qualificações atribuídas àqueles fenômeno global. Entre 2010 e 2013, conectiva”, e parecia possível “organizar
ção particular com a imprensa tradicio- que usaram a tática black bloc nas Jor- vimos a Primavera Árabe, o 15m na Es- os não organizados”, para usar a expres-
nal e com as mídias sociais digitais. nadas de Junho de 2013, nas quais tam- panha e o Occupy Wall Street nos Esta- são do professor de filosofia Rodrigo
Primeiramente, a imprensa brasileira, à bém houve violência patrimonial. dos Unidos, além de reverberações em Nunes, da puc do Rio de Janeiro. As
imagem da norte-americana, aplicou Talvez um pouco exagerado, o glossá- Uganda, Reino Unido, Turquia, entre redes sociais pareciam ter viabilizado o
um glossário extremamente grave para rio usado pelo estamento político e mi- tantos outros lugares. A novidade é que sonho utópico de uma sociedade sem
narrar os atos atuais. Em nenhum mo- diático é importante, pois sinaliza uma tais movimentos não resultaram da con- intermediações, um devaneio anarquis-
mento, titubeou em chamar os agresso- ruptura da imprensa e da classe política vocação de agentes sociais já estabele- ta. Mas, rapidamente, passamos da “uto-
res de “golpistas” – em outros tempos, com a normalização da extrema direita, cidos – sindicatos, ongs ou partidos pia autonomista” à “distopia autoritária”.
talvez tivessem sido tratados como “ma- o que, ao longo de anos, contribuiu para políticos. Ao contrário. Os novos agen-

A
nifestantes” –, dando o tom do nível de pavimentar a ascensão resistível de Jair tes sociais surgiram a partir das asso- s redes sociais são uma criação de
gravidade do que aconteceu. Bolsonaro. Considero mais apropriado ciações que se estabeleceram nas ruas. empresas privadas californianas,
O glossário mobilizado pela mídia falar em “terrorismo político”, quando O ator não precedeu o acontecimento. cuja obrigação é rentabilizar seu
profissional e pelos agentes políticos há assassinato (ou tentativa de), mas, cer- Foi o acontecimento que constituiu o produto. Foi ingênuo acreditar que os
chegou a tipificar o evento como “terro- tamente, os bolsonaristas estão mais para ator. E isso se deu graças ao uso das re- meios de produção de comunicação
rista” (“ataque terrorista”, “terroristas terroristas do que para manifestantes. Na des sociais. tinham sido distribuídos, quando, na
golpistas”, e daí por diante), muito em- falta de uma palavra mais precisa, me- Esse tópico foi objeto de muita pes- realidade, o que houve foi um enclau-
bora tenha havido apenas dano mate- lhor salientar a condenação da violência quisa acadêmica, e conclui-se que a ca- suramento das pessoas nos seus perfis
rial e nenhuma pessoa tenha morrido. política do que tolerá-la. pacidade de se comunicar de maneira de rede social. Em vez de propiciar a
Os “bolsonaristas radicais” – que é um Outra aproximação entre os três multilateral provocou um enxameamen- construção da ação coletiva e o diálogo,
pleonasmo, pois não existe bolsonaris- eventos é que as redes sociais desempe- to de pessoas nas ruas. Algo totalmente as plataformas promoveram a hiperin-
mo moderado, pois, se for moderado, nharam um papel determinante. Junho novo surgia. Já não se podia mais falar dividualização e hipersegmentação.
bolsonarista não é – são objeto das mes- de 2013 foi considerado parte de um em “ação coletiva” sem passar pela “ação O perfil não é fruto do encontro com o

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aos seus perfis de rede social. Por isso, como objetivo uma tomada do poder, e
CAROL ITO_2023
essa data entrará para a história brasilei- sim um fortalecimento da máquina de
ra como o primeiro evento “instagra- mobilização revolucionária montada
mável” da mobilização política. pela extrema direita. Os perfis que in-
vadiram e depredaram o patrimônio da

M
obilizar, ao contrário do que República não estavam promovendo
muitos imaginam, é das tarefas um golpe e sim mais uma etapa do pro-
mais desafiadoras que existem. cesso revolucionário. Além disso, quem
Como conseguir que milhares de indi- promove golpe é quem não tem capaci-
víduos se juntem no mesmo momento, dade de mobilizar gente: classicamente,
formulem uma demanda comum e exe- o empresariado e as Forças Armadas.
cutem um curso de ação coordenado? Bolsonaro, como ficou demonstrado no
Como fazer isso sem ter qualquer poder domingo, tem essa capacidade – e nisso
de coerção, seja de ordem pecuniária consiste a sugestão de que talvez o bol-
ou disciplinar? A resposta: com méto- sonarismo tenha vencido com a quebra-
dos e estratégias de engajamento. deira no domingo.
Como qualquer atividade complexa, Mas se não leva a um golpe – a uma
o ativismo também tem metodologias. tomada clássica do poder – para que
Entre elas, está a “curva de engajamen- tudo isso? Para que um movimento mo-
to”. Nela, entende-se que para manter bilizado? O bolsonarismo, assim como o
uma pessoa interessada é necessário trumpismo, tem como único desfecho
sempre mantê-la engajada, como se esti- possível a guerra. Como a curva de en-
vesse em um constante estado de alerta. gajamento está cada vez mais intensa e
A ideia de “curva” implica que passamos levando a ações cada vez mais radicais,
de uma ação com baixo engajamento a única maneira de sustentar esses movi-
para ações com cada vez mais engaja- mentos será, em algum momento, com
mento. Por exemplo, o usuário começa a violência contra pessoas (e não mais

O
outro, mas a materialização de uma per- dia 8 de janeiro de 2023 foi narra- dando like em uma fala de Bolsonaro, contra objetos). Mesmo que Trump e
sona alternativa que opina sobre tudo. do ao vivo por meio das redes so- daqui a pouco compartilha uma notícia Bolsonaro não considerem estratégico o
Diante da hiperfragmentação, a conexão ciais – mas agora as redes sociais veiculada por ele, em seguida vai numa ódio que deflagraram e espalharam em
com o outro se dá mediante “preferências” já são algo diferente de dez anos atrás. manifestação na orla de Copacabana pe- suas sociedades, bem como a dinâmica
comuns preestabelecidas e mediante o A exposição pública dos atos dos agres- dir o impeachment de algum ministro de engajamento própria de seus movi-
ato de “seguir” algum “influenciador” sores era mais relevante do que os atos do stf. A “curva” foi do mais simples mentos, não tem como dar em outro des-
que gere identificação. em si. As imagens televisionadas mostra- (o like) ao mais custoso (tirar uma tarde fecho. Será a guerra, ou eles perderão o
O pesquisador Paolo Gerbaudo, do vam cenas características dos tempos de de Sol livre, abrir mão da praia e se en- poder sobre os movimentos que criaram.
King’s College de Londres, estudioso da hoje, em que os invasores ora depreda- fiar com outras pessoas de verde e ama-

H
vam, ora
interação entre tecnologia e política, de-Acesse registravam
nosso Canal a depredação.
no Telegram: relo numa marcha).
t.me/BRASILTRASH á uma grande diferença entre o
fende a tese de que existe uma afinidade Uma mão quebrava, a outra filmava. Portanto, para mobilizar é preciso 6 de janeiro norte-americano e
eletiva entre redes sociais e populismo. Narrar se sobrepunha à força do ato. criar novas oportunidades de engaja- o 8 de janeiro brasileiro: a reação
Os algoritmos de algumas plataformas Dessa maneira, milhares de narrado- mento constantemente. Se não houver das forças de segurança. Nos Estados
estão desenhados de modo a privilegiar res contavam para a sua audiência o esse moto-contínuo, o usuário perde o Unidos, houve enfrentamento. No Bra-
a visualização de conteúdos que tiveram que estava sendo feito ali. Não eram interesse e se desengaja. Não à toa Bol- sil, assistimos atônitos por quase três
o maior número de interações possível pessoas ou terroristas que ali estavam: sonaro projetou a imagem de “presiden- horas a uma depredação sem qualquer
no momento da sua primeira postagem. eram perfis. Perfis de rede social, pro- te frágil”, que não consegue agir porque intervenção da ordem. Por isso, o que é
Essa curadoria promovida por algorit- duzindo conteúdo em primeira mão está cercado de inimigos. Com isso, chocante não é o ato em si. Sabíamos
mos favorece conteúdos incendiários. para suas timelines em busca de expan- sempre ofereceu aos seus seguidores que cedo ou tarde isso aconteceria, da-
Políticos como Donald Trump e Jair dir o número de seguidores, e a interação oportunidades de engajamento. Nunca do que o bolsonarismo tem como único
Bolsonaro se beneficiaram disso para com os atuais seguidores. Se em Junho faltava motivo para os bolsonaristas se desfecho a violência. O que chamou a
aumentar o alcance de suas postagens. de 2013 o sujeito político era a “multi- unirem e se engajarem na defesa de seu atenção foi a demora e a lenta reação
Quanto mais absurdos Bolsonaro pu- dão”, o sujeito político de 8 de janei- líder. Ao não aceitar a derrota eleitoral, das “forças da ordem”.
blicava, mais reações negativas gerava ro de 2023 é o perfil. ao denunciá-la como fraude, Bolsonaro Brasília é uma cidade cujo urbanis-
e, portanto, mais pessoas eram expos- Nunca um evento histórico brasileiro instiga um novo curso de ação para os mo convida ao controle de aglomera-
tas a esse conteúdo. foi registrado a partir de tantos ângulos seus mobilizados: bloqueio de estradas, ções do tipo da que ocorreu no domingo.
A figura da celebridade não é menos e tantas câmeras. Os perfis invasores acampamentos em frente aos quartéis e, Ao contrário do que acontece em outras
importante na função de agregar e mobi- propiciavam a conexão entre a invasão claro, uma ação mais performática e ca- cidades brasileiras, é fácil e rápido conter
lizar dentro das redes sociais. Num espa- e aqueles que estavam de fora, que tártica de violência como o 8 de janeiro. uma multidão na capital. É surpreen-
ço de perfis atomizados, as figuras dos acompanhavam os acontecimentos via Nisso, o 6 de janeiro nos Estados Uni- dente que as agências de inteligência do
“influenciadores digitais” é que permi- mídias sociais. Antes mesmo que a im- dos foi absolutamente igual: gerou um Estado – o Gabinete de Segurança Ins-
tem o engajamento entre eles. Gerbaudo prensa e as autoridades entendessem o grande evento que, apesar da derrota, titucional, o setor de inteligência da Po-
afirma: “O elemento de personalização que se passava, milhões de bolsonaristas demonstrou a extraordinária força e resi- lícia Militar, a Agência Brasileira de
e o efeito de celebridade da mídia so- assistiam ao vivo à invasão por meio dos liência do movimento – o qual, por con- Inteligência – não tenham mapeado o
cial fornecem uma espécie de ponto celulares de milhares de agressores. É qua- seguinte, tornou-se protagonista da cena risco que se avizinhava. A incompetên-
focal em torno do qual a multidão se como se tudo estivesse sendo feito pe- pública e pautou o debate político no cia é tão clamorosa que, se acontecesse
pode se reunir e milhões de indivíduos los perfis apenas com o intuito de criar país, mesmo sem Trump estar mais com no setor privado, resultaria em demissão
insatisfeitos, e privados de qualquer afi- conteúdo para as redes sociais. A que- as rédeas do poder nas mãos. Eis aí o pro- massiva. Ou, como começa a ficar níti-
liação organizacional comum, podem bradeira, a destruição da porta do armá- pósito central desse tipo de ação: manter do nas investigações, mapearam exata-
se encontrar para reconhecer seus inte- rio do ministro Alexandre de Moraes, o o movimento engajado e forte. É uma mente o que se tramava e – por motivos
resses e desejos compartilhados.” Bolso- brasão da República jogado sobre uma etapa vital, tanto que nem o trumpismo, ideológicos – nada fizeram.
naro, antes de se tornar uma relevante cadeira, tudo era produção de imagem nem o bolsonarismo morreram depois A quebra de hierarquia foi clara. Até
liderança política, já figurava como para gerar engajamento nas redes. da derrota de seus líderes. Tais atos são que se prove o contrário, a Polícia Mili-
um importantíssimo influenciador di- Se em Junho de 2013, as redes foram peças de uma engrenagem: cada vez tar não obedeceu ao governador e não
gital. Se tornar um poderoso influencer fundamentais para levar as pessoas às mais radicais, cada vez mais violentos. se sabe quanto o Exército ainda obede-
foi o primeiro passo para subir a rampa ruas, em 8 de janeiro de 2023, as pesso- Assim, o evento norte-americano e o ce ao presidente da República. A deci-
do Planalto. as foram às ruas para levar mais pessoas evento brasileiro não me parecem ter são de evitar a decretação de uma glo

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(Garantia da Lei e da Ordem, na qual dece às instituições, em que as figuras boa relação com as Forças Armadas é vai se rebelar contra o presidente, contra
o presidente autoriza o uso das Forças de autoridade já quase não existem, bem-vinda. Deve ser transferida para o Supremo, contra o resultado das elei-
Armadas) para furtar-se a um golpe tra- como é possível dar um golpe? A extre- o eixo central do governo – Fazenda e ções. Ou contra o corte de privilégios.
duz bem o nível de insubordinação dos ma direita destruiu o Estado como o Planejamento. Cabe ao Estado brasi- Os militares, claro, vão chiar. Mas não
militares ao poder civil. Na prática, entendemos. Bolsonaro conseguiu frag- leiro tratar os militares como o que são: darão o golpe. E, se derem, ficará o re-
quando precisar contar com a proteção mentar o poder, permitindo a existên- funcionários públicos concursados iguais cado de que uma corporação sequestrou
da ação militar, a Presidência da Repú- cia não de um, mas de vários soberanos aos outros, sem qualquer privilégio. É sa- o Estado para enriquecer seus membros.
blica poderá convocar o Exército ou – seguindo um pouco a lógica do tráfi- bido que o Exército se pauta pelo cor- Em outras palavras, colocar a questão
terá que temer uma rebelião? A pergun- co de drogas e da milícia. porativismo, assegurando sempre o in- militar na esfera da Fazenda e do Pla-
ta central é: o poder militar ainda está Nesse contexto, os militares podem cremento do orçamento para a defesa nejamento significa jogar no ataque
subordinado ao poder civil? Do contrá- fazer o que lhes der na telha. Nessas (que já é maior que o da educação e para aplacar a deterioração institucional.
rio, não há estado de direito possível. circunstâncias, não é necessário um quase equivalente ao da saúde) e arran- O Exército pode ter armas. A democra-
O ministro da Justiça, Flávio Dino, e o golpe para que a força se sobreponha à cando benesses para seus membros. cia tem duas coisas mais poderosas: as
presidente da República parecem ter lei. É de se perguntar se o novo tipo de A resposta de todos os governos demo- leis e o orçamento público.
medo de se fazer essa pergunta, e opta- intervenção militar, mais atual para o cráticos foi sempre dar mais dinheiro, A conversa sobre golpe interessa aos
ram por evitar o conflito. século xxi, não seria o da insubordina- poder e espaço para os militares, com a militares para que possam seguir pau-
Pouco se sabe sobre como pensam e ção, do “deixa acontecer”, de permitir o honrosa exceção na gestão de Fernando tando o novo governo. Reforçando o
agem os militares. Estão todos eles do caos. Nisso consiste a vitória de Bolso- Henrique Cardoso. É preciso interrom- que já foi dito: para subordinar o poder
lado de Bolsonaro? Se fosse o caso, já naro: o total esfacelamento das autori- per esse ciclo. militar novamente ao poder civil, é pre-
teriam dado o golpe, dizem alguns. Se- dades no Brasil que deixa livre caminho O Ministério da Fazenda precisa cor- ciso parar de temer um golpe. Os Esta-
ria apenas uma parcela? Não temos a para que a força possa se exercer. tar gastos para abrir espaço fiscal aos dos Unidos historicamente cumpriram
resposta precisa. Sabemos, sim, que al- O desafio do novo governo é, portan- programas sociais e demais políticas pú- a etapa de enquadrar os militares. Por lá,
guns militares impediram o trabalho de to, imenso, pois mesmo sem um golpe, blicas. Que priorize os cortes no Minis- os fardados estão perfeitamente subordi-
repressão no dia 8 de janeiro de 2023. os militares estão dissolvendo o estado tério da Defesa. Existe espaço para nados ao poder civil. São militares, não
Isso significa que agentes públicos agi- de direito no país. O problema da insu- cortar uma série de benefícios dos mili- são perfis. Se conseguir fazer algo seme-
ram como perfis e não como militares. bordinação imediata poderá talvez ser tares. Não há qualquer razão para a lhante, neutralizando a contaminação
A dinâmica de redes sociais é tão per- resolvido com a nomeação do general compra de mais material bélico. Não há dos militares na vida nacional, o Brasil
versa que destrói até mesmo a hierar- Tomás Paiva, o novo comandante do qualquer necessidade de expansão da então terá um problema a menos. As-
quia militar. Alguns militares hoje são Exército, cuja biografia indica um perfil tropa: já temos quase 350 mil militares sim, poderá concentrar a atenção no
perfis antes de serem militares. institucionalista e republicano. A per- contra apenas cerca de 400 mil policiais mesmo problema que aflige o gigante
Sabe-se que o Comando-Geral do gunta que se coloca é: será que os solda- militares. Fazer um ajuste fiscal radical do Norte: como enfrentar a máquina
Exército não cumpriu com suas atribui- dos-perfis obedecerão aos seus generais? na pasta da Defesa é a única maneira de revolucionária da extrema direita e seus
ções entre 1º de novembro e 9 de janei- Depois de quatro anos de bolsonarismo, mudar o tom da conversa. Podemos dei- líderes inflamados – só que, pelo me-
ro. O Setor Militar Urbano de Brasília será que a hierarquia militar sobrevive xar de lado a conversa de que o Exército nos, sem o apoio das baionetas. J
é uma área sensível para a segurança intacta? Se o general Tomás Paiva con-
nacional. Ali, está o Quartel-General seguir garantir circunstancialmente que
do Exército. Ali, residem os generais. o Exército vai
Acesse obedecer
nosso à Presidência
Canal da
no Telegram: t.me/BRASILTRASH
Em nenhuma circunstância seria tole- República quando for solicitado, já terá
rado que sequer uma pessoa em situa- feito um trabalho extraordinário.
ção de rua passasse uma noite por lá. Muito se fala da necessidade de de-
Como explicar centenas aglomerados mocratização das Forças Armadas, mas
por dois meses, trazendo um risco con- essa tarefa é de partida quase impossí-
tínuo à segurança física de generais e vel. Todo o esforço no sentido de quali-
do q.g. do Exército? Portanto, o Exérci- ficar a formação militar, enquadrar as
to descumpriu ativamente o seu com- posições públicas, o comportamento nas
promisso mínimo de proteger uma área redes sociais, tudo isso será bem-vindo.
de segurança nacional. Da mesma ma- Mas nenhum empenho será suficiente
neira, o Batalhão da Guarda Presiden- para alterar uma das nossas mais anti-
cial descumpriu sua função de proteger gas instituições. Na ciência política,
o Palácio do Planalto. existe vasta literatura sobre a dificulda-
A situação de confusão sobre a subor- de de se reformar instituições de modo
dinação do poder militar ao poder civil, radical, pois seu passado condiciona o
associada ao caos em que as cidades bra- presente e as possibilidades de futuro.
sileiras se encontram, sem que o Exérci- O Exército Brasileiro tem uma tradição
to precise fazer nada, cria um quadro antidemocrática que vem desde 1889,
muito confortável para a corporação. quando derrubaram uma monarquia
Para que fazer um golpe, se já não temos constitucional para instaurar uma dita-
certeza se vivemos em um estado de di- dura militar e, subsequentemente, uma
reito? Golpe dá muito trabalho, requer, república oligárquica. Desde então,
na sequência, que se governe, que se en- nunca saíram da vida política do país,
tregue políticas públicas. ora participando das eleições, ora dan-
do golpes. À exceção do único período

O
golpe é um dispositivo tradicional de democracia de massas anterior à
do Estado clássico – centralizado, Constituição de 1988, a chamada Re-
com uma burocracia profissiona- pública Populista (1945-64), tivemos
lizada, que detém a soberania sobre um mais golpes do que eleições neste país.
território e uma população. Para que Por isso, a questão não é se consegui-
haja golpe, é necessário que exista um mos convencer os militares de que a
soberano. A partir do momento em que democracia é uma dádiva e sim como
a burocracia se comporta de maneira faremos com que eles temam o poder
fragmentada e insubordinada, que vá- civil, eleito democraticamente. Mas,
rios atores sociais podem desrespeitar para isso, é preciso parar de temê-los.
regras de segurança, e que uma parcela A questão militar não deve se circuns-
da população já não acredita e não obe- crever ao Ministério da Defesa, cuja

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GUERRA E PAZ
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N
o dia 1º de janeiro, quando chegou à Praça dos Três com uma lente grande angular e a outra com uma teleobjetiva.
Poderes e avistou o Palácio do Planalto, Diego Bre- Pegou ainda um capacete esportivo e uma máscara contra gases.
sani logo percebeu que o Sol forte daquele domingo “Tomo essas precauções desde que fotografei os protestos de
não daria trégua. Eram nove da manhã, e o fotógra- 2013. À época, os repórteres costumavam botar capacetes azuis.
fo brasiliense de 40 anos estava lá para cobrir a posse Minha mãe acompanhava os atos pela tevê e ficava aflita por
de Lula pela piauí. A solenidade começaria às 13h45, mas o saber que eu estava no meio da confusão. Ela me procurava na
presidente recém-eleito só subiria a rampa do Planalto no fim multidão para verificar se tudo corria bem comigo, mas reclama-
da tarde. “Fazia um calor infernal. Como a praça quase não va: ‘O problema é que nunca encontro você. Vejo uma porção
tem sombra, a multidão que aguardava o Lula desde cedo pin- de capacetes azuis e não consigo distinguir o teu.’ Para ajudá-la,
gava de suor, mas não perdia o entusiasmo.” Por isso, o governo resolvi comprar um vermelho que uso até hoje. Me dá sorte.”
do Distrito Federal instalou mangueiras com água potável em O capacete exibe um adesivo com a palavra “imprensa”.
alguns pontos da praça. “O povo se agrupava diante delas na Naquele 8 de janeiro, Biló preferiu tirar a inscrição. “Seria
tentativa de encher copos ou garrafas. Muitos enfrentaram filas perigoso se os arruaceiros me identificassem como jornalista.”
enormes, levaram noventa minutos para conseguir matar a A fotógrafa seguiu de Uber para a Esplanada dos Ministérios.
sede.” Baseado em imagens aéreas, o site Poder360 estimou que Saltou ali e caminhou em direção à Praça dos Três Poderes.
mais de 150 mil pessoas se aglomeraram nas imediações do Subiu a rampa do Planalto, que leva ao segundo andar, sem ser
Planalto. A multidão cantava, agitava bandeiras, faixas e carta- interrompida. Às 15h50, fez a primeira foto. Andou por todo o
zes, gritava slogans petistas, arriscava dancinhas e tirava selfies, pavimento e presenciou muita destruição. Os vândalos não
recorda Bresani. Vendedores ambulantes não podiam entrar no abortavam o quebra-quebra nem mesmo diante da câmera.
local. Só tinham permissão para trabalhar nos arredores. – Você é de onde? – perguntou um deles. Queria checar se
A variedade étnica, social, religiosa e etária dos que celebra- Biló trabalhava para algum meio de comunicação.
vam o novo governo chamou a atenção de Bresani. “Havia gente – Sou de São Paulo, mas vivo em Brasília – respondeu a
de todo tipo e do país inteiro. Era comum alguém me abordar e profissional, fingindo não compreender a intenção da pergunta.
mencionar a cidade de onde vinha: ‘Ô, sou de São Bernardo do – Veio aqui por quê?
Campo. Tira uma foto de mim.’” No ensaio que produziu para – Para registrar um acontecimento histórico.
a piauí, Bresani buscou registrar a euforia popular. “Me interessei Outro implicou com o capacete vermelho da fotógrafa: “Coisa
menos pela cerimônia oficial e mais pelas manifestações de de comunista, hein?” Errado, coisa de patinadora, refutou Biló.
quem acompanhava. O pessoal estava cansado, mas tinha felici- “Eu fiquei estranhamente calma enquanto retratava a barbárie.
dade, prazer, esperança, alívio.” Bresani deixou a festa às 17h40, Um sorriso abobalhado congelou no meu rosto. Agora acho que
assim que Lula terminou de discursar no parlatório do Planalto. estava em choque. O horror me anestesiou.”
Uma semana depois, a fotógrafa Gabriela Biló, do jornal Folha A fotógrafa tentou subir para o terceiro andar, onde fica o
de S.Paulo, chegou à Praça dos Três Poderes. Defrontou-se com gabinete de Lula, mas foi impedida pelos golpistas. “Achei me-
um cenário bem diferente. “Eu estava de folga. Saí para almoçar lhor não correr mais riscos e fui embora.” Ela saiu do palácio
e, pela televisão do restaurante, vi que golpistas tentavam invadir às 16h40. Em casa, finalmente desabou. “Chorei de decepção,
o Planalto, o Congresso, o Supremo.” A paulistana de 33 anos tristeza e raiva.” Nas páginas seguintes, as cenas dos dois do-
decidiu passar em casa e apanhar duas câmeras – a primeira mingos – o da paz e o da guerra. J

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arquivos do golpismo

UMA SOLUÇÃO
RÁPIDA E
SATISFATÓRIA
Como os militares brasileiros ajudaram seus colegas bolivianos no golpe de 1971

WALTER SOTOMAYOR

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E
m março de 1971, Cláudio Gar- te, se absteve de uma resposta. Preferiu Sua Excelência, na conversa que teve insegura existência de um governo de es-
cia de Souza, recém-nomeado lembrar, saudoso, de uma viagem que fize- comigo, me pareceu realmente interessa- querda neste país com o qual o Brasil com-
embaixador na Bolívia, chegou ra na juventude ao Brasil. No dia seguinte, do na manutenção de um diálogo profí- partilhava sua maior fronteira territorial.
a La Paz com um importante Garcia de Souza usou os canais diplomá- cuo entre autoridades e representantes da Aos 44 anos, Garcia de Souza havia
desafio: estabelecer relações ticos para enviar a Brasília um balanço da Bolívia e do Brasil. Sua Excelência de- sido escolhido para o cargo em La Paz
com o governo de esquerda, visto pelo nova composição do gabinete de Torres, monstrou especial interesse na colabora- pelo chanceler Mario Gibson Barboza.
regime militar brasileiro como uma amea- destacando a sua debilidade em razão da ção econômica e comercial com o Brasil. Deveria manter uma relação estreita
ça à segurança do Brasil. No dia 18 da- dispersão e heterogeneidade dos diversos Apesar da cordialidade dos encontros com o governo boliviano e, assim, trans-
quele mês, Garcia de Souza entregou grupos de esquerda que o apoiavam. com as autoridades bolivianas e das mani- mitir a Brasília um quadro preciso da
suas credenciais na chancelaria boli- O governo boliviano também era festações de aproximação entre os dois situação. A correspondência secreta en-
viana, em um encontro com o novo mi- foco de atenção do adido militar brasilei- países, os diplomatas brasileiros concen- tre a embaixada brasileira em La Paz e
nistro de Assuntos Exteriores, Huáscar ro, o então coronel Newton Cruz, que traram sua atenção nos rumos que o o Ministério das Relações Exteriores –
Taborga – e não com o general Emilio havia iniciado suas funções em La Paz governo Torres tomava e também na vi- compartilhada com o Centro de Infor-
Molina Pizarro, como previsto. Na véspe- em novembro de 1970, um mês após o gol- gilância sobre os exilados brasileiros na mações do Exército (cie) e outros órgãos
ra, em decorrência de uma tentativa de pe que levou Torres ao poder com o apoio Bolívia. Seguir os passos dos antigos líde- de inteligência militar – descreveu dia-
golpe contra o presidente, o general Juan da esquerda e dos sindicatos. res do governo João Goulart, deposto em riamente a conjuntura política boliviana,
José Torres, ocorrera a mudança de gabi- Em 22 de março de 1971, Garcia de 1964, bem como de um grande número cuja forte instabilidade era um obstácu-
nete, e Taborga passara a ocupar o lugar Souza foi recebido com simpatia por Tor- de exilados políticos, era uma das priori- lo para qualquer iniciativa mais profun-
de Pizarro, enquanto o governo se incli- res, durante a entrega formal de creden- dades das missões diplomáticas na Amé- da no relacionamento bilateral.
nava ainda mais para a esquerda. ciais. O presidente boliviano havia rica Latina: na Bolívia, mas também no

E
O embaixador brasileiro disse a Tabor- atuado como adido militar no Rio de Ja- Chile e Peru, ambos com governos de m abril de 1971, o presidente Torres
ga que, de acordo com as instruções rece- neiro em 1964 e, durante o encontro, se orientação de esquerda, na Argentina e no nacionalizou a maior mineradora
bidas no Brasil, procuraria “explorar todas referiu ao Brasil como hermano mayor. Uruguai – país onde o regime militar bra- da Bolívia, a Mina Matilde, cance-
as possibilidades de aumento do intercâm- Garcia de Souza achou por bem não sileiro temia o avanço eleitoral da Frente lando unilateralmente a concessão de
bio econômico, comercial e cultural”,1 concordar com a descrição, respondendo Ampla, uma coalização de esquerda. vinte anos feita em 1966 às empresas
mas o chanceler boliviano, previsivelmen- que o Brasil permanecia fiel ao princípio Como todas essas embaixadas brasilei- norte-americanas Minerals & Chemical
da igualdade soberana dos Estados. Em ras, a da Bolívia, além de exercer a repre- Philips Corporation e United States Steel.
1 Telegrama confidencial de Garcia de Souza a telegrama confidencial enviado a Brasí- sentação diplomática e a série de tarefas A medida somava mais um elemento à
Brasília, em 18 de março de 1971. Catálogo da Cor-
respondência Interna (1809-1972). Arquivo Histórico
lia, em 22 de março, o embaixador escre- burocráticas, trabalhava no intuito de li- intensa hostilidade do governo boliviano
do Itamaraty (AHI), Rio de Janeiro. veu a respeito da reunião com Torres: vrar o regime brasileiro da incômoda e em relação aos Estados Unidos, que já se

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AGÊNCIA O GLOBO
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De golpe em golpe: Ernesto Geisel (de óculos) recebe em Brasília, em 1974, os presidentes Hugo Banzer, da Bolívia, Juan María Bordaberry, do Uruguai, e Augusto Pinochet, do Chile

manifestara na ocupação das sedes de Nixon: O que Karamessines acha que As chamadas “ações encobertas” pro- emissários que enviou ao Brasil em mar-
agências norte-americanas no país e na ex- precisamos? Um golpe? movidas pelos Estados Unidos por meio ço e que lhe assegurasse sua disposição
pulsão de membros do Corpo da Paz – Kissinger: Vamos ver o que podemos da cia consistiam basicamente no uso de com o Brasil, no sincero desejo de promo-
a agência criada pelo presidente John fazer e de que forma. Eles vão nos aper- recursos para fomentar qualquer ação ver a crescente aproximação entre os dois
Kennedy em 1961 com o objetivo de aju- tar mais dois meses. Já se livraram do desestabilizadora, desde o apoio a greves países. Ele me disse que lamenta muito
dar países em desenvolvimento. Corpo de Paz, o que é um trunfo, e ago- até o vazamento de informações negati- a imagem distorcida da Bolívia no exte-
Em vista dos atritos, o governo dos Es- ra querem se livrar da Usia2 e dos mili- vas para a imprensa, mas podia patroci- rior, a começar pela ideia de que o país
tados Unidos resolveu prestar seu apoio a tares [norte-americanos trabalhando na nar também ações violentas. O cenário está se tornando socialista. Assegurou-
militares bolivianos dispostos a derrubar Bolívia]. E não sei se podemos até pen- político boliviano estava se polarizando me que tal objetivo não existe em seu
o governo de Torres, como se depreende sar em um golpe, mas é necessário ver o rapidamente, com o governo de Torres governo e que tem plena consciência de
de uma conversa ocorrida em 11 de ju- que há por lá. Quero dizer, antes que precariamente apoiado em dois pilares: que o povo boliviano, especialmente os
nho de 1971, sexta-feira, entre o então eles deem um golpe, nós podemos dar. uma fração do Exército e o apoio popu- camponeses, não querem esse destino.
presidente Richard Nixon e Henry Kissin- Nixon: Lembre-se que fomos nós lar difuso, como aponta Mariano Bap- O telegrama também registra que
ger, na época assessor de Assuntos para a que demos o estanho3 a esses malditos tista Gumucio, no livro Breve Historia Torres expressou apreço pelo Brasil e
Segurança Nacional da Casa Branca: bolivianos. Contemporánea de Bolivia. gratidão pela colaboração que recebeu
Kissinger: Nós também temos um Kissinger: Bem, sempre podemos re- O presidente Torres se esforçava para quando era comandante das Forças Ar-
grande problema na Bolívia e... verter isso. Então nós... transmitir sinais amistosos ao governo madas e confrontou a guerrilha de Che
Nixon: Eu sei. [O secretário do Te- Nixon: Reverta isso.4 brasileiro e mostrar contenção, enviando Guevara, que foi morto na Bolívia em
souro John] Connally falou comigo sobre emissários ao presidente Emílio Garras- 1967. Antes de encerrar a conversa, Tor-
isso. O que você acha que devemos fazer? 2 A Agência de Informação dos Estados Unidos (Usia, tazu Médici e estabelecendo contatos res aproveitou para criticar a ação de al-
na sigla em inglês), criada em 1953, no auge da Guer-
Kissinger: Eu disse ao [vice-diretor de ra Fria, era uma agência de propaganda do governo
pessoais com funcionários na embaixada guns brasileiros, como o general da
planejamento da cia Thomas] Karames- norte-americano. Foi extinta em 1999. em La Paz. Em um telegrama enviado a reserva Hugo Bethlem, que havia sido
3 Em 9 de abril de 1971, Nixon havia decidido adiar a
sines para intensificar rapidamente uma venda das reservas estratégicas de estanho dos Estados
Brasília em 1º de julho de 1971, o encar- adido militar e embaixador em La Paz
operação. Até o embaixador lá, que tem Unidos, a pedido do governo boliviano, que temia os efei- regado de negócios brasileiro em La Paz, entre 1952 e 1954, e era suspeito de cons-
tos devastadores que isso poderia causar em sua eco-
sido brando, disse agora que devemos co- nomia, dependente de um único produto – o estanho.
Brian Michael Fraser Neele, contou so- pirar com militares bolivianos golpistas.
meçar a lidar com os militares [bolivia- 4 Conversa entre o assistente do presidente para bre seu encontro com Torres: Em 5 de maio, durante um almoço em
Assuntos de Segurança Nacional (Kissinger) e o
nos] ou as coisas vão desmoronar. presidente Nixon, Washington, 11 de junho de 1971.
Ao se despedir ontem, o presidente Tor- homenagem ao embaixador argentino
Nixon: Sim. Foreign Relations of the United States (Frus), 1969- res pediu-me que transmitisse ao presi- Osiris Villegas, em São Paulo, Bethlem
1976, Vol. E-10: Documents on American Republics,
Kissinger: Temos que fazer isso na 1969-1972, Doc. 101. Publicação do State Depart-
dente Médici uma renovada expressão havia proposto a criação de uma espécie
segunda-feira. ment Office of the Historian, Washington, D.C. de agradecimento pela acolhida aos dois de tutela para a Bolívia:

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símbolos de identificação de todo o


CAROL ITO_2023
reyra, descreve gestões feitas em Brasí-
lia, dias antes do golpe, para obter ajuda material antes de seu uso.6
em armas e dinheiro do governo brasi- Segundo um relatório do sni, o mate-
leiro. O informe, enviado a Banzer ape- rial foi enviado em um avião dc-6 de car-
nas em 14 de setembro e que faz parte ga, com matrícula cp-927, da companhia
dos arquivos do Serviço Nacional de Servicios Aéreos Virgen de Copacabana
Informações (sni), sugere uma relação (Savco), especializada no transporte de
próxima entre Barrientos e Bethlem. carnes. Outros embarques posteriores fo-
O general brasileiro defendia aberta- ram feitos em aviões da Força Aérea Bra-
mente um golpe e tinha ligações com o sileira, como se verá mais adiante.
coronel Mario Adett Zamora, um dos

O
militares mais próximos de Banzer. Diz golpe comandado por Banzer dei-
o informe de Barrientos: xou eufóricos os membros do go-
Com a colaboração do general Hugo verno brasileiro. Em 25 de agosto
Bethlem, aproveitaram-se de canais de 1971, o noticiário da Rede Globo en-
completamente diferentes dos anterio- trevistou o chanceler Mario Gibson Bar-
res para iniciar novas negociações dire- boza para saber sua opinião sobre o que
tas com o próprio chefe de Estado, ocorrera na Bolívia. Gibson foi econômi-
gestões que em poucos dias culmina- co, mas eloquente, nas palavras. “Agora
ram com minha entrevista em Brasília temos um governo na Bolívia”, disse ele.
no dia 12 de agosto às 19h30. Em um telegrama secreto enviado em
Barrientos informa que, naquele dia, 26 de agosto ao general João Figueiredo,
expôs ao presidente Médici “a angus- então chefe do Gabinete Militar, o adido
tiante situação da Bolívia” e alertou so- militar Newton Cruz fala da urgência de
bre “o perigo comunista para o Brasil”, aproximação com as Forças Armadas da
além de apelar à responsabilidade dos Bolívia, citando um encontro que tivera
brasileiros para com o seu país. Após com o próprio presidente Médici um
Uma espécie de protetorado para na- decidiram esquecer velhas brigas para um intervalo, a audiência foi retomada mês antes. Até então, os adidos militares
ções como a Bolívia, por determinado voltar ao poder – e se uniriam ao coro- com a presença de outras pessoas: se reportavam exclusivamente ao Estado-
tempo; uma espécie de tutela de seus ir- nel Hugo Banzer, que desencadearia o O próprio presidente, assim como al- Maior das Forças Armadas e seus relatórios
mãos mais velhos, para que a integração golpe em 21 de agosto. guns dos presentes, abundaram nos me- eram distribuídos ao Exército, Marinha
avance, com as nações do mesmo conti- O golpe foi iniciado com o ingresso lhores conceitos sobre o coronel Banzer e Aeronáutica:
nente e não com os governantes do su- de Banzer e outros militares na Bolí- e, por fim, manifestaram sua confiança Através de amplas informações, apre-
permundo, sejam eles de esquerda ou de via, a partir do Paraguai. As ações ar- no cumprimento dos objetivos. Como o sentei meus pontos de vista às autorida-
direita, ambos materialistas.5 madas começaram no dia 19 em Santa resultado final estava prestes a ficar pen- des militares brasileiras sobre a situação
O Ministério das Relações Exterio- Cruz e rapidamente atingiram outras dente, sem prazo, insisti na urgência das atual da Bolívia. As sugestões apresenta-
res em Brasília fez uma nota para es-Acesse cidades nosso
importantes.
Canal Emno Paz, a decisões;
La Telegram: assim, a reunião foi adiada
t.me/BRASILTRASH das durante a entrevista com o sr. presi-
clarecer que as opiniões de Bethlem Força Aérea Boliviana bombardeou o para o dia seguinte às 11 horas. dente da República e testemunhadas por
tinham caráter pessoal e não expres- prédio da universidade e outros locais, No dia 13 de agosto, sexta-feira, foi Vossa Excelência, no sentido de ampla
savam a posição do governo brasileiro. a fim de eliminar focos armados de realizada a reunião, sem a presença de aproximação com as Forças Armadas
A nota foi emitida após protestos de resistência. A chegada de Banzer ao Médici. Dali, se saiu com o compro- Bolivianas, a meu ver, hoje têm um cará-
Taborga, o chanceler boliviano, e dei- Palácio Queimado, sede do governo misso de que uma palavra final seria ter imponente e exigem soluções urgentes.
xou claro o descontentamento com boliviano, em companhia dos líderes transmitida por telefone em dois dias a Alguns dias depois, em 1º de setem-
que Brasília enfrentou as manifesta- dos partidos que o apoiaram, deixou Barrientos, que residia em São Paulo. bro, Cruz envia um relatório aos órgãos
ções de Bethlem. Em 30 de maio, com um saldo de 98 mortos e 560 feridos. Ele acrescenta no relatório: de informação militar descrevendo em de-
o título Brasil Veta Tese de Protetorado Nas semanas que antecederam o Ao meio-dia de segunda-feira, dia talhes todo o movimento de tropas que
ao Governo Boliviano, o Jornal do Bra- golpe, Garcia de Souza enfrentou com 16, foi-me dito que a concentração de levou à vitória de Banzer, bem como
sil publicou uma matéria em que dizia ousadia a tarefa de se manter atuali- todos os materiais necessários havia sua expectativa de uma mudança na si-
ter o Itamaraty considerado absoluta- zado a respeito das notícias políticas sido providenciada para seu convenien- tuação política:
mente necessário deixar claro, por meio em um clima de desconfiança mútua, te embarque à Bolívia. Para que seja possível e conveniente
de um porta-voz, que as declarações de não apenas entre o governo boliviano Para a entrega das armas na Bolí- normalizar os entendimentos com as no-
Bethlem expressavam “apenas o pen- e os agentes diplomáticos, mas entre os via foram adotados todos os cuidados vas autoridades militares, este adido pre-
samento de quem as emitiu”. próprios grupos que participaram do de uma operação encoberta. Em 25 de tende retomar todos os assuntos que
golpe e se enfrentavam em uma dispu- agosto, quatro dias depois, Barrientos havia tratado em sua última viagem ao

A
pesar do clima de intenso ativis- ta de poder que incluía os chefes mili- assinou na divisão paulista do sni o Brasil. Uma solução rápida e satisfatória
mo político em La Paz, teria sido tares. O contato do embaixador e do compromisso de checar todo o mate- será o início de uma nova etapa que visa
muito difícil para qualquer diplo- adido militar, Newton Cruz, com as rial – fuzis, munições e botas – que aproximar as Forças Armadas do Brasil
mata estrangeiro, inclusive Garcia de autoridades bolivianas permitiu, entre- seria destinado ao Comando do Exér- e da Bolívia.
Souza, se dar conta de que um golpe tanto, vislumbrar algo da situação e cito ou ao Ministério do Interior bo- O relatório de Cruz concluiu que o
estava sendo gestado na Bolívia, pela do golpe iminente. Em 19 de agosto, liviano. Tudo foi transportado em um novo governo estava consolidado e que
simples razão de que os líderes políti- Garcia de Souza enviou a Brasília um avião com matrícula boliviana, como atendia aos interesses brasileiros, razão
cos com a capacidade de derrubar o telegrama secreto “urgentíssimo”, no consta de outro documento assinado pela qual recomendou o pronto reco-
governo se encontravam exilados no qual dizia: por Barrientos: nhecimento do novo governo – o que o
exterior. Os dois partidos políticos com Esse clima não é incomum neste país, Registro expressamente que todo o Brasil fez quatro dias depois do golpe,
capacidade de mobilização, o Movi- mas o fato é que na madrugada de on- equipamento de guerra fornecido pelo quando ainda se contavam os mortos e
mento Nacionalista Revolucionário tem houve um tiroteio em La Paz, onde Supremo Governo do Brasil em gesto feridos do embate entre militares e civis.
(mnr) e a Falange Socialista Boliviana foram presos pelo governo três militares de fraternidade democrática continen- Cruz exorta também seus superiores
(fsb) uniram-se para apoiar uma ação da ativa, e a rádio anuncia que acaba de tal, ao longo da presente oportunidade, a enviar uma equipe médica para lidar
militar da direita contra Torres. Seus ocorrer um tiroteio em Santa Cruz, onde será transportado por via aérea e de- com a situação causada pelos confron-
líderes, o ex-presidente Víctor Paz Es- um avião militar com presos políticos foi sembarcado na cidade de La Paz, para tos armados e solicita a transferência
tenssoro, do mnr, e o ex-senador Ma- impedido de decolar, e seus passageiros entrega direta ao Comando do Exército
rio Gutiérrez, do fsb, ambos no exílio, foram postos em liberdade. ou ao Ministério do Interior do Gover- 6 Documento assinado em São Paulo por Oscar F.
Barrientos y Pereyra, em 25 de agosto de 1971. Ar-
Um informe secreto de um agente no boliviano, com o compromisso ex- quivos do Conselho de Segurança Nacional, 1969 a
5 Jornal do Brasil, 30 de maio de 1971, p. 12. boliviano, Oscar F. Barrientos y Pe- presso de apagar as marcas e outros 1973, Arquivo Nacional, Washington, D.C.

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dos feridos graves para um hospital da Em 6 de julho, uma reunião do co- que os fundos para a ação secreta na Bo- O medo do novo governo boliviano
Marinha, próximo à fronteira com a mitê secreto chamado 40,7 havia discu- lívia haviam sido finalmente aprovados.11 era enfrentar um contragolpe a partir
Bolívia. O adido militar também foi o tido na Casa Branca as possibilidades Duas semanas após o golpe, o embai- do Chile, onde se concentravam mili-
intermediário do governo Banzer em de realizar uma ação na Bolívia para xador do Brasil em La Paz pôde avaliar tantes de organizações de esquerda – o
pedidos de equipamentos militares. ajudar potenciais opositores do governo a mudança nas relações com o governo que nunca ocorreu. A primeira tentati-
Em conversa telefônica no dia 2 de Torres, mas havia dificuldades para boliviano durante a recepção que ofere- va de derrubar o governo Banzer partiu
setembro com o coronel Túlio (o sobre- identificar um líder boliviano em quem ceu nos jardins da residência oficial por das próprias Forças Armadas, nas quais
nome não é citado), da Agência Central apostar. Durante a discussão, o subse- ocasião do feriado nacional de Sete de havia um sentimento de rejeição ao co-
do sni, Cruz afirma que a necessidade de cretário de Estado para Assuntos Intera- Setembro. “O dia de ontem proporcio- mando político de um coronel por par-
equipamentos cirúrgicos era menor do mericanos, Charles A. Meyer, usou nou a grande alegria de constatar a pro- te dos generais de Exército.
que havia previsto inicialmente. Na mes- uma imagem dramática: “O que temos fundidade do sentimento pró-brasileiro Banzer manteve relação estreita com
ma comunicação, anuncia que os oficiais agora é um carro caindo ladeira abaixo; que anima o atual governo boliviano”, o general Médici, com quem acertou
do sni e do cie que estavam em La Paz estamos procurando um motorista.” informou Garcia de Souza ao Itamaraty, acordos de complementação econômi-
retornariam ao Rio de Janeiro com am- Meyer acrescentou um comentário so- em 8 de setembro, destacando a presen- ca. Com o presidente brasileiro seguin-
plas informações sobre os acontecimen- bre a atitude dos países sul-americanos ça, na recepção da embaixada, de mi- te, Ernesto Geisel, teve uma conversa
tos dos últimos dias na capital boliviana. que depois se revelou equivocada: nistros de Estado, altos funcionários, na posse em Brasília que rapidamen-
Os argentinos [estão] muito preocu- chefes militares e líderes da coalizão de te evoluiu para o acordo de compra

A
primeira viagem de militares brasi- pados, mas impotentes; os paraguaios governo, entre eles o ex-presidente Es- e venda de gás natural, em maio de
leiros das agências de inteligência dispostos a intervir no saliente de Santa tenssoro e o ex-senador Gutiérrez. 1974. Antes mesmo de tomar posse,
à Bolívia ocorreu em 27 de agosto. Cruz; e o Brasil, grande demais para se Dois meses após a instalação do go- em março de 1974, Antônio Azeredo
A missão foi comandada pelo tenente-co- preocupar com seu pequeno vizinho.8 verno de Banzer, o carregamento de da Silveira, o ministro das Relações
ronel Mauricio Velloso, chefe da agência Essa falta de informação é evidente material militar continuava a chegar à Exteriores do governo Geisel, já havia
do sni no Rio de Janeiro, e integrada pe- em uma mensagem enviada a Washing- Bolívia. Uma informação confidencial traçado os limites dessa negociação.
lo coronel Gersen Terval Barbosa, do ton pela embaixada norte-americana do sni em Campo Grande enviada à Em 1978, Banzer foi deposto por um
Centro de Informações de Segurança em La Paz, em 3 de agosto de 1971: sede do órgão em Brasília, em 19 de no- golpe. A venda de gás só se efetivou em
da Aeronáutica (Cisa). Velloso foi recebi- O único obstáculo à implementação vembro de 1971, diz que “uma caravana 1999, dois anos depois que Banzer re-
do pelo líder do golpe. “A impressão que de um golpe na Bolívia é a eleição de de veículos e outros materiais passou tornou à Presidência, agora pelo voto,
tivemos é que Banzer é um elemento fer- um presidente para chefiar o novo gover- por Corumbá (Mato Grosso), a cami- e sua contraparte no Brasil era Fernan-
vorosamente anticomunista e patriota”, no. Uma reunião para resolver esse pro- nho da Bolívia, que se sabe ser uma doa- do Henrique Cardoso. J
avaliou o tenente-coronel em um relató- blema foi agendada para 1º de agosto, ção do Brasil para aquele país vizinho”.
rio datado de 3 de setembro. mas seus resultados são desconhecidos. Trecho adaptado do livro Relaciones Bra-
Mensagens do sni em São Paulo à No entanto, o governo informou que 11 Carta do diretor da CIA, Helms, ao assistente do sil-Bolivia: La Construcción de Vínculos,
Agência Central, no Rio, informaram está preparando uma prisão em massa presidente para Assuntos de Segurança Nacional publicado na Bolívia por Plural Editores/
(Kissinger), Washington, 24 de agosto de 1971. Vol.
que um avião Hércules, da Força Aérea dos conspiradores.9 E-10, Doc. 108, na mesma obra. Ceres e inédito no Brasil.
Brasileira, chegou à base aérea de Cum- O governo dos Estados Unidos tam-
bica, em Guarulhos, na Grande São bém identificou em seus relatórios um
Paulo, ao meio-dia de 7 de setembro avanço da influência
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Canalnano Bolívia,
Telegram: t.me/BRASILTRASH
para carregar 20 toneladas de material que estaria preenchendo o vazio deixado
militar, decolou no dia seguinte, às oito pelos funcionários norte-americanos. Em
da manhã, rumo a Campo Grande, em um esforço para apoiar qualquer inicia-
Mato Grosso (hoje Mato Grosso do tiva consistente para derrubar Torres, as
Sul), de onde seguiu para Santa Cruz autoridades norte-americanas ainda dis-
de la Sierra, na Bolívia, no mesmo dia. cutiam, no dia em que o golpe começou,
Após a operação, a agência do sni em se deveriam ou não fornecer fundos para
São Paulo notificou Brasília de que o a oposição a Torres.10 Temendo ser acusa-
material bélico havia sido entregue às do de intervencionismo, Kissinger obser-
autoridades militares bolivianas, confor- vou no memorando: “Vamos relaxar e
me programado, detalhando suas carac- esperar para ver o que acontece.” Três
terísticas: 5 mil botas militares e mais de dias após o golpe, o diretor da cia, Ri-
100 mil fuzis e munições. Nesses mes- chard M. Helms, informou a Kissinger
mos dias, o governo brasileiro pediu a
seus representantes em La Paz que suge- 7 O Comitê 40 era um grupo informal constituído
exclusivamente por altas autoridades militares e de
rissem sutilmente às novas autoridades inteligência norte-americanas com a responsabilidade
bolivianas que passassem a fazer suas de aprovar planos de ação secretos destinados a der-
rubar governos. Teve nomes diferentes e sua criação
solicitações pelos canais institucionais remonta a 1948. Ao grupo é atribuída a responsa-
normais, de governo para governo. bilidade pela aprovação de operações como a inva-
são da Baía dos Porcos em Cuba ou o golpe contra o
O coronel Velloso fez uma segunda presidente Salvador Allende no Chile, segundo artigo
viagem à Bolívia em 22 de setembro. de David Wise, The Secret Committee Called “40”,
publicado no jornal The New York Times em 19 de
Partiu do Rio de Janeiro, fez escala em janeiro de 1975.
Santa Cruz de la Sierra e desembarcou 8 Memorando para registro, Washington, 6 de julho
de 1971. Foreign Relations of the United States (Frus)
em La Paz. De acordo com o seu relató- 1969-1976, Vol. E-10, Documents on American Re-
rio, datado do mesmo dia, a viagem de publics, 1969-1972, Doc. 105. Publicado pelo State
Department Office of the Historian, Washington, D.C.
informação serviu também para firmar “Saliente”, segundo o Dicionário Houaiss da Língua
o compromisso de enviar oficiais boli- Portuguesa, é a “parte mais avançada de uma obra
de fortificação de um entrincheiramento ou linha de
vianos a Brasília para treinamento na entrincheiramento”. Na citação, se refere à parte mais
Escola Nacional de Informações (esni). a leste do estado boliviano de Santa Cruz, encravada
entre o Brasil e o Paraguai.
Durante os seis meses em que Gar- 9 Memorando enviado por Dell Bragan, Resumo da
cia de Souza acompanhou a situação mensagem da Sala de Situação de 1º de agosto a 30 de
setembro de 1971, Vol. VIII, Box 387. Arquivos do Con-
boliviana, ele teve acesso frequente ao selho de Segurança Nacional, 1969 a 1973, Arquivo
presidente Torres, segundo as infor- Nacional, Washington, D.C.
10 Memorando de Arnold Nachmanoff da equipe do
mações enviadas a Brasília. Essas rela- Conselho de Segurança Nacional para o assistente
ções contrastavam fortemente com as do presidente para Assuntos de Segurança Nacio-
nal (Kissinger), Washington, 19 de agosto de 1971,
que o governo tinha com os diploma- 10h15. Foreign Relations of the United States (Frus),
tas norte-americanos. 1969-1976, Vol. E-10, op. cit., Doc. 107.

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questões policiais

O HACKER E O DELEGADO
A Polícia Civil e o conluio com um criminoso para investigar Márcio França

ALLAN DE ABREU

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N
a noite do dia 23 de dezem- vivo. No mesmo dia, Brito prestou de- lhe fossem devolvidos, Brito deixou o alegando que estava deprimido, desnutri-
bro, na cidade de Kragujevac, poimento à Divisão Especializada de Deic com os passaportes e o dinheiro. do e anêmico em razão de uma cirurgia
na Sérvia, policiais prende- Investigações Criminais (Deic). Disse Até o fim de fevereiro, o hacker voltou de redução de estômago que fizera quatro
ram o brasileiro Patrick César que usaria os 10 mil reais e o passaporte ao Deic outras sete vezes, conforme anos antes. Com base no exame e no lau-
da Silva Brito, de 29 anos, que válido para se mudar para a Europa e con- mostra o histórico de localização mapea- do médico, o ministro Gilmar Mendes, do
estava em seu apartamento alugado. fessou: sim, de fato, ele era um hacker, do pelo Google em seu celular. Numa stf, concedeu o pedido. Montali deixou
Vizinhos suspeitaram que ele fosse um invadira o celular do prefeito de Araçatu- das visitas, entregou aos policiais uma lis- a prisão e foi para casa.
imigrante ilegal e alertaram a polícia. ba, Dilador Borges (psdb), e da mulher ta de contatos do prefeito, cadastrados na Brito bisbilhotou os arquivos do servi-
Estavam certos, mas Brito continua preso dele para chantageá-los. Pedia 70 mil reais nuvem. Um nome chamou a atenção da dor do laboratório a pedido do escrivão
até agora porque – nem os vizinhos nem para não divulgar nas redes sociais infor- polícia: Cleudson Montali, um médico Felipe Pimenta, homem de confiança
a polícia sabiam – seu nome consta na mações supostamente comprometedo- investigado na Operação Raio x, que apu- do delegado Cotait. O hacker gostava de
lista de procurados pela Interpol desde ras contra o prefeito e a primeira-dama. rava um esquema de corrupção que des- Pimenta. Achava-o articulado e gentil.
que a Justiça brasileira mandou prendê-lo Liberado pela polícia, Brito deixou a viou 500 milhões de reais na área da saúde “Trocávamos muita informação sobre
pelos crimes de violação de dispositivo delegacia, mas, no dia seguinte, recebeu em quatro estados. “Perguntaram se eu computação”, relembra. Na invasão do
informático e extorsão. Brito quer obter um convite estranho: o delegado Carlos tinha descoberto alguma ligação entre o servidor, confirmou-se a suspeita da po-
asilo político em algum país europeu. Henrique Cotait, um experiente policial celular do prefeito e o médico, mas eu lícia: o exame de sangue original fora
Alega que, se for extraditado para o Bra- de 50 anos, queria falar com ele pessoal- disse que não”, conta ele. alterado depois de sair do laboratório.
sil, corre o risco de ser assassinado. mente. O encontro aconteceu no dia 26 de Semanas depois, Brito já se encontrava Montali não estava doente como dizia.
A prisão em Kragujevac é o capítulo janeiro, no prédio do Deic. Em entrevis- na Sérvia quando foi escalado para ajudar De posse dessa informação, obtida ile-
mais recente de uma história que co- ta por videoconferência à piauí seis sema- a “prender pessoas” na Operação Raio x galmente, a polícia pediu à Justiça um
meçou com outra prisão de Brito, no dia nas antes de sua prisão na Sérvia, Brito e recebeu sua primeira missão de porte: mandado de busca no laboratório, obte-
22 de janeiro de 2021, em Araçatuba, no relembrou a conversa. Contou que o de- invadir o arquivo de um laboratório de ve os documentos originais pelas vias
interior de São Paulo. Agentes da Polícia legado Cotait propôs devolver os passa- análises clínicas para verificar a autentici- normais e, assim, lavou a prova ilegal.
Civil cumpriram um mandado de bus- portes e os 10 mil reais em troca de sua dade de um exame de sangue e um laudo Até no laboratório houve desconfian-
ca na modesta casa em que Brito mora- ajuda para “prender pessoas”. Como o sobre a saúde de Cleudson Montali. Os ça sobre os métodos da polícia. “Chamou
va na periferia da cidade. Apreenderam acordo aliviaria sua barra no caso da in- documentos haviam sido usados para que a nossa atenção o fato de que os policiais
um computador, um celular, dois passa- vasão do celular do prefeito, Brito topou. o advogado de Montali pedisse ao Supre- tinham um script pronto”, disse um fun-
portes (um estava com data de validade Mesmo sem ordem judicial autorizando mo Tribunal Federal (stf) sua transferên- cionário do laboratório que pediu para
expirada) e 10 mil reais em dinheiro que os objetos apreendidos em sua casa cia do presídio para prisão domiciliar, não ser identificado já que não está auto-

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VLADIMIR ŽIVOJINOVIĆ_2022
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Brito, no apartamento em Kragujevac, onde foi preso seis dias depois desta foto: o delegado quer “saber o que tá acontecendo, nem que tenha que matar aquela desgraça daquele moleque”

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de Araçatuba e foi criado pela mãe e do cargo de drs em Araçatuba por im-
CAROL ITO_2023
pela avó materna, depois que o pai foi probidade administrativa, mas o então
assassinado quando ele tinha 7 anos. governador, com base em parecer da Pro-
Descobriu muito jovem que tinha talen- curadoria do Estado, trocou a demissão
to para a informática e, apaixonado por por suspensão de trinta dias. (A sindicân-
ciência, começou a cursar física na Uni- cia é sigilosa e não se conhece as razões
versidade Federal do Rio de Janeiro oficiais que justificaram a substituição da
(ufrj). Não se adaptou à cidade, deixou punição.) O gesto levantou suspeitas entre
o curso e, depois de alguns meses mo- os investigadores de que Montali operasse
rando nos Estados Unidos, voltou para o como testa de ferro de França. Um dos in-
interior de São Paulo e resolveu mergu- tegrantes do esquema, em conversa inter-
lhar no submundo. “Eu tenho esse ta- ceptada pela polícia, diz: “Se o Márcio
lento para informática, sei disso. Tentei França ganhar [refere-se à disputa pelo go-
ir pela legalidade, mas no Brasil você verno de São Paulo em 2018], nós vamos
não tem oportunidade.” ter a saúde de São Paulo na nossa mão.”
Nos últimos anos, Brito começou a França não ganhou a eleição de
hackear celulares de políticos. Diz que 2018, mas ficou na mira da Operação
invadiu o wi-fi do gabinete do então de- Raio x – e o caminho mais rápido para
putado Jair Bolsonaro, mas não encon- esclarecer sua suposta participação no
trou nada relevante. Também afirma ter esquema passava por Franklin Cangus-
invadido o celular e o Facebook pessoal su Sampaio, velho conhecido da famí-
do então vice-presidente Hamilton Mou- lia do ex-governador. Junto com as fotos
rão. Não achou nada do seu interesse, das senhas de Sampaio, Brito diz que
mas diz que foi localizado por servidores recebeu a orientação de vasculhar tudo
da Agência Brasileira de Inteligência o que estivesse ao seu alcance. O hacker
(Abin). “Eles me ligaram e disseram que mostrou à piauí uma troca de mensa-
sabiam tudo sobre mim e que era para gens pelo WhatsApp com a investigado-
rizado a falar em nome da empresa. consta o comentário que Nozu fez para eu nunca mais tentar invadir o celular ra Cindy Nozu. Eis o diálogo:
“Eles sabiam como acessar o exame no um colega sobre a transferência: “Fiquei do Mourão.” (Procurada, a assessoria de – Levanta tudo o que você conseguir
nosso sistema e sabiam exatamente o com dó dele que tava nevando e eu man- Mourão, hoje senador pelo Rio Grande dele e me avisa – escreveu Nozu.
computador onde estava o documento, dei 60 reais por Pix pra avó dele, para a do Sul, não se manifestou.) Com receio – O Cotait sabe disso? – perguntou
entre os muitos que existem no laborató- mãe dele mandar para ele lá.” de ser preso, começou a planejar uma Brito, querendo certificar-se que a or-
rio.” Informado da adulteração dos docu- mudança para a Europa. Fez um em- dem partira do delegado.

C
mentos, mas não dos métodos da polícia, arlos Henrique Cotait é um sujeito préstimo bancário de 10 mil reais e tinha – Foi ele quem falou pra te passar –
Gilmar Mendes revogou o habeas cor- empertigado, de olhos miúdos, lá- esperanças de juntar algum dinheiro ex- respondeu Nozu.
pus. Montali voltou para a cadeia. bios finos e estatura mediana. Edu- torquindo o prefeito de Araçatuba. Brito cumpriu a ordem. Ele conta
Em retribuição aos seus serviços,Acesse cado e formal
nosso no trato social,no
Canal ele costuma
Telegram: Foi t.me/BRASILTRASH
aí que os caminhos de Cotait e que descobriu investimentos em cripto-
Brito contou à piauí que recebia dinhei- ser rude com seus subordinados, mas é um Brito se cruzaram. moedas e uma conta de Sampaio no
ro com frequência da equipe do delega- profissional respeitado pela tenacidade Saxo Bank, da Dinamarca, a qual não

D
do Cotait, quase sempre em valores com que se debruça sobre qualquer inves- epois do bom trabalho fuçando os conseguiu acesso. Em arquivos pessoais
modestos. O maior pagamento que re- tigação. Certa vez, num bingo clandes- arquivos do laboratório de análises de Sampaio armazenados em nuvem,
cebeu de uma única vez saiu das mãos tino, prendeu a própria sogra. Em mais clínicas, o hacker foi acionado na diz que conseguiu encontrar várias fo-
do próprio delegado, quando o hacker de uma vez, suas investigações ganharam Sérvia para uma missão mais graduada. tos do médico com França. Além disso, o
ainda estava em Araçatuba. Ele conta destaque na imprensa. A prisão em fla- No dia 14 de julho de 2021, recebeu fo- hacker clonou os números dos aparelhos
que foram 6 mil reais, em notas de 100, grante de um bicheiro e a investigação tos da tela de um celular, mostrando as celulares de Sampaio. Quando concluiu
pagos no dia 23 de fevereiro de 2021, na sobre um empresário suspeito de envolvi- senhas dos e-mails, das redes sociais e seu trabalho, Brito trocou mensagens
sede do Deic. Depois, quando já estava mento com a Yakuza, a máfia japonesa, das contas bancárias de Franklin Can- com Nozu para saber se as investigações
na Sérvia, segundo o hacker, a investi- viraram reportagens no Fantástico, da gussu Sampaio, um médico de Iguape, iam bem. Deu-se o seguinte diálogo:
gadora Cindy Orsi Alves Nozu, outra tv Globo. A própria Operação Raio x no litoral Sul de São Paulo, investigado – E aí os arquivos que eu te mandei
integrante da equipe do delegado Co- apareceu na tela do programa dominical. na Operação Raio x. Seus celulares ha- vão te ajudar?
tait, costumava deixar envelopes com Com sua projeção na imprensa, Co- viam sido apreendidos pela polícia me- – Sim, nossa, e como – respondeu
dinheiro na caixa de correspondência tait ganhou um apoio tático de promo- ses antes, na primeira fase da Raio x, em Nozu. – Já estou escrevendo um relató-
da casa do hacker em Araçatuba, onde tores e juízes da região de Araçatuba, o setembro de 2020. rio que já passou de cinquenta páginas
também mora sua mãe, Alessandra que lhe deu uma espécie de salvo-con- Sampaio era um peixe pequeno na in- e a gente vai usar para pedir a prisão
Cristina da Silva. Segundo contou em duto em suas investigações, mesmo vestigação, mas tinha ligações com um preventiva do Cangussu para ver se ele
depoimento à Polícia Federal obtido aquelas com suspeitas de heterodoxias. peixe grande: o ex-governador paulista delata o Márcio França.
pela piauí, Silva transferia o dinheiro Numa das mais controversas, sobre um Márcio França, hoje ministro dos Portos e – Você só não pode colocar aquelas
para o filho por meio de casas de câm- grupo de narcotraficantes no eixo Bolí- Aeroportos do governo Lula. Nos celula- coisas de banco que é sigiloso, mas você
bio. De acordo com o hacker, os valores via-Araçatuba, ele prendeu um técnico res do médico, a polícia encontrou con- pode pedir pro juiz – orientou o hacker.
não passavam de 1 mil reais e eram em informática. Depois, o preso virou versas comprometedoras com Cláudio – Sim, pode deixar – escreveu Nozu.
sempre em espécie, para não deixar ras- seu “colaborador” e o ajudou a prender França e Caio França, respectivamente – Eu vou colocar só as coisas de fonte
tro da ligação entre a polícia e o hacker. dois policiais civis desafetos de Cotait irmão e filho do atual ministro. As conver- aberta e as outras que você hackeou a
No dia 24 de janeiro deste ano, Cindy que, segundo o delegado, vinham extor- sas sugeriam que havia entre eles um inte- gente pede para o juiz. Porque senão
Nozu, uma policial de 36 anos que pre- quindo os traficantes. Mais tarde, cons- resse especial em manter o controle sobre ele vai dizer que a prova é ilícita e vai
tende ser delegada da Polícia Federal, tatou-se que as provas – imagens de um os indicados para os Departamentos Re- querer saber como a gente conseguiu,
quebrou as regras das entregas em dinhei- circuito de câmeras – foram adultera- gionais de Saúde (drs). E usavam a mes- mas como a gente já sabe do que se tra-
ro vivo. Fez um Pix para a avó de Brito. das. (Antes de aliciar o técnico, o dele- ma sigla – drs – para designar os diretores. ta a gente obtém com ordem do juiz e
Foram apenas 60 reais, valor insignifi- gado chegou a procurar os serviços de Além disso, Márcio França, quando dá um ar de legalidade.
cante para explicar qualquer relação fi- outro hacker, à época preso na região governador, assinara diversos contratos Na mesma conversa, a investigadora
nanceira, mas que serviu para comprovar de Araçatuba, para “analisar” as ima- com as organizações sociais que perten- comenta com o hacker das impressões
a existência de um laço entre o hacker e a gens das câmeras.) ciam a Cleudson Montali, o mesmo que do delegado Cotait sobre o futuro de
policial. Em um inquérito da Polícia Fe- Patrick Brito, o hacker, teve uma tra- constava nos contatos do prefeito de Araça- Márcio França, que, naquela ocasião,
deral que apurou parte das denúncias jetória inteiramente diferente. Franzino, tuba e estava sob investigação da Opera- pensava em se candidatar ao governo
feitas por Brito contra a equipe de Cotait, falante e perspicaz, cresceu na periferia ção Raio x. Montali chegou a ser demitido de São Paulo. Diz ela:

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– Eu estava conversando com o dr. em nome dele, Sampaio, para Araçatu- relação com Franklin Cangussu Sam- a Polícia Civil, o Ministério Público e a
Cotait e ele me disse que se o mf [refere- ba, o médico ligou os pontos, já que ele paio e a Operação Raio x.” Justiça tinham acesso. Sampaio, então,
se a Márcio França] virar governador a estava sendo investigado justamente por Nos inquéritos, constam ainda men- resolveu denunciar o caso à Divisão de
gente está na roça, hahaha. policiais civis dessa cidade do interior de sagens que o hacker mandou direta- Crimes Cibernéticos da Polícia Civil
Em seguida, faz uma sugestão ao hacker: São Paulo. Em conversa com o seu advo- mente para Sampaio nas quais tentava de São Paulo, que, por sua vez, encami-
– Então será que não dá para hackear gado por WhatsApp, Sampaio chega a chantageá-lo. “Eu vou te mandar uma nhou o caso à corregedoria da institui-
o Márcio França direto, ha-ha-ha. suspeitar que o hacker seria um policial carteira em bitcoin, eu vou te dar até o ção, por haver “elementos mínimos de
– Eu vou acabar sendo preso por causa da Raio x. “Será que esses caras que tão final de semana para você fazer essa participação de policiais civis na prática
dessa história – responde Brito. – E nem fazendo isso não são o pessoal da polícia transferência. E caso contrário, acredite dos crimes aqui apurados”.
dinheiro pra pagar advogado eu vou ter. lá? Os caras de Araçatuba tão com toda em mim, eu consigo mandado de pri- A investigação da corregedoria defla-
– Mas não vai acontecer nada, eles a minha documentação”, diz ele, em são contra você e mais uma matéria no grou a fúria do delegado Cotait. Assim
não podem chegar em você, e se chega- mensagem que consta do inquérito do Fantástico.” A certa altura, Brito até diz que soube da novidade, fez um relatório
rem a gente paga advogado para você, caso, ao qual a piauí teve acesso. O advo- que trabalha para a polícia. “Eu traba- para sua própria equipe no qual acusa
e se precisar o dr. Cotait conversa até gado acertou na mosca: “A gente nunca lho com eles em off ”, escreveu. O ha- Brito de ter tido acesso a “informações
com juiz, promotor, para eles facilita- sabe se algum policial de lá [...] vazou cker diz que fez tudo isso por orientação sigilosas” da Operação Raio x com o
rem para você, a gente segura isso para para um hacker e tá mancomunado com da polícia, que pretendia desestabilizar objetivo de extorquir Sampaio. Além
não dar em nada. ele em relação a isso.” Sampaio até que ele concordasse em disso, determinou a abertura de inqué-
Antes de encerrar a conversa, Nozu A desconfiança de Sampaio cresceu fazer um acordo de delação premiada rito para apurar como o hacker invadiu
manda os dados pessoais de França, ainda mais depois que a Polícia Civil contra o ex-governador França. os arquivos da polícia. E escreveu:
caso o hacker se disponha a vasculhar a deflagrou uma operação de busca em Sampaio não se desestabilizou e, “Além de criminoso, ao que parece, o
vida do ex-governador. sua residência – e, também, nas casas ainda por cima, teve certeza de que o remetente [refere-se ao hacker] possui
– Se você topar, vai [sic] os dados dele aí. de Márcio França e do seu irmão Cláu- hacker tinha ligação com a polícia de- um desvio psiquiátrico e mental.”
dio, no dia 5 de janeiro de 2022. Enquan- pois de ver uma das mensagens no seu O hacker reagiu montando um dossiê

Q
uando obteve os dados sigilosos de to os policiais agiam, Brito começou a Facebook. Nela, Brito comentou que, no qual dá sua versão da história.
Franklin Cangussu Sampaio, publicar mensagens no Facebook do no dia em que se realizou a operação

N
além de invadir as contas bancá- próprio Sampaio. Dizia: “Franklin Can- de busca, os policiais haviam apreendi- um canto do restaurante Cascati-
rias do médico e clonar os números dos gussu Sampaio investigado pela Opera- do “várias armas” na casa de Sampaio. nha, no bairro de Santa Efigênia,
seus aparelhos celulares para chantageá- ção Raio x por desviar dinheiro destinado A informação era verdadeira, mas, co- no Centro de São Paulo, uma
lo, o hacker pediu novos cartões de cré- ao combate da Covid. Mais informações mo o auto de apreensão nem havia sido mesa estava ocupada por seis homens
dito e, para o local de entrega, deu o e documentos ao longo do dia.” Outra: formalizado, só um hacker mancomu- – três de um lado, três do outro – e um
endereço de sua mãe em Araçatuba. Foi “Márcio França, ex-governador de São nado com a polícia poderia saber esse envelope sobre a toalha. De repente,
um deslize do hacker: ao saber por men- Paulo e provável vice-governador numa dado. Brito também publicou na rede interrompendo o fluxo da conversa, um
sagens automáticas em seu celular que chapa com Geraldo Alckmin nas elei- social de Sampaio documentos sigilo- deles abriu o envelope e sacou um do-
haviam pedido o envio de cartões físicos ções de 2022, o povo quer saber qual sua sos da operação que, naquela altura, só cumento com cerca de noventa pági-

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ITINERÂNCIA DA 30ª MAJ APRESENTA OBRAS DE 40 JOVENS ARTISTAS E COLETIVOS,


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Sábados, 10h às 20h
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piauí_fevereiro 39
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A operação ocorreu no dia 6 de abril do dos acusados, o hacker começou a com-


CAROL ITO_2023
ano passado. “Levaram a tevê, meu celu- por as conversas em retaliação à ordem
lar, reviraram o telhado. Foram muito de prisão contra si e às operações de
grosseiros comigo, como se eu fosse a busca na casa de sua mãe.
mãe do Pablo Escobar”, disse ela à piauí. A piauí teve acesso aos arquivos de
Desde então, os policiais estiveram na foto e vídeo que mostram as conversas
sua casa outras quatro vezes, todas com entre o hacker e a investigadora e subme-
autorização judicial. Um quinto manda- teu o material a dois peritos. Eles avalia-
do foi cumprido na gráfica onde ela tra- ram que não era possível verificar a
balhava – e resultou em sua demissão. autenticidade das conversas sem terem o
“Todo dia eu acordo às cinco horas celular do hacker ou de Nozu nas mãos.
e fico esperando a polícia chegar. Por- Nos inquéritos aos quais a reportagem
que só quem já passou por isso sabe teve acesso, também não consta ne-
como é”, diz ela. A polícia pediu a pri- nhum relatório de perícia nos celulares
são temporária da mãe do hacker com dos integrantes da equipe do delegado
o argumento de que ela estaria atrapa- Cotait capaz de confirmar ou desmentir
lhando as investigações. O pedido foi a existência dos diálogos com Brito.
negado pela Justiça, mas o juiz Roberto Com sua trajetória de hacker extorsio-
Soares Leite proibiu Brito e a mãe de nário, Brito construiu uma carreira cri-
utilizarem a internet. “Como eles sa- minosa que prejudica sua credibilidade.
bem que não podem me atingir por eu Mas a versão dos acusados, segundo a
estar na Europa, ficam constrangendo qual o hacker não tinha qualquer aces-
a minha mãe”, diz Brito. so aos policiais nem colaborava clan-
Em maio, assim que aconteceu a pri- destinamente com as investigações,
meira busca na casa de sua mãe, o hacker também tem lacunas. Uma delas são as
enviou mensagens a cinco policiais da sucessivas visitas do hacker à sede do
equipe do delegado Cotait com xinga- Deic em Araçatuba logo depois que foi
nas. Era o dossiê do hacker – e estava à 1 milhão, tinha relações próximas com mentos e ameaças. Eram eles: os investi- detido no caso da invasão do celular do
venda. O preço: 5 milhões de dólares. o delegado Cotait. Doná, ele mesmo, gadores Nozu e Ary Rideto Kaneyasu, o prefeito. Outra é a liberação do passa-
O advogado João Victor Abreu, de ca- era o sujeito que, preso anos antes na escrivão Felipe Pimenta, o agente de te- porte para um sujeito que declarou em
miseta, cordões dourados no pescoço, apuração de narcotraficantes que atua- lecomunicações André Luís Imai e o seu depoimento que tinha planos –
anéis distribuídos pelos dedos das duas vam entre Bolívia e Araçatuba, havia se perito Hericson dos Santos. Dias depois, concretizados logo depois – de mudar-
mãos, folheou o dossiê rapidamente. tornado colaborador do delegado. o hacker recebeu um e-mail, escrito em se para a Europa. “É muito estanho a
Mais tarde, em depoimento à polícia, Assim que Doná contou que tenta- italiano, que dizia o seguinte: “Attenzio- polícia devolver o passaporte sem ne-
contou que ficou com o dossiê, mas ram lhe vender o dossiê, a Polícia Civil ne. Potresti essere fuori portata, ma altre nhuma ordem judicial, no meio de
sem desembolsar nenhum tostão. abriu um inquérito para investigar o persone che conosci non lo solo! Ecco il uma investigação e sabendo que o in-
Duas semanas mais tarde, já na se-Acesse caso. Obteve
nosso na Canal
Justiça umnomandado consiglio.”
Telegram: (Atenção, você pode estar fora
t.me/BRASILTRASH vestigado sairia do país”, diz a delegada
gunda quinzena de maio, um outro en- de busca na casa e no escritório de Ra- de alcance, mas outras pessoas que você Carla Patrícia Cintra Barros da Cunha,
contro, dessa vez em Araçatuba, no mos, o genro. Na manhã de 10 de ju- conhece não estão! Fica o alerta.) da Polícia Federal. “Na pf, só se devolve
interior de São Paulo, reuniu três ho- nho passado, Prado, o sogro, retornava Em paralelo, o delegado Cotait de- objeto formalmente apreendido com
mens – dois dos quais estiveram no al- a Araçatuba, vindo de Mato Grosso do sengavetou o inquérito em que Brito autorização da Justiça.”
moço no Cascatinha. Um deles, mais Sul, quando sua filha, casada com Ra- era investigado pela tentativa de extor- Outra lacuna são as informações pri-
uma vez, sacou o dossiê de noventa pá- mos, lhe avisou que a polícia batera na quir o prefeito de Araçatuba, que estava vilegiadas do hacker sobre a operação
ginas. O advogado Marcos Aparecido porta da residência do casal. Prado en- parado desde fevereiro de 2021. Desta na casa de Franklin Sampaio, o médico
Doná, conforme contou depois à polí- tão atirou o seu celular nas águas do vez, o inquérito tramitou rapidamente. de Iguape. Em relatório sobre o caso, o
cia, disse que lhe pediram 1 milhão de Rio Paraná, que faz a divisa entre os Em maio de 2022, o hacker já estava investigador Paulo Henrique Ianella,
dólares. Doná informou que não pagou dois estados. Para a polícia, alegou que denunciado pelo Ministério Público braço direito de Cotait no Deic, diz que
nada, nem ficou com cópia dos papéis. não queria correr o risco de ter o celu- por extorsão e violação de dispositivo o hacker teve acesso às câmeras de ví-
Na página frontal, o dossiê de mi- lar apreendido e expor as conversas si- de informática. Nesse mesmo caso, a deo da casa de Sampaio e, assim, acom-
lhões de dólares trazia um título confes- gilosas com seus clientes. equipe de Cotait ainda conseguiu na panhou a ação policial em tempo real.
sional: “Como eu me tornei o hacker do À piauí, Prado negou ter negociado a Justiça um mandado de prisão preven- No documento, no entanto, não se
dr. Cotait.” O dossiê, que consta nos in- venda do dossiê com João Victor Abreu tiva contra o hacker, com o argumento aponta nenhum indício de que as câ-
quéritos do caso e ao qual a piauí tam- no almoço em Santa Ifigênia e, mais de que Brito fugiu para a Europa após meras foram acessadas. A própria inves-
bém teve acesso, descreve em detalhes tarde, com Marcos Doná, em Araçatu- extorquir o prefeito. Desde então, seu tigadora Nozu não explica por que fez
como o delegado Cotait convidou o ha- ba. “Fui levar esses papéis para o João nome entrou na lista da Interpol. Por um Pix em favor da avó do hacker.
cker Brito a lhe prestar serviços ilegais – Victor Abreu a pedido do Patrick [o ha- isso, ao ser detido no interior da Sérvia A ponta solta mais gritante, porém,
entre eles, invasões de celulares e de cker]. Nunca pedi dinheiro a ninguém”, por suspeita de ser um imigrante ilegal, são as fotos da tela do celular de Sam-
redes sociais de investigados, extorsões, disse. Desde o almoço no Cascatinha, Brito está agora sujeito a ser extraditado paio. As imagens foram feitas às 19h30
acesso ilegal a servidores de empresas e as informações contidas no dossiê – de- para o Brasil. do dia 5 de julho de 2021 e chegaram às
tentativas de saques em contas bancárias. nunciando os préstimos ilegais de Brito mãos do hacker na Sérvia onze dias de-

A
Os advogados achacados – primei- à polícia – seguem fora dos processos s mensagens trocadas entre o ha- pois. O dado mais comprometedor é
ro, em 5 milhões de dólares; depois, em judiciais relacionados à Operação Raio cker e uma investigadora da equipe que as fotos, às quais a piauí teve aces-
1 milhão – trabalhavam ou tinham con- x, mas tornaram-se um pesadelo para o do delegado Cotait via WhatsApp so, deixam entrever detalhes dos móveis
tato com alvos da Operação Raio x, ra- delegado Cotait e sua reputação de po- são um elemento importante no caso. do local onde foram tiradas: é a sala do
zão pela qual poderiam ser potenciais licial competente e implacável, embora Cindy Nozu, a investigadora, disse à Setor Especializado de Combate aos
interessados no conteúdo do dossiê. Mas suspeito de se valer de métodos investi- piauí que as acusações de Brito são “to- Crimes de Corrupção, Organização Cri-
a casa caiu logo depois do segundo en- gativos controversos. das inverídicas, criminosas, fake news”. minosa e Lavagem de Dinheiro (Sec-
contro para vender o dossiê. Nem o ha- A primeira providência do delegado, Ela acusou Brito de ser “megalomanía- cold), que fica no prédio do Deic, em
cker, nem os achacadores – o advogado assim que se transformou em alvo de co” e de querer “visibilidade na mídia”. Araçatuba, e só pode ser acessada me-
Paulo de Tarso Leite de Almeida Prado uma investigação, foi obter um mandado “Ele já montou várias conversas e tem diante o uso de senha. A equipe de Co-
e seu genro Alexander Ramos, também de busca na casa da mãe do hacker, na espalhado nas redes sociais. Todas elas tait, composta por onze policiais, está
advogado – conheciam uma conexão periferia de Araçatuba. Alessandra Cris- já foram rechaçadas, porém não posso lotada no Seccold.
essencial: a de que o advogado Marcos tina da Silva é acusada de habilitar chips dar mais detalhes”, disse, alegando que Na noite do dia 5 de julho havia três
Doná, ao qual ofereceram o dossiê por de celular para as ações ilegais do filho. as investigações são sigilosas. Na versão pessoas na sala do Seccold, de acordo

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com o relatório do policial Paulo Ia- hacker na Sérvia e passou a pressionar licial transferiu o valor simbólico “por Nozu mandou uma mensagem de
nella. São elas: os policiais André Luís Edison Rodrigues. Uma das conversas solidariedade” à “situação de extrema WhatsApp para seu colega Pimenta. Es-
Imai e Edison Luís Rodrigues, e o ad- foi gravada pelo próprio Rodrigues e ob- pobreza” da avó de Brito. Ele também tava aflita com as apurações. Eles man-
vogado Paulo Henrique Martins Rodri- tida pela piauí. Nela, ouve-se o delega- negou que tenha dado 6 mil reais em tiveram o seguinte diálogo, segundo
gues, amigo de Edison Rodrigues. As do, aos berros, dizendo o seguinte: “Eu dinheiro vivo ao hacker. “Desafio Pa- consta em inquérito da Polícia Federal:
investigações não identificaram as im- tenho que saber o que tá acontecendo, trick [Brito], ou quem estiver afirmando – Pimenta… Você acha que a situação
pressões digitais da pessoa que segura- nem que tenha que matar aquela des- isso, a provar o alegado.” aí tá tão preocupante assim? Sinceramente.
va o celular de Sampaio enquanto a graça daquele moleque, eu vou resol- Cotait completou seu e-mail escla- – Então – respondeu o policial. – Eu
foto da tela era feita. Há uma suspeita ver... uma hora ele vai ser preso, nós recendo o seguinte: “Sempre quando não achava, mas estou vendo o Cotait
de que Edison Rodrigues fez as fotos e resolve [sic].” Na mesma conversa, Co- necessário, contamos com técnicas espe- todo preocupado, aí eu comecei a me
vazou-as para o hacker. Isso apenas por- tait admite que sua equipe cometeu ile- ciais que dependem de ordem judicial preocupar também.
que, quando Brito xingou os policiais galidades no trato com o hacker. “Só por meio de ferramentas que constam Em 7 de dezembro passado, mesmo
depois da operação policial na casa de tem quatro pessoas que conversavam em legislação processual penal vigente. dia em que a piauí indagou Cotait sobre
sua mãe, Edison Rodrigues foi o único com ele. Só quatro idiotas. Edison, Cin- E, absolutamente, jamais, contando com o relacionamento do hacker com sua
poupado dos ataques. dy, Imai e Pimenta”, disse. Em seguida, a colaboração de um criminoso. Impor- equipe, o delegado Pedro Paulo da
Diante dessas lacunas, os policiais do o delegado diz sobre os quatro: “Vão ter tante pontuar que a Operação Raio x foi Costa Negri Garcia, subordinado a Co-
Seccold, que antes negavam ter qual- que se explicar na corregedoria, sim. realizada em conjunto com o Grupo de tait, pediu à Justiça que proibisse a re-
quer relação com Brito, passaram a ad- Cada um na medida da sua culpa. Con- Atuação Especial de Combate ao Cri- vista de publicar esta reportagem, sob
mitir que, de fato, mantinham contato versava, mi-mi-mi... fumo.” me Organizado (Gaeco) de Araçatuba. pena de multa. Justificou seu pedido
com ele, mas ressalvavam que o hacker A defesa de Edison Rodrigues, alvo Assim, todos os atos de polícia judiciária assim: “Diante do perigo de ver a ima-
nunca havia lhes prestado serviços ile- das desconfianças do delegado, não quis foram fiscalizados diretamente pelo Mi- gem de policiais civis, bem como da
gais. Em seu relatório, Paulo Ianella es- se manifestar, sob a alegação de que o nistério Público, de modo a demonstrar a própria instituição Polícia Civil do Es-
creveu: “Patrick [Brito] se dispôs a ajudar inquérito é sigiloso. Em e-mail enviado lisura em todos os procedimentos, sem tado de São Paulo, manchadas, faz-se
a polícia em investigações, como ‘cola- à piauí, Cotait disse que o hacker “nunca a participação de qualquer criminoso necessário que a publicação [da repor-
borador’, mas, pelo que consta, nunca auxiliou” o Seccold nas investigações da virtual na obtenção de provas.” tagem] que envolva Patrick César da
nos forneceu nenhuma informação.” Operação Raio x, que Brito esteve “ape- Imai e Pimenta não responderam ao Silva Brito e informações relativas à
Em agosto passado, Cotait reuniu nas duas vezes” no prédio do Deic e que contato da piauí. digna e exemplar operação policial de-
todos os investigadores e os escrivães do devolveu os passaportes porque “em ne- A Corregedoria Geral da Polícia Civil nominada ‘Raio x’ seja proibida, tendo
setor de inteligência. Um dos presentes, nhum momento os policiais tiveram do Estado de São Paulo ainda não con- em vista os danos gravosos que podem
que pediu para ter sua identidade pre- conhecimento de que o hacker tinha cluiu seu trabalho. Procurado pela re- porventura causar.” O Ministério Pú-
servada, contou que, na ocasião, o dele- intenção de deixar o Brasil” – ainda que portagem, o órgão não quis se manifestar. blico rejeitou o pedido. O juiz Roberto
gado anunciou: “Vamos passar por dias a informação esteja no depoimento de Mas os policiais estão preocupados. Na Soares Leite também.
nebulosos.” Cotait se empenhou em Brito. Sobre o Pix feito pela investigado- tarde de 20 de maio passado, durante E assim termina a reportagem que a
encontrar quem enviou as fotos para o ra Nozu, o delegado afirmou que a po- suas férias na Europa, a investigadora Polícia Civil não queria ver publicada. J

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OS DESEJOS
E LIMITES NA
CRIAÇÃO DE
ELENA FERRANTE
Em novo livro, uma
das maiores escritoras
contemporâneas revela as
intimidades de sua literatura
e as inspirações para suas
personagens e romances

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AGORA UMA SÉRIE NETFLIX.
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questões da imprensa

“EU PREFERIA IR
PARA O HAVAÍ”
Janio de Freitas e a construção do furo jornalístico que sacudiu a República e marcou sua trajetória

RICARDO BALTHAZAR

A
primeira providência tomadaAcesseporque não tinha autorização
nosso Canal no fazê-lo. te José t.me/BRASILTRASH
paraTelegram: Sarney se viu obrigado a anular a francês. Como não havia ameaça de pri-
pelo delegado José Carlos Con- O delegado perguntou então o que ele licitação e mandar apurar responsabili- são ou outra circunstância que o impelisse
ceição foi chamar o jornalista pretendera dizer ao escrever na reporta- dades. Freitas achava possível que as in- a buscar refúgio no exterior, Freitas pre-
Janio de Freitas para um inter- gem que a concorrência da ferrovia era vestigações fossem mais longe do que ele feriu ficar. “Achei que era o caso de de-
rogatório. Era maio de 1987. “fraudulenta e determinada por corrup- conseguia chegar como repórter, mas fender aqui as minhas opiniões, os meus
A Polícia Federal acabara de instaurar ção”. Conforme a transcrição do depoi- não apostava muito nisso. Aconselhado princípios, a minha visão das coisas”,
um inquérito para investigar suspeitas de mento feita pela polícia, Freitas disse que por amigos, achou melhor se precaver disse. “Foi uma burrada monumental.”
fraude na concorrência aberta para a usara a palavra corrupção “em linguagem para não virar alvo de um processo judi- Ficou uma década afastado das reda-
construção do primeiro trecho da nova jornalística e não no sentido técnico-ju- cial. “Não valia a pena agravar a minha ções, ganhando a vida por algum tempo
Ferrovia Norte-Sul. Dias antes, o jornalis- rídico”, e argumentou que o conluio das situação, que era um tanto precária”, com uma gráfica que imprimia livros
ta noticiara que as maiores empreiteiras empreiteiras corrompera a lisura da licita- disse no almoço. “É aquela coisa: você para a editora Civilização Brasileira.
do país haviam transformado a licitação ção. Conceição perguntou se ele soubera põe a bomba no lugar e sai de perto.” A Folha apoiou o golpe de 1964 e se
num jogo de cartas marcadas, dividindo de alguma vantagem indevida oferecida encolheu diante do endurecimento do

J
os dezoito lotes da ferrovia entre elas, aos participantes do processo. Freitas res- anio de Freitas era um osso duro de regime dos generais, como a maioria
antes de submeter suas propostas ao go- pondeu que nada publicara a respeito e, roer e, a essa altura, quase uma lenda. dos jornais da época, mas o empresário
verno. O objetivo do policial era extrair portanto, nada tinha a declarar. Estava com 54 anos e já tinha feito de Octavio Frias de Oliveira, dono do jor-
do autor da revelação mais informações Embora nunca tenha escrito isso, o tudo um pouco, em 33 anos de profissão. nal, soube aproveitar o processo de aber-
sobre o conluio e seus participantes. jornalista sempre teve a convicção de Começou como repórter no antigo Diário tura política da segunda metade dos
De início, o delegado enviou um telex que altas autoridades haviam participado Carioca e fez seu nome como editor ao anos 1970 para promover uma guinada
para a sucursal da Folha de S.Paulo no Rio do acerto com as empreiteiras. Quando participar das reformas que moderniza- editorial. Nesse período, a Folha arejou
de Janeiro, onde Freitas trabalhava. De- almoçamos em dezembro do ano pas- ram a revista Manchete e o Jornal do Bra- suas páginas de opinião, abrindo espa-
pois de receber a informação de que o sado, no Rio, ele me explicou que nun- sil, nos anos 1950. Teve breves passagens ço para críticos dos governos militares e
jornalista não comparecera à redação nos ca obteve comprovação, mas sempre pelo Correio da Manhã e pela Última para intelectuais que tinham sido perse-
dias anteriores, Conceição resolveu telefo- pensou que o conluio das empresas só Hora do Rio, que dirigiu na década se- guidos, e passou a cobrir assuntos antes
nar. Na segunda tentativa, conseguiu falar fazia sentido com o envolvimento de guinte. Sobreviveu ao ostracismo imposto vetados pela censura. As mudanças de-
com o jornalista e o convidou para tomar gente graúda, que pudesse garantir aos a muitos profissionais na fase mais repres- ram prestígio e relevância ao jornal, e
um café e prestar esclarecimentos na sede participantes da concorrência que suas siva da ditadura militar, quando ficou criaram o ambiente propício para a volta
da pf. Disse que não pretendia criar cons- combinações prevaleceriam. “Não era sem espaço para trabalhar nas grandes de Freitas ao jornalismo diário.
trangimentos para o repórter e estava uma dedução, nem foi uma informação redações. Conseguiu uma nova chance Em junho de 1983, sua coluna passou
ciente da proteção legal ao sigilo de suas que eu tivesse recebido”, disse Freitas. em 1980, quando a Folha o contratou a ser publicada cinco vezes por semana,
fontes de informação. Freitas concordou, “Era uma forçosa ocorrência.” para escrever uma coluna dedicada a as- com lugar cativo no alto da página 5 do
mas avisou: “Desde logo esclareço que Para atestar a fraude, a Folha publicou suntos políticos, duas vezes por semana. primeiro caderno. O jornalista oferecia
nada direi que não tenha escrito antes.” no caderno de classificados do jornal, em Numa entrevista em 2019 ao site Tu- análises e informações exclusivas, em
Na manhã do dia seguinte, o jornalista linguagem cifrada e cinco dias antes da taméia, o jornalista contou que teve duas textos apimentados com ironia, e virou
chegou no horário marcado e saiu depois reportagem de Freitas, uma lista anteci- oportunidades de sair do Brasil durante referência para os leitores. Dias depois da
de duas horas e meia de depoimento. In- pando o resultado da concorrência e seus a ditadura: um convite para trabalhar na estreia do novo formato, Freitas revelou
dagado por Conceição, afirmou que não dezoito vencedores A reportagem causou bbc em Londres, pouco depois do golpe que os médicos do general João Figueire-
revelaria a identidade de seu informante tamanho escândalo que o então presiden- de 1964, e outro para reformar um jornal do, último presidente do regime militar,

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RICARDO BORGES_FOLHAPRESS_2017
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Janio de Freitas: depois da denúncia sobre a fraude na Norte-Sul, três ameaças de morte, inúmeros telefonemas anônimos, uma tentativa de abalroar seu carro e um homem armado na garagem

piauí_fevereiro 43
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rebater os críticos do projeto, que tinham cebessem. Frias riu, aprovou o plano e
CAROL ITO_2023
movido uma ação popular na Justiça para pediu que ele acertasse os detalhes com
impedir a obra e começavam a mobilizar o jornalista Caio Túlio Costa, então se-
aliados no Congresso. Tavares afirmou cretário de redação da Folha.
que nada faria o governo desistir da ferro- Como o jornal não tinha seção dedi-
via. Freitas descreveu sua atitude como cada ao turfe, restavam os classificados.
autoritária e incompatível com os novos Depois de combinar com Costa, Freitas
tempos e comparou a Norte-Sul às obras datilografou os códigos que comporiam
faraônicas da ditadura militar. O minis- o anúncio e os enviou por fax para a re-
tro, escreveu o colunista, tinha “atração dação da Folha. O secretário foi até o
por estes empreendimentos que cuidam andar em que as páginas do jornal eram
do futuro por gerações e gerações”. montadas antes de serem impressas, para
A intuição de Freitas se confirmou ao cuidar da composição do anúncio. Sob
longo do dia, quando algumas pessoas o título LOTES, seis fileiras de letras e nú-
com as quais nunca tinha falado o pro- meros indicavam as iniciais das emprei-
curaram para conversar. Alguns eram teiras vencedoras e os trechos da obra
funcionários do governo – e uma das li- que caberiam a cada uma. Ficou assim:
gações veio do Maranhão. Freitas se re- lotes
corda de ter atendido seis telefonemas, a l 1a: no – l 2a: qg – l 3a: mj
maioria de pessoas que queriam apenas l 5a: cra – l 6a: Ser – l 7a: ei
fazer comentários políticos ou observa- l 8a: Cow – l 9a: Cee – l 1b: cb
ções técnicas. Até que alguém lhe disse l 2b: cc – l 3b: ag – l 5b: Cons
que o resultado da concorrência da Va- l 6b: Sul – l 7b: cbr – l 8b: av
lec havia sido definido por um acerto l 9b: t – l 10b: Par – l 11b: fg*
prévio com as empreiteiras, antes da en- O pequeno retângulo tinha 6 cm de
trega dos envelopes com as propostas, largura e 5 cm de altura. Foi inserido
que estavam lacrados e só seriam abertos no centro da página, cercado de anún-
cogitavam submetê-lo a uma cirurgia car- em dinheiro de hoje, ou quase 35 bilhões no dia seguinte, 8 de maio. O anúncio cios de detetives particulares e garotas
díaca. A notícia foi desmentida e ironiza- de reais pelo câmbio atual. público dos vencedores pela Valec estava de programa, ao lado de duas orações
da, até que, uma semana depois, acabou A Valec abriu concorrência para sele- previsto para o dia 12 de maio. para Santa Clara.
confirmada. Numa coluna publicada cionar as empresas que construiriam a Um segundo informante comple- Ninguém achou que algo pudesse
depois da operação, Freitas reproduziu Norte-Sul em fevereiro de 1987. A legis- mentou as informações fornecidas pelo dar errado. “O velho Frias confiou em
algumas das refutações ao seu furo e con- lação vigente exigia um projeto básico primeiro, e Freitas conseguiu assim des- mim e não me questionou em nenhum
cluiu: “Ao general Figueiredo, pronta re- para licitação da obra e recursos orça- cobrir, uma a uma, qual empresa fica- momento”, relembra Freitas. “Não per-
cuperação. Aos outros citados, também.”  mentários garantidos para início dos tra- ria com qual lote. “Eu tive certeza de guntou nada.” O colunista achava os
balhos, mas os dois pré-requisitos foram que a informação era correta”, ele con- riscos desprezíveis. Se algum imprevis-

O
clima era muito diferente emAcesse ignorados. Havia pressa
nosso Canal no governo,
no por- tou,
Telegram: em dezembro
t.me/BRASILTRASH passado. Embora to ocorresse e o anúncio cifrado não se
1986, quando José Sarney deci- que a inflação voltara a subir e o prestí- não conhecesse as pessoas que o procu- confirmasse, ninguém precisaria saber
diu iniciar a construção da Ferro- gio de Sarney estava caindo. Os 870 km raram, achou que mereciam a mesma que aquilo tinha sido feito, e o jornal
via Norte-Sul. Os governos militares da primeira etapa da ferrovia foram divi- confiança que haviam depositado nele não teria que dar satisfações. “A proba-
tinham ficado para trás e os civis esta- didos em dezoito lotes. De acordo com ao contatá-lo naquele dia. “Pude verifi- bilidade de estarmos certos era muito
vam de volta ao poder. Com a popula- a Valec, o objetivo era despertar o inte- car sua seriedade, a coerência nas con- maior”, disse Costa, numa conversa em
ridade momentaneamente em alta resse do maior número de empreiteiras versas e a segurança com que repetiam dezembro passado. Além de Freitas, so-
graças ao Plano Cruzado, sua primeira e estimular a competição entre elas. As os dados”, afirmou. mente ele, Frias e Otavio Frias Filho,
tentativa de domar a inflação, Sarney exigências contidas no edital da licita- Freitas obteve o resultado da concor- que dirigia a redação e estava viajando
sonhava com obras grandiosas como as ção asseguravam que somente empre- rência no início da noite daquele mesmo naquele dia, souberam da operação an-
que haviam marcado os governos de- sas de grande porte e com experiência dia 7 de maio. O único jeito de aprovei- tes que seu intuito fosse revelado.
senvolvimentistas do passado e incluiu comprovada poderiam participar. tar a informação seria publicá-la antes Em 12 de maio, quatro dias depois da
o projeto da estrada de ferro entre suas No início de maio, quando as constru- que se abrissem os envelopes com os publicação na página de classificados, a
prioridades. Ela teria 1 570 km de ex- toras se preparavam para apresentar as lances das empreiteiras. Só assim seria comissão que presidia a licitação da Nor-
tensão e ligaria Anápolis, em Goiás, a propostas, Freitas começou a achar aqui- possível demonstrar, quando a comissão te-Sul reuniu-se no escritório da Valec no
Açailândia, no Maranhão, estado onde lo muito estranho. A inexistência de estu- da Valec anunciasse o resultado do jul- Rio de Janeiro para anunciar o resultado.
Sarney iniciou sua carreira política co- dos aprofundados que justificassem a gamento das propostas em 12 de maio, A coincidência com as informações pu-
mo deputado e governador. A ideia era obra e examinassem alternativas, o inte- que os vencedores já eram conhecidos blicadas de forma cifrada na Folha era
criar um corredor que permitiria trans- resse das grandes empreiteiras, as cifras uma semana antes. Freitas precisava en- total. A antecipação dos vencedores re-
portar a produção agrícola da região elevadas, a pressa do governo – tudo pare- contrar um meio de fazer isso dissimula- presentava uma evidência incontornável
Centro-Oeste até um porto em São cia motivo para desconfiar do projeto. damente, para evitar que o processo todo de que as empresas tinham combinado
Luís, capital do Maranhão, e de lá para Suas primeiras tentativas de buscar infor- fosse anulado antes da proclamação do entre elas a divisão dos lotes, fraudando a
o mercado externo. mações sobre a ferrovia nos jornais e no resultado e da confirmação da fraude.  concorrência. Na edição do dia seguinte,
Os primeiros estudos do Ministério governo deram em nada. Ele resolveu Ele concluiu então que a solução se- 13 de maio, Freitas publicou um texto
dos Transportes concluíram que o em- então entrar no assunto com uma coluna ria publicar a informação de forma ci- enxuto para apresentar suas conclusões e
preendimento custaria 1,5 bilhão de que levantasse dúvidas sobre a obra e cha- frada, em algum lugar do jornal que não descrever o procedimento adotado para
dólares e só seria viável se o governo fi- masse a atenção de alguém que pudesse chamasse atenção, como a seção dedi- expor o conluio das empreiteiras. O texto
nanciasse um quarto dos investimentos e lhe contar o que se passava nos bastidores. cada a corridas de cavalos ou no meio saiu com destaque na capa do jornal.
fomentasse atividades econômicas que Esse primeiro artigo, intitulado O De- dos anúncios classificados. Outra possi- Concorrência da Ferrovia Norte-Sul Foi
gerassem mais demanda para a ferrovia. safio Autoritário, foi publicado em 7 de bilidade seria registrar em cartório um uma Farsa, proclamava o título, redigido
O ministério chamou a Valec, subsidiá- maio, dois dias depois da entrega das pro- documento que atestasse a posse anteci- pelo então editor da primeira página do
ria da Companhia Vale do Rio Doce que postas das empresas. Seu alvo principal pada da informação, mas era tarde para jornal, Domingos Ferreira Alves. Uma
construíra a Estrada de Ferro Carajás, era o então ministro dos Transportes, José fazer isso. Freitas pensou no problema
* As empreiteiras vencedoras eram, pela ordem dos
para tocar o novo projeto. Baseada na ex- Reinaldo Tavares. Ele trabalhara antes por meia hora e telefonou para Frias. lotes, Norberto Odebrecht (NO), Queiroz Galvão (QG),
periência anterior, a estatal estimou que com Sarney no governo do Maranhão e Disse ao dono do jornal que tinha con- Mendes Junior (MJ), C. R. Almeida (CRA), Serveng-
Civilsan (Ser), EIT (EI), Cowan (Cow), Ceesa (Cee),
a ferrovia custaria quase o dobro do cál- tornara-se um de seus correligionários seguido o resultado da concorrência e CBPO (CB), Camargo Corrêa (CC), Andrade Gutierrez
culo original: 2,5 bilhões de dólares – mais fiéis. Na véspera, o ministro havia explicou a ideia que tivera para publicá- (AG), Constran (Cons), Sultepa (Sul), Brasil (CBr), Al-
cindo Vieira (AV), Tratex (T), Paranapanema (Par) e
o equivalente a 6,5 bilhões de dólares convocado uma entrevista coletiva para lo sem que o governo e as empresas per- Ferreira Guedes (FG).

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reprodução dos classificados com uma que não tinha nada a acrescentar ao que
lupa desenhada sobre a imagem para publicara na Folha e lembrando que a
destacar o anúncio criado por Freitas ser- legislação protegia o sigilo das suas fon-
viu como ilustração. tes de informação, o que tornaria o de-
A revelação bombástica ocupou um poimento “inútil, despiciendo e ilegal”. 
quarto do espaço disponível na primeira Dias depois do interrogatório na Po-
página da Folha nesse dia. A manchete lícia Federal, o Senado instalou uma
do jornal, no entanto, foi reservada para Comissão Parlamentar de Inquérito
outro assunto, a divulgação de um novo para entrar no caso e também chamou
plano de combate à inflação formulado Freitas para depor. A cpi mandou com-
pela equipe do ministro da Fazenda, prar passagens aéreas e reservou hotel
Luiz Carlos Bresser-Pereira. Terceira para o jornalista em Brasília, mas ele
tentativa de Sarney de controlar os pre- não compareceu no dia marcado. Num
ços, o pacote parecia fadado ao fracasso telegrama enviado à comissão, Freitas
como todos os outros, mas a notícia esclareceu que morava no Rio e o voo
atendia às preocupações mais imediatas adquirido pelo Senado partia de São
dos leitores. Freitas ficou surpreso quan- Paulo. Aproveitou para pedir dispensa
do soube que o furo não tinha sido ele- do depoimento, dizendo que seria repe-
vado à manchete. Trinta anos depois, titivo e inútil, e acrescentou que só acei-
contou em um artigo que ganhou vários tara o convite anterior da pf porque se
jantares apostando com amigos que ju- sentira constrangido: “Inequívocos as-
ravam que a matéria tinha sido o desta- pectos intimidatórios de que se revestia
que principal do jornal. esse convite levaram-me [...] ao intuito
de demonstrar concretamente que não

O
impacto da descoberta foi avassa- tenho motivos para intimidar-me, por
lador. “É um vendaval aqui em ter apenas cumprido os meus deveres
Brasília”, disse o deputado federal simultâneos de cidadão e jornalista.” 
Delfim Netto, ex-ministro dos governos A cpi ignorou o apelo e Freitas final- bilionárias com as construtoras e não se elas queriam. Concorrentes menores
militares, primeiro a procurar Janio de mente compareceu em 30 de junho. Ele encontravam recursos para novos inves- poderiam ser contemplados com outros
Freitas, logo cedo, no dia da publicação repetiu o que tinha escrito em seus arti- timentos. A denúncia de fraude não só trechos. As três empresas classificadas
da reportagem. Nessa época, a Folha só gos e respondeu à maioria das perguntas frustrou seus planos, como expôs de for- com piores notas pela Valec ficariam
chegava às bancas de Brasília no início de forma respeitosa, ainda que muitas ve- ma constrangedora os meios que elas sem nada a princípio, mas poderiam ser
da tarde, mas a notícia correu mais zes lacônica, de acordo com as notas taqui- empregavam para fazer negócios. subcontratadas pelas outras para execu-
rápido. Sarney cancelou a licitação gráficas publicadas mais tarde. Quando A Valec credenciou 21 construtoras tar parte dos serviços.
antes do fim do dia e mandou investigar o senador Ruy Bacelar, do pmdb da Ba- para participar do processo. Seguindo A Polícia Federal ouviu dirigentes de
tudo, mas rejeitou os conselhos que hia, sugeriu que Freitas revelasse a iden- as regras do edital da licitação, atribuiu todas as empresas. Ninguém admitiu
recebeu de auxiliares e empresários tidade de seus
Acesse nossoinformantes
Canal “para
noo bem notas a cada
Telegram: uma, classificando-as de ter participado de um conluio. Como
t.me/BRASILTRASH
para demitir o ministro Tavares. “Não da moralidade pública”, o jornalista dis- acordo com a saúde financeira e a capa- todos tinham oferecido por seus lotes os
tive coragem, porque eu gostava demais se que princípios éticos o impediam de cidade técnica. Elas tiveram um mês menores preços autorizados pelo edital,
dele e não acreditava que ele tivesse fazê-lo. “Não é que eu queira ou não para preparar suas propostas, indicando os vencedores diziam que a ideia de
feito qualquer desonestidade”, disse o queira, essa questão não se põe para um quais trechos lhes interessavam e quan- uma combinação prévia não fazia sen-
presidente à sua biógrafa Regina Eche- jornalista”, explicou. “É da ética do jorna- to cobrariam para executá-los. O edital tido, porque não haveria possibilidade
verria, décadas mais tarde. “Hoje eu lismo, que eu adotei, ao adotar o jornalis- adotou como referência o orçamento de ganho indevido para as construtoras
acho que ele é capaz de ter feito, sim, mo como profissão.” estimado pela Valec, de 2,5 bilhões de com descontos tão altos, nem prejuízo
mas naquele tempo eu não acreditava.” Questionado pelo senador Mansue- dólares, e limitou os descontos possíveis para os cofres públicos. Nenhum inves-
O jornalista Antonio Frota Neto, por- to de Lavor, do pmdb de Pernambuco, a 10%, para inibir lances aventureiros tigador examinou a fundo a hipótese de
ta-voz do Palácio do Planalto, telefonou relator da cpi, Freitas disse apenas que de empresas que depois não teriam que a Valec tivesse inflado os preços
dois dias depois para pedir, em nome de não tivera contato com as construtoras como executar o serviço sem reajustes. de referência, o que tornaria irrelevan-
Sarney, a colaboração de Freitas nas in- interessadas na Norte-Sul. Na sessão As regras impediam que qualquer uma te mesmo o desconto máximo de 10%.
vestigações oficiais. “Transmita ao pre- anterior, o empreiteiro Lúcio Vasconce- ganhasse mais de um lote, caso houves- Freitas bateu nessa tecla com insistên-
sidente, desde logo, que o que tenho a los Lana e Souza, sócio da mineira Tra- se outras ofertas equivalentes à sua, e cia em seus artigos, mas os investigado-
dizer e eticamente posso dizer, sobre as- tex, havia sugerido que os senadores estabeleciam as notas atribuídas no iní- res deram pouca atenção à questão, e as
suntos públicos, digo no meu trabalho de mandassem prender o jornalista se ele cio como critério de desempate.  contestações aos cálculos da estatal aca-
jornalista”, respondeu o colunista, que não apresentasse provas do conluio das As condições favoreciam as maiores baram não prosperando.
relatou o episódio em seu espaço na Fo- empresas. “Este Brasil está precisando construtoras, mas também serviam As investigações contribuíram pouco
lha no dia seguinte. O artigo expressava de uma Sibéria para colocar um sujeito para proteger o interesse do governo na para esclarecer o que aconteceu. A co-
ceticismo sobre a disposição do governo que faz uma coisa dessas em trabalhos realização da obra. Dias antes do prazo missão nomeada pelo Ministério dos
de ir fundo nas investigações, e sugeria forçados lá”, disse. Na sessão do dia 30, para apresentação das propostas, des- Transportes concluiu que a divulgação
que seu propósito era apenas isentar os Freitas respondeu fazendo blague: “Eu viando-se do roteiro previsto no edital, das notas pela Valec favoreceu uma
funcionários encarregados de tocar a preferia ir para o Havaí.” a Valec decidiu divulgar as notas de combinação entre as empreiteiras, mas
Norte-Sul de qualquer envolvimento todos os concorrentes e lhes deu mais arquivou o caso sem culpar ninguém

A
com os acertos das empreiteiras. anulação da concorrência da Nor- uma semana para fazer seus lances. Era pelo fiasco. O delegado Conceição en-
O Ministério dos Transportes criou te-Sul representou um duro golpe tudo que as empreiteiras precisavam cerrou o inquérito da pf em dois meses,
uma comissão de sindicância para ana- para as construtoras. Andrade Gu- para dividir na surdina os dezoito lotes isentando o governo e fazendo críticas
lisar a licitação, nomeando para presidi- tierrez, Camargo Corrêa e Odebrecht – conforme seus interesses. Como a An- veladas ao jornalista que revelara a frau-
la o coronel Stanley Fortes Baptista, as três grandes empreiteiras que iriam à drade Gutierrez recebera a maior nota de. “O próprio Janio de Freitas, denun-
que era também engenheiro e dirigira a lona com a Operação Lava Jato décadas no início, bastava oferecer o desconto ciante da primeira hipótese [o conluio
Rede Ferroviária Federal no governo do depois – estavam entre as mais bem po- máximo de 10% para ficar com o trecho das empreiteiras], não forneceu qual-
general Ernesto Geisel (1974-79). Ele sicionadas para realizar a obra dos so- que desejava, mesmo que outra empre- quer dado objetivo que pudesse compro-
mandou uma carta convidando Freitas nhos de Sarney em 1987. Todas viram sa igualasse o preço. Para a Camargo var essa assertiva”, escreveu no relatório
a prestar esclarecimentos, “a fim de pos- na licitação da Valec uma oportunidade Corrêa, a Odebrecht e outras grandes final do caso. “Difícil acreditar que um
sibilitar a apuração dos fatos, em defesa imperdível, numa época em que o Bra- construtoras, era só assegurar que rivais jornalista do porte de Janio de Freitas se
da plena moralidade pública”. O jorna- sil estava atolado numa crise econômica com melhor pontuação não ofereces- furtasse ao oferecimento de provas para
lista recusou o convite, argumentando profunda, o governo acumulava dívidas sem descontos maiores pelos lotes que se chegar à verdade dos fatos.”

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S
arney nunca desistiu da Ferrovia nhão, ele virou alvo de uma operação
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Norte-Sul, mas o agravamento da desencadeada pela pf para investigar
crise econômica o obrigou a poster- contratos da construtora baiana Gauta-
gar seus planos. A Valec lançou nova con- ma em vários estados. Acusado de ga-
corrência no fim de 1987 e limitou seu nhar um carro de presente de Zuleido
escopo a apenas dois trechos da ferro- Veras, dono da empreiteira para a qual
via, o que afastou o interesse das maiores havia feito o pagamento de uma obra,
empreiteiras. A construção foi retomada Tavares ficou preso em Brasília por qua-
mais tarde, no governo Fernando Henri- tro dias. Mais tarde, livrou-se do processo
que Cardoso, ganhou impulso depois da na Justiça sem que houvesse julgamen-
chegada de Lula à Presidência e foi con- to, beneficiado pela prescrição do caso.
cluída durante o governo de Jair Bolsona- Num artigo escrito na época da prisão
ro. De 2004 para cá, os investimentos na de Tavares, Freitas disse que mandou
ferrovia consumiram mais de 26 bilhões para ele um presente: um bolo, com um
de reais do orçamento federal, em valores cartão lembrando o ex-ministro do ani-
corrigidos pela inflação, sem contar os gas- versário de vinte anos da denúncia da
tos realizados pelas concessionárias priva- fraude na concorrência da Norte-Sul.
das que se tornaram responsáveis pela sua “Algum intermediário comeu, porque
operação e manutenção. nunca chegou até mim”, disse Tavares
“Foi uma luta tremenda, mas fico em dezembro passado. 
satisfeito porque o tempo demonstrou

O
que tínhamos razão”, afirmou o ex-minis- furo de reportagem da Norte-Sul
tro Reinaldo Tavares, numa conversa deu a Janio de Freitas, em 1987, o
telefônica no fim do ano passado. “A re- Prêmio Esso, na época o mais im-
gião Centro-Oeste se tornou a maior portante do jornalismo no país. Ele rece-
produtora de grãos do Brasil, e o cresci- beu um diploma e um cheque no valor
mento do agronegócio nos últimos anos de 250 mil cruzados, cerca de 50 mil
O anúncio publicado pelo jornalista Rio de Janeiro e era velho conhecido de mostrou que o país precisava disso, para reais em dinheiro de hoje. Segundo rela-
nos classificados da Folha, antes mesmo Norberto Odebrecht, o pai de Emílio, não continuar dominado pelo transpor- tos publicados pelos jornais, Freitas fez
da abertura dos envelopes com as propos- apresentara à empreiteira brasileira a ideia te de caminhões, caríssimo.” Para ele, os um discurso irônico, em que agradeceu
tas das empresas, era um indício irrefutá- de uma associação com a Fluor poucos críticos da ferrovia nunca tiveram inte- a Sarney, Tavares e aos responsáveis pela
vel de que o acerto ocorrera, mas o dias depois do cancelamento da licitação. resse em discutir as vantagens do proje- licitação da Valec. Também recebeu o
delegado preferiu ficar com os argumen- Ao ser interrogado pela pf, o consultor ad- to. “Eles só queriam protelar”, disse. Prêmio Internacional Rei da Espanha
tos das empreiteiras. Elas diziam que, após mitiu que não tinha autorização para falar Tavares aceita a ideia de que pode ter de Jornalismo pelo trabalho, na catego-
a entrega das propostas à Valec, não havia em nome dos norte-americanos. havido uma combinação entre as em- ria jornalismo impresso. Foi até Madri
mais motivo para manter sigilo entre os A cpi do Senado fez barulho por al- preiteiras para a divisão dos lotes da pri- buscar a estatueta do prêmio, entregue pe-
gum tempo
concorrentes, e qualquer pessoa conhece-Acesse e teveCanal
nosso seus holofotes
no desliga- meira t.me/BRASILTRASH
Telegram: concorrência da Valec, mas diz lo rei Juan Carlos, e o cheque de 6,9 mil
dora das regras do edital teria condições dos depois de cinco meses. A maioria que não houve participação do seu mi- dólares, quase 100 mil reais hoje.
de levantar no mercado as informações governista garantiu a rejeição do relató- nistério ou da Valec nessas discussões e Na festa do Prêmio Esso, Freitas afir-
necessárias para antecipar o resultado an- rio do senador Mansueto de Lavor, críti- insiste na tese de que não houve prejuízo mou ter recebido três ameaças de morte
tes que a Valec analisasse as ofertas rece- co da Norte-Sul, e tudo acabou com a para os cofres públicos. “Se houve acer- e inúmeros telefonemas anônimos desde
bidas. De fato, essa versão ajudava a publicação de um parecer anódino. to, não foi para manipular os preços e a publicação da reportagem. Acrescen-
entender como Freitas poderia ter obtido “Não foi constatado nenhum fato con- ganhar dinheiro, mas uma conversa nor- tou à conta uma tentativa de abalroar seu
as informações em poucas horas sem ter creto pelo qual se pudesse responsabili- mal entre as empresas para assegurar os carro. Trinta anos depois, num artigo na
contato com nenhum empreiteiro, mas zar qualquer autoridade em razão das lotes cuja localização fosse mais conve- Folha, ele disse que pior foi a abordagem
era insuficiente para afastar suspeitas. supostas irregularidades ocorridas”, es- niente a cada uma.” Eleito governador de um homem desconhecido na gara-
Chamados a se explicar, os emprei- creveu o senador Leopoldo Peres, do do Maranhão em 2002, com apoio da gem do prédio onde ficava a sucursal do
teiros tergiversaram. Eduardo Andrade, pmdb do Amazonas. Ele encerrou o caso família Sarney, ele brigou com o ex-pre- jornal, no Centro do Rio, numa noite em
então superintendente da Andrade Gutier- adotando as mesmas conclusões da co- sidente depois de assumir o poder. Hoje, que saiu da redação mais tarde do que o
rez, sugeriu à pf que empresas estrangeiras missão de sindicância do ministério e do faz parte do secretariado do governador habitual. Freitas recorda que o homem se
e grupos interessados em desestabilizar inquérito da pf: “Não houve ilícito penal Carlos Brandão, do psb, que foi vice de aproximou, desabotoou o paletó, deixan-
Sarney estavam por trás da denúncia. Na punível e nem prejuízos ao erário.” Flávio Dino, atual ministro da Justiça. do entrever o cabo de um revólver enfiado
cpi, ele reclamou do tratamento dispensa- A Procuradoria-Geral da República, A aceleração das obras nos governos dentro da calça, e disse algo que lhe pa-
do às construtoras nacionais, que considera- que nessa época funcionava como um do pt atraiu novamente as grandes em- receu um recado ameaçador. “Anotei a
va injusto. “O país não está reconhecendo braço do Poder Executivo e ainda não preiteiras, que voltaram a se acertar nos frase quando entrei no carro, mas não sei
o valor que deve ser dado à indústria na- tinha a independência que lhe seria ga- bastidores para participar do empreendi- onde está isso”, ele contou.
cional da construção”, afirmou. Seu pri- rantida pela Constituição de 1988, li- mento. Em 2012, o então presidente da Os principais jornais deram ampla
mo Sérgio Andrade buscou aproximação vrou-se da batata quente engavetando o Valec, José Francisco das Neves, conhe- repercussão à denúncia de fraude e aos
com Freitas por meio de um amigo em processo sem maiores explicações. Um cido como Juquinha, foi preso pela Polí- desdobramentos do caso. O Globo pu-
comum, o banqueiro José Luiz de Maga- dos procuradores que lidaram com o cia Federal em meio a investigações blicou um editorial na primeira página
lhães Lins, mas o jornalista recusou o con- caso, Juarez Tavares, chegou a visitar sobre suspeitas de desvios, fraude em lici- no dia seguinte, em que classificava a
vite para um almoço. Freitas no Rio, em busca de pistas para tações e superfaturamento de contratos. obra como inoportuna, dada a penúria
Emílio Odebrecht, que dirigia a cons- aprofundar as investigações, mas o in- Depois da deflagração da Operação financeira do país, e criticava a superfi-
trutora da família, disse às autoridades que quérito logo foi retirado de suas mãos e Lava Jato, executivos da Andrade Gutier- cialidade dos estudos sobre a viabilida-
companhias europeias estavam usando as transferido para Brasília. Designado pelo rez, da Camargo Corrêa e da Odebrecht de econômica da ferrovia. O Jornal do
notícias do Brasil para difamar sua empre- então procurador-geral, Sepúlveda Per- confessaram que tinham formado um Brasil mencionou Freitas no texto da
sa, em meio à disputa por um contrato no tence, para rever tudo, o procurador Eu- cartel com outras empresas para fraudar manchete e incluiu na cobertura um
Equador. Numa tentativa de convencer as gênio Aragão concluiu que não havia as licitações da Valec e disseram ter paga- perfil de seu ex-editor. A revista Veja
autoridades federais de que seu quintal nada de errado e propôs o arquivamento. do propinas a fim de garantir os contra- estampou o escândalo na capa e dedi-
estava ameaçado, o empreiteiro fez chegar “A licitação não foi feita pelo melhor mé- tos. As ações movidas contra os envolvidos cou dezoito páginas ao tema, incluindo
ao governo um dossiê sobre o grupo norte- todo, mas não vi dolo para ninguém”, ainda não têm julgamento definitivo. uma reportagem sobre as relações dos
americano Fluor, que teria manifestado lembrou Aragão, ministro da Justiça do Tavares também teve complicações empreiteiros com sucessivos governos.
interesse em participar da construção da governo Dilma Rousseff e hoje advogado na Justiça, por outros motivos. Em maio Ao noticiar o escândalo, o Jornal Na-
Norte-Sul. Um consultor que atuava no em Brasília, numa entrevista em 2021. de 2007, após deixar o governo do Mara- cional, da Rede Globo, citou Freitas,

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destacou a “maneira engenhosa” que ele muito feliz”, disse. “A começar de um
encontrara para revelar a fraude e abriu reconhecimento que eu nunca poderei
espaço para explicações do governo. Em fazer plenamente, que foi a fonte da in-
artigos e entrevistas, Freitas fez críticas à formação.” O jornalista Ricardo Noblat
cobertura da Globo, cujo tom conside- pressentiu que uma oportunidade surgi-
rou oficialesco. Atribuía o enfoque a ra e perguntou se seu informante estava
uma suposta má vontade do então dire- vivo. “Não é da sua conta”, respondeu
tor de jornalismo da emissora, Armando Freitas, rindo. “Meta-se na sua vida.”
Nogueira, amigo de quem se distanciara Noblat insistiu lembrando o caso de
com o tempo. Na época, Nogueira en- Mark Felt, o ex-diretor do fbi que pouco
viou à Folha um telex parabenizando o antes de morrer revelou ter sido o infor-
jornal e seu colunista: “O jornalismo mante anônimo que forneceu aos repór-
investigativo viveu um dia de plena con- teres Bob Woodward e Carl Bernstein,
sagração: a reportagem de Janio de Frei- do jornal The Washington Post, pistas
tas denunciando, de forma admirável, cruciais no caso Watergate, o escândalo
irregularidades na concorrência da Fer- que levou Richard Nixon a renunciar à
rovia Norte-Sul. Permita-me, como jor- Presidência dos Estados Unidos em 1974.
nalista, participar do orgulho que os Felt foi identificado pelo apelido de Gar-
colegas da Folha estão sentindo.” ganta Profunda no livro escrito pela du-
Freitas voltaria a usar o artifício dos pla de repórteres, Todos os Homens do
anúncios cifrados muitas vezes, em al- Presidente, e manteve seu envolvimento
guns casos publicando-os em outros jor- em segredo por três décadas. “Não quero
nais para despistar as empreiteiras, que saber desse tipo de pergunta”, disse Frei-
passaram a vasculhar os classificados da tas a Noblat, rindo mais uma vez. 
Folha preventivamente. Em 1989, ele Em junho de 2021, quando ele me
provocou a anulação de uma concorrên- concedeu um longo depoimento sobre o
cia bilionária, lançada pela Companhia caso da Norte-Sul, perguntei por que
Estadual de Águas e Esgotos do Rio de ainda mantinha sob sigilo a identidade na depois, quando nos encontramos no Nos dias que se seguiram à demissão,
Janeiro (Cedae), para construção de um de seus informantes. “Porque eu tenho Rio. “Não fui eu que pedi para sair.”  leitores mandaram cartas de protesto e
sistema de captação, armazenamento um compromisso, que vai atravessar os A coluna teve sua periodicidade re- sete colunistas do jornal usaram seu espa-
e fornecimento de água à região metro- meus tempos”, respondeu. “Enquanto duzida com os anos e, em abril de 2019, ço para lamentar a saída do colega vete-
politana da capital, publicando a se- durarem os meus tempos, eu tenho o passou a ser publicada somente aos do- rano. “Janio é indemissível, mas vivemos
guinte mensagem nos classificados do compromisso de não revelar essa fonte. mingos. No texto em que anunciou o tempos sombrios, que desconhecem o
Globo: “Marajó – Grande empreendi- Eu não sei que efeito pode ter sobre a fim da coluna, a Folha evitou a palavra reconhecimento e o respeito”, disse a atriz
mento múltiplo, muita água. V. Parana- pessoa ou, se não estiver viva, sobre sua “demissão” e noticiou a saída de Freitas e escritora Fernanda Torres. Marcelo Coe-
panema. Infs. c/ Norberto ou Camargo. memória. E eu vou cumprir isso.” Per- como se tivesse resultado de um “pedido lho, que também estava no jornal desde
Tel. 201.0389.” Traduzindo: a obra estava guntei que nosso
Acesse riscos ainda
Canalhaveria
noa Telegram: para que o colunista deixasse os anos 1980, decidiu encerrar a colabo-
essa do jornal”t.me/BRASILTRASH
destinada às empreiteiras Paranapane- altura. “Alguém pode achar que foi uma de publicar seu artigo semanal. O texto ração com a Folha e se despediu fazendo
ma, Odebrecht (fundada por Norberto) traição”, sugeriu. “Essas coisas a gente resumiu a trajetória do jornalista e repetiu uma constatação na sua última coluna
e Camargo Corrêa. Acertou de novo. não tem condição de prever, e não me trechos de uma reportagem publicada para o caderno cultural: “Num processo
O método também inspirou outros custa nada ficar calado.” meses antes para marcar seu aniversário longo e implacável, a Folha foi se alienando
repórteres, num momento em que a re- No almoço que tivemos em dezem- de 90 anos. O furo da Norte-Sul foi lem- do que era e do que significava para seus
democratização do país estimulava a in- bro, Freitas manteve a posição quando brado, assim como o que revelou os pro- leitores. Envelheceu. Janio, não.”
vestigação de desmandos dos governos e insisti no assunto, mas contou que um blemas cardíacos do general Figueiredo. Depois de receber algumas ofertas de
casos de corrupção. “A reportagem sobre dos informantes era uma mulher, e que Sua primeira coluna na Folha, publicada trabalho de sites independentes, sem li-
a Norte-Sul apareceu pouco depois da um deles ainda está vivo. “Mantivemos em 20 de novembro de 1980, tratou das gação com grandes grupos de comuni-
saída do último presidente militar”, ob- relações muito cuidadosas e nunca fomos relações entre os militares e a Igreja Cató- cação, Freitas assinou contrato com o
serva o professor Solano Nascimento, do vistos juntos por conhecidos, embora te- lica. A última foi ao ar no site do jornal Poder360, em cujo site passou a publi-
Departamento de Jornalismo da Univer- nhamos nos encontrado muitas vezes”, em 10 de dezembro. Nela, Freitas previu car uma coluna às sextas-feiras. “Houve
sidade de Brasília, cuja tese de doutorado disse. “Ficamos muito amigos, amigos dificuldades para o presidente Lula na uma desvalorização do jornalismo pro-
examina a evolução do jornalismo inves- especiais, dessa categoria de amigos que tarefa de despolitizar os quartéis depois fissional, que culmina com a internet
tigativo nesse período. “Ela foi publicada são unidos também por um segredo, por de quatro anos de Bolsonaro. como alternativa única”, comentou. Há
no momento histórico certo, com a rele- uma confiança mútua muito rigorosa e Freitas e a Folha tiveram uma convi- projetos em estudo também. Ao longo
vância social certa e as ferramentas certas muito extensa.” Eles nunca cogitaram vência muitas vezes tempestuosa. O colu- de 2018, Freitas concedeu uma série de
para se tornar um exemplo para outros quebrar esse compromisso. “Se alguém nista nunca deixou de expressar gratidão entrevistas sobre sua trajetória aos jorna-
jornalistas.” Em 1991, com o governo tivesse me liberado, era uma coisa, mas a Octavio Frias de Oliveira pela confian- listas Mário Magalhães e Fernanda da
Fernando Collor acossado por denúncias nunca fui procurado para isso e nunca ça depositada nele e pela liberdade que Escóssia, editora da piauí. Foram toma-
de corrupção, o colunista Ricardo Boe- pedi essa autorização, nem pedirei.” sempre lhe foi assegurada, até mesmo dos vinte depoimentos, que somam pou-
chat, do jornal O Globo, publicou um para criticar o jornal. Com o tempo, po- co mais de sessenta horas de gravação e

N
anúncio nos classificados do Jornal da o dia 15 de dezembro passado, Ja- rém, a relação se desgastou. Numa colu- deverão resultar num livro-depoimento.
Tarde, de São Paulo, e estragou a festa de nio de Freitas foi demitido pela na de 2020, em que classificou como No final do nosso encontro, Freitas
um grupo de indústrias que se acertara Folha, aos 90 anos de idade, três “erro ignominioso” um editorial que com- fez questão de pagar a conta do almoço
para garantir um contrato de forneci- semanas depois de completar 42 anos na parou Bolsonaro com Dilma Rousseff, em vez de dividi-la. Quando o garçom
mento de fardas do Exército. empresa. O diretor de redação do jornal, Freitas acusou a Folha de ter colaborado colocou a maquininha à sua frente, ele
Sérgio Dávila, comunicou a decisão por de forma “substantiva e indigna” com a hesitou antes de digitar a senha do car-

J
anio de Freitas nunca revelou a iden- telefone, numa conversa em que apon- ditadura militar, emprestando veículos tão e preferiu consultar uma anotação
tidade das fontes de sua reportagem tou a necessidade de cortar custos. Na aos órgãos de repressão na década de 1970 pessoal. Tirou da carteira uma pequena
sobre a fraude da Norte-Sul. Em mesma semana, outros oito profissio- – uma antiga suspeita que o próprio jor- tira de papel, amarrotada e rasgada nas
agosto de 2012, pouco depois de comple- nais foram demitidos pelo jornal. Dávila nal investigou e nunca foi comprovada. extremidades, com números manuscri-
tar 80 anos de idade, ele pareceu abrir a ofereceu a Freitas a possibilidade de se Dávila respondeu dias depois com um tos ao lado de letras impressas. Leu, digi-
guarda ao rememorar o caso no finzinho despedir dos leitores com uma última artigo em que acusou Freitas de cometer tou a senha, sorriu ao ouvir o apito com
de uma entrevista ao programa Roda coluna no domingo seguinte, mas ele não uma injustiça ao desprezar os esforços a confirmação e guardou o papel. Virou-
Viva, da tv Cultura, mas se mostrou in- quis. “Se o jornal me dispensou, ele é feitos por Otavio Frias Filho para esclare- se então para o garçom e disse: “Nada
flexível. “Tudo ali naquele episódio foi que deve explicações”, disse uma sema- cer o que aconteceu nos anos de chumbo. como um pedacinho de jornal.” J

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heróis do gramado I

O REI QUE O BRASIL


NÃO SOUBE VENERAR
A vida de Pelé e a morte de Edson Arantes do Nascimento

MARCOS CAETANO

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P
elé foi mais um dos grandes deveria ser uma gloriosa epopeia se tor- ria no estúdio para dar a notícia no meio um apaixonado por futebol. Nossa vida
símbolos nacionais vilipen- nou indeclinável. Eu trairia a memória da transmissão de um jogo?” Da mesma é um sem-fim de rituais e mandingas.
diados por um povo que pa- do grande ídolo se me deixasse levar maneira que as fábricas realizam treina- Dito isso, cá estou, diante da tela do
rece nutrir uma espécie de pela tentação de colocar no papel, mento para ensinar aos operários como computador e do maior assunto de to-
fetiche pela devastação. Ob- como muita gente talentosa já fez, nada reagir no caso de um incêndio, o jorna- dos os assuntos da crônica esportiva.
viamente, não se trata de um sentimen- mais do que um fluxo de palavras for- lismo esportivo tinha um protocolo de A verdade é que, crendices à parte, acho
to generalizado, mas é impossível midáveis com as façanhas que o Rei atuação especificamente definido para que fiz bem em ficar longe do teclado
negá-lo. A impressão que tenho é a de produziu nos gramados. Sendo assim, quando o Rei morresse. Os colunistas do computador antes da consumação do
que, para muitos de seus compatriotas, preciso aceitar que o texto para o qual ficavam tensos, porque sabiam que ca- fato. Por duas razões: a primeira, mais
o Rei nunca foi bom o suficiente a pon- me preparei por mais de vinte anos co- beria a eles a impossível tarefa de prepa- óbvia, é que seria inútil escrever o texto
to de merecer a mesma admiração que meçou e terminará bem diferente do rar textos que estivessem à altura do heroico que eu vinha imaginando para
despertava no resto do mundo. E acre- que eu havia imaginado. homenageado. E eu não fui exceção. publicá-lo mais de um mês depois da
dito que só agora, quando o perdemos Alguém poderá considerar exagero Na verdade, tão logo eu soube da de- partida do homenageado e da avalanche
para sempre, é que começamos a perce- que um jornalista seja assombrado há terioração do quadro de saúde de Pelé, de palavras de veneração que cobriu as
ber a insanidade de não termos dado a duas décadas por um texto póstumo, combinei com a piauí que eu me encar- capas e páginas de todas as publicações
ele, antes, o devido valor. Ocorreu o mesmo sendo ele sobre o maior atleta de regaria da despedida. Minha única exi- mundo afora. Nada mais seria inédito;
mesmo com o Palácio Monroe e a Ave- todos os tempos. Mas só quem traba- gência foi não escrever uma palavra nada mais conteria a emoção e o espan-
nida Central, com o Museu Histórico lhou na seção de esportes de um grande sequer antes da partida do Rei. Sei que to dos que tiveram a missão de escrever
Nacional e com as Sete Quedas, com jornal ou num canal esportivo conhece as regras do bom jornalismo ditam que é sobre o Rei enquanto seu corpo era ve-
João Gilberto e com Garrincha, e, cla- a obsessão despertada apenas por aquilo sensato ter um texto de gaveta para situa- lado no solo sagrado da Vila Belmiro.
ro, com a Taça Jules Rimet. que precisaria ser feito quando chegasse ções assim. Mas, no meu ofício de cro- A segunda razão, mais pessoal, é que
Acabo de redigir essas primeiras li- a notícia da morte de Pelé. Em todas as nista esportivo, o cronista costuma vir só fui compreender com mais profundi-
nhas e já me dou conta de que esse não redações pelas quais passei, toda vez depois do esportivo. O lado torcedor fala dade a diferença marcante entre a rela-
era o parágrafo de abertura que sonhei que discutíamos a importância da pron- mais alto e, como torcedor, eu achava ção que o mundo e o Brasil têm com
escrever quando Pelé nos deixasse. En- tidão na profissão de jornalista, essas que escrever sobre a morte de Pelé antes Pelé depois de acompanhar as reações
tretanto, diante da quadra tão difícil perguntas vinham em seguida: “E se do seu último suspiro poderia trazer má ao seu desaparecimento.
que o país atravessa, a necessidade de Pelé morresse agora? Quem entraria ao sorte. Para ele ou, até mesmo, para mim. “Pelé morreu, se é que Pelé morre” foi
falar de devastação em um ensaio que vivo do hospital, do velório? Quem esta- Nunca tente entender a superstição de a manchete do jornal O Estado de S. Paulo.

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ASSOCIATED PRESS_1962
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No Chile, em 1962: o célebre mecanismo psicológico de separar o cidadão Edson do jogador Pelé era uma forma de preservar a sanidade do homem comum ou a imagem do gênio? Ou as duas coisas?

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craque argentino era uma sombra do venceu jogos, nem o que mais marcou
CAROL ITO_2023
que fora. Pelé, por sua vez, apesar dos pontos ao longo de sua trajetória.
vinte anos a mais que Maradona, conti-

S
nuava a luzir o físico de quando aban- empre nutri certo sentimento de
donou os campos. Só aquela imagem, a inferioridade por pertencer a uma
do senhor preservado e atlético, contra- geração que não viveu a época das
posta à do jovem devastado, já seria su- chanchadas, da bossa nova ou do Cine-
ficiente para provar o óbvio: Pelé não ma Novo, que não enfrentou ditaduras
jogou mais que Maradona apenas en- para valer, que fez poucas passeatas e,
quanto esteve na ativa. Pelé jogava mais principalmente, não acompanhou a
do que Maradona ainda naquele dia. epopeia do tricampeonato mundial de
O Pelé do futebol foi, obviamente, o futebol, em 1970. Meu pai, que tinha
próprio. E provou isso, mais uma vez, um afiado sentimento da História, fez
quando foi à Argentina desfilar sua ma- questão de me manter acordado para
jestade com discrição, em respeito ao assistir na tevê à transmissão do ápice
anjo caído Diego Maradona, a quem eu da missão Apollo 11. “O homem está
chamava de “o homem que queria ser caminhando na Lua, filho. Lembre-se
rei” – e que se deixou destruir por não de que você viu isso ao meu lado”, disse
haver conseguido. ele, na noite de 20 de julho de 1969. Por
Na vitória ou na derrota, magro ou gor- causa disso, consigo recordar até hoje
do, erguendo a Copa do Mundo ou sendo da cor do sofá da sala da pequena casa
pego no doping, driblando ou mandan- de vila, em Madureira, onde morava
do bala nos jornalistas, fazendo gols ou minha família. Lamentavelmente, meu
xingando o papa, Maradona foi e con- pai não teve a mesma visão de longo
tinua sendo amado pelos argentinos de alcance em relação ao futebol. Temen-
forma incondicional, com todos os defei- do tumultos no Maracanã, ele me dei-
tos e virtudes. Para os brasileiros, basta- xou em casa na noite em que Pelé
A Folha de S.Paulo foi lacônica: “Morre admitem ter, hoje em dia, é se Maradona va uma frase infeliz de Pelé para que marcou o milésimo gol, em 19 de no-
Pelé.” Dos três grandes jornais brasilei- continua a ser o maior ou se Messi, de- ele fosse desalojado do altar dos heróis. vembro de 1969, e também na tarde
ros, O Globo arriscou um adjetivo: “Pelé pois da Copa do Catar, assumiu o posto). Eu poderia listar muitos ídolos es- que marcou sua despedida da Seleção,
eterno.” Enquanto isso, as manchetes de Sempre achei curioso que uma enorme portivos cheios de defeitos que recebe- em 11 de julho de 1971.
jornais estrangeiros captaram de forma quantidade de brasileiros admitisse não ram mais amor de seus compatriotas do Não condeno a decisão do meu sau-
mais profunda o significado do aconte- apenas que esse debate era válido, mas que Pelé dos brasileiros, mas citarei doso velho, que morreu tão moço, antes
cimento. Cito apenas duas, entre tan- que os hermanos pudessem ter razão. apenas Michael Jordan. Poucos atletas que pudesse ver craques como Mara-
tas, as que me causaram mais emoção: Quando morei em Buenos Aires, tive obtiveram a projeção global – e, sobre- dona, Ronaldo, Ronaldinho Gaúcho e
È morto Pelé, l’uomo che inventò il Brasi- a chance de ver Maradona em ação mui- tudo, a admiração nacional – que o Messi. Mas o fato de eu não ter visto
le (Morreu Pelé, o homem que inventouAcessetas vezes. Era umCanal
nosso gênio. Ganhou uma basquetebolista
no Telegram: norte-americano. Sua
t.me/BRASILTRASH Pelé em campo agravou minha certeza
o Brasil), publicou o jornal italiano Do- Copa praticamente sozinho e foi um fama e influência são tão notáveis que, de ser um indivíduo menor. Amar o fu-
mani. O francês L’Équipe foi mais cate- imperador na Itália, onde jogou no Na- no ranking das marcas esportivas que tebol sem ter deparado com o maior dos
górico: La fin d’un monde (O fim de um poli. Fazia o que queria com a bola, mas, mais faturam nos Estados Unidos, a Air gênios envergando a imaculada camisa
mundo). A simples contraposição das acima de tudo, foi apaixonado pelo seu Jordan, uma joint venture entre o atle- branca de uma equipe interiorana – que
manchetes internacionais e nacionais já ofício, apaixonado pela arte de jogar ta e a Nike, aparece em terceiro lugar, ele transformou em lendária – ou a ca-
seria suficiente para demonstrar a tese de com classe, coisa em extinção hoje. Daí atrás da própria Nike e da Adidas. Não misa amarela da Seleção, que ele trans-
que o Brasil amou Pelé muito menos a compará-lo com Pelé, no entanto, vai perca tempo perguntando aos norte- formou em patrimônio da humanidade,
do que deveria ter amado. Mas há outros uma diferença intransponível. Em arti- americanos se Pelé foi maior do que é inconcebível. Meu valor como pessoa é
exemplos que ajudam a explicar um pou- go que escrevi em 2017, tracei um para- Jordan. Para eles, o único atleta que tal- ainda menor porque não acompanhei as
co mais essa sensação que tenho. lelo com base em números. Maradona vez tenha superado o craque das qua- copas de 1958, 1962 e 1970; porque não
fez 345 gols ao todo – quase o mesmo dras foi o boxeador Muhammad Ali. vi o chapéu-coco que Pelé exibiu aos

U
ma das formas de escancarar a re- que Pelé depois de seu milésimo gol. A série documental Arremesso Final, galeses nem a cartola que aplicou nos
lação complexa que boa parte dos O brasileiro fez mais gols de todos os jei- um dos sucessos da Netflix em 2020, suecos; porque não testemunhei o Rei
brasileiros tinha com Pelé é obser- tos – de cabeça, de falta, de pé direito, acompanha a última temporada de Mi- desmaiar no gramado após marcar o gol
vando como outros países se relacionam de peito. Até com o pé esquerdo superou chael Jordan no Chicago Bulls, time que sacramentou o fim do nosso com-
com seus ídolos, por mais imperfeitos Maradona, que era canhoto. Mas, indo pelo qual viria a conquistar seu sexto plexo de vira-latas; porque não vi sua
que eles sejam. O exemplo mais óbvio – além da frieza estatística, Pelé alegrou o título da nba, a liga de basquete norte- fugaz participação no bicampeonato do
até porque essa disputa dominou o mun- mundo como nenhum outro jogador. americana. Além da esplendorosa per- Chile, uma conquista com a marca de
do do futebol por décadas – é Maradona. Nem é preciso lembrar que uniu nações, formance do time e de seu líder, o Mané Garrincha, ao lado de quem ele
Cerca de vinte anos atrás, publiquei interrompeu guerras, derrubou frontei- documentário chama a atenção por ter jamais perdeu um mísero jogo; porque
no Jornal do Brasil que havia muito tem- ras políticas e raciais. Transcendeu. criado um dos memes mais difundidos não vi os maravilhosos gols que fez em
po que as pessoas vinham discutindo Entretanto, a maior façanha de Pelé nas redes sociais. É bem provável que 1970 nem os gols ainda mais extraordi-
quem era o Pelé do basquete, do vôlei, foi o fato de ter sido Pelé – e ter sobrevivi- você já o tenha visto. O meme mostra nários que perdeu; porque não acompa-
da natação, da política, do cinema – e até do a isso. Está além do meu entendimen- Jordan às gargalhadas, com um tablet nhei sua cabeçada certeira contra a
o Pelé do fliperama da Rua Augusta. to que ele tenha conseguido manter-se nas mãos, assistindo aos depoimentos de Itália nem o passe açucarado para Car-
O escritor argentino Adolfo Bioy Casares mentalmente são, sabendo-se um dos alguns de seus rivais das quadras. O des- los Alberto Torres colocar um ponto fi-
defendia que não há graça alguma em rostos mais conhecidos do planeta, uma prezo do ídolo pelos outros craques que nal no maior concerto de futebol de
ter inimigos distantes, pois o melhor ini- pessoa tão venerada e tão visada. Ma- ousaram dizer que se sentiam capazes todos os tempos; porque não vi o gênio
migo é sempre o mais próximo. Talvez radona não suportou a pressão de ser de vencê-lo está escancarado naquelas de joelhos, braços abertos como o Cris-
por isso, nossos vizinhos resolveram de- Maradona. Foi demais para ele convi- risadas. É um momento perturbador até to de Salvador Dalí, despedindo-se da
cretar que o Pelé do futebol se chamava ver com o massacre psicológico da ido- para quem o considera, digamos assim, torcida santista nos quatro pontos car-
Maradona. Apoiaram-se numa eleição latria de milhões. Como tantos outros o Pelé das quadras. Pois bem, imagine o deais do estádio; e, acima de tudo, por-
eletrônica fajuta, parecida com aquelas mitos do esporte, não suportou o peso da que diríamos do Rei se ele adotasse tal que pertenço a um tempo de jogadores
adotadas para eliminar alguém do bbb, fama e desabou. postura em relação aos rivais. E aqui majoritariamente arrogantes e sem iden-
mas pouco importava. Para os argenti- Recordo que, já sessentão, Pelé acei- vale notar que, ao contrário de Pelé, Jor- tificação com seus clubes.
nos, Maradona foi maior do que Pelé e tou participar do jogo de despedida de dan não foi o jogador que mais ganhou (Mencionei o Santos e aqui cabe um
ponto final (a única discussão que eles Maradona, em 2001. Àquela altura, o títulos importantes, nem o que mais comentário desavergonhadamente clu-

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bista: se Pelé tivesse jogado pelo meu anos deixaram isso ainda mais evidente escritor inglês Nick Hornby diz que a de forma muito intensa, mas também
Fluminense, em vez do glorioso alvine- – e com certeza tiveram sua parcela de principal razão de alguns de nós torcer- que, nas cinco ocasiões em que mais
gro praiano, eu simplesmente me recu- culpa. Mas o problema do Brasil com seu mos fanaticamente por um time (no chorei na vida, três estavam relaciona-
saria a discutir futebol com qualquer filho mais famoso não se limitava a isso. caso dele, o Arsenal, de Londres) é ga- das ao futebol: na derrota da Seleção
indivíduo, exceto, talvez, com algum Em termos esportivos, Pelé era ina- rantir que seremos lembrados, mesmo Brasileira para a Itália, na Copa do
fanático do Real Madrid, a quem eu tacável. Ele não teve que lidar sequer após a morte, pelas pessoas que nos Mundo de 1982; quando o Fluminense
dedicaria no máximo uns dois ou três com um drama comum a todos os des- amam. E ele está coberto de razão. Te- perdeu a Copa Libertadores da Améri-
minutos de prosa. Mas, aqui, no Brasil? portistas: a decadência. Basta recordar nho absoluta certeza de que sempre ca na disputa de pênaltis, em 2008, em
Ora, o que mais pode querer um torce- que, nos últimos campeonatos que dis- que o Fluminense conquista uma gran- pleno Maracanã; e agora, no adeus a
dor de um clube pelo qual jogou, por putou com as três camisas que vestiu de vitória, ou fracassa espetacularmen- Pelé. Quem disse que o futebol é a mais
quase duas décadas, o maior entre to- (Seleção Brasileira, Santos e New York te, ou apenas tem um jogo transmitido importante das coisas menos importan-
dos os gigantes, marcando mais de mil Cosmos), o Rei terminou com uma taça pela tevê, meus familiares e amigos se tes precisa conhecer alguém como o
gols? Deus deveria castigar os santistas de campeão nas mãos. Já como cidadão lembram de mim, mesmo que por um Nick Hornby – ou como eu.
que cobiçam novos títulos. Depois de – o tal Edson –, ele colecionou algumas breve instante. Quando conquistamos Não foi, no entanto, apenas a paixão
Pelé, o Santos jamais precisará de ou- quedas. Nada, em minha opinião, com um título, recebo telefonemas e mensa- futebolística que me levou a sentir de
tras glórias. Mesmo que o time vagasse dimensão ultrajante. gens como se fosse o presidente do clu- modo tão intenso a morte de Pelé. Por
pela terceira divisão até a consumação Entre os maiores tropeços de Pelé be ou o pai do jogador que marcou o tudo o que ele representava, foi como se
dos tempos, seus torcedores teriam ple- estão algumas frases típicas de um ho- gol da vitória. O que eu não sabia é que o Brasil tivesse mudado subitamente de
no direito de andar dois palmos acima mem simples, quase matuto, e muito as pessoas que nos querem bem se re- fisionomia. Os norte-americanos dizem
do chão, numa atitude de insuportável desconfiado de gente mais sofisticada. cordam de nós por causa não apenas do que o Rei tinha um “sorriso de 1 mi-
superioridade moral, estética e intelec- Havia também a dificuldade de con- nosso clube, mas também dos nossos lhão de dólares”. Sorriso que era, tam-
tual em relação aos pobres-diabos que frontar os poderosos, pois não tinha ídolos. Por isso, passei dias recebendo bém, o do meu país. Aquele sorriso,
escolheram apoiar outras equipes.) noção do próprio poder e temia preju- mensagens, fotos, telefonemas e maté- aquela camisa 10 amarela, aquelas joga-
A verdade é que, da mesma maneira dicar sua carreira. Acima de tudo, tive- rias jornalísticas sobre Pelé. E chorando das eternas, dispensavam maiores expli-
que ecoa até hoje a façanha atlética de mos o lamentável episódio da filha que de emoção com todas elas. cações sobre o que é e o que pretende o
Fidípides – que há dois milênios e meio ele se negou a reconhecer, Sandra Re- “Eu sei que você adorava o Pelé, en- Brasil. Nenhuma das agruras de nossa
correu de Maratona a Atenas para infor- gina. Aqueles que conheceram Pelé de tão veja só a capa desse jornal italiano”, combalida Pindorama parecia capaz de
mar aos atenienses que eles tinham perto garantem que isso aconteceu por disse um amigo, em uma mensagem. arruinar a imagem que o Rei projetava.
vencido a batalha contra os persas –, razões financeiras, explicitadas, desde “Olha que fotos maravilhosas”, disse Sem ele, teremos que buscar um novo
acredito que o próprio futebol acabará os primeiros contatos, por Sandra, seu outro. “Nosso querido descansou”, es- significado para a alegria, a criativida-
antes que acabem as lendas sobre Pelé. marido e seus advogados. Anos mais creveu minha mãe, alguns anos mais de, a diversidade e a arte, que sempre
Porque, se fatos históricos e batalhas tarde, o Rei reconheceu sem maiores velha do que o Rei. A cada mensagem, foram – e precisam continuar sendo –
como a de Maratona acabam se perden- problemas outra filha, Flávia Cristina, mais lágrimas. E então percebi não ape- as nossas marcas registradas. Não será
do na poeira da história, grandes heróis, com quem conviveu até o final da vida. nas que Pelé fazia parte da minha vida uma tarefa simples. J
como Fidípides e Pelé, são eternos. Em- Fora isso, é possível afirmar que na
bora improvável, é possível que um dia trajetória de Pelé não constam escânda-
a humanidade perca o interesse por los financeiros,
Acesse nossosonegação
Canal de impostos,
no Telegram: t.me/BRASILTRASH
esse esporte chamado futebol. Entre- denúncias de abuso sexual, consumo de
tanto, jamais desaparecerá o interesse drogas ou maus-tratos a fãs, coisas que
pela figura de Pelé e por tudo o que ela hoje parecem fazer parte do kit compor-
representou para o mundo e, em espe- tamental dos craques dos gramados. Nas
cial, para o Brasil. poucas vezes que estive com ele, me
Apesar disso, é triste observar que deparei com um homem agradável, hu-
não soubemos entregar flores em vida milde, acessível e muito respeitoso com
ao Rei e, quando eventualmente as en- seus fãs. Uma dessas ocasiões foi duran-
tregamos, deixamos os espinhos. Tenho te o lançamento do canal esportivo psn,
a impressão de que todas as vezes que hoje extinto. Tarde da noite, já encerra-
enaltecíamos os feitos extraordinários do o evento, o Rei continuava a distri-
de Pelé, precisávamos logo arrematar o buir autógrafos a todos: dos donos do
comentário com alguma crítica à vida canal à equipe que começava a chegar
pessoal de Edson Arantes do Nascimen- para fazer a faxina do local. Ele só foi
to. É célebre o mecanismo psicológico embora depois de autografar para a der-
que o Atleta do Século encontrou para radeira pessoa da fila. Outra vez, duran-
separar o cidadão Edson do gênio es- te um jantar num restaurante japonês
portivo Pelé. Resta saber se ele fazia isso na região dos Jardins, em São Paulo, um
para preservar a sanidade do Edson ou dos garçons discretamente sugeriu a ele
a imagem de Pelé – ou ambas as coisas. que o pessoal da cozinha queria conhe-
Seja como for, esse mecanismo abriu as cê-lo. Pelé se levantou, foi até a cozinha,
portas para que muitas pessoas passas- assinou aventais e guardanapos, gravou
sem a elogiá-lo com entusiasmo e criti- vídeos e tirou fotos com todos. Essas não
cá-lo cruelmente na mesma sentença. foram situações excepcionais. Quem
Nunca tive notícia de que algum outro organizava eventos com o Rei sabia que
ídolo esportivo de dimensão mundial era impossível trabalhar com horários
tenha recebido semelhante tratamento rígidos, pois ele só deixava o local depois
de seus compatriotas. de atender o último fã.
As razões para a má vontade meio que

E
generalizada dos brasileiros com Pelé u já imaginava que ficaria bastan-
sempre me intrigaram. Cheguei a esbo- te comovido quando chegasse a
çar explicações que, embora constrange- hora de escrever o texto de despe-
doras, eram mais diretas, como nosso dida do maior ídolo esportivo que já
racismo estrutural e o preconceito de tive. Mas as emoções que experimentei
classe. É claro que os pecados ancestrais nos dias que se seguiram à notícia de
da sociedade brasileira continuam mais sua partida superaram qualquer expec-
do que presentes – os últimos quatro tativa. Em seu livro Febre de Bola, o
221691

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heróis do gramado II

O MINUTO 122’43”
O instante em que o mundo quase caiu. Depois, a explosão da alegria.
Mas o que estávamos comemorando?

MARCELA MORA Y ARAUJO, de Buenos Aires

Patria de las perfectas luces, tuya la ingenua [...]


y melodiosa fiesta, calles que cubren hoy brazos de cruces.
Com as devidas desculpas a Miguel Ángel Asturias
Acesse nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILTRASH

D
ebaixo de um Sol de rachar, deliciosa que lhe pertence, que está sada nem ao Obelisco, continuou sua
um menino de 8 anos nos om- prestes a morder. “Você acha que ele vai cerimônia e se dispersou sem inciden-
bros do pai – excepcionalmen- se lembrar disso?”, me pergunta a mãe tes. Ou com relativamente poucos inci-
te alto –, com uma bandeira dele, minha irmã. dentes – alguns dos quais ocorreram
argentina (ou trapo, como a Cerca de 5 milhões de pessoas saí- em González Catán, município do dis-
chamamos aqui) amarrada no pescoço, ram às ruas só em Buenos Aires – mais trito de Matanza, na periferia profunda
feito um super-homem. Seus ombrinhos de 10% da população argentina, segun- da Grande Buenos Aires.
balançam sobre um mar de gente tam- do o censo de 2022. Talvez o mesmo É esse o lugar de origem de Gonzalo
bém vestida com a camisa celeste e bran- tanto no resto do país. Sem barreiras de Montiel, o jogador que cobrou o pênal-
ca. Ele vira a cabeça olhando em todas proteção, sem nenhum esquema de se- ti que nos deu a Copa. Gonzalo é cria
as direções. As pessoas ocupam todos os gurança, sem banheiros químicos, bem da academia do River Plate, viveu nos
espaços, como um líquido, gritando, pu- o contrário da fila inglesa organizada alojamentos do clube desde os 13 anos.
lando, cantando. Estão trepadas nos se- para a despedida da rainha. Como disse Quando era criança, no seu bairro, ba-
máforos, em cima dos carros, nos abrigos a cantora Bárbara Recanati, num breve tia pênaltis por dinheiro, coisa bem co-
dos pontos de ônibus. Soltam fogos, há tuíte cheio de ironia: “6 milhões de pes- mum nas vilas e comunidades – já no
fumaça, há quem jogue linguiças em soas. Supermal organizado. Não havia River, quando Marcelo “El Muñeco”
churrasqueiras portáteis. São mulheres, pontos de hidratação, nem beer garden, Gallardo o promoveu à categoria profis-
crianças, idosos e muitos, muitos ho- nem espaços para crianças, nem quios- sional (Gallardo o chamava de “bom-
mens. As cores da camiseta se repetem ques de grife, nem food trucks sortidos, beiro”, porque o garoto vivia apagando
em pinturas de rostos e cabelos, nos bum- só choripanes [sanduíches de linguiça]. incêndios por todo o campo), Montiel
bos. “São as cores do céu”, ouvi uma mu- A fila para chegar até Lionel Messi, se confirmou como exímio batedor de
lher explicar a um inglês na caminhada eterna. Eu fui, esperei mil horas e nem pênaltis. Na carreira profissional, não
até o Estádio de Wembley, em junho do cheguei perto dele. País inviável.” errou nenhum. Nas categorias de base,
ano passado. Foi uma noite inesquecível Os campeões, bêbados, viram um apenas um.
que a seleção campeã da América deu de sujeito se atirar de uma ponte sobre o Montiel chuta no Estádio Lusail, no
presente aos torcedores, antes do Mun- ônibus onde estavam, errar o alvo e cair Catar, o goleiro francês Hugo Lloris
dial do Catar, com a vitória sobre a Itália de cabeça na rua. Aí o desfile dos jogado- pula para o lado errado e a bola estufa
campeã europeia, numa nova Copa in- res foi interrompido e eles voltaram de a rede. Todos explodimos num frene-
ventada, A Finalíssima. Hoje o menino, helicóptero ao centro de treinamento em si misto de soluço de alívio e grito de
cavaleiro vitorioso, observa a comemo- Ezeiza. Mas as pessoas continuaram fes- êxtase merecido. Messi cai de joelhos.
ração maciça de uma Copa mais do que tejando. Nem o governo federal, nem a Lionel Scaloni, o técnico, cobre o rosto.
real. É A Copa. A terceira da Argentina. segurança da cidade estiveram à altura Emiliano “Dibu” Martínez, o goleiro,
Ele levanta o bracinho com o punho de um povo que saía para dançar e can- se joga no chão. Uma bicicleta no Cen-
erguido para o céu, canta com o povo, tar e, mesmo desapontado ao saber que tro de Buenos Aires captou com uma
sorri como se o universo fosse uma fruta os campeões não chegariam à Casa Ro- câmera de celular aquele exato momen- O Obelisco, cravado no cruzamento de duas largas

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GASTÓN PÉREZ MAZÁS_@GASTYPM_2022


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avenidas em Buenos Aires, cercado pela multidão de torcedores: como acontece com toda espécie bem-sucedida, Messi, ao contrário de Maradona, se beneficia mais da cooperação que do conflito

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to: tudo deserto, silêncio absoluto e, ao conômicas dos últimos tempos. Tam- muito. É por isso que foram criados os riam: ganhar a Copa ou que a econo-
grito de goool!, as pessoas começam a bém vale citar um diálogo imperdível índices de felicidade para classificar as mia do país melhorasse. Parte das
encher a rua. Parecem formigas moven- entre o humorista argentino Sebastián sociedades. É por isso que as universida- respostas delata uma lógica brilhante:
do-se em ritmo coordenado. Wainraich e um sujeito avesso ao futebol des incluem o ranking de satisfação “Quanto pode durar a melhora da eco-
Durante três dias, o sorriso continuou que, justamente, questionava a racionali- emocional dos estudantes na promoção nomia? Já a Copa é para sempre...”
estampado nos rostos argentinos. O dia dade desse “nós ganhamos”. Aconteceu de sua imagem. É por isso que, cada vez Quando seu time é seu país, a irra-
da chegada dos jogadores foi declarado em outra Copa, em outra época, mas mais, as empresas estão procurando for- cionalidade do amor se mistura com
feriado nacional. Mesmo que formal- continua valendo. Por que as pessoas se mas de mitigar a ansiedade de seus fun- nacionalismos, nacionalidades e patrio-
mente não fosse, ninguém conseguiria identificam com uma vitória que não cionários, com massagens no escritório tismos. Mas afinal, o que é ser argenti-
trabalhar, pois as principais vias do país tem nada a ver com elas? “Acho uma tre- ou pufes coloridos em áreas de relaxa- no? Recuo algumas copas até aquela
estavam tomadas pelos torcedores. Vira- menda besteira assistir partida de fute- mento. “Estar bem” é um estado real, em que o grande contista e editor inde-
lizaram vídeos de gente jogando bola no bol. O próprio fato de existirem dois emoções e sentimentos são reais. Con- pendente Hernán Casciari revelou
meio das ruas e avenidas, de uma multi- grupos fanatizados pelo confronto. O que tentment é uma medida válida. E o fu- como ele explicava isso à filha, nascida
dão cantando o hino nacional em cima eles comemoram? Não é ‘nós ganhamos’; tebol é uma grande ferramenta, o na Catalunha: “Ser argentino é pôr do-
e embaixo dos viadutos. Como se as ar- você não ganhou nada”, diz o interlocutor veículo por excelência para canalizar ce de leite em tudo que é frio, pôr queijo
quibancadas de um estádio tivessem de Wainraich, “Mas a Wanda Nara,1 que tanto frustrações como alegrias. Como ralado em tudo que é quente, pôr limão
sido esticadas e enroscadas, num imenso tem uma bolsa Louis Vuitton, ganhou, já disse Jorge Sampaoli, o técnico à fren- em tudo que é frito e fazer cara de nojo
desenho do holandês Maurits Escher sim.” Wainraich reconhece com fran- te do fiasco de 2018 na Rússia: “Sei mui- para tudo que é cozido.”
sem começo nem fim; milhões de pes- queza a irracionalidade de ser “torcedor”. to bem que sou um gestor de emoções.” Será que a nação é um punhado de
soinhas sob o Sol vestidas de azul e bran- “Vamos por partes: é ilógico, é como o Diego Pietrafesa, do jornal cooperati- costumes, uma tradição culinária? Cer-
co, cantando, brincando, festejando. amor, não sei por que eu quero que certo vo Tiempo Argentino, detalhou esses fes- tamente não se trata de um alinhamen-
O que estávamos comemorando? time ganhe de outro, mas é o que aconte- tejos populares, jogo a jogo, numa to político ou ideológico, porque nossas
O que mudaria para cada um daqueles ce comigo. Quanto a essa história de ‘não crônica intitulada Por Quién Jugamos: sociedades estão mais divididas do que
cidadãos? Aquelas desorganizadas cele- ganhei nada’, você está redondamente “As pessoas estão felizes, os vizinhos se nunca. Na Argentina, chamamos de
brações patrióticas que foram acontecen- enganado, e eu sinto muito que você pen- reúnem e se cumprimentam com outra grieta [rachadura, fosso] esse espaço im-
do com mais intensidade depois de cada se que ganhar ou perder só passa pelo cara, mais bandeirinhas celestes e bran- possível de transpor, esse abismo entre
partida, dando voz à felicidade de perten- material... Reconheço que o material é cas são vendidas na feira. Por um mo- os dois lados das batalhas culturais que
cer, lembram um pouco esta joia filosó- muito importante, mas, se meu time ga- mento, a vida é o que deveria ser para vão ganhando terreno. Talvez por isso
fica que ouvi certa vez: “Dizer ‘ganhamos’ nha, eu fico feliz. É forte. E não são mui- todos, e não só para quem tem dinheiro.” as imagens das comemorações sejam
quando teu time ganha é como dizer tas coisas que me deixam feliz.” Antes da Copa, meu irmão e uns muitas vezes acompanhadas de alguma
‘trepamos’ depois de ver um filme por- Existe o bem-estar imaterial. Existe amigos dele fizeram uma pequena pes- observação melancólica, na linha de
nô.” Aqui estamos diante de um país in- um bem não quantificável que vale quisa informal perguntando a várias “como nosso país é lindo sem grieta...”.
teiro dançando ao grito de “ganhamos” pessoas escolhidas ao acaso nas ruas Durante o campeonato, mulheres in-
1 Wanda Nara é uma modelo argentina e agente de
em meio a uma das piores crises socioe- futebol. (garçons, frentistas...) o que elas prefe- telectuais de meia-idade confessaram:

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“Descobri que sou muito competitiva e quela ocasião. Messi conservou seu so-
muito nacionalista.” Conheci uma mu- taque e seus costumes de um natural de
lher de 23 anos que tatuou na perna uma Rosário; açúcar no mate, loucura por bife
ilustração de Diego Maradona entregan- à milanesa. Conversamos sobre as difi-
do a bola a Lionel Messi. Um desenho culdades de adaptação a um novo país:
“Quando cheguei aqui não tinha nada
temporada 2023
detalhado que ocupa toda a panturrilha.
“Foi minha mãe que fez”, ela me explica. do que eu tinha lá”. #NosEncontramosNaMúsica
Pergunto se as duas são muito ligadas em

H
futebol, e ela me diz que não, mas que á um orgulho inexplicável em
esta Copa a pegou de jeito, por causa das ser natural do mesmo país que
boas vibrações que criou. “Estávamos um herói – um acidente geográ-
num momento de muita briga, e de re- fico que nos valida aos olhos do mun-
pente veio essa onda de felicidade.” No do. No meu caso, a coincidência de
muro de um grande cemitério, algum compartilhar o mesmo chão com Die-
pândego pendurou uma faixa com a fra- go Armando Maradona sempre desper-
se: “Vocês não sabem o que perderam.” tou admiração e respeito, numa espécie
Muito humor e bom humor. Alegria. de rima espontânea e universal. Você
Harmonia. “É a construção da bandei- diz “Argentina”, e a resposta imediata é
ra a partir de outro lugar”; alguns fazem “Maradona”. Compatriotas receberam
análises sociológicas, enquanto outros
postam uma imagem de uma enorme
refeições gratuitas em restaurantes remo-
tos; correspondentes de guerra contam
MC Tha 24.02
bandeira dobrada que parece uma vagi- que conseguiram atravessar fronteiras
na, e pelo orifício aparece um pequeno em zonas de conflito só por serem ar-
Messi com o 10 bem claro na camiseta. gentinos. Esquerda e direita, miseráveis
“Aqui na Avenida General Paz encon- e magnatas, executivos, xeiques árabes,
trei a pátria dando à luz uma lenda.” intelectuais africanos e toda a Índia,
Entrevistei Messi em 2009, para um Bangladesh e Nepal souberam transmi-
livro da Unicef sobre a infância de gran- tir sua adoração pelo 10 mais emblemá-
des craques. Naquela época, os poucos tico e controverso da nossa história.
jornalistas que o entrevistavam comen- Lionel Messi também veio do mes-
tavam sua relutância em falar. “Ele é mo solo. Ele poderia ter jogado pela
supertímido”, diziam seus companhei- Espanha, pois era muito novo quando se
ros do Barcelona. O próprio Messi disse
que não precisava de palavras, que ele
mudou para Barcelona para receber um
tratamento médico caro que o Newell’s
Letrux 03 e 04.03
falava com os pés ao entrar no campo. Old Boys, de Rosário, não estava dispos-
Meu encontro com ele foi agradável, to a custear. É quase um espanhol. Isso
mas parecia que eu estava conversando foi muito repetido
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Canal de 2010,
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com uma criança. Hiperliteral, às vezes quando a campeã Espanha contava com
parecia não entender alguma palavra. um grande número de companheiros de
Disse que odiava perder, em tudo, e Messi, e o jovem Lionel terminou seu
que ficava com tanta raiva quando não segundo Mundial desiludido, derrota-
ganhava que tinha a impressão de que do por uma jovem e diversa Alemanha,
seus irmãos mais velhos o deixavam ga- ainda nas quartas de final. Na Argenti-
nhar só para evitar seu berreiro. Pergun- na, foi recriminado por manifestar seu
tei sobre seus ídolos do futebol, e ele exílio no campo de jogo internacional. Juçara Marçal
respondeu: “Pra ser sincero, nunca vejo Dizia-se que fazer tanto pelo Barcelona
futebol”. Depois de muita insistência, e tão pouco pela seleção nacional era + Kiko Dinucci 09.03
ele finalmente reconheceu que gostava coisa de “traidor da pátria”. E que ele
de ver Pablo Aimar jogar no River Plate. não cantava o hino.
Apesar das críticas à sua falta de domí- Sua estreia na Copa do Mundo tinha
nio verbal, entendi a essência inefável da sido em 2006, pela mão de José Péker-
sua arte. Lembro bem de uma imagem man, o verdadeiro arquiteto da revolução
de uma final da Liga dos Campeões, do futebol argentino. Pékerman chegou à
Barcelona contra Manchester United. Associação Argentina de Futebol (afa)
Messi, parecendo um personagem de com um projeto para trabalhar as sele-
Mafalda, a camiseta larga, os ombros ções juvenis que incluía nutricionistas,
caídos, enredado entre os corpos de três psicólogos e especialistas em educação.
enormes jogadores ingleses que tentam Seu objetivo era treinar homens, não jo-
cercá-lo. Mas – e aqui cito a mim mesma gadores. Com muita ênfase no fair play
nessa descrição porque me custou muito e no jogo bonito, muita atenção nos valo- Johnny Hooker 14.04
chegar a ela – Messi, “uma espécie de res humanos e na inteligência emocional,
homem-bola, como uma larva engendra- ganhou os torneios internacionais mais
da nas entranhas daquela massa inglesa, cobiçados de todas as categorias de base.
sai inteiro, lagarta feita borboleta, em
moto-perpétuo; seus braços estendidos,
Ferrenho opositor do que ele denomina-
va “ditaduras resultadistas”, Pékerman,
e muito +
seus pés no encontro perene com a bola. dizem, uma vez deixou Pablo Aimar no
É tudo uma coisa só, uma curva, um mo- banco durante uma final juvenil só para
vimento”. Nossa profissão dá extremo ele aprender que “o banco também faz
valor ao dixit dos astros, mas devemos parte da equipe”.
reconhecer que pedir que eles nos expli- Pablito Aimar foi um daqueles joga- Ingressos:
quem como fazem aquilo que fazem é dores criativos que deleitam até os tor- casanaturamusical.com.br
pedir muito. “Eu jogo como jogo. Sei lá. cedores adversários. Um pensador que
Como eu gosto. Como sai. Na verdade, entendia o jogo e o honrava. Se bem
não penso muito nisso”, ele me disse na- que no campo a gente não pensa, dizia
Cia Aérea Oficial: Apoio:

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Aimar, mas toma decisões. Chegou a ser sobre o barco que se embala junto ao tural e fortalecimento da identidade. Há
identificado por Alex Ferguson como “o cais. Das regiões montanhosas veio o quem argumente que isso tem a ver com
único jogador que eu temo” e teve mo- que ele tem de áspero e duro; das planí- a população majoritariamente imigran-
mentos de brilhantismo arrasador quan- cies, sua coragem serena e amplidão te, que não tem muito em comum, mas
do o Valencia venceu o Liverpool numa tranquila; das florestas, sua sagacidade; encontra uma força unificadora no
Liga dos Campeões em que todas as e na cidade ele juntou tudo, temperou amor pela camiseta. Muitos destacam
bolas passavam por ele, enquanto Steven com malícia e se tornou pícaro... e às ve- que, para ser jogado, o futebol não exige
Gerrard corria desesperado de um lado zes maldoso. Mas só às vezes. Porque no nada além de um espaço relativamente
para o outro, “como uma galinha sem futebol, como na vida, você nem sempre aberto e uma esfera de algum material
cabeça”, conforme a expressão inglesa. pode ser bom. De vez em quando tem (a forma geométrica mais perfeita).
Aimar foi companheiro de Messi na que abrir a porta para o selvagem.” “Você nem precisa de uma bola”, costu-
Copa de 2006. A mesma em que Péker- Meu pai levou um tombo e bateu a ma-se dizer, “basta uma laranja, uma
man acabou rompendo com a Argenti- cabeça, bem no dia em que eu estava em trouxinha de trapos, no caso de Marado-
Vermelho na, durante a coletiva logo após o jogo Sevilha entrevistando Jorge Sampaoli. na, uma tampinha...”
em que a seleção perdeu para a Alema- Falávamos justamente sobre essa ideia da Isso é verdade em todos os cantos do
nha, em Berlim. Eu estava lá, vi a cara identidade nacional, sobre a Argentina planeta Terra. Não tem força explicativa
amarrada de um jovem Lionel sentado de Messi e sobre a dificuldade de fazer suficiente para cravar conclusões sobre a
no banco. O futebol é uma dessas ence- uma pátria a partir do exílio. Sampaoli relação do povo argentino com o futebol.
nações em que há tantas interpretações então me perguntou: “O que é o exílio?” O jornalista Andrés Burgo ressalta que,
quanto olhos assistindo, mas aquele jogo Quando eu soube que meu pai nunca no território argentino, os jogos interna-
e aquela ausência de Messi em campo mais despertaria da sua queda, ainda no cionais da seleção começaram antes da
foi uma das raras ocasiões em que todos aeroporto, respondi àquele ser que eu existência dos grandes clubes profissio-
os milhões de espectadores do espetácu- mal conhecera numa entrevista sobre nais; talvez por isso a relação do torcedor
lo concordaram. “Como é que ele não futebol: “É isso: estar longe quando as com a camiseta nacional seja tão intensa.
pôs o Messi?!” A fúria foi universal, de coisas importantes acontecem.” O fato é que, desde que os primeiros fer-
Jorge Messi, pai de Lio, ao alto-comando Um ano depois, publiquei um escrito roviários ingleses começaram a difundir
12 da Fifa. Do torcedor mais fervoroso da lembrando a relação com meu pai por o jogo nos lugares aonde o trem chegava
periferia de Buenos Aires aos jogadores meio do futebol e da poesia. Sua cara de (por isso, por causa das estações, tantos
Três Mulheres Altas de elite da Europa. Messi, visivelmente felicidade no dia em que a Argentina ga- clubes acabaram com um “Central” no
irritado, assistiu à queda do sonho argen- nhou a Copa de 1978. Quase vinte anos nome), há uma paixão e um fervor que
Temporada encerra-se no dia
tino sentado à beira do campo. depois, conheci Graciela Daleo, que fora os descendentes de todas as ondas migra-
12 de Fevereiro Talvez ainda tivéssemos algo a apren- sequestrada e detida clandestinamente, tórias aqui nascidos têm sabido saborear
der com Pékerman. Na Copa de 2014, durante o campeonato mundial, num até suas últimas consequências.
De Edward Albee
no Brasil, ficamos sabendo que Messi centro de tortura a poucos metros do Es- É uma coisa que fascina o resto do
Direção de Fernando Philbert
Com Suely Franco, Deborah Evelyn e costumava vomitar antes de jogos deci- tádio Monumental, e foi levada para “co- mundo. Especialmente quando essa
Nathalia Dill sivos. Medo cênico com sintomas físi- memorar” a vitória na mesma avenida paixão se torna violenta e são organizados
cos. O mesmo
Acesse nosso queCanal
vimos acontecer com em quet.me/BRASILTRASH
no Telegram: meu pai e eu cantávamos alegre- “combates”, ou se acendem fogueiras
Sex às 21h00, Sáb às 20h00
Ronaldo Fenômeno, na França em mente. Meu pai me incentivou a publi- nas barreiras do estádio, ou os cantos e
e Dom às 17h00 | TUCA 1998, quando ignoraram sua convulsão, car e difundir a entrevista que fiz com bumbos retumbam nas arquibancadas
pagando o alto custo de uma derrota. Daleo, na qual descobrimos a coincidên- fazendo tremer as entranhas do próprio
Não sabemos que características Péker- cia de duas décadas antes. Ela me disse concreto. Jornalistas de todos os can-
man identificou no taciturno Lionel – que pôs a cabeça para fora do teto do tos vêm “cobrir” o fenômeno – o fiasco
um paralelo interessante é a decisão de carro militar conversível e, olhando para mais recente foi, talvez, a final da Liber-
César Luis Menotti de deixar Diego o mar de gente em festa que se estendia tadores de 2018, entre Boca Juniors e
Maradona, então com 17 anos, fora da por todos os horizontes, pensou: “Se eu River Plate. Pela primeira vez, dois ti-
seleção de 1978, talvez também por gritar ‘socorro, sou uma desaparecida!’... mes da mesma cidade disputariam a final.
identificar uma imaturidade que seria quem é que vai me ouvir?” O então presidente Mauricio Macri, ele
superada na Copa seguinte, a juvenil de Agora eu sempre penso nas atrocida- mesmo um homem ligado ao meio fute-
1979. Nunca saberemos. Assim como des que podem se ocultar sob a superfí- bolístico, que chegou ao poder depois de
tampouco sabemos o que poderia ter cie do papel e da propaganda durante presidir o Boca Juniors, resolveu mostrar
acontecido se o técnico argentino tives- as comemorações em massa do futebol. ao mundo a celebração do futebol argen-
se posto em campo aquela promessa em Em meio ao canto sagrado, a mais re- tino e permitiu que os torcedores visitan-
que o mercado apostava todas as fichas. pugnante perversão. tes também entrassem no estádio pela
O fato é que Pékerman se demitiu logo O mito do futebol nivelador, unifica- primeira vez em mais de uma década.
em seguida, e Messi iniciava uma longa dor, igualador e até restaurador é isso Por causa da violência incontrolável en-
jornada com a seleção argentina que tra- mesmo, um mito. Assim como a própria tre as “barras bravas”,2 há muito se ado-
ria muitas finais e poucas taças. Uma jor- ideia de que ele poderia ser tudo isso. tara o sistema de torcida única. Uma
12 nada dolorosa e sofrida. Mas, como diz Uma partida de futebol não altera a rea- operação policial desastrosa impediu
o próprio Messi, “soubemos sofrer”. lidade. Nenhuma realidade. É puro esca- que a partida começasse. A maioria dos
Improvável
Virginia pismo. Como dizia o ex-técnico Menotti, torcedores, tranquilos e na esperança de

“O
futebol é feito com a dança seu valor consiste na sua relação “com passar uma tarde agradável, ficou presa
EM BREVE desta terra: é malambo e o tempo de lazer do homem”. A escrito- dentro do estádio por horas a fio. Con-
De Cláudia Abreu
zamba, tango e pericón, cha- ra colombiana Beatriz Vélez vai além: cluiu-se que a cidade não estava à altura
Direção de Amir Haddad mamé e milonga. É daí que ele tirou sua “As cerimônias no estádio, brilhando da tarefa de realizar um evento esportivo
Com Cláudia Abreu ginga, sua elasticidade, seu preciosis- com sua própria luz, refletem o consen- de tal magnitude, e a final foi levada
mo”, escreveu Juan Mora y Araujo, meu so em torno da importância do jogo na para o Estádio Santiago Bernabéu, em
Sex às 21h00, Sáb às 20h00
e Dom às 17h00 | TUCA
avô paterno, num volume intitulado Fút- vida humana.” Madri. Menos de uma semana depois,
bol Argentino, há mais de setenta anos. Esse direito ao prazer é comum a em Buenos Aires, realizou-se o encontro
ingresso online “Sabe o que acontece? No futebol criollo todos nós, seres humanos. Diversas cul- do g20. O Centro da cidade foi então
está toda a nossa terra. Olhe para ele, de turas ao longo de diversas épocas soube-
2 A expressão é usada na Argentina para designar
dentro, e você vai ver. É feito de tudo ram defendê-lo com diferentes formas as torcidas organizadas que, como seu nome indica,
que é nosso. De pampa e céu, de mon- de expressão. Na Argentina, o futebol ocu- são quadrilhas notórias pela violência, com inúmeros
Mais informações casos de homicídios, e também pelo envolvimento
tanha e floresta, de rios calmos e torren- pou o lugar de honra de ser considerado em outras atividades criminosas, como venda de ar-
Rua Monte Alegre, 1024 - Perdizes
(11) 3670-8456 | 3670-8455 tes que arrastam, de música de acordeão o mais nobre veículo de expressão cul- mas e drogas.

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cercado com os reforçados tapumes que conjunta para definir as sedes das copas jogaram diante de um público presen- que permaneceu de cabeça baixa,
tanta falta haviam feito no estádio; os de 2018 e 2022 deu vitória à Rússia e ao cial notavelmente masculino e branco, olhando para o celular. Sampaoli foi ro-
moradores foram aconselhados a deixar Catar em detrimento da Inglaterra e dos Infantino se instalou num luxuoso apar- tulado de charlatão. A França eliminou
a cidade por alguns dias e a presença po- Estados Unidos. Os ingleses tiveram Da- tamento em Doha para dar início à a seleção a caminho de se tornar a digna
licial em cada esquina foi impecavel- vid Beckham e o príncipe William como Copa de 2022. Seria a primeira em mui- campeã do mundo.
mente eficiente. Gianni Infantino, embaixadores de sua campanha, e esses tas coisas: por causa do calor, seria dis- Antes, em 2014, a Argentina teve um
presidente da Fifa, foi o convidado de belos espécimes jovens, altos e loiros putada no final do ano; também seria bom desempenho. Chegou à final. Jo-
honra do g20 e saiu nas fotos presentean- eram fotografados ao lado de represen- realizada numa nação de língua árabe, gou com tudo. O time literalmente deu
do os principais líderes mundiais com tantes de federações africanas e caribe- de maioria muçulmana. “Aspirava a sig- sangue, suor e lágrimas em cada uma
camisetas de futebol. nhas. “Não podemos permitir que esses nificar algo mais”, escreveu o historia- das sete partidas que disputou. Por al-
Persiste, sobretudo na Europa, a ideia octogenários terceiro-mundistas conti- dor de futebol David Goldblatt, no New gum tempo, o povo adorou. Jogar toda
de que nossos países em desenvolvimen- nuem mandando no ‘nosso jogo’”, pro- York Times, “com seu calendário, sua a Copa com a esperança viva é real-
to do chamado Sul Global não cumprem clamava com fúria a imprensa do mundo cronometragem, seus torcedores visitan- mente o máximo a que se pode aspirar.
os requisitos necessários para sediar gran- livre. Não tardaram as denúncias de tes e suas narrativas, o torneio ofereceu Mas a paixão durou pouco, e logo reco-
des eventos esportivos. É difícil digerir suborno, corrupção e compra de votos. uma visão do mundo em que o Sul Glo- meçaram as recriminações. Depois, a
essa posição no contexto da mais recente O fbi foi acionado, e as cabeças começa- bal, com sua miríade de complexidades, seleção de Messi ainda conseguiu che-
final da Liga dos Campeões, transferida ram a rolar. Conta-se que Julio Grondo- está mais presente e mais poderoso”. gar a mais duas finais importantes, am-
de São Petesburgo para Paris, porque a na, tesoureiro da Fifa e autoproclamado bas da Copa América, mas, depois de

R
Ucrânia estava sob bombardeio russo. “vice-presidente do mundo”, disse o se- ússia 2018 foi desastrosa para a Ar- perder um pênalti em 2016, Messi teve
Em Paris, a polícia encharcou os partici- guinte, quando o resultado da votação gentina. As rupturas dentro da afa, um colapso emocional total e desistiu
pantes de gás lacrimogêneo; milhares de veio a público: “Vamos ser todos presos.” ainda mergulhada no vazio deixa- da Argentina ao deixar o campo.
pessoas não conseguiram entrar no está- Ele foi salvo pela morte. Vários dos seus do pela morte de Grondona, e vacilante Naquela altura, a afa estava “sob in-
dio por causa de aglomerações e proble- colegas foram condenados num tribunal sob uma nova direção, integravam uma tervenção” de uma comissão híbrida
mas nos controles de entrada. Vimos dos Estados Unidos. conspiração de fatores que se refletiu criada por Macri e Infantino. Como
crianças chorando inconsoláveis dizendo Foi assim que Gianni Infantino, en- dentro do campo. Um Maradona pertur- boa parte da receita televisiva gerada
que nunca mais queriam voltar a um es- tão secretário geral da Uefa, assumiu o bado, gesticulando obscenidades na Tri- por um contrato com o governo de
tádio. Mesmo assim, a mídia ocidental poder absoluto dentro da Fifa. Seus an- buna de Honra, era a imagem mais literal Cristina Kirchner estava congelada,
continua insistindo em que o Primeiro tecessores estavam descontentes com a do fiasco. O projeto fracassou. Vazaram e Macri procurava compradores midiáti-
Mundo é o palco mais adequado para votação, mas Infantino se abraçou a Vla- viralizaram mensagens privadas do cos para voltar a “privatizar” o futebol.
esse tipo de espetáculo. dimir Putin, a quem chamou de “amigo WhatsApp, os jogadores foram insultados Comenta-se que Messi e Sergio “Kun”
A escolha do Catar como país-sede da do futebol”. Depois de uma Copa em e ameaçados, os jornalistas imersos no Agüero teriam pagado do próprio bolso
última Copa foi talvez o momento-chave que dez das dezesseis seleções classifica- clima de horror disparavam acusações os salários dos roupeiros e outros fun-
em que a velha balança de poder da Fifa das pertenciam à Uefa e os quatro semi- indignadas, e Messi não falava. Ninguém cionários da afa, mas isso não foi con-
começou a se desmantelar. Uma votação finalistas foram equipes europeias que sabia o que estava acontecendo com ele, firmado. Os detalhes logísticos dos

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Yayoi Kusama, Narcissus Garden Inhotim, 2009, [detalhe]. Foto: João Kehl /inhotim
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traslados eram tão desorganizados que, bém foi tocado pela sábia orientação de José Becerra apontou na ocasião, com
quando Messi discursa para seus com- Pékerman, era um dos auxiliares de cam- “as imagens de Scaloni e Pablo Aimar
panheiros na final da Copa América de po de Sampaoli. Apesar de sua pouca chorando no banco de reservas como se
2021, faz questão de lembrar os quaren- experiência como treinador, tinha ótimo estivessem assistindo ao final do E.T. [...]
ta dias que passaram “sem reclamar de relacionamento com os jogadores. Numa subindo e descendo com a gente nas
hotel”. A importância que ele dá a esse das versões desse relato, afirma-se que mesmas ondas de emoção coletiva”.
detalhe me chama muito a atenção. César Luis Menotti, já nomeado diretor- E essa sintonia entre as emoções da
Conseguir a volta de Messi à seleção geral de seleções na afa, foi quem suge- torcida e da seleção continuou jogo após
virou a prioridade número 1. Procura- riu que Scaloni assumisse o comando jogo ao longo de toda a Copa. Aimar pa-
vam técnicos que soubessem como tirar em alguns jogos da seleção, que já cons- recia se afogar em soluços (“Me veio
o melhor dele. Todos conversaram com tavam do calendário, mas eram de pouca tudo”, seu pai conta que ouviu do filho,
Pep Guardiola, o catalão que soube importância competitiva. que se referia à morte recente da mãe,
montar um time dentro do qual Messi Scaloni conta que ligou imediatamen- mas também aos anos de esforço que
funcionou. Pep recomendou que falas- te para seu velho amigo Pablo Aimar, esse projeto custou). Mas logo Scaloni
sem com o craque só sobre futebol e só que, juntos, convocaram Walter Samuel avisa, na coletiva, que devíamos baixar a
o estritamente necessário. (um dos mais inteligentes defensores, ca- bola, não nos esquecermos de que era só
Agora penso que muitos anos foram paz de um jogo altamente criativo, tam- um jogo. A isso se seguiu uma partida
perdidos trabalhando sob o errôneo bém formado na era Pékerman). Como tranquila contra a Polônia, que valeu a
pressuposto de que se tratava simples- uma equipe, eles puseram mãos à obra passagem para as oitavas apesar do trope-
mente de levar a bola para Messi, espe- para convocar um grupo de jogadores jo- ço inicial, e uma tensa queda de braço
rando que, a partir daí, ele resolvesse vens, habilidosos e ávidos, sem Messi. com a Austrália, que repetiu a estratégia
tudo. Isso funcionava com Maradona, Com Lio, fizeram uma videochamada e da Arábia Saudita e voltou a nos mergu-
que se nutria de uma piada interna e de anunciaram que o esperavam de braços lhar no medo. O medo de ficar fora até
um conflito internalizado, e sozinho abertos. Mas começaram organizando o último minuto, numa Copa em que as
contra o mundo podia arrancar com fú- um grupo volátil, taticamente hiperflexí- partidas se prolongaram muito além dos
ria e beleza. Messi é evolutivamente vel, com revezamentos que garantiam a 45 do segundo tempo para atender às
mais avançado; como toda espécie bem- cobertura de todas as funções, não impor- novas tecnologias e às casas de apostas.
sucedida, ele se beneficia mais da coo- tando quem estivesse em campo, e com O jogo contra a Holanda foi épico,
peração que do conflito. Precisa de uma pleno entendimento entre os jogadores. quase mais épico que a final de todas as
equipe ao seu redor, um maquinário em Quando Messi se uniu ao grupo, já existia finais. O técnico mais jovem da Copa
perfeito funcionamento. Não precisa essa base bem azeitada, que, agora pode- contra o técnico mais velho. Louis Van
receber a bola; precisa saber onde os ou- mos afirmar categoricamente, era a fór- Gaal e seus titãs provocando os argenti-
tros vão estar. Assim, seu cérebro pode mula tão necessária. nos, os argentinos reagindo com agres-
computar o espaço, calcular as distân- sões infantis. Messi comemorando um

G
cias, ler sem olhar. Na Copa do Catar, anhar a Copa América no Brasil em gol com as mãos nos ouvidos, num gesto
isso ficou claríssimo num punhado de 2021 fortaleceu a confiança do elen- de Topo Gigio, evocando Juan Román
jogadas
Acesse suficientes. Como exemplo ilus-
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e a fé do povo nele. Messi já não Riquelme, que inaugurou essa tradição
trativo, seu passe para Nahuel Molina precisava provar nada. Com a argentini- dedicada àqueles que o criticaram (Mau-
no jogo contra a Holanda, no qual é dade confirmada, suas partidas seguintes ricio Macri, principalmente) como quem
impossível que Messi possa vê-lo, pois na Argentina foram festas de bom futebol. diz: “Não tô te escutando. Que foi que
seus olhos estão na bola e nos jogadores Ele aparecia sorridente, fruindo do seu você disse mesmo? Não tô te escutando.”
adversários que o cercam. Mas ele não jogo, e no campo se criou um clima de Mas Riquelme também foi um mestre
precisa vê-lo, porque sabe onde Molina amor e alegria que todos os que estáva- da bola lenta, dos ritmos cadenciados, da
vai estar a partir do momento em que o mos lá concordamos que não se sentia há inteligência de um tecelão de sonhos que
próprio Molina lhe passa a bola e indica muitos anos. As gerações mais jovens, trabalha sem pressa, e no Barcelona to-
para onde está indo. sem a carga e o fantasma de Maradona, pou com um Van Gaal estrategista e tá-
São esses os cálculos que Messi faz se apaixonaram definitivamente por esse tico que lhe disse: “Não quero você no
com seu “corpo que pensa”, como diz a grupo. Nós, os mais velhos, conseguimos meu time.” Os argentinos chutando bo-
cineasta Lucrecia Martel, que, com seu nos livrar da bagagem emocional que nos las contra o banco holandês. Os holande-
olhar cinematográfico, comenta uma to- sabotava e aceitar novas alegrias. ses incitando-os ao fracasso na hora de
mada panorâmica: “Com a lente de lon- Talvez a morte de Maradona tenha bater os pênaltis. Uma agonia desenca-
ga distância você vê a silhueta dele se dado a Messi o respiro necessário. Tam- deada por um gol planejado e executado
movendo enquanto todo o resto parece bém deixar o Barcelona foi uma espécie com perfeição no minuto 100. Já estamos
parado, como as ondas do mar vistas de de libertação. E, numa imagem muito entrando num tempo que não existe; o
um avião, não se distingue nenhum mo- forte, criada pelo jornalista Daniel Ar- centésimo minuto de uma partida de fu-
vimento além de Messi levando a bola cucci, a pesada mochila de Messi ficou tebol (não na prorrogação, mas ainda no
para o gol”; e a contrasta com um plano mais leve quando ele colocou dentro o segundo tempo do jogo normal). O so-
próximo: “Você dá zoom e literalmente título da Copa América. O fato é que frimento argentino se espalha dos jo-
vê a velocidade, a tomada de decisão, um o camisa 10 foi se ajeitando, adquirindo gadores sobre a marca do pênalti às
corpo que pensa.” Como disse Pep, “99% confiança em ser ele mesmo, reforçada arquibancadas do Catar, que vão se en-
das decisões que Lio toma são certas.” ao longo dos sete jogos na Copa do Ca- chendo de torcedores argentinos de todas
Por alguma razão, no Barcelona, ele tar. Quanto mais o comparavam a Ma- as nacionalidades não europeias do pla-
encontrou esse equilíbrio entre sua ha- radona, ou evocavam Diego através neta, até chegar às praças e casas da Ar-
bilidade superdotada, ou savant, e o dele, com mais força se impunha a pró- gentina, onde todos seguram a cabeça,
desempenho dos companheiros. E na pria identidade de Messi. põem a mão no coração, se levantam e
seleção argentina, apesar das finais, a A trajetória não foi fácil. Depois de dão as mãos, numa longuíssima corrente
vitória lhe escapava. um início marcado pela soberba, exces- de torcida rodeando todo o planeta.
Como diz o ditado, há males que vêm sivamente confiante, uma Arábia Sau- A Argentina se classifica para as se-
para bem, e, se algo de bom ficou da de- dita retrancada jogou um balde de água mifinais, e o alívio é tamanho que até
puração dos sentidos provocada pelo fria nas esperanças nacionais e deixou o próprio Messi perde a típica compos-
monstro enfim manifesto na Copa da a Argentina em choque ao derrotá-la. tura; gesticula desenfreado contra Van
Rússia, foi a presença de Lionel Scaloni A “goleada fake” sobre os sauditas foi se- Gaal, reclama do árbitro (não é um
na comissão técnica da Argentina. Scalo- guida por uma partida contra o Méxi- juiz qualquer, é um árbitro espanhol
ni, que na sua juventude de jogador tam- co, que terminou, como o escritor Juan com um histórico de decisões polêmi-

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cas entre o Real Madrid e o Barcelona) genial, tão genial quanto diabólico. Suas dissipar recentemente, até subir e se es- Eles estão “na idade de querer devorar o
e, finalmente, num repente totalmente observações eram sagazes, cheias de hu- fumar talvez para sempre a partir da- mundo”, disse Scaloni. E eles sabem
atípico, interrompe uma câmera ao vivo mor, ele inventava expressões que se tor- quele ¿Qué mirá, bobo. Andá pa’allá. como construir parcerias com Messi,
na zona mista para interpelar o “núme- naram parte da linguagem cotidiana de Foi como se Messi marcasse seu territó- conseguem o melhor dele e o melhor
ro 19” da Holanda. ¿Qué mirá, bobo? todos os argentinos. Até sua infame e rio, impondo-se como indivíduo. Ele deles próprios. Esses jovens velozes são
¡Andá pa’allá! (Tá olhando o quê, bo- célebre “mão de Deus”, para definir o mencionava Maradona com frequên- complementados por um Messi que ca-
bão? Sai pra lá!). primeiro gol contra a Inglaterra em 1986, cia, mas como que se distanciando. Ao minha (Menotti dizia que, quando um
A imprensa mundial interpretou esse foi uma resposta admirável por ser rápida lado, mas separado. “Diego está olhan- jogador caminha, talvez esteja pensando),
desabafo como se fosse o espírito de Ma- e espirituosa. Maradona, que nesse jogo do por nós”, “Diego vai nos ajudar” – mas domina. Seus velhos compadres,
radona manifestando-se através de Messi, brindou o mundo com o futebol mais um modo de dar significado ao outro. como Angelito Di María, compareceram
mas nada mais longe de uma “marado- completo possível, com uma porção de Ao mencioná-lo, tornava-o alheio. com toda a genialidade possível, quase a
nada” do que essa frase pronunciada minutos nos quais expôs tudo o que o Esse novo Messi, sem timidez ao se ponto de parecer acidental. Começam
por Lionel. Bobo é uma palavra inocen- futebol pode ser, primeiro com trapaça, expressar com suas próprias palavras, mesmo geniais, num primeiro tempo
te, muito da sua infância em Rosário, malandragem, ousadia e irreverência, e sem pudor em se mostrar como é, ca- com que nenhum ser humano sobre a
como observou o cineasta Andrés Di depois, como se fizesse parte da mesma paz apenas de pensar em futebol, cres- Terra deixou de se deliciar. E, de repente,
Tella, que também detectou aí uma ci- jogada, com beleza, astúcia, ginga e ex- ceu diante dos nossos olhos no Catar. assim como aconteceu contra a Holanda,
tação direta de Roberto Arlt: Rajá, tur- celência esportiva. A bela e a fera. O bem No jogo contra a Croácia, a semifinal, o técnico da França faz alterações ines-
rito, rajá, sendo que esse turro, na época, e o mal. Naqueles minutos, Maradona ele foi quase perfeito. Para um time peradas, provocadas pela estratégia ar-
significava algo como “otário”. Logo começaria a ser elevado a um status pra- que vinha melhorando passo a passo, gentina, mas que acabam sendo respostas
começaram a circular nas redes mil ticamente de divindade, venerado em superando as debilidades mais eviden- precisas. De 2 a 0, o placar vai para 2 a 2.
criações em cima da frase, como slogan todos os continentes, e, a partir daí, con- tes da partida anterior, a final represen- A Argentina faz 3 a 2, e respira. A França
em camisetas, ímãs, cartões, tatuagens quistaria um segundo triunfo mundial tava um único grande perigo: voltar responde com 3 a 3, e o povo todo volta
dos jovens. Um escritor fez versos refe- para a Argentina. Desta vez, política e àquela soberba da primeira partida. a segurar o fôlego. No minuto 122’43”, a
rindo-se a quemirá e andá pa’allá como socialmente menos tortuoso do que o E foi assim que chegamos à final das França, liderada por um Kylian Mbappé
duas palavras: Hay dos palabras tremen- primeiro, em 1978. Mas também contur- finais. Messi sereno. Acompanhado de que ainda vai nos encantar por muitos
das/Que se han echado a volar/Y han bado, por causa do gol de mão. sua equipe no campo de jogo, liderada, anos, quase faz mais um gol. O goleiro
dado la vuelta al mundo/En segundos Maradona é como uma imensa som- por sua vez, pelos técnicos no banco. Emiliano Martínez, “El Dibu”, “estende
nada más (Há duas palavras tremendas/ bra que pesa sobre os ombros de Messi, Um grupo humano que, ao longo das uma perna salvadora”, como diz o escri-
Que saíram a voar/E deram a volta ao como uma cobrança que ele recebeu semanas, foi conquistando corações; tor e jornalista peruano Jaime Bayly, de
mundo/Em segundos, nada mais). Nas- praticamente desde que começou a bri- no mundo e também na Argentina. Os Miami, e se estende também o acrésci-
ceu um novo dito. lhar com luz própria. Seu “dever” era jovens jogadores, que eram uma novi- mo e uma definição por pênaltis que nos
A engenhosidade linguística de Mara- dar à Argentina o que Diego lhe dera. dade no início do torneio (Julián Álvarez, levará, em breve, àquela bicicleta com
dona sempre esteve à altura do seu talen- Essa cobrança que parecia pesar sobre Enzo Fernández, Alexis Mac Allister) já câmera percorrendo o silêncio de Bue-
to futebolístico. Talvez ele inteiro fosse seus ombrinhos caídos começou a se são nomes conhecidos em todo o planeta. nos Aires sob o Sol da meia-tarde. J

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Governo do Estado de São Paulo, por meio da Secretaria de Cultura e
Economia Criativa, Instituto Tomie Ohtake e Cultural Pinakotheke apresentam

Até o dia 09 de abril


Entrada gratuita
Detalhe da obra Animais, 1971 VERIFIQUE A
Escola Pirambu CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA

Organização e idealização Apoio de mídia Realização

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questões estéticas

UM ARTISTA CONCRETO
Allan Weber leva a realidade e o imaginário da favela para o mainstream das artes plásticas

MATIAS MAXX

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O
motorista embica numa saída pés, com a palavra Fearless decomposta facção Terceiro Comando Puro (rival do nosso jeito pra colocar a caixa em cima
da Avenida Brasil que dá aces- em Fear, em um pé, less, em outro. “Sig- Comando Vermelho), que controla uma da casa da melhor forma possível.”
so à comunidade Cinco Bo- nifica destemido em inglês”, explica. “Fiz área conhecida como Complexo de Is- Nós que Sustenta na Raça faria parte
cas, em Brás de Pina, na Zona na época em que andava de skate, pra di- rael. “Numa favela tem vários setores”, de uma exposição coletiva de uma bada-
Norte do Rio de Janeiro. De zer que eu andava sem medo, tá ligado?” diz Weber. “Aqui, na Cinco Bocas, a par- lada galeria de arte na Zona Sul do Rio.
um lado da rua, o muro de uma transpor- Fearless é também o nome de um coleti- te em que eu moro se chama Tubarão, Na última hora, porém, a galerista barrou
tadora; de outro, um canal desses que na vo de skate do qual Weber fez parte. mas tem ainda o Larguinho, a Praça, a a exibição, com receio de que a escultura
cidade são chamados de “valão”. Poucos Com a ajuda de muletas, ele galga os Parte 2. Eu chamo tudo isso de Comple- tombasse e causasse um acidente. “Teve
metros depois, aparece a primeira barri- 29 degraus da escada íngreme de cimen- xo da Arte. Eu gosto muito desse nome gente que não levou fé que sustentava,
cada, uma grande caçamba de lixo, no to que leva até a porta da sua casa (o tér- – Complexo –, porque é usado em várias mas nós mostra isso na prática. É enge-
meio da rua de mão dupla. Moradores reo é ocupado por uma loja e pela avó), favelas. Eu penso que não só aqui, mas nharia marginal. O lugar que nós mora e
se aproximam e aconselham ao motoris- composta de uma sala, uma pequena em todas as favelas do Rio de Janeiro tem vive é que ensina”, garante o artista, que
ta que ele acenda a luz interna do carro cozinha, dois quartos e uma varanda. muito talento artístico. Só falta mesmo se classifica racialmente como branco,
e ligue o pisca-alerta, apesar de ser dia. Em março do ano passado, quando ele dar acesso e a ferramenta pra pessoa po- mas faz questão de ressaltar que sofre os
O carro contorna a caçamba com cuida- conversou pela primeira vez com a piauí, der desenvolver.” mesmos preconceitos que afetam uma
do para chegar à entrada da favela, que mais um andar estava sendo construído, Na laje, chama a atenção um conjun- pessoa negra moradora de favela.
fica, como outras da Zona Norte, em uma o quarto, e para ter acesso ao local era to de dez caixas-d’água de cor azul – re- O quarto que Weber divide com o ir-
área plana, e não em um morro. Seguin- preciso subir por uma escada de madei- dondas, com capacidade para 100 litros mão é um cômodo de cerca de 9 m²,
do por uma rua larga, com comércios e ra, dessas utilizadas em obras, que estava e cerca de 50 cm de altura cada –, em- com apenas uma janelinha. Nas paredes,
residências, calçadas estreitas e desnive- encostada na varanda. pilhadas uma sobre a outra na forma de o artista afixou estudos de suas próximas
ladas, chega-se então à casa onde o artis- Do último piso da casa, tem-se uma uma torre de 5 metros. É um trabalho obras. Na mesa, havia dois computado-
ta visual Allan Weber mora com os pais, vista estonteante da Zona Norte. De um de Weber, que ele intitulou Nós que res e uma pilha de cadernos de anota-
o irmão e (semana sim, semana não) lado, a Igreja de Nossa Senhora da Pe- Sustenta na Raça. “Eu coloquei uma ções e recortes. Encostadas num canto
com o filho mais velho, Tom, de 2 anos. nha, com seus 382 degraus, e um mar de caixa-d’água virada de cabeça pra baixo do quarto, estavam duas peças de um dos
É uma casa de três pisos construída morros cobertos pelas favelas que com- pra outra, pra mostrar que a gente, o po- trabalhos mais conhecidos de Weber,
pela própria família, e Weber está sentado põem o Complexo da Penha e o Comple- bre, o favelado, o trabalhador, tem que Traficando Arte, que causou sensação na
na calçada em frente, com a perna direita xo do Alemão, a maioria controlada pelo se virar: se virar pra estudar, se virar pra ArtRio, em setembro passado.
engessada até o meio da coxa, devido a um Comando Vermelho. Do outro lado, a trabalhar.” Ele mostra a miríade de cai- Nessa feira anual de arte, quem olha-
acidente de moto que sofrera havia dois Cidade Alta, comunidade facilmente lo- xas-d’água, de diferentes tamanhos e va de longe o estande da galeria paulista-
meses. O artista de 30 anos calçava um calizável, de dia ou de noite, por causa de modelos, instaladas sobre as lajes das na Galatea, que representa Weber, ficava
chinelo de alça larga, de modo que era um neon gigante da estrela de Davi colo- casas ao redor. “Se você reparar, elas surpreso com a visão de uma fileira de
impossível ver a tatuagem nos dorsos dos cado no alto de uma caixa-d’água pela não têm um padrão, nós tem que dar o fuzis encostados na parede. Ao se aproxi-

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Allan Weber com o cordão de ouro criado por ele: “Nunca imaginei que minha realidade pudesse estar dentro de galeria. Eu só via outras paradas, tudo branco, com paleta minimalista”

mar, o visitante descobria que os fuzis pode ser visto no pescoço do artista, que em tempos passados. “Aqui na favela a Ele preferia participar dos bate-bolas
eram formados, na verdade, por máqui- usa o cordão na maioria dos eventos de galera marola no [fica alucinada com o] durante o Carnaval. São grupos de pes-
nas fotográficas e lentes. Weber garim- que participa. Segundo a galeria Gala- meu nome porque a rapaziada não curte soas que saem pelas ruas na época da folia
pou as câmeras em feiras de antiguidade, tea, a peça custa 60 mil reais. muito nome brasileiro. Gosta de ficar com máscaras vistosas e assustadoras,
colou umas nas outras para que adquiris- A ArtRio foi um sucesso para Weber. inventando e fazendo grupo de zap com roupas elaboradas e muito coloridas, em-
sem a forma das armas e ainda customi- Ele teve 51 trabalhos vendidos durante nome gringo, tipo ‘família Thompson’, punhando um bastão de pau com uma
zou tudo com o escudo do Flamengo e a os cinco dias da feira, com valores entre ‘família Schultz’. Não é normal ver um bexiga pregada na ponta, que elas batem
palavra “Fé”, como fazem os próprios 8 mil e 58 mil reais (uma parte signifi- favelado com um nome desses.” no chão enquanto desfilam (daí o nome
traficantes com seu material bélico. Fi- cativa foi comprada pelo Instituto Inho- Na infância, Weber foi controlado “bate-bola”). Weber conta que é apai-
xou o valor de cada uma dessas obras em tim). Graças a esse resultado, Weber com rédea curta pelo pai. Ele recorda xonado por essa cultura desde criança.
40 mil reais – preço equivalente ao de conseguiu finalmente quitar a moto, as proibições repetidas por Miquéias: “É uma parada que eu tenho um amor
um fuzil no mercado negro. “Resolvi pagou as dívidas feitas pelo pai durante “Não quero tu metido em baile. Não muito grande. Nós vende tudo, vende
vender minha arma de câmera no valor a pandemia, terminou o quarto piso da quero tu na rua até tarde. Não quero tu câmera, videogame, vende a porra toda
de um fuzil porque é melhor eu estar casa e comprou uma égua preta, a Re- pichando muro. Já falei para tu parar pra botar um bate-bola no Carnaval.”
comercializando essa arma da arte do voada. Era um velho sonho do artista com essa porra: antigamente era latada Certa vez, depois do culto na igreja,
que uma arma de fogo, entendeu?” ter um equino, como dois grandes ami- na cabeça, hoje em dia é tiro. Não que- ele vestiu escondido uma fantasia de bate-
O dinheiro da venda do primeiro “fu- gos seus na Cinco Bocas. Agora, os três ro tu andando com fulano porque ele tá bola e foi festejar. Era uma fantasia pesa-
zil” criado por Weber, em 2021, foi usado vão cavalgar juntos, o que não é inco- roubando.” Religioso, o pai fez Weber da, com quilos de tecido. Começou a
para pagar parcelas atrasadas de sua moto mum em algumas favelas cariocas. frequentar regularmente um templo da chover. Molhada, a roupa ficou mais pe-
e confeccionar uma nova obra, Muita Assembleia de Deus. “Ele foi criado em sada ainda. “Minha coluna doía muito e

W
Luta, um grosso cordão banhado a ouro eber tem 1,75 metro de altura, favela também. Hoje em dia é conside- eu voltei pra casa. Aquilo pesou na minha
e cravejado de zircônias (uma imitação várias tatuagens pelo corpo, ca- rado um servo de Deus”, diz o artista. consciência. É um bagulho de Deus, tá
sintética de diamante), customizado no belo e bigode impecavelmente “Eu também sou servo de Deus, só que vendo? Tu tá na igreja, e quem tá na igre-
estilo das joias usadas por traficantes e cortados, “na régua”, como se diz na pe- gosto de fazer minhas paradas, e não ja não pode sair fantasiado. Carnaval é a
funkeiros cariocas. O pingente do cordão riferia. O pai e a mãe são cariocas: Mi- vejo coisa errada nelas. Deus não vai festa da carne, do corpo, do diabo.” No
consiste numa representação em minia- quéias da Silva Weber, de 51 anos, é deixar de me abençoar porque eu fiz dia seguinte, a dor aumentou e ele não
tura e baixo-relevo da comunidade Cin- motorista de aplicativos, e Elaine Weber, uma tatuagem. Muito pelo contrário.” conseguiu se levantar. “Aí eu fiquei acre-
co Bocas, encimada com as palavras de 48 anos, dona de casa. O artista não Na igreja, Weber chegou a fazer parte ditando nesse bagulho. Vendi o bate-bola,
“Da Arte” – o apelido de Weber na loca- sabe explicar de onde vem seu sobreno- de um coral, o Mocidade. “Tinha uma por causa dessa pressão da igreja de que
lidade. Muita Luta foi exibido no ano me alemão, mas especula que algum roupa, gravata, terno, todo mundo igual eu tava errado.” E abandonou o Carnaval.
passado na exposição Abre Alas 17 da membro da família paterna “deve ter se para cantar no coral, e aí eu não gostava Anos depois, Weber reencontrou nas
galeria A Gentil Carioca e atualmente enrolado com alguém do Sul do Brasil”, muito desse bagulho não. Só que eu ia.” redes sociais alguns amigos que faziam

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backstages de campanha da Osklen”, diz para exposições individuais no Museu


CAROL ITO_2023 ele. “Quando ia na turma do bate-bola, de Arte Moderna do Rio de Janeiro, no
eu fotografava. Quando fazia entrega de Palais de Tokyo, em Paris, e nas presti-
lanche, fotografava. Foi a fotografia que giosas galerias David Zwirner, em Lon-
fez as pessoas conhecerem meu traba- dres, e The Shed, em Nova York. Ele
lho, me seguirem nas redes sociais e ver tem particular interesse pela pintura
o que eu tinha pra mostrar.” figurativa, retratando o cotidiano da fa-
As trocas com os novos amigos foram vela e expondo o persistente racismo,
importantes para aproximar Weber da como na série Pardo É Papel, de 2017.
arte contemporânea. “Eu entrava na ga- Em 2018, Alexandre ilustrou a capa
leria, mano, e não entendia nada, nada. do álbum Gigantes, do rapper carioca
Mas via que era maneiro.” Pouco a pou- Abebe Bikila, o bk, um dos mais concei-
co, ele decidiu que seria artista também. tuados da cena carioca. O disco exalta a
“Comecei a fazer alguns bagulhos. Co- cultura negra e traz a música Novo Po-
mecei a desconstruir as rampas de skate, der, que diz: “Nós somos o novo poder/
tendo como referência os artistas que eu Apagando todos seus falsos heróis da
tinha conhecido na Zona Sul. Era uma história/Nós somos o novo poder/Quei-
parada meio minimalista, meio abstra- mando bandeiras e cuspindo em seu lí-
ta, meio assim.” Esse trabalho acabou se der”. Essa canção inspirou Alexandre a
perdendo, mas tanto Tepedino quanto criar, em 2021, uma exposição com o
Felipe Metsavaht dizem que, com ele, mesmo nome na galeria A Gentil Ca-
Weber abriu seu caminho na arte. “Fo- rioca, para onde levou vários músicos
ram as primeiras esculturas que fez. Ele e intelectuais negros a fim de discutir
ainda não sabia que eram esculturas, o racismo no mundo da arte. “O branco
mas eram”, diz Tepedino. se vê como o universal, o padrão. Isso
faz com que as exposições que envol-

E
parte de grupos de bate-bola. Ele já es- me comunicar era muito diferente da de- m março de 2019, Tepedino levou vem negros ou indígenas tenham sem-
tava fotografando e resolveu registrar a les. Eu já perdi emprego por causa da Weber a uma exposição de Edu de pre um viés quase que antropológico,
saída dos grupos. Conheceu a turma minha comunicação.” Barros, que dois anos antes havia uma coisa meio zoológico. Você não vê,
Animação, de Curicica, de estética mais Mesmo assim, ele se enturmou com criado com Maxwell Alexandre e Raoni por exemplo, uma exposição sobre
tradicional. “Eu me amarrei muito, por- uma rapaziada da Zona Sul e passou a Azevedo um coletivo de arte na comuni- como o identitarismo branco criou o
que era um bate-bola como os de anti- frequentar os mesmos lugares que os jo- dade da Rocinha chamado Igreja do Rei- bolsonarismo, que é um movimento
gamente, com a sofisticação de fazer vens da região. Um desses novos amigos no da Arte – ou ANoiva (grafa-se assim identitário branco”, diz Alexandre.
tudo à mão, tudo purpurinado, glitera- era Felipe Metsavaht, filho de Oskar mesmo, tudo junto). O coletivo recorria O ateliê de Alexandre fica numa loja
do, bordado. Porque hoje em dia tem Metsavaht, o criador da grife Osklen. a diferentes expressões artísticas, da pin- térrea de um prédio de classe média alta
muita sublimação.” Ele ajudou a tur- “Eu tinha uns 13 anos, era fissurado por tura à instalação, para falar de forma na Estrada da Gávea, via que conduz,
ma Animação a criar o desenho da casa-Acesse skate e ianosso
para a pista
Canalquase notodoTelegram:
dia de- muito t.me/BRASILTRASH
contundente sobre a experiência alguns metros acima, à entrada da Roci-
ca com que desfilaria em 2021. O tema pois da escola, onde encontrava o Allan, atual nas periferias, com seus conflitos nha. Indagado sobre qual foi a principal
era Albert Einstein, o formulador da teo- que estava saindo do trabalho”, conta de todo tipo. A exposição foi um choque mudança causada pela atividade artística
ria da relatividade. Mas, por causa da Felipe, que é designer e também artista para Weber. “Eu falei: ‘Caralho, mano, em sua vida, Alexandre responde: “Cara,
pandemia, ninguém saiu à rua. visual. “Ele e eu formamos um grupo que porra é essa? Os caras fazem arte foi poder morar sozinho.” Ele morava
Apesar da proibição determinada pelo com meus amigos da escola, o Fearless, com a minha realidade’”, conta ele. com a mãe, os irmãos, uma prima e uma
pai, Weber considera que a pichação – disputamos campeonatos, viajamos, e “Nunca imaginei que minha realidade sobrinha, em uma casa com dois quartos.
que nunca o fez sentir culpa, como o Car- aí começamos a fazer fotos e vídeos.” pudesse estar dentro de galeria. Porque “Um era da minha prima, que é deficien-
naval – foi seu primeiro contato com a A “fissura” pelo skate foi passando, e Fe- eu só via as outras paradas nas exposi- te, e o outro era um quarto coletivo, mas
arte. “A pichação tem um lance curato- lipe carregou o amigo para os desfiles da ções, tudo branco, de uma cor só, paleta também não cabia todo mundo. Vivendo
rial, né? Porque você tem que decidir a Osklen, cujos bastidores Weber come- de cor minimalista. Mas não via os bagu- assim, tu tá no coletivo o tempo inteiro.”
forma que teu nome vai ficar, onde vai çou a fotografar, inclusive na São Paulo lhos da minha realidade. Quando conhe- O artista Lucas Tolezano, conhecido
ficar, em que lugar você vai botar pra fi- Fashion Week. “O Allan era muito en- ci eles, isso meio que me despertou.” como cosme sao Lucas, de 31 anos, ou-
car mais tempo”, diz ele, que costumava graçado, extrovertido e criativo, criou as A Igreja do Reino da Arte ou ANoiva tro membro de ANoiva, conta que We-
tatuar as paredes da cidade usando o no- logos da Fearless. Mais tarde, juntou essa conduz cultos iniciáticos, com perfor- ber ficou “na maior pilha” ao encontrar
me Ala. A pichação e o skate o levaram criatividade às outras vivências da vida mances que fazem referências a rituais o coletivo, que prefere se apresentar como
para além dos limites da favela. “Passei dele e o resultado foi genial”, diz Felipe. religiosos. Para quem está de fora, pode um “projeto artístico aberto”. “O Allan
a frequentar encontros na Zona Norte Nessa época, Weber travou amizade parecer paródico, mas os integrantes começou a falar que tinha uma origem
e no Centro, conheci gente do rock, do também com o artista visual Zé Tepedi- seguem os ritos com seriedade, como periférica, porque achava que eu ia du-
reggae, pessoas de outras gerações.” no, que trabalhava como designer da membros de uma igreja de fato. Uma vidar disso por causa das pessoas com
Em 2012, quando estava com 20 anos, Osklen. “Allan se destacava no grupo de dessas performances, à maneira de um quem ele andava.” Weber mostrou para
Weber arrumou um emprego de esto- amigos skatistas pela irreverência e tam- batismo, envolve a descoloração dos ca- Lucas cadernos com seus trabalhos, e
quista numa loja de calçados femininos bém porque demonstrava ter afinidade belos dos jovens da comunidade. “Noi- o pessoal de ANoiva ficou interessado.
na Rua Visconde de Pirajá, em Ipanema. com a moda. Ele começou a se fazer va é sinônimo de Igreja no Evangelho: “Ele conseguiu absorver a estética dos
Depois do fim do expediente, para evitar muito presente dentro do dia a dia da a Noiva de Cristo. É até um lance meio moleques da Zona Sul de quem era ami-
o estresse do trânsito na volta para a casa, marca”, recorda Tepedino, que chamou machista: quando Jesus voltar, ele vai se go: tinha uma coisa de sofisticação no
ele fazia hora na praia e em uma pista de Weber para ser seu assistente pessoal, aju- casar com a Noiva”, comenta Alexan- que fazia e ao mesmo tempo uma pira,
skate na Lagoa Rodrigo de Freitas, onde dando nos trabalhos artísticos de seu ate- dre, que se diz uma pessoa “muito reli- uma maneira de fazer que era outra.”
ficava até por volta de dez da noite. “Evo- liê e em projetos para a grife, além de fazer giosa”. Por meio desse coletivo, vários Lucas recorda que, na primeira vez
luí muito rápido no skate e fui descobrin- serviços de motoboy. Os dois passaram a jovens artistas visuais das favelas cario- em que foi a um “dízimo” – espécie de
do coisas novas, pessoas novas”, recorda. visitar exposições juntos, e Weber chegou cas deixaram o anonimato e começa- mostra coletiva de ANoiva –, Weber le-
Nessa época, deixou o cabelo crescer a morar durante um ano na mesma rua ram a ser reconhecidos no meio. vou uma tábua de madeira com umas
novamente, como quando era criança. que o amigo, no bairro de São Conrado, Maxwell Alexandre, de 32 anos, ne- cuecas pregadas. “Ele falou que pegava
“Comecei a ser mais aceito pela galera. na Zona Sul, dividindo o aluguel da casa gro, cria e morador da Rocinha, é o ar- muito peso quando era moleque e acha-
Até as mulheres começaram a falar co- com outras pessoas. Nessa época, a fo- tista de maior destaque no grupo. Em va que tinha ficado com um saco caído.
migo e tal. Mas, quando a rapaziada des- tografia era o interesse dominante de pouco mais de cinco anos de carreira, Isso de alguma forma falava de um con-
cobria que eu era de Brás de Pina, ficava Weber. “Eu fotografei bastante: fotogra- teve um trabalho sem título vendido texto de infância periférica na real.” We-
meio que escaldada. E a minha forma de fei skate, as roupas dos meus amigos, os por 150 mil dólares e já foi convidado ber diz que essa criação é do tempo em

62
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O Governo do Estado

C
de São Paulo, por
que ele não trabalhava com arte. “Eu om a pandemia, eventos e produ- meio da Secretaria de
Cultura e Economia
queria levar algo, e aí fiz qualquer coisa ções da Osklen foram paralisados, Criativa, apresenta
e levei. Tipo assim, na intuição mesmo. e Weber perdeu seu trabalho
Os moleques da Noiva me despertaram como “frila fixo”. Ele estava morando
pra um negócio: que eu não precisava em São Conrado com Luiza, sua mu-
ter o estilo dos caras com quem eu an- lher na época, e precisou voltar para
dava. Eu podia ser eu.” O trabalho com a casa dos pais na Cinco Bocas, ago-
as cuecas também se perdeu. ra com a responsabilidade de cuidar
O artista Raoni Azevedo, de 33 anos, de um recém-nascido, o Tom. Comprou
que como Lucas trabalha atualmente no uma moto a prestação, começou a tra-
estúdio de Maxwell Alexandre, também balhar como entregador de aplicativos
admira a arte de Weber. “Ele conseguiu e teve o vislumbre de levar uma câmera
fazer um cruzamento muito foda com para registrar cenas de seu trabalho e

Cinthia
essas paradas que absorveu na época em dos colegas do delivery.
que morou em São Conrado. E tem mui- As fotos que Weber fez quando traba-
ta consciência disso”, diz. “O universo lhava como entregador chamaram a
da arte fetichiza a galera periférica toda atenção de Thyago Nogueira, o editor-
e quer que ela fique produzindo sobre chefe da Zum, revista de fotografia pu-
ser periférico. Só que isso provavelmente blicada pelo Instituto Moreira Salles. As

Marcelle
não vai durar muito tempo, vai saturar. imagens mostravam ruas e restaurantes
Allan já tá ligado nisso e está se progra- vazios, portarias melancólicas de pré-
mando para os próximos passos.” dios e o interior das mochilas térmicas
A fetichização dos artistas da periferia dos entregadores. Na edição nº 20 da
é um dos assuntos recorrentes nas conver- revista, lançada em maio de 2020, We-
sas dos artistas de ANoiva. “Agora existem ber foi o destaque de capa, com a série
avanços que eu acho que vão continuar. Tamo Junto Não é Gorjeta. “Weber con-
Você vai ver que todas as exposições estão correu a uma bolsa da Zum, não ga-
passando por esse lugar de representa- nhou, mas o trabalho dele me chamou
tividade, todas as galerias estão indo a atenção. Numa época em que todo
atrás de artistas pretos, novos e periféri- mundo se encontrava trancado em casa,

Cinthia Marcelle, Trouxa da série com-contra-de-desde, 2011, coleção da artista


cos. Mas isso às vezes é feito de uma ma- ele estava circulando e fotografando um
neira irresponsável”, reflete Alexandre, lado da cidade que muita gente não via”,
“É uma reparação que não é feita porque diz Nogueira. “Achei curioso também
a galera é legal, antirracista e preocupada. que, no orçamento do projeto dele para
É porque ficou feio. Tu vai olhar o time a bolsa, Weber incluiu as prestações da
dos caras e todo mundo na foto é branco. moto que tinha comprado.” Para o cura-
Então os caras tem que dar um jeito, para dor português
Acesse João Fernandes,
nosso Canal nodiretor Telegram: t.me/BRASILTRASH
não ficar tão escancarado assim.” Ele diz do Instituto Moreira Salles, Weber foto-
que só vai acreditar em verdadeira repa- grafa a partir da sua vida, daquilo que
ração da dívida histórica do Brasil com faz para sobreviver. “Ele descobre nessa
os negros quando os brancos do mundo sua vida muita coisa que o faz se relacio-
da arte não apenas “colocarem o dinhei- nar com o mundo, de uma forma muito
ro na mesa”, mas abrirem mão do capital particular. E nos faz ver esse mundo.”
simbólico. “Porque lá na frente, quando Foi justamente isso que Weber pre-
os artistas negros chegarem a algum lu- tendeu ao publicar, por conta própria, o
gar, vai ter um curador ou diretor de mu- livro de fotos Existe uma Vida Inteira
seu, branco, saindo como benfeitor ou que Tu Não Conhece, com imagens do
aliado da causa negra. Isso é pura vaida- delivery e de outras atividades na favela.
de, pois, se o cara é aliado de verdade, por “Fiz porque tinha muita coisa daqui, da
que ele quer o nome dele lá? Justamente Cinco Bocas, que a rapaziada das gale-
porque não precisa de grana e está dispu- rias, meus amigos playboy não conhe-
tando o capital simbólico e intelectual.” ciam. Ninguém sabia soltar pipa, não
No fim do ano passado, Alexandre sabia o que era bate-bola...” Para fazer o
protagonizou uma agitada polêmica livro de 216 páginas, Weber recorreu a
com o Instituto Inhotim, ao exigir a re- empréstimos de colegas, que em troca
tirada de uma obra sua da mostra Qui- recebiam um exemplar. A primeira tira-
lombo: Vida, Problemas e Aspirações do gem teve duzentas cópias. Depois, ele
Negro, que celebrava o legado do artista fez mais cem, vendendo cada livro por
e pensador negro Abdias do Nascimento 150 reais. O próprio autor fazia a entre-
(1914-2011). Ele discordou do modelo de ga do volume, de moto.
exposição, com 34 artistas negros, com- Para embrulhar os volumes, ele teve a
parando essa mostra com a que se reali- ideia de usar filme plástico, desses co-
zava em paralelo, também no Inhotim e mumente usados para embalar alimen-
em homenagem a Abdias do Nascimen- tos. Mas, como eram centenas de livros,
to, mas composta por apenas três artis-
tas brancos. “Sempre fico constrangido
precisou de ajuda para o trabalho. “Aí eu
falei: vou botar os menor pra endolar o
14.12.2022 – 26.2.2023
com exposições temáticas sobre o ne- livro. Vai ser irado”, recorda. A movi-
gro”, escreveu o artista. “Quando final- mentação chamou atenção na favela.
mente decidem dar algum espaço [para Um garoto que costumava vender drogas
artistas negros], enfiam todos em uma procurou Weber. “Que porra é essa?”,
galeria só, em uma exposição temporá- perguntou. O artista respondeu: “Os me-
ria.” Depois de muito resistir, Inhotim nor tão trabalhando na endola do meu Realização

retirou da mostra a obra de Alexandre, trabalho.” O menino disse: “Mas tu paga


que faz parte do acervo do instituto. pra fazer isso?” Naquela tarde, o garoto
Av. Paulista, 1578
masp.org.br

piauí_fevereiro 63
5 de 6 26/1/23 PROVA FINAL

riferias para proteção do Sol e da chuva. a pessoa da Zona Sul do Rio vá até a fa-
CAROL ITO_2023 Ele diz que, na favela, quando as pessoas vela para conhecer os artistas que produ-
veem durante o dia uma lona sendo er- zem lá e na Baixada Fluminense. E faz
guida, já sabem que vai haver algum com que a pessoa veja essa produção fora
baile, pagode ou festa à noite. “A lona é do contexto da Zona Sul, ou seja, veja no
um elemento muito comum usado pela próprio local em que os artistas estão vi-
rapaziada da comunidade como sinal de vendo e produzindo”, diz o curador To-
acolhimento, como cobertura de um más Toledo. Segundo a curadora Clarissa
bagulho que vai acontecer. Eu levei isso Diniz, existem nas favelas cariocas vários
pro Parque Lage porque queria fazer espaços culturais, residências e ateliês,
algo diferente de botar mais uma coisa mas só a Galeria 5bocas tem a intenção
pendurada na parede, queria fugir um de comercializar obras.
pouco desse clichê. Eu pensei: ‘Caralho, Quando a piauí visitou a galeria pela
eu tenho o Parque Lage pra ocupar.’” primeira vez, em abril passado, as pare-
Ele se concentrou, principalmente, des estavam pintadas de vermelho, e a
nas formas geométricas das lonas colori- exposição em cartaz era de seus colegas
das, sobre as quais já tinha feito alguns da Escola de Artes Visuais do Parque
estudos, e no impacto que essa referên- Lage. Na segunda visita, em setembro,
cia da favela teria no pátio interno do havia uma coletiva com os artistas Zé
aristocrático prédio do Parque Lage, Tepedino, Malvo, Primo da Cruz, Paty
onde Glauber Rocha filmou uma cena Fudida, Mayara Veloso, Caio Luz e
famosa de Terra em Transe. “Eu tirava Andy Vilela. Uma lona tinha sido mon-
muita foto de lona por causa das formas tada em frente, protegendo um “pare-
dela, da geometria e das cores. Fui pes- dão” de caixas de som de baile funk.
quisar na internet fotos feitas de cima Moradores, artistas e pessoas do mundo
das lonas, e era difícil achar. A maioria das artes plásticas dançavam e troca-
era de reportagem falando mal do baile, vam ideias. Homens armados, com cor-
trocou o trabalho na boca de fumo pelo usadas para fazer o chamado “cabeli- tipo ‘baile do tráfico’ e ‘aglomeração ile- dões de ouro, apareciam de quando em
de endolação do livro. “Isso pra mim foi nho na régua”. gal na pandemia’. Concluí que seria quando, observavam, saudavam e eram
a prova de que o caminho é esse mesmo: Esse novíssimo diálogo com o concre- muito brabo poder colocar uma lona saudados pelas pessoas da comunidade.
nós não precisa mexer com drogas, com tismo marca a obra de Weber e é o que o num lugar em que não poderiam falar Na terceira visita, em novembro, a
arma, com nada”, conclui o artista. distingue na vibrante onda de talentosos que era ‘baile do crime’”, diz Weber. Ele galeria estava apresentando a exposição
“Endola” é o nome dado no Rio de artistas surgidos nas periferias brasileiras, também ficou interessado na arquitetura individual Mundo sem Paz, de Primo
Janeiro ao empacotamento de drogas grande parte deles figurativistas. Toledo do Parque Lage. “A gente sempre vê a da Cruz, com curadoria de Clarissa Di-
para a venda no varejo. As embalagens de acrescenta que Weber, ao trabalhar os lona amarrada num poste, num telhado, niz e Maxwell Alexandre. Morador da
maconha costumam vir envolvidas por elementos de seu dia a dia, mostra o im- e aí eu tive esse fetiche, não sei se é essa Rocinha, Cruz tem uma história trági-
filme plástico e com uma etiqueta queAcesse pacto danosso
violênciaCanal
na favela eno
da explora-
Telegram:a palavra, mas tive vontade de criar esse
t.me/BRASILTRASH ca. Passou dez anos na cadeia, entre
indica o nome da facção criminosa ção da mão de obra, mas por meio de contraste da lona com aquela arquitetu- idas e vinda, acusado de tráfico de dro-
que a está vendendo, seu território, o pre- operações bastante específicas que o le- ra que não era de favela, é arquitetura gas e outros crimes. Ao sair, encontrou
ço e algum slogan ou ilustração. A gíria vam para a esfera de certa arte concei- de séculos passados, um bagulho boni- na arte uma chance de sobrevivência e
vem da época de lançamento do Plano tual. “Na cena carioca atual, diversos tão mesmo, europeu, colonial.” Para a criou esculturas de fuzis e armas, feitas
Real, nos anos 1990, quando a trouxinha artistas estão utilizando a pintura figura- professora Clarissa Diniz, os alunos do de madeira, e pinturas que retratavam
mais barata de maconha custava 1 dó- tiva como forma de representação, o que Programa Formação e Deformação es- a rotina do narcotráfico e certo imagi-
lar. No linguajar carioca, “dólar” virou é algo muito interessante e válido, mas o tavam lá para deformar a escola, “que nário evangélico. Morreu em 2020, aos
“dola” – e a função de separar, pesar e Allan faz uma estratégia mais própria e tem um legado ainda muito elitista, 36 anos, oficialmente vítima de atrope-
empacotar as drogas passou a ser co- particular de usar fotografias, objetos, muito branco”, ela diz. “O Allan, que é lamento. Além da exposição, o longa-
nhecida como “endolação”. criar objetos e fazer pinturas sem pintar, extremamente sagaz, sacou isso.” metragem Primo da Cruz, de Alexis
O livro não seria a única “endola” fei- muito a partir de operações conceituais.” O artista não esconde o orgulho de Zelensky, foi projetado sobre um lençol
ta por Weber. Em outro trabalho da série Em 2021, Weber ganhou uma bolsa ter criado um baile funk no Parque esticado no prédio em frente à galeria.
Traficando Arte, ele enrolou telas retan- para o Programa Formação e Deforma- Lage, um dos principais pontos turísti- Antes de sua morte misteriosa, Cruz
gulares idênticas em várias camadas de ção, na Escola de Artes Visuais do Par- cos do Rio e uma conceituada escola de queimou várias de suas obras e foi mo-
filme plástico e depois colocou uma ao que Lage, no Rio de Janeiro. Na ficha artes. “No dia da exposição, quando co- rar em uma comunidade religiosa.
lado da outra, formando um conjunto de de inscrição havia um espaço em que o meçaram a chegar as caixas de som e a

E
“endolas” dentro de uma moldura. A obra candidato poderia acrescentar o que lona, só quem se identificava com isso m frente à galeria de Weber, um
quase minimalista demonstra a predile- quisesse, e ele escreveu o título de seu eram as pessoas de comunidade que tra- homem beirando os 40 anos entre-
ção do artista por construções geométri- livro – Existe uma Vida Inteira que Tu balham lá, as tias da limpeza, os garçons, ga a ele uma camiseta vintage do
cas abstratas ou tendentes ao abstrato, Não Conhece. “Quando a gente viu essa a rapaziada que só entra lá a trabalho. time de futebol Cinco Bocas. A peça de
como se vê também em Régua – outro frase foi algo que nos tocou muito fun- Essas pessoas normalmente nunca estão roupa tem a mesma logomarca que o ar-
trabalho da série Traficando Arte –, em do”, conta Clarissa Diniz, curadora da lá para curtir e ficaram perguntando: tista ostenta em um anel e que aparece
que Weber pregou em uma tela, em per- escola e uma das professoras do curso. ‘Vai rolar um baile aí?’ É porque ele viu no letreiro de sua galeria: cinco linhas que
feita simetria, centenas de lâminas de “Ele estava ali não só para acessar um um bagulho que é da realidade dele e se encontram, lembrando uma estrela ou
barbear, criando uma estrutura visual mundo que não conhecia, mas para fa- que não imaginava ver lá dentro.” um asterisco. O símbolo representa uma
“rendada”. “Allan tem um interesse gran- zer a gente acessar um mundo que a No mesmo ano de 2021, Weber ficou praça onde cinco ruas se encontram – as
de pelas experimentações no campo da gente não conhecia, que a escola ou incomodado com o fato de seus parentes “cinco bocas” que batizam a comunida-
geometria, o que é muito interessante, que certa tradição da arte não conhe- e amigos da comunidade não se sentirem de. Nas mãos de Weber, essa camisa vai
pois ele dialoga com a tradição do con- cia. E foi isso que ele fez.” à vontade de ir até uma galeria de Ipane- integrar um acervo de memória do bairro
cretismo na arte brasileira, mas a partir Ao fim do curso, haveria uma exposi- ma onde ele estava expondo seus traba- ou se transformar em alguma obra. Com
de elementos do cotidiano dele”, diz o ção coletiva chamada Rebu, com abertu- lhos. Resolveu então transformar em frequência, ele aparece em suas redes
crítico e curador Tomás Toledo, um dos ra em 20 de dezembro de 2021. Como galeria um espaço de 15 m 2
que havia sociais vestindo camisas de futebol de
sócios da Galatea, que conheceu o artis- seu trabalho pessoal, Weber montou um alugado na Cinco Bocas para ser seu ate- várzea ou grandes times, customiza-
ta quando era curador do Museu de Arte baile funk, com direito a um paredão de liê – e trouxe a exposição A Gente Precisa das com frases como “Fé nos trabalho” e
de São Paulo (Masp). No caso de Régua, equipe de som e às tradicionais lonas Se Ver para Acreditar que É Possível para “O Estado abandona, a arte acolhe”.
o elemento do cotidiano são as lâminas bicolores, parecidas com as de circo, que o novo local, que ele chamou de Galeria Seu time de coração é o edf, no qual
de barbear, que nas comunidades são são instaladas em vários eventos nas pe- 5bocas. “A galeria de Weber faz com que ele já jogou. É uma das três equipes da

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comunidade, junto do Cinco Bocas e do jogar essa porra fora’”, recorda Weber. Neuenschwander, feita na década de cheios de exclamações: “Você só faz
Tubarão. Weber conta que o edf – sigla Enquanto varria os estilhaços, ele teve a 1990. “Era um trabalho em que ela pe- merda!”, “Essa moto tá mandada”, “Va-
de Esquadrilha da Fumaça – não nas- ideia de fazer uma instalação com aqui- gava um pó branco, varria e fazia uma mos pro hospital agora”, “Ai meu Jesus!”.
ceu do futebol, mas da pichação. “Os lo. “Peguei o vidro e coloquei como se figura geométrica com esse pó. Em volta Depois de alguns minutos, ele se le-
caras da antiga pichavam e criaram a fosse uma areia por cima de alguém en- você tinha o vestígio do pó, e dentro ti- vantou, com a ajuda das muletas, e sen-
sigla edf, por causa da fumaça do spray. terrado.” O resultado foi a obra Nada de nha essa materialidade do pó varrido tou no meio-fio, enquanto o redemoinho
A rapaziada curtiu o nome, porque todo Tão Diferente para Nós, um amontoado como uma figura geométrica”, ela des- de pessoas se desfazia. Voltou a encarar
mundo fumava maconha, pichava e jo- de estilhaços de vidro na forma de uma creve. “Me lembrei desse trabalho da Ri- os 29 degraus até sua casa, de muletas,
gava bola. Isso foi na época dos nossos cova rasa, com um fragmento de bala de vane ao ver o do Allan, que tem uma agora com o gesso amassado, na altura
pais. Todo craque da favela jogou nesse fuzil em cima. questão formal muito forte. Ele quase dá do calcanhar. “Eu já tinha um raio x
time, inclusive bandidos”, conta. Nessa O trabalho foi adquirido pela Coleção novo significado àquela situação em ou- marcado pra amanhã. Mas te falar: tá
época, o emblema do time era uma folha Calmon-Stock, dos colecionadores Ro- tro lugar, de outra forma, falando do que doendo pra caralho!”, disse à piauí.
da maconha, mas, como participavam berto Calmon e André Stock, que reúne está acontecendo hoje, nessa sociedade.” O diagnóstico veio na tarde do dia
dele pessoas ligadas às igrejas e que não obras de mais de cem artistas contempo- Embora ainda não conheça a Cinco Bo- seguinte, transmitido por Weber em
queriam carregar essa logomarca no pei- râneos, como Leda Catunda, Cabelo, cas, Varejão mantém contato com Weber sua página no Instagram: apesar do
to, instalou-se a polêmica. “Um dia saiu Julia Debasse, Barrão e Arnaldo Antu- pelas redes sociais. Ela se lembra de que, afundamento no gesso por causa da
num jornal: ‘Time de futebol faz apolo- nes. Curador da Escola de Artes Visuais quando estava preparando a montagem pancada, os ossos estavam intactos, e a
gia...’ Isso eu devia ter uns 11, 12 anos. do Parque Lage, Ulisses Carrilho diz que de uma retrospectiva na Pinacoteca de fratura original bem calcificada. Mas só
Hoje em dia, o time ainda se chama edf, Nada de Tão Diferente para Nós pode ser São Paulo, fez uma postagem em uma se livraria do gesso um mês depois, e
mas não tem mais a folha de maconha.” lida à luz da história da arte. “Essa reu- rede social, com fotos do trabalhoso trans- conservando as muletas.
Um jovem senta para conversar com nião de ruínas e escombros que ele repro- porte de uma obra monumental para fora Ele se livrou do gesso na perna, mas
Weber, fumando um baseado. O artista duz num formato retangular poderia ser de seu ateliê. Weber deixou um comentá- não do gesso em si. Na primeira vez que
não fuma, nunca gostou. A piauí pergun- análoga ao trabalho de um artista mini- rio. “Ele escreveu assim: ‘Foguete não dá Weber se acidentou com a moto, em
ta ao rapaz o que acha da arte de Weber, malista como o norte-americano Robert ré.’ Amei. Isso é que é precisão poética.” janeiro do ano passado, o artista Edu de
e ele responde na lata: “É mídia!” Passam Smithson [1938-73], mas Allan faz isso Barros – do projeto ANoiva – logo tratou

P
alguns homens armados em uma moto. com outra energia, com outra pertinên- or volta das oito da noite do dia de customizar o gesso da perna do ami-
A ocupação do Terceiro Comando na cia”, diz. No site da Calmon-Stock, a 20 de abril passado, Weber fechou go. Fez uma pintura parecida com um
Cinco Bocas é muito recente e ainda está obra é analisada assim: “O blindex, ele- a galeria e voltou para casa. Ao che- afresco, representando Weber como
em curso, por isso há tantas barricadas na mento arquitetônico do cubo branco, gar, resolveu montar sua moto, mesmo um Minotauro carregando uma mochi-
comunidade e eventuais confrontos. Em como pedaço do ‘corpo’ fuzilado da gale- estando com a perna engessada. Com la do iFood, e a namorada, Thauane,
um deles, ocorrido de madrugada, o por- ria, o que é? É ainda a galeria? Ou galeria algum esforço, subiu no veículo e, quan- que estava grávida, como um anjo. Em
tão da galeria de Weber foi atravessado transformada em mausoléu da arte?” do resolveu descer uma rua, caiu para outubro, nasceu o filho do casal, Valen-
por dois disparos de fuzil, que estraçalha- A artista carioca Adriana Varejão, fã a direita. A moto tombou sobre o gesso. tim. O gesso, após ser retirado da perna,
ram o vidro blindex. “E aí eu falei: ‘Cara- do trabalho de Weber, traça um paralelo Em poucos minutos, amigos, parentes e foi transformado em obra. Já existem
lho, que merda, mano. E agora? Vou dessa obra com outra, da mineira Rivane vizinhos se amontoaram ao redor dele, colecionadores interessados. J

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ano 26 • fevereiro 2023 • edição 290 • R$ 30,00 • revistacult.com.br

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ENTREVISTA KABENGELE MUNANGA: “A MESTIÇAGEM FOI IDEOLOGICAMENTE MANIPULADA PARA NEGAR O RACISMO NO BRASIL” revistacult.com.br
LITERATURA LIVRO REÚNE POESIA COMPLETA DE ADALGISA NERY, “INDÔMITA” NA LITERATURA E NA POLÍTICA
piauí_fevereiro 65
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memória

AS ESTRADAS DE JOSÉ
Escrevo entre duas devastações: uma delas acomete o corpo de meu pai e a outra é coletiva

JOSÉ HENRIQUE BORTOLUCI

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S
eu nome é José Bortoluci. Em O caminhão trazia meu pai, roupas carados que inundavam a tevê nos anos Minha mãe detestava que meu pai
Jaú, todos o chamam de Didi, sujas e pouco dinheiro. Minha mãe se 1980 e 1990, e que até hoje me provo- fumasse dentro de casa. Por isso, quando
mas na estrada ele era o Jaú. angustiava e trabalhava dobrado, cui- cam uma incômoda tentação que brota estava em Jaú, ele passava boa parte do
Nasceu em dezembro de 1943, dando dos dois filhos e costurando pa- como um eco desafinado daqueles de- tempo sentado em um degrau da escada
na zona rural dessa cidade do ra fora. Sou o filho mais velho. Entendi sejos passados. que dava acesso, pela cozinha, ao peque-
interior paulista, quinto filho de uma muito cedo que nossa vida familiar era Boa parte das roupas que eu e meu no quintal que ligava nossa casa à dos
família de nove irmãos. assombrada pelo risco da pobreza ex- irmão usamos durante nossos primeiros meus avós. Aquele degrau, espaço limí-
Meu pai estudou até a quarta série, trema, pela inflação desenfreada, pelo vinte anos de vida foram de segunda trofe entre o dentro e o fora, concretiza-
trabalhou desde os 7 anos no pequeno adoecimento precoce. mão, doadas por um tio ou por amigos va o estado incerto de meu pai na minha
sítio da família, mudou-se com eles para Nós nos habituamos a viver em um da família, ou compradas em bazares de vida: era parte essencial dela e, ao mes-
a cidade aos 15. Tinha apenas 22 anos estado de incerteza, submetidos à ur- pechincha. Minha mãe, que costurava mo tempo, um visitante sazonal que de-
quando se tornou caminhoneiro. Eu era gência das contas prestes a vencer e aos para ajudar com os gastos da casa, fazia sorganizava o ritmo dos nossos dias.
novo, mas tinha coragem de leão.* Co- limites estreitos do que podíamos co- questão de que elas estivessem impecavel- As cobranças financeiras nunca ces-
meçou a dirigir caminhões em 1965 e se mer, conhecer, desejar. Nunca conhe- mente limpas e reformadas. As mais no- savam. Pela casa circulava um terror si-
aposentou em 2015. Era outro país esse cemos a fome, em alguns momentos vas eram “roupas de ir à missa”, as mais lencioso associado à expressão “cheque
que ele percorreu e ajudou a construir, graças à ajuda de vizinhos, amigos e velhas, para usar nos dias de semana. especial”, que eu devo ter aprendido já
mas que parece familiar nos últimos parentes, que vinham em socorro quan- Nossa casa era pequena e abafada, nos meus primeiros anos. E, mais que
anos: um país tomado pela lógica da do a renda da minha família se esgotava construída aos poucos no fundo da casa qualquer outra, “dívida”: palavra sufocan-
fronteira, da expansão a qualquer cus- e as cobranças feitas a meu pai estavam dos meus avós maternos. A cozinha sem te, que se espalhava pelos cômodos feito
to, da “colonização” de novos territórios, no auge. Lembro-me, contudo, de me forro alagava com qualquer chuva mais a fumaça dos cigarros. Essa palavra che-
da vandalização ambiental, da vagarosa acostumar com aquela espécie de intensa. Era nesse cômodo que eu e gava de caminhão e ficava por lá, mesmo
construção de uma sociedade de consu- “meia fome que você sente com o chei- meu irmão estudávamos depois da es- depois da nova partida de meu pai. Até
mo cada vez mais desigual. As estradas ro de jantar vindo das casas das famílias cola, e que minha mãe trabalhava o dia hoje, a palavra “dívida” me traz à men-
e os caminhões ocupam lugar de desta- mais abastadas”, como descreveu a poeta todo. A trilha sonora dessa casa vinha te o cheiro de cigarro e a imagem da-
que nessa fantasia de nação desenvolvi- dinamarquesa Tove Ditlevsen em suas dos ruídos de sua máquina de costura e quele degrau da velha casa da infância.
da na qual florestas e rios dão lugar a memórias. Uma meia fome insistente, das canções do rádio, sintonizado em

N
rodovias, garimpos, pastos e usinas. que costumamos menosprezar, dando- alguma estação local. Muito trabalho, ão há quase nenhum registro escri-
lhe o nome enganoso de “vontade”. No pouco dinheiro, não havia tempo para to desses cinquenta anos de estra-
* Os trechos em itálico são falas de José Bortoluci,
meu caso, essa sensação era atiçada pe- desfazer o que foi tecido: nesta história da de José Bortoluci – apenas dois
pai do autor do texto. las propagandas de iogurtes e cereais açu- não existem Ulisses ou Penélopes. cartões-postais enviados à minha mãe e

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CAIO BORGES_2023
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Ilustração a partir de uma foto do aniversário de 1 ano do autor: “Diz meu pai: ‘Com cinquenta anos de caminhão, de estrada, posso dizer com certeza: caminhoneiro é um herói esquecido’”

I
algumas notas fiscais amareladas na ga- São poucas também as fotografias pelo bronzeado desigual, típico dos moto- solado em casa por causa do colapso
veta. Mas ele se lembra de muita coisa, em que meu pai aparece em suas via- ristas de caminhão, que ele ostenta até do sistema de saúde na região de
e suas madeleines despontam quando gens nesse período de cinco décadas. hoje, apesar de sua pele ter desbotado e Jaú, uma das mais afetadas pelo co-
menos se espera: uma imagem na tevê A maioria das fotos registra sua presen- estar pontilhada de manchas e cicatrizes. ronavírus naquele triste início de 2021,
faz com que se recorde de quando ficou ça em datas comemorativas, quando es- Uma mãozinha sobre seu braço, outra so- meu pai parecia animado em contar
dias seguidos sem ter o que comer, atola- tava com a família em Jaú. bre os dedos da mão que me segura. Essa suas histórias. Comecei a registrá-las
do em uma estrada lamacenta do Sul do Em uma dessas imagens estamos nós é das poucas fotografias em que minha em áudio em janeiro daquele ano, em
Pará; qualquer notícia de acidente grave dois na cozinha da nossa casa. É meu ani- mãe não aparece (ela teria tirado a foto?). noites quentes depois do jantar, nas su-
no rádio abre uma caixa de histórias so- versário de 1 ano, em novembro de 1985. Alguns dias depois da festa, meu pai cessivas visitas que fiz a ele e a minha
bre os muitos desastres que ele viu e o Ele me segura no ar, enquanto primos voltaria à estrada e só regressaria a Jaú se- mãe. Ele preferia conversar comigo no
punhado que sofreu; histórias de aldeias, cantam parabéns ao redor do bolo. Balões manas mais tarde, talvez no Natal, ou no quintal, deitado numa velha rede que
de caçadores, de paisagens tropicais dis- coloridos, copos plásticos azuis, uma gar- nascimento do meu irmão, dali a sete comprou nos anos 1970 em alguma ci-
tantes, de companheiros – alguns leais, rafa de vidro de Coca-Cola compõem a semanas. Num diário que minha mãe dade do Piauí e que o acompanhou por
outros não, a maioria deles já falecidos. cena. As mãos dele me seguram firme, e manteve, desde o início do namoro com décadas em suas viagens.
Narrativas que vão desfilando e se re- eu pareço confiante; mantenho o corpo meu pai em 1976 até pouco depois do meu Filho, essa conversa que nós tamo ten-
compondo sem o apoio de fotos ou ano- ereto, apenas com as pontas dos pés tocan- nascimento, ela descreve esse tempo es- do aqui, você vai ter como lembrança,
tações. Resta a memória de um senhor do levemente a mesa com meus minúscu- garçado pela distância: “Didi, como eu te porque cê sabe que logo o pai vai embora.
de quase 80 anos, já um tanto embara- los tênis vermelhos. Olho para a câmera, amo, repetiria isso milhões de vezes se Depois de uma dessas gravações, ele
lhada pelo tempo. meus olhos muito abertos e atentos, en- você estivesse todo dia aqui juntinho de se perguntou em voz alta se conseguiria
Eu vi tanta coisa, filho. Devia ter tira- quanto ele olha para mim. Meus cabelos mim. Mas sei que isso é quase impossível, ver o livro publicado. Eu tenho me inda-
do foto, ter escrito. Celular, essas coisas eram mais claros do que são hoje, e os dele pois tenho de trabalhar e você também, gado o mesmo desde dezembro de 2020,
assim, não tinha. Não existia não. A úni- ainda não tinham perdido a cor: estão para que possamos chegar até aquele ideal quando ele me contou pela primeira vez
ca coisa que dava era pra ter fotografado penteados para trás, compridos, brilhantes que pensamos. A distância traz a saudade, sobre as dores estranhas que sentia no
com uma Kodak, essa máquina de foto- e besuntados de Trim, a pasta de pentear mas nunca o esquecimento.” abdome e sobre o sangue que aparecia
grafia branco e preto, mas nunca tive. que ele usou por décadas, até decidir re- Não sei qual é esse ideal de que ela fala em suas fezes havia algumas semanas.
Porque se eu tivesse gravado tudo que eu centemente que não usaria mais e mante- e se hoje ela acredita que o tenha alcan-

N
fiz, você ia sentir o maior orgulho do seu ria os cabelos curtos – o mesmo corte do çado. Essa anotação é de 3 de junho de o momento em que escrevo, no iní-
pai. O que é meu é tudo aquilo que eu vi meu avô na velhice. Minhas mãos bran- 1976, mas o tom empregado nessas linhas cio de 2021, meu pai, aos 78 anos,
e gravei na memória. Então a única coisa cas, pequenas, pousam na pele muito se repete dezenas de vezes nas páginas do está começando o tratamento de
que posso fazer é tentar recordar e contar. queimada de Sol de meu pai, marcada caderno, nos nove anos seguintes. um câncer de intestino. O tumor brotou

piauí_fevereiro 67
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“médias móveis”, “proteína Spike”, “imu- Depois dos quarenta a vida passa rá-
CAROL ITO_2023 nidade de rebanho”, “janela imunológi- pido, mas tá voando desde que eu soube
ca” e tantas outras. No caso de minha da doença.
família, fomos também cercados por pa- “Cardiopata grave”, registram os
lavras em rápida multiplicação que passa- prontuários; “seu pai é um paciente
ram a circular pelo corpo do meu pai, a complicado”, dizem os médicos que o
se ligar a ele e a lhe dar novos contornos. atendem; “com o senhor nós temos me-
Depois daquele termo inaugural, nos opções de tratamento”, repete o
outras palavras e expressões foram se agre- oncologista em todas as consultas.
gando: “estoma”, “colostomia”, “marca- Memórias emergem e se entrelaçam:
dores tumorais”, “pet-scan”, “tumor ele se lembra de que seu pai e dois ir-
colorretal”. E “neoplasia maligna”, a mãos morreram de câncer de intestino.
mais cruel de todas, talvez por remeter Minha vó Maria também teve. Ela
a uma espécie de drama moral, ou por operou do tumor no dia da inauguração
ser a mais sincera. de Brasília. Depois viveu mais um tempo,
Aprendo logo nas primeiras consultas acho que não morreu disso, não sei bem.
médicas que o tabu com a palavra “cân- A condição cardíaca frágil de meu pai
cer” não é restrito ao mundo dos pacientes impede que os médicos realizem uma
e seus familiares. Um observador atento cirurgia de intestino que de fato remova o
teria de se esforçar para encontrá-la em tumor logo no início do tratamento. Ou
laudos, exames, rotinas hospitalares, con- ao menos foi o que concluiu um primeiro
versas com médicos e enfermeiros. “Ele cirurgião, já que os encaminhamentos
está com aquela doença” ainda é uma médicos raramente nos pareciam convin-
frase típica para nos referirmos a esse mal, centes. A dúvida passou a ser a condição
e basta ter acumulado alguns poucos permanente no trato de sua saúde. Nunca
anos de vida para saber que “aquela doen- nos sentimos persuadidos de que ele real-
ça” não é gripe, cólera ou pneumonia. mente não podia ser operado para extir-
em seu corpo, se espalhou por nossa meu corpo. O pequeno apartamento no A sua ausência parece deixá-la mais viva par o tumor, e ao mesmo tempo tínhamos
vida familiar e chegou até estas linhas. Centro de São Paulo, tão diferente da – em meio a esse silêncio, todos sabemos pavor da ideia de que ele fosse.
O câncer foi diagnosticado no dia 29 casa onde cresci, com móveis modernos que é de câncer que se trata.

E
de dezembro de 2020, antes de eu co- que finalmente permitiam que eu criasse screvo entre duas devastações. Uma

S
meçar uma série de entrevistas com ele, algo que parecesse um lar adulto de clas- usan Sontag escreveu: “Todos que delas acomete o corpo de meu pai.
mas depois de já ter-lhe dito que gosta- se média, estava tomado por água que nascem têm dupla cidadania, no A outra é coletiva, nacional. Esta
ria de gravar conversas nossas para ouvi- me chegava até as canelas. reino dos sãos e no reino dos doen- nos circunda, nos engole, sufoca. Nos úl-
lo falar da estrada, das histórias de sua Senti excitação e medo. A água fora de tes. Apesar de todos preferirmos só usar timos anos, fomos abatidos pelo macabro
vida, seus “causos”, suas memórias e o lugar parecia cênica demais, um presságio o passaporte bom, mais cedo ou mais experimento político do grande mal que
que mais ele quisesse dizer. ruim, como
Acesse nossoque saída
Canal de umnoromance
Telegram:tarde nos vemos obrigados, pelo menos
t.me/BRASILTRASH escancara os dentes para a pilha de mor-
Na primeira vez que comentei que colonial de Marguerite Duras ou de uma por um período, a nos identificarmos tos que nem mais conseguimos contar.
escreveria um livro, ele me perguntou pintura surrealista. A água encharcou os como cidadãos desse outro lugar.” A es- Assim como fortunas e corpos entram
se isso seria bom para mim. Respondi meus sapatos, a barra da calça, almofadas, critora norte-americana conheceu bem em crise no ritmo duplo do gradual e do
que sim, que achava que sim. móveis de madeira e se infiltrou por mi- essa condição de duplo pertencimento repentino, países podem ser devastados
Se é bom pra você, eu fico feliz. lhares de pequenas rachaduras nos tacos durante seus tratamentos contra o cân- nessa mesma toada. É certo que a crise
No dia anterior ao diagnóstico, eu es- da sala, fazendo com que eles se envergas- cer, em uma série de recidivas que ela atual do Brasil está inscrita em sua longa
tava em São Paulo e havia passado a tarde sem para sempre. No quarto, meu gato se enfrentou em seus últimos trinta anos. história de violências. Mas o repentino
toda fixado em mapas de rios amazônicos escondia debaixo da cama, um dos pou- Meu pai circula com esse novo pas- de nosso mal coletivo se deu em outu-
e roteiros rodoviários pela região Norte do cos lugares poupados pela água. saporte. As marcas que ele passa a car- bro de 2018, quando a encarnação da
país. Li sobre períodos de cheias e de es- O câncer também tem algo de trans- regar e os rituais a que é submetido – a nossa barbárie foi escolhida para ocu-
tiagem, sobre as épocas mais adequadas bordamento: ele é matéria deslocada, em perene bolsa de colostomia, a intermi- par o posto mais alto da República.
para visitar praias de rios, para navegar frenética expansão. Liguei para Jaú na tente sonda urinária, as visitas frequen- Alguns meses antes, durante dez dias
por igarapés ou observar a mata nos seus manhã seguinte e perguntei para minha tes a hospitais, as cirurgias – assinalam de maio daquele ano, o país assistiu atô-
entornos. Comecei a planejar uma via- mãe qual o resultado da biópsia de intes- sua cidadania no mundo dos doentes. nito à misteriosa paralisação dos cami-
gem por toda a Transamazônica (conse- tino que eles tinham acabado de apanhar Em um famoso diálogo no romance nhoneiros por todo o território nacional.
guiria me virar por lá, já que não sei no laboratório. Ela se atrapalhou para ler O Sol Também Se Levanta, de Ernest Aqueles trabalhadores das estradas irrom-
dirigir?). Encomendei três mapas da re- a palavra estranha. Preferiu soletrar, e eu Hemingway, um veterano de guerra e piam como um espectro incômodo na
gião, desses imensos, de dobrar e desdo- escrevi num pedaço de papel: a-d-e-n-o- ex-milionário falido explica a um cole- política do país. Desde então, “caminho-
brar, além de guias rodoviários detalhados, c-a-r-c-i-n-o-m-a. Letra por letra a palavra ga como se deu sua ruína econômica: neiros” tornaram-se um sujeito indetermi-
cartas geográficas das rodovias que atra- se formou, cada letra uma célula que se – Como você faliu? nado que ronda a imaginação brasileira,
vessam a floresta, os antirrios de asfalto juntou a outras para formar um significan- – De duas formas. Gradualmente e, apavorando os políticos de ocasião e ex-
que meu pai ajudou a construir nessa re- te novo, uma palavra-massa fora de lugar. então, de repente. citando líderes oportunistas, desejosos
gião que ele cruzou por décadas. Uma rápida busca no Google me es- Observando meu pai nos últimos por sequestrar a potência política desses
Naquela mesma noite, um cano do clareceu que “adenocarcinoma” é o ter- anos, aprendi que envelhecer também trabalhadores com a ameaça de uma
meu apartamento estourou. A água inun- mo médico para certo tipo de tumor que obedece a esse ritmo duplo. Envelhece- repetição dos fatos de 2018.
dou todo o banheiro, parte da cozinha, a acomete tecidos epiteliais glandulares, mos gradualmente: músculos perdem O corpo do meu pai, já atravessado de
área de serviço, o corredor de entrada e como o do reto, caso do meu pai. Ela foi força, novas dores brotam no corpo, a cicatrizes, ganharia mais algumas des-
logo se espalhou para fora do apartamen- a primeira de muitas palavras que, nos catarata turva a visão, a audição deixa de o diagnóstico de dezembro de 2020.
to. Isso chamou a atenção da zeladora do meses seguintes, entrariam em nosso de captar nuances, escadas conhecidas Ele entrava em um território estrangei-
prédio, que me ligou preocupada. Eu ti- crescente léxico familiar. A doença não é tornam-se obstáculos olímpicos; cirur- ro e nós o acompanhávamos de perto,
nha saído de casa, mas consegui voltar apenas um fenômeno biológico, é tam- gias, internações e falecimentos de co- como viajantes sem mapa que pedem
rapidamente. A sala era a principal área bém um novo reino de palavras, um ema- nhecidos passam a dominar as conversas indicações ao longo do caminho e se
afetada, toda ela coberta por um grosso ranhado de vocábulos e expressões que com amigos e parentes da mesma idade. orientam pela intuição e por memórias
cobertor líquido, um palmo de água so- colonizam nossa linguagem cotidiana. Também se envelhece de repente. de outras viagens.
bre o chão de madeira, como um espelho Todos nós vivemos isso nos últimos anos, O grande salto de meu pai chegou com Uma bolsa de colostomia foi acopla-
que oscilava suavemente, refletindo aba- quando o coronavírus nos forçou a mer- o diagnóstico de câncer colorretal e da do lado esquerdo de seu abdome
jures, poltronas, plantas e a imagem de gulhar em uma lagoa terminológica de com o tratamento que se seguiu. em abril de 2021. Essa foi uma novida-

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de com que ele seria obrigado a se morrer em acidente, de ser assaltado, a Rio Branco não tinha rodovia. A gente ti- canteiros de Brasília, da Transamazôni-
acostumar. Ela deve ser limpa várias dureza de ficar longe da família. nha que chegar em Porto Velho, colocava ca, de Belo Monte, dos estádios construí-
vezes ao dia e trocada semanalmente. Gosto de ouvir meu pai falar sobre o o caminhão em cima de um vagão de trem dos para a Copa do Mundo de 2014 e de
Essas bolsas irão acompanhá-lo pelo cotidiano, sobre as sensações e peque- e andava 500 km em cima do vagão. Era tantas obras que serviram como cartões-
resto da vida, recolhendo os excremen- nas lembranças que marcam o ritmo pura aventura no meio da mata. Tinha postais de nosso arremedo de moderni-
tos eliminados por um estoma, uma dos dias: “Os relatos da cotidianidade dos umas seis ou sete estaçãozinha de parada dade. Cinco vagãozinho e uma máquina
espécie de ânus sem esfíncter construí- sentimentos, dos pensamentos e das pa- que é onde os trem carregava mercadoria tocada a lenha atravessando o estado de
do cirurgicamente pelo desvio do in- lavras. Tento captar a vida cotidiana da dos índios, dos garimpeiros, dos seringuei- Rondônia, um dos gestos soberbos e fra-
testino para a superfície do abdome. alma”, como ensina a escritora bielor- ros; então era o lugar que os trem parava cassados de “ocupação do território” que
Depois viriam as várias sessões de ra- russa Svetlana Aleksiévitch. Com fre- que era o ponto de carga. Ali tinha um o capitalismo de devastação brasileiro
dioterapia e uma sucessão alarmante quência me pego tentando descobrir os barzinho, tinha uma cachaça, uma tubaí- ainda chama de progresso.
de consultas, exames, internações, sem- detalhes das paradas de seu caminhão, on- na, não tinha mais nada que isso. Então

O
pre antecedidas de incontáveis horas de ele comia ou tomava banho, que chei- essa viagem eu carreguei, pus o caminhão que fazer com as palavras do meu
em salas de espera lotadas. ros sentiu, com quem falava. O que ele em cima do trem em Porto Velho, demo- pai? Como ouvi-las, transcrevê-
Pouco depois da cirurgia de colosto- viu e iria me contar, o que jamais me rou três dias pra depois ele sair de viagem. las, reorganizá-las sem que per-
mia, meu pai se tornou incapaz de urinar contaria, o que apenas sugere, ou aquilo Aí gastamos cinco dias pra fazer uns 400 km cam sua consistência e suas cores?
por causa de um descomunal crescimen- que já se perdeu na memória. nesse vagão de trem. O trem tinha cinco Desisto de nomear essa busca que
to na próstata, o que exigiu a colocação Logo de início, desisto de me deixar vagãozinho e uma máquina tocada a le- enlaça passado e presente, história na-
de uma sonda que o acompanhou por guiar pela minha formação acadêmica nha. Em toda estação eles tinham que cional e história de vida de um traba-
três meses, até que outra cirurgia – uma em história e sociologia e de produzir carregar a maquininha de lenha pra poder lhador, fatos e fabulação, deslocamentos
“raspagem de próstata” – devolvesse uma história social dos caminhoneiros fazer o combustível da viagem. e condensações, oralidade e escrita, di-
parcialmente a ele essa capacidade fisio- brasileiros, ou uma sociologia histórica Poucos anos depois, em 1972, a ferro- ferentes registros de linguagem que se
lógica básica, ao menos por algum tem- de uma categoria profissional da qual via de 366 km seria desativada. A ima- complicam pelo ato da transcrição –
po. O estoma funciona bem, e meu pai meu pai seria um “caso”. gem de um velho trem movido a lenha que, por si só, já envolve um processo
se acostumou aos desagradáveis rituais Isto tampouco é uma biografia. Ape- rasgando lentamente a floresta me reme- nada inocente de tradução.
de cuidado e limpeza, mas uma hérnia sar da minha curiosidade, não se trata de te aos delírios de ocupação colonial da Ao tentar reconstruir partes impor-
cresce sem parar em volta do orifício. trazer à luz a “verdade dos fatos”, as infor- Amazônia, às centenas de trabalhadores tantes de sua história, os fatos da sua
A imensa protuberância incomoda, de- mações precisas sobre os lugares que ele mortos na construção dessa ferrovia no vida vão sendo montados sobre uma
forma seu corpo e o obriga a usar con- percorreu, as pessoas que conheceu, início do século xx, ao experimento pre- estrada que se abre entre mim e meu
tinuamente uma cinta larga e apertada. quanto ganhava e devia. Esse pai não po- potente de conquista da floresta. pai. E essa história eu só posso escrever
O tempo passa a caminhar no ritmo de ser narrado dessa forma: ele não exis- A velha ferrovia é um esqueleto de como filho. J
da constante espera dos próximos resul- te. Talvez exista o homem José Bortoluci, nossos incansáveis planos de grandeza
tados. Somos cercados pelo medo de pos- brasileiro, nascido em 1943, filho de De- nacional. O canteiro de construção da- Trecho do livro O Que É Meu, a ser lançado
síveis cirurgias futuras, da piora de sua métria e João, no bairro do Campinho, quela Ferrovia do Diabo prenuncia os em março pela editora Fósforo.
condição cardíaca, pelo receio de rece- zona rural do município de Jaú, casado
bermos notícias de novos tumores. com Dirce, pai de José Henrique e João
As palavras “nódulo” e “pulmão” Paulo, católico,
Acesse motorista
nosso Canalde caminhão,
no Telegram: t.me/BRASILTRASH
aparecem juntas pela primeira vez em palmeirense, grande cozinheiro, cardio-
fevereiro de 2022, quando mais uma pata grave desde os 48 anos, aposentado
especialidade médica, a pneumologia, “por invalidez”, atualmente paciente on-
foi chamada a participar desse longo cológico. Isso seria tarefa de um biógrafo,
escrutínio de seu corpo. Da mesma mas biógrafos não se debruçam sobre a
forma que entrou, ela saiu de cena um vida de pessoas como ele, trabalhador,
mês e vários exames depois, quando os homem comum, que pouco leu e escre-
médicos concluíram que, “provavelmen- veu, que não liderou corporações, não
te”, não se tratava de um novo tumor. comandou exércitos, não governou paí-
Não, não tínhamos que falar em metás- ses nem conquistou territórios.
tase, ao menos ainda não. A forma como ele narra sua história
também parece trair a fixação pela unida-

C
omo se narra a vida de um homem de e pelo sentido de uma vida que é tão
comum? Sou desafiado pelo silên- marcante na maioria das biografias. Bus-
cio das fontes, o apagamento de co por vezes o pensamento de Roland
registros daqueles que constroem o mun- Barthes: contra o autoritarismo unificador
do, que escrevem suas histórias com mãos da biografia, procuro recorrer a “alguns
e pés, com palavras ditas e cantadas, com pormenores, a alguns gostos, a algumas
suor e a pele marcada. Tento entrar na- inflexões, digamos a ‘biografemas’, cuja
quele território do ir e vir dos que não distinção e mobilidade pudessem viajar
costumavam fotografar, que não escreve- fora de qualquer destino e vir tocar, como
ram muitos diários, não deram entrevistas átomos epicurianos, algum corpo futuro”.
nem foram filmados. Como sugere Ber- Esses átomos epicurianos viajam pe-
tolt Brecht, procuro os construtores dos las palavras de meu pai, unindo diferen-
palácios e das muralhas, não os nobres e tes tempos e cenas. Eles podem aparecer
generais que os comandam; as cozinhei- na forma de uma viagem pela Estrada
ras, motoristas, jardineiros e faxineiras, e de Ferro Madeira-Mamoré, a famigera-
não os dignitários nos salões do poder. da “Ferrovia do Diabo”, assim conhecida
Um herói esquecido. Com cinquenta por causa do imenso número de traba-
anos de caminhão, de estrada, posso di- lhadores mortos durante sua construção
zer isso com certeza: caminhoneiro é um no início do século xx:
herói esquecido. É maltratado, despre- Deve ter sido em 1967 que aconteceu
zado. Só não sou esquecido por vocês. isso, já faz tanto tempo que eu me perco.
Ninguém dá valor, ninguém. Não vê o Apareceu uma viagem pra ir de São Paulo
sofrimento da gente levantar duas horas a Rio Branco do Acre, pra levar maquiná-
da manhã, tocar até onze e meia, meia- rios pra uma fábrica que tavam montando
noite, ficar sem comer, correr o risco de lá. Mas eu sabia que de Porto Velho pra

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poesia_HENRIQUE MARQUES SAMYN

GUSTAVO MAGALHÃES_2023
ANASTÁCIA E A MÁSCARA:
SETE VARIAÇÕES
V. DE ANASTÁCIA: O CORPO

Eis que aqui está o corpo de Anastácia:


o corpo que não podes ver, no entanto;
I. DE ANASTÁCIA: A SANTA o corpo: em volta dele, uma mortalha
aos olhos invisível. Corpo santo,
Afirma a tradição que era rainha
ou que era uma princesa escravizada embora nunca visto e nem tocado;
(aquela que este povo em ladainhas corpo cuja beleza causa espanto
evoca): a negra santa imaginada (por jamais visto, nunca devassado
pelas perversas mãos dos homens brancos).
que as brancas em beleza superava
assim como as sinhás, pela nobreza; Aqui, sob esta igreja sepultado,
a que nenhum castigo ou chibatada o corpo de Anastácia enfim repousa:
jamais assujeitou; a que estas rezas aqui, neste terreno tão sagrado
(contudo, também sob igrejas outras).
um dia atenderá – ao menos isso
é o que esta gente espera, a cada dia Que o corpo de Anastácia sempre esteja
(pois dizem que a fé do povo oprimido onde houver negra fé que nele creia.
todo poder supera). Se heresia

a Igreja o considera, o povo canta: III. DE ANASTÁCIA: A IGREJA VI. DA MÁSCARA: O FIM
“Será sempre Anastácia a nossa santa.”
Acesse nosso Na vala foino
Canal erguida outrora a igreja
Telegram: A máscara que a negra voz não cala,
t.me/BRASILTRASH
por negras mãos unidas na irmandade: porque uma só não há: diversas vozes
II. DA MÁSCARA: O SENTIDO erguida pelo acordo de vontades, o povo negro diz; (vozes) tão fortes
e assim se fez a singular beleza – que o rígido metal sucumbe e esgarça
O que não pode ser enunciado:
esta ânsia genocida que se oculta a talha, as folhas de ouro, o cortinado quando (essas negras vozes) o perpassam,
em cada gesto; o sempre calculado agora só persistem na memória: rasgando-o como folha de papel;
motivo que em ação se configura porque se foi no fogo tudo embora como se o ferro fosse um fino véu
naquele dia vinte e seis de março. ao fim, desfeito em ínfimos pedaços.
no exato e cauteloso movimento
que nunca se revela em sua essência Porém, restou a imagem entre as cinzas: Que sejam nossas vozes sempre muitas
(pois tudo o que se omite na aparência a efígie de Anastácia, a escravizada e alegres como um canto (não lamento);
é o seu sentido atroz e violento); que jaz sob este solo – ainda intacta, que o medo não mais faça o seu silêncio;
como compete às santas. Eis reerguida que não exista mais máscara alguma.
o que se vê: a máscara que sela
a boca, para que não seja dito a igreja: a Anastácia; a Nossa Senhora; Que as negras vozes nunca nada cale:
o que nós bem sabemos – que é preciso e a ti, são Benedito, toda a glória. ressoem sempre o som da liberdade.
dizer – que a razão branca oculta e nega.

A máscara: o silêncio imposto ao nome IV. DA MÁSCARA: OS PROPÓSITOS VII. DE ANASTÁCIA: A FÉ


da dor que a cada dia nos consome.
O primeiro propósito da máscara Em mim habita – e em ti – nos nossos corpos
(segundo diz o branco, sempre cínico) que negros são: se faz em nós morada,
escapa ao ordinário, porque tácito, assim nos honre a carne feita casa
assim como ao geral, porque específico: da negra santa – outrora escravizada,

propósito moral: tolher o vício a quem nós ofertamos este pós-


que (diz o branco) nos escravizados tumo louvor, para que ao nosso lado
é quase inevitável, porque típico perene, permaneça: asilo e amparo
(do negro é próprio o ser degenerado); (se está conosco, nunca estamos sós) –

propósito segundo: o suicídio santa Anastácia, vela pelo povo


conter, não permitindo o comer terra que chama por teu nome, noite e dia:
qual fazem os monjolos. Que orifícios a negra gente ampara e auxilia:
existam – mas seja a medida certa. oferta a tua luz e o teu socorro –

Da máscara são vários os propósitos; para isso outrora te fizeram santa:


forjaram-na com ferro, estanho e ódio. para que sejas, na dor, a esperança. J

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obituário

GLAUBER ROCHA_2010
SÉRGIO ABREU,
OU OS MISTÉRIOS
DA LUTERIA 
A vida e a obra de um violonista excepcional

JOÃO CAMARERO Sergio Abreu, em sua oficina, em 2010: “Jodacil, você está tocando si bemol. É si natural!”

C S
erta vez, Sérgio Abreu me Paris, da Agência de Radiodifusão de sobre música, violão, maneiras de inter- érgio Abreu começou seus estu-
convidou para experimentar Televisão da França (ortf, na sigla em pretar. Ele mais ouvia do que falava, até dos ainda criança com o avô e aos
um violão que ele tinha aca- francês), na época, o mais prestigiado do que, num certo momento, lançou uma 12 anos foi ter aulas com Monina
bado de construir. Já éramos mundo. Era, até então, o mais jovem expressão de sarcasmo com o rumo da Távora. Dentre os violões da professora,
amigos havia alguns anos, e músico a receber o título. A partir daí, os conversa e emendou: “Interpretar é um um era absolutamente fora do comum e
eu, mesmo sendo quatro décadas mais irmãos se consolidaram internacional- pouco como temperar uma salada: azei- impactou para sempre o jovem aprendiz.
novo que ele, frequentava seu aparta- mente. No auge, o Duo Abreu trabalhou te com generosidade, vinagre com ava- Monina havia sido uma das raras alunas
mento com alguma regularidade du- com o mesmo empresário de Vladimir reza, sal com sabedoria e pimenta com do andaluz Andrés Segovia (1893-1987),
rante o tempo em que morei no Rio de Horowitz e Jacqueline du Pré. Dividiam malícia.” Era irônico, idiossincrático e que foi o grande responsável pelo lugar
Janeiro. Aquela, no entanto, era uma séries com Martha Argerich, Pierre Bou- naturalmente genial. de destaque do violão na música erudita.
ocasião rara. O violão não tinha sido lez, Julian Bream. Sérgio chegou a tocar Ricardo Dias, também luthier, foi Ao fazer encomendas de peças a compo-
feito para nenhum cliente, ninguém o com Yehudi Menuhin. uma figura constante e fundamental na sitores como Heitor Villa-Lobos, Segovia
encomendara. Era uma homenagem O Duo Abreu, no entanto, se desfez vida do amigo. Dele ouvi algumas das modernizou o repertório, definiu cami-
de Sérgio a Adolfina Raitzin de Távora, de maneira precoce, quando ocupava muitas histórias que revelavam o talento nhos estéticos e elevou muito o patamar
sua mestra, falecida em 2011. Sérgio os lugares nosso
Acesse mais nobres da música
Canal de excepcional
no Telegram: de Sérgio. Numa ocasião, da interpretação.
t.me/BRASILTRASH
batizou o instrumento de Dona Moni- concerto. Cansado da exposição e das Ricardo dirigia seu carro quando come- Dona Monina herdou do mestre um
na, como ela era conhecida. viagens, Eduardo abandonou a carreira çou a ouvir no rádio um quarteto de cor- violão feito pelo luthier alemão Hermann
Lembro-me do impacto ao segurar o aos 26 anos, em 1975. Em 1981, Sérgio das. Certo de que chegaria ao seu destino Hauser. Sérgio dizia que, além das aulas
instrumento – a marchetaria, as madei- também se aposentou, para se dedicar antes do final da peça, ligou para Sérgio e com sua mestra, o contato com aquele ins-
ras seculares, os filetes laterais, o verniz, exclusivamente à luteria, tornando-se a perguntou qual era a música. Sérgio ouviu trumento específico – que posteriormen-
cada detalhe me deslumbrava. Depois da partir daí um dos mais importantes um trecho e disse, decidido: “Beethoven.” te ele herdaria – o marcou para sempre.
contemplação inicial, comecei, enfim, a construtores do mundo. Mais um trecho, e disse o opus. Depois O violão que pertencera a Segovia era, de
tocar – e era como se domasse um cavalo   de ouvir mais um pouco, comentou: longe, superior a qualquer outro que Sér-

A
bravo. Passados alguns minutos de estra- relação de Sérgio com a vida prá- “Curioso, parece o Quarteto Alban Berg gio já havia tocado. Quando começou a
nhamento, logo nos conectamos como tica era pouco convencional. Seu tocando, mas está diferente da gravação se interessar pela luteria, antes mesmo de
velhos amigos. Eu estava em êxtase com ciclo de trabalho sempre foi inten- que eu tenho.” Ricardo ficou intrigado. abandonar a carreira de concertista, Sér-
a quantidade de som que o instrumento so. Trabalhava até a exaustão, varando Chegou ao seu destino, mas esperou den- gio se deteve longamente nesse exemplar
oferecia. Não eram apenas volume e pro- madrugadas, emendando os dias. E en- tro do carro pelo fim da transmissão. do instrumento. Fez desenhos da planta,
jeção sonora, mas também cores, di- tão dormia muito, perdendo frequente- Sim, era Beethoven. Sim, era o opus cer- tirou todas as medidas de forma precisa,
ferentes timbres que os bons violões mente a noção do tempo. Se alguém to. E sim, era o Quarteto Alban Berg, examinou-o a fundo. Aproveitava as via-
entregam. Os harmônicos soavam linda- ligasse para ele às oito da noite, nunca mas numa gravação ao vivo. A referência gens das turnês para entregar os dados
mente; graves, médios e agudos perfei- saberia se ele estava acordando, jantan- de Sérgio era uma gravação de estúdio. que reunira sobre aquele violão a cons-
tamente equilibrados. Todas as notas do, almoçando ou indo dormir. Ricardo também se recorda que, trutores ao redor do mundo. Tinha a es-
cantavam. Eu estava nas nuvens quando Morava em Copacabana, num apar- numa dessas jornadas de mais de 18 ho- perança de obter algo similar ao original,
Sérgio me interrompeu com seu jeito tamento que pertencera à sua mãe e que ras de trabalho em sua oficina, Sérgio mas nunca se satisfez com os resultados.
doce: “Experimente tocar a 12ª casa da se manteve praticamente inalterado ao voltou para casa exausto. Ao chegar, A partir da década de 1980, Sérgio co-
primeira corda.” Obedeci. Para minha longo de décadas. Num dos quartos, lembrou-se que na sala de estar de seu meçou a se dedicar com obstinação ao
surpresa, a nota durava menos. Depois guardava caixas de arquivos cheias de par- apartamento aconteceria uma gravação. ofício de luthier. Buscava sempre aquele
de se projetar, seu som decaía mais rapi- tituras, rolos de fita, programas de reci- Era o professor Jodacil Damaceno, que que considerava um ideal de sonoridade.
damente. Perguntei a ele por que razão tais antigos. No outro, havia inúmeros já se preparava, ao lado do próprio Ri- Diferente do trabalho do compositor ou
aquilo acontecia. Sérgio encolheu os om- estojos de violão. A cozinha, revestida cardo, para o que seria seu último regis- do intérprete, a produção do objeto tátil
bros e respondeu: “Mistérios da luteria.” de azulejos estampados, abrigava um fo- tro. Sérgio cumprimentou a todos e foi talvez seja a coisa mais próxima da mate-
 Antes de construir violões, Sérgio foi gão Cosmopolita verde esmaltado. descansar no quarto. Jodacil começou a rialização da música. Sérgio morreu aos
um excepcional violonista. Ao lado do O prato que Sérgio mais gostava de repetir um trecho da peça que iria gra- 74 anos em decorrência de problemas
irmão Eduardo, formou o lendário Duo fazer, porém, dispensava o fogo. A famo- var. Sérgio despontou no corredor, de pulmonares, no Rio de Janeiro. Não teve
Abreu. Tinham 15 e 14 anos, respectiva- sa “salada da Margarida” era uma espé- pijama, descabelado: “Jodacil, você está filhos. Continuará soando mundo afora,
mente, quando estrearam, em 1963. No cie de salada de batatas com maionese, tocando si bemol. É si natural!” Virou as transformado em madeira, por meio dos
ano seguinte, fizeram um recital organi- mas sem batatas. E saía cada vez de um costas, voltou para o quarto. Desconcer- mais de mil instrumentos de sua lavra.
zado por Jacob do Bandolim, em sua jeito. O único ingrediente obrigatório tado, Jodacil caiu em si. Estava, de fato, É assim que vamos seguir celebrando sua
casa. Em 1965, mais recitais, sendo três era a maionese, que ele temperava, e im- tocando uma nota errada. E começou a existência. Todos os violões feitos em tor-
na Argentina. E em 1967, Sérgio ganhou provisava o resto. Batatas, jamais. Numa rir ao reconhecer que durante muitos no de um ideal, cada qual com suas pe-
o Concurso Internacional de Violão de noite, nunca me esqueço, falávamos anos não havia se dado conta disso.  culiaridades. Mistérios da luteria. J

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cartas_fevereiro

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daquele cometido por Sylvia Serafim continua dominante na política argen- cada vez mais usada na psiquiatria de-
piauí
piauí_196_R$ 32,00_ano 17_janeiro_2023
00196
_196
por meio da franqueza das palavras de tina de forma muito negativa, pois um vido à sua elevada ação antidepressiva.
janeiro
Sergio Schargel (Minha bisavó matou país que no final do século xix e início A substância foi desenvolvida como um
um cara), longe da aventura e humor do xx foi uma grande potência mun- anestésico na década de 1960, porém, à
contidos no filme de Jorge Furtado, dial há tempos se arrasta numa crise medida que vinha sendo utilizada, os
Renascidos das cinzas
Lira Neto discute a ressurreição
política de Lula, Getúlio e outros
protagonizado por Lázaro Ramos, que sem fim. anestesistas começaram a notar sua
inspirou o título. Gostaria de ver um Getúlio também foi um líder popu- ação no humor. A partir disso, diversos
 
O triunfo da ayahuasca
A bebida que resgata a identidade
indígena, por Angélica Santa Cruz

A diáspora chegou aqui


Consuelo Dieguez conta a saga
dos refugiados afegãos no Brasil
diálogo entre Schargel e Ruy Castro lista, mas conseguiu transcender. A lei- estudos científicos foram realizados e
para saber se haveria alguma alteração tura dos três alentados livros do Lira comprovaram sua potente ação para o
 
A barreira racial
Irany Tereza investiga por que temos
tão poucos economistas negros

na ênfase do episódio na biografia de Neto traçando sua trajetória desde o quadro de depressão. 
 
O adeus de Godard
Ariane Chemin conta como o cineasta
planejou a própria morte aos 91 anos

Nelson Rodrigues. Ou outro relato com- nascimento até a morte trágica permite Diante da elevada incidência de de-
 
Feminista? Assassina?
Sergio Schargel e a sua bisavó, que

pleto, uma vez que faltam biografias de classificá-lo na categoria de estadista,


matou o irmão de Nelson Rodrigues

pressão, sobretudo episódios depressi-


 
E mais:
As façanhas de Banksy, por Damian Platt

personagens brasileiros, limitadas a ver- pois foi o grande responsável pela enor- vos que não respondem às medicações
Carla Madeira e a criação de um best-seller, por Fabrício Marques
A obrigação de ser genial, por Betina González

2
sões únicas, muitas impedidas legal- me transformação ocorrida em nosso país convencionais e nem mesmo à terapia,
mente de serem editadas. Lira Neto, durante sua gestão, primeiro como dita- o uso clínico da cetamina vem como
que brilhantemente adentra essa seara dor, depois como presidente eleito de- uma esperança para os pacientes que
de contar a vida dos outros, que o diga, mocraticamente. Teve a hombridade de sofrem desse problema. 
ainda que tenha comparecido à edição sacrificar sua vida para não ser humi- Apesar de já bastante utilizada nos
CAPA DESTRUÍDA com um ensaio comparando persona- lhado pelos militares, ao mesmo tempo Estados Unidos e na Europa, no Brasil
Um troglodita residente no mesmo pré- gens mortos e redivivos (A volta dos en- que seu ato criou uma comoção nacio- ela só começou a ser usada na usp e na
dio que minha namorada teve a pachor- terrados vivos). Betina González fala nal, que desafiou e fez com que os golpis- Unifesp nos últimos cinco anos. Diante
ra de destruir nossa piauí_196, janeiro, de outro crime, o de ser escritora, que tas da época desistissem de seu intento, da elevada demanda e dificuldade des-
pelo simples fato dela apresentar uma atinge a autora e talvez outros preten- adiando-o para outra oportunidade, que sas instituições de prestar atendimento
imagem do presidente L*lys na capa. sos escrevinhadores como o missivista surgiu em 1964, quando finalmente con- a todos que precisam, no final de 2022
Será que daqui pra frente será assim, aqui, ainda que sem a barreira de gêne- seguiram se instalar no poder até 1985. eu e alguns colegas psiquiatras também
e teremos que experienciar a realidade ro (A obrigação de ser genial). Reivindi- DIRCEU LUIZ NATAL_RIO DE JANEIRO/RJ da usp abrimos a Clínica Livaz (@clini-
através da censura e em linguagem ci- co uma aproximação, pois o González calivaz), com o objetivo de realizar apli-
frada? Espero que os seguidores do ex- de origem espanhola dela seria meu tam- INCREDULIDADE cação de cetamina em um ambiente
presidente B*lsonaro tratem logo de bém, não fosse o aportuguesamento im- Das raras vezes que escrevi para esta seguro e monitorado, aumentando o
colocar a terapia em dia, para o bem posto a meus avós no registro do nome revista, todas foram no intuito de elo- acesso dos pacientes a esse tratamento. 
de todes.  de meu pai. Vivências distintas, frutos giar tal e qual artigo. Porém, hoje faço Sou psiquiatra e pesquisadora do
Um beijo molhado para a minha diferentes e Fabrício Marques mostra a uma exceção e externo minha incredu- Instituto de Psiquiatria do Hospital das
amada Luana, que não merecia nadaAcesse parte donosso
sucesso –Canal
ou rendição
no –Telegram:
da es- lidade t.me/BRASILTRASH
com a afirmação do senhor Fer- Clínicas. Além do hc, trabalho no con-
disso! crita, com o exemplo de Carla Madeira nando de Barros e Silva – cuja história sultório privado e no Hospital Sírio-Liba-
TIAGO LAZZARI_LAJEADO/RS (O caminho do best-seller). Imagino a profissional me permite dispensar apre- nês. Gostaria de fazer a sugestão de uma
interlocução entre ela e González para sentação – de que havia escrito o artigo matéria sobre o tema, com a profundi-
comparar a remissão de seus crimes li- Lula no país dos lunáticos (piauí_196, dade e o respeito que vocês costumam
terários cometidos. janeiro) antes da posse presidencial. ter diante dos temas abordados. 
p.s.: Sou também frequente leitor de Vejamos as frases com as quais este ta- ANNE BRITO_SÃO PAULO/SP
CartaCapital. Não é um crime, certo? lentoso jornalista nos presenteia em
Ou devo me preocupar? seu texto: CULTO À IMAGEM
ADILSON R. GONÇALVES_CAMPINAS/SP  - “O Brasil escapou por muito pouco Sem dúvida, Ricardo Stuckert é um
da catástrofe” profissional competente e respeitado no
ESTADISTAS E POPULISTAS - “O transatlântico Pindorama pas- seu ofício, mas o que chama a atenção
Lira Neto, o craque das biografias, no sou a poucos centímetros do iceberg” na matéria O fotógrafo (piauí_195, de-
artigo A volta dos enterrados vivos - “Em outros lugares vimos policiais zembro) é que “nunca antes nesse país”
(piauí_196, janeiro) presenteia os leito- pedirem desculpas antes de abordarem um político contratou alguém para do-
res da revista com a análise da coinci- aglomerações de patriotas, ou pior, con- cumentar seus passos em tempo inte-
dência do renascimento de Lula das fraternizarem com os manés” gral ao longo de vinte anos, incluindo
cinzas – ao conquistar um terceiro - “Apesar de tudo, pode dar certo” aí a última década em que passou sem
mandato presidencial – com as figuras  Li este artigo no dia 6 de janeiro. exercer qualquer cargo público. Até
mitológicas de nossa história contem- Depois  dos acontecimentos do dia 8, para namorar à noite na praia fez ques-
porânea, Churchill, De Gaulle, Perón não creio que o renomado profissional tão do registro público.
e Getúlio Vargas, sendo que os dois pri- da imprensa não tenha lançado mão de LUIS ROBERTO BEOLCHI_SANTOS/SP
nota lúgubre da redação: O curioso meiros foram alijados do poder ironica- sua secreta relação com o universo ou
mesmo, Tiago, é que seu vizinho não se mente, pois eram os grandes heróis de outras macumbâncias quaisquer para nota corrosiva da redação: É verda-
importou com a capa de Bolsonaro bei- suas pátrias ao derrotarem o nazismo, escrever essa matéria. de, mas vamos ser justos, dá para esque-
jando a morte… enquanto Perón e Getúlio foram depos- WALDEMIR TAVARES_NITERÓI/RJ cer que Bolsonaro se fez filmar dizendo
tos pelos militares e Lula preso e encar- “I love you” ao Trump?
CRIMINOSOS cerado durante 580 dias. AYAHUASCA  
A festeira edição da piauí_196, janeiro, Não alinharia Lula na categoria de Sou leitora e fã número 1 da revista UBIRAJARA
não tinha como prever os acontecimen- estadista, assim como Perón. Tanto o piauí. Gostaria de parabenizar a Angéli- Interessante a matéria de Bernardo Es-
tos do 8 de janeiro, que, se não foram brasileiro como o argentino abraçaram ca Santa Cruz pela reportagem Sobre teves (O fóssil é nosso!, piauí_196, janeiro)
puro terrorismo, tiveram todos os ingre- o populismo e deixaram um legado ela, com ela e para ela (piauí_196, janei- sobre o dinossauro brasileiro conhecido
dientes relatados na literatura especiali- diminuto em comparação com os de- ro), que traz com elevado nível de pro- como Ubirajara, que foi retirado ilegal-
zada. Ou foi premonitório o brinde mais líderes citados. Pelo fato de ter fundidade a odisseia dos povos indígenas mente do país. Entre os pontos princi-
com a taça rachada na capa de Vito forte apoio entre os deserdados e os e sua trajetória em torno da ayahuasca.  pais a serem destacados está o fato de
Quintans, tal qual os vidros dos palá- trabalhadores, após quase cinquenta Falando de substância com proprie- que, quando a ilegalidade da “exporta-
cios de Brasília? Crime por crime, na anos de sua morte em 1974, o movi- dades terapêuticas,  ao longo dos últi- ção” para o exterior foi descoberta pelo
mesma edição foi interessante o relato mento justicialista criado por Perón mos vinte anos, a cetamina tem sido periódico científico Cretaceous Research

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piauí DEPARTAMENTO COMERCIAL


comercial@revistapiaui.com.br
Enio Santiago [RJ]: eniosantiago@revistapiaui.com.br
FUNDADOR
Nicolas Broussain (SP): nicolas@revistapiaui.com.br
João Moreira Salles
Valéria Alves [SP]: valeria@revistapiaui.com.br
CONSELHO EDITORIAL
em 2020, o trabalho, logo depois de ter Jair” (piauí_195, dezembro), penso que Dorrit Harazim, Flavia Lima, João Moreira J EDITORA ALVINEGRA
Salles, Marcelo P. L. Medeiros, Natuza Nery, rua Aníbal de Mendonça, 151 / 2º andar
sido publicado, foi suspenso, e em 2021, houve uma falha muito grave. O con- Simon Romero, Thiago Amparo 22410-050 Rio de Janeiro / RJ
definitivamente retirado de publica- teúdo da matéria deixa parecer que DIRETOR DE REDAÇÃO
tel [21] 3511 7400
ção. Essa ação firme do editor da revis- esse povo que coordena esse retroces- André Petry rua Mateus Grou, 109 / 1º andar
05415-050 São Paulo / SP
ta pode ser considerada um divisor de so, essa vergonha, é muito inteligente, EDITOR EXECUTIVO tel [11] 3061 2122
águas no que diz respeito ao tráfico coisa que ao longo desses árduos anos Alcino Leite Neto e-mail: redacaopiaui@revistapiaui.com.br
de fósseis brasileiros. Além de ter desper- constatamos (graças a Deus) que não. PRODUTORA EXECUTIVA
tado uma ação inédita nas mídias sociais Faltou dizer que essa estratégia foi orien- Raquel Freire Zangrandi

(movimento #UbirajaraBelongsTobr) e tada pelo mesmo cara, aquele que não to- EDITORES Associação Nacional dos Editores de Revistas
Armando Antenore,
uma atuação mais firme por parte da ma banho (Steve Bannon), que orientou Fernanda da Escóssia
Sociedade Brasileira de Paleontologia Donald Trump. Instituto Verificador de Comunicação
REPÓRTERES
(e muita articulação nos bastidores por RENATA F. DE SOUZA AZZONI_JUNDIAÍ/SP Alejandro Chacoff, Allan de Abreu, Ana Clara
PRÉ-IMPRESSÃO
diversos pesquisadores), paleontólogos Costa, Angélica Santa Cruz, Bernardo Esteves,
Breno Pires, Camille Lichotti, Consuelo Dieguez, Antonio Rhoden
do exterior ficaram mais atentos em re- nota teológica da redação: “Deus Emily Almeida, Fernando de Barros e Silva,
lação à questão legal dos fósseis brasilei- escolheu as coisas loucas para confun- João Batista Jr., Luigi Mazza, Marcos Amorozo,
Tatiane de Assis, Thais Bilenky, Tiago Coelho
ros, já que é bastante constrangedor ter dir as sábias. Deus escolheu as coisas
DIRETORA DE ARTE
uma publicação retratada. Cabe citar fracas para confundir as fortes. Deus Maria Cecilia Marra
dois exemplos que ocorreram depois do escolheu as coisas vis, de pouco valor, A piauí é impressa pela Plural Indústria Gráfica
EDITORAS DE ARTE Ltda, em papel pólen bold 90 gramas nas capas
imbróglio do dinossauro: a devolução as desprezíveis, que podem ser descar- Isabela da Silveira e Paula Cardoso e pólen soft 70 gramas no miolo, produzidos em
de 36 aranhas fósseis (incluindo o holó- tadas, as que não são, que ninguém dá COORDENADORA DE CHECAGEM
bobinas exclusivamente para a piauí por Suzano
tipo de Cretapalpus vittari) por parte de importância, para confundir as que Marcella Ramos Papel e Celulose S/A.
pesquisadores dos Estados Unidos e a são.” malafaia, Silas. CHECAGEM E REVISÃO TIRAGEM DESTA EDIÇÃO: 34 110 exemplares
repatriação do crânio de um réptil ala- Carlos Santos, Carolina Leal, Fábio Gabriel
Martins, João Felipe Carvalho, Luiza Barbara
do (Tupandactylus) que estava ilegal- TUDO É RIO PARA ANUNCIAR
publicidade@revistapiaui.com.br
mente na Bélgica, esse último antes da Estava tomando café da manhã no COORDENADOR DIGITAL
Pieter Zalis
publicação do artigo. Triste é constatar apartamento em que moro no Bairro PARA ASSINAR
que, pelo menos no caso do dinossauro Santo Antônio, em Belo Horizonte/mg, COORDENADORA DE ESTRATÉGIAS
Mariana Faria
revistapiaui.com.br/assine
WhatsApp e SAC: [11] 3584 9200
e das aranhas, os pesquisadores estran- quando descobri que no Bairro Santo Segunda a sexta, 9h às 17h30
COORDENADORA DE NARRATIVAS VISUAIS
geiros dispunham de documentação Antônio, em Belo Horizonte/mg, a es- Fernanda Catunda
SAC [ATENDIMENTO AO CLIENTE]
supostamente emitida por fiscais da critora Carla Madeira havia participa-
ESTAGIÁRIOS site: minhaabril.com.br
Agência Nacional de Mineração (anm), do de um jantar temático sobre seus Amanda Gorziza, Elane Oliveira, atendimento.piaui@abril.com.br
que agiram na contramão dos esforços livros, num restaurante que fica (lite- Lara Machado, Maria Júlia Vieira, Thallys Braga WhatsApp e SAC: [11] 3584 9200
Renovação: 0800 775 2112
realizados pelos pesquisadores brasileiros ralmente) nosso
Acesse “logo ali”. Resultado:
Canal no de
Telegram: t.me/BRASILTRASH
DIRETOR FINANCEIRO
Segunda a sexta, 9h às 17h30
na proteção do patrimônio científico. tanta matéria boa para ler – e podcast Guilherme Terra

Aliás, essa agência ainda não apresentou para ouvir; “opa” Toledo –, não li Carla ADMINISTRAÇÃO COMERCIALIZAÇÃO E DISTRIBUIÇÃO
Daniella de Amo, Elena Abramcheva, Abril Assinaturas
explicações públicas sobre o ocorrido. Madeira (O caminho do best-seller, Elisangela Prado, Leandro Arruda, assinaturas@revistapiaui.com.br
Ainda sobre o dinossauro, tema da piauí_196, janeiro); de tanto café para Pedro Eduardo Vinhas, Simone Cardoso
matéria, existe uma expectativa para tomar, não pus os pés no restaurante. DIRETOR COMERCIAL
DISTRIBUIÇÃO NACIONAL EM BANCAS
Lucio Del Ciello Total Express
que ele seja repatriado, algo com o que Não sei que tipo de metalinguagem foi lucio@revistapiaui.com.br bancas@revistapiaui.com.br
aparentemente o governo da Alemanha essa, mas certamente o jornalista não
COORDENADOR DE PUBLICIDADE
já concordou. Em acontecendo, sou da esperava por ela. Tarcisio Perroni
NÚMEROS ATRASADOS
numerosatrasados@revistapiaui.com.br
opinião que deveria ser dada uma opor- OTÁVIO VILELA_BELO HORIZONTE/MG tarcisio@revistapiaui.com.br
tunidade aos pesquisadores do estudo MARKETING
original de publicar o seu artigo, uma nota intrigada da redação: É im- João Vinícius Saraiva www.revistapiaui.com.br
vez que ele foi “despublicado” por ques- pressão nossa ou você escreveu uma
tões legais e não por omissões científi- carta sobre o perfil da Carla Madeira,
cas. A meu ver, seria uma bela forma direto do Bairro Santo Antônio, em
de deixar claro para a comunidade inter- Belo Horizonte/MG, para dizer que
nacional que eles podem fazer a sua pes- não conseguiu ler o perfil da Carla Ma-
quisa, mas os fósseis relevantes devem deira no Bairro Santo Antônio, em Belo
permanecer no nosso país. Importante Horizonte/MG?
destacar que essa eventual possibilida-
de não invalida os importantes movi- errata:
mentos que estão sendo realizados em Na reportagem Sobre ela, com ela, para
prol da descolonização da ciência, ou- ela (piauí_196, janeiro), informou-se er-
tro tópico relevante. De qualquer forma, roneamente que os waimiri atroaris vi-
seria muito importante um movimento vem em Rondônia. Eles vivem no Sul
de conscientização dos periódicos de Roraima e no Norte do Amazonas.
científicos para que não publiquem ar- A correção foi inserida na versão digital
tigos sobre fósseis retirados ilegalmente da reportagem.
do país.
ALEXANDER KELLNER_RIO DE JANEIRO/RJ
PROF. TITULAR DO DEPTO. DE GEOLOGIA E PALEONTOLOGIA,
MUSEU NACIONAL DA UFRJ
Por questões de clareza e espaço, a piauí
se reserva o direito de editar as cartas
BOLSONARO selecionadas para publicação. Solicitamos
Nunca pensei que um dia enviaria que as cartas informem o nome e o endereço
uma crítica para a revista piauí, que é a completo do remetente.
melhor na minha opinião. Mas, quan- Cartas para a redação:
do terminei de ler a matéria “O show de REDACAOPIAUI@REVISTAPIAUI.COM.BR

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despedida

TARIFA ESPECIAL
FOI DEMITIDO? PARA CIDADÃO
PERDEU O CARTÃO DE BEM, CAC,
CORPORATIVO? GARIMPEIRO,
ACABOU A MAMATA? FORAGIDOS
RECOMECE A VIDA. NA FLÓRIDA E
ANUNCIE CONOSCO! CONVIDADOS DA
FESTA DA SELMA

PATRIOTA-CHEFE: Olegário Ribamar Orlando, 9 de Janeiro de 2023 PREÇO: $ 75 milhões

SERVIÇOS Troca-se: CARROS VIAGENS


A SUA CAMISETA nas cores ver-
OFERECE-SE: de e amarela, com a frase “O Bra- VENDE-SE: Disney é passado! Conheça a
Pintu ra de meio -fio, sil que queremos só depende de Automóveis seminovos comprados nossa companhia de turismo
feita exclusivamente nós”, pelo mesmo modelo, mas de seguradoras e reformados para especializada em viagens a Ca-
por nosso time de ido- na cor vermelho-soviético (ou garantir segurança. Estado impe- choeiro de Itapemirim, onde
sos desocupados. Aju- vermelho-china, ou também ver- cável, apenas com pequenas racha- o Rei Roberto nasceu. Pacote
de a manter um senhor melho-cuba). Basta trazer a sua dinhas. Pagamento facilitado em 48x Premium inclui consultoria so-
de idade ativo, com a cabeça camiseta puída, velha e sem uti- de R$2 mil. Contato pessoalmente bre seus investimentos com um
cheia, sem tempo para recla- lidade numa de nossas 173 lojas na região de Atibaia, sítio do Frede- craque do Mercado. Vai perder
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co de direito. Tratar com bacaninhas. Procu- nas Ilhas Virgens Britânicas.
generalato@pijama.golpe.br Oferece-se: rar Fabrício.
Defesa jurídica contra proces- NEGÓCIOS & OPORTUNIDADES
so de impeachment. Você é um
Procura-se: governador? De Brasília, por COMPRO OURO:
Editora interessada em exemplo? Que nomeou a pessoa Vende-se: Busco pepitas, lingotes, tijo-
publicar a próxima obra- errada? E foi afastado por um CADEIRINHA para transporte los, paralelepípedos de ouro
prima da literatura mun- careca?
Acesse E corre
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per- de criança. Seminova, usada ape-
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dial antiglobalista. Um opus der o mandato? Nada melhor nas uma vez em um Rolls-Royce por licitação no MEC. Hoje
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Dossiê visando imple- na televisão e recente cargo ipê, jequitibá, jatobá, erétil, uma cartela de cloroqui-
mentar estado de defesa, em circo de Brasília. Colo- mogno, andiroba, ipê-felpudo e na e uma lata de leite conden-
intervenção militar e can- que mais magia no aniver- outras madeiras protegidas. Sem sado. Qualidade e sigilo garan-
celamento de eleição demo- sário, batizado, bar mitzvah certificado de origem, mas com tidos por cem anos. Tratar com
crática. Em formato impresso ou formatura de escola cívi- imunidade parlamentar. Procu- o Capitão. Condomínio Viven-
e auditável. Chega de reclamar co-militar do seu pequeno! rar Ricardo. A partir de feverei- das de Orlando, s/n.
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seu golpe de Estado já. Tratar lhaço.com.br Procura-se:
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da Polícia Federal, ou do 4º Ba- Maroto e fiel, foi visto na área
talhão da PM, ou no presídio SE OFERESSE-SE: Chega de busca r em imobi- do Ministério da Justiça em
da Papuda, em Brasília. Revizão de testos. liár ia . Troque o Zap Imó- Brasília, antes de ser abandona-
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PROCURA-SE: educassão com Zap. São 107 propr iedades voltou ao convívio do tutor, de
Emissora de linha editorial fas- paçagem por Bra- por todo o Brasil. Filial da quem não desgrudou em apari-
cista interessada em nossas opi- sília e no Banco Wal do Açaí em Angra dos ções televisivas, antes
niões isentas. Somos um pool Mundial. Disponevil para che- Reis? Temos! Apa r tamento de ser novamente en-
de comentaristas conhecidos cajem ortografica, gramatica, pa ra comer gente em Bra- xotado. Costuma ser
pela diversidade. Tratar com dramatica, fonografical, foto- sília? Também temos! Sem atraído por sobras da
Augusto, Guilherme, Caio ou grafica e de normas de padrão fiador, sem intermédio de extrema direita. É aris-
Consta em demitidos@velha- ABNTLSTUV . Chamar no ca- banco, tudo negociado em co, cuidado para não
pan.ex-gov.br nal de Youtuber WeinTrouble. dinheiro v ivo. melindrar.

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Obrigado, Pelé!
A alegria dos 1.283 gols se transformou em vida
para nossos meninos e meninas.
O gol é uma fonte inesgotável de alegria.
Une os meninos descalços na rua,
une uma nação em gritos de felicidade
e as vidas transformadas pelo Pequeno Príncipe.
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Seja nos campos de barro vermelho,
no estádio Azteca ou no Maracanã,
aqueles socos no ar são inesquecíveis.
Inesquecíveis pelo poder de transformar
estranhos em irmãos.
Inesquecíveis por fazerem do futebol uma magia.
Inesquecíveis também por apoiarem
o direito à vida e à saúde.
Por meio das crianças atendidas pelo
Pequeno Príncipe, seu legado será eterno!

Se quiser saber como você também pode apoiar a


nossa causa, acesse doepequenoprincipe.org.br

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