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piauí

piauí_194_R$ 32,00_ano 17_novembro_2022


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novembro
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O Brasil, o voto e o mundo Em alta voltagem


Luiz Felipe de Alencastro analisa o impacto Fernando Eichenberg faz o perfil
internacional da vitória de Lula da diretora de teatro Christiane Jatahy

Sinal dos tempos


Armando Antenore revela denúncia
de racismo estrutural na CNN
De ressentido a visionário
Na última parte do projeto Querino,
Felipe Botelho Corrêa relata a descoberta
Perto do apocalipse tardia do antirracismo de Lima Barreto
O mergulho de minha mãe nas teorias
conspiratórias, por Felipe Charbel E mais: Um portfólio de Walter Firmo
JOËL DICKER ESTÁ DE VOLTA
EM SUA MELHOR FORMA
Fenômeno mundial e uma das vozes mais aclamadas
do romance policial, o autor suíço retoma o universo
de A VERDADE SOBRE O CASO HARRY QUEBERT em um
quebra-cabeça irresistível e surpreendente.

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“Não diga que não avisamos: é impossível parar de ler o novo romance de
Dicker. Com o talento de sempre, reencontramos os fantasmas do passado e
nos rendemos a uma aventura impressionante e imprevisível.” — LE PARISIEN
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piauí 194
_ colaboradores_8 Quem fez o quê na edição de novembro
imagens Caio Borges

O PÓS-ELEITORAL
questões vultosas_11 O Brasil que sai das urnas
Luiz Felipe de Alencastro

Sergio Moro e sua reconciliação com Bolsonaro, segundo Alexandrino Alencar, um delator da
esquina_14 Lava Jato; o infortúnio dos irmãos Miranda após delatarem corrupção; como um universitário
aplicado deu de cara com Rondônia; devotos voltam à procissão e lembram mortos da Covid; a
consagração de um jovem violinista da periferia; brasileira faz arte para bebês (e adultos) na
Documenta; a gloriosa aposentadoria do touro Sherlock
imagens Andrés Sandoval

UM CASO RARÍSSIMO
questões raciais_20 Jornalista negro processa a CNN Brasil por racismo estrutural
Armando Antenore + imagem Pablo Saborido

PARTE IV_DE RESSENTIDO A VISIONÁRIO


dossiê piauí_28 Como o meio intelectual brasileiro tardou em reconhecer
a tônica antirracista e universal da obra de Lima Barreto
Felipe Botelho Corrêa + imagem La Cruz

DONAS DE SI
dossiê piauí_34 Uma coleção de retratos de mulheres altivas
Walter Firmo + texto Janaina Damaceno Gomes

“QUERO SER UM REBELDE”


vultos da república_42 Depois da temporada no inferno – com prisão e insultos nas ruas –,
José Genoino volta à vida política mais socialista do que antes
Luigi Mazza + imagem Egberto Nogueira

PREPARATIVOS
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t.me/BRASILREVISTAS
história pessoal_50 Minha mãe e seu mergulho no mundo das teorias conspiratórias
Felipe Charbel + imagem Lucas Tonon

O INIMIGO ERA OUTRO


vultos do antropoceno_54 A jornada extraordinária de Bruno Latour
Bernardo Esteves + imagem Iorgis Matyassy

A COVA RASA DO BRASIL


anais da ditadura_58 Pesquisa para identificar desaparecidos políticos descobre que a maioria dos mortos
na cova clandestina de Perus é formada por pobres da periferia paulistana
Gabriela Mayer + imagem Marcelo Vigneron

O PAÍS DAS FALSIFICAÇÕES


anais do crime_64 O Brasil ainda engatinha na captura de obras de arte fraudadas
Allan de Abreu

CONSTRUINDO ESCRITORES
questões criativas_68 Como as oficinas literárias ensinam a compreender o outro
Reginaldo Pujol Filho + imagem Tom Gauld

O ABISMO EM QUE CAÍMOS


vultos do teatro_72 A diretora carioca Christiane Jatahy encena na Europa a Trilogia do Horror, sobre o governo
Bolsonaro e a mentalidade fascista
Fernando Eichenberg + imagem Leo Aversa

A ÓPERA E O HOSPÍCIO
diário_78 Um barítono conta sua participação em Navalha na Carne, baseada na peça de Plínio Marcos
Homero Velho + imagem Rafael Salvador

INTRUSO NO CIEP
ficção_84 Os policiais militares percorriam as salas de aula com fuzis empunhados
Ronald Lincoln + imagem João Pinheiro

poesia_86 As formas selvagens da alegria


Tarso de Melo + imagens LP Lucas

cartas_88 Dois leitores contratados para adjetivar as matérias


O PAI ETERNO
despedida_90 O homem das cruzes se foi
Caio Barretto Briso + imagem Caio Borges

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Companhia das Letras na

A construção histórica Um comovente poema que Cinco jovens têm a vida


do Sete de Setembro como descreve como o episódio da abalada quando a polícia
marco da Independência Guerrilha do Araguaia forjou a invade a Rocinha para instalar
a partir de profundo estudo história recente do Brasil, narrado uma UPP. Esse é o evento
da cultura visual e política por uma das vozes mais admiráveis central do primeiro romance
em torno do tema. da poesia contemporânea. do autor de O sol na cabeça.

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Inspirado em um crime real Um romance impressionante Em nove contos, Autor de Na minha pele,
ocorrido na capital gaúcha, sobre os efeitos da pandemia Cristhiano Aguiar mergulha Lázaro Ramos escreve pela
Diorama é um estudo único e sobre uma família que, à nos elementos góticos primeira vez para jovens.
sobre as marcas deixadas beira do fim, permanece unida. e folclóricos para criar Uma narrativa sobre dois
em famílias desfeitas pelo narrativas vibrantes irmãos buscando entender
crime e pelo preconceito. e inesperadas, que fogem seu lugar no mundo.
da prosa literária tradicional.

companhiadasletras.com.br | blogdacompanhia.com.br | companhiadasletras.com.br/radio


Toda história
tem muitos lados.
Este é o delas.

Entre as décadas de 1970 e 2010,


Jacqueline Welch, Andrea de Mayo
e Cristiane Jordan comandaram
o centro da cidade de São Paulo.
Três pessoas T que enfrentaram
mudanças políticas e sociais,
sofreram e perpetuaram ameaças
e violências diversas, abusos e crimes.
Contudo, a história delas quase
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aparece nos registros oficiais.

Diante desse apagamento


loquaz, o jornalista Chico
Felitti, com uma narrativa
envolvente e embasada, resolve
montar uma complexa rede
de pesquisa e entrevistas para
reconstituir a história de três
personalidades fundamentais
tanto para São Paulo como para
a comunidade LGBTQIA+.
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colaboradores_ novembro

CAIO BORGES
Ronald Lincoln Armando Antenore Gabriela Mayer Tarso de Melo Janaina Damaceno Gomes Walter Firmo

Luiz Felipe de Alencastro [O pós-eleitoral, Walter Firmo [Donas de si, p. 34], e autor do livro Domingo É Dia de Ciência Homero Velho [A ópera e o hospício,
p. 11], historiador e cientista político, fotojornalista de origem, trabalhou nos (Azougue Editorial). p. 78] é cantor de ópera e professor de
publicou, entre outros livros, O Trato principais veículos brasileiros e é conhecido canto lírico na Escola de Música da UFRJ.
dos Viventes: Formação do Brasil no por retratar o mundo do samba, as festas Gabriela Mayer [A cova rasa do Brasil,
Atlântico Sul (Companhia das Letras). populares e por enfatizar o uso da cor. p. 58], jornalista e crítica literária, é âncora Ronald Lincoln [Intruso no Ciep, p. 84]
Com vários livros publicados, seu acervo e repórter especial da BandNews FM e escritor, roteirista e jornalista, atualmente
Andrício de Souza [Cartuns a partir da está depositado no IMS Rio. Apresentação criadora do podcast Põe na Estante. cobre esportes na TV Globo. O conto
p. 12], cartunista e roteirista, publicou de Janaina Damaceno Gomes, doutora em integra o livro Disritmia, a ser lançado
o livro de quadrinhos O Intestino antropologia social pela USP e coordenadora Allan de Abreu [O país das falsificações, neste mês pela editora Malê.
Eloquente (Espirro). do Grupo de Pesquisas Afrovisualidades: p. 64], repórter da piauí, é autor dos livros Ilustração de João Pinheiro.
Estéticas e Políticas da Imagem Negra. O Delator, Cocaína: A Rota Caipira e Cabeça
Armando Antenore [Um caso raríssimo, Branca (Record). Colaborou Tatiana Pires. Tarso de Melo [Poesia, p. 86] é poeta,
p. 20], editor da piauí, é autor de Júlia e Luigi Mazza [“Quero ser um rebelde”, escritor, advogado e professor, doutor em
Coió, Rita Distraída e Sorri, Lia! (Edições SM). p. 42] é repórter da piauí. Fotografia de Reginaldo Pujol Filho [Construindo escritores, filosofia do direito pela USP. Publicou,
Fotografia de Pablo Saborido. Egberto Nogueira. p. 68] é escritor, professor, tradutor e doutor entre outros livros, Um Mergulho e seu
em letras com especialização em escrita Avesso (Impressões de Minas). Poemas
Felipe Botelho Corrêa [De ressentido Felipe Charbel [Preparativos para o fim do criativa pela PUCRS. Autor dos livros Não, do livro As Formas Selvagens da Alegria,
a visionário, p. 28] é professor mundo, p. 50] é professor da Universidade Não É Bem Isso (Não Editora) e Só Faltou a ser lançado neste mês pela Alpharrabio.
e pesquisador do King’s College Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor o Título (Record). Ilustrações de LP Lucas.
de Londres. Sobre Lima Barreto, de Janelas Irreais: Um Diário de Releituras
publicou Sátiras e Outras Subversões: (Relicário Edições). Ilustração de Lucas Tonon. Fernando Eichenberg [O abismo em que Caio Barretto Briso [O pai eterno, p. 90] é
Textos Inéditos (Penguin-Companhia caímos, p. 72] jornalista, é correspondente repórter. Trabalhou nos jornais O Globo e Folha
das Letras) e A Literatura Militante Bernardo Esteves [O inimigo era outro, internacional em Paris desde 1997 e autor de S.Paulo, e nas revistas Veja Rio e Isto É.
de Lima Barreto (e-galáxia). p. 54], repórter da piauí, é apresentador dos livros de entrevistas Entre Aspas,
Ilustração de La Cruz. do podcast A Terra é Redonda (Mesmo) vol. 1 e 2 (L&PM). Ilustrações de Esquina por Andrés Sandoval.

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1º DE NOVEMBRO DE 2022

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questões vultosas_ESTE ARTIGO ENCERRA A SÉRIE ANALÍTICA SOBRE AS ELEIÇÕES DE 2022

DERROTADOS E VENCEDORES
Como a eleição brasileira se conecta com as questões mundiais

LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO

ALLAN SIEBER_2022
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C
omo ocorreu agora na campa- gime federativo, ao revés de toda a congressos latino-americanos. De iní- nos anos finais da Segunda Guerra.
nha presidencial com o tema tradição centralista republicana fran- cio cultivada por juristas brasileiros e Apresentando-se como o único gover-
do meio ambiente, houve, na cesa e portuguesa, o Brasil se america- latino-americanos, a noção de latino no de país latino que tinha tropas com-
história contemporânea, acon- nizou de vez. Considerado até então americanismo impregnou em seguida batendo ao lado dos Aliados na Europa,
tecimentos políticos brasilei- pelos pensadores latino-americanistas economistas e sociólogos da Cepal, o Brasil ganhou destaque em Washing-
ros que interagiram diretamente com como quinta coluna das monarquias formando dirigentes e administrado- ton e Londres. Em julho de 1944, na
pautas internacionais. colonialistas europeias, o Brasil se res que tiveram um papel instrumen- Conferência de Bretton Woods, que
Com a proclamação da República aproximou de seus vizinhos. Campos tal na criação do Mercosul. instituiu o FMI e preparou a criação da
em 1889 e a Constituição de 1891, o Sales fez em 1900 a primeira visita ofi- Outro acontecimento decisivo de ONU e do Banco Mundial, a delegação
Brasil deixou de ser a única monar- cial de um chefe de Estado brasileiro interação do Brasil com a geopolítica do Brasil se destacava entre os 44 paí-
quia das Américas. Ao instaurar o re- à Argentina, e o Rio de Janeiro sediou continental e internacional ocorreu ses participantes. Assim, no começo do

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tando a eventual reeleição de Bolsona- dos pilares de sua base eleitoral. Resta
ro como uma ameaça planetária. que, como é sabido, o agronegócio está
Confirmando este ponto de vista, ho- bem representado no Congresso e nos
ras depois da vitória de Lula, afluíram governos estaduais do Centro-Oeste,
mensagens de congratulações envia- mas também no Sul e no Sudeste. Aqui
das por dezenas de governantes de paí- há dois pontos a serem sublinhados.
ses dos cinco continentes, incluindo os A ocupação grileira das terras públicas
dirigentes da União Europeia, que ex- e dos territórios indígenas demarcados
plicitaram a centralidade da questão nunca foi exclusiva do latifúndio. Des-
climática. Do outro lado do mundo, o de o século XIX, essa ofensiva sempre
primeiro-ministro australiano, An- teve apoio popular, entre posseiros,
thony Albanese, saudou a “tremenda sem terra e pequenos criadores e fazen-
vitória” de Lula, acrescentando que deiros. Em segundo lugar, para além
deseja colaborar com o novo presidente da mobilização do eleitorado urbano e
brasileiro na preservação do meio am- periférico evangélico, Bolsonaro foi o
biente planetário. Annalena Baerbock, primeiro líder oriundo de outras bases
ministra do exterior da Alemanha, foi ultraconservadoras nacionais a se apro-
mais enfática, declarando, sem men- ximar decididamente dos setores mais
ção aparente a Lula, que havia dois predatórios do agronegócio. Em seu
grandes vencedores no domingo à noi- livro revelador sobre a formação políti-
te: a democracia brasileira e o “clima ca do agronegócio, o antropólogo Caio
mundial”. “Clima mundial” aparece Pompeia escreve que, em 2017, en-
aqui como um princípio tão transcen- quanto associações do setor discutiam
dente quanto o tema da “paz mundial”, se apoiavam Geraldo Alckmin ou João
ANDRÍCIO DE SOUZA_2022

nos documentos oficiais do pós-guerra. Doria nas presidenciais de 2018, Bolso-


O histórico dos incidentes entre o gover- naro viajava por diversos estados para
no Bolsonaro e o Fundo Amazônia, fi- dialogar com lideranças de extrema
nanciado pela Alemanha e, mais ainda, direita da agricultura patronal, defen-
pela Noruega, constitui um bom exem- dendo propostas “extremamente críti-
plo dos custos que a política bolsona- cas à política ambiental, à demarcação
rista impôs ao país. de terras indígenas”, à reforma agrária
Criado em 2008 e gerido pelo BNDES, e às restrições ao uso de armas.
o Fundo Amazônia se destina ao mane- Convém lembrar que a predação das
jo florestal, preservação ambiental e florestas e de seus povos tradicionais foi
monitoramento de atividades na Ama- erigida como doutrina dominante bra-
ano seguinte, na Conferência de Yalta, decisivo da vitória pela liberdade em zônia legal. Contando com 3,1 bilhões sileira depois de ter sido formulada
na Criméia, onde Winston Churchill, meados
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Canal XX ”.2
no Telegram: de reais doados principalmente pela num relatório oficial do Ministério da
t.me/BRASILREVISTAS
Franklin Roosevelt e Josef Stalin se Enfim, no domingo, 30 de outubro, Noruega (93,3%) e, numa menor medi- Agricultura por ninguém menos que
reuniram para redesenhar a nova or- a eleição realizada no Brasil, que tem o da pela Alemanha e pela Petrobras, o Oliveira Vianna. No texto Evolução do
dem internacional, o Brasil foi cogita- quarto maior colégio eleitoral do mun- Fundo teve sua gestão contestada pelo Povo Brasileiro, de 1923, que já analisei
do para ser o titular de uma sexta do, também impactou a política inter- então ministro do Meio Ambiente, alhures, ele afirma: “Nessa obra de con-
cadeira permanente no Conselho de nacional ao ser analisado sob o prisma Ricardo Salles. O aumento do desma- quista civilizadora da terra, o bugreiro
Segurança da ONU.1 Visando facilitar da policrise. Popularizado mais recen- tamento na Amazônia, constatado vence o obstáculo material, que é o ín-
a manobra diplomática junto a Mos- temente pelo historiador britânico pelo Instituto Nacional de Pesquisas dio nômade, povoador infecundo da
cou, Edward Stettinius, secretário de Adam Tooze, o conceito define a ocor- Espaciais (Inpe) em 2019, suscitou um floresta infecunda. Há porém um outro
Estado norte-americano, se encontrou rência simultânea de crises sistêmicas embate administrativo e um confronto obstáculo jurídico, que é o direito de
com Getúlio Vargas em Petrópolis – instabilidade financeira, entraves ao diplomático. Negando que a degrada- propriedade (...) É ao grileiro que cabe
para solicitar que o Brasil reconheces- comércio internacional, implicações da ção da Amazônia tivesse se acelerado, resolver esta dificuldade. É ele que vai
se a União Soviética com quem cor- pandemia de Covid, degradação do Bolsonaro declarou: “Estou convenci- dar ao colonizador progressivo, cheio
tara relações em 1917. Pouco depois, meio ambiente, instabilidade climática, do de que os dados de desmatamento de ambições e de capitais, o direito de
Brasil e URSS estabeleceram relações erosão de regimes democráticos, guerra são mentira”, dizendo ainda que o Inpe explorar este tesouro infecundo. Para
diplomáticas. A morte de Roosevelt, na Europa sob ameaça nuclear –, que parecia agir “a serviço de uma ONG”. isso cria, pela chicana e pela falsidade,
próximo de Vargas, e a saída de Oswal- interagem e põem em perigo o equilí- O incidente levou à demissão do diretor o indispensável título de propriedade.
do Aranha do governo, assim como a brio social e natural terrestre. do Inpe, Ricardo Galvão, cujo nome (...) O bandeirante antigo, preador de
irrupção da Guerra Fria, puseram Nesta ordem de ideias, temida por está agora cotado para ser o ministro da índios e preador de terras, rude, maci-
um termo ao projeto, ressuscitado sua política de desmatamento na Ama- Ciência e da Tecnologia do próximo ço, inteiriço, brutal, desdobra-se pela
posteriormente nas duas presidên- zônia, a reeleição de Bolsonaro se governo Lula. própria condição do meio civilizado em
cias de Lula. apresentava como um fator agravante No plano diplomático, o desma- que reponta: e faz-se bugreiro insidioso,
Um terceiro episódio, o golpe mili- da mutação climática planetária e, tamento e o incidente com o Inpe le- eliminador do íncola inútil, e grileiro
tar perpetrado em 1964, em plena desde logo, como um componente varam os governos da Noruega e da solerte, salteador de latifúndios impro-
Guerra Fria, foi saudado por órgãos imediato da policrise.3 Tal foi o signi- Alemanha a suspender o financia- dutivos. Exercem ambos, porém, duas
influentes da imprensa ocidental como ficado da veemente tomada de posição mento do Fundo Amazônia. Pouco funções essenciais à nossa obra de ex-
uma vitória contra a subversão comu- de importantes jornais ocidentais, do depois da confirmação da eleição de pansão colonizadora: e a ferocidade de
nista mundial, promovida pela URSS, New York Times ao Le Monde, interpre- Lula, houve uma inversão de expecta- um e a amoralidade de outro tem assim,
mais ainda, pela Cuba castrista, consi- tivas. O ministro norueguês do Meio para escusá-las, a magnitude incom-
derada com a vanguarda soviética na 2 Clarence W. Hall, The Country that Saved Itsef, Ambiente confirmou que seu governo parável dos seus objetivos ulteriores”.
América Latina. Lincoln Gordon, en- Reader’s Digest, reportagem especial, novembro de
1964, publicada nos Estados Unidos, no Brasil e em
irá reativar o Fundo. A “marcha para o Oeste” lançada por
tão embaixador norte-americano no mais de uma dezena de países de diferentes línguas. Caso tivesse sido reeleito, Bolsonaro Getúlio Vargas em 1943, em pleno Es-
Brasil, declarou: “Os historiadores do 3Morin, Formulado em 1999 pelo sociólogo francês Edgar
o conceito de policrise ganhou nova atualidade
prosseguiria na sua marcha bandeiran- tado Novo, e a abertura da rodovia Be-
futuro poderão registrar a revolução com os acontecimentos indicados acima. Veja-se Mi- tista, investindo contra os territórios lém-Brasília, no governo de Juscelino
brasileira [de 1964] como o fato mais chael Lawrence, Scott Janzwood e Thomas Homer-Di-
xon, What Is a Global Polycrisis? And How Is It Different
indígenas e a preservação da Amazô- Kubistchek, assim como o programa
from a Systemic Risk?, Cascade Institute, discussion nia, visto que o agronegócio e as po- para sua malograda campanha presi-
paper, #2022-4, Setembro 2022 (acessível online);
1 Le Brésil sera-t-il reconnu comme sixième grande Adam Tooze, Polycrisis: Thinking on the Tightrope,
pulações dos estados em que essa dencial em 1965, com o lema “A vez
puissance mondiale?, Le Monde, 24/02/1945 Chartbook #165, 29/10/2022 (acessível online). atividade é dominante constituem um da agricultura”, não estavam longe de

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mentalidade desbravadora e predadora Alagoas, Maranhão, Mato Grosso, peachment de Dilma Rousseff, o mi- ção diferente. Os eleitores conside-
elogiada por Oliveira Vianna. Pará e Piauí. Daí a mudança introdu- nistro Gilmar Mendes, quando presidia raram que o Estado deve auxiliar os
zida pelo Pacote de Abril, imposto o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que atravessam dificuldades e ponto

M
as há também outros impactos pela ditadura em 1977. O quociente declarou: “Com o Bolsa Família gene- final: o apoio ao governo segure outra
significantes da atual política eleitoral calculado para o número de ralizado, querem um modelo de fideli- ordem de constatações.
brasileira. Na campanha, pela deputados passou a ser baseado não zação que pode levar à eternização no Porém, as arbitrariedades e abusos
primeira vez, um presidente enfrentou mais na quantidade de eleitores esta- poder. A compra de voto agora é insti- eleitorais gerados pelo instalação do
no segundo turno um ex-presidente, duais, mas na de habitantes, com a tucionalizada”. Embora já houvesse “estado de emergência” e o Auxílio
acirrando o debate e as preferências de finalidade de aumentar a bancada dos sido denunciado no processo sobre a Brasil deixaram sequelas, cujos efeitos
voto. Em 2018, pela primeira vez o deputados do Nordeste e do Norte, corrupção na Petrobras (março) e no nefastos podem ressurgir nas eleições
eleitorado brasileiro elegeu um presi- onde havia mais analfabetos. caso do tríplex (maio), Lula ainda não municipais de 2024. Quem impedirá
dente de extrema-direita. Mesmo der- Transformado em base do partido sofrera nenhuma condenação judicial um prefeito candidato à reeleição de ob-
rotado por uma pequena porcentagem do regime, o eleitorado nordestino foi e tudo indicava que se recandidataria à ter na Câmara Municipal o voto de um
Bolsonaro se consolida como uma ironizado por analistas, jornalistas e até presidência em 2018. Na circunstância, “estado de emergência” local – por
grande liderança nacional, capaz de por políticos republicanos, como Tan- a existência do Bolsa Família configu- causa de uma enchente ou da queda
vencer eleições com candidatos a sena- credo Neves. Pensou-se que o Brasil rava um dilema para o governo de Mi- de uma ponte – autorizando-o a criar
dor e a governador improvisados, como podia evoluir para um regime próximo chel Temer e, em seguida, para o um auxílio municipal? A generaliza-
se viu em vários estados. Também pela do modelo da Turquia, no qual um go- governo de Bolsonaro: Como desmon- ção de tais práticas contrárias à legis-
primeira vez o eleitorado evangélico verno conservador/autoritário disporia tar as bases eleitorais de Lula sem cor- lação eleitoral levantará questionamentos
obteve uma posição de destaque nos de uma base eleitoral sólida nas zonas tar o auxílio oficial às famílias pobres? sobre o próprio instituto da reeleição
setores ultraconservadores e no tabu- rurais conservadoras e religiosas para Ao arrepio da legislação eleitoral, nas três esferas de poder.
leiro político brasileiro. enfrentar o eleitorado mais progressis- o Congresso instituiu, por iniciativa No meio da grande perplexidade
Há outros fatos mais prometedores. ta e laico das cidades. Sabe-se que a do governo, um “estado de emergên- dos analistas, dos equívocos dos institu-
Primeiro, é preciso retornar ao momen- partir de 2006, com o Bolsa Família e cia” que deu lugar ao Auxílio Brasil e tos de pesquisa, das notícias alarmantes
to de ruptura do regime ditatorial, nas a política social dos governos petistas, aos seus sucessivos aumentos e pror- a respeito de milhões de fake news
eleições de 1974. No quadro do bipar- o quadro se inverteu. O Nordeste se rogações. Armado com tais subsídios, inundando os celulares brasileiros na
tidarismo imposto pelo regime, o MDB transformou em base eleitoral do lulis- a campanha bolsonarista contava ar- véspera da eleição de domingo, a maio-
venceu nos principais estados e nas mo, na caracterização de André Singer. rebatar boa parte do eleitorado popu- ria do eleitorado popular manteve auto-
grandes cidades. Sobretudo, o partido Acentuaram-se então as críticas no lar. Ora, como mostrou o instituto nomia política e consciência cidadã.
emplacava 16 dos 22 senadores eleitos. Congresso e na mídia aos governos pe- Datafolha, o apoio a Lula entre os Entretanto, uma evidência se impõe: a
A Arena, legenda que dava sustentação tistas em razão de sua implantação em beneficiários do Auxílio Brasil não união dos conservadores e da extrema
política ao regime, só elegia senadores zonas desfavorecidas do Nordeste e das cessou de aumentar, atingindo 61% direita sofreu uma derrota, mas os elei-
em estados que, à exceção da Bahia, regiões metropolitanas. Em outubro de dois dias antes do segundo turno. tores progressistas e os republicanos
tinham pouco peso eleitoral, isto é, em 2016, algumas semanas depois do im- Tais dados sugerem uma interpreta- não são vencedores. J

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piauí_novembro 13
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esquina

ANDRÉS SANDOVAL_2022
A DANÇA DOS ESCORPIÕES
Sergio Moro e sua reconciliação com Bolsonaro, segundo Alexandrino Alencar, um delator da Lava Jato

N
o momento em que viu pela tele- Odebrecht para tratar dos assuntos liga- expor. Mas Alencar resolveu botar a nagens da empresa. E Alencar lamenta
visão o ex-juiz e senador eleito dos a Lula. Esmiuçou, entre outras coisas, boca no trombone. Em entrevista para a situação atual da empreiteira. “A Ode-
Sergio Moro (União- PR) saraco- as despesas que a construtora teve, entre o documentário Amigo Secreto, da dire- brecht está uma terra arrasada. Talvez
teando de novo ao lado de Jair Bolsona- 2010 e 2011, com reformas no sítio em tora Maria Augusta Ramos, afirmou sobreviva, o Emílio tem esperança nisso.
ro, no primeiro debate do segundo turno, Atibaia usado pelo ex-presidente. O de- pela primeira vez que fora pressionado pe- Mas, para além de uma crise de reputa-
o ex-diretor de Relações Institucionais poimento resultou na condenação de los procuradores da Lava Jato a incluir ção, tem o dado de que o país parou de
da Odebrecht, Alexandrino Alencar, sen- Lula, em 2019, a doze anos e onze meses Lula em seu depoimento, de outra forma crescer e não tem mais obras.”
tiu-se brochético. “Em termos amplos, de prisão por corrupção e lavagem de di- não teria redução de pena. Ele diz que, No fim da conversa, Alencar revisa a
achei que era uma soma negativa de nheiro na ação sobre o sítio. No ano pas- por causa da participação no filme, reto- cena de Moro a tiracolo de Bolsonaro no
duas pessoas menores, unidas outra vez sado, o STF considerou que Sergio Moro mou contatos eventuais com integrantes debate com Lula. “Qual é a motivação
por oportunismo. Pareciam dois escor- agiu com parcialidade em todas as ações do PT, inclusive com Lula. dele para aparecer de novo ao lado de Bol-
piões. Mas, em termos de português de em que atuou contra Lula. O processo sonaro? Deixar o Senado e ir para o STF?

A
rua, pensei: que coisa brochante...” do sítio foi, então, anulado. lexandrino Alencar analisa a Lava Pode ser. Mas, a curto prazo, é o antipetis-
Sentado em um banco de madeira, com “E aí Moro reaparece ao lado do Bol- Jato como um grande mecanismo mo, a única coisa que sobrou da Lava
os braços cruzados e as pernas estendidas, sonaro, depois de sair do governo dele eleitoral – e não judiciário. “Não à Jato.” O ex-diretor de Relações Institucio-
Alencar falava de um jeito pausadoAcesseen- fazendo acusações, e fica mais evidente toa todos
nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS os processos estão indo agora nais da Odebrecht diz que já teve raiva de
quanto lembrava a cena que o deixara tão que eu dizia a verdade: eles só queriam para a Justiça Eleitoral; era quase tudo Moro. Mas superou. “Hoje tenho é pena
desanimado. Faltavam onze dias para o pegar o Lula. Eu era só um dos instru- sobre caixa dois”, diz. E mais do que isso, do Brasil, com essas eleições desesperado-
segundo turno das eleições e ele estava mentos que poderiam comprometê-lo”, defende ele: as intenções de Moro eram ras, que viraram uma luta de classes sem
na arborizada área externa da biblioteca diz Alencar. “Na época em que negociá- estritamente antipetistas. “A Lava Jato sentido.” Em seguida, ele entra na biblio-
municipal Álvaro Guerra, no Alto de Pi- vamos a delação, o Moro não queria ouvir não foi uma operação contra a corrup- teca, cumprimenta as funcionárias – ficou
nheiros, em São Paulo. Nesse lugar ami- os executivos das empreiteiras. As nossas ção. Eu mesmo citei várias e várias pes- amigo de todas –, aponta para uma estan-
gável, com grandes portas de vidro, livros presenças eram meramente burocráticas. soas, de vários partidos, que receberam te em formato de trenzinho no espaço
organizados com capas à mostra, pufes e Ele já tinha tomado todas as decisões, ni- dinheiro de caixa dois, mas elas nem reservado para a literatura infantil e per-
mesas coloridas, ele cumpre pena comu- tidamente. Precisava nos ouvir por dever foram processadas. Essa força-tarefa da gunta: “Não é o máximo esse lugar?” J
nitária de 22 horas mensais. “Duas vezes de ofício e não para esclarecer o julga- Lava Jato é um case, é um grupo ideoló- Angélica Santa Cruz
por semana, estou aqui à disposição. Se mento. Mas tudo o que falei sobre minha gico que precisa ser estudado. Fui entre-
precisar, fico na recepção ou ajudo em relação com o Lula era verdade – e era vistado por vários desses procuradores,
qualquer outra coisa. Quando não me tudo transparente, nada era ilegal.” homens de uma agressividade monstruo- A DENÚNCIA E O CASTIGO
exigem nada, leio.” Alencar ficou quatro meses preso na sa, com o beneplácito do Moro e diante O infortúnio dos irmãos Miranda
Além de marcar presença na biblioteca, carceragem da Polícia Federal, em da pasmaceira da imprensa, o que me após delatarem corrupção
o ex-executivo precisa se apresentar à Jus- Curitiba. “Por algum chip cerebral ma- impressiona até hoje. Eles só queriam o

N
tiça uma vez por mês e assistir a quarenta luco, levei na boa, até porque os outros PT”, acusa. “E você não pega o PT sem o Congresso Nacional, o corpora-
horas anuais de aulas sobre compliance. quatro companheiros da Odebrecht an- pegar Lula, porque Lula é maior do que tivismo é lei, e a máxima “amanhã
Escolheu cumprir esse naco da pena no davam com o astral muito baixo.” Entre o PT, ao contrário de Bolsonaro, que é pode ser você” serve de advertên-
Insper – Instituto de Ensino e Pesquisa. eles, estava o ex-presidente da empreitei- menor do que o bolsonarismo.” cia para que deputados e senadores nun-
“Eu animo a sala”, conta. “Conheço to- ra, Marcelo Odebrecht, que passava os Aos 74 anos, Alencar parou de traba- ca denunciem transgressões de seus
dos os professores e brinco com eles: ‘Só dias “no mundo dele”. Também esta- lhar depois que saiu da prisão – acha que pares. O deputado federal Luis Miranda
estou aqui por causa da Operação Lava vam na mesma galeria outros presos da seria complicado, por causa das restrições (Republicanos- DF) ousou romper essa
Jato.’” Alencar já não usa tornozeleira ele- Lava Jato, como José Dirceu, ex-minis- do regime aberto. Formado em química norma tácita. Em junho de 2021, no
trônica, mas ainda está proibido de sair tro da Casa Civil, e João Vaccari Neto, e em direito, ele fez mais uma faculdade, auge da pandemia, ele e seu irmão, o
de casa nos fins de semana. E tem mais ex-tesoureiro do PT. “Você vê o mundo de ciências sociais, e agora está estudando servidor público Luis Ricardo Miranda,
dois anos de regime aberto pela frente. cão das pessoas, cada um se defenden- ciências políticas. Duas vezes por sema- denunciaram um esquema de corrup-
do, cada um contando suas histórias”, na, publica no LinkedIn textos sobre te- ção no coração do Ministério da Saúde,

F
oi Moro quem condenou Alencar, recorda. “Eu lia muito, refletia muito. mas que vão da importância de frequentar envolvendo a negociação do item mais
em 2016, a treze anos e seis meses E não tem jeito, você fica diferente.” bibliotecas a histórias familiares. Todos os urgente do mundo: a vacina.
de prisão pelos crimes de lavagem Quando acabou o regime fechado, as dias, lê quatro jornais e faz um clipping Os irmãos Miranda levaram o caso
de dinheiro e corrupção ativa – pena re- duas filhas de Alencar arrancaram dele que envia para Emílio Odebrecht, funda- em primeiro lugar a Jair Bolsonaro, que
duzida para seis anos e seis meses, mais três promessas: ir a sessões de análise, dor da empreiteira, de quem ainda é mui- lhes teria dado o nome do parlamentar
pagamento de multas, depois de um andar em carro blindado – elas temiam to amigo. “Sou umas das poucas pessoas responsável pelo esquema. “Isso é coisa
acordo de delação premiada. retaliações pelo pai ter feito a delação que ainda falam com os dois, Emílio e de fulano”, foi a resposta do presidente
Diante dos procuradores, Alencar nar- premiada – e nunca mais falar com Marcelo”, conta. Pai e filho romperam que o deputado Luis Miranda citou na
rou o período em que foi destacado pela Lula. Também pediram para ele não se depois que a Lava Jato entrou nas engre- CPI da Covid, alegando não lembrar

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quem seria o tal fulano. Espremido por absolvido. A pedido do Planalto, a PF ten- do defende como uma pessoa correta.” que nós destruímos a nossa família para
seis horas na CPI, em 25 de junho, ele tou incluir Miranda como investigado por De forma incisiva, ele criticou a falta de proteger a vida do povo do Brasil. Que
finalmente deu nome aos bois: “Foi o denunciação caluniosa, mas a Procurado- ação de Bolsonaro: “Que presidente é um dia, quando ficar tudo inteiramente
Ricardo Barros que o presidente falou.” ria-Geral da República descartou investi- esse que tem medo de pressão de quem comprovado, se porventura ficar, nós va-
Barros (PP-PR) era – e ainda é – o líder do gá-lo. A própria PF e o Ministério Público está fazendo o errado? De quem desvia mos ser tidos como heróis”, diz o parla-
governo na Câmara dos Deputados. Federal concluíram, neste ano, que houve dinheiro público das pessoas morrendo mentar Luis Miranda. “Mas, até lá, nós
Um ano e meio depois, o Miranda par- fraudes e estelionato envolvendo o dono e pela porra dessa Covid.” somos os homens que perderam.” J
lamentar, destroçado pela máquina de diretores da Precisa Medicamentos, a em- De saída do Congresso, Miranda não Breno Pires
propaganda bolsonarista, não conseguiu presa envolvida no esquema da Covaxin. se conforma com a eleição recente de
se reeleger (candidatou-se, desta vez, por O MPF apresentou uma denúncia, mas o acusados de corrupção. “Você tem o pre-
São Paulo). O Miranda servidor público, processo foi paralisado por decisão do Tri- sidente do PL [Valdemar Costa Neto, que O BOM PENETRA
ameaçado de morte, ingressou no serviço bunal Regional Federal da 1ª Região. cumpriu pena por corrupção], que conse- Como um universitário aplicado
de proteção de testemunhas da Polícia Fe- Ao lado da ofensiva legal contra Mi- guiu a maior bancada do Congresso. deu de cara com Rondônia
deral e, segundo o irmão, deixou o Brasil. randa, havia outra frente de ataque, nos Algo incrível. Você tem o próprio Ricardo

O
Luis Miranda acredita que três forças subterrâneos digitais. O deputado diz Salles [ex-ministro do Meio Ambiente, in- estudante de direito Thiago Henri-
minaram sua candidatura: o ataque nas que sua campanha à reeleição foi sabo- vestigado em um esquema de exportação que Surita, de 24 anos, não sabia
redes sociais, que ele atribui ao “gabinete tada por fake news e pelo uso de robôs. ilegal de madeira, eleito deputado federal], patavina sobre o tema do trabalho
do ódio, com hackers profissionais”, a po- As acusações que lhe faziam eram varia- e tantos outros acusados de corrupção, em grupo. Calouro da Faculdade Católi-
larização ideológica que marcou a elei- das. “Disseram que eu traí o presidente, devidamente comprovada ou com o pro- ca de Rondônia, em Porto Velho, entrara
ção e seu isolamento no Congresso, que menti para promover a CPI, que me cesso em andamento, que tiveram êxito para o curso em agosto, mas, como faltas-
que resultou até no bloqueio de suas aliei a Renan Calheiros, que queria gra- exemplar”, diz. “A população não liga se sem alunos para uma nova turma, foi jo-
emendas parlamentares. Esta última é a na e que, como o presidente não me deu, a pessoa rouba. O que importa para o elei- gado para o período seguinte. “Se vira”, foi
mais grave, pois foi uma punição com tentei prejudicá-lo.” Miranda garante que tor de direita é o alinhamento do candi- como entendeu a coisa. Caiu numa disci-
as marcas do Poder Executivo. “Eles a história foi bem diferente: ele diz que, na dato com Bolsonaro ou se ele é contra o plina em que a professora apresentara um
acabaram comigo”, diz o deputado, que verdade, tentou ajudar o presidente: “Fui comunismo no Brasil. É essa a narrativa.” tema – os desassistidos da sociedade brasi-
está em seus últimos meses na Câmara até ele avisar que meu irmão tinha dado Também exasperam o deputado os ex- leira – e dividira a turma em grupos, cada
– o mandato termina em 31 de janeiro. depoimento à PF sobre possível corrupção aliados que romperam com Bolsonaro, qual dedicado a um aspecto da questão.
“Mas estou firme acreditando que ain- na Covaxin e que ele deveria agir antes mas depois se curvaram ao presidente em Se virar, então, significava sair atrás de alu-
da posso ajudar o nosso país.” Com esse que isso se tornasse um problema midiá- busca da reeleição. “Sergio Moro estava nos mais adiantados “que me aceitassem”.
espírito, ele continua denunciando o tico. Se ele não fez nada, eu não poderia perdendo, fez uma reaproximação com A maioria dos grupos já estava forma-
governo Jair Bolsonaro. mentir na CPI e complicar a minha vida Bolsonaro e se elegeu senador pelo Para- da, mas Surita deu sorte. Num deles, duas
Agora, o deputado contou à piauí que, para protegê-lo.” ná”, diz Miranda. “A esposa dele [Rosân- alunas “foram às vias de fato”. “Uma falou
em retaliação à sua denúncia de corrup- Miranda afirma que as suas contas nas gela Moro, eleita deputada] fez o mesmo mal da outra, a outra não gostou: ‘Ah, é
ção nas negociações para a compra da redes sociais tinham visualizações men- aqui em São Paulo. Pablo Marçal, que assim? Então toma!’”, ele conta. Desisti-
vacina Covaxin, o governo cortou 40 mi- sais na faixa de 10 milhões, mas sofreram falou mal do Bolsonaro na campanha, ram do trabalho, e foi dessa forma que ele
lhões de reais em emendas “extras” que queda de 90% no período eleitoral. Le- depois de se render e falar ‘Bolsonaro na encontrou seu lugar, não por interesse no
lhe havia prometido. A verba não faziaAcessevantamentos apontavam
nosso CanalSão no como cabeça’t.me/BRASILREVISTAS
PauloTelegram: também se elegeu.” Miranda acha tema de pesquisa, mas graças ao acaso de
parte de sua cota regular de emendas in- a cidade onde ele tinha a maior audiên- que a população está “hipnotizada” – par- um salseiro entre duas (ex-)amigas. O tó-
dividuais, mas seria concedida em troca cia, mas, de repente, a ação de hackers, te dela por Bolsonaro, parte por Lula. pico do seu grupo era a relação entre saú-
do seu voto a favor do governo em pautas segundo ele, dirigiu para Moscou, na A piauí tentou ouvir o servidor Luis de indígena e violência contra povos
sensíveis na Câmara, com destaque para Rússia, a maior parte das visualizações e Ricardo Miranda, que desde outubro de originários, assunto sobre o qual o rapaz
uma votação específica: garantir que Ar- congestionou suas redes sociais, impedin- 2021 vive em um país cujo nome não admitiu a sua mais absoluta ignorância.
thur Lira vencesse a eleição para presi- do que outros tivessem acesso. pode ser revelado, segundo o irmão par- Suas colegas logo começaram a repetir
dente da Casa, em fevereiro de 2021. Para apoiar a afirmação, ele recorre lamentar. Por razões de segurança, não um nome desconhecido: “‘A Tichai, a Ti-
De início, seu apoio a Lira pegou bem. ao relatório que encomendou à Conve- foi possível contatá-lo. A PF não dá infor- chai, a gente tem que falar com a Tichai.’
“Prometeram 20 milhões de reais para xum, uma empresa de monitoramento e mações sobre integrantes de programas Era Tichai pra cá, Tichai pra lá.” Quem
colocar em obras e estradas aqui no Dis- comunicação digital. O documento con- de proteção. “O meu irmão sempre fala era? Uma garota indígena de Rondônia,
trito Federal, pelo Ministério do Desen- tabiliza o prejuízo causado por robôs que explicaram, aquela que fez o discurso de
volvimento Regional”, diz Luis Miranda, sabotavam suas postagens e por anún- abertura numa conferência internacional
que tratou do tema com o presidente da cios pagos em rede social. superimportante e produziu um filme
Companhia de Desenvolvimento dos Va- Um terceiro fator teria esvaziado a que estava passando no mundo inteiro.
les do São Francisco e do Parnaíba (Code- campanha de Miranda: depois de seu Ele pensou: “Estão querendo falar com
vasf). Ele esperava outros 20 milhões por depoimento à CPI, ele ficou sem lugar em essa famosa aí?” Nunquinha.
emendas disponibilizadas no Ministério um cenário político fortemente polariza-

R
da Educação, mas a verba foi barrada de- do. “Tive aceitação enorme e carreatas apaz pragmático, Surita começou
pois que os irmãos fizeram a denúncia. com milhares de pessoas. Porém, em pelo que parecia mais à mão: a Fu-
“Me tiraram tudo [os 40 milhões de reais] todo o momento perguntavam: ‘Você é nai (Fundação Nacional do Ín-
depois dessa confusão. Não recebi nada.” Bolsonaro, não é?’”, conta. O deputado dio). O funcionário foi gentil, mas disse
Para se eximir de responsabilidade, diz que não é contra Bolsonaro, mas con- que o tema era delicado e que as ordens
Bolsonaro gosta de dizer que o orçamen- tra a corrupção. “É impossível a gente se de cima eram para não dar entrevista.
to secreto é “coisa do Congresso”, como calar sabendo da corrupção na vacina, Tentou a Secretaria Especial de Saúde
se ele não tivesse o poder de barrar a li- devidamente comprovada agora pela Indígena (Sesai). Nada. Tentou o Distri-
beração das emendas – poder que, no CGU, pelos órgãos de controle e pelo Mi- to Sanitário Especial Indígena (Dsei) de
caso, usou sem titubear. Procurada para nistério Público Federal, que pediu o Porto Velho, onde a pessoa receptiva que
explicar os cortes de emendas alegados indiciamento dos envolvidos.” Luis Mi- o atendeu caiu de cama e semanas de-
pelo parlamentar, a secretaria de comu- randa esperava ter 100 mil votos em São pois, dado o silêncio, parecia não ter me-
nicação da Presidência não respondeu. Paulo. Conseguiu somente 8.931. lhorado. E os dias passando, passando.
Decidiu então que o jeito era apostar

O N
deputado Luis Miranda enfrentou aquela distante noite em que ele- na tal Tichai. Não nela especificamente,
um processo de meses no Conselho trizou o país na CPI, o deputado pois seguia convencido de que famosos e
de Ética e Decoro Parlamentar da Miranda desabafou, como que calouros não se misturam, mas nos círcu-
Câmara, acusado de agir de “má-fé” ao prevendo o infortúnio: “Vocês não sa- los dela. Apurou que ela trabalhava na
revelar a conversa com Bolsonaro, ocorri- bem o que eu vou passar por apontar um Associação de Defesa Etnoambiental
da em 20 de março de 2021. Terminou presidente da República que todo mun- Kanindé fundada pela ativista Ivanete

piauí_novembro 15
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frente à associação. Era o cônsul-geral do filho entrou em depressão. “Minha fé


Japão, que pedira uma conversa com ficou abalada”, diz. Por causa da pande-
Txai Suruí. A jovem ativista apareceu na mia, romarias foram suspensas em 2020.
porta: “Quer participar?” Thiago largou Em outubro, época da festa do Círio de
o café e se juntou a Kuaimbu e Waldemir Nazaré, ele estava confinado em casa,
Karitiana, outra liderança indígena. O côn- com a avó. “Foi um tempo de lembran-
sul e sua assessora entraram na sala de Txai ça e muito choro”, conta.
Suruí, Thiago e os rapazes os seguiram,

D
e a porta se fechou. J epois de uma vida inteira come-
João Moreira Salles morando o Círio de Nazaré com
toda a família, a funcionária públi-
ca Márcia Nascimento, de 45 anos, tam-
O CÍRIO E A SAUDADE bém passou o dia da padroeira de 2020
Devotos voltam à procissão isolada em casa, na companhia dos pais
e lembram mortos da Covid idosos. Foi triste para eles não ter mesa
cheia de parentes em torno de travessas

A
paraense Angela Maria Bentes Viei- com pato no tucupi com jambu, mani-
ra adotou um menino assim que ele çoba e doce de cupuaçu. “A pandemia
nasceu, pois a mãe biológica não ti- rompeu um ritual importante para nossa
nha condições financeiras para criá-lo. família”, diz Nascimento.
Vieira batizou seu filho único com o No fim daquele ano, os pais de Nasci-
Bandeira Cardozo, conhecida como Nei- de lei que tramitam no Congresso e dis- nome de Igor Artur Bentes Vieira e o edu- mento apresentaram sintomas de Covid e
dinha. Alguns cliques a mais e desco- põem contra os povos originários – o que cou para ser um devoto de Nazinha, como foram internados. A mãe ainda estava na
briu que Neidinha era a mãe de Tichai determina a abertura de terras indígenas os paraenses chamam Nossa Senhora de UTI quando seu marido foi intubado e
– e que Tichai era Txai Suruí, a ativista de à mineração e ao garimpo, o que estabe- Nazaré. Todo mês de outubro, o menino morreu no dia 11 de janeiro. “Minha mãe
25 anos que em 2021 discursara na abertu- lece um marco temporal para negar aos dava as mãos à mãe e à avó para percorrer sofreu uma parada cardíaca, sobreviveu,
ra da 26ª Conferência das Nações Unidas indígenas o direito de reivindicar suas em Belém quase 4 km de ruas lotadas de mas teve danos neurológicos graves”, con-
sobre Mudança Climática, em Glasgow. terras ancestrais. Soube de O Território, fiéis, acompanhando o Círio de Nazaré, ta Nascimento. A funcionária pediu licen-
Uma amiga da mãe de Surita conhe- documentário sobre a luta do povo Uru- a maior manifestação católica do Brasil. ça do trabalho e ficou ao lado da mãe por
cia Neidinha e passou o contato, acres- Eu-Wau-Wau contra a invasão de suas Quando Igor tinha 5 anos, a mãe o 21 dias, até a morte dela, em 1º de março.
centando instruções: “Não fala índio – é terras; dirigido pelo norte-americano levantou no colo, no meio da multidão, “Eu assistia às novelas de mãos dadas com
indígena. Não fala tribo – é povo.” Atento Alex Pritz, o filme estreou em setembro junto à longa corda de sisal que puxa a meus pais. Toda tarde, tomávamos café
ao vocabulário, Surita mandou um zap no país e já amealhou dezenove prêmios berlinda de vidro com a imagem de com leite e pão juntos. Era uma ligação
para a ativista. Recebeu a resposta: “Estou internacionais. Txai Suruí é uma das Nossa Senhora de Nazaré. No momen- muito forte”, recorda. Para superar o luto,
em Genebra.” “Se a mãe está em Gene- produtoras executivas do documentário. to em que a imagem passou, ela disse ao ela teve de se afastar do trabalho por um
bra, imagina a filha...” Estava assim, mer- “Sou nascido e criado aqui e não sabia filho: “Erga as mãos e faça um pedido.” tempo. “A dor era muito grande. Ainda é.”
gulhado em ceticismos, quando soou mais Acessenada
de disso”, Canal
nosso Surita diria
nohoras depois, Igort.me/BRASILREVISTAS
Telegram: ficou um tanto atordoado. Não sa- Mesmo com a vacinação em curso, em
um ping! no celular. Neidinha passara enquanto tomava um lanche na Kanin- bia o que pedir. “Peça qualquer coisa 2021 as comemorações do Círio acontece-
o contato da Kanindé, que, por uma des- dé. Seguia impressionado com tudo o que você queira muito”, insistiu Angela. ram sem aglomerações. Ainda deprimido
sas coincidências, ficava a poucos metros que não sabia. “Sempre achei que essas Ele então fechou os olhos, ergueu as pela morte da mãe, Igor Vieira encontrou
de onde ele estava. coisas eram muito distantes de mim... mãozinhas na direção da santa e rezou consolo em uma imagem de Nossa Se-
“Ligo ou não ligo?” Decidiu que não. E olha que a mãe de uma das minhas pela saúde da mãe. “Pedi que eu pudes- nhora de Nazaré mostrada na tevê. “O ar-
“Se ligasse era mais fácil eles me dispen- ‘bisas’ foi tirada da tribo... Desculpa, da se ficar com ela junto de mim por muito cebispo de Belém sobrevoou a cidade de
sarem, tipo ‘telefona mês que vem’.” Pa- aldeia.” Sentada em frente a ele, Txai deu tempo”, lembra Igor, hoje com 26 anos. helicóptero com a imagem da santa. Olhei
rou o carro perto da associação, desceu um risinho: “Do povo, da aldeia... Ixe, Em 2017, ele foi agradecer à padroeira para o céu, agradeci pela vida e pedi con-
e esperou do outro lado da rua. Quando Thiago, eu vou te cancelar, hein?” Sim, por ter passado no vestibular para o curso forto para mim e as pessoas que perderam
o portão da Kanindé se abriu para um ele a conhecera e conseguira entrevistá- de computação da Universidade Federal parentes para a Covid. Fiquei esperançoso
veículo sair, correu para dentro. Às suas la. Quando conversava com Kuaimbu, Rural da Amazônia. Pela primeira vez, de que aquele momento ia passar.”
costas, o portão se fechou – e ele ali, sem uma garota passara pelo corredor. “É a participou da procissão puxando uma das

N
saber como prosseguir. Na falta de plano Txai”, disse Kuaimbu. “Não reconheci”, cordas atadas à berlinda. A tradição re- o dia 9 de outubro deste ano, a pro-
melhor, ficou parado feito estátua. Se- confessa Surita, segurando um pão de monta a um episódio de 1885: uma en- cissão do Círio de Nazaré voltou a
gundos – ou minutos – depois, ouviu a queijo. Meio sem graça, acrescenta: “Não chente na Baía do Guajará alagou a orla juntar uma multidão nas ruas de
voz de um homem: “O que deseja?” sabia como ela era...” A mesa cai na gar- de Belém e atolou o carro de boi que car- Belém – 2,5 milhões de fiéis. Igor Vieira
galhada e alguém comenta: “Pô, meu regava a imagem da santa. Foi necessário vestiu a mesma camisa que a mãe usou no

A
audácia tem suas recompensas. Na- irmão, nem pra dar um Google?” o uso de cordas para arrancar o veículo da
quela tarde de 4 de outubro, Thiago De Txai Suruí, ouviu sobre a dor de se lama. Hoje, a procissão inclui várias cor-
Surita começou a travar conheci- saber indesejada na terra onde nasceu, da das de cerca de 400 metros de extensão e
mento com um novo mundo. Acolhido tristeza de ter negado o valor da sua cul- 50 cm de diâmetro. Puxá-las é um ato de
na Kanindé, foi logo encaminhado ao tura e dos seus conhecimentos, da angús- devoção – e sacrifício. “É muito cansativo.
agente de saúde Kuaimbu Juma Uru-Eu- tia de ver sua morada ser destruída ante Só pela fé a gente consegue”, diz o jovem.
Wau-Wau, de 20 anos, com quem con- a indiferença de tanta gente. Soube que No final de 2019, sua mãe começou a
versaria longamente no dia seguinte e “a guerra é aqui, que a Ucrânia é aqui”. se sentir cansada e indisposta. O coração
aprenderia muitas coisas. Naquela noite conversou com os pais, acelerava com frequência. No início de
Por exemplo, que em 2021 grileiros ambos militares, e também com o avô, 2020, ela precisou ir várias vezes a hospi-
impediram a equipe de vacinação do apoiador de Bolsonaro. Foi boa a conver- tais para se submeter a exames e descobrir
Sesai de entrar na Terra Indígena Uru- sa: “Acho que passaram a considerar exatamente o que tinha. Os médicos
Eu-Wau-Wau, na aldeia Alto Jamari. uma coisa que não estava na cabeça de- aventaram a possibilidade de colocar
Chegaram a queimar a ponte que dá les.” Ficou até de madrugada estudando um marca-passo. Em março, Vieira se
acesso à aldeia para evitar que os indíge- os PLs anti-indígenas. “Só fui dormir por- queixou de falta de ar. Foi internada, in-
ANDRÉS SANDOVAL_2022

nas fossem imunizados contra a Covid. que meu corpo estava pedindo.” tubada e morreu de uma parada cardior-
A Kanindé pediu proteção policial e a Thiago Surita voltou à Kanindé no respiratória no dia 21 daquele mês.
equipe de saúde entrou na terra, sob es- dia seguinte. Tinha se sentido bem ali. Pouco depois, saiu o laudo: ela fora
colta da PM de Buritis, um município A tarde caía quando, da copa, viu pelas vítima da Covid, que pegou em alguma
vizinho. Surita soube dos tantos projetos câmeras de segurança um carro parar em de suas idas constantes a hospitais. Seu

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Círio de 2019, estampada com a imagem de Mozart, acompanhado de piano, e um o menino tirou do violino encantou o
de Nossa Senhora de Nazaré e o escudo dos 24 Caprichos, de Paganini. Em maio, maestro Júlio Medaglia, presente na gra-
do Paysandu Sport Club. No meio da pro- foi divulgada a lista dos selecionados para vação. “Eu me apresentei com o Júlio
cissão, ele chorou compulsivamente. as quatro etapas presenciais do concurso. em algumas ocasiões, e ele me apresen-
“Quando Nossa Senhora passou na mi- Embora pudesse indicar cinquenta no- tou ao maestro João Carlos Martins”, con-
nha frente, fechei os olhos e agradeci pela mes, o júri selecionou apenas 46. ta Sant’Anna. Foi Martins quem fez a
vida”, diz. “Pedi paz, saúde e discernimen- A primeira peneira em Viena esco- ponte para que o menino desse uma en-
to para todos nós. Ainda tem muitos fami- lheu dezoito candidatos, depois afunila- trevista a Jô Soares, em 2013, quando ti-
liares sofrendo por terem perdido parentes dos para seis e então para os três finalistas nha 9 anos. O programa foi um sucesso.
para a Covid.” Ao olhar à sua volta, viu que, em 25 de setembro, se apresenta- No mesmo ano, Sant’Anna obteve
muita gente se abraçando e chorando. ram na Musikverein, uma das principais uma bolsa na Sociedade de Cultura Ar-
Márcia Nascimento acordou bem salas de concerto do mundo. Para a der- tística. A entidade, que tem dezoito mú-
cedo. Sem condições físicas para acom- radeira disputa, Sant’Anna escolheu o sicos bolsistas, banca aulas particulares
panhar o cortejo, foi para a casa do irmão, Concerto para Violino e Orquestra em Ré com uma das mais renomadas professo-
que mora próximo de onde a procissão Maior, Op. 77, de Brahms, um desafio ras de piano do país, Elisa Fukuda (pri-
acaba, e ficou à espera da padroeira. Le- técnico. Foi ovacionado após os quaren- ma de Marcia). Também custeia viagens
vou para a rua uma fotografia dos pais. ta minutos do concerto e conquistou o para apresentações em festivais, como o
“Quando a santa passou, pedi que ela júri com sua execução impecável. concurso Fritz Kreisler, do qual ele saiu
cuidasse deles. Pedi também para que vitorioso. “A ida de Guido para Viena foi

O
eu conseguisse superar aquela dor”, diz. prêmio mudou a vida de Guido um dos melhores investimentos que já
“E pedi perdão por sentir muita raiva Sant’Anna. Ele ganhou 20 mil eu- fizemos”, diz Frederico Lohmann, su-
com tudo que estava acontecendo no Bra- ros (cerca de 100 mil reais), que perintendente da Cultura Artística. era exibido no primeiro ambiente. Dali
sil.” Ela ainda se sente revoltada. “Não con- serão investidos em sua educação, e uma Sant’Anna viajou para a Áustria se passava para uma sala onde estavam
sigo me esquecer de Bolsonaro imitando extensa lista de compromissos: vai se acompanhado da mãe. Mas não foi a expostos livros sobre a abordagem peda-
pessoas com falta de ar por causa da Co- apresentar com a Orquestra Sinfônica sua primeira viagem internacional. An- gógica que orientou a artista, elaborada
vid. Na UTI, vi as lágrimas de minha mãe Nacional da Lituânia, com a Orquestra tes, havia participado, em Genebra, pela pediatra húngara Emmi Pikler
por causa das dores que sentia.” de Câmara da Lituânia e com a Orques- como primeiro sul-americano, do Con- (1902-84). Depois, chegava-se a um pe-
No dia 8 de outubro, sábado, Jair Bol- tra Sinfônica Siciliana. A Sociedade Fi- curso Internacional de Violino Yehudi queno playground, construído sobre um
sonaro esteve no Círio fazendo campa- larmônica Estatal Nizhny Novgorod, Menuhin, uma das principais competi- tablado com areia, no qual havia vários
nha. Em uma postagem nas redes sociais, em Moscou, e a World Culture Net- ções de violino do mundo para músicos objetos e redes para balançar. Uma peque-
escreveu o nome da comemoração reli- works, em Viena, também devem con- de até 22 anos, e, em Nova York, do na escada levava a um terracinho cerca-
giosa com “s”: “Sírio de Nazaré, 2022.” vidar o violinista para solos. “Na Rússia, Perlman Music Program, um curso de do com gradeados de madeira.
“É normal políticos na procissão, pois em razão da guerra, não sei se o compro- verão para jovens violinistas. “Também Para crianças de 0 a 3 anos, Pikler não
a Virgem de Nazaré tem honras de chefe misso será mantido”, diz Sant’Anna. já me apresentei em Bruxelas, Madri, indicava brinquedos de uso predetermina-
de Estado. Mas Bolsonaro tentou trans- A agenda atribulada exige um novo pa- Londres, Moscou e Berlim”, enumera. do – como o bicho de pelúcia para abraçar
formar a procissão em ato de campanha. tamar de profissionalização. “Estou em Quando Sant’Anna viaja para apre- ou um teclado em miniatura para tocar.
Não conseguiu”, diz Nascimento. “O Cí-Acesse busca de nosso
uma agência de músicos interna- sentações, os professores da Graded cos- Ela acreditava que nessa fase da infância
Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS
rio é muito sagrado para nossa gente. cionais para me representar”, conta. Esse é tumam reorganizar sua agenda de provas é mais adequado oferecer objetos de uso
Nosso foco estava em Nossa Senhora.” J um de seus planos para o segundo semes- e trabalhos, para que ele possa cumprir cotidiano à criança, o que, aliás, torna as
Tiago Coelho tre de 2023. Antes disso, Sant’Anna, que todas as obrigações e não ser prejudicado suas práticas de aprendizado acessíveis a
cursa o último ano do ensino médio, pre- nas notas. O plano do violinista é fazer famílias de diferentes estratos sociais.
cisa se formar. Ele é aluno bolsista da Gra- uma faculdade de música no exterior, A pediatra tem uma visão heterodoxa
NO TOPO DO MUNDO ded – The American School of São Paulo, onde espera encontrar um professor de da autonomia da criança – ela não usa a
A consagração de um jovem um dos colégios bilíngues mais caros da primeiro time. Se conseguir isso na cida- palavra “dependência” para definir a re-
violinista da periferia capital, com mensalidade de 12 mil reais. de que agora o consagrou, ficará satisfei- lação entre as crianças e seus pais. Para
Conseguiu a bolsa há seis anos, depois de to. “Viena é organizada e linda. Morar lá Pikler, há situações em que a cooperação

O
violinista jovem mais talentoso do fazer aulas de inglês na mesma Graded. pode ser bem legal”, comenta. J entre adultos e pequenos é fundamental,
mundo mora desde que nasceu Caçula dos três filhos de Glauce Sant’- João Batista Jr. como a amamentação, a troca de fraldas
em Parelheiros, na periferia de Anna, dona de casa, e Silvano Sant’Anna, e o banho. “São momentos de qualidade,
São Paulo. Ele tem 17 anos, nunca foi a funcionário público, Guido cresceu em em que é preciso olhar nos olhos, cuidar
um show de música popular, não possui um lar de apreciadores de música. Sua avó UMA CRECHE NO MUSEU para que a voz seja suave, e o toque, res-
conta no Spotify nem ouviu o novo ál- materna tocava piano e, inspirada por ela, Brasileira faz arte para bebês peitoso”, diz Kunsch. “Nós antecipamos,
bum de Beyoncé. Com aparelho nos Glauce fez questão de que os filhos apren- (e adultos) na Documenta em voz alta, tudo o que faremos e damos
dentes, espinhas no rosto e topete alto à dessem algum instrumento. O mais velho, tempo para o bebê pensar por si e respon-

E
la Elvis Presley, Guido Sant’Anna ven- Ivan, estudou violino em uma escola do ram cerca de cinco da tarde do dia der. Ele pode não verbalizar, mas a co-
ceu em setembro o Concurso Interna- bairro. “Devo a ele o meu primeiro conta- 25 de setembro, em Kassel, cidade municação entre a mãe e a criança pode
cional de Violino Fritz Kreisler, a mais to com o instrumento”, diz Guido Sant’- no Centro da Alemanha onde se dar por um sorriso.”
respeitada e difícil competição de violi- Anna. Foi um contato demasiado precoce: acontece uma das mais importantes mos- Em outros momentos, contudo, a
nos do mundo, criada em 1979, em Vie- os bracinhos do futuro virtuose nem con- tras de arte do mundo, a Documenta. participação dos adultos deve ser míni-
na, na Áustria. Neste ano, 235 violinistas seguiam segurar o violino. Aos 5 anos, ele Como aquele domingo era o último dia ma, como durante as brincadeiras, quan-
de quarenta países estavam inscritos, começou a ter aulas. Porém, como a renda do evento, havia um clima de despedida do a criança deve agir de maneira livre e
todos com até 30 anos, conforme deter- familiar só dava para manter Ivan na esco- no Museu Fridericianum, o epicentro autônoma. Os adultos precisam estar por
mina o regulamento. “Eu treinei todos la musical, Glauce resolveu aprender vio- da mostra, realizada a cada cinco anos. perto, mas devem se abster de dirigir o
os dias, entre janeiro e abril, pensando lino em cursos na internet para ensinar os No piso térreo do museu estava ins- corpo da criança, que vai aprender sozi-
nesse concurso”, conta Sant’Anna. outros dois filhos. talado o trabalho de Graziela Kunsch: nha a rolar, sentar e andar.
Foram quatro horas diárias de ensaio, Creche Parental Pública. O título não é

O G
das 18 às 22 horas, quando Sant’Anna passo decisivo para a carreira de Gui- metafórico. A obra da artista paulistana raziela Kunsch foi a única brasileira
guardava o instrumento para não pertur- do Sant’Anna veio no ano seguinte, de 43 anos era, de fato, uma creche. a integrar a Documenta. A represen-
bar os vizinhos. O processo de seleção quando ele estava com 6 anos e es- Em outros dias da mostra, a algazarra tação da América Latina se revelou
pedia dos concorrentes gravações em ví- tudava com bolsa em uma escola de mú- das crianças animava o espaço. Naqueles bastante tímida, o que parece estranho,
deo de três peças: dois movimentos de al- sica, o Instituto Fukuda. Os alunos da momentos finais, porém, a creche estava porque o ruangrupa, coletivo artístico da
guma sonata solo de Bach, o primeiro e o professora Marcia Fukuda Uhlemann fo- quase vazia: havia apenas uma criança e Indonésia que assumiu a curadoria desta
segundo movimentos do Concerto nº 5 em ram convidados a fazer uma participação sua mãe. Um vídeo em que Manu, a fi- edição da mostra, prega a decolonização
Lá Maior para Violino e Orquestra K. 219, na novela infantil Carrossel. O som que lha da artista, aparece brincando ainda da arte. Na seleção de artistas, porém,

piauí_novembro 17
5 de 5 27/10/22 PROVA FINAL

houve uma participação expressiva de ar- “As pessoas têm diferentes entendi-
tistas asiáticos e africanos. mentos do que é arte, e alguns desses
A curadoria do ruangrupa foi a segun- entendimentos são orientados pelo mer-
da não europeia na história da Documenta cado”, responde Graziela Kunsch. Ela
– depois do nigeriano Okwui Enwezor –, ressalta que parte do Museu Fridericia-
criada em 1955. O grupo indonésio orien- num foi transformado pelos curadores
tou suas escolhas a partir do conceito de em uma escola, com projetos de arte e
lumbung, palavra que em indonésio de- educação. “Quem não tenta entender
signa um celeiro comunitário onde se esse gesto curatorial e fica buscando ali
guarda o arroz excedente das colheitas. uma exposição tradicional, pode se frus-
A ideia central é a de colaboração: o arroz trar. Essa é a primeira vez que uma expo-
do lumbung é um bem coletivo. sição de larga escala, como a Documenta,
O ruangrupa teve que enfrentar uma tem bebês como público e, mais que isso,
das maiores polêmicas da história da como protagonistas, respeitados como

“U
Documenta, acusado de incluir obras sujeitos do seu próprio desenvolvimento.”
dentro de um tubo de plástico revesti- m ser vivo transformado em
de cunho antissemita na mostra. Uma Kunsch tem planos de replicar a Cre-
do de látex macio, aquecido a 37ºC, e máquina de imprimir dinheiro.
delas foi o painel do grupo indonésio che Parental Pública na Casa do Povo,com um coletor no fundo. Era nessa É a objetificação da vida em
Taring Padi no qual aparecia uma figu- centro cultural em São Paulo, neste fim
imitação sem graça das partes íntimas prol do acúmulo de capital”, critica o pro-
ra com focinho de porco, uma estrela de de ano ou em 2023. Ao mesmo tempo, de uma fêmea que Sherlock depositava fessor Francisco Garcia Figueiredo, coor-
Davi na roupa e um capacete onde se lia negocia a permanência da obra em até a última gota da sua sina. denador do Núcleo de Justiça Animal na
“Mossad” – o serviço secreto de Israel. Kassel. Foi um pedido feito por famílias Universidade Federal da Paraíba. “Será que

U
O Taring Padi explicou que a imagem locais, que, se tudo der certo, também m touro Nelore no auge costuma essa era a vontade do touro?”, pergunta. Em
havia sido produzida em outro contexto, assumirão a gestão da creche. J produzir de trezentas a quinhen- 2018, a Assembleia Legislativa paraibana
mas o escândalo já tinha se alastrado e Tatiane de Assis, de Kassel tas doses de sêmen por dia. Sher- transformou em lei um projeto concebido
levou à renúncia da diretora-geral da lock produzia novecentas, às vezes mil, por Figueiredo e apresentado pelo depu-
exposição, Sabine Schormann. chegando a 1,5 mil em manhãs inspira- tado Hervázio Bezerra (PSB-PB): o Código
Dentro da própria Documenta, o epi- O REI DO GOZO das. Cada ejaculação dá de 5 a 8 ml. de Direito e Bem-Estar Animal, que, en-
sódio suscitou visões dissidentes. Mem- A gloriosa aposentadoria Esse volume é distribuído em doses tre outras coisas, proibia a inseminação
bros do comitê que faz a seleção de do touro Sherlock únicas de 0,25 ml, que são congeladas artificial de bichos no estado. Desde en-
curadores divulgaram uma carta aberta dentro de tubinhos plásticos e armaze- tão, mais da metade do código foi questio-

N
dizendo rejeitar “tanto o veneno do antis- ão fosse um detalhe, coisinha bes- nadas em nitrogênio líquido a -196°C. nada judicialmente. Em 2019, acolhendo
semitismo quanto sua instrumentalização ta de nada nesses tempos em que Uma dose de sêmen bovino faz uma uma Ação Direta de Inconstitucionali-
atual, que está sendo feita para desviar as produtividade virou felicidade, o inseminação e é vendida por cerca de 50 dade apresentada pela Associação Brasilei-
críticas ao Estado israelense do século XXI
touro Sherlock estaria com a vida man- reais. Estima-se que os esforços de Sher- ra de Inseminação Artificial, o Supremo
e sua ocupação do território palestino”.sa. Célebre por sua excelsa contribuição lock tenham rendido mais de 20 milhões Tribunal Federal suspendeu o dispositivo
à pecuária brasileira, morando sozinho de reais em nove anos de labor – sem da lei que vetava o procedimento.

O
na num nosso
utra polêmica veio de críticosAcesse cercado com
Canalárvores
nosombrosas,
Telegram: contar as 8 mil doses que ele deixou no
t.me/BRASILREVISTAS A lei paraibana inspirou-se na Decla-
imprensa. Para eles, havia nume- pasto fresco, ração e água, o que mais freezer ao tirar o time de campo, em ração de Cambridge sobre a Consciência
rosos trabalhos de teor social ou poderia desejar um touro em Uberaba, junho. Na praxe do setor, os proprietá- em Animais Humanos e Não Humanos,
polêmico, com reivindicações de todo Minas Gerais? Bem, talvez uma compa- rios que levam seus touros para produzir de 2012. Redigido por um grupo de 26
tipo, mas de escassa elaboração formal. nheira com quem pudesse acasalar. Isso em centrais de esperma recebem royal- doutores capitaneado pelo neurocientista
De olho sobretudo na tradição europeia seria uma experiência inédita para Sher- ties de 20% a 30%. canadense Philip Low, esse documento
e dando as costas às questões colocadas lock: esse guerreiro da inseminação ar- Quantidade não é tudo para um bo- afirma que mamíferos, aves, anfíbios e até
pela criação contemporânea, eles per- tificial se despediu do batente sem ter vino de alta performance. Sherlock ex- alguns moluscos, como o polvo, possuem
guntaram, com uma dose de maldade: concluído uma só cópula efetiva. cedia-se também na qualidade genética. estruturas nervosas que produzem cons-
Onde está a arte na Documenta? Por nove anos, o incansável Sherlock “A principal característica dele era gerar, ciência. “Isso significa que eles sofrem”,
trabalhou numa central de coleta e ven- de maneira muito padronizada, descen- disse Low ao apresentar a declaração. Se-
da de esperma bovino. Forneceu 542 mil dentes com altíssima eficiência alimen- gundo o neurocientista, existem diferen-
doses de sêmen que geraram cerca de tar”, diz o zootecnista Arthur Vieira, tes tipos de consciência, mas o modo
de 340 mil crias, hoje espalhadas por que trabalha na central da ABS. “Isso quer como seres humanos e demais mamíferos
mil rebanhos de Norte a Sul do Brasil e dizer que os filhos do Sherlock ganham sentem dor e prazer é muito semelhante.
em países como Paraguai, Bolívia e Co- mais peso comendo menos.” É o Santo É com base nesses princípios que Fi-
lômbia. O proprietário do bicho, Lucia- Graal dos frigoríficos, o Eldorado da pi- gueiredo considera Sherlock “um animal
no Borges, há quarenta anos no ramo de canha maturada. Ou, como define Viei- escravizado que não pôde exteriorizar sua
melhoramento genético de gado Nelo- ra, Sherlock foi “uma Ferrari que rodava libido livremente”. Ao menos agora, seria
re, desconhece outro touro que tenha 20 km com um litro de gasolina”. justo que ele tivesse a oportunidade de
permanecido tanto tempo “produzin- Ele foi também um operário saudável e romper seu celibato involuntário. Do Ran-
do”. A média é de seis anos de serviço. manso, o que significa menos gastos com cho da Matinha, casa de Sherlock, a vete-
Nascido em 2012 no Rancho da Ma- veterinários e remédios, menos brigas com rinária Rafaela Kava Schuchamn pede
tinha, em Uberaba, ele mal completara outros machos e menos peões para cuidar calma. Sexo, diz ela, não é o objetivo prin-
2 anos quando Borges o mandou para a do bicho. “Acompanhei toda a carreira do cipal dos bovinos, que “passam 70% do
central da ABS, multinacional anglo- Sherlock e nunca o vi agressivo ou doente tempo se alimentando e ruminando”.
americana situada na cidade vizinha de um dia sequer”, recorda Vieira. Mas ter a companhia permanente de
Delta. Ali, Sherlock começou a pegar Até que chegou o momento em que o uma fêmea em seu piquete sombreado
no batente: três vezes por semana, era touro foi chamado ao RH e saiu da firma. não está fora de cogitação. Ajudaria, diz
conduzido à área de coleta, onde uma Segundo Vieira, é natural que as quali- Kava, a evitar o estresse. A veterinária
vaca o aguardava. Depois de ter seu pre- dades genéticas de touros produtores de calcula que Sherlock terá de cinco a oito
púcio higienizado por um funcionário, sêmen declinem conforme a idade avan- anos de vida pela frente. Quando ele vier
ele se insinuava em preliminares meio ça. Sherlock aguentou três anos além da a faltar, será o primeiro touro do Rancho
ANDRÉS SANDOVAL_2022

bruscas, com fungadas, cabeçadas e média. Deixou uma leva de reprodutores da Matinha a ganhar um mausoléu na
lambidas. Chegava a montar seu cor- tão ou mais produtivos do que ele foi: há propriedade. No que vai escrito na lápi-
panzil de 1 tonelada sobre a vaca – mas, pelo menos setenta filhos, netos e bisne- de, ninguém ainda pensou. Deixo, pois,
quando estava a centímetros da glória, o tos de Sherlock batendo cartão em cen- uma sugestão ordinária: “Esse gozou.” J
funcionário desviava seu pênis para trais de esperma atualmente. Christian Carvalho Cruz

18
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questões raciais

UM CASO RARÍSSIMO
Jornalista negro processa a CNN Brasil por racismo estrutural

ARMANDO ANTENORE

Acesse nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS

E
m junho de 2016, as seleções cês me parecem bem. Não sofreram Oliveira é preto retinto. “A dor moral peita de usar dólares falsos para comprar
da Alemanha e da Polônia se ferimentos graves. Melhor esquecer o e psicológica que a bofetada me cau- cigarros, morreu sufocado pelo policial
enfrentaram pela Eurocopa, o que aconteceu para evitar um conflito sou supera a física”, declarou à im- branco Derek Chauvin, que apoiou o
campeonato europeu de fute- maior”, explicou, de acordo com as ví- prensa na época. joelho sobre o pescoço dele durante nove
bol masculino, no Stade de timas. Inconformado, Oliveira prestou minutos. As imagens do assassinato, re-

A
France, perto de Paris. Foi um jogo te- queixa numa delegacia. CNN Brasil estreou em 15 de março gistradas por testemunhas, geraram
dioso, que terminou sem gols, mas lá A truculência virou notícia dentro e de 2020. Enquanto montava sua uma onda de manifestações nos Esta-
fora o clima esteve quente. Pouco antes fora da França. Os agredidos concede- infraestrutura, a emissora contra- dos Unidos, no Brasil e em dezenas de
da partida, a repórter Sonia Blota e o ram algumas entrevistas, inclusive para tou Fernando Henrique de Oliveira, que outros países.
produtor Fernando Henrique de Olivei- a Band. Quando soube do incidente, a acabara de deixar o programa Conversa Escalado para cobrir as repercussões
ra, ambos da Band TV, cobriam o vaivém Associação Brasileira de Emissoras de com Bial, na Globo, onde ocupava o car- do crime como repórter, Oliveira abando-
de torcedores nas imediações da estação Rádio e Televisão (Abert) soltou uma go de assistente de produção. Ele se for- nou momentaneamente a postura distan-
ferroviária Gare du Nord quando cerca nota. Classificou o episódio de deplorá- mara em relações públicas havia quase ciada e fez um relato de cunho pessoal.
de cinquenta alemães os rodearam e vel e criticou a inércia da polícia. Com duas décadas e tinha registro de jornalis- Gravou o depoimento na varanda do
gritaram: Get out, you niggers! Manda- o intuito de remediar o estrago, o minis- ta desde julho de 2018. Pelo contrato que apartamento que alugava em Manhattan.
ram os dois irem embora, usando a ex- tério francês das Relações Exteriores assinou na CNN, cuidaria da “produção De tranças afro, barba bem aparada e
pressão racista mais insultuosa da língua ofereceu um almoço de desagravo para de imagens e/ou reportagens diversas óculos, trajava roupas sóbrias: blazer cin-
inglesa. O líder do grupo ameaçou a a jornalista e o produtor. para transmissões”. Poderia, ainda, se za por cima de uma camisa azul com
dupla de brasileiros com um bastão, Embora dissessem a palavra nigger dedicar à “apuração de pautas” e à “rea- listras brancas e gola padre. O Empire
chutou uma perna da jornalista e deu no plural, tudo indica que os torcedo- lização de coberturas jornalísticas”. Vi- State aparecia à distância. Depois de acer-
uma bofetada em Oliveira, que operava res não se referiam à repórter, neta dos veria em Nova York e trabalharia com a tar o enquadramento de uma pequena
a câmera e conseguiu filmar parte da apresentadores Blota Júnior e Sônia correspondente Luiza Duarte. câmera Sony e ajeitar o microfone de la-
investida. Os agressores seguiram adian- Ribeiro, duas lendas da tevê nacional. No dia 25 de maio de 2020, o norte- pela, o jornalista contou que morava no
te sem que ninguém os importunasse. Ela é branca de cabelos escuros e americano George Floyd Jr. – um se- East Village, “um bairro majoritariamen-
A repórter e o produtor denunciaram olhos castanhos. Frequentemente, na gurança negro desempregado – virou te branco”, em cujos supermercados sem-
o ataque para um policial que circulava Europa, a confundem com italiana símbolo planetário da luta contra o ra- pre tinha a impressão de que os seguranças
pelas redondezas. Ele se esquivou. “Vo- em razão do sobrenome calabrês. Já cismo. Preso em Minneapolis, sob a sus- o vigiavam. Também recordou o ataque

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PABLO SABORIDO_2020
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Oliveira: Não seria invasivo um repórter judeu, durante a cobertura de um ato contra neonazistas, receber a tarefa de comentar sobre as perseguições antissemitas que já enfrentou?

piauí_novembro 21
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mas “pelas condutas sorrelfas”. Por isso,do magistrado (sexo, cor da pele, origem
os advogados usam a expressão “racis- socioeconômica) afeta suas decisões?
mo estrutural ou institucional” para se “Todos esperamos que afete o mínimo
referir às práticas da empresa. O ter- possível, e que a sentença se baseie espe-
mo designa um conjunto de medidas cialmente na análise técnica das pro-
corporativas, educacionais, políticas, vas”, conclui Bracks.
econômicas, jurídicas, culturais ou re- Em 2004, uma emenda modificou o
ligiosas que favorecem determinado artigo 114 da Constituição e permitiu
grupo racial e colocam outros em des- às cortes trabalhistas julgar processos de
vantagem. Nem sempre são atitudes de indenização por danos morais. Antes,
fácil percepção e resultam mais de uma só a Justiça comum mediava o assunto.
dinâmica coletiva e histórica que do an- “A emenda de 2004 certamente vem
seio deste ou daquele indivíduo. O ra- estimulando o aumento de ações sobre
cismo estrutural, portanto, se confunde conflitos identitários no ambiente de
com a própria ordem social. trabalho. O fortalecimento das redes so-
Não à toa, o tema está no cerne de ciais, que ampliou a consciência política
todas as discussões contemporâneas so- dos grupos tradicionalmente afrontados,
bre aquilo que os negros chamam de também contribui para o fenômeno”,
“segunda abolição” – uma nova alforria, diz a professora.
mais abrangente e transformadora que Segundo a Data Lawyer Insights, pla-
a de 1888. Uma libertação que “trans- taforma que coleta e analisa dados ju-
cenda o corpo da lei e faça prevalecer rídicos, pelo menos 3,6 mil processos
o espírito da lei”, conforme escreveu o trabalhistas com menções a “preconcei-
ANDRÍCIO DE SOUZA_2022

cantor Gilberto Gil em maio de 2009, to racial”, “racismo” ou “discriminação


no jornal Le Monde Diplomatique Bra- racial” chegaram à primeira instância da
sil. Uma abolição que ouse sair “do pa- Justiça brasileira no ano passado. É um
pel” e ganhe “as consciências”. recorde. Em 2018, houve 1,1 mil ações.
Em 2019, 1,4 mil e, em 2020, 2,3 mil.

“D
isputas jurídicas como a de O método de prospecção adotado pela
Oliveira, que envolvem de- Data Lawyer Insights não permite saber
bates identitários, sempre o teor exato de cada processo.
nascem de um elemento subjetivo: a per- Bracks salienta que a reforma traba-
dos torcedores alemães, quatro anos an- e não na condição de jornalista. Perrone cepção de quem se julga ofendido.” A fra- lhista de 2017 introduziu o princípio da
tes, e a indiferença da polícia francesa. agradeceu: “Obrigada pelas palavras, se é da advogada mineira Juliana Bracks, sucumbência na Consolidação das Leis
“Infelizmente, nós ainda precisamos nos pela observação, por abrir o coração! que leciona direito do trabalho na PUC do do Trabalho (CLT). Desde então, se o re-
preocupar com quem deveria nos prote- Cobertura de verdade também tem Rio de Janeiro. Ela não se refere apenas às clamante perder uma ação, terá de pagar
ger”, concluiu. emoção.
Acesse É a emoção
nosso Canaldenoquem tem o demandas
Telegram: acerca do racismo, mas tam- o advogado da parte contrária e as custas
t.me/BRASILREVISTAS
Exibido pela CNN em 29 de maio, o lugar de fala, né?” bém àquelas que tratam de segregação judiciais. O ex-funcionário da CNN corre,
testemunho de 1 minuto e 42 segundos No dia 10 de junho, Oliveira entrou por gênero, faixa etária, orientação sexual, assim, o risco de ficar no prejuízo caso a
ficou no site da emissora. “O produtor novamente em cena para avaliar como crença religiosa, predileção política, defi- emissora vença o litígio.
Fernando Henrique relata um dos mo- o mundo deveria lidar com o racismo à ciência física e até obesidade. Enquanto

E
mentos mais difíceis que enfrentou na luz do homicídio de Floyd Jr. Outros discorre sobre o assunto, Bracks toca no m 2021, uma pesquisa telefônica
carreira por causa do racismo”, anun- nove funcionários negros da CNN, in- ponto que transforma o processo de Oli- com 202 jornalistas pretos e par-
ciava o texto online que introduzia o cluindo um maquiador, uma executiva veira contra a CNN Brasil numa questão dos de todo o país perguntou: os
vídeo. O próprio Oliveira divulgou o de- e quatro repórteres, se manifestaram. central do século XXI: negros encontram mais dificuldades
poimento pelas redes sociais. No Insta- Todos fizeram reflexões genéricas, sem “Um funcionário negro pode ver pre- que os brancos para ascender nas reda-
gram, redigiu: “Violência racial. Como explicitar situações mais íntimas. conceito racial em circunstâncias que ções? Noventa e oito por cento dos en-
jornalista negro, conto minha experiên- Dois meses depois, em 21 de agosto, os brancos qualificariam de irrelevantes trevistados afirmaram que sim. Quando
cia por aqui. @cnnbrasil.” Uma ima- o canal demitiu Oliveira por divergên- ou nem sequer enxergariam. Às vezes, a os pesquisadores questionaram se os
gem congelada do testemunho ilustrava cias salariais, embora o contrato dele só discriminação se manifesta de modo 202 profissionais já haviam enfrentado
o post. terminasse no ano seguinte. A emissora explícito e incontestável – o superior alguma espécie de racismo enquanto
Ele também publicou no Instagram queria que o profissional voltasse para zomba das tranças afro de um subordi- trabalhavam, 43% também responde-
trechos da cobertura que fez para o ca- São Paulo. Ele concordou, mas reivin- nado ou o xinga de macaco. Outras ve- ram que sim.
nal entre 26 de maio e 9 de junho de dicou manter o salário de 4 mil dólares zes, porém, a intolerância lança mão de As indagações aparecem no Perfil
2020, em Nova York, Minneapolis e (cerca de 21 mil reais hoje) que recebia artifícios bem mais sutis. Nesses casos, Racial da Imprensa Brasileira, estudo
Houston, cidade do Texas onde Floyd Jr. nos Estados Unidos. A CNN não aceitou o desgosto e a revolta do profissional que que o informativo Jornalistas & Cia rea-
foi enterrado. Por quinze dias consecu- e rompeu o contrato. No dia 19 de no- se considera atacado são absolutamente lizou com dois parceiros – o Instituto
tivos, a CNN mostrou boletins de Olivei- vembro, o jornalista entrou com uma legítimos. Ou melhor: a percepção do Corda e a I’Max, agência de tecnologia
ra sobre o caso, a maioria estritamente ação contra a antiga empregadora. À pri- trabalhador merece respeito, ainda que e comunicação. Metade dos entrevista-
jornalísticos, sem comentários pessoais. meira vista, parecia uma briga trabalhista não baste em termos judiciais.” dos se definia como do sexo masculino,
Em 2 de junho, porém, a apresentadora convencional, assentada principalmente A professora explica que, nos tribu- e a outra metade, como do feminino.
Monalisa Perrone pediu outro depoi- em pendências financeiras. Examinado nais, a percepção do reclamante vale A maioria tinha entre 26 e 45 anos. Cer-
mento de caráter particular para o cole- de perto, o processo se revelava também tanto quanto a do réu. “O funcionário ca de 60% desempenhavam funções ope-
ga: “Eu sei que você já sofreu racismo. outra coisa: uma batalha contra o “racis- negro sente que sofreu uma humilha- racionais. Eram repórteres, redatores ou
Por isso, abra o coração e conte exata- mo estrutural” – conceito típico dos ção racista. O empregador branco sente diagramadores. Os restantes estavam em
mente o que você está sentindo agora.” nossos tempos e cada vez mais invocado que não humilhou ninguém. Por que a cargos gerenciais (diretores, editores ou
Ao vivo, enquanto acompanhava um por trabalhadores negros nas relações percepção de um deveria preponderar chefes de reportagem).
protesto em Manhattan, Oliveira disse com as empresas. sobre a do outro?” Daí a necessidade de Das diversas situações racistas que os
que não integrava nenhum “movimento A ação judicial não acusa nenhuma provas, que podem derivar de perícias, entrevistados disseram viver durante o
de lutas raciais”, mas que considerava pessoa física de discriminação racial. vídeos, áudios, mensagens de celular, exercício da profissão, destacam-se:
fundamental pleitear “igualdade e justi- O único alvo é a CNN. Nas palavras dos documentos em papel ou testemunhos * Ser confundidos com o pessoal da
ça”. Enfatizou que se pronunciava “em defensores de Oliveira, o suposto com- de terceiros. A interpretação final será do limpeza;
nome de todos os negros”, como repre- portamento racista da emissora não se juiz, o que adiciona mais um ingredien- * Ouvir piadas ou recriminações so-
sentante “de um povo, de uma nação”, comprova “pela chancela escancarada”, te à equação: até que ponto a identidade bre o cabelo;

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* Enfrentar acusações de vitimismo * Na pandemia de Covid, os brancos O cenário não é muito distinto em Em maio de 2021, a juíza Renata
nos momentos em que reclamam de fizeram mais home office que os negros. outras áreas da comunicação. Recente- Bonfiglio proferiu uma sentença que
preconceitos; A CNN Brasil ainda não dispõe de mente, porém, a publicitária negra desperta a atenção pela clareza e vee-
* Sentir que os colegas os veem com números precisos sobre a composição Rafaela Keroty Ferraz fugiu à norma mência quando descreve como a discri-
desconfiança; étnica de seus 730 funcionários. Até de- e acusou de racismo a agência Plug. minação racial pode comprometer as
* Amargar tratamento diferenciado zembro, pretende implantar um comitê O processo tramitou na 27ª Vara do Tra- relações de trabalho:
de policiais ou seguranças durante as de diversidade, que promoverá um cen- balho de São Paulo. Em 25 de agosto O fato de a ofensora e a própria recla-
coberturas; so para garimpar tais informações. de 2020, durante a pandemia, a agên- mada não enxergarem no comentário
* Sofrer agressões verbais; (Na piauí, onde trabalham 35 profis- cia convocou a reclamante para uma qualquer ofensa não é suficiente para que
* Ganhar apelidos pejorativos, como sionais, a situação de desigualdade se reunião por vídeo. Uma supervisora, a ofensa não tenha existido. [...] A triste
“neguinho” e “crioulo”; reproduz: apenas cinco – ou 14% – con- também negra, iniciou assim o encon- realidade é que há inúmeras práticas
* Ser convocados para fazer reporta- sideram-se negros. Nenhum deles exer- tro: “Estou com vontade de ver todo racistas naturalizadas em nosso cotidia-
gens mais negativas do que positivas em ce funções gerenciais.) mundo. [...] Quero ver se [citou o nome no e materializadas em microagressões,
comparação com os brancos. de um funcionário, não mencionado que partem de comportamentos [...] por

A
Por meio de telefonemas ou questio- pesar de tamanho desequilíbrio nos autos] cortou o cabelo e se a Rafa vezes inconscientes. A situação dos au-
nários online, o estudo também consul- na imprensa, processos traba- continua preta.” O comentário deixou tos [...] é apenas mais um exemplo do
tou 1 750 jornalistas de diferentes origens lhistas como o de Oliveira são a publicitária bastante constrangida e a que se convencionou chamar de “racis-
raciais, que atuavam em sites noticio- raríssimos. A Comissão Nacional de levou às lágrimas. Ela fechou a câmera mo recreativo”. [...]
sos, jornais, revistas, tevê, rádio, blogs Jornalistas pela Igualdade Racial (Co- da plataforma digital para não chorar A verdade é que todos nós precisamos
e podcasts. Depois, extrapolou a amos- najira), fundada em 2010, desconhece diante da equipe. estar atentos para não incorrer nesse pa-
tra para os 61 mil profissionais do país ações similares. “De modo geral, os No dia seguinte, a subordinada pro- drão comportamental tão enraizado na
(a estimativa é da I’Max) e chegou às pretos e os pardos evitam acionar a curou a supervisora, criticou a aborda- sociedade. [...] No ambiente de trabalho,
seguintes conclusões: Justiça quando sofrem preconceito gem e ouviu um pedido de desculpas. cabe ao empregador essa fiscalização. Do
* Embora 56% da população brasilei- nas redações. Algumas vítimas até Assim que soube do ocorrido, o dono da contrário, estará sendo conivente com pia-
ra se intitule preta ou parda, as redações processam colegas, mas poucas se re- agência menosprezou o episódio. Ponde- das que são verdadeiras manifestações de
têm mais brancos (77,6%). Somente belam contra as empresas”, diz Val- rou que a supervisora não quis ofender injúria racial, como é o caso em apreço.
20,1% dos jornalistas declaram-se ne- dice Gomes, integrante da comissão. ninguém. “Ela só fez uma brincadeira Observe-se que a forma como a ré se
gros. Os outros são amarelos (2,1%) e “Os negros enfrentam vários obstácu- fora de hora para descontrair a tensão da posiciona em sua defesa, minimizando
indígenas (0,2%); los para atingir um mínimo de segu- pandemia”, explicou à publicitária, de o desconforto e constrangimento da re-
* Os brancos ocupam mais cargos de rança na carreira. Se conseguem furar acordo com a ação judicial. Dois meses clamante, já demonstra a existência de
chefia, recebem salários melhores e perma- a bolha, acabam priorizando a empre- depois, a Plug demitiu Rafaela Ferraz uma microagressão. [...] Segundo a re-
necem mais tempo na mesma empresa; gabilidade. Temem queimar o filme sob a justificativa de que passava por so- clamada, uma piada que envolva ques-
* A prevalência de um segundo em- no mercado caso briguem judicial- lavancos financeiros. A publicitária re- tões raciais serve para “descontrair a
prego é maior entre os negros; mente com os patrões.” correu à Justiça – e ganhou. tensão”, o que representa um padrão de

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direção MARCIO MEIRELLES

Foto: Tiago Lima


dramaturgia MONICA SANTANA
direção musical JOÃO MILET MEIRELLES
direção de movimento CRISTINA CASTRO

ESPETÁCULO INSPIRADO NA CONJURAÇÃO BAIANA,


REVOLTA DOS ALFAIATES OU REVOLTA DOS BÚZIOS,
UM DOS PRINCIPAIS LEVANTES PELA INDEPENDÊNCIA Sesc Vila Mariana
DO BRASIL, DE 1798. DE 18/11 A 29/01.
Quinta a sábado, 21h. Domingos, 18h.
sescsp.org.br/umaleituradosbuzios

piauí_novembro 23
5 de 8 27/10/22 PROVA FINAL

inúmeras vítimas de assédio sexual, que chancela escancarada [...], mas pelas
só se dão conta do ataque tempos de- condutas sorrelfas que se seguiram du-
pois de o sofrerem. Para Oliveira, a CNN rante toda a relação de trabalho”, escre-
lhe destinar uma tarefa como aquela é vem os advogados no processo.
tão invasivo quanto solicitar a um re- Embora não usem a expressão “toke-
pórter judeu que, durante a cobertura nismo” (estratégia de quem deseja pare-
de uma passeata contra os neonazistas, cer mais inclusivo do que realmente é),
evoque as perseguições antissemitas os defensores de Oliveira fazem uma
que já enfrentou. alusão à tática: “Assim como William
No processo, o ex-funcionário acres- Waack disse ‘até tenho amigos negros’,
centa que a emissora o menosprezou com a emissora até passou a admitir jorna-
pelo menos outras três práticas racistas: listas negros, após contratar aquele que
* Todos os jornalistas negros da reda- fora demitido [...] da Globo, [depois de
ção ganhavam salários menores que os ser] flagrado pelas câmeras em suposto
dos brancos quando exerciam funções ‘gracejo’ de dar inveja aos segregacio-
iguais às deles. Oliveira diz que as pro- nistas do apartheid sul-africano.”
vas das diferenças salariais estão “em O trecho joga luz sobre um episódio
poder da ré”, ou seja, da CNN. Como ocorrido durante as eleições presiden-
também fazia reportagens, extrapolan- ciais norte-americanas de 2016. Na oca-
do as atividades habituais de produtor, sião, Waack ancorava o Jornal da Globo
ele pede equiparação salarial retroativa e acompanhava a apuração dos votos.
com o cargo de repórter. Ele se preparava para entrar no ar em
* O canal queria que Oliveira fosse Washington, com o comentarista Paulo
ANDRÍCIO DE SOUZA_2022

segurança de Luiza Duarte enquanto a Sotero, quando um carro buzinou insis-


correspondente apresentasse boletins tentemente nas imediações do estúdio.
noturnos na rua. Os autos trazem men- “Tá buzinando por que, ô seu merda do
sagens que a chefia endereçou para o cacete?”, resmungou Waack. “Não vou
jornalista em 27 de julho de 2020, uma nem falar [...] É coisa de preto. Com
segunda-feira. O primeiro e-mail inda- certeza.” Na sede paulistana do canal,
gava se Oliveira poderia “acompanhar a um operador de vídeo, negro, teve aces-
Luiza nos deslocamentos à noite” du- so às imagens do destempero e as gra-
rante a semana. Ele respondeu que não. vou pelo celular. Um ano depois, o caso
Informou que tinha aulas às terças, se tornou público, e a Globo demitiu
conduta que precisa ser revisto e comba- canal o obrigou a fazer os relatos de acor- quartas e quintas. Não entrou em deta- Waack, que se desculpou por fazer
tido. [...] Causa espanto ao Juízo que, do com um “roteiro repassado pela che- lhes, mas reservara os horários para um “uma piada idiota”. Em junho de 2019,
justamente numa empresa de comunica- fia”. Para provar, os dois advogados do curso online de reeducação corporal e a CNN o contratou.
ção, que se diz atenta e preocupada com ex-funcionário
Acesse – Carlos no
nosso Canal Daniel Gomes reuniões
Telegram: virtuais sobre um doutorado
t.me/BRASILREVISTAS O âncora integrou a equipe da emis-
inclusão e diversidade, um fato como Toni e Kiyomori André Galvão Mori – que planejava fazer. A chefia desapro- sora que cobriu o assassinato de George
esse tenha sido banalizado. apresentam trocas de mensagens entre o vou a justificativa. Reclamou que os Floyd Jr. Pelas redes sociais, não falta-
A sentença determinava que a agên- jornalista e Adriana Mabilia, uma das compromissos atrapalhavam o fluxo da ram queixas. “Porra @ CNNBrasil, vocês
cia pagasse 20 mil reais à ex-funcioná- editoras que cuidavam do caso George redação e lembrou que um sem-teto só podem tá de sacanagem. Tão fazen-
ria por danos morais. No dia 13 de Floyd Jr. Ela trabalhava na sede da CNN, perseguira Duarte numa cobertura re- do isso pra irritar a gente, né?! WILLIAM
maio de 2021, quando a abolição da em São Paulo. cente. Contou, ainda, que a repórter WAACK, repito, WILLIAM WAACK comen-
escravatura completou 133 anos, as par- – Fê, hoje [...] você poderia entrar amargara “diversas outras situações in- tando racismo? Aaah, mano...”, tuitou
tes encerraram a pendência ao firmar pra dar a tua percepção de tudo – escre- compatíveis”. Por fim, sublinhou: “É um jovem negro. Convidada do progra-
um acordo que reduziu a indenização veu Mabilia no WhatsApp. inviável a Luiza trabalhar à noite, sem ma CNN 360º, a jornalista Alexandra
para 18 mil reais. – Claro, Dri. Fechado! – concordou produtor.” Oliveira bateu o pé e não Loras, também negra, mexeu no ves-
Oliveira. acompanhou a correspondente, que rea- peiro, ao vivo, em junho de 2020. Ela

D
uas semanas antes de a ação de – Olha só. Editor me passou aqui. lizou os boletins sozinha. repudiou o protagonismo de Waack e
Fernando Henrique de Oliveira Vou te passar algumas orientações, tá? * Depois de demiti-lo, a empresa tra- frisou que a mídia detinha “o poder” de
contra a CNN Brasil entrar em – prosseguiu Mabilia. – O vídeo precisa tou o jornalista como carregador. Pediu chamar acadêmicos pretos ou pardos
segredo de Justiça, a piauí teve acesso conter de 1 min a 1 min 30. É um de- que ele levasse para São Paulo todos os para discutir o homicídio de Floyd Jr.
à sua íntegra. Os autos, que estão na poimento, em que as pessoas respon- equipamentos de Nova York, inclusive “Não é apenas com gotinhas de cotas
80ª Vara do Trabalho de São Paulo, so- dam... Quem é você? Já foi vítima de os usados por Duarte (nessa altura, a nas universidades que vamos resolver a
mam 410 páginas. A maioria delas preconceito? Qual mais te marcou? repórter havia deixado a emissora para questão racial no país”, afirmou. O ca-
aborda questões de cunho essencial- A profissional referia-se à gravação tocar projetos pessoais). Eram 38 itens, nal não se pronunciou.
mente trabalhista, como a reversão da de Oliveira na varanda de seu aparta- entre microfones, cabos, baterias, refle- No dia 15 de abril de 2021, acusações
demissão ou a remuneração em dobro mento em Nova York. Por áudio, a edi- tores e um iPhone 11. O material, que de racismo assombraram novamente a
do jornalista pelos dezessete meses tora complementou: não estava no seguro, ocupou quatro CNN. Reportagem publicada pela agên-
que faltavam para o término do con- – Vamos fazer uma coisa bacana? malas. Já os pertences do ex-funcioná- cia de notícias Alma Preta contou que a
trato. Num conjunto menor de pági- [...] Um depoimento... Questões históri- rio, apenas uma. Assim, em 30 de agos- analista de política Basília Rodrigues
nas, entretanto, Oliveira acusa a cas... Você trazer coisas da tua vida. to de 2020, nove dias após a demissão, sofria perseguições dentro da emissora.
emissora de lesá-lo com uma série de Vamos pensar nisso? Mas é urgentão! Oliveira voou para a capital paulista A Folha de S.Paulo reiterou as denún-
gestos racistas, ferindo o artigo 5º da Nas redações, os editores costumam com cinco malas. O canal pagou pelo cias. Segundo as apurações, funcioná-
Constituição, que considera o racismo orientar os subordinados sobre o ângu- excesso de bagagem. rios do canal tratavam a jornalista negra
um crime inafiançável e imprescrití- lo e a duração de um testemunho ou Caberá à Justiça decidir se as denún- com desrespeito. Reclamavam do cabe-
vel. Pelo delito, o profissional reivindi- uma reportagem, tanto que Oliveira cias do jornalista constituem racismo lo “desgrenhado” e das “olheiras” dela
ca indenização por danos morais. não se constrangeu ao receber as dire- ou não. Sob a ótica de Oliveira, no en- ou criticavam os cenários que Rodri-
Uma das discriminações raciais que o trizes e concordou em segui-las. Mais tanto, está claro que a CNN não só adota gues escolhia para entrar no ar quando
jornalista atribui à emissora é justamen- tarde, porém, o jornalista percebeu que regras e princípios que reproduzem a estava em home office. Editores de ima-
te a de requerer os testemunhos pessoais o pedido de um depoimento daquele desigualdade racial em vigor no país gem evitavam mostrar o rosto da analis-
sobre os preconceitos que ele já sofreu, tipo, a respeito de uma experiência tão como os naturaliza, tornando-os quase ta. Preferiam substituí-lo por cenas
como a agressão durante a Eurocopa. particular e dolorosa, configurava ra- ocultos. “O racismo institucional da ré ilustrativas enquanto transmitiam so-
Conforme Oliveira alega no processo, o cismo. Fenômeno parecido ocorre com [...], por óbvio, não se comprova pela mente a voz de Rodrigues. Nem a Alma

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Preta nem a Folha identificaram os pro- Como o processo está sob segredo de de assegurar o respeito ao ser huma- gurança de Luiza Duarte. Quando o
fissionais que fizeram as denúncias. Justiça desde março de 2021, nem o ca- no, independentemente da cor da convocou para acompanhá-la na rua, o
Logo que as reportagens saíram, a nal nem Oliveira nem os advogados das pele”, ressalta Mascaro Nascimento canal queria somente garantir “o supor-
CNN classificou os relatos de gravíssi- partes podem falar sobre a causa fora no processo. te de produção” necessário às imagens
mos e anunciou que iria investigá-los. dos tribunais. Só os envolvidos têm o Ainda de acordo com o advogado, que integrariam os boletins noturnos da
De antemão, esclareceu que considera- direito de assistir às audiências. ninguém exigiu que Oliveira testemu- correspondente. Oliveira cuidaria, por
va o cabelo afro “um símbolo impor- nhasse nem que o depoimento dele exemplo, “das questões técnicas de luz”.

A
tante de resistência e empoderamento”, defesa da CNN Brasil, assinada seguisse um “roteiro repassado pela che- A emissora anexou à ação um e-mail
que eventuais ajustes nos cenários se- pelo advogado Marcelo Costa fia”. A mensagem de WhatsApp que o que Mabilia enviou em 13 de julho de
guiam critérios técnicos e que “nunca Mascaro Nascimento, ocupa oi- jornalista recebeu de Adriana Mabilia, 2020. A mensagem elogiava uma maté-
houve qualquer orientação” para ocul- tenta páginas do processo. Apenas nove a editora em São Paulo, seria mais ria de Duarte e Oliveira sobre a ressur-
tar o rosto da jornalista. Pelo Twitter, delas se debruçam sobre as supostas “uma indagação” do que “uma imposi- reição dos cinemas drive-in nos Estados
Rodrigues limitou-se a agradecer o condutas racistas. A emissora nega “ve- ção”: “Fê, hoje [...] você poderia entrar Unidos durante a pandemia. “Fê e Lu,
apoio da empresa e as mensagens soli- ementemente” todas as acusações. Diz pra dar a tua percepção de tudo.” A CNN o VT [jargão para reportagem] ficou óti-
dárias de amigos, colegas e desconhe- que o ex-funcionário age de maneira argumenta que havia a possibilidade de mo. Vocês viram? Imagens lindas...
cidos. Em agosto de 2021, a emissora “leviana” por mencionar fatos inexis- Oliveira recusar o pedido, mas ele “não UAU ! Parabéns. Valeu o esforço... Mui-
divulgou que as investigações não de- tentes. Para o canal, Oliveira cai em o fez”. Pelo contrário: preferiu concor- to!”, escreveu a editora. Conforme a
tectaram racismo. Concluíram apenas contradição quando tacha de discrimi- dar “expressamente” em se manifestar defesa, o e-mail mostra que a CNN
que alguns funcionários tinham agido natórios os testemunhos pessoais que (“Claro, Dri. Fechado!”). “sempre primou pelo tratamento res-
de modo inadequado. O canal não in- deu enquanto cobria o caso Floyd Jr. Quanto à denúncia de que todos os peitoso e pelo reconhecimento da qua-
formou se os puniu. Se a CNN realmente cometesse racismo, jornalistas negros da redação ganha- lidade da prestação de serviço, situação
Entre as acusações de Oliveira que jamais permitiria que o jornalista ex- vam menos que os pares brancos, a longe de se caracterizar como [...] racis-
extrapolam a seara racial, constam pusesse no ar os preconceitos que en- emissora diz se tratar de uma afirma- mo estrutural”.
delitos trabalhistas relativamente co- frentou, sustenta a defesa. Tampouco ção “infundada”. Por isso, não lhe ca- “Por amor ao debate”, Mascaro
muns nas redações do país. Ele afir- deixaria que outros profissionais negros beria abrir a folha de pagamento para Nascimento também coloca em xeque
ma que a CNN exigiu contratá-lo como se pronunciassem durante a mesma a Justiça. “A atribuição de demonstrar a as críticas que os advogados do jorna-
pessoa jurídica, e não física, para pa- cobertura, conforme ocorreu em 10 existência de fatos que não existiram lista fizeram à contratação de William
gar encargos menores. Também diz de junho de 2020. “A empresa-ré ado- [...] fere o princípio da razoabilidade”, Waack. Recriminar a ida dele para o
que a emissora lhe deve horas extras ta comportamento totalmente diverso contrapõe a defesa. O canal também canal revelaria tanto uma “evidente
e adicionais noturnos. Se levar tudo daquele relatado [pelo ex-funcioná- classifica de “impertinente” a reclama- posição discriminatória” de Oliveira
o que pede, o jornalista receberá cer- rio]. Observa-se claramente [...] que a ção de que Oliveira deveria ganhar quanto o desejo de condenar perpetua-
ca de 700 mil reais. Desse total, 50 reclamada abriu espaço para seus cola- salário de repórter. mente o apresentador, tirando-lhe o
mil reais equivalem à reparação pelos boradores externarem sua opinião, A CNN contesta, ainda, que pretendeu direito de continuar na profissão de-
atos racistas. como forma de reforçar a importância converter o antigo funcionário em se- pois de sair da Globo.

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piauí_novembro 25
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que estava apenas emitindo uma opi- nante e promissora do que servir os
nião. O racista precisa cair na real. Asfregueses dos avós.
bases da escravidão são o sequestro, os O adolescente também deixava rela-
assassinatos, a tortura, os estupros, a tórios numa assessoria de imprensa
destruição cultural, os trabalhos força-muito requisitada por galerias e centros
dos, a separação de famílias e etnias, culturais. De tanto ir lá, conquistou a
além do roubo de propriedade, identi- simpatia dos funcionários e recebeu
dade e humanidade. Só por aqui isso um convite para trocar de emprego.
aconteceu ao longo de quase quatro- Aceitou sem hesitar. Na ocasião, plane-
centos anos. O resultado está na nega- java estudar artes plásticas por influên-
cia de um tio, que fazia luminárias
ção de direitos à maioria dos brasileiros
pretos e pardos, que têm apenas acesso decorativas e pintava quadros. Como
office boy da assessoria, Oliveira ganha-
aos piores índices sociais. O Brasil pre-
cisa tratar o racista por aquilo que eleria mais e ainda poderia se aproximar
é, um criminoso. [...] Eu quero dar um de artistas, marchands e curadores.
conselho a você, racista: assuma o seu Foi assim que, com quase 16 anos,
crime, repense o seu preconceito e mo- pisou num vernissage pela primeira vez.
dernize as suas ideias. Entenda que Ficou boquiaberto: o champanhe e as
você não é dono do meu passado [...], telas o deslumbraram. Ele logo se trans-
nem das minhas vontades, nem dos formou num habitué de exposições e
meus pensamentos. Não lhe cabe de- leitor voraz de críticas. Descobriu as
ANDRÍCIO DE SOUZA_2022

terminar o que eu quero ou dar tama- vanguardas modernistas, a pop art, o


nho à minha dor. Economize seus abstracionismo e as performances. Por
adjetivos. Você, racista, é ultrapassa- tabela, constatou que os brancos impe-
do. A cada dia, com o despertar dos ravam naqueles ambientes. Raríssimos
negros, você terá que [...] aguentar a negros visitavam as mostras. Oliveira já
nossa pele, os nossos cabelos, a nossa tinha certa noção do racismo, mas ago-
teimosia em forma de resistência, a nos-ra o problema se desnudava com nitidez.
A maioria dos negros que circulava pe-
sa história, a nossa inteligência e, claro,
os nossos batuques. los eventos usava uniforme de seguran-
ça, garçom ou copeiro.

M
esmo que involuntariamente, O desejo de cursar artes plásticas
Como baseia as acusações de racismo versidade e inclusão dentro e fora da Hebe Camargo e Fausto Silva, o acabou descartado em nome da pru-
em “alegação desprovida de veracidade”, empresa. Não à toa, em outubro de Faustão, contribuíram para que dência. Quando terminou o ensino
prossegue a defesa, o ex-funcionário es- 2021, a emissora lançou o CNN no Plu- Fernando Henrique de Oliveira se en- médio, o jovem decidiu seguir a car-
taria praticando “litigância de má-fé”. ral. O projeto – idealizado pela gerente cantasse pelas comunicações. Ele pe- reira de relações públicas, que consi-
Ou melhor: estaria corrompendo a “leal- de conteúdo
Acesse nossoLetícia
CanalVidica, no batente muito cedo, aos 13 anos. derava menos instável. Foi aprovado
uma jor- gout.me/BRASILREVISTAS
no Telegram:
dade processual” e tentando induzir “o nalista preta – dissemina por todas as Não precisava trabalhar, mas já queria no vestibular da UniSant’Anna, uma
Juízo a erro”. A estratégia, se comprova- plataformas do canal reportagens que ganhar o próprio dinheiro. Ia para a es- instituição privada. De início, julgou
da, é passível de multa. tratam de assuntos caros às chamadas cola de manhã e, à tarde, era balconista que conseguiria arcar sozinho com a
A própria CNN pediu o segredo de minorias, como o etarismo, a identida- no boteco dos avós maternos. Com o nova despesa. Enganou-se: o salário
Justiça. “Os fatos alegados [...], muito de de gênero, a transfobia, a Lei de Co- salário, comprava roupas moderninhas, de office boy mal dava para a alimen-
embora improcedentes [...], têm poten- tas e a luta contra a Aids. O podcast cadernos de capa dura ou lapiseiras pra- tação no campus. À época, os pais de
cial para macular a reputação de um Entre Vozes aborda temas semelhantes teadas. De quebra, a grana o deixava Oliveira já não viviam juntos. A separa-
dos canais mais influentes do mundo”, e se encaminha para a terceira tempo- um pouco mais independente do pai, ção do casal desequilibrou o orçamen-
afirma Mascaro Nascimento nos autos. rada. A âncora Luciana Barreto o apre- funcionário administrativo da prefeitu- to doméstico. Pedir ajuda à família
“Ademais, [fatos dessa natureza aca- senta. Ela, que também comanda o ra paulistana que criava os filhos sem não estava mais no horizonte. Ele bus-
bam] se transformando em notícia, que programa Visão CNN, figurou na lista nenhum tato – gritava, batia, ameaçava. cou, então, um financiamento do go-
é levada ao conhecimento de colunistas dos duzentos afrodescendentes mais Na periferia de São Paulo, onde nas- verno federal. Assim, durante a maior
de televisão para ser publicada.” No dia relevantes do planeta em 2021. O levan- ceu e se educou, Oliveira levava uma parte da graduação, pagou apenas 30%
9 de março de 2021, o juiz Gabriel Gar- tamento anual conta com o apoio da vida de classe média baixa. A casa tér- da mensalidade. Só liquidou o resto
cez Vasconcelos acatou a reivindicação Organização das Nações Unidas (ONU). rea em que morava tinha 60 m², se tan- depois da formatura.
e decretou o segredo. No último 20 de novembro, Dia da to. Ele dividia o quarto com os dois Antes de chegar à UniSant’Anna,
Um mês depois, a CNN nomeou Re- Consciência Negra, outro âncora preto, irmãos e estudava numa escola pública. estudou numa única escola. Não figu-
nata Afonso como presidente. A execu- Jairo Nascimento, pediu licença para A mãe se dedicava às tarefas domésti- rava entre os primeiros da turma, mas
tiva – branca – substituiu Douglas ler um “manifesto pessoal” durante o cas. Caso sobrasse tempo, descolava nunca repetiu de ano. Expansivo e
Tavolaro, fundador e sócio minoritário CNN Sábado Manhã: uns trocados como manicure. Nas fé- aguerrido, se elegeu presidente do
da emissora, que vendeu suas ações Há quem diga que o racismo é mi- rias, a família passava alguns dias em grêmio quatro vezes. Brigou para que
para o banqueiro e empreiteiro Rubens mi-mi, frescura, exagero e que, no fun- Praia Grande, balneário popular da o colégio fornecesse merenda de qua-
Menin, agora o único controlador do do, a escravidão foi boa. O absurdo Baixada Santista. lidade, organizasse passeios culturais,
canal. Egressa de uma afiliada da Glo- dessas ideias escancara o perfil de uma Perto dos 15 anos, Oliveira arranjou aprimorasse a limpeza das salas e não
bo em São Paulo, Afonso é casada com pessoa: o racista. No geral, ele estuda uma ocupação melhor, graças à indi- atrasasse a entrega gratuita de cader-
outra mulher. Ela mesma deu a infor- pouco e desconhece o passado do país, cação de um vizinho. Tornou-se office nos. Nos tempos de faculdade, porém,
mação durante as primeiras reuniões de mas se vangloria desse desconhecimen- boy numa agência especializada em o rapaz se distanciou das lutas estu-
que participou na CNN. Também disse to convicto. Ele se acha uma boa pes- clippings, relatórios que reúnem infor- dantis. Também evitou militar em
à nova equipe que abomina qualquer soa, tem até um amigo negro para mações divulgadas pela mídia sobre partidos políticos ou engrossar movi-
preconceito e que cresceu sob os cuida- chamar de seu e que cai muito bem determinadas marcas ou personalida- mentos identitários. Preocupava-se
dos de parentes negros. “Quero fazer como um tipo de estepe se rolar um des. Entre os clientes da empresa, es- mais com as aulas e o trabalho. Mes-
uma gestão transparente. Por isso, não processo ou uma acusação de racismo. tavam Hebe e Faustão. De vez em mo assim, se proclamava um “preto de
poderia esconder quem sou e quais as A empregada negra é quase da família, quando, o garoto entregava clippings esquerda”.
minhas convicções”, explicou para o enquanto o cachorro, esse sim, esse é da no endereço deles. Embora nunca A mãe de Oliveira não pulou de ale-
site Notícias da TV. família. O racista nunca é racista. Ele conseguisse vê-los, se sentia o máxi- gria quando o primogênito entrou na
Desde que tomou posse, a presidente sempre é vítima do racismo que chama mo por atender duas estrelas da tevê. universidade. “Abra o olho, menino!
busca estimular as discussões sobre di- de reverso, de um mal-entendido, ou diz A incumbência lhe parecia mais fasci- Não imagine que mudou de cor só por-

26
8 de 8 27/10/22 PROVA FINAL

que anda no meio dos ricos”, advertia. como produtor e faz doutorado em
“Curso superior é papo de branco. Você economia da cultura.
vai torrar uma fortuna com a faculdade Entre março e outubro de 2020, en-
SEJA UM
e, depois, não vai encontrar nenhum quanto morava nos Estados Unidos, foi
emprego que compense o investimen- colunista da Gama, revista eletrônica
to.” A orientação sexual do jovem – gay do grupo Nexo. Escrevia sobre arte e AMIGO
MASP
assumido desde a adolescência – causa- questões raciais. Num dos artigos, re-
va atritos adicionais. A mãe rejeitava os lembrou o momento em que tirou o
gestos delicados, a voz fina e os trajes passaporte pela primeira vez, já com a
exuberantes do filho. intenção de viajar para a França. “Um
Não por acaso, às vésperas dos 19 sufoco. [...] Todo mundo me achou
anos, Oliveira saiu da casa materna maluco. Ir à polícia sem ser detido era
para dividir uma quitinete com um algo novo no meu pedaço.” Ele contou
professor da UniSant’Anna, também que, quando começou a viver em Pa-
negro e gay. Em poucas semanas, o ra- ris, finalmente se sentiu tratado de ma-
paz já enxergava o parceiro de aparta- neira respeitosa. “Me chamavam de
mento como um híbrido de pai, irmão monsieur DE OLIVEIRA (com um leve
mais velho e mentor intelectual. O pro- acento no A, bem francês).” Sempre
fessor, que ensinava língua portuguesa, que visitava o Brasil, se entristecia “por
tinha centenas de livros. “Não leia ape- deixar para trás o respeito e o vocativo
nas os textos da faculdade. Explore a de senhor”. APOIE O MUSEU E
minha biblioteca”, sugeria para o jo- Em outro artigo, abordou a cober-
vem, que acatava todas as recomenda- tura do assassinato de George Floyd
DESFRUTE DOS BENEFÍCIOS
ções de leitura. Certo dia, o professor Jr.: Caminhar pelas ruas de Houston, CULTURAIS ESPECIAIS
lhe perguntou: “Que tal estudar fora no Texas, faz de mim um homem dividi-
do Brasil?” O universitário jamais aven- do: aquele que narra e aquele que está DO PROGRAMA
tara a hipótese. “Por que não? Quem prestes a inventar suas próprias leis. [...]
sabe a França...”, insistiu o professor. As horas passam, e as reflexões não pa-
“Se você realmente quiser, vai rolar.” ram. Minha conclusão é que Floyd co-
O incentivo surtiu efeito. meteu, sim, um crime: nasceu preto.
Contrariando os receios da mãe, Minha entranha está dilacerada. Eu
Oliveira arrumou bons empregos nos também sou um criminoso [...]: nasci
primeiros anos de formado, conseguiu preto. [...] Dizer que a vida dos negros
poupar um dinheirinho e levou adian- importa é essencial, mas dizer isso para
te o conselho de ir para a França. De- nós, sinceramente, não muda nada. [...]
sembarcou por lá no segundo semestre O que Floyd, eu e tantos outros temos
de 2007. Seis meses antes da viagem,Acesse em comum é que Canal
nosso somos fruto
nodaTelegram:
desi- t.me/BRASILREVISTAS
teve aulas básicas de francês. Em Paris, gualdade social. Não somos e não sere-
continuou o aprendizado na Sorbon- mos iguais enquanto eu tiver três vezes
ne, que oferecia cursos para estrangei- mais chance de ser assassinado pela
ros. Tão logo se tornou fluente, tratou polícia do que você.
de alçar voos maiores. Ainda na Sor- Num terceiro artigo, Oliveira discor-
bonne, concluiu uma licenciatura e reu sobre o Dia da Consciência Negra:
dois mestrados, sempre em arte e cul- Se não bastasse lidar com todas as frus-
tura. Sustentava-se principalmente trações, lido com o que dita a moda. [...]
com bolsas e outros tipos de apoio go- Por conta da cor, pelo famoso lugar de
vernamental. Se necessário, fazia bi- fala e talvez por minha formação aca-
cos em restaurantes e bares. Não raro, dêmica, às vezes sou sondado para o
cuidava de crianças. dia de “preto brilhar” [...]. Dos oito
Em 2011, o jornalismo da Band pre- convites que me foram feitos – entre
cisou de um produtor e cinegrafista na eles, escrever um texto, dar uma pales-
França. Era uma vaga temporária. Como tra e fazer um filme para a internet –
sabia operar câmeras, Oliveira se candi- nenhum foi remunerado. Nenhum.
datou. Deu conta do recado, e a emisso- Minha leitura? “Aproveite o momento Entrada ilimitada e sem filas
ra o convocou mais vezes. Com o tempo, para levantar a bandeira da sua gente.
ele se firmou no ofício, que exercia em Não precisamos te pagar para isso; na Convite para pré-aberturas,
paralelo às obrigações acadêmicas. verdade, é uma oportunidade.” Além cursos e palestras
Quando não prestava serviços para a de ser frustrante, é a morte do bom sen-
Gratuidades e descontos
Band, auxiliava o SBT, a Rede TV!, a Fran- so. Mudar pressupõe repensar a econo-
em + 15 museus, teatros
ce Télévisions e o canal russo RT. mia e a distribuição de renda.
e cinemas em todo Brasil
No início de 2018, recebeu uma Quando vivia em Nova York, o jor-
proposta da Globo. O programa Con- nalista também conversou a respeito
versa com Bial queria incorporá-lo à de Floyd Jr. com o publicitário Bruno Conheça o programa
equipe de produção, que ficava em Infanger, que mantém o canal Alto
São Paulo. Oliveira aceitou a oferta, Papo no YouTube. A entrevista durou Hans Gunter Flieg,
mesmo sem curtir muito a ideia de 28 minutos. Logo no início, Infanger Museu de Arte de São Pau-
deixar Paris. Aproveitou o retorno à perguntou se falar de racismo incomo- lo (MASP), 1969, acervo
cidade natal para obter o registro de dava Oliveira. O entrevistado respon- Instituto Moreira Salles
jornalista no Ministério do Trabalho. deu que considera necessário discutir
Em dezembro de 2019, trocou a Glo- o assunto, embora não goste de recor-
bo pela CNN Brasil e São Paulo por dar “o que já aconteceu” com ele pró-
Nova York. Hoje, com 39 anos, está de prio ou “algum amigo, primo, parente”.
volta à capital francesa. Solteiro, não E explicou: “Na verdade, lembrar é
tem filhos, segue ganhando a vida sempre muito doloroso”. J Av. Paulista, 1578
masp.org.br
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PARTE IV_DE RESSENTIDO A VISIONÁRIO


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Como o meio intelectual brasileiro tardou em reconhecer a tônica antirracista e universal da obra de Lima Barreto

FELIPE BOTELHO CORRÊA

E
m 1905, aos 24 anos, Lima Barreto fez uma anotação em seu diário re- longe de se alargar contaminando toda a superfície da União [dos Estados Unidos],
gistrando quando teve a primeira percepção sobre racismo no âmbito acabará por se reduzir às proporções de uma simples pinta que sirva para contrastar
intelectual. Foi quando, aos 14 anos de idade, leu artigos dos escritores a brancura da República e a pureza das raças fortes que a fundaram [...]”.
Domício da Gama (pseudônimo de Domício Afonso Forneiro) e Ma- Focado no contexto brasileiro, José Veríssimo, então editor da Revista Brazileira,
nuel de Oliveira Lima, na Revista Brazileira, criada em meados do sécu- reforçava o mesmo pensamento em resenha de 1899:
lo XIX e que viria a se tornar a revista oficial da Academia Brasileira de Letras (ABL), Não há receio, como supõe o sr. Oliveira Lima, de que surja o problema negro no
instituição que Gama e Oliveira Lima ajudaram a fundar. Publicados entre 1895 Brasil. Antes de surgir, foi aqui resolvido pelo amor. O cruzamento tirou do elemento
e 1896, os artigos que impactaram o adolescente Barreto tratavam das impressões toda a importância numérica, diluindo-o na população branca. [...] A mistura das
que os dois diplomatas coletaram durante viagens aos Estados Unidos. As viagens raças tendendo, como asseguram os etnólogos [...], a fazer prevalecer a superior, aca-
ocorreram na época em que as leis segregacionistas conhecidas como Leis Jim bará forçosamente, em período mais ou menos curto, por extinguir aqui a raça negra.1
Crow tinham sido confirmadas pela Suprema Corte norte-americana, estabele- Esse discurso baseado na imigração e na miscigenação foi o mesmo que a
cendo a doutrina legal separate but equal (separados, mas iguais), visível nas sim- delegação brasileira – encabeçada pelo diretor do Museu Nacional, o médico João
bólicas placas que dividiam a população entre white e colored. Era um período de Baptista de Lacerda, e pelo jovem antropólogo Edgard Roquette-Pinto – repe-
extrema violência nos Estados Unidos: dois negros, em média, eram linchados tiu no Primeiro Congresso Universal de Raças, realizado em Londres em 1911.
por semana ao longo da década de 1890. O evento reuniu dezenas de delegações dos cinco continentes para um pioneiro
Nos artigos da Revista Brazileira, eram típicas as comparações com os Estados debate internacional sobre questões raciais. Diante dessa audiência global, muitas
Unidos e os consequentes diagnósticos para o Brasil da época – cheios de hierarqui- das delegações tocaram, em suas apresentações, nas tensões geradas pelos estudos
zações raciais e apelos a uma imigração branca que resolveriam o suposto problema que entendiam raça como uma categoria científica – muito comuns no século
racial via miscigenação. Sobre o contexto norte-americano, Oliveira Lima, que era XIX, apesar de nunca ter havido qualquer consenso sobre tal definição. Lacerda e
branco, repetia ideias como a de que a imigração europeia resultaria numa diluição Roquette-Pinto focaram na questão do “mestiço no Brasil”, afirmando a tese do
dos negros, evitando assim que a população negra se agregasse num elemento social
1 Artigo publicado no Jornal do Commercio em 4 de dezembro de 1899 como resenha do livro de Oliveira Lima Nos
ou político isolado e perigoso. Gama, considerado por alguns o primeiro diplomata Estados Unidos: Impressões Políticas e Sociais, publicado no mesmo ano. O artigo fala sobre “negros e outras raças
negro do Brasil, argumentava na mesma linha, sugerindo que “[...] a mancha negra, inferiores”; por outro lado diz que os preconceitos de raça no Brasil, quando existem, são superficiais e insignificantes.

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LA CRUZ_2022
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Lima Barreto, na visão de La Cruz: os desabafos do escritor sobre as dificuldades de ser negro foram interpretados por Gilberto Freyre como um desejo de ser “alvo, louro, angélico”

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embranquecimento progressivo pela miscigenação. Disseram que, em três gera- que era muito próximo de Émile Durkheim. Escrita em francês, a carta de Bar-
ções – ou seja, no decorrer do século XX –, todos no Brasil seriam brancos. reto usa o exemplo do Brasil (e o seu próprio) para tentar “dissipar certas opiniões
Liderada por W. E. B. Du Bois, a delegação dos Estados Unidos enfatizou, por falsas que o mundo civilizado tem sobre as pessoas de cor”, como as que aparecem
outro lado, sua crítica à ideia de hierarquia entre as raças e tratou dos problemas no livro de Bouglé La Démocratie Devant la Science. Études Critiques sur l’Héré-
gerados pela segregação racial imposta por lei. Para o jovem Du Bois – que depois dité, la Concurrence et la Différenciation (A democracia diante da ciência: estudos
continuaria sua trajetória como um dos maiores intelectuais negros norte-ameri- críticos em hereditariedade, competição e diferenciação), publicado em 1904.
canos e uma das principais referências sobre estudos afro-americanos no século Essas circunstâncias periféricas o fizeram até criar uma espécie de autodefini-
XX (é dele a famosa “profecia” escrita em 1903, de que o principal problema do ção de sua posição nesse espaço intelectual global. O autor carioca sugere ter uma
século seriam as relações raciais) –, o evento foi importante por ter sido um dos “razão subalterna” movida por profundas “implicâncias” com diferentes teorias e
primeiros a discutir a questão da igualdade racial em nível global. Para se ter uma ideias que circulavam na época. Apesar de haver pontos de contato entre a expres-
ideia da veia vanguardista do encontro, naquela mesma década uma proposta de são que Barreto usa e o conceito de “subalterno” que Antonio Gramsci usaria anos
emenda ao Tratado de Versalhes para a inclusão do princípio de igualdade racial depois em seus Cadernos do Cárcere (1929-35) – e que acabaram mais tarde sendo
foi rejeitada na Conferência de Paz de Paris de 1919, que definiu a geopolítica um dos pontos de partida dos estudos subalternos que surgiram na Índia dos anos
global no período entre as duas guerras mundiais. 1980 e no contexto latino-americano a partir dos anos 1990 –, as “implicâncias”
Esse pequeno panorama global sintetiza muitas das preocupações que ocupa- de Lima Barreto tinham outro teor.
vam Lima Barreto naquele começo de século XX, e ele certamente estava muito Um dos temas com os quais ele mais implicava – no sentido de se envolver, de
mais próximo das ideias e preocupações de Du Bois do que das teses dos membros combater – era com a influência e legado da escravidão e do racismo no Brasil.
da delegação brasileira. O racismo atravessava sua vida. Aos 7 anos ele presenciou Em vários momentos, isso aparece de maneira explícita em anotações em seu
com o pai a abolição da escravatura no Paço e se encheu de esperança. Aos 14, diário, com ideias para livros que queria escrever – a “História da Escravidão
quando estudava numa escola de elite (sendo o único negro em sua turma), foi Negra no Brasil” e a sua influência na nossa nacionalidade, ou mesmo um “Ger-
tomado por um enorme medo ao ler os inúmeros artigos – como os da Revista minal Negro”, em referência ao romance mais conhecido do autor francês Émile
Brazileira – que o inferiorizavam. Aos 24, quando enveredou a escrever para pe- Zola. Como estas, muitas outras ideias ele chegou a conceber sem desenvolvê-las.
riódicos, tomou as letras como uma arma para sacudir esse medo, mirando prin- Das ideias que foram levadas a cabo, a questão racial fica explícita em uma imen-
cipalmente na “covardia intelectual” que, segundo ele, apossava os brasileiros em sa quantidade de contos, crônicas e romances sobre como o racismo tem um papel
face das teorias raciais que vinham embaladas em discursos científicos da Europa. definidor no destino de protagonistas negros. Entre os mais conhecidos, podemos
Barreto anota com extrema lucidez em seu diário em 1905: “Vai se estendendo, citar o racismo que atravessa Recordações do Escrivão Isaías Caminha (1909),
pelo mundo, a noção de que há umas certas raças superiores e umas outras infe- romance de estreia de Lima Barreto, cujo protagonista é colocado como suspeito
riores, e [...] que as misturas entre essas raças são um vício social, uma praga e não de um crime que não cometeu; a desesperante constatação da última frase de
sei que coisa feia mais. Tudo isto se diz em nome da ciência e a coberto da autori- Clara dos Anjos (publicado em folhetins entre 1923 e 1924, mas só reunido em
dade de sábios alemães.” Aqui ele faz referência a influentes discursos como os de livro em 1948), que, como mulher e negra, desabafa “Não somos nada nessa vida”;
Ernst Haeckel e seu darwinismo social; Wilhelm Schallmayer e Alfred Ploetz e ou mesmo em O Cemitério dos Vivos (só publicado em 1953), que Barreto deixa
suas ideias de eugenia; e o filósofo racialista anglo-alemão Houston Stewart Cham- inacabado, mostrando o cotidiano de um hospital psiquiátrico em que os internos
berlain, árduo admirador de Richard Wagner que, depois da morte do compositor, são na maioria negros. Espalhadas em sua produção há, também, inúmeros temas
viria a se casar com uma de suas filhas. Assim como Wagner – espécie de sogro em que o racismo continua sendo central, mesmo quando não aparece de manei-
póstumo do filósofo – se tornaria o músico-símbolo do Terceiro Reich, Chamber- ra explícita. Suas implicâncias com a linguagem elitista, o nacionalismo, o fute-
lain ficou conhecido mais tarde por Acesse ter sido umanossodas principais
Canal influências por trás bol,t.me/BRASILREVISTAS
no Telegram: o helenismo, os doutores e até o emergente feminismo têm como pano de
do antissemitismo da política racial nazista, considerado uma espécie de profeta fundo uma estratégia intelectual de fazer frente aos discursos racistas que o opri-
nos círculos liderados por Hitler. Longe de ser uma figura marginal, sua tese sobre miam e excluíam a população negra.
o arianismo foi publicada em 1899 e se tornou um dos best-sellers mais influentes Ainda assim, o primeiro ciclo de leitura de sua obra não pareceu captar essa
daquela época: Die Grundlagen des Neunzehnten Jahrhunderts (Os fundamentos ênfase. Seu primeiro livro causou polêmica e foi muito comentado, não exata-
do século XIX). Traduzido para diversas línguas, embora sem versão em português, mente pela questão racial que perpassa a história, mas pelas referências caricatas
o livro chegou a atingir a marca de 100 mil exemplares vendidos no período até a jornalistas e escritores que eram facilmente decodificadas pelos leitores. Rece-
1914, e angariou veementes apoiadores no Brasil.2 O desabafo de Lima era contra beu também críticas sobre um suposto “descuido” na sua linguagem escrita, o
essa crescente influência de teorias racistas no Brasil e no mundo ocidental. que na verdade era uma estratégia deliberada de se comunicar com um público
mais amplo. Mesmo com boa parte de sua obra tendo claramente uma perspec-

P
ouquíssimos são os escritores, e menos ainda as escritoras, que continuam a ser tiva antirracista, o que era incomum na época, ele se tornou famoso com os lei-
lidos e editados após o centenário de suas mortes. A famosa ideia do matemá- tores enfatizando outros aspectos de sua escrita. Os capítulos de sua obra-prima
tico francês Augustin-Louis Cauchy – a de que o ser humano morre, mas sua Triste Fim de Policarpo Quaresma e de Numa e a Ninfa tiveram grande populari-
obra permanece – é para pouquíssimos. E para que isso aconteça é quase sempre dade quando foram originalmente publicados em folhetim em jornais em 1911 e
necessário um processo de “canonização”; uma espécie de história das leituras e re- 1915, respectivamente, com o último sendo adaptado para um teatro de revista.
leituras dessas obras. Esse processo atravessa diferentes conjunturas político-sociais, O romance Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá, de 1919, recebeu menção hon-
debates de ideias, decisões editoriais e, é claro, distintas gerações de leitores e suas rosa num concurso da ABL. Ele colaborou regularmente com diversas revistas,
ênfases. O caso de Lima Barreto (1881-1922) é ao mesmo tempo multifacetado e algumas de circulação nacional. É verdade que, da década de 1910 até sua morte,
revelador. Se, por um lado, é animador que esse grande escritor brasileiro siga sendo Barreto foi uma referência nacional incontornável, mas no final da vida estava
lido e redescoberto cem anos depois da morte em razão da complexidade e qualida- cada vez mais abatido pelo alcoolismo e suas consequentes internações. Quando
de de sua obra, por outro é notória a forma como sua pioneira perspectiva antirracis- morre em 1º de novembro de 1922, há exatos cem anos, ele deixa cinco livros
ta demorou a ser compreendida como um pilar fundamental de seu projeto literário. publicados, dois no prelo, uma imensa obra espalhada em diversos periódicos e
Por mais que a escrita de Lima Barreto fosse marcada por sua experiência no um vácuo intelectual no debate de ideias. Sem respaldo institucional, sua obra foi
Rio de Janeiro naquele início de República, sua obra está em constante diálogo desaparecendo das livrarias.
com debates internacionais por meio, principalmente, de autores de países-mem-

C
bros do que nos acostumamos a chamar do “Norte global”. A lista dos autores om o impulso do modernismo nas décadas de 1920 e 1930, pouco se falou
discutidos em sua obra é extensa e funciona como uma espécie de estudo de caso sobre Lima Barreto, apesar de ele ter sido lido e reverenciado por vários dos
de como um negro do “Sul global” enfrentou criticamente aquelas ideias, apro- escritores que surgiam. Em 1929, por exemplo, o poeta Manuel Bandeira
priando-se de algumas, rebatendo outras e negociando outras tantas num cenário reafirma a importância da “língua brasileira” usada por Barreto em sua escrita.
mundial que ainda era colonial. Barreto muitas vezes usa o contexto local para Um pouco depois, em 1935, no artigo Lima Barreto, escritor popular, Jorge Amado
confrontar esses debates desde sua perspectiva e experiência, mesmo com todas sugere que o autor tinha sido um caso especial na história da literatura no Brasil,
as dificuldades de tal empreitada: escrever em português, morar no Brasil, ser por ter sido um dos poucos a alcançar popularidade tanto entre críticos quanto
negro (e não se esconder), ser de classe média baixa, escrever para as massas e não entre o grande público. Na década de 1940, com as transformações geradas pela
ter respaldo institucional. Ainda assim, ele tentava. O exemplo mais curioso talvez ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas, a obra de Barreto vai ganhando ou-
seja a carta que Barreto escreve em 1906 ao sociólogo francês Célestin Bouglé, tros tons. O crítico e jornalista Otto Maria Carpeaux definiu assim a imagem que
ele e outros tinham de Lima Barreto em meados daquela década:
2 Um exemplo notório é o livro A América Latina, do político e escritor Sílvio Romero, publicado em 1906.
A obra defendia o branqueamento da população e atacava A América Latina: Males de Origem, livro publicado
Numa espessa nuvem de lendas, anedotas e boatos mais ou menos autênticos
no ano anterior pelo médico e escritor Manoel Bomfim, que valorizava a miscigenação brasileira. desapareceu a figura bem carioca de um mulato bêbado, passando a vida frustrada

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entre bares da cidade noturna e as noites de pesadelo no hospício. O mais insisten- desses trabalhos não tomaram a questão racial como foco principal. Em parte,
te daqueles boatos afirmava que o desaparecido tinha deixado uns livros preciosos, isso já se devia a algumas das escolhas feitas por Barbosa em sua biografia.
há muito esgotados, inacessíveis portanto. Sem deixar de mencionar o racismo, que chega a definir algo eufemisticamente
É justamente nesse período que entra em cena Francisco de Assis Barbosa. Jorna- como “preconceito de cor”, Barbosa acaba por enfatizar Lima Barreto como o escri-
lista muito afeito a reportagens e entrevistas com escritores da época, Chico Barbosa tor do povo que Jorge Amado definira, espécie de representante do proletariado.
– como era conhecido – aceita em 1946, logo após o fim da guerra, um projeto para A última imagem da biografia faz essa síntese. Durante o velório do escritor, um
a edição das obras completas de Lima Barreto. Enquanto fazia a necessária pesquisa, homem desconhecido da família apareceu e espalhou flores no caixão. Bastante
Barbosa acabou chegando a diversos manuscritos do escritor carioca que ficaram comovido e lacrimejando, ele beijou a testa do morto. Ao ver a cena, Evangelina,
guardados por seus irmãos na casa da família, no bairro de Todos os Santos (casa essa irmã de Lima Barreto, quis saber quem era o homem, que retrucou: “Não sou nin-
que Lima morou até falecer e que costumava chamar de Vila Quilombo). Ao se guém, minha senhora. Sou um homem que leu e amou esse grande amigo dos
debruçar sobre o arquivo do autor – que em 2017 foi incluído no programa Memória desgraçados.” Esta foi a imagem que prevaleceu entre os críticos naquele período,
do Mundo, da Unesco, por seu valor cultural –, Barbosa viu a necessidade de contar com a obra de Barreto sendo frequentemente associada a uma percepção da realida-
uma outra história, passando a limpo os boatos evocados por Carpeaux. de social brasileira vista de baixo para cima, “julgando os poderosos pela indignação
Num processo que tardou uma década, Barbosa conseguiu não só escrever a dos injustiçados”, como sugeriu o historiador Nicolau Sevcenko décadas depois.
incontornável biografia, que foi originalmente publicada pela editora José Olym-

N
pio em 1952 e continua a ser editada, como também organizar e publicar (com a ão se trata aqui de negar esse importante aspecto no que Barreto escreveu.
ajuda de Antônio Houaiss e Manoel Cavalcanti Proença) dezessete volumes que Mas cada interpretação tem suas ênfases, e a de Barbosa não recaía sobre a
formaram o material de Obras de Lima Barreto. A coleção saiu pela Editora Bra- questão racial. No prefácio do primeiro volume editado pela Brasiliense, o bió-
siliense sob o comando do historiador marxista Caio Prado Júnior. O impacto grafo reconhece que o racismo influenciou a obra de Barreto, definindo-o como
extraordinário da empreitada de Barbosa foi um marco não só para os interessados um “mulato incompreendido e até certo ponto perseguido”. Mas argumenta que
em Lima Barreto, mas também se tornou um estudo de caso das canonizações essa não era a questão principal. Considerando o contexto político mais geral da
literárias no Brasil. Nomes influentes como o próprio Oliveira Lima, Alceu Amo- época, a ênfase de Barbosa pode ser vista também como fruto da Guerra Fria e
roso Lima, Lúcia Miguel Pereira e Gilberto Freyre escreveram prefácios que apre- das escolhas editoriais da época. O próprio Barbosa conta que ao longo da década
sentavam os volumes e ajudavam a juntar os fragmentos da obra que Barreto havia em que tentou editar as obras completas, passando por várias tentativas nas edito-
deixado ao longo de anos de colaboração com a imprensa. Além disso, a coleção ras Livro de Bolso, Mérito e W. M. Jackson, havia “má vontade manifesta dos
apresentava a produção íntima de Barreto, entre diários e correspondências, aju- editores, desgostosos do ‘mau negócio’ que haviam feito, principalmente pelo tom
dando a enquadrar sua obra de ficção no que Sérgio Buarque de Holanda, que antiamericano de certas passagens da obra do romancista”. Além desses textos
também foi um dos prefaciadores, chamou de “confissão mal escondida”. contra os Estados Unidos, quase todos focados na questão das relações raciais
Não há dúvida de que o trabalho de Barbosa estabeleceu, em grande parte, a naquele país, havia vários textos de Barreto que explicitamente apoiavam a revo-
tônica de como Lima Barreto foi lido nesse segundo ciclo de leitura de sua obra, lução bolchevique e ao menos um que tecia elogios à Alemanha em 1919 (texto
a partir da década de 1950. Toda uma nova geração de pesquisadores tomou a esse que acabou ficando de fora dos livros editados em 1956).
biografia e as obras editadas em livros para estudar o período da Primeira Repú- Para além da Guerra Fria, porém, é preciso atentar também para um outro deba-
blica e o que Barreto produzira no período entre a morte de Machado de Assis em te internacional de grande relevância naquele momento, e que certamente influen-
1908 e a Semana de Arte Moderna em 1922. Apesar de variadas, as abordagens ciou essas leituras da obra do autor. A Segunda Guerra Mundial (1939-45) marcou

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piauí_novembro 31
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uma revolução nas questões raciais, definindo um novo paradigma. O fim do regime ousada tentativa global de reverter os profundos danos causados por ideias e polí-
nazista obrigou o mundo a reconhecer o potencial letal do conceito de raça e as ticas racistas dos séculos anteriores. A imensa maioria dos acadêmicos apoiou a
horríveis consequências de seu uso extremo. O doloroso reconhecimento de tudo Unesco, e as pesquisas das décadas seguintes refletiram amplamente esse apoio.
que havia sido infligido em nome da raça ajudou a desacreditar o racismo no cenário Cientistas começaram a procurar diferenças genéticas no nível molecular, e não
internacional. Esse processo é muitas vezes visto como inevitável: uma vez que as na superfície. Formas mais antigas e controversas de estudar a diferença humana,
atrocidades nazistas foram reveladas, o racismo foi rejeitado. Mas a resposta global e usando a anatomia, passaram a ser tratadas com desconfiança.
a construção de um novo paradigma não foram imediatas. Apesar da derrota do

A
nazismo, o racismo permaneceu uma ideologia poderosa no final da década de 1940. relação entre essas mudanças paradigmáticas no debate global, a forma em
Normas institucionais baseadas nessa visão de mundo ainda vigoravam em muitos que o debate racial se dava no Brasil da época e a leitura vigente da obra de
países: sistemas de segregação racial respaldados por leis eram relativamente comuns, Lima Barreto pode ser sintetizada na figura do escritor Gilberto Freyre.
com países como Estados Unidos e África do Sul sendo os exemplos mais notórios. Além de ter sido escolhido por Chico Barbosa para prefaciar o Diário Íntimo de
Um dos momentos-chave do período pós-guerra foi a publicação da Declaração Barreto em 1956, Freyre foi também convidado para dirigir o Departamento
sobre Raça, pela Unesco, em julho de 1950. A criação da Organização das Nações de Ciências Sociais da Unesco em 1948. Acabou recusando,3 provavelmente pela
Unidas (ONU) em 1945 levou a um aumento nos esforços voltados para a promoção quantidade de projetos com os quais já estava envolvido na época: era deputado
internacional dos direitos humanos e da igualdade, incluindo a Declaração Uni- federal por Pernambuco (contribuindo para a elaboração da Lei Afonso Arinos,
versal dos Direitos Humanos e a Convenção para a Prevenção e a Repressão do que estabeleceu atos de discriminação racial como contravenção penal); organi-
Crime de Genocídio, ambas ratificadas em 1948. Nesse contexto, a Unesco foi zava então a criação do que hoje conhecemos como Fundação Joaquim Nabuco;
fundada em 1945 como sucessora do Instituto Internacional de Cooperação Inte- e começava a planejar suas viagens pelo que restava do Império Colonial
lectual da Liga das Nações. A missão central da Unesco era promover a paz e os Português (foi ao longo dessas viagens que Freyre desenvolveu o conceito de lu-
direitos humanos por meio de colaborações entre os países nas áreas da educação, sotropicalismo, que o regime salazarista viria a reutilizar de maneira ideológica
ciência e cultura. Não surpreendentemente, um de seus primeiros atos públicos foi para tentar manter as colônias sobre seu domínio).
emitir uma declaração sobre raça, baseada em contribuições de estudiosos de vá- Apesar de não ter aceitado o cargo na Unesco, a visão freyriana sobre o Brasil
rias partes do mundo. Um comitê de especialistas estabelecido pela Unesco se se faria presente na entidade. Na reunião interdisciplinar de acadêmicos realizada
juntou então para escrever a Declaração sobre Raça, com base em dados científicos em Paris, em 1949, que deu origem à Declaração sobre Raça, o Brasil foi selecio-
de estudos sobre raça elaborados em décadas anteriores. nado como objeto de uma ampla pesquisa para tentar entender os aspectos que
Como aponta Elazar Barkan, professor de Relações Internacionais da Univer- tinham levado o país a construir uma experiência de relações raciais supostamen-
sidade Columbia, os acadêmicos que estudavam raça na primeira metade do sé- te menos tensa que em outros países. A ideia vinha sendo amadurecida desde pelo
culo XX eram quase todos ligados à biologia e à antropologia física, uma disciplina menos 1947, quando o Departamento de Ciências Sociais da Unesco aprovou o
que se tornara popular em meados do século XIX, atingindo seu apogeu na época projeto Tensions Affecting International Understanding (As tensões que afetam
em que Lima Barreto viveu. Na década de 1930, porém, cada vez menos cientistas o entendimento entre as nações), durante a conferência geral na Cidade do Mé-
dedicavam suas carreiras exclusivamente ao estudo da raça. Uma razão desse de- xico. O objetivo era estudar as causas das guerras, as rivalidades nacionais e as
clínio foi a falta de formas consistentes de classificação. Apesar das diferenças fí- diversas formas de racismo. No relatório final, publicado em 1950 e escrito pelo
sicas exteriores, visíveis entre as diferentes populações humanas, tornou-se canadense Otto Klineberg, professor de psicologia e coordenador do projeto, o
evidente para os cientistas que os esforços em definir a tipologia racial nunca Brasil foi pintado com as tintas de Freyre: “Seria falso dizer que não há absoluta-
chegavam perto de uma conclusão relevante: não havia demarcações consistentes mente nenhum preconceito racial no Brasil, mas [...] o quadro geral das relações
(populações distintas não se conformavam
Acesse a categorias
nossofixas),
Canal tornando a taxono- raciais
no Telegram: [...] pode ser descrito como amigável.”
t.me/BRASILREVISTAS
mia impossível e muitas vezes emaranhada com temas de etnia e nacionalidade. O prefácio que Freyre escreve em 1954 para o Diário Íntimo foi retomado e
Os antropólogos físicos acumulavam dados que não tinham justificativa epistemo- expandido por ele décadas depois, em 1981, por ocasião do centenário de nasci-
lógica, e seus dados não produziam resultados que pudessem estabelecer compa- mento de Lima Barreto. Curiosamente, ambas as versões giram em torno de uma
rações significativas. Além disso, apesar da crescente credibilidade que a genética aproximação da obra de Barreto com a de Freyre, com o pernambucano afirman-
adquiria como a ciência da hereditariedade, as pesquisas mostravam que a gené- do que conseguiu levar a cabo em sua famosa trilogia (Casa-Grande & Senzala,
tica humana não oferecia nenhuma explicação sobre distinções físicas que pudes- 1933; Sobrados e Mucambos, 1936; Ordem e Progresso, 1957) o que Barreto tinha
sem estabelecer classificações raciais. sonhado em seu diário: fazer uma história da influência da escravidão no Brasil.
Os estudos sobre raça e racismo na segunda metade do século XX já tinham, Com sua costumeira erudição, Freyre tece elogios, aponta falhas e faz compara-
portanto, outro perfil. A crença na raça como biologia tinha dado lugar à raça ções, argumentando repetidas vezes que Barreto tinha um ressentimento por ser
como construção social e política. É nesse movimento de placas tectônicas que a negro e que ler seu diário íntimo era como estar num confessionário de igreja –
Unesco é criada e estabelece o comitê interdisciplinar para definir uma agenda com “um brasileiro angustiado, menos de fora para dentro, do que de dentro para
global. O esforço da entidade tinha como objetivo iniciar uma campanha educa- fora” confessando ter o grande desejo de ser “alvo, louro, angélico”. Freyre sugere
cional para disseminar o conhecimento científico sobre raça no mundo. O pri- essa curiosa interpretação tomando como base as diversas vezes no diário em que
meiro diretor-geral da Unesco foi Julian Huxley, coautor do livro We Europeans: Barreto desabafa sobre as dificuldades de ser negro no Brasil e no mundo.
a survey of “racial” problems (Nós, europeus: um levantamento dos problemas Os quase trinta anos que separam as duas versões do texto de Freyre são também
“raciais”), uma das primeiras obras a defender o uso do termo etnia como substi- o período de surgimento de outras interpretações sobre relações raciais no Brasil e
tuto de raça, numa forma de combater o racismo que fazia uso de discursos su- no mundo, com um consequente declínio da influência freyriana. Na segunda
postamente científicos. Huxley teve influência na composição do comitê, que foi versão do prefácio, já no final de sua vida, o sociólogo tenta atacar essas novas
um elemento-chave da primeira declaração (outras três versões foram produzidas abordagens, referindo-se ao movimento Négritude como uma “seita”, reclamando
anos depois): os acadêmicos das ciências sociais e humanas estavam no comando, “dos escassos adeptos” dessa retórica “não brasileira” e sugerindo que o senegalês
desafiando a visão mais convencional de raça como uma categoria que só era Léopold Senghor – escritor e político que foi um dos principais formuladores
relevante para as ciências biológicas. do movimento anticolonial pan-africano – era entusiasta da miscigenação brasilei-
O relator Ashley Montagu era o único membro do comitê com especialização ra. Para Freyre, cuja obra gira em torno de certa ideia de excepcionalidade brasi-
em antropologia física e com experiência em biologia, mas um notório crítico da leira, Lima Barreto era um brasileiro afronegro, mas não um afronegro brasileiro.
raça como um conceito científico. Seu livro de 1942, Man’s Most Dangerous

P
Myth: The Fallacy of Race (O mito mais perigoso da humanidade: a falácia da ublicado também naquele início da década de 1980, como parte de um livro
raça), foi uma das obras mais influentes naquele período e ajudou a impulsionar que celebrava o centenário do nascimento de Barreto, um texto de Joel
a mudança de paradigma nos estudos raciais. Montagu enfatizava que genetica- Rufino dos Santos é um bom exemplo do que inquietava Freyre. Uma das
mente os humanos eram praticamente idênticos e que, de qualquer maneira, principais figuras dos estudos afro-brasileiros, Rufino dos Santos, um historiador
nossas raízes ancestrais eram as mesmas. Em outras palavras: as diferenças entre negro, argumenta que a redescoberta dos textos de Barreto na década de 1950 e
os humanos não eram apenas marginais, mas também formavam um continuum, as interpretações que surgiram nessa esteira tinham sido marcadas pelo “mito da
um gradiente sem fronteiras. democracia racial” (que ele declara como falido), mito esse que via no escritor
A declaração da Unesco feita em 1950 era para ser a última palavra sobre o um “mulato ressentido”. Rufino dos Santos sustenta que as transformações eco-
assunto: “Os cientistas chegaram a um acordo geral em reconhecer que a huma- nômicas e sociais no Brasil tinham aprofundado ainda mais as contradições ra-
nidade é uma só: que todos os seres humanos pertencem à mesma espécie, Homo
3 Em seu lugar, entra o também brasileiro Arthur Ramos, que pouco antes de morrer estabeleceu as linhas gerais das
sapiens.” O documento declarava que não havia base científica ou justificativa pesquisas sociais que seriam feitas no Brasil, país que ele costumava definir como um “laboratório de civilizações”. Os
para o preconceito racial. De certa maneira, isso foi revolucionário e marcou uma resultados das pesquisas mostraram que as relações raciais no Brasil estavam longe de ser um modelo a ser seguido.

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ciais, ao contrário do que “ingenuamente se supunha (que iria acontecer no futuro) Também pedia por medidas de prevenção, educação e proteção, assim como o
aí por volta de 1950”. Ele apontou ainda que havia uma nova geração de negros desenvolvimento de estratégias para alcançar a igualdade efetiva (como, por exem-
naquele começo da década de 1980 que lia a obra de Barreto por outro ângulo, plo, por meio de ações afirmativas).
como “um cálido reencontro”. Não viam nele e em suas obras nenhum mulato Esse contexto de avanço no debate mundial sobre o racismo acabou embasan-
ressentido, mas “o típico brasileiro, submetido a fortíssimas pressões raciais”. do novas leituras das obras de escritores como Lima Barreto. O exemplo mais
As leituras que surgem a partir dos anos 1980 também podem ser articuladas a recente e simbólico é o trabalho da historiadora e escritora branca Lilia Schwarcz,
muitas mudanças que estavam em marcha no âmbito internacional. Em meio ao que ao longo de uma década reeditou boa parte da obra de Barreto e escreveu
avanço dos movimentos de direitos civis nos Estados Unidos (que foram funda- uma outra biografia do autor carioca, Lima Barreto: Triste Visionário, publicada
mentais para o fim do sistema legal de segregação na década de 1960), a ONU em 2017, como uma espécie de contraponto à de Barbosa. Seguindo o fio de
aprovou a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Rufino dos Santos, Schwarcz coloca a questão racial como o principal eixo do
Discriminação Racial. É a partir desta convenção – uma das principais referências livro (sem deixar de reconhecer as questões de classe que foram enfatizadas ante-
dos direitos humanos no mundo até hoje – que começa a ser formulada de ma- riormente), para mostrar como o “criador de Isaías Caminha não combinava com
neira coordenada uma agenda política global contra o racismo, demandando dos o Brasil que o pernambucano [Gilberto Freyre] imaginava e desenhava como
países-membros (ainda que sem poder de lei) que implementem tais princípios. nação”. Entre capítulos que se aprofundam nos ancestrais de Barreto (neto de
A Convenção entrou em vigor em 1969 e desencadeou esforços globais, como a escravos por ambos os lados da família) e outros que analisam em pormenor a cor
primeira Década de Combate ao Racismo e à Discriminação Racial, que teve da pele dos personagens criados em suas histórias, Schwarcz reconstrói um autor
como objetivo produzir um programa de ações para a década (1973-83). No âm- que é vítima e agente, triste e visionário ao mesmo tempo, dando espaço para as
bito dessa agenda, a ONU organizou conferências internacionais contra o racismo ambivalências e contradições da vida e das relações raciais.
em 1978 e 1983 – encontros que focaram, entre outros aspectos, na derrubada dos Cada época seleciona e relê, à sua maneira, os autores do passado. É curioso
regimes institucionalizados de segregação racial, como o apartheid da África do pensar que a pioneira postura antirracista da obra de Lima Barreto só foi lida com
Sul (que só terminaria legalmente em 1991). a devida ênfase no período mais recente, deixando de ser um “ressentido” para se
Na virada para o século XXI, houve também a terceira conferência da ONU, em tornar um “visionário”. Esse foi o tom, por exemplo, das discussões que marcaram
Durban (África do Sul), que resultou no principal documento internacional para a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) de 2017, quando finalmente foi
organizar a agenda de combate ao racismo. No campo simbólico, é na declaração escolhido como autor homenageado. É claro que a obra do autor é multifacetada
de Durban que pela primeira vez fica reconhecido por todos os membros da ONU e abarca muitos outros temas que o fazem ser um dos “pouquíssimos” que conti-
que a escravidão e o tráfico de escravos foram crimes contra a humanidade. As nuam a ser editados depois de um século sem a sua presença. Contudo, no cen-
intuições que aparecem no diário de Barreto muitas décadas antes – a necessidade tenário da morte, fica claro que os ciclos de leitura demoraram a reconhecer o
de estudar a história do racismo e da escravidão; a postura antirracista; as denún- pioneirismo de sua atuação antirracista naquele começo de século XX, seguindo
cias sobre as desigualdades raciais – se consolidam como princípios declarados na um lento movimento global de questionamento do racismo nos últimos cem anos.
geopolítica mundial. A conferência também reconheceu que o colonialismo le- Num mundo ideal, seria ótimo se das leituras da obra de Lima Barreto hoje pu-
vou ao racismo, e que suas consequências persistem até hoje. No campo prático, dessem surgir não exatamente os encontros cálidos sugeridos por Rufino dos San-
o programa de ação que resultou da conferência enfatizou a necessidade dos paí- tos, mas estranhamentos em relação a um passado longínquo. Seria um indício
ses-membros de atacar o racismo em suas políticas internas, investigando as cau- de que as questões raciais que ele analisou já estariam superadas por transforma-
sas, implementando políticas de combate e criando estruturas de apoio às vítimas. ções na sociedade. Ainda não é o caso. J

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Ministério do Turismo, Prefeitura de
São Paulo, através da Secretaria Municipal
de Cultura, Fundação Theatro Municipal
e Sustenidos apresentam

NOVEMBRO
COM O
QUARTETO
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Réquiem Sem Palavras, de Moondog, Felipe Senna, apoio: realização:

José Antônio Rezende Frank Zappa e Valéria Bonafé.


de Almeida Prado.
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portfólio_WALTER FIRMO

DONAS DE SI
JANAINA DAMACENO GOMES

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E
m outubro, durante os últimos minutos da mostra No fuga visual, em que os afrodescendentes se reconhecem e se
Verbo do Silêncio a Síntese do Grito, Walter Firmo per- sentem acolhidos.
correu lentamente as salas do Instituto Moreira Salles,* Geralmente, as imagens de mulheres negras estão atreladas
na Avenida Paulista. A exposição reunia 266 fotos que ao trabalho braçal ou à hipersexualização. Até mesmo as ilus-
ele tirou entre a década de 1950, quando iniciou a trações mais comuns da guerreira Dandara, companheira de
carreira, e 2021. Enquanto caminhava, o carioca de 85 anos, Zumbi dos Palmares, teimam em mostrá-la como uma adoles-
mangueirense, filho único de pai negro e mãe branca, admira- cente de seios nus. Firmo ajuda a desfazer essa iconografia pre-
va os personagens que garimpou dentro e fora do Brasil. Às conceituosa com fotos que evitam qualquer tentação de rebaixar
vezes, conversava baixinho com um ou outro. Agradecia por ou desumanizar o feminino. Ótimos exemplos são os retratos
estarem na mostra e se despedia, comovido. Gastava um tempo de figuras importantes da cultura brasileira, como a mãe de
maior diante dos que mais lhe marcaram a trajetória e alegra- santo Olga do Alaketu, a cozinheira Alaíde do Feijão e a canto-
ram o coração. A caminhada deve ter passado despercebida por ra Clementina de Jesus, que aparece neste portfólio.
boa parte do público, mas desnudava a íntima relação que Fir- Tais retratos evidenciam outra característica fundamental do
mo sempre estabeleceu com seus retratados, aos quais se refere fotógrafo: o tratamento que destina à velhice. Ainda hoje, o
como “meus ancestrais”, mesmo se são muito jovens. Uma estereótipo mais associado às idosas negras é o de Tia Nastácia,
cumplicidade plenamente visível nos olhares e sorrisos deles. a personagem de Monteiro Lobato – uma criada robusta, bon-
O trabalho do fotógrafo caracteriza-se pelas cores fortes, ce- dosa e inocente, que cumpre as tarefas domésticas com esmero,
nas bem construídas e grande presença de mulheres pretas e sobretudo as da cozinha, e orbita em torno de uma família bran-
pardas, observadas tanto em ocasiões festivas quanto no cotidia- ca. Negando-se a rezar nessa cartilha, o fotógrafo prefere enxer-
no. A socióloga norte-americana Patricia Hill Collins diz que, gar as senhoras negras como seres altivos, que passeiam, fazem
para combater os estereótipos sobre os corpos negros, convém amigos, batem papo, usam roupas coloridas e exibem com or-
prestar atenção no dia a dia das pessoas negras, já que ali se gulho a pele reluzente. Mesmo que sirvam, nunca são servis.
encontra a vida em estado bruto. A obra de Firmo restitui, por- O autor também reserva um olhar delicado e respeitoso à
tanto, a dignidade de um grupo que teve sua imagem historica- infância. Quando fotografa meninas, procura realçar as marcas
mente definida por um sistema racista de representação. No do cuidado daqueles que as amam: os vestidos bonitos, os cabe-
contrafluxo desse regime, o fotógrafo pavimentou uma linha de los minuciosamente trançados, os adereços graciosos. Na obra
do fotógrafo, mulheres negras das mais diferentes gerações não
* O conselho do Instituto Moreira Salles é presidido pelo fundador da piauí, João
Moreira Salles. Desde 2018, o acervo de Walter Firmo, com 155 mil fotografias, está
se resumem a meros objetos da perversidade ou do desejo
sob guarda do IMS em regime de comodato. alheios. Elas têm vida própria e orgulham-se disso. J

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EGBERTO NOGUEIRA_2022
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Nascido em Irajá, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro, Walter Firmo incorpora o típico malandro carioca para as lentes do amigo Egberto Nogueira

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Procissão no município de Ouro Preto (2015). Firmo sempre gostou de retratar as ladeiras e as festas populares da cidade histórica mineira, como a congada e o reisado

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Reunião no Jongo da Serrinha, movimento de mulheres negras com sede em Madureira, tradicional bairro do Rio (2016)

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Cena cotidiana numa praça de Ouro Preto (2012)

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Clementina de Jesus (1971). A cantora e compositora fluminense era uma das principais musas do fotógrafo. A altivez que impera no retrato expressa o modo como Firmo enxerga as idosas negras

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Firmo documentou a negritude em várias partes do mundo, como Cabo Verde (no alto, 1998), Cuba (acima, à esq., 2009) e Cachoeiro de Itapemirim, no Espírito Santo (à dir., 2012)

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No alto, à esquerda, Rio de Janeiro (1981); à direita, Juazeiro do Norte, no Ceará (1994). Acima, à esquerda, Cuba (2004); à direita, Carnaval no Rio (1972)

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Silhueta de uma jovem no Rio (2012). O fotógrafo busca retratar a beleza das mulheres negras sem hipersexualizá-las

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vultos da república

“QUERO SER UM REBELDE”


Depois da temporada no inferno – com prisão e insultos nas ruas –, José Genoino volta à vida política mais socialista do que antes

LUIGI MAZZA

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U
m sedã branco estacionou em Ele agradeceu educadamente e prosse- Quando já havia em torno de qui- se refere ao presidente Jair Bolsonaro
frente ao hotel Golden Tulip, guiu até o auditório. nhentos sindicalistas acomodados no – estancaria a crise.
em Brasília, na manhã de 13 Como ainda faltavam alguns minutos auditório, iniciou-se o congresso. Virgí- Deteve-se, então, numa espécie de
de maio, sexta-feira. Do ban- para as nove da manhã, horário em que o nia Fontes, a primeira a discursar, falou mea-culpa. “Digo claramente a vocês: essa
co de trás, vestindo uma ca- evento começaria, havia menos de cem sobre a guerra na Ucrânia e como o foi uma das grandes lições que aprendi
misa social lilás, desceu José Genoino. pessoas num espaço que comporta 1,5 mil. Brasil se situa na crise global do capita- na minha vida. Eu achava que o progra-
Olhou ao redor com o cenho franzido, Na entrada do auditório, Genoino parou lismo. Genoino foi convidado a falar ma de transformação do Brasil passaria
pendurou sua bolsa de couro sobre um diante de uma banca de livros montada em seguida. Subiu até o púlpito levan- pela institucionalidade. Mas, mesmo me
dos ombros, apertou a máscara PFF2 con- pelo Partido Operário Revolucionário do na mão um caderno azul cheio de especializando nisso, chegou o momen-
tra o rosto e caminhou em direção ao (POR), que disputa a política do sindicato. garranchos. Tirou a máscara, deixando to em que ela se mostrou limitada. As
prédio onde fica o auditório do hotel. Folheou O Socialismo e a Guerra, escrito o cavanhaque à mostra. Começou a dis- ruas, os direitos, o conflito, a contradi-
Estava acompanhado da professora Ele- por Vladimir Lênin há 107 anos, mas não cursar. Quem ali esperava ouvir um ção, as [nossas] exigências não cabem
nira Vilela, militante do PT de Santa levou. Papeou com o jovem militante que moderado ex-parlamentar do PT, alque- numa burguesia que tem por natureza
Catarina, com quem dividiu a corrida cuidava da banca e aceitou um jornalzi- brado pela experiência dolorosa da pri- o autoritarismo, o escravismo, o patriar-
no carro de aplicativo. nho gratuito do partido. são e abatido pelo isolamento da vida calismo e a violência.”
Na porta de entrada do auditório, Um admirador interpelou Genoino pública, teve uma surpresa: Genoino Então, como diz o título da obra se-
havia uma dezena de integrantes do para pedir uma selfie. Em seguida vie- falou como um bolchevique. minal do revolucionário Lênin, o que
Sindicato de Servidores dos Institutos ram duas moças. Depois outros e ou- “Há uma crise estrutural sistêmica fazer? “Se depender de nós é preparar
Federais (Sinasefe), que realizava seu tros. Até a hora em que o congresso do capitalismo monopolista, dependen- as rupturas”, respondeu Genoino. “Pre-
34º Congresso e convidara Genoino começou, vinte pessoas haviam tirado te, financeirizado na sua organização parar aquilo que, para nós, é a razão de
para uma mesa de debate sobre a con- fotos com o ex-deputado. Ele, que de neoliberal”, decretou Genoino, já na ser das nossas vidas: a luta contra o ca-
juntura política. Eles conversavam, al- início parecia desconfortável, foi se sol- largada. Falava pausadamente e marca- pitalismo, a luta pelo socialismo.” Arre-
guns fumavam, mas nenhum deles deu tando aos poucos. Cumprimentava ami- va cada palavra com um gesto do braço matou em tons dramáticos: “A crise é
muita bola para a chegada do ex-depu- gavelmente todos que passavam por ele. direito. Entre uma frase e outra, espia- profunda e não adianta esparadrapo
tado federal e ex-presidente do PT, que Depois, se aproximou de Virgínia Fon- va o caderno. Afirmou que 2022 estava e band-aid. A sangria é muito grande.
entrou discretamente no hotel. Só uma tes e Valerio Arcary, historiadores que destinado a ser “um dos anos mais lon- Vamos resgatar a esperança, a paixão, o
senhora parou para cumprimentá-lo também haviam sido convidados para o gos da história política da luta de clas- ânimo, o direito de sonhar!”
quando ele cruzou a porta. “Tenho as- debate, e os três engataram uma con- ses no Brasil” e disse que nem a vitória A plateia aplaudiu e logo se formou
sistido a suas lives, hein! Muito bacana.” versa animada à beira do palco. eleitoral contra “o inominável” – como um coro: “Olê, olê, olê, olá, Lula!

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EGBERTO NOGUEIRA_ÍMÃ FOTOGALERIA_2022


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Genoino, no escritório de sua casa, onde uma imagem de Nossa Senhora Aparecida convive com um busto de Karl Marx: “Ele foi escolhido como bode expiatório da esquerda”, diz Tarso Genro

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seguinte, foi transferido para o Comple- gas Filho. Depois, foi cotado para a
xo Penitenciário da Papuda, em Brasí- Secretaria-Geral da Presidência, res-
lia. Logo ao chegar no presídio, na ponsável pelas relações com o Congres-
capital federal, Genoino passou mal e so. Quando seu nome saiu na imprensa,
teve de ser internado no Hospital das no entanto, houve gritaria entre os pe-
Forças Armadas. A família se desespe- tistas porque só haveria paulistas à fren-
rou. “Ele vai matar o meu pai!”, gritava te de ministérios importantes. Genoino,
Miruna no hospital, referindo-se ao en- embora cearense, fizera sua carreira
tão ministro Joaquim Barbosa, relator política em São Paulo. Era um “paulis-
do mensalão no STF. tério”, dizia-se. Quem acabou assumin-
Depois de quatro dias hospitalizado, do o cargo foi o mineiro Luiz Dulci.
o petista foi transferido provisoriamente Sobrou para Genoino o comando inte-
para a prisão domiciliar, mas teve que rino do PT, vago desde que José Dirceu
ficar em Brasília, onde se deu a conde- assumira a Casa Civil.
nação. Sua filha caçula, Mariana, mora Até então, Genoino era o mais pro-
na capital federal, mas vivia num quar- eminente deputado petista e tinha uma
to e sala apertado com o marido e a fi- trajetória respeitada na esquerda. Nas-
lha. Não podia receber o pai. Genoino cido numa família pobre do sertão do
então passou pouco mais de um mês Ceará, virou líder estudantil e integrou
vivendo na casa do sogro de Mariana. a Guerrilha do Araguaia promovida
(A caçula nasceu de um caso extracon- pelo seu partido na época, o PCdoB. Foi
jugal de Genoino, mas sua mulher, preso e torturado. Fez a autocrítica da
Rioco Kayano, e seus dois filhos mais experiência da guerrilha e rompeu com
ANDRÍCIO DE SOUZA_2022

velhos têm uma relação harmoniosa o PCdoB. Em 1982, anistiado, elegeu-se


com ela.) Depois, conseguiu arrumar deputado pela primeira vez. Dentro do
uma casa próxima à Papuda. “Tivemos PT, liderava uma tendência marxista-
que alugar uma casa para ele ser preso. leninista que agia como um partido
Nunca vi uma situação dessas”, relem- autônomo: o PRC, Partido Revolucioná-
bra Kayano, de 73 anos. A família mon- rio Comunista.
tou uma operação para impedir que o Genoino encantou-se com o Con-
Lula!”, que em seguida se transformou enquanto passeava com os netos em endereço fosse descoberto pela impren- gresso logo na largada e elegeu-se depu-
em “Fora, Bolsonaro!”. Genoino sorriu Ubatuba, no litoral de São Paulo, sofreu sa. De uma casa para a outra, Genoino tado constituinte no pleito seguinte, em
satisfeito, recolheu o caderno, sentou- uma crise de dissecção da aorta, artéria foi transportado escondido na caçamba 1986. Revelou-se um negociador hábil e
se ao lado dos colegas e recolocou a que irriga todo o corpo. Teve de passar do carro de seu genro, Pedro, deitado e até hoje se orgulha da relação que cons-
máscara no rosto. por uma cirurgia de emergência que coberto por uma lona para não ser visto. truiu com Ulysses Guimarães, o respei-
durou oito horas e na qual, segundo os Meses depois, no entanto, uma junta tado líder da Constituinte. Guarda

A
nova fase de José Genoino, hoje médicos disseram à família, ele tinha médica
Acesse nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS escalada pelo STF concluiu que bilhetes que o emedebista lhe deixou.
com 76 anos, surpreendeu velhos 10% de chances de sobreviver. Foi só o a cardiopatia de Genoino não era grave. Dali em diante, dedicou sua vida a se
amigos. “O Genoino de hoje é começo de uma temporada no inferno. No feriado de 1º de maio de 2014, dois tornar um parlamentar profissional. Co-
mais marxista do que o dos anos 1980”, No mês seguinte, enquanto Genoino dias antes de seu aniversário de 68 anos, nhecia o regimento da Câmara melhor
diz Valerio Arcary. O historiador, dez convalescia, o Supremo Tribunal Fede- o petista retornou à Papuda. Viveu em do que os burocratas mais especializa-
anos mais novo, conheceu Genoino ral (STF) confirmou sua condenação no regime fechado até agosto, quando con- dos. Com isso, tornou-se fonte indispen-
nos estertores da ditadura militar, quan- caso do mensalão: seis anos e onze me- cluiu um sexto da pena e pôde então sável para a imprensa. “O projeto tal
do o petista dava aulas no cursinho pré- ses de prisão, mais pagamento de 468 mil voltar à prisão domiciliar, ainda em precisa de maioria simples ou de dois
vestibular do Colégio Equipe, em São reais de multa. No dia 15 de novembro, Brasília. No final do ano, foi beneficia- terços dos votos para ser aprovado?”, in-
Paulo, depois de ter passado pela Guer- feriado da Proclamação da República, do pelo indulto natalino assinado pela dagavam os jornalistas. Era sempre Ge-
rilha do Araguaia (1966-74), pela pri- foi expedida a ordem de prisão de Ge- então presidente Dilma Rousseff. Em noino quem sabia as respostas.
são, pela tortura e pela anistia. noino e outros onze condenados. março seguinte, o STF extinguiu sua Como não tinha uma base eleitoral
O Colégio Equipe, na época, funcio- Àquela altura, o sobrado onde o petis- pena. Genoino voltou a ser um homem cativa – não era vinculado diretamente
nava como ponto de encontro da es- ta mora desde 1984 no bairro do Butantã, livre depois de um ano e quatro meses a um sindicato ou movimento social –,
querda paulista, e Arcary, um militante em São Paulo, já era acompanhado dia preso. Estava prostrado, desapareceu do Genoino fazia o que podia para apare-
do movimento universitário, estava e noite por repórteres e cinegrafistas. Co- noticiário e trancou-se em casa. cer na imprensa. Considerava-se um
sempre por lá. Embora o historiador mo não havia portão protegendo a casa, deputado formador de opinião e assi-

G
tenha se desfiliado do PT anos mais tar- a família passou a viver com as janelas enoino assumiu a presidência do nava uma coluna quinzenal no jornal
de (hoje está no Psol), os dois mantive- e cortinas fechadas – para não ser vista, PT em 2002, depois de ter perdi- O Estado de S. Paulo. “Às vezes, ele adia-
ram contato. Ao assumir o microfone nem ouvida. “A gente não conseguia do a disputa pelo governo de va viagens da família para atender jorna-
depois de Genoino, no evento em Bra- sair para comprar uma Coca-Cola para São Paulo para Geraldo Alckmin. listas”, lembra Miruna. Quando criança,
sília, Arcary saudou o amigo. “É emo- o meu pai. Ele adora Coca”, conta Mi- Nunca foi uma figura da burocracia nas visitas ao pai em Brasília, Miruna
cionante nós estarmos aqui hoje, juntos, runa, de 41 anos, filha mais velha de petista. Gostava mesmo era da vida no era sempre levada por Genoino até o
vendo o Genoino voltar àquela paixão Genoino. Os dois filhos de Miruna, Congresso, onde cumprira cinco man- comitê de imprensa da Câmara para
do final dos anos 1970, quando eu o co- que na época tinham 6 e 5 anos, não datos consecutivos de deputado fede- ser apresentada aos repórteres.
nheci, fazendo um chamado à luta re- processaram bem a situação. O caçula, ral. Mas, como soldado do partido, Em 1989, diante da queda do Muro
volucionária contra o capitalismo. o mais afetado, precisou de acompa- abdicou de concorrer à reeleição para de Berlim e da posterior dissolução da
Obrigado pelas palavras.” nhamento psicológico. “A principal coi- deputado e disputou o governo paulis- União Soviética, Genoino “quebrou”,
Fazia quase uma década que Genoi- sa que ele precisava elaborar era sobre ta com o objetivo de dar um palanque como se diz no jargão da esquerda. “Ele
no não aparecia publicamente em Bra- meu pai. Entender por que aquilo tinha forte para Lula – então candidato à fazia parte de uma corrente campista
sília. A última vez fora em 17 de julho acontecido, por que o juiz podia definir Presidência – no principal colégio que ainda refletia a tradição stalinista
de 2013, quando estava em seu sétimo o que era certo ou errado.” eleitoral do país. de ver o mundo dividido entre o campo
mandato de deputado federal. Era vés- Na noite da prisão, Genoino estava Com a vitória do novo presidente, socialista e o campo capitalista. A luta,
pera do recesso parlamentar e o dia cor- em casa com a mulher e os filhos. Para Genoino tinha a expectativa de ser no- para eles, era entre esses campos, mais
reu como qualquer outro: Genoino não ser algemado, decidiu se entregar meado ministro da Defesa, já que era do que entre classes”, diz o historiador
votou projetos e falou no plenário. De- na Polícia Federal em São Paulo. Fez estudado em assuntos militares e tinha Arcary. “Para quem pensava assim, o
pois, entrou de férias e nunca mais pi- uma muda de roupas e partiu no carro boa relação com as Forças Armadas. fim da União Soviética foi um pesade-
sou na Câmara. Durante aquele recesso, do advogado. Dormiu na PF e, no dia Foi preterido pelo diplomata José Vie- lo.” O ex-governador Tarso Genro, que

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também fazia parte do PRC, prefere di- mou também à vida de presidente do PT. Até então, Marcos Valério dizia que ajudou a filha a obter o visto, já que ela
zer que ele e Genoino viveram um mo- PT. Aproximou-se de Lula a ponto de as não tinha nenhuma relação com o par- voltaria à Espanha dali a alguns meses
mento de “solidão histórica”. duas famílias se tornarem amigas. Acom- tido, apenas uma relação pessoal com o para o casamento. Quando os dois esta-
O PRC se dissolveu com o fim do panhava de perto todas as decisões do tesoureiro Delúbio Soares. O documen- vam na fila do consulado, um homem se
Muro e da União Soviética. Dali em governo e, em 2005, pretendia concor- to do empréstimo, publicado pela revista, aproximou dele e perguntou: “Você veio
diante, Genoino pouco a pouco se inte- rer a mais um mandato de presidente trazia também a assinatura de Genoi- aqui fazer o quê? Veio roubar?”
grou à ala moderada do PT. Com o en- do partido. Só que, antes disso, o céu no, na condição de presidente do partido. Aconteceram coisas piores. Em se-
tão petista Eduardo Jorge, fundou a desabou sobre sua cabeça. A relação entre o PT e o operador da pro- tembro, dois meses depois de deixar a
corrente Democracia Radical, apelida- pina estava comprovada. Mais tarde, presidência do PT, Genoino foi convoca-

E
da pelos adversários de “direita do PT”. m junho de 2005, em entrevista à apareceu um novo empréstimo, tam- do para depor na CPI do Mensalão. No
Trocou a defesa da ditadura do proleta- Folha de S.Paulo, o então deputa- bém assinado pelo publicitário e por dia do seu depoimento, o então deputa-
riado pela defesa da social-democracia do federal Roberto Jefferson de- Genoino. Sua assinatura, aposta nos dois do federal Jair Bolsonaro levou para a
e aproximou-se de quadros do PSDB. Em nunciou que o governo vinha comprando empréstimos, fez com que a maioria dos sessão o coronel Lício Maciel, que tor-
2001, advogou que a palavra “socialis- votos no Congresso em troca de uma ministros do STF concluísse que Genoi- turou o petista depois de sua captura no
mo” não fosse usada nas teses do Se- mesada – o mensalão, como ficou co- no sabia do esquema do mensalão. Araguaia. A intenção de Bolsonaro era
gundo Congresso Nacional do PT. nhecido. Hoje em dia, com um orça- Para piorar, na mesma semana em constranger Genoino diante do seu tor-
Passou a defender que se discutissem mento secreto distribuindo bilhões de que veio a público o primeiro emprésti- turador. Mas eram outros tempos: os
temas como a descriminalização do reais anonimamente em troca de votos, mo, um assessor do deputado federal parlamentares, do governo e da oposi-
aborto e da maconha e, numa época o mensalão parece coisa de batedor de José Guimarães (PT- CE) – irmão mais ção, ficaram indignados com o gesto
em que poucos deputados faziam isso, carteira, mas, naquela época, foi trata- novo de Genoino – foi preso pela Polí- repulsivo de Bolsonaro e forçaram a re-
prestigiava a Parada do Orgulho Gay do como um grande escândalo. Abriu-se cia Federal carregando 100 mil dólares tirada do torturador da sala.
em São Paulo, antes que a sigla LGBT uma Comissão Parlamentar de Inquérito na cueca. O episódio rendeu manche- Em São Paulo, os repórteres passa-
fosse popularizada. Foi o deputado fe- (CPI) e o governo entrou em convulsão. tes e piadas durante dias e, embora não ram a bater ponto na casa do petista.
deral mais votado do Brasil na eleição José Dirceu, apontado como arquiteto tivesse relação com Genoino, ajudou a Um episódio em especial marcou a
de 1998, com 307 mil votos. do esquema, renunciou à Casa Civil. entornar o caldo. No dia seguinte à pu- família, quando o programa Pânico na
Vivia, em suas próprias palavras, Delúbio Soares, acusado de distribuir a blicação dessa notícia, ele renunciou à TV foi até o bairro do Butantã gravar
“em estado de poesia”. Parecia sentir-se propina, licenciou-se do cargo de tesou- presidência do PT. uma reportagem em que fazia chacota
confortável no convívio com os mode- reiro do PT. Miruna estava na Espanha no auge da de Genoino. Pouco depois de a equipe de
rados dentro e fora do PT. Frequentava Dias depois, chegou a vez de Genoi- crise. Foi pedida em casamento no dia tevê estacionar em frente ao sobrado,
os jantares dos tucanos em Brasília, era no. Uma reportagem da revista Veja em que Genoino deixou o comando do uma pequena multidão já se aglomerava
tido como o menos petista dos petistas, mostrou que o publicitário Marcos Valé- partido. De volta ao Brasil pouco depois, no local. Miruna, que soube do ajunta-
tal a facilidade com que transitava entre rio de Souza, na época suspeito de ser o levou um susto com o que viu. “Encon- mento enquanto estava numa festa de
os centristas, e a esquerda o acusava de operador do mensalão, havia assinado trei meu pai de pijama em casa. Nunca aniversário, pegou o carro e foi até lá
“reformista”, palavra ofensiva para os como avalista de um empréstimo bancá- tinha visto ele assim. Estava absoluta- para ficar com o pai. “Na hora que des-
revolucionários. Aos poucos, se acostu- rio de 2,4 milhões de reais em nome do mente deprimido.” Na época, Genoino ci do carro, ouvi de tudo, desde ‘ô gos-

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portão azul de ferro que sua família, um jornalista ou um oficial de Justiça


traumatizada com o assédio da impren- para “dar uma incerta” – isto é, conferir
sa, havia instalado na entrada da casa. se ele estava cumprindo a prisão domi-
Assim como o sobrado, Genoino se ciliar. A aflição era tanta que ele conta
fechou para o mundo. Convivia com ter ficado aliviado quando retornou à
algum grau de depressão, assunto sobre Papuda, em maio de 2014. “Não tem
o qual evita falar até hoje. Pouco saía à nada pior do que se sentir perseguido.
rua. Falava com os amigos principal- Na prisão eu ficava mais tranquilo.”
mente por telefone e passava seus dias Parte dessa paranoia persiste até hoje.
em casa, entre o quarto de dormir e o Genoino não usa cartão de crédito com
pequeno escritório nos fundos do quin- receio de que seja clonado. Não se sente
tal. Nunca mais deu entrevistas. Sentia- seguro para fazer compras online.
se traído sobretudo pela imprensa. “Quando ele recebe algum spam, fica
“Quando eu saí da prisão na ditadu- desnorteado. Na hora já quer ligar para
ra, em 1977, eu ficava assustado quando saber o que é, morre de medo”, conta
via um carro de polícia. Quando saí da Miruna. Nessas horas, Ronan, que cuida
prisão em 2015, ficava assustado quan- das finanças do pai, trata de acalmá-lo.
do via um carro de televisão”, disse Ge-

A
noino em conversa com a piauí em sua o receber a piauí em sua casa, uma
casa, no final de abril. Ele frequente- das primeiras coisas que Genoino
mente traça comparações entre as duas fez foi exibir uma pilha de papéis
vezes em que foi preso. “Vivi duas guer- que havia colocado na mesinha de cen-
ANDRÍCIO DE SOUZA_2022

ras. A guerra da tortura começou no tro. “Aqui estão as minhas declarações


corpo e chegou na alma. A guerra do de imposto de renda”, anunciou. “Não
mensalão começou na alma e chegou tenho fortuna, não tenho bens, não me
no corpo.” Atribui ao estresse o aneuris- formei e moro aqui desde 1984. Tenho
ma que sofreu em 2013. “Na ditadura, um carro de 2009.” Depois do aneuris-
matavam a pessoa na tortura ou no de- ma em 2013, ele pediu aposentadoria
saparecimento. Na Justiça de exceção, por invalidez à Câmara dos Deputados,
matam pela reputação.” Ele guarda, mas seu pedido foi negado após uma
tosa, deixa eu te comer’ até ‘seu pai é havia sido condenado pelo mensalão, numa mesma pasta, os alvarás de soltu- junta médica ter avaliado que sua saúde
um ladrão’. Quando entrei em casa, eu mas ainda cabia recurso. Durante seis ra de 1977 e 2015. não o impedia de trabalhar. Por isso, em
caí no chão, quase desmaiei. Nessa hora meses, exerceu o mandato. Foi seu últi- Genoino é econômico ao falar dos vez de receber a aposentadoria integral
meu pai teve um rompante e quis sair mo. Em dezembro, já preso em Brasí- traumas pessoais. “Talvez ele só se abra de deputado, hoje de 33,7 mil reais, Ge-
na rua para acabar com aquilo, mas lia, renunciou ao cargo para evitar a mesmo com a Rioco. E pus um talvez noino aposentou-se por tempo de servi-
meu irmão não deixou. Teria sido mui- cassação iminente. Na carta de renún- aí”, diz o jornalista Roberto Benevides, ço. Recebe 25,2 mil reais brutos.
que cia, defendeu
to pior.” Magoou a família o fato de Acesse nosso sua inocência
Canal no eTelegram:
escreveu: o Bené, seu amigo de infância do inte-
t.me/BRASILREVISTAS Em seguida, Genoino pegou outra
um vizinho da frente, de quem sempre “Entre a humilhação e a ilegalidade, rior do Ceará que, como ele, se mudou pilha sobre a mesa. “Aqui, os dois em-
foram amigos, cedeu espaço de sua prefiro o risco da luta.” para São Paulo ainda jovem. Genoino préstimos bancários que assinei, do BMG
casa para que o Pânico instalasse um Nos meses de 2013 que antecederam diz que viveu uma “situação-limite”, e do Banco Rural, e que foram as úni-
equipamento de luz. a prisão, entre o recesso e a convales- mas que nunca sucumbiu à depressão. cas denúncias que me envolveram no
Em vez de três, Genoino passou a cência do aneurisma, Genoino ficou Conta que, nos piores momentos da cri- mensalão.” Desde o início, o petista
fumar quatro maços de cigarro por dia enfurnado no quarto de empregada que se, teve pesadelos sobre a vida no Parla- disse que assinou os empréstimos “em
(só largou o vício anos mais tarde, quan- transformou em escritório, nos fundos mento. Cenas desconexas, angustiantes. confiança de Delúbio”, o então tesou-
do sofreu o aneurisma na aorta). No da casa. “O momento mais angustiante Ao ser indagado se os “pensamentos reiro do PT, e que nada sabia do esque-
auge da crise, tomava remédios para para mim foi um dia em que olhei pela extremos” que relatou em 2006 eram ma. Na época, a ideia do “eu não sabia”
dormir. Uma vez por semana – às vezes janela de um dos quartos, para fora da suicidas, responde: “Não, não. O que já nascia desmoralizada, mas, no caso
mais –, ia até a casa de uma psicóloga casa, e vi o Genoino paradão no escritó- eu pensava era sumir do mundo, me de Genoino, não eram poucos os que, de
amiga da família que também morava rio. Ele estava quase catatônico, olhan- mudar pro interior do Ceará, do Brasil, fato, acreditavam que o petista assinara
no Butantã. Num depoimento que deu do para o nada”, conta Rioco Kayano, me tornar um anônimo.” os documentos sem conhecimento do
em 2006 à jornalista Denise Paraná – e sua mulher. Os dois se conheceram na Miruna diz que os tempos de prisão que se tratava. “Eu cuidava da parte
que resultou no livro Entre o Sonho e o prisão, durante a ditadura, e estão juntos domiciliar foram os mais duros para o política, das alianças, viajava pelos es-
Poder –, o petista registrou seu estado até hoje, mais de quarenta anos depois. pai. Foi o único momento em que o viu tados. Nunca tratei das finanças.” De-
de espírito naquele momento: “Ainda “Fui até ele e falei assim: ‘Gê, você já chorando. Genoino vivia aflito com a lúbio Soares confirmou à Justiça que
conviverei com esse turbilhão por certo percebeu que as plantas do quintal estão multa de 468 mil reais que tinha de pa- Genoino efetivamente não sabia de
tempo. Espero que possa resistir sem ser meio murchas? Você não quer ir lá re- gar e não sabia como. Tinha medo de nada. “Fui condenado pelo que eu era,
tragado e devorado por ele. Em alguns gar?’ Ele adora cuidar das plantas, e eu que tomassem a casa da família em São não pelo que eu fiz. Precisavam incluir
momentos desse processo, cheguei a ter tive uma visão, na hora, de que elas es- Paulo ou o apartamento de Ronan, seu o presidente do PT no processo pra dizer
pensamentos extremos. Agora estou na tavam tristes iguais a ele. No momento filho, que ele ajudara a comprar. Miru- que era formação de quadrilha”, argu-
fase de me defender, de resgatar a mi- em que falei isso, foi como se ele tivesse na abriu uma vaquinha online para ar- menta o ex-deputado.
nha história de militância política.” acordado. Levantou, pegou o regador e recadar recursos, e assim conseguiram No STF, os réus do mensalão – Ge-
Assim como o governo Lula, Genoi- começou a molhar as plantinhas. Ele foi pagar a fatura. Genoino foi contra a noino entre eles – alegaram que o di-
no sobreviveu ao baque. Em 2006, ree- melhorando junto com elas.” ideia. Temia que pudessem acusá-lo de nheiro operado por Marcos Valério era
legeu-se deputado federal, ainda que alguma falcatrua. um mero caixa dois. Era um crime,

Q
tenha obtido apenas um terço dos votos uando o STF extinguiu sua pena, Vivia à beira da paranoia. No aniver- mas já prescrito àquela altura. A tese,
de sua última eleição vitoriosa. Tornou- em 2015, Genoino deixou a pri- sário de 7 anos de sua neta Paula, Ge- porém, não foi aceita pela maioria dos
se uma figura reservada. Desapareceu são domiciliar em Brasília e pôde noino não quis que a família pusesse ministros. Para eles, assim como para
o parlamentar expansivo e falante. Ti- voltar para São Paulo. Seu filho, Ronan, balões e cama elástica na casa onde a Procuradoria-Geral da República,
nha pouco contato com os jornalistas. e seu genro Juan Miguel, marido de cumpria prisão domiciliar. “E se a im- tratava-se de uma organização crimi-
Em 2010, candidatou-se novamente e Miruna, foram buscá-lo de carro na ca- prensa vir isso? Meu Deus, se virem nosa que praticou atos de corrupção
amargou uma suplência. Quando abriu pital federal. A família temia que ele isso...”, dizia, preocupado que o acusas- e lavagem de dinheiro. Genoino foi
uma vaga, em janeiro de 2013, voltou à pudesse ser hostilizado caso embarcas- sem de levar uma vida de farras. Esta- condenado pelos crimes de corrupção
Câmara. Pela primeira vez na vida, con- se num avião. Ao chegar no Butantã, va sempre em estado de alerta, esperando ativa e formação de quadrilha (deste
tratou uma assessora de imprensa. Já o ex-deputado viu pela primeira vez o que a qualquer momento aparecesse último, foi inocentado pouco depois

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pelo STF). Na Justiça Federal de Minas Câmara ou fazendo campanha de rua, forma. “Ele foi escolhido como bode que o caminho não é nem o dogmatis-
Gerais, onde correu o processo do caso outras mostram caricaturas e charges expiatório da esquerda”, opina Tarso mo, nem a diluição.” Em outras pala-
do empréstimo ao BMG, ele foi conde- acumuladas durante décadas de vida Genro. “Aquela fantasia que a Globo vras: não é nem a guerrilha maoista, à
nado por falsidade ideológica. Hoje, parlamentar. Nas prateleiras de livros, criou em torno dele, como se ele fosse qual aderiu sob a ditadura, nem a defe-
todos os processos contra o ex-deputa- há fotos de família e pequenas escultu- um repassador de cheques da corrup- sa ingênua da social-democracia, papel
do foram encerrados. ras. Uma imagem de Nossa Senhora ção, foi uma infâmia.” que assumiu como parlamentar por
Genoino sempre afirmou ser um pre- Aparecida convive com um busto de Antes de começar a campanha elei- duas décadas. Sua bandeira é radicali-
so político e comportou-se como tal. Ao Karl Marx. Em frente à janela, uma toral, quando tinha uma rotina mais zar a luta, com ampla mobilização de
sair de casa rumo à Polícia Federal, em escrivaninha branca com uma luminá- folgada, Falcão conversava com Genoi- massas pelo triunfo do socialismo.
2013, manteve o punho em riste. Na Pa- ria e um laptop. Numa gaveta, estão no quase toda semana, e os dois troca- A desilusão com a política institucio-
puda, onde dividiu cela com Dirceu, todas as cartas de solidariedade que vam dicas de leitura. Sempre se falam nal vinha fermentando na cabeça de
Delúbio e Valdemar Costa Neto, combi- recebeu nos últimos anos. por telefone ou e-mail, já que Genoino Genoino desde 2005, em função do
nou com os colegas de não colocarem as Ali, encastelado, Genoino assistiu à não tem WhatsApp. “Sou ruim com mensalão. Num primeiro momento,
mãos para trás ao passarem pelo carce- derrocada do governo Dilma. Não parti- isso. E olha que na Papuda fiz curso de voltou suas energias contra o Judiciário.
reiro ou por pessoas de fora. Um hábito cipou dos atos em defesa da presidente. informática como remissão de pena.” Firmou posição contrária à indicação
dos tempos da ditadura. “Você tem que Discutia política apenas com um restrito Falcão recomendou, e Genoino leu, do primeiro colocado na lista tríplice
estabelecer um limite”, ele diz. “Porque grupo de amigos, quando o visitavam ou O Alfaiate de Ulm, em que Lucio Ma- para a Procuradoria-Geral da Repúbli-
quando você se humilha, você morre.” era convidado para a casa deles. De pou- gri analisa as razões que levaram à ca, coisa que o PT fez em todos os seus
Assim como faz com Bolsonaro, Ge- co em pouco, foi empreendendo aventu- dissolução do Partido Comunista Ita- governos. “É uma mistura de ingenui-
noino se recusa a falar o nome de Joa- ras maiores. “Ele participava de reuniões liano, do qual foi dirigente. dade e republicanismo achar que as ins-
quim Barbosa, o ex-ministro do STF. “Já no diretório estadual do PT, mas pedia Desde a prisão, Genoino se voltou tituições são neutras”, dizia. Mantém a
tive a oportunidade de cruzar por aí com para não gravarem. Depois foi saindo da para os livros. Tornou-se um estudante mesma posição até hoje. Foi um dos
pessoas que me condenaram. Dei meia- ‘semiclandestinidade’”, brincou o depu- aplicado. Releu obras de Karl Marx, únicos deputados a se posicionar contra
volta pra não ter que cumprimentar”, diz tado federal Rui Falcão (PT-SP), numa Rosa Luxemburgo, Nicos Poulantzas, a Lei da Ficha Limpa, que considerava
ele. “Tu acha que vou cumprimentar quem conversa em seu gabinete, em julho. Palmiro Togliatti e Antonio Gramsci. ser “o suicídio da política e da democra-
fez isso comigo?” Não mudou de posi- Os dois se aproximaram desde que “Gramsci foi o mais importante para cia”. Foi voto vencido até no PT. O proje-
ção mesmo depois de Joaquim Barbosa Genoino retornou a São Paulo. Falcão mim, porque ele inovou o pensamento to foi sancionado por Lula em 2010. Na
ter anunciado que seu voto na eleição considera que o colega foi “o mais in- da esquerda”, diz. Conheceu autores contramão da opinião pública, em ple-
presidencial era para Lula. justiçado de todos” no escândalo do que nunca tinha lido, como Chantal no ano eleitoral de 2010, Genoino so-
mensalão. “Ele não é organizador. É um Mouffe, Ernesto Laclau, Alysson Mas- freu nova bateria de ataques por ter

N
o escritório nos fundos da casa, propagandista e agitador incomparável. caro e David Harvey. À luz dessas leitu- votado contra a Ficha Limpa. Atribui a
Genoino montou um museu da Mas presidente de partido tem que cui- ras, passou a fazer uma análise crítica isso o fato de não ter sido reeleito.
própria vida. As paredes são to- dar de burocracia, e ele não deu muita de sua trajetória. No fim das contas, O julgamento do mensalão e a prisão
madas por molduras – algumas com atenção a isso”, diz. É difícil achar acredita ter finalmente encontrado o aceleraram a guinada à esquerda. “A pri-
fotos do ex-deputado discursando na quem hoje, no PT, não pense da mesma equilíbrio no marxismo: “Compreendi meira atitude do revolucionário é com-

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GALERIA FONTE

O M UN DO É O T E ATR O
DO H OME M
JONATHAS DE ANDRADE,
BÁRBARA WAGNER
E BENJAMIN DE BURCA .

Detalhe de imagem publicada no jornal “Quilombo”. Acervo Ipeafro.


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te uma autobiografia. Ele faz uma aná- eu saía com o Genoino para fazer com-
lise política e histórica”, diz. O novo pras e, quando andava um pouco atrás
livro não tem previsão de publicação. dele, ouvia as pessoas fazerem comen-
Certo é que ficará para o ano que vem, tários. Não tinham coragem de falar
quando a situação política deverá estar abertamente”, diz. “Às vezes revidei, às
mais nítida e ele então terá condições vezes deixei quieto. Mas isso foi paran-
de amarrar melhor suas ideias. Bené é do de acontecer.”
acionado toda hora para atualizar o tex-

A
to. “O Genoino é um animal em ebuli- primeira vez que José Genoino
ção”, comentou. apareceu diante de um grande
Genoino formou um círculo de con- público desde a prisão foi em no-
tatos com quem discute política. Além vembro de 2019, no Sétimo Congresso
de Falcão e dos dois amigos, fazem par- Nacional do PT. Petistas de vários esta-
te dele os historiadores Valerio Arcary e dos se reuniram na Casa de Portugal,
Valter Pomar, líder da Articulação de no bairro da Liberdade, em São Paulo,
Esquerda, tendência marxista do PT, os e reelegeram Gleisi Hoffmann para a
jornalistas Breno Altman e Celso Mar- presidência do partido. Ela teve o
condes, a militante do Psol Andrea Cal- apoio do ex-presidente Lula, de José
das e o engenheiro Joaquim Soriano, Dirceu, de Aloizio Mercadante, de
líder da corrente Democracia Socialis- Tarso Genro e outros petistas históri-
ta, do PT. Genoino costuma falar com cos. De Genoino, não.
cada um deles ao menos uma vez por No último dos três dias do evento,
semana. “O homem é forte no telefo- um domingo, Genoino pediu o micro-
ANDRÍCIO DE SOUZA_2022

ne”, diz Arcary. fone para falar. Subiu à tribuna e surpre-


A convite de Gustavo Codas, mili- endeu os presentes ao sair em defesa da
tante da Democracia Socialista que candidatura do historiador Valter Pomar
morreu de infarto em 2019, Genoino ao comando do PT. Filho de Wladimir
passou a frequentar uma roda de con- Pomar, um dos fundadores do PT, e neto
versas sobre Estado e Forças Armadas de Pedro Pomar, um dos fundadores do
na Fundação Perseu Abramo. “A gente PCdoB, assassinado na ditadura, Valter
preender. Como é que eu visitava a casa Isso não significa que ele tenha per- chegava cedo e às vezes ficava duas, três vem de uma linhagem respeitada no
dos Marinho, do Bracher, e de uma hora dido a fé no PT ou em Lula. “Não passa horas conversando direto”, conta Soria- partido. Mas, ali, ele representava um
pra outra virei o inimigo?”, diz ele, refe- pela minha cabeça imaginar um pro- no. Vizinho de Genoino, ele dava caro- setor mais à esquerda que estava isolado
rindo-se à família dona da Globo e ao cesso de transformação do Brasil que na ao petista do Butantã até a sede da e enfraquecido dentro do PT.
banqueiro Fernão Bracher, falecido em não seja através do PT”, diz, categórico. fundação, na Vila Mariana. No trajeto, “Em muitos momentos eu divergi do
2019. “Isso é expressão da luta de classes, Mas defende que o partido radicalize. que durava cerca de uma hora, o ex- companheiro Valter Pomar”, introdu-
pô!” Pouco tempo depois, Dilma talvez Nas conversas
Acesse nosso Canalrecentes no teve com deputado
que Telegram: se abria. “Ele falava com lá- ziu Genoino. “Mas sempre tivemos
t.me/BRASILREVISTAS
tenha se feito a mesma pergunta. “O jeito Lula, antes da eleição presidencial, Ge- grimas nos olhos sobre o fim do PRC. uma relação de camaradagem e profun-
que o PSDB tratava a Dilma naquela épo- noino diz ter dito ao ex-presidente o Das pessoas que faziam parte do núcleo do respeito, porque o que nos unia era
ca... eu era amigo do [José] Serra, pô. Era seguinte: “Lula, o Nelson Mandela en- do partido, ele é o único que continua o objetivo do socialismo e da revolu-
amigo do Aloysio Nunes. O que é isso? trou na cadeia como radical e saiu defendendo essas posições mais à es- ção.” Aplausos e gritos de apoio. Falou
Fui tentar entender”, explica Genoino. como grande negociador. No seu caso, querda. Ele viveu um processo de refle- por catorze minutos. Disse que o país
A crise que culminou na derrubada tem que ser o contrário: você entrou na xão muito solitário.” vivia uma “nova época histórica”, que o
do PT e, mais tarde, na prisão de Lula, cadeia como grande negociador, tem Genoino também retomou paulati- PT foi golpeado pelos seus acertos e, au-
era o empurrão que faltava para a radi- que sair como radical.” Lula, sendo namente a vida civil. Dizia para a famí- tocrítico, completou: “Mas temos que
calização de Genoino. “Ele teve uma Lula, achou graça e desconversou. lia que queria se reconciliar com São criar coragem de dizer que alguns er-
inflexão grande”, atesta Falcão, que sem- Paulo, cidade que sempre adorou. ros contribuíram para a nossa derrota.”

A
pre militou à esquerda do PT e presidiu partir de 2016, Genoino começou “Lembro de os meus pais me contarem A fala provocou um mal-estar na cúpu-
o partido de 2011 a 2017. O deputado a gravar conversas suas com Ro- da primeira vez que foram ao cinema la do partido. Mercadante se viu obriga-
atribui essa guinada, em parte, ao Sexto berto Benevides, o Bené, e Sérgio desde a prisão”, conta Miruna. Foi em do a pedir a palavra em seguida e fazer
Congresso Nacional do PT, realizado Carvalho, seu assessor parlamentar por 2016. Depois de algum tempo, Genoi- a defesa de Gleisi Hoffmann. Valter
em 2017 – o primeiro pós-impeach- mais de vinte anos. Os dois conduziam no tomou coragem de voltar a frequen- recebeu apenas 11,67% dos votos dos
ment. Na época, o partido fez um balan- durante horas uma espécie de entrevis- tar o Shopping Eldorado, em Pinheiros, delegados do partido.
ço crítico da experiência dos governos ta informal, em que o petista refletia onde há uma loja da qual ele é fã, espe- Para ele, era de se esperar que o alto
Lula e Dilma e recolocou o socialismo sobre suas escolhas políticas e os erros e cializada em canetas. Ele é um colecio- escalão do PT ficasse desconfortável.
no horizonte político. acertos do PT. Foram vários encontros. nador. Na mesma época, se matriculou “O Genoino fez a mesma opção que eles
Genoino explica da seguinte forma Como Genoino não é dado à escrita, numa academia. Passou a ser chamado entre 1990 e 2005, sofreu o pão que o
a sua nova posição política: “Por incrí- essa foi a forma que encontrou de regis- para eventos, como um lanche coletivo diabo amassou, teve a máxima dignida-
vel que pareça, tirei uma lição em co- trar seus pensamentos. “Meu processo com a turma da hidroginástica. de, fez um balanço político e teórico a
mum da experiência da guerrilha e do de elaboração é dialógico”, diz. As con- Desde que saiu da prisão domiciliar, respeito, tirou as devidas consequências
Parlamento: ou a gente organiza e mo- versas estão sendo transformadas em foram poucas as vezes em que foi hosti- e passou a defender outra linha política.
biliza uma resistência popular, com livro por Bené, que assumiu o papel de lizado na rua. O único episódio do qual Já esse pessoal não tirou as devidas con-
enfrentamento, pressionando a burgue- ghost-writer do amigo. ele se lembra foi quando voltava de uma sequências e insiste desde então na
sia, ou não vamos mudar esse país – O título já foi definido: Do Encanta- reunião com advogados de esquerda no mesma estratégia”, argumenta Valter.
nem através da ação armada, nem do Eu Vim. Encantado é o nome do Rio de Janeiro, em 2016, e foi xingado “Se você comparar o Dirceu com o Ge-
através da mera institucionalidade. Se o povoado onde Genoino nasceu, na zona agressivamente por um homem no Ae- noino, ficam claras as diferenças”, com-
povo não entra na história, se você não rural de Quixeramobim, no semiárido roporto de Congonhas. Fazia poucos pleta ele, referindo-se ao fato de que um
aposta no enfrentamento, por mais ma- do Ceará. O formato do livro foi inspi- dias que Fernando Haddad (PT-SP) ha- reviu suas posições e o outro não.
leável que você seja, na hora H os caras rado nas obras do historiador britânico via perdido a Prefeitura de São Paulo Genoino planejou a cena com ante-
te cortam – como fizeram conosco. Eu Tony Judt, em especial os livros Pensan- para João Doria (PSDB-SP), e o homem cedência. Em julho daquele ano de
acreditava que, por meio do diálogo, a do o Século XX e O Século XX Esquecido, gritou: “Já derrubamos um, agora va- 2019, num evento menor do PT, afirmou
classe dominante ia ceder, e o PT conse- que Genoino leu durante a prisão do- mos derrubar os outros!” Kayano, sua que o Sétimo Congresso do partido se-
guiria fazer seu projeto de transforma- miciliar em Brasília. “Gostei porque ele mulher, recorda como esse tipo de ria “o mais importante” da história e
ção. Foi uma visão equivocada.” narra a vida dele, mas não é exatamen- hostilidade foi diminuindo. “Às vezes deveria ser um congresso “do combate”.

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Elaborou com esmero o que falaria na querda e mais radical, Genoino tem
tribuna. “Quando ele comentou que ia sido requisitado. Na primeira semana
se pronunciar, eu perguntei: ‘Precisa de setembro, sua rotina foi a seguinte: de
mesmo?’”, conta Miruna, sua filha. quinta a sábado, corpo a corpo em
“Porque com isso ele se expõe, acaba Curitiba pedindo votos para sua amiga
ficando mal na fita com a Gleisi e com Andrea Caldas, candidata a deputada
outros nomes. Entendo a importância federal pelo Psol, e para o petista Ro-
do gesto, mas às vezes é cansativo ser berto Requião, candidato ao governo do
filha do mártir.” Paraná (nenhum dos dois se elegeu);
Miruna cita o fato de que, embora domingo, live comentando o noticiário
Genoino mantenha relação de amizade com jornalistas do Diário do Centro do
com Lula, não foi chamado para o ca- Mundo; segunda-feira, debate online
samento do ex-presidente, em maio. com um professor de economia sobre as
“Foi chato ver que o Alckmin foi convi- Forças Armadas e o risco de golpe; ter-
dado, ex-BBBs foram convidados, e meu ça-feira, live sobre o cenário eleitoral no
pai não.” Indagado se isso havia lhe in- canal de YouTube da revista Fórum;
comodado, Genoino respondeu: “De quarta-feira, live comentando o Sete de
jeito nenhum. O Lula sabe que essas Setembro com o advogado Marco Au-
coisas sociais não são o meu forte.” rélio de Carvalho, do Grupo Prerroga-
Em dezembro do ano passado, o ex- tivas. Antes da eleição, sempre que
deputado foi convidado para o jantar estava na rua em São Paulo, distribuía
que o Prerrogativas, grupo formado por a quem encontrasse panfletos das cam-
juristas de inclinação progressista, pro- panhas de Lula e de Rui Falcão (que se

ANDRÍCIO DE SOUZA_2022
moveu no restaurante Figueira Ru- elegeu deputado federal).
baiyat, em São Paulo, para sedimentar Na pandemia, em que viveu comple-
a aliança Lula-Alckmin. Genoino não tamente isolado – por ser idoso e cardía-
podia ir porque tinha uma viagem mar- co, é do grupo de alto risco –, Genoino
cada, mas deixou claro que, mesmo que mergulhou de cabeça nas lives. Com
pudesse, não iria. Ele foi contrário à Rui Falcão, Valter Pomar e outros cor-
união com Alckmin desde o início. religionários, participou da criação do
“Não me oponho a fazer aliança ao cen- Manifesto Petista, um grupo de debates que o ajudou em 2005, no auge da crise 2005: “Ele disse assim: ‘Meu filho, tem
tro, mas isso tem que ser ponto de che- em defesa do socialismo que faz duas do mensalão: “Ela me disse: ‘Genoino, quatro coisas que não entendi até ago-
gada, não ponto de partida”, diz. “Qual transmissões semanais de análise da você tá no fio da navalha. Você não ra. Primeiro, você queria ser doutor e a
o programa da frente ampla? Ninguém conjuntura. Dentro do PT, além da cam- pode viver sem a política, mas tem que política o tirou da universidade. Segun-
sabe. O acordo tem que começar pelo panha de Falcão e de Requião, Genoi- encontrar novos caminhos dentro dela. do, você não queria trabalhar na roça,
programa de governo. A gente chegar e no contribuiu com a candidatura a Se livre dos adereços, da formalidade, mas depois voltou pra roça pra fazer
apontar: isso aqui para nós é inegociá-Acesse
deputadonosso
de Wadih Damous
Canal no(que con- do paramento,
Telegram: e viva como o José Ge- essa tal de guerrilha. Terceiro, você foi
t.me/BRASILREVISTAS
vel. Vocês aceitam? Aí a gente conversa. seguiu uma suplência). Segundo Fal- noino militante de esquerda, com seus preso, achei que ia morrer, saiu da ca-
Porque senão dá problema lá na frente.” cão, Genoino ajudava “do jeito dele”. ideais.’ É isso que estou fazendo agora. deia, virou deputado famoso e não fi-
Mas e do ponto de vista eleitoral? “Se eu pedir metade da aposentadoria Não quero disputar a institucionalida- cou rico. Quarto, vocês ganharam a
Alckmin não foi uma escolha estratégi- dele pra campanha, ele me dá. Mas não de, nem ter cargo. Quero ser um propaga- questão contra o governo [ou seja: ven-
ca? “Sempre defendi que a gente não fi- peça pra organizar um evento.” dor de causas”, diz. “Cheguei à seguinte ceram uma eleição e viraram governo] e
zesse uma campanha água com açúcar. Numa chamada de vídeo meses conclusão: o capitalismo não me cabe. você tá nessa situação?’”
Para não perder o discurso antissistema. atrás, o ex-presidente Lula perguntou O lucro, a competição, a selvageria não O pai, um camponês analfabeto, mor-
O desencanto pela política você só en- informalmente a Genoino se não gosta- me cabem. Quero ser um rebelde des- reu em 2016, aos 96 anos. Genoino o vi-
frenta se transformar a política em algo ria ele próprio de se candidatar a depu- se sistema.” sitou alguns meses antes, mas o pai já
apaixonante”, responde Genoino. “Não tado. “Estou sem instinto político, e estava bastante mal de saúde. “A morte

E
estou fazendo um desabafo juvenil. Vivi quero experimentar fazer política sem m dezembro do ano passado, Ge- dele me marcou muito. Ele me reconhe-
isso intensamente, porra. A direita esfo- mandato”, respondeu Genoino, segun- noino passou dez dias na casa da ceu, mas já não estava consciente. Eu
la, oprime a gente, e a gente tem que do ele próprio se recorda. Disse, além mãe, no vilarejo de Encantado, queria muito ter conversado com ele.”
pedir desculpa por existir? Ah, não dá, disso, que não sabia se poderia ser can- em Quixeramobim. Desde que saiu A viagem dessa vez foi uma espécie
né, meu!”, disse, soltando uma risada. didato, devido ao fato de ter sido conde- de lá, no começo dos anos 1960, foi a de reconciliação. “Fui sozinho, sem
Parou um pouco e retomou o raciocí- nado pelo STF, e não estava interessado primeira vez que voltou sozinho, sem adereço, sem farda, sem paletó. Bicho,
nio. “O Lula falou esses dias uma pala- em comprar essa briga jurídica. Pela mulher, sem filhos, sem assessores. Reen- não sou autoridade, não sou personali-
vra: harmonia. Eu quero conflito. É isso Lei da Ficha Limpa, condenados que controu-se com os irmãos que não via dade, não quero mais isso. Fui como
que eu quero.” Bateu na mesa. “Sem transitaram em julgado ficam inelegí- há anos. Genoino é o mais velho de onze José Genoino e ponto. Eles entende-
conflito, os caras não cedem.” veis por oito anos após o cumprimento filhos – três moram em Encantado, qua- ram. Dormi na casa onde nasci, comi
da pena – no caso de Genoino, esse tro em Fortaleza, dois em São Paulo, e as comidas de lá. Ouvi as músicas deles,

T
odo dia útil, às seis da manhã, Ge- prazo termina em março de 2023. um já morreu. A mãe, que fez 97 anos encontrei um primo da minha idade
noino tira o Sandero 2009 da gara- Bené acha que, por trás da decisão, em setembro, por vezes reconhece o pri- que trabalha na roça”, diz Genoino.
gem para levar o neto Luiz Miguel, está uma mágoa que Genoino guarda mogênito, por vezes não. “Fiz a viagem como se estivesse lendo
de 14 anos, para a escola. Uma vez por em relação ao PT e a Lula desde o men- Genoino sempre teve uma relação Cem Anos de Solidão.”
semana, leva-o também para o treino de salão. “Ele acha que deveria ter sido mal resolvida com suas origens. Não Ao retornar para São Paulo, estava
handebol. Quando a neta Paula, de 15, defendido pelo partido, e sente que não gostava de Encantado e da vida rural, contentíssimo. Contou histórias da in-
vai à casa de uma amiga assistir a seriados foi.” Genoino desconversa. “Eu tenho que considerava limitante. Dizia se fância que nunca tinha contado. Falou
como Stranger Things, é o avô quem a memória, sim. Mágoa, não.” Sobre a sentir oprimido por aquele ambiente. sobre cantorias em torno de uma fo-
transporta. A avó, Rioco Kayano, não possibilidade de se candidatar numa Mais tarde, como político, passou a se gueira e as sobrinhas que conheceu.
sabe dirigir. “Outro dia ele não pôde le- eleição futura, quando terá expirado o sentir constrangido. Percebia na famí- “Aquilo reverberou na cabeça dele du-
var meu filho no handebol e ficou super- prazo da Ficha Limpa, ele diz: “Com a lia uma pressão para que ajudasse fi- rante muito tempo”, diz Kayano. “Essa
preocupado”, diz Miruna. “Ele está visão que tenho hoje, não está nos meus nanceiramente os irmãos e arrumasse volta para a terra dele, a convivência
fazendo por eles as coisas que não conse- planos participar da disputa institucio- emprego para parentes. Ele sempre re- com a família, completou o processo de
guiu fazer por mim e pelo meu irmão.” nal. Mas não vou decretar nada agora.” corda uma das últimas conversas que reconciliação que ele viveu. Eu vejo as-
Desde que manifestou publicamen- O petista evoca sempre uma lição teve com o pai, pouco depois de ter sim. O Gê retomou a identidade origi-
te sua nova posição política, mais à es- que aprendeu com a amiga psicóloga renunciado à presidência do PT, em nária dele.” J

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história pessoal

PREPARATIVOS PARA
O FIM DO MUNDO
Minha mãe e seu mergulho no mundo das teorias conspiratórias

FELIPE CHARBEL

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P
rimeiro viria o aguaceiro. Seria da minha mãe, mas não chegava a duvidar duros: velas, lanternas, fogareiros, caixas o Apocalipse. Mas como os sistemas de
uma tempestade de proporções completamente de tudo o que ela dizia. de fósforo, capas de chuva, comida comunicação entrariam em colapso, e as
bíblicas, como ninguém jamais Por um tempo, consegui me manter in- enlatada, fita isolante para vedar ralos e notícias urgentes só poderiam vir das ou-
tinha visto. As ruas virariam diferente às “boas-novas” que ela revelava portas e nos proteger dos gases tóxicos que tras esferas, eu tinha a esperança de que
rios, os carros boiariam como a conta-gotas, como alguém que confes- se espalhariam pela atmosfera. Me lem- meu pai, engenheiro e professor de física,
brinquedinhos de plástico na banheira sa um segredo dos mais íntimos. Mas bro de separar uma quantidade absurda daria um jeito de sintonizar no rádio as
das crianças, a água jorraria dos bueiros depois de algumas semanas me vi fisgado de pacotes de cigarros – um agrado a frequências de outras galáxias: elas nos
em gêiseres altos como os prédios. Depois pelo enredo que, com os recursos da sua meu pai, que não andava lá muito trariam instruções precisas sobre o que
escutaríamos um estrondo, e uma onda imaginação fértil, ela vinha há anos con- contente com o fuzuê em torno dos fazer, como agir.
gigante lavaria as ruas, arrastando postes, cebendo. Acho que me encantei com o “últimos dias”. Ele não tinha abso- Já os preparativos da minha mãe
casas, árvores, bichos, pessoas. Mas eu último ato, o desfecho da peça: a cena lutamente nada contra o “mundo como eram mais introspectivos. Ela passava o
não tinha o que temer. Minha mãe – foi em que nos prepararíamos em família, a gente conhece”: a resenha esportiva dia com a cara enfiada nos livros, ou
ela quem me deu a notícia – havia se in- como se fôssemos um time invencível, no radinho, os cochilos no sofá da sala, rabiscando folhas de papel almaço com
teirado de tudo nas viagens astrais que para esperar o fim do mundo. o almoço de domingo na churrascaria imagens do mundo por vir: mulheres
fazia durante o sono ou nas suas medita- Morávamos num prédio baixinho, rodízio. Não se mostrou nada entusias- em transe místico, discos voadores so-
ções do fim da tarde. Seus informantes desses de três andares, no Jardim Oceâ- mado com a boa-nova. brevoando ilhas desertas, homens com
“lá do outro lado” haviam sido categóri- nico, início da Barra da Tijuca. Teríamos No fim das contas, a equipe que deve- adagas de cristal junto ao peito. Sentada
cos: “O mundo como a gente conhece que nos mudar para um lugar mais alto? ria atuar unida acabou se dividindo em com as pernas dobradas para o mesmo
vai deixar de existir”, ela repetia com os Faltaria luz por quantos dias? Como nos times rivais: de um lado os salvacionistas lado, acendendo um cigarro no outro,
olhos brilhando. “Alguns vão sobreviver, protegeríamos do gás que iria escapar (o filho e a mãe), do outro os descrentes ela abria um grosso livro verde, feito só
poucos, e nós estaremos entre eles. Va- dos canos? Consumido pela ansiedade (a filha e o pai). Para aliviar a tensão da de números – o livro das efemérides as-
mos ficar aqui para repovoar o planeta e que já naquela época inviabilizava espera, acabei gravando dezenas de fitas trológicas – e se empenhava na mate-
recomeçar a humanidade do zero.” minhas noites de sono, eu me fazia essas cassete: elas seriam a trilha sonora para o mática. Depois cotejava o que descobria
Era o comecinho dos anos 1990, eu perguntas enquanto rolava na cama – e fim do mundo (Beatles e Caetano para com as centúrias de Nostradamus: foi co-
tinha 12 ou 13 anos, e achei essa conver- no dia seguinte expunha minhas angús- mim, músicas lentas de bandas gringas mo ela cravou a data do Evento. Ela gos-
sa de que estávamos às vésperas de uma tias. Minha mãe me acalmava, dizia para minha irmã, mantras indianos e tava de ler em voz alta as profecias do
hecatombe meio pesada. Eu mal tinha para confiar nela, que sabia o que estava canções de dor de cotovelo para minha místico francês. Eu não entendia abso-
dado meu primeiro beijo, por que motivo fazendo. E para mostrar que realmente mãe). Meu pai não ligava para música, lutamente nada, os versos eram enigmá-
os seres “do outro lado” iriam escolher sabia ela me arrastava para o supermer- então fiz um estoque de pilhas palito que ticos, e ainda assim, ou talvez por isso,
logo a mim, alguém sem experiência no cado. Juntos, escolhíamos e separávamos daria para manter o radinho funcionan- um deles ficou gravado num cantinho
ramo, para repovoar a Terra? Eu descon- os itens indispensáveis à sobrevivência do por uns seis meses. Não que fossem da minha mente e veio à tona anos mais
fiava, e muito, dos arroubos apocalípticos nos primeiros meses, que seriam os mais montar uma programação especial para tarde, enquanto via pela tevê a imagem

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LUCAS TONON_2022
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Na eleição que terminou com a vitória de Bolsonaro, em 2018, pela primeira vez eu vi minha mãe se engajar numa campanha política: os mortos sempre a interessaram mais que os vivos

D
de um avião se chocando contra uma esse dia em diante, e lá se vão trin- lugar aonde iria em breve, a nova dimen- cia anterior, que não havia se consumado.
torre muito alta: “O céu se incendiará ta anos, o mundo esteve a ponto de são. O mais espantoso é que, quando eu No episódio do ano passado, a pecinha
em 45 graus e o fogo devorará o mun- acabar muitas outras vezes. O aler- era criança, ela nunca deixou de atender que tinha faltado no quebra-cabeça, e que
do.” Estava acontecendo? Ela tinha ra- ta mais recente foi no dia 10 de agosto de aos chamados do Zé Gotinha: minha car- justificava o ajuste nas previsões, era o
zão? O fim era iminente? 2021, uma terça-feira. Guardei a data na tela de vacinação foi preenchida do co- planeta Nibiru. É claro que esse planeta
Mas isso foi uns dez anos depois. Na- memória porque, justo nesse dia, recebi meço ao fim, e, como quase todas as não existe – mas isso não vem ao caso.
quele dia de verão do comecinho dos uma mensagem alarmista da minha mãe pessoas da minha idade, carrego no braço Nibiru tiraria uma lasquinha da Terra
anos 1990, quando tudo acabaria segun- enquanto estava na fila para tomar a se- a marca da BCG. Apocalipses à parte, tive bem naquele fim de semana, e isso oca-
do os cálculos da minha mãe, fiquei de gunda dose da vacina contra a Covid – uma infância das mais normais. Minha sionaria todo tipo de catástrofes – as de
olhos abertos, atento aos prenúncios do todo contente, pensando que em breve mãe nos levava e buscava no colégio, sempre: dilúvios, terremotos, tsunamis,
fim: pássaros se aglomerariam no ar e reencontraria meus amigos e festejaría- abria negócios que às vezes davam certo vendavais, erupções vulcânicas. Além
formariam palavras, nuvens se uniriam mos juntos e a vida voltaria ao normal. e às vezes fracassavam, se tornou uma avó desses flagelos, o que também permane-
num desenho sinistro, dois sóis despon- Mas na mensagem ela me alertava, num presente quando minha irmã teve filhos. cia inalterado era a ideia de que a huma-
tariam no fim da tarde e as aves tomba- tom que lembrava o de Nostradamus em Mas de uma hora para outra, sem aviso nidade passaria por uma “faxina” e seria
riam do céu, esturricadas. Eu esperei e pessoa, que o mundo iria pelos ares na- prévio – ou pode ter sido desatenção da dividida em duas metades. Dessa vez, os
esperei... Mas as gaivotas voavam des- quele fim de semana: “Está escrito na Bí- minha parte –, ela acabou se convertendo desafortunados que seguiriam nesse pla-
preocupadas, analfabetas, e não caiu blia que existirão três dias de escuridão. numa incansável militante antivacina. neta assolado por doenças eram os va-
nem uma gota de chuva. Alguns estão dizendo que será agora. Meu Passado o susto inicial, tentei fazer o que cinados. Já os restantes, os que sabiam
Quando meu pai anunciou que estava filho, não saia de forma alguma de casa. podia para mostrar que ela estava espa- da “verdade”, seriam enviados em naves
saindo para comprar cigarro – havia uma Feche todas as janelas e portas. Não abra lhando mentiras grosseiras. Mandei links intergalácticas para algum planeta aprazí-
infinidade deles no armário do banheiro as janelas, pois as dimensões estarão sen- com reportagens sobre a eficácia das vaci- vel, onde teriam uma existência de delícias
– entendi que tudo estava acabado, que do fundidas e podem-se ver seres de ou- nas, enviei depoimentos de pessoas que e viveriam numa paz de mil anos.
era o fim do nosso fim do mundo. Guar- tros mundos. Tudo vai passar em três dias, passaram meses na UTI, disse que a levaria Seu maior medo – por isso ela me
dei lanternas e velas, arranquei a fita iso- não tenha medo. Eu aguardo você na para se imunizar. Nada funcionou. Por implorava para não tomar o “veneno” –
lante das portas, deixei a água que estava nova dimensão.” fim, apelei à chantagem barata: era de que nunca mais fôssemos nos en-
armazenada no tanque e nas pias escor- Comentei que estava na fila para me – Se você não tomar a vacina eu nun- contrar, visto que, vacinado, o meu
rer pelo ralo. Minha mãe não disse nada: vacinar, e que se ela tivesse algum juízo ca mais piso aí. acesso às naves não iria ser concedido.
era como se as últimas semanas não ti- iria até o posto de saúde mais próximo e – Você já não vem nunca, meu filho. Tratei de tranquilizá-la: até onde eu ti-
vessem existido. Sem fazer qualquer per- faria o mesmo, se imunizaria. Ela sequer Cada alerta de que o “mundo que co- nha me inteirado, e minhas fontes eram
gunta, peguei meu walkman e as fitas havia tomado a primeira dose: repetia a nhecemos” estava com os dias contados – seguras, as autoridades sanitárias de todo
cassete e, a exemplo do meu pai, saí para arenga de que as vacinas são perigosas, e e esses avisos se repetiam ano após ano o sistema solar estavam exigindo o certi-
dar uma volta lá fora. de todo modo não seriam necessárias no – trazia uma novidade em relação à profe- ficado de vacinação. Então, se ela quises-

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tão grotescas, que não só beiram como assim: eles identificaram algo estranho no
ultrapassam, e muito, o enredo mais non- céu, pegaram a câmera, filmaram, e isso
sense que um diretor de filme B dos anos era tudo o que se podia saber a respeito.
1970 seria capaz de imaginar. Ver todos esses vídeos de discos voa-
As especulações começaram a ganhar dores no Facebook dela – alguns eram
força em 2017, a partir das postagens de montagens que, de tão fajutas, chegavam
um certo “Q” em fóruns anônimos da in- a ser comoventes – era como ser transpor-
ternet (daí o “anon”, uma abreviação de tado ao passado, aos dias felizes em que
“anônimo”). Q alega que o mundo é con- me encontrava próximo dela e do seu
trolado por uma elite global de satanistas universo de referências, que também era
pedófilos canibais que se alimentam do o meu. Longe de seguir as religiões exis-
sangue de criancinhas. Essa gente má su- tentes, minha mãe foi construindo, com
postamente estaria infiltrada em todos os o passar dos anos, uma cosmovisão pecu-
setores da sociedade, controlando gover- liar. Era como se ela fosse uma versão
nos, a grande mídia, o sistema financeiro contemporânea do moleiro Menocchio,
e até Hollywood. Foi com a eleição de perseguido pela Inquisição no século XVI
Donald Trump que essa conspiração glo- e imortalizado pelo historiador italiano
bal teria sido desmascarada por (supostos) Carlo Ginzburg em O Queijo e os Ver-
militares com (suposto) acesso a infor- mes – alguém que leu de tudo para ela-
mações sigilosas. O QAnon tem milhões borar uma teoria só dele sobre a origem
ANDRÍCIO DE SOUZA_2022

de seguidores – a deputada republicana de do universo. Ou de Pico della Mirando-


extrema direita Marjorie Taylor Greene, la, o filósofo renascentista que estudou
eleita para o Congresso americano em uma quantidade colossal de religiões e
2020, é uma das defensoras mais notórias de sistemas filosóficos antigos, em bus-
das ideias conspiratórias do grupo. ca de uma síntese entre eles. Minha mãe
As postagens de Q viralizaram com estava sempre com um livro da mística
uma rapidez espantosa, e passaram a po- Helena Blavatsky nas mãos, e discorria
voar as redes sociais de gente comum, sobre o “plano astral” com a autoridade
se entrar naquele mundo de delícias, no mundo uma ascensão da extrema di- como minha mãe. Alguns, os chamados de uma testemunha ocular da geografia
teria que se dirigir agora mesmo ao posto reita, do negacionismo científico, dos QTubers, agiam como se fossem evange- do além: alguém que (a exemplo de Er,
de saúde mais próximo e tomar a primei- movimentos antivacina, dos “gabinetes do listas da Palavra de Q, se dedicando com o personagem de A República de Platão,
ra dose da vacina contra a Covid, antes ódio” que espalhavam mentiras e especu- afinco a uma ginástica hermenêutica das ou do delegado Kevin da série The Lefto-
que o mundo explodisse. Não colou. lações fantasiosas de grande impacto nas mais bizarras: a produção de vídeos com vers) desceu ao mundo dos mortos e re-
Quase todo dia minha mãe encami- redes. Mas uma coisa é ter consciência análises detalhadas dos “Q drops”, as pos- tornou para dar notícias do que viu.
nhava um novo absurdo pelo WhatsApp. das “linhas gerais” de um determinado tagens a conta-gotas que o anônimo (al- Mas no que diz respeito a discos voa-
Fazia um bom tempo que ela estava fenômeno social. Outra bem diferente é guns acreditavam ser o próprio Trump) dores, a sua principal referência vinha de
bloqueada nas minhas redes sociais, mas encarar
Acesse o monstro
nosso com osno
Canal próprios olhos. faziat.me/BRASILREVISTAS
Telegram: com frequência incerta (dez num trás do bidê, que era onde ficava a coleção
eu não tinha coragem de agir da mesma Um dos primeiros vídeos a que assisti único dia, às vezes uma por semana). de revistas Planeta. Sempre que saía uma
maneira em relação ao aplicativo de men- foi a live de um sujeito que se autointitula- Esses vídeos e postagens guardam cer- nova matéria de ufologia, ela lia a repor-
sagens. Se o grande medo que minha mãe va “terapeuta vibracional quântico”. Nada ta semelhança com o modo como minha tagem em voz alta. Eu me entusiasmava
tinha era passarmos o resto da eternidade de túnicas brancas, cabelos compridos ou mãe, no comecinho dos anos 1990, revira- com as fotografias, sugestivamente fora
em planetas diferentes, o meu era que ela longos cajados: os gurus dos novos tempos va do avesso as centúrias de Nostradamus: de foco, de objetos estranhos flutuando
adoecesse e, por não estar vacinada, aca- vestem camisa polo, usam óculos escuros basta pegar um texto evasivo, redigido de no céu, e vibrava com a possibilidade de
basse desenvolvendo a forma grave da e estão sempre agarrados a uma bandeira modo críptico e numa linguagem proféti- não estarmos sozinhos no Universo. Seu
Covid. No meu catastrofismo particular, verde e amarela. Pelo visual, poderia ser ca, e deixar a imaginação fluir. filme preferido era – talvez ainda seja –
eu fantasiava que seu pedido de socorro um militar da reserva, desses que cami- Contatos Imediatos do Terceiro Grau.

E
– e ele era inevitável – viria por meio do nham de peito estufado por Copacabana m meados de 2018, comecei a notar “É um retrato perfeito do que vejo nas mi-
aplicativo que, nos últimos anos, havia se só de chinelos, sunga e óculos escuros. Às uma movimentação atípica no Fa- nhas meditações”, ela costumava dizer.
tornado seu púlpito, sua praça pública e vezes eu me sentia como se estivesse assis- cebook dela. Até esse momento, o Não sei se foi de uma hora para ou-
local de encontros e conversas. No fim das tindo a uma mesa-redonda sobre Star tema mais comum no seu feed eram apa- tra, se custei a notar, se não quis ver – a
contas, tínhamos o mesmo temor: a real Wars: os debatedores discutiam aos ber- rições de discos voadores nos cantos mais última alternativa me parece a mais
possibilidade de nunca mais nos vermos. ros a atuação dos “comandos estelares” variados do planeta. Quando eu era crian- provável – que a coisa estava ficando
Hoje, mais de um ano depois do fim (nunca entendi o que eram) na Operação ça – antes, portanto, dos preparativos para estranha. No lugar de memes com alie-
do mundo de agosto de 2021, penso que Tempestade (um evento de ruptura) que o fim do mundo –, assisti a um vídeo que nígenas de queixo fino e olhos imensos,
havia um segundo motivo, menos nobre, libertaria a humanidade do opressor “Es- ela e meu pai gravaram com uma câmera ela começou a publicar imagens de tan-
para não bloqueá-la no WhatsApp. Por tado Profundo” (uma rede secreta e glo- super-8. Era um dia bonito, aquele azul ques e gente armada até os dentes. Ou,
mais que eu me recusasse a abrir os links, bal formada por políticos, grande mídia e inconfundível do outono carioca, e um em vez de montagens toscas com per-
e apertasse o botão mute sempre que os gente poderosa do mercado de entreteni- objeto branco e redondo que mais parecia sonagens da novela A Viagem, ela pas-
vídeos compartilhados por ela eram re- mento). Termos científicos eram mescla- um Sol em miniatura fazia piruetas no sou a compartilhar fotos de Trump
produzidos de forma automática, minha dos sem pudor a devaneios dignos de Dan céu e dava mergulhos verticais seguidos fazendo pose de galo de briga. Foi nesse
curiosidade acabou vencendo a queda de Brown — os Illuminati estavam em todas. de loopings – a acrobacia improvável que momento que um certo ex-capitão do
braço contra os meus imperativos éticos, No começo eu achava graça, mas os pilotos de óvnis adoram fazer para im- Exército Brasileiro passou a dar as caras
quaisquer que fossem eles – o mais prová- não custei a perceber que as pessoas real- pressionar os terráqueos. no seu feed. Decidi mandar uma men-
vel é que o que eu grandiloquentemente mente acreditavam naquilo. Quando perguntei ao meu pai sobre o sagem para tentar esclarecer as coisas:
chamava de ética fosse só receio, vontade vídeo, ele titubeou. Me disse que era au- – Mãe, me diz que você não vai votar

F
de não saber nada, de me manter alheio oi surfando no algoritmo que to- têntico, não havia dúvidas quanto a isso, em quem eu acho que você vai votar.
àquela insanidade. Quis conhecer a fun- mei conhecimento do QAnon, mas logo tratou de justificar aquele balé a Sua resposta veio imediatamente, o
do como funcionavam as teorias da cons- uma teoria conspiratória associada partir das leis da ótica e da mecânica, ma- que me deixou com o estranho senti-
piração que se espalhavam pelo mundo a ideias de extrema direita que, há al- térias que ele havia lecionado por vários mento de que ela estava de prontidão,
numa velocidade espantosa. Ou não tão guns anos, começou a se alastrar nos anos. Mas – ao menos era o que eu sen- aguardando há dias aquele meu contato:
a fundo: bastaria uma olhadela na super- Estados Unidos com a celeridade de tia –, ele não demonstrava acreditar since- – Nunca gostei de política, meu filho.
fície, para não ficar nauseado. O que eu uma doença altamente contagiosa. Pou- ramente nas próprias elucubrações. O que Mas estou do lado da verdade. E só o que
sabia era o que todos diziam, quase sem- cas vezes um grupo tão vasto de seres aconteceu naquela tarde, quando eu ain- posso te revelar agora é que a vida como a
pre recorrendo a termos abstratos: havia humanos acreditou em especulações da não era nascido, pode ser resumido gente conhece está com os dias contados.

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Escuto falar na “verdade” desde os acontecimentos surpreendentes, me dei de Nostradamus enquanto via as torres gê- reconciliação, mas uma trégua. Nos en-
12 anos, mas nunca vi, nunca senti o chei- conta de que minha mãe agora dispunha meas vindo abaixo, pensei na mensagem contramos após todo esse tempo, e rimos
ro: era algo que não me cabia enxergar de um manancial infinito de especula- dela ao ver a turba de pessoas ensandeci- juntos das suas histórias de fantasmas e
sozinho. Quando notei que minha mãe ções desvairadas que tinham origem na das, algumas armadas, outras fantasiadas, viagens astrais. Toda noite, enquanto
associava suas velhas crenças milenaristas “internet profunda” e alimentavam sua invadindo a sede do Congresso norte- dorme – foi o que ela nos disse –, minha
à eleição presidencial que aconteceria em convicção de que nos aproximávamos do americano no esforço golpista de impedir mãe entra numa nave interestelar e rea-
poucos meses, gelei. Acho que foi quando fim dos tempos. Depois de anos fazendo a posse de Joe Biden. Eles tinham escapa- liza missões importantíssimas em outros
me dei conta de que a vitória de Bolsonaro cálculos, decifrando profecias e realizan- do da internet, do espaço virtual, e agora planetas. Ela me disse que às vezes estou
– naquele momento ele ainda não liderava do incursões solitárias ao “plano astral”, ocupavam as ruas num dos momentos junto dela, que sou o piloto de um imen-
as pesquisas – era uma possibilidade con- ela havia encontrado quem pensasse do mais críticos da pandemia, sem másca- so disco voador. Digo que não é possível,
creta. Pela primeira vez, eu estava vendo mesmo jeito: pessoas que não a julgavam, ra, irmanados, dispostos a pegar em ar- pois meu brevê interestelar está vencido,
minha mãe se engajar numa campanha não faziam tediosos apelos à razão, e que mas para acelerar a Tempestade que tanto do mesmo jeito que a minha carteira de
política: os mortos sempre a interessaram acima de tudo renovavam com grande aguardavam. E a impor à força a sua tosca motorista aqui na Terra.
mais que os vivos. Como as coisas chega- eficiência a matéria-prima que tornava e perigosa visão de mundo. Sei que essa paz é provisória, e que a
ram a esse ponto, e tão rápido? Como al- possível a atualização não mais anual, e humanidade – com toda a certeza o país

M
guém que leu tanto e sempre se orgulhou sim semanal ou mesmo diária, das suas antive a minha promessa por dois em que vivemos – já se dividiu há tem-
de pensar com a própria cabeça foi sedu- versões particulares do Armagedom. anos e meio: sem vacina, sem visi- pos em duas metades. Agora nós dois
zida pelos discursos da nova direita? Não Nesse ponto, ela agia como a maior tas. Depois da avalanche da Ômi- fazemos parte de equipes rivais, e não
tenho boas respostas para essas perguntas. parte dos seguidores do QAnon, que a cron e do verão febril, veio a calmaria – e estamos dispostos a ceder um só milíme-
E a realidade é que, num primeiro mo- cada dia que passava mais se pareciam a enxurrada de mensagens com que ela tro. Eu pelo menos não estou. Em certa
mento, consumido pela raiva, nem me com membros de uma seita de fanáticos, me bombardeava foi aos poucos dimi- medida, o “mundo como a gente conhe-
esforcei para entender. Nosso contato se sempre repetindo, de um jeito alucinado, nuindo. Ela agora tinha outras ocupações, ce” já acabou: nem nos meus piores
limitou ao mínimo, e foi só com a pande- a frase que acabou se tornando o lema do uma “vida lá fora” que ia além do aplica- pesadelos de adolescente, quando me
mia, quando passei a dar atenção às men- grupo: “Aonde um de nós vai, vamos to- tivo de mensagens: voltou a ir ao shopping preparei com afinco para esperar o fim
sagens que ela me encaminhava pelo dos.” Em um ensaio publicado em junho e ao supermercado, encontrava amigos, do mundo, a realidade poderia adquirir
WhatsApp, só aí me dei conta de que não de 2020 na revista The Atlantic, a repórter ficava com os netos nos fins de semana, em algum momento os contornos que
havia nada de estranho nesse seu movi- Adrienne LaFrance reflete sobre os traços estava menos obcecada com o Fim. Via- tem hoje em dia. Sei também que em
mento – que o fim do mundo era, sempre milenaristas nas postagens de Q, especial- jei, passei alguns meses fora do país. Mais breve ela vai anunciar um novo Evento,
foi, um acontecimento político. mente a noção de um “Grande Desper- ou menos nessa época um amigo muito que vai me pedir para ficar em casa, es-
tar”, a revelação da “verdade” que viria próximo estava lidando com a doença da tocar água e comida e não olhar pela

N
o último episódio do documentá- num Evento de grandes proporções, pre- mãe, e aquilo me sensibilizou – perder janela. E que alguns dias depois virá a
rio Q : No Olho da Tempestade, visto para acontecer em breve. Eu estava a mãe, seja para o câncer ou para uma trégua, e ela vai passar um tempo sem
que trata da origem e expansão bastante familiarizado com esse enredo. seita de fanáticos, é algo horrível. tocar no assunto – e o relógio continuará
do QAnon, o diretor norte-americano A matéria de LaFrance me levou de Voltei de viagem e, por intermédio da girando, e apenas um Sol aparecerá to-
Cullen Hoback sugere que o primeiro volta a um livro pelo qual eu tinha passa- minha irmã, aceitei não exatamente uma das as manhãs para brilhar no céu. J
ano da pandemia da Covid foi um pra- do os olhos muitos anos atrás, motivado,
to cheio para os adeptos do movimento.Acessepossivelmente,
nossoporCanal
minha história pes-
no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS
Logo nas primeiras semanas da qua- soal: Na Senda do Milênio, do historiador
rentena comecei a receber uma enxur- britânico Norman Cohn, um clássico so-
rada de mensagens da minha mãe. Até bre o “milenarismo revolucionário” na
aquele momento, sua atuação como mi- Idade Média. Originalmente, o termo
litante virtual era esporádica. Mas agora milenarismo tinha uma acepção precisa:
ela estava online o dia todo, sempre dis- era a doutrina que dizia respeito aos “últi-
posta a passar adiante o que recebia nos mos dias”, à paz de mil anos que se segui-
grupos de desinformação. A Covid era ria à Segunda Chegada do Messias. Mas,
uma “fábula da máfia financeira inter- com o passar dos séculos, o significado do
nacional”, um vírus criado em labora- termo foi se alargando, e acabou virando
tório. As vacinas eram parte de um plano sinônimo de salvacionismo. Cohn propõe
ardiloso para adoecer a humanidade. uma síntese fascinante dos traços que ca-
A qualquer momento Trump decretaria racterizavam o milenarismo medieval: a
a “lei marcial global” que levaria à prisão ideia de que a salvação é resultado de uma
(em Guantánamo) de políticos e celebri- ação coletiva (daí o empenho em conver-
dades. “A lei marcial global vai acontecer ter os que não creem nela), é terrena (seu
até o final desse mês”, ela me escreveu lugar é aqui), é iminente (seu tempo é
em agosto de 2020. “Então se previna agora), é total (não há como barganhar,
com água e alimentos. Eu sei que você existem dois lados e você precisa definir
não acredita em nada do que digo, mas qual é o seu) e é milagrosa (depende da
faz compras com mais capricho.” intervenção de forças sobrenaturais).
Em todo o mundo, a extrema direita O QAnon reúne todos esses elementos
recorria a ideias conspiratórias como as – com exceção, talvez, do último. Outro
do QAnon para incendiar a sua base de ponto de semelhança com algumas seitas
apoiadores. E eles sabiam jogar com o milenaristas é o uso da violência como
alarmismo: tudo (as vacinas, a quarente- modo de acelerar o Evento. Na véspera da
na, o 5G, as urnas eletrônicas, a grande invasão ao Capitólio em 6 de janeiro de
mídia) era parte de um complô para man- 2021, minha mãe me mandou uma men-
ter as pessoas alheias à “verdade”, qual- sagem. Eu estava em Teresópolis, numa
quer que fosse ela. Um elemento sempre casa que alugamos com um grupo de
presente nesses discursos era a ideia de amigos – todos isolados e testados. Recebi
uma “grande limpeza”, que se seguiria uma mensagem dela, me dizendo para
a um movimento súbito de ruptura – a ficar de olho na tevê no dia seguinte. Fiz
“Tempestade” sugerida por Trump numa pouco caso, disse que Trump estava de
fala enigmática de outubro de 2017. malas prontas para Miami, onde levaria
Ao ler as mensagens dela sobre uma uma vida insossa de aposentado. Mas, do
“lei marcial global” que desencadearia mesmo jeito que me lembrei das profecias

piauí_novembro 53
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vultos do antropoceno

O INIMIGO ERA OUTRO


A jornada extraordinária de Bruno Latour

BERNARDO ESTEVES

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O
antropólogo e filósofo da ciên- Por isso, o pedido de ajuda o espantou. tegate, Allègre subiu o tom de suas críti- conceitos e ferramentas que Latour e seus
cia francês Bruno Latour se “Pessoas que nunca tinham entendido o cas. Num livro lançado no ano seguinte, colegas desenvolveram para mostrar de
surpreendeu quando foi abor- que os pesquisadores dos estudos sociais alegou que o aquecimento global antrópi- onde vem a solidez dos fatos científicos
dado numa noite de 2009 por da ciência estávamos fazendo de repente co era um mito e acusou o IPCC (Painel eram mais essenciais do que nunca. “Pela
um climatologista durante um se deram conta de que precisavam de Intergovernamental Sobre Mudanças Cli- primeira vez, temos a real necessidade de
coquetel. “Você pode nos ajudar?”, pediu nós”, disse Latour ao evocar o episódio, máticas, na sigla em inglês) de ser um mostrar a ciência em ação e de tornar visí-
o cientista. “Estamos sendo atacados de anos depois, numa entrevista à revista “sistema mafioso”, referindo-se ao grupo veis as mediações científicas”, afirmou.
forma injusta.” Referia-se aos negacionis- Science. “Os cientistas não estavam inte- de pesquisadores montado pela Organiza- No caso da climatologia, mostrar a
tas da crise climática, que contestam os lectual, política ou filosoficamente equi- ção das Nações Unidas para estudar a cri- ciência em ação significa revelar a in-
milhares de estudos científicos das últi- pados para resistir ao ataque de colegas se climática. O IPCC era então – como é trincada rede material e institucional
mas décadas mostrando que o aumento que os acusavam de ser nada mais do que ainda hoje – considerado a maior autori- que sustenta nossas convicções sobre a
da temperatura média do planeta decor- um monte de lobistas”, completou. dade científica sobre o assunto. origem humana do aquecimento global
re dos gases do efeito estufa lançados na Em 2009, os negacionistas haviam re- As mensagens do Climategate não – uma vasta rede, que se apoia em esta-
atmosfera pela humanidade. dobrado sua artilharia depois do chamado mostravam nada além da negociação cor- ções meteorológicas, supercomputado-
Para o pensador francês, morto no dia Climategate, como ficou conhecido o va- riqueira que ocorre durante a construção res, modelos, satélites e sensores de todo
9 de outubro aos 75 anos, o apelo era no zamento de milhares de documentos e dos fatos científicos. É um processo inter- tipo, mas também em laboratórios, con-
mínimo incomum. Latour estava mais e-mails trocados ao longo de mais de uma no, altamente técnico e especializado, gressos, tratados diplomáticos, artigos
acostumado a ouvir críticas dos cientistas. década por um grupo de climatologistas que normalmente não chega ao conheci- científicos e relatórios do IPCC. Para ne-
Tinha dedicado sua carreira a investigar a da Universidade de East Anglia, no Reino mento público depois que o fato científi- gar o aquecimento antrópico, é preciso
maneira como eles estabelecem as verda- Unido. As mensagens mostravam os cien- co passa a ser aceito como verdade. Em demolir esse sólido edifício.
des da ciência. Defendia que os fatos cien- tistas discutindo a interpretação de dados sua obra, Latour mostrou como o silen- Os próprios cientistas do clima pare-
tíficos não eram verdades da natureza e a preparação de gráficos e tabelas. Apre- ciamento desse processo contribuiu para ciam ter percebido que, para restabelecer
reveladas pelos pesquisadores, mas que, sentado com um viés todo próprio, o con- gerar no público uma imagem deturpa- a autoridade do conhecimento científico,
em vez disso, dependiam de arranjos com- teúdo dos e-mails foi denunciado como da de como a ciência é feita. Então, no era preciso expor suas entranhas, mostrar
plexos de pessoas, objetos e instituições. suposta prova de que os cientistas esta- auge do Climategate, os cientistas, acu- ao público como eram as mediações cien-
Para muitos cientistas, o francês era um vam forjando suas conclusões. sados de forjar suas conclusões apenas tíficas. “Com a crise climática e o Climate-
relativista que não acreditava na existência Na França, a claque dos céticos era en- por cumprir o ritual próprio do debate gate, o discurso público dos cientistas se
objetiva dos fatos. Diziam que ele enxerga- cabeçada por um cientista influente: o científico, não sabiam como reagir. tornou bem mais próximo dos estudos so-
va as conclusões científicas como simples geoquímico Claude Allègre, ministro da “O Climategate mostrou a extraordiná- ciais da ciência”, disse Latour. Ou seja:
construções sociais e que não compreen- Educação, Pesquisa e Tecnologia no fim ria fraqueza da filosofia pública das ciên- agora eram os próprios cientistas que fa-
dia o funcionamento da ciência. Mas, em dos anos 1990, no governo socialista de cias aos próprios cientistas”, disse Latour ziam questão de realçar todo o aparato que
2009, o vento estava virando, e os cientis- Lionel Jospin. (Hoje, aos 85 anos, ele anda em uma conversa com a piauí ocorrida em sustentava suas conclusões. Mas o francês
tas precisavam de sua expertise para lutar sumido da esfera pública, mas suas ideias 2014, quando veio participar de um coló- disse não ver qualquer ironia no fato de os
contra a desinformação. continuam ressoando.) Depois do Clima- quio no Rio de Janeiro. Nesse contexto, os antigos críticos de sua obra terem adotado

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IORGIS MATYASSY_2019
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Latour, em casa, em 2019: “Você não pode mais se defender dizendo que ‘só faz ciência’ e que não se mistura com os problemas de valores”

o mesmo argumento que antes rechaça- É marcante na obra de Latour a sua em San Diego, na Califórnia. Passou cidos a partir da associação de uma rede
vam. “Pelo contrário, é uma tragédia.” crítica veemente à distinção entre natu- dois anos no laboratório com a equipe de complexa de elementos que inclui os
Foi em 2010 que o autor percebeu reza e cultura, traço fundador da moder- Guillemin, que estava tentando deter- cientistas e seus instrumentos, mas tam-
que, para reagir aos ataques que vinham nidade. Essa crítica aparece em Jamais minar a estrutura molecular de dois hor- bém reagentes, micro-organismos, insti-
sofrendo, os cientistas do clima aos pou- Fomos Modernos, de 1991, seu título mônios produzidos por neurônios no tuições e fatores históricos e sociais.
cos estavam se alinhando com as ideias mais conhecido. Ele se aproximava, nes- hipotálamo – trabalho que renderia a As verdades científicas não são menos
que ele e seus colegas defendiam havia se aspecto, do trabalho de antropólogos Guillemin o Nobel de Medicina em 1977. sólidas ou verdadeiras quando descritas
décadas. O relato dessa constatação é a como o francês Philippe Descola ou o No livro A Vida de Laboratório, que nesses termos. Elas apenas tiram sua for-
cena de abertura de Investigações sobre brasileiro Eduardo Viveiros de Castro, lançou com o colega britânico Steve ça de bases diferentes. Uma verdade será
os Modos de Existência, livro publicado autor frequentemente citado por Latour Woolgar em 1979, Latour descreve como tanto mais robusta quanto maior e mais
em 2012. Hoje, essa é considerada por e elo importante da sua rede de ligações os cientistas faziam seus experimentos e estável for a quantidade de elementos hu-
muitos sua obra maior, a culminação de com o Brasil. Viveiros de Castro e Débo- selecionavam os resultados que pretendiam manos e não humanos associados na sua
uma reflexão teórica elaborada ao longo rah Danowski, filósofa ambiental com aproveitar, traduzidos mais tarde nos grá- sustentação – Latour colocava todos eles
de mais de três décadas. Latour reco- quem é casado, eram amigos próximos e ficos e tabelas dos artigos científicos. “Ele em pé de igualdade, sem qualquer privi-
nheceu que já não havia mais tempo colaboradores do pensador francês. mostrou como na forma da molécula de légio para os humanos. Para abraçar essa
para que os cientistas e os sociólogos da Nascido em 1947 na Borgonha, em um hormônio há interesses econômicos, visão, contudo, é preciso admitir que o
ciência continuassem se estranhando. uma família dona de uma vinícola funda- preconceitos, questões de raça ou compe- conhecimento científico não é absoluto,
“Todo esse assunto se tornou muito sé- da no século XVIII, Latour teve formação tição – todas as coisas que estavam pre- mas situado no tempo e no espaço.
rio para tais briguinhas”, escreveu. “Te- em filosofia e teologia, e foi católico prati- sentes no processo que confirmou aquela Talvez por isso o pensamento de La-
mos os mesmos inimigos e devemos cante até o fim da vida. Atuou ora como fi- forma”, define Ivan da Costa Marques, tour tenha soado tão perturbador pa-
responder às mesmas urgências.” lósofo, ora como antropólogo, ora como um engenheiro eletrônico convertido ra alguns. “É como se você chegasse para
sociólogo, trabalhando como pesquisador para os estudos sociais da ciência, estu- um padre que por cinquenta anos rezou

B
runo Latour foi um dos maiores da Escola Nacional Superior de Minas dioso da obra de Latour e pesquisador da a missa do mesmo jeito e lhe dissesse:
intelectuais de sua geração. Dedi- de Paris, na França, e depois do Institu- Universidade Federal do Rio de Janeiro. ‘Deus não é bem isso que você está pen-
cou-se a investigar a produção das to de Estudos Políticos, ou Sciences Po. Latour sistematizou suas reflexões sando’”, compara Costa Marques. No fun-
verdades não só na ciência, mas tam- No início de sua carreira, Latour de- sobre a construção dos fatos científicos do, a resistência que muitos cientistas
bém na religião, nos tribunais e em ou- cidiu estudar os cientistas do mesmo em seu livro seguinte, Ciência em Ação. tinham em relação ao filósofo vinha da
tras esferas. Era um antropólogo dos modo como os etnólogos estudam os Lançado em 1987, tornou-se um clássi- incompreensão de sua obra. “Latour era
modernos, conforme sua própria defini- povos indígenas, prestando atenção aos co da sociologia da ciência. Ali, expli- um cara subversivo e de verdades difí-
ção. Os “modernos”, no caso, são as ci- ritos e rotinas e fazendo pesquisas em cou a produção do conhecimento ceis”, afirma Marques. “Ele tinha um
vilizações ocidentais construídas em laboratório. Nos anos 1970, a convite do científico de forma muito diferente dos amor profundo e incompreendido pelas
torno de ideias forjadas na Europa e na neurocientista francês Roger Guillemin, termos que os próprios cientistas usa- ciências, e queria salvá-las.”
América do Norte e que se espalharam começou seu primeiro estudo de campo vam para descrever seu ofício. Para o Um caso extremo da incompreensão
por boa parte do planeta. no Instituto Salk de Estudos Biológicos, francês, os fatos científicos são estabele- da obra de Latour se revelou quando um

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Para ele, não há por que conferir qual- mos sem medir as consequências”, diz o
quer prerrogativa especial aos humanos, antropólogo Eduardo Vargas, da Univer-
pois suas atitudes, bem como os efeitos sidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
da ação alheia, lhes afetam tanto quanto Latour fez estudos empíricos em labora-
qualquer outra criatura. Essa proposta tórios, tribunais, organizações religiosas
está na base da abolição dos dualismos e na administração pública. Ele se propu-
que sustentam a civilização moderna, nha a mergulhar em profundidade em
como as distinções entre natureza e cul- cada campo que estudava, continua Var-
tura, sujeito e objeto, ciência e política. gas. “Não é muito usual alguém que con-
Para o pensador francês, a melhor for- siga transitar por campos tão diferentes
ma de caracterizar uma criatura não é num mundo de especialistas.”
dizendo o que ela é, mas sim o que ela faz Na avaliação de Alyne Costa, professo-
e o que faz os outros fazerem. É assim que ra de filosofia da Pontifícia Universida-
a ciência define os novos fatos e objetos de Católica do Rio de Janeiro e estudiosa de
que aparecem no laboratório. Os hormô- questões ambientais, a obra de Latour nos
nios que deram o Nobel a Roger Guille- leva a problematizar a própria ideia de cri-
min, por exemplo, não são descritos pelo se. “Quando falamos em crise, damos a
que são em si mesmos, mas pela forma entender que é algo que vai passar, mas
como atuam sobre sensores ou compostos isso que estamos vivendo não vai mais pas-
químicos e pela reação que provocam sar”, afirma, referindo-se ao aquecimento
nos organismos que os produzem. A ação global. “Já entramos em outro regime cli-
ANDRÍCIO DE SOUZA_2022

está no centro do pensamento de Latour mático, justamente porque negligencia-


e da Teoria Ator-Rede, uma metodologia mos todas essas agências que permitiam
de pesquisa que ele criou nos anos 1980 a manutenção do mundo como ele era.”
com o francês Michel Callon, o britâni- A visão moderna de mundo, essa que
co John Law, a holandesa Annemarie separa natureza e cultura, está na origem
Mol e outros colaboradores. da exploração predatória dos recursos do
A Teoria Ator-Rede propõe descrever planeta, o que levou a humanidade a
fenômenos variados observando a forma mudar a composição da atmosfera, pro-
psicólogo o abordou numa conferência e tados. Na entrevista à Science, publicada como os diferentes atores – humanos e vocar a extinção em massa de seres vivos
lhe perguntou – de boa-fé – se ele acredi- em 2017, ao discutir a briga com os rea- não humanos – agem uns sobre os ou- e a poluição em escala nunca antes vista,
tava na realidade. O evento aconteceu em listas, ele disse que certamente não era tros e como se associam em redes. Para inclusive de ambientes onde nenhum ser
Teresópolis, na Região Serrana do Rio de contra a ciência. “Mas devo admitir que isso, recomenda Latour, o pesquisador humano jamais pôs os pés. Os rastros
Janeiro. Latour ficou abismado com a me senti bem de rebaixar um pouquinho deve estar atento aos rastros visíveis dei- deixados pelos humanos nesse processo
pergunta: parecia-lhe tão absurdo quanto os cientistas. Havia algum entusiasmo xados por essas associações. “Essa teoria estão inscritos indelevelmente nas pró-
imaginar que biólogos podiam ser contrá- juvenil no meu estilo.” Acrescentou que oferece a possibilidade de lidar com as prias camadas do planeta, tanto que se
rios à existência da vida, ou que astrôno- a situação,
Acesse nosso de láCanal
para cá, mudara comple- composições
no Telegram: muito heterogêneas desses estuda mudar o nome da época geológi-
t.me/BRASILREVISTAS
mos duvidassem da presença das estrelas. tamente. “Estamos de fato em guerra, coletivos”, diz o antropólogo Guilherme ca em que vivemos para Antropoceno.
Ao mesmo tempo, era um sinal da distân- uma guerra conduzida por uma mistura Sá, pesquisador da Universidade de O livro Políticas da Natureza, de 1999,
cia que havia entre o que ele julgava estar de grandes corporações e cientistas que Brasília e estudioso da obra de Latour. traz a primeira reflexão sistemática de La-
fazendo e a forma como sua mensagem negam a mudança do clima.” É menos uma abordagem metodológica tour sobre a crise ecológica, um tema que
era recebida. O episódio motivou-o a es- Latour notou que seus adversários es- formal e mais uma lente através da qual ele já havia abordado transversalmente
crever A Esperança de Pandora, lançado tavam aprendendo com as ferramentas se observam os problemas de pesquisa, em trabalhos anteriores. Ali ele mostrou
em 1999. A obra é dedicada, entre outros, desenvolvidas por ele e seus colegas dos e por isso foi adotada por especialistas como a mesma visão moderna de mundo
ao autor da pergunta – o californiano estudos sociais da ciência – e as usavam de várias disciplinas. “Não se trata de que provocou a crise ambiental será, tam-
Stephen Glickman, um especialista no para combater a ciência. Os negacionistas uma teoria voltada especificamente bém, nosso maior obstáculo para sair dela,
comportamento de hienas que virou do clima chamavam a atenção para as para as ciências sociais”, afirma Sá. “Ela a menos que seja superada. De um lado,
amigo de Latour depois do episódio. incertezas da ciência climática com o ob- tem maleabilidade para se associar com temos o mundo indiscutível da natureza,
Um exemplo mais belicoso da incom- jetivo de alimentar uma controvérsia que diversas expertises. Por isso, foi adotada que é objeto de estudo da ciência. Do ou-
preensão da obra do francês é o desafio simplesmente não existia para os cientis- por gente das artes visuais, da engenha- tro, há o mundo da cultura, habitado pe-
lançado a ele e seus colegas pelo físico tas. Ao jogar luz sobre as tais incertezas, ria, da economia e de outras áreas.” los humanos, que é o teatro da política.
norte-americano Alan Sokal em 1996. os negacionistas argumentavam que não O pensamento de Latour era marcado Essas duas dimensões da vida pública não
“Convido quem acredita que as leis da havia motivos para reduzir as emissões de pelo espírito provocador, pelo tom irôni- se comunicam, e aí reside a ruína de qual-
física são meras convenções sociais a ten- gases do efeito estufa, já que a própria ciên- co e sarcástico e pela originalidade do quer tentativa de salvar o mundo.
tar transgredi-las a partir das janelas do cia não estava totalmente convicta do seu estilo, incomum entre os acadêmicos. Na visão de Latour, só conseguiremos
meu apartamento”, escreveu o pesquisa- papel no aquecimento da atmosfera. “Havia da parte dele uma tentativa de enfrentar a crise ambiental se superarmos
dor da Universidade de Nova York, que “Estava eu errado ao participar da forjar uma narrativa atraente para buscar esse dualismo e mudarmos radicalmente
morava no 21º andar. Sokal foi um dos invenção desse campo conhecido como aliados fora da própria academia. Não é a forma de fazer política. Para que haja
protagonistas das chamadas science wars, estudos da ciência?”, questionou-se La- à toa que teve tantos leitores e admirado- uma democracia de fato, é preciso incor-
ou guerras da ciência, um debate caloro- tour em um artigo. Era uma pergunta res fora das ciências sociais”, avalia Sá. porar a voz dos atores não humanos que
so em que se engalfinharam cientistas retórica: a única saída possível para o Para ele, o francês é um pensador que foram excluídos do debate político quan-
e estudiosos da ciência nos anos 1990. impasse seria continuar mostrando, renuncia à navegação de cabotagem, ou do separamos a natureza da cultura. As
O físico estava no pelotão de frente dos como ele vinha fazendo há décadas, a seja, se recusa a se prender ao porto segu- negociações diplomáticas sobre o clima
“realistas”, que acusavam os cientistas profusão de elementos envolvidos na ro das referências conhecidas. “Latour é só serão efetivas quando, junto com as
sociais de inspiração pós-modernista de consolidação das verdades científicas. um convite para singrar outros mares.” delegações de cada país, sentarem-se à
não acreditarem na realidade objetiva. E isso, em vez de enfraquecer as conclu- mesa representantes da atmosfera, das

N
Nessa contenda, Latour era um general sões científicas, operava no sentido opos- o começo deste século, Bruno La- florestas, dos rios, do oceano, dos ani-
de brigada dos “construcionistas”. to: era a razão de sua força. tour se dedicou a pensar a grande mais, das plantas e dos micro-organismos.
Obviamente, Latour não duvidava da crise ambiental que o planeta está Latour defendia a criação de um “parla-

U
força da gravidade, razão pela qual jamais m dos traços centrais do pensa- enfrentando, causada em grande medida mento das coisas”, conceito que ele for-
se jogou pela janela do 21º andar. Apenas mento de Latour é a atribuição de pelo estilo de vida dos modernos. “A mo- mulou inicialmente nos anos 1990. “Essa
preferia explicá-la em termos diferentes, agência a todo tipo de seres e ob- dernidade nos autorizou a realizar coisas ideia de uma democracia estendida às
incluindo em sua análise uma miríade jetos, ceifando o pedestal em que a hu- que antes não era possível fazer, como coisas traz uma aposta de Latour de que
de fatos, objetos e fenômenos interconec- manidade se colocou na era moderna. certas intervenções na natureza que fize- vamos conseguir criar novas formas de

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habitar o mundo se conseguirmos enxer- A crise climática escancarou o que estava sempre experimentando local- zar a si mesmo e fazer muitas coisas
gar melhor outros agentes que estão fazen- ele vinha denunciando há décadas: não mente com diversas ferramentas, e sem- passarem por ele, produzindo redes à
do o mundo conosco”, diz Alyne Costa. faz sentido um mundo em que os cien- pre de forma coletiva”, diz Alyne Costa. sua maneira.” A pandemia atestou ain-
Ela notou que, mesmo diante da gra- tistas descobrem os fatos e a política da uma ideia em que Latour vinha in-

A
vidade da crise, o pensamento ambiental fica sendo o terreno das opiniões, cren- ntes dos seus 70 anos, Bruno La- sistindo: Gaia não tem lado de fora.
de Latour é caracterizado por um certo ças e valores. Foi precisamente por se tour recebeu o Prêmio Holberg, “Estamos todos enredados, o que acon-
otimismo e pela renúncia ao derrotismo. enxergar nesse mundo que os climato- considerado equivalente a um No- tece em Wuhan tem efeitos sobre todos
“Ele escapa do cinismo de quem diz que logistas se viram paralisados diante dos bel para a área das humanidades, pela nós, e esta é a Terra em que vamos ter
está tudo bem ou que a tecnologia vai ataques dos negacionistas. “Você não “ambiciosa análise e reinterpretação da que nos virar”, continua Costa. “Esta-
nos salvar, mas ao mesmo tempo não fica pode mais se defender dizendo que ‘só modernidade” e pela elaboração de novos mos confinados nela para sempre, e é
preso no lamento”, afirma. “Ele queria faz ciência’ e que não se mistura com conceitos e métodos que “reimaginaram dela que temos que aprender a cuidar.”
convencer os modernos de que é possível os problemas de valores”, disse Latour. completamente os estudos sociais da Um dos capítulos de Onde Estou?
encontrar formas mais justas e plurais de Motivado pelas reflexões sobre Gaia, ciência”. Em 2021, levou o Prêmio Kyo- parte do relato de uma sessão de qui-
habitar o mundo, desde que reconheçam o filósofo se interessou pelos estudos da to, outro com status de um Nobel, pelo mioterapia e outras experiências médi-
que jamais foram modernos.” “zona crítica”, como é chamada a por- desenvolvimento de “uma filosofia fo- cas vividas por Latour para refletir sobre
Aos poucos, as reflexões de Latour ção da Terra que concentra toda a vida cada nas interações entre a tecnociên- o corpo biológico no mundo de Gaia.
sobre o meio ambiente passaram a in- no planeta – a camada que abrange a cia e a estrutura social”. “Ter um corpo consiste em aprender a
corporar o conceito de Gaia, que bati- parte baixa da atmosfera, oceano, solo O autor francês produziu fartamente ser afetado”, escreveu. “O antônimo de
zou uma hipótese formulada nos anos e subsolo. Na década passada, ele acom- até o fim. O currículo disponível em seu ‘corpo’ não é ‘alma’, ‘espírito’, ‘consciên-
1970 pela bióloga norte-americana panhou várias expedições multidiscipli- site oficial tem 112 páginas e lista dezes- cia’ ou ‘pensamento’, mas sim ‘morte’
Lynn Margulis e pelo químico britâni- nares de estudiosos da zona crítica, sete livros escritos só por ele e 172 arti- – assim como o de Gaia é Marte, o
co James Lovelock, que morreu em ju- numa espécie de retorno à etnografia gos acadêmicos, sem contar capítulos, planeta inerte.”
lho passado aos 103 anos. Nessa teoria, da ciência que ele praticou no início da obras coletivas e de divulgação e produ- Latour vai fazer falta porque se foi no
Gaia é um sistema autorregulado com- carreira. “É uma forma de abordar a ções em mídias variadas. O currículo momento em que seu pensamento po-
posto pelo planeta Terra e pelas formas questão de Gaia num nível muito mais não cita seu último livro, Onde Estou?: deria ser mais útil para a humanidade,
de vida que o habitam. Latour redefiniu local”, disse Latour. “Trata-se de recu- Lições do Confinamento para Uso dos em razão da crise climática. Deixou em
o conceito e mostrou como Gaia irrom- perar o máximo possível de dados geo- Terrestres. Lançada no ano passado, a aberto uma obra que decerto continuaria
peu na vida dos humanos, uma ima- lógicos, químicos e bioquímicos para obra traz reflexões do filósofo motivadas a crescer, como notou Patrice Maniglier,
gem que sintetiza a crise ambiental. em seguida compreender a dinâmica pela experiência do isolamento social. professor de filosofia na Universidade Pa-
“Gaia ajuda a mostrar que a natureza das transformações pelas formas de “A pandemia ilustrou muito clara- ris Nanterre, num obituário publicado no
não é uma coisa que simplesmente está vida, por um lado, e pelos humanos, mente a ideia de rede de Latour”, diz site AOC. Maniglier escreveu: a morte de
aí, mas tem uma história e é produzida por outro.” A jornalista Ava Kofman, Alyne Costa, que assina o posfácio da Latour “nos priva de um dos aliados mais
por bilhões de anos de interações entre que fez um perfil de Latour para o New edição brasileira do livro. “Estamos preciosos que tivemos nos últimos tem-
bactérias, elementos químicos e outros York Times em 2018, acompanhou uma vendo a duras penas como um ser ínfi- pos para enfrentar o grande desafio civi-
agentes”, diz Alyne Costa, que estudou dessas visitas e relatou que o francês era mo, o coronavírus, foi capaz de globali- lizacional que temos hoje”. J
o conceito em sua pesquisa de doutora- tratado como uma espécie de celebrida-
do. “É uma convocação para prestarmosAcessede no observatório
nosso Canal da zona no
crítica.
Telegram: t.me/BRASILREVISTAS
atenção ao fato de que somos parte de A atuação de Latour ficou longe de se
uma rede muito mais extensa de seres restringir ao espaço acadêmico. O autor
dos quais dependemos.” também fez teatro a partir de suas refle-
xões ambientais. O projeto Gaïa Global

O
interesse de Latour pela questão Circus, uma peça escrita por Pierre
ambiental foi também o que selou Daubigny com argumento do filósofo,
sua nova aliança com os cientis- põe em cena cientistas, a própria Gaia
tas. O climatologista que o abordou na- personificada e um Noé do Antropoce-
quele coquetel tinha razão de lhe pedir no. Ainda no universo das artes, ele
ajuda. Mais do que ninguém, o filósofo também foi curador de exposições hí-
era capaz de explicar por que a certeza bridas como o mundo que ele ajudou a
dos cientistas quanto à origem humana revelar. “Não eram nem exatamente
do aquecimento do planeta já não era o exposições de ciência, nem exatamen-
suficiente para fazer políticos e empre- te de arte”, afirma Eduardo Vargas, da
sários agirem para conter a crise. “É bas- UFMG. “Ele saiu do lugar-comum do aca-
tante fácil explicar por que as pessoas dêmico que fica no gabinete lendo, es-
não se precipitam para confiar nos re- crevendo e dando aula.”
sultados dos cientistas”, disse Latour à Latour fez conferências salpicadas
piauí naquela entrevista de 2014. “O que de elementos teatrais, e promoveu en-
se pede é que você ao mesmo tempo cenações que representavam temas e
aprenda um monte de coisas sobre a na- personagens das suas reflexões. Com o
tureza e que mude seu modo de vida.” próprio Vargas, que fez pós-doutorado
Latour observou que, na crise climáti- com ele em Paris, replicou um debate
ca, quem estava mais preocupado e apai- do começo do século XX entre os soció-
xonado com os fatos do aquecimento logos franceses Émile Durkheim e Ga-
global eram os próprios cientistas que briel Tarde – este último um autor que
supostamente deviam falar sobre eles de o brasileiro estudara em seu mestrado e
forma desinteressada. Ele citou o caso da que o francês incorporou à sua lista de
concentração de gás carbônico na atmos- referências teóricas.
fera, que, no ano anterior, havia atingido Em 2015, ano da conferência do cli-
a casa das 400 partes por milhão, um ma de Paris, Latour dirigiu uma simula-
valor sem precedente nos últimos 800 mil ção de seu “parlamento das coisas” com
anos (no fim de outubro de 2022, já eram centenas de estudantes divididos em
416 ppm). “Nenhum climatologista pode delegações que representavam as ONGs,
ouvir essa frase e passar a outro tópico”, os jovens e os indígenas, mas também os
disse o francês. “A constatação soa como solos, as florestas, a internet e outros ato-
uma sirene ensurdecedora.” res humanos e não humanos. “Latour

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anais da ditadura

A COVA RASA DO BRASIL


Pesquisa para identificar desaparecidos políticos descobre que a maioria dos
mortos na cova clandestina de Perus é formada por pobres da periferia paulistana

GABRIELA MAYER

“É
uma velhinha?”, per- as 1 049 caixas contendo os esqueletos saparecidos e materiais biológicos se- morto em 1973, numa emboscada do
guntou uma das crian- encontrados em Perus e com as quais jam colhidos para comparação. Exército. Até hoje a família procura o cor-
ças em torno da mesa trabalham os antropólogos forenses. Ao
Acesse nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS po. Não termina aí a história trágica da

E
retangular do laborató- contrário dos peritos médicos legais, m maio passado, quando a piauí família Teles durante os anos de chumbo.
rio. Sobre o tampo do que em geral focam nas razões que po- esteve no laboratório do Caaf, na A mãe do professor, Maria Amélia de Al-
móvel, em cima de um pano azul, havia dem ter levado uma pessoa à morte, a Vila Mariana, os pesquisadores meida Teles, era militante do Partido Co-
um esqueleto. A cirurgiã-dentista Talita antropologia forense recorre a técnicas ainda trabalhavam sob o olhar de 42 munista do Brasil (PCdoB) e foi presa em
Máximo, uma das pesquisadoras que guia- multidisciplinares para identificar os desaparecidos políticos, cujas fotos em 1972, aos 28 anos, junto com o marido,
vam a visita escolar, respondeu que não, mortos, podendo reconstituir aspectos preto e branco estavam afixadas na pa- César Augusto Teles, e o militante Carlos
não era uma velhinha. “É uma moça que sociais e até culturais da vida deles. rede do laboratório. Reconstituições Nicolau Danielli. Os três foram levados
tinha entre 20 e 30 anos quando mor- Trinta e dois anos depois da desco- sobre o sumiço desses 42 ativistas leva- ao DOI-Codi, órgão de inteligência e re-
reu.” A criança apontou para a mandí- berta da Vala de Perus, a primeira parte ram à suspeita de que seus corpos tives- pressão da ditadura, e submetidos à tortu-
bula: “É que não tem nenhum dente.” da pesquisa do Caaf destinada a identi- sem sido enviados para a Vala de Perus. ra. Danielli foi morto.
Especializada em odontologia legal, Má- ficar ossadas de presos políticos está Ao lado das fotos, havia uma imagem Durante a tortura de Maria Amélia, o
ximo explicou: “A gente consegue ver que chegando ao fim. Dada a complexidade do Cemitério Dom Bosco e o cartaz de coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra,
ela nunca recebeu tratamento dentário do trabalho, foi possível identificar ape- uma manifestação de 2013, com os di- comandante militar que chefiava o DOI-
e perdeu todos os dentes, é provável nas cinco pessoas, todas desaparecidas zeres: “Pela memória, verdade e justiça: Codi paulista, mandou sequestrar os fi-
que eles tenham sido arrancados quan- na ditadura militar por razões políticas. ditadura nunca mais!” lhos dela – Edson, então com 4 anos, e
do ela era adolescente.” A análise antropológica forense tam- O lema tem ligação direta com os Janaína, com 5 anos. As duas crianças fo-
A visita dos estudantes à sede do Cen- bém concluiu que o maior número de estudos e mesmo com a vida de Edson ram conduzidas ao local de tortura e en-
tro de Antropologia e Arqueologia Fo- corpos escondidos na vala não é de pre- Luis de Almeida Teles, atual coordena- contraram a mãe coberta de hematomas,
rense (Caaf), em São Paulo, era para sos políticos, e sim de pessoas das peri- dor do Caaf, que faz parte da Universi- com a boca e os olhos feridos. Décadas
conhecer o trabalho de identificação ferias de São Paulo. dade Federal de São Paulo (Unifesp). mais tarde, uma ação movida pela família
das ossadas da Vala de Perus – uma cova Das 1 049 caixas – a maioria com Professor de filosofia política na Uni- Teles levou à condenação de Ustra pela
coletiva descoberta em 1990 no Cemi- um esqueleto cada uma –, 270 contêm fesp, ele pesquisa a violência de Estado Justiça e ao reconhecimento inédito pelo
tério Municipal Dom Bosco/Colina dos misturas, ou seja, ossos avulsos que não e investiga como democracias que suce- Estado de que o coronel foi um torturador.
Mártires, no distrito de Perus, na Gran- combinam entre si ou não pertencem dem regimes autoritários lidam com o Ao assumir a gestão do Caaf, Edson
de São Paulo. Investigações concluíram a nenhuma ossada já montada. A pró- passado violento. Seu trabalho no proje- Teles viu seus dois percursos se encon-
que naquela cova a ditadura militar en- xima etapa do trabalho no Caaf será to Perus começou no início de 2019, trarem, o de pesquisador e o de ativista.
terrou, de maneira clandestina, presos examinar essas 270 caixas. Sem os pa- depois de ser eleito coordenador do “Eu passei a vida toda denunciando a
políticos e outras pessoas. Até hoje não râmetros fornecidos pelo esqueleto Caaf por um conselho formado por do- falta de respostas do Estado brasileiro;
se sabe com precisão quantos corpos fo- completo, a análise dos fragmentos é centes, pesquisadores técnicos e pessoas hoje faço a gestão de uma possível res-
ram jogados ali, embalados em sacos. mais difícil e será necessária a ajuda de da sociedade civil. No fim de 2020, ele posta do Estado brasileiro”, diz. Nas reu-
No Caaf, os estudantes passaram por um laboratório da Holanda que já tra- foi reconduzido ao cargo para um novo niões com outras pessoas envolvidas no
bancadas e pias de alumínio onde se faz balha em parceria com o projeto. Ao mandato, que termina no fim deste ano. projeto, o professor tirou as vestes de
a lavagem e a limpeza dos ossos, explo- fim do processo, moradores de Perus, Teles é sobrinho de André Grabois, denunciante para assumir um papel pro-
raram as ferramentas e os utensílios de onde acredita-se que seja a maioria desaparecido sob o codinome Zé Carlos positivo. Estava também nas mãos dele
usados para extrair material genético dos mortos, esperam que seja feito um quando participava da Guerrilha do Ara- trazer soluções para os obstáculos que
dos pedacinhos de ossos e visitaram a chamamento público à comunidade, guaia (1966-74). Documentos do regime surgiam no caminho da investigação. Seu
sala subterrânea climatizada que abriga para que familiares reclamem seus de- militar indicam que o guerrilheiro foi compromisso ficou mais abrangente.

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MARCELO VIGNERON_1990
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Retirada de corpos da vala clandestina em 1990: “Não dá para descartar nem um ossinho solto”, diz o antropólogo José Baraybar, que já passou por Ruanda, Bálcãs e Kosovo

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onde fica o laboratório responsável pelo os recursos para as pesquisas mingua-


sequenciamento genético dos ossos. ram, e houve atritos entre a universidade
A remessa mais recente – e a última –, e os familiares, que desconfiavam do
com 150 amostras, saiu do Brasil no dia compromisso da equipe de medicina
21 de junho. As 750 amostras já analisa- legal com o trabalho. Quando as famí-
das pelo laboratório holandês permitiram lias identificaram que as ossadas esta-
identificar dois desaparecidos políticos: vam abandonadas na Unicamp, o
Aluísio Palhano Ferreira, militante da Ministério Público Federal foi acionado.
Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), Em novas tratativas, que se estende-
e Dimas Antônio Casemiro, do PCdoB e ram por dois anos, ficou decidido que o
do Movimento Revolucionário Tiraden- material seria transferido para o Instituto
tes (MRT). Oscar Freire, ligado à Faculdade de
Outros dois presos políticos foram Medicina da Universidade de São Paulo.
identificados nos anos 1990 pelo Depar- O trabalho na USP, entretanto, nem che-
tamento de Medicina Legal da Univer- gou a começar. Cogitou-se, então, a possi-
sidade de Campinas (Unicamp): bilidade de que a pesquisa fosse retomada
Frederico Eduardo Mayr, do Movimen- pelo Instituto Médico Legal (IML). Mas a
to de Libertação Popular (Molipo), e ideia teve forte resistência dos familiares,
Dênis Casemiro (irmão de Dimas Antô- que não queriam que o órgão que forjou
nio Casemiro), da VPR. Em 2005, um laudos de morte durante a ditadura e con-
exame de DNA feito em São Paulo con- tribuiu para o ocultamento dos corpos
firmou a identidade de Flávio de Carva- tivesse relação com o projeto.
ANDRÍCIO DE SOUZA_2022

lho Molina, militante do Molipo. Em 2011, pouco mais de vinte anos


após a descoberta da cova em Perus,

A
vala clandestina de Perus foi aberta como não se encontrava solução para
em 4 de setembro de 1990, quando dar continuidade à pesquisa, foi decidido
também teve início a retirada das que todo o material ficaria guardado no
ossadas, que durou mais de um mês. Ossário-Geral do Cemitério do Araçá,
Parte delas estava em sacos de um servi- histórica necrópole da capital, próximo à
ço funerário, parte em sacolas plásticas Avenida Paulista. Em 2013, o ossário foi

O
“Antes, eu estava muito comprometido a s pesquisadores do Caaf, assim que improvisadas. A catalogação inicial, fei- vandalizado, menos de 24 horas depois
encontrar os 42 desaparecidos. Agora es- abrem uma caixa com ossos, colo- ta ainda no cemitério, só terminou no de um ato em memória dos mortos e de-
tou completamente comprometido com cam o material sobre uma peneira fim de novembro. saparecidos políticos realizado no local.
as 1 049 pessoas que estavam na vala, ou grande e quadrada. Nessa primeira eta- O processo esteve sob intenso escrutí- “Foi preciso colocar a Guarda Civil Me-
mais que isso, porque há indícios de que pa, são separados os fragmentos ósseos de nio público. A notícia da abertura da tropolitana de plantão no cemitério, du-
possa haver até 1 500.” outros materiais, como plástico ou tecido. vala foi dada inicialmente pelo jornalista rante a madrugada, para proteger as
Na primeira vez que Teles recebeu a A aparência
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cada osso no
é avaliada para Caco
Telegram: Barcellos, que havia conseguido ossadas. Mas muitos agentes tinham
t.me/BRASILREVISTAS
piauí, ele recuperou a documentação de que se decida o tipo mais adequado de confirmar a existência da cova clandesti- medo do trabalho, porque havia histórias
parte das análises bioantropológicas para limpeza. “Os sacos foram jogados de qual- na. A descoberta atraiu a imprensa e mobi- de fantasmas no cemitério”, conta Carla
explicar o que os pesquisadores identifi- quer jeito na vala, nos anos 1970. Então lizou organizações de direitos humanos Borges, então coordenadora de Políticas
caram. A reconstituição do padrão físico rasgavam, estragavam e os ossos ficavam e de mortos e desaparecidos políticos, que pelo Direito à Memória e à Verdade da
e do estilo de vida dos mortos apontou de expostos”, explica Teles. já suspeitavam da prática de ações ilegais Secretaria Municipal de Direitos Huma-
maneira consistente que a maioria das Os ossos mais fortes e bem conserva- do Estado no cemitério de Perus. A aná- nos e Cidadania de São Paulo (SMDHC).
ossadas amontoadas na Vala de Perus é dos são lavados com água. Depois de fi- lise forense das ossadas ficou sob os cui- As famílias dos desaparecidos queriam
de pessoas que não tiveram acesso a ser- carem de molho, passam por limpeza dados do Departamento de Medicina que o trabalho fosse feito por uma univer-
viços de saúde e estavam privadas de manual para a remoção da terra. Os ossos Legal da Unicamp, que assinou um con- sidade. A Unifesp era a opção favorita,
itens básicos, inclusive alimentos. “Há mais frágeis, de aspecto poroso, são subme- vênio com a Prefeitura de São Paulo, en- mas afirmou que não tinha verba nem es-
uma grande quantidade de pessoas que tidos a uma limpeza a seco, feita com tão comandada por Luiza Erundina (PT). trutura. As reivindicações logo bateram à
viveram em insegurança alimentar, pincéis e escovas de dente. Os que têm No livro Vala de Perus: Uma Biografia, o porta da recém-criada SMDHC. “Eu recebia
pois seus ossos trazem sinais da desnu- fungos levam um banho de luz ultravio- jornalista Camilo Vannuchi descreve familiares defendendo o resgate de várias
trição”, descreve Teles. leta, antes de serem limpos. Só então se- que foram necessários três caminhões histórias, mas todos coincidiam nas men-
Examinando a foto de um crânio, o guem para as mesas com toalhas azuis, para transportar todas as ossadas do ce- ções a Perus”, recorda Rogério Sottili, ti-
coordenador explica como uma sinusite onde o desafio é semelhante à monta- mitério até a universidade. tular da pasta à época. A definição veio
nunca tratada pode deixar marcas nos gem de um quebra-cabeça: identificar Na Unicamp, o método de investiga- em um raro momento de alinhamento
ossos, o que aparece em mais de um re- cada ossinho e posicioná-lo no local cor- ção era baseado em imagens. Os pesqui- das intenções da Prefeitura de São Pau-
gistro. A documentação mostra dentes reto, como disposto no corpo humano, a sadores comparavam fotografias dos lo, sob a gestão de Fernando Haddad
com cáries que duraram mais de uma fim de tentar montar todo o esqueleto. crânios com fotos dos desaparecidos em (PT), com as do governo federal de Dilma
década sem tratamento, fraturas ósseas Feito isso, é a hora do trabalho de aná- vida e mediam a distância entre cavida- Rousseff. “Eu estava em uma reunião
nunca operadas, lesões que ficaram sem lise, que se estende por semanas. Os ossos des, por exemplo, para descartar ou refor- com as famílias quando recebi uma cha-
atenção médica e até uma marca de tiro são examinados tanto separadamente, çar semelhanças. Quando as medidas mada de Brasília para bater o martelo”,
– no crânio de um adolescente, com ida- para a identificação de marcas e sinais, batiam, os peritos buscavam por caracte- lembra Soraya Smaili, reitora da Unifesp
de entre 16 e 20 anos. O cruzamento das quanto em conjunto, para a tabulação que rísticas que os diferenciassem, como pró- na ocasião. A assinatura de um acordo de
informações colhidas na análise esquelé- indica gênero, presume a idade e estima teses, fraturas, especificidades na dentição. cooperação com a universidade em 2014
tica com registros históricos sugere que peso e altura. As ossadas cujas característi- No caso de Dênis Casemiro, a falta de garantiu recursos e definiu procedimen-
há vítimas de uma epidemia de menin- cas se aproximavam de algum dos 42 de- dentes superiores ajudou a confirmar a tos para o prosseguimento dos trabalhos.
gite em São Paulo, na década de 1970, saparecidos políticos seguiam para uma identidade. Depois dessas descobertas, as O Centro de Antropologia e Arqueologia
que os militares tentaram ocultar da po- sala separada. Ali, os pesquisadores corta- análises se complicaram, já que os demais Forense foi criado no mesmo ano, em
pulação, proibindo a imprensa de noti- vam uma fatia de osso para a comparação desaparecidos não tinham nada que tor- decorrência do acordo.
ciar o assunto. “Outro aprendizado aqui genética – em geral, três amostras. A lâmi- nasse sua identificação possível pela aná- Ainda em 2014, foi instituído o Gru-
foi entender que todas essas pessoas tam- na óssea era armazenada em um tubo lise simples do esqueleto: seria preciso po de Trabalho Perus (GTP), um dos
bém são desaparecidos políticos, porque plástico etiquetado com o código que avançar pela pesquisa genética. frutos da Comissão Nacional da Verda-
a violência de Estado sempre se fez pre- identifica os restos mortais. Das 1 049 os- Em 1993, no entanto, o trabalho na de, que investigou violações dos direitos
sente para os que vivem nas periferias sadas, 900 seguiram essa etapa e tiveram Unicamp começou a degringolar. No humanos antes e durante as ditaduras
das cidades”, diz Teles. amostras recolhidas e enviadas à Holanda, governo do prefeito Paulo Maluf (PDS), militar e a de Vargas. A portaria, assina-

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da em outubro daquele ano, definiu Comissão Internacional de Pessoas De- do Tribunal Regional Federal da 3ª Re- sencialmente e que isso ocorreria assim
que a investigação seria realizada por saparecidas (ICMP, na sigla em inglês), gião, em São Paulo, que já era responsá- que as condições sanitárias permitissem
uma parceria entre quatro entidades: a com sede na cidade holandesa de Haia. vel por tratativas relacionadas ao tema. a retomada das viagens. Mas, mesmo
Secretaria Especial de Direitos Huma- Essa entidade internacional, criada Nas audiências, são solicitadas soluções com o fim das restrições da pandemia,
nos da Presidência da República (hoje nos anos 1990, trabalha com governos, para entraves, como a falta de documen- os pesquisadores do Caaf seguem sem
Ministério da Mulher, da Família e dos organizações da sociedade civil e órgãos tos, as falhas no repasse de verbas ou a acesso aos documentos.
Direitos Humanos), a SMDHC, a Unifesp de Justiça para identificar vítimas de desa- ausência de respostas de um dos órgãos O médico legista e geneticista forense
e a Comissão Especial sobre Mortos e parecimento por meio da análise do DNA. a questionamentos de outro. Samuel Teixeira Gomes Ferreira é o coor-
Desaparecidos Políticos (CEMDP), ligada Além de assistência técnica, oferece assis- Como é o governo federal que paga o denador técnico da pesquisa sobre Perus
à pasta dos direitos humanos. tência jurídica, dá treinamentos e apoia ICMP, os laudos do laboratório holandês são designado pelo governo para a interlocu-
Foi uma iniciativa inédita no país, o desenvolvimento de políticas públicas enviados primeiramente para Brasília. An- ção com o Caaf. Ele afirma que todos os
ainda que seus termos fossem um tanto contra violações de direitos humanos e o tes, os resultados vindos de Haia chegavam resultados estão disponíveis para os en-
vagos. À pasta federal, caberia “envidar desaparecimento de pessoas. Foi a ICMP ao Caaf com fluidez. Mas durante o gover- volvidos no projeto – mas em Brasília.
esforços para a localização de corpos que comandou a análise das vítimas do no Bolsonaro houve lentidão nesse re- Chefe do Instituto de Pesquisa de DNA
de desaparecidos políticos”. A instância massacre de Srebrenica, em 1995, no qual passe. Até o fechamento desta reportagem, Forense da Polícia Civil do Distrito Fe-
municipal ficaria com “o apoio à identi- morreram mais de 8 mil bósnios muçul- o governo ainda não havia enviado os rela- deral, Ferreira atua na análise forense
ficação dos restos mortais já exumados”. manos. A entidade não tem fins lucrati- tórios descritivos do ICMP, o que prejudica desde o início do trabalho e é o principal
E a Unifesp criaria um Centro de An- vos, mas cobra os custos de operação para a transparência das informações e o desen- interlocutor com a ICMP, em cujo labora-
tropologia e Arqueologia Forense, nú- executar o trabalho. Desde 2014, o gover- volvimento da pesquisa sobre Perus. É este tório esteve mais de uma vez para entre-
cleo especializado até então inexistente no brasileiro gastou 468 mil dólares (cer- relatório que aponta se os procedimentos gar amostras e conhecer o trabalho dos
em universidades brasileiras. Nesse cam- ca de 2,5 milhões de reais) no acordo de foram feitos corretamente e sugere o que colegas estrangeiros. Em 21 de junho,
po, a portaria era mais específica e lista- cooperação internacional. pode melhorar. A falta de acesso a dados ele esteve em São Paulo para acompa-
va os objetivos do futuro Caaf: entre Hoje, o Grupo de Trabalho Perus não que aprimoram o trabalho de pesquisa nhar a embalagem das lâminas da últi-
eles, criar um ambiente intelectual para existe mais. Na assinatura, o acordo de acaba por prejudicar também outros proje- ma remessa de amostras no Caaf e o
o desenvolvimento de pesquisas na área cooperação previa vigência de três anos, tos encabeçados pelo Caaf. Hoje, o centro embarque dos 150 pacotes para Haia.
e elaborar protocolos científicos para a renováveis por mais três, o que garantia o atua em diferentes análises forenses, como Os frascos são enviados pelos Correios
identificação de vítimas de violência funcionamento dos comitês até pelo me- a que investiga a morte de nove jovens mo- bem acondicionados em caixas plásticas e
institucional do passado e do presente. nos 2021. Mas um decreto assinado por radores da favela de Paraisópolis, em São de papelão. Não houve necessidade de em-
A sobrecarga de trabalho nas polícias Jair Bolsonaro em 2019 extinguiu o gru- Paulo, durante uma ação da Polícia Militar balagens térmicas, fundamentais em re-
científicas brasileiras e o número restri- po. Sem um papel assinado para respal- em um baile funk, em 2019. messas anteriores, quando havia amostras
to de peritos reforçaram a opção de en- dar a legitimidade das decisões em Em resposta à petição do Caaf para de sangue dos familiares para comparação.
viar as amostras da Vala de Perus para o relação à pesquisa, todos os acertos entre que os relatórios sejam liberados, a Ad- A expectativa é de que até o fim de no-
exterior. Ficou definido que o laborató- as quatro partes passaram a ser feitos no vocacia-Geral da União informou que, vembro a ICMP envie os laudos referentes a
rio responsável pelo sequenciamento Gabinete de Conciliação (Gabcon), do dada a natureza das informações, os pa- essas últimas amostras. A análise no labo-
genético das ossadas de Perus seria o da Núcleo de Ações Complexas e Sensíveis péis seriam disponibilizados apenas pre- ratório internacional costuma levar quatro

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meses, mas a complexidade dos casos brasileiras nenhum núcleo de pesquisa em Portugal, e das vítimas da ditadura
pode estender o prazo. “Imagine que tem dedicado especificamente à arqueologia franquista na Espanha, onde ela vive atual-
e à antropologia forense, especialistas de mente. Seu objetivo agora é sistemati-
ossos de mais de cinquenta anos atrás, se-
pultados de qualquer jeito, armazenados países latino-americanos com histórico zar toda a documentação do centro desde
em condições ruins durante décadas. É di-de ditaduras que já haviam feito estudos 2014. “Quando lidamos com desapareci-
para a preservação da memória foram mento, não é só uma questão de analisar
fícil extrair DNA deles”, explica Ferreira.
chamados como consultores. indícios, é preciso materializar conclu-

J
á houve vinte pessoas trabalhando no O primeiro grupo contratado foi a sões, porque são casos sem materialida-
Caaf ao mesmo tempo, mas atual- Equipe Argentina de Antropologia Foren- de”, diz Hattori. “Então, desde o início,
mente o laboratório anda mais va- se (Eaaf), à qual se juntou depois a perua- tivemos a preocupação de registrar tudo.”
zio. A dentista Talita Máximo é uma na, ambas integrando o comitê científico A documentação produzida no Caaf
das que continuam na equipe e agora de Perus nos primeiros anos da pesquisa. sobre a análise bioantropológica de todas
se dedica ao preenchimento de uma Mas uma divergência levou os argentinos as 1 049 ossadas é considerada de grande
base de dados digital, mas offline, para a voltarem mais cedo para casa. A equipe valor pela equipe e pelas famílias porque
evitar ataques cibernéticos e preservar argentina defendia que só se coletasse ma- permite avanços em três pontas: na pos-
a confidencialidade das informações terial genético das ossadas que estritamen- sibilidade futura de identificação de
dos 1 049 indivíduos analisados. Ela te correspondessem às características dos mais vítimas, nos consequentes traba-
trabalha ao lado da cientista social Ali- desaparecidos. Os peruanos bateram o pé lhos de reparação e no desenvolvimento
ne Feitoza de Oliveira, a pesquisadora para que todos os esqueletos fossem anali- de outros projetos da Unifesp, sobretudo
mais antiga do Caaf, que participou sados. “Não pode existir um morto que a respeito da violência policial.
de todas as etapas do processo. A letra de seja melhor que outro”, diz o antropólogo

A
Oliveira está em boa parte das fichas forense José Pablo Baraybar, que liderou a última visita da piauí ao Caaf foi em
físicas com informações sobre os es- equipe peruana à época. meados de junho, poucos dias antes
queletos. A digitalização das fichas fa- Durante dois anos, Baraybar veio a cada do prazo dado ao laboratório para
cilitará um futuro trabalho de busca. duas semanas ao Brasil para participar da desocupar a casa térrea onde funcionava
Quando se abre cada pasta, vê-se pri- elaboração dos protocolos e da formação na Vila Mariana, bairro que abriga ou-
meiramente uma identificação externa da equipe brasileira. Ele explicou à piauí tros órgãos da Unifesp. O imóvel alugado
das ossadas, que é o documento com o que também havia um argumento técni- estava prestes a virar escombros, pois ha-
código que individualiza cada esqueleto. co para insistir na investigação forense de via sido comprado por uma construtora
Depois, há uma ficha com a descrição de todas as ossadas. “Você só sabe realmente que tomou conta do quarteirão. Parte do
quem executou cada etapa e em que lugar. se aquela pessoa que procura não está lá material de trabalho já estava encaixota-
“Se eu quiser saber quem fez a limpeza quando você olha tudo. Não dá para des- da, pronta para ser levada à nova sede,
desse osso, eu consigo descobrir por essa cartar nem um ossinho solto.” Antes de vir que demorou a ser encontrada. A própria
ficha”, diz Oliveira. Outra ficha refere-se para cá, o especialista passou por Ruan- construtora participou da busca por um
a um momento anterior, o da abertura da da para buscar vítimas do genocídio de local adequado, com espaço para abrigar
caixa, descrevendo, por exemplo, quem 800 mil pessoas em 1994, atuou nos Bál- as 1 049 caixas com as ossadas e toda a
fotografou
Acesse nosso os ossos e que outros
Canal materiais cãs depois
no Telegram: dos massacres da década de 1990 estrutura do laboratório.
t.me/BRASILREVISTAS
estavam na caixa, como próteses. e investigou com a ONU os desaparecidos Teles explicou que as casas encontra-
Oliveira já estava no Caaf no dia em no conflito no Kosovo, entre 1998 e 1999. das demandavam reformas significativas
que as caixas chegaram do ossário do Atualmente, Baraybar trabalha em Pa- e não havia tempo hábil nem dinheiro
Cemitério do Araçá. Especializada em ris na procura por imigrantes desapareci- para os ajustes. “Escolhemos uma da pró-
arqueologia e antropologia forenses, ela dos – como membro da Cruz Vermelha, pria Unifesp para não termos que pagar
conhece muito bem a história do labo- organização que participou dos diálogos o aluguel e podermos dedicar mais re-
ratório e tem lembranças vívidas das que levaram à criação do Caaf. “Desapa- cursos à adequação do imóvel.” A estru-
primeiras informações que começaram recimento é um eufemismo babaca que tura da nova casa, também na Vila
a contar a história da Vala de Perus. usamos nos contextos de guerra e confli- Mariana, precisava de uma rede elétrica
Certos objetos catalogados juntos com tos. Não tem magia, as pessoas não so- capaz de suportar uma sala climatizada
as ossadas indicavam que, antes de se- mem simplesmente”, afirma Baraybar. em tempo integral para a preservação dos
rem depositadas na vala clandestina, “Os registros históricos apontam o cami- remanescentes ósseos e uma geladeira
elas haviam estado em covas individuais nho. Se alguém foi visto pela última vez com temperaturas menores que 8ºC para
de Perus, mas foram exumadas sem au- levado em um caminhão do Exército, preservar as amostras de sangue recolhi-
torização da família. “Lembro que acha- todo machucado, sabemos o que aconte- das dos familiares de desaparecidos.
mos um terço, o que sugere que aquela ceu, não foi um desaparecimento.” A mudança foi mais uma prova de re-
pessoa foi velada”, relembra Oliveira. O amparo de documentos históricos sistência para o Caaf, cuja viabilidade vem
Outro registro relevante na documen- ao trabalho de antropologia forense é um sendo submetida a um duro teste desde a
tação é o método usado em cada caso desafio no Brasil. Pouco comprometido eleição de Jair Bolsonaro. Os novos repre-
para reconstituir características biológi- com o tema do direito à memória e à ver- sentantes do governo federal na gestão do
cas. O manual de antropologia forense dade, o país avançou aos tropeços na projeto assumiram uma postura hostil ao
usado pela equipe, com 107 páginas, re- abertura de espaços oficiais de reconhe- trabalho feito pelo laboratório. “Acusaram
sume as técnicas utilizadas na análise das cimento da violência de Estado durante a Unifesp de falta de ética e de fazer uso
ossadas. Para que uma pessoa seja classifi- as ditaduras e depois. No caso de Perus, político da pesquisa”, conta Teles.
cada como homem ou mulher, o manual duas comissões tiveram papel documen- Os conflitos culminaram com a pro-
apresenta três técnicas possíveis: uma tal importante. A Comissão Nacional da posta, em outubro de 2019, de transferir as
baseada no estudo da pelve, outra a partir Verdade, que atuou entre 2011 e 2014, e ossadas do Caaf para Brasília. Elas fica-
da análise do crânio, e a última, do fêmur. a Comissão Parlamentar de Inquérito riam em um laboratório na perícia da Po-
Para um resultado preciso, deve-se com- (CPI) da Câmara Municipal de São Paulo lícia Civil do Distrito Federal. As famílias
binar a observação visual com cálculos sobre a vala clandestina de Perus, cujo dos desaparecidos se opuseram com vee-
matemáticos. Tabelas relacionam tama- relatório final foi divulgado em 2009. mência à ideia, assim como a comunidade
nho de ossos, gênero e idade presumida. A arqueóloga Márcia Hattori, que de Perus. As manifestações dessas duas
O manual leva a assinatura da Equipe atuou no projeto no início, está de volta à partes acabaram na Justiça, que concor-
Peruana de Antropologia Forense (Epaf), equipe do Caaf como consultora. No pe- dou com a permanência das ossadas no
uma das colaboradoras internacionais ríodo em que esteve fora, trabalhou na Caaf. As caixas ficaram em São Paulo, mas
que prestaram consultoria na criação do investigação arqueológica de grupos per- a confusão atrasou contratações e inter-
Caaf. Como não havia nas universidades seguidos pela polícia política salazarista, rompeu a fluidez da pesquisa. Editais dei-

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xaram de ser abertos no período, enquanto rio e a capela ecumênica ficam à esquer- te possa refletir e tudo isso não se repita.
chegavam ao fim os que estavam em vigor da do portão de entrada. Bem em frente, Apesar de que aqui, em Perus, sempre
e garantiam a ocupação das funções. Por estão as covas rasas: montinhos de terra se repete. Aqui, a todo momento, tem
um período não previsto no cronograma lado a lado, identificados por lápides sim- violação, é um lugar abandonado pelo
de trabalho, a equipe ficou reduzida. ples e cobertos por flores e homenagens. poder público”, diz. “Por que os museus
Dinheiro é outro argumento usado Durante a pandemia, os coveiros ali e a memória têm que ficar no centro,
pelo governo Bolsonaro para criticar a trabalharam intensamente. Perus foi não podem ficar na periferia? A gente
iniciativa, tida como cara demais. A ma- um dos distritos paulistanos que mais traz pra cá e evita o apagamento.”
nutenção básica dos trabalhos do Caaf registraram mortes pelo coronavírus. O passeio terminou na Lanchonete e
no projeto Perus custa 600 mil reais por Dados recolhidos pela Rede Nossa São Floricultura Pires, cujo dono, Antonio Pi-
ano. O financiamento vem, por decisão Paulo mostram que, no primeiro semes- res Eustáquio, o Toninho, foi administra-
judicial, de três fontes: do Ministério da tre de 2021, 63,8% dos que precisaram dor do cemitério de 1976 a 1992. “Eu
Educação, do Ministério da Mulher, de cuidados intensivos na região morre- comprei de um cara que tinha um barzi-
da Família e dos Direitos Humanos e da ram. Foi o segundo pior índice de toda nho. Quando descobriram a vala, tudo
Unifesp. Logo após a mudança de go- a capital paulista no período, atrás ape- parou, o cemitério fechou, não tinha mais
verno, os repasses da União começaram nas de Cidade Tiradentes, periferia que enterro, aí ele vendeu”, conta Eustáquio.
a falhar. Depois de uma cobrança do fica no extremo oposto. Desde o início da década de 1970, fa-
Caaf, o fluxo foi retomado. Mas desde o Em uma manhã cinzenta de abril, um mílias de desaparecidos desconfiavam
ano passado a pasta dos Direitos Huma- grupo de alunos do ensino médio de uma que os agentes da ditadura levavam mili-
nos deixou de fazer o pagamento. escola particular da Zona Sul de São Pau- tantes mortos pela repressão para serem
O terço de responsabilidade desse mi- lo percorreu 35 km para chegar ao cemité- enterrados em Perus. Eustáquio diz que
nistério tem sido coberto com malabaris- rio. A visita tinha como objetivo conhecer nessa época começou a desconfiar que re-
mos que incluem pedidos de emendas o monumento erguido no local onde foi messas noturnas de corpos estavam che-
parlamentares a congressistas engajados encontrada a vala clandestina de Perus. gando clandestinamente ao cemitério.
no tema do direito à memória. Em nota O monumento, com as cores desbota- Designou dois funcionários de confiança
enviada à piauí, o Ministério da Mulher, das, está rodeado por mato alto, que co- para se alternarem no trabalho feito de
da Família e dos Direitos Humanos ale- bre parte de uma inscrição que diz, em madrugada e recomendou que checas-
gou que o dinheiro não foi enviado por- letras brancas sobre o concreto vermelho: sem os livros de registro sempre que al-
que o Caaf não cumpriu obrigações na Aqui, os ditadores tentaram esconder guém fosse enterrado ou exumado.
prestação de contas. O centro de pesquisa, os desaparecidos políticos, as vítimas da Passou a detectar discrepâncias e aumen-
por sua vez, diz que só em maio deste ano fome, da violência do Estado policial, dos tou a atenção. “Os dois funcionários esta-
conseguiu resposta do ministério sobre esquadrões da morte e, sobretudo, os direi- vam morrendo de medo, diziam que
quais informações estavam faltando; an- tos dos cidadãos pobres da cidade de São alguém ia matá-los. ‘Mata nada’, eu falei.”
tes, estavam no escuro. O ministério enfa- Paulo. Fica registrado que os crimes con- Eustáquio também ficou de olho na
tizou que a pesquisa é feita no Caaf e não tra a liberdade serão sempre descobertos. quantidade de exumações e na falta de
pelo Caaf, destacando o papel do governo. Os estudantes se aglomeraram diante detalhamento sobre o destino dos exu-
da obra de
“Quem realiza o trabalho é a União e nãoAcesse autoriaCanal
nosso do arquiteto
no Ricardo mados
Telegram: no livro de registros. Nas quadras
t.me/BRASILREVISTAS
o Caaf. A União custeia todo o trabalho, Ohtake. O guia do passeio, Cleiton Fer- 1 e 2 do cemitério, os corpos tinham
mantém os peritos, paga todos os custos, reira de Souza, um homem negro de desaparecido. A lei municipal garantia
lembrando que o Caaf é da União e, cabelos longos com dreadlocks e barba que exumações pudessem ser feitas para
como a Unifesp, recebe verbas federais.” escura, começou a explicar o que se via abrir espaço para novos sepultamentos,
Não é bem assim. O Caaf tem hoje ali. Os alunos logo interromperam o iní- mas nos cemitérios de covas rasas, como
duas peritas fixas pagas exclusivamente cio da explicação para perguntar sobre o de Perus, o mais comum era enterrar
pela Unifesp, e para alguns trabalhos as covas rasas. “Nunca tinha visto isso”, as ossadas não reclamadas por famílias
abre editais financiados por emendas se espantou um deles. Depois ouviram, no mesmo lugar e mais fundo. Não fa-
parlamentares conseguidas pela univer- atentos, a fala eloquente de Souza. zia sentido que esse procedimento usual
sidade. Desde o primeiro semestre de Ele contou que o cemitério foi inau- não estivesse sendo adotado.
2020, o ministério não contrata qualquer gurado em 1971 pelo prefeito Paulo Ma- Ligando os pontos, o administrador
profissional para o centro de pesquisas. luf. Na época, o local era afastado de deduziu que uma retroescavadeira foi
Além disso, os cortes do governo federal tudo, sem vizinhos e recebia os corpos usada para deslocar vários corpos de uma
no orçamento das universidades públi- de pessoas consideradas indigentes. Ma- vez. Ele procurou o operador da máqui-
cas têm feito com que o repasse da Uni- luf queria que o local tivesse um forno na, que revelou a área onde havia sido
fesp ao projeto também saia espremido. crematório, mas sem sala de velório. Uma aberta uma cova comum para muitos
Cada impasse é levado ao Gabinete de empresa estrangeira especializada che- corpos, mas que já estava coberta. O ter-
Conciliação, em São Paulo, o que torna gou a ser contatada, mas declinou do ne- reno não tinha mais marcas que indicas-
as definições demoradas. A próxima deci- gócio diante das condições suspeitas da sem com precisão o perímetro da vala.
são a ser tomada é sobre o futuro das os- proposta, em um contexto de violenta “Todo dia eu pegava um pedaço de ferro
sadas. Uma vez que seja finalizada toda a repressão no Brasil. “Isso não tá nos li- comprido e caminhava por lá. Ia fincan-
documentação, os familiares, os morado- vros didáticos, né?”, brincou Souza. do o ferro no chão para ver se afundava.
res de Perus e a equipe do projeto preci- A visita guiada pelo Cemitério Dom Demorou, mas um dia o ferro afundou,
sam definir onde elas devem finalmente Bosco é um dos percursos turísticos ofe- entrou facinho na terra”, diz Eustáquio.
repousar com dignidade. Uma possibili- recidos pela Comunidade Cultural “As valas clandestinas são a cara do
dade aventada com força é devolvê-las ao Quilombaque, organização sem fins Brasil, você não vê no noticiário? Essa
lugar de onde saíram: o Cemitério Dom lucrativos que propõe ações para a pre- aqui ficou famosa porque tinha gente
Bosco. Dessa vez, porém, não seriam jo- servação da memória das periferias, da branca e rica enterrada”, interrompe
gadas numa cova rasa. Seriam guardadas qual Souza é um dos fundadores. Ele Souza, referindo-se aos presos políticos.
em um memorial. Para lembrar a brutali- comemora que hoje jovens de famílias O guia criou um caminho de mão dupla:
dade do Estado durante a ditadura. ricas atravessem a cidade para conhecer além de trazer visitantes de outros bairros
essa história e diz que as visitas são im- (e até de outras cidades) ao cemitério,

O
cemitério municipal de Perus fica portantes para o bairro. leva moradores de Perus para acompa-
em uma ladeira movimentada. Souza é um dos defensores da cria- nhar a identificação das ossadas no Caaf.
A cada par de minutos, o silêncio do ção de um memorial no cemitério de “Temos que politizar nossa comunidade.
local é interrompido pelo ruído nervoso Perus para receber as ossadas ao fim da São nossos corpos que estão aqui nesse
dos ônibus e caminhões. As salas de veló- pesquisa. “É um espaço para que a gen- cemitério até hoje. E vão continuar.” J

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anais do crime

O PAÍS DAS FALSIFICAÇÕES


O Brasil ainda engatinha na captura de obras de arte fraudadas

ALLAN DE ABREU

Q
uando o marchand e antiquário do vende a peso de ouro são falsificações, Casado diz que vende muitas telas de ria enviada à piauí. Cunha não revela o
Clever Roberto Casado desliza entre eles o de Portinari. “O retratado José
Acesse nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS Antônio da Silva, pintor e lavrador valor pago pelas telas. Sant’Anna defende
uma falsa parede de sua loja em nem tem a aparência do artista”, diz Noé- que viveu por décadas em São José do Rio a autenticidade das obras. “São autênticas
Bálsamo, no interior de São lia Coutinho, organizadora do acervo do Preto, onde há um museu de arte primi- e muito boas”, diz. Procurado pela repor-
Paulo, o visitante logo depara Projeto Portinari, ao ver uma foto do qua- tivista com parte de sua obra (a crítica tagem, Casado não se manifestou.
com um autorretrato de Candido Portina- dro obtida pela piauí. O Manacá de Tar- tem preferido se referir a esse estilo como

N
ri em tons frios, entre o cinza e o azul, sila também é uma cópia grosseira: o “arte espontânea”, por julgar a expressão o manual do falsificador de telas,
datado de 1939. “Havia outras obras dele número de caules na parte inferior da tela menos preconceituosa). No fim de 2021, a primeira regra é fraudar a obra
nessa parede, mas foram todas vendidas”, é muito menor do que no quadro origi- Casado negociou trinta quadros de Silva de artistas já mortos, que não po-
diz Casado. Em outra parte do Espaço nal, e as formas circulares azuladas ao fundo com o empresário e prefeito de Olímpia, derão atestar a autenticidade da nova
Clever Casado, à direita, estão três qua- foram pintadas de uma maneira incom- Fernando Augusto Cunha, por valor não pintura. A segunda é, naturalmente, es-
dros de Tarsila do Amaral, incluindo a patível com o estilo da artista. A verdadeira revelado. Dessas obras, 25 foram cedidas colher artistas valorizados pelo merca-
famosa tela Manacá, de 1927. Seguindo Manacá está em outro lugar, bem guarda- para uma exposição em um centro cultu- do. Se a obra do artista escolhido for
por um corredor à esquerda, chega-se a da por um colecionador paulistano. ral de Olímpia, ocorrida entre fevereiro e irregular, com fases boas e outras nem
um cômodo inteiramente dedicado a José No caso de José Antônio da Silva maio deste ano. Para o crítico Tavares de tanto, melhor ainda, pois isso pode jus-
Antônio da Silva, um dos maiores pintores (1909-96), algumas telas vendidas por Araújo, as 25 telas também não são au- tificar eventuais imperfeições da falsifi-
primitivistas do Brasil, com 56 quadros. Casado reúnem, sem nenhum critério, tênticas. “Os quadros em que aparecem cação. A quarta e última regra é apostar
Em toda a loja há cerca de duzentas características e temas extraídos das figuras humanas, em especial os rostos, na bagunça, optando por um artista
telas de pintores brasileiros renomados. obras autênticas, avalia o crítico de arte são, até tecnicamente, péssimas falsifica- cujos trabalhos ainda não tenham sido
Roberto Casado, um homem alto de 57 Olívio Tavares de Araújo, especialista na ções. Tentam ser mais realistas do que o organizados em um raisonné – o catálo-
anos, cabelos grisalhos curtos e olhos miú- obra do pintor, ao analisar as fotos dos Silva era capaz de fazer”, diz. “Em vários go completo e minucioso de todas as
dos, tem os valores na ponta da língua: quadros. Um deles exibe até mesmo quadros é possível reconhecer e identifi- suas obras, com reproduções e referên-
os quadros de Silva variam entre 5 mil e uma arara-vermelha que Silva, segundo car de que trabalho original foram tira- cias documentais sobre cada uma delas.
20 mil reais; os de Tarsila, entre 150 mil o crítico, “jamais conseguiria desenhar”. dos certos detalhes. E há umas duas ou Nesse último ponto, o Brasil abre um
e 850 mil; e o autorretrato de Portinari, A galeria de Casado, farmacêutico três quase cópias.” A opinião foi compar- vistoso leque de possibilidades para o fal-
joia da coroa, custa 1,5 milhão de reais. de formação, é uma das atrações do tilhada por outros dois especialistas na sário, já que apenas sete artistas do país
Ele não permite que as telas sejam foto- complexo turístico criado por ele em obra do pintor ouvidos pela piauí, que possuem seu catálogo raisonné: Portinari
grafadas nem as exibe na internet, como 1999, em uma chácara de sua família, preferiram o anonimato para não se in- (1903-62), Tarsila (1886-1973), Alfredo
fazem as galerias com seus artistas. Curio- às margens da Rodovia Euclides da dispor com Cunha, dono dos quadros. Volpi (1896-1988), Eliseu Visconti (1866-
samente, também não se preocupa com a Cunha (SP-320), que vai de São José do A assessoria do prefeito de Olímpia 1944), José Leonilson (1957-93), Inimá
segurança das obras (há apenas uma câ- Rio Preto, cidade vizinha a Bálsamo, diz ter contratado o escritor e jornalista de Paula (1918-99) e Vik Muniz (1961-).
mera de vídeo vigiando a entrada da loja) até a divisa de São Paulo com Mato Gros- Romildo Sant’Anna, que estudou a obra A obra de Silva, por exemplo, estimada
nem com a correta climatização exigida so do Sul. Em 48 mil m2, ele construiu, de Silva, para avalizar a autenticidade das em 4,5 mil quadros, ainda não foi catalo-
para preservá-las (o local é abafado e qua- em estilo rústico, um antiquário reple- telas vendidas por Casado. “Caso seja ofi- gada, o que estimulou a proliferação de
se todas as paredes exibem sinais de infil- to de móveis de época e lustres antigos, cialmente comprovada a falsidade dos falsificações nos últimos anos, segundo
trações). Por que ele mantém obras tão uma galeria de arte e um restaurante. quadros, o prefeito irá tomar todas as me- marchands de São Paulo ouvidos pela
valiosas em situação tão precária? A maioria das pessoas que visita o local didas jurídicas cabíveis, no sentido de piauí. Além disso, o próprio estilo primi-
A falta de zelo tem uma explicação é dos estados de São Paulo, Minas Ge- solicitar o ressarcimento e as devidas pu- tivista desse pintor ajuda o falsário, uma
simples: boa parte dos quadros que Casa- rais e Mato Grosso do Sul. nições para o caso”, diz a nota da assesso- vez que há algo de imprevisível em suas

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MENINA RISONHA_C.1925 (IMITADOR ANÔNIMO)_GL ARCHIVE_ALAMY_FOTOARENA


Falso Vermeer: Menina risonha, pintada por Han van Meegeren ou Theo van Wijngaarden

telas, como os movimentos das pincela- for legítima, uma comissão do projeto Magalhães Gouvêa, ex-diretor do museu, nos do tema, há quatro tipos de falsifica-
emite umnosso
das, que não seguem os padrões de artis-Acesse certificado de autenticidade
Canal no Telegram: a criar uma comissão técnica para ção. O primeiro é o “palimpsesto”, em
em chegout.me/BRASILREVISTAS
tas com formação acadêmica. “Tenho papel-moeda, em via única. avaliar e devolver quadros falsos doados referência aos papiros ou pergaminhos usa-
visto muitos quadros atribuídos ao Silva, Em 43 anos de existência, o Projeto por marchands e membros da elite paulis- dos na Antiguidade que tinham o texto
mas de origem duvidosa”, diz o empresá- Portinari já detectou 760 obras falsas do tana, nos anos 1960. Queria evitar cons- original raspado para serem reaproveitados
rio Orandi Momesso, um dos maiores pintor nascido em Brodowski, no interior trangimentos como o que ocorreu quando com outro texto. Nesse caso, o fraudador
colecionadores de arte do país. Em mar- paulista. O caso mais rumoroso ocorreu ele teve de devolver a Annie Penteado, trabalha sobre uma pintura autêntica de
ço último, ele lançou um livro sobre o em 1995, quando João Portinari encon- viúva do empresário e mecenas Armando um artista menos valorizado para trans-
artista, com a reprodução das setenta te- trou mais de trezentas telas falsamente Álvares Penteado, uma tela falsa do pintor formá-la na obra de alguém mais cobiça-
las do seu acervo pessoal. “Ele tem a be- atribuídas a seu pai e a outros artistas italiano Amedeo Modigliani (1884-1920), do no mercado, mas de estilo semelhante.
leza do gênio”, define Momesso. famosos na loja do galerista, restaurador doada por ela ao Masp. O segundo tipo é a cópia de uma
Na tentativa de reduzir as falsifica- e pintor italiano Giuseppe Irlandini, em Gouvêa, que recentemente teve pu- obra autêntica, especialidade do falsá-
ções, Graciete Borges, viúva de Silva, Ipanema, no Rio de Janeiro. A Polícia blicada sua biografia, escrita por Rogério rio britânico John Myatt. Até ser preso
tem se articulado com marchands e co- Civil descobriu que os quadros eram fal- Godinho, teria novo embaraço no fim em Londres pela Scotland Yard, em
lecionadores para criar um instituto que sificados em um ateliê improvisado na da década de 1970, quando foi convida- 1995, aos 50 anos, Myatt forjou mais de
zele pelos trabalhos do marido e conse- favela do Vidigal, próxima de Ipanema. do pelo então governador Paulo Egydio duzentos quadros de impressionistas,
guir elaborar um catálogo raisonné. Irlandini morreu dois anos depois sem para cuidar do acervo de quadros do Pa- cubistas e surrealistas, incluindo pasti-
“Enquanto isso não ocorrer, as fraudes receber nenhuma punição. Duas déca- lácio dos Bandeirantes, sede do executi- ches do artista suíço Alberto Giacomet-
só irão aumentar. Até a impressão digital das antes, outro famoso galerista de São vo paulista. Constatou dezenas de obras ti (1901-66), sua grande expertise.
que o Silva às vezes colocava no verso Paulo, José Paulo Domingues da Silva, falsas, incluindo La Madonna della Seg- Algumas vezes, é o próprio artista que
dos quadros já foi falsificada”, diz ela. faria uma pequena fortuna vendendo giola, do artista italiano Rafael Sanzio replica suas pinturas, como fez Almeida
Todo responsável pelo legado de um telas falsas de Portinari. Só depois da sua (1483-1520). “Todo mundo sabe que o Júnior (1850-99). Nesse caso, não se con-
grande pintor brasileiro busca inspira- morte, em 1973, a polícia descobriu que original está na Galeria Uffizi, na Itália, sidera falsificação, mas cópia (ou versão)
ção no Projeto Portinari, iniciativa pio- Domingues da Silva, na verdade, era Pao- e é um tondo [quadro redondo]. O daqui da obra feita pela segunda vez pelo mesmo
neira no país, criada em 1979 pelo filho lo Businco, um conhecido estelionatário era retangular”, disse à Veja São Paulo. artista que criou a tela original. “Leonardo
do artista, o matemático João Candido italiano procurado pela Interpol. Mesmo a certificação de um quadro da Vinci, por exemplo, fez uma versão
Portinari. Em 2004, o projeto publicou Em alguns casos, como o do pintor por institutos ligados a um artista não é de sua famosa Mona Lisa”, cita Douglas
o que até hoje é considerado o mais bem impressionista ítalo-brasileiro Eliseu uma solução pacífica. Em 2017, o empre- Quintale, especialista em perícia e ava-
feito e completo raisonné de um pintor Visconti, as falsificações suplantam as sário Abilio Diniz processou uma galeria liação de obras de arte.
brasileiro, com 5,4 mil obras. “O catálo- obras autênticas. Desde 2008, uma co- de arte paulistana, alegando serem falsos O terceiro tipo é o pastiche, ou seja,
go é a melhor arma que temos contra a missão encabeçada pelo neto do artista, dois quadros de Volpi adquiridos por ele uma obra semelhante à de um autor fa-
indústria da falsificação”, diz João Porti- Tobias Visconti, já analisou cerca de mil e sua mulher. Foi o início de uma dispu- moso, em que o farsante modifica apenas
nari. Qualquer trabalho do artista com telas e constatou que metade era falsa – ta também com o Instituto Volpi, forma- alguns detalhes da tela original (como a
indícios de originalidade que ainda não apenas 30% eram autênticas e 20% se- do por galeristas e colecionadores de São falsa Manacá de Tarsila, na galeria de Ca-
tenha sido catalogado passa por uma guem sendo analisadas. “Já encontrei telas Paulo, e a filha do pintor, Eugênia, que sado) ou combina dois ou mais elementos
rigorosa análise com uso de inteligência falsas do Eliseu até em museus”, diz To- haviam atestado a autenticidade das te- característicos de um artista em uma mes-
artificial para comparar o movimento bias Visconti, sem revelar os locais. las. O caso ainda não foi julgado. ma obra (como bois, campos arados e ca-
habitual das pinceladas de Portinari Nem o Museu de Arte de São Paulo De acordo com Sheldon Keck, um sinhas rurais em um único quadro
com os do quadro analisado. Se a obra (Masp) escapou do problema. Renato dos principais estudiosos norte-america- atribuído a Silva, na mesma galeria).

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Franco foi o único a dar lance nas sim, não é incomum que a tela falsa apre-
obras. Ele também levou uma tela de Ibe- endida seja devolvida ao seu dono, se ele
rê Camargo (1914-94) por 4,9 mil reais provar que não teve má-fé na compra.
(cujos quadros custam entre 500 mil e Um dos quadros do Espaço Clever Casa-
3 milhões de reais) e duas de Ismael Nery do, no interior paulista, já foi classificado
(1900-34) pela pechincha de 570 reais e como falso pela empresa de Tarsilinha do
900 reais, valor muitíssimo abaixo do co- Amaral, sobrinha-neta da pintora e res-
brado pelas pinturas desse artista paraense ponsável pelo catálogo raisonné da artista,
(entre 30 mil e 25 milhões de reais). Por com 2,2 mil obras catalogadas. Devolvido
míseros 16 mil reais, o engenheiro arrema- ao dono, permanece em circulação.
tou quatro quadros de Ivan Serpa, dois de Um projeto de lei de 2001 do então se-
Ismael Nery e um de Iberê Camargo. nador Edison Lobão (na época no PFL-MA,
Colecionador tarimbado, Franco resol- hoje no MDB) pretendia tipificar o crime
veu arriscar. Contatou por telefone o res- de falsificação de obra de arte visual com
ponsável pelo leilão e sócio da Versalhes, pena entre dois e seis anos de prisão e dar
Evânio Alves Pereira, antes de depositar aos institutos particulares ligados aos artis-
o dinheiro na conta de José Anderson da tas o poder de fiscalizar o setor, mediante
Silva, o outro sócio da casa. Pereira garan- autorização do Ministério da Cultura.
tiu ao comprador que as obras eram A iniciativa, porém, foi considerada in-
autênticas, embora não tivesse nenhum constitucional pelo Congresso, já que o
ANDRÍCIO DE SOUZA_2022

certificado que atestasse isso. Franco foi Legislativo não tem poder de criar atribui-
então à sede do leilão, no bairro da Urca, ções ao Executivo. Em 2020, o deputado
no Rio, para ver pessoalmente as telas re- federal Felício Laterça (PP-RJ) propôs novo
cém-adquiridas. Foi informado, entretan- projeto para que a assinatura falsa em obra
to, que elas estavam em um apartamento de arte seja considerada um crime contra
de Copacabana. Somente quatro dias mais o patrimônio cultural brasileiro, com pena
tarde, depois de muita insistência, ele con- entre um e três anos de prisão. Dessa ma-
O último e mais difícil tipo de falsifi- uma organização sem fins lucrativos que seguiu ter acesso aos quadros. Levou consi- neira, a investigação sairia da Polícia Civil
cação é a criação de uma obra original, analisa a autenticidade de obras de arte. go o amigo Heraldo Serpa, filho de Ivan nos estados e passaria para a Polícia Fede-
que imita o estilo de um artista célebre “Havia a necessidade de uma organização Serpa, que constatou serem falsas as telas ral, que possui mais estrutura para lidar
e é a ele atribuída. É uma tarefa para separada do mercado que pudesse forne- atribuídas ao seu pai (posteriormente, a com esse tipo de delito. “É uma lei melhor
fraudadores altamente capacitados em cer estudos e opiniões objetivas sobre a Fundação Iberê, que cuida da obra de Ibe- do que a atual, mas ainda muito tímida,
termos artísticos, como foi o húngaro autenticidade das obras”, diz Sharon Fles- rê Camargo, também confirmou a falsida- em comparação com o projeto do Lobão”,
Elmyr de Hory (1906-76), tido como um cher, diretora executiva da Ifar. Em 2017, de da obra vendida pelo leiloeiro). diz a advogada Maria Edina Portinari,
dos maiores falsificadores de quadros da a fundação desvendou, na Costa Leste dos Franco acionou a Polícia Civil, que especializada em propriedade intelectual.
história e que viveu no Rio de Janeiro na Estados Unidos, um esquema de falsifica- prendeu os dois sócios em flagrante por Atualmente há dez peritos especialis-
década de 1940, por um curto período. ção de telas do pintor norte-americano
Acesse nosso Canal no Telegram: estelionato e violação de direito autoral
t.me/BRASILREVISTAS em obras de arte na Polícia Federal
tas
Antes de Hory, o holandês Han van Jackson Pollock (1912-56). (eles foram soltos poucos dias depois). em todo o país. Um número baixo, mas
Meegeren (1889-1947) fez fortuna com Estados Unidos, China e Reino Unido Além dos sete quadros adquiridos pelo en- superior ao das polícias civis do Rio de
obras como a Ceia em Emaús, atribuí- concentram, juntos, 80% do mercado de genheiro, os policiais apreenderam deze- Janeiro e de São Paulo, estados que con-
da por ele ao seu conterrâneo Johannes arte. No Brasil, não há números confiáveis nove telas no apartamento em Copacabana centram 80% do mercado de arte do
Vermeer (1632-75) e feita com tamanha sobre o faturamento do setor, que, apesar e na sede do leilão, na Urca. A dupla res- Brasil, segundo a Associação Brasileira
perfeição que, em 1937, enganou a Rem- da pandemia, se desenvolveu bastante nos ponde ao inquérito em liberdade. A defesa de Arte Contemporânea (Abact). Na Po-
brandt Society – a entidade comprou o últimos anos, de acordo com galeristas e nega que Pereira e Silva sejam estelionatá- lícia Civil fluminense, há apenas quatro
quadro e doou ao museu Boijmans Van colecionadores ouvidos pela piauí. Parte rios. “São pessoas dignas, que nunca ha- peritos especializados no assunto; em
Beuningen, em Roterdã. Calcula-se que desse crescimento se deve à proliferação viam sido presas antes. Estou certo de que São Paulo, nenhum.
Meegeren embolsou mais de 30 milhões dos leilões virtuais. São ao menos vinte serão absolvidos”, diz o advogado Cleyton Em 2021, a Polícia Federal iniciou o
de dólares com seus quadros falsos e che- sites do ramo atualmente, que promovem Caetano de Lima. O site Versalhes Leilões projeto batizado de Goia (Guarda, Obser-
gou a trapacear o líder nazista Hermann uma média de dez leilões por semana. Se continua ativo, oferecendo obras de arte e vação, Investigação e Análise de Bens
Goering, vendendo a ele outro falso Ver- os sites de venda online facilitaram o aces- antiguidades. Evânio Alves Pereira segue Culturais e Obras de Arte) com o objetivo
meer. Preso logo após a Segunda Guerra so às artes, também expandiram as pos- sendo o leiloeiro responsável. de capacitar setenta novos peritos para a
Mundial, Meegeren foi acusado de traição sibilidades de golpes. “Os leilões virtuais análise de obras de arte e bens culturais,

N
por negociar com nazistas e teve de con- catapultaram o mercado de obras de arte a falta de uma legislação específi- inclusive sítios arqueológicos. A proposta
fessar a falsificação da tela para escapar da falsas no Brasil”, afirma o advogado cri- ca no Brasil, a falsificação de obras também prevê a criação de uma rede for-
pena de morte. Morreu de infarto antes de minalista Luís Guilherme Vieira, con- de arte normalmente é enquadra- mada pela PF, por universidades e museus
cumprir a sentença de um ano de reclusão. sultor do Projeto Portinari. “Infelizmente da seja como estelionato, seja como vio- de todo o país para a troca de informações
Outro expoente do ramo foi o inglês não há fiscalização sobre esse mercado.” lação de direito autoral, crimes previstos e a guarda de obras de arte apreendidas,
Eric Hebborn (1934-1996) – notório falsá- A piauí procurou a Associação da Leiloa- no Código Penal, com penas entre um e seguindo modelo adotado há sessenta
rio de desenhos de velhos mestres como ria Oficial do Brasil (Aleibras), que não se cinco anos, no primeiro caso, e três me- anos pela polícia italiana, considerado o
Van Dyck (1599-1641), Rubens (1577-1640) manifestou a respeito. ses e um ano de prisão, no segundo. Os mais eficiente do mundo. “A apreensão
e Jan Brueghel, o Velho (1568-1625) –, marchands, galeristas e leiloeiros que de muitas obras de arte pela Operação

N
que compartilhou seu conhecimento cri- a madrugada de 28 de fevereiro negociam obras falsas estão mais expos- Lava Jato nos fez atentar para os diversos
minoso na obra The Art Forger’s Hand- de 2021, o engenheiro carioca tos ao risco do flagrante, como no caso crimes envolvendo esse meio, e dessas
book (O manual do falsário). Em 1996, Nelson de Franco recebeu e-mail do leiloeiro da Urca. Punir o pintor far- discussões internas nasceu o projeto.
aos 61 anos, Hebborn teve o crânio esma- com uma oferta tentadora do site Versa- sante é muito mais difícil. Para isso, é Hoje a proteção do patrimônio cultural
gado numa rua de Roma. A autoria do lhes Leilões, do Rio de Janeiro: uma preciso comprovar tanto a má-fé quanto brasileiro, incluindo obras de arte, é mui-
crime nunca foi desvendada, mas especu- das telas da famosa Série Amazônica, do o intuito comercial da fraude – pois o to deficiente, e isso passa pela carência de
la-se que tenha sido obra da máfia, para a artista carioca Ivan Serpa (1923-73), es- falsificador pode alegar que estava ape- mão de obra especializada”, diz o perito
qual ele vinha fornecendo suas telas falsas. tava sendo oferecida por uma pechin- nas exercitando os seus dons artísticos. da PF Marcus Vinicius de Oliveira Andra-
Sucessivos escândalos de fraudes no cha – 3 mil reais. O valor de mercado Outra falha legal apontada por galeris- de, um dos coordenadores do Goia.
mercado de arte norte-americano fizeram de cada tela dessa série costuma girar tas e entidades do setor é que, mesmo que Para driblar a falta de peritos nas polí-
com que, em 1969, fosse criada a Funda- em torno de 200 mil reais. No mesmo se comprove a falsidade de uma obra, ela cias (e em um ensaio do que pretende
ção Internacional para a Pesquisa de Arte leilão, outros três trabalhos de Serpa não pode ser destruída, ao contrário do com o projeto Goia), os delegados da PF
(Ifar, na sigla em inglês), em Nova York, tinham lance mínimo de 3 mil reais. que ocorre na França, por exemplo. As- costumam recorrer a laboratórios de uni-

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versidades especializados na análise de lho, importado, custou 1,1 milhão de dó-


obras de arte. Existem quinze espalhados lares e é o único da América Latina.
pelo país. O pioneiro, criado em 1980, é Toda essa estrutura de análise das obras
o Laboratório de Ciência da Conservação de arte do IFRJ é portátil. Viajando em uma
(Lacicor) da Universidade Federal de Mi- van, os instrumentos já estiveram em mu-
nas Gerais (UFMG), em Belo Horizonte. seus de várias cidades do Brasil. “Dessa
Por ano, o laboratório analisa entre cinco forma, a obra não precisa deixar o museu,
e seis telas. E, além da demanda forense, evitando o risco de danos durante o trans-
também é procurado por galeristas e co- porte”, diz Félix. Foi a perícia do instituto
lecionadores (quando a análise não é para que constatou que as 26 telas apreendidas
instituição pública, cobra 30 mil reais por com o leiloeiro da Urca eram falsas.
estudo). “Muitos nos procuram com o Toda essa parafernália, entretanto,
objetivo de ‘esquentar’ uma obra que já pode ser insuficiente para atestar a autoria
sabem ser falsa com o simples fato de es- de uma obra de arte em casos muito com-
tarmos analisando o quadro”, diz o quími- plexos como o da tela Salvator Mundi, con-
co Luiz Antônio Cruz Souza, coordenador siderada atualmente o quadro mais caro do
do laboratório. Segundo ele, 60% das mundo, vendida em 2017 por 450 milhões

ANDRÍCIO DE SOUZA_2022
obras analisadas pelo Lacicor são falsifica- de dólares. Enquanto o Museu do Louvre
das. Além da expertise dos técnicos e pro- afirma que o quadro é de Leonardo da
fessores, o laboratório reúne um poderoso Vinci (1452-1519), um documentário exibi-
acervo de materiais, como mais de 3 mil do em 2021 na tevê francesa questionou a
amostras de pigmentos, da Pré-História autoria do artista italiano. “Sempre existe
até os dias atuais, usados como base de a esperança de que a ciência vai resolver
comparação na análise das telas. tudo, e não é bem assim. Quando o assun-
Os sete quadros comprados por Nel- to é a autenticidade de uma obra de arte, são
son de Franco e os dezenove apreendidos tantos fatores em jogo que sempre restará
no apartamento de Copacabana foram alguma dúvida”, diz Souza, do Lacicor.
encaminhados para o Instituto Federal 2018, a Polícia Federal apreendeu 39 obras Niemeyer (MON), em Curitiba, onde as

A
de Educação, Ciência e Tecnologia do lém do ganho direto com a venda, de arte no apartamento do doleiro Dario obras apreendidas foram expostas, ao de-
Rio de Janeiro (IFRJ), em Paracambi, no por valores polpudos, de um qua- Messer, no Leblon. Dessas obras, doze parar com um trabalho, não tinha como
interior fluminense, que desde 2021 pos- dro que, sendo falso, a rigor não eram de Di Cavalcanti, amigo do pai de saber se era verdadeiro ou falso.
sui um convênio com a Polícia Civil para vale nada, o comércio de obras de arte Messer. O doleiro foi preso no ano seguin- Em julho último, 84 dos 85 quadros
a análise forense de obras de arte. Sedia- falsificadas também serve para lavar di- te, acusado de comandar um esquema de Márcio Lobão retornaram à casa do
do em um imponente prédio em estilo nheiro de origem ilícita. O dono de uma de lavagem de dinheiro que movimen- empresário no Rio. O juiz Marcus Vi-
vitoriano construído no século XIX para obra falsa, ao vendê-la como se fosse ver- tou 1,6 bilhão de reais em 52 países. Um nicius Reis Bastos, da 12ª Vara Federal
abrigar uma indústria têxtil, o IFRJ come- dadeira (e por valores muito maiores, ano e meio depois, a mesma PF confiscou Criminal de Brasília, aceitou denúncia
portanto),
çou a analisar pinturas há três anos, sem-Acesse “esquenta”
nosso Canalo dinheiro de ou- 118 obras
no Telegram: de arte do apartamento do em- do Ministério Público Federal por su-
t.me/BRASILREVISTAS
pre a pedido das polícias Civil e Federal. tras fontes, normalmente ilícitas. “E, se presário Márcio Lobão, filho do ex-sena- posta lavagem de dinheiro de apenas
O estudo de uma tela ocorre em qua- a falsificação é descoberta, ele ainda diz dor Edison Lobão, aquele que tentou uma das obras apreendidas: o quadro
tro etapas. Na primeira, é feita uma aná- que não sabia da fraude, que é uma víti- criar a lei de combate à falsificação de Amazonino Vermelho, de Lygia Pape
lise artística do trabalho, comparando-o ma”, afirma Ivan Roberto Ferreira Pinto, obras de arte, duas décadas atrás. Em seu (1927-2004), adquirido pelo empresário
com a obra do artista, definindo a qual perito da Polícia Federal especialista em apartamento na Avenida Atlântica, em por 40 mil reais e que não tem certifi-
período pertence e determinando que obras de arte. No caso de obras autênti- Copacabana, foram encontrados traba- cado de autenticidade – quando o valor
técnica foi usada. Para comparação, os cas, é comum aquele que deseja lavar lhos de artistas muito cotados no merca- de mercado é de cerca de 200 mil reais.
peritos utilizam outro trabalho do mesmo dinheiro subvalorizar a compra, pedindo do, como Lygia Clark (1920-88), Iberê A defesa de Lobão afirmou em nota à
pintor com características semelhantes. recibo de uma quantia menor do que Camargo e Beatriz Milhazes (1960-). Era piauí que a apreensão do acervo foi ile-
Os passos seguintes são os estudos grafo- aquilo que efetivamente pagou, e vender a 65ª fase da Lava Jato, batizada de Gale- gal e “pirotécnica”. Também disse ter
técnicos da assinatura do artista ou outra com recibo do valor real, “esquentando” ria por envolver supostos casos de lava- solicitado na Justiça indenização por
inscrição que exista na tela, e a avaliação a diferença. “A volatilidade do mercado gem de dinheiro desviado da Petrobras danos morais contra a União por cau-
do valor de mercado. No Rio de Janeiro, de arte, com muita oscilação de preços, por meio de obras de arte. Márcio Lobão sa da ação da Polícia Federal.
esses três passos iniciais costumam ficar facilita essa tática”, afirma o perito. é réu em ação penal por lavagem de di- De todas as obras de arte apreendidas
por conta do Instituto de Criminalística A Lava Jato, além de sacudir a políti- nheiro, ainda não julgada, na Justiça Fe- pela Lava Jato, 270 foram cedidas em
Carlos Éboli, da Polícia Civil fluminense. ca brasileira, também agitou o mercado deral em Brasília. comodato ao MON pelo Instituto Brasi-
Cabe, então, ao IFRJ a análise físico- de arte do país. Logo nas primeiras fases Das 85 obras de Márcio Lobão apreen- leiro de Museus (Ibram). Logo começa-
química da obra. Nesse ponto, o quadro da operação, a Polícia Federal apreen- didas, 32 não tinham certificado de au- ram as suspeitas de que parte do acervo
passa por uma bateria de exames minu- deu dezesseis telas – entre elas de Di tenticidade, normalmente emitidos por confiscado fosse falso. Como o quadro
ciosos em equipamentos caros, alguns Cavalcanti (1897-1976), Cícero Dias entidades que cuidam do acervo dos artis- de Renoir encontrado na casa da doleira
conhecidos, outros de nomes longos e (1907-2003) e Renoir (1841-1919) – no tas. A Polícia Federal fez um estudo do Kodama. A diretora do MON, Juliana
enigmáticos: do microscópio (onde se apartamento da doleira Nelma Kodama, valor de mercado de 66 telas e esculturas Vosnika, conta que funcionários do pró-
observa o movimento das pinceladas) ao em São Paulo, e 48 telas na mansão do e constatou que esse conjunto está avalia- prio museu constataram que a tela não
espectrômetro de infravermelho por lobista Zwi Skornicki, na Barra da Tijuca do em 25,1 milhões de reais. Mas não foi era autêntica, e por isso nem chegou a
transformada de Fourier, que desvenda os no Rio. Em março de 2015, na décima realizada perícia de autenticidade em ne- ser exposta ao público. Em 2015, o pro-
pigmentos de base orgânica e os agluti- etapa da operação, foram apreendidos 131 nhuma das telas apreendidas pela Lava grama Fantástico, da Rede Globo, reve-
nantes de cada tinta para determinar quadros no apartamento de Renato Duque, Jato (nos laudos, os peritos partem do prin- lou que um trabalho de Joan Miró, que
quando a obra foi feita. Mas a coqueluche o ex-diretor da Petrobras. As obras – de cípio de que os quadros são autênticos, se supunha ser uma tela (com valor esti-
do instituto é o espectrofotômetro de fluo- Miró (1893-1983), Guignard (1896-1962), com o cuidado de citar cada um deles co- mado de 16 milhões de reais) e a obra
rescência de raios X, um equipamento Djanira (1914-79) e outros – estavam es- mo de “pretensa autoria” do respectivo mais valiosa da coleção de Duque, não
importado que analisa a composição quí- palhadas por todos os cômodos do imó- artista). “É um processo muito demorado passava de uma gravura, com preço bem
mica de cada um dos pigmentos utiliza- vel, também na Barra da Tijuca. Nem as e caro, por isso optou-se por não fazer essa menor, 160 mil reais. Em julho último,
dos pelo artista, em um ponto específico paredes da academia do apartamento es- análise”, diz um dos policiais que partici- quando a piauí esteve no MON, já não ha-
ou no quadro inteiro. “Antes demoráva- caparam. Kodama, Skornicki e Duque param da Operação Galeria – ele não quis via mais nenhuma “obra da Lava Jato”
mos mais de dez dias nessa análise; agora foram condenados pela Justiça. ser identificado por não ter autorização da em exposição no museu. J
são poucos minutos”, compara Valter de As apreensões de obras de arte pela Polícia Federal para se manifestar sobre o
Souza Félix, pesquisador do IFRJ. O apare- Lava Jato continuaram. Em maio de caso. A rigor, o visitante do Museu Oscar Com a colaboração de Tatiana Pires.

piauí_novembro 67
1 de 4 27/10/22 PROVA FINAL

questões criativas

CONSTRUINDO ESCRITORES
Como as oficinas literárias ensinam a compreender o outro

REGINALDO PUJOL FILHO

J
á faz vinte anos daquela noite: em ria-café, que logo faliu. Fomos para um cial ao romance. Segundo Dawson, na pólogo Darcy Ribeiro, então reitor da re-
uma agência de publicidade de espaço de salas de aula, que fechou em época outras expressões ombreavam com cém-inaugurada Universidade de Brasília,
Porto Alegre, redatores e jornalis- pouco tempo. Chegamos, enfim, à livra- literature, como imaginative writing (es- convidou-o para montar uma oficina nos
tas sentaram-se ao redor de uma ria Palavraria, onde segui com Kiefer até crita imaginativa) e creative writing, que moldes das que havia nos Estados Unidos.
mesa de reuniões. Na cabeceira, es- 2011. A Palavraria sobreviveu à oficina, “passou a funcionar como sinônimo para Em entrevista a Afonso Fávero, em 1987, o
tava a pessoa que fazia com que aquele mas infelizmente
Acesse nosso Canal fechou no
em 2016.
Telegram: literatura”. Ou seja, por algumas décadas, escritor contou como era o curso: “Os alu-
t.me/BRASILREVISTAS
encontro não fosse um evento de traba- antes de se consolidar como área de estu- nos davam o texto, e eu discutia com eles,

O
lho, mas uma aula: o escritor e profes- ficina de contos ou literária, work- dos e ensino, escrita criativa tinha o mes- [...] era mais uma conversação do que uma
sor Charles Kiefer abria os trabalhos de shop de narrativa ou de literatura, mo sentido que damos à literatura hoje. aula.” Assis cita ainda outros autores pio-
uma oficina de contos. curso de escrita criativa – os no- Nada disso eu sabia em 2005 ao entrar neiros, como Judith Grossmann, Silviano
Dias antes, um amigo da faculdade mes variam e, até hoje, ao dizer que no Bar Opinião em Porto Alegre e ver de- Santiago, Affonso Romano de Sant’Anna,
havia me ligado, dizendo: “Lembro que dou oficinas de escrita criativa, o mais zenas de pessoas sentadas em mesinhas Maria da Graça Cretton, Esdras do Nasci-
tu escrevia umas histórias e mandava comum é não entenderem o que faço. ou encostadas no balcão autografando mento, Suzana Vargas e Raimundo Car-
por e-mail. Não quer entrar numa ofici- Se estou sem paciência, digo que dou livros. Era o lançamento da antologia rero, que ministra sua oficina no Recife
na de contos?” A oficina era organizada aula de literatura. O que não é mentira. 101 que Contam, que reunia contos de 101 desde os anos 1980 e inaugurou em 2016
por redatores da agência e, para comple- É difícil saber quando surgiu a ideia de alunos e ex-alunos de Charles Kiefer, en- um centro cultural com o seu nome para
tar o número de participantes, estavam estudar técnica literária. Há certo consen- tre eles eu. Mais de mil livros foram ven- abrigar as aulas, entre outras atividades.
convidando gente de fora. so de que ela se consolidou nos Estados didos no evento (menos de dez por autor, Assis é autor de dezoito romances –
Aos 22 anos, eu não fazia ideia do que Unidos, no final do século XIX, quando feitas as contas), para alegria do editor e alguns premiados e lançados no exterior
era uma oficina de contos. Aliás, como também se desenhou o formato atual dos dos egos dos estreantes. Até aquela época, – e em 2019 lançou Escrever Ficção, um
todos os colegas, fazia pouca ideia de qua- cursos, com um professor-escritor trans- encerrar uma oficina com a publicação best-seller instantâneo. Também tem uma
se tudo em matéria de literatura. Fã de mitindo seu conhecimento sobre técnicas de uma antologia era quase obrigação, passagem na política: de 2011 a 2014 foi
Luis Fernando Verissimo, eu achava que de escrita e debatendo com os alunos os espécie de trabalho de conclusão de cur- secretário da Cultura do Rio Grande do
escrevia crônicas, não contos. Da nume- seus textos. Em 1939, a Universidade de so. Hoje, parece já não ser tão usual. Sul na gestão de Tarso Genro (PT). A ofi-
rosa obra de Kiefer, eu havia lido apenas Iowa oficializou o primeiro programa es- Mesmo porque a expressão “escrita cina que ele conduz na PUC do Rio Gran-
Quem Faz Gemer a Terra, novela de 1991 pecífico de escrita criativa em nível uni- criativa” é usada no Brasil para nomear de do Sul desde 1985 pode ser vista como
que causou certa polêmica ao adotar o versitário, o Workshop de Escritores de desde cursos para “melhorar a comuni- a primeira de suas muitas iniciativas para
ponto de vista de um agricultor sem-terra Iowa. O modelo se espalhou pelos Esta- cação escrita” no trabalho até uma área incluir a escrita criativa no programa da
que degola um policial militar (em refe- dos Unidos e países de língua inglesa, acadêmica presente em universidades universidade. Em 1987, por exemplo,
rência a um episódio verídico ocorrido iniciando uma tradição universitária com brasileiras e em países como Estados Uni- como sua tese de doutorado em letras na
em Porto Alegre). Mas aceitei o convite. graduações, mestrados e doutorados. dos, Colômbia e França. Talvez a sua tra- PUCRS, ele apresentou a criação de um
Com a barba já branca, apesar dos “Escrita criativa? Então tem escrita dução mais conhecida por aqui sejam as romance, Cães da Província. Em 2008,
44 anos, Kiefer anunciou que o primei- não criativa?” Quem estuda ou dá aulas oficinas ministradas por escritores, que ele e Kiefer inauguraram, na Faculdade
ro módulo da oficina duraria um semes- sobre o tema já ouviu a pergunta impli- visam a estimular o contato com a litera- de Letras da PUC, o Sarau dos Novos, le-
tre. Para mim durou quase dez anos. cante. No livro Creative Writing and the tura e as ferramentas da escrita. vando alunos de oficinas literárias para
Na aula inaugural falamos de nossas New Humanities (Escrita criativa e as no- O escritor e professor gaúcho Luiz An- lerem seus textos na academia e respon-
leituras e fizemos um exercício de escrita vas humanidades), o professor australiano tonio de Assis Brasil, que mantém a oficina derem perguntas.
coletiva (cada um escreveu um trecho e Paul Dawson recorda que só em meados mais longeva do país, diz no artigo A Es- Foi nesse sarau que conheci Assis pes-
passou adiante para o próximo continuar do século XIX a palavra literature conso- crita Criativa e a Universidade que o escri- soalmente. Eu havia acabado de lançar
o texto). Em poucos meses, o grupo de lidou-se no inglês como sinônimo de cria- tor mineiro Cyro dos Anjos (1906-94) teria meu primeiro livro e fui o convidado da
alunos se modificou a ponto de não restar ções artísticas na forma de textos. Até aberto o caminho para as oficinas no país. sessão inaugural. Com meu espírito in-
nenhum empregado da agência, e acaba- então, o termo era poetry, que já não aten- Cyro havia publicado em 1954 o livro gênuo e iconoclasta de estreante, além
mos nos mudando de lá para uma livra- dia aos novos gêneros narrativos, em espe- A Criação Literária e, em 1962, o antro- de uma dose de preconceito vazio a res-

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TOM GAULD_2020
peito da academia, li um conto escracha- também leciona. Mas ele não deixou de Na última aula, um aluno perguntou: todo do caos”: o conteúdo se construiria
do, debochado e desbocado, achando lado sua oficina, por onde passou uma “Professor, quando vamos fazer narra- pelos textos escritos por nós. O escritor
que ia chocar a plateia. Óbvio que isso série de autores que se projetaram nacio- ções?” Sem muita certeza de ter entendido pernambucano Marcelino Freire, um re-
não aconteceu. Mas Assis, com a gentile- nalmente, como Daniel Galera, Cíntia a questão, falei que estávamos exercitando conhecido professor de oficinas, já iniciou
za que o distingue, sugeriu que eu lesse Moscovich, Amilcar Bettega, Carol isso desde o início, afinal o curso era sobre seu curso sorteando “padrinhos artísticos”
Bensimon,
outro conto, mais irônico, menos histriô-Acesse MichelCanal
nosso Laub e Paulo Scott. “vozes narrativas”
no Telegram: (voz criada pelo escritor entre os alunos – autores famosos que deve-
t.me/BRASILREVISTAS
nico. Nunca perguntei a ele o motivo da A oficina dura dois semestres, e a se- para contar as histórias). Ele insistiu: “Mas riam ser estudados e servir de inspiração.
sugestão, mas penso que, sendo aquele o leção para suas quinze vagas é muito quando vamos ‘narrar’ pra valer?” Per- Outros preferem investir em uma progres-
primeiro sarau para reforçar a importân- concorrida, atraindo gente de todo o guntei se a dúvida era sobre quando escre- são: começar pelos exercícios simples e,
cia da escrita criativa na universidade, o país. É preciso enviar, além do currícu- veriam um conto. O rapaz então disse: pouco a pouco, chegar ao desenvolvimen-
professor quis evitar que se rotulasse logo lo, uma espécie de carta de motivação “Quando vamos fazer dublagens?” Ele to de textos mais longos, experimentando
de cara a produção das oficinas literárias. e amostras da escrita. Até o início da pan- estudava para ser dublador e associou as diferentes técnicas durante o percurso,
Não cheguei a frequentar a “oficina demia, as aulas ocorriam na Escola de “vozes narrativas” à dublagem. como escrever com perspectivas variadas,
do Assis”, como é mais conhecida, mas Humanidades da PUCRS. Atualmente, são São muitos os tipos de oficinas. Exis- trabalhar descrições, explorar as técnicas
fui seu aluno em 2013, no mestrado em online. No primeiro semestre, o progra- tem as brevíssimas, de uma hora ou pouco de manipulação do tempo.
escrita criativa da PUC, lançado no ano ma prevê o estudo de diferentes obras e mais, que costumam se apoiar em exercí- Minha primeira atividade de longa
anterior, junto com o doutorado. Na pri- exercícios de recursos literários (“tempo cios de desbloqueio de escrita, seja a “es- duração, como professor, iniciou em mar-
meira aula da disciplina projetos de ro- da narrativa”, “espaço”, “diálogo”). No se- crita automática” (que se faz sem pensar) ço de 2019, na Livraria Taverna, também
mance, a turma era o avesso dos meus gundo semestre, os alunos partem para ou escrever sobre uma vivência recente. em Porto Alegre, com seis alunos. Dura
primeiros colegas de oficina literária. a escrita dos próprios contos, que são de- Há workshops de algumas tardes ou noi- até hoje, com uma aula por semana. Eu
Ali, a maioria tinha livro publicado e de- batidos com a turma. tes, que abordam pontos específicos da havia planejado dar todo mês duas aulas
sejava seguir um percurso na literatura. escrita literária, como voz narrativa ou teóricas e duas de análise dos textos es-

E
“O que vamos ter aqui é resultado da m 2009, em um evento literário fluxo de consciência (a escrita que busca critos pela turma. Mas logo descobri que
minha experiência de mais de trinta anos no Rio de Janeiro, ouvi a pergunta: emular a dinâmica do pensamento, co- os alunos buscavam sobretudo estímulo
escrevendo romances”, disse Assis, dando “Por que tem tanta oficina em Porto mo em Ulysses, de James Joyce). Há ainda para escrever. Propus, então, que a cada
início às aulas. Com seu inconfundível Alegre?” De fato, nos anos 2000, além de as oficinas de média duração (às vezes um semana duas pessoas apresentassem seus
cavanhaque, vestindo blazer com lenços Assis e Kiefer, a professora Léa Masina e semestre), que muitas vezes tentam abor- textos e, a partir daí, eu apresentaria con-
coloridos ou estampados na lapela, ele escritores como Cíntia Moscovich, Luís dar o básico de um gênero literário, como teúdos sobre técnica literária.
prefere não ensinar regras, mas trazer a Augusto Fischer e Alcy Cheuiche, entre estudar o conto desde a criação de um

“S
experiência do escritor, leitor e professor. outros, davam aulas. Mas a pergunta logo personagem até a escrita de um texto. e fosse eu...” Quando alguém
Impressiona sua capacidade de mergulhar perdeu a razão de ser, porque, ao longo Existem, por fim, os cursos de longa dura- começa assim seu comentá-
nas mais diferentes propostas literárias da última década, aumentou a procura, e ção (em geral, um ano), com programas rio sobre o texto de um cole-
dos alunos. Dono de uma ironia finíssi- oficinas criativas, escolas de criação literá- mais rígidos, como o da oficina de Assis. ga, em oficinas literárias, é hora de soar
ma e fala calma, dizia frases como: “Há ria e cursos em universidades se espalha- Aí é comum encontrar gente com alguma o alarme e relembrar algo essencial: nos
palavras que não se pode repetir num ram pelas capitais e grandes cidades. experiência e interesse em publicar um cursos, literatura é trabalho em grupo.
parágrafo. Outras, em um livro. E algu- Um episódio ilustra bem como a pro- livro. Em mestrados e doutorados, é possí- A espinha dorsal da maioria das ofici-
mas, na vida.” Ao longo do semestre, além liferação da oferta – e também do público vel que, além da escrita literária, seja des- nas é a dinâmica surgida da leitura e
de estudarmos as obras de vários escrito- – dos cursos de escrita no Brasil alcança pertada no aluno a veia de pesquisador, do comentário dos textos dos alunos.
res, nós estruturamos nossos romances, desde aspirantes a escritor até pessoas que levando-o a se interessar também pela teo- Quanto mais bagagem tiver o professor
com a orientação dele. têm outras ambições. Em 2019, estive em ria literária e os processos criativos. para conduzir o debate, melhor. Mas é
Em 2016, a PUC lançou em Porto Ale- Maceió para dar um curso a convite do Os métodos variam. Meu primeiro preciso também criar um ambiente re-
gre um curso de graduação em escrita Sesc, entidade que promove oficinas por professor, Charles Kiefer, anunciou bom- ceptivo e estimulante para a participa-
criativa, no qual Assis, hoje com 77 anos, todo o país com o circuito Arte da Palavra. basticamente na aula inaugural o “mé- ção de todos. Em cursos mais curtos e

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de menor engajamento, nos quais são “escrever é cortar”, “adjetivos enfraquecem


escritos pequenos trechos, a dinâmica o texto”, “personagens têm que ser pro-
desenvolve-se com menos intensidade. fundos” – ideias que foram e ainda são
Mas nos de maior duração, com discus- úteis em determinados contextos e para
são de contos, capítulos ou poemas da certos objetivos literários, mas, com o tem-
O plural própria turma, o desafio aumenta. po, viraram cascas sem recheio. Torna-
de música Muito desse trabalho se perderá se não ram-se muletas pedagógicas que, se não
houver um espaço propício para que, de- forem contextualizadas, podem ter efei-
é gente bate após debate, cada aluno formule con- tos péssimos sobre os alunos.
ceitos e seu modo de pensar literatura. Esses dogmas, além de fazerem a lite-
É preciso reconhecer, contudo, que ouvir ratura parecer um receituário, podem
críticas ao próprio texto ou apontar corre- paralisar quem está iniciando e não tem
ções no alheio não é tarefa fácil. Eu me bagagem para matizar o que é um con-
lembro de uma colega habituada a rece- ceito e o que é uma regra, e se sente to-
ber elogios que, após ter um conto critica- lhido com tanto “faça assim, não faça
do em uma oficina literária, rebateu uma a assado”. Uma aluna do Rio de Janeiro
uma as críticas – e depois sumiu das aulas. certa vez me perguntou por que diachos
Situações assim acontecem. E o proble- seu conto devia contar duas histórias,
ma não é porque há pessoas que não acei- como um professor havia dito. Ele repro-
tam críticas ou só procuram as oficinas duzira a célebre frase do ensaio Teses So-
para confirmar “seu talento” (o que não é bre o Conto, do argentino Ricardo Piglia:
raro). O problema pode ser o modo como “Um conto sempre conta duas histórias.”
as críticas são feitas. Tanto mais que fazer É uma saia justa alguém perguntar a um
e receber críticas não é exatamente algo professor sobre o que outro ensinou. Res-
que se pratique com arte no Brasil de hoje. pondi que a literatura não é ciência exata
Aulas de escrita criativa, em vários e que Piglia estava falando de certa tradi-
sentidos, ultrapassam a mera ambição ção do conto: alguns seguem essa pers-
literária. Espera-se e estimula-se nos alu- pectiva, outros não. É possível que algum
nos a disposição para ler a escrita alheia professor, em outro curso, tenha dito a
com olhar generoso e para tentar enten- ela que falei asneira.
der o projeto do outro, o que ele deseja

“A
fazer e por que conseguiu – ou não. E é h, a Virginia Woolf não fre-
preciso expor o próprio trabalho e rece- quentou oficinas”, já me disse-
ber críticas sem se sentir ofendido. Há ram. Concordo. Machado de
ainda o risco de que, em vez de comentar Assis e Lima Barreto também não fre-
Duda Brack e Acesse nosso Canal no Telegram:
o texto alheio, a pessoa acabe falando so- quentaram. Óbvio que ninguém precisa
bre t.me/BRASILREVISTAS
o seu próprio modo de escrever. de oficinas para aprender a escrever. Os
Uma vez, apresentei na oficina de cursos são apenas um dos caminhos para
Ney Matogrosso Charles Kiefer um conto satírico que eu se aproximar da escrita literária. E são
tinha escrito. E lá veio um “se fosse eu...”. também espaços de encontro com pes-
04.12 O colega disse que não se emocionou soas que em geral vivem de modo isolado
com meu texto e completou: “Se fosse eu, sua paixão pela literatura. Recordo do
exploraria mais a psicologia dos persona- alegre espanto da escritora e professora
gens.” Talvez meu texto fosse ruim, mas o Moema Vilela, que se mudou de Campo
“se fosse eu” sublinha a dificuldade de Grande, Mato Grosso do Sul, para Por-
pensar o projeto alheio. Como se numa to Alegre só para fazer a oficina de Assis.
oficina mágica Clarice Lispector lesse um “É incrível encontrar tanta gente dispos-
trecho de A Hora da Estrela, e Ernest He- ta a passar duas horas discutindo os pro-
mingway dissesse: “Dá para ser mais obje- blemas do teu personagem”, ela me disse.
tivo, usar uma linguagem mais direta?” São muitos os modos de se interessar
Há ainda a suspeita jamais comprovada por literatura. Assim como nem todo
Teresa Terno Rei
Clarissa Cristina ESGOTADO
de que oficinas pasteurizam a escrita dos mundo entra num curso de violão so-
alunos. O professor Paul Dawson diz que nhando ser o próximo Baden Powell,
12.11 18 e 19.11 26 e 27.11
essa visão já se manifestava no aforismo nem todas as pessoas que procuram cur-
latino Poeta nascitur non fit (Poetas nas- sos de escrita o fazem por ambição lite-
cem, não se fazem). Seria impossível en- rária. Elas podem ter os mais variados
sinar escrita literária. Assis tem uma frase motivos, o que exige sensibilidade para
que adotei para tratar do assunto: “Não se lidar com diferentes expectativas. Alguns
ensina a escrever, mas aprende-se.” procuram as aulas porque admiram os
A ideia de que oficinas pasteurizam livros do professor, outros porque se in-
textos não leva em conta que o aprendiza- teressaram pela proposta do curso ou de-
do está longe de ser algo que o professor sejam ouvir os escritores convidados para
Ingressos: impõe aos alunos, com uma única respos- falar nas aulas. Há os que apenas que-
casanaturamusical.com.br ta sobre como escrever. Ao contrário, o rem romper com seu maçante dia a dia
que se aprende numa boa oficina vem da (e poderiam cursar aulas de pintura ou
construção conjunta, da interlocução en- dança, tanto faz) e os que têm a ideia fixa
tre alunos e professor – que, acredito, está de registrar memórias familiares ou um
CASA NOS ENCONTRAMOS
ali para ajudar cada um a formar suas episódio de sua vida.
NATURA MUSICAL 5 ANOS NA MÚSICA
próprias ideias sobre literatura. Um tipo curioso que parece ter surgido
Mas admito: certas práticas adotadas na segunda década dos anos 2000 – não
em oficinas reforçam o preconceito de que me lembro de ter tido colegas com esse
são uma linha de montagem de escrito- perfil – é o aluno encantado mais com a
res. Há uma série de noções que passa- ideia de ser um escritor famoso do que
ram a ser repetidas feito dogmas, como com o trabalho de ler e escrever. Incluo o
Cia Aérea Oficial: Apoio:

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“ler” pensando no que disse o escritor an- como bienais, grandes feiras de livros ou assegurar a boa comunicação em deter- das aulas. Durante a pandemia, entre-
golano Gonçalo M. Tavares, em uma aula a Festa Literária Internacional de Paraty minado meio – se ampliar em importân- tanto, fui procurado por pessoas que de-
do seu curso de pós-graduação em artes (Flip), ampliaram certo glamour relacio- cia a cada “Boa noite, tudo bem, estão sejavam se inscrever nos cursos, mas não
da escrita, que frequentei na Universidade nado à atividade literária. Além disso, na me ouvindo?”. Tive aluno que entrou na dispunham dos recursos necessários.
Nova de Lisboa: “Escrever é como fute- bonança dos governos Lula e Dilma, a aula durante o trabalho, ou assistiu a par- Já deve estar claro que atribuo à escrita
bol. Tem dois tempos. O primeiro é ler. literatura não passou despercebida. Políti- te dela no carro até chegar em casa. Pre- criativa uma vocação democratizante:
O segundo é escrever. Nunca vi uma par- cas de incentivo, compras de livros e o soft cisei lidar com uma barata enquanto um rompe com o mito elitista da literatura
tida começar pelo segundo tempo.” power da divulgação da literatura brasilei- aluno lia o seu conto. E dei aulas em Boa como coisa de gênios e eleitos, e sugere
Já encontrei pessoas que, antes mes- ra no exterior, por meio de bolsas de tradu- Vista, Pittsburgh, Votuporanga, Mon- que todos podem tentar escrever. Com as
mo de começar a escrever seu livro, se ção, aumentaram a visibilidade do escritor treal, Vitória, Londres, Recife sem sair de aulas na internet, pensava eu, já não exis-
preocupavam em achar um título que nacional. Sem falar nos altos cachês de casa. Abriu-se uma perspectiva até então tiam mais empecilhos para essa democra-
soasse bem ao ser traduzido para o in- palestras, nas bolsas de escrita e nos prê- pouco explorada para oficinas literárias. tização. Mas havia, sim, um impedimento:
glês. Ou pensavam na playlist que indi- mios literários. Amplifique isso com redes Na febre das lives de 2020, houve um o custo das aulas. Essa questão passou a
cariam ao leitor de seu futuro romance. sociais e suas bolhas, e dá para entender aumento exponencial da oferta de cur- me perseguir desde então: se a escrita
Em seu blog Ossos do Ofídio, Marcelino por que há tanta gente querendo ser es- sos por parte de escritores. E também de criativa tem vocação democratizante,
Freire satiriza essa figura que pensa no critor. Tanto assim que, volta e meia, me escolas e instituições que se adaptaram como democratizá-la de fato? Uma me-
lançamento do livro antes de tê-lo termi- perguntam como se faz para viver de lite- rapidamente ao virtual, como a Escreve- dida que adotei foi oferecer bolsas de
nado. “Aí ele chega com o livro na mão, ratura. Ah, se eu soubesse. deira. Projetos nascidos no meio digital, estudo na maioria das atividades. Ou-
já diagramado. O original que ele mes- Esse cenário otimista de anos atrás, como a plataforma Navega (com cursos tros professores fizeram o mesmo. Mas
mo fez. Em Word. Imaginou umas fo- evidentemente, foi destruído, junto com de literatura, design, teatro e cinema), isso é apenas uma gota d’água no deser-
tografias. E essa letra, que tal? Animal, tantas outras coisas, nos governos Mi- ganharam irmãs surgidas no embalo da to que é o acesso à cultura no Brasil.
não é mesmo? Eu tenho um tio que faz chel Temer e Jair Bolsonaro. E depois zoomificação do mundo, como Bora Sa- A escrita criativa é também uma re-
uns desenhos a lápis de cor. Nanquim, veio a Covid. ber e Quadro Amarelo. Até editoras, como sistência ao mundo do pragmatismo.
carvão. Olha a cara desse camaleão. Não a Companhia das Letras, ofereceram cur- Ninguém entra num curso assim para

“P
é tudo de bom? A foto o escritor já tem. ânico” é a melhor descrição sos de escrita criativa. “qualificar o currículo”. Como costumo
Ao fundo, a grande biblioteca. O cabelo do sentimento que tomou Essa efervescência digital sublinhou dizer às minhas turmas – e insisti nisso
aprumado. A mão à beira do queixo”, conta de quem dava cursos uma contradição. depois do início da pandemia –, as ofi-
comenta no texto Escrever & Diagramar. de escrita criativa quando a pandemia Quando fui aluno de oficina, meus cinas são como uma meditação coletiva.
Arrisco dizer que essa fixação em ser chegou ao Brasil. Como seguir com as colegas eram majoritariamente pessoas Durante duas horas, nós nos concentra-
escritor, mais do que com a escrita, tem a aulas, que ocorriam em livrarias, cen- brancas, de classe média ou alta. Isso mos no texto de cada um com o objetivo
ver com a inflação do culto à celebridade. tros culturais e até na casa de escritores? não mudou quando passei de estudante de compreender seu ponto de vista, de
Parece um contrassenso num país onde Logo se descobriu que todo computa- a professor. Com exceção dos estudan- refletir sobre o mundo e sobre as pessoas
se lê tão pouco. Mas a profissionalização dor era uma sala de aula. E fomos para o tes dos meus cursos subsidiados pelo Sesc, por intermédio da literatura, de praticar
do mercado editorial brasileiro nas últi- Zoom. Desde então, vi a função fática os demais também eram brancos de clas- em grupo estas atividades frequente-
mas décadas, aliada a eventos midiáticos, da linguagem – à qual recorremos para se média, que não questionavam o preço mente solitárias que são ler e escrever. J

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“ M in ha m ãe
te m u m a filha A SEGUNDA TEMPORADA
DA CASA TPM NA TV
VAI MERGULHAR NUM TEMA

que ela ama ESTRUTURAL DO UNIVERSO


FEMININO: SER MÃE

e outra que
ela odeia.
O problema
é q u e eu sou (NA TV)
QUINTA-FEIRA,

filha única” ÀS 11 DA NOITE, NA


TV CULTURA

TATI BERN A RDI,


E SCRI TOR A
PAT RO CÍN IO COPATROCÍNIO APOIO R E AL IZ AÇÃO

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vultos do teatro

O ABISMO EM QUE CAÍMOS


A diretora carioca Christiane Jatahy encena na Europa a Trilogia do Horror, sobre o governo Bolsonaro e a mentalidade fascista

FERNANDO EICHENBERG

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E
m 2007, a diretora de teatro – que usavam seus nomes reais – travan- atualidade, seus espetáculos desafiam as nar introspecção e reflexão política, por
Christiane Jatahy foi uma das do conversas aparentemente espontâneas formas dramáticas tradicionais e os hábi- meio de uma visão experimental do tea-
convidadas do Festival de Vie- entre si e com o público sobre a ausên- tos do público, rompendo a fronteira en- tro. “Ela envolve nossa consciência, per-
na, o prestigiado evento de ar- cia do colega e outros temas. tre ficção e realidade e recorrendo ao turba nossas representações, nos obriga a
tes que acontece todo ano na Depois de dez minutos de debates, cinema a fim de superar as limitações do ver de onde estamos olhando, tanto quan-
capital austríaca. A encenadora carioca um espectador se levantou na plateia e teatro. Esse misto de inquietação artística to o que estamos vendo”, disse ele à piauí.
e sua trupe apresentaram a peça A Falta gritou irritadíssimo: “Isso é um absur- e política conquistou a crítica e as institui- Na cerimônia de entrega do prêmio
que Nos Move, que tinha por tema as do, uma vergonha! Só mesmo um ator ções teatrais europeias. Tanto assim que, em Veneza, a diretora fez um discurso em
complicadas relações familiares. O es- brasileiro para vir a um festival desses e desde 2016, Jatahy passa mais tempo na consonância com sua arte política. “Esse
petáculo começava de maneira inusita- não aparecer! Vou embora.” O homem Europa do que no Brasil e, há três anos, prêmio confirma e dá fôlego às minhas
da: com a informação de que um dos era o adido cultural da embaixada bra- se estabeleceu em Paris, onde é artista escolhas. Escolhas que, algumas vezes,
atores não tinha chegado para a apre- sileira na Áustria. associada dos teatros Odéon e Centqua- não foram entendidas [...], porque sa-
sentação. A ideia era que a notícia fosse Jatahy estava sentada algumas fileiras tre-Paris (como é também do Schauspie- bemos que ainda é mais difícil quando
dada ao público do modo mais realista acima quando ouviu os gritos em alemão lhaus, de Zurique, do Piccolo Teatro, de somos mulheres, e latino-americanas,
possível, levando a crer que o elenco na plateia. Ela foi atrás do diplomata para Milão, e do Arts Emerson, de Boston, nos nascidas no Brasil, onde é preciso muita
estava realmente desfalcado. explicar tudo, mas não o encontrou. Fe- Estados Unidos). Parte do financiamento perseverança para continuar. É sempre
Para dar veracidade à situação, quem lizmente, tinha o número do celular para suas criações vem do Ministério da sobre não desistir: nesse triste momento
comunicou a notícia em alemão foi um dele. Ligou e disse: “Pelo amor de Deus, Cultura francês, e os recursos são geridos do Brasil, onde os artistas são crimina-
dos organizadores do festival, Matthias isso faz parte da peça. Não existe outro por sua companhia de teatro, a Vértice. lizados por serem artistas, essa frase pa-
Pees. “Entrei no palco aparentando ner- ator, são apenas aqueles no palco.” O adi- Neste ano, Jatahy se tornou o primeiro rece ecoar ainda mais profundamente
vosismo”, ele recorda. “Disse que havia do respondeu: “Bem, sendo assim, vou nome da dramaturgia brasileira a receber, em mim”, afirmou.
me esforçado tanto para trazer o espetá- dar outra chance.” Ele voltou ao seu lu- pelo conjunto de sua obra, o cobiçado Matthias Pees, que assumiu em setem-
culo a Viena e que agora eles me apron- gar no teatro e assistiu à peça até o fim. Leão de Ouro do Teatro, na Bienal de Ve- bro a direção do Berliner Festspiele – ins-
tavam aquilo: entrar em cena com a Surpresas desse tipo fazem parte do neza. Na apresentação do prêmio, ela foi tituição que organiza eventos artísticos na
equipe incompleta.” Pees também anun- teatro de Jatahy – e não são gratuitas. Es- definida como “uma das figuras mais ori- capital alemã –, conta que foi fisgado pelo
ciou que funcionários do festival esta- tão relacionadas a um ousado projeto de ginais da onda teatral que atravessou o teatro de Jatahy ao assistir A Falta que Nos
vam à procura do ator e pediu paciência dramaturgia, desenvolvido por ela ao lon- Atlântico e regenerou a cena europeia nas Move em uma encenação no Parque Lage,
ao público. Assim que o encontrassem, go de quase três décadas e marcado pela últimas décadas”. Para Gianni Forte, co- no Rio de Janeiro, no início dos anos
eles trariam o sumido ao teatro. A peça, constante experimentação. Para discutir diretor artístico da Bienal, a arte de Jatahy 2000. “A qualidade do trabalho da Chris
então, prosseguiu com os atores restantes algumas das questões mais urgentes da reside em uma forma singular de combi- vem do fato de ela criar duas dimensões

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LEO AVERSA_2022
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A diretora Christiane Jatahy: ela estreia em Genebra uma montagem de Nabucco, de Verdi. “Será algo gigantesco e um trabalho político, pois fala de guerra, ocupação e povos escravizados”

da ficção ao mesmo tempo: a estética, como caímos neste abismo”, diz a direto- chega à cidade de Dogville, onde é rece- gravadas e outras filmadas ao vivo pelos
como obra artística, e a que surge de di- ra de 54 anos, em um café próximo do bida com desconfiança pelos moradores. atores durante o espetáculo, projetadas
ferentes narrações, com diferentes pers- Rio Sena, em Paris. “A trilogia surge de A convivência acaba resultando em uma em uma tela no palco, embaralhando as-
pectivas”, diz. “Essa ficção leva você a um sentimento de horror em relação ao série de abusos cometidos contra a foras- sim o passado e o presente. No final, Gra-
reconhecer ali a sua própria vida, a criar que está acontecendo no Brasil. Mas teira, nos quais os anfitriões revelam todo ça se dirige diretamente ao público e, em
sua própria percepção, e a cena se torna também de um espanto, que em certo seu sadismo e crueldade. francês, pergunta: “Como o fascismo pode
então uma realidade da qual o espectador sentido é filosófico, pois não é paralisan- Na peça Entre Cachorro e Lobo, Grace crescer de uma maneira tão rápida e invisí-
faz parte. Não é uma encenação: é a te, obriga a refletir. A minha ideia foi torna-se Graça (interpretada pela atriz ca- vel? Como é que não vi? Como não vimos?
criação de uma realidade.” Pees também tentar articular nas peças vários pontos rioca Julia Bernat) e é foragida de um país [...] Por que a gente continuou acreditan-
ressalta a maestria com que ela utiliza o de vista possíveis sobre o que levou à elei- dominado por um governo fascista envol- do que o fascismo não teria força? Será
cinema como parte de sua linguagem ção de Bolsonaro e o que ocorre em seu vido com milícias. A protagonista vai pa- que parecia tudo tão absurdo, uma ficção
nos palcos. Ele cita os britânicos Simon governo, mas também refletir sobre o rar não em Dogville, mas em um teatro. de tanto mau gosto que não fomos capa-
McBurney, Katie Mitchell e o canaden- que o antecedeu e como nós, brasileiros, O objetivo da diretora, entretanto, é o mes- zes de avaliar o risco e, com isso, permiti-
se Robert Lepage como exemplos de temos conduzido nossa história.” mo do filme: refletir sobre a intolerância e mos que essas ideias fossem encontrando
diretores de teatro que fazem o mesmo, As peças formam a quarta trilogia rea- as raízes do ódio em uma comunidade. eco na insatisfação coletiva?”
mas ressalta que nenhum deles tem a lizada por Jatahy. “Pensar em algo na “Há em Dogville o chamado ‘cidadão de Jatahy conta que escreveu esse texto
profundidade alcançada pela artista bra- forma de um processo me ajuda. Me bem’, que realmente acredita que está final “como um vômito”. “Na eleição
sileira. “Toda a pesquisa teatral dela, que acalma não querer dar conta de tudo em defendendo o que é certo, mesmo que isso de 2018, no Brasil, enviei mensagens de
se tornou também uma pesquisa cine- uma peça só”, explica a diretora sobre seu custe a destruição do outro. Há também WhatsApp para as pessoas e recebi res-
matográfica, tem como tema a realidade, gosto pelos trípticos teatrais. O primeiro a defesa de privilégios como se fossem postas como: ‘Se você está votando no PT
numa abordagem não apenas estética, espetáculo da Trilogia do Horror chama- direitos e a ideia de que são corretas algu- é porque está ganhando alguma coisa
mas também social e política.” se Entre Chien et Loup (Entre cachorro mas situações explicitamente fascistas. com isso, está mamando nas tetas do go-
e lobo) e foi produzido pela Comédie de Mas hoje essa não é uma questão só bra- verno.’ Eram mensagens inclusive de

A
tualmente, Jatahy percorre os pal- Genève, na Suíça, com elenco francês, sileira: é mundial”, diz Jatahy. “O fascis- pessoas da minha família. E olha que eu
cos da Europa com uma trilogia em suíço e brasileiro. Estreou em 2021, no mo surge a partir deste discurso: ‘Nós não sou petista nem trabalho tanto no
que reflete sobre o governo de Jair Festival de Avignon, na França, e é uma temos a verdade, e todos os demais são Brasil. Aquilo quebrou uma coisa muito
Bolsonaro. Não à toa, ela deu ao trabalho livre adaptação cênica do filme Dogville uma ameaça à nossa verdade e a nós mes- íntima e profunda em mim.” Ao mesmo
o nome de Trilogia do Horror. “Para mim, (2003), do dinamarquês Lars Von Trier. mos, portanto merecem ser eliminados.’” tempo, ela viu surgir no país algo muito
e penso que para muitos brasileiros, se No filme, a personagem Grace (Nicole Jatahy joga mais uma vez com ficção perigoso. “Depois de acreditarem na pri-
tornou fundamental tentar entender Kidman), perseguida por gângsteres, e realidade, fazendo uso de cenas pré- meira, na segunda, na terceira fake news,

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bedando muito. Em dado momento, sentado). “É um trabalho sobre o racismo,


Christiane disse: ‘Vamos fazer um en- mas Chris se muniu de uma equipe muito
saio real: beber champanhe e repetir a incrível de pessoas negras e brancas que
cena.’” A bebida foi comprada e os atorespensam a questão do racismo estrutural.
terminaram “completamente bêbados”. A trilogia toda é sobre o que podemos fazer
Na versão de Jatahy, as bruxas de juntos. É sobre amor, afeto e estratégias de
Macbeth são encarnadas por crianças e sobrevivência”, diz Juliana França, que no
mulheres, que aparecem em imagens pro- Brasil atua no Grupo Código, na cidade
de Japeri, na Baixada Fluminense. Antes de
jetadas, proferindo frases extraídas do li-
vro A Queda do Céu: Palavras de um aceitar o trabalho, a atriz de 32 anos per-
Xamã Yanomami, do líder indígena Davi guntou se haveria pessoas negras também
Kopenawa e do antropólogo Bruce Al- na equipe técnica do espetáculo, algo que
bert. A mitologia em torno da Amazônia considerava fundamental para ela se in-
bem como a exploração e a destruição serir no projeto. Depois dos primeiros en-
que atingem a região são parte importan- saios no Rio, França deixou o Brasil pela
primeira vez, para o início da turnê inter-
te do espetáculo. No final, a floresta inun-
da o palco por meio de imagens e sons. nacional de Depois do Silêncio, que deve
“Não adianta falar do governo Bolsonaro se estender por no mínimo cinco anos.
sem olhar para o nosso passado colonial. A baiana Gal Pereira, de 30 anos, ser-
No Brasil, é uma história que se repete. via de guia na Chapada Diamantina
É a tirania do poder em seu mais absolutodurante uma festa do jarê, religião de
ANDRÍCIO DE SOUZA_2022

matriz africana, quando chamou a aten-


descaramento e violência”, diz a diretora.
ção de Jatahy, que foi visitar a região du-

A
herança colonial, a persistente desi- rante suas pesquisas para o espetáculo.
gualdade e o racismo no Brasil são “Gal morou no Quilombo Remanso até
mais diretamente tratados em De- os 12 anos, onde tinha uma tevê peque-
pois do Silêncio, a última peça da Trilogia nina de bateria, e a vida inteira sonhou
do Horror, dessa vez produzida pela pró- em ser atriz. Quando a convidei, ela me
as pessoas tomam isso como uma guerra Cabral foi preso por corrupção e conde- pria companhia de Jatahy com recursos disse: ‘Nunca imaginei receber um con-
contra o outro. Foi a partir daí que pen- nado a mais de duzentos anos de prisão. internacionais. Para construir o roteiro, vite para um trabalho que não fosse lim-
sei na ideia do horror.” A perspectiva A farra parisiense serviu de inspira- ela se baseou no romance Torto Arado, par a casa dos outros’”, conta a diretora.
política da trilogia é ressaltada também ção para Antes que o Céu Caia. “O es- do escritor baiano Itamar Vieira Junior, e “E ela arrasa, é uma atriz incrível.”
pela atriz Julia Bernat. “A extrema direi- paço físico do hotel foi pensado como no documentário Cabra Marcado para A primeira das intérpretes escolhidas
ta não é uma questão só do Brasil, mas uma referência, e existe a semelhança Morrer, do diretor paulista Eduardo Cou- para Depois do Silêncio foi Lian Gaia, de
de vários países, inclusive a França, a de um grupo de homens comemorando tinho. “Senti que não poderia falar sobre 31 anos, nascida em Belford Roxo, na pe-
Itália e os Estados Unidos. A Chris tem em um ambiente corrupto”, explica Ja- o que ocorre no Brasil sem tratar da ques- riferia do Rio de Janeiro, de origem indí-
sempre essa preocupação de dialogar tahy. “Na
Acesse peça,Canal
nosso os atores também fazem tão da
no Telegram: terra”, explica Jatahy.
t.me/BRASILREVISTAS gena e negra. Jatahy a convidou para uma
com as questões do presente, e é muito trenzinho com a cabeça coberta por um O livro, que está nas listas de best- participação em Antes que o Céu Caia, a
importante falar disso em qualquer lugar guardanapo, que parece não apenas como sellers desde o lançamento, conta sobre segunda peça da trilogia, depois de assistir
que seja possível”, diz Bernat. uma bandana de pirata, mas uma espé- as personagens Bibiana e Belonísia, tra- à performance dela no vídeo Baile, sobre
Before the Sky Falls (Antes que o céu cie de coroa de Macbeth.” balhadoras rurais descendentes de escra- o apagamento da história indígena, exibi-
caia) é o nome da segunda peça da Tri- Para a diretora, o próprio texto de vizados, e sua luta pelo direito à terra no do no RePensa Festival, projeto online
logia do Horror. Produzida pelo Schaus- Shakespeare se cola a essas referências sertão baiano. O documentário de Cou- criado para debater questões de raça e gêne-
pielhaus Zürich, a encenação recorre a reais. “Em alguns momentos, a fala de tinho teve suas filmagens interrompidas ro e promover a inclusão e a diversidade.
Macbeth para tratar do patriarcado, do Bolsonaro parece a de Macbeth. E até o em 1964, por causa do golpe militar, e só “Estávamos conversando sobre a história
machismo e da misoginia, com suas ‘passar a boiada’ está lá”, diz. É outra ci- foi retomado no início dos anos 1980, de sua família, e Lian me disse: ‘Pois é,
implicações na ordem econômica do- tação da peça: a infame reunião de Bol- projetando o passado no presente, e vi- tudo começa com a morte de meu bisavô,
minante. O reinado do personagem de sonaro com seus ministros em 22 de ce-versa. Narra a história trágica do líder João Pedro Teixeira. Fiquei em choque.
Shakespeare é apresentado como “um abril de 2020, na qual sobraram ataques camponês João Pedro Teixeira, assassi- Ela era bisneta do protagonista de Cabra
espelho dos atuais regimes autoritários ao Supremo Tribunal Federal, e o titular nado a mando de latifundiários, e a Marcado para Morrer. Levei um tempo
no mundo”, entre os quais Jatahy inclui da pasta do Meio Ambiente, Ricardo trajetória de sua viúva, Elizabeth Altino pensando no que tudo isso significava”,
o Brasil. O enredo conta sobre cinco Salles, sugeriu “passar a boiada” e mudar Teixeira, depois da morte do marido e conta Jatahy, cuja bisavó era negra. Com-
políticos e empresários – interpretados as regras ambientais, enquanto a mídia durante a ditadura militar. “Eu tinha pleta o elenco o recifense Aduni Guedes,
por atores alemães e suíços – que cele- estava ocupada com a pandemia. Na fal- muita vontade de trabalhar com o filme pesquisador de percussão, responsável pe-
bram faustuosamente a conclusão de ta de uma expressão semelhante em ale- do Coutinho. Eu transito entre a ficção los ritmos ao vivo no espetáculo.
um novo contrato e o embolso de uma mão, Jatahy recorreu a um texto que e a realidade, entrelaçando na peça as O escritor Itamar Vieira Junior esteve
bolada de dinheiro. “Eles tomam um transmite a mesma ideia da proposta duas histórias, de Torto Arado e de Cabra na noite de estreia de Depois do Silêncio
banho de champanhe, enquanto o mun- escabrosa do ex-ministro, recém-eleito Marcado para Morrer”, diz Jatahy. Ela em junho passado, a convite do Festival
do rui à volta deles, o que resulta em uma deputado federal pelo PL de São Paulo. salienta que no processo de criação foi de Viena, e até então nunca havia as-
orgia sanguinária de violência e poder”, Intérprete de Macbeth/Bolsonaro, o importante o diálogo que travou com seu sistido a um trabalho de Jatahy. “Este-
descreve a diretora. ator alemão Daniel Lommatzsch conta trio de atrizes negras, a assistente de dire- ticamente é muito forte, mexe com as
Nessa segunda peça, há uma cena que ao receber o projeto de Jatahy com- ção, Caju Bezerra – “mulher negra e ati- emoções, porque ali está representada
claramente baseada no episódio conhe- preendeu de pronto a singularidade da vista”, nas palavras da diretora –, e com não somente a história daquelas perso-
cido como “farra dos guardanapos”. Em diretora brasileira. “É uma estrutura as escritoras Ana Maria Gonçalves, auto- nagens: é a história da formação de nos-
2009, o ex-governador Sérgio Cabral, do complexa, pois ela se interessa por dife- ra de Um Defeito de Cor, e Tatiana Salem so país. É uma arte política, sem perder
Rio de Janeiro, organizou uma celebra- rentes níveis. E havia preparado tudo Levy, que escreveu Vista Chinesa. sua dimensão humana”, avalia.
ção em Paris por haver recebido a Le- aquilo com antecedência... Isso nun- Para interpretar os personagens de De- O grande interesse da diretora pela his-
gião de Honra, comenda do governo ca havia acontecido comigo em relação pois do Silêncio, Jatahy optou por um elenco tória contada em Torto Arado foi decisivo
francês. A festa ocorreu em um salão no a outros diretores na Europa.” Ele notou 100% brasileiro e preferiu fazer os ensaios para que Vieira Junior autorizasse a livre
Hotel de la Païva, na Avenida Champs- outra particularidade de Jatahy durante e as pré-filmagens no Brasil. As protagonis- adaptação teatral e abrisse seus arquivos
Élysées. No auge da farra, secretários os ensaios. “Havia uma cena com trinta, tas são três mulheres, interpretadas por pessoais, ajudando com contatos na Cha-
estaduais e empresários puseram guar- quarenta minutos de improvisação, eu Juliana França, Gal Pereira e Lian Gaia, pada Diamantina, região que serve de ins-
danapos na cabeça e fizeram um trenzi- fazendo Macbeth, ou Bolsonaro, e o gru- que atuam em português (o espetáculo é piração ao livro. “Ela estava, antes de tudo,
nho da alegria. Alguns anos depois, po celebrando seus negócios e se embe- legendado na língua do país onde é apre- interessada no que a história poderia con-

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tar sobre nós, sobre o Brasil”, diz o escritor. um ambiente triste, marcado por perdas: região. Ela gastou na montagem todo o No retorno ao Brasil, sem dinheiro, a
“Talvez essa história nos convide a pensar o avô materno faleceu em um acidente e dinheiro que estava juntando na poupan- diretora pensou em voltar a dar cursos de
o país e a consertar desigualdades que são dois de seus tios morreram de hemofilia. ça para estudar no exterior. “Eu, pensan- teatro. Marcelo Lipiani, seu companheiro
fruto de um passado tão violento.” A pequena Christiane se refugiou na do em ir para Europa, acabei na Paraíba”, na época, lhe sugeriu a Escola do Parque
leitura. “Ler para mim era como uma diz, rindo. Quando a montagem final- Lage, no Jardim Botânico, que aceitou de

C
hristiane Jatahy mora em Paris droga. Fui muito compulsiva por leitura”, mente veio para o Rio foi possível trazer pronto. O projeto começou com vinte alu-
num apartamento nas cercanias do conta. Aos 7 anos, sua vida sofreu uma ao Brasil o próprio Sinisterra. Ele se en- nos, depois aumentou para duas turmas de
Cemitério Père Lachaise, com seu virada. A mãe se casou novamente, e a cantou com a atuação de Jatahy e a con- sessenta e, por fim, chegou a três classes
companheiro, o belga Thomas Walgrave, menina foi morar na casa do padrasto – vidou para atuar em Ay, Carmela!. com mais de cem estudantes. “A coisa foi
colaborador artístico onipresente em a quem passou a chamar de pai. Foi uma Chamou também Aderbal Freire Filho crescendo e o curso virou um fenômeno”,
seus espetáculos. Mas ela mantém um mudança “da sombra para a luz, e do so- para codirigir a montagem e ser um dos diz Jatahy. Com o Grupo TAL (Teatro Aber-
pé no Brasil. Quando visita o Rio de Ja- nho para a realidade”. A nova família atores da peça, encenada em 1994 no to do Lage), criado na época, ela passou à
neiro, fica na casa que construiu em gostava de se reunir e organizava anima- Teatro Carlos Gomes, também no Rio. direção e montou Sonho de uma Noite de
2005 no bairro Humaitá, no Rio de Ja- dos almoços de domingo. A família do “Sinisterra é muito importante na mi- Verão, de Shakespeare (em 1995), e a Tri-
neiro, com o cenógrafo Marcelo Lipiani, padrasto também era atenta ao mundo nha trajetória”, afirma a diretora. “Foi a logia da Iniciação, a sua primeira, baseada
seu namorado na época e colaborador criativo das crianças. Frequentar o teatro primeira pessoa para quem mostrei as em três clássicos infantis: Peter Pan (que
cênico até hoje. Lá também vivem seu infantil nos fins de semana passou a ser coisas que escrevia, e ele me incentivou a estreou em 1996), Alice (1998) e Pinóquio
cão, Joca, e seu gato, Gil. O ex-casal man- um lazer constante para Jatahy. Ela assis- continuar.” Graças ao dramaturgo, o so- (1999). Nos cinco anos de residência artís-
tém um acordo: Lipiani e sua atual com- tiu várias vezes a Pluft, o Fantasminha, de nho de Jatahy de estudar fora do Brasil se tica no Parque Lage, o seu público chegou
panheira deixam a casa, ou a dividem Maria Clara Machado, e a O Jardim das concretizou. Em 1992, ela foi a Barcelona a mais de 100 mil espectadores, e as peças
temporariamente com Jatahy, quando a Borboletas, de André José Adler. “Copiá- para participar do curso Nuevos Enfo- foram indicadas para doze prêmios.
diretora está no Brasil. “A casa é grande, vamos o texto, comprávamos o disqui- ques de la Creación Teatral, promovido

E
tem dois andares, e na verdade os donos nho, montávamos em casa com minhas pelo grupo de Sinisterra, o Teatro Fron- m 2001, com o espetáculo Carícias,
são o Joca e o Gil”, diz ela, rindo, sem primas. As tias ajudavam, a avó pintava o teiriço. “A cidade estava explodindo, o do catalão Sergi Belbel, a diretora
ocultar a saudade da dupla de animais. cenário, e nos apresentávamos nas festas teatro e a dramaturgia passavam por algo fez as primeiras experiências com a
O olhar vivaz e aguçado sobressai no de aniversário. Era algo que antes eu fa- inovador”, recorda. Jatahy estudou a fun- linguagem audiovisual no palco. Seu de-
rosto fino de Jatahy, com marcantes so- zia sozinha, mas que passou a ser feito do o teatro de Sinisterra, com quem esta- sejo era que o espectador tivesse a pers-
brancelhas, parcialmente escondidas por em meio a um mundo de pessoas, que beleceu um intenso diálogo de trabalho. pectiva de uma câmera nessa peça, que
uma franja. Seus pensamentos parecem era meu lugar de afeto.” Ela acabou sen- Juntos, eles fizeram adaptações teatrais, ela define como “ultraviolenta” (apesar
em constante agitação, pela maneira ir- do matriculada em uma escolinha de como Memorial do Convento, a partir do do título). “A plateia se sentava em arqui-
requieta como se expressa. É também teatro para crianças. Na adolescência, romance de José Saramago, e La Cruza- bancadas móveis, que subiam e desciam,
uma detalhista. Em um dos ensaios de frequentou outro curso, no Colégio An- da de los Ninõs de la Calle, que reunia criando perspectivas de distância e proxi-
Depois do Silêncio, no teatro Centquatre- drews, dado pelo ator e diretor Miguel vários nomes do teatro latino-america- midade, como se fosse realmente uma
Paris, às vésperas da estreia em Viena, a Falabella, de maneira extracurricular. no. “Até hoje Sinisterra me acompanha.” câmera”, descreve Jatahy. “Era incrível,
diretora trabalhava minuciosamente as Aos 19 anos, resolveu morar sozinha e O dramaturgo está com 82 anos. mas dava um trabalho louco.”
cenas, atentando para cada palavra, ento- começou a dar aulas de teatro no Colé-
nação ou gesto, em diálogo permanenteAcesse gio Souza Leão: escrevia
nosso Canal e dirigia a peça
no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS
com as atrizes e a equipe técnica. que os alunos entre 10 e 11 anos apresen-
Com cinco peças atualmente em tur- tavam no encerramento do ano letivo.
nê internacional, sem contar os novos Quando fez 22 anos, foi selecionada para
projetos em andamento, Jatahy passa dar um curso de teatro a funcionários da
boa parte do tempo em trens e aviões. Empresa Brasileira de Telecomunica-
Em cada nova parada, procura se hospe- ções (Embratel, incorporada em 2015 à
dar em apartamentos, não em hotéis, Claro). Empregados de todas as catego-
para ter a sensação de um lar. “Estou rias da empresa frequentavam o curso.
sempre tentando encontrar uma casa “Era um lugar muito democrático em
quando estou fora, esse é o meu cotidia- termos de níveis sociais, e para quem gos-
no. Lavo roupa, faço faxina, vou ao su- tava de teatro era incrível. Montei com
permercado, cozinho, para não comer eles Gimba, Presidente dos Valentes, de
sempre na rua. Enfim, procuro fazer um Gianfrancesco Guarnieri. Foi algo trans-
ninho em cada lugar, pelo menos por formador para eles e também para mim.”
alguns dias.” Pela manhã, ela organiza a O interesse pela atualidade e a escrita
“turbulência dos pensamentos da noite” a levou à faculdade de jornalismo, que
e invariavelmente lê a imprensa brasilei- Jatahy cursou na PUC-Rio, onde mais tar-
ra e estrangeira. Os ensaios teatrais são de faria uma pós-graduação em arte e fi-
em geral programados para a tarde. À noi- losofia. Mas ela não parou com o teatro.
te, ela prefere escrever. Apesar de seu no- Fez cursos dos diretores Carlos Wilson,
madismo, não abdica de sua “família” conhecido como Damião, e Bia Lessa
artística brasileira. Agregou uma equipe no grupo O Tablado, e depois integrou
de criação e apoio que se tornou indis- pela primeira vez uma trupe teatral, o
pensável aos seus espetáculos ao longo Mergulho no Trágico, dirigido por José
dos anos, composta pelo cenógrafo Mar- da Costa. Nessa época, o ator William
celo Lipiani, o diretor de fotografia Pau- Gavião sugeriu que ela encenasse a peça
lo Camacho, o músico Vitor Araújo e o Ñaque o de Piojos y Actores (Ñaque ou so-
coordenador de produção Henrique Ma- bre piolhos e atores), do dramaturgo es-
riano – além de Thomas Walgrave. panhol José Sanchis Sinisterra. Ñaque
Jatahy nasceu em uma família de clas- era o nome dado no século XVII a grupos
se média, filha de uma jovem de apenas de atores cômicos.
16 anos. Sua mãe se casou em seguida, A estreia da montagem, com Jatahy
mas logo o pai saiu de cena. A menina no elenco, não foi no Rio de Janeiro, mas
morou em uma casa em Ipanema habi- em Campina Grande, na Paraíba, por
tada apenas por mulheres – a bisavó, a sugestão do diretor escolhido por ela, o
avó, a mãe e a empregada com sua filha. espanhol Moncho Rodriguez, que pes-
Apesar disso, em sua memória aquele era quisava no Nordeste as raízes ibéricas da

piauí_novembro 75
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do a eles mensagens de texto por celular. do Shopping Leblon, no Rio de Janeiro.


O filme de 1 hora e 50 minutos estreou Enquanto conversavam, o ator percebeu
em 2009 no Festival do Rio. “Ficou doze um paparazzo por trás de uma pilastra,
semanas em cartaz, um sucesso para mirando a câmera fotográfica na sua dire-
uma obra experimental”, avalia Jatahy. ção. “Abri os braços e gritei: ‘Porra, cara!’
Em sua formação, a diretora afirma ter – e chamei o segurança”, recorda o ator.
sido marcada mais por filmes do que por “A Chris levou um susto. Depois, ela me
peças. Para ela, o teatro é insuperável disse: ‘A peça é isso. Estamos aqui conver-
como experiência quando alcança sua sando, completamente imersos em nosso
dimensão mais profunda. “Mas nem papo, e de repente somos interrompidos
sempre isso ocorre”, acrescenta. Já o cine- agressivamente.’ Então entendi o que ela
ma pode impactar mesmo quando não se queria com a peça”, diz Moscovis, rindo.
trata de um grande filme. “Fui levada de Os ensaios duraram seis meses, na casa
muitas maneiras por muitos filmes, que de Jatahy. “E na carga horária que ela gos-
foram determinantes para o que sou hoje ta, de seis a sete horas por dia”, conta o
como artista. Nas mostras de cinema, en- ator. “Foi um espetáculo muito potente,
trava às duas da tarde e saía à meia-noite.” conseguimos viajar bastante. Era uma
Jatahy enumera algumas de suas in- investigação da Chris na expansão da cai-
fluências no cinema: Ingmar Bergman, xa teatral, com câmeras filmando os ato-
John Cassavetes, David Lynch e Michael res se arrumando no camarim, discutindo
Haneke. “No cinema deles há uma mistu- no lado de fora do teatro. Ela propunha
ANDRÍCIO DE SOUZA_2022

ra contundente e visceral entre as relações rasgar aquela construção do palco.”


humanas e um universo onírico, estra-

O
nho, que me ajudou a pensar meu exercí- reconhecimento internacional do
cio artístico.” No cinema brasileiro sua trabalho de Cristiane Jatahy ocor-
escolha recai sobre diretores que apostam reu com Julia, em 2011. Durante o
no documentário ou no realismo. Eduar- Festival Panorama, com apresentações
do Coutinho e Nelson Pereira dos Santos de dança e outras manifestações cultu-
A montagem, contudo, não foi bem momento foi um enorme elogio, pois são suas principais referências. “Nunca fui rais no Rio de Janeiro, os programadores
recebida. A influente crítica Barbara realmente não era”, relativiza Jatahy. As muito de Glauber Rocha”, confessa. “Há estrangeiros que estavam na cidade as-
Heliodora, do jornal O Globo, detestou. palavras de Heliodora foram ainda mais artistas que vão para a expressão extrema, sistiram à peça e convites começaram “a
“A direção de Christiane Jatahy é óbvia, fortes. Ela iniciou assim a crítica publi- incorrendo em certo exagero para atingir chover”, diz a diretora. “Viajamos para
recorrendo à correria e à gritaria para cada em 7 de abril de 2005, no Globo: uma profundidade radical sobre o ser hu- todos os lados na Europa.”
dinamizar os tristes acontecimentos [da “Está em cartaz no mezanino do Sesc, mano e a sociedade. Não gosto do espelho Jatahy afirma que Julia foi o primeiro
peça] [...] Carícias, enfim, é uma das em Copacabana, A Falta que Nos Move, que reflete de maneira torta, mas do que trabalho em que ela assumiu de vez o
mais infelizes investidas teatrais da tem- cuja maior originalidade aparece no fato confronta a realidade. Minha questão é espaço dramatúrgico construído na jun-
porada”, escreveu Heliodora, em 15Acessede de sernosso
este o primeiro,
Canal digamos,
no espetá- muito
Telegram: mais documental. Adoro documen- ção de teatro com cinema, integrando
t.me/BRASILREVISTAS
outubro de 2001. “Ela queria me pren- culo movido pela total falta de ideias.” tário.” Para Jatahy, o cinema em junção projeção e câmera à cena, em filmagens
der, me incendiar em praça pública. Ela A relação entre Jatahy e Heliodora, com o teatro abre um “terceiro território”, ao vivo. “Em Corte Seco, havia câmeras
odiou com todas as suas forças maléfi- entretanto, não foi feita apenas de atritos. no qual ela se aventura em diferentes ca- de segurança, estáticas e dispostas de
cas”, diz Jatahy, às gargalhadas. Passadas Segundo a diretora, ela elogiou Leitor Por madas, narrativas e perspectivas para tra- maneira invisível, que captavam o que
duas décadas, a diretora define o espetá- Horas (outro texto de Sinisterra, encena- tar o que ocorre em cena. “Isso possibilita acontecia naquele determinado quadro.
culo como “fora de seu tempo”, tanto em do em 2005), Julia (baseado em Senhori- novos pontos de vista. Mas o principal Não era cinema. Em Julia, dei um passo
termos de linguagem como de temática. ta Júlia, de Strindberg, de 2011) e E Se para mim é criar essa terceira zona, de adiante, assumindo a questão do cine-
“Não era para aquele lugar e aquele mo- Elas Fossem para Moscou? (adaptação de fricção, e expandir as fronteiras do teatro.” ma em seu formato. Foi a primeira vez
mento. Talvez em São Paulo tivesse sido As Três Irmãs, de Tchékhov, em 2014). Em Corte Seco (2009), ela avançou que usei projeção em cena e a própria
diferente. Era um projeto especial para “Conjugado ela também havia adorado.” ainda mais em suas pesquisas com a lin- câmera filmando ao vivo.”
mim, e que foi extremamente agredido.” Em 20 de março de 2004, Heliodora es- guagem do cinema no palco. Câmeras A senhorita Júlia de Strindberg, uma
Seu trabalho posterior, Conjugado, de creveu sobre Conjugado: “O texto é um estáticas, colocadas dentro e fora do teatro, aristocrata do século XIX, é inserida na
2004, iniciou a trilogia Uma Cadeira para retrato, a um tempo objetivo, divertido e registravam tudo que acontecia no mo- versão brasileira (interpretada por Julia
a Solidão, Duas para o Diálogo e Três doloroso, da solidão de uma jovem boni- mento de apresentação da peça, e Jatahy Bernat) em um bairro rico do Rio de Ja-
para a Sociedade, e marca o aprofunda- ta, empregada e só. [...] A direção de Chris- editava as imagens ao vivo, por meio de neiro e tem uma relação amorosa com o
mento de seu método próprio de drama- tiane Jatahy cria com precisão não só a três monitores. Como um deus ex machi- motorista negro de sua família. Com a
turgia. A peça, um monólogo interpretado impressão da necessidade da exata repe- na, ela controlava o andamento do espetá- peça, Jatahy inaugurou uma trilogia ba-
pela atriz Malu Galli, discorria sobre a tição das várias atividades, como também culo também ao vivo, indicando um ator, seada em clássicos do teatro. A segunda
solidão nos grandes centros urbanos. Na do estabelecimento da sequência em que escolhido conforme uma numeração, para montagem, E Se Elas Fossem para Mos-
pesquisa de campo, Jatahy esteve em reu- elas são executadas.” Com um sorriso, a “cortar” a narrativa de outro e iniciar a sua cou? estreou em 2014 no Rio, com Bernat,
niões de neuróticos e tímidos anônimos, diretora comenta: “Barbara Heliodora não própria fala. O roteiro costurava um mosai- Stella Rabello e Isabel Teixeira (a atriz
e filmando vários testemunhos, que cons- sabia se me amava ou se me odiava.” co de histórias, baseadas em testemunhos, que fez Maria Bruaca em Pantanal).
tituíram a dramaturgia do espetáculo. Em 2008, a peça A Falta que Nos notícias de jornais e processos judiciais, Bernat estava com 21 anos quando par-
“A peça era tipo uma instalação, o espaço Move ganhou uma versão cinematográfi- assumidamente inspirado no filme Short ticipou de Julia e se tornou presença cons-
cênico era um cubo cercado de persianas ca, dirigida por Jatahy. A ideia era subver- Cuts (1993), no qual o diretor Robert Alt- tante nas criações de Jatahy – até a Trilogia
e reproduzia uma casa, com quarto, ba- ter o conceito de cinema como registro man adaptou narrativas do escritor Ray- do Horror, seu quinto trabalho com a dire-
nheiro, geladeira, tevê. Conforme o tem- do que já passou e provocar em quem mond Carver. “Era uma ilha de edição ao tora. Julia permanece em turnê interna-
po ia passando, a personagem abria um assiste ao filme a sensação de estar se ar- vivo. Eu alterava a ordem das cenas, o cional há onze anos, o que tem obrigado
pouco mais as persianas, até o público se riscando no tempo presente. Na noite de tempo de cada uma, como se fosse um a atriz a recusar convites para outros espe-
encontrar dentro da casa, pois a plateia 23 de dezembro daquele ano, a diretora, caleidoscópio social”, explica a diretora. táculos. Mesmo assim, fez cinco filmes
assistia de uma maneira muito próxima.” a equipe técnica (munida com três câ- O ator Eduardo Moscovis havia convi- no Brasil, entre eles Aquarius, de Kleber
A Falta que Nos Move, de 2005, se- meras) e os cinco atores filmaram duran- dado Jatahy para dirigi-lo no monólogo Mendonça Filho, e Campo Grande, de
gunda peça da trilogia, aquela em que o te treze horas na própria casa de Jatahy. O Livro, de Newton Moreno, no momen- Sandra Kogut. Neste ano, conseguiu ar-
elenco e o público esperam um ator que Algumas cenas eram previamente en- to em que ela começava a preparar os en- ranjar tempo para dirigir a peça Saco de
sumiu (e não chega nunca), também saiadas, outras improvisadas. Elas eram saios de Corte Seco. Ele acabou incluído Batata, texto do francês Georges Perec,
não agradou Barbara Heliodora. “Ela registradas sem cortes e, para não inter- no elenco. Para falar sobre o espetáculo, apresentada em agosto passado no teatro
disse que não era teatro, o que naquele rompê-las, Jatahy dirigia os atores envian- os dois se encontraram em um restaurante do Sesc Copacabana. “Perco toda hora

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trabalhos no Brasil, mas é um presente O espetáculo começa com um filme


para mim poder dar continuidade a uma de 26 minutos, pré-gravado em am-
pesquisa com a Chris. É uma relação de bientes internos e externos da Comédie-
confiança que só o tempo traz.” Française e exibido na imensa tela que
A última peça do tríptico de clássicos, ocupa todo o palco. Quando os atores
A Floresta que Anda, a partir de Macbeth, entram em cena, eles interagem com o
foi encenada em 2015. “Essa trilogia tem público num clima de cabaré, cantam
muito a ver com a memória”, diz a dire- canções francesas famosas, enquanto
tora, que recorre à imagem do estilingue tudo é filmado por câmeras, inclusive
para explicar como pensa a dramaturgia com a ajuda de um drone. A crítica fran-
quando trabalha a partir de um texto cesa definiu a criação como um “mini-
original. “Estico a pedra no elástico em terremoto” na casa de Molière.
direção à realidade com a máxima de O projeto seguinte de Jatahy foi o díp-
distância possível, para depois retornar tico Nossa Odisseia, baseado em Homero
ao texto e ressignificá-lo. Julia, por e composto de Ítaca (2018) e O Agora que
exemplo, é muito sobre o microcosmo Demora (2019), criações em que utiliza
social brasileiro, o mundo dos emprega- filmes feitos em diferentes partes do mun-
dos domésticos e patrões, e sobre o ma- do – Palestina, Líbano e África do Sul –
crocosmo também, com as tensões e o para refletir sobre a guerra, as migrações,
horror que atravessam a sociedade fada- os refugiados e o exílio. “Christiane nos
da ao fracasso, porque é uma casa-gran- disse que seus espetáculos são caleidoscó-

ANDRÍCIO DE SOUZA_2022
de e senzala que nunca acaba.” picos, que era preciso que o público crias-
Em 2017, Jatahy se tornou o primeiro se sua própria montagem e filtrasse suas
nome do teatro brasileiro a dirigir uma zonas de atenção”, diz o ator francês Mat-
peça na Comédie-Française, a compa- thieu Sampeur, que fez parte do elenco
nhia mais antiga do mundo, fundada em de Ítaca (e depois de Entre Cão e Lobo).
21 de outubro de 1680 e estabelecida “O espectador sentado ao lado não deve
num requintado prédio perto do Museu ver a mesma peça que você. Por isso, nas
do Louvre. Éric Ruf, diretor da Comé- peças dela sempre ocorrem várias coisas tória anterior costuma ser ignorada. A si- “Sempre reajo ao que está acontecendo
die-Française, disse que saiu “extasiado” ao mesmo tempo. Isso pode não agradar tuação é ainda mais complicada por e, como estamos em um momento tur-
de uma apresentação de Julia, em Paris. a todos. Mas as grandes propostas, em causa do preconceito de gênero. Ela con- bulento, preciso ainda descobrir o que
Sua admiração pelo trabalho de Jatahy geral, não tocam todo mundo, porque são ta que se viu sempre muito solitária como terei vontade de falar quando fizer esse
cresceu após assistir E Se Elas Fossem novas e perturbam.” Sampeur qualifica diretora e sabia que estava sendo mais espetáculo no Brasil.”
para Moscou?, em um festival na Nor- sua experiência no teatro de Jatahy como questionada do que os homens. “Isso é Jatahy se enveredou pelo cinema pro-
mandia. O sucesso de crítica e público “completamente atípica”. “Para cada es- muito violento. Eu sentia essa pressão o priamente dito e está escrevendo o roteiro
alcançado pela diretora brasileira asse- petáculo, ela inventa uma dramaturgia tempo todo, como se estivesse em um de um filme sobre o exílio, ambientado na
nova. Hánosso
gurou a ele que valia a pena convidá-laAcesse sempre algo em torno
Canal no do cine- lugar que
Telegram: não era meu”, diz. “Tinha de França e que terá produção franco-brasi-
t.me/BRASILREVISTAS
para trabalhar na Sala Richelieu, a mais ma-teatro, mas nunca da mesma manei- me explicar, me justificar. E me pergun- leira. Ela também sonha filmar a história
emblemática da Comédie-Française. ra. Cada criação é surpreendente em sua tavam: ‘Quais os contatos que você tem?’ da morte de seu avô paterno, João de Assis
Para sua estreia no histórico recinto forma, porque é meticulosamente pensa- Não são contatos, é o meu trabalho. Por de Almeida Carneiro, em um acidente de
teatral, a diretora optou por um projeto da. Fazer isso a cada vez é fascinante, que questionar quando se tem a possibi- avião. O voo da Pan Am para Nova York
de extrema ousadia: trazer para o palco e nunca vi em outra parte.” lidade de circular pelo mundo e falar do caiu em plena selva amazônica, na ma-
o tempo presente o filme A Regra do Jogo, O crítico Christophe Triau, professor Brasil? Isso não ameaça nem tira nada de drugada de 29 de abril de 1952. Circula-
feito em 1939 por Jean Renoir e sempre de estudos teatrais na Universidade Paris ninguém. Ao contrário, em qualquer ram vários rumores sobre o acidente,
listado entre os dez maiores da história Nanterre e coautor de Qu’Est-Ce que le área artística, abre espaços e curiosidade, como o de que a tragédia teria sido causa-
do cinema. “A Regra do Jogo sempre me Théâtre? (O que é o teatro?), aponta dois gera interesse pelo país e pelas pessoas.” da pela explosão de uma carga de urânio,
impressionou, e foi também meu objeto elementos que levaram com que Jatahy que o avião estaria carregado de barras de

A
de estudo por um semestre na cadeira de se destacasse no cenário europeu: a ma- próxima criação de Jatahy será ouro e que um passageiro transportava
cinema da faculdade de jornalismo”, diz. neira como ela faz a junção entre teatro uma ópera. Em julho do ano que uma fortuna em diamantes brutos. “Hou-
O filme começa em tom de comédia e cinema, e a forma como trata a reali- vem, ela estreia no Grand Théâtre ve uma caça ao tesouro por causa disso.
ligeira e se encaminha progressivamen- dade em seus espetáculos. “Ela faz do de Genebra uma montagem de Nabuc- Os restos dos corpos foram encontrados,
te para a tragédia, enquanto expõe as cinema-teatro um motor dramatúrgico e co, de Giuseppe Verdi, com um coro de menos o do meu avô”, conta.
cisões sociais na França dos anos 1930, não apenas uma técnica a mais. E não se mais de 100 cantores e 75 figurantes. O sonho de aposentadoria da diretora
os preconceitos de classe e de raça, e a contenta em fazer documentário. A ma- “Será algo gigantesco, com um cenário é se refugiar em uma casa à beira-mar
prostração da elite europeia às vésperas neira como convoca o mundo externo lindo, e um trabalho político, pois fala para escrever, tranquilamente, acompa-
da Segunda Guerra Mundial. Na peça, para dentro da cena é muito teatral, in- de uma situação de guerra, uma ocupa- nhada do cão Joca e do gato Gil, aconche-
Jatahy foca em alguns desses temas, teligente, convincente e vertiginosa.” ção e povos escravizados”, revela. gados aos seus pés. Mas ainda falta muito
acrescentando sua visão sobre os des- O objetivo de Jatahy é que cada es- Sua agenda para os próximos anos na para isso. Ela está com energia de sobra pa-
mandos do poder masculino, o drama pectador saia da peça com uma pergun- Europa não termina aí. Ela foi convidada ra novas ousadias teatrais. Thomas Wal-
da imigração e o impacto da superexpo- ta na cabeça. “Sempre foi assim: quando para novos projetos no Schauspielhaus grave define sua companheira não como
sição na atualidade. Em sua versão, o a humanidade se olha e se pergunta, Zürich, no Piccolo Teatro de Milão, no workaholic, mas createaholic. “Ela está
aviador André Jurieux, celebrado no isso leva à mudança da realidade”, diz. Centro Dramático Nacional de Madri, sempre criando, compulsivamente”, diz.
filme por uma travessia recorde do Ela assume que seu teatro é controverso, no festival Temporada Alta, em Girona Jatahy continua a criar mesmo quando
Atlântico, se torna um navegador solitá- mas a discórdia é um conceito que faz (Espanha), no centro de artes Barbican, está dormindo. Às vezes desperta com a
rio que salva imigrantes no Mediterrâ- parte da sua arte. “Meu trabalho quebra em Londres, e no teatro Odéon, em Pa- cabeça cheia de novas questões para suas
neo. Sua namorada, a austríaca Christine regras, divide pessoas. É difícil. Às vezes ris. Recebeu ainda a proposta de criação peças. Não raro, recorre aos seus sonhos
vira na peça uma marroquina, interpre- leio uma crítica ruim e digo: ‘Ooooh.’ de um espetáculo para o projeto História para elaborar os espetáculos. Ela garante
tada por Suliane Brahim, única atriz Depois leio uma boa e digo: ‘Aaaah.’ do Teatro, do suíço Milo Rau, diretor que faria “altos filmes” se fosse capaz de
de origem árabe da Comédie-Françai- E está tudo certo. Aqui na Europa, ao artístico da companhia de teatro belga registrar tudo que sonha. “Vou dormir
se. E o guarda de caça alemão Édouard menos, nunca tive que provar quem sou NTGent. E tem dois planos mais pessoais: pensando: que bom, agora vou sonhar!
Schumacher, empregado da rica proprie- a cada novo trabalho.” uma peça cujo ator será o dramaturgo São sonhos ricos em termos de roteiro,
dade onde se passa o filme, se torna um A diretora lamenta que, no Brasil, os português Tiago Rodrigues, atual dire- bastante imagéticos e com muita drama-
segurança africano na pele do ator fran- artistas sempre têm que recomeçar do tor do festival de teatro de Avignon, na turgia”, conta. “Meus sonhos talvez sejam
cês Bakary Sangaré. zero para certificar seu valor, pois a traje- França, e uma nova criação no Brasil. uma utopia do que tento fazer.” J

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diário_HOMERO VELHO

A ÓPERA E O HOSPÍCIO
Um barítono conta sua participação em Navalha na Carne, baseada na peça de Plínio Marcos

12 DE JANEIRO DE 2022, QUARTA-FEIRA_


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estreado em 2020, mas a Covid não dei- verbalmente e só assinarem os contratos no Theatro Municipal do Rio, em julho.
Hoje assinei oficialmente o contrato xou. Como o barítono que iria fazer o pa- de fato na última semana de trabalho. É um malabarismo: tenho que equilibrar
para Navalha na Carne, uma ópera ba- pel de Veludo não podia atuar na nova data, Ou seja, primeiro vem o convite, e ape- o tempo entre diversas peças e achar a
seada na peça homônima de Plínio fui convidado para fazer o personagem. nas depois, bem depois, ficamos sa- melhor maneira de mantê-las todas no ar.
Marcos. As salas de espetáculo estão Até a segunda metade do século XIX a bendo o valor do cachê. É como se nós, A partitura de Navalha na Carne tem
reabrindo, e a encenação será no Thea- indústria da ópera dependia da constante cantores, devêssemos ser gratos apenas em torno de noventa páginas. É uma
tro Municipal de São Paulo, junto com renovação de títulos. Por volta dos anos por nos chamarem para trabalhar. ópera curta, de menos de uma hora, e a
outra ópera, Homens de Papel, também 1920, essa renovação diminuiu e come- Com o contrato na mão, posso come- primeira coisa que me chama a atenção
a partir de uma peça do dramaturgo. çou a museificação do repertório existen- çar a estudar a música, que me pareceu é a diversidade dos usos da voz. Nessa
Sou cantor de ópera. Não há muitos te. O resultado é que, de um conjunto menos complicada do que eu tinha ima- ópera, além de cantar, tenho muitos
que atuam nesse ramo no Brasil. Em- gigantesco de óperas, nós escutamos ape- ginado. Ainda falta muito para o início Sprechgesänge (fala cantada, ou canto
prego fixo como cantor lírico no país só nas cerca de quarenta, apresentadas repe- dos ensaios, que só começam em março, falado, muito utilizado na música ex-
se encontra em coros profissionais, que tidamente. Por isso, a adaptação dessas mas preciso encaixar Navalha na Carne pressionista do século passado), fora os
por aqui são raros: não passam de sete duas peças é uma decisão ousada, além em minha rotina. Além das aulas, tenho vários gritos que dou... Vai ser divertido,
ou oito. A maior parte dos cantores líri- de inusitada. Quem imaginaria que os outros compromissos como cantor. com certeza. Em sua primeira aparição,
cos é freelancer. Para sobreviver, preci- marginais de Plínio Marcos seriam trans- Vou ter que elaborar um plano geral Veludo canta: “Chamou, Neusa Sueli?”
sam trabalhar como professores, dando formados em personagens de ópera? de estudo que me dê tempo para aprender Para mim, este diário é não apenas
aulas particulares ou em escolas de mú- Mas, se a ópera pretende ter relevância e memorizar tudo aquilo que sei que vou uma maneira de falar um pouco dessa
sica, como é o meu caso. Sou também hoje, é preciso que fale de temas atuais. cantar neste ano. Depois dessa etapa, arte bizantina, mas estranhamente vi-
professor de canto lírico na Escola de Tal como a peça, a ópera Navalha na tenho que trabalhar questões técnicas ciante que é a ópera. É também uma
Música da Universidade Federal do Rio Carne se passa num bordel e tem apenas vocais de cada ópera ou concerto. Essa tentativa de organizar um início de ano
de Janeiro (UFRJ). Durante a pandemia, três personagens: a prostituta Neusa Sue- é a parte mais demorada porque, no fun- já carregado de muita emoção devido à
eu rezava todos os dias (metaforicamen- li, o cafetão Vado e o homossexual Velu- do, todo músico que se preze tem um morte do meu pai, no dia 2 deste mês.
te), agradecido por ter um salário fixo. do. A estreia da peça ocorreu em 1967, pouco de TOC [transtorno obsessivo-com- Ele e minha mãe sempre foram os maio-
Gosto de meu emprego como professor, durante a ditadura militar. Foi encenada pulsivo]. Às vezes trabalhamos horas e res incentivadores para que eu cantasse.
mas não há nada parecido com o palco. em São Paulo e no Rio de Janeiro (onde horas em uma frase musical até que fi-
As duas óperas são as primeiras enco- Tônia Carrero interpretou o papel de que satisfatória. 22 DE JANEIRO, SÁBADO_Aproveitei o dia
mendas feitas especificamente para o Neusa Sueli). Mas a censura logo reagiu Como Navalha na Carne é a primeira para ler outras peças de Plínio Marcos:
Theatro Municipal em mais de um sécu- ao audacioso mergulho do paulista Plí- ópera que farei no ano, com estreia pre- Dois Perdidos Numa Noite Suja, Homens
lo de existência dessa casa de espetáculos. nio Marcos no universo da marginalida- vista para abril, vou dedicar mais tempo a de Papel e Quando as Máquinas Param.
O compositor paulista Leonardo Marti- de e da falta de perspectivas da sociedade ela até o Carnaval. Quando estiver mais Acho que entendi o que ainda assusta nes-
nelli fez a partitura de Navalha na Carne. brasileira. O espetáculo foi proibido e só seguro da música, começarei a memori- ses trabalhos do fim dos anos 1960: é o fato
A venezuelana Elodie Bouny criou a de voltou a ser encenado em 1980, quando zar Peter Grimes, de Benjamin Britten, de o Brasil retratado nelas (e que Plínio
Homens de Papel. As encenações serão a ditadura já chegava ao fim. que será apresentada no Festival Amazo- conhecia tão bem) ser ainda o Brasil no
comandadas pelos diretores Fernanda Escrevi no início desse diário que as- nas de Ópera em Manaus, em maio. Mas qual vivemos. Lembro que, em 2018, ouvi
Maia (a primeira ópera) e Zé Henrique sinei o contrato “oficialmente” porque é já comecei a olhar o papel de Leporello, falar que alguém estava compondo uma
de Paula (a segunda). Ambas deveriam ter comum cantores serem “contratados” em Don Giovanni, de Mozart, que farei ópera baseada em Navalha na Carne, e

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RAFAEL SALVADOR_2022
Homero Velho, no camarim do Theatro Municipal de São Paulo: “O fato de o personagem Veludo ser homossexual é um desafio em si. Papéis explicitamente homossexuais são raros na ópera”

Acesse
fui ver a peça no Rio de Janeiro. Saí inco-
nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS
bre como é difícil para um cantor se de- Francisco Manuel da Silva, compositor do (Unicamp) e uma das mais importantes
modado do teatro. O texto era cristalino, senvolver em um país como o Brasil, onde Hino Nacional Brasileiro e idealizador cientistas sociais da área de ciência e tec-
embora um pouco datado. Mas a violên- há pouca possibilidade de subir ao palco. do Imperial Conservatório de Música, nologia da América Latina. Meu pai,
cia simbólica e as agressões verbais me O trabalho individual do cantor em hoje a Escola de Música da UFRJ. Vascu- Paulo Velho, que faleceu em janeiro,
impressionaram: Plínio Marcos usava a casa ou com o professor é apenas uma lhando um acervo, achei uma canção de- aos 72 anos, trabalhou no Ministério da
linguagem como uma navalha. parte da preparação. É na hora que va- le, mas como era uma cópia feita à mão, Ciência e Tecnologia, emprego que ele
Não é fácil tomar uma peça de sucesso mos para o palco, com uma orquestra de fui atrás do original para conferir. Um dos odiava, tanto que teve um enfarto aos
como base para uma ópera. Ao fazer isso, verdade, que começamos a ter uma no- professores de canto é especialista nesse 38 anos. Depois de um périplo por Esta-
muitos compositores cometeram erros. ção completa do que significa cantar. repertório e está trabalhando na edição das dos Unidos e Escócia, ele voltou ao Brasil
Há duas décadas, André Previn escreveu A pessoa tem que se expor para apren- obras de Francisco Manuel da Silva para e terminou o doutorado em ciências so-
uma ópera baseada em Um Bonde Cha- der. No ano em que mais cantei no Bra- um lançamento da Biblioteca Nacional. ciais na Unicamp com uma análise da
mado Desejo, de Tennessee Williams, sil, subi ao palco 36 vezes, se estou bem Perguntei ao professor se poderia me controvérsia sobre a lei de proteção inte-
que não deu muito certo. Verdi talvez seja lembrado. Tem cantor na Alemanha que deixar ver o original, para me certificar de lectual na produção de variedades agrí-
o compositor mais bem-sucedido nessa canta até 130 dias por ano. Aqui existem que a minha cópia estava correta. Ele res- colas no Brasil. É curioso que tanto meu
tarefa, quando decidiu adaptar três peças apenas seis ou sete teatros ou orquestras pondeu que eu deveria esperar a publi- pai quanto minha mãe tenham se forma-
de Shakespeare, Macbeth, Otello e Fals- que montam ópera de maneira regular, cação do livro. Fiquei estarrecido. Ele do em agronomia. Minha irmã, Raquel,
taff. Mas, para estas duas últimas óperas, e mesmo assim não têm um número es- poderia simplesmente ter dito que não é socióloga e trabalha no Instituto Poli-
ele contou com Arrigo Boito, um libretis- tável de produções por ano. tinha a partitura. Mas isso era pouco: técnico Rensselaer, em Troy, nos Estados
ta extraordinário. O poeta Hugo von Hof- Por isso, é fácil dizer que os cantores afirmou que tinha a partitura, sim, mas Unidos. Somente o meu irmão, Tiago,
mannsthal foi o libretista dos maiores brasileiros são menos competentes que para satisfazer o próprio ego fez a esco- não se interessou pela vida acadêmica.
triunfos operísticos de Richard Strauss, os estrangeiros (o que não é verdade) e lha consciente de não dividi-la comigo. Eu nunca havia considerado ser pro-
como Elektra e Ariadne em Naxos. Mo- ainda usar esse argumento como des- Essa não é a atitude de um músico, que fessor universitário, mas dado o histórico
zart teve o poeta e padre Lorenzo da Pon- culpa para trazer cantores medíocres do entende que a música não é um conjun- familiar, foi difícil escapar. Embora tenha
te, outro grande libretista, como parceiro exterior para cá, algo que se praticou to de notações, mas só existe a partir do ressalvas sobre a maneira como a música
em óperas como As Bodas de Fígaro e bastante no Municipal de São Paulo, no momento em que é executada. Lamento é ensinada na universidade brasileira, sin-
Don Giovanni. Uma ópera pode até ter passado. O Estado brasileiro investe em que o pesquisador de uma universidade to muito orgulho dos cantores que formei
sucesso sem um bom libreto, mas dificil- instituições de ensino musical (faculda- pública tenha tido comportamento tão nesses anos, vários dos quais cantam pro-
mente será uma grande ópera. des, conservatórios, programas sociais), mesquinho e distante do espírito da so- fissionalmente no Brasil e no exterior.
mas isso não basta: é preciso que as pes- cialização do conhecimento que é um
30 DE JANEIRO, DOMINGO_Na volta da praia soas tenham onde trabalhar. dos objetivos da pesquisa acadêmica. 23 DE FEVEREIRO, QUARTA-FEIRA_Já apren-
(uma das poucas alegrias que ainda res- Venho de uma família de acadêmi- di e memorizei toda a ópera Navalha na
tam a quem mora no Rio de Janeiro), co- 22 DE FEVEREIRO, TERÇA-FEIRA_Tive hoje cos. Nasci em Ribeirão Preto, no interior Carne. Mas não vou conseguir um pia-
mentei com um colega que canta na um choque com um colega da universida- paulista, e moro no Rio há vinte anos, nista para “passá-la” comigo aqui no Rio.
Alemanha (a meca da ópera no mundo) de. No fim do ano farei um recital sobre o sendo que há quinze dou aulas na Escola O cantor precisa do pianista como o pei-
sobre Navalha na Carne, e ele perguntou repertório brasileiro para canto e piano de Música da UFRJ. Minha mãe, Léa Ve- xe precisa de água, pois sem ele não dá
quantas récitas teríamos. Serão apenas seis entre 1822 e 1922. Achei importante in- lho, é professora titular aposentada da para praticar de verdade. Cantar sozinho
apresentações em São Paulo. Falamos so- cluir no programa algum trabalho de Universidade Estadual de Campinas é uma coisa, com o pianista, outra, e com

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passado, ele se despediu de mim em so- do de ensaio de uma ópera dá menos tem-
nho. Disse: “Filho, estou indo.” Eu res- po à pesquisa e à experimentação com o
pondi: “Está indo aonde, cara? Não vai elenco. É um período muito mais curto
não.” Mas ele apenas falava que “sim” e do que no teatro, e a construção dos per-
que estava tudo bem. Na manhã seguin- sonagens começa de maneira individual,
te, quando acordei e peguei o celular, assim que recebemos a partitura. Isso quer
tinha várias chamadas da clínica onde dizer que os cantores já chegam com uma
meu pai estava internado. O estado de saú- ideia bem definida sobre o personagem e
de dele havia piorado. Ele faleceu dois me-é no primeiro dia de ensaio que começa-
ses e meio depois. mos a ver quanto do que imaginamos bate
com a concepção do diretor.
10 DE MARÇO, QUINTA-FEIRA_Cheguei em A montagem de uma ópera segue um
Lisboa. Vivi (como chamamos minha fi- esquema padrão bem determinado: três
lha Virgínia) fez reserva em um restau- semanas para ensaios musicais e cênicos
rante ao lado da escola dela. Foi lá que e uma semana de ensaios com orquestra.
encontramos Juliano para o almoço. Ele Os primeiros ensaios são dedicados à
me abraçou forte, me olhou para conferir parte musical: o elenco, o maestro e um
se era eu mesmo, e me abraçou de novo. pianista (tocando uma redução da parte
Foi uma coisa linda que ele fez, tanto as- orquestral) fazem a ópera do começo até
sim que chamou a atenção do pessoal da o fim. O ensaio progride à medida que
mesa ao lado. Mais tarde, Vivi teve uma vai surgindo um direcionamento dramá-
ANDRÍCIO DE SOUZA_2022

dor misteriosa no quadril, e lá fomos nós tico-musical com o qual todos estão re-
ao hospital, onde ficamos durante quatro lativamente felizes. Depois, o diretor
horas. Não foi detectado nada de ruim. começa a trabalhar a encenação teatral
da ópera. O cantor, como se vê, é um
17 DE MARÇO, QUINTA-FEIRA_Amanhã vol- pouco como o Arlequim de Goldoni:
to para o Brasil porque os ensaios da ópera serve sempre a dois mestres.
começam na próxima segunda-feira. Des- Na semana final de ensaios, o processo
pedir de meus filhos é sempre horrível. se torna ainda mais complexo, porque há
a orquestra, outra ainda. Colegas que primeira montagem de O Fantasma uma série de ajustes técnicos a serem fei-
moram na Europa gastam rios de dinhei- da Ópera em São Paulo. Foi a pior expe- 20 DE MARÇO, DOMINGO_Geralmente, te- tos ao nos dirigirmos para o palco. Como
ro se preparando com um pianista que riência profissional da minha vida: tra- nho insônia antes do primeiro ensaio de o maestro agora está no fosso da orquestra,
conhece vozes líricas. Necessitamos de balhávamos muito e ganhávamos pouco. uma ópera. Dessa vez, porém, estou es- isso exige uma atenção maior da parte dos
um “ouvido externo” para poder ter uma tranhamente tranquilo. Ajuda muito o cantores. Agora o cantor precisa projetar
ideia precisa sobre como estamos cantan- 3 DE MARÇO, QUINTA-FEIRA_A guerra na fato de eu estar hospedado em São Paulo sua voz de maneira que se faça audível no
do. Alguns teatros também dispõem de Ucrânia, que começou há uma semana, na casa da minha namorada, e não em teatro todo e não seja abafada pela orques-
especialistas em línguas e dicção. Tudo está balançando
Acesse nosso Canal também noo mundo
Telegram: hotel. E me tranquiliza estarmos to- tra. Fora as questões musicais, os cantores
da um t.me/BRASILREVISTAS
isso pode parecer frescura, mas, quando música erudita: músicos, cantores e com- dos partindo na ópera do mesmo ponto têm que lidar com luzes, cenário (rara-
essas coisas funcionam bem, o canto líri- positores russos estão sendo cancelados zero, porque é uma estreia. Vai ser um mente temos acesso ao cenário completo
co alcança a transcendência. em toda parte. Esse tratamento me pare- processo coletivo de descobrimento de antes dos ensaios no palco) e figurinos,
Comecei a estudar música porque ce ignorante e hipócrita. Será que daqui um trabalho que ninguém nunca mon- que podem alterar radicalmente a relação
meu pai me inscreveu na Escola de Mú- a pouco vai fazer parte do processo de tou. Além disso, estou me sentindo mui- com o personagem que foi ensaiado (e
sica de Brasília quando eu tinha 12 seleção artística para um trabalho saber to bem preparado musicalmente. nunca conseguimos ensaiar com o figuri-
anos. A escola funcionava como um quem os artistas apoiam politicamente? no pronto antes do ensaio geral).
conservatório e era muito concorrida. Hoje é aniversário de 13 anos de Julia- 21 DE MARÇO, SEGUNDA-FEIRA_Eu me É exatamente isso que me enche de
Tínhamos aula de teoria, percepção e no, meu filho mais velho, que está mo- sentia tão tranquilo ontem à noite que, às tesão nesse trabalho. Como disse o poe-
flauta doce. Só podíamos escolher um rando em Portugal com minha ex-mulher 11 horas, já estava dormindo. Acordei ta e jornalista Álvaro Moreyra, “a ópera
instrumento no segundo ano. Escolhi o e minha caçula, Virgínia. Já é o terceiro às oito da manhã, tomei café e fui para é o teatro no hospício”. Há alguns anos,
fagote, porque era o que tinha sobrado. aniversário que passo longe dele. Escrevi o Theatro Municipal a pé. Na caminha- finalmente entendi por que estar no pal-
Fiquei apenas um ano e meio na escola, uma mensagem enorme sobre como sin- da que durou vinte minutos, atravessei co, cantando, é algo tão fascinante: eu
mas o período serviu para me dar no- to falta de todas as coisas que fazíamos a Boca do Lixo, cheguei à Praça da Re- me sinto em um estado de consciência
ções básicas que guardei para sempre. juntos, até as mais chatas. Daqui a seis pública, peguei a Rua Barão de Itape- total, muito ligado ao instante e, ao mes-
Durante toda a adolescência perma- dias viajo a Lisboa para ver meus filhos. tininga, seguindo até o final, onde fica mo tempo, muito além dele.
neci em contato com a música: no coral Tenho também uma filha de 31 anos, o teatro, no Centro de São Paulo. Fiz o
comunitário, na banda de rock com os Raphaella. Ela não cresceu comigo, por- caminho tomado por uma sensação pa- 22 DE MARÇO, TERÇA-FEIRA_Hoje, a pri-
amigos, na orquestra da escola. Tive a tanto sei muito bem o que significa estar recida com a de um estudante que en- meira parte do ensaio foi com regência
sorte de estudar em escolas que tinham ausente do dia a dia de um filho. frenta o primeiro dia de aula. Detesto do maestro Roberto Minczuk, titular da
programas de música nos Estados Uni- Após a morte de meu pai, no início do rotina, mas esse será o meu trajeto diário. Orquestra Sinfônica Municipal de São
dos e no Reino Unido, onde meus pais ano, todas essas questões tomaram uma Ao chegar ao teatro para o primeiro Paulo (a orquestra do Theatro Munici-
foram fazer doutorado. Comecei a can- dimensão diferente para mim. Eu era lou- ensaio, estavam lá meus dois colegas de pal). Ensaiamos quase a ópera toda, e fi-
tar aos 16 anos no coro de uma high co por ele. Meu pai viveu dez anos com elenco: Fernando Portari, que faz o pa- quei bastante contente com o resultado.
school norte-americana em Columbus, uma demência progressiva que literal- pel de Vado, e Luisa Francesconi, que Geralmente esses ensaios com o maestro
no estado de Ohio. Nessa época, fiquei mente o desintegrou. Esses anos desinte- interpreta Neusa Sueli. Conheço Luisa são os mais difíceis para mim, porque,
apaixonado pelos dois grandes musicais graram, pouco a pouco, as memórias que de longa data. Já cantamos várias óperas embora eu me sinta muito à vontade no
da década de 1980, O Fantasma da Ópe- eu tinha dele e que jurava serem perenes. juntos e esse bom relacionamento será palco, não paro de me questionar: Será
ra e Os Miseráveis. Se isso aconteceu comigo, em relação ao fundamental, pois em Navalha na Car- que ele vai gostar do que estou fazendo?
Aos poucos, comecei a ir à ópera e meu pai, o que esperar da convivência ne nós nos xingamos e nos agredimos o Estou afinado? Com o tempo, adquiri
entender que a música e o canto eram esporádica que tenho com meus filhos? tempo todo. Encontro também uma ve- experiência e consegui colocar parte des-
muito mais interessantes. No Reino Uni- Eu me esforço constantemente para fazer lha conhecida, Karin Uzun, nossa pia- sa insegurança de lado, mas algumas
do, vi muitas óperas. Para assistir ao Lu- parte da vida deles, nem que seja para nista. Os ensaios vão durar duas semanas. dúvidas ainda me ocorrem.
ciano Pavarotti cantar, passei uma noite dizer apenas “te amo”, todos os dias. Gostei bastante de Fernanda Maia, a O fato de Veludo ser homossexual é
na fila da bilheteria do Royal Opera Depois que meu pai sofreu um der- diretora cênica, que é mais ligada ao tea- um desafio em si. Não há muitos perso-
House, em Londres. Valeu cada segun- rame, eu raras vezes sonhei com ele. tro musical. Em geral, diretores de teatro nagens homossexuais no universo da
do. Ironicamente, em 2005, participei da Mas, na noite de 24 de outubro do ano têm dificuldade em entender que o méto- ópera. Existem papéis que chamamos de

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“travesti”: mulheres que desempenham 28 DE MARÇO, SEGUNDA-FEIRA_Na minha pelo cenário, tendo o cuidado de sermos harmônicos muito sutis. Mas paro por
papéis de homens. Mas essa escolha é caminhada de volta para casa, vindo do bem precisos do ponto de vista musical. aqui essa explicação sumária, antes que
mais ligada a uma questão vocal. Mo- ensaio, passei por um mendigo que esta- No ensaio à italiana, os cantores en- algum colega venha me corrigir.
zart, em As Bodas de Fígaro, escreveu o va fazendo cocô no meio da rua. Meio tendem qual é o nível de volume da O ensaio de hoje foi preocupante.
papel do Cherubino (um menino adoles- quarteirão depois, vi um casal sendo ser- orquestra, qual é a textura da orquestra- A orquestra é gigantesca (tem cerca de
cente) para um soprano, pois ele achava vido por uma garçonete negra que hesi- ção, como suas vozes vão se mesclar oitenta músicos), com alguns instru-
que o timbre da voz combinava melhor tava em se aproximar da mesa por medo com os outros instrumentos – em suma, mentos não tradicionais (contrabaixo
com o personagem. A mesma coisa fez do cachorro dos fregueses, que garan- a natureza da fera. É um ensaio tenso, acústico e bateria) e uma quantidade
Richard Strauss com o papel do jovem tiam que o bicho era manso. Essas coisas mas um dos mais importantes, pois a enorme de percussão e metais. Canto-
compositor em Ariadne em Naxos: é um me fizeram lembrar uma frase de Nava- partir daí compreendemos o que preci- res não gostam de competir com os me-
meio-soprano que o interpreta. lha na Carne, quando a personagem sa ser alterado na encenação para apri- tais, os instrumentos que chegam mais
Há vários outros exemplos. Mas papéis Neusa Sueli se pergunta: “Às vezes chego morar a comunicação com o maestro e próximos, acusticamente, da voz. O re-
explicitamente homossexuais são raros. a pensar: ‘Poxa, será que sou gente? Será privilegiar a emissão das vozes. sultado é que estávamos gritando para
A homossexualidade na ópera começa a que eu, você, o Veludo somos gente? Do ponto de vista acústico, uma voz conseguir ser escutados. Mas, o.k., foi
se impor como questão relevante a partir Chego até a duvidar.’” Que sacada de solitária nunca é mais alta (em volume) apenas o primeiro ensaio italiano.
de meados do século XX, particularmente Plínio Marcos: no Brasil, algumas pesso- do que uma orquestra sinfônica. Os can- O ideal é que as vozes sejam apoiadas
com as óperas de Benjamin Britten, como as vivem tão à margem que se sentem tores líricos passam anos desenvolvendo pela orquestra, mas sempre em um pata-
Peter Grimes (a história de um pescador excluídas da própria humanidade. Ainda habilidades de coordenação muscular mar de destaque. Caso contrário, elas se
acusado de ter matado um jovem), Billy na volta para casa, avistei na rua um car- para que sua voz possa ser escutada aci- tornam apenas mais um som da massa
Budd (baseado no livro de Herman Mel- taz de papelão deixado por um pedinte ma da massa sonora orquestral. Isso se orquestral, e o ouvinte não consegue dis-
ville e que se passa inteira em um navio da que dizia: “Estou comendo lixo.” dá, principalmente, pela configuração tinguir o que está sendo cantado. Era
Marinha britânica durante as guerras na- acústica do trato vocal (tudo o que está possível escutar as vozes, mas elas soavam
poleônicas) e Morte em Veneza (baseada 29 DE MARÇO, TERÇA-FEIRA_Hoje foi o acima da laringe), buscando fortalecer o distantes, e o texto, incompreensível.
na novela de Thomas Mann). Óperas primeiro dia de ensaio no palco com que chamamos de “formante do cantor”. Confesso que não sabia como iam
mais modernas, como Harvey Milk (de cenário: dois quartos de um hotel de Formantes são frequências naturais de soar, cantados, os vários palavrões da
Stewart Wallace, com libreto de Michael quinta categoria. Gostei bastante. ressonância do trato vocal, medidos em peça. Em dado instante, por exemplo,
Korie, sobre o ativista gay norte--america- Sempre temos um período de adap- ciclos por segundo (hertz, ou Hz). Em Neusa Sueli canta: “Tudo isso é uma
no) e Brokeback Mountain (de Charles tação quando passamos para o palco. um cantor, o formante é resultado da am- bosta, um monte de bosta.” Impressio-
Wuorinen, com libreto da escritora Annie O Municipal de São Paulo tem mais plificação sonora das frequências entre nante: soa muito bem. Em outro mo-
Proulx, autora do conto original) lidam ou menos 1,5 mil lugares. Não chega a 2 mil e 3 mil Hz, o que faz com que sua mento, Veludo canta: “Sua vaca!” Não
com o tema da homossexualidade de ma- ser um teatro enorme (o do Rio tem voz não concorra acusticamente com os são exatamente palavras que associamos
neira direta, mas ainda não se estabelece- 2,2 mil), mas é impressionante como a instrumentos da orquestra. Por essa ra- às óperas, mas achei muito convincente
ram como parte do cânone operístico. relação acústica dos cantores se modi- zão, cantores de ópera não precisam de a maneira como foram incorporadas à
O compositor Leonardo Martinelli fez fica conforme o espaço. microfone. Não é apenas uma questão melodia. Martinelli foi bastante inteli-
uma escolha bastante interessante ao dar Passamos dez dias ensaiando em de volume puro e simples, mas de ajustes gente ao fazer com que os palavrões
a um barítono, voz intermediária mascu- uma sala pequena onde a voz funciona-
lina, o papel do homossexual. Isso nuncaAcesse
va de maneira
nossomuito fácil. No
Canal nopalco, a
Telegram: t.me/BRASILREVISTAS
me causou estranheza, mas muitas pes- referência acústica muda radicalmente.
soas me escreveram querendo saber se Precisamos obter uma intensidade Ministério do Turismo e Livelo apresentam

funcionava, pois a maneira estereotipada maior da voz para fazer com que tudo
de pensar a homossexualidade os levava que cantamos e falamos seja audível na
a achar que o papel de Veludo coubesse sala inteira. Isso obviamente tem impli-
melhor ao tenor, que é a voz masculina cação direta na atividade física que usa-
mais aguda. A verdade é que a voz do te- mos para produzir a voz.
nor tem naturalmente certa agressividade Navalha na Carne é uma peça extre-
que combina com o personagem do cafe- mamente física, com muita ação, inclu-
tão Vado, e o Veludo ganha em profundi- sive cenas de agressão. Em uma
dade sendo cantado por uma voz mais montagem de teatro, isso causa menos
grave. Não precisei alterar minha voz problemas, pois o tempo dramático é
nem fingir cantar em outro registro para construído do zero pelo diretor e pelos
fazer esse papel. Achei um acerto. atores. Na ópera, o tempo dramático é
Como a peça de Plínio Marcos, a preestabelecido pelo compositor. Ou
ópera tem uma duração curta (45 mi- seja: o tapa que se dá em alguém preci-
nutos) para os padrões do gênero, e sa acontecer no terceiro tempo do com-
acho que o nosso período de ensaio vai passo 22; o puxão de cabelo tem que
ser suficiente. Depois de dois anos e ser no primeiro tempo do compasso 39.
meio de pandemia, poder fazer esse tra- A coreografia deve ser certeira, pois o
balho que eu realmente amo me traz tempo musical não admite muita flexi-
uma sensação libertadora. bilidade. Além disso, o cantor precisa
estar em determinada posição para ter
25 DE MARÇO, SEXTA-FEIRA_Terminamos uma visão melhor do maestro e para
de ensaiar hoje. Isso quer dizer que conse- que sua voz se projete bem no teatro.
guimos esquematizar fisicamente a ópera Tudo isso deve ser feito de maneira sutil
toda, estabelecemos o grosso das relações para que a plateia não tenha a impres-
entre os personagens e estamos todos de são de que os cantores estão “presos”

ATOS DE REVOLTA
acordo com o que está acontecendo no em determinada posição.
palco. Levamos cinco dias apenas. Para
uma ópera curta, com muita ação cênica, 31 DE MARÇO, QUINTA-FEIRA_Fizemos
achei que foi um bom ritmo de trabalho. hoje o ensaio à italiana. Esse é o nome
A peça é intensa, e a ópera não poderia ser que damos para o primeiro ensaio dos
OUTROS IMAGINÁRIOS
diferente. O próximo passo é detalhar cantores com a orquestra. A ideia é con-
mais os personagens, trabalhar melhor a centrar exclusivamente na música e dei-
SOBRE INDEPENDÊNCIA
fisicalidade de cada um e, obviamente, xar a encenação em segundo plano.
deixar a música ainda mais precisa. Fizemos tudo sem nos movimentarmos Organização Patrocínio Estratégico Patrocínio Master Realização

piauí_novembro 81
imagem: Marcela Cantuária, Maria Felipa e a fera do mar, 2022 [detalhe], foto Fabio Souza/MAM Rio
5 de 5 27/10/22 PROVA FINAL

mais fortes (“filho da puta”, “piranha”, que desligar. A caminho do teatro, li- A essa altura do meu envolvimento com
“monte de merda”) fossem falados, e guei para o meu banco – era um golpe. Navalha na Carne, que já dura quase
não cantados, evitando assim que pu- O figurino do Veludo consiste em um cinco meses, não tenho muito distancia-
dessem provocar risos na plateia. body que simula uma camada de múscu- mento para avaliar o espetáculo. Mas me
A música de Navalha na Carne é de los (pintados à mão sobre a peça de roupa) parece que funciona muito bem. Tem
muito boa qualidade e bem evocativa e um robe de chambre de cor dourada, que coerência musical, ritmo, dramaticidade
do clima da peça. Imagino a emoção e esconde esse body até o momento final da e é absolutamente fiel à peça original.
o nervosismo do compositor Leonardo peça. Estou com o cabelo comprido (abai-
Martinelli ao escutá-la ser cantada pela xo dos ombros) e acho que consegui dar 7 DE ABRIL, QUINTA-FEIRA_ Navalha na
primeira vez num palco, com orquestra. contornos físicos à feminilidade do perso- Carne vai estrear amanhã, junto com
nagem, sem cair na caricatura. Foi um Homens de Papel, a outra peça de Plí-
1º DE ABRIL, SEXTA-FEIRA_À noite, tivemos desafio, mas me parece que estão todos nio Marcos transformada em ópera.
ensaio de conjunto, com orquestra e mo- bem contentes, inclusive eu. O estilista As apresentações serão uma após a
vimentação cênica, embora ainda sem João Pimenta, que fez nosso figurino, tem outra. Teremos três dias seguidos de
figurino. Nessa etapa, o objetivo é con- nos ajudado bastante a encontrar o tom récitas, um dia de descanso e, depois,
centrar mais na música do que na ação certo para cada personagem. mais três dias de récitas. Hoje foi dia
cênica. Tudo fluiu bem. Continuamos, O bom de trabalhar com um time de descanso, antes da estreia.
porém, com certo desequilíbrio entre central pequeno – somos cerca de dez Apesar de eu estar de folga, acabei
cantores e orquestra. Parte desse proble- pessoas, entre cantores, diretora, assis- indo ao teatro para gravar uma entrevis-
ma, acredito, é porque os instrumentistas tentes, figurinista, cenógrafo e maestro ta para o Canal Brasil sobre a situação
no Brasil estão mais acostumados com a – é que as pessoas parecem mais aces- da ópera no país. Ao passar embaixo do
música orquestral, quando podem tocar síveis e dispostas a escutar aquilo que vo- Minhocão, vi dois mendigos se digla-
com mais volume. Na ópera tem que ha- cê pensa sobre a montagem. O processo diando por causa de lixo – uma disputa
ver uma adaptação. Se a orquestra toca todo de ensaio, até agora, foi incrivel- muito parecida com uma cena da peça
em um volume muito alto, os cantores mente tranquilo. Homens de Papel, que é sobre um grupo
Vermelho automaticamente cantam mais alto, até o Qualquer espetáculo teatral (e a ópe- de catadores. Para ser escritor no Brasil,
ponto de interferir na qualidade da voz. ra é teatro) tem que ser feito de maneira você nem precisa conceber novas
Mesmo com os cantores experientes des- coletiva. É bastante significativo que, ideias: basta observar bem a realidade.
sa ópera, ainda está difícil escutar as vozes nos programas de ópera, diretor, figuri-
em meio à textura orquestral. nista, iluminador e cenógrafo sejam 8 DE ABRIL, SEXTA-FEIRA_Estreia! Es-
chamados de “time criativo”, e os canto- treia! Dormi até tarde para deixar a voz
3 DE ABRIL, DOMINGO_Ontem não tivemos res, de “elenco”. Isso é ridículo. Os can- descansar o máximo possível e daqui a
ensaio, o que foi ótimo, porque tive um tores não são menos “criativos”. E tem pouco irei para a primeira récita. Falei
dia péssimo. Durante o período de en- ainda o sexismo. Alguns anos atrás, um com meus filhos por telefone. Adoro
saios, durmo mal e me questiono se o que teatro de São Paulo produziu uma ópe- que eles saibam exatamente qual é a mi-
estou fazendo tem qualidade. À noite, tre- ra dirigida e regida por mulheres, mas nha rotina em dias de apresentação.
chos da
Acesse música Canal
nosso me vêm à cabeça. É difícil colocou
no Telegram: em primeiro lugar no pôster de Vivi, minha filha, perguntou a que ho-
t.me/BRASILREVISTAS
encontrar um momento de silêncio inte- divulgação os nomes dos diretores do tea- ras começava a ópera e respondi que era
rior real. Tenho percebido que, à medida tro, dois homens, antes dos nomes da às 20 horas. “Então você vai pra lá umas
que fico mais velho (estou com 50 anos) e maestrina e da diretora cênica, que sem- 18 horas pra colocar maquiagem, figuri-
mais consciente do que significa para pre encabeçam esse tipo de divulgação. no e fazer o cabelo, né?”, ela perguntou.
12 mim esse trabalho que escolhi, aumenta Pode não ter passado de uma distração, A essa altura nada é novidade para
a minha preocupação com a qualidade do mas mesmo assim seria prova do machis- eles, nem o fato de eu tentar ficar em si-
que faço. E ainda tenho que lidar com a mo estrutural que impregna a socieda- lêncio o máximo possível nos dias em que
TRÊS MULHERES ALTAS possibilidade de ficar doente, já que a pan- de como um todo.
demia não acabou. Já fiz uns dois autotes-
estou me apresentando. Quando meu
filho Juliano tinha 2 anos, fiquei em si-
tes de Covid nos últimos dez dias. 5 DE ABRIL, TERÇA-FEIRA_Aconteceu hoje lêncio a manhã toda antes da apresen-
De Edward Albee Na música erudita, os músicos solis- o ensaio pré-geral, que é aberto. O pri- tação de uma ópera no Rio. Ele falava
Direção de Fernando Philbert
tas (cantores, instrumentistas e maestro) meiro evento do dia foi fazer as sobrance- comigo, e eu não respondia. Ele dizia:
Com Suely Franco, Deborah Evelyn e
recebem por récita, e não somos remu- lhas. Nunca tinha feito na vida, mas achei “Papai, por que você não fala comigo?
Nathalia Dill
nerados pelo período de ensaio. Para um que para esse papel precisava de um ele- Fala alguma coisa!”
Improvável
Sex às 21h00, Sab às 20h00 concerto com orquestra, isso não é pro- mento mais feminino. Isso não é proble-
e Dom às 17h00 | TUCA blema, porque os ensaios são curtos. Os ma para mim, pois sempre acreditei 9 DE ABRIL, SÁBADO_Se eu disser que
ensaios de uma ópera, entretanto, du- nestas palavras do grande pensador baia- não fiquei emocionado ontem, quando
ram um mês, porém só recebemos pelas no Pepeu Gomes: “Ser um homem fe- a apresentação da ópera terminou em
ingresso online
apresentações. Se eu fosse dividir o que minino não fere o meu lado masculino.” um blecaute, estaria mentindo. Os aplau-
ganho pelo número de horas gastas em Ao chegar ao teatro, eu estava num sos vieram como a gente gosta: fartos,
aprendizagem, memorização, trabalho nível de excitação que havia muito dados com vontade. Foi uma ótima sen-
técnico e ensaios, tenho certeza de que não sentia. É diferente de nervosismo, sação poder voltar a sentir esse turbilhão
ficaria deprimido. A verdade é que nin- que é quando achamos que algo pode de emoções ao mesmo tempo: medo,
guém se torna músico para ficar rico. dar errado. Excitação é uma sensação ansiedade, tesão, felicidade, finitude e
que energiza, bem próxima de uma mais um monte de coisas que não dá
4 DE ABRIL, SEGUNDA-FEIRA_Um alerta alegria incontida. para descrever.
no meu celular disse que tentaram fazer O ensaio aberto conta, em geral, com Como era a estreia de uma ópera
Mais informações
uma compra com meu cartão de crédito bastante público, e é uma linda maneira nova, e não de repertório, isso manteve
Rua Monte Alegre, 1024 - Perdizes e que era para eu entrar em contato de os cantores fazerem uma récita sem os cantores bem mais atentos que o nor-
(11) 3670-8456 | 3670-8455 imediatamente com o banco. Liguei receber nada por ela. Mas hoje tivemos mal. Mas sempre resta a incógnita:
www.teatrotuca.com.br para o número indicado e contaram poucos convidados, o que foi bom para como o público vai reagir a algo tão inu-
uma história comprida de que teriam ficarmos mais tranquilos. Pela primeira sitado, ou seja, a uma nova ópera brasi-
que fazer uma varredura no meu com- vez, tivemos uma resposta da plateia. leira baseada em um texto incomum
putador e blá-blá-blá. Isso durou uma Sentimos que existe uma conexão pal- para o gênero e com uma linguagem
hora e meia, até que comecei a achar pável entre nós e os espectadores. muito diferente dos libretos famosos?
que nada daquilo fazia sentido. Como Alguns convidados meus que estive- Mas é nisso mesmo que reside a origina-
tinha ensaio com figurino, acabei tendo ram no ensaio me disseram ter adorado. lidade e a força de Navalha na Carne. J

82
COM A PULGA ATRÁS DA ORELHA
NOTÍCIAS QUE PARECEM MENTIRAS E MENTIRAS QUE PARECEM NOTÍCIAS
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10 h 12h 14 h 16h 18h


SÁBADO – 03/12

JESSIKKA ARO ATILA IAMARINO ADAM ELLICK ALEJANDRA INZUNZA NICHOLAS JOHNSTON
Rádio Yle (Finlândia) CONVERSA COM The New York Times (EUA) Dromómanos (México) Axios (EUA)
Entrevistadoras: O YOUTUBE Entrevistadores: Entrevistadores: Entrevistadores:
Patrícia C. Mello (Folha de S.Paulo) Entrevistadores: Natuza Nery (GloboNews) Bernardo Mello Franco (O Globo) Aline Midlej (GloboNews)
e Flavia Lima (Folha de S.Paulo) Patricia Muratori e André Petry (piauí ) e Fernando de Barros e Silva (piauí ) e José Roberto de Toledo (piauí )
e Bernardo Esteves
DOMINGO – 04/12

BRANDON FELDMAN FORO DE TERESINA ANNA BABINETS O JORNALISTA JULIA GAVARRETE


YouTube (EUA) AO VIVO Slidstvo (Ucrânia) E O DITADOR El Faro (El Salvador)
Entrevistadores: com Thais Bilenky, Entrevistadoras: Entrevistadores: Entrevistadores:
Pedro Doria (Meio) José Roberto de Toledo Dorrit Harazim (O Globo) Alana Rizzo (YouTube) Ricardo Gandour (ESPM )
e Ana Clara Costa (piauí ) e Fernando de Barros e Silva e Thais Bilenky (piauí ) e Breno Pires (piauí ) e Consuelo Dieguez (piauí )

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1 de 2 27/10/22 PROVA FINAL

ficção

INTRUSO NO CIEP
Os policiais militares percorriam as salas de aula com fuzis empunhados

RONALD LINCOLN

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O A
s tiros se anteciparam aos galos coordenadoras estratégias para a saída mais os olhinhos puxados, por cima dos notícia da fuga de Jessé para a escola
para anunciar o dia no Morro das crianças, até que outra mãe ligasse óculos de aros azul-turquesa arredonda- e a decisão de Rosana se espalharam
da Mangabeira. Policiais e tra- novamente. Soube, em uma das chama- dos. À moda dos jovens, a mulher de 50 rapidamente entre os professores e
ficantes em guerra. Rajadas das, que a operação policial era coman- e poucos anos vestia calça jeans e casa- demais funcionários, que, naquele instan-
intermináveis de fuzis ecoa- dada pelo coronel Marehz. A tropa dele co moletom, que lhe sobrava nos braços. te, povoavam os corredores, como se a
vam prenúncios de morte pelas vielas. raramente levava gente presa; passava, e Sentia-se mais confortável assim e acre- escola tivesse se transformado em um
Instalada às margens do morro, havia os corpos ficavam para trás. Com aque- ditava que, dessa maneira, criava mais gabinete de guerra. Falavam todos ao
uma escola, um Ciep. O grandioso e re- les homens na rua, os alunos só sairiam identificação com os alunos. Isso, no en- mesmo tempo; uns de forma exaltada,
tangular prédio de concreto era uma espé- da escola quando a diretora tivesse abso- tanto, não diminuía a reverência com outros tentando apaziguar os ânimos. Os
cie de fronteira que demarcava os limites luta certeza do fim da ação policial. que a tratavam. mais radicais pregavam a denúncia e a
da favela e do asfalto. Os moradores se Em certo momento, Marina, a faxi- As coordenadoras a encaravam aflitas. exoneração imediata da diretora.
orgulhavam de ostentar, bem no subúrbio neira, chegou ofegante à saleta, inter- E Rosana não titubeou, mandou chamar – A mulher endoidou, tá colocando as
do Rio de Janeiro, entre barracos e casas de rompendo a reunião. Teve que sentar Léa, a professora do oitavo ano. Catou crianças em risco! – alardeou Marinho,
alvenaria, aquele edifício – arquitetura para recuperar o prumo. um uniforme de aluno no almoxarifado, o novo professor de educação física.
de Niemeyer, riscada de pichações. – Desembucha, mulher! Parece que e foram juntas atrás de Jessé. Iriam vesti- – Por isso mesmo temos que nos
Muitas crianças que já estavam na es- viu um fantasma – disparou Rosana. lo e juntá-lo aos adolescentes. Léa, contu- acalmar, pelos alunos – argumentou
cola quando a confusão começou tiveram – Antes fosse, chefe. É um menino. do, caiu no engano de ponderar a decisão Vânia, a coordenadora pedagógica.
que permanecer ali durante toda a ma- Marina explicou que, enquanto fu- da diretora, que disse com firmeza: Então veio mais uma ordem da direto-
nhã de peleja. Rosana, a diretora, percor- mava sozinha nos fundos do Ciep, avistou – Ele não é aluno? Não está matricu- ra, e todos os professores recolheram suas
ria os corredores dando orientações para um vulto descendo em fuga a inclinação lado? Dentro desta escola, ninguém vai crianças das salas. Fila indiana para des-
a segurança dos alunos. Protocolos eram do barranco. Ele tropeçou e caiu rolando encostar nesse menino. cer até um lugar mais seguro. Na frente,
executados com a eficiência de quem no barro até aterrissar nas dependências da Os laços com Jessé vinham de longe. os do primeiro ano, e assim por diante
fizera aquilo outras vezes. As crianças, escola, desnorteado. Ela reconheceu o ma- A própria Rosana fora professora dele até os adolescentes do nono. Todos mar-
habituadas àquela realidade tão comum gricela de short, sem camisa e radiotrans- nos anos iniciais, ensinou-o a escrever o charam silenciosamente para o ginásio de
no Mangabeira, se sentiam mais seguras missor na cintura. Era Jessé, um aluno do nome, as primeiras palavras, os núme- esportes. A grande quadra estava tomada
ali do que na favela. O Ciep parecia um oitavo ano, que foi parando de frequentar ros, para depois sofrer com o rumo que de montes de areia, entulho de paus e pe-
forte, guardado por um muro alto nas as aulas até trocar, definitivamente, a esco- ele tomou. Certa vez, a diretora se meteu dras − rastros de uma reforma que durava
laterais e na frente, com os fundos cerca- la pela esquina. O garoto nem se deu con- na boca de fumo sozinha para dizer que, tanto tempo que muitos nem se lembra-
dos por um alto barranco, cujo topo abri- ta da presença da funcionária. Ele se se ele não voltasse para as aulas, ela mes- vam quando começara, mas todos sabiam
gava algumas casas. levantou e correu, mancando e machuca- ma mandaria a professora Léa reprová-lo que não terminaria tão cedo.
Com o passar das primeiras horas, do, e disparou até o vestiário do ginásio de − como se fosse o desempenho escolar Algumas crianças se aventuraram a
os sons de tiro cessaram. Mas os nervos esportes. Em seguida, Marina pôde ver o que estava em jogo. Na verdade, ela só correr pelo piso de cimento esburacado,
continuavam aflorados na sala da dire- policiais no alto do barranco farejando queria tirá-lo dali. Na frente dos novos entre montes de entulho, passando de-
ção. Rosana atendia telefonemas de Jessé, mas sem coragem de descer. parceiros, Jessé prometeu, mansamente, baixo das traves corroídas por ferrugem,
mães assustadas e tentava acalmá-las, Rosana escutou o relato com uma que retornaria aos estudos. Mas todos que ameaçavam cair na cabeça de al-
desligava e começava a discutir com as expressão indecifrável. Cerrava ainda sabiam que isso não aconteceria. guém. Dois meninos recolheram peda-

84
2 de 2 27/10/22 PROVA FINAL

JOÃO PINHEIRO_2022
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ços de pau e começaram a simular armas – Aqui só tem estudante. Inconformados, Marehz e seus solda- As pessoas olhavam para ela, como se es-
de fogo. Pow, pow, pow, atiravam, sem dó, – Tem, não, senhora. O bandidinho dos deixaram o prédio da escola em di- perassem alguma reação, qualquer uma,
um contra o outro. Então, um deles se pulou pra cá, e vamos entrar. reção ao ginásio. De longe, Rosana viu o e tudo que viam era o abatimento de seus
lançou no chão, entre as pedras. Baleado, – Não podem entrar assim, só tem professor Marinho se destacar das crian- olhos. Por dentro, pairava nela um senti-
mas de mentirinha. Antes que Carla, a criança aqui. Vocês têm mandado? ças e caminhar até o coronel. Eles con- mento de desamparo, como uma mãe que
professora do primeiro ano, pudesse re- – Mandado é o caralho. Se morrer versaram por alguns instantes, e então os tem a cria tirada dos braços. Seus alunos
preendê-los, Rosana agarrou pelos braços alguém aqui por causa de bandidinho, policiais se aproximaram da turma do eram o propósito de sua vida, e a perda
o garoto que estava de pé empunhando o a senhora vai segurar o B.O.? oitavo ano. Jessé tremia na formação. de Jessé implodia todos os alicerces que
pedaço de pau e o sacudiu com força, até Impaciente, Marehz empurrou a di- – Vamos precisar esculachar geral a sustentavam.
que, assustado, ele soltasse sua arma ima- retora, que não tombou por pouco. Em para saber quem é o atividade? Se pre- Naquele instante, algo se acendeu e
ginária. Mesmo assim, a diretora conti- seguida, entrou pelo portão e deu or- cisar, a gente esculacha. se alastrou nela, até explodir num aces-
nuou a apertar e apertar, em uma espécie dens para seus homens revirarem o Olhares se cruzaram. Ninguém iria so de fúria. Rosana catou uma pedra no
de transe, que só foi interrompido quan- Ciep. Rosana não estava disposta a assis- caguetar, como fizera o professor Ma- canteiro de obras e caminhou até a via-
do lágrimas do menino desarmaram seus tir quieta àquela invasão, então mandou rinho. Na favela, essa lição se aprende tura de Marehz. Andava como se flu-
punhos, e então o pequeno voltou silen- os funcionários acompanharem a revis- antes de completar a tabuada. Jessé, tuasse, a expressão inerte como se a força
ciosamente para a fila. ta, enquanto ela permanecia com pro- preocupado com os outros alunos e que a carregava não fosse física. Então,
A movimentação no ginásio ainda fessores e alunos no ginásio. com os professores, deu um passo à ela arremessou a pedra no para-brisa da
não havia terminado quando soou a No meio da turma do oitavo ano, es- frente, cambaleante. Então, um dos viatura, estilhaçando o vidro.
campainha da entrada do Ciep. Atrás do tava o atividade. Custava a se manter de soldados se precipitou contra ele, imo- O jeito foi levar a diretora presa, ao
portão, estavam Marehz e uns dez poli- pé, por causa das dores e dos arranhões bilizando-o num mata-leão. Aquilo lado de Jessé. Perplexos, alunos, funcio-
ciais. O homem tinha um quê de perso- que adquiriu no tombo no barranco. causou um alvoroço entre os alunos e nários e professores viram a viatura se
nagem de filme de guerra dos Estados Assim como a diretora, só ficaria seguro docentes. Era a cena de um pesadelo. afastar. Rosana, lá dentro, com um sem-
Unidos. O corpo envergado e uma pos- quando Marehz desaparecesse. Sentia A diretora e as professoras tentaram blante sereno.
tura altiva, que davam a impressão de os olhares dos colegas que não via há tem- avançar contra o policial, porém foram A diretora tinha perfeita compreen-
ele ter uma estatura maior do que a real. pos, agora receosos do perigo de sua pre- contidas pelos outros soldados. são de seu ato. Lá no fundo, ela acre-
As rugas que se dobravam sobre os olhos sença, mas também preocupados com – Deixa que a gente toma conta – ditava que ser educadora exigia uma
condiziam com seu temperamento sisu- o destino do antigo companheiro. debochou Marehz. pequena dose de loucura. Se era neces-
do, e o tufo grisalho no topo da cabeça, Os soldados percorriam as salas de aula, sário ir presa para evitar que Jessé aca-

A
mesmo com o cabelo raspado nas late- arrombavam as portas, sondavam corredo- sentença estava dada. As crianci- basse, como tantos outros, numa vala,
rais, denunciava a sua maturidade. res, com fuzis empunhados, como se vas- nhas olhavam aterrorizadas, e as para que ele tivesse a oportunidade de,
Num instante, Rosana estava diante culhassem um Q.G. de bandidos, onde, ao maiores viam uma delas ser levada quem sabe, voltar a estudar, Rosana
dele, examinando-o com firmeza. atravessar uma porta, pudessem se deparar bruscamente para prestar contas, como faria isso. Ninguém encostava as mãos
– A senhora é a diretora? com armas apontadas para suas cabeças. se fosse adulto. Os meninos, sobretudo, nos alunos dela. J
– Pois não. Averiguaram todos os espaços e não en- carregavam a sensação de “podia ser eu”.
– Vamos entrar para buscar um gan- contraram nada além de carteiras vazias e A frase do coronel ecoava na cabeça de Este conto faz parte do livro Disritmia, a
so que pulou na escola. quadros negros com lições interrompidas. Rosana: “Deixa que a gente toma conta.” ser lançado neste mês pela editora Malê.

piauí_novembro 85
1 de 1 27/10/22 PROVA FINAL V2

poesia_TARSO DE MELO

LP LUCAS_2022
AMANHÃ LER 2020 CANINO

falávamos de gente ler até se perder dois terços do dia o cão


que aos cinco, aos dez no computador entranha
já sabia o que queria ler até não ter que se arrasta a folga
e o que não queria mais o que dizer vinte e quatro
para a vida toda horas na tomada madruga
de uma vez por todas ler até sufocar estranha
o que insiste o telefone também ioga
não apenas a cor predileta em querer com essa fome
a estação mais linda do ano por noites e dias cobra
mas cada ínfima resposta ler até não ter meses e meses um afago
para as perguntas que ainda do que esquecer elétricos e colhe
não lhe foram feitas
ler até querer ligar, desligar rasga
já estava decidido Acesse apenas Canal
nosso mais no Telegram: desligar, ligar
t.me/BRASILREVISTAS caga
que os dias seriam assim e mais ler fechar janelas draga
que as noites seriam a salvo reduzir as abas
que a aposentadoria viria ler devagar navegar devagar ri
leve, branca, calma deixar-se do bafo
ultrapassar ser acessório ao rabo
mais o mar que a montanha pelo que ler de algum aparelho
as manhãs que as madrugadas em modo de economia engole
uma dose de sol, da lua ler séculos de energia uma ceia
uma distância segura em semanas e meia
a medida dos passos dias em anos ou essa bateria
em que fibra do tempo irremediavelmente boceja
em que ponto do espaço ler por horas viciada mais que
uma mesma hora ladra
o deus para sempre louvado o que se há de ler
o mal? como ser evitado encanta
o que fazer do amor ler até encontrar enquanto
o que fazer do sexo no desvio corre
o que nunca fazer o que escrever
morde
falávamos de gente e não escrever as normas
que aos vinte, aos trinta senão no desvio da casa
já havia preenchido incontornável
de planos infalíveis do que ler arrasa
a agenda das próximas uma a uma
décadas as penas

enquanto o vento batia e ensina


em nossos corpos velhos em si
em nossos copos velhos dia a dia
sem dizer uma palavra
sobre o amanhã as formas
selvagens
da alegria J

Poemas do livro As Formas Selvagens


da Alegria, a ser lançado neste mês
pela Alpharrabio Edições.

86
Seu leão pode colorir a ATÉ

vida de muitas crianças 30/12


Doe seu Imposto de
Renda para o Hospital
Pequeno Príncipe

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No Brasil, apenas 3,15% do potencial de doação de IR da população foi destinado


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1 de 2 27/10/22 PROVA FINAL

cartas_novembro

ele apresentou uma classificação de ali- são comum e até uma prática recorren- ANIVERSÁRIO
1 de 1 3/10/22 PROVA FINAL V2

piauí
outubro
_193
mentos que mais tarde chamou de NOVA, te, mas as evidências científicas são Com 16 anos, piauí já pode votar. Para-
um sistema que preconizava a ruptura robustas em afirmar a ausência de be- béns! Veio uma edição de aniversário
total na maneira como os cientistas nefícios na realização desse exame bem recheada, com várias cartas do
A crise dos opioides
João Batista Jr. mostra o drama
dos médicos dependentes
costumavam estudar a comida. Classi- quando não há sintomas ou indicação mundo (não a minha) e interessantes
Horror no quartel
Glenda Mezarobba revela um processo
ficou os alimentos conforme os níveis clínica precisa. questões do passado. Haverá futuro?
de processos físicos, biológicos e quími- Inclusive, apesar de não ser o mais Era tanta coisa que o índice ficou peque-
que atesta tortura durante a ditadura

A estrela de Janja
Thais Bilenky descreve
a ascensão da mulher de Lula

Virando a mesa
cos a que são submetidos até chegar a comum entre pessoas com baixa renda, no para caber a autoria da capa hitch-
nossa mesa. Ele definiu o grupo dos o excesso de exames desnecessários é cockiana, em homenagem ao mestre
O brasileiro que detonou a comida
ultraprocessada, por Angélica Santa Cruz

Queremos mesmo isso?


Em artigo exclusivo, Antonio Scurati
trata da virada pós-fascista na Itália
alimentos ultraprocessados, que são um dos grandes problemas que enfren- do suspense. Espero que a mensagem
Derrota histórica
Fernando de Barros e Silva discorre
sobre a rejeição da Carta chilena produtos derivados do fracionamento tamos na prática clínica. Para alguns, o subliminar não seja premonitória, uma
piauí_193_R$ 32,00_ano 17_outubro_2022
00193

Fenômeno literário
Clara Rellstab e Fernanda Santana
agressivo de alimentos in natura e de- excesso; para outros, a falta. Mais um vez que os dois postulantes que sobra-
perfilam o escritor Itamar Vieira Junior

pois passam por sucessivos processos e sintoma da nossa desigualdade. ram para o segundo turno já ganharam
A santa feminista
Na terceira parte do projeto Querino,
Bennê Oliveira e Jeferson de Sousa
fazem uma HQ sobre Rosa Egipcíaca
adições de substâncias de uso exclusi- LUIZ PAULO ROSA_SERRINHADOS PINTOS/RN a eleição a que concorrem ao menos
vamente industrial: “uma maçaroca de uma vez. Mas o que me incomodou
corantes, aromatizantes, emulsifican- BOLSONARO mesmo foi o termo “mulher de Lula”
tes e espessantes desenvolvidos em la- Este governo atual é um desastre am- usado no lugar de esposa ou compa-
boratórios para durar muito, custar biental, social, político e de saúde públi- nheira na matéria de Thais Bilenky so-
pouco, ter sabor intenso e, de preferên- ca. Bolsonaro é uma vergonha nacional bre Janja (Com vocês, a Leoa, piauí_193,
QUESTÕES VULTOSAS cia, não saciar, para que as pessoas co- perante a comunidade internacional. outubro). Em se tratando da persona-
Miguel Lago fez um resumo bem pre- mam mais e mais: refrigerantes, sucos Permite desmatamentos e tenta amparar gem perfilada combativa quanto a ma-
ciso do que nos aguarda para os próxi- com sabor de frutas, biscoitos, lasa- grileiros e exploradores de nossa floresta. chismo e misoginia, creio que a repórter
mos anos. No texto primoroso mas nhas, pizzas congeladas, salgadinhos Esnoba os direitos de nossos povos indí- quis fazer algum contraponto ou alerta
difícil e aterrorizante de encarar, A in- em sacos, macarrões instantâneos, pro- genas. Quer armar a classe média e rica que não fui capaz de perceber. Causou
surreição permanente, piauí_193, outu- dutos de carne reconstituída.” Ele con- contra os mais pobres e vulneráveis, que espécie, diz meu anacrônico dicionário.
bro, nos mostra de forma clara que o sidera tais produtos como “não comida, se dependessem dele, no auge da pande- No mais, gostei da construção feita por
bolsonarismo e seu criador serão mui- são formulações”. mia, não receberiam de auxílio mais do Clara Rellstab e Fernanda Santana para
to difíceis de ser superados ou esmaga- Monteiro foi o primeiro cientista a que a bagatela de 200 reais. Ele demons- a formação do escritor Itamar Vieira Ju-
dos no país, e corremos o risco de ser usar indicadores de saúde coletiva para tra não ter respeito e caráter, tampouco nior (“Trabalhar é tá na luta”, piauí_193,
vi- propor
solapados por ele. Está claro que jáAcesse um sistema
nosso Canal organizado de clas- educação
no Telegram: ou cultura para ser um man- outubro) a partir de uma narrativa ini-
t.me/BRASILREVISTAS
vemos num país distópico quando um sificação da alimentação, pois antes o datário. Debochou de pacientes que pa- ciada com o órgão público em que traba-
presidente comete todo e qualquer crime, termo junk food era utilizado para defi- deciam de Covid nas UTIs, fazendo lha. O badalado autor de Torto Arado
tanto eleitoral como de responsabilida- nir comidas com poucos nutrientes e gracinhas e imitando uma pessoa no possui uma história de vida tão insti-
de, e as instituições seguem aparvalha- muitas calorias, com sabores viciantes. leito de morte sem conseguir respirar. gante quanto a suposta ficção que es-
das e sem forças para reagir. Engraçado Após a divulgação de seus estudos nas Como podemos dar crédito a um políti- creve. Por fim, espero que o curso dos
que, apesar de sermos maioria, esta- revistas do campo da biomedicina, suas co tão desumano, que não tem tolerân- acontecimentos não resulte na redu-
mos deixando que os 30% que apoiam teorias foram acatadas pelos cientistas cia nem o mínimo de sensatez e firmeza ção da maioridade penal que pode le-
esse desprezível ser sigam dando as que encontraram neles a base para um para governar com respeito e decência? var a revista aniversariante a responder
cartas, aterrorizando e pautando todos aprofundamento da matéria. CÉLIO BORBA_CURITIBA/PR também criminalmente por simples-
os assuntos nacionais. Aliás, o Brasil A luta passou a ser contra uma indús- mente existir.
agora é assunto de uma pauta só: des- tria poderosa, que ele ousou enfrentar MAIS UMA RESPOSTA SEMIÓTICA DA RE- ADILSON ROBERTO GONÇALVES_CAMPINAS/SP
truir o bolsonarismo antes que ele nos de peito aberto, sem jamais admitir a DAÇÃO : “Desastre”, “vergonha”, “esno-
destrua de vez. interferência dela em seus trabalhos. ba”, “debochou”, “desumano”. Célio, RESPOSTA FILOLÓGICA DA REDAÇÃO : Pe-
VALÉRIA BORDIN_FLORIANÓPOLIS/SC Gostaria de fazer uma menção especial quer fazer parte da equipe da Valéria, dimos perdão. Janja não é mulher do
à apresentadora Rita Lobo, que, na di- ali da primeira carta? Lula. É conge.
RESPOSTA SEMIÓTICA DA REDAÇÃO : “Ater- vulgação de suas receitas, coloca em
rorizante”, “esmagados”, “solapados”, prática as ideias do nosso Monteiro.
“distópico”, “aparvalhadas”, “desprezí- DIRCEU LUIZ NATAL_RIO DE JANEIRO/RJ
vel”. Valéria, você acaba de ser contrata-
da para adjetivar as próximas matérias da SAÚDE
revista sobre o governo Bolsonaro. Perdão por chegar atrasado na discus-
são, mas a falta de tempo me fez ler a
ULTRAPROCESSADOS edição de julho da revista apenas em
A excelente reportagem O revolucio- outubro.
nário, da jornalista Angélica Santa Gostaria de parabenizar pelo bri-
Cruz, na piauí_193, outubro, valoriza lhante trabalho jornalístico e investiga-
ainda mais a alentada edição da revis- tivo na reportagem Farra ilimitada
ta, em comemoração ao seu 16º ano (piauí_190_julho). Lido com a realidade
de vida, o que não deixa de ser uma dos serviços públicos de saúde diaria-
proeza em se tratando do nosso país, mente e é com muita tristeza, pesar e
em que a cultura é totalmente relega- revolta que vejo recursos, com poten-
da pelas autoridades. cial de salvar a vida de milhares de pes-
Carlos Augusto Monteiro é o nome soas, sendo utilizados dessa forma.
do nosso herói, à frente do Núcleo de Gostaria de pontuar apenas que a
Pesquisas Epidemiológicas em Nutri- ultrassonografia transvaginal não é um
ção e Saúde (Nupens), que ele próprio exame de rotina ou preventivo, como NOTA DE ALÍVIO DA REDAÇÃO : Ufa!! Laerte, nossa colaboradora de longa data, nos
criou na USP há três décadas. Em 2010, apontado na reportagem. É uma confu- mandou esse presente de aniversário. Ela não nos esqueceu!!

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2 de 2 27/10/22 PROVA FINAL

piauí J EDITORA ALVINEGRA


rua Aníbal de Mendonça, 151 / 2º andar
FUNDADOR 22410-050 Rio de Janeiro / RJ
João Moreira Salles tel [21] 3511 7400
rua Mateus Grou, 109 / 1º andar
CONSELHO EDITORIAL
Dorrit Harazim, Flavia Lima, João Moreira 05415-050 São Paulo / SP
Salles, Marcelo P. L. Medeiros, Natuza Nery, e-mail: redacaopiaui@revistapiaui.com.br
Simon Romero, Thiago Amparo

DIRETOR DE REDAÇÃO
GUERRA aconteça: que armas de destruição em André Petry
Vocês têm publicado relatos excelentes massa sejam usadas, ou que a Rússia Associação Nacional dos Editores de Revistas
EDITOR EXECUTIVO
(como o recente Um lugar no mundo, na ataque mais alguém, ou que a China Alcino Leite Neto
piauí_193, outubro, de Jonathan Littell) (que até recentemente parecia prestes a PRODUTORA EXECUTIVA Instituto Verificador de Comunicação
sobre a invasão da Ucrânia e os sofri- invadir Taiwan) mude sua atual políti- Raquel Freire Zangrandi
mentos que esse país tem suportado – ca de relativa neutralidade. Embora a EDITORES PRÉ-IMPRESSÃO
Armando Antenore, Antonio Rhoden
por vezes salientando as consequências Otan não tenha interesse em enviar tro- Fernanda da Escóssia
econômicas que o conflito teve para o pas, basta alguém fazer uma bobagem.
REPÓRTERES
Brasil e o mundo, bem como o impacto Uma guerra nuclear seria uma amea- Alejandro Chacoff, Allan de Abreu, Ana Clara
sobre o que resta do sistema de coordena- ça à civilização como conhecemos; a Costa, Angélica Santa Cruz, Bernardo Esteves,
Breno Pires, Camille Lichotti, Consuelo Dieguez,
ção global (como nas análises de Oliver quantidade de mortos superaria a dos Emily Almeida, Fernando de Barros e Silva,
A piauí é impressa pela Plural Indústria Gráfica
Stuenkel no site da revista, Na guerra, conflitos do século passado, já que o João Batista Jr., Luigi Mazza, Marcos Amorozo, Ltda, em papel pólen bold 90 gramas nas capas
Tatiane de Assis, Thais Bilenky, Tiago Coelho
sobe a geopolítica, desce a globalização, clube das potências nucleares abrange e pólen soft 70 gramas no miolo, produzidos em
DIRETORA DE ARTE bobinas exclusivamente para a piauí por Suzano
em março, e de Jamil Chade, Após anos as nações mais populosas do globo, e há Maria Cecilia Marra Papel e Celulose S/A.
de sabotagem de Trump, ONU afunda mais uma possibilidade não remota de que as
EDITORA DE ARTE TIRAGEM DESTA EDIÇÃO: 33 730 exemplares
com Guerra da Ucrânia, em abril). No bombas levantassem partículas sufi- Paula Cardoso
entanto, tenho a impressão de que falta cientes para bloquear parte da radiação DEPARTAMENTO COMERCIAL
COORDENADORA DE CHECAGEM
ênfase no que talvez seja o aspecto mais solar e diminuir a temperatura global Marcella Ramos
comercial@revistapiaui.com.br
Enio Santiago [RJ]: eniosantiago@revistapiaui.com.br
importante do conflito: a possibilidade – com impacto profundo sobre a agri- CHECAGEM E REVISÃO Valéria Alves [SP]: valeria@revistapiaui.com.br
de que a guerra leve a um conflito nuclear cultura. Além disso, foros de coordena- Ana Martini, Carlos Santos,
Carolina Leal, Luiza Barbara PARA ANUNCIAR
entre Rússia e Otan. ção global derreteriam, e é provável que publicidade@revistapiaui.com.br
Diversos experts concordam que, as nações não afetadas diretamente pas- COORDENADOR DIGITAL
Pieter Zalis PARA ASSINAR
exceto pelo auge da crise dos mísseis sassem a considerar todo tipo de arma revistapiaui.com.br/assine
de 1962, nunca estivemos tão próximos de de destruição em massa (inclusive as COORDENADORA DE ESTRATÉGIAS WhatsApp e SAC: [11] 3584 9200
Mariana Faria
uma guerra nuclear. Algumas pessoas proscritas armas químicas e biológicas, Segunda a sexta, 9h às 17h30
consideram isso uma possibilidade re- que são “fáceis” de produzir). COORDENADORA DE NARRATIVAS VISUAIS
Fernanda Catunda SAC [ATENDIMENTO AO CLIENTE]
mota; no fim de 2019 e início de 2020, Esse cenário não é impossível, e é site: minhaabril.com.br
ESTAGIÁRIOS atendimento.piaui@abril.com.br
elas também consideravam remota a imprudente ignorar riscos de catástrofes Amanda Gorziza, Eduardo Chaves, João Felipe WhatsApp: [11] 3061 2122
chance de o mundo adotar o isolamen- apenas porque não são prováveis – afi- Carvalho, Maria Júlia Vieira, Thallys Braga SAC: [11] 3584 9200
nal, usamos cinto de segurança mesmo Renovação: 0800 775 2112
to social em razão de uma pandemia.Acesse nosso Canal no Telegram: t.me/BRASILREVISTAS
DIRETOR FINANCEIRO Segunda a sexta, 9h às 17h30
Elas provavelmente não entendem que quando confiamos no motorista, sem que Guilherme Terra
a política de “destruição mútua assegu- isso seja chamado de alarmismo. E é ADMINISTRAÇÃO COMERCIALIZAÇÃO E DISTRIBUIÇÃO
Daniella de Amo, Elena Abramcheva, Abril Assinaturas
rada” só funciona porque os agentes difícil ver de que forma a atual situação Elisangela Prado, Leandro Arruda, assinaturas@revistapiaui.com.br
não ignoram a possibilidade de conflito na Ucrânia pode acabar bem; nas melho- Pedro Eduardo Vinhas, Simone Cardoso
DISTRIBUIÇÃO NACIONAL EM BANCAS
total. De fato, é provável que hoje nin- res hipóteses, teremos uma nova Guerra DIRETOR COMERCIAL Total Express
guém tenha interesse numa guerra Fria se arrastando por décadas, afetando Lucio Del Ciello bancas@revistapiaui.com.br
lucio@revistapiaui.com.br
mundial, mas as pessoas diziam a mes- o comércio e a política global, ou insta- NÚMEROS ATRASADOS
ma coisa em 1914 (até ocorrer um aten- bilidade política na Rússia. Nesse caso, COORDENADOR DE PUBLICIDADE
Tarcisio Perroni numerosatrasados@revistapiaui.com.br
tado e uma série de erros e infortúnios se conseguisse manter o estado de direi- tarcisio@revistapiaui.com.br
– como um diplomata alemão enfartan- to, o Brasil poderia fornecer refúgio e MARKETING
do após esboçar um tratado com um alimentos para milhões de pessoas. Quan- João Vinícius Saraiva www.revistapiaui.com.br
colega russo) e em 1939 (quando se ig- do considero essa questão, tudo o que
norava que uma das partes acreditava vejo nas campanhas sobre as atuais elei-

BLACK
que venceria a guerra rapidamente). ções presidenciais parece irrelevante.
Há mais de um mês, comemorava-se A questão prioritária que um eleitor deve-
a debandada russa de diversas posições; ria ter em mente é se o Brasil será governa-
mas logo a seguir, a Rússia convocou do de forma racional quando a próxima
300 mil reservistas e, após um rapidíssi- crise chegar.

FRIDAY
mo referendo aceito apenas pela Coreia RAMIRO PERES_PORTO ALEGRE/RS
do Norte – e considerado ilegal pelas
Nações Unidas, anexou Donetsk e Lu- ERRATA
gansk. Agora elas estariam dentro da A reportagem “Trabalhar é tá na luta”,
“pátria” que Putin afirma estar disposto publicada na piauí_193, outubro, infor-
a defender por quaisquer meios neces- mou equivocadamente que o título da
sários – como mostram os bombardeios obra de Jorge Amado era Capitães DE
de 10 de outubro. Assim, ele se colocou Areia. O correto é Capitães DA Areia.
numa situação da qual não pode recuar A correção foi inserida na versão digi-
sem assumir alto risco de perder o po- tal da reportagem.
der. Mas a Ucrânia também não pode
recuar, sob pena de se arriscar a perder
uma região a cada década. Por questões de clareza e espaço, a piauí
Enquanto isso, a Europa, depois de se reserva o direito de editar as cartas
receber milhões de refugiados, passa selecionadas para publicação. Solicitamos
por uma crise energética. Felizmente, a que as cartas informem o nome e o endereço
ATÉ 60% DE DESCONTO NA
Otan ainda tem espaço de manobra, e completo do remetente.
não tem motivos para se engajar direta- Cartas para a redação:
ASSINATURA ANUAL. ASSINE JÁ.
mente no conflito – a menos que algo REDACAOPIAUI@REVISTAPIAUI.COM.BR

piauí_novembro 89
1 de 1 27/10/22 PROVA FINAL

despedida

CAIO BORGES_2022
O PAI ETERNO
O homem das cruzes se foi

CAIO BARRETTO BRISO

D
e vez em quando, a psicóloga removera. “Fiz sem pensar”, disse mais célebre bailarino e coreógrafo recifen- foi a uma Unidade de Pronto Atendi-
Jane da Rocha Cruz não se tarde. “Simplesmente aconteceu...” se, que se mudou para o Rio na década mento (UPA), recebeu diagnóstico de
contém e pega o celular do A imagem do pai negro e solitário, de 1980. Como o pai, Hugo também alergia, tomou corticoide. No quarto
marido para matar a sauda- fincando de volta as cruzes na areia, cor- apreciava danças de salão – tanto que dia, sentindo dores no peito, recorreu
de. Pessoas que conviviam reu as mídias sociais, chegou à imprensa virou um excelente DJ do gênero. a uma Clínica da Família, de onde
com ele ainda mandam mensagens co- e se transformou num símbolo não só da Quando decidiu voltar aos bailes, acabou sendo encaminhado para um
mo se Márcio Antonio do Nascimento luta contra o vírus como da resistência ao mais de um ano após a morte do filho, Sil- hospital privado. Foi atendido de gra-
Silva pudesse ler. Mas o funcionário negacionismo
Acesse de Bolsonaro
nosso Canal e aliados. va viveu
no Telegram: uma grande emoção. “A gente ça, já que não tinha plano de saúde.
t.me/BRASILREVISTAS
público morreu no início de outubro, Quase um ano e meio depois, em outu- dançou Clube da Esquina Nº 2, a can- Assustou-se ao saber que estava com
aos 58 anos. Era alegre e calmo até a bro de 2021, Silva comoveu novamente o ção preferida do Hugo, que nossos amigos problemas cardíacos. Nunca tivera
pandemia do coronavírus chegar ao Brasil. “Minha dor não é mi-mi-mi. Não botaram para tocar”, conta Jane da Ro- qualquer transtorno do tipo até então.
Brasil. Daí em diante, algo mudou nele. é, não é! Dói pra caramba mesmo. Dói, cha. Um vídeo no YouTube mostra a ce- Rapidamente, acionou a Justiça e con-
Há pouco tempo, durante um panelaço dói, entendeu?”, afirmou à CPI da Covid, na: no meio da música, Silva olha para seguiu uma liminar, que obrigou o
contra Jair Bolsonaro no Rio de Janeiro, no Senado. Sua mulher, Jane da Rocha, cima, abraça a parceira e desanda a cho- Estado a lhe garantir uma vaga na rede
Márcio Silva viu o morador de um edi- nunca quis que o companheiro aceitasse rar. “Esse é o melhor lugar do mundo. pública. Foi levado de ambulância ao
fício vizinho defendendo o presidente o convite para testemunhar na comissão. Aqui não tem preconceito, somos todos Hospital Universitário Pedro Ernesto,
aos berros na janela. Ele tomou aquilo Também tinha receio quando o funcio- dançarinos”, agradeceu, logo depois em Vila Isabel. Passou um tempo na
como ofensa pessoal. Saiu de casa e gri- nário público dava entrevistas. Era ela, da homenagem. UTI coronariana e seguiu para a enfer-
tou na frente do prédio onde o bolsona- afinal, quem assistia de perto ao sofri- maria. O pior parecia ter passado.

O
rista estava: “Desça aqui! Você precisa mento do marido sempre que ele fala- casal se conheceu no fim de 1996, Em 3 de outubro, dez dias após os
saber da minha dor!” va sobre Hugo. “O Márcio me prometeu justamente num salão de baile, o sintomas se iniciarem, Jane da Rocha
Um rompante parecido ocorreu em que, depois da CPI, iria sair dos holofotes do Olympico Club, em Copaca- recebeu uma ligação do Pedro Ernesto.
junho de 2020. Na manhã do dia 11, e viver para a família”, lembra a viúva de bana. Silva aproximou-se de um grupi- Queriam que fosse ao hospital com al-
Silva andava pelo calçadão de Copaca- 59 anos, durante conversa com a piauí nho de moças e perguntou: “Quem guns documentos do marido. “Eu traba-
bana com a mulher. Precisava espaire- numa confeitaria de Copacabana, onde quer dançar?” Jane da Rocha ergueu a lho numa unidade de saúde. Por isso,
cer. O país já somava 40 mil vítimas da o casal festejou o último Dia dos Pais. mão. Os dois, que tinham saído machu- quando me telefonaram, sabia que o
Covid, incluindo o filho dele, Hugo, Márcio Silva cumpriu a promessa e cados de relacionamentos recentes, Márcio havia desencarnado.” Ela é
fruto do primeiro casamento. O jovem buscou se reconstruir. Deixou de traba- consideravam-se tímidos antes de ingres- adepta do kardecismo. “Primeiro, perde-
morrera dois meses antes, depois de oito lhar como taxista e arranjou emprego sarem na escola de Jaime Arôxa – ele mos o Hugo. Depois, em julho de 2021,
dias intubado. Enquanto caminhava, o como entregador de compras num su- em 1994, ela um ano depois. “A dança a minha mãe, com câncer no pâncreas.
casal passou por uma manifestação que permercado de Botafogo, perto do Ce- nos fez desabrochar”, diz a psicóloga. Agora o Márcio...”, lamenta a psicóloga,
homenageava os mortos da pandemia – mitério São João Batista. Foi ali que ele Com o tempo, a dupla se tornou conhe- que pretende retornar à gafieira para agra-
cem cruzes tinham sido fincadas em enterrou Hugo e outro filho, Gabriel, cida na noite. “Quando dançávamos, eu decer o apoio dos amigos – para dançar,
covas rasas na areia da praia. Muitos morto antes do parto, em 2004. Enquan- me sentia leve. A música nos transporta- precisará de mais tempo.
pedestres se emocionaram com o ato to trabalhava como entregador, Silva va para um estado de felicidade. O estilo Na véspera da morte de Hugo, o pai
da ONG Rio de Paz. Um aposentado de prestou concurso no Instituto Brasileiro do Márcio era romântico. Ele gostava sonhou que ele e o filho estavam deitados
78 anos, porém, achou que a cerimônia de Geografia e Estatística (IBGE). Pas- de ficar juntinho, tinha uma delicadeza numa mesma cama de hospital, um de
servia apenas para “criar pânico” e come- sou e se tornou coordenador censitário com a dama. Havia muita cumplicida- frente para o outro, abraçados. Jane da Ro-
çou a derrubar as cruzes. Ao presenciar em Inhaúma, na Zona Norte carioca. de”, recorda, usando às vezes os verbos cha acredita que os espíritos de ambos
o vandalismo, Silva reagiu de imediato. Ele adorava ver filmes de super-he- no presente. “O Márcio é muito desliga- se encontraram. “Coração é o órgão do
“Meu filho morreu com 25 anos! Ele era róis com os dois filhos que lhe restaram do. Fala que me preocupo à toa, que afeto, do amor, e o Márcio morrer do co-
saudável. Respeite a dor das pessoas!”, e os quatro netos. Mas o que Silva mais preciso relaxar.” ração é muito simbólico. Ele era um pai-
bradou, com uma máscara sobre a boca gostava de fazer era dançar com a mu- Em 19 de setembro, o funcionário zão, o melhor do mundo, vivia para os
e o nariz. Em seguida, recolocou no lu- lher em gafieiras. Aprendeu os primei- público sentiu certa indisposição. Nos filhos. Sei que vai cuidar do Hugo e do
gar cada uma das cruzes que o sujeito ros passos na escola de Jaime Arôxa, três dias seguintes, fez teste de Covid, Gabriel novamente.” J

90
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MEETING THE MAN: JAMES BALDWIN IN PARIS,
TERENCE DIXON
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30 DIAS GRÁTIS
mubi.com/piaui

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