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ISBN 978-65-86251-34-0

9 786586 251340
José Rodrigues de Mesquita Neto
Ana Paula Santos de Souza
(Orgs.)

LETRAS EM FOCO:
ESTUDOS LINGUÍSTICOS
E LITERÁRIOS

Rio de Janeiro
2020
Letras em Foco: estudos linguísticos e literários

Organizadores: José Rodrigues de Mesquita Neto e Ana Paula Santos de


Souza

Editores: José Rodrigues de Mesquita Neto e Ana Paula Santos de Souza

Revisão técnica: José Rodrigues de Mesquita Neto e Ana Paula Santos de


Souza

Revisão linguística: Cada autor foi responsável pela revisão do seu artigo

Diagramação e capa: José Rodrigues de Mesquita Neto

Membros do Comitê Avaliativo

Adriana dos Santos Pereira (PosLa-UECE)

Ana Lorena dos Santos Santana (PosLa-UECE)

Ana Marcelle Rodrigues Pimentel (UERN)

Carolina Gomes da Silva (UFPB)

Elen Karla Sousa da Silva (UFRGS)

Francisco Vieira da Silva (UFERSA)

Jociano Coêlho de Souza (UFPB)

José Dantas da Silva Júnior (SEECT)

Lucélia de Sousa Almeida (UFMA)

Lucineide Matos Lopes (Secretaria Municipal de Educação)

Maria Robevânia das Virgens (UNISAL)

Maria Solange Farias (UERN)

Marta Jussara Frutuoso da Silva (UERN)

Nélida Idalina Palacios (UNISAL)


Copyright © 2020 by Organizadores

Letras e Versos
Rua Vaz de Toledo, 536 - Engenho Novo - Rio de Janeiro-RJ
CEP: 20780-150 - Tel: 21 2218-6026

Editores
José Rodrigues de Mesquita Neto
Ana Paula Santos de Souza
Diagramação - Capa
José Rodrigues de Mesquita Neto
Revisão Técnica
José Rodrigues de Mesquita Neto
Ana Paula Santos de Souza
Revisão Linguística:
Cada autor foi responsável pela revisão do seu artigo

Este livro foi editado segundo as normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, vigente.
CATALOGAÇÃO NA FONTE - PCAC
____________________________________________________________________________
M582l Mesquita Neto, José Rodrigues de 1987-
Letras em foco : estudos linguísticos e literários / Organizadores - José Rodrigues
de Mesquita Neto; Ana Paula Santos de Souza. – 1 ed. – Rio de Janeiro: Letras e
Versos, 2020.
288 p.; 23 cm
Inclui bibliografia
Inclui histórico biográfico
ISBN-978-65-86251-34-0

1. Literatura - ensaio. 2. Estudo linguistico. 3. Estudo literário. I. Ana Paula


Santos de Souza (1992- ). II. Título.

CDD: B869.4
CDU: 80
____________________________________________________________________________

Impresso no Brasil
Todos os direitos reservados.
Proibida a reprodução total ou parcial sem a autorização do autor.
SUMÁRIO

Apresentação..............................................................................................................06
José Rodrigues de Mesquita Neto
Ana Paula Santos de Souza

Representação discursiva em reportagens de jornais de língua espanhola:


análise da repercussão midiática da prisão de Lula.......................................10
Francisco Lindenilson Lopes
Silvana Maria de Freitas

Análise crítica intertextual de charges sobre o governo Dilma...................26


Alaide Angelica de Menezes Cabral Carvalho
Iza Maria Pereira
José Roberto Alves Barbosa

A coerência como marca de construção de sentidos em memes................47


Francisca Damiana Formiga Pereira
Ana Paula Santos de Souza

A construção de identidades em postagens de blogs sobre greves da


UERN...........................................................................................................................59
Iza Maria Pereira
Alaide Angelica de Menezes Cabral Carvalho
José Roberto Alves Barbosa

Corpo e sujeito: a produção de subjetividades femininas contemporâneas


em mídia social..........................................................................................................84
Karla Jane Eyre da Cunha Bezerra Souza

Conceitos e pressupostos da linguística funcional centrada no uso e da


linguística sistêmico-funcional...........................................................................106
Ana Paula Santos de Souza
Francisca Damiana Formiga Pereira
Reflexões sociolinguísticas no aprendizado do português brasileiro.....118
Alessandra Santa Rosa da Silva
Juzelly Fernandes Barreto Moreira
Maraísa Damiana Soares Alves

O papel do material didático na identidade linguística de professores


bonaerenses...................................................................................................132
Tatiana Maranhão de Castedo
Ana Berenice Peres Martorelli

Um estudo da variação fônica de discentes de Letras-Espanhol.............158


Fernanda Gonçalves Dantas
José Rodrigues de Mesquita Neto

Não Existe Regionalismo Literário...................................................................178


Nabupolasar Alves Feitosa

A mulher norte-rio-grandense: história e identidade...................................195


Francisca Janiele Buriti
Maria Arlinda de Macêdo Silva

Fantasia, formação e emancipação na literatura para crianças: breves


considerações teóricas em foco..........................................................................209
Maria dos Remédios Silva
Dheiky do Rêgo Monteiro Rocha

Uma análise da carnavalização de Bakhtin no drama popular de Lourdes


Ramalho.....................................................................................................................229
Eduarda Maria Moreira Lopes

O país sob minha pele: patriarcalismo e construção da identidade


feminina.....................................................................................................................243
Joelma de Araújo Silva Resende
Sebastião Alves Teixeira Lopes
A formação continuada e a perspectiva do letramento matemático no
ensino fundamental................................................................................................264
Michelle Kilvia Lopes Queiroz

Sobre os Autores......................................................................................................282
6

APRESENTAÇÃO

Esta obra, intitulada Letras em foco: estudos linguísticos e literários, é uma


coletânea, composta por 15 artigos, que objetiva problematizar, discutir e
divulgar os diversos estudos e olhares que as pesquisas nessas áreas vêm
recebendo nos últimos anos. Trazemos um conjunto de estudos desenvolvidos
por pesquisadores dos mais diversos estados e universidades do nordeste
brasileiro (UERN, UECE, UFPI, UEPI, UFRN, IFRN, UFERSA, UFPB,
IFPB, entre outras). Com a finalidade de garantir a qualidade dos artigos aqui
publicados, todos passaram por uma rigorosa avaliação às cegas. A seguir,
apresentamos, brevemente, cada texto encontrado nesse material.
Os dois primeiros textos, apesar de terem sido escritos por autores
diferentes, relacionam-se, pois são pesquisas de cunho político. O primeiro,
intitulado Representação discursiva em reportagens de jornais de língua espanhola: análise
da repercussão midiática da prisão de Lula, dos autores Francisco Lindenilson Lopes
e Silvana Maria de Freitas, com base na Análise Textual dos Discursos (ADAM,
2011), objetiva analisar as representações discursivas de Lula e de sua prisão
enquanto temas tratados em reportagens de jornais de língua espanhola, assim,
buscando entender como estas representações são construídas. O segundo,
intitulado Análise crítica intertextual de charges sobre o governo Dilma, dos autores
Alaide Angelica de Menezes Cabral Carvalho, Iza Maria Pereira e José Roberto
Alves Barbosa, pretende analisar charges sobre o governo e o impeachment da
ex-presidenta Dilma Rousseff e apreender os sentidos que podem ser
construídos a partir de suas relações intertextuais. A teoria e método de análises
utilizados foi a Análise Crítica do Discurso (ACD), especificamente, a
abordagem dialética de Norman Fairclough (2003, 2006, 2009).
O terceiro artigo, intitulado A coerência como marca de construção de sentidos
em memes, das autoras Francisca Damiana Formiga Pereira e Ana Paula Santos
de Souza, apresentam a construção da coerência através de memes que tratam da
situação pandêmica pela qual enfrenta o Brasil e o mundo atualmente. Para isso,
as autoras se apoiam na perspectiva teórica da Linguística Textual (LT), levando
em conta as considerações de Koch (2013), Koch, Van Dijk e Kintsch (1983),
Val (1999), Antunes (2010) e Martellota (2013).
O quarto e o quinto artigos, intitulados A construção de identidades em
postagens de blogs sobre greves da UERN e Corpo e sujeito: a produção de subjetividades
femininas contemporâneas em mídia social, sendo que este primeiro tem por autores
Iza Maria Pereira, Alaide Angelica de Menezes Cabral Carvalho e José Roberto
Alves Barbosa e este segundo tem por autora Karla Jane Eyre da Cunha
7

Bezerra Souza. Ambos foram desenvolvidos à luz dos postulados da Análise do


Discurso. No entanto, o primeiro baseia-se em postulados da ADC de Norman
Fairclough. Os pesquisadores usam como corpus blogs potiguares que tratam
sobre os movimentos grevistas na Universidade do Estado do Rio Grande do
Norte. Dessa forma, procuram compreender como a mídia desenvolve seus
textos e se projeta interesses particulares ou de pessoas ou grupos, investigando
as relações de poder e dominação que permeiam essas práticas discursivas,
desvelando o caráter ideológico e hegemônico, os quais estão a serviço.
Enquanto que o segundo, parte da AD francesa a partir da mobilização de
categorias analíticas propostas por Michel Foucault, assim, analisam os
discursos sobre o corpo feminino e a produção das subjetividades
contemporâneas no blog “Carol Magalhães”, conduzindo um trabalho de
descrição e interpretação dos enunciados.
Na sequência, no sexto artigo, intitulado Conceitos e pressupostos da
Linguística Funcional Centrada no Uso e da Linguística Sistêmico-Funcional, as autoras
Ana Paula Santos de Souza e Francisca Damiana Formiga Pereira apresentam,
através de uma pesquisa bibliográfica, as seguintes correntes funcionalistas:
Linguística Funcional Centrada no Uso com base em Hopper e Traugott
(1993), Thompson e Hopper (2001), Givón (2001), Dubois e Votre (2010),
Ferrari (2011) e Furtado da Cunha; Bispo; Silva (2013) e Linguística Sistêmico-
Funcional com Nogueira (2006), Fuzer e Cabral (2014) e Halliday e Mathiessen
(2014).
Na continuidade, os três próximos artigos trazem reflexões acerca
da variação linguística. As autoras Alessandra Santa Rosa da Silva, Juzelly
Fernandes Barreto Moreira e Maraísa Damiana Soares Alves, no sétimo
artigo, intitulado Refleções linguísticas no apresendizado do português brasileito,
refletem sobre como a heterogeneidade linguística pode possibilitar que o
aluno compreenda as diferentes variedades presentes em sua comunidade
linguística, despertando um novo olhar sobre a língua vernacular e levando
os discentes a entendê-la sob uma perspectiva distinta a de meros
elementos gramaticais. Já o artigo O papel do material didático na identidade
linguística de professores bonaerenses, das autoras Tatiana Maranhão de Castedo
e Ana Berenice Peres Martorelli, trata de uma análise realizada com
professores oriundos de Buenos Aires, atuantes na cidade brasileira de João
Pessoa. As pesquisadoras fazem um traçado sobre a variação linguística
utilizada na zona bonaerense e objetivam verificar se os ditos professores
utilizam sua variante em sala de aula, a fim de comprovar se o material
didático interfere na sua identidade linguística. Por fim, os autores
Fernanda Gonçalves Dantas e José Rodrigues de Mesquita Neto analisam,
8

no artigo Um estudo da variação fônica de discentes de letras-espanhol, a variação


fônica, dos discentes do curso de Letras com habilitação em língua
espanhola. Dessa forma, comparam a variante assumida pelos alunos com
as que de fato realizam.
O artigo seguinte, Não Existe Regionalismo Literário, de autoria de
Nabupolasar Alves Feitosa, oferece uma discussão sobre a ideia, equivocada, de
“regionalismo literário” e propõe a adoção de outros termos. Para isso, faz um
debate em torno de três críticos literários, entre os quais o sociólogo Antônio
Cândido. A partir da definição que esses críticos têm de “regionalismo”, o texto
traz argumentações que destroçam a base que sustenta essas ideias e mostra as
consequências para a arte da adoção desse termo e desfaz a ideia de que existem
características que são típicas do Nordeste brasileiro.
No décimo primeiro artigo, intitulado A mulher norte-rio-grandense: história
e identidade, as autoras Francisca Janiele Buriti e Maria Arlinda de Macêdo Silva
mostram exemplos de lutas e conquistas de mulheres potiguares, que se
tornaram pioneiras na conquista do direito de exercerem a cidadania política e
social, transpassando a vida doméstica.
Maria dos Remédios Silva e Dheiky do Rêgo Monteiro Rocha, por sua
vez, apresentam reflexões teóricas acerca da função da fantasia na literatura
infantil, na perspectiva da formação do leitor criança em seu artigo intitulado:
Fantasia, formação e emancipação na literatura para crianças: breves considerações teóricas
em foco.
O riso é um fenômeno universal. Desde o sarcástico, amigável,
angélico, escrachado, irônico até o burlesco. Dessa forma, o décimo terceiro
artigo, Uma análise da carnavalização de Bakhtin no drama popular de Lourdes Ramalho,
propõe uma análise de que forma o riso é construído nas obras da escritora
norte-rio-grandense, Lourdes Ramalho, a partir das premissas contidas no
estudo da carnavalização feito por Bakhtin.
O penúltimo artigo desse livro, intitulado O país sob minha pele:
patriarcalismo e construção de identidade feminina, está centrado em estudos feitos
sobre o patriarcalismo e em como a mulher procura desvencilhar-se de uma
sociedade machista, lutando por uma sociedade mais inclusiva. Assim, os
autores Joelma de Araújo Silva Resende e Sebastião Alves Teixeira Lopes,
examinam as instituições patriarcais que reproduzem papeis de gêneros fixos na
obra O país sob minha pele.
Finalizamos com o artigo multidisciplinar da professora Michelle Kilvia
Lopes Queiroz, A formação continuada e a perspectiva do letramento matemático no
ensino fundamental, que analisa de que forma os cursos de formação continuada
9

de professores do Ensino Fundamental em exercício poderiam contribuir para


o ensino de Matemática na perspectiva do letramento matemático.
Assim, reunimos, aqui, não apenas artigos, não apenas pesquisas, mas a
perseverança de tempos melhores para a educação e para as pesquisas do Brasil.
Desejamos que desfrutem da leitura.

José Rodrigues de Mesquita Neto


Ana Paula Santos de Souza
10

REPRESENTAÇÃO DISCURSIVA EM REPORTAGENS DE


JORNAIS DE LÍNGUA ESPANHOLA: ANÁLISE DA
REPERCUSSÃO MIDIÁTICA DA PRISÃO DE LULA

Francisco Lindenilson Lopes


Silvana Maria de Freitas

Considerações iniciais

A Representação discursiva (doravante Rd) pode ser definida como


uma visão de mundo veiculada por todo e qualquer texto, quer seja ele oral ou
escrito. Também pode ser encarada como um conjunto de imagens construídas
pelo locutor ou autor de um texto sobre si mesmo, sobre um determinado tema
e sobre o seu alocutário ou leitor. Tal categoria de análise foi proposta por
Adam (2011), em sua Análise Textual dos Discursos (doravante ATD), um
dispositivo teórico-analítico que vem sendo desenvolvido em suas últimas
obras, sobretudo em seu livro Linguística Textual: introdução à análise textual dos
discursos.
No presente trabalho, abordamos a categoria da Representação
discursiva (Rd), a partir do fato histórico da prisão do ex-presidente do Brasil,
Luis Inácio Lula da Silva Lula, amplamente veiculado nos meios de
comunicação, em todo o mundo. O nosso objetivo é verificar que
Representação discursiva foi veiculada em jornais de língua espanhola, no que
se refere ao ex-presidente e a sua prisão.
Buscando uma visão panorâmica a respeito das Representações
discursivas construídas em torno do referido fato, nosso corpus de análise
contou com cinco reportagens dos seguintes períodos: Clarín (Argentina), La
Nación (Argentina), Última Hora (Paraguai), El país (Espanha), El mundo
(Espanha). Tomamos como critério de seleção das matérias que compõem o
referido corpus, a publicação das mesmas nas datas 05, 06 e 08 do mês de abril
de 2018, período em que ocorreram a ordem e a efetivação da prisão.
Nas seções seguintes, faremos um breve excurso sobre os postulados
teóricos da ATD, a fim de caracterizar a categoria da Representação discursiva,
para, em seguida, analisar os excertos das reportagens nos quais as referências a
Lula e a sua prisão aparecem.
11

A análise textual dos discursos: um dispositivo teórico-metodológico

Observando as bases de construção dos estudos textuais-discursivos,


reconhecemos o papel desempenhado pelas áreas da Linguística Textual
(doravante LT) e da Análise do Discurso (doravante AD), disciplinas que
surgiram aproximadamente na mesma época e seguiram caminhos diferentes.
Embora trabalhem com a mesma materialidade, isto é, o texto, pode-se dizer
que tais disciplinas só se permitiram estabelecer uma colaboração mais efetiva
nos dias atuais. Koch (2015, p. 164) enfatiza os diálogos que a LT vem
estabelecendo com outras disciplinas transformando-se numa “ciência
integrativa” para dar conta do texto enquanto objeto complexo e multifacetado.
Na verdade, desde os estudos de Beaugrande (1997), ainda no final da década
de 1970, já antecipava o que vemos na atualidade: uma linguística de texto
concebida como subdomínio linguístico de uma ciência transdisciplinar do
texto e do discurso. A partir disso, percebemos que, depois das viradas
pragmática e cognitiva, atualmente, a LT pode estar vivendo mais uma virada
nos seus estudos, algo muito próximo de uma virada discursiva (cf. FILHO,
2017). Paveau e Sarfati (2006), por exemplo, concebem a Linguística Textual e a
Análise do Discurso, juntamente com a Semântica de Textos, sob a mesma
“etiqueta” de linguísticas discursivas. De outra parte, também é possível notar uma
maior preocupação com o estatuto do texto por parte de algumas correntes da
AD, vide os trabalhos de Dominique Maingueneau, por exemplo.
É deste ponto que partimos para a constituição do campo de estudo
atual da LT, que se ampliou para dar conta de fenômenos que desbordam as
fronteiras textuais para adentrar os domínios discursivos. A proposta de uma
Análise Textual dos Discursos (ATD), feita por Adam (2011), insere-se
justamente nessa abertura da LT para os fenômenos textuais-discursivos. Na
perspectiva de uma redistribuição dos fenômenos estudados pela LT e pela AD,
Adam (2011) insere a LT dentro do campo mais vasto da AD conforme
esquema a seguir:
12

Esquema 01: Níveis ou Planos da análise de Discurso.

Fonte: Adam (2011, p. 61).

O esquema anterior propõe que os níveis N1, N2 e N3 sejam do


interesse dos analistas de discurso, uma vez que seu campo de interesse abarca
justamente a interação social, as formações discursivas, os interdiscursos e etc.
Já os níveis N4, N5, N6, N7, N8 seriam do campo de interesse da Análise
Textual dos Discursos, pois os fenômenos contidos nesses níveis constituem os
objetos de estudo selecionados: a textura, a estrutura composicional, a
semântica, a enunciação e os atos de discurso.
Como se pode perceber pelo Esquema 01, o campo de investigação e
os fenômenos textuais discursivos abordados são vastos. Há, portanto, uma
longa agenda de trabalho a ser desenvolvida no âmbito da ATD. O presente
trabalho tem por foco o nível N6, ou seja, o nível da análise semântica do texto
que procura investigar as Representações discursivas construídas num texto.
Segundo Almeida (2016, p. 86), a Representação discursiva (Rd) “[...] se
configura no texto a partir da organização de suas proposições-enunciado”, isto
é, o conjunto de proposições-enunciado que harmonicamente formam o texto
e, ao mesmo tempo, projetam uma Representação discursiva (Rd), entendida
como uma visão de mundo proposta a um leitor ou interlocutor. Em outras
13

palavras, a Rd é uma proposição de mundo que o produtor de um texto


constrói e oferece a um alocutário interpretante.
A proposição de mundo que a Rd de um texto constrói se estrutura em
torno de um grupo de imagens projetadas: imagens de quem diz algo (ou
escreve algo), imagens do que se diz (o conteúdo ou tema tratado) e imagens de
para quem se dirige o dizer (ou o escrito). Na verdade, o conceito de
Representações discursivas se funda na certeza de que, com maior ou menor
explicitação, todo texto (oral ou escrito) carrega marcas das concepções do seu
produtor, tendo em vista que cada sujeito no mundo tem um lugar discursivo
constituído na interação sócio-discursiva.
Conforme Adam (2011, p. 108), a unidade mínima, a que se chama
“proposição-enunciado”, é o produto de um ato de enunciação, sendo
anunciada por um enunciador inseparável de um coenunciador”. Ou seja, toda
proposição-enunciado carrega marcas discursivas, explícitas ou implícitas, de
um “eu”, enquanto imagem do enunciador e um “outro”, enquanto imagem de
um coenunciador. De fato, é por meio da proposição-enunciado que o
enunciador/locutor enuncia algo, ou seja, constrói um discurso/texto que será
direcionado a outro, um coenunciador/alocutário ou interlocutor, que
reconstrói ou constrói esse discurso/texto. É relevante destacar ainda que:

toda proposição-enunciado compreende três dimensões


complementares ás quais se acrescenta o fato de que não
existe enunciado isolado: mesmo aparecendo isolado, um
enunciado elementar liga-se a um ou a vários outros e/ou
convoca um ou vários outros em resposta ou como
simples continuação (ADAM, 2011, p. 109).

Em outras palavras, todo enunciado está condicionado por inúmeros


fatores, ou seja, é constituído ou pode apresentar diferentes dimensões textuais-
discursivas, desse modo, quando Adam (2011) fala em proposição-enunciado,
refere-se às unidades textuais-discursivas que condicionam a produção do
sentido. Nas palavras do próprio autor, estruturalmente há na proposição-
enunciado:

uma enunciativa [B] que se encarrega da representação


construída verbalmente de um conteúdo referencial [A] e
dá-lhe uma certa potencialidade argumentativa [ORarg]
14

que lhe confere uma força ou valor ilocucionário [F] mais


ou menos identificável (ADAM, 2011, p. 109).

Esses postulados, contidos na citação anterior, também podem ser


organizados esquematicamente. O referido autor propõe o seguinte modelo
para a estruturação das três dimensões de uma proposição-enunciado:

Esquema 02: Dimensões proposição-enunciado.

Fonte: Adam (2011).

Demonstra-se por meio do Esquema 02 criado por Adam (2011) que


existem três dimensões constitutivas da proposição-enunciado. Não há
superioridade entre elas, uma vez que cada dimensão é inseparável da outra e
colabora para com a outra. A dimensão enunciativa [B] veicula um conteúdo
referencial [A] de tal forma que lhe confere certa orientação argumentativa
[ORarg] e uma força ilocucionária [F] que, juntos, correspondem à dimensão
[C]. A Representação discursiva (Rd), então, corresponde à dimensão [A] da
proposição-enunciado, conforme o esquema anterior.
Para Lopes (2017, p. 44), a proposição-enunciado, “é a unidade mínima
veiculadora de um objeto de discurso, com a qual um locutor enuncia sua
posição de locução através de índices específicos e, ao mesmo tempo, postula
uma posição de alucoção na qual um alocutário lhe fará frente”. A
Representação discursiva, portanto, é uma categoria de análise responsável por
colaborar com o estudo do nível semântico da linguagem. Por meio dela,
15

podemos interpretar um discurso materializado em texto. Desse modo, “em


termos de teoria linguística da enunciação, diremos que o texto é, ao mesmo
tempo, uma proposição de mundo (Rd) e de sentido, um sistema de
determinações e um espaço de reflexividade metalinguística” (ADAM, 2011, p.
115).
Para dar conta dos estudos relacionados ao nível semântico da
proposição-enunciado, isto é, da descrição da Rd, Rodrigues et al. (2010, p. 152)
propõem algumas categorias:

Quadro 01: Categorias de análise semânticas.


“consiste em “aquilo” que designamos, representamos
sugerimos quando usamos um termo ou criamos uma
situação discursiva referencial com essa finalidade: as
Referência entidades designadas são vistas como objetos-de-discursos e
não como objetos do mundo”. É designar algo e assim
referenciar, representar algo ou alguém de um determinado
modo.
“[...] remete tanto á operação da seleção dos predicados, isto
é, à designação dos processos, no sentido amplo [...],”. É o
responsável pela construção contínua de sentido entre os
Predicação
enunciados, que demonstra o transcorrer das ações e o que
apresenta mudanças de estado e comportamentos entre os
sujeitos envolvidos nos enunciados presentes nos discursos.
“refere-se às características ou propriedades tanto dos
referentes como das predicações.” São os aspectos que
Aspectualização
conduzem à certas construções de interpretação ou
construção das Rd.
“expressa aqui dois processos distintos: a assimilação
analógica [...], base da comparação, da metáfora e de outras
figuras de linguagem e as ligações entre enunciados.”. A
Relação
relação que é estabelecida entre os enunciados e que são
bem visíveis como conectores e contribuintes para a
construção de sentido.
“Indica as circunstâncias espaço temporais nas quais se
desenvolvem os processos e os participantes.” Indica a
Localização
origem ou o espaço onde se encontra o enunciador,
portador da voz e do discurso.
Fonte: Rodrigues et al. (2010, p. 175-176).

Em maior ou menor medida, essas categorias semânticas são


responsáveis por nortear o conteúdo descritivo que constitui as Representações
16

discursivas. Vale salientar que o breve excurso que fizemos até aqui consta de
uma seleção de uma pequena parte da ATD. Na verdade, a ATD se propõe não
só como campo teórico, mas também como arcabouço metodológico que visa
dar conta de uma análise textual aplicável a qualquer discurso.
Para Moraes (2003), três procedimentos metodológicos gerais podem
ser observados em tal análise textual: a unitarização que consiste na
desmontagem dos textos para examinar os materiais em seus detalhes,
fragmentando-os; a categorização que consiste no estabelecimento de relações
entre as unidades de base; e a captação crítica de uma nova interpretação
emergente das fases anteriores, para constituir um metatexto. Dessa feita, a
análise textual, como procedimento metodológico, descreve e interpreta
“sentidos e significados que o analista constrói ou elabora”, tendo por base a
análise de um conjunto de textos ou documentos (MORAES, 2003, p. 202).
Apoiando-nos em tais princípios teórico-metodológicos realizamos nos
tópicos seguintes a análise de excertos de matérias dos jornais Clarín
(Argentina), La Nación (Argentina), Última Hora (Paraguai), El país (Espanha),
El mundo (Espanha).

A representação discursiva de Lula e sua prisão enquanto temas tratados

Ao longo das cinco reportagens analisadas, pudemos constatar que a


categoria semântica da referenciação é a mais empregada. As referências a Lula
são recorrentes, tais como a referência de ex-presidente (“exmandatario”). Esse
tipo de referência transmite pouco engajamento argumentativo, levando em
conta que a condição de ex-presidente é notória e pacífica, em termos do seu
conteúdo proposicional. Contudo, de outra parte, encontram-se presentes nas
reportagens construções referenciais que denotam um maior grau de orientação
argumentativa, tais como a referência ao “herói”, ao “guerreiro”, entre outras,
que introduzem um conteúdo proposicional polêmico. Há nesse segundo grupo
de referências, graus de engajamento discursivo maiores do que as referências
anteriores, motivo pelo qual muitas vezes os jornais recorrem ao discurso
citado para se distanciar de tais conteúdos proposicionais. Na tabela a seguir,
procuramos sistematizar as ocorrências de referências a Lula enquanto tema
tratado:
17

Quadro 02: Ocorrências de Referências a Lula enquanto tema.


Jornal: Ocorrências
Última Hora “ex mandatário”, “líder”.
La Nación “ex presidente”, “líder sindical”, “líder del PT”
“líder sindical”, “líder popular”, “el preso con mayor apoyo
Clarín popular”, “ex mandatario”, “jefe de una banda”, “el mejor
presidente de la historia”, “el hijo de Brasil”
“ex presidente”, “líder del PT”, “uno de los jefes de Estado
El país
más populares”
“ex presidente”, “ex mandatario”, “líder del PT”, “exjefe de
El mundo Estado”, “el tornero que se transformó en presidente”,
“obrero”
Fonte: Elaboração nossa.

Conforme os dados constantes do Quadro 02, é possível notar que a


maioria dos periódicos procurou manter certa neutralidade em relação ao
tratamento dado a Lula, enquanto alocutário. São abundantes as referências às
suas condições de ex-presidente, líder do PT, líder sindical, etc. De outra parte,
há referências que apontam para caracterizações polêmicas do alocutário, tais
como as apontadas pelo jornal argentino Clarín, quais sejam: “chefe de uma
quadrilha”, “melhor presidente da história”, “filho do Brasil”. Todas essas
referências, devidamente escritas com aspas, apontam como autoria um ente
externo, objetivando a não assunção de Responsabilidade Enunciativa (RE).
Chama atenção, o fato de nenhum dos periódicos demonstrar
engajamento discursivo com referentes do tipo “criminoso”, “bandido”,
“corrupto”, como alguns veículos de comunicação nacional fizeram questão de
consignar. Os jornais estrangeiros falaram do processo, das acusações e da
prisão, mas não se apoiaram nesses elementos jurídicos para referenciar Lula de
tal forma. Preferiu-se guardar certo distanciamento dos fatos jurídicos, relatados
através do contraste da condenação com elementos da biografia de Lula,
ressaltando sua origem humilde, sua popularidade de amplitude mundial e seu
legado político-social.
O jornal paraguaio Última hora publicou matéria intitulada “Lula se
refugia na sede sindical apoiado por dirigentes do PT e centenas de pessoas”. O
jornal destacou o grande apoio que o ex-presidente teve, tanto por parte de
populares, quanto por parte de dirigentes de partidos de esquerda. Além disso,
o jornal fez questão de reproduzir trechos da página oficial do PT no Twitter
18

que evidenciavam o grito de guerra dos partidários de Lula, conforme vemos


abaixo:

Excerto 01: Jornal Última hora.


"Lula! Guerreiro! Do povo brasileiro!", gritam milhares de pessoas em São
Bernardo do Campo, direto do Sindicato dos Metalúrgicos.
Fonte: http://www.ultimahora.com1

Há neste caso, a diferença entre a fala do jornalista e a fala imputada a


outros, com a devida separação por aspas. Com base em Adam (2011),
podemos dizer que, nesse e em outros casos de discurso citado, a diferenciação
entre o Ponto de Vista (PdV) da matéria jornalística procura diferenciar-se do
Ponto de Vista (PdV) dos partidários de Lula. Essa referência ao “guerreiro” é
trazida ao texto pelo seu escrito, mas não é realizada por ele. Nesse momento, o
jornalista utiliza aspas para não assumir a Responsabilidade enunciativa (RE) de
tal conteúdo proposicional, porém é um fato que tal conteúdo proposicional
veicula uma Rd de Lula como “Guerreiro do povo brasileiro”. A despeito de tal
conteúdo ser imputado a outros é no texto jornalístico do referido veículo que
ele ganha relevo.
Em relação ao tema da prisão de Lula, o jornal Última Hora procurou
destacar a estratégia de partidários do ex-presidente em igualar os
procedimentos judiciais atuais aos procedimentos excepcionais e parciais do
período ditatorial brasileiro. Dentre os vários elementos históricos trazidos pelo
jornal, destaca-se a transcrição da voz de Gleisi Hottmann, presidente do PT:

Excerto 02: Jornal Última hora.


La presidenta del PT, Gleisi Hoffmann, consideró que la orden de Moro
"reedita los tiempos de la dictadura" en Brasil y constituye "una violencia sin
precedentes en nuestra historia democrática", en un mensaje divulgado en
las redes sociales.
Fonte: http://www.ultimahora.com1

No excerto 02, o jornal Última Hora abre espaço para a construção da


Rd do tema “prisão de Lula” como sendo uma “violência” sofrida pelo ex-
presidente, que não encontra precedentes na história democrática, fazendo com

1Disponível em <http://www.ultimahora.com/lula-se-recluye-sede-sindical-arropado-dirigentes-
del-pt-y-cientos-personas-n1141403.html.> Acesso em: 13 Mai. 2018.
19

que se considere a ordem do Juiz Moro como alinhada aos atos extremistas da
ditatura militar brasileira.
O jornal argentino La Nación vai na mesma linha do jornal paraguaio
com matéria intitulada “Os 31 dias que Lula passou atrás das grades”2. O jornal
estabeleceu um paralelo entre a prisão de o ex-presidente durante a ditadura
militar brasileira e a prisão atual, pontuando a trajetória da sua vida pessoal e
política. O texto da reportagem trouxe a Rd de Lula como “ex-presidente”,
“líder sindical”, “líder do PT”. O La Nación retomou o histórico carcerário de
líder petista que já havia sido um preso político, durante a ditadura militar
brasileira, em 1981, curiosamente no mesmo mês abril.
Por sua vez, o jornal argentino Clarín, em matéria intitulada “Brasil: o
dia que Lula foi preso”3 também retoma a prisão política de Lula durante a
ditadura militar brasileira como mote para abordar a atual prisão ocorrida em
2018. O jornal se refere ao ex-presidente como o “maior líder popular da
história do Brasil” quem coloca a prova o “seu mito, seu legado” frente a
condenação por corrupção. Interessante notar, no texto do periódico, a
aspectualização do referente através de epítetos extraídos de diversas fontes,
tais como “o melhor presidente da história” (pesquisa Datafolha) e “o filho do
Brasil” (título de filme-biografia dirigido por Fábio Barreto).
Na avaliação da matéria do Clarín, Lula foi o “preso com maior apoio
popular do mundo”, destacando que, mesmo diante do processo e da sua
ordem de prisão, é o maior favorito a vencer os rivais nas eleições presidenciais:

Excerto 03: Jornal Clarín.


Si estará tras las rejas, será el preso con mayor apoyo popular del mundo: al
mismo tiempo que es humillado hacia la prisión por corrupción, es el
favorito a vencer a todos sus rivales en las elecciones de este año.
Fonte: http://www.clarin.com4

Os trechos em destaque no excerto anterior projetam a Rd de Lula


como “preso”, “popular”, “humilhado” e “favorito”, imagens contraditórias
que o jornal faz questão de matizar: um suposto criminoso condenado que, ao

2 “Los 31 días que Lula pasó tras las rejas.”


3 “Brasil: el día que Lula da Silva quedó preso”
4 Disponível em: < https://www.clarin.com/mundo/brasil-dia-lula-da-silvia-quedo
preso_0_ryMM55Qif.html>. Acesso em: 13 Mai. 2018.
20

mesmo tempo em que é humilhado pela ordem de prisão, mantem a


popularidade e o favoritismo entre os eleitores.
No que se refere à caracterização da prisão de Lula, o jornal Clarín
transcreve a controvertida fala do promotor do caso Lula, Deltan Dallagnol,
quem chegou a dizer que o caso era uma “obra de Deus” a favor do brasil,
conforme excerto a seguir:

Excerto 04: Jornal Clarín.


El año pasado el fiscal Deltan Dallagnol, jefe del equipo de Lava Jato y
conocido por decir que el caso es "obra de Dios" a favor de Brasil, presentó a
Lula como jefe de una banda que desviaba dinero de Petrobras y que el
departamento era parte de ese pago.
Fonte: http://www.clarin.com4

Descrito de tal forma por Deltan Dallagnol, chefe da operação Lava


Jato, o processo que apontou Lula como chefe de uma quadrilha, que desviava
dinheiro da Petrobrás, assim como o fato do processo que culminou no ato de
prisão, coroando o trâmite legal, apresenta uma Rd de “obra de Deus”, algo
adverso ao caráter laico do estado e da própria justiça. O Clarín chama atenção
para a conduta no mínimo estranha de Deltan Dallagnol, destacando a
aspectualização do caso como “obra de Deus”.
No que se refere a imagem de Lula, o Clarín também destacou o
processo de “Mandelização” do ex-presidente, conforme podemos ver no
trecho a seguir:

Excerto 05: Jornal Clarín.


Ahora, es todo un misterio lo que ocurrirá con el legado de Lula o el futuro de
Lula. La mandelización de su figura en los últimos días fue una constante en la
conducción del PT.
Fonte: http://www.clarin.com4

O excerto 05 mostra uma referência ao político sul-africano Nelson


Mandela que foi condenado à prisão perpétua, em processo de natureza
política. O sul-africano cumpriu vinte e sete anos de prisão e só foi libertado
devido a apelos de organismos internacionais. Após sair de sua prisão política,
Mandela foi eleito presidente e conduziu o fim da prática segregacionista
conhecida como Apartheid. O político é referência internacional como ativista
21

humanitário e pacifista, também um ícone que traduz a vítima de perseguição


jurídico-política. A transformação do nome próprio “Mandela”, na predicação
“mandelização” para atribuir a Lula, transporta a Rd do “preso político”
daquele para este. O Clarín atribui essa transformação de Lula em Mandela aos
partidários do PT, escusando-se de chancelar essa Rd.
No jornal espanhol El País, figurou a reportagem “Juiz ordena a imediata
prisão de Lula da Silva”5 estabelecendo foco na ação judicial, da qual o ex-
presidente era alvo. A contradição entre o processamento em tempo recorde,
do caso Lula, frente a lentidão tradicional da justiça brasileira, foi um dos
pontos abordados pelo periódico, lançando suspeitas em relação às intenções
por trás do caso histórico.

Excerto 06: Jornal El País.


La inminente entrada en la cárcel de Lula saca de la carrera electoral al
candidato que encabezaba holgadamente todas las encuestas, con
una intención de voto de alrededor del 35%.
Fonte: http://www.elpais.com6

As referências a Lula, como “líder” sindical, “líder” do PT e “ex-


presidente”, também aparecem na matéria do El País, prevalecendo a Rd de
Lula como “um dos chefes de estado mais populares do mundo”. No excerto
anterior, o texto da notícia ressalta os efeitos da prisão de Lula para a corrida
eleitoral, fazendo menção a sua liderança com folga nas pesquisas de intenção
de voto. Na matéria, também, faz-se menção à recusa do Supremo Tribunal
Federal em analisar o mérito dos fatos que levaram às acusações e à
condenação de Lula, restringindo-se apenas à pertinência da prisão em segunda
instância.
A seguir, vemos no excerto 07, a celeridade inusual com que o juiz do
caso, Sérgio Moro, ordenou a prisão de Lula, antes de o STF negar o último
recurso de Lula, com menos de vinte e quatro horas.

5 “El juez ordena el inmediato ingreso en prisión de Lula da Silva”


6Disponível em:<
https://elpais.com/internacional/2018/04/05/actualidad/1522953963_053794.html.> Acesso
em: 13 Mai. 2018.
22

Excerto 07: Jornal El País.


Sin esperar a agotar los plazos legales, el juez Sérgio Moro, el pertinaz acusador
de Luiz Inácio Lula da Silva en los últimos tres años, ha dictado, en la noche de
este jueves, el inmediato ingreso en prisión del expresidente de Brasil. No
habían pasado ni 24 horas desde que el Supremo Tribunal Federal (STF)
decidiese, en la madrugada anterior, denegar el último recurso de Lula,
condenado a 12 años por corrupción, cuando Moro dictó un auto fulminante
para decretar su encarcelamiento.
Fonte: http://www.elpais.com6

O excerto 07 traz a Rd do tema a prisão de Lula como “ato


fulminante”, uma Rd estruturada em torno de uma aspectualização singular que
aponta para os traços semânticos de “terrível”, “cruel”, “que manda fazer
grandes males ou morticínio”, segundo os dicionários. Some-se a isso a
predicação atribuída a Sérgio Moro “ditou”, um verbo que matiza a carga
semântica de “forte vontade”, “imposição”, “volição”. No contexto da
celeridade recorde do processo, tal Rd do tema da prisão de Lula se reveste de
uma orientação argumentativa que lança suspeitas sobre as verdadeiras
motivações da ordem de prisão.
No título da reportagem do jornal espanhol El Mundo, observamos o
título: “Lula é preso em Curitiba depois de se entregar a polícia brasileira”7. O jornal
focou sua matéria na operação policial que teve de vencer a resistência de centenas de
partidários de Lula para fazer cumprir o mandado de prisão e a condução do ex-
presidente à Curitiba. Destacaram-se os diálogos entre Lula e sua militância nos quais a
militância lhe pedia “resistência” ao que este respondia com frases de efeito “a morte de
um combatente não para a revolução”, “Lula é cada um de vocês”, “continuarei
sonhado pela cabeça” de seus partidários. No trecho a seguir o jornal reproduz uma das
frases:

Excerto 08: Jornal El Mundo.


-"Si el crimen que cometí fue llevar salud, comida y educación a los pobres,
entonces quiero seguir siendo un criminal".
Fonte: http://www.elmundo.es8

7 “Lula ingresa en la prisión de Curitiba tras entregarse a la Policía brasileña”


8Disponível

em:<http://www.elmundo.es/internacional/2018/04/07/5ac910c4268e3ebd068b462e.html.>
Consultado em: 13 Mai. 2018.
23

Neste excerto, toda a proposição enunciada é colocada no texto para


dar destaque à voz de Lula. Abre-se, assim, espaço para uma Rd de Lula como
vítima de uma injustiça, posto que, segundo a voz transcrita do próprio locutor,
o crime praticado por ele foi atender aos mais pobres com saúde, comida e
educação. Em outros trechos, o jornal também projeta as Rd de Lula como
“primeiro operário a alcançar a presidência do Brasil”, abrindo espaço para
supor uma possível luta de classes como pano de fundo do caso em questão.

Considerações finais

Este trabalho teve como objetivo analisar as Representações


discursivas de “Lula” e de sua prisão enquanto temas tratados em reportagens
de cinco jornais de língua espanhola, a saber: Clarín (Argentina), La Nación
(Argentina), Última Hora (Paraguai), El país (Espanha), El mundo (Espanha).
Partindo desse objetivo, constatamos que os jornais por meio dessas
reportagens constroem a imagem de Lula como “líder”, “ex-presidente”,
“guerreiro do povo brasileiro”, “popular”, de origem humilde e que, por isso,
recebe apoio e carinho da classe mais pobre do país, . Visualizamos, inclusive, a
imagem de um Lula que vive direcionando sua vida a causas sociais e como um
grande defensor da classe trabalhistas.
Embora situadas em um cenário de condenação criminal, as referências
a Lula como “corrupto”, “condenado”, “preso”, não se sobrepõem às demais,
tendo em vista que os jornais procuraram mostrar sua história de vida
incluindo, nessa narrativa, a prisão política sofrida na época da ditadura militar.
Em alguns casos, é patente a visão de Lula como um preso político também na
atualidade. O uso no neologismo “mandelização”, uma predicação calcada em
uma aspectualização, procurou matizar alguém que só foi investigado por
interesses escusos de seus adversários, com vistas a mudar o cenário eleitoral, já
que detinha a maioria da intenção de votos para presidente.
Também conseguimos identificar referências ao processo judicial e à
prisão em si que evidenciam uma Rd do tema “prisão de Lula” como uma
situação excepcional do ponto de vista da celeridade no tramite processual, no
qual etapas foram eliminadas. Cabe destacar a singular Rd da Operação Lava-
jato e, consequentemente do processo que culminou na prisão de Lula,
proposta por de Deltan Dallagnol. O grupo nominal “obra de Deus” funcionou
como aspectualizador que atrai para a Rd do tema “prisão de Lula” uma carga
24

semântica adversa ao âmbito jurídico, colidindo frontalmente com princípios


constitucionais, tais como o princípio do estado laico.
Por fim, acreditamos ter cumprido com os objetivos aos quais nos
propomos ao início do presente trabalho. Esperamos que a visão panorâmica
apresentada, a respeito das Representações discursivas construídas em torno da
prisão de Lula, possa contribuir para os estudos textuais discursivos sob o viés
da ATD, sobretudo no que concerna a categoria da Representação discursiva.

Referências

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discursos. São Paulo: Cortez, 2011.

ALMEIDA, W. M.; QUEIROZ, M. E. Povo brasileiro: representações


discursivas no discurso da presidenta Dilma Rousseff. Diálogo das Letras,
Pau dos Ferros, v. 05, n. 01, p. 82-96, jan./jun. 2016.

BEAUGRANDE, R. de. New Foundations for a Science of Text and


Discourse: Cognition, Communication, and Freedom of Access to Knowledge
and Society. Norwood, New Jersey: Alex, 1997.

FILHO, F. A. Linguística Textual e Análise do Discurso. In.; CINTRA, M. R;


PENHAVEL, E; SOUZA, E. R. F. (Orgs.). Linguística Textual: interfaces e
delimitações: homenagem a Ingedore Grunfeld Villaça Kock. São Paulo:
Cortez, 2017. p.335-356.

KOCH, I. V. Introdução à Linguística Textual: trajetória e grandes temas. 2.


Ed. São Paulo: Contexto, 2015

LOPES, F. L. Representações discursivas na homilia do Papa Francisco


proferida na santa missa pela evangelização dos povos. Dissertação
(Mestrado) Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Programa de
Pós- graduação em Letras, Pau dos ferros: 2017.

MORAES, R. Uma tempestade de luz: a compreensão possibilitada pela


análise textual discursiva. Ciência & Educação, v. 9, n. 2, p. 191-211, 2003.
Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/ciedu/v9n2/04.pdf>. Acesso
25

em: 28 fev. 2019.

PAVEAU, M-A.; SARFATI, G-E. As grandes teorias da linguística: da


gramática comparada à pragmática. Trad. M.R. Gregolin et al. São Carlos:
Claraluz, 2006.

RODRIGUES, M, G. S.; SILVA NETO, J. G.; PASSEGGI, L. (Orgs.).


Análises textuais e discursivas: metodologias e aplicações. São Paulo: Cortez,
2010.
26

ANÁLISE CRÍTICA INTERTEXTUAL DE CHARGES SOBRE O


GOVERNO DILMA

Alaide Angelica de Menezes Cabral Carvalho


Iza Maria Pereira
José Roberto Alves Barbosa

Breve introdução à Análise Crítica do Discurso

A Análise do Discurso Textualmente Orientada (ADTO); é a versão de


ACD do linguista britânico, Norman Fairclough, a qual adotaremos nesta
pesquisa –, analisa textos e dá importância às características não apenas
linguísticas presentes, já que esses textos circulam em sociedade. Além disso,
como a ADC surgiu na mesma “direção” da LC, não poderíamos esperar que a
ADTO preocupasse apenas com a descrição de textos.
Fairclough explica o entendimento de sua abordagem como dialética
com base em sua concepção de discurso. Segundo o autor (2009, p. 162-163),
há várias formas de compreender o termo discurso: a) como produção de sentido
ou elemento do processo social, b) como linguagem associada a um campo ou
uma prática social específica e c) como forma de construir aspectos do mundo
associada a uma perspectiva social específica. O discurso pode, dessa maneira,
ser utilizado tanto em sentido abstrato quanto em sentido específico.
Fairclough optou por chamar de semiose o sentido mais abstrato do
discurso, compreendido como um dos processos das práticas sociais
relacionada dialeticamente a outros elementos desses processos. A partir desta
acepção, ficou conhecida sua abordagem - dialética/relacional.
Fairclough (2003, p. 2-3) afirma que sua abordagem busca “transcender
a divisão entre trabalhos inspirados pela teoria social que tendem a não analisar
textos e trabalhos que focalizam a linguagem dos textos, mas tendem a não se
engajar com questões teóricas sociais”. Portanto, não esquecendo suas raízes
linguísticas, a ADC vigora como um recurso para a análise crítica social.
A fim de desenvolver análises e críticas sociais, Fairclough implementa
um aparato teórico-metodológico que chamou de transdisciplinar.

[...] é uma teoria ou método que está em uma relação


dialógica com outras teorias e métodos sociais, que devem
se envolver com eles de forma transdisciplinar e não
27

apenas de maneira interdisciplinar, o que significa que os


compromissos particulares em aspectos particulares do
processo social podem dar origem a desenvolvimentos de
teoria e método que alteram os limites entre diferentes
teorias e métodos. (FAIRCLOUGH, 2009, p. 121).

Esses diálogos entre teorias e disciplinas possibilitam contribuições


mútuas. Além disso, como afirma Fernandes (2014, p. 43), “a „lógica‟ e os
conceitos que a ADC empresta de outras teorias e disciplinas são
recontextualizados de forma que contribuam para seus objetivos de
investigação”.

Algumas noções fundamentais

O conceito de intertextualidade refere-se à conexão entre o que é


interno a um texto e ao que é externo. Essa concepção foi cunhada pela filósofa
e crítica literária búlgara Julia Kristeva, a fim de trazer os estudos bakhtinianos
ao Ocidente, sobretudo quanto ao dialogismo.
Bakhtin ressalta que (2003 [1952-1953], p. 297), “Cada enunciado é
pleno de ecos e ressonâncias de outros enunciados com os quais está ligado
pela identidade da esfera de comunicação discursiva”.
Para Fairclough, “A intertextualidade de um texto é a presença de
elementos de outros textos dentro dele (como também, potencialmente outras
vozes além da voz do autor), os quais podem estar relacionados (discutidos,
defendidos, refutados) de várias maneiras” (FAIRCLOUGH 2003, p. 218).
Uma das questões pertinente para a análise intertextual em ADC é
investigar que textos e vozes estão presentes ou ausentes e um determinado
gênero e compreender o que isso tem de significativo. Em ocasiões particulares,
dependendo da intenção que o produtor do texto deseje alcançar, é preferível
que estas relações fiquem implícitas. Em outros momentos, é mais razoável que
sejam explícitas.
Fairclough (2003) enfoca também, que as negações envolvem
enunciados provenientes de em um “outro texto” e, por tanto, são marcas
intertextuais. Identicamente, os enunciados irônicos ecoam um outro texto,
manifestando alguma ação negativa, por exemplo, de sarcasmo, deboche, muito
comum em charges.
Diferentemente de outros gêneros jornalísticos opinativos, a charge faz
uso constante do humor, sarcasmo e ironia para transmitir informações de
28

forma concisa, expor a opinião do chargista (e organização ao qual está


vinculado) sobre determinado acontecimento, que deve ser de interesse geral da
população.
A charge possibilita várias leituras o que a torna uma fonte de posições
valorativas, oferecendo condições ao leitor de relacioná-la dialogicamente.
Segundo Romualdo, “Sua força está na ambivalência, na pluralidade de visões
que apresentam ao leitor” (2000, p. 53).
Conforme o princípio dialógico da linguagem (Bakhtin, 2003 [1952-
1953]), todos e qualquer texto só pode ser assimilado se compreendermos sua
relação com outros textos. Essa perspectiva inclui a historicidade da linguagem
e, primordialmente, os contextos de uso da língua.
Qualquer texto é resultado de outros que o antecederam, seja em uma
maior proximidade espaço temporal ou menor. As impressões desse(s)
outros(s) texto(s) pode(m) estar explícitas ou serem tácitas, como também,
podem ser propositais ou involuntárias. De qualquer modo, o intertexto gerado
desse processo sucessivo e contínuo das práticas sociodiscursivas produzirá
efeitos específicos para os eleitores, bem como para os produtores.
No caso das charges, há um diálogo constante com eventos atuais e
por isso, conversa tanto com as notícias. Como também pode ser gerada a
partir de uma música, um ditado popular, um acontecimento, uma outra charge,
enfim. Diante dessa interação com outros textos, principalmente as manchetes
de jornais, é fundamental que o leitor possua os conhecimentos necessários
(acontecimentos de seu estado, país, etc.) sobre o contexto que a gerou.

Intertextualidade e produção de sentidos: análise

O conceito de intertextualidade implica conectar o que é interno a um


texto ao que lhe é externo. Após apresentarmos o corpus deste trabalho,
apresentamos de modo cronológico os eventos com os quais as charges
mantinham relação intertextual. Escolhemos sete (7) charges para identificar
algumas marcas intertextuais presentes nelas.
29

Figura 1: Dilma no espelho.

Fonte: http://www.psdb.org.br/acompanhe/charges/charge-dilma-no-espelho/

A charge 1, “Dilma no espelho”, apresenta Dilma Rousseff trajando a


capa da rainha má do conto Branca de neve e os sete anões. A cena intertextual é
remontada na charge; Dilma está em uma sala escura diante do espelho mágico,
dentro do qual, habita o escravo, um espírito aprisionado, incapaz de mentir.
Ela inicia sua fala com o jargão da bruxa: “Espelho, espelho meu…”.
No conto9, a pergunta da rainha má é sempre a mesma: “existe alguém
mais bela do que eu?” e a resposta é sempre positiva, exceto uma vez. No caso
de Dilma, ela questiona-o a respeito de sua gestão: “Existe alguma gestora
melhor do que eu?”. Buscando uma resposta favorável e otimista como
confirmação de sua reeleição – Dilma está usando a faixa presidencial.

9Cena do filme A Branca de Neve e o Caçador (Universal Pictures, 2012). O filme é


uma versão mais atual do primeiro filme longa-metragem de animação (dos estúdios
Disney), que foi lançado em um 1938. Branca de Neve e os Sete Anões é baseado no
conto de fadas dos Irmãos Grimm, Branca de Neve.
30

Figura 2: Filme Branca de Neve e o Caçador.

Fonte: https://www.cinepop.com.br/noticias2/brancadeneveeocacador_150.htm

No entanto, o espelho apresentando um olhar mordaz, responde: “Tá


de brincadeira”. A ironia submersa na fala do espelho, aliado ao fato do
espelho sempre falar a verdade, contribui para sustentar a construção identitária
negativa da presidente, como uma má gestora. Dilma Rousseff também é
apresentada como presunçosa, uma vez que espera ser reconhecido por algo
que não é, de acordo com sua representação altiva (cabeça erguida, mão sobre o
peito) e a lógica argumentativa do enunciado.
O chargista, diante do contexto da campanha presidencial, utilizou-se
da intertextualidade (imagética e verbal) como estratégia para construir uma
imagem negativa da presidente/candidata. Produzida ao ironizar a fala da
presidenta (Tá de brincadeira), aliada à representação imagética dela como uma
bruxa; um ser que denota maldade, agressividade, enfim, alguém que prejudica
as pessoas – quebra a expectativa de resposta esperada/desejada.
A charge 2 poderia ser marcada pela frase que já faz parte do senso
comum “Todo político é corrupto”, mas, não nos é apresentado outros
candidatos ou políticos que fazem oposição a presidenta Dilma. Aqui, temos
apenas o grupo de políticos que governam ao lado de Dilma Rousseff.
31

Figura 1: Dilma pacote de medidas.

Fonte: https://twitter.com/diariope/status/556811216321253376

A expressão “mais alguma [...]” remete à existência de outras, embora,


elas não sejam citadas. De qualquer modo, sugere a tomada de medidas erradas,
ruins para o país. Diante do contexto em que a charge foi produzida,
compreendemos que trata-se de medidas econômicas. A charge é então
carregada de ironia na medida em que afirma que as medidas econômicas,
sobretudo, para resolver os problemas enfrentados no país, são e foram
tomadas por um grupo de bandidos, representados imageticamente por vilões
de desenhos animados e filmes. Logo, essas medidas são descabidas e
inconcebíveis. A charge serve para satirizar e questionar (afirmando
indiretamente) que a presidenta é corrupta, que faz conchavos políticos em
benefício próprio e de seu grupo.
A charge se refere às Medidas Provisórias 664 e 665, editadas pelo
governo Dilma em dezembro de 2014, como justificativa de combater/diminuir
fraudes e dificultar cortar 18 bilhões de reais nas despesas da União, parte do
ajuste fiscal de, no mínimo, 60 bilhões definido pelo ministro da Fazenda,
Joaquim Levy, para atingir um superávit primário de 1,2% do PIB. O acesso ao
seguro-desemprego, ao abono salarial, à pensão por morte, ao auxílio-doença e
ao seguro-defeso pago aos pescadores no período de proibição da sua atividade
foram dificultados.
Como a presidenta havia prometido, durante a campanha à reeleição,
não mexer nas leis trabalhistas, essas medidas causaram mal-estar e descrédito.
Como podemos verificar na notícia:
32

Figura 2: Notícia EM: Pacote de maldades do governo Dilma.

Fonte:
https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2015/01/25/interna_politica,611295/a-
candidata-versus-a-presidente.shtml

Os termos utilizados para se referirem as medidas governamentais


mantêm uma espécie de intertextualidade por pressuposição (FAIRCLOUGH,
2001, p. 15), quando proposições são tomadas pelo produtor do texto como já
pré-estabelecidas. Assim, o “pacote de medidas” da charge é retomado pela
notícia como “pacote de maldades”. A ligação se dá também por meio dos
elementos visuais, que denotam maldade.
Outro exemplo de intertextualidade é encontrado na charge 3,
“Dilmandioca sapiens”. A charge faz uma pesada crítica a Dilma a partir da
retomada de seu discurso proferido no lançamento dos Jogos Mundiais dos
Povos Indígenas (JMPI), realizado em 23 de junho de 2015, em Brasília.

Figura 3: Dilmandioca sapiens.

Fonte: http://fuscabrasil.blogspot.com.br/2015/07/republica-bolivariana-da-
mandioca.html
33

Na ocasião, Dilma Rousseff fala sobre a importância dos jogos como


forma de unir as nações, exemplificando o período entre guerras (mundiais).
Fala também, do valor de alimentos que sustentaram as civilizações ao longo
dos séculos, com destaque a mandioca aqui no Brasil (um produto descoberto
pelos índios e de larga utilização até hoje em todo o país). E depois de
apresentar uma bola - da Nova Zelândia - que recebeu de presente do líder
indígena, Marcos Terena, apresentando-a como símbolo da evolução humana -
depois de destacar sua capacidade de ricochetear mesmo sendo tão leve. E
terminando por afirmar que nos distinguimos de outras espécies por construir
coisas como essa bola. Somos, portanto, “homo sapiens ou mulheres sapiens”.
O chargista considerou o discurso ofensivo e ininteligível.

Figura 6: Notícia retirada do site do G1.

Fonte: http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/06/dilma-faz-o-lancamento-dos-
jogos-mundiais-dos-povos-indigenas.html

O chargista optou por utilizar termos do Discurso da presidenta que


pudessem ser facilmente recuperados, como por exemplo as palavras mandioca
e sapiens. Como pudemos observar, as escolhas textuais (multimodais)
evidenciam o posicionamento dos chargistas e engajamento com o que é dito,
isto é, avaliando e representando Dilma e seu governo de forma negativa.
A charge 4 (Figura 7) apresenta um diálogo entre dois homens. O
diálogo surge a partir de um questionamento sobre o que ocorrerá com Dilma
Rousseff; se ela será impichada ou renunciará antes.
34

Figura 4: Renúncia ou impeachment.

Fonte: <https://www.humorpolitico.com.br/governo-dilma-2/renuncia-ou-
impeachment/>.

Apresentaremos a seguir duas notícias que apresentam vozes


intertextuais, isto é, recontextualizam o discurso proferido na charge 4. Uma a
priori, produzida antes da publicação da charge e, possivelmente, podendo ter
influenciado sua criação. E, outra notícia produzida seis meses após a
publicação da charge.
A notícia (18 de setembro de 2015) do site da Revista ISTOÉ, traz
apenas duas possibilidades para Dilma Rousseff – Renúncia ou impeachment -,
após proposta de ajuste fiscal e popularidade baixa. A charge 4 apresenta o
mesmo questionamento que a notícia do site ISTOÉ: “Renúncia ou
impeachment?”. Temos assim, uma intertextualidade vertical (KRISTEVA, 1986),
pois conseguimos estabelecer correlação entre os textos, e, eles possuem
proximidade temporal.

Figura 8: IstoÉ - Notícia sobre impeachment

Fonte: https://istoe.com.br/436882_RENUNCIA+OU+IMPEACHMENT+/#
35

A charge ainda, consegue antecipar a resposta/decisão tomada pela presidenta


– “Renunciar não vai [...]”. Como podemos ver em seu pronunciamento.

Figura 9: UOL notícias: pronunciamento sobre renúncia da presidenta.

Fonte: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2016/03/11/dilma-diz-
que-nao-pretende-renunciar-resignacao-nao-e-comigo-nao.htm

Embora a charge 4 tenha sido produzida anteriormente ao


pronunciamento da presidenta e da publicação desta notícia, podemos perceber
claramente a ligação intertextual. A notícia do site Uol.com traz informações
sobre o pronunciamento da presidenta com relação a suposta possibilidade de
renúncia ao cargo. A presidente Dilma Rousseff (PT) afirmou, no dia 11 de
março de 2016, que não tem intenção de renunciar ao cargo e que não há base
para que sofra um impeachment. A presidenta aparece em um vídeo afirmando:
“[...] E essa história de resignação não é comigo, não”. “Eu não estou resignada
diante de nada. Acredito que é por isso que represento o povo brasileiro. [...]
Eu não tenho cara de quem vai renunciar.”
Conforme Kristeva (1986, p. 36, com base em Bakhtin) essa
intertextualidade horizontal, refere-se as ligações que os textos podem estabelecer
com outros que os antecedem ou também, com textos futuros. Assim, o
chargista de antemão já respondeu, com uma pesada crítica, ao posicionamento
da presidenta, diante de sua decisão de não renunciar.
Há ainda, na charge 4, a intertextualidade manifesta por meio da
negação. Os enunciados negativos incorporam outros textos à medida que os
36

negam. Quando o chargista traz as sentenças: “Renunciar não vai, pois não tem
dignidade, noção e muito menos Q.I. para um gesto de grandeza como esse”, ele faz ecoar
outras vozes que vêem Dilma como competente, como alguém que combate a
corrupção, e que, não desejam/apoiam a sua saída.

Figura 10: Dilma vazamentos.

Fonte: http://chargesdoedra.blogspot.com/2016/04/

A charges 4 (Figura 10) apresenta ligações intertextuais com a Capa e


reportagem da Revista IstoÉ, de abril de 2016. A IstoÉ dedicou uma capa a
apresentar Dilma Rousseff gritando, a qual, foi intitulada “As explosões
nervosas da presidente”. A reportagem avalia o comportamento público de
Dilma Rousseff, de acordo com ela a presidenta sofria de “explosões nervosas”,
“destempero”, “alienação com a situação real do Brasil”. O título da
reportagem é “Uma presidente fora de si”.

Figura 11: Capa Revista IstoÉ: As explosões nervosas da presidente.

Fonte: istoe.com.br/edicao/894_AS+EXPLOSOES+NERVOSAS+DA+
PRESIDENTE/
37

A reportagem (1 de abril de 2016) afirma que, a presidenta após a


eclosão de seu afastamento, “perdeu também as condições emocionais para
conduzir o governo”. Essa afirmação constrói justaposta à imagem selecionada
para compor a capa da revista, sentidos negativos sobre a presidenta, as quais,
representam Dilma Rousseff como incontrolável, histérica e frágil, logo,
conduzem a representação de uma governante inapta ao cargo.

Fotografia 1: Fora de si, Reportagem IstoÉ.

Fonte: https://istoe.com.br/450027_UMA+PRESIDENTE+FORA+DE+SI/

Dilma Rousseff, pela sua própria história de luta política, apresenta-se


como uma mulher forte de postura altiva, não demonstrando fragilidades ou
delicadezas. Ao ocupar a função de chefe de Estado e de Governo, ela rompe
com o entendimento machista de mulher como ser frágil e dependente. Essa
construção ideológica, que parecia natural e eterna incomoda, pois, o papel da
mulher na esfera política ainda hoje é exíguo, muitas vezes, a mulher limita-se a
ser exibida ao lado do marido, como é o caso de Marcela Temer.

Figura 12: Reportagem: Revista Veja.

Fonte: veja.abril.com.br/brasil/marcela-temer-bela-recatada-e-do-lar/
38

Não podemos desconsiderar a reportagem sobre Marcela Temer, “a


quase primeira-dama”, intitulada “Bela, Recatada e do Lar”, a qual, foi veiculada
no dia posterior a aprovação da abertura do processo de impeachment, na
Câmara dos deputados. As características enaltecidas da atual esposa de Michel
Temer são nitidamente distintas das que sempre estiveram associadas à imagem
de Dilma Rousseff.
Do mesmo modo que a revista Veja publica uma matéria apresentando
o tipo de mulher
que se quer ou que o país “precisa”, isto é, um mero acessório, os chargistas
fazem uso do discurso machista para apresentar a presidenta de maneira
escrachada como frágil, incapaz e sem conhecimento.
Desse modo, percebemos a intertextualidade presente tanto na charge
10, uma vez que, o chargista tenta minimizar a presidenta por ser mulher,
quanto nas demais charges, especialmente a charge 1 e 3; quando Dilma
Rousseff é representada de modo rude, grosseira, soberba e altiva.
A charge 5 é contextualizada no mesmo período de turbulência;
primeiros encaminhamentos do processo de impeachment, vazamentos de
áudios ilegais da presidenta e ex-presidente – quando a revista IstoÉ faz essas
publicações.
Assim como na charge, vemos tanto a capa da revista quanto a
reportagem apresentar relações dialógicas. Os textos produzem discursos que
exploram aspectos comportamentais negativos, apresentados em razão do
maior líder do país ser uma mulher.
Dificilmente vemos um julgamento e/ou crítica ao vestuário, cabelo,
ou comportamento dos políticos homens, mas com uma mulher esses aspectos
parecem ganhar uma relevância muito grande. A jornalista Rachel Sheherazade,
por exemplo, desdenhou da roupa que a presidenta usou durante sua defesa no
Senado, em treze horas de acusações que culminaram com à abertura do
impeachment, a jornalista se preocupou com as roupas que Dilma vestia como
se fosse mais importante que o discurso.
A charge 6 (Figura 13), é outro exemplo pontual de intertextualidade.
No dia 16 de março de 2016, em um cenário político nacional, já bastante
tumultuado, ganhava destaque a quebra de sigilo e divulgação de novos
grampos telefônicos permitido pelo juiz Sérgio Moro de uma conversa entre
Luiz Inácio da Silva e Dilma Rousseff. A conversa não compromete a nenhum
dos dois, mas de qualquer forma foi responsável por acalorar os ânimos dos
opositores e provocar efeitos negativos na popularidade da presidenta e do ex-
39

presidente. Mais tarde o juiz pediria desculpa por meio de um ofício enviado ao
Supremo Tribunal Federal (STF), afirmando que jamais foi sua intenção
“provocar tais efeitos”, em referência aos protestos contra o Governo
amplificados após a divulgação dos áudios na TV. Ao encerrar o diálogo, Lula
se despede de Dilma com um “Tchau, querida”. A expressão foi amplamente
repetida e utilizada, como podemos verificar, charges também fizeram uso da
expressão de modo irônico.

Figura 13: Dilma tchau querida.

Fonte: http://historiasylvio.blogspot.com/2016/08/dilma.html

A Revista Veja, em 15 de setembro de 2016, publicou em sua capa uma


imagem sobreposta de Eduardo Cunha e em primeiro plano, a presidenta
Dilma Rousseff. Do lado esquerdo a Revista apresenta como manchete em
destaque: “Tchau, Querida/Tchau, Querido”, acompanhado do enunciado:
“Com o impeachment de Dilma e a queda de Cunha, o Brasil tem chance
histórica de fazer uma limpeza inédita na vida pública”.
A marca intertextual é encontrada na expressão Tchau, Querida, mas
toda a ideia produzida pelo enunciado é retomada na charge. As escolhas
lexicais do enunciado: “limpeza” e “na vida pública”, evidenciam o
posicionamento da revista e sinalizam para o impeachment como resolução da
corrupção, da crise. Logo, Dilma Rousseff mais uma vez é apresentada como
inimiga do país.
Trouxemos como exemplo intertextual a capa da Revista Veja de maio
de 2016:
40

Figura 14: Capa da Revista Veja.

Fonte: https://veja.abril.com.br/tveja/arquivo/tchau-querida-tchau-querido/

Vimos, portanto, o uso intertextual de um enunciado transformado em


ironia. A fala do ex-presidente Lula, ao se despedir de Dilma, foi ressignificada
e tornou-se um grito de apoio ao impeachment.
A charge 7 (Figura 15) também apresenta marcas intertextuais.
Amarildo apresenta em sua charge (7) a Sessão de julgamento do impeachment
da presidenta Dilma Rousseff no senado federal. A Sessão durou seis dias, foi
iniciada em 25 de agosto de 2016 e terminou no dia 30 com a manifestação do
voto dos senadores na tribuna. A charge simula assim, o evento final.

Figura 15: Impeachment congresso.

Fonte: https://amarildocharge.wordpress.com/2016/08/28/vossa-excelencia/
41

A notícia (Figura 16) retirada do site UOL de 17 de abril de 2016, traz a


votação para iniciar o processo de impeachment de Dilma Rousseff. Ao centro
da imagem temos o deputado Bruno Araújo (PSDB-PE) votando, seu voto
(voto 342) foi o último necessário para a abertura do processo. Em torno do
deputado, os parlamentares festejam cantando “Eu sou brasileiro com muito
orgulho, com muito amor”.

Figura 16: Notícia da abertura do processo de impeachment.

Fonte: https://noticias.uol.com.br/album/2016/03/17/crise-politica-
nobrasil.htm#fotoNavId=prb631b53a945922d3b77bc6c62329ac9820160418

Ao lermos a charge rememoramos o evento citado acima, ocorrido no


início do processo. A referida votação foi marcada pela fuga dos motivos
capazes de impedir um governo.
A imagem também conversa com outras charges, por exemplo, com a
charge 1 por apresentar os deputados usando réplicas da faixa presidencial; com
a charge 7, por apresentar os parlamentares segurando cartazes com o
enunciado “Tchau querida!”; e ainda, com as charges 3 e a 6, ao apresentar os
parlamentares trajando roupas e acessórios com as cores da bandeira do Brasil,
além de cantarem, na ocasião, a música “Sou Brasileiro” da banda Bicho do
Mato – música muito entoada em eventos esportivos.
Além desta notícia, somos levados a lembrar do evento mais próximo à
produção do texto – a decisão pelo impedimento do governo Dilma.
A votação é o elemento intertextual que une os textos, ambos
apresentam os parlamentares se posicionam a favor do impeachment de Dilma
42

Rousseff. Na charge, o posicionamento é mais crítico e categórico, listando


razões para que a presidenta seja destituída do cargo.

Figura 17: Notícia decisão final do impeachment.

Fonte: http://g1.globo.com/politica/processo-de-impeachment-de-
dilma/noticia/2016/08/senado-aprova-impeachment-dilma-perde-mandato-e-temer-
assume.html

Na contramão desses discursos que apresentam Dilma vociferando, o


jornal britânico, Financial Times, o qual elegeu a presidenta como uma das
“Mulheres do Ano” (2016), realizou uma entrevista10 em que apresenta um lado
da presidenta que dificilmente é apresentado por jornais brasileiros.

Figura 18: Jornal Financial Times: Entrevista com Dilma Rousseff.

Fonte: www.ft.com/content/cd5c2b24-bc05-11e6-8b45-b8b81dd5d080

10Entrevista realizada em Porto Alegre ao jornalista Joe Leahy, chefe da sucursal do


Financial Times no Brasil.
43

A entrevita é introduzida pelo comentário:

Para uma mulher que acabou de suportar um julgamento


político de seis meses, resultando em seu impeachment e
destituição, a ex-presidente brasileira Dilma Rousseff
parece notavelmente relaxada11.

Durante a entrevista, ela brinca e fala sobre sua nova paixão, o


ciclismo. Ao ser questionada sobre não ter agido como provavelmente a jovem
querrilheira Dilma Rousseff teria feito, a presidenta responde que a atual luta é
diferente. Expondo que, em todos os lugares, o “neoliberalismo” está
corroendo as fundações da democracia. E que, a melhor forma de enfrentar
essa ameaça é usar instituições democráticas, como quando ela foi ao Senado
durante o impeachment para enfrentar seus adversários.
Afirmou, “Por que eu não pude ceder à tentação de me amarrar a uma
das lindas colunas de Niemeyer no palácio? Porque nessa fase, a melhor arma é
crítica, conversa, diálogo, debate. A verdade é o oxigênio da democracia”.
Dilma argumenta que, se não fosse pelas mudanças introduzidas em
seu governo, as investigações da Lava Jato poderiam nunca ter acontecido.
“Um processo de corrupção é feito nas sombras, com os criminosos garantindo
a cobertura de seus rastros”, disse.
Em outro ponto da entrevista, Dilma afirma que,

Quando você é uma mulher em autoridade, eles dizem


que você é dura, seca e insensível, enquanto um homem
na mesma posição é forte, firme e encantador.

Ela conta que o mais frustrante foi que ela ser pintada como o ogro,
enquanto os homens da política brasileira ficaram cheirando a rosas. “Um dia,
depois de me cansar de ouvir o quão dura eu era, eu disse [sarcasticamente] que
sim, isso mesmo, eu sou uma mulher dura cercada de homens gentis; todos eles
são tão doces”.

11For a woman who has just endured a gruelling six-month political trial resulting in
her impeachment and ousting, former Brazilian president Dilma Rousseff looks
remarkably relaxed.
44

Aqui, vemos a intertextualidade manifesta, pois o texto incorpora e


responde a outros textos. Primeiro, apresentando uma mulher tranquila, mesmo
diante de sua queda, que presa pela democracia e o combate à corrupção, além
de evidenciar a discriminação por ser mulher. Em segundo lugar, quando
apresenta o “lado sério de Dilma (como os brasileiros a chamam)”, e quando
afirma, “Ela demonstra indignação furiosa, [...] em qualquer menção ao
governo que a substituiu”, assim, o texto, nega, concorda e respondendo a
outros textos produzidos anteriormente.

Considerações finais

Em todas as charges foi perceptível a construção de uma imagem


negativa da ex-presidenta Dilma Rousseff. Se por um lado, é construída uma
imagem grosseira, rude e inflexível de Dilma, por outro lado, a atacam por ser
mulher, apresentando aspectos “negativos” em ser mulher e, por tanto,
segundo essa concepção, sua inaptidão para o cargo.
A intertextualidade perpasse diferentes textos e possibilita novas
configurações. Ora reafirmam determinada visão, ora respondem negando-as,
mas sempre apresentando conecções posíveis de serem percebidas e alcançadas,
como vimos nas análises. Sabemos que as charges não se ligam apenas aos
textos apontados e que, os produtores das charges podem nem ter tido acesso
aos textos selecionados, especificamente, ao produzí-las, mas é uma
possibilidade de análise.
Como pudemos verificar, as charges analisadas recontextualizam outros
textos, tais como, notícias, acontecimentos históricos, comentários, entrevistas,
e até outras charges, para produzirem novo texto, no qual podem negar,
confirmar e responder a textos produzidos anteriormente e posteriormente.
As charges são textos jornalísticos opinativos que transitam na esfera
pública, às vezes, podem estar limitadas por conta do acesso (necessitando da
aprovação do chargista para ter acesso a sua conta em Rede), e também
apresentam efeitos; atuam primordialmente, no contexto político.
O estabelecimento identitário nesses textos combinam elementos do
contexto real – política nacional brasileira – e a elementos constituídos a partir
do imaginário dos produtores. Consequentemente, as formas de modalidade e
suas inferências tanto destacam identificações feitas em outros textos – notícias,
reportagens, entrevistas, etc. os quais os chargistas se filiam - como constituem
ou reconstituem identificações no próprio texto.
45

Como pudemos verificar, as charges constituem uma forma de ação.


Nelas, Dilma Rousseff é apresentada como mulher, de forma inferiorizada, que
se preocupa com seus próprios interesses e que está envolvida em atos de
corrupção. As charges são altamente desempoderantes e buscam desqualificar
Dilma Rousseff para promover o impeachment. A imagem da presidenta como
corrupta e incompetente é cuidadosamente construída. Apresenta uma elevada
carga de sentidos na produção dessas representações, por meio de caricaturas,
estereótipos, metáforas, símbolos, cores, entre outros elementos. Vimos Dilma
Rousseff ser representada como: uma bruxa ou rainha má; como chefe da súcia;
como um monstro pré-histórico e como mulher frágil.
As charges pretendem naturalizar um visão retrógrada e enraizada
profundamente na sociedade brasileira, o estereótipo de mulher frágil, incapaz
de governar, de burra e tantos outros adjetivos descabidos, fazendo o leitor
acreditar que a presidenta Dilma é o elemento desestabilizador e responsável
pelos problemas sociais, pela crise econômica, enfim, pelas dificuldades que
afetaram o país, de modo que ela é representada como a raiz do problema,
principalmente da corrupção e, para dar fim ao caos que assola o Brasil, ela
precisaria ser destituída do cargo. Consequentemente, o discurso construído
acerca da presidenta é marcado por representações socioideológicas que a
identificam como ignorante, corrupta, má gestora, infantil, entre outras
representações desfavoráveis.
Os chargistas estabelecem ações sobre indivíduos/leitores e leitoras de
modo a promover reflexões e ações. Mesmo que os leitores não concordem
com o texto a relação ocorre. Os leitores podem concordar, questionar, refletir,
rechaçar o texto. Essas construções de sentido podem criar consenso sobre a
imagem e governo Dilma.
Uma das principais especificidades das pesquisas em ADC é o
propósito político em buscar desvelar ideologias estabelecidas socialmente, com
a finalidade de contribuir com mudanças nas práticas sociais, as quais
percorrem por mudanças nas ações, representações e identificações. Desse
modo, a leitura crítica dos textos é relevante e indispensável para a reflexão
social.
Acreditamos que essa investigação pode contribuir para desvelar
discursos recorrente, disseminados e naturalizados, que dissimularam fatos e
formularam “verdades” ideológicas, nas quais a falsa narrativa imperou,
desprestigiando os fatos, em prol do poder assimétrico.
46

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal.


Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo, Martins Fontes, 4a. ed., 2003 [1952-
1953].

FAIRCLOUGH, Norman. Discourse and social change. Cambridge: Polity


Press, 1992. [Trad. bras. Discurso e mudança social. Coordenadora da trad.
Izabel Magalhães. Brasília: Editora UnB, 2001.

______. Analysing discourse: textual analysis for social research. London:


Routledge, 2003.

______. A dialectical-relational approach to critical discourse analysis in social


research. In: WODAK, R.; MEYER, M. (Ed.). Methods for Critical Analysis.
2. Ed. London: Sage, 2009. P. 162-186.

FERNANDES, Alessandra Coutinho. Análise do discurso crítica: para


leitura de textos da contemporaneidade. Curitiba: InterSaberes, 2014.

KRISTEVA. J. Word, Dialogue and Novel. In: MOI, T. (Ed.). The Kristeva
Reader. Oxford: Brasil Blackwell, 1986. p. 24-30.

ROMUALDO, Edson Carlos. Charge jornalística: intertextualidade e


polifonia. Maringá: Ed. da UEM, 2000.
47

A COERÊNCIA COMO MARCA DE CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS


EM MEMES

Francisca Damiana Formiga Pereira


Ana Paula Santos de Souza

Considerações iniciais

Utilizamos o texto para nos comunicar/interagir com o outro,


independente de sua extensão, ao escrevê-lo ou oralizá-lo realizamos seleções
para nos adequarmos ao contexto e produzir uma semântica coerente com a
pretendida. Pensando nas estratégias para a construção de um texto e nos
percursos adotados pelo escritor para alcançar seu objetivo final, o presente
trabalho almeja compreender a construção de sentidos no gênero meme a partir
da noção de coerência, ancorada na perspectiva teórica da Linguística Textual
(LT). De antemão, salientamos que não podemos apontar a coerência, pois este
recurso ocorre concomitante ao texto, distinguindo-se, por exemplo, dos
elementos coesivos. Assim, podemos dizer que tratar dos sentidos de um texto,
implica tratar, necessariamente, da coerência.
Nessa perspectiva, a coerência do texto é uma propriedade
fundamental para a construção de sentidos. Sabido isto, utilizamos o gênero
meme para mostrar como a coerência é essencial e intrínseca à construção de
sentidos. O meme é um gênero emergente e vinculado, principalmente, nas redes
sociais. Ele possui grande abrangência, uma vez que, neste mundo de
tecnologias e notoriedade midiática, as informações são repassadas
instantaneamente e chegam a lugares longínquos, mostrando que não há
barreiras para esse universo da mídia via internet. Seus sentidos são atribuídos
conforme a interação entre texto, sujeitos e contextos, que mudam e se
reconfiguram constantemente. A principal característica deste gênero é a
viralização.
Diante disto, fizemos a análise de três memes que versam sobre uma
grande problemática enfrentada, atualmente, pelo mundo, a pandemia
ocasionada pelo Covid-19. Em face a grande repercussão da temática e das
informações adjacentes a ela, destacamos a presença da coerência nos textos,
inferida com a leitura das imagens verbais e verbo-imagéticas. As notícias
veiculadas pelas mídias também são essenciais da construção da coerência e dos
sentidos, pois é por meio delas que conseguimos compreender o que estar
48

sendo dito de forma implícita no texto. Com isto vemos o quanto os


conhecimentos do interlocutor são essenciais nesse processo de construção de
sentidos.
Assim sendo, na sequência, discriminamos acerca da noção de
coerência, destacando as perspectivas da Linguística Textual, com
apontamentos de colaboradores e disseminadores desta teoria, sendo Koch
(2013) um dos nomes chaves. Depois, realizamos as análises dos três memes,
ancorados no conceito de coerência e nas inferências possibilitadas pela
temática dos textos. E, por fim, realizamos o desfecho do texto, nas
considerações finais, fazendo um breve apanhado do que foi tratado neste
trabalho.

A coerência

Com base em alguns autores e ancorados na corrente da Linguística


Textual (LT), iremos buscar respostas para algumas indagações acerca da
coerência do texto, assim como dos pontos de vista acerca da existência de
textos incoerentes.
Segundo Koch (2013), um texto se constitui enquanto tal no momento
em que os parceiros de uma atividade comunicativa global, diante de uma
manifestação linguística, pela atuação conjunta de fatores de ordem situacional,
cognitiva, sociocultural e interacional, são capazes de construir, para ele
determinado sentido. Ou seja, o texto é uma atividade social de interação
verbal.
É, portanto, uma unidade de sentido, segundo Val (1999), uma
ocorrência linguística, que, para ser texto, precisa ser percebida pelo recebedor
como um todo significativo.
No que diz respeito à coerência textual como elemento imprescindível
para a construção do sentido, temos a seguinte afirmativa:

É a coerência que faz com que uma sequência linguística


seja vista como um texto, porque é a coerência, através de
vários fatores, que permite estabelecer relações (sintático-
gramaticais, semânticas e pragmáticas) entre os elementos
da sequencia (morfemas, palavras, expressões, frases,
parágrafos, capítulos, etc.) permitindo construí-la e
percebê-la, na recepção, como constituindo uma unidade
significativa global. Portanto, é a coerência que dá textura
49

ou textualidade à sequência linguística, [...] aquilo que


converte uma sequência linguística em texto. (KOCH;
TRAVAGLIA, 2008, p. 45).

Segundo Koch (2013), a coerência diz respeito ao modo como os


elementos subjacentes à superfície textual vêm a construir, na mente dos
interlocutores, uma configuração veiculadora de sentidos.
Alguns autores, como Antunes (2010), consideram que a coesão é uma
das propriedades que fazem com que um conjunto de palavras funcione como
um texto. O que implica dizer que, para que um grupo de palavras ou de frases
constitua um texto, é necessário que esses conjuntos apresentem um
encadeamento, uma articulação, elos. Partindo dessa afirmativa, coerência e
coesão estariam no mesmo nível, ambos são responsáveis pela constituição do
sentido.
Já Koch e Travaglia (2008) afirmam que a coesão não é nem necessária e
nem suficiente para a constituição de textos, pois há muitas sequências
linguísticas com pouco ou nenhum elemento coesivo, que apresentam uma
coerência dentro do texto, assim como há sequências linguísticas coesas sem
uma coerência, fazendo com que o receptor não consiga compreender o que
está sendo dito no texto.
Então, podemos considerar a coesão como um princípio da coerência ou
como princípio para a construção de sentido do texto, já que ambos estão
segundo os princípios de construção de sentidos postulados por Beaugrand e
Dressler (1981) centrados no texto.
No que tange o fator de textos incoerentes, Koch (apud Beaugrand e
Dressler, 1981) afirma que há sequências linguísticas incoerentes, que seriam
aquelas em que o receptor não consegue descobrir qualquer continuidade de
sentido, seja pela discrepância entre os conhecimentos ativados, seja pela
inadequação entre esses conhecimentos e o seu universo cognitivo. Marcuschi
(1983), também defende a existência de texto incoerente.
Já Charolles diz que não há texto incoerente, pois não há regras de boa
formação de textos, como há para a constituição das frases. Charolles (1987,
apud FÁVERO; KOCH, 2005) afirma que as sequências de frases não são
coerentes ou incoerentes em si. Uma vez que não há regras de boa formação de
textos que se apliquem a todas as circunstâncias e cuja violação levasse todos ao
mesmo veredicto: “é um texto ou não é um texto”, tudo vai depender muito
50

dos usuários do texto. Dessa forma, para Charolles, não há o texto incoerente
em si.
Martellota (2013) ressalva à falta de consenso entre os estudiosos a
respeito dessa questão, afirma que não há textos totalmente incoerentes; que é
possível alguma espécie de incoerência localizada em textos escritos, mas que
pode ser superada pela reescritura ou releitura; que as aparentes incoerências de
textos falados se resolvem em contextos situações, em condições específicas de
interação.
Segundo Martellota (2013, p. 200), a coerência diz respeito à construção
de sentido textual, seja na perspectiva da produção pelo locutor, seja na de
recepção da decodificação linguística pelo interlocutor. A coerência, portanto,
trata da possibilidade, e mesmo da necessidade, de atribuição de sentido às
produções textuais, condição básica para que essas produções sejam entendidas
e assumidas como tais.
Conforme Koch, Van Dijk e Kintsch (1983) falam de coerência local,
referente à parte do texto ou a frase ou às sequências de frases dentro do texto;
e em coerência global, que diz respeito ao texto em sua totalidade. Mencionam
ainda diversos tipos de coerências:

a) Coerência semântica, que se refere à relação entre


significados dos elementos das frases em sequencias em
uma texto (local) ou entre elementos do texto como um
todo; b) Coerência sintática, que se refere aos meios
sintáticos para expressar a coerência semântica, como, por
exemplo, os conectivos, o uso dos pronomes, de
sintagmas nominais definidos ou indefinidos, etc; c)
Coerência estilística, pela qual os usuários deveria usar em
seu texto elementos linguísticos (léxico, tipos de
estruturas, frases, etc.) pertencentes ou constitutivos do
mesmo estilo ou registro linguístico; d) Coerência
pragmática, que tem a ver com o texto visto como uma
sequencia de atos de fala. Estes são relacionados de modo
que, para a sequência de atos ser percebida como
apropriadas, os atos de fala que a constituem devem
satisfazer as mesmas condições presentes em uma dada
situação comunicativa. (KOCH; TRAVAGLIA, 2008, p.
70).
51

Koch e Travaglia (2008, p. 71) evidenciam que a construção da coerência


decorre de uma multiplicidade de fatores das mais diversas ordens: linguístico,
discursivo, cognitivos, culturais e interacionais: Elementos linguísticos, a ordem
de apresentação desses elementos, o modo como se inter-relacionam para
veicular sentidos, as marcas usadas para esse fim, as “famílias” de significados a
que as palavras pertencem, os recursos que permitem retornar coisas já ditas e
/ou apontar para elementos que serão apresentados posteriormente, enfim,
todo o contexto linguístico ou co-texto vai contribuir de maneira ativa na
construção da coerência.
Nosso conhecimento de mundo também desempenha um papel decisivo
no estabelecimento da coerência: se um texto falar de coisas que absolutamente
não conhecemos, será difícil calcularmos o seu sentido e ele nos parecerá
destituído de coerência. Esse modelo é adquirido como experiência de vida e
armazenado em modelos cognitivos.
É necessário um conhecimento compartilhado para que um texto seja
coerente, é preciso haver um equilíbrio entre informação dada e informação
nova. As inferências são estabelecidas a partir do conhecimento de mundo do
receptor, que faz uma ligação a partir de segmentos do texto e os
conhecimentos de mundo, a fim de atribuir sentido ao texto.
Fatores de contextualização são todos os dados que situam o texto em
uma situação comunicativa determinada, podem ser contextualizadores
propriamente ditos como: data, local, gráficos, assinatura, ou os perspectivos ou
prospectivos que incitam expectativas sobre o conteúdo e forma do texto
como: título, autor e início do texto.
Situacionalidade é um fator importante para a construção do sentido,
pode ser da situação para o texto ou do texto para a situação, qualquer dado
situacional vai interferir diretamente na compreensão e produção do texto.
Outro fator que interfere na construção de sentidos é a informatividade,
que diz respeito ao grau de previsibilidade de informações contidas no texto.
Quanto mais previsíveis ou esperadas forem as informações menos informativo
o texto será.
A focalização é um fator de coerência muito pessoal, tem a ver com a
concentração dos usuários em apenas uma parte do texto, dando pistas sobre o
que está focalizando em seu discurso.
A intertextualidade também representa outro fator importante para a
construção do sentido do texto, quando se insere partes de informações de
outros textos já conhecidos, ou seja, quando para o processamento cognitivo,
52

seja na produção ou recepção de um texto, recorre-se ao conhecimento prévio


de outros textos.
Outro fator de coerência é a intencionalidade, pois nenhum texto é
destituído de intenção, o produtor de um texto tem necessariamente,
determinados objetivos e propósitos, seja de convencer, informar, fazer o
receptor pensar; a aceitabilidade que trata-se da resposta à intencionalidade do
emissor, se o texto conseguiu ou não ser aceito; a consistência quando os
enunciados não contraditórios, e relevância quando os enunciados estão
focalizados sobre um mesmo tópicos.
Sob esse olhar, elucidamos que o meme, gênero aqui abordado, se
constitui pela junção de distintos gêneros, como, por exemplo, comentário,
charge, citação, e exige do sujeito receptor um situar-se no contexto de
produção do texto para agregar sentidos ao mesmo. O meme é caracterizado,
essencialmente, por sua viralização, e sua disseminação carrega diversas marcas
de autoria, cada detalhe acrescentado produz novos sentidos. Logo, ao lê-lo,
teremos que levar em consideração os vários sujeitos autores.

O gênero meme e a coerência: uma breve análise

O meme tem por principal característica, como já exposto aqui, sua


viralização. Em face à emergência das tecnologias digitais, atingir um público
grande se tornou fácil, as informações são acessadas instantaneamente. Dessa
forma, os memes se tornaram uma ferramenta de expor ideologias variadas e
com cunho crítico e reflexivo. Sua função, muitas vezes, é satirizar temáticas
que se tornaram notícia na mídia.
O gênero utilizado se mostra bastante interessante para tratar da noção
de coerência, pois o sentido dele é construído de forma interativa, envolvendo
autor, texto e interlocultor, tendo em vista que há muitas informações implícitas
que precisam ser inferidas pelo interlocutor, evidenciando, assim, a importância
deste na construção da coerência. Portanto, para realizar as análises, realizamos
inferências com base no que é noticiado pela mídia acerca da pandemia Covid-
19, suscitando as consequências e cuidados decorrentes dessa pandemia, como,
por exemplo, o isolamento social e os métodos de prevenção para não
transmitir o vírus. Tais inferências foram feitas também com base na leitura das
imagens verbais e verbo-imagéticas, que compõem o gênero e corroboram na
construção da coerência e dos sentidos, não havendo imagem meramente
ilustrativa. Assim sendo, escolhemos três memes que versassem sobre a
53

pandemia Covid-19. Acreditamos que esta é uma temática muito discutida pela
mídia, logo, se tornou fácil encontrar memes acerca do assunto. Acreditamos
também que três textos já dão conta do nosso objetivo e se adequa ao gênero
deste trabalho, artigo cientifico.
O Texto 1, retirado do site UOL, faz uma crítica ao posicionamento do
artista Rodrigo Faro acerca do isolamento social, necessário no combate ao
Covid-19. Percebemos essa crítica com a casa dele e a nossa, com as respectivas
imagens mostrando parte da casa do artista e a casa do autor, que se coloca
como integrante da grande população humilde brasileira, revelando as
diferentes realidades sociais.

Texto 1.

Fonte: https://paisefilhos.uol.com.br/familia/rodrigo-faro-vira-meme-
depois-de-fazer-declaracao-polemica-sobre-a-quarentena-contra-a-covid-19/

Portanto, vemos no Texto 1 o humor para satirizar uma realidade da


sociedade brasileira, assim, faz-se uma crítica não apenas ao artista, mas
também à diferença social que há entre o artista e o povo. Para tanto, o autor
do texto utiliza duas imagens e um texto verbal, que se completam para
construir os sentidos pretendidos, consequentemente, a coerência no texto.
Percebemos que o produtor do texto, se atém, especificamente, a dois critérios
para promover um nível mínimo de coerência que se firmam pela intenção e
aceitação, para tanto, utiliza-se de um recorte ou parte da fala do apresentador e
de imagens, fazendo qualquer receptor, mesmo que não saiba maiores
informações, possa inferir que trata de alguém com nível e condições sociais
distintos da maioria da população brasileira, e que se torna bem mais fácil e
cômodo permanecer em casa quando se tem condições favoráveis, mostrando,
intencionalmente, ao receptor uma crítica, e se utiliza da comparação para
evidenciar e promover a aceitação do seu posicionamento. Se observarmos as
54

imagens e os textos separadamente, percebemos que o sentido do meme fica


comprometido, não conseguimos, isoladamente, perceber a coerência, visto que
o interlocutor precisaria, nesses casos, ativar vários outros critérios importantes
para a abstração do sentido como as informações referenciais prévias sobre a
pessoa de Rodrigo Faro, o contexto de situação em que esse discurso foi
proferido, em que espaço foi veiculado, qual a ligação desse discurso com
outros e a relação disso para com a situação atual, se há ligações de
intertextualidade com outros discursos defendidos nessa época de pandemia.
Então, fica evidente que o produtor do texto selecionou e articulou de modo
preciso o que queria expor para atingir o público e conseguir o efeito
pretendido.
Assim, é notório que a coerência, no Texto 1, é construída também
pelo receptor, que vai articulando as informações que dispõe o texto com seus
conhecimentos prévios acerca da realidade social brasileira e da pandemia
ocasionada pelo Covid-19. È notório também que os fatores de
contextualização, a saber, situacionalidade, informatividade, focalização,
intertextualidade e intencionalidade, se fazem presente no Texto 1, conferindo-
lhe as condições necessárias para a constituição de uma unidade de sentidos, o
texto, assim como veremos nos textos 2 e 3.
No Texto 2, retirado de um blog OMICRON , percebemos também
uma crítica, todavia, trata-se de uma crítica mais leve, que se refere aos afazeres
domésticos, muitas vezes, a realização destes é odiada pelos filhos. Vemos
também o hábito de educar por meio de histórias vivenciadas. Os pais, com o
intuito de instruir seus filhos, costumam contar suas experiências para
evidenciar a necessidade de que determinada atividade precisa ser realizada.

Texto 2.

Fonte: https://omicronfotografia.com.br/blog/post/guia-para-amantes-da-
fotografia-enfrentarem-a-quarentena-coronavirus-covid-19
55

Conforme o Texto 2, lavar a louça se torna uma tarefa simples quando


comparada ao enfrentamento da pandemia. Conseguimos inferir o sentido do
texto se utilizando do conhecimento compartilhado socialmente a respeito da
pandemia do Covid 19. Logo, compreendemos as intenções do autor do texto,
a partir da recuperação dos conhecimentos veiculadas pela mídia acerca da
pandemia em questão, o implica dizer que construímos a coerência com base
nas informações que obtivemos, anteriormente, acerca da pandemia e da
vivência familiar. Diferentemente do Texto 1, esse meme requer que o
leitor/interlocutor recorra à vários critérios de extrema importância para que
abstração e funcionalidade do efeito de crítica e humor que se almeja no texto
produzido. É preciso perceber que as informações principais não são ditas
explicitamente, mas estão nas “entrelinhas”, através do jogo com as palavras
“pandemia” e “lavar louça” o produtor busca que o interlocutor entenda que
trata de uma relação entre situações a serem enfrentadas com graus de
intensidade e dificuldades diferentes, tempo de diferentes e que, por isso,
requerem posturas diferentes, no caso, tempo de enfrentamento da pandemia
ocasionada pelo Covid-19 e tempo pós pandemia. A relação temporal remete
ao fato de que a pandemia representa algo que será lembrado por muito tempo,
visto que é algo mundial, que ocasiona diversos males, sendo o mais grave a
morte. O leitor precisa entender a situação em que o meme foi produzido e as
referências que ele faz, seja a situação e graus de complexidade, seja em relação
ao tempo.
Digamos que a coerência desse texto tenha um nível de complexidade
maior que a presente no Texto 1, uma vez que é preciso informações sobre o
que significa uma pandemia para contrastar a ação de lavar louça, bem como
entender a relação situacional de produção para valorar a referência ao tempo –
presente/futuro, para que de fato, esse texto possa ser aceito pelos
interlocutores com a linha de sentido pretendida que é envolta de crítica e
humor. No texto 1, há mais recursos, como imagens comparativas expostas
lado a lado e com respectivas identificações, a suposta fala do artista Rodrigo
faro, havendo, assim, mais informações explícitas para o receptor.
Já no texto 3, retirado do site Hoje em Dia, percebemos que há um
alerta quanto a uma das formas de prevenção do vírus Covid-19, o uso de lenço
ao espirrar. Percebemos também que há uma crítica ao comportamento contra
as pessoas que possuem outros problemas que podem ser confundidos com a
gripe ocasionada pelo Covid-19, sendo necessária sempre uma explicação da
pessoa que, no caso, espirra. Nesse sentido, vimos através da imagem, uma
56

releitura de Monalisa, uma representação de uma face que simboliza irritação ao


ter que justificar-se: não é corona vírus!

Texto 3.

Fonte: https://www.hojeemdia.com.br/almanaque/efeito-viral-a-chegada-do-
coronav%C3%ADrus-ao-brasil-em-10-memes-1.777037

Outra percepção que vimos nas “entrelinhas” do Texto 3 é a


preocupação latente da população em se contaminar. Assim, o portador do
vírus se torna um “inimigo” que precisa se manter distante para preservar o
bem estar do próximo. Percebemos neste meme o uso da imagem, no caso,
apresentando a releitura de Monalisa, como recurso para atrair o leitor, mesmo
que não se saiba do se trata um problema de renite, é possível abstrair o humor
tendo em vista alguém, a Monalisa, limpando o nariz com o papel higiênico nas
mãos. As frases, isoladamente e fora desse contexto, talvez levassem o leitor a
um custo cognitivo maior, ao saber ou procurar saber sobre o que venha a ser
uma renite e qual a relação que isso teria com o termo corona vírus. Nesse
sentido, a imagem é fundamental para a construção da coerência, pois por meio
dela estabelecemos inter-relação com o texto verbal e associamos ao contexto
pandêmico vivenciado atualmente. Mesmo o receptor não conhecendo a
famosa Monalisa, a ação representada já denuncia um quadro gripal, que na
verdade é rinite, conforme afirma o texto verbal. Portanto, mais uma vez, é
perceptível que é necessário o receptor acionar seus conhecimentos a respeito
da pandemia ocasionada pelo Covid-19 para que os sentidos sejam construídos,
57

juntamente com a coerência, havendo, dessa forma, uma interação entre autor,
texto e receptor.
Sob essa perspectiva, podemos afirmar que os memes expostos
apresentam um posicionamento crítico em relação à temática que tratam. E a
coerência é construída por meio de textos verbais e não-verbais (ou verbo
imagéticos) organizados de modos específicos. A viralização também é
fundamental nessa construção, pois permite que o leitor recupere os
conhecimentos que circulam com frequência na mídia para agregar e tornar
possível uma interação entre autor, texto e receptor, tríade essencial na
construção dos sentidos e da coerência.

Considerações finais

As condições de produção de um texto requerem muitos fatores e


critérios, desde a seleção e delimitação do que se deseja expressar, até o molde,
o canal ou o modelo da apresentação para a veiculação das informações. nas
mídias sociais, sob as quais não se têm a noção da quantidade de pessoas que
irá alcançar, visto o público vasto que tem acesso à essas informações
cotidianamente nas diversas plataformas digitais de interação. Nesse sentido, é
preciso cautela e muita precisão. Um dos fatores de extrema importância para
isso é a coerência presente nos textos, sem ela, o sentido não acontece e o que
chamam de texto, acaba sendo um esqueleto vazio de palavras.
As análises, aqui feitas, mostram o movimento e as implicaturas que a
coerência representa para a constução dos sentidos nos textos, sejam simples
ou complexos. O fato é que ela é a condição essencial para que um texto seja,
de fato, um texto. A relação do produtor e interlocutor se cruzam nesse
processo, monstrando que não se trata de uma questão de tudo ou nada, mas
de graus, assim, é preciso perceber que existem níveis de abstração e que ato de
produzir introduz pistas no texto para causar certos efeitos, e nos memes, em
específico, esses efeitos são multiplicados em intensidade, e de modo, quase,
instatâneo, é possível percebê-los.
O imediatismo e a viralização do gênero meme torna-o um profícuo
campo de análise para se perceber questões tão importantes no que concerne à
construção de texto e sentidos. Esperamos que este trabalho possa ajudar não
só na compreensão do conceito de coerência, mas que possa ajudar também
para elucidar o quanto a mesma é indispensável na constitução de um texto,
consequentemente, na apreensão dos sentidos.
58

Referências

ANTUNES, Irandé. Aula de Português: encontro & interação. São Paulo:


Parábola, 2003.

______, Irandé. Análise de Textos: Fundamentos e práticas. São Paulo:


Parábola, 2010.

COSTA VAL. Maria da Graça. Redação e textualidade. 2ª ed. São Paulo:


Martins Fontes, 1999.

FÁVERO, L. L.; KOCH, Ingedore G. Villaça. Lingüística Textual: uma


introdução. 7ª. ed. São Paulo: Cortez, 2005.

KOCH, Ingedore G. Villaça; TRAVAGLIA, Luiz Carlos. A coerência textual.


17ª ed. São Paulo: Contexto, 2008.

______, Ingedore G. Villaça. O texto e a construção de sentidos. 10ª ed. São


Paulo: contexto, 2013.

MARTELLOTA, Mário Eduardo. Manual de linguística. 2 ed. São Paulo:


Contexto, 2013.

MUSSALIM, Fernanda e Anna Christina BENTES (orgs.). Introdução à


linguistica: domínios e fronteiras. Volumes 1. 7ª ed. São Paulo: Cortez, 2007.
59

A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES EM POSTAGENS DE BLOGS


SOBRE GREVES DA UERN

Iza Maria Pereira


Alaide Angelica de Menezes Cabral Carvalho
José Roberto Alves Barbosa

Considerações iniciais

Este trabalho, fruto da pesquisa do Mestrado intitulada “Movimentos


sociais, greve e mídia: uma análise crítica de postagens de blogs sobre greves da
UERN” (PEREIRA, 2018), foi desenvolvido à luz dos postulados da Análise
do Discurso Crítica (ADC), especificamente com a abordagem
dialética/relacional, também definida como Análise de Discurso Textualmente
Orientada (ADTO), de Norman Fairclough.
A ADC oferece uma contribuição significativa para um trabalho que
aborda problemas sociais que podem ser investigados por meio da análise
situada de textos. Pela ADC, pode-se identificar os discursos que são
articulados e a forma como são articulados em um texto. É possível, assim,
investigar de que modo as pessoas constroem/representam o mundo, como
legitimam e desvalorizam algo e/ou alguém em seus textos/discursos,
conforme afirma Wodak e Meyer (2009, p. 10): “A ACD tem o propósito de
investigar criticamente a desigualdade social, porque ela manifesta-se, constitui-
se e legitima-se no uso linguístico (ou no discurso)”.
Nesse sentido, analisamos postagens de blogs potiguares sobre os
movimentos grevistas na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte –
UERN, nos anos de 2011, 2012 e 2015. Escolhemos essa mídia social
considerando o seu papel na contemporaneidade, influenciando tanto na
divulgação quanto na manipulação das informações/opiniões sobre esse
movimento social.
Os movimentos grevistas são marcados por muitas discussões e
conflitos, tendo em vista os diversos interesses dos sujeitos envolvidos. Essas
discussões possuem uma carga de significação e representação histórica, social,
política, que materializam relações explícitas de confronto ideológico e
hegemônico, construindo e negociando sentidos com vistas ao convencimento,
adesão da opinião pública a interesses particulares.
60

Dessa forma, procuramos compreender como a mídia, nesse caso, mais


especificamente os blogs, desenvolve seus textos e se projeta interesses
particulares ou de pessoas ou grupos, investigando as relações de poder e
dominação que permeiam essas práticas discursivas, desvelando o caráter
ideológico e hegemônico os quais estão a serviço.
Como corpus de análise, fizemos um recorte das postagens trabalhadas e
escolhemos 12 (doze) para este trabalho. Essas postagens referem-se a oito (08)
blogs e foram identificadas sequencialmente obedecendo a ordem cronológica
de publicação de cada postagem. Selecionamos postagens que se apresentam,
justamente, um posicionamento contrário a esses movimentos grevistas, pois,
naquele momento, estavam a serviço do poder hegemônico. Como categorias
de análise, selecionamos o significado identificacional de Fairclough (2003) e,
dentro dessa categoria, selecionamos, ainda, a modalidade e avaliação e a
metáfora e os modos de operação da ideologia de Thompson (2011).
Cumpre esclarecer que dentre as postagens selecionadas, fizemos,
também, o trabalho analítico de alguns comentários feitos pelos
leitores/internautas nas referidas postagens, seguindo o mesmo critério de
seleção, ou seja, os comentários contrários aos movimentos grevistas em
estudo, e que se apresentaram mais relevantes, de acordo com as categorias
propostas para análise.
Na próxima seção, apresentamos, de forma breve, o pressuposto
teórico-metodológico que fundamenta esta pesquisa.

Análise de discurso crítica: um breve percurso teórico-metodológico

A ADC possui um arcabouço teórico-metodológico, ou seja, uma


teoria e um método para explicar, interpretar e explanar essas questões
discursivas sócio-historicamente situadas. A versão da ADC adotada neste
trabalho é abordagem dialética/relacional, também definida como Análise de
Discurso Textualmente Orientada (ADTO), de Norman Fairclough, pois nos
oferece subsídios importantes, uma vez que seu foco de estudo são os
problemas sociais parcialmente discursivos, ou seja, que podem ser investigados
por meio da análise situada de textos.
Resende (2009, p. 47) diz que “a vantagem de uma análise de discurso
textualmente orientada é oferecer subsídios para uma análise social
fundamentada em dados linguísticos que sustentem a crítica exploratória”.
Assim, através de análises discursivas críticas, é possível identificar conexões
61

entre escolhas linguísticas feitas em um texto pelos atores sociais e os contextos


sociais desses textos.
A ADTO é uma abordagem que concebe a linguagem como parte
irredutível da vida social dialeticamente interconectada a outros elementos
sociais – semiose. “A semiose inclui todas as formas de construção de sentidos
– imagens, linguagem corporal e a própria língua” (FAIRCLOUGH, 2012, p.
308). Nesse sentido, as práticas sociais são formas de atividades sociais
formadas de diversos elementos (ações, sujeitos, instrumentos, objetos, tempo e
lugar, formas de consciência, valores) dentre eles o discurso, daí a semiose.
Segundo Fairclough (2001), existe uma relação dialética entre esses elementos,
por isso sua abordagem é dialético-relacional.
O que distingue a abordagem dialético-relacional das demais
abordagens em ADC é o trabalho de análise de textos para a compreensão das
práticas sociais e de suas implicações, conforme afirma Magalhães, Martins e
Resende (2017, p. 27): “A ADC dedica-se à análise de textos, eventos e práticas
sociais no contexto sócio-histórico, principalmente no âmbito das
transformações sociais, propondo uma teoria e um método para o estudo do
discurso”.
O primeiro aparato teórico metodológico que Fairclough propôs para
análises de discurso críticas foi o modelo tridimensional. Ele foi proposto com
base na concepção de discurso como prática social, entendendo-o como “um
modo de ação historicamente situado, que tanto é constituído socialmente
como também é constitutivo de identidades sociais, relações sociais e sistemas
de conhecimento e crença (RESENDE & RAMALHO, 2016, p. 26). É nesse
sentido que Fairclough ver o discurso como prática social por conceber essa
relação dialética entre discurso e estrutura social, pois o discurso é constituído
na e pela estrutura social.
Dessa forma, objetivando analisar o discurso como prática social,
visando a “exterioridade linguística, mas sem perder a necessária orientação
para o sistema linguístico e a dialética entre linguagem e sociedade”
(RESENDE & RAMALHO, 2016, p. 27), Fairclough reúne três tradições
analíticas: a análise textual (da Linguística), a análise da prática social (de
tradição macrossociológica) e a análise de prática discursiva (de tradição
microssociológica) (FERNANDES, 2014).
Na análise textual, o foco está no sentido das palavras, ou seja, como o
uso de certas formas linguísticas devidamente escolhidas está servindo a
interesses e ideologias dominantes. Na análise da prática discursiva investiga-se
62

o processo de produção, distribuição e consumo de textos que podem


dissimular ou legitimar posições de poder. A análise da prática social, por sua
vez, está relacionada aos aspectos ideológicos e hegemônicos no texto a partir
das contribuições de Thompson (2011) e de Gramsci (2001), respectivamente.
Essa abordagem caracteriza-se pela centralidade no discurso, embora
considere as práticas discursivas e sociais que está inserido. Assim, observa-se a
relação das escolhas linguísticas realizadas no texto, sua instância de produção,
distribuição e consumo e os contextos sociais que está inserido, para
investigação das estruturas de dominação e dos fatores ideológicos.
No decorrer dos estudos, houve um amadurecimento teórico-
metodológico a partir do diálogo com outras disciplinas e teorias, a exemplo da
Ciência Social Crítica, em especial com o Realismo Crítico, tendo em vista a
necessidade do aprofundamento das reflexões acerca da relação entre
linguagem e sociedade, com o intuito de desmistificar e desnaturalizar crenças,
estruturas e práticas de dominação, base norteadora da ADC, que não seria
possível se ficasse somente no interior da Linguística (RESENDE, 2009).
Nesse percurso, em 2003, Fairclough redimensiona a face linguística da
análise em ADC, a partir da ampliação do diálogo teórico com a Linguística
Sistêmico Funcional (LSF), propondo a articulação entre as macrofunções
propostas por Halliday (1973) e os conceitos de gênero, discurso e estilo,
sugerindo, no lugar das funções da linguagem, os significados acional (relativo
ao gênero), representacional (relativo ao discurso) e identificacional (relativo ao
estilo).
A proposta dos três significados tem relação com a sua concepção de
discurso como parte da prática social, se figurando de três modos entre textos e
eventos: modos de agir (ação), modos de representar (representação) e
modos de ser (identificação).
Fairclough (2003) postula que gêneros, discursos e estilos são modos
relativamente estáveis de agir, de representar e de identificar, respectivamente.
Fernandes (2014, p. 175) exemplifica essa relação. Vejamos:

utilizando textos (orais, escritos, multimodais), agimos


discursivamente por meio de gêneros; representamos o
mundo material, pessoas, valores, crenças utilizando
discursos para “falar” a partir de determinadas
perspectivas e construímos nossas identidades e maneiras
de ser, parcialmente, por meio dos estilos que adotamos.
(grifo nosso)
63

A noção de multifuncionalidade da LSF é mantida na


operacionalização dos três significados, uma vez que Fairclough defende que
eles atuam simultaneamente em todo enunciado, mas, geralmente, são
discutidos separadamente somente para efeito de análise.
Neste trabalho, selecionamos o significado identificacional como
categoria de análise e, dentro dessa categoria, selecionamos as subcategorias
modalidade, avaliação e a metáfora e, ainda, os modos de operação da ideologia
de Thompson (2011), apresentadas a seguir.

O significado identificacional e as operações ideológicas: analisando o


corpus

No significado identificacional, investiga-se o estilo. De acordo com


Fairclough (2003), o estilo de um texto evidencia a identificação, isto é, o modo
como as pessoas se identificam e como são identificadas pelos outros.
Com relação aos modos de operação ideológica propostos por
Thompson (2011), a ADC retoma essa proposta metodológica por apresentar
uma forma mais sistemática de reconhecimento e identificação do uso
ideológico de formas simbólicas.
Dentre as categorias desse significado, analisamos a seguir,
sequencialmente, a modalidade, a avaliação e a metáfora e, ainda, os modos de
operação ideológica, a partir da exposição de fragmentos das postagens
selecionadas, apresentando e discutindo suas características e relevância na
construção de sentidos e representação dos movimentos grevistas e dos atores
sociais envolvidos.

Modalidade

A categoria da modalidade está relacionada ao comprometimento ou


não dos atores sociais com aquilo que falam. Segundo Fairclough (2003, p.
168), a “questão da modalidade pode ser vista como a questão de quanto as
pessoas se comprometem quando fazem afirmações, perguntas, demandas ou
ofertas”. As duas primeiras (afirmações e perguntas) referem-se à modalidade
epistêmica, que diz respeito ao comprometimento com a verdade e as duas
últimas (demandas e ofertas) referem-se à modalidade deôntica, que diz
respeito ao comprometimento com a obrigatoriedade/necessidade.
64

O comprometimento do autor com aquilo que fala faz compreender a


modalidade como a relação do autor do texto e a representação. Nesse sentido,
o estudo da modalidade é importante para o significado identificacional à
medida que constrói discursivamente identidades. Segundo Fairclough (2003, p.
166), “o quanto você se compromete é uma parte significativa do que você é –
então escolhas de modalidade em textos podem ser vistas como parte do
processo de texturização de autoidentidades”.
Ao analisar essa categoria, os analistas críticos do discurso podem
observar o porquê do uso de determinada modalidade em determinado
contexto sobre determinada pessoa, grupo, evento e, no nosso caso,
movimento, questionando sobre os efeitos de sentido gerados. Vejamos os
recortes abaixo:

Figura 1: Recorte 1 - Comentário 2 da Postagem 4 – Blog 2.

Fonte: http://blogdocarlossantos.com.br/fim-da-greve-da-uern-apos-106-dias/

Figura 2: Recorte 2 - Comentário 2 da Postagem 4 – Blog 2.

Fonte: http://blogdocarlossantos.com.br/fim-da-greve-da-uern-apos-106-dias/

Observemos que o autor do comentário (2) acima realiza afirmações


em forma de demandas. Ao dizer: “Acho que tá na hora de trabalhar e
intensificar a luta pela Federalização da UERN” (linhas 4 e 5), o autor defende
o discurso da federalização da UERN para resolver a situação da instituição,
considerando-a, portanto, como um problema para o Estado. Ele dá sua
opinião, sugere o que deveria ser feito para resolver o problema da UERN e a
reforça fazendo as seguintes afirmações: “Seria bom pra todo mundo” (linha
13), “Só posso dar ideias mas se se eu fosse governador faria isso” (linhas 18 e
19), “A chance agora é sua” (linhas 19 e 20).
65

Segundo Resende e Ramalho (2016, p. 138), “A atualização das


demandas como afirmações é uma estratégia retórica que aproxima a proposta
da realidade, uma vez que faz o projeto parecer exequível e simples”. O autor
apresenta uma “solução” e advoga em favor disso utilizando de diversos
recursos. No recorte 1 do comentário em análise, o autor usa o próprio recurso
da intertextualidade associado ao da ironia, ao recuperar o discurso da
governadora sobre gasto público: “já que ela defende a educação como mais
um gasto público” (linha 14), bem como o da ex-presidenta da República,
Dilma Rousseff: “já que Dilma aponta para criação de novas universidades em
todo o Brasil” (linhas 5 e 6), para legitimar e validar seu discurso da
federalização da UERN. É uma construção discursiva com propósitos
marcadamente ideológicos.
O autor ainda antecipa os resultados esperados através dessa “solução”:
“pense que a senhora ganharia uma coroa de flores (rosas) dos educadores que
hoje te desejam uma coroa de espinhos” (linhas 17 e 18). E mais uma vez utiliza
o recurso da intertextualidade ligada à ironia e à metáfora para atualizar suas
previsões pessoais em relação ao futuro da governadora. Há um jogo semântico
entre os termos coroa de flores (rosas) e coroa de espinhos, reconstruindo o
discurso do glorificado versus do crucificado. “Rosas” como recurso intertextual
como forma de reativar as memórias, práticas e dizeres da marca política da
governadora, a rosa. O autor induz a afirmação de que seria melhor a
glorificação do que a crucificação, essa sendo a atual realidade da governadora
diante, nesse caso, dos professores.
Ainda em relação ao comentário em análise, uma outra previsão com
provisões e beneficies de caráter mais amplo, universal: “dessa forma, a senhora
governadora investiria todo o orçamento da UERN nas Escolas Públicas
Estaduais para melhorar sua média no Enem e a qualidade de vida do povo
riograndense” (linhas 14, 15, 16 e 17), “um gol laço a favor da educação na
história do RN e do Brasil” (linhas 19 e 20). São apresentados modos de agir,
de fazer, projetando um estado futuro no momento presente. É uma forma de
apresentar uma realidade possível e aparentemente fácil, o que pode ser tomado
como verdadeiro e/ou um pensamento universal, quando o próprio autor o
apresenta assim e não numa perspectiva particular. O autor fala como se
estivesse falando por todos ou a favor de um bem comum.
A modalização, portanto, nesses dois extratos do Comentário 2
(Postagem 4 – Blog 2) indica a possibilidade de resolutividade do problema,
que, embora sejam realizadas em forma de afirmações, elas assumem a função
66

de demanda, evidenciando o discurso da obrigação, nesse caso da governadora,


de agir imediatamente, da necessidade de fazer. Portanto, a modalidade é
deôntica.
Algumas expressões podem reforçar o comprometimento com a
verdade ou mitigar o grau de certeza de uma proposição, o que denominamos
como modalidade epistêmica. Quando há um reforço do comprometimento do
autor com a verdade de uma proposição, dizemos que há uma “alta afinidade”
(modalidade epistêmica alta). Nos casos em que, ao contrário, o autor utiliza
estratégias de mitigação e distanciamento que enfraquecem sua afinidade com a
proposição, dizemos que há “baixa afinidade” (modalidade epistêmica baixa).
Vejamos um exemplo:

Figura 3: Recorte 1 - Comentário 1 da Postagem 1 – Blog 1.

Fonte: http://joaomoacir.blogspot.com.br/2011/08/greve-da-uern-continua.html

O uso da expressão “com toda certeza do mundo” (linha 1) é uma


forma de reforçar o comprometimento com essa afirmação. Assim, a
modalidade é epistêmica alta. Nessa modalidade, o enunciador se expressa com
um grau de verdade, como forma de reforçar uma proposição.

Figura 4: Recorte 1 da Postagem 2 – Blog 2.

Fonte: http://blogdocarlossantos.com.br/relacoes-extremistas-numa-greve-
que-fragiliza-a-uern/

Esse recorte é um exemplo de modalidade é epistêmica baixa. Nessa


postagem, o blogueiro constrói seu texto apresentando tanto argumentos
favoráveis como desfavoráveis dos dois lados: governo e grevistas. Porém, no
momento que ele questiona quem está certo, ele mesmo não se posiciona. É
uma maneira de não se comprometer com a resposta.
Apresentamos, abaixo, um quadro (1) com outras representações de
modalidades que se apresentaram no corpus.
67

Quadro 1 - Representação das modalidades no corpus.


MODALIDA DEFINIÇÃO/GRAU MARCAS
DE DE TEXTUAIS/POSTAGEM/B
COMPROMETIME LOG
NTO
Subjetiva: Perguntas: “Quem está certo?” (P2 – B2 –
forma de elicitar o linha 8)
compromisso do autor
“E depois de mais de 100 dias
com a verdade.
sem aula, a greve encerra
vitoriosa??? pra quem?” (C1 –
P4 – B2 – linha 1)
EPISTÊMIC “Na minha opinião Rosalba
A: troca de Rosado sai vencedora e a
conhecimento UERN mais ainda enfraquecida
e desmotivada para voltar as
aulas” (C2 – P4 – B2 – linha 1)

Objetiva: Afirmações: “Em nenhum momento as


compromisso do autor partes pediram a intervenção de
com a verdade. uma arbitragem isenta,
extrajudicialmente, para se
tentar o alcance do
entendimento” (P2 – B2 –
linhas 19 e 20)
“Uma paralisação sem
vencedores” (P4 – B2 – NB)
“Não existe emprego público
melhor que ser servidos ou
professor da UERN” (P14 –
B10 – linha 1)

Demanda: “que tal tirar o curso de


comprometimento do Economia de PDF da classe
autor com D?” (C1 – P2 – B2 – linhas 5 e
obrigações/necessidades 6)
.
“é somar esforços para
DEÔNTICA:
federalizar esta universidade”
troca de
(P14 – B10 – linha 41)
68

atividades
“O governador, Robinson Faria
tem o dever de acabar com isso”
(P14 – B10 – linha 21)

Ofertas: “Assim, coube ao Estado


comprometimento do judicializar o assunto para tentar
autor com uma ação. garantir que os alunos da UERN
não sejam penalizados com a
paralisação.” (P9 – B8 – linhas
17 a 19)

“O governador está certo em


manter as escolas da rede
estadual funcionando, hospitais
públicos e as polícias civil e
militar fazendo milagres diante
de uma crise no sistema
prisional, mas aumentar salários
desses grevistas que já ganham
muito, não!” (P12 – B10 –
linhas 13 a 16)
Fonte: Elaboração nossa.

No quadro 1, apresentamos alguns exemplos de modalidades


(epistêmica e deôntica) encontradas no corpus em análise. Contudo, foi
identificada uma grande recorrência da modalidade epistêmica subjetiva, tanto
nas postagens como nos comentários. Dessa forma, há a presença de marcas
explícitas de opinião dos blogueiros e dos internautas comentaristas,
correspondendo à sua avaliação com base em suas crenças, valores, saberes,
pontos de vista.
Nesse contexto de análise, como aspecto da modalização, encontramos
outros discursos caracterizados, também, pela ironia, quando o governador diz
que “não adianta fazer essa politização da greve” (linha 7), conforme recorte
abaixo.
69

Figura 5: Recorte 11 da Postagem 15 – Blog 11.

Fonte: http://patu-emfoco.blogspot.com/2015/10/greve-da-uern-causa-
prejuizo-de-mais-de.html

A postagem 15 do blog 11 é referente à greve da UERN de 2015. Essa


greve foi desencadeada por descumprimento de acordo firmado entre o
governo do RN e as categorias docente e técnico-administrativo no ano de
2014. Por isso o governador, ironicamente, usa o termo “politização da greve”,
pois mesmo que reconheça a legalidade do movimento, ele não tem como
cumprir o que foi acordado. Para isso, usa o discurso da crise, um discurso
naturalizado pela mídia e pela sociedade. Assim, ele se ampara nesse discurso
para se eximir de qualquer culpa e desmoralizar o movimento grevista da
UERN. Ainda se coloca na posição de vítima, vítima da crise e, mesmo o
estado em crise, o salário foi pago em dia e os professores não estão dando
aula.
Identificamos, também, a subcategoria ironia nos recortes abaixo.
Vejamos:

Figura 6: Recorte 1 da Postagem 1 – Blog 1

Fonte: http://joaomoacir.blogspot.com.br/2011/08/greve-da-uern-continua.html

Figura 7: Recorte 2 da Postagem 1 – Blog 1.

Fonte: http://joaomoacir.blogspot.com.br/2011/08/greve-da-uern-continua.html.

A postagem 1 do Blog 1 com o título “Greve da UERN continua”


(recorte 1) traz uma pequena matéria descrevendo os encaminhamentos
deferidos em uma assembleia realizada no dia 18/08/2011, pela categoria
docente da UERN, onde decidiram pela continuidade do movimento paredista.
No final da postagem (recorte 2), o blogueiro emite uma nota em separado
(NB), para manifestar sua opinião sobre essa continuidade da greve. Nessa
70

nota, ele faz uso, também, do recurso da ironia, ao utilizar a expressão “Pois é”,
que evidencia a noção de “certeza”, “confirmação”, “que era sabido”, a decisão
pela continuidade da greve, dando a entender que os docentes são
previsivelmente irredutíveis e imparciais.
O blogueiro também para ironizar fez uso do dizer popular: “... se eu
tivesse dinheiro e fosse apostar ... eu teria ganhado”. O uso de dizeres
populares é uma forma de remeter à sabedoria popular. Demarca
conhecimento, vivência, experiência. É uma estratégia de validação do seu
discurso, de ratificação do discurso da previsibilidade e imparcialidade da
manutenção da greve. É mais uma forma de minimização do movimento
grevista e de suas lutas.

Avaliação

No tocante à segunda categoria do significado identificacional, a


avaliação inclui afirmações avaliativas que são aquelas que apresentam juízo de
valor, relativo ao que é relevante ou irrelevante ou desejável ou indesejável,
afirmações com verbos de processo mental afetivo (ex. gosto, amo, detesto), pois são
marcadas explicitamente e subjetivamente por afirmações como sendo do autor
e presunções valorativas, relativo ao que é bom ou desejável, podendo estar
implícitas ou explícitas.
A análise dessa categoria nos possibilita tirar conclusões acerca das
apreciações ou perspectivas do locutor, sobre aspectos do mundo, sobre o que
considera bom ou ruim, ou o que deseja ou não, e assim por diante
(FAIRCLOUGH, 2003). É um processo de identificação particular, portanto
parcial e subjetiva, diante de aspectos do mundo. Esse processo pode atuar em
favor de projetos de dominação quando envolvam posicionamentos
ideológicos.
Elaboramos mais um quadro (2) para apresentar algumas dessas marcas
avaliativas identificadas no corpus.
71

Quadro 2: Marcas avaliativas no corpus.


MARCAS AVALIATIVAS POSTAGEM/BLOG

Atributo “como pode a turma da UERN fazer greve


para melhorar seus salários? Esses grevistas
Afirmações deveriam ter vergonha na cara” (P12 – B10 –
avaliativas linhas 6 e 7)
“A pauta desses sindicatos picaretas é sempre
a mesma: Salário” (C1 – P1 – B1 – linhas 1 e
2)
Verbos “Eles ouviram as opiniões jurídicas, sabem
que o governador não pode dar o aumento,
mas persistem na greve que o maior
prejudicado é o estudante", declarou o
governador” (P15 – B11 – linhas 10 e 12)
“A alguns meses a UERN passou cerca de
106 dias em greve, prejudicando alunos de
todo RN” (P6 – B5 – linhas 1 e 2)
Advérbio “com toda certeza do mundo essa greve
não seviu de nada para os discentes, pelo
contrário fez foi prejudicar a classe” (C1 – P1
– B1 – linhas 1 e 2)
“A multidão ouviu as explicações da
governadora sobre os entendimentos que
haviam sido iniciados com a Uern,
atentamente.” (P7 – B6 – linhas 24 a 26)
Sinal de “Ufa!” (C1 – P4 – B2 – T)
exclamação “VERGONHAAAAA!!!” (C1 – P4 – B2 –
linha 14)
“Seria bom pra todo mundo” (C2 – P4 – B2 – linha 13)
Presunções “Por mim, esta UERN ficaria em greve até o dia em que a
valorativas nossa classe política conseguisse federaliza-la” (P12 – B10 –
linhas 17 e 18)
Fonte: Elaboração nossa.

As afirmações avaliativas são afirmações relacionadas ao que é


desejável ou indesejável. Nelas, o elemento avaliativo pode ser um atributo, um
advérbio, um verbo ou sinal de exclamação, conforme propõe Fairclough
72

(2003). Essas marcas são recorrentes no corpus. Apresentamos somente algumas


a título de demonstração.
Na postagem 12 do blog 10, o blogueiro ao dizer “turma da UERN”
transmite a ideia de conluio e “Esses grevistas” evidencia um sentimento de
desprezo. No comentário 1 da postagem 1 do blog 1, o internauta ao dizer
“sindicatos picaretas” denomina os sindicatos de acordo com uma opinião
individual. Assim, o elemento avaliativo atributo é representado, nas duas
postagens, de forma negativa, pois evidencia depreciação dos atores em greve.
No elemento avaliativo advérbio, os advérbios “com toda certeza”
(afirmação) e “atentamente” (modo) indicam veracidade e interesse. Veracidade
com relação aos frutos da greve, quais sejam: nenhum; segundo o internauta
que fez o comentário, e interesse, mas interesse à fala da governadora, ou seja, a
parte hegemonicamente superior nessa relação de greve. Esses sentidos dos
textos são intensificados pelo uso oportuno desses advérbios que, no contexto
discursivo do texto, instaura e acentua os sentidos.
No elemento avaliativo verbo, os verbos “sabem”, “ouviram”
evidenciam conhecimento, ou seja, os grevistas têm conhecimento da
impossibilidade de reajuste, mas “persistem” na greve, “prejudicando” os
alunos. Os verbos e advérbios utilizados apontam uma avaliação ruim
(indesejável) em relação aos grevistas e suas atividades.
No elemento avaliativo sinal de exclamação, os termos “Ufa!” e
“VERGONHAAAAA!!!”, indicam, respectivamente, alívio e revolta. A
significação de alívio é explicada, também, porque o blogueiro discorre na
postagem sobre o fim da greve referente ao ano de 2011. No segundo termo,
vejam que a vogal “a” é repetida quatro vezes e o ponto de exclamação é
repetido três vezes. O intuito disso é reforçar intensidade e o tom de voz
daquele que fala (o internauta comentarista), para acentuar seu pensamento e
posicionamento frente à greve da UERN, qual seja: revolta. Essa constatação é
ratificada pelo contexto do comentário. Nesse contexto, esse elemento
avaliativo é também representado de maneira desfavorável aos movimentos
grevistas.
Os exemplos selecionados e analisados apresentam afirmações
avaliativas sobre os movimentos grevistas e os atores sociais envolvidos.
Contudo, essas avaliações produzem a identificação desfavorável (indesejável)
desses atores e do movimento.
73

Metáfora

Em relação à categoria da metáfora, Fairclough (2001) diz que quando


significamos algo por meio de uma metáfora e não de outra, estamos
construindo nossa realidade de uma determinada maneira, o que sugere uma
maneira particular de representar aspectos do mundo e de identificá-lo.
Vejamos alguns exemplos identificados no corpus:

Figura 8: Comentário 1 da Postagem 1 – Blog 1.

Fonte: http://joaomoacir.blogspot.com.br/2011/08/greve-da-uern-continua.html

O uso do termo “DOG” (linha 7) representa a figura da metáfora que


atribui as características do elemento referenciado (cachorro) ao elemento
metaforizado (discentes). Ao dizer “só esperando as sobras” (linha 8), o
internauta comentarista complementa a representação da metáfora do cão
abandonado, sem valor, que só recebe sobras, migalhas. O internauta coloca-se
na posição de discente para se apresentar como a parte abandonada,
desvalorizada.

Figura 9: Recorte 1 da Postagem 2 – Blog 2.

Fonte: http://blogdocarlossantos.com.br/relacoes-extremistas-numa-greve-que-
fragiliza-a-uern/

A postagem 2 do blog 2 traz em seu título uma metáfora. O termo


cabo de guerra nos remete ao jogo da corda, em que há duas equipes
competindo entre si em um teste de força. O uso dessa metáfora nessa
postagem denota, portanto, um combate, luta entre dois oponentes, nesse caso,
o governo e o movimento paredista. Essa metáfora é reforçada ainda pelo
próprio subtítulo da postagem. Observem:

Figura 10: Recorte 2 da Postagem 2 – Blog 2.

Fonte: http://blogdocarlossantos.com.br/relacoes-extremistas-numa-greve-que-
fragiliza-a-uern/
74

Vejam que o subtítulo reforça a metáfora do cabo de guerra através do


termo “relações extremistas”, demonstrando que existem dois extremos: de um
lado, o governo e do outro, as categorias em greve. E no meio desse cabo de
guerra está a UERN. E assim, a partir dessa metáfora, a matéria da postagem é
construída, baseada no discurso de desqualificação do movimento,
apresentando-o como o extremo imparcial e irredutível.
Ainda na postagem 2 do blog 2 encontramos outras duas metáforas.
Vejamos:

Figura 11: Recorte 3 da Postagem 2 – Blog 2.

Fonte: http://blogdocarlossantos.com.br/relacoes-extremistas-numa-greve-que-
fragiliza-a-uern/

O uso do termo “Andando em círculos” nos remete à situação de uma


pessoa andar e não sair do lugar, de sempre voltar ao mesmo ponto. E o termo
“fosso abissal” nos remete a uma cova, abismo, algo profundo e escuro. O
blogueiro usou esses termos para complementar a metáfora do cabo de guerra,
acrescentando, através do uso dessas outras duas metáforas, que as partes
envolvidas não avançam e que só aumenta a distância para saída, para a solução
desse conflito.

Modos de operação ideológica

Com relação aos modos de operação ideológica propostos por


Thompson (2011), nossa última categoria de análise, a ADC retoma essa
proposta metodológica por apresentar uma forma mais sistemática de
reconhecimento e identificação do uso ideológico de formas simbólicas, para
promoção de pessoas, grupos ou instituições hegemônicas, através de cinco
modos gerais de operação da ideologia, a saber: legitimação, dissimulação,
unificação, fragmentação e reificação; e suas respectivas estratégias típicas de
construção simbólica.
O primeiro modo de operação da ideologia identificado foi o da
legitimação. Ela estabelece e sustenta relações de dominação quando as
apresenta como justas, legítimas e dignas de apoio. Essa estratégia foi
operacionalizada através da construção simbólica da racionalização, pois
houve apelo à legalidade de normas com intuito de defender determinadas
75

ações, pessoas ou instituições, no caso dos trechos abaixo, à Lei de


Responsabilidade Fiscal - LRF. Vejamos:

Figura 12: Recorte 1 da Postagem 11 – Blog 2.

Fonte: http://blogcarlossantos.com.br/procurador-diz-que-nao-ha-saida-para-
greve-com-lrf/

A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) foi utilizada como um


argumento para justificar o não atendimento às reivindicações, uma estratégia
de legitimação, através do modo de operação da racionalização, que van
Leeuwen (1997) denomina de autorização, aquela que convoca uma autoridade
legitimadora, que pode ser pessoa, lei, costume, e nesse caso, mais
especificamente, a autoridade impessoal, a LRF.

Figura 13: Recorte 1 da Postagem 7 – Blog 6.

Fonte: https://cidadenewsitau.blogspot.com/2012/05/rosalba-faz-novo-
apelo-para-que.html

O Governador faz também esse apelo à legalidade de normas, para


legitimar e fundamentar mais uma vez seu argumento de que não pode atender
às reivindicações das categorias, apresentando-o como justo e legal, no intuito
de desqualificar as reivindicações dos grevistas.
Outra estratégia do modo de operação da legitimação encontrada foi a
narrativização. Nessa estratégia, história, fatos do passado são retratados para
legitimar o presente. Observemos um recorte da postagem 10 do blog 9,
transcrito abaixo:
Figura 14: Postagem 10 – Blog 9.

Fonte: http://eepja.blogspot.com/2012/06/greve-reduz-faturamento-de-
comerciantes.html
76

Nessa postagem, elementos de narrativização foram utilizados: “a greve


atual tem prejudicado muito mais os comerciantes” (linha 10), "Nas greves
passadas” (linha 11), “Já neste ano” (linha 13). O leitor consegue recuperar
mentalmente e acompanhar cronologicamente essa sequência dos fatos e
visualizar seus efeitos. Isso reforça os efeitos da greve e suas relações
temporais, induzindo o leitor a julgar e concluir qual greve foi mais prejudicial.
Outro trecho que se manifesta a estratégia da narrativização é na
postagem 7 do blog 6. Vejamos o trecho:

Figura 15: Recorte 1 da Postagem 7 – Blog 6.

Fonte: https://cidadenewsitau.blogspot.com/2012/05/rosalba-faz-novo-
apelo-para-que.html

O blogueiro organiza o relato através da sucessão de ações, segundo as


relações de anterioridade, concomitância e posterioridade. O leitor consegue
facilmente recriar mentalmente e sequencialmente esse momento, esse evento.
O blogueiro ainda quantifica essa narrativização especificando o total de
manifestantes “quatro” (linha 23) e ainda reforça “retiraram em silêncio” (linha
24) em detrimento à “multidão” (linha 24) que aplaudia a Governadora. Mais
uma estratégia de minimização e desmoralização do movimento, tentando
apresentar um movimento sem força, sem peso.
Outra estratégia identificada é a unificação. Nela, é construído, no
nível simbólico, uma forma de unidade que interliga os indivíduos numa
identidade coletiva. Vejamos o recorte abaixo:

Figura 16: Recorte 1 da Postagem 7 – Blog 6.

Fonte: https://cidadenewsitau.blogspot.com/2012/05/rosalba-faz-novo-apelo-para-
que.html
77

A Governadora ao dizer "Precisamos, juntos, encontrarmos os meios


legais" (linha 15) cria um sentimento de coletividade, de sentimento partilhado,
colocando-se no lugar/posição dos alunos para, assim, se sentir autorizada a
convocá-los para essa tarefa de convencimento dos professores para suspensão
a greve.
Identificamos, também, o modo de operação fragmentação, operado
através, especialmente, da estratégia de expurgo do outro. Esta construção
simbólica pode ser identificada no último parágrafo da postagem, conforme
recorte abaixo.

Figura 17: Recorte 8 da Postagem 15 – Blog 11.

Fonte: http://patu-emfoco.blogspot.com/2015/10/greve-da-uern-causa-prejuizo-de-
mais-de.html

O governador diz que o sindicato dos professores tentou “jogar uma


má vontade do governador”, representando os professores (atores sociais) de
forma negativa, como manipuladores, articuladores, injustos, designando-os
depreciativamente.
Apresentamos no quadro (3) abaixo, de forma mais sintética, outras
marcas textuais da estratégia do expurgo do outro identificadas no nosso corpus.

Quadro 3: Marcas textuais do expurgo do outro.


POSTAGEM MARCAS TEXTUAIS
/ BLOG
P12 – B10 “Os grevistas da UERN deveriam ter vergonha na cara”
(T)
“Esses grevistas deveriam ter vergonha na cara, isso é um
despautério, um escárnio” (linhas 7 e 8)
“Quando se trata de uma sub-espécie que habita Mossoró, convém
sempre contar a piada e depois explicá-la. Hoje algumas figuras
abjetas confundiram pastel com pasteurização ao relembrarem que há
três anos eu chamei uma greve da UERN de “legal”. (linhas 26 a
29)
“burrice esférica dos aldeões do oeste” (linha 30)
“manés e lucrécias de Mossoró, os burraldos de aldeia” (linha 38)
78

“Vivem, no destino que a subcultura histórica lhes aprisionou, são


vítimas de uma greve permanente de saber. Quer que desenhe?”
(linhas 39 a 41)

C2 – P13 – B8 “sindicatos picaretas” (linha 2)

“pROFESSORES com "p" minúsculo deveriam se chamar


outra coisa, não professores.” (linhas 7 e 8)

C1 – P4 – B2 “SALÀRIO É O QUE IMPORTA. INTERESSE


PRÓPRIO É O QUE IMPORTA!” (linha 8)
“ESSA GREVE NÃO PASSOU DE UMAS BOAS
FÉRIAS REMUNERADAS” (linha 15)
Fonte: Elaboração nossa.

A postagem 12 do blog 10, o blogueiro desenvolve seu texto


argumentando contra a greve e atacando diretamente os grevistas com
expressões ofensivas (T e linhas 7 e 8). Ainda no final do seu texto, o blogueiro,
através da intertextualidade manifesta, reproduz um outro texto intitulado A
UERN E A PIADA (das linhas 25 a 42) de um outro blogueiro, sendo,
praticamente, todo construído através do expurgo do outro, conforme se
observa nos trechos acima (linhas 26 a 38), através do uso de palavras e
expressões grosseiras, ofensivas, desrespeitosas agressivas e até irônicas.
No comentário 2 da postagem 13 do blog 8, os sindicatos e os
professores são representados como desonestos e a figura do professor de
forma pejorativa. No comentário 1 da postagem 4 do blog 2, o professor é
representado como descompromissado, ambicioso, mercenário, cujo único
interesse é o salário. São todas formas de depreciação dos atores sociais em
greve, construindo-se a figura do inimigo para aqueles que lutam pelos
cumprimentos de direitos e melhores condições de trabalho.
79

Outra construção simbólica do modo de operação da fragmentação


que se apresenta na postagem é a diferenciação. Ela é identificada no segundo
parágrafo, conforme recorte seguinte:

Figura 18: Recorte 9 da Postagem 15 – Blog 11.

Fonte: http://patu-emfoco.blogspot.com/2015/10/greve-da-uern-causa-prejuizo-de-
mais-de.html

Vejam que o governador compara outras categorias do estado com o


sindicato dos professores da UERN, dizendo haver compreensão daqueles e
não há desses. Essa comparação foi feita em relação a outras categorias do
estado que, na época, também estavam em greve como os servidores da saúde
(JUCERN, 2015) e do ITEP (RN INTERTV, 2015), porém aceitaram acordo
proposto pelo governo e saíram da greve. É apresentada uma situação de
oposição entre essas categorias e a categoria docente da UERN, caracterizando-
as como positivas, pois compreendem a situação do estado, e a outra atribuindo
um caráter negativo, pois não compreende.
A estratégia da diferenciação é identificada, também, nesse recorte
abaixo:

Figura 19: Recorte 1 da Postagem 15 – Blog 11.

Fonte: http://patu-emfoco.blogspot.com/2015/10/greve-da-uern-causa-prejuizo-de-
mais-de.html

O Governador diz que o “Governo do Estado tem se esforçado para


chegar a um acordo” diferentemente dos docentes em greve. O Governador
apresenta-se como pacificador ao contrário dos docentes que são representados
como inflexíveis. Há, portanto, uma demarcação entre “nós”
(governador/governo) e “eles” (docentes) construindo e reproduzindo o
discurso do “bom” e “mau”, respectivamente, reforçando e valorizando, assim,
o do poder hegemônico, o governo, por se apresentar como prejudicado, como
vítima.
O objetivo é, portanto, transparecer para a sociedade a disposição do
governo em entrar em acordo com os líderes do movimento, procurar apagar as
80

divergências entre os grupos (governo e movimento dos professores em greve),


atendendo aos seus apelos, o que poderá, na verdade, fragilizar o movimento e
incutir na sociedade a ideia de que são os professores que resistem à
negociação.

Figura 20: Recorte 1 da Postagem 9 – Blog 8.

Fonte: https://blogdobg.com.br/pegou-pge-vai-entrar-com-acao-contra-greve-da-
uern-e-pedir-que-os-dias-parados-sejam-descontados/

Essa postagem é referente à greve de 2012. Nessa greve, o governo


ajuizou uma ação requerendo a suspensão da greve e o retorno das atividades
dos servidores da UERN. Porém, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do
Norte reconheceu a legalidade da paralisação. Vejam que o blogueiro tenta
justificar essa ação do governo dizendo que “O Governo ... buscou o diálogo”
(linha 13) “mas as propostas foram rejeitadas” (linha 16) “Assim, coube ao
coube ao Estado judicializar o assunto” (linhas 18 e 19) “para tentar garantir
que os alunos da UERN não sejam penalizados com a paralisação” (linhas 18 e
19). Além de tentar justificar essa ação, o blogueiro apresenta o governo como
a figura que dialoga, que apresenta propostas, que tenta conciliar, diferente dos
sindicatos que são irredutíveis. Fortalece a imagem “apaziguadora” do governo
e fragiliza o movimento grevista.
O uso da estratégia da diferenciação consiste em reforçar as diferenças,
distinguindo grupos ou pessoas. As diferenças entre grupos ou pessoas são
utilizadas, como no exemplo acima, para estigmatizar os sujeitos envolvidos. A
postagem silencia a voz do movimento grevista, já desprestigiada social e
historicamente, uma vez que em algum momento apresentou uma
posição/opinião do movimento, construindo e reproduzindo, portanto, o
discurso contra as greves, contra as reivindicações, contra os professores,
contra os servidores, contra a luta pelos direitos, e enaltece a voz da classe
hegemônica, do governo, apresentando-o como correto, vítima do movimento
grevista.
Há, portanto, uma luta pelo estabelecimento de um poder hegemônico
através do discurso antidemocrático e autoritário do Governador do estado
81

apoiado pela mídia. Percebemos o investimento ideológico destas vozes


(governo e mídia) que ressaltam uma voz (governo) e apaga outra (grevista),
criando uma realidade noticiada. Assim, a estratégia discursiva do Governador é
investir, usando a mídia, nesse caso pela voz do blogueiro, no argumento da
desqualificação do movimento grevista e de seus atores sociais.
Através dessas classificações que legitimam a diferença, a injustiça
social acaba sendo naturalizada, ou seja, passa a ser compreendida como um
estado natural de coisas e deixa de ser questionada como injustiça (RESENDE,
2009). O efeito disso pode ser a supressão da condição de sujeitos de direitos
de grupos em situação de fragilidade e suas possibilidades de articulação e
resistência serão, pois, invalidadas.

Considerações finais

Por meio da análise do corpus, concluímos que as postagens


(re)produzem identificações que induzem os leitores/internautas a verem os
movimentos grevistas de forma negativa, tanto em relação à sua atuação
profissional quanto à sua organização política. O governo é apresentando como
prejudicado, vítima, apaziguador. Por outro lado, os grevistas são apresentados
como incompreensivos, descomprometidos, ambiciosos, mercenários. São
formas de depreciação dos atores sociais em greve, construindo-se a figura do
inimigo. Há, através da voz do blogueiro, um trabalho de reprodução e
manutenção do poder hegemônico do governo e de desqualificação do outro
grupo hegemonicamente inferior, os movimentos grevistas.
Dessa forma, os sentidos foram regulados para culpabilização,
inferiorização dos atores sociais em greve, produzindo uma identificação
desfavorável (indesejável) desses atores e do movimento, estabelecendo, assim,
uma estratégia de polarização ideológica entre o bom (governo) versus ruim
(grevistas). Os fatos envolvendo as greves da UERN foram apresentados sob
um determinado ponto de vista, notadamente para servir a interesses de alguém
ou de algum grupo. Nesse caso, serviram ao grupo hegemonicamente superior,
o governo.
Constatamos que os modos de identificação dos grevistas não são
criação individual. Eles decorrem de construções discursivas e ideológicas, da
naturalização de processos sociais que legitimam determinadas posições. Todas
as estratégias utilizadas pelos blogueiros revelam uma relação de poder que
muitas vezes não é percebida pelos leitores. Através da voz do blogueiro, há um
trabalho de reprodução e manutenção do poder hegemônico do governo e de
82

desqualificação do outro grupo hegemonicamente inferior, os movimentos


grevistas, podendo ter efeitos potencialmente negativos na maneira como
pensamos e agimos em relação aos movimentos grevistas e suas atividades.
Ainda que a mídia defenda o discurso da neutralidade, ela dá
visibilidade a fatos e acontecimentos que lhes interessam e silencia os que não
interessam. No caso da mídia analisada, vimos, nitidamente, a voz do governo
sendo priorizada, valorada e a voz dos grevistas silenciada. Os blogueiros
internalizam diversos discursos de ampla circulação social e midiática e
assumem para si como parte do seu conhecimento para produção de realidades
e certezas. Assim, o blog, ao mesmo tempo, serve e é um projeto hegemônico.

Referências

FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Coord. trad. revisão e


prefácio à ed. Izabel Magalhães. Brasília: Editora da Universidade de Brasília,
2001.

___________. Analysing Discourse: textual analysis for social research.


London: Routledge, 2003.

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84

CORPO E SUJEITO: A PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADES


FEMININAS CONTEMPORÂNEAS EM MÍDIA SOCIAL12

Karla Jane Eyre da Cunha Bezerra Souza

Considerações iniciais

A anatomia do corpo, o seu entorno, é modelada por um lento e


histórico trabalho da cultura na qual está inserido, determinando aqueles tipos
que serão valorizados ou desprezados. A sua forma maciça era contemplada e
prestigiada na Idade Média, por exemplo. Era uma época de precariedade e de
escassez de alimentos, por essas razões, aquele que possuía uma barriga saliente,
uma reserva de gordura corporal, manifestava os sentidos de ascendência,
poder na sociedade, força física e simbolizava saúde, distinguindo-se, dessa
forma, dos demais indivíduos pertencentes às camadas mais populares.
Portanto, em tempos de fome generalizada “o privilégio social é transposto à
suntuosidade carnal” (VIGARELLO, 2012, p. 10).
Com o transcorrer da história, as transformações socioculturais do
Ocidente requisitaram um corpo cada vez mais leve, promovendo, assim, o
afinamento de suas formas e a agilidade de seus movimentos. Essas
transformações proporcionaram também a associação desse corpo cada vez
mais magro ao ideal de beleza. Quanto ao gordo, ele foi desprestigiado e até
ridicularizado, e hoje somos condicionados a vê-lo como um corpo doente,
inapto, de forças improdutivas e preguiçosas.
As mentalidades modificam-se, os olhares tornam-se mais severos, as
necessidades transformam-se e demandam do corpo uma resposta. Ele
responde: adapta-se às necessidades de seu tempo e espaço, moldando a
própria carne e oferecendo a sua força produtiva. Na contemporaneidade,
veneramos a magreza do corpo, evidenciando seus ossos, peles e músculos,
como consequência, desenvolvemos certa fobia à gordura, a “lipofobia”
(SIBILIA, 2009, p. 37). Esse contexto se desenvolve no interior de uma

12
Esse artigo é fragmento da dissertação intitulada: Que corpo queremos hoje? Sobre
corpo, saúde e beleza na produção das subjetividades femininas contemporâneas em
mídias sociais. A pesquisa de mestrado foi realizada com a orientação da Prof.ª Dr.ª
Marcília Luzia Gomes da Costa Mendes (UERN) para o Programa de Pós-
Graduação em Ciências da Linguagem – PPCL da Universidade do Estado do Rio
Grande do Norte – UERN, concluída em 2018.
85

sociedade consumista, regulada pelas leis do capitalismo, na qual crescem a


oferta e a procura de produtos de saúde e beleza e de serviços aliados à
promessa da juventude.
Diante disso, o corpo, que já foi visto como uma máquina produtiva
no século XVIII, momento da Revolução Industrial no Ocidente, hoje está
submetido a ela. As academias de ginásticas da modernidade, com todo o seu
maquinário de manipulação corporal, são como templos que devemos
frequentar regularmente para a prática de exercícios físicos, como sujeitos
obedientes e disciplinados, em comunhão com a cultura da aparência corporal.
O corpo é a própria divindade, por essa razão, o seu sujeito deve se ocupar
dele, devota e ininterruptamente, para promover-lhe todos os cuidados
necessários, a fim de lhe proporcionar a tonicidade de seus músculos, potência,
beleza e saúde. É preciso expulsar do corpo tudo aquilo que lhe torna impuro e
denuncia a sua finitude: a gordura, a flacidez da carne, os sinais da idade, pois,
em nossa contemporaneidade, são traços patológicos que envergonham o
corpo e depreciam a nossa imagem.
Neste cenário narcisista de valorização das aparências, as subjetividades
modernas se deslocaram para a exterioridade, ou melhor, “por meio do fitness os
sujeitos são verdadeiramente corporificados” (ORTEGA, 2003, p. 68),
passaram a ser reconhecidos pela própria carne e pela performance de seus
corpos. O interesse pelos procedimentos de cuidados corporais da atualidade
manifesta o desejo de adaptação, de adequação à norma do corpo perfeito e
saudável, gerando assim, uma ansiedade coletiva que tenta a todo custo evitar a
vergonhosa “desgraça da inadequação corporal” (SIBILIA, 2009, p. 37). Nesta
circunstância, o próprio sujeito se autocontrola, autovigia, autogoverna,
seguindo rigorosamente todos os ensinamentos e manuais de autoajuda,
motivado pelas imagens corporais que orientam as suas escolhas.
E qual é o lugar do corpo feminino nesta história de transformações
socioculturais? As mais rígidas cobranças sociais e a culpabilização por não se
adaptar a um determinado padrão corporal recaem sobre os sujeitos mais
desfavorecidos na hierarquia do poder, ou seja, numa cultura do patriarcado
como a nossa essa fragilidade é condicionada historicamente à mulher. Dessa
forma, a amplitude de volume, a acumulação de gordura, a manifestação dos
sinais da passagem do tempo, a ausência de zelo com a aparência corporal, a
desvaidade, enfim, são aspectos severamente condenados quando concernentes
a um corpo feminino.
86

São mais persistentes as suas lutas contra o volume de seu corpo e


contra o tempo que denuncia a sua finitude. Ao longo da história foram
incitadas a fazerem uso de objetos que “corrigiam” os contornos de seus
corpos comprimindo sua inevitável natureza. Tiveram suas carnes oprimidas
por instrumentos que presumiam uma referência normativa (corpetes, cintas,
aros, etc.), como se suas formas “devessem obedecer às manipulações materiais
mais exageradas, como se tivessem que ceder aos apertos mais cerrados”
(VIGARELLO, 2012, p. 10). Elas se sujeitavam a esses rituais de sacrifício e
desconforto em nome de um padrão de beleza, cujo atributo fora
tradicionalmente compelido ao gênero feminino. A trajetória do corpo nos
revela uma corporeidade feminina maleável, de matéria manipulável, que é
trabalhada por subjetividades historicamente apagadas e silenciadas,
empenhadas em vencer a própria natureza do corpo.
Em nosso cotidiano, somos apanhados por múltiplos discursos que
tratam do corpo insistentemente, trazendo os ensinamentos médicos para
cuidar da saúde, indicando as mais recentes técnicas de beleza e higiene,
prescrevendo as dietas milagrosas que diminuem as medidas corporais em
períodos cada vez mais reduzidos, recomendando os profissionais qualificados
na área de educação física, qualificando as academias de ginásticas, incitando
com imagens de corpos produzidos por uma morfologia de músculos, veias e
ossos, etc. Essa infinidade de discursos circula pelos mais variados suportes
(televisão, livros, jornais, revistas, redes sociais) e produz os sentidos que irão
fabricar as subjetividades úteis e necessárias de nosso tempo.
Todas as sociedades, por meio de processos históricos, fabricam os
mecanismos necessários para produzirem os corpos dos quais necessitam, por
intermédio de discursos atravessados pelas relações de saber-poder. Diante da
evidente plasticidade inerente a eles, é possível refletirmos sobre aquele modelo
corporal requisitado para o nosso tempo e sobre as subjetividades constituídas
na contemporaneidade que cuidam e controlam esse corpo idealizado.
À medida que o corpo torna-se cada vez mais visível, com as suas
carnes gradualmente escapando à dissimulação das vestimentas, cresce sobre ele
o controle e a vontade de adequar-se, ou melhor, uma ansiedade compartilhada
em padronizar os corpos conforme o modelo instituído na sociedade. Uma vez
que, sendo igual, o sujeito comprova a sua competência para cuidar de si
mesmo e torna-se autorizado a exibir-se, a ostentar os resultados de sua
transformação, a qual é objeto de um trabalho lento e contínuo coordenado por
87

uma disciplina, que submete e promove o esgotamento físico desse mesmo


corpo do qual se quer a perfeição.

Metodologia

Definimos aqui o percurso metodológico desta pesquisa. Para a sua


realização, seguiremos a perspectiva teórico-metodológica da Análise de
Discurso de orientação Francesa (AD), utilizando os seus pressupostos
epistemológicos e analíticos. A AD tem o discurso não como jogo de
representações entre palavras e coisas, mas como acontecimento que possibilita
a produção de sentidos. É o campo de estudos no qual se estabelece o encontro
entre a língua, o sujeito e a história, elementos importantes para entendermos
como e quando o indivíduo torna-se sujeito através das mais diversas práticas
em nossa sociedade.
Seguiremos o pensamento de Michel Foucault, cujas ideias são
determinantes para a construção da Análise de Discurso, pois propõe, em seus
trabalhos, analisar a construção do sujeito em seus processos de objetivação e
subjetivação e investigar os efeitos de saber-poder materializados na ordem
discursiva, inclusive como estes podem determinar a produção e o controle dos
discursos da sociedade de uma época.
Acreditando na importância e atualidade da temática, faremos um
percurso investigativo no ciberespaço13, mais especificamente no blog
www.carolmagalhaes.com, no qual circula enunciados que remetem aos saberes do
corpo, uma vez que, estão, a todo o momento, a dizer de nós e de nossos
corpos, definindo as normalidades e anormalidades para o nosso tempo.
Constitui-se com um lugar pedagógico que promove os estilos de vida tidos
como saudáveis, caracterizados por dietas restritivas e séries de exercícios
físicos, estabelecendo para a nossa atualidade o que é um corpo belo, jovem e
saudável, cuja construção demanda disciplina, tempo e dinheiro.
O blog a ser analisado é o da Carol Magalhães, conhecida na mídia
como uma influenciadora brasileira de fitness e saúde. Antes de produzir o seu

13 O ciberespaço, termo originalmente utilizado em 1984 por William Gibson em seu


romance Neuromancer, é assim definido por Lévy (2010, p. 94-95): “espaço de
comunicação aberto pela interconexão mundial dos computadores e das memórias dos
computadores. Essa definição inclui o conjunto dos sistemas de comunicação
eletrônicos [...] na medida em que transmitem informações provenientes de fontes
digitais ou destinadas à digitalização”.
88

weblog, já era uma figura pública sempre presente nas mídias por ser filha do ex-
deputado Luís Eduardo Magalhães e neta do ex-senador baiano Antônio Carlos
Magalhães. Exerce as profissões de modelo, apresentadora, atriz e blogger. O
espaço na rede foi inaugurado em março de 2013 e, desde então, aborda temas
relacionados à beleza, à alimentação e a atividades físicas, cujos hábitos são
correspondentes a um estilo de vida saudável, como ela mesma apresenta já no
topo do blog: a healthy lifestyle. O seu interesse pela criação do blog surgiu a partir
das requisições de seus seguidores da rede social Instagram, na qual 464 mil14
perfis pessoais acompanham sua rotina, motivo esse (o número elevado de
seguidores) que também influenciou a nossa escolha como parte do corpus da
pesquisa.
Pretendemos analisar os discursos sobre o corpo feminino presentes
nesse dispositivo midiático selecionado, mostrando a sua participação na
produção dos sujeitos e das subjetividades da sociedade contemporânea. Para
isso, conduziremos um trabalho de descrição e interpretação dos enunciados a
partir da seleção de 02 (duas) postagens publicadas no período do verão do ano
de 2017, pois é momento que propicia à visibilidade dos corpos, mas somente
aqueles que se adequam aos padrões estabelecidos estão autorizados a
tornarem-se visíveis. Intensifica, neste período, a propagação das imagens
corporais idealizadas que transformam os corpos femininos despidos em um
espetáculo. A mulher, temendo a inobservância, recorre aos discursos
pedagógicos de blogs para transformar o seu corpo e se constituir como sujeito
através das práticas discursivas e subjetividades fabricadas pelos enunciados
disseminados nessa ferramenta de interação.
Nesta pesquisa, de perspectiva descritivo-interpretativa, trabalharemos
com o suporte teórico e metodológico da Análise de Discurso (AD) de tradição
francesa, mobilizando as categorias analíticas propostas nos trabalhosde
Foucault, tais como o sujeito, os modos de subjetivação, o corpo e as relações
de saber-poder.

Corpo obrigatório e a produção das subjetividades femininas

O sujeito é a grande questão apresentada por Michel Foucault em seus


trabalhos, o qual perseguiu incansavelmente a compreensão dos seus processos
históricos de constituição, levando em consideração o saber, o poder e a ética

14 Número de seguidores consultado em 03/10/2018.


89

nas relações discursivas que requisitam, a todo instante, a participação do


indivíduo e determinam para ele qual é a posição que pode e deve ocupar na
dispersão dos discursos que circulam em nossa contemporaneidade.
Em sua história dos diferentes modos através dos quais os indivíduos
tornam-se sujeitos, Foucault (1995) empenhou-se em descrever os três modos
de objetivação15 que ordenam esse processo, a saber: “1) o sujeito em sua
relação com a verdade e conhecimento ou saber; 2) o sujeito em sua relação
com a força e ação sobre os outros, ou seja, com o poder; 3) o sujeito em sua
relação com a ética” (FONSECA-SILVA, 2007, p. 32). É importante esclarecer
que esses três domínios estão presentes em todos os trabalhos de Foucault, isto
é, são abordados em suas fases arqueológica, genealógica e ética, entretanto, a
divisão é empreendida para tornar compreensível a importância dedicada a cada
um desses domínios em sua obra.
O sujeito, conforme o pensamento foucaultiano, configura-se de
maneira incompleta, pois não possui uma essência fixa e acabada, é formado
pelas experiências históricas e constituído através das práticas e tecnologias
desenvolvidas na sociedade (saber/ poder) para construir subjetividades e
identidades obrigatórias. É um sujeito moldado pelos jogos de verdade de cada
época, construído no discurso e através dele, assumindo as posições próprias
dos discursos que articula, ou seja, identifica-se com a posição de sujeito que
lhe é atribuída no interior de um dado discurso, sujeitando-se às suas regras e
tornando-se portador dos seus sentidos e de suas representações.
O corpo para a Análise de Discurso não é o sujeito, mas eles se
confundem constantemente. Não tratamos aqui do corpo como um organismo,
um corpo biológico, mas do corpo discursivo que possui com o sujeito uma
relação constitutiva, já que é através de sua materialidade física que somos
convidados a experimentar a realidade concreta. A partir de sua discursivização
torna-se possível a existência do sujeito, participando, dessa forma, ativamente
nos processos de constituição das subjetividades. Paraguassú (2014, p. 105)
esclarece que “não apenas o corpo como carne possibilita a existência de tal
sujeito, como também as concepções sobre o corpo e a sua relação com o
conhecimento [...] participam da constituição dessa posição-sujeito”, que vai

15 Em “O sujeito e o poder”, Foucault (1995) utiliza o termo “objetivação” para se


referir aos três modos de constituição histórica do sujeito, não utilizando, dessa forma,
o termo “subjetivação”, apesar de o autor reconhecer como o terceiro modo de
objetivação a capacidade do sujeito de governar a si próprio, tornando-se, assim, objeto
para si mesmo.
90

estabelecer para esse corpo certos modos de agir e reivindicar dele uma
disciplina.
Com a finalidade de permitir a continuidade e o funcionamento de
nossa sociedade capitalista e industrial, o poder disciplinar investe no corpo do
indivíduo para fabricar o sujeito do qual necessita, aquele de comportamentos
dóceis e úteis em um regime de produtividade e capacidade constantemente
aumentadas. O poder é uma maneira de agir sobre as ações dos sujeitos, visto
que existe sob a forma de ação sobre ações, atuando no interior de um campo
de possibilidades no qual se inserem os comportamentos dos sujeitos ativos
(FOUCAULT, 1995).
Assim como as ações exercidas, as relações de produção e significação
são possibilitadas pelo corpo do indivíduo, como elemento material que situa o
sujeito no tempo e no espaço e o põe em relação aos demais por meio do uso
que faz da linguagem, objetivando-se e subjetivando-se simultaneamente. Com
base nisso, lançamos o olhar sobre o corpo para compreender as condições de
existência de sua materialidade discursiva, na qual o biológico e o histórico
imbricam-se complexamente à medida que se evoluem as tecnologias de poder
e saber de uma sociedade na fabricação das subjetividades úteis e necessárias
para a sua conservação.

Descrição e análise do corpus

Para pensar o funcionamento dos discursos e das relações de saber-


poder no ambiente do blog, que alcançam os corpos dos indivíduos no processo
de construção dos sujeitos e das subjetividades contemporâneas, iniciaremos o
nosso trabalho de descrição e análise dos enunciados da primeira postagem
selecionada com a figura a seguir:
91

Figura 01: Postagem 1

Fonte: Blog www.carolmagalhaes.com, seção: Bem Estar, de 07 de fevereiro de 2017

Faça sua própria comida


Como têm muitas pessoas que passam o dia inteiro fora
de casa, e acabam comendo pela rua, essa pode ser uma
dica que irá fazer muita diferença. Comer em restaurante
todos os dias não é muito legal, isso por quê nunca
sabemos como esses alimentos são feitos, nem se
suas propriedades estão sendo retiradas e nem se está
sendo 100% higienizados, por exemplo. Apenas comendo
a comida da nossa casa podemos ter essa certeza. Então
separe sua lancheira e comece a preparar os seus almoços.
Não se acomode
Se acomodar em um só exercício, faz com que perdemos
o prazer de treinar. Alternar e conhecer coisas novas é
sempre muito bom, além de dar aquela injeção de ânimo
para os nossos treinos.
Se exercite com as amigas
Malhar com as amigas é sempre um estímulo muito
grande, pois uma incentiva a outra. Sem contar que
quando bate aquela preguiça, a amiga vai fazer você ir de
92

qualquer maneira. Convide suas amigas e coloquem a


“mão na massa”.
Deixe o carro de lado
Que o carro é muito útil, não podemos negar, porém, ele
faz com quem nos acomodemos muito. Muitas vezes
trabalhamos, malhamos ou temos qualquer compromisso
que podemos ir a pé ou até de bicicleta, mas acabamos
escolhendo o carro, por ser mais prático.
Comece deixando ele apenas para as necessidades, desse
jeito será muito mais proveitoso e saudável, além de
economizar bastante, vale a pena!
Trace metas
É muito importante você saber aonde quer chegar, depois
disso, trace todos esses objetivos, e pense como você
pode alcançá-los. Isso com certeza ajudará com a
trajetória, principalmente quando pensar em desistir.
Vamos começar?
Beijos beijos!

A transformação do estilo de vida na cultura grega clássica significava a


evidência de uma individualidade e liberdade, condições necessárias para atingir
a transcendência e o conhecimento da verdade do sujeito, diferenciando-se,
dessa maneira, através das técnicas do cuidado de si da época clássica, dos
indivíduos comuns de sua comunidade. Nos dias de hoje, os indivíduos são
compelidos a transformar seus estilos de vida, abrindo mão de sua
individualidade e obedecendo a procedimentos disciplinares para a adoção de
um modo de existência universal: o fitness, cujo modelo é instituído sobre a
perseguição obstinada da saúde perfeita, de grandes porções de bem estar
individual e da adequação das anatomias, conforme um padrão corporal
estabelecido culturalmente, esvaído, desse modo, de preocupações políticas e
com o bem comum.
Em vista disso, o projeto de criação da “pessoa fitness”, segundo a
intenção declarada pela postagem do blog, reclama, antes, a constituição de uma
bioidentidade, ou seja, necessita das chamadas identidades somáticas, as quais
deslocam para a exterioridade de seu corpo a sua moral, a sua subjetividade que
foi alcançada mediante as práticas ascéticas da contemporaneidade, as quais se
ocupam exclusivamente da materialidade corpórea. Esse projeto de
transformação dos modos de existência requer do indivíduo “mudar alguns
hábitos e principalmente focar na saúde e no bem-estar”, ao mesmo tempo em que
recusa aquela subjetividade inadequada para os interesses da biopolítica de
nosso tempo (ORTEGA, 2003).
93

O exercício do poder disciplinar não foi inviabilizado com o


nascimento do biopoder em nossa sociedade contemporânea, isso porque
ambos atuam em planos diferentes, melhor dizendo, o primeiro centrou-se no
nível do corpo individual para assegurar o seu adestramento, a ampliação de
suas aptidões e de sua utilidade e docilidade. O segundo, que se desenvolveu
posteriormente, na segunda metade do século XVIII, concentra o seu exercício
em uma população e nos controles reguladores para preservar a vida da espécie
humana, preocupando-se com os processos biológicos do corpo-espécie, tais
como: os nascimentos, as mortalidades, os níveis de saúde de uma população, a
longevidade, etc. Assim, “as disciplinas do corpo e as regulações da população
constituem os dois polos em torno dos quais se desenvolveu a organização do
poder sobre a vida” (FOUCAULT, 2017a, p. 150).
Diante disso, a postagem anuncia as “5 maneiras para se tornar uma pessoa
fitness”, assim, com os enunciados sob a forma de manual, ensina as cinco
atitudes necessárias para distanciar o sujeito obediente do grupo vergonhoso
dos indivíduos sedentários e debilitados. Para tanto, prepara um conjunto de
instruções e práticas que tem o objetivo de disciplinar os indivíduos e conduzir
os seus comportamentos no processo de transformação do estilo vida para
obter melhor forma física, longevidade e saúde, o que indica uma forma de
governo do corpo dos outros.
A sua discursividade implica num manual de comportamentos a serem
adotados para se alcançar saúde e o corpo ideal, a partir da obediência a tudo
que é dito e da disciplina do sujeito. A necessidade que surgiu na modernidade
de conduzir a população para um fim satisfatório tornou mais sutil o exercício
do poder disciplinar, “nunca a disciplina foi tão importante, tão valorizada
quanto a partir do momento em que se procurou gerir a população”
(FOUCAULT, 2017b, p. 428). Isso porque governar não significa apenas
administrar uma massa coletiva dispersa, mas sim gerir profundamente e no
detalhe o corpo do indivíduo, ocupando-se dele para controlar os seus
comportamentos cotidianos e determinar as sua ações em seu dia a dia, pois
“Querendo ou não, se quisermos conquistar o corpo desejado, precisamos mudar
nossa rotina”.
Novamente aqui, o objetivo principal é a transformação para obter
efeitos materiais e o meio para empreender essa metamorfose corporal é a
adoção do estilo de vida fitness. Daí, percebemos o exercício do poder que
penetra a vida cotidiana do sujeito, controla os seus hábitos diários e modifica a
sua relação intimista com o próprio corpo. É, de fato, um tipo de intervenção
94

característica do governo, que tem como objetivo final a sorte da população e


dispõe do corpo individual como o intermediário das técnicas disciplinares.
Com isso, “a população aparece como sujeito de necessidades [...] mas também
como objeto nas mãos do governo; como consciente, ante o governo, daquilo
que ela quer e inconsciente em relação àquilo que se quer que ela faça”
(FOUCAULT, 2017b, p. 425 - 426).
E se ocorrer de “não conseguirem alcançar os seus objetivos”, apesar de
integrar em suas rotinas as atividades físicas recomendadas para uma vida fitness,
foi porque em algum momento o sujeito resistiu, deixando de obedecer alguma
instrução, ou todas, do manual compartilhado: “Isso [a não transformação
corporal] acontece por inúmeros motivos, e um deles é pela resistência das mudanças de
hábitos” (grifo nosso). Assim, para a adoção do estilo de vida fitness determinado
atualmente são primordiais a disciplina e a obediência do sujeito à norma
estabelecida, pois, se houver resistência não haverá a desejada transformação do
corpo.
De modo contrário, as práticas de si da Antiguidade grega, estudadas
por Foucault, representavam uma posição de liberdade do sujeito frente aos
modos de existência prescritos para aquela época, ou melhor, significavam
“uma forma de resistência cultural, uma vontade de demarcação, de
singularização, de alteridade” (ORTEGA, 2003, p. 63). Nessa passagem da
história, era preciso resistir para alcançar a subjetividade desejada, aquela que
marcaria a sua singularização e transcendência diante da comunidade, hoje, de
outro modo, percebemos uma vontade de homogeneidade, uma necessidade de
adequação dos sujeitos modernos aos modelos de existência engendrados
discursivamente para a nossa contemporaneidade, à procura da saúde e do
corpo perfeito.
Dessa forma, tornando-se uma pessoa fitness, o sujeito será presenteado
com um novo corpo, um corpo aperfeiçoado e mais produtivo que o anterior,
um corpo apto a se mostrar e a ser admirado no espaço material e no ciberespaço.
Isso se deve porque, na contemporaneidade, “o fitness nos é apresentado como
o „remédio universal‟, que nos garante a independência da medicina [...] a
proteção de todos os males da sociedade moderna [...] a receita da felicidade e
da fidelidade” (ORTEGA, 2003, p. 67). A disciplina é o meio para se conquistar
os ideais modernos de saúde e perfeição corporal e a subjetividade é constituída
a partir do trabalho autônomo sobre o próprio corpo.
Logo depois, são apresentados os cinco conselhos para uma vida fitness:
“1. Faça sua própria comida”, “2. Não se acomode”, “3. Se exercite com as amigas”, “4.
95

Deixe o carro de lado” e “5. Trace metas”. Assim, seguindo somente esses cincos
passos teremos um sujeito fitness de corpo renovado, o ideal representante do
século XXI, no qual continua o trabalho de massificação da atividade física
iniciado ainda no século XX16.
Desses enunciados, percebemos que a posição-sujeito do blog interessa-
se em construir uma subjetividade feminina comprometida com a perseguição
de uma estética esportiva. A imagem utilizada para a ilustração da postagem põe
em evidência um corpo de mulher à frente de imagens de corpos masculinos
que se desfocam sutilmente, perdendo a relevância de seus contornos no
cenário montado. Estão todos a praticar os exercícios físicos recomendados
pelos discursos da atualidade, fazendo uso de equipamentos de uma academia
de ginástica, mas somente o corpo feminino está em uma posição de
visibilidade.
A instrução de número três, além de recomendar a prática de atividade
física, incita a mulher a convocar também as suas amigas para, unidas,
compartilharem o estilo de vida fitness, assim como foi no passado, tempo em
que as mulheres partilhavam os segredos das técnicas de embelezamento da
aparência. Dessa forma, o fitness torna-se um modo de existência que modifica a
relação do sujeito com o próprio corpo, bem como ordena as suas relações
sociais, reunindo sujeitos em torno de um mesmo objetivo material, ou melhor,
favorecendo a formação de agrupamentos sociais baseados em critérios de
saúde, desempenho físico, aperfeiçoamento corporal, longevidade, etc., o que
constitui em uma forma de sociabilidade apolítica, diferenciando-se, assim, dos
“critérios de agrupamento tradicionais como raça, classe, estamento, orientação
política, como acontecia na biopolítica clássica” (ORTEGA, 2003, p. 63). Desse
agrupamento, resulta, também, uma divisão entre os indivíduos em dois grupos
que estão em oposição: os ativos e os sedentários, cuja presença é percebida
com certa desconfiança em nossa contemporaneidade.

16 O Brasil do século XX também reproduziu as pedagogias que pretendiam a


massificação da atividade física, o que já estava ocorrendo em diversos países. Na
década de 1970, grandes campanhas esportivas foram realizadas valorizando essa
prática: a Mexa-se e a Esporte para Todos (EPT). Consistiam em ações publicitárias e
estatais que objetivavam a conscientização da população para a adoção de hábitos
saudáveis por meio dos exercícios físicos e o combate do sedentarismo. Daí houve uma
explosão de academias de ginástica nas cidades brasileiras e a insistente circulação de
imagens de corpos jovens, magros, musculosos, trabalhados por meio da “malhação”,
nascendo, com isso, uma divisão de grupos: os ativos e os sedentários (SANT‟ANNA,
2014).
96

Esses enunciados, que insistem na participação das mulheres no modo


de vida fitness, fazem ecoar o pensamento antigo de uma beleza feminina que é
obrigatória, devendo a mulher se submeter a diversos sacrifícios em nome de
um aperfeiçoamento estético, dessa maneira, ainda hoje a “imagem corporal da
mulher brasileira está longe de se desembaraçar de esquemas tradicionais”
(PRIORE, 2014, p. 178). A mulher continua sofrendo prescrições da família,
dos parceiros, de amigas, dos discursos publicitários, enfim, de todos os lugares
sociais, porém, agora mais insistentemente devido ao desenvolvimento de uma
indústria da beleza ávida por mercado.
Dessa forma, é benéfico, também, para as tecnologias atuais do poder-
saber, que esse corpo saudável e exercitado pela prática da atividade física
evidencie, do mesmo modo, o atributo da beleza, o qual se integra à imagem
corporal feminina impregnado de significados morais e sociais, tornando-se
objeto de uma reponsabilidade obrigatória tramada historicamente para o
sujeito mulher, como um qualitativo de uma suposta feminilidade. Daí, para
reafirmar o seu sexo e reforçar a sua feminilidade para o grupo social ao qual
pertence, a mulher deve esforçar-se em seus cuidados com a aparência, pois a
beleza converte-se em uma gratificação social e a sua ausência é percebida
como má conduta pessoal (NOVAES, 2006). Segue a próxima figura e, logo
abaixo, o texto que a acompanha:

Figura 02: Postagem 2

Fonte: Blog www.carolmagalhaes.com, seção: Beleza, de 12 de janeiro de 2017


97

Proteção UV para o cabelo


Da mesma maneira que os raios de sol agridem nossa pele,
eles também afetam e muito os nossos fios, isso porquê,
os raios UV agem nas substâncias que unem a cutícula do
cabelo, deixando-o frágil, quebradiço e sem brilho. O ideal
é usar cremes ou óleos com a proteção UV antes de
treinar ao ar livre.
Sem make
A maquiagem pode agredir muito a nossa pele,
principalmente quando estamos nos exercitando e suando,
e nossos poros ficam abertos. Por isso, para evitar que a
pele fique oleosa, com espinhas e cravos, retire todos os
resquícios de maquiagem do seu rosto antes de treinar.
Banho pós-treino
É preciso ficar atenta com a temperatura da água do
banho, principalmente depois do treino. O motivo é o
ressecamento em excesso da nossa pele e do nosso cabelo,
quando entramos em contato com águas muito quentes.
O ideal é uma ducha morna, que fará bem tanto para os
fios quanto para a pele.

Nos enunciados da figura 02 da segunda postagem selecionada, não há


a utilização de marcas linguísticas que remetem de modo direto ao sexo
feminino, no entanto, somos levados a associar o seu discurso sobre alguns
ensinamentos de cuidados estéticos à aparência corporal da mulher, isso porque
viemos de um trabalho discursivo de longa duração que coaduna a questão da
beleza ao corpo da mulher, fabrica um ideário de perfeição corporal e o liga ao
seu sexo como sendo uma necessidade imprescindível para que, assim, possa
ser mulher no mundo, ou ainda, para que seja permitida e aprovada a exibição
de seu corpo no meio social. A insistência com a reprodução do corpo
feminino em imagens também auxilia nessa tarefa, são representações de
mulheres que correspondem ao padrão estético vigente atualmente, cuja
exibição reforça esse modelo corporal para as outras mulheres, incitando à sua
identificação, e, ao mesmo tempo, estabelece para os homens o tipo de corpo
que merece ser sexualmente desejado.
Tratando-se de um objeto de maior regulação social, na imagem
apresentada, o corpo feminino parece estar iluminado pelo poder, sendo
disposto em um espaço de visibilidade como se pretendesse vigiá-lo na tarefa
que está a executar. Percebemos um cenário de cores escuras no qual a luz
incide somente sobre uma mulher jovem, de olhar concentrado e vestes
esportivas, que desenvolve um movimento mecânico. A imagem faz revelar um
98

semblante de traços harmoniosos e delicados, em conformidade com o


imaginário social sobre uma beleza feminina, assim como revela também uma
aparência bem cuidada. O título da postagem “Cuidados de beleza importantes para
quem treina” pretende capturar aquelas mulheres praticantes de atividades físicas
que, até nos momentos de exaustão corporal pela prática de exercícios físicos
nas academias de ginástica ou em ambientes abertos, não podem abrir mão dos
cuidados de beleza de seu corpo, do contrário será julgada uma mulher
incompleta.
O texto é enfático ao afirmar que “devemos nos preocupar com os cuidados
de beleza também”, dessa maneira, acrescenta o trabalho de embelezamento da
aparência no rol de nossas reponsabilidades cotidianas. De forma imperativa e
com a utilização de letras em negrito para se referir aos cuidados com a
aparência, os enunciados irrompem em nossa atualidade a fim de reforçar a
importância de a mulher se fazer permanentemente bela para si e para a
sociedade, ou ainda, para incutir a ideia de que a atenção dedicada à nossa
exterioridade corporal deve compor, ao lado das preocupações com a
alimentação, exercícios físicos, etc., o conjunto de práticas relacionadas aos
cuidados de si na modernidade, as quais Ortega (2003) nomeou de práticas
bioascéticas, fundadas em práticas de sujeição e disciplinamento.
É importante que o processo de transformação corporal não
prejudique a imagem da mulher, a qual deve cuidar em converter o próprio
corpo e cuidar também para que essa conversão não comprometa
negativamente a sua aparência, ou melhor, que a prática diária das atividades
físicas recomendadas, assim como todos os seus “efeitos negativos” (raios solares,
suor, etc.), não torne desagradável a sua exterioridade, pois, em nossa
atualidade, “qualquer contravenção estética maior provoca um mal-estar”
(NOVAES, 2006, p. 84), suscitando a inquietude do olhar do outro. Isso ocorre
porque estamos em um contexto social e econômico de apelos para o
embelezamento, no qual o indivíduo está livre para modificar suas
“imperfeições corporais” e/ou dissimular os signos do envelhecimento de seu
corpo, “por isso o desassossego não poderia deixar de ser permanente: mesmo
quando se está doente, é bom não descuidar da aparência; mesmo quando se é
jovem, sinais da decrepitude parecem estar à espreita” (SANT‟ANNA, 2014, p.
188). Por esse motivo, devemos estar vigilantes aos processos do desgaste
inevitável, porém dissimulável, de nossa carne.
Para isso, a partir da multiplicidade das técnicas corporais
contemporâneas e da ampla propagação dos padrões de beleza, os meios de
99

comunicação fazem circular os discursos prescritivos que educam a mulher nos


cuidados de sua aparência, equipam-na de informações julgadas socialmente
importantes para que promova a transformação e o aperfeiçoamento contínuo
de seu corpo com a perseguição dos ideais de vitalidade, juventude e saúde,
comprovando para a sociedade, dessa forma, a sua capacidade de agenciamento
do próprio corpo. Assim, “cultivar a beleza, a boa forma e a saúde apontam
para uma nova ideologia que se impõe como um verdadeiro estilo de bem
viver” (NOVAES, 2006p. 84), ou seja, as mulheres devem aprender a cuidar da
aparência durante toda a sua vida e ainda acreditar que existe prazer nesse
trabalho de caráter perpétuo.
Esses enunciados trazem recomendações que orientam a mulher nos
cuidados com o cabelo (“Proteção UV para o cabelo”) e a pele (“Sem make”; “Banho
pós-treino”), refletindo uma preocupação com a exterioridade de seu corpo, com
o seu invólucro, isso porque, hoje em dia, cada vez mais a ideia de beleza se
aproxima com a de juventude, gerando, por conseguinte, uma ansiedade
compartilhada socialmente em dissimular a sua degradação, ocultar os sinais de
seu envelhecimento, já que se trata de um corpo de carne e, portanto, finito.
Para tanto, é promovido um estilo de vida em que o sujeito está a serviço de
seu corpo, movido pela vontade de controlá-lo, de adiar a sua morte certa e de
mascarar os vestígios de sua finitude.
Essa regulação e controle das práticas corporais correspondem ao
exercício do biopoder que faz desaparecer as fronteiras entre força física, saúde,
bem estar e beleza, articulando todos esses propósitos em um só tempo.
Percebida como um dom natural nos séculos anteriores, a beleza passa a ser
pensada, a partir da metade do século XX, como algo que pode ser alcançado,
ou melhor, como uma propriedade que pode ser construída, adquirida ou
negociada em termos de mercado nesta cultura do consumo, de outro modo,
inaugura-se uma nova ordem de poder-saber sobre o corpo no século XX,
“nessa ordem a beleza deixa de ser um dom e passa a ser construção, atributo
que se conquista por meio do governo do corpo, que passa a funcionar a
serviço da indústria tecnocientífica empresarial do corpo saudável”
(FONSECA-SILVA, 2007, p. 209). Assim, em nosso tempo, a beleza passa a
ser uma possibilidade concreta para todos aquelas que se submetem às práticas
de embelezamento, através do governo diário do corpo de si sobre si. Vejamos
a figura 03:
100

Figura 03: Postagem 3.

Fonte: Blog www.carolmagalhaes.com, seção: Beleza, de 12 de janeiro de 2017.

Cuidados com o suor


O suor tem um pH muito ácido, quando ele entra em
contato com o cabelo ele agride as cutículas dos fios,
consequentemente deixando-o mais ressecado. A dica é
aplicar um óleo vegetal antes do treino, deixar agir e só
retirar depois do banho.
Limpe bem a pele
A pele precisa estar sempre limpa, então a dica é antes dos
treinos, limpá-la bem, com lenços umedecidos, para retirar
toda a oleosidade. Após os exercícios é necessário mais
uma vez a limpeza profunda e então use e abuse do
hidratante.
Vamos nos cuidar?!
Beijinhos!

Aqui, os enunciados continuam a oferecer mecanismos para o controle


da aparência, novamente preocupados em evitar danos ao cabelo e à pele
devido ao contato com o suor decorrente da prática de atividade física. Há,
também, uma preocupação higieneizante fundada nos aconselhamentos sobre a
necessidade de assepsiar a pele (recomendando uma limpeza constante e
profunda) antes e após o treino físico, o que corresponde a mais uma prática
pedagógica de controle corporal e ao desejo atualizado de uma certa pureza da
carne, em oposição com a aspiração antiga de uma alma pura. E no fim, a
interrogação na forma de mando para nos cuidarmos (“vamos nos cuidar?!”), que,
nesse caso, significa repetir todas essas práticas corporais sugeridas para o
tratamento e embelezamento da aparência do corpo. São cuidados
101

exclusivamente estéticos que esperam resultados materiais alcançáveis com a


rigorosa obediência do sujeito, inserido na luta ininterrupta contra o
envelhecimento e a imperfeição de seu corpo.
Na figura, vemos uma mulher de corpo belo, jovem, aparentemente
saudável, trabalhado pelos exercícios físicos e, também, sexuado, a se oferecer
ao desejo do outro. A imagem, na qual beleza associa-se à sexualidade, traz um
corpo feminino que transborda sensualidade, a qual é percebida pelo gesto de
subir o short com uma das mãos, pela ação de levar a outra mão ao cabelo que
está desgrenhado e um pouco molhado, pelo olhar marcante, pela boca
semiaberta, isto é, prepara um cenário um tanto incomum para o “universo
fitness” que propaga os discursos relacionados à atividade física e alimentação
saudável. Este corpo sensualizado aquece toda a cena apresentada, mostrando-
se parcialmente coberto por vestes de cores quentes e posicionado à frente de
um fundo de cores frias. Trata-se de um corpo livre de “imperfeições”, visto
que revela as suas formas em conformidade com o padrão corporal em voga e
seduz. Objeto do desejo masculino, a mulher fabrica seu corpo sob a
perspectiva masculina, preocupa-se em atender aos seus anseios de “juventude,
sensualidade e, sobretudo, oferecimento como objeto para servi-lo”
(NOVAES, 2006, p. 88).
Assim como o mundo foi traduzido e ordenado sob a ótica masculina,
também foi a representação social da mulher, ou seja, o que hoje entendemos
sobre uma certa feminilidade foi, de modo igual, preparado historicamente sob
o olhar do homem, visto que, ainda hoje, é o olhar de homem que se lança
sobre a mulher, que produz o imaginário de expectativas sobre a aparência ideal
de um corpo feminino.
O corpo está no centro das relações entre saber, poder e processos de
subjetivação, a obsessão contemporânea com o domínio da materialidade
corpórea individual reflete uma nova forma de subjetivação que incita o
indivíduo a se constituir e a se reconhecer como sujeito através dos cuidados de
si, ou melhor, das práticas corporais vigentes que correspondem a um controle-
estimulação do embelezamento do corpo, da conversão de suas formas, da
preservação de sua saúde e de sua sexualidade. Isso porque “se o poder só
tivesse a função de reprimir, se agisse apenas por meio da censura, da exclusão
[...] se apenas se exercesse de um modo negativo, ele seria muito frágil”
(FOUCAULT, 2017b, p. 238-239).
Dessa forma, fica para trás a história de um controle-repressão da carne
impura e culpada, uma vez que hoje é o momento da liberação do corpo, mas
102

para que seja possível esse projeto contemporâneo da conquista de “liberdade”,


antes deverá submeter-se ao processo de transformação de sua matéria
biológica e de seus comportamentos, por meio dos modos de existência
possíveis que foram historicamente preparados para nós e que padronizam os
corpos segundo o modelo estético de nossa atualidade.
A posição-sujeito do blog, no domínio de uma formação discursiva dos
cuidados corporais, auxilia no trabalho de reprodução e circulação daquilo que
pode e que não pode, daquilo que deve e que não deve ser formulável sobre as
práticas de si através das quais a mulher se constitui como o sujeito que se
cuida, cuida de seu corpo e de sua saúde, enfim, governa-se.

Considerações Finais

Vimos que o corpo é convocado para os processos de constituição do


sujeito por meio dos discursos que o tomam como objeto de saber e alvo das
relações de poder, os quais falam dele e dizem qual deve ser a nossa relação
com ele. Tratamos, portanto, não do corpo biológico feito de carne, pele,
órgãos e ossos, mas de um receptáculo de saberes históricos que fizeram, ou
melhor, continuam fazendo o corpo que conhecemos hoje.
É, pois, materialidade discursiva que, bem como o seu sujeito, acha-se
marcada por uma incompletude, estando sempre em um processo conduzido
pelas práticas discursivas de uma época, de uma cultura, de uma sociedade. O
corpo é, assim, unidade ambígua realizada de carne e discurso e, ao mesmo
tempo, elemento transitório e histórico.
É a partir do corpo que o ser humano torna-se sujeito, seja através de
sua tomada como objeto por saberes historicamente construídos a fim de
operar a sua observação, descrição, explicação, enunciação e classificação; seja
mediante o seu investimento por relações de poder que objetivam disciplinar
esse corpo e, ao mesmo tempo, regulamentar os seus comportamentos no
interior de uma população da qual se quer regular e preservar a vida coletiva;
seja, finalmente, por meio de técnicas de si implementadas a partir de um
processo de reflexão e autoconhecimento efetivado nas relações de cada um
consigo mesmo. São, portanto, processos de objetivação e subjetivação que
ocorrem de forma simultânea na constituição dos seres humanos em sujeitos
em sua interação com a linguagem.
À vista do que foi dito, podemos afirmar que o corpo produz-se e é
produzido pelos enunciados que estão a todo tempo a falar de nós, instituindo
103

em nossa sociedade o que é considerado um corpo belo, saudável, produtivo e,


portanto, aceitável. Para perseguir esse modelo corpóreo idealizado social e
culturalmente, fabricam também os seus sujeitos necessários e estabelecem as
relações possíveis com seus corpos. Dessa maneira, o indivíduo torna-se sujeito
pelo corpo e por meio dele se individualiza, sendo alvo das relações de poder
que atravessam as sociedades e, concomitantemente, objeto e instrumento do
saber.
No blog estudado, a blogueira Carol Magalhães expõe os relatos de sua
rotina de cuidados com o próprio corpo, com a finalidade de conquistar a
forma física ideal, saúde e prolongamento da juventude. Em seu ambiente
digital, compartilha aconselhamentos que instituem modelos de
comportamentos baseados no desempenho físico do sujeito e na sua
formatação corporal, com o objetivo de educar o indivíduo na tarefa de cuidar
de si próprio. Para isso, prescreve as atividades necessárias para a
transformação corporal, a alimentação adequada e informações sobre beleza e
vestuário, convocando as mulheres para participar dessa ordem. Dessa maneira,
através de sua discursividade, o blog tece as subjetividades necessárias para a
mulher de nossa atualidade, ou melhor, empenha-se a construir as
representações da mulher moderna, cuja preocupação deve incidir sobre a
aparência de seu corpo, a conquista/manutenção da saúde e o bem estar
próprio.
Portanto, o corpo se torna um modo de existência e todas as ações do
sujeito em sua vida cotidiana devem integrar as práticas corporais ensinadas na
contemporaneidade. Assim, a partir do trabalho autônomo de transformação e
adequação de sua anatomia, o sujeito atesta para a sociedade a sua capacidade
de cuidar de si mesmo.
Dessa autonomia e responsabilidade nos procedimentos de cuidados
com o próprio corpo podemos perceber “uma vontade de uniformidade, de
adaptação à norma e constituição de modos de existência conformistas e
egoístas, visando a procura da saúde e do corpo perfeito” (ORTEGA, 2003, p.
63). Por esse motivo, as preocupações individuais estão voltadas para a
aparência, performances corporais, rigidez da carne, cultura do músculo, ou
seja, para a construção do próprio corpo em consonância com o modelo
instituído, cujo trabalho dá-se sob uma autovigilância, um autocontrole, bem
como sob os olhares alheios que reparam com atenção os movimentos do
corpo com a expectativa de sua conversão. Assim, adaptar-se é comprovar a
capacidade do sujeito de cuidar de si mesmo, de transformar-se, e, ao mesmo
104

tempo, é escapar da dura observação da sociedade atual, isso porque “a


moralização decorrente chega a ser implacável no julgamento àqueles que não
conseguem se adequar: os indolentes, os incapazes, os fracos” (SIBILIA, 2009,
p. 36). À vista disso, somente sendo idêntico a tantos outros corpos o indivíduo
torna-se protegido das acusações sociais sobre uma fraqueza de vontade ou um
defeito de caráter, decorrentes da inadequação corporal.

Referências

FONSECA-SILVA, Maria da Conceição. O Poder-Saber-Ética nos


discursos de si e da sexualidade. Vitória da Conquista: Edições Uesb, 2007.

FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, Hubert;


RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do
estruturalismo e da hermenêutica. Tradução de Vera Porto Carrero. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 231-249.

______. História da Sexualidade I: A vontade de saber. Tradução de Maria


Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 4. ed. Rio de
Janeiro/São Paulo: Paz & Terra, 2017a.

______. Microfísica do poder. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2017b.

LÉVY, Pierre. Cibercultura. Tradução de Carlos Irineu da Costa. 3. ed. São


Paulo. Ed. 34, 2010.

NOVAES, Joana de Vilhena. O intolerável peso da feiúra: Sobre as mulheres


e seus corpos. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio: Garamond, 2006.

ORTEGA, Francisco (2003). Práticas de ascese corporal e constituição de


bioidentidades. Cadernos saúde coletiva. Rio de Janeiro. v.11, n. 1, p. 59-77.

PARAGUASSÚ, Alita Carvalho Miranda. Corpo e Sujeito: Uma análise


discursiva. Jundiaí: Paco Editorial, 2014.

PRIORE, Mary del. Histórias e conversas de mulher. 2. ed. São Paulo:


Planeta, 2014.

SANT‟ANNA, Denise Bernuzzi. História da beleza no Brasil. São Paulo:


Contexto, 2014.
105

SIBILIA, Paula. O corpo modelado como imagem: O sacrifício da carne pela


pureza digital In: RIBEIRO, Paula Regina Costa; SILVA, Méri Rosane Santos
da; GOELLNER, Silvana Vilodre. (orgs.) Rio Grande: Editora da FURG, 2009,
p. 33-41.

VIGARELLO, Georges. As metamorfoses do gordo: História da obesidade


no ocidente da idade média ao século XX. Tradução de Marcus Penchel.
Petrópolis: Vozes, 2012.
106

CONCEITOS E PRESSUPOSTOS DA LINGUÍSTICA FUNCIONAL


CENTRADA NO USO E DA LINGUÍSTICA SISTÊMICO-
FUNCIONAL

Ana Paula Santos de Souza


Francisca Damiana Formiga Pereira

Considerações iniciais

Diante das variadas possibilidades de perceber os fenômenos


linguísticos, é possível optar por distintas vertentes teóricas, como a sistêmico-
funcional, a cognitiva (cognitivo funcional ou Linguística Funcional Centrada
no uso) ou a discursivo-funcional, cada uma com suas categorias de análise, que
facilitam e norteiam a interpretação e observação do corpus escolhido.
Quando falamos em funcionalismo linguístico, voltamo-nos a uma base
teórica, em oposição ao estruturalismo e ao gerativismo, por exemplo, com
ramificações, ou seja, vertentes distintas, cada qual com suas especificidades,
logo, é importante saber quais as diferenças existentes entre as opções e
possibilidades ofertadas por essa corrente linguística. Assim como uma árvore,
as teorias possuem muitas raízes que marcam a sua origem e que, ao longo do
tempo, vão se fixando e formando novas conexões, interpretando e observando
o corpus sob distintos enfoques, mas sempre primando pelo uso.
O funcionalismo compreende a língua como um instrumento de
interação social, em que é possível estabelecermos, por meio da linguagem,
distintas relações comunicativas, cada qual conforme as exigências das situações
de uso, pensamento esse, comum e defendido nas vertentes teóricas, mas cada
uma delimita e impõe modos específicos de estudo. (HALLIDAY;
MATTHIESSEN, 2014)
Trataremos, aqui, apenas da Linguística Sistêmico-Funcional
(doravante LSF) e da Linguística Funcional Centrada no Uso (doravante
LFCU), denominação essa que foi atualizada, no Brasil, pelo grupo de estudos
Discurso & Gramática fundado no Departamento de Linguística e Filologia da
Faculdade de Letras da UFRJ em 1991.
Na primeira seção, trazemos a perspectiva da LFCU, também chamada
de Linguística Cognitivo-Funcional, que resulta das relações desenvolvidas
pelos representantes de duas correntes teóricas que adquiriram projeção a partir
de 1970: a Linguística Funcional de vertente norte-americana, com Talmy
Givón, Paul Hopper, Sandra Thompson, Wallace Chafe, Joan Bybee, Elizabeth
107

Traugott, Christian Lehmann, Bernd Heine, entre outros e a Linguística


Cognitiva, com George Lakoff, Ronald Langacker e Jonh Taylor.
Dando continuidade, na segunda seção tratamos acerca LSF no tópico
A LINGUÍSTICA SISTÊMICO – FUNCIONAL, tomando por principais
bases teóricas Halliday e Matthiessen (2014), Gouveia (2009), e Fuzer e Cabral
(2014). A LSF compreende a linguagem como um fenômeno que envolve o
indivíduo, o contexto e a pretensões abarcadas na situação comunicativa.
Conforme esta teoria, ao falarmos/escrevermos um texto, realizamos seleções
para nos adequarmos ao contexto e para produzir uma semântica consoante à
pretensão dos objetivos de interação, sendo os sentidos construídos de acordo
com um conglomerado de fatores composto pelo sujeito, pelo contexto e pelas
pretensões dos sujeitos interactantes.
Respaldados nestes estudiosos, realizamos uma pesquisa de cunho
bibliográfico acerca da LSF e da LFCU, nesse sentido, objetivamos abordar os
principais conceitos e pressupostos dessas duas vertentes teóricas
funcionalistas.

A linguística funcional centrada no uso

A Linguística Funcional Centrada no Uso é uma abordagem que


defende o tratamento da linguagem, ou fenômeno linguístico, no âmbito da
interação, não somente como processo, mas como produto da atividade
sociocultural. Levando em consideração os estudos das duas correntes das quais
ela resulta, no caso, a Linguística Funcional Norte-americana e a Linguística
Cognitiva, a teoria mescla dois pontos: i) analisa a língua do ponto de vista
linguístico e extralinguístico, na vertente norte-americana, em que a “gramática
é compreendida como uma estrutura em constante mutação/adaptação, em
consequências das vicissitudes do discurso” ((FURTADO DA CUNHA, 2013.
p. 9), considerando, portanto, uma simbiose entre discurso e gramática; ii) o
comportamento linguístico como capacidades cognitivas, ligadas, entre outros
fatores, a experiência humana nos contextos de atividades individuais,
sociointeracionais e culturais, em que “a gramática é vista como representação
cognitiva das experiências dos indivíduos com a língua, portanto pode ser
afetada pelo uso linguístico.” (FURTADO DA CUNHA et al, 2013, p. 14).
Tanto a linguística norte-americana como a linguística cognitiva
rejeitam a autonomia da sintaxe (forma) e consideram, em suas análises, o fator
semântico e pragmático (função). Não distinguem léxico e gramática, uma vez
108

que a unidade linguística emerge do uso e da situação de interação, não sendo,


portanto, totalmente arbitrária, mas, sim, motivada e icônica. Além disso,
compreendem a língua como resultado de um conjunto de fatores que provêm
de atividades cognitivas e sociocomunicativas, ou seja, consideram
conhecimentos de mundo dos interlocutores no momento da comunicação e
embasam suas pesquisas com dados reais da interação, evidenciando o caráter
empírico em suas análises através da frequência de uso, modelagem de
estruturas no contexto discursivo e inferências pragmáticas presentes na língua
no momento da interação.
A união dos pressupostos teórico-metodológicos dessas duas correntes
teóricas deu um novo direcionamento no tocante ao modo como se percebem
e estudam as estruturas linguísticas, levando-nos a entender que, não apenas as
regularidades, mas as instabilidades das línguas são definidas pelas/nas práticas
discursivas dos usuários, ou seja, na emergência e na regularização de padrões
construcionais da língua.
É importante ressaltarmos que, na LFCU, alguns conceitos básicos
adquirem significações próprias da teoria, conforme afirmam Furtado da Cunha
et al (2013)

a) Cognição - conjunto de operações mentais configuradas com base na


relação do indivíduo e o ambiente físico e sociocultural, a cognição
funciona como uma espécie de mediadora entre o mundo e a palavra,
pois todo indivíduo é dotado de capacidades físicas e também
capacidades neurológicas ricas e complexas. Em suma, são as
configurações mentais que organizam o nosso sistema conceitual que é
formado pela nossa capacidade de construir o conhecimento a partir
das experiências sensório-motoras e corporais com o mundo;
b) Linguagem - mosaico de atividades que incluem processos cognitivos,
sociointeracionais e culturais. Desse modo, deve ser analisada em seu
uso, levando em consideração todos esses fatores para representar e
comunicar experiências em situações de interação;
c) Discurso - qualquer ato motivado seja para produção ou compreensão
de enunciados em contextos de interação verbal, ou seja, uso da
linguagem em todas as suas manifestações, pois a intenção
comunicativa do falante é subordinada às restrições de vários domínios
da linguagem, desde os princípios fonéticos até o nível pragmático;
109

d) Padrão discursivo - constituído de um plano formal e um plano


funcional, relativamente convencionalizados, em outras palavras, trata-
se de um construto cognitivo de comunicação que se ritualiza pelo uso
no contextos comunicativos em que o indivíduo está inserido;
e) Texto - um todo significativo, o locus da organização e manifestação
empírica do discurso, atualizado na/pela linguagem. Visa manter a
estrutura temática e a coerência discursiva;
f) Língua - sistema adaptativo e complexo, estrutura fluida composta por
padrões mais ou menos regulares e outros a depender das necessidades
cognitivas e intercomunicativas, em outras palavras, está ligada as
pressões de usos, cuja codificação morfossintática é, parcialmente,
resultado do seu uso no ato comunicativo.

É importante, para nível de esclarecimento trazer esses conceitos próprios


da teoria para que o leitor não faça interpretações outras da utilização dos
referidos termos.
Alguns pressupostos são advogados pela LFCU, tais como: iconicidade;
marcação e contrastividade; informatividade e perspectivação; categorização e
prototipicidade; plano discursivo e saliência perceptual; encadeamento
(Chunking) e analogia; projeções metafóricas e metonímicas.
A iconicidade é entendida como a correlação natural entre forma e
função, entre o código linguístico (expressão) e seu significado (conteúdo).
Nesse sentido, os teóricos funcionalistas defendem a ideia de que a estrutura da
língua reflete, de algum modo, a estrutura da experiência.
De acordo com Givón (1984) três subprincípios são importantes, a
saber:
i: o subprincípio da quantidade, estabelecendo que a quantidade de
informação está relacionada com a quantidade de forma, ou seja, quando maior
o número de informação, maior o número de forma. Reforçando a ideia de que
a estrutura gramatical reflete o conceito que ela expressa;
ii: o subprincípio da proximidade, que indica que quanto mais
próximos cognitivamente os conteúdos estiverem, mais integrados estarão no
plano da codificação, o que está mentalmente próximo, coloca-se
sintaticamente próximo;
iii: subprincípio da ordenação linear, que se caracteriza por dois
aspectos: a) a informação mais importante (tópica) tende a ocupar o primeiro
lugar em que a ordem dos elementos informa o grau de importância para o
110

falante, e b) a ordem das orações no discurso obedecem a sequencialidade


cronológica das ações. Dito de outro modo, esse subprincípio enfatiza que
quanto mais importante, previsível e temática for uma informação, maior será a
tendência dela ser colocada ou localizada no início do enunciado.
Já a marcação é um princípio herdado da linguística estrutural
desenvolvida pela Escola de Praga. Esse princípio enfatiza a distinção entre
categorias marcadas e não marcadas das estruturas linguísticas, seja ela
fonológica, morfológica ou sintática, em um contraste gramatical binário.
Givón (2001) aponta três características para diferenciar categorias marcadas de
categorias não-marcadas: i) complexidade cognitiva em que as categorias que
são mais marcadas tendem a ser mais complexas em termos de esforço mental
do que as categorias não-marcadas; ii) complexidade estrutural em que a
estrutura marcada tende a ser mais complexa ou maior que a não-marcada
correspondente; iii) distribuição de frequência em que a categoria marcada
tende a ser menos frequente que a categoria não-marcada.
Estreitamente veiculada ao princípio da marcação, temos a
contrastividade, que diz respeito à seleção dos itens de que o falante escolhe
dentro de um conjunto de possibilidades. A opção do falante em marcar
linguisticamente a seleção desses itens recorre a alguns mecanismos de relevo
como o traço prosódico e a ruptura com a forma convencional e de ordenação
sintática, o que causa uma quebra de expectativa
Com relação à informatividade, esta relaciona-se ao conteúdo informativo
que os interlocutores, no momento da interação, compartilham ou supõem
compartilhar. Segundo Cunha, Bispo e Silva (2013, p. 28) “a categoria de
informatividade tem a ver não apenas com o conteúdo semântico em si [...] mas
também com o monitoramento da dosagem de informação, da sua organização
sequencial e da forma expressiva como é perspectivado”. Associado ao
princípio da informatividade temos a perspectivação que diz respeito à focalização
de aspectos específicos de uma cena, por exemplo, no momento de relatar um
acontecimento ou descrever uma determinada situação, o usuário da língua faz
escolhas de um elemento particular como o ponto de vista a partir do modo
como esse evento foi comunicado.
Outro princípio importante para LFCU diz respeito à categorização e à
prototipicidade, incluídas no âmbito do processamento do domínio cognitivo, em
que categorias perceptuais de vários tipos são criadas a partir da experiência
humana, independente da língua. A categorização, em particular, no domínio
linguístico, volta-se para as semelhanças ou identidade que ocorrem quando
111

palavras (ou sintagmas) e as partes componentes não são apenas reconhecidas,


como também associadas a representações armazenadas.
A Teoria dos Protótipos considera as categorias não como estruturas
definidas, mas como estruturas de atributos, ou seja, de traços graduáveis. Por
exemplo, na categoria de “ave”, os representantes centrais devem ter as
seguintes propriedades: ter bico; ter duas asas, ter dois pés, ter pernas, poder
voar e colocar ovos. Porém, nem todos os membros desta categoria possuem
todos esses traços. Desse modo, animais tais como a galinha, pardais, avestruz e
pinguins fazem parte dessa categoria.
Podemos, ainda, pensar sobre essa representação da categoria
prototípica estar relacionada ao contexto, a exemplo da categoria “felino”.
Dependendo de onde estivermos, essa categoria poderá variar como, por
exemplo, se estivermos falando do Brasil, mais especificamente da região
urbana, podemos considerar o “gato” como o exemplar mais prototípico desta
categoria. Contudo, já em regiões de ambientação mais natural, como no
Amazonas, a onça seria eleita o elemento mais usualmente conhecido desta
categoria. Em se tratando de outra região no continente africano, animais como
tigres ou leões seriam os representantes prototípicos mais fortes desta categoria.
Salientamos também que, além de categorizarmos o universo físico e
social, nós categorizamos a língua. Segundo Thompson e Hopper (2001, p. 48),
as “categorias são formadas pelos mesmos tipos de processos que as categorias
diárias, todas passam por um processo constante de organização cognitiva,
destilação e generalização de encontros frequentes na vida diária”, uma vez que
o falante sabe o que fazer ou como reagir quando se depara com uma nova
instância de utilização das categorias linguísticas.
Já as noções de plano discursivo e saliência perceptual estão relacionadas aos
conceitos e dimensões de figura e fundo, portanto, à organização estrutural do
texto. Compreende-se por figura as entidades que aparecem em primeiro plano,
referindo-se às informações centrais que são percebidas com mais facilidade e
nitidez, já o fundo diz respeito às partes periféricas ou de menos destaque que
são menos aparente e perceptíveis no texto.
Sobre o encadeamento (chunking) e analogia, sabe-se que estes são outros
dois processos cognitivos de domínio geral envolvidos na configuração
linguística. No plano linguístico, o encadeamento é responsável pela formação
de estruturas complexas com base em sequências de elementos que sempre
ocorrem concomitantemente No que diz respeito às projeções metafóricas e
metonímicas, precisamos considerar que os conceitos aqui tratados divergem dos
112

conceitos de metáfora e metonímia conhecidos e trabalhados no ensino


tradicional. A metáfora aqui é vista como mapeamento dos domínios
cognitivos-conceptuais, importantíssimos no processamento da mente e no
intercâmbio da significação comunicativa, pois, por meio de metáforas,
estruturamos não só conceitos e eventos, mas a própria língua.
A transitividade e a gramaticalização, que não abordaremos aqui,
embora não sejam consideradas categorias de análises da LFCU, são
consideradas temas de interesse e objeto de estudo pelos teóricos dessa
vertente. Passemos a seguir para especificações detalhadas da outra vertente
teórica, a Linguística Sistêmico-Funcional.

A linguística sistêmico – funcional

A LSF, Conforme Gouveia (2009, p. 14), é “uma teoria geral do


funcionamento da linguagem humana, concebida a partir de uma abordagem
descritiva baseada no uso linguístico.”. Trata-se de uma teoria de descrição
gramatical que apresenta o como e o porquê da língua variar de acordo com fatores
internos e externos aos sujeitos.
Fuzer e Cabral (2014, 19) explicam as denominações sistêmica e funcional.
Sistêmica por ver “a língua como redes de sistemas linguísticos interligados, das
quais nos servimos para construir significados. Sendo cada sistema um conjunto
de alternativas possíveis que podem ser semânticas, léxico-gramaticais ou
fonológicas/grafológicas.”. Funcional por elucidar as estruturas gramaticais em
relação ao significado, às funções que a linguagem desempenha em textos.
De acordo com Halliday e Matthiessen (2014), a língua é um sistema
potencial de significados e essencialmente paradigmática, em que as escolhas
lexicogramaticais do falante/escritor são motivadas por um conjunto de
possibilidades decorrentes da situação comunicativa e que, consequentemente
produzem sentidos. E a LSF procura compreender como esses sentidos são
obtidos nos textos e quais motivações corroboraram para sua obtenção.

A Linguagem e as suas metafunções na LSF

Na LSF, a linguagem considera o sujeito e o contexto. Por meio dela


“expressamos conteúdos, para darmos conta da nossa experiência de mundo,
seja este o real, exterior ao sujeito, seja este o da própria consciência, interno a
nós próprios” (GOUVEIA, 2009, p. 14). Ao utilizarmos a linguagem,
113

organizamos uma mensagem que dê conta de evidenciar nossas experiências e


de estabelecer relações sociais uns com os outros, assim, desempenhamos
nossos papéis sociais e interagimos socialmente, porque a linguagem está
interligada com a sociedade e com os seus modos de organização.
Para Gouveia (2009), a linguagem nos possibilita estabelecer relações
entre partes de uma mesma instância de uso de fala, e a situação particular de
uso da linguagem, tornando-as, entre outras possibilidades, situacionalmente
relevantes.
Há, conforme as concepções hallydianas, três funções ou
metafunções da linguagem, nomeadas de ideacional, interpessoal e textual.

Metafunção ideacional: responsável por expressar as


experiências do sujeito, incluindo o mundo externo e o
mundo interno de sua própria consciência. Isso significa
que, ao utilizar a linguagem para expressar sua experiência
de mundo, o usuário está incluindo situações internas.
Metafunção interpessoal: responsável por estabelecer e
manter as relações entre os interactantes. Essa relação se
expressa através dos papéis sociais, que podem até incluir
os papéis de comunicação estabelecidos pela própria
metafunção, em situações variadas de interação:
estabelecer e manter relações, influenciar, expressar
pontos de vista, sugerir etc.
Metafunção textual: responsável por manter ligações entre
a própria linguagem e as características da situação de
interação. Essa metafunção capacita os sujeitos envolvidos
a interagir através da produção e compreensão de textos,
através do estabelecimento de relações coesivas entre uma
sentença e outra no discurso. De acordo com Halliday e
Matthiessen (2004), essa metafunção organiza os
significados ideacionais e interpessoais como discurso.
(MENDES, 2010, p.15).

Além dessas três metafunções, é importante frisar que há, consoante


Fuzer e Cabral (2014, p. 27/28), o contexto de situação, “ambiente imediato no
qual o texto está de fato funcionando”, e o contexto de cultura, “ambiente que
inclui a ideologia, as convenções sociais e instituições.” O contexto de situação,
114

como mostramos no Quadro 1, abaixo, possui três variáveis: campo, modo e


relações.

Quadro 1: As variáveis do contexto de situação.


VARIÁVEIS DO CONTEXTO SITUAÇÃO RELAÇÕES
CAMPO RELAÇOES MODO
Atividade Participantes da Linguagem constitutiva ou
situação auxiliar.
Objetivo Quem fala ou escreve
Quem ouve ou lê Meio oral, escrito e/ou não verbal
Finalidade
Participantes no texto Canal gráfico ou fônico

Distância social

Fonte: Fuzer e Cabral (2014, p. 30, adaptado).

O campo, segundo Fuzer e Cabral (2014), diz respeito à ação que é


praticada e os participantes que nela estão envolvidos. Já as relações se centram-
se nos participantes e em seus papéis sociais. Por fim, temos o modo, que se
refere ao papel da linguagem, do canal, do meio e do que é compartilhado entre
os participantes. Desta forma, a variável campo relaciona-se com a função
ideacional, a variável relações relaciona-se com a função interpessoal e a variável modo
relaciona-se com a função textual. O Quadro 2 exemplifica a integração das
metafunções na oração.

Quadro 2: Integração das metafunções na oração.


FUNÇÕES A Matou seu filho em
denunciada recém-nascido 19.09.1997.
Ideacional Participante Processo Participante Circunstância
(Transitividade)
Interpessoal Sujeito Finito Resíduo
(Modo) (passado)
Textual Tema Rema
(Tema e Rema)
Fonte: Fuzer e Cabral (2014, p. 35).
115

Assim, o Quadro 2 mostra que as funções da linguagem determinam


que a oração é uma unidade plurifuncional, sendo organizada conforme os
significados ideacionais, interpessoais e textuais, assim, temos a oração como
representação, como interação e como mensagem, concomitante. Logo, através
dela as experiências são concebidas nas interações e estruturadas como
mensagens (FUZER; CABRAL, 2014).

Os sentidos construídos no texto

Para analisar um texto se utilizando da LSF, é necessário considerar


contexto, propósito comunicativo e os papéis sociais dos sujeitos interactantes.
Conforme Halliday e Matthiessen (2004, apud FUZER & ; CABRAL, 2014, p.
22), texto é “qualquer instância de linguagem, em qualquer meio, que faz
sentido a alguém que conhece a linguagem.” Ainda tratando acerca da
concepção de texto, Gouveia (2009) destaca uma lista sobre a noção básica de
texto:
 O que produzimos quando comunicamos ou interagimos;
 Falado ou escrito ou não verbal;
 Individual ou coletivo;
 Composto de apenas uma frase ou de várias (a extensão não é
relevante);
 Uma coleção harmoniosa de significados apropriados ao contexto;
 Realizado por orações;
 Um processo contínuo de eleição semântica.
Levando em consideração a noção básica de texto apresentada por
Gouveia (2009), vemos que o texto é produzido com um intuito, seja instruir,
persuadir, entreter, noticiar, etc . Logo, nada que é posto nele é feito
despretensiosamente, uma vez que existem as indicações das escolhas
linguísticas do sujeito falante/escritor, revelando suas intenções e fornecendo
ao seu leitor/ouvinte pistas cruciais na interação e, consequentemente, na
construção dos sentidos, sendo, pois, o texto, de acordo com Halliday e
Matthiessen (2014), é uma unidade semântica, não uma unidade gramatical.
116

Considerações finais

Diante de alguns dos principais conceitos e pressupostos da LSF, aqui


apresentados, é possível afirmar que os significados são construídos por meio
da linguagem e condicionados ao contexto que ocorrem, às intenções dos
interactantes e ao papel social destes. Nesse sentido, o texto apresentada as
concretizações linguísticas, as formas, e estas são representações socioculturais
que promovem a interação. Portanto, a LSF busca explicar, a partir das
estruturas linguísticas, os significados do texto.
Já a LFCU considera não só os fatores linguísticos e extralinguísticos
como também os fatores cognitivos que motivam os falantes/escritores da
língua no momento da escolha dos termos linguísticos utilizados para a
construção dos seus discursos nas trocas interativas. Segundo essa perspectiva,
o estudo funcional da língua parte da utilização/uso que os sujeitos fazem desta
em situações concretas de comunicação, as estruturas linguísticas surge nas e
pelas necessidades comunicativas dos sujeitos.
Sob esse olhar, é notório que tanto a LFCU quanto a LSF são grandes
aliadas LSF estão alinhadas a uma concepção dinâmica do funcionamento da
linguagem e dos sentidos. Por meio delas, compreendemos que o uso concreto
da língua revela que para que se construam os sentidos, é preciso ir além do
dito, da materialização de um texto, pois, em uma situação comunicativa, tem-
se envolvidos o contexto, os propósitos comunicativos, os sujeitos interactantes
e os papéis sociais assumidos por eles, consequentemente, os sentidos vão além
do estar posto.
Cabendo salientar que este texto apresenta um breve panorama acerca
das vertentes em questão, servindo para mostrar de forma introdutória alguns
conceitos centrais das mesmas, sendo justamente nossa intenção fazer, aqui,
esse apanhado. Procuramos mostrar que as vertentes teóricas, embora
priorizem a essência do funcionalismo que é o estudo e análise da língua em
situações de uso, a modo de abordagem difere-se, pois cada uma apresenta
categorias e critérios diferentes de se perceber os fenômenos linguísticos.
Esperamos que essas considerações possam servir como norteadoras de
pesquisas futuras e ajudem, de algum modo, profissionais e pesquisadores
amantes dessas duas vertentes do Funcionalismo Linguístico.
117

Referências

CEZARIO, M. M.; FURTADO DA CUNHA, M. A. Linguística centrada no


uso: uma homenagem a Mário Martelotta. Rio de Janeiro/ Cataguases-MG:
FAPERJ/Mauad, 2013.

FURTADO DA CUNHA, M. A; COSTA, M. A; CEZARIO, M. M.


Pressupostos teóricos fundamentais. In: FURTADO DA CUNHA, M. A.;
RIOS DE OLIVEIRA, M.; MARTELOTTA, M. E (Orgs.). Linguística
funcional: teoria e prática. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p. 21-45

______, M. A.; BISPO, E. B.; SILVA, J. R. Linguística funcional centrada no


uso: conceitos básicos e categorias analíticas. In: CEZARIO, M. M.;
FURTADO DA CUNHA, M. A. Linguística centrada no uso: uma
homenagem a Mário Martelotta. Rio de Janeiro/ Cataguases-MG:
FAPERJ/Mauad, 2013.

FUZER, A.; CABRAL, S. R. S. (Orgs). Introdução à Sistêmico-Funcional


em Língua Portuguesa. 1ª. ed. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2014.

GIVON, T. Syntax. v. 1/2. Amsterdam: John Benjamins, 2001.

GOUVEIA. C. A. M. Texto e gramática: uma introdução à Linguística


Sistêmico-Funcional. Matraga, Rio de Janeiro, v. 16, n. 24, p. 13-47, jan./jun.
2009.

HALLIDAY, M, A, K.; MATTHIESSEN, C. M.I.M. Introduction to


functional grammar. London: Edward Arnold, 2014.

MENDES, W. V. As circunstâncias e a construção de sentido no blog.


Dissertação (Mestrado em Letras). 130 f. Dissertação (Mestrado em Letras) -
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Departamento de Letras,
Pau dos Ferros - RN, 2010.

THOMPSON, S. A.; HOPPER, P. Transitivity, clause structure, and argument


structure: evidence from conversation. In: BYBEE, J.; HOPPER, P. (Eds.).
Frequency and the emergence of linguistic structure. Amsterdam: John
Benjamins, 2001.
118

Reflexões sociolinguísticas no aprendizado do português brasileiro

Alessandra Santa Rosa da Silva


Juzelly Fernandes Barreto Moreira
Maraísa Damiana Soares Alves

Considerações iniciais

A diversidade no Brasil se reflete em todos os âmbitos, desde a


multiplicidade de raças, de culturas, de sotaques. Esse último, também
denominado variedade dialetal, é mencionado nos PCN de Língua portuguesa,
dada a importância de não desvincular o falar do aprendizado da língua
portuguesa como um todo. Desse modo, a variedade dialetal apresenta-se
relevante por respeitar as diversidades linguísticas dentro de um país extenso e
miscigenado como o Brasil.
Essa pluralidade de falas é percebida nitidamente no ambiente escolar,
uma vez que, com a individualidade, a particularidade de cada aluno e sua língua
vernacular, vemos como essas diferenças se fazem presentes em um espaço
micro. Se podemos perceber essas pequenas diferenças numa sala de aula, o que
dizer quando pensamos nas dimensões de um país como o Brasil? Devemos
desconsiderar essas diferenças? Cabe-nos ensinar aos estudantes que alguns
modos de falar são “errados”? Será mesmo que a língua em nosso país é única?
Essas indagações nos motivaram a tentar estabelecer relações entre a
Sociolinguística e o ensino de português, apresentando alguns exemplos de
como trabalhar a variação linguística com estudantes do ensino médio. Todavia,
antes que iniciemos esses entrelaçamentos, essas discussões, precisamos
esclarecer o que é a Sociolinguística. Para Mollica (2012):

A Sociolinguística é uma das subáreas da Linguística e


estuda a língua no seio das comunidades de fala [...]
correlaciona aspectos linguísticos e sociais. Esta ciência se
faz presente num espaço interdisciplinar, na fronteira
entre língua e sociedade, focalizando precipuamente os
empregos linguísticos concretos, em especial os de caráter
heterogêneo. (MOLLICA, 2012, p. 09).
119

O trecho acima nos mostra que, para essa ciência, interessa a


importância social da linguagem e como os seus aspectos concretos, ou seja,
seus usos são realizados dentro dos mais diferentes grupos sociais. Sendo assim,
podemos dizer que a partir da língua percebemos características de
determinadas comunidades de fala e que são essas relações sociais implícitas no
falar que constituem a língua portuguesa brasileira.
É nesse sentido que, para a Sociolinguística, a variação é um processo
inerente à língua e que, por isso, ela pode ser considerada um complexo sistema
heterogêneo que sofre influência de diferentes fatores. O português brasileiro é
um exemplo disso: é perceptível que as diferenças regionais, por exemplo,
apresentam o modo como os falantes se comunicam. Por essa razão, os PCN
de Língua Portuguesa (BRASIL, 2000, p. 14) definem que é importante
“respeitar e preservar as manifestações da linguagem utilizadas por diferentes
grupos sociais em suas esferas de socialização”.
Consideramos que pesquisar como as variações circulam, olhando
desde usos vernaculares dos alunos até análises de textos escritos, propicia a
preservação da diversidade linguística brasileira e assim desmistifica a ideia de
que algumas variedades linguísticas não podem ser usadas. Desse modo,
buscamos uma equidade ao respeito pelo uso das variedades linguísticas,
gerando uma conscientização entre os estudantes, ao mesmo tempo em que
desenvolvem a compreensão de adequação da linguagem às diferentes situações
comunicativas.
Para tentar alcançar esse propósito, nas próximas seções
apresentaremos, de maneira mais detalhada, fundamentos da Sociolinguística
que podem e devem ser discutidos com alunos do ensino médio para tentar
desfazer a falsa ideia de que existe um português correto, bem como algumas
propostas que foram aplicadas e que podem auxiliar em outros trabalhos que
venham a ser desenvolvidos no âmbito escolar.
Convém ressaltar ainda que nosso artigo é de cunho propositivo, ou
seja, o nosso objetivo é promover uma reflexão com base nos conceitos chave
da Sociolinguística atrelados ao ensino e, para o alcance desse fim,
apresentaremos alguns trabalhos realizados e disponibilizaremos algumas
possibilidades de desdobramentos que podem ser desenvolvidas com
estudantes do ensino médio, nas aulas de língua portuguesa.
120

O teor heterogênico e estruturado da língua

Quando pensamos no termo língua, logo imaginamos a


representatividade que as línguas têm ao ultrapassar suas fronteiras: a língua
portuguesa, a língua espanhola, a língua alemã, por exemplo. No entanto,
concordamos com o pensamento da sociolinguística laboviana, segundo o qual
esse termo não representa um bloco fechado, um jogo de regras fixo e muito
menos imutável. (LABOV, 2008 [1972]).
Antes da década de 1960, a língua era pensada como uma estrutura fixa
e imutável. No entanto, os estudos labovianos surgem para nos fazer pensar na
língua de uma maneira diferente, observando a heterogeneidade que está
intrínseca ao falar e como essa variabilidade se apresenta dentro de cada
comunidade linguística por meio das variedades que constituem um idioma.
É preciso termos em mente, contudo, que pensar numa língua implica
ter consciência do seu entrelaçamento com os aspectos socioculturais que
constituem as comunidades linguísticas, visto que essas são revestidas de
heterogeneidade e compostas por um emaranhado de variedades linguísticas
que refletem aspectos sociais. E essas variedades, por sua vez, se refletem nos
mais diferentes grupos sociais, contribuindo para esse feito desde fatores
externos, também nominados como fatores extralinguísticos, como idade, nível
educacional e sexo, até os fatores geográficos e o contexto linguístico em que o
evento de enunciação é efetivado.
Vale ressaltar que o desenvolvimento da teoria sociolinguística
variacionista ou sociolinguística laboviana, que relaciona a variabilidade da
língua atrelada aos aspectos sociais, foi difundido por Weirinch, Labov e
Herzog (2006 [1968], doravante WLH), os quais defenderam a
interdependência entre língua e sociedade, evidenciando que, com o
movimento de transformação que ocorre em uma comunidade de fala,
consequentemente, a língua varia.
Essas unidades estruturais e sociais são construídas dentro de cada
comunidade linguística em que se apresenta uma multiplicidade de sistemas que
coexistem e que são determinados pelos diversos grupos sociais: o sistema
linguístico dos jovens, dos médicos, das pessoas escolarizadas, do sexo
feminino, por exemplo. De acordo com WLH (2006), esses diferentes sistemas
confluem para o estabelecimento de determinadas propriedades, pois:
121

oferecem meios alternativos de dizer “a mesma coisa”: ou


seja, para cada enunciado em A existe um enunciado
correspondente em B que oferece a mesma informação
referencial (é sinônimo) e não pode ser diferenciado
exceto em termos de significação global que marca o uso
de B em contraste com A (WLH, 1968 [2006], p. 97).

Essas múltiplas formas de dizer são o foco deste trabalho, ou melhor, a


reflexão que pode e deve ser feita com os estudantes no âmbito escolar, a partir
da compreensão de que não existe uma única maneira de falar, muito pelo
contrário: somos parte de uma comunidade linguística que pode se expressar de
diferentes maneiras, de acordo com a necessidade comunicativa. Desse modo,
buscamos a valorização dessa heterogeneidade linguística, fazendo com que os
alunos reflitam sobre a importância da língua vernacular na sua construção
social. Além disso, intentamos também conscientizá-los de que o espaço escolar
proporciona outras formas de dizer, sem menosprezar variedades menos
privilegiadas.
Diante do exposto, queremos possibilitar que essa multiplicidade do
falar, presente na vida de todos nós, seja observada pelos estudantes, com o
propósito de conduzi-los à reflexão dos diferentes modos de falar que
constituem a comunidade linguística a que pertencem. Afinal, somos seres
plurais e essa pluralidade se apresenta na nossa linguagem, isto é, no nosso
modo de nos expressar diante das diferentes situações comunicativas a que
somos expostos.
No entanto, Tavares (2013, p. 99) afirma que as “diversas variantes
vernaculares sofrem estigmatização no ambiente escolar, sendo consideradas
inaceitáveis para uso em sala de aula (e até nos corredores da escola), e muito
menos em textos escritos pelos alunos”. Essa afirmação demonstra o quanto é
importante entender que existem diversidades dialetais dentro da língua.
Acreditamos, portanto, que somente por meio do estudo crítico da variação é
que se poderá adquirir a sensibilidade de respeitar e admitir a importância da
preservação da pluralidade linguística.
Em consonância com o que diz Tavares (2013, p. 93), entendemos que
a possibilidade de levar os alunos à prática lhes possibilitará adquirir “[...]
consciência de que a língua é múltipla e variável e passível de ser dominada do
vernáculo à variedade culta por seus usuários, e utilizada conforme sua
necessidade e desejo.” Dessa maneira, a relevância desta pesquisa repousa na
necessidade de discutirmos acerca da presença da variação nas aulas de Língua
122

Portuguesa, com o intuito de ampliarmos o espaço dedicado à reflexão sobre


as diferentes possibilidades de uso da língua.

A língua como realidade social

Toda língua está intrínseca a uma determinada realidade social no


sentido de que conseguimos perceber alguns aspectos como idade e
escolaridade influenciando diretamente a fala dos membros das comunidades.
Sendo assim, a Sociolinguística surge para embasar esse pensamento e
apresentar como a heterogeneidade se faz presente na língua que é
estruturalmente ordenada e ao mesmo tempo mutável. (LABOV, 2008 [1972]).
Diferentes estudos realizados sob essa perspectiva foram essenciais no
estabelecimento de um modelo teórico-metodológico de “um sistema
ordenadamente heterogêneo em que a escolha entre alternativas linguísticas
acarreta funções sociais e estilísticas, um sistema que muda acompanhando as
mudanças na estrutura social” (WLH, 2006 [1968], p. 99). Essa proposta traz à
luz a percepção do entrelaçamento entre sociedade e língua, pois a evolução ou
alterações sociais são diretamente refletidas nos diferentes contextos
comunicativos, sejam eles por variações estilísticas, sociais ou diatópicas.
Portanto, a Sociolinguística tem como principal finalidade estudar a
“variação, entendendo-a como um princípio geral e universal, passível de ser
descrita e analisada cientificamente. Ela parte do pressuposto de que as
alternâncias de uso são influenciadas por fatores estruturais e sociais”
(MOLLICA, 2012, p. 09-10).
Por isso, é necessário estimular os estudantes a perceberem as variações
como positivas dentro das comunidades de fala para que não se confunda o
aprendizado da gramática com o estudo da língua. Desse modo, faz-se urgente
o entendimento de que as variedades linguísticas vernaculares são importantes e
o que o domínio dessa modalidade da língua é crucial para se aprender a
variedade normativa. Conforme definido por Dino Preti:

a língua é o suporte de uma dinâmica social, que


compreende, não só as relações diárias entre os membros
da comunidade, como também uma atividade intelectual,
que vai desde o fluxo informativo dos meios de
comunicação de massa, até a vida cultural, científica ou
literária. (PRETI, 1994, p. 12).
123

O dinamismo social expresso através da língua possibilita que


transitemos nos mais diferentes espaços e reflete esse fluxo informativo em
diversos âmbitos, sejam aspectos culturais, científicos ou literários se tomarmos
em consideração que a vida é impulsionada pela linguagem, a qual nos permite
compreender o funcionamento dos grupos sociais.
Mas de que modo é possível promover esse entrelaçamento entre o
vernacular e o que é ensinado no ambiente escolar? Sigamos respondendo
algumas questões fundamentais que norteiam o ensino da variação linguística,
quais sejam: o que é uma variedade? O que são variantes? O que isso tem a ver
com a língua portuguesa?

Compreender as diferentes variedades da língua como constituintes da


sua língua: variantes- variedades – língua

A partir do pensamento da integração entre língua e aspecto social, os


estudos da Sociolinguística variacionista ou Sociolinguística laboviana ganharam
força no século XX, quando passou-se a defender que um indivíduo pode
produzir um mesmo enunciado com determinada intenção comunicativa de
múltiplas maneiras, e são essas diferentes formas de dizer que configuram a
variação linguística. (WLH, 1968 [2006]).
Para que possamos absorver melhor essa ideia, é necessário que
discutamos um pouco sobre alguns conceitos que são o cerne da
Sociolinguística. O que significa uma variante? O que é variedade? Variedade é
diferente de língua ou faz parte da língua?
Ao observar uma língua, percebemos que há diferentes usos que
refletem um mesmo sentido: a) a gente e nós; b) tu e você; esses exemplos de
alternância nos indicam diferentes variantes que expressam uma variável em
uso: a) variável de primeira pessoa do plural com a possibilidade de alternância
entre as variantes, ou seja, as formas de dizer, a gente e nós; b) variável de
segunda pessoa do singular com as variantes tu e você. Usamos o conceito de
Coelho et al (2015) sobre como as variantes atuam dentro do processo de
variação da língua:

são as regras variáveis da língua, aquelas que permitem


que, em certos contextos linguísticos, sociais e estilísticos,
falemos de uma forma, e, em outros contextos, de outra
forma – ou seja, que alternemos duas ou mais variantes
(formas que devem ter o mesmo significado
124

referencial/representacional e ser intercambiáveis no


mesmo contexto) (COELHO et al, 2015, p. 60, grifo do
autor).

Desse modo, a partir dos exemplos expostos acima, podemos


compreender melhor como duas formas têm um mesmo sentido (tu e você), ou
seja, uma mesma carga semântica, representacional dentro da língua. Além
disso, sua alternância é comumente percebida dentro das comunidades
linguísticas do português brasileiro, expressando a variação que ocorre entre
essas formas.
Esses conceitos estão atrelados, pois quando pensamos em variação,
partimos do estudo das variedades linguísticas, já que um conjunto de variantes
define uma variedade. É a junção dessas variantes que nos faz compreender a
variedade linguística de uma comunidade de fala e é somente a partir de sua
observação e análise que podemos definir quais variantes constituem
determinada variedade.
De igual modo, “mapear” a língua portuguesa falada no Brasil, com
todos os seus aspectos sociais e regionais, nos dá um panorama do quanto essa
língua é rica pelas variedades que a constituem. Portanto, esse emaranhado de
variedades linguísticas, de sotaques, de formas de dizer diferentes, de
alternâncias de variantes é o que representa a língua portuguesa brasileira.
Faraco (2005) define essa realidade heterogênea da língua:

reconhecer a língua como uma realidade essencialmente


social que, correlacionada com a multifacetada experiência
econômica, social e cultural dos falantes, apresenta-se em
qualquer situação, como uma realidade heterogênea, como
um conjunto de diferentes variedades (FARACO, 2005, p.
67).

Como bem nos lembrou Faraco, não se pode deixar de considerar


esses aspectos que são inerentes à língua. Inclusive porque a realidade
linguística está envolta de elementos culturais que são refletidos nas diferentes
variedades. Por isso, entendemos que essa heterogeneidade merece ser discutida
e elencada no ambiente escolar, de forma positiva, para que os estudantes
possam se enxergar como falantes da língua portuguesa e não pertencentes a
um mundo de “erros” onde não é permitido que sua língua vernacular seja
125

pronunciada, mas sim que essa faça parte das diferentes normas nas quais ele
pode e deve ser fluente.

Como as normas são, em geral, fator de identificação do


grupo, podemos afirmar que o senso de pertencimento
inclui o uso das formas de falar características das práticas
e expectativas linguísticas do grupo. Nesse sentido, uma
norma, qualquer que seja, não pode ser compreendida
apenas como um conjunto de formas linguísticas; ela é
também (e principalmente) um agregado de valores
socioculturais articulados com aquelas formas. (FARACO,
2008, p. 41).

É sobre essas diferentes normas, que representam os grupos sociais,


que queremos discutir com os estudantes a partir da variedade que conhecem,
da sua língua vernacular, incentivando a reflexão sobre as diferentes normas que
se têm domínio e/ou conhecimento e a perceber a importância e a
representatividade das variedades linguísticas que concebem a língua
portuguesa.

Como, a partir da aplicação Sociolinguística, é possível promover uma


reflexão sobre essa compreensão?

Um importante norteador, que converge com o que estamos


discutindo neste artigo, é o documento da Base Nacional Comum Curricular
(BNCC) que apresenta habilidades a serem desenvolvidas na disciplina de
Língua Portuguesa estimulando a análise da variação, bem como do embate
contra o preconceito linguístico:

Analisar o fenômeno da variação linguística, em seus


diferentes níveis (variação fonético-fonológica, lexical,
sintática, semântica e estilístico-pragmática) e em suas
diferentes dimensões (regional, histórica, social,
situacional, ocupacional, etária etc.), de forma a ampliar a
compreensão sobre a natureza viva e dinâmica da língua e
sobre o fenômeno da constituição de variedades
linguísticas de prestígio e estigmatizadas, e a fundamentar
o respeito às variedades linguísticas e o combate a
preconceitos linguísticos. (BRASIL, 2017, p. 500).
126

Com base nessa orientação, e nos demais fundamentos apresentados


aqui, reforçamos a importância da análise variacional nas mais diversas formas
presentes na Língua Portuguesa, desde variações linguísticas, quanto a seu teor
fonético, semântico, entre outros aos fatores extralinguísticos que corroboram a
constituição das variedades linguísticas.
A exemplo dessa importância, mencionamos o recorte empregado por
Tavares (2013), incentivando e apresentando como pode ser desenvolvido o
ensino do português valorizando a diversidade linguística no Brasil, ao mesmo
tempo em que nos chama à realidade, já que “diversas variantes vernaculares
sofrem estigmatização no ambiente escolar, sendo consideradas inaceitáveis
para uso em sala de aula (e até nos corredores da escola), e muito menos, em
textos escritos pelos alunos”.( TAVARES, 2013, p. 99).
Nesse estudo, em que incentiva a valorização das variantes
vernaculares, a autora apresenta ainda uma metodologia a ser aplicada com os
alunos, a partir do estudo dos conectores, e, aí, então e portanto, com a
identificação das ocorrências nesses textos, percebendo como determinados
conectores transitam nas mais diversas esferas textuais, desde textos informais
até textos mais formais.
Os estudos dedicados a Sociolinguística aplicada ao ensino têm
ganhado espaço nos últimos anos e, desse modo, muitos pesquisadores têm
publicado trabalhos voltados para a investigação e o desenvolvimento desse
campo linguístico. Porém por questões de espaço, limitaremos-nos a citar dois
exemplos.
O primeiro deles trata de um artigo de Alves e Moreira (2016), partindo
das ideias de Tavares (2013), no qual descrevem um projeto realizado com
alunos do ensino médio sobre o uso dos conectores, com o intuito de
observarem como determinados elementos linguísticos considerados informais
transitam pelo contínuo da formalidade e da informalidade.
Em seu trabalho, as autoras deixaram registrados cada um dos passos
seguidos durante a incursão realizada na busca pela ocorrência dos conectores e,
aí, então e portanto. Abaixo, apresentamos o quadro síntese das atividades
realizadas pelas autoras, o qual serviu como ponto de partida para uma outra
pesquisa sociolinguística, da qual falaremos adiante.
127

Quadro 1: Síntese das atividades realizadas.


Atividades realizadas

 leitura dos textos, a partir de discussão realizada no grupo;

 exposição da reflexão proposta sobre as variedades linguísticas e sua


importância;
 coleta dos dados necessários para a análise preliminar;

 análise dos dados coletados;

 apresentação do relatório preliminar;

 relação do grau de formalidade de cada gênero com a ocorrência dos


conectores e, aí, então e portanto.
Fonte: Alves e Moreira (2016).

Como desdobramento dessa proposta, e resultado de um projeto


desenvolvido com alunos do ensino médio, temos ainda a pesquisa de Lins et al
(2018, p. 1667)17, a qual nos mostra que, a partir do estímulo à reflexão sobre a
desestigmatização das variedades menos privilegiadas, pode ser gerada uma
consciência crítica nos alunos que se reconhecem nas variedades que
comumente são desprivilegiadas e entendem a “necessidade de uma equidade
entre as diversas normas existentes”. Desse modo, a pesquisa demonstra que é
possível conduzir o estudante à reflexão acerca da sua língua vernacular sem
que a assimilação das outras normas seja prejudicada.
Com base no levantamento dos dados e na análise dos textos, os
autores expuseram as seguintes conclusões do projeto que foi desenvolvido:

Este projeto tem possibilitado uma reflexão de que não há


um “falar errado” e sim maneiras diferentes de falar a
mesma língua, e essas múltiplas maneiras de falar estão
diretamente influenciadas pela cultura que cada indivíduo
possui. Desse modo, a língua vernácula, o nível de

17 Nesse artigo, os alunos participantes do projeto publicaram os resultados


preliminares e sobre a percepção da Sociolinguística apreendida.
128

escolarização e o meio social em que o indivíduo está


inserido são exemplos de como a língua pode ser
influenciada. Passou-se, portanto, a ter um maior
entendimento no assunto e a valorizar as variedades
linguísticas dentro do português de forma igualitária
(LINS et al, 2018, p. 1670).

Portanto, os estudos apresentados nos dão respaldo para ratificar que é


tanto possível como bastante necessária a aplicação da Sociolinguística na sala
de aula18, levando aos estudantes desde a oportunidade de desenvolver projetos
até a prática de inserção de conteúdos no ambiente escolar que permitam aos
alunos uma ampliação no conhecimento das variedades linguísticas, bem como
a compreensão de sua variedade vernacular como ponto de partida para a
apreensão de tantas outras normas que se fazem presentes na língua, desde o
linguajar dos jovens ao estilo mais formal impresso na escola, por exemplo.
Como proposta reflexiva, a seguir, sugerimos algumas discussões que
podem ser feitas a partir de atividades e/ou debates no processo de
compreensão da diversidade linguística realizada com estudantes do ensino
médio, a saber:

Quadro 2: Propostas reflexivas.


Propostas reflexivas
 Conceituação sobre o que é uma variedade linguística e como ela é
constituída por variantes que representam uma variável linguística;
 Discussão e reflexão sobre o que são fatores extralinguísticos e como
eles podem representar o falar de grupos sociais a partir da observação
dos fenômenos sociais como idade, escolaridade, nível
socioeconômico;
 Análise das escolhas linguísticas entrelaçadas pelos fatores
extralinguísticos;
 Compreensão de domínio de diferentes subsistemas que devem ser
aplicados de acordo com as diferentes situações comunicativas.
Fonte: Elaboração nossa.

Do nosso ponto de vista, a apreensão e a discussão desses conceitos


possibilitam a percepção dos eventos sociolinguísticos na vida cotidiana dos

18Para mais detalhes das etapas e atividades, sugerimos a leitura dos artigos Alves e
Barreto Moreira (2016) e Lins et al (2018).
129

estudantes. Além disso, entendemos, sobretudo, que eles podem propiciar o


desenvolvimento da criticidade e da valorização das diferentes normas
linguísticas que rodeiam nossos estudantes, levando-os à compreensão de que
um falante é capaz de “dominar” diferentes formas de falar, as quais podem e
devem ser aplicadas nas diversas situações comunicativas.

Considerações finais

Para a Sociolinguística variacionista, como dito anteriormente, a língua


não é um bloco fechado, imutável. Ao contrário, é constituída de variedades de
formas de falar que são constituídas pelas variantes e suas múltiplas
possibilidades de dizer a mesma coisa de maneiras diferentes. Essa tessitura da
língua, esse emaranhando de variedades é o que torna as línguas tão ricas e nos
permite dialogar de formas diferentes de acordo com a situação comunicativa
ou o grupo em que estamos inseridos.
A partir desses pressupostos teóricos, da observação dos eventos
linguísticos em que estamos imersos e das aplicações analisadas, chegamos à
conclusão de que é possível, quando se está envolto numa comunidade de fala,
compreender criticamente a língua e fazer escolhas a partir das diferentes
normas a que se tem domínio, sem desprestigiar nenhuma variedade.
Ao olhar para a variedade vernacular de cada um, pode-se perceber as
muitas variedades que estão intrínsecas ao falar. Desse modo, buscamos
promover a reflexão dos estudantes a respeito da sua realidade linguística sem
que fiquem intimidados ou receosos por expressarem o modo de falar do seu
ambiente familiar. Em vez disso, estimulamos o ganho da consciência de que,
como parte de uma, ou de várias comunidades linguísticas, é preciso dar voz a
todas as variedades das quais participam, não menosprezando variedades mais
“populares” ou informais, do ponto de vista da formalidade escolar.
A aplicação de atividades práticas, com mostras reais da língua,
possibilita uma melhor compreensão da teoria, tendo em vista que os
estudantes conseguem se identificar com exemplos de variantes que são
apresentadas nas discussões. Assim, o aspecto concreto, usado pelos grupos
sociais, possibilita a assimilação de maneira mais fácil e prática à teoria.
Ao entender os subsistemas que formam parte do português, os
estudantes conseguem encontrar seu lugar e assim apropriar-se de outros
subsistemas que constituem nossa rica língua portuguesa. Por isso, é tão
necessário que o processo de desestigmatização do português “correto” ganhe
130

cada vez mais espaço no ambiente escolar para que haja equidade entre as
diferenças que são tantas neste país.

Referências

ALVES, M.D.S; MOREIRA, J.F. A investigação sociolinguística como


mecanismo de conscientização acerca das variedades da língua: um
estudo dos conectores e, aí, então e portanto. In: Sidney da Silva Fagundes
et al. (Org.). E-book do V Congresso de Estudos Linguísticos e Literários na
Amazônia. Ved.Belém: Biblioteca - UFPA, 2016, v. II, p. 282-294.

J. F.; LINS, E.; NASCIMENTO, K.; MACEDO, M. ALVES, M.D.S. A;


MOREIRA, . A compreensão da sociolinguística como método para
tornar cidadãos conscientes sobre as variedades da língua portuguesa. In:
SECITEX- IV Semana de Ciência, Tecnologia e Extensão do IFRN, 2018,
Natal. Anais da IV Semana de Ciência, Tecnologia e Extensão do IFRN. Natal:
Editora IFRN, 2018. P. 1665-1671.

BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua Portuguesa. Ensino


Médio. Brasília, 2000.

______. Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Brasília: MEC. 2017.


Disponível em: <
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_20dez_site.pdf >
Acesso 01 de julho de 2019.

COELHO, I. L.; GÖRSKI, E. M. ; NUNES DE SOUZA, C. M. ; MAY, G. H.


. Para conhecer sociolinguística. 1. ed. São Paulo: Contexto, 2015. v. 1.

FARACO, C. A. Lingüística Histórica: uma introdução ao estudo da


história das línguas. São Paulo: Parábola Editorial, 2005.

______, C. A. Norma culta brasileira: desatando alguns nós. São Paulo:


Parábola Editorial, 2008.
131

LABOV, W. Padrões sociolinguísticos; tradução Marcos Bagno, Maria Marta


Pereira Scherre, Caroline Rodrigues Cardoso. São Paulo: Parábola Editorial,
2008 [1972].

MOLLICA, M. C. Fundamentação teórica: conceituação e delimitação. In:


MOLLICA, M. C; BRAGA, M.L. (Orgs.). Introdução à Sociolinguística. São
Paulo: Contexto, 2012. p. 9-14.

PRETI, D. Sociolinguística: Os Níveis da Fala: Um Estudo


Sociolinguístico do Diálogo na Literatura Brasileira. 7ª ed. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 1994. (Campi; v. 15)

TAVARES (2013): Gramática na sala de aula: o olhar da sociolinguística


variacionista (p. 93-114).

WEINREICH, U.; LABOV, W.; HERZOG, M. I. Fundamentos empíricos


para uma teoria da mudança linguística; tradução Marcos Bagno. São
Paulo: Parábola Editorial, 2006 [1968].
132

O PAPEL DO MATERIAL DIDÁTICO NA IDENTIDADE


LINGUÍSTICA DE PROFESSORES BONAERENSES

Tatiana Maranhão de Castedo


Ana Berenice Peres Martorelli

Considerações iniciais

Neste estudo, tendo em vista tratar-se de uma análise realizada com


professores oriundos de Buenos Aires, atuantes na cidade brasileira de João
Pessoa, na Paraíba, limitaremo-nos a fazer um traçado sobre a variação
linguística utilizada na zona bonaerense, que compreende a cidade de Buenos
Aires, o estado de mesmo nome e a maior parte do território do estado de La
Pampa. Nosso objetivo é verificar se ditos professores utilizam sua variante em
sala de aula, a fim de comprovar se o material didático interfere na sua
identidade linguística.
Considerando a limitação do espaço, focamos nossa análise em traços
linguísticos mais característicos desta área geográfica, tanto no aspecto fonético
como no morfológico e no léxico. No campo da fonética, nos centramos em
detectar a existência do yeísmo rehilado e ensordecido; do seseo y da aspiração e queda
do /-s/ de coda silábica na fala dos professores envolvidos na pesquisa. Vale
ressaltar que os símbolos utilizados neste trabalho correspondem ao alfabeto
fonético espanhol. Na morfosintaxe, tratamos de observar a presença do voseo
nas aulas destes docentes, tendo em vista ser um traço que, atualmente,
encontra-se estendido a todos os grupos sociais bonaerenses e a todos os estilos
de fala, desde os mais informais aos mais formais. Já a área lexical foi abordada
de maneira mais superficial, trazida à tona apenas nas verificações de falas que
fogem à variação utilizada na Cidade de Buenos Aires.
Dentro de um panorama atual da realidade linguística do espanhol
bonaerense, podemos chamar atenção para a falta de um atlas linguístico com
isoglossas definidas que pudessem colaborar com estudos mais fidedignos em
relação à precisão dos limites de cada variedade das zonas regionais hoje
definidas na República Argentina: bonaerense, litoral, nordeste, noroeste,
central, cuyano e patagônia.
Diante da nossa realidade de mercado, é sabido que a maioria dos
manuais didáticos utilizados no Brasil são provenientes de editoras espanholas,
motivo pelo qual os professores acabam sofrendo uma forte influência da
133

variante peninsular. Sendo assim, nossa hipótese é de que os professores


bonaerenses erradicados na cidade de João Pessoa ou brasileiros que façam uso
da variante dessa zona linguística por terem morado lá ou serem filhos de
nativos, acabam deixando sua variedade à margem e absorvem aquela que é
apresentada pelo guia didático utilizado pela instituição onde leciona, total ou
parcialmente.
O corpus do trabalho tem como base a gravação de aulas de cinco
professores de espanhol, atuantes na cidade de João Pessoa, todos possuidores
da variedade bonaerense, ou por serem nativos ou por terem estudado e
morado naquele país. Aqui, dois dos cinco professores incluem-se neste último
perfil.
Para desenvolver uma investigação como esta, que busca detectar o uso
de uma variedade fonética, morfossintática e léxica em sala de aula, faz-se
necessário inseri-la dentro de uma base teórica pautada na sociolinguística
variacionista, segundo Labov (1963, 1964, 1972) e nos conceitos de identidade
linguística (CELANI, 2010). Com o intuito de comprovar nossa hipótese, as
gravações foram quantificadas, a fim de verificar a ocorrência dos critérios
escolhidos e anteriormente citados, na fala dos professores que foram gravados
ao ministrar suas aulas. Cabe aqui destacar que, embora tenhamos selecionado
alguns critérios que julgamos mais característicos na fala de bonaerenses, não
significa ignorar outros que porventura viessem a surgir no desenvolver da
pesquisa.

El Espanhol bonaerense

O distanciamento da região bonaerense das grandes capitais que


governavam os territórios da coroa em nome do rei e dos principais centros do
Novo Mundo, fazia com que a região, até meados do século XVIII,
representasse uma zona de insignificância econômica, social e cultural.
Consequentemente, isso refletiu-se no baixo crescimento demográfico, o que
comprovava o reduzido atrativo para estabelecer-se sobre essas terras.
Contudo, por volta da segunda metade do século XVIII, modificações nas áreas
econômica, política e cultural impulsionaram a uma forte transformação nesse
cenário.
No setor econômico, houve abertura do mercado para o
estabelecimento de franquias no Río de la Plata e o impulso econômico que
estimulava reformas; complementado no setor político pela criação do
Virreinato e do consulado y; no âmbito cultural, a implementação da primeira
134

escola de nível superior de Buenos Aires, levaram a um consequente aumento


populacional. Ali se estabeleceram membros da corte e altos funcionários,
trazendo consigo a formação de uma elite até então não vista.
Entre o final do século XIX e o início do XX, produz-se um
incremento populacional ocasionado pela forte onda migratória procedente do
interior e de países vizinhos, transformando Buenos Aires na atual metrópole
que hoje representa.
Segundo Fontanella de Weinberg (1987) é possível que o prematuro
isolamento de Buenos Aires tenha sido o principal motivo de desenvolver
alguns traços que diferenciam a variedade linguística dessa zona do espanhol
peninsular e de grande parte dos países da América hispânica, a exemplo do
voseo e do yeísmo rehilado.
Para melhor direcionar o entendimento da análise do nosso corpus,
trataremos de ressaltar os fenômenos linguísticos relativos à variedade
bonaerense ressaltados nesta pesquisa.

Fenômenos fonéticos

É de praxe a busca incessante pela diferenciação que a maior parte da


literatura vem procurando estabelecer entre a Fonética e a Fonologia. Contudo,
primeiramente, devemos lembrar que ambas têm o mesmo objeto de estudo, ou
seja, estudar os sons da fala, mas sem esquecer que não se pode entender de
fonologia sem uma compreensão do que lhe compete à fonética. Isto posto,
ressaltamos a importância de conhecer sobre cada uma dessas áreas,
procurando estabelecer bem os seus domínios. Qualquer enunciado emitido,
desde um simples cumprimento a um discurso mais complexo, pressupõe
requisitos básico que envolvem desde o adequado funcionamento dos órgãos
envolvidos, a exemplo do cérebro, dos pulmões, da laringe, do ouvido, dentre
outros, responsáveis pela produção e audição (percepção) dos sons da fala até o
reconhecimento da pronúncia de cada um dos interlocutores, pois, mesmo que
os interlocutores tivessem os órgãos da fala e da audição em perfeito estado,
essa comunicação poderia não ter sucesso se um deles não compreendesse a
língua falada pelo outro. A partir dessas premissas, torna-se mais fácil entender
que a fala pode ser descrita sob diferentes aspectos: o da Fonética e o da
Fonologia.
A fala pode ser estudada do ponto de vista fisiológico, a partir do
entendimento da produção dos sons propriamente ditos. Para isso, estão
envolvidos nesse processo os órgãos responsáveis pela maior parte dos sons da
135

fala que são a língua e a laringe, este último, responsável pela produção da voz.
Aspectos relacionados aos sons gerados por esses órgãos, bem como a ótica do
ouvinte ao processar a onda sonora no momento de percepção dos sons que
lhe conferem um sentido, são de total responsabilidade da Fonética
(CRISTÓFARO SILVA, 1999)
É unânime a concepção de que a fala exerce a função de inferir
significado aos sons por ela emitidos, mas há de convir que, para isso, deve
estar organizada em uma atividade sistematicamente esquematizada. Cabe à
Fonologia estudar essa organização que é inerente a cada língua. Dessa maneira,
enquanto a Fonética se encarrega de descrever, por exemplo, como podem ser
descritos e percebidos alguns segmentos consonantais (consoantes), a
Fonologia se encarregaria de explicar essas consoantes dentro de um sistema
linguístico, a partir de seus traços opositivos.
Para melhor entender, faremos uma revisão sobre os fenômenos
fonéticos analisados nesta pesquisa:

El Seseo

O seseo é um dos fenômenos fonéticos do espanhol bonaerense que


consiste na ausência de oposição entre sibilantes dentales, representadas
graficamente por („z‟ e „c‟) e alveolares, („s), ou seja, a realização dos fonemas
/Ɵ/, /s/coincidem. Vale lembrar que, na língua espanhola, o grafema („z) não
pode realizar-se antes de “i” e “e”, sendo assim substituído por /s/, nesses dois
contextos fonológicos, incluindo-se, consequentemente, na classificação das
sibilantes desta língua. As sibilantes são fricativas que se produzem com uma
abertura entre a língua e o paladar, que se estreita horizontalmente e se dilata
verticalmente (Rebollo, 1996: 369 ). A modo de exemplificação, trazemos
algumas realizações destes fonemas na variedade bonaerense, em posição de
ataque, isto é, quando encontra-se no início das palavras ou em uma posição
interior, porém introduzindo a sílaba. Veja na tabela ilustrativa seguinte:
136

Tabela 1: Posição de Ataque de /Ɵ/ e /s/.


POSIÇÃO DE ATAQUE
(Início absoluto ou posição interior)
Grafema Fone Fonema Exemplo
<z> ou <c> [Ɵ] /Ɵ/ Zorro
Razón
Cine
Cacería
<s> [s] /s/ Sierra
Bolsa
Fonte: Elaboração nossa.

De acordo com Vidal de Battini (1964), verificou-se fenômenos de


ceceo19 no estado de Buenos Aires entre idosos crioulos da zona rural de antigos
povoados. Nas últimas décadas, ainda são vistas ditas realizações, apenas em
homens maiores de sessenta anos, restritos ao meio rural. Contudo, para saber
da persistência deste traço fonético, seria necessário fazer um estudo da área
rural bonaerense, a fim de detectar sua persistência ou possível
desaparecimento.

Aspiração e queda de /-s/ no final de sílaba e palavras

É praticamente generalizado o traço da aspiração e/ou queda do /-s/


no final de sílabas e palavras em quase toda a Argentina, sobretudo em Buenos
Aires. Na região bonaerense, há perda em posição final de palavra e aspiração
em posição pré-consonantal. O grau da perda do /-s/ final está intimamente
atrelado ao fator socio educacional e sexo dos falantes, com registros de maior
intensidade do fenômeno nos níveis mais baixos e no sexo masculino, tendo
em vista tratar-se de uma característica estigmatizada e, consequentemente,
mais absorvida pela classe masculina que pela feminina.
Segundo Fontanella de Weinberg (1974), entre os falantes cultos de
Buenos Aires, a aspiração sobrepõe-se à perda justamente por entender este
último fenômeno como um traço estigmatizado.
Segundo Lipsky (2004), a posição do /-s/ final de sílaba pré-vocálica,
como em [los estudiantes], tendo em vista que a realização sibilante é

19 Ceceo um fenômeno fonético da língua espanhola que consiste em pronunciar a


letra s com um som similar ao que corresponde à letra z e c (esta última quando se
encontra antes de e, i, ou seja, com o som interdental praticado na variante do espanhol
Ibérico). (reveja a fonte se é mesmo times ou a do texto)
137

predominante nas classes socioeconômicas superiores, encontra-se


estigmatizada sua aspiração, em Buenos Aires, neste contexto. Não obstante,
sua realização aspirada segue o mesmo caminho do debilitamento em muitas
outras variedades do espanhol argentino, levando-nos a crer em uma
acomodação futura da língua neste sentido, nas classes socioeconômicas mais
elevadas.
Neste sentido, Vital de Batini (1964) ressalta que, embora em nenhuma
zona da Argentina a perda do /-s/ final torne-se fonologicamente compensada
pelo relaxamento vocálico, como é o caso no leste andaluz, a aspiração do /-s/
pode afetar a vogal precedente que adquire uma pronúncia significativamente
mais alongada. Os casos que mais chamam atenção são encontrados em
falantes rurais sem instrução do centro da Argentina.

O yeísmo

O yeísmo é um fenômeno que corresponde à coincidência da pronúncia


de palatais como as encontradas em palavras como lluvia e pollo, com as de yo e
playa, característico de toda a região bonaerense, ou seja, o fonema /ʎ/,
representante do grafema <ll> da língua espanhola fusiona-se com o fonema
/y/, representante do grafema <y> que, por sua vez, realizam-se da mesma
forma, através de uma pronúncia fricativa conhecida como žeismo ou
rehilamiento, representado por [ž].
Embora o som representante desses fonemas seja o [ž], a partir de
1930, vem sendo observado na população mais jovem de Buenos Aires a
prática de sua pronúncia de forma ensurdecida, como [š]. Sendo assim, dita
comunidade de falantes vêm realizando o primeiro fonema da palavra yema de
forma idêntica ao do encontrado em show.
Para Rojas (1980) o fato de que o žeismo ensurdecido encontre-se
concentrado em Buenos Aires, a pronúncia rehilada de /ʎ/ e /y/, ainda está
mais estendida no país de forma geral e alcança grande parte da Patagônia,
norte de Tucumán e Salta. Além disso, Fontanella de Weinberg (1973), aponta
para a pronúncia rehilada de /y/ como originária de Buenos Aires, sendo
posteriormente expandida ao resto do país como forma normativa de prestígio
associada ao espanhol da Argentina no mundo inteiro.
138

Fenômeno morfossintático

O estudo da língua pode dar-se através da análise das palavras


isoladamente ou a partir da função que dita palavra adquire dentro de uma
oração. Quando o objeto de estudo centra-se na palavra, estamos diante de um
estudo meramente morfológico, enquanto que, ao buscarmos sua função
dentro da oração, surge uma análise mais profunda, chamada de análise
sintática. Quando a análise ocorre no âmbito da palavra e da oração, ou seja,
quando o estudo envolve classe gramatical e função sintática, nos vemos diante
de um estudo morfossintático.
Neste trabalho, traremos à tona o uso de um pronome pessoal de
segunda pessoa do singular da língua espanhola, não sob o eixo da análise
morfossintática em si, mas do conhecimento morfológico da palavra, com
vistas a analisar o seu uso dentro da sociedade bonaerense.

O voseo
O voseo é um fenômeno que compete com o tuteo no mundo hispânico
e corresponde ao uso do vos e/ou suas formas verbais como representante do
pronome pessoal de segunda pessoa do singular. Este traço apresenta grande
interesse por tratar-se de uma característica marcante no espanhol bonaerense,
se não a mais, e que se diferencia do espanhol peninsular que, por sua vez, já
não faz uso deste pronome desde tempos muito remotos.
No espanhol bonaerense, especificamente, corresponde a um
fenômeno totalmente generalizado para todos os níveis sociolinguísticos, bem
como a todos os estilos, tanto na língua oral como escrita. Esse fenômeno não
era visto até meados do século XX, tendo em vista que, em contexto orais de
maior formalidade ou na língua escrita, o tú substituía o vos (VIDAL de
BATTINI, 1964).
Atualmente, o uso do voseo é generalizado em relações íntimas em todos
os estilos orais e escritos, incluindo registros orais mais rebuscados como
cinema, rádio, televisão e atos oficiais. O mesmo ocorre na língua escrita; na
publicidade; em traduções de peças de teatro ou de artigos de revista; em
entrevistas jornalísticas ou literárias; no ensino, representado através dos livros
de leitura na escola primária, secundária e inclusive na comunicação entre
Ministério de Educação Nacional e população.
O vos não dispõe de pronomes particulares que a ele se refiram, motivo
pelo qual faz empréstimo dos equivalentes à pessoa do tú, ficando-lhe reservado
139

o seguinte paradigma pronominal: vos - te (pronomes oblíquos) e vos – tu – tuyo


(possessivos).
De acordo com Castedo (2013), o voseo mais representativo é aquele
derivado da conjugação das segundas pessoas do plural monotongadas, ou seja,
as terminações –áis, -éis, correspondentes às terminações das segundas pessoas
do plural dos verbos de primeira e segunda conjugações do presente do
indicativo e as terminações –éis, -áis, correspondentes às terminações das
segundas pessoas do plural dos verbos de primeira e segunda conjugações do
presente do subjuntivo, respectivamente, perdendo o “i” e resultando em
formas como: tomás, bebés, sos no indicativo e tomés, bebás e seás, no subjuntivo.
Vale ressaltar que, para os verbos de terceira conjugação, por tratar-se da única
vogal da terminação, o “i” permanece na terminação do vos, havendo uma
coincidência entre as conjugações do vos e do vosotros. No imperativo, há a perda
do -d- final da segunda pessoa do plural e o acréscimo de um acento gráfico, o
agudo, ocasionando as formas cantá, tené, vení. Todas essas formas não se
mantêm no uso peninsular após o século XVII.
Observe no quadro seguinte, as conjugações do vos nos tempos e
modos acima citados:

Quadro 2: O uso do voseo em diferentes tempos verbais.


tú andas Presente do vos andás
indicativo
tú andes Presente do vos andés (o vos
subjuntivo andes)
anda tú Imperativo andá vos
Fonte: Elaboração nossa.

No presente do subjuntivo, as formas vos andés ou vos andes são usadas


em contextos semânticos e sintáticos diferenciados, ficando a forma vos andes
reservada a usos propriamente subjuntivos, enquanto que em contextos
imperativos negativos, são vistas as duas formas, vos andés ou vos andes. Segundo
Fontanella de Weinberg (1979), a forma no cantés adquire conotação de uma
ordem taxativa, enquanto que a forma no andes indica uma ordem mais cordial.
Há de convir que há outras formas vigentes do voseo constituídas pelo
pronome de tratamento vos seguido pelo verbo conjugado na segunda pessoa,
seja do singular ou plural, sem nenhuma mudança, tanto no presente do
indicativo como do subjuntivo, bem como em outros tempos verbais como
pode ser observado nos seguintes exemplos: vos cantáis, vos ponéis, vos cantas, vos
pones, vos sales; vos tengáis, vos tengas; vos sabras, vos das, vos estás, vos vas, vos ves, vos
140

eras, vos tenías, vos tomabas, vos pudieras, etc. Além dessa probabilidade, também é
possível observar, no Chile, a retirada do “s” final da segunda pessoa do plural,
vosotros, como visto nos exemplos vos cantai, vos sabei, vos bebei, etc. Porém
também torna-se fundamental destacar que estas últimas não se tratam de
formas prestigiosas do vos nem serão aqui abordadas, tendo em vista que não
abrange a zona linguística aqui investigada.

Aspectos lexicais

De acordo com Moreno de Alba (1992), o léxico da variedade


bonaerense apresenta peculiaridades que o torna tão característico e diferente
das demais variedades, tanto peninsular como hispano-americanas.
O léxico do espanhol bonaerense, sem dúvida, é constituído na sua
maior parte, de uma gama léxica oriunda do espanhol da Espanha, porém, o
fato de ser originário deste país, não significa que seja compartilhado com a
Península ibérica na atualidade, pois muitos dos termos herdados, já obsoletos
no espanhol peninsular, são até hoje mantidos na variedade bonaerense.
Como bem destacamos no início do trabalho, os aspectos lexicais não
configuram o principal teor desta investigação, motivo pelo qual não nos
aprofundaremos no tema, nem trataremos de fazer uma análise exaustiva sobre
o léxico bonaerense. Aqui, trataremos apenas de destacar as palavras que,
porventura, venham a destoar deste contexto semântico, detectadas através das
gravações das aulas dos professores envolvidos no corpus deste trabalho.
Apenas com o intuito demonstrativo, trazemos como amostra um
quadro com alguns termos bonaerenses que diferenciam esta área linguística da
zona do espanhol peninsular:

Quadro 3: Léxico bonaerense vs léxico peninsular.


ESPANHOL BONAERENSE ESPANHOL PENINSULAR
DALE VALE
PIBE TÍO
POLLERA FALDA
VIDRIERA ESCAPARATE
ESTANCIA FINCA
BOLUDO GILIPOLLAS
Fonte: Elaboração nossa.
141

Metodologia

Considerando o aspecto metodológico, podemos ressaltar duas formas


diferentes de estudar a língua, sendo a primeira de cunho quantitativo dos
dados, coletados a partir de um grupo maior de pessoas, feita através da
observação de fenômenos linguísticos e sociais característicos de uma estrutura
geral, isto é, aquelas que ultrapassam traços individuais e alcançam grupos mais
amplos, configurando uma comunidade de fala. A outra maneira trata de fazer
estudos qualitativos, de cunho etnográfico, a partir dos atos de fala de grupos
mais reduzidos, a fim de aproximar fenómenos linguísticos e sociais relativos a
um só falante ou a um grupo deles.
Tendo em vista as análises de eixo qualitativo e quantitativo realizadas
neste trabalho, podemos afirmar que as duas vertentes de estudos
sociolinguísticos foram aqui contempladas, a partir da gravação da fala de um
grupo de 5 de professores detentores da variedade do espanhol bonaerense.
Dos cinco professores, 3 eram nativos e 2 brasileiras, tendo uma morado em
Buenos Aires para realizar estudos de pós-graduação, além de ser casada com
porteño (oriundos de Buenos Aires) e a outra, ser filha de porteño e ter adquirido o
idioma ao longo dos anos, desde criança, sendo classificada como falante
bilíngue.
Como todo transcurso de uma investigação sociolinguística,
começamos traçando o objetivo principal do nosso estudo que trata de verificar
se professores de espanhol detentores da variedade bonaerense utilizam sua
variante em sala de aula, a fim de comprovar se o material didático interfere na
sua identidade linguística.
Em face à limitação do espaço dedicado a este trabalho, selecionamos
para nossa análise alguns traços linguísticos marcantes que caracterizam a zona
linguística de Buenos Aires, tanto nos aspectos fonético, morfossintático como
léxico. Logo, encontram-se entre nossos objetivos específicos, detectar, no
campo fonético, a presença do yeísmo rehilado e ensordecido; do seseo y da aspiração
e queda do /-s/ de coda silábica na fala dos professores envolvidos na pesquisa;
no âmbito morfossintático, trataremos de identificar a presença do voseo nas
aulas deste docentes, tendo em vista ser um traço generalizado na atualidade em
todos os grupos sociais bonaerenses e, no aspecto léxico, buscaremos registrar
as variantes que não se adaptam ao dialeto bonaerense.
Como é sabido, dentro da nossa realidade de mercado, a maioria dos
manuais didáticos disponibilizados no Brasil é originário de editoras espanholas,
142

motivo suficiente para exercer uma forte influência da variedade peninsular


sobre os demais dialetos da língua espanhola, não sendo diferente com o
bonaerense. Desta maneira, nossa hipótese provém da ideia de que professores
bonaerenses, erradicados em João Pessoa, sofrem influência da variedade
peninsular apresentada nos guias didáticos utilizados pela instituição onde
lecionam e acabam deixando à margem alguns traços do seu próprio dialeto, de
forma total ou parcial, levando-os a um distanciamento da sua identidade
cultural e linguística
O corpus do trabalho constitui-se da gravação de aulas de 5 professores
de espanhol, atuantes na cidade de João Pessoa, todos possuidores da variedade
bonaerense. Os áudios auxiliaram a comprovar nossas hipóteses que, por sua
vez, buscavam verificar a consciência linguística dos docentes analisados, a fim
de observar se preservavam sua identidade linguística diante da variedade
ibérica apresentada nos manuais didáticos por eles empregados.
Para este estudo, o material foi coletado em diferentes instituições de
ensino da cidade de João Pessoa, Paraíba, compreendidas entre
estabelecimentos privados e públicos. O intuito era gravar aulas dos professores
dessas instituições, a fim de detectar traços regionais do dialeto dos mesmos
para observar sua aproximação ou distanciamento em relação a sua identidade
linguística. Nesta pesquisa sociolinguística, a amostra de professores foi
escolhida de forma não aleatória, tendo em vista o caráter fixado para selecionar
os participantes: pertencer à comunidade de professores que fazem uso da
variedade bonaerense; ser porteño ou ter morado em Buenos Aires e ser
professor de alguma instituição de ensino de língua espanhola na cidade de João
Pessoa.
Tendo em vista a disponibilidade de duas diferentes técnicas de coleta
da língua oral, a de observação e a de entrevistas, podemos destacar que aqui,
embora não tenhamos feito observações e registros da língua em contextos
naturais -critério sine qua non para as pesquisas de eixo etnográfico -, foram
feitas gravações que nos deram respaldo para observar a manutenção ou
distanciamento da variação de professores pertencentes à variedade bonaerense
em sala de aula. A técnica da entrevista também foi utilizada, a partir da
aplicação de um questionário, com a intenção de perceber a tendência dos
professores envolvidos na pesquisa, em relação à aproximação ou
distanciamento de sua variedade dialetal de origem, no âmbito da sala de aula.
Entre as técnicas de entrevistas mais utilizadas pela sociolinguística,
encontramos 1) a conversação livre, que dá total liberdade ao informante para
143

discorrer sobre o assunto questionado; 2) a conversação dirigida, que limita o


informante a falar somente sobre o que foi programado e 3) a conversação
semi-dirigida que trata de apresentar temas previamente planejados para
garantir certa homogeneidade ao tema, na fala de todos os informantes.
Neste trabalho, utilizamos gravações de aulas específicas, de
professores também previamente escolhidos, a fim de identificar traços
linguísticos característicos ao dialeto bonaerense que desse respaldo a identificar
a manutenção ou distanciamento destas peculiaridades em sala de aula de
professores porteños para corroborar ou refutar a hipótese da investigação:
verificar se a influência da variedade peninsular apresentada nos guias didáticos
utilizados pelas instituições onde lecionam ditos professores acaba deixando à
margem alguns traços do seu próprio dialeto, de forma total ou parcial,
levando-os a um distanciamento da sua identidade cultural e linguística.

Resultados e discussões

Neste trabalho, intitulado “O papel do material didático na identidade


linguística de professores bonaerenses”, tratamos de investigar a variação
linguística utilizada por professores bonaerenses no âmbito da sala de aula, a
fim de verificar se sofrem alguma influência dos manuais didáticos por ele
utilizados que lhes acarrete mudanças na sua variação diatópica e consequente
desvio da sua identidade linguística e cultural.
Para isso, apresentaremos os resultados oriundos da coleta das 5
gravações feitas com professores detentores da variação bonaerense que aqui,
serão identificados através de letras, representadas de A a E. Os resultados
serão apresentados de forma qualitativa e quantitativa. Em relação à análise do
material didático, pela limitação da extensão do artigo, nos resultados,
aparecerão somente os comentários gerais da avaliação do material, contudo,
disponibilizamos seus títulos, caso o leitor tenha a curiosidade de verificar com
mais riqueza de detalhe.
O professor A é argentino, oriundo da cidade de Buenos Aires, reside
no Brasil há mais de 20 anos, formado em Letras e atua como professor de
espanhol em escolas da rede privada, da educação básica e em cursos livres de
idiomas.
Desde o início da aula, esse professor adaptou sua variedade dialetal à
utilizada pelo manual didático. Neste caso, o material, oriundo da Editora
Waldir Lima, editado no Brasil por diferentes escritores hispânicos, com um
144

método audiovisual, composto por aúdio e imagens que auxiliam na explicação


do docente e no consequente entendimento do aluno, trata-se de um método
que, no campo morfossintático, não traz o uso do vos, como pronome pessoal
de segunda pessoa do singular, nem sequer como nota explicativa, sendo o
único pronome de segunda pessoa do singular utilizado, o tú. No plural, o uso
do ustedes como pronome pessoal de terceira pessoa do plural aparece sozinho,
sem a concorrência do vosotros. O professor A faz uso do ustedes no plural,
condizente com sua variedade de origem, a bonaerense, mas respeita a limitação
do material em relação ao uso do pronome de segunda pessoa do singular tú,
não introduzindo ao aluno o conhecimento de uma variedade a mais da língua,
relativa a sua variante dialetal que faz uso do vos.
Em relação às característica fonéticas analisadas nesta pesquisa,
percebe-se claramente a manutenção da aspiração do /-s/ de coda silábica e o
uso rehilado dos fonemas /ʎ/, equivalente al dígrafo ll, de llave e lluvia e /y/,
equivalente à letra y, de suyo e mayonesa, aproximando-se dessa maneira, da sua
variedade de origem.
No campo semântico, não se pode observar a presença de nenhum
termo referente a uma variedade léxica exclusiva a uma zona dialetal diferente
da bonaerense, a exemplo de vale, tão usado por professores no momento de
confirmar se alguma explicação foi entendida pelos alunos. Contudo, também
não se observou nenhuma forma equivalente à sua variedade específica, como
por exemplo, “dale”, ficando-nos a dúvida em relação ao uso ou não de sua
variedade léxica no âmbito de sua aula, ou pelo menos, a modo de acréscimo.
Torna-se importante mencionar o aparecimento, na gravação, da
observação feita por este professor, de que não fazia uso de sua variedade
dialetal nas aulas que, naquele ambiente, não era ele mesmo, pois o material
didático utilizado pela escola não permitia o uso de outras variações linguísticas.
Na verdade, nada impede que um professor possa acrescentar informações aos
alunos, nem que seja como mera nota explicativa, como meio de ampliar o
universo linguístico dos aprendizes.
A seguir, mostraremos algumas falas deste professor, acompanhadas
dos traços detectados em cada uma delas, seja de cunho morfossintático,
fonético ou semântico. Vale ressaltar que, para os demais informantes,
seguiremos a mesma lógica. Vejamos alguns exemplos coletados da gravação
deste professor:
145

Tabela 4: Traços linguísticos da gravação do professor A.


PROFESSOR A
FALA TRAÇO LINGÜÍSTICO
DETECTADO
Hoy ustedes van a aprender sobre las Uso do ustedes para referir-se à
viviendas. segunda pessoa do plural.
Aspiração do /-s/ en ustedes
em las e em viviendas.
¿Tú vives en una casa propia o alquilada? Uso do tú em detrimento do
vos.
Aspiração do /-s/ vives.
¿Cuándo te cambias a tu nuevo piso? Uso do tú em detrimento do
vos.
Aspiração do /-s/ em cambias.
¿Ya tienes la llave de tu nuevo piso? Yeísmo rehilado em ya e em
llave.
Uso do tú em detrimento do
vos.
Aspiração do /-s/ em tienes.
¿Tú pagas tasa de condominio? Uso do tú em detrimento do
vos.
Aspiração do /-s/ em pagas.
Ustedes ya pueden hacer los ejercicios. Uso do ustedes para referir-se à
segunda pessoa do plural.
Aspiração do /-s/ em ustedes,
em los e em ejercicios.
Yeísmo rehilado em ya.
Fonte: Elaboração nossa.

A professora B, também de origem argentina, mais especificamente,


da cidade de Buenos Aires, residente no Brasil há mais de 30 anos, com
experiência na educação básica e em cursos livres de idiomas em diversas
instituições na cidade de João Pessoa.
A docente iniciou a aula mostrando-nos o material utilizado pela escola
para o nível da turma que estava lecionando. Tratava-se de um livro da Editora
espanhola Difusión e, por sua origem, faz uso de uma variedade peninsular que,
por sua vez, influencia na variedade escolhida por esta professora.
A gravação desta aula foi, talvez, a mais surpreendente, pois nos
deparamos com um cenário que representava uma verdadeira exclusão dos
traços linguísticos peculiares aos bonaerenses por parte desta professora.
146

Durante a aula, ela mesma verbalizou que suas aulas representavam um palco,
tendo em vista não utilizar sua própria variedade, a fim de evitar confusões na
cabeça do aluno que dispunha de um material didático com uma variação
diferente da dela, a peninsular. Logo, interrompe a aula para afirmar que ela
assume o papel de uma personagem no âmbito de sala de aula. Desta maneira,
ela tratava de seguir com afinco a variedade usada pelo manual didático, com
vistas a não “confundir” a cabeça do aluno e para acostumá-los à variedade
dialetal espanhola, pois caso eles viajem algum dia a Espanha, não teriam
problemas de identificar os traços linguísticos peculiares àquela comunidade de
fala.
Ao deparar-nos com tais afirmações, dialogamos com Hall (2014, p.
23) no que diz respeito às diferentes identidades assumidas pelo professor em
diferentes contextos, quando afirma que,

O sujeito assume identidades diferentes em diferentes


momentos, identidades que não são unificadas ao redor de
um “eu” coerente. Dentro de nós, há identidades
contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal
modo que nossas identificações estão sendo
continuamente deslocadas.

Observamos também que as afirmações da professora em sala de aula


configuram um preconceito a sua própria variedade dialetal, ao considerá-la
espúria diante da variação por ela considerada de maior prestígio, a variedade
dos conquistadores. Com isso, ela julga impossível a possibilidade de o aluno
escolher conhecer a Argentina ou qualquer outro país hispânico no lugar de ir a
Espanha e além disso, preserva a falsa ideia de que haja um espanhol de mais
prestígio, tão defendida por Andrés Bello, ao afirmar que: “No se crea que
recomendando la conservación del castellano sea mi ánimo tachar de vicioso y espurio todo lo
que es peculiar de los americanos”. A partir do momento que ela deixa de assumir a
variedade bonaerense, a informante demonstra anular sua identidade linguística
ao ministrar aula.
Desta maneira, nos deparamos com uma realidade não esperada, com a
preservação do uso do pronome tú em detrimento do tão cultuado vos
bonaerense e inclusive do vosotros em substituição ao ustedes para referir-se a
segundas pessoas do plural.
No âmbito fonético, a professora incorpora todas as demais
características da variedade espanhola, ou seja, o uso do ceceo, do /-s/ de final de
147

sílaba com a pronúncia sibilante e não mantém a pronúncia rehilada dos


fonemas /ʎ/, equivalente ao dígrafo ll, de llovizna e lleno e /y/, equivalente à
letra y, de tuyo e haya. Ressaltamos em sua fala, o momento em que a mesma
elogia uma aluna, afirmando ser a que melhor pronuncia o espanhol, por
utilizar a pronúncia interdental dos fonemas /Ɵ/ e /s/.
Além de todas as características morfossintáticas e fonéticas utilizadas
de maneira um tanto artificial, também incorporou uma variante léxica
representada pela expressão vale para substituir o dale de seu dialeto originário.
Observa alguns exemplos retirados da gravação de sua aula:

Tabela 5: Traços linguísticos da gravação do professor B.


PROFESSOR B
FALA TRAÇO LINGÜÍSTICO
DETECTADO
Voy a poner la audición para que vosotras Uso do vosotros em
escuchéis detrimento do ustedes
Tienes que colocar lo que falta, ¿vale? Uso do tú em detrimento do
vos/ Uso do vale para
substituir o dale argentino.
Presta atención como empiezan las frases. Uso do tú em detrimento do
vos
Tú tienes tapiz… Uso do tú em detrimento do
vos
Esa parte yo quería dejar para que hagáis en Uso do vosotros no lugar do
casa. ustedes

Fonte: Elaboração nossa.

A professora C é brasileira, mas casada com argentino. Formada em


Letras português e inglês no Brasil e doutora pela Universidade de Buenos
Aires (UBA), motivo que a obrigou a morar em Buenos Aires e aprofundar
seus conhecimentos acadêmicos e da língua espanhola nesse país. Leciona em
uma universidade da rede pública federal, no curso de Letras espanhol, na
cidade de João Pessoa.
Na aula observada, a docente fez a análise do poema “El Cisne”, do
nicaraguense Rubén Darío que, embora seja oriundo de um país hispânico,
sofreu imensa influência da poesia espanhola. Considerado o pai do
modernismo, Darío deu à luz a este novo movimento literário que unia ideias
do romantismo e do simbolismo, sempre superando-as. Ao escrever “El
148

Cisne”, estava tentando demarcar esta nova fase artística do Modernismo,


caracterizada pelo foco na elegância da estética, da harmonia e do ritmo além de
imprimir um sentimento anti-industrial e anti-norte-americano, elevando o
trágico do mundo hispânico.
Dita professora foi a única que manteve em sua aula todas os traços
peculiares à variedade bonaerense, incluindo os aspectos fonéticos,
morfossintáticos e léxicos aqui analisados. Tais características podem ser
percebidas através da pronúncia rehilada de /ʎ/ e de /y/, equivalentes al
dígrafo “ll”, nas palavras “sencillez”, “callate”, “bello”, “criollo”, “belleza”, caballeros”
e da letra “y”, de “cuyo” e “yema”, respectivamente. También encontramos o
uso do seseo e do /-s/ aspirado de coda silábica, como “estoy”, “después”,
“ustedes”, etc.
Em relação ao uso do vos, observamos que lhe foi dado primazia em
todos os contextos de uso, em detrimento do tú. No plural, também
observamos a manutenção do ustedes em substituição ao vosotros, características
que apontam claramente para o dialeto bonaerense dentro de sala de aula.
Durante toda a aula, pudemos encontrar um único uso do tú que,
aparentemente, pareceu-nos ocasional.
Quanto à variedade lexical esperada, não observamos o uso do termo
“vale”, normalmente usado pelo professor para confirmar a compreensão dos
alunos em determinadas explicações. Dita palavra, que poderia ter aparecido no
lugar do tão cultuado “dale” bonaerense, não foi verificado em nenhuma
ocasião.
Dessa maneira, concluímos que a preservação da sua variedade
linguística no âmbito da sala de aula deveu-se à liberdade em relação ao uso de
manuais didáticos, pois, ao estar inserida em uma instituição de nível superior,
lecionando uma disciplina da grade curricular de um curso de graduação que,
por sua vez, não exige o uso de um livro didático, o professor sentiu-se mais
livre para escolher sua variação de origem, tendo em vista não sentir-se
pressionado a seguir os passos do material didático nem das influências por ele
impressas, fazendo-lhe, muitas vezes, perder sua identidade linguística e
cultural.
Observa no quadro 3 exemplos de usos da variedade bonaerense na
fala da professora C:
149

Quadro 6: Traços linguísticos da gravação da professora C.


PROFESSOR C
FALA TRAÇO
LINGÜÍSTICO
DETECTADO
Callate, Vera. Uso do vos verbal
Contanos Uso do vos verbal
Aspiração dos /s/
¿Ustedes se acuerdan? Uso do ustedes para referir-
se à 2ª pessoa do plural.
Aspiração dos /s/
Despertate, levantate. Uso do vos verbal
Acuerda que las alas de las águilas son grandes. Uso do tú em detrimento
do vos
Podés contestar de forma descabellada o como Uso do vos verbal
querrás.
Y vos sos fantástica Uso do vos pronominal e
verbal
Aspiração do /s/
Fonte: Elaboração nossa.

A professora D, também é brasileira, mas filha de pai argentino,


motivo pelo qual tem o espanhol como segunda língua, adquirido desde a mais
precoce idade. É formada em Letras espanhol e leciona em instituições tanto da
rede privada como pública, em João Pessoa.
Dita professora iniciou sua aula afirmando não utilizar sua variedade
linguística em sala de aula e, nesse âmbito, explicou que faz a substituição do
fonema /y/ rehilado pelo fonema /i/. Justificou dizendo que a variedade
argentina tem muitos vícios e que não dava para ser contemplada em sala de
aula. Durante a aula, ela dá preferência ao seseo, bem como mantém o aspecto
aspirado do /-s/ em final de sílaba.
O mais curioso desta postura foi que, diferentemente da realidade dos
demais professores, o manual didático utilizado pela escola na qual lecionava,
no nível da turma que foi gravada, apresentava tanto o uso do tú como do vos,
mas mesmo assim, ela não sentiu-se à vontade para optar pela variedade
linguística equivalente à de seu país. Ela fez uso, do início ao fim, do pronome
de segunda pessoa do singular, tú. Já no plural, ela dá preferência à forma
dialetal bonaerense, ustedes para referir-se a segundas pessoas do plural.
Dita professora conjuga o verbo IR no quadro, deixando de fora o vos.
Como a conjugação era a resposta para algumas atividades, ela mesma lamenta
150

de tê-lo feito, intitulando-se como boluda e pelotuda, termos léxicos totalmente


pertencentes à variedade bonaerense. Em contrapartida, a expressão dale, tão
usada para afirmar, concordar, confirmar, etc., foi substituída por vale, escolhida
da variedade dialetal peninsular. Assim como a professora B, ela também anula
a sua identidade linguística, configurando um preconceito linguístico que não
deve existir, a fim de não colocar nenhuma variedade em posição de
superioridade em relação à outra.
Seguem no quadro abaixo exemplos coletados na aula desta professora:

Quadro 7: Traços linguísticos da gravação do professora D.


PROFESSORA D
FALA TRAÇO LINGÜÍSTICO
DETECTADO
Los grupos son pequeños, de máximo 8 Uso do ustedes para referir-se à
alumnos, como ustedes aquí, que son 5. segunda pessoa do plural.
La atención es más dirigida a ustedes. Uso do ustedes para referir-se à
segunda pessoa do plural.
Tú tienes que encontrar las palabras. Uso do tú em detrimento do
vos
¿Qué vas a hacer de que salgas de aquí? Uso do tú em detrimento do
vos
¿Ustedes se acuerdan que hicimos una Uso do ustedes para referir-se à
agenda? segunda pessoa do plural.
Completa ahí con los horarios. Uso do tú em detrimento do
vos
Les voy a traducir al español, ¿vale? Uso do vale no lugar do dale.
Pero no te olvides. Uso do tú em detrimento do
vos

Fonte: Elaboração nossa.

O profesor E é argentino, de Buenos Aires, residente no Brasil há mais


de 20 anos. Encontra-se em formação superior e leciona espanhol em escolas
da rede privada, tanto do ensino básico como de cursos livres de idiomas.
Na sua aula, utiliza uma variação diferente da sua de origem ao adaptar
sua fala ao material didático que, por sua vez, usa a variedade espanhola,
embora seja editado no Brasil. Ao começar a aula, o professor conjuga no
quadro os verbos ser e ir no pretérito indefinido, utilizando o tú como pronome
relativo à segunda pessoa do singular como referente, divergindo com a
variedade bonaerense que dá preferência ao vos em contextos equivalentes.
151

Logo, ao perguntar-lhe a um aluno pelo gosto pelos filmes, o professor utiliza o


tú para dirigir-se a ele. Logo, continua usando o mesmo pronome para fazer
perguntas a uma segunda pessoa, exceto em uma ocasião, quando deixa escapar
um inusitado vos, talvez pela força de uso espontâneo de sua variedade de
origem. Não conseguimos, nesta aula, identificar o pronome de segunda pessoa
plural utilizado por ele, tendo em vista ter-se dirigido aos alunos
individualmente.
Quanto aos aspectos fonéticos, pudemos observar uma concorrência
entre sua variedade de origem, a bonaerense, e a variedade usada pelo material
didático. Ora ele utilizava o /y/ rehilado ora o usa com o som de /i/. O mesmo
não aconteceu com o /ʎ/, que foi usado com o som do lh do português, visto
na palavra rodillas, e não com o som peculiar à variação bonaerense, que
também traz a pronúncia rehilada. Em relação ao /-s/ de final de silábica,
pudemos observar uma alternância entre as variedades bonaerense, com a
pronúncia aspirada, ora a variante sibilante peculiar à variação de uma das
regiões espanhola. Em toda a audição foi possível verificar a manutenção do
seseo.
Não foi detectado o uso do termo vale na fala deste professor durante a
gravação desta aula, mas também não foi vista a utilização equivalente à
variedade bonaerense dale, deixando-nos alheios à preferência dele por uma ou
outra forma.
Veja algumas realizações da aula do professor E no quadro abaixo:

Quadro 8: Traços linguísticos da gravação do professor E.


PROFESSOR E
FALA TRAÇO LINGÜÍSTICO
DETECTADO
¿Te gusta ir al cine o prefieres ver películas en Uso do tú em detrimento do
tu casa? vos
¿No vas nunca al cine? Uso do tú em detrimento do
vos
Tú eres demasiado pobre. Uso do tú em detrimento do
vos
¿Estudias español sin ayuda o alguien te Uso do tú em detrimento do
ayuda? vos/ /y/ rehilada
Cuéntame, ¿cómo celebran la navidad en tu Uso do tú em detrimento do
casa? vos
¿Sabés quién fue tu primer profesor/primera Uso do vos
profesora de español?
152

¿Ya fuiste campeón de algo? /y/ rehilada/ Uso do tú


Y qué, ¿tiene problema en las rodillas? /ʎ/ como <lh> del
portugués.
Cuando tú no consigues oír bien, ¿tú Uso do tú em detrimento do vos
colocas alcohol en el oído y te sale el agua?
Fonte: Elaboração nossa.

Veja a seguir um quadro geral que aponta os traços fonéticos,


morfossintático e léxicos investigados neste trabalho, proporcionando-nos, em
números quantitativos, o percentual de cada característica pesquisada, com
vistas a observar quais deles foram mantidos e quais foram deixados à margem
no âmbito escolar destes professores;

Quadro 9: Traços morfossintático, fonéticos e léxicos analisados na pesquisa.


Voseo Seseo Aspiraçao Yeísmo Uso de
do /-s/ vale ou
final de outro
sílaba termo
Sim Não Sim Não Sim Não Sim Não Sim Não
Prof. X X X X X
A
Prof. X X X X X
B
Prof. X X X X X
C
Prof. X X X X X
D
Prof. X X X X X
E
Total 20% 80% 80% 20% 70% 30% 40% 60% 40% 60%
Fonte: Elaboração nossa.

A tabela acima mostra o resultado final de nossa pesquisa que aqui,


tratou de analisar a presença ou ausência do voseo, do seseo, da aspiração ou
queda do /-s/ final de sílaba, do yeísmo e de termos léxicos peculiares à
variedade linguística de Buenos Aires na fala de professores de espanhol
oriundos deste país, ou brasileiros nele já residentes, erradicados na cidade de
João Pessoa e que lecione em alguma instituição pública ou privada nesta
cidade.
153

Podemos observar claramente, no quadro 9, a predominância de um


traço morfossintático relativo à variedade peninsular na fala desses professores,
ao nos depararmos com 80% dos professores que, embora sejam possuidores
da variedade bonaerense, deram preferência ao uso do tú em detrimento do vos.
Apenas o equivalente a 20% fez uso de sua variedade dialetal de origem. Isso
revelou um distanciamento da sua variante que ficou à margem e culminou em
um afastamento da identidade linguística e cultural do seu país nativo,
causando-nos, no mínimo, um estranhamento ocasionado pelo preconceito
linguístico relacionado à sua variante dialetal.
Quanto aos traços fonéticos analisados, demos prioridade a
características marcantes da variedade dialetal bonaerense: o seseo, a aspiração ou
queda do /-s/ de coda silábica e o yeísmo. Verificamos que 80% dos
professores mantiveram o seseo em suas falas e apenas 20% fez uso da variante
dialetal equivalente ao dialeto peninsular, o ceceo.
Em relação a aspiração ou queda do /-s/ de coda silábica, foi
observado a presença de apenas um professor que fez uso desse fonema de
forma sibilante, o que totalizaria 20% desta pronúncia, porém seu percentual
aumentou em 10% pelo fato de um segundo professor ter apresentado
alternância na sua fala entre duas realizações, a aspirada e a sibilante, totalizando
assim, um percentual de 30% da pronúncia sibilante e 70% da pronúncia
aspirada.
Já para o fenômeno do yeísmo, chegamos a um percentual de 60% dos
professores que não o realizaram, fazendo a diferença entre os sons dos
fonemas /ʎ/ que foi pronunciado como o <lh> do português e /y/ que foi
lido por uns com o som do /i/ y por outros, com o som rehilado. Essa
peculiaridade os afastou de sua identidade linguística que traz a realização
idêntica para ambos os fonemas, ou seja, o som rehilado, que aqui, foi mantido
por 40% dos professores envolvidos na pesquisa.
Quanto aos traços léxicos, demos ênfase apenas para os termos que se
fizeram presentes na fala dos professores. Aqui, podemos destacar o caso da
palavra vale que apareceu na fala de 60% dos professores em substituição à
forma equivalente dale do espanhol bonaerense. Vale destacar que, nos demais
40%, os professores incluídos, não necessariamente, tenham feito o uso da
forma lexical dale, praticada no seu país de origem, mas sim daqueles que não
fizeram uso do vale em seu lugar. Entre outros termos correspondentes à
variedade bonaerense, foi possível detectar palavras como boludo e pelotudo em
uma única ocasião, posta em prática por apenas uma professora da amostra e,
154

tratando-se de termos característicos da variedade bonaerense, não foram


contabilizadas como formas lexicais que fugiram de sua variante linguística.

Gráfico 1: Traços fonéticos dos professores bonaerenses em sala de aula.

VARIEDADE LINGUÍSTICA DE
PROFESSORES BONAERENSES EM SALA
DE AULA
40% 20%

40% 80%
70%

Voseo Seseo
Aspiração do /-s/ de coda silábica Yeísmo
Uso do "vale" ou outro termo

Fonte: Elaboração nossa.

Como visto no gráfico I, concluímos que, dos professores bonaerenses


participantes desta pesquisa, a maioria deixou sua identidade linguística e
cultural à margem, ao fazerem uso de traços morfossintáticos, fonéticos e
léxicos de uma variante diferente da sua, mais especificamente, a peninsular.
Concluímos que, apenas 20% destes professores usaram o vos em suas falas,
uma das características mais marcantes dessa variação dialetal; 40% dos
docentes envolvidos na pesquisa apresentaram o uso do vale como traço léxico
e, embora a margem dos que não o tenham utilizado seja maior, equivalente aos
60% restantes, não significa que tenham usado o dale como representação
equivalente a sua variedade. Em relação ao uso do yeísmo, 40% manteve esse
fenômeno em suas falas, contudo os outros 60% correspondem àqueles que
pronunciaram o /ʎ/ como o <lh> do português e /y/ com o som do /i/. As
únicas realizações pertencentes à variedade bonaerense que mantiveram
prioridade na fala desses professores foram a aspiração do /-s/ de coda silábica
e o seseo com 70% e 80%, respectivamente. Desta maneira, observamos que a
maior parte dos fenômenos analisados não eram condizentes com a variedade
bonaerense.
155

Considerações finais

Entre os resultados analisados, observamos que, embora os professores


façam uso da variação bonaerense, ao ministrarem suas aulas, deixaram-se
influenciar pela forma normativa peninsular e passaram a fazer uso de traços
linguísticos referentes a esta variedade, deixando sua identidade linguística e
cultural à margem, com exceção de uma informante.
Como visto, vemos que a maioria dos professores de espanhol,
detentora da variedade linguística bonaerense, que lecionam em diferentes
instituições de ensino, tanto da rede pública como privada, na cidade de João
Pessoa, faz uso preferencial de um dialeto diferente do seu originário.
Neste trabalho, detectamos que dito desvio sofreu influência não
apenas do material didático utilizado em sala de aula que, na maioria dos casos,
é produzido e editado da Espanha, mas também das crenças em relação à
superioridade linguística impressa pelos conquistadores da América. Isso
acarreta um distanciamento da identidade linguística e cultural desses
professores que acabam deixando à margem a sua variedade dialetal.
Este trabalho dá margens para uma continuidade da investigação feita,
a fim de aprofundar os estudos sobre a identidade linguística e profissional do
professor de espanhol como língua estrangeira, com vistas a verificar a
interferência ocasionada pelo preconceito linguístico da variedade dialetal dos
docentes que acabam deixando à margem uma variedade que, em hipótese
alguma, encontra-se em posição inferior a nenhuma outra.

Referências

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Santa Cruz de la Sierra. Tese de doutorado apresentada ao Programa de
Doutorado em Linguística – PROLING, da Universidade Federal da Paraíba,
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VIDAL de BATTINI, Berta. El español de la Argentina. Consejo


Nacional de Educación, Buenos Aires, 1964.
157

UM ESTUDO DA VARIAÇÃO FÔNICA DE DISCENTES DE


LETRAS-ESPANHOL

Fernanda Gonçalves Dantas


José Rodrigues de Mesquita Neto

Considerações iniciais

Apesar de a língua espanhola ser falada em vários países, em cada


região, seja dentro da Espanha ou da América, o espanhol, não diferente das
outras línguas, possui variações linguísticas particulares. Dessa forma, o
espanhol falado no México não será igual ao falado no Chile ou em qualquer
outro país. Entretanto, não podemos afirmar que essas diferenças impeçam a
comunicação entre os falantes de regiões diferentes. Em alguns casos pode até
causar estranheza, mas por fazerem parte de um mesmo idioma, possuem o
mesmo código linguístico e, por mais que existam diferenças na pronúncia, o
campo do significado não sofrerá alterações.
Existem vários tipos de variações e essas estão divididas por grupo:
variedade diacrônica, diafásica, diamésica, entre outras. A variedade linguística
que nos situa sobre a qual região se encontra o falante é denominada variedade
diatópica, que nos faz entender a diversidade de dialetos e falas pertencentes
àquele local e é nessa variação que o nosso trabalho se centrará.
Diante disso, queremos saber quais características fonéticas, da variante
diatópica assumida, o aluno apresenta de fato no seu uso da Língua
Estrangeira? Hipotetizamos que os informantes apresentarão diferentes traços
fônicos que englobarão regiões distintas, visto que recebem influências externas
diversas. Ademais, acreditamos que o alunado não tem consciência das marcas
fonéticas que utiliza.
Assim, nosso trabalho tem como objetivo geral, analisar a variação
fônica, assumida pelos discentes do curso de Letras Espanhol e como objetivos
específicos: a) descrever as zonas dialetais com foco na variante fônica; b)
descrever as variantes diatópicas assumidas pelos alunos; e c) identificar a qual
ou a quais zonas dialetais os alunos se enquadram.
Escolhemos como sujeitos de nossa pesquisa, 11 discentes do 4°
período do curso de Letras Espanhol da UERN/CAPF. Temos como corpus de
pesquisa dois instrumentos: um questionário, voltado ao alunado e a gravação
158

de leituras, em que convidamos os alunos para lerem um fragmento de um


texto escrito na língua espanhola, de forma individual e isolada.
Diante da complexidade dos estudos e pesquisas que envolvem as
variações linguísticas, faz-se necessário o seu contínuo desenvolvimento no
nível fônico, já que encontramos poucos trabalhos relacionados à variação
fônica especificamente. O aprofundamento no nível fonético-fonológico será
significativo e essencial para que o discente possa se conscientizar, enquanto
futuro professor, do uso da variante escolhida.
Com esta pesquisa, visamos explorar de forma detalhada os aspectos
citados anteriormente, a fim de contribuir para o conhecimento das variações
linguísticas, especificamente a variante diatópica. Procuramos especialmente
descrever as influências das variantes assumidas pelos alunos, ampliando assim,
o conhecimento dos futuros docentes de língua espanhola, para que dessa
forma, possam identificar a qual zona dialetal eles se enquadram.
Nosso trabalho está dividido em três seções principais, com exceção
das considerações iniciais e finais. A primeira trata sobre o termo
sociolinguística, o conceito de variedades linguísticas e sua classificação. Além
disso, apresentamos as oito zonas dialetais divididas por Moreno Fernández
(2010) - um dos focos principais de nossa pesquisa - e por fim, a importância da
variação fônica no ensino do espanhol. Já na segunda, nomeada Marco
metodológico, apresentamos os procedimentos e técnicas utilizados para o
processo de nossa pesquisa. Por fim, na terceira seção, descrevemos e
explicamos as características fônicas assumidas pelos discentes e as que de fato
eles adotam baseando-nos nas respostas obtidas através dos questionários e das
gravações das leituras.

Variação linguística: conceitos e classificação

A variação linguística sempre causou curiosidade nos seres humanos e


cada vez mais chama atenção, em especial aos que estão aprendendo um novo
idioma, pois, é a partir do conhecimento dela, que conseguimos identificar a
qual país determinado falante pertence e nos possibilita uma melhor
compreensão e comunicação devido a uma boa percepção dos sons, neste caso
nos referimos à variação fônica.
A sociolinguística é uma ramificação da linguística, que se fixou na
década de 50 (VENÂNCIO DA SILVA, 2016). Seu principal objetivo é o
estudo da língua falada em suas diversas situações de usos reais. Qualquer
159

comunidade fará uso de uma diversidade linguística ou variedade linguística e a


esses diversos modos de fala, a sociolinguística nomeia como variedades
linguísticas (ALKMIM, 2001).
Venâncio da Silva (2016, p. 12) afirmam que a sociolinguística “surge
para referir-se a uma perspectiva teórica e metodológica que tem como objetivo
entender questões sobre influências da linguagem na sociedade, especialmente
no que se refere à diversidade linguística em seu contexto social”.
A esses diferentes tipos de variação, Bagno (2007) classifica como:
Diastrática, Diamésica, Diafásica, Diacrônica e Diatópica. A primeira distingue
o nível cultural do falante de determinada língua. Assim, “se manifestam de
acordo com os diferentes estratos sociais, levando-se em conta fronteiras
sociais.” (MOLLICA, 2004, p. 12). A segunda aponta a diferenciação entre a
língua falada e a língua escrita. Para uma análise dessa variação especificamente,
a conceituação de gênero textual é essencial (BAGNO, 2007). Já a terceira, para
o mesmo autor, pode ser nomeada também como variação estilística, visto que
se relaciona com a escolha do indivíduo dentro de seu contexto comunicativo.
A Variação Diacrônica, por sua vez, explica as diferentes transformações que
uma língua apresenta no decorrer do tempo (BAGNO, 2007). Por fim, a
Diatópica:

[...] é aquela que se verifica na comparação entre os modos


de falar de lugares diferentes, como as grandes regiões, os
estados, as zonas rural e urbana, as áreas socialmente
demarcadas nas grandes cidades etc. O adjetivo
DIATÓPICO provém do grego DIÁ-, que significa
“através de”, e de TÓPOS, “lugar” (BAGNO, 2007, p.
46).

Assim, a variação diatópica está ligada às diferenças linguísticas


condicionadas pelo fator geográfico em que se encontram os falantes, ou seja,
“as alternâncias se expressam regionalmente, considerando os limites físoco-
geográfico.” (MOLLICA, 2004, p. 12). É nesta variação que podemos
encontrar explicações sobre a diversidade de dialetos e falas de um mesmo
lugar. Vale ainda destacar que quando se fala de variação diatópica, estão
envolvidos vários aspectos da língua, tais como: gramaticais, lexicais,
pragmáticos, fonéticos, entre outros. No entanto, nosso artigo se deteve em
trabalhar, exclusivamente, o nível fônico.
160

Variação diatópica e sua relação fonética

A Língua espanhola expõe um domínio geográfico extensivo – 21


países como língua oficial. Ademais, é falada por aproximadamente 500 milhões
de pessoal ao redor do mundo, seja como língua materna, estrangeira ou
segunda língua (INSTITUTO CERVANTES, 2014). Dessa maneira,
apresentando um grande número de variedades dialetais. Algumas destas são
comuns entre diferentes zonas geográficas. Moreno Fernández (2010) divide a
língua espanhola em oito zonas dialetais, sendo cinco pertencentes ao
continente americano (Caribe, México e América Central, Andino, Austral e
Chile) e três ao continente peninsular (Castelhano, Andaluzia e Canarias). Cada
zona apresenta um grupo de países ou regiões com semelhanças no campo
fonético, lexical, gramatical, entre outros.
O espanhol do continente americano não é uma variedade da língua,
mas uma complexidade de variedades diferentes, faladas e compartilhadas por
todos da América Hispânica. Muitos trabalhos na área da fonética já apontam
para essa grande variedade fônica existente entre os países. Apresentamos Sosa
(1999), Izquierdo (2010) e Brisolara e Semino (2014), como exemplos de
estudiosos no campo sonoro de elementos segmentais e suprassegmentais.
A seguir apresentamos os quadros 1 e 2. Para a elaboração do quadro
nos baseamos nos estudos de Moreno Fernández (2000 e 2010) e Izquierdo
(2010). Apresentamos como nota de rodapé algumas explicações que
acreditamos ser pertinentes, além de apresentarmos algumas indicações para
leituras. No primeiro, apontaremos as características fônicas referentes as zonas
dialetais da América enquanto que no segundo mostramos os traços fonéticos-
fonológicos que contemplam as zonas do espanhol europeu.

Quadro 1: Traços fônicos do espanhol falado na América.


Caribe20 Alongamento vocálico; Nasalização das vogais em contato
com vogal final; Aspiração de /x/; Aspiração de /s/;

20O fenômeno da aspiração (e a perda) é geral (incluída em alguns lugares a consoante


pré-nuclear intervocálica) na Venezuela, em todos os países do Caribe hispânico, e nos
centro-americanos: El salvador, Honduras (exceto fronteira com Guatemala),
Nicarágua e Panamá.(IZQUIERDO, 2010, p. 67).
161

Apagamento de consoantes em posição de coda como em:


verdad [beɾˈða] e comer [koˈme]; Pronúncia de –r21 por [l] em
posição de coda, como em: verdad [belˈðað] (Porto Rico); e
Velarização da nasal em posição de codo absoluta, como em:
pan [ˈpaŋ].
México e Perda das vogais átonas, como em: antes [ˈants] e cafecito
América [kafˈsito] (antiplano mexicano); Troca de [e] por [i] e [o] por
Central [u] causando ditongação em casos como: teatro [ˈtia.tro] e
poeta [ˈpue.ta]; Articulação plena e tensa de grupos
consoánticos: examen [ek.ˈsa.men]; Pronúncia oclusiva de
sonoras entre vogais22: dados [ˈdados] (interior do México e da
América Central); Aspiração de /x/ (Norte e sul do México e
na América Central); Apagamento de –ll: ardilla [aɾˈdjːa] e
tortilla [toɾˈtjːa] (norte do México e na América Central;
Encontro –tl pronunciado na mesma sílaba: atlas [a.ˈtlas];
Aspiração do /s/ (Anérica Central); Seseo; Yeísmo; Perda das
oclusivas entre vogais (Panamá); e Entonação circunflexa23.
Andino Conservação de /s/ em posição de coda; Yeísmo (com grupos
e algumas zonas de diferenciação); Pronúncia bilabial de /f/;
Oposição dos fonemas /ʎ/ e /y/24; despalatização da nasal
palatal, como em: niño [ˈninjo]; Fonema lateral /ʎ/ não se
realiza palatal adiantando sua articulação e resultando
semelhante ao som rehilado (Equador).

21 Para mais informações sobre as realizações dos róticos do espanhol, ler seção
“Róticos do espanhol” em Mesquita Neto (2018).
22 No México se mantém a oclusão dos fonemas /b/ e /d/ diferente do que traz a

literatura na área da fonética em que esses fonemas entre vogais devem ser fricatizados
(BRISOLARA; SEMINO, 2014).
23 A entonação circunflexa, típica da região mexicana, ocorre em enunciados

declarativos, em que nas sílabas finais produzem uma subida e decida no tom mais
elevado junto com a sílaba tónica (MORENO FERNÁNDEZ, 2010). Esse fenômeno é
confirmado e melhor exposto nos estudos de Gomes da Silva (2019).
24 No espanhol peruano e no boliviano se mantém a oposição entre a palatal lateral (ll) e

a central /y/, como uma característica potenciada pelo contato com quéchua e aimará,
já que as duas línguas indígenas dispõem do primeiro som (lateral), o que reforça a
oposição castelhana. No castelhano amazônico a lateral se fricativiza em [š] o [ž].
(IZQUIERDO, 2010, p. 69).
162

Austral Alongamento bem marcado em vogais tônicas; Aspiração de


/s/ em final de sílaba: las mesas [lah ˈmesah] e mismo
[ˈmihmo]; Apagamento de /d/ e /r/ em posição de coda
como em: verdad [beɾˈða] e comer [koˈme]; Perda do grafema
–d em sílabas com –ado: comprado [komˈprao] e tenido
[teˈnio]; Seseo; Aspiração de /x/; Yeísmo rehilado; oposição
dos fonemas /ʎ/ e /y/(Capital paraguaia); Conservação de
oclusivas sonoras vozeadas entre vogais (Uruguai); e Voseo25
Chile Perda do grafema –d em sílabas com –ado: comprado
[komˈprao] e tenido [teˈnio];
Yeísmo; Aspiração de /s/ em final de sílaba; Aspiração de /x/;
Pronúncia pouco tensa de –ch; mucho [ˈmuʃo]; Palatização de
[k], [x] e [ɣ]: queso [ˈkjeso], general [xjeneˈɾal] e higuera
[iˈɣjeɾa]; Perda de –d em posição de coda absoluta: verdad
[beɾˈða] e pared [paˈɾe]; e Entonação com tom médio
elevado26.
Fonte: Elaboração nossa.

Alguns traços fônicos transitam nas mais diversas zonas dialetais, sendo
as de Andaluzia e Canarias as que apresentam mais semelhanças com as zonas
do continente americano. As características fonéticas predominantes no
espanhol da América são o seseo e o yeísmo (MORENO FERNÁNDEZ, 2010).
De acordo com Izquierdo (2010, p. 63) “nas modalidades americanas não existe
a distinção entre os sons de /s/ e //” o que caracteriza o seseo.
Desde sempre, o espanhol da Espanha é possuidor de um
reconhecimento generalizado, sendo assim a variedade que mais se destaca nos
materiais didáticos e nos cursos livres. No entanto, é importante ressaltar que
também apresenta variedades distintas em suas falas. Por isso, não podendo ser
considerado como um conjunto homogêneo de fala (ver quadro 2).

25 Moreno Fernández (2010) e Izquierdo (2010) entender o voseo como uma


característica gramatical. No entanto, categorizamo-la também como fônica, visto que
sua utilização faz com que a sílaba tônica do verbo conjugado em segunda pessoa, tanto
no presente do indicativo quanto no imperativo afirmativo, mude de posição, afetando
assim o elemento suprassegmental da palavra.
26
Para aprofundamento sobre a entoação de interrogativas totais em Buenos Aires e
Santiago do Chile ler Gomes da Silva (2014). Caso o interesse seja na área de entoação
de língua espanhola, aconselhamos a leitura de Sosa (1999).
163

Quadro 2: Traços fônicos do espanhol falado na Espanha.


Castelhano Distinção de /s/ e /θ/, como em: casa [ˈkasa] e caza [ˈkaθa];
Pronúncia ápico-alveolar de /s/; Pronúncia de /x/ como
fricativa desvozeada tensa; e conservação de consoantes em
final de sílaba [beɾˈðað].
Andaluz Abertura de vogais finais com perda de consoante final;
Yeísmo; Perda do grafema –d, principalmente em particípios,
como: acabado [akaˈβao] e cansado [kanˈsao]; perda das
consoantes –r, -l, -d, -n em posição de coda absoluta, como
em: papel [paˈpe] e virgen [biɾˈxe]; Seseo (zona urbana); Ceceo
(Zona rural); Distinção de /s/ e /θ/ (Jaén, Almería e em parte
de Granada); Pronúncia pré-dorsal de /s/; Grafema –ch
realizada como fricativa, em muchacha [muˈʃaʃa]; e Aspiração
de /x/.
Canarias Seseo; Yeísmo; Aspiração de /s/ em posição de coda;
Aspiração de /x/; Apagamento de –d em posição de coda
absoluta, como em ciudad [sjuˈða]; e Pronúncia com oclusiva e
prolongada de –ch, como em: muchacho [muˈtjatjo].
Fonte: Elaboração nossa.

Vale ressaltar que a Espanha possui, além do espanhol, três outras


línguas oficias (catalão, galego e euskera) que, em maior ou menor grau, influi
na realização do espanhol em suas respectivas zonas. Mesmo apresentando suas
diferenciações todas as zonas dialetais compartem uma ampla base comum, que
se mostram, em maior ou menor proporção, através de usos mais cultos ou
vulgares da língua.

Marco metodológico

Descrevemos aqui os procedimentos e estratégias de pesquisa que


foram executados. Nossa pesquisa tem como objetivo analisar a variação
fônica, assumida pelos discentes do curso de Letras Espanhol da
UERN/CAPF.
Dessa forma, nossa pesquisa é definida como descritiva, pois a partir
de estudos teóricos e de um questionário voltado totalmente ao alunado,
descrevemos a variante que o aluno acredita adotar. Gil (2002) explica que o
principal objetivo desse tipo de pesquisa é a descrição das características de
164

determinada população, ou estabelecimento de relações entre variáveis, em que


busca descrever todo o ocorrido.
Podemos dizer também que nossa pesquisa é definida como de campo,
pois adentramos no contexto de sala de aula, onde aplicamos um questionário e
gravamos as leituras dos alunos do texto selecionado. Ela ainda se caracteriza
como qualitativa, pois entramos no contexto da investigação, descrevemos e
interpretamos as informações colhidas no questionário e na gravação das
leituras do texto.
O contexto no qual desenvolvemos nossa pesquisa foi a Universidade
do Estado do Rio Grande do Norte, no Campus avançado Pau dos Ferros. A
Universidade pública do alto oeste potiguar, oferta nove cursos de graduação,
quatro programas de pós-graduação e oferece o único programa de Doutorado
em Letras do interior do estado.
Com relação aos sujeitos, 11 dos 12 alunos do 4° período do curso de
Letras com habilitação em língua espanhola e suas respectivas literaturas foram
selecionados. Um dos alunos foi eliminado, pois não se encaixava em um dos
critérios para seleção. Os critérios utilizados foram: a) alunos matriculados e
regulares na disciplina de Língua Espanhola III, assim encontrando-se no nível
intermediário de aprendizagem; b) nunca terem visitado ou residido em um país
de língua espanhola; c) terem pagado a disciplina Fonética e Fonologia27; d)
terem o português como língua materna; e e) serem potiguares.
Para a coleta dos dados, aplicamos dois instrumentos. O primeiro foi
um questionário. O mesmo estava composto por onze perguntas, sendo sete
objetivas e quatro subjetivas. Estava dividido em duas partes, a primeira
direcionada ao perfil do discente e a segunda sobre variações linguísticas no
nível fônico. Sua aplicação foi realizada em sala de aula e todos responderam ao
mesmo tempo, de forma individual. O segundo instrumento foi a gravação de
leituras do texto intitulado La imigración española a Latinoamérica a finales del XIX
y a princípios del XX. As leituras aconteceram de forma individual e isolada e o
texto foi escolhido conforme o nível dos alunos, que nesse caso é B1
(intermediário). Todos os sujeitos leram o mesmo fragmento textual para que
assim pudéssemos verificar sons específicos. O texto foi selecionado pensado
em palavras com determinadas letras, como por exemplo: <z, c, ll, y, s, d>, em
diferentes contextos fonotáticos. Desse modo, explorando as diferentes

27Levamos em consideração terem pagado a disciplina Fonética I, pois acreditamos que


através dos estudos realizados nessa disciplina, os alunos devem ter um maior
conhecimento sobre as variedades fônicas existentes na LE estudada.
165

variantes existentes na língua espanhola. As leituras foram gravadas e,


posteriormente, analisadas.
Para a análise do questionário e da gravação de leitura levamos em
consideração os seguintes critérios variacionais: a) Seseo; b) Interdental; c)
Ceceo; d) Yeismo; e) Yeismo rehilado; f) Aspiração; g) Não-aspiração; h)
Oclusão no lugar de fricatização de alguns fonemas; i) Perda do /d/ em
posição de coda absoluta; e j) Perda do /d/ em posição onset de sílaba final.
Finalizamos comparando os resultados das respostas obtidas nos
questionários e as realizações das gravações. A finalidade dessa ação foi
verificar se os informantes possuíam consciência de suas realizações fonético-
fonológicas.

Análise e discussão dos resultados

Nesta fase do estudo, fizemos a análise dos questionários e das


gravações de leituras, buscando sempre relacionar aos nossos objetivos. Por
critério de organização e uma melhor compreensão dos dados, optamos por
dividir essa seção. Assim, explicamos de forma detalhada os dados coletados
nos dois instrumentos utilizados na pesquisa.
Em um primeiro momento, analisamos os questionários respondidos
pelos discentes, nele descrevemos suas concepções a respeito das variações
linguísticas e da variante que eles acreditam adotar. No segundo, analisamos as
gravações dos textos lidos pelos discentes com a finalidade de observar os
traços fônicos usados pelos mesmos com base na divisão apresentada na seção
teórica.

Análise dos questionários

Nessa seção, analisamos as informações obtidas através das respostas


dadas ao questionário aplicado. Este tinha o intuito de verificar tanto o perfil
dos discentes quanto as crenças sobre variações linguísticas no nível fônico.
Ao responderem a pergunta “Qual sua concepção a respeito da
variação linguística?”, encontramos uma particularidade de respostas sobre o
assunto, mas uma singularidade que em alguns pontos se aproximam uma da
outra. De modo geral, percebemos que a maioria dos discentes consta de um
prévio conhecimento sobre o assunto.
166

As respostas que mais se destacaram por se aproximarem dos conceitos


expostos na teoria foram as dos sujeitos I, V, VI, VIII, IX e XI. As respostas
dos alunos se assemelham aos conceitos elencados por Moreno Fernández
(2010) e Bagno (2007), nos quais variações linguísticas são as manifestações que
qualquer língua, no seu fator externo, sofre, ou seja, ao dizermos que uma
língua apresenta variações, estamos mais uma vez dizendo que ela é
heterogênea. Destacamos as respostas dos sujeitos I e XI.

Variação linguística são as diversas variações que ocorre com a língua por meio de
fatores históricos, regionais... A língua pode ser sofrer diversas alterações, pois ela
é um sistema mutável, ou seja, que muda. Como por exemplo: No Brasil, o
português falado no nordeste é bem diferente do português falado no sul do país.
(SUJEITO I).
Partindo da concepção de que tudo que é vivo não é imutável, assim ocorre na
língua, na manifestação verbal. Assim, tomar variação linguística é compreender
que a língua está e sempre estará em constante modificação, transformação e
evolução. Movimento pelo qual é resultante da exterioridade. Fatores como
culturais, históricos, regionais, socioeconômicos, etc. refletem as diferentes
nuances da língua e também a sua vulnerabilidade. (SUJEITO XI).
Podemos perceber que os discentes apresentam um conhecimento
sobre a conceituação de variação linguística e verificamos isso de acordo com o
que explica Moreno Fernández (2010) de que as variações linguísticas
respondem aos fatores externos da língua. Esses fatores são justamente os
históricos, regionais, sociais, entre outros, que fazem com que uma única língua
possa sofrer inúmeras variações.
Nas respostas dos sujeitos IV e VII, percebemos que os dois
compartilham de um mesmo conceito sobre o assunto, em que apresentam uma
concepção limitada a respeito da temática. Os discentes resumem variação
linguística como sendo apenas os aspectos fônicos de uma comunidade, ou seja,
os diferentes modos de pronúncia. Observemos a resposta do sujeito VII
quando é questionado sobre isso.

As várias maneiras de pronunciar determinadas palavras em uma língua, de


acordo com as regiões dos falantes. Por exemplo, sabemos que um argentino não
fala igual a um cubano, suas falas são distintas.
167

As variações existentes dentro da pronúncia de cada falante é apenas


um dos vários tipos de variações existentes. Lembremos que a língua é viva e
sofre modificações e influência de seu contexto.
Com isso, percebemos que os discentes ao se referirem à variação
linguística, apresentam pouco conhecimento, pois discutem como se existisse
apenas mudanças na pronúncia, no seu modo de falar, mostrando assim um
conhecimento restrito nesta área.
Ainda sobre a pergunta supracitada, notamos através das respostas dos
sujeitos II e X, um vago questionamento, de que a variação seria uma
identidade de uma cultura e seriam outras línguas presentes em uma mesma
língua. Os discentes apresentam diante do perguntado, pouco conhecimento a
respeito do assunto tratado, pois apresentam respostas confusas e resumidas.
O sujeito III, ao ser questionado sobre a mesma pergunta citada
anteriormente, destaca-se dos demais por apresentar uma resposta diferenciada,
fazendo a junção da importância da variação linguística e a negatividade do
preconceito linguístico que ocorre dentro das variações. Observemos:

As variações linguísticas são extremamente comuns em uma língua, elas ocorrem


para que haja a comunicação entre seus falantes. Infelizmente, é algo corriqueiro
perceber o preconceito linguístico devido a algumas variações de grupos “menos
prestigiados”, criando assim uma barreira entre a língua e aqueles que a falam.
Ao analisar a resposta do sujeito III, percebemos que na sua
concepção, o discente apresenta o preconceito linguístico como algo negativo
dentro das variações, mostrando conhecer sobre o assunto tratado, mas ao se
referir que as variações linguísticas ocorrem para que haja a comunicação entre
os falantes, o sujeito apresenta uma ideia contrária e distorcida do conceito real,
pois as elas ocorrem de forma natural em qualquer língua, e com isso pode
ocorrer a não comunicação entre os falantes de comunidades linguística
diferentes, justamente por sofrer modificações nos diversos fatores da língua.
Quando perguntamos aos alunos, se conhecem a divisão das zonas
dialetais propostas por Moreno Fernández (2010), os sujeitos V e VI não
responderam a pergunta, deixando-a em branco. Já os sujeitos II, IV, VIII e X,
afirmaram não conhecer tais divisões.
Para que possamos adquirir um melhor conhecimento a respeito das
variações no plano fônico, é de suma importância que estudemos sobre a
divisão das zonas dialetais, pois, a língua espanhola apresenta uma grande
168

dimensão geográfica que é melhor entendida através da divisão das zonas,


compreendendo assim aspectos gerais de cada dialeto.
Já os sujeitos I, III, IX e XI, afirmaram conhecer a divisão das zonas
dialetais. Os discentes compartilham de forma semelhante o questionado e
apontam como principal motivo da divisão dialetal o espaço social e o
geográfico.

Moreno Fernández divide as zonas dialetais, de acordo com as variações


linguísticas e os espaços geográficos que adotam o espanhol como idioma oficial.
(SUJEITO III).
Sim. Na tentativa de compreender e/ou explicar a diversidade dialetal da língua
espanhola, o autor fez divisões a partir do espaço sociogeográfico, levando em
consideração as características semelhantes de fala nas regiões onde os falantes
residem. (SUJEITO XI).
Notamos através das respostas dos sujeitos anteriormente citados, que
possuem um bom conhecimento no que diz a respeito ao que levou Moreno
Fernández a fazer a divisão das zonas dialetais, mas percebemos que em
nenhum momento eles classificam em suas respostas essas divisões. Já o sujeito
VII, mostra um posicionamento diferente, pois apresenta seis das oito zonas
dialetais. Observemos:

Sim. São cinco zonas dialetais nos países hispano americano e uma na Espanha,
totalizando seis zonas: Zona de México e América Central, Zona Caribe, Zona
Andina, Zona Rioplatense e del gran chaco e Zona de Espanha. (SUJEITO VII).

Podemos perceber que o discente apresenta algumas zonas, no entanto,


encontramos um equívoco em sua resposta, pois como foi exposto na teoria,
Moreno Fernández (2010) divide a língua espanhola em oito zonas dialetais,
sendo cinco no continente americano e três no continente peninsular,
diferentemente do que aborda o discente, apresentando apenas uma no
continente peninsular e nomeando duas zonas no continente americano que
não estão dentro da nomenclatura exposta pelo autor. Ressaltamos que o
conhecimento das nomenclaturas não é necessário para uma aprendizagem
eficaz da língua. O que realmente é relevante é o conhecimento dessas
características fônicas e a capacidade de reconhecimento.
Na pergunta “Qual a variante que você acredita que adota? Por quê?”
apenas o sujeito X, afirma não saber qual a variante que ele faz uso. Já os
169

sujeitos V, VII e VIII, afirmam que a variante que adotam é o yeísmo, pois não
fazem a distinção dos grafemas <ll> e <y>.

Adoto o fenômeno yeismo, porque não distingo, na pronunciação, palavras que se


escrevem com a semivogal “y” das palavras com “ll”. (SUJEITO VII).

Notamos que ao definir sua variante, os sujeitos se prendem ao yeismo


como se fosse a única existente na língua espanhola ou como se fosse a que
definisse essa língua. Talvez por ser uma das características fonéticas que mais
predomina no espanhol do continente americano e que está também presente
em uma parte do continente peninsular (MORENO FERNÁNDEZ, 2010;
IZQUIERDO, 2010).
Nas respostas dos sujeitos I, III e IX, também mencionam o yeismo
como a variante que adotam, mas explicam, de modo diferenciado dos sujeitos
anteriormente, o porquê de adotar essa variante. Os discentes mencionam
como principal fator de influência alguns professores e amigos.

Adoto o “yeismo”, pois em minha fala pronuncio palavras escritas com “ll” com o
som de “ye”, por exemplo. Faço uso dessa variação pois alguns professores meus a
usam e assim, influenciaram diretamente no modo como eu falo. (SUJEITO III).

Percebemos o quanto o professor e as pessoas que estão ao seu redor


podem influenciar na utilização de uma determinada variedade. As OCNs
(2006) deixam claro que por mais que o professor opte por determinada
variedade, ele deve apresentar as demais existentes para que assim, o aluno
possa conhecê-las e fazer sua escolha, seja ela a mesma utilizada pelo professor
ou não, elegendo assim a que mais lhe agrade.
Ainda sobre a mesma pergunta, os sujeitos II, IV e VI, destacam o seseo
como sua variante, por fazer uso do /s/ nas palavras que são escritas com <z>,
<s> e <c> antes de <e> e/ou <i>. O conceito dado pelos discentes se
assemelha ao que Izquierdo (2010) define como seseo, que é a não distinção do
interdental surdo // e o fonema alveolar /s/ em que são pronunciados iguais,
ou seja, como fricativa, alveolar, desvozeada [s]. Apesar de explicarem a
definição do fenômeno, os discentes ainda apresentam pouco conhecimento a
respeito das variantes, desconhecendo as demais existentes, como podemos
observar na resposta do sujeito XI, que também se considera apenas seseante:

A única variante que adoto é o “seseo”, pois creio que é um reflexo de fala dos
meus professores da língua espanhola. Acredito que tenho influências também das
musicas, filmes... hispanoamericanos que tenho contato. (SUJEITO XI).
170

Notamos, pela resposta do sujeito XI, um conhecimento restrito,


desconhecendo assim, como os demais sujeitos, as outras variantes presentes na
língua espanhola. Ao serem questionados a respeito da variante, os discentes
mencionam apenas o seseo e o yeismo, talvez pelo fato de não conhecerem ou não
considerarem outras variantes existentes ou até mesmo por não se darem conta
que fazemos uso de várias outras. O conhecimento restrito que os alunos
possuem na área faz com que não percebam esse simples detalhe no momento
de identificar a variante adotada.
Finalizamos o questionário com a pergunta “Através de que meios
(músicas, vídeos, novelas, etc.) você adquire, aperfeiçoa, a língua estrangeira?
Justifique.”, todos os sujeitos de nossa pesquisa, dizem utilizar pelo menos um
ou dois meios para adquirir, aperfeiçoar a língua estrangeira. Segundo os
discentes, esses meios contribuem e auxiliam no desenvolvimento da
aprendizagem da nova língua. Os sujeitos II, IV, VII e IX destacam a música,
novela, vídeo e seriados como os principais meios para conseguir uma boa
oralidade na língua espanhola e para conhecer os diferentes modos de fala,
destacando a música como auxiliador no conhecimento das variações.

Desde o inicio de minha aquisição faço o uso de vários meios para adquirir uma
boa oralidade neste caso opto por filmes, que aumentam o vocabulário, as músicas
ajudam no reconhecimento das variações, bem como faz com que aumentamos
nossos conhecimentos a cerca da língua espanhola. (SUJEITO IV).
Faço uso das músicas de diferentes cantores dos países hispano americano para
conhecer diferentes tipos de fala. Além disto, procuro sempre, que, posso, assistir
seriados, telenovelas com o áudio original em espanhol. Pois, acredito que dessa
maneira é possível entrarmos em contato com diferentes modos de fala, diferentes
culturas e diferentes variações. (SUJEITO VII).

Percebemos nos discursos o interesse no aperfeiçoamento da língua


espanhola, utilizando-se dos diversos meios para aprimorar, conhecer e
identificar as variações existentes na língua estudada. Ao mencionar os
diferentes cantores dos países Hispano Americanos, notamos que de certa
forma, o sujeito VII, já tem conhecimento das inúmeras variações que
aparecerão, mesmo se tratando de cantores de um mesmo país, região, cidade,
etc. as variações aparecerão. Conforme exposto no referencial teórico o
espanhol Hispano Americano é complexo, apresenta diferentes variedades, falas
que são compartilhadas por todos da América e não se resume em uma
variedade da língua.
171

Ao analisar a resposta do sujeito V, notamos uma contradição, em que


primeiro menciona a música como um facilitador no momento de pronunciar
as palavras no idioma estudado e em seguida a coloca como ponto negativo
para aprender um segundo idioma justamente por apresentar variações na fala,
mas mesmo assim faz uso desse meio.

Através de músicas, pois quando escuto a pronúncia das palavras tenho mais
facilidade de pronunciá-las, no entanto é um ponto negativo ouvir música para
aprender uma segunda língua devido os diferentes tipos de acentos usados pelos
cantores. (SUJEITO V).
Ouvir músicas de diferentes cantores é interessante justamente pelo
fato de percebermos as variações existentes na língua e assim aperfeiçoarmos
nosso conhecimento na área. A quantidade de sotaques utilizados e escutados
em uma música não prejudica a aprendizagem da língua, ao contrário,
enriquece. Bagno (2007) menciona que a língua apresenta em suas
manifestações concretas, diversificados tipos de variação na comunicação,
podendo aparecer dentro de uma mesma região características próprias de cada
indivíduo, por isso, a língua é considerada heterogênea e não homogênea,
justamente por ser mutável.
Em suma, podemos sintetizar, que apesar dos sujeitos já terem
estudado a respeito das variações linguísticas, percebemos um conhecimento
ainda restrito, principalmente no momento de descrever a variante que acredita
adotar.

Análises das gravações de leituras

Nessa seção, analisamos as informações coletadas através dos áudios


das gravações contrastando com as respostas obtidas através do questionário.
As gravações tinham como intuito identificar a qual ou a quais zonas dialetais
os discentes se enquadram.
No gráfico 1 mostramos nossos critérios de análise, relacionando os
sujeitos às suas variantes . Tomamos como análise onze gravações de leituras de
um fragmento do texto que tem como título La imigración española a Latinoamérica
a finales del XIX y a princípios del XX, que foi lido individualmente e
isoladamente por todos os informantes.
172

Gráfico 1: Resultados das variantes28 encontradas.

Fonte: Elaboração Nossa.

No gráfico, à direita, mostramos as variantes observadas e analisadas, à


esquerda podemos ver a quantidade de sujeitos analisados. Cada cor indica um
critério analisado. Notamos que todos os sujeitos fazem uso do seseo, não-
aspiração e oclusão no lugar de fricatização de alguns fonemas. Com relação ao
yeismo apenas dois sujeitos dos onze se caracterizam como yeistas diferentemente
do apontado no questionário, em que a maioria afirmava adotar. Com relação
às demais variantes, nenhum sujeito se enquadra.
Apesar de apenas os sujeitos II, IV, VI e XI responderem no
questionário que são seseantes, notamos nos áudios que todos os sujeitos utilizam
tal variante. Moreno Fernández (2010) aponta o seseo como uma característica
fonética que predomina em todo o continente americano. Podemos dizer então,
que a influência de músicas, seriados, novelas pode ser um dos fatores
responsáveis por esse uso. Além disso, como apontado pelos alunos, a
utilização desse traço por alguns professores também ajuda na escolha.
Acreditamos ainda que outro fator que condiciona o alunado a adotar o seseo ao
invés do ceceo ou do interdental, seja a semelhança com a pronúncia de sua LM,
visto que no português brasileiro o interdental não se usa nem como fonema,
nem como fone, sendo caracterizado como um distúrbio fonológico.

28No texto muitas vezes chamaremos as características fonéticas de variantes, visto que
“variantes linguísticas são diversas maneiras de se dizer a mesma coisa em um mesmo
contexto e com o mesmo valor de verdade.” (TARALLO, 1986, p. 8).
173

Assim, consequentemente, e apesar da maioria dos materiais didáticos


de língua espanhola serem produzidos na Espanha e trazerem a variante
peninsular com predomínio (SILVA, 1999), notamos que o interdental e o ceceo
(segundo e terceiro critérios), que são características fonéticas tipicamente
encontradas no espanhol peninsular (MORENO FERNÁNDEZ, 2010), não
foram realizados.
Apenas dois dos onze discentes são de fato yeistas, percebemos que
apenas os sujeitos III e V não fazem a distinção dos grafemas <y> e <ll>. No
entanto, ao responderem o questionário, os sujeitos I, VII, VIII e IX dizem
usar essa variante. Os sujeitos VII, VIII e IX, misturam as variantes, ora
realizam a distinção dos grafemas <y> e <ll> ora optam pela não distinção,
caracterizando-se como yeistas. Acreditamos que isso aconteceu por estarem
em processo de escolha da variante, apresentando assim uma mescla, desse
modo, não os consideramos yeistas.
Nos nossos quinto e sexto critérios de análise (Yeismo rehilado e
aspiração), percebemos que nenhum sujeito faz uso dessas variantes,
confirmando as respostas obtidas através do questionário. Reforçamos que o
yeismo rehilado é uma característica fonética que se destaca na zona austral, em
que se encontram os países Argentina, Uruguai e Paraguai (MORENO
FERNÁNDEZ, 2010). Apesar da Argentina ser o país de língua espanhola que
mais recebe brasileiros (SEDYCIAS, 2005), a sua variante não se encontra entre
as realizadas pelos sujeitos.
Segundo Izquierdo (2010), a aspiração também é uma característica
fonética que se destaca nos países pertencentes à zona austral, principalmente
na Argentina, em que praticamente todas as regiões a realizam. De acordo com
Moreno Fernández (2010) a aspiração também está presente no espanhol
Andaluz, que apresenta características fonéticas que se assemelham aos que
aparecem no continente americano.
Podemos dizer então, que por mais que esses países façam fronteira
com o Brasil, os sujeitos da nossa pesquisa preferiram optar pela não utilização
do yeismo rehilado e da aspiração, em consequência talvez, por não terem o
conhecimento de que países tão próximos de nós façam uso dessa variante ou
por se tratar de uma variante, como é o caso do yeismo rehilado, que se destaca
apenas na zona austral, optando assim, por variantes que englobem
características mais gerais que alcancem diferentes regiões.
Todos os sujeitos analisados apresentam a não-aspiração. Percebemos a
conservação da alveolar, fricativa em posição de coda. Conforme Moreno
174

Fernández (2010) uma das zonas dialetais que se destaca das demais por
apresentar o conservadorismo fonético, é a área Andina, pois é uma zona que
sempre mantém o som padrão das consoantes em finais de sílabas. Diante
disso, acreditamos que essa escolha aconteça por questões perceptivas, visto
que a aspiração é dificilmente identificada pelo ouvido do aluno. Além disso, a
aspiração, no português brasileiro, é vista como uma variante desleixada,
causando preconceito no seu uso.
Notamos ainda que todos os sujeitos fazem uso da oclusão no lugar da
fricatização de fonemas como /d/, /b/ e /g/ em posição intervocálicas,
característica bem marcada pela zona do México e Centro América. Podemos
dizer então, que devido à zona mexicana apresentar uma pronúncia próxima à
da língua portuguesa, possa ter influenciado na escolha dos discentes,
mantendo assim, a oclusão no lugar de fricatização.
Nos nossos dois últimos critérios de análise (perda do /d/ em posição
de coda absoluta e perda do /d/ em posição onset de sílaba final) vimos que
nenhum sujeito os utilizam, pronunciando o /d/ em posição de coda absoluta
na palavra mitad [„mitad] e pronunciando o /d/ em posição onset de sílaba final
como na palavra afortunados [afortu‟nados].
Afirmamos então que as variantes adotadas pelos sujeitos analisados se
enquadram no continente americano, no entanto, não podemos afirmar a que
zona específica, pois eles apresentam características de diversas zonas,
principalmente a zona do México e Centro América e a zona Andina.
Afirmamos que os discentes, apesar de se caracterizarem apenas como
sujeitos que utilizam o seseo e/ou yeismo, apresentam outros traços bem
marcados em suas falas. Apontamos ainda que as variantes adotadas pelos
discentes tem relação com a aproximação e a influência da língua materna.

Considerações finais

Esta pesquisa está voltada para os estudos da linguística variacionista


que se propõem a discutir sobre as variações existentes nas línguas. Foi na
variação diatópica que nosso trabalho se deteve. Nossos sujeitos foram os
discentes do 4º período do curso de Letras Espanhol da UERN/CAPF.
Todos os objetivos aqui traçados foram alcançados, pois iniciamos
descrevendo as características fônicas existentes nas oito zonas dialetais. Logo,
analisamos e explicamos as concepções sobre variação linguística e verificamos
175

quais são as variantes assumidas pelos sujeitos e quais variantes eles adotam de
fato em suas falas.
Ao finalizarmos este estudo conseguimos responder as perguntas
surgidas que nos serviram de estímulo para a realização de nossa pesquisa sobre
as variações linguísticas no nível fônico. Ademais, tivemos nossas hipóteses
confirmadas, pois os informantes apresentam diferentes traços fônicos que
englobam regiões distintas. Também notamos que o alunado não tem
consciência das marcas fonéticas que utiliza, já que as respostas obtidas através
dos questionários não condizem com as realizações obtidas pelas gravações da
leitura do texto.
Verificamos ainda que os traços fônicos dos informantes os enquadram
dentro do continente americano. Entretanto, apresentam características de
diversas zonas, principalmente a zona do México e América Central e a zona
Andina.
Acreditamos que esta pesquisa foi de suma importância para
aprofundar nossos conhecimentos nas variantes diatópicas da língua espanhola,
pois, apesar de tratar sobre as variações linguísticas, tema esse que já foi bem
explorado em trabalhos anteriores, percebemos que no nível fônico ainda
apresenta poucas discussões e acreditamos que para os futuros docentes de
língua espanhola será bastante relevante, uma vez que facilitará na identificação
das variantes.
Desse modo, esperamos que mais trabalhos sejam realizados dentro
dessa temática. Além da utilização de questionário e gravação de leituras,
futuras pesquisas podem focar nas falas espontâneas dos alunos comparando
com as falas controladas. Devido ao pouco tempo, não conseguimos aplicar a
pesquisa em fala espontânea como estava previsto em nosso projeto, mas
esperamos que possa inquietar pesquisadores para a construção de trabalhos
futuros.

Referências

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2018. Dissertação (mestrado em Ciências da Linguagem) – Curso de Pós-
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178

NÃO EXISTE REGIONALISMO LITERÁRIO

Nabupolasar Alves Feitosa

Considerações iniciais

O trabalho intelectual realizado por Gilberto Freyre de convencer


intelectuais e críticos literários, brasileiros e estrangeiros, de que existe um
regionalismo literário foi bem sucedido – praticamente não há vozes que se
levantem contra essa ideia, tomando-a, pois, como verdade –, porém não
encontra base na realidade histórica. Lamentavelmente, o “regionalismo
literário” virou um truísmo, e isso tem acarretado o enfraquecimento de
pesquisas que joguem luz sobre o tema.
Pesquisa de pós-doutoramento realizada por este escriba e encerrada
em março de 2020 permitiu a este escriba chegar à raiz do conceito de
regionalismo e compreender que a forma como é utilizado para se referir à
literatura está errada e deve ser subvertido porque incorreto.
Que fique claro já de saída que aqui não se está negando a existência do
regionalismo – posto ter sido um movimento de muita relevância nos anos
1920, inclusive com realização de um Congresso Regional com alcance nacional
–, mas sim que esse conceito não pode ser atribuído à literatura ou a qualquer
tipo de arte.
O regionalismo existiu como movimento, e apenas assim, jamais como
movimento literário. Quando se busca uma definição de regionalismo literário,
sobretudo forçando-se a ideia de que ele é fruto de um movimento, tem-se um
resultado absolutamente contestável, pois, ao que parece, as diferentes
definições de regionalismo não encontram base na realidade histórica e tangível.
Assim, pelo menos três críticos literários são trazidos para a discussão.
A primeira é a crítica literária Lúcia Miguel Pereira (1901-1956), que contribui
com seu texto História da literatura brasileira, prosa de ficção de 1870 a 1920
(PEREIRA, 1950).
O segundo texto a passar pelo escrutínio aqui é o texto Do beco ao belo:
dez teses sobre o regionalismo na literatura (CHIAPPINI, 1995). Não foi possível
analisar as dez teses, porém a ideia central entre diretamente no debate sobre o
regionalismo, truísmo que deve ser banido.
Finalmente, o crítico de maior peso a ser apresentado na discussão a
respeito do regionalismo é o sociólogo paulista Antônio Cândido. Dele,
destaca-se o texto Literatura e Subdesenvolvimento (CÂNDIDO, 2017a).
179

O conhecimento prévio que embasa a discussão, ainda que os textos


não sejam literariamente aproveitados aqui, vêm de livros de Gilberto Freyre
(1968; 2004; 2015), principalmente aqueles publicados no jornal Diário de
Pernambuco e reunidos nos livros Tempos de Aprendiz (1979); do livro
fundamental e decisivo de Neroaldo Pontes de Azevedo (1984), que revela
pesquisa sobre a imprensa dos anos 20 em Pernambuco; e da Moema Selma
D‟Andréa (2010) que trata de Gilberto Freyre e sua relação com a tradição.
Além desses, outros textos são consultados e trazidos para o debate presente
aqui.
O objetivo aqui é mostrar as razões pelas quais se pode afirmar que se
erra ao se adotar e usar a expressão “regionalismo literário” pela academia e
indicar possibilidades que preencham a necessidade de críticos em classificar
certas obras literárias que hoje são tachadas – com toda a carga negativa que
esse particípio carrega – de “regionalistas”.
Este texto está dividido em três partes. Na primeira, várias
características atribuídas a textos considerados “regionalistas”, como seca e
banditismo social, por exemplo, são confrontadas com a realidade factual a fim
de se saber se encontram sustentação em fatos.
Na segunda parte, são apresentadas as razões pelas quais não existe
regionalismo literário, sobretudo com base no que se escreveu nos anos 1920 e
nos acontecimentos dentro do 1º Congresso Regionalista do Nordeste, de 1926.
As consequências da adoção desse conceito equivocado na atualidade
são o prolongamento de um erro de já deveria ter sido corrigido na academia e,
consequentemente, na produção de livros didáticos. A produção deste texto
tem também esse objetivo.
A terceira a última parte mostra as bases do movimento regionalista a
partir do programa do Centro Regionalista do Nordeste e do Convite para o 1º
Congresso Regionalista do Nordeste, de 1926, os quais não oferecem sequer a
palavra literatura em toda a sua extensão.

Ausência de base na realidade

É interessante começar com o seguinte trecho: “Chamar de colonial ou


nacional uma literatura não é defini-la, é apenas dizer que ela se produziu numa
colônia ou numa nação” (COUTINHO, 2014, p. 65). Se se fizer uma paráfrase
acrescentando-se o termo “regional”, pode-se escrever assim: Chamar de regional
uma literatura não é defini-la, é apenas dizer que ela se produziu em uma região. Só isso já
180

deveria ser suficiente para convencer a tantos que o termo “regionalismo” não
é adequado para se classificar uma obra literária, no entanto, esse não é o caso.
Afrânio Coutinho interroga: “Que valor definitório, do ponto de vista
crítico-literário, têm esses termos? Por outras palavras, que é literatura colonial
ou literatura nacional?” (COUTINHO, 2014, p. 65). Aqui se pode fazer o
mesmo exercício de se introduzir o termo “regional” à pergunta e se verá que o
efeito é o mesmo e a resposta também seria a mesma.
A questão é que Afrânio Coutinho não se apercebe disso e continua
preso ao paradigma do conceito equivocado do “regionalismo” e por isso
mesmo, em outro ponto do livro, afirma: “o regionalismo constitui uma
contribuição das regiões do país ao todo nacional, valores locais ao meltingpot
(grifo do autor) de que resulta do todo. O regionalismo não se opõe ao
conjunto, ao nacional, ao invés, forma-o” (COUTINHO, 2014, p. 104). Se
assim o é, não deveria ter sido chamado de regional, mas de nacional. E se é
para se tratar das contribuições para o todo nacional, pode-se começar a
classificar a literatura de “estadual”; e essa literatura de um estado é produzida,
supostamente, em uma cidade, portanto seria uma literatura “cidadal”; e na
cidade, essa literatura nasceu em um bairro, então é “bairral”, e assim por
diante, buscando-se identificar a área geográfica onde a obra nasceu. Isso não
faz o menor sentido.
E não faz sentido sobre tudo quando se raciocina com a noção de
sistema literário, de Antônio Cândido (2017, p. 25). O que Afrânio Coutinho
escreve é como se quisesse que uma literatura produzida em algum ponto do
País não fizesse parte do sistema literário nacional. Todavia, já que não existem
subsistemas literários, todos os livros publicados, independentemente da rua,
bairro, cidade, estado ou região onde as obras são impressas, pertencem ao
sistema literário nacional, não se podendo, portanto, rotular de regional.
Outro ponto a se considerar está relacionado com as definições
mesmas que circulam sobre “regionalismo” ou “regionalismo literário”. A
crítica literária e ensaísta Lúcia Miguel Pereira, em seu História da literatura
brasileira, prosa de ficção de 1870 a 1920 (PEREIRA, 1950), afirma que são
regionalistas as obras:

cujo fim primordial for a fixação de tipos, costumes e


linguagens locais, cujo conteúdo perderia a significação
sem esses elementos onde os hábitos e estilos de vida se
181

diferenciem dos que imprime a civilização niveladora29.


Assim entendido, o regionalismo se limita e se vincula
ao ruralismo e ao provincialismo30, tendo por principal
atributo o pitoresco, o que se convencionou chamar de
“cor local” (PEREIRA, 1950, p. 175).

Primeiramente, toda obra, de certa forma, fixa tipos, costumes e


linguagens. É obvio que se você mudar isso, a obra muda. Se os personagens de
Machado de Assis falassem diferente do que falam, se morassem em outro lugar
que não o Rio de Janeiro, teriam outra significação. Escrever isso é repetir
obviedades, pois a fixação de características ocorre em qualquer obra, a
depender da ambientação. Mas aí a crítica mineira dá o parâmetro de
comparação: é o estilo de vida da civilização niveladora. Quer dizer que se o escritor
não atender aos parâmetros dessa civilização niveladora ele escreve uma obra
de segunda categoria? É uma obra de alcance apenas regional, que só tem
validade em uma região? Aqui ela apenas expressou sem medo e sem pejo seu
preconceito de classe. E essa classe nós podemos deduzir, pela continuação da
citação, que se trata da civilização urbana, elitista, já dominante, em oposição à
zona rural, aos senhores de engenho, decadentes e até mesmo aos cafeicultores,
cujo prestígio também entra em declínio, sobretudo a partir da ascensão de
Getúlio Dorneles Vargas ao poder.
Contudo, ainda raciocinando a partir da citação de Lúcia Miguel
Pereira, se regionalismo é ruralismo, então vamos chamar de literatura rural, até
porque se pode fazer oposição em literatura urbana, e ambas (urbana e rural)
estariam corretas porque zona rural e zona urbana existem em todo lugar. A
literatura urbana também mostra tipos, costumes e linguagens. Mas aí persiste o
problema de se classificar uma obra literária pela posição geográfica, e não pela
universalidade das paixões humanas, e assim voltaríamos para a primeira citação
de Afrânio Coutinho.
Imaginemos que o local onde está ambientado o enredo ou o tema de
qualquer obra de arte fosse de fato um critério de classificação. Então a peça
Hamlet (SHAKESPEARE, 2016), seria castelal, por que se passa no castelo de
Elsinore; a peça Eles Não Usam Black-Tie (GUARNIERI, 2016) seria morral,
ambientada que é em um morro no Rio de Janeiro; Brás, Bexiga e Barra Funda
(MACHADO, 2013), literatura bairral, posto que trata da presença dos

29 Grifo nosso.
30 Grifo nosso.
182

imigrantes italianos nesses bairros da capital paulista; e todo livro que se passa
em cidade teria que ser cidadal. Os livros que fugiriam a essa regra teriam que se
passar em várias partes do mundo, como são os livros O Código da Vinci e Inferno
(BROWN, 2004; 2013) e muitos romances de espionagem, a exemplo de Tripla
Espionagem (FOLLET, 2019) e A Garota do Tambor (CARRÉ, 1983).
Em outras palavras, não é a posição geográfica onde a obra está
ambientada nem é o local onde a obra foi produzida e nem é a fixação de
características de pessoas, linguagens e costumes que definem a obra. A obra de
arte, por ser universal, toca nas paixões humanas. A maneira como o autor lida
com esse conjunto de variáveis delineia o seu estilo, podendo-se aí se falar em
literatura barroca ou romântica. Como indicou Massaud Moisés, “o estilo refere
o modo particular como são manipulados os recursos de uma língua”. A mera
fixação da latitude e da longitude não serve para a literatura.
Outros problemas surgem também com Ligia Chiappini, que em seu
texto Do Beco Ao Belo: dez teses sobre o regionalismo na literatura (CHIAPPINI, 1995)
define “regionalismo” como “manifestação de grupos de escritores que
programaticamente defendem sobretudo uma literatura que tenha por
ambiente, temas e tipos uma certa região rural, em oposição aos costumes,
valores e gostos citadinos, sobretudo das grandes capitais” (CHIAPPINI, 1995,
p. 153-154).
O primeiro problema está na expressão “programaticamente”. Não
existe “programa regionalista” ou “programa do regionalismo literário”, seja em
manifesto, seja em textos desses autores, como crônicas, críticas ou qualquer
outra forma. José Lins do Rego, por exemplo, nunca se referiu a sua obra como
regionalista. Pelo contrário, se opôs a essa ideia de regionalismo literário, ainda
que louvasse o regionalismo de Gilberto Freyre, até porque o regionalismo
freyreano era majoritariamente político e social.
O segundo problema está em “defendem”. Não existe nenhum escritor
que defenda uma literatura em ambiente rural, até porque não existe um
programa com esse objetivo. Eles apenas escolheram localizar suas obras – nem
todas, destaque-se – nesse ambiente, mas não eram escritores que só escreviam
livros com a temática do campo. José Lins do Rego, por exemplo, produz o
enredo de O Moleque Ricardo (REGO, 2006) se passando no Recife/CE e
Eurídice (REGO, 2008) na cidade do Rio de Janeiro; Raquel de Queiroz
escolheu Baturité/CE como cenário para seu romance João Miguel (QUEIROZ,
2004a) e Fortaleza/CE para Caminho de Pedras (QUEIROZ, 2004b).
183

Em um último comentário sobre a definição de Chiappini, importa


frisar que mesmo quando se produziam obras ambientadas em zonas rurais, ao
contrário do que afirma a autora, quase nunca havia o objetivo de se opor à
vida urbana, sendo a exceção mais marcante o romance Senhora de Engenho
(SETTE, 1986), publicado em 1921, o qual tinha como mensagem a ideia de
que a vida no Engenho é melhor do que no Rio de Janeiro. Tomar uma
exceção como regra, e ainda por cima adotar como classificação de uma obra
de arte, não é mesmo a melhor forma de se fazer crítica literária. E, de novo, se
obra regional significa obra que se passa na zona rural, então que se chame de
literatura rural, em contraste com a urbana.
Por último se traz para o debate – quase como o vinho servido por
último nas bodas de Caná – o mais importante crítico literário brasileiro, o
sociólogo Antônio Cândido, o qual afirma no texto Literatura e
Subdesenvolvimento, disponível no seu livro Educação pela noite: “Uso aqui o termo
“regionalismo” à maneira da nossa crítica, que abrange toda a ficção vinculada à
descrição das regiões e dos costumes rurais desde o Romantismo”
(CÂNDIDO, 2017a, p. 190).
Na esteira dos comentários aos críticos anteriores, Antônio Cândido
também insiste em chamar a literatura rural (literatura não urbana) de
“regional”, pois esta se ocuparia em descrever as regiões onde os enredos são
ambientados bem como os costumes daquela população, dando contornos
limitados e estreitos a qualquer obra de arte que se produza na zona rural ou
que nela esteja ambientado. Mais uma vez, é óbvio que qualquer livro cujo
enredo se passe num certo lugar (vila, cidade, região, país) vai descrever aquela
área onde se desenrola a ação. Mesmo em romances psicológicos, a descrição
do cenário ocorre e localiza o leitor na trama. E também não se imagina que um
romance que se passe no sertão cearense tenha por centro a descrição dos
costumes de Buenos Aires. O conceito em que Antônio Cândido se ancora não
informa nada além de obviedades em busca de justificar um truísmo, o de que
existe “regionalismo literário”.
Se Antônio Cândido, em vez de regionalismo, usasse o termo
“tradicionalismo”, grande parte da sua ideia seria, quiçá, preservada e teria mais
uma base para verdade. O tradicionalismo está na base de um movimento que
se espalha nas artes, principalmente nos países que foram colônia, e não apenas
nesses, como quer fazer crer o sociólogo, que afirma que “o regionalismo foi
uma etapa necessária, que fez a literatura, sobretudo o romance e o conto,
focalizar a realidade local” (CÂNDIDO, 2017a, p. 192). Essa afirmação não é
184

correta. Primeiramente, não foi uma etapa necessária, foi um caminho


escolhido. Nessa mesma página, Antônio Cândido escreve: “a realidade
econômica do subdesenvolvimento mantém a dimensão regional como objeto
vivo, a despeito da dimensão urbana ser cada vez mais atuante” (CÂNDIDO,
2017a, p. 192). Se a dimensão urbana é cada vez mais atuante, então o que ele
chama de “regionalismo” foi na verdade o exercício de uma escolha.
Essas escolhas se deram pelas circunstâncias, a fim de focalizar as
diferenças entre ex-colônias ou nações novas que haviam sido invadidas e
estiveram sob o jugo de outro povo por longo tempo. Marcar a identidade de
um povo é o começo de sua emancipação. Essa identidade agregadora é
encontrada no passado e em elementos que foram se tornando tradição de
maneira dissociada do que o país invasor pratica. Daí, os movimentos
tradicionalistas que surgiram, como o “Regionalismo” pernambucano dos anos
1920, ou mesmo o dos países europeus que se livraram da presença dos turcos
no final do Século XIX.
Preso ao paradigma da existência de um “regionalismo” na literatura
como fase ou estilo, o sociólogo vai além, e propõe a subdivisão do
“regionalismo” em três fases: o pitoresco; romance social; e o super-
regionalismo.
Argumenta Cândido que “na fase de consciência eufórica de país novo,
caracterizada pela ideia de atraso, tivemos o regionalismo pitoresco”
(CÂNDIDO, 2017a, p. 192), uma literatura que, conforme entende, há muito é
considerada nada mais que uma subliteratura. Talvez fosse interessante se
perguntar quem considerava pitoresca aquela literatura rural. Parece que esse é
o ponto de vista de um homem urbano para um texto que tenta retratar o
campo. No entanto, costumes da cidade também podem ser considerados
pitorescos. Pitoresco é aquilo que alguém acha que merece ser pintado. Isso se
aplica ao campo e à cidade, a depender de quem olhe.
Sobre a segunda fase ele afirma: “Na fase de pré-consciência do
subdesenvolvimento, ali pelos anos 1930 e 1940, tivemos o regionalismo
problemático, que se chamou de “romance social”, “indigenismo”, “romance
do Nordeste” (...)” (CÂNDIDO, 2017a, p. 193). Veja o leitor que Antônio
Cândido já tem outras possibilidades de classificação do romance a que se
refere. Ele poderia ter usado ainda o termo “neo-realismo”, como alguém já
propôs, ou mesmo “naturalista”, como o próprio Antônio Cândido imaginou
ao afirmar que “quando na Europa o Naturalismo era uma sobrevivência, entre
nós ainda podia ser ingrediente de fórmulas literárias legítimas, como as do
185

romance social dos decênios de 1930 e 1940” (CÂNDIDO, 2017a, p. 181).


Apesar disso, ele prefere chamar de “regionalista”. É perceptível também que,
se aquilo que era o “regionalismo pitoresco” é diferente desse “regionalismo
problemático”, não haveria razão para receberem o nome de “regionalista” a
não ser pelo equívoco de substituir literatura rural por “regionalismo”.
Finalmente, vem a fase do super-regionalismo, o qual, para Antônio
Cândido, “corresponde à consciência dilacerada do subdesenvolvimento e
opera uma explosão do tipo de naturalismo que se baseia na referência a uma
visão empírica do mundo” (CÂNDIDO, 2017a, p. 195). Esse super-
regionalismo é representado por Guimarães Rosa, cuja obra é “solidamente
plantada no que se poderia chamar de universal” (CÂNDIDO, 2017a, p. 195).
Poderia chamar de universal? E por que não chama? Porque aí teria que se opor
a um paradigma que ainda hoje dispõe de tanta força pelo truísmo em que se
transformou que até mesmo Antônio Cândido teve que se curvar à força da
onda iniciada por Gilberto Freyre. Guimarães Rosa é universal. José Lins do
Rego é universal. Bernardo Guimarães é universal. A escolha do campo como
ambiente não tira de nenhuma obra de arte sua universalidade.
Pelo critério adotado por Antônio Cândido, o quadro Guernica, de
Pablo Picasso, seria uma pintura regional. Mas Guernica não retrata apenas as
mortes das pessoas da então vila de cerca de 5 mil habitantes ao norte da
Espanha infligidas por bombardeio aéreo em 1937, mas sim o sofrimento de
toda a humanidade.

“Características do regionalismo” como as pessoas imaginam.

Muitos autores, a exemplo dos citados acima, insistem em cravar que é


regionalista a obra que mostra as características típicas de uma região, e, aqui no
Brasil, isso normalmente é dito ou escrito se pensando em regiões rurais,
sobretudo o sertão nordestino. E quando se pede para alguém listar quais
seriam as características que definem uma obra regionalista nordestina, no geral
a pessoa fala de seca, fome, miséria, banditismo social, dentre outras, formando
assim uma longa lista de estereótipos. Sugestionadas pela literatura, muitas
pessoas ainda vão falar de produção de cana-de-açúcar, escravidão,
patriarcalismo, banditismo social e migração. Tudo isso existe no mundo
inteiro, não é apenas no Nordeste brasileiro.
186

A fim de mostrar como não são características de uma região, alguns


temas serão apresentados aqui de maneira mais abrangente, deixando claro que,
mesmo que se quisesse, não daria para se classificar uma obra literária pelas
características de uma região, uma vez que podem existir em outras partes do
globo.

Seca

Para alguns, e parece que esses não são poucos, seca é problema do
Nordeste, que só leva o tempo em se aproveitar da situação para ficar com o
dinheiro arrecadado pelo Sudeste. Obviamente, criou-se todo um discurso em
torno do que o professor Durval Muniz de Albuquerque Júnior chamou de A
Invenção do Nordeste e outras artes (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011).
Sim, a região Nordeste, naturalmente, é a mais atingida pela seca, mas
não é só nessa região que esse fenômeno ocorre. No primeiro trimestre de
2020, várias manchetes de jornal anunciavam problemas com a seca no Rio
Grande do Sul. Em 2010, a região amazônica, sonho de muitos cearenses pela
abundância de água, passou pela maior seca em 100 anos. E se a busca foi mais
distante, fica-se sabendo que em 2018, a Austrália passou por sua maior seca
também em 100 anos. Também em 2018, a Europa sofreu com forte período
de seca em países como Letônia, Lituânia, Suécia e Alemanha.
Em breve pesquisa na internet, sabe-se que 6% da população mundial
vivem em regiões áridas ou semiáridas, as quais cobrem 42% do globo terrestre.
Descobre-se que cerca de 1/3 da população mundial não tem acesso a água
potável. Ou seja, nada disso é exclusivo do Nordeste brasileiro.

Banditismo social

“Regionalismo” é associado imediatamente a Lampião e cangaço.


Pronto. Banditismo social é coisa dos nordestinos, que são, em sua maioria,
violentos. No entanto, para mudar essa ideia, basta ler o livro Bandidos
(HOBSBAWN, 2010), no qual o historiador inglês traz outros nomes de
bandidos sociais de várias partes do mundo que viraram heróis defendendo os
mais fracos e oprimidos. Entre esses bandidos estão Robin Hood (Inglaterra);
Louis-Dominique Cartouche (França); Johannes Buckler, o “Schinderhannes”
(Alemanha); N. Romanetti, Pasquale Bruno, Salvatore Giuliano (Itália);
187

Lampião (Brasil); Jesse James (EUA), Pancho Villa (México). Panayot Hitov
(Hungria); e muitos outros ao redor do mundo.

Vida patriarcal em outras terras

Pode-se ainda afirmar que o patriarcalismo com esse modelo de Casa-


Grande, com força de trabalho baseada na mão-de-obra escrava seria típico do
Nordeste brasileiro. Vem de Gilberto Freyre a contradição a essa ideia: “Em
Cuba, a monocultura da cana, a escravidão africana e o latifúndio deram à
paisagem traços e cores que a aparentam, tanto quanto Barbados, da paisagem
do Nordeste” (FREYRE, 2004, p. 40).
E no prefácio a Casa-Grande & Senzala (FREYRE, 1996), seu mais
famoso livro, Gilberto Freyre faz uma descrição do sul dos EUA e o compara
ao Nordeste brasileiro, com vários elementos que muitos poderiam pensar ser
uma característica única do Nordeste e por isso retratada na “literatura
regional” brasileira, sobretudo a dos anos 1930, mas no texto abaixo o equívoco
se corrige.

Mas regressando [da Califórnia a Nova Iorque] pela


fronteira mexicana, visava menos a esta sensação de
paisagem sertaneja que a do velho Sul escravocrata. Este
se alcança ao chegar o transcontinental aos canaviais e
alagadiços da Luisiana, Alabama, Mississipi, as Carolinas,
Virgínia – o chamado “deep South”. Região onde o regime
patriarcal de economia criou quase o mesmo tipo de
aristocrata e de casa-grande, quase o mesmo tipo de
escravo e de senzala que no Norte do Brasil e em certos
trechos do Sul; o mesmo gosto pelo sofá, pela cadeira de
balanço, pela boa cozinha, pela mulher, pelo cavalo, pelo
jogo; que sofreu, e guarda as cicatrizes, quando não as
feridas abertas, ainda sangrando, do mesmo regime
devastador de exploração agrária - o fogo, a derrubada, a
coivara, a “lavoura parasita da natureza”, no dizer de
Monteiro Baena referindo-se ao Brasil. A todo estudioso
da formação patriarcal e da economia escravocrata do
Brasil impõe-se o conhecimento do chamado “deep South”.
As mesmas influências de técnica de produção e de
trabalho – a monocultura e a escravidão – uniram-se
naquela parte inglesa da América como nas Antilhas e na
188

Jamaica, para produzir resultados sociais semelhantes aos


que se verificam entre nós. Às vezes tão semelhantes que
só varia o acessório: as diferenças de língua, de raça e de
forma de religião (FREYRE, 1996, p. xlvi-xlvii).

Fome

Segundo dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação


e Agricultura (FAO), em 2018 cerca de 821,6 milhões de pessoas em todo o
mundo não tiveram acesso suficiente a alimentos. Esse número foi maior que
2017. Ou seja, em 2018, 1 em cada 9 pessoas no mundo passava fome. A Ásia
concentra 513,9 milhões desses famintos, seguida da África (256,1 milhões) e
América Latina e Caribe (42,5 milhões). A fome está longe de ser uma
característica do Nordeste, nem agora nem ao longo da história. As ondas de
fome que assolaram países inteiros estão por toda parte, da Rússia à Irlanda,
para citar apenas dois. E se se pensar em segurança alimentar, a situação é ainda
mais crítica, posto que chega a 2 bilhões de pessoas (26,4%) o número da
população mundial nesta situação.

Migração

Os retirantes das secas nordestinas não são os únicos deslocamentos


populacionais em razão de desastres naturais. Existe estimativa de que em 2016
pelo menos 24 milhões de pessoas no mundo haviam se deslocado por razões
ambientais. O Alto Comissariado da ONU para Refugiados (Acnur) estima que
75 mil pessoas foram deslocadas em razão de seca da Somália. Entre 2016 e
2017, foram 615 mil “retirantes” da seca.
Todas as características atribuídas ao regionalismo nordestino são
encontradas em outras partes do mundo, portanto não há por que insistir na
ideia de que livros escritos que mostrem esse tipo de ambiente possam compor
uma escola literária especial, sobretudo porque esse não foi o objetivo dos
autores tachados de regionalistas.
189

O movimento regionalista do Recife e o 1º Congresso Regionalista do


Nordeste

O que torna possível contrariar a ideia de que existe “regionalismo


literário” é o exame do programa do Centro Regionalista do Nordeste e o que
foi debatido no 1º Congresso Regionalista do Nordeste, de fevereiro de 1926.
O Centro Regionalista foi criado em 1924, regido sob a presidência de
Odilon Nestor, professor da faculdade de direito do Recife. Gilberto Freyre foi
escolhido secretário do Centro. Alfredo de Moraes Coutinho foi escolhido para
escrever o programa, aprovado na forma abaixo:

1º - O Centro Regionalista do Nordeste, com sede no Recife, tem por


fim desenvolver o sentimento da unidade do Nordeste, já tão
claramente caracterizada na sua condição geográfica e evolução
histórica, e ao mesmo tempo, trabalhar em prol dos interesses da
região nos seus aspectos diversos: sociais, econômicos e culturais.
2º - Para isto será o Centro constituído e organizado dentro do
espírito de comunhão regional, aproveitando os bons elementos da
inteligência nordestina, com exclusão de qualquer particularismo
provinciano, quer quanto às cousas quer quanto às pessoas.
3º - O Centro conservará a sua ação livre das injunções das correntes
partidárias, colaborando com todos os grandes movimentos políticos
que visem ao desenvolvimento material e moral do Nordeste.
4º - Perante o governo da União, o Centro defenderá os interesses do
Nordeste na sua solidariedade, sem sacrificar as questões
fundamentais da região às vantagens particulares de cada Estado.
5º - A fim de congregar os elementos da vida e da cultura nordestina,
o Centro proporá:
a) Organizar conferências, exposições de arte, visitas, excursões.
b) Manter em sua sede biblioteca e sala de leitura, onde se achem
representadas as produções intelectuais do Nordeste, no passado e no
presente.
c) Promover a cada ano ou de dois em dois anos, em uma cidade do
Nordeste, um congresso regional.
d) Editar uma revista de alta cultura, O Nordeste, dedicada
especialmente ao estudo das questões nordestinas e ao registro da vida
regional (AZEVEDO, 1984, p. 143-144).
190

Não existe aí nenhuma menção a literatura ou a promoção de arte


literária, que é subentendida, quando muito, estar presente na ideia geral de
cultura. Fica claro no programa do Centro o interesse social, econômico e
político das ações da agremiação.
Quando ocorre o chamado 1º Congresso Regionalista do Nordeste, em
fevereiro de 1926, o Centro também tem uma programação de debates e
apresentações que haviam sido anunciadas no convite, descrita abaixo:

I – Problemas econômicos e sociais


1. Unificação econômica do Nordeste. Ação dos poderes públicos e
particulares.
2. Defesa da população rural. Habitação, instrução, economia
doméstica.
3. O problema rodoviário do Nordeste. Aspecto turístico,
valorização das belezas naturais da região.
4. O problema florestal. Legislação e meios educativos.
5. Tradições da cozinha nordestina. Aspectos econômico, higiênico e
estético.
II – Vida artística e intelectual
1. Unificação da vida cultural nordestina. Organização
universitária. Ensino artístico. Meios de colaboração.
2. Defesa da fisionomia arquitetônica do Nordeste. Urbanização
das capitais. Plano para as pequenas cidades do interior. Vilas
proletárias. Parques e jardins nordestinos.
3. Defesa do patrimônio artístico e dos monumentos históricos.
4. Reconstituição das festas e jogos tradicionais (AZEVEDO,
1984, p. 154).

O programa de 1924 é reforçado no Congresso de 1926. As


apresentações são todas preocupadas com arquitetura, urbanismo, moradia,
higiene urbana. Era política e economia o que movia o Centro, principalmente
pelo abandono do Nordeste pelo poder central, que preferia investir nas
lavouras de café dos presidentes cafeicultores. No congresso, não houve uma
única discussão sobre literatura. Esta esteve presente apenas de forma lúdica,
com recital para entreter os presentes. Como afirma Neroaldo Azevedo:
“Observa-se ainda que, a par de um projeto de natureza política, no que diz
respeito aos aspectos econômico e social, esboça-se um plano de ação
191

cultural, sem que haja especificamente uma preocupação com a


literatura, de modo particular”31 (AZEVEDO, 1984, p. 154).

Considerações finais

As discussões em torno do regionalismo são importantes para tratar de


temas como desigualdade regional, advindas de uma histórica escolha dos
governos centrais. Na República, essa desigualdade se mostrou gritante e
desencadeou o início de organizações que defendiam o direito de seus estados
terem alguma participação nos investimentos do Estado brasileiro. Entre essas
organizações estava o Centro Regionalista do Nordeste, presidido por Odilon
Nestor e secretariado por Gilberto Freyre. Nasce aí o movimento regionalista
do Nordeste, que tinha pretensões de ordem política e econômica, jamais
buscando promover a o movimento como militância literária.
Mais tarde, Gilberto Freyre passa a usar a expressão “regionalismo
literário” e se lançar como pai desse movimento e grande influenciador de
todos. Nasce assim essa noção de que uma obra pode ser “regionalista”. O
problema é que na atualidade, como na época de Gilberto Freyre, referir-se a
uma obra literária como “regional” significa dar-lhe limites, estreitar-lhe os
horizontes, diminuí-la. José Lins do Rego reclamou disso a seu tempo, e mais
tarde, já nos anos 1980, o próprio Gilberto Freyre se irrita com o estreitamente
que dão a Casa-Grande & Senzala chamando o livro de regional. Nos anos 1920,
como agora, dizer que algo é regional quer dizer que é especificamente de uma
região e que seu valor se confere naquela área geográfica determinada, seja na
culinária, na música ou na literatura.
Mas a questão é que a arte é universal por excelência e não deve ser
vista de maneira delimitada, com horizontes fixos. E toda a produção literária
que se passa em zona rural é também arte, é universal, não podendo jamais ser
“regional”.
A força de Gilberto Freyre fez com que a ideia de que existiria um
“regionalismo literário” se espalhou e acabou por criar um truísmo, do qual
críticos não conseguem se apartar, apesar de haver pouca base para sustentação,
conforme ficou demonstrado neste texto. As contradições interna das
afirmações, a ausência de base histórica ou qualquer outro fundamento
deveriam ser suficientes para que se buscasse outra forma, dessa vez mais

31
Grifo nosso.
192

respeitosa, de se referir a literatura rural, ao romance social rural, ou como quer


que o queiram chamar.
O leitor pode escolher outros críticos e testá-lo como foi feito aqui.
Nenhum que sustente a existência de “regionalismo literário” vai escapar
porque não existe meio de manter uma teoria sem base na realidade tangível.
Invencionices, como a história de que os “regionalistas literários”
seguem um programa ou que o “romance regional” são histórias criadas e
repetidas tanto que todos passaram a creditar nisso. Existe até livro que afirma
que o Manifesto Regionalista de Gilberto Freyre foi lido no 1º Congresso
Regionalista do Nordeste em 1926, quando na verdade o manifesto foi escrito
em 1952. Mas isso é repetido nos cursos de letras e nos livros didáticos. Essas
armadilhas têm que ser desmontadas. A primeira coisa a se fazer é conhecer o
que foi o movimento regionalista do Recife, e logo se verá que “regionalismo
literário” não existe nem existe movimento “regionalista literário”. Ou ainda a
invencionice de que existem características que são próprias do Nordeste.
Mostrou-se na segunda parte desse texto que essa exclusividade é forçada.
Interessa, para a arte, é saber de que maneira o artista juntou todos
esses elementos para falar das paixões humanas, para se expressar esteticamente
a respeito de todo um conjunto de elementos que estão à sua disposição. Mas
não interessa para a arte ser tratada como uma criação do espírito que só tem
validade numa região. Não interessa para ninguém que arte nenhuma seja
considerada regional.

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A MULHER NORTE-RIO-GRANDENSE: HISTÓRIA E


IDENTIDADE

Francisca Janiele Buriti


Maria Arlinda de Macêdo Silva

Considerações iniciais

Quem nos dias de hoje vê, como está posta a história das mulheres no
mundo, até pensa que foi sempre assim. O que muita gente talvez não saiba é
que o pouco que se discursivizava era sobre alguém com seu viver unicamente
atrelado ao privado, ao lar, à submissão, sem muita relevância, como se a
mulher não existisse fora desse contexto de “cárcere”. A imagem do feminino
na sociedade foi praticamente invisível por um longo tempo, e essa classe sem
visibilidade, começara a escrever sua história que, ainda em construção
atualmente, é de muita luta e resistência.
Por só existir nesse contexto privado/doméstico é que a história das
mulheres, em todos os âmbitos, se apresenta tão recente. Ao sair do contexto
privado, se faz necessário fazer conhecer alguém que começa a desenhar sua
própria história, como ser humano que tem identidade, que é capaz, que quer
ser ouvida, que quer decidir sua própria vida, alguém que veio produzir uma
mudança social crescente e permanente em épocas contemporâneas.
A história das mulheres passa do anonimato e da insignificância para a
visibilidade, através dos movimentos feministas, que lutaram, e ainda lutam, por
equidade social entre homens e mulheres. E hoje, percebemos que,

a história das mulheres mudou. Em seus objetos, em seus


pontos de vista. Partiu de uma história do corpo e dos
papéis desempenhados na vida privada para chegar a uma
história das mulheres no espaço público da cidade, do
trabalho, da política, da guerra, da criação. Partiu de uma
história das mulheres vítimas para chegar a uma história
das mulheres ativas, nas múltiplas interações que
provocam a mudança (PERROT, 2007, p. 05-06).

A história das mulheres não cabe mais no anonimato, pois essas


mulheres constituem uma classe que muda e promove transformações
crescentes e constantes. Elas estão em todos os lugares, setores sociais
196

profissionais, artísticos do mais simples ao mais complexo, elas tomaram posse


das suas vidas para construir uma história como ser social em ascensão.
Nessa perspectiva, este trabalho objetiva trazer à memória a resistência
de mulheres potiguares que se tornaram pioneiras nas conquistas do direito de
exercerem a cidadania política e social, transpassando a vida doméstica. Mostrar
exemplos de lutas e conquistas, desempenha um papel importante não só para a
história, mas também servem de exemplos de encorajamento pela busca de uma
sociedade em que os gêneros dialoguem igualitariamente e contribuam para um
mundo melhor.

Contexto histórico – o nascimento da história das mulheres

Como mostra Colling (2004, p.13) a história das mulheres é um


fenômeno recente, porque, “desde que a História existe como disciplina
cientifica, ou seja, desde o século XIX, o seu lugar dependeu das representações
dos homens, os únicos historiadores”, que confinaram as mulheres a um
silêncio sufocante, pela falta de registro de suas vozes nos documentos oficiais.
Destarte, a mulher foi condicionada a ser invisível, primordialmente, por ser
vista apenas como parte do lar, do privado, pois pouco participava dos espaços
públicos. O papel feminino era limitado, mas não por escolha própria. Vivendo
numa cultura que as enclausuravam, quase nada se sabia sobre as mulheres, pois
não eram vistas socialmente, e consequentemente foram invisíveis por muito
tempo.
Outro fator relevante para a manutenção do silêncio da história das
mulheres está na falta de documentos históricos sobre a presença desses
sujeitos na sociedade. A ausência de registros da história feminina está
diretamente ligada ao viver doméstico/privado a elas destinado. Por não terem
direito ao convívio público, pouco se sabia e/ou se falava sobre as mulheres,
por isso, quase nada foi registrado em textos escritos ou outra forma de
preservação histórica. Dessa forma, não interessava historicizar a vida das
mulheres, até os anos de 1960, quando começa-se a falar sobre a figura
feminina na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, por meio de trabalhos
científicos, sociológicos e políticos, como bem grifou Perrot (2007).
Na ciência, a mulher aparece como objeto de estudo, por meio de
pesquisas sobre a natalidade, a mortalidade, a nupcialidade, assim como de
comportamentos de ordem sexual. Enquanto na sociologia a presença feminina
se destaca nas universidades, representando “um terço das matrículas nos anos
197

de 1970” (PERROT, 2007, p.20). E, por último, na política, as mulheres


ganham visibilidade por meio de movimentos de libertação contra a opressão
social, encabeçados por mulheres intelectuais, leitoras de Simone de Beauvoir,
que buscavam trazer à tona o corte epistemológico, feito pelos homens, na
história, ao excluírem a presença feminina.
Continuando esse legado feminista, este trabalho busca reavivar a
história das mulheres, principalmente, das potiguares, por meio da memória,
que representa para Halbwachs (apud Davallon, 2007, p. 25) “o que ainda
permanece vivo na consciência de um grupo ou para o indivíduo e para a
comunidade”. Logo, muitas, mulheres norte-rio-grandenses, representam uma
memória de resistência para o Rio Grande do Norte, por isso suas histórias
devem ser contadas para que não caiam no esquecimento e se apaguem da
memória dos sujeitos.

Mulheres potiguares: do privado para o Brasil e para mundo

O Estado do Rio Grande do Norte não deixou a desejar quanto aos


movimentos feministas no Brasil. Nesse estado, a mulher fez história no campo
político, pois foi aqui que a primeira mulher brasileira teve direito a votar. Mas
não foi só isso, a partir de agora conheceremos algumas guerreiras potiguares
que tiraram do anonimato as mulheres não só do RN, mas do Brasil. Os
movimentos feministas mudaram o cenário histórico do RN para sempre. A
história das mulheres ganha reconhecimento nacional desde o Brasil-Colônia,
com Clara Camarão vista como precursora do movimento feminista, seguida
por Celina Guimarães Viana, Alzira Soriano, Joana Bessa e Maria do Céu
Fernandes de Araújo, as quais marcaram o cenário político, junto a Nísia
Floresta e Alta de Souza, poetisas do RN.
Por meio da escarça memória inscrita nos arquivos de estudiosos
feministas, vamos relembrar a importante participação dessas mulheres, no
cenário político e cultural do RN.
Antes disso, vale ressaltar que, o termo escarça foi utilizado, pela falta
de bibliografias sobre a história dessas mulheres, em trabalhos científicos. Isso
pode ser notado nas referências bibliográficas utilizadas nesta pesquisa, que se
constituem, basicamente, de links da internet, dessa forma, podemos observar
que ainda hoje, essas mulheres, símbolos de resistência, não ganham a
visibilidade merecida na historiografia oficial.
198

Clara Camarão

Não há muitos registros sobre Clara Camarão, mas ao que tudo indica
era uma índia potiguar, nascida em meados do século XVII, possivelmente fazia
parte da tribo de Igapó, que se localizava na cidade de Natal, que na época
representava a Capitania do Rio Grande (hoje, atual Estado do Rio Grande do
Norte)32. Sua educação religiosa foi dada pelos padres jesuítas e também pelo
seu esposo Filipe Camarão, chefe da tribo. É tida como uma das primeiras
mulheres feministas do Brasil, uma vez, que ela quebrou paradigmas ao colocar
fim na separação dos trabalhos da tribo e se desligar das tarefas domésticas,
com o objetivo de combater, ao lado do seu esposo, nas guerras. Clara Camarão
comandou uma tropa de indígenas militantes na batalha com os holandeses no
período da conquista da comunidade do Porto Calvo, em Alagoas, no ano de
1637, onde teve muito êxito. Mulher destemida inspirava muitas mulheres no
RN. Sua garra a fará guerreira e heroína brasileira.

Figura 1: Ilustração (possível imagem de Clara Camarão).

Fonte: Jornal Tribuna do Norte33,

Muitos relatos de superação e mudanças na história feminina veio a


partir dessa guerreira, que ajudou a transformar o legado das mulheres no Rio
Grande do Norte, por isso o reconhecimento de Clara Camarão como a
primeira feminista nacional.

32 Disponível em:
http://adcon.rn.gov.br/ACERVO/secretaria_extraordinaria_de_cultura/DOC/DOC0
00000000108188.PDF. Acesso em: 09.06.2017.
33 Disponível em: http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/clara-camara-o-uma-

heroa-na-entre-o-mito-e-a-realidade/374304. Acesso: 02 abr. 2020.


199

Mesmo sendo invisível na história por muitos anos, Clara Camarão foi
homenageada em 27 de março de 2017, quando seu nome foi inscrito no Livro
Heróis da Pátria, devido a instituição da Lei Federal 13.422/2017. O livro foi
depositado no Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves, em Brasília,
Distrito Federal.
A potiguar também foi a primeira mulher brasileira a ser homenageada
com seu nome em uma refinaria: Refinaria Potiguar Clara Camarão, fator muito
importante para a conquista feminina no Rio Grande do Norte.

Nísia Floresta

Nísia Floresta Brasileira Augusta como era popularmente conhecida ou


Dionísia Gonçalves Pinto, seu nome de batismo, faleceu aos 75 anos, na
França, onde vivia. Seus restos mortais vieram para o Brasil aproximadamente
70 anos depois, em 1954, e sepultados em Papari, seu local de nascimento em
Nísia Floresta. A cidade ganhou este novo nome depois de sua morte
(CASTRO, 2010, p. 237).
Nísia Floresta, que era professora, escritora e poetisa, inicia sua carreira
na literatura publicando vários artigos num jornal do Pernambuco, os artigos
tinham como temática a vida feminina e suas condições, o que foi um grande
legado à história das mulheres. Em 1853, publicou Opúsculo Humanitário, uma
coletânea de artigos que falava da emancipação feminina.

Figura 2: Nísia Floresta.

Fonte: Blog Heroínas34.

Disponível em: http://www.heroinas.net/2014/07/dionisia-goncalves-pinto.html.


34

Acesso: 02 mar 2020.


200

Conforme Duarte (2010, p.10) em um tempo em que grande parte das


mulheres viviam confinadas em seus lares, Nísia Floresta “dirigia colégio para
moças no Rio de Janeiro e escrevia livros e mais livro para defender os direitos
femininos, dos índios e dos escravos”.
Ainda de acordo com Duarte (2010) com o propósito de modificar a
consciência das pessoas sobre as causas que defendia, Nísia Floresta, escreveu
vários livros, entre eles estão: Direito das mulheres e injustiça dos homens, em 1832; A
lágrima de um caeté, em 1849; Páginas de uma vida obscura, em 1855; Itinerário de uma
viagem à Alemanha, em 1857, Três anos na Itália, em 1864; Uma viagem à Grécia,
1872.
Retornou ao Brasil entre 1872 e 1875, mas não se soube nada sobre sua
passagem no país. Mesmo com sua imensa relevância cultural, e para a história
das mulheres não só do RN, mas de todo Brasil, a obra de Nísia Floresta é
pouco conhecida. Como bem relata Veríssimo de Melo, no livro sobre os
marcantes artistas da Academia Norte-rio-grandense de Letras: “infelizmente, a
falta de divulgação da obra de Nísia tem sido responsável pelo enorme
desconhecimento de sua vida singular e de seus livros considerados de grande
valor”35. No ano de 1878, publicou sua última obra: Fragments d’un ouvrage inédit:
Notes biographiques.

Auta de Souza

Auta de Souza nasceu em 12 de setembro de 1876, na rua do


Comércio, no munícipio de Macaíba, “na época principal centro econômico e
político do Rio Grande do norte” (GOMES, 2003, p. 01). Auta perdeu os pais
muito cedo, a mãe aos três anos de idade e o pai aos cinco. Após ficar órfã, a
menina foi criada pelos avós maternos que a levaram de Macaíba para o Recife,
onde o avô faleceu em 1882.
Ao completar onze anos de idade, a avó de Auta resolve matriculá-la
no colégio São Vicente de Paulo, sob os cuidados de freiras francesas.

No Colégio da Estância, como também era conhecido,


Auta de Souza destacou-se como primeira aluna, obtendo
quase todos os prêmios escolares. Rapidamente já sabia
dominar o idioma francês e já ensaiava recitar versos no

35 Disponível em: http://biografias.netsaber.com.br/biografia-1478/biografia-de-nisia-


floresta. Acesso: 09 jun., 2017.
201

novo idioma que dominava. Além das leituras dos


volumes do curso regular, consumia também a literatura
francesa, escolhida pelas professoras, e romances
piedosos, uma espécie de premiação conquistada pela
aluna estudiosa (SOUZA e FONSECA, 2013, p. 291).

Figura 3: Auta de Souza.

Fonte: Wikipédia36.

Fonseca e Souza (2013) relatam também, que o acesso à literatura


francesa fez com que a macaibense ficasse a par dos ideais feministas. Porém,
segundo as autoras, apenas uma vez, Auta se pronunciou em favor dos ideais
abolicionistas das mulheres, talvez em virtude de sua saúde frágil, considerando
que aos catorze anos de idade, ela descobre uma tuberculose. Porém, a doença
não impediu sua acedência intelectual. Aos dezoito anos, começou a cooperar
com a revista Oásis, e aos vinte, já escrevia para A República, o mais importante
jornal da época, o que lhe permitiu grande reconhecimento com a imprensa.
No jornal carioca, O Paiz, suas obras começaram a ter mais visibilidade. Aos
vinte e um anos, começa a escrever continuamente para o valorizado jornal A
Tribuna, de Natal. Seus poemas eram publicados junto aos de muitos outros
artistas reconhecidos.
Auta de Souza publicou ainda nos jornais A Gazetinha, na cidade de
Recife, no jornal Católico de Natal, bem como na Revista do Rio Grande do Norte,

36 https://pt.wikipedia.org/wiki/Auta_de_Souza
202

na qual sozinha representava o universo feminino. Era a única mulher no meio


de tantos colaboradores homens. Derrotou a resistência dos grupos de autores
literários masculinos e redigiu como profissional, assim como eles, em meio a
uma sociedade machista, a qual só os homens podiam escrever, uma vez que a
imprensa, como também a crítica desconsiderava as escritoras do sexo
feminino. A poesia de Auta de Souza atravessou o país e começou a veicular
em todas as rodas literárias do Brasil.
A poetisa faleceu em 07 de fevereiro de 1901 em Natal, Rio Grande do
Norte, devido à tuberculose que a perseguiu por toda sua vida, sendo sepultada
na mesma cidade, no bairro Alecrim.
Apenas em 1936, a Academia Norte-rio-grandense de Letras consagrou
Auta de Souza com a poltrona XX, reconhecendo assim, sua grande obra como
poetisa e mulher potiguar de grande aporte cultural e histórico.

Celina Guimarães

Celina Guimarães Viana nasceu em 15 de novembro de 1890 em Natal


– RN, e faleceu em 11 de Julho de 1972 na cidade de Belo Horizonte, em
Minas Gerais. Estudou na Escola Normal de Natal, onde concluiu o curso de
formação e tornou-se professora.

Figura 4: Celina Guimarães.

Fonte: Site do TSE37.

37 Disponível em: http://www.tse.jus.br/imagens/fotos/professora-celina-guimaraes-


vianna-primeira-eleitora-do-brasil. Acesso em: 02 fev. 2020.
203

Em 1927 é criada, no Rio Grande do Norte, a lei de nº 66038, de 25 de


outubro, que daria à mulher mais uma grande vitória no espaço público:

Assim que foi aprovada a nova lei Eleitoral do Rio


Grande do Norte, dezenas de mulheres correram à Justiça
do Estado para garantir seus direitos políticos. O
alistamento eleitoral foi iniciado por Júlia Alves Barbosa e
Celina Guimarães Viana, professora da Escola Normal de
Mossoró que se tornou a primeira eleitora do Brasil, a
partir de um parecer favorável concedido pela justiça
local, em 25 de novembro de 1927 (SCHUMAHER, 2015,
p. 59).

Com isso, Celina Guimarães Vianna tornou-se a primeira mulher a


votar no Brasil, em 5 de abril de 1928, na cidade de Mossoró. Ao arregimentar-
se, o RN foi, pois, o pioneiro na nova condição de igualdade eleitoral entre
homens e mulheres. Dessa forma, no dia 25 de novembro de 1927, em
Mossoró, acrescentou-se na lista de eleitores do Rio Grande do Norte o nome
da primeira mulher de muitas que viriam, a partir de então: Celina Guimarães
Vianna. O feito causou uma imensa repercursão no mundo todo, não se tratara
apenas da primeira eleitora do Brasil, mas da América Latina.

Alzira Soriano

Luiza Alzira Soriano Teixeira nascida em 29 de abril de 1897, na cidade


de Jardim de Angicos, Rio Grande do Norte, casou em 29 de abril de 1914, aos
17 anos de idade, com Thomaz Soriano de Souza Filho e teve com ele três
filhas. Aos vinte e dois anos ela ficou viúva39.

38 Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Celina_Guimar%C3%A3es_Viana.


Acesso em: 09 jun. 2017.
39 Disponível em:

http://adcon.rn.gov.br/ACERVO/secretaria_extraordinaria_de_cultura/DOC/DOC0
00000000106245.PDF. Acesso: 09 jun. 2017.
204

Figura 5: Alzira Soriano.

Fonte: Prefeitura de Lajes/RN40.

Em 1º de janeiro de 1929, Alzira Soriano, tornou-se um marco na


história da América Latina, ao ser a primeira prefeita, eleita no Brasil pelo
Estado do Rio Grande do Norte. Alzira competiu em 1928, à prefeitura de
Lajes, aos 32 anos de idade, e obteve 66% dos votos válidos, “mas a Comissão
de Poderes do Senado impediu que ela concluísse o mandato e anulou todos os
votos das mulheres alistadas no Estado” (FONSECA-SILVA, 2012, p.189).
Um boicote, a inserção da mulher na política do Estado do RN.

Maria do Céu Fernandes de Araújo

Maria do Céu Fernandes nasceu em Currais Novos, no dia 06 de


outubro de 1910. Ela foi a primeira mulher a assumir a função de deputada
estadual do Rio Grande do Norte em 1934, e por conseguinte, a primeira
mulher a se tornar deputada no Brasil. Maria do Céu foi vitoriosa com 12.058
votos, mas teve o mandato cassado em 1937, por discordância das idéias
getulistas durante o Estado Novo.

Disponível em: http://lajes.rn.gov.br/especial-alzira-emancipacao-da-mulher/.


40

Acesso em: 02 fev. 2020.


205

Figura 6: Maria do Céu F. Araújo.

Fonte: Site notaterapia41.

Joana Cacilda Bessa

Joana Bessa nasceu em Itaú, no dia 26 de setembro de 1898 e faleceu


aos 102 anos, em 1998. Foi a primeira mulher a votar em Pau dos Ferros, mas
não foi só isso, ela foi também a primeira mulher vereadora do RN, eleita em 2
de setembro de 1928, com 725 votos (na época o cargo conhecido como
entendente), pela cidade de Pau dos Ferros.
Joana Bessa foi empossada em 2 de fevereiro de 1929. Antes de atuar
na política, Joana fez parte da imprensa norte-rio-grandense, escrevendo para
os jornais O Galvanópolis e A República (CARVALHO et al., 2010).

Figura 7: Joana Cacilda Bessa.

Fonte: Blog da Câmara de Pau dos Ferros 42.

41Disponível em: http://notaterapia.com.br/2018/06/20/10-mulheres-potiguares-


pioneiras-em-diversas-areas/. Acesso em: 05 fev. 2020.
206

Considerações finais

Ao contar a história destas mulheres potiguares, pudemos observar que


a identidade feminina também se modificou através dos tempos. Segundo Hall
(apud SOUZA, 2008), a identidade é definida historicamente, e não
biologicamente. Neste sentido, o sujeito pode assumir identidades diferentes
em diferentes momentos históricos.
O feminismo passou por um complexo processo histórico. Por meio
dele, a imagem feminina se deslocou, mesmo que lentamente, da figura de dona
de casa, mãe e esposa submissa, para a identidade de ser social, ao ocupar
cargos, antes destinados aos homens, ligados à política e à intelectualidade.
Dessa maneira, as mulheres passaram a exercer o direito de cidadania política,
tornando o Estado potiguar, o pioneiro na conquista sufragista. Além disso,
contribuiu significativamente para a emancipação feminina na literatura
brasileira.
Nesse cenário de modificação identitária feminina, o Estado do Rio
Grande do Norte relata com orgulho a história de obstinação e bravura das
mulheres dessa região, que se sobressaíram pela intrepidez, pelas habilidades
artístico/literária, pelo seu valor histórico de lutas e vitórias que mudaram para
sempre a história das mulheres no RN, no Brasil e no mundo.

Referências

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contribuições à imprensa norte-rio-grandense (década de 1930). In: Anais do
xii congresso de ciências da comunicação na região nordeste. Campina
Grande – PB – 10 a 12 de Junho 2010. Disponível em:
http://www.intercom.org.br/papers/regionais/nordeste2010/resumos/R23-
0603-1.pdf. Acesso em: 08 jun. 2017.

CASTRO, Luciana Martins. A contribuição de Nísia Floresta para a educação


feminina: pioneirismo no Rio de Janeiro oitocentista. In: Outros tempos:
dossiê história e educação. vol. 7, nº 10, dez. de 2010. Disponível
em:http://www.outrostempos.uema.br/artigos%20em%20pdf/Luciana_Marti
ns.pdf. Acesso em: 09 jun. 2017.

42Disponível em: http://jotamaria-cmpaudosferros.blogspot.com/2010/05/joana-


cacilda-bessa.html. Acesso em: 05 mar. 2020.
207

COLLING, Ana. A Construção Histórica do Feminino e do Masculino.


In: STREY, Marlene N; CABEDA, Sonia T. L; PREHN, Denisk (orgs.).
Gênero e Cultura: questões contemporâneas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.

DAVALLON, Jean. A imagem, uma arte de memória?. In: ACHARD, Pierre.


Papel da Memória. Tradução e introdução de José Horta Nunes. 2 ed.
Campinas – SP: Pontes Editores, 2007.

DUARTE, Constância Lima. Nísia Floresta. Recife: Fundação Joaquim


Nabuco, Editora Massangana, 2010. 168 p. ISBN 978-85-7019-513-5.
Disponível em:
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/me4711.pdf. Acesso em:
26 maio 2020.

FONSECA-SILVA, MC. Memória, mulher e política: do governo das


capitanias à presidência da república, rompendo barreiras. In TASSO, I.,
NAVARRO, P., (orgs.). Produção de identidades e processos de
subjetivação em práticas discursivas [online]. Maringá: Eduem, 2012. p.
183-208. Disponível em: http://books.scielo.org/id/hzj5q/pdf/tasso-
9788576285830-09.pdf. Acesso em: 10 set. 2017.

GOMES, A. L. F. Vida e obra de Auta de Souza. Rev. Eletrônica da Fundação


Joaquim Nabuco, 2003. Disponível em:
http://www.limiarespirita.com.br/livros/vida_e_obra_da_poeta_potiguar.pdf.
Acesso em: 09 jun. 2017.

PERROT, Michelle. Minha História das Mulheres. São Paulo: Contexto,


2007.

SCHUMAHER, Schuma; CEVA, A. Mulheres no poder: trajetórias na


política a partir da luta das sufragistas do Brasil. 1.ed. Rio de Janeiro:
Edições de janeiro, 2015.

SOUZA, Ady Canário. A questão das identidades nos estudos culturais. In:
SILVA, Francisco Paulo. Travessias do sentido e outras questões de
linguagem. Mossoró-RN: Queima-Bucha, 2008.
208

SOUZA, Karlla Christine; FONSECA, Ailton Siqueira. As vozes femininas na


poesia de Auta de Souza: fragmentos de vida e obra. In: Antares: Letras e
humanidades. vol. 5, n° 10, jul-dez 2013. Disponível em:
file:///C:/Users/Franc%C3%A9lia/Downloads/2004-8712-1-PB.pdf. Acesso
em: 08 jun. 2017.
209

FANTASIA, FORMAÇÃO E EMANCIPAÇÃO NA LITERATURA


PARA CRIANÇAS: BREVES CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS EM
FOCO

Maria dos Remédios Silva


Dheiky do Rêgo Monteiro Rocha

“A fantasia é o alimento da imaginação e da emoção.”


Vera Teixeira de Aguiar

Considerações iniciais

A epígrafe de Vera Teixeira de Aguiar (2005), estudiosa da área de


Literatura Infantil e Juvenil, introduz e inscreve o tema deste estudo numa
perspectiva humanística, em que fantasia é atividade humana essencial, que gera
a imaginação, numa dimensão mental e abstrata, bem como atua na percepção e
efeito dos sentimentos experimentados pelo leitor, transitando da fantasia ao
real, num movimento constante de autonomia e liberdade, possibilitando um
maior desenvolvimento psicológico ao sujeito criança e, por conseguinte, a
apropriação efetiva dos sentidos do mundo, para que ela assuma um status que
edifique a sua vida.
Este artigo propõe apresentar reflexões acerca da função da fantasia na
literatura infantil, valendo-se da constituição de aporte teórico pertinente aos
aspectos basilares voltados ao universo do leitor criança, com efeito na
formação leitora desse sujeito sociohistórico.
A fantasia na vida do indivíduo é aspecto inerente à sua natureza
humana, pois no seu desenvolvimento cognitivo ela atua como fator
compensatório e emancipatório para as suas demandas existenciais. Partindo
dessa premissa, a literatura é uma produção cultural que estabelece relação
direta com a fantasia, seja no ato da criação artística, bem como na recepção no
ato da leitura. Assim, como a fantasia é comum a todos em suas vivências, as
obras literárias são um suporte para o exercício do fantasiar. De tal modo, essa
faculdade de ordem mental é muito praticada pelas crianças, quando
estimuladas também pelo jogo da linguagem, que é próprio da literatura. Por
isso, a fantasia na literatura para crianças mobiliza a fruição estética da recepção
do leitor criança, numa perspectiva emancipatória.
210

Na contemporaneidade, os autores ainda optam por marcar a literatura


infantil com a presença da fantasia, seguindo os passos da tradição literária
europeia, com as adaptações das narrativas orais, ou possibilitando experiências
literárias inovadoras, que vão desde a construção do enredo à materialidade do
objeto livro infantil, para propiciar um encontro exitoso com o leitor criança.

Literatura infantil: origem, conceitos e fantasia

A literatura para crianças é permeada de fantasia, desde os contos de


fadas às narrativas contemporâneas, mesmo considerando os leitores
pressupostos de cada contexto sociohistórico. É importante compreendermos
que a fantasia é inerente ao ser humano, e que, de certa forma, o fantasiar não
implica somente em alguma compensação psíquica, mas, sobremaneira, numa
ação emancipatória. Assim, é válido afirmar que a literatura, como suporte da
experiência da fantasia, forma o leitor para uma postura mais autônoma e
participativa na vida social.
As primeiras produções literárias destinadas às crianças ocorrem a
partir do século XVII, pois anteriormente adultos e crianças compartilhavam
do mesmo tempo e espaço nas leituras de obras literárias. Com as
transformações pela sociedade moderna da época, oriundas da ascensão da
burguesia e da promoção das alterações das normas sociais, resultando em um
novo formato de família, que proporcionou à criança o seu estado de
“infância”, reconhecendo-se a diferenciação de aspectos dos espaços infantil e
adulto. E para falarmos do surgimento da literatura infantil, das suas
conceituações e da presença da fantasia, temos que lembrar, antes de tudo, da
imortalidade dos escritores Charles Perrault e dos irmãos Grimm, com suas
coletâneas de contos folclóricos, que se tornaram clássicos para diversos
leitores do mundo. O parisiense Charles Perrault, nascido no século XVII, era
filho caçula de uma importante família que pertencia à corte do rei da França,
Luís XIV, reinado para o qual serviu como advogado, arquiteto, inspetor de
obras públicas, além de outras funções que serviram de base para as suas
pesquisas literárias. Após cuidar pessoalmente da educação de seus filhos e de
ter ouvido, desde menino, os contos e lendas anônimos da Idade Média,
narradas de pai para filho, resolveu pesquisá-los e adaptá-los como contos de
fadas no século XVII. Suas obras literárias eram adaptadas com objetivo de
agradar a classe à qual pertencia, a burguesia, que a utilizava como conteúdo
pedagógico (CADEMARTORI, 2010).
211

As adaptações promovidas por Perrault continham características


irônicas, superstições populares e, ao mesmo tempo, ele as transformava em
arte moralizante. O fato de retratar o burguês como opressor e de satisfazer o
sonho vitorioso do oprimido reforça o empenho do escritor em engendrar
contos que demonstravam a existência de um teor pedagógico associado ao
lúdico, o que satisfazia os interesses para os quais a sua literatura se destinava.
Citamos aqui algumas obras adaptadas de destaque universal: Chapeuzinho
vermelho, A gata borralheira, A bela adormecida no bosque, O barba azul, O pequeno
polegar, entre outras produções que se popularizaram e passaram a permear o
imaginário infantil e adulto.
Nesses contos, é possível observar o confronto dualista das produções
marcantes de Perrault, com seus sinais próprios, no tocante à escritura, que
povoam as obras literárias para dar sentido aos duelos, às desavenças inevitáveis
entre bons e maus, bonitos e feios, fortes e fracos, etc. Isso se delineia para
demonstrar as vertentes do poderio dominante de uma classe social e ao
mesmo tempo a força desprezada do popular e suas superstições. Ressaltamos
que a marca moralizante de Perrault está configurada sobre os diversos aspectos
que permitem duplicidade de compreensão às suas pretensões, por um lado, a
obediência na descrição das referências deslumbrantes à vida na corte, por
outro lado, os desfechos dos contos permitirem o triunfo às personagens que
ao longo da história apresentaram aspectos frágeis e degradantes.
Sobre esse aspecto do trabalho de Perrault, Cademartori (2010, p. 41)
argumenta que “não há uma dissociação entre a literatura oral e a versão culta
[dos contos de fadas], os elementos coexistem, processando-se um alargamento
do domínio da cultura gráfica, que passa a manter relações de integração com a
popular.” Na atualidade, esses clássicos da literatura infantil estão acessíveis
também em formato de espetáculos teatrais, cinema, e em outros modos de ler,
o que pode favorecer ao leitor infantil uma ideia mais crítica sobre as ideias
sugeridas no texto escrito.
No século XIX, seguindo os passos iniciados por Perrault, surgiram os
irmãos Grimm, Jacob Grimm e Wilhelm Grimm, que de forma conjunta,
promoveram uma coleta de contos a partir da memória popular sobre as lendas
e as sagas germânicas. Essas histórias conservadas pela tradição oral foram
adaptadas à literatura infantil e tiveram grande repercussão mundial, como a
Branca de Neve, Rapunzel e João e Maria. Para Richter e Merkel (1993), parte da
coleção dos contos de fadas dos irmãos Grimm é composta por sagas, lendas,
farsas, anedotas, parábolas, dentre outros tipos, são narrativas que se
212

originavam das classes abaixo da burguesia e da nobreza, oferecendo à


sociedade germânica uma concepção de valores e unidade cultural para aquela
que eles consideravam politicamente desunida.
As personagens das narrativas dos irmãos Grimm, a exemplo das
personagens de Perrault, também vivenciam dualidades marcadas pelo poder e
pela derrota, da mesma maneira que as narrativas atuais sugerem ao público
leitor. Outro viés da coletânea dos Grimm era trazer à tona os “contos de fadas
fantásticos” como sendo o verdadeiro conto maravilhoso, independente das
condições do mundo real e categorizado no tempo, espaço e causalidade, e das
exigências de credibilidade (RICHTER; MERKEL, 1993).
Esse pequeno histórico de como se constituiu a literatura voltada para
o público infantil, por meio de Perrault e dos irmãos Grimm, nos proporciona
a noção mais exata do surgimento de textos harmonizados pelas dúbias
conotações e pelas assombrosas fantasias do imaginário narrador, já que
compete a este (re)criar as condições necessárias para dar sentido e consistência
ao texto lido. Na mesma perspectiva, segundo Cademartori (2010), outros
escritores foram relacionados por serem constituintes de padrões de literatura
infantil: como o dinamarquês Christian Andersen, autor de O patinho feio, Os
trajes do imperador; o italiano Collodi, autor de Pinóquio; o inglês Lewis Carroll,
autor de Alice no país das maravilhas; o americano Frank Baum, que escreveu O
mágico de Oz,; e o escocês James Barrie, autor de Peter Pan.
Convém ressaltarmos que a nova concepção e significação de família,
antes fortalecida pelas genealogias e laços consanguíneos e, posteriormente,
nutrida da união – privacidade e do estreitamento de afeto entre pais e filhos
proporcionou mudanças consideráveis em relação à literatura para o público
infantil, embora tenha ocorrido na mesma proporção o controle das emoções e
do desenvolvimento intelectual das crianças (ZILBERMAN, 2003). Essa nova
condição ascendente da burguesia viabilizou a expansão, o aperfeiçoamento e a
reformulação do sistema escolar e a instituição de uma literatura endereçada às
crianças. Para Zilberman (2003), a aproximação da instituição e o gênero
literário não aconteceu de forma tão fortuita, isso pelo fato dos primeiros textos
para crianças serem escritos por pedagogos e professores com marcante
finalidade educativa. A autora ainda destaca que a permanência da literatura
infantil como colônia da pedagogia causa sérios prejuízos para a relação
literatura e ensino, isto porque tinha finalidade pragmática, apresentava objetivo
didático com caráter de dominação da criança e não era aceita como arte, o que
213

requeria uma mudança de comportamento transformando a literatura infantil


em diálogo saudável entre o livro e seu leitor mirim.
Aguiar (1986) afirma que a criança deve descobrir o prazer da leitura
antes de aprender a ler, sendo fundamental a participação dos pais nesse
processo de aquisição, porém, é para o professor que convergem as maiores
expectativas da inserção do gosto e do hábito de leitura. Esse posicionamento
da autora reforça a prática de leitura para crianças em seus anos iniciais, pois
elas conseguem recriar outras histórias a partir de sua fantasia, porém, o
problema que se coloca é quanto à disponibilidade e acessibilidade dos pais
nesse processo formativo de experiência de leituras literárias.
No Brasil, a história da literatura infantil tem o seu surgimento
impulsionado no decorrer do século XX, porque antes desse período, as obras
literárias para crianças eram traduções e adaptações de clássicos
(MAGALHÃES, 2001). Magalhães (2001) afirma que a estreia de uma obra
autenticamente brasileira surgiu a partir da publicação de A menina do narizinho
arrebitado, de Monteiro Lobato, em 1921, uma obra que inspirou outros
escritores brasileiros a se utilizarem das mesmas ferramentas e passarem a se
dedicar ao público infantil. Monteiro Lobato imprimiu um novo formato de
vivência da infância em suas obras destinadas ao público infantil, agora em um
universo mágico, fantasioso e propício para expandir o imaginário prodigioso
desse público. A maior parte da produção literária lobatiana dirige-se aos
públicos infantil e juvenil, com grande aceitação e recomendação do público
adulto que se tornou íntimo das obras. É importante refletir que as obras
infantis de Lobato contribuem enquanto literatura formadora, pois tentam fugir
da narrativa tradicional longínqua e propõem um enredo do cotidiano popular
da área rural do sudeste brasileiro. Essas obras de Lobato mantêm a cultura da
contação de histórias, embora afastem-se do ambiente escolar,. Em 1948,
ocorreu uma paralisação na publicação de obras infantis brasileiras, perdurando
até o início dos anos 1970, momento em que houve consideráveis mudanças
sociais e econômicas que contribuíram para o aumento das publicações infantis,
tornando-as produto de consumo da sociedade brasileira à época, de acordo
com Magalhães (2001).
Esse momento na década de 1970, conhecido como “boom da
literatura infantil”, no Brasil, apresentou muitas produções de novos autores e
novas obras criativas. Em seguida, na década de 1980, esse fenômeno repercute
com o surgimento de uma renovação de escritores e ilustradores. De acordo
com Coelho (2010), essas novas formas de linguagem verbal ou imagística são
214

inseridas no âmbito escolar, em razão da ludicidade nas narrativas e, sobretudo,


do caráter de formação da visão de mundo do leitor.
Seguindo com um excurso teórico, convém esclarecermos que a
conceituação e compreensão de literatura infantil são bastante amplas entre
estudiosos sobre a temática, embora concordem em amplitude que qualquer
literatura tende a ser escolhida pelo gosto do leitor, ou seja, pelos interesses
imediatos da criança. Dito isto, podemos conferir o que pensam alguns
estudiosos sobre o assunto, numa sequência cronológica. Em 195143, Meireles
(2016) também compartilha do ponto de vista de que a literatura infantil deveria
ser classificada pela utilidade e prazer que causa ao público infantil e acrescenta
as obras clássicas, como Robinson Crusoé, As viagens de Gulliver, dentre outras, por
receberem grande receptividade por parte das crianças, mesmo não sendo
destinadas a elas. Em 196844, Arroyo (2011) inclui o teatro, o quadrinho e o
folclore como parte da literatura infantil, e adverte que o critério para qualificar
uma obra infantil é o próprio gosto e aprovação da criança.
Em 198045, Magalhães (2001) afirma que a designação infantil é
aplicada ao conjunto de textos lidos pela criança, sejam eles de caráter lúdico ou
didático, isto é, a expressão “literatura infantil” compreende-se por toda a
produção escrita dirigida à criança. Magalhães (2001) faz outra observação
quanto à literatura infantil não ser uma literatura de crianças e nem uma
literatura sobre crianças, mas uma literatura para crianças com componentes
adaptados às suas demandas existenciais. Dessa forma, pode-se julgar que toda
obra que se mantiver dentro dos limites fixados pela adaptação poderá ser
classificada como literatura infantil. Em 198646, Cademartori (2010) traz a
definição de literatura infantil como um gênero literário determinado pelo
público a que se destina. A mesma autora pondera que os adultos tendem a
definir os textos próprios à leitura pela criança, por isso a partir desse juízo
recebem a definição de gênero e passam a ocupar determinado lugar entre os
livros. No século XXI, Martha (2011) diz que o reconhecimento da literatura
infantil deve ser pelo seu caráter artístico, e não somente pelo caráter
pedagógico, ou seja, o estético tendo maior presença na constituição do texto

43 Ano da primeira edição da obra Problemas da literatura infantil, Cecília Meireles.


44 Ano da primeira edição da obra Literatura infantil brasileira, de Leonardo Arroyo.
45 Ano de defesa da dissertação de mestrado intitulada Literatura infantil sul rio-grandense: a

fantasia e o domínio do real, de autoria de Maria do Socorro Rios Magalhães, sob


orientação de Regina Zilberman, sendo mais tarde publicada com o título Literatura
infantil: a fantasia e o domínio do real.
46 Ano da primeira edição da obra O que é literatura infantil?, de Lígia Cademartori.
215

literário, conferindo-o como objeto que transmite cultura e expressão de visões


de mundo.
Sobre as menções conceituais apresentadas, devemos considerar que
não há uma conceituação definida de literatura infantil, pois são muitos os
pontos de vista em torno desse gênero, porém, há várias induções de conteúdos
que exploram a capacidade criativa da criança, a magia e a fantasia do seu
universo psíquico. Essas experiências são sempre retratadas nas obras literárias
pelas diferentes relações vivenciadas e problematizadas através das diversas
personagens em construções, que podem contribuir, sobremaneira, para a
formação e emancipação do leitor infantil, em seu contato com a leitura da obra
ficcional.
No tocante às discussões sobre a fantasia na literatura infantil,
podemos iniciar pela sua etimologia, que deriva do latim phantasia uma herança
do grego phantasia. Os dicionaristas atribuem sua significação a algo que está
associado à ideia de mostrar ou tornar visível, simboliza a criatividade humana
através da imaginação. A fantasia também é traduzida como sendo a faculdade
de imaginar; coisa que não tem existência real, apenas ideal ou ficcional;
caracterizada como sendo folclore; sonho; devaneio; máscara; disfarce,
vestimenta carnavalesca, além de outras significações.
Convém esclarecermos que a fantasia não é unicamente própria da
infância, mas do homem em todas as fases de sua vida, realizando-se por uma
necessidade universal. Alguns questionamentos levantados por Richter e Merkel
(1993), chamam a atenção pela importância da fantasia nas narrativas e contos
tradicionais, vejamos: como se dá a valorização das fantasias nos contos de
fadas? Que função social têm eles? Podemos denominá-los “emancipadores”?
Enfim, são perguntas importantes e instigantes, porém, acrescentamos que
podemos também nos deter ao questionamento sobre a compreensão de como
a fantasia na literatura infantil possibilita a formação de um leitor crítico e
emancipado.
Candido (2002) considera que a fantasia quase nunca é pura, por estar
constantemente relacionada há alguma realidade natural, paisagística,
sentimental, problemas humanos, enfim, tudo aquilo que rodeia o ser humano.
Por isso, a impregnação profunda mostra como as criações ficcionais e poéticas
podem atuar de modo subconsciente e inconsciente, operando uma espécie de
inculcamento que não entendemos. Partindo desse pressuposto, percebe-se que
camadas profundas da personalidade humana estão sujeitas a sofrer um
bombardeio poderoso operado pelas obras lidas, e que podem atuar de certa
216

maneira, em que não se possa avaliar. A fantasia como faculdade de criação pela
imaginação atua como auxílio para a compreensão de mundo por parte da
criança. Zilberman (2003, p. 130) alerta para o fato de que a fantasia torna-se
“setor privilegiado pela vivência do livro infantil. De um lado, porque aciona o
imaginário do leitor; e, de outro, porque é o cenário no qual o herói resolve
seus dilemas pessoais ou sociais”.
Person (1997) conceitua a fantasia como uma prerrogativa humana
presente na vida de todos os indivíduos, em que ela nos conecta ao nosso
mundo íntimo e ao mundo externo, nas relações estabelecidas com o outro,
causando um impacto nas nossas percepções, nos comportamentos e nas
adaptações necessárias. A autora explica desta maneira sobre a capacidade de
fantasiar:

A fantasia está situada no contexto da imaginação. A


imaginação, que depende da capacidade de criar e
manipular símbolos, é a capacidade mental de pensar em
possibilidades mais além da prova de percepções
sensoriais imediatas. A imaginação nos permite
contemplar alternativas para o mundo real de pessoas,
lugares e coisas; para os eventos do passado e do presente,
amarrados ao tempo (PERSON, 1997, p. 54-55).

Como um porvir de esperança está codificado na fantasia, é pertinente


que a imaginação seja fundada na ideia de adaptação constante, pois essa
ferramenta mental do homem implica nas suas ações frente ao real. Assim, a
fantasia edifica possibilidades potenciais que logram por algum construto
tangível na vida do ser humano.
A fantasia é abordada por Magalhães (2001) como um recurso utilizado
pela literatura para facilitar a identificação entre o leitor e o texto, evidenciado
sob os aspectos do animismo, artificialismo e do antropomorfismo. De acordo
com Bettelheim (2007), os contos de fadas tornam-se a melhor escolha de
literatura infantil, porque proporcionam à criança respostas aos seus conflitos
interiores, satisfazendo, ainda, as necessidades psíquicas de seu
desenvolvimento, que são atendidas por meio do simbólico, constituinte
fundamental do texto literário.
A fantasia na literatura infantil é componente relevante na formação de
um leitor crítico e emancipado, a partir da compreensão e da forma com que
cada leitor reage ao teor da obra, identificando-se ou não com a história,
217

despertando ou não o seu imaginário – o seu consciente e subconsciente. Desse


modo, compartilhamos das colocações de Magalhães (2001) quando menciona
que algumas narrativas infantis apresentam um herói criança, cujos problemas
existenciais são solucionados por meio do elemento fantasia.
Outras obras infantis são providas de reflexões sobre questões sociais,
contudo, para o leitor mirim essa vertente de temáticas relacionadas ao social
ocorre de maneira harmonizada com o elemento fantasia, pois são utilizadas de
sutilezas que não causam alguma espécie de prejuízo para a compreensão desse
sujeito leitor. O relacionamento entre os seres que povoam o universo das
narrativas infantis conquistam a adesão do leitor criança quando os eventos
narrativos também se propõem a configurar a representação de realidade que
propicie reflexões, desejos de soluções, com eventuais momentos de fantasia, e
o desenvolvimento do olhar crítico a respeito do mundo e de si mesmo. Assim,
a literatura infantil ganha força no discurso que a insere como mecanismo de
formação e emancipação.
Freud (1996) postula que o escritor criativo propõe e/ou cria um
mundo de fantasia sério e carregado de grande quantidade de emoção, da
mesma forma que a criança leva a sério sua brincadeira em que dispende da
mesma muita emoção, porém, se mantém uma separação nítida entre a fantasia
e a realidade. Do ponto de vista de Magalhães (2001), o fato da criança ter um
pensamento antropomorfista, definido como atribuição da relação que ocorre
entre seres humanos e não-humanos, ela aceita de forma natural a fantasia
própria dos contos de fadas, sem confundi-la com o real. O movimento
narrativo de provocação ao imaginário da criança é uma constante necessária
para o seu desenvolvimento psíquico e apreensão de conhecimento sobre o
real. Nesse sentido, Cademartori afirma:

Se o homem se constitui à proporção da formação de


conceitos, a infância se caracteriza por ser o momento
basilar e primordial dessa constituição, e a literatura
infantil pode ser um instrumento relevante dele. Sendo
assim, essa literatura se configura, não só como
instrumento de formação conceitual, mas oferece, na
mesma medida, elementos que podem neutralizar a
manipulação do sujeito pela sociedade.
(CADEMARTORI, 2010, p. 24).
218

Em geral, a criança e o adulto se comportam de maneira diferente


quando se trata da realidade e do brincar. Para a criança, o ato ocorre de
maneira natural sem qualquer constrangimento, pois o adulto, no entanto, não
deixa transparecer essa necessidade. Para mais esclarecimentos em torno do
assunto, citamos o postulado de Freud:

As fantasias das pessoas são menos fáceis de observar do


que o brincar das crianças. A criança é verdade, brinca
sozinha ou estabelece um sistema psíquico fechado com
outras crianças, com vistas a um jogo, mas mesmo que
não brinque em frente dos adultos, não lhes oculta seu
brinquedo. O adulto, ao contrário, envergonha-se de suas
fantasias, escondendo-as das outras pessoas. Acalenta suas
fantasias como seu bem mais íntimo, e em geral preferiria
confessar suas faltas do que confiar a outro suas fantasias
(FREUD, 1996, p. 136-137).

Por isso, o jogo da linguagem constante nos textos literários é


constituinte precípuo quando este ativa o imaginário da criança, mobilizando
suas percepções e o ato de fantasiar, numa perspectiva de iluminar a realidade
vivenciada pelo leitor no mundo. Desse modo, afastando o leitor da ideia de
que o ato de fantasiar seja uma atividade alienante. Logo, fantasia e realidade
não concorrem no plano narrativo, pois são experiências que se entrelaçam
num movimento simbólico, que repercute nos atos de pensar e agir do leitor.

Formação e emancipação do leitor criança: entre fantasia e realidade na


contemporaneidade

A formação do leitor não implica apenas em decifrar signos linguísticos


ou se apropriar da leitura e da escrita, pois esse processo vai além dessas
condições que podemos considerá-las externas. Existe um fator preponderante
no meio de tudo isso, a condição e a capacidade criativa do leitor em
interpretar, isto é, compreender aquilo que está à sua disposição enquanto
leitura. No caso da criança, o processo aquisitivo começa a ser trabalhado pela
família que lhe apresenta de forma oral, os primeiros contos, e isso ganha mais
reforço com a convivência em sociedade e da participação da escola, ambas
funcionando como transmissoras das diferentes trocas de linguagens
comunicativas.
219

Zilberman (2003) considera que a natureza formativa do sujeito pode


advir de uma relação de compartilhamento entre a literatura e a escola, pois essa
possibilidade se torna possível porque tanto a obra de ficção como a instituição
do ensino estão voltadas à formação do seu destinatário. Entretanto, o uso da
literatura como matéria educativa antecede a existência formal da escola. Ao
considerar que as tragédias gregas constituíam em seu princípio a educação
moral e social do povo, e que a fórmula horaciana utilizava a literatura com o
duplo pressuposto de ensinar a ler e escrever, a literatura atual, também carrega
como objetivo a formação cultural do sujeito a partir de sua emancipação
(ZILBERMAN, 2003). Estendendo a discussão, Cademartori (2010) destaca
que a literatura infantil torna-se importante para a criança pelo espaço de
liberdade que a leitura oferece, além de produzir experiências com a linguagem
e com os sentidos, o que amplia, significativamente, o repertório de
conhecimentos, e foi esse interesse mais imediato que a educação formal
vislumbrou na literatura infantil. Desse modo, a escola necessita organizar um
planejamento de acesso à leitura literária, em que a literatura infantil não pode
ser usada como uma via para se chegar a outra disciplina, numa perspectiva
pedagógica. A literatura infantil tem sua especificidade própria, gerando fruição
estética na leitura.
Compreendemos que a interação cognitiva do leitor com o texto
literário não deve estar sujeita às limitações que muitas vezes são estabelecidas
por parâmetros convencionais, o que pode levar a impossibilidade das múltiplas
visões que cada obra literária traz na sua malha textual, seja no texto verbal ou
não-verbal (neste caso, as ilustrações ou as narrativas de imagens). Sob esse
ponto de vista e utilizando as ideias de Zilberman (2003), podemos falar de um
leitor crítico a partir do estímulo à verbalização da leitura procedida e do auxílio
ao aluno em sala de aula, na percepção dos temas e seres humanos
representados que surgem na trama ficcional. O procedimento de leitura
literária atua na formação de uma criança, como a escola e a família, o que
mostra que a literatura pode ter função formativa.
Outra perspectiva de estudo da literatura infantil está relacionada ao
letramento literário, voltada à formação da criança. Nesse caso, abordado como
uma ação de assimilação da literatura enquanto linguagem. Sobre isso, Cosson
(2018) diz que o processo de letramento literário ocorre como ato contínuo e
em movimento, em que começa com cantigas de ninar e perdura por toda a
vida, a cada obra lida, novela ou filme assistido. Depois é que ocorre a
apropriação do letramento, isto é, de internalizá-la como própria de si. Segundo
220

o autor, essa internalização de apropriação promovida a cada contato com


obras literárias faz com que o leitor aprenda com a personagem as mais
diferentes formas de percorrer os caminhos da vida, dando voz aos diferentes
corpos que se misturam à composição física: corpo linguagem, corpo
sentimento, corpo imaginário, corpo profissional, dentre outros. A partir daí, o
leitor torna-se apto a exercer seus diversos papeis e a buscar reflexivamente as
respostas cabíveis e/ou não para seus questionamentos.
Na abordagem sobre a gênese do processo de construção do leitor
literário, Baptista, Belmiro e Galvão (2016) apontam que as primeiras interações
da criança como leitor se iniciam logo que ela chega ao mundo, na construção
de sentidos, por meio de instrumentos simbólicos que encaminharão a criança à
apropriação de conhecimentos e práticas, consideradas como parte de um
processo cultural. Portanto, a leitura literária de obras infantis, mediadas de
forma adequada, promove uma experiência estética capaz de repercutir nas
vivências do leitor do gênero, constituindo uma pertinência positiva na relação
da criança com a linguagem simbólica. Sobre isso, Cosson (2018, p. 17), diz que
“a experiência literária não só nos permite saber da vida por meio da
experiência do outro, como também vivenciar essa experiência. Ou seja, a
ficção feita palavra na narrativa e a palavra feita matéria na poesia são processos
formativos tanto da linguagem quanto do leitor e do escritor.” Assim, essas
experiências congruem para a legitimação da arte literária, numa dinâmica de
conhecimentos e expressão sobre o mundo e si mesmo.
A troca de experiências atua como fator importante para a formação do
sujeito, mais ainda quando se projeta através da obra literária. O crítico literário
Candido (2002) postula três funções basilares para a compreensão da literatura:
função psicológica, função formativa e função de conhecimento do mundo e do ser. A função
psicológica está relacionada à necessidade ficcional que o homem possui em todas
as suas fases da vida, sob a via oral ou visual, e também sob todos os tipos de
formas, curtas elementares, extensas e complexas, manifestadas a cada instante.
A função formativa compreende-se pela capacidade que a literatura possui de
educar, afastando-se das instruções de ordem moral. Essa função permite que o
leitor se reconheça no texto literário e a partir dessa leitura adquira novas
maneiras de se relacionar com o mundo ao qual pertence. A função de conhecimento
do mundo e do ser destaca-se pela importância que dá ao elemento cognitivo como
ao elemento estético da literatura, isso porque possui autonomia de significados
sem se desligar da inspiração real (CANDIDO, 2002).
221

Em relação à função formadora, consideramos o que Cademartori


(2010, p. 24) atesta: “O caráter formador da literatura infantil vinculou-a, desde
sua origem, a objetivos pedagógicos. Ora, isto cria uma tensão entre o saber da
obra literária (que diz „apresento o mundo assim‟) e o ideal da pedagogia (que
diz „o mundo deveria ser assim‟).” Para a autora, esse conflito entre o saber da
obra literária e o ideal da pedagogia, se não for solucionado, pode comprometer
o próprio estatuto da literatura.
Torna-se um consenso entre pesquisadores e críticos literários quando
se trata do incentivo que a família deve proporcionar à criança para estimular
experiências de leituras literárias. No entanto, sabe-se que é na escola que se
concentram e se obtêm os resultados acerca dessa prática leitora. Nesse sentido,
os métodos e materiais utilizados para a alfabetização de crianças devem seguir
alguns critérios quanto à finalidade da leitura, qualidade do material, interesses
dos leitores, fases de leitura e de sugestões. Aguiar (1986) considera a
informação e a recreação como objetivos básicos para desenvolver atividades
de leitura em sala de aula, sendo que a eficácia desse trabalho está na qualidade
do material usado e do interesse da criança pela leitura, de acordo com a sua
faixa etária.
Mesmo sabendo que o êxito da leitura depende das condições e
realidades que as crianças e jovens estão vivenciando, ou seja, dos seus
contextos e experiências na vida social, apresentamos a classificação de Aguiar
(1986) que amplia a proposta de Bamberger a respeito das cinco fases de leitura
que correspondem, aproximadamente, a determinadas faixas etárias dos leitores
para se obter resultados positivos em relação à leitura do texto literário,
considerando o desenvolvimento psicológico da criança. Vejamos: a fase da pré-
leitura estende-se dos três aos seis anos de idade, fase em que a criança deve
frequentar a pré-escola para desenvolver suas capacidades e habilidades
necessárias à modalidade da leitura, valendo-se da mentalidade mágica e da
construção de símbolos, por meio da experiência literária com pouco texto
verbal e mais imagens; a fase da leitura compreensiva, dos seis aos oito anos de
idade, a criança passa pelo processo de alfabetização, constituindo-se uma
leitura compreensiva, mas ainda valendo-se da mentalidade mágica, conhecendo
textos curtos com ilustrações que auxiliam na construção dos sentidos das
narrativas voltadas ao cotidiano da criança; a fase da leitura interpretativa, dos oito
aos onze anos de idade, a criança adquire uma formação voltada à interpretação
das ideias do texto, atingindo o nível das operações concretas, a partir de
narrativas com fantasia, situações mágicas e questionamentos às normas
222

convencionais, que auxiliam na resolução de suas demandas existenciais e


entendimento do mundo à sua volta; a fase do desenvolvimento das habilidades críticas,
dos onze aos treze anos de idade, está relacionada à quarta fase em que ocorre o
desenvolvimento das habilidades às “operações formais”, como denomina
Piaget, em que a criança atinge a lógica do pensamento abstrato, dando mais
conta da apreensão do real, posicionando-se diante das questões veiculadas no
texto literário. Nessa fase, os livros podem transitar entre questões da
atualidade, fundindo realidade e fantasia, apresentando um texto mais extenso e
complexo; a fase da leitura crítica, dos treze aos quinze anos de idade, refere-se à
fase da adolescência, período de adesão maior às demandas psicológicas e
sociais, da construção de juízos de valor e senso crítico frente aos textos. Nessa
fase, o interesse de leitura volta-se para uma experiência literária crítico-
reflexiva, em que esse leitor perceberá a importância do seu papel na sociedade.
Entretanto, atualmente, ao conhecermos essas fases de leitura é preciso
não subestimar o leitor criança e o leitor jovem, limitando-os a essa
classificação de faixas-etárias. A relação do livro com os leitores destinatários
parece não autorizar certas fixações de regras absolutas. Por isso, Aguiar (1986)
amplia o conceito dessas fases de leitura sob a razoável premissa do termo
“aproximadamente” que designa uma medida de tempo relativa, pois muitas
crianças com a mesma idade podem estar em processos distintos de formação
do simbólico e de aprendizagens, conforme os seus contextos e vivências.
Assim, cabe ao mediador de leitura literária propiciar e facilitar o acesso do
leitor à obra, a partir do interesse deste sujeito, conjugado ao que seja
intelectualmente compreensível a ele.
Assim, a literatura infantil provoca no leitor os mais diversos
sentimentos, seja na constante presença da fantasia e na apreensão do real. E ao
cumprir essa experiência deve se valer das múltiplas formas e dimensões
possíveis que a leitura assume, além da pluralidade de temas que potencializa as
construções de visões de mundo. Em suma, tudo que pode culminar para a
contribuição do desenvolvimento e da formação de sujeito humanizado, com
potencial crítico e reflexivo. Isso posto, considerando os temas teóricos
discutidos, a título de ilustração, citamos algumas obras literárias que permitem
leituras sob essas perspectivas.
Na obra Bárbaro (2013), do autor e ilustrador paulistano Renato
Moriconi, publicada pela editora Companhia das Letrinhas, constatamos um
livro-imagem que estimula a imaginação e a fantasia do leitor criança, que
necessita do desenvolvimento de suas capacidades cognitivas. A variedade de
223

imagens nesse livro constrói uma narrativa criativa, divertida e surpreendente,


por meio do simbólico, conquistando a adesão do leitor com a sequência de
imagens que empreendem as aventuras do bravo guerreiro protagonista. Esse
guerreiro segue sua jornada montado em um cavalo, passando por várias
situações perigosas, com serpentes, monstros e seres voadores, entre outras. O
guerreiro é interrompido na sua trajetória e começa a chorar. Logo, surge um
adulto que o consola, revelando a narrativa que se trata do seu pai que precisa
tirá-lo do carrossel porque o tempo do brinquedo esgotou. A narrativa
imagética evidencia o exercício da fantasia que o protagonista criança se propõe
e, ao mesmo tempo, estimula o leitor a fantasiar, com as peripécias dele. Livro
vencedor do Prêmio de melhor livro-imagem da FNLIJ – Fundação Nacional
do Livro Infantil e Juvenil, em 2014.
Em Obax (2010), história escrita e ilustrada pelo pernambucano André
Neves, publicada pela editora Brinque Book, marca em sua tessitura a cultura
africana, a imaginação e a fantasia. Obax é uma menina corajosa que aprecia
contar histórias para as outras pessoas do seu lugar, mas as pessoas não lhe
davam atenção. Certa vez, Obax contou ter visto uma chuva de flores, e os
outros não acreditaram. Ela ficou triste e jurou nunca mais contar suas
aventuras. Correndo pelas savanas, ela tropeça numa pedra com formato de
elefante e tem uma ideia. Obax sai das savanas africanas com o seu amigo
elefante Nafisa, para provar que sua narrativa era verdadeira. A imaginação e a
fantasia da criança são elementos propulsores da narrativa, auxiliando na sua
viagem pelo mundo, nas costas do grande elefante Nafisa, conhecendo novas
terras, paisagens e cidades. No retorno da viagem, as pessoas de sua aldeia não
acreditaram nas suas aventuras contadas, e Obax fica triste, enterrando a
pequena pedra. No dia seguinte, no local onde a pedra foi enterrada, surge um
grande baobá florido, árvore nativa das terras africanas. Com a presença dos
pássaros, as flores do baobá caem como se fosse chuva, alegrando a paisagem
da sua aldeia. Assim, Obax teve mais atenção das pessoas, que mudaram de
ideia sobre suas histórias contadas. A narrativa é composta de uma identidade
visual que remete à cultura africana, com suas paisagens, seus costumes,
grafismos e cores. Apesar das particularidades da obra em torno da cultura
africana, a narrativa confirma que a prática de contar histórias pertence também
a muitos outros povos de outros lugares, transmitindo o conhecimento da
cultura pela tradição oral. Livro vencedor do Prêmio Jabuti, em 2011, nas
categorias “Melhor livro infantil” e “Melhor ilustração”, entre outros prêmios.
Livro traduzido na Itália e em Portugal.
224

Na obra Os nadinhas (2014), do piauiense Assis Brasil, ilustrada por


Ângela Rêgo, reeditada pela editora Nova Aliança, o protagonista Luquinha é
narrador das suas memórias e nos conta como se deu suas experiências com os
seres imaginários Nadinhas. As personagens que compõem a narrativa são
Luquinha, Mateus (avô de Luquinha), Arminda (mãe de Luquinha) e os
Nadinhas. As aventuras dessa história iniciam quando Luquinha tinha cinco
anos de idade, ávido para conhecer os significados das palavras. O processo de
letramento de Luquinha, promovido pelo Vovô Mateus, jornalista e escritor, se
tornou uma experiência prazerosa e divertida, ainda mais quando descobre os
seres miudinhos, “os Nadinhas”, que viviam nas palavras do dicionário de seu
avô, na admirada biblioteca repleta de livros. A narrativa se torna mais
empolgante quando o avô de Luquinha descobre sobre a possível existência dos
Nadinhas, contada pelo neto. Assim, o avô apavorado pensa na possibilidade
de haver traças no seu dicionário, e isso motiva Luquinha a mudar os pequenos
seres para outro livro. No percurso desse evento narrativo, o protagonista
vivencia muitas situações de aprendizado que o próprio ato da leitura propicia.
Os nadinhas apresenta o compartilhamento de experiências quando o
narrador/protagonista relata a convivência que mantém com o avô durante seu
processo de alfabetização. Por sua vez, o vovô Mateus busca por meio de seu
amplo conhecimento intelectual e de suas experiências de vida promover ao
neto Luquinha as condições necessárias para que este alcance a compreensão da
relação existente no que concerne à fantasia e a realidade. A aquisição de
conhecimento acerca das palavras e os seus significados são o alimento para a
imaginação de Luquinha, numa narrativa permeada de descobertas do universo
linguístico e literário, vislumbrando uma formação e emancipação do
protagonista e do leitor criança da obra. Livro agraciado com o Prêmio Luiz
Jardim/União Brasileira de Escritores do Rio de Janeiro, em 1989.
A obra Barbazul (2017), adaptada e ilustrada pela argentina Anabella
López, residente no Brasil, com tradução de Susana Ventura, publicada pela
editora Aletria, trata de um reconto da história infantil clássica de Charles
Perrault. Esse livro ilustrado traz no cerne de sua trama a luta contra a violência
à mulher, com uma construção de visão de mundo mais aberta sobre uma pauta
do contemporâneo e à visão acolhedora do leitor criança, que naturalmente não
é limitante. Essa nova velha narrativa se vale do texto e da imagem (ilustração),
num jogo simbólico e de revelações significativas no trato da tessitura do texto,
da composição das ilustrações (com formas, texturas e cores atraentes ao leitor)
e da imaginação. Além disso, a narrativa não apresenta uma moral como nos
225

contos tradicionais. A autora lança um novo olhar sobre a narrativa, que implica
na provocação do humano, pela estética da arte literária, e na formação de um
leitor mais fluente a respeito das questões do mundo. É a história de uma
mulher jovem que se casa com um homem mais velho e rico, conhecido por
sua barba azul. Uma viagem do marido é o momento propício para a esposa
conhecer mais o castelo, já que ele deixou as chaves do lar com ela. Havia um
quarto misterioso na residência, em que uma das chaves revelaria caso alguém
entrasse sem a sua permissão, uma chave mágica. O quarto nesta história tem
uma porta com formato de caixão, que remete a um significado de morte,
simbolicamente servindo de travessia para todas as outras esposas. Mas a
esposa não se conteve de curiosidade e resolve conhecer o quarto e descobre
nesse espaço, com horror, as outras esposas mortas. A narrativa apresenta
elementos imagéticos que auxiliam na construção da visão dos leitores sobre a
violência sofrida por mulheres, sobretudo, em seus lares. A esposa consegue
escapar do contexto de violência, com a ajuda dos dois irmãos homens, e ainda
ergue um memorial para as mulheres vítimas de violência, evento narrativo que
não consta na história tradicional de Perrault. Livro vencedor do Prêmio de
melhor Tradução/Adaptação Reconto da FNLIJ – Fundação Nacional do
Livro Infantil e Juvenil, em 2018.
O livro Clarice (2018), escrito pelo brasiliense Roger Mello e ilustrado
por Felipe Cavalcante, publicado pela editora Global, narra a história de duas
crianças, Clarice e Tarso, que vivenciaram o período da ditadura militar no
Brasil. Clarice, que tem seu nome em homenagem à escritora Clarice Lispector,
protagoniza a trama de um contexto opressor que provoca fuga ou
desaparecimento de adultos (como acontecera com os seus pais), censura da
arte, entre outros eventos. Por isso, ela fora criada pela tia Zilah. A narração
por Clarice mostra a sua visão infantil sobre histórias e impressões, marcadas de
forma fragmentária em sua memória, mesclando tudo às suas fantasias infantis.
A obra propicia uma reflexão sobre a vida de Clarice no contexto ditatorial no
país, cuja vivência está pautada no conflito entre realidade e imaginário. Clarice
convida o leitor a uma adesão ao enredo, oferecendo um clima de mistério e
suspense e, ainda, subsídios para a formação consciente e crítica de visões de
mundo a respeito da temática, na medida em que os espaços abertos e
mensagens cifradas na narrativa vão permitindo. Livro vencedor do Prêmio na
categoria Jovem Hors-Concours da FNLIJ – Fundação Nacional do Livro
Infantil e Juvenil, em 2019, Prêmio White Ravens 2019 – Biblioteca Internacional
da Juventude, de Munique, na Alemanha, entre outros.
226

Com esses exemplos de narrativas para crianças, valendo-se da fantasia,


apontamos uma pequena amostra da volumosa diversidade de obras disponíveis
no mercado editorial, que são produzidas e que apresentam uma pluralidade de
temáticas relevantes ao leitor criança na contemporaneidade, como a
imaginação infantil, a cultura africana, as experiências leitoras do universo
linguístico e literário, a violência contra a mulher e a ditadura militar sob o olhar
infantil. Para que se experimente uma leitura literária que promova alguma
formação do leitor criança, é necessário oferecer a ela narrativas criativas,
poéticas, lúdicas, inquietantes e desafiadoras, que sejam atraentes ao seu
universo infantil e que provoquem o leitor a ter um olhar mais apurado e crítico
a respeito da vida humana.

Considerações finais

A partir das discussões teóricas a respeito da função da fantasia na


literatura para crianças apresentadas neste estudo, afirmamos que a literatura
infantil proporciona as condições para compreender a sua funcionalidade,
enquanto leitura formadora de visões de mundo, ao se valer da fantasia. O livro
para crianças necessita apresentar um universo ficcional receptivo ao imaginário
infantil, permeado por elementos simbólicos que o narrador utiliza para
construir a história. A relação entre fantasia e real na literatura contemporânea
para crianças aponta para a formação do leitor criança, levando-se em conta o
jogo da linguagem verbal e visual que compõem a narrativa. Isso posto,
concluimos que a narrativa contemporânea apresenta ao leitor muitas
possibilidades de construções conceituais dinâmicas com o viés de uma ação
libertária no ato da leitura literária.
Por fim, convém ressaltarmos que a sensibilização do leitor criança
com o texto literário necessita acontecer de maneira que a fruição na leitura se
torne uma atividade potencializadora de reflexões e criatividades, em que o
imaginário infantil se permite concatenar com o mundo à sua volta, seja por
meio da mediação no ambiente familiar, seja pela escola institucionalizada, ou
por outras maneiras. Portanto, ratificamos que a experiência literária se dá de
modo exitoso quando o leitor percebe as provocações estéticas do texto, por
meio da produção de sentidos, implicando num caráter emancipador para
novas leituras e para suas vivências humanas.
227

Referências

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229

UMA ANÁLISE DA CARNAVALIZAÇÃO DE BAKHTIN NO DRAMA


POPULAR DE LOURDES RAMALHO

Eduarda Maria Moreira Lopes

Considerações iniciais

O riso é um fenômeno universal. Em todas as suas apresentações.


Desde o sarcástico, o amigável, o angélico, o escrachado tomando as formas da
ironia, do burlesco, do grotesco e com todas as suas imprecações: a alegria, a
simpatia, o orgulho, até mesmo o triunfo do mal, às vezes. Por isso mesmo é
motivo de fascínio e mistério desde as eras mais longínquas.
Na Antiguidade Clássica já se tentava decifrar esses mistérios que
permeiam algo que é tão comum ao homem. Algo tão natural. Aristóteles em
seu primeiro livro da Poética já aborda de maneira introdutória a questão do riso.
Alguns historiadores afirmam que Aristóteles tenha descrito amplamente o
cômico como fez com o dramático. O fato de nunca terem sido encontrados
tais livros talvez fosse um presságio do interesse que o riso despertaria nos
séculos vindouros. A verdade é que esse fenômeno careceu de maiores detalhes
no tratamento dado pelo filosofo grego.
Nosso objetivo é demonstrar como o caráter interdisciplinar ao qual o
riso foi e é submetido é algo notável, à medida em que vários segmentos do
saber cada vez mais o estudam e analisam. São exemplos: a própria Filosofia,
através da qual Platão considerava o riso algo negativo, pois causava prazer ao
homem e a única forma de prazer admitida era o cândido e encontrado na
própria Filosofia. Falava que o riso era próprio da multidão medíocre
desprovido de razão.
Para o desenvolver da nossa pesquisa escolhemos Mikhail Bakhtin
(2013), que, enveredando pelas nuances literárias, propôs a análise da cultura do
riso durante a Idade Média e no Renascimento. Para tanto, escolheu analisar a
obra de François Rabelais pela força de suas ideias e arte, pela importância
histórica. Escolheu também pela forma e vertentes da escrita de Rabelais: a
forma que vem da corrente popular dos antigos dialetos, dos refrãos, dos
provérbios, das farsas dos estudantes, na boca dos simples e dos loucos.
Bakhtin evoca todos esses elementos e os transforma em princípios geradores
da sua carnavalização.
Beberam da fonte dos estudos de Bakhtin alguns estudiosos do riso
como Henri Bergson (1983), com seu livro O riso: ensaio para a significação do
230

cômico, obra pilar para o nosso estudo, que entre outros métodos, enfoca a
questão do riso com função social. A teoria baseia-se justamente no fato de não
haver comicidade fora do que é propriamente humano. Assim sendo, o autor
propõe várias vertentes de investigação do cômico: as situações, as formas, as
ações, o caráter e os hábitos das personagens, por exemplo. Questão
fundamentada principalmente pelo princípio da verossimilhança que estabelece
uma ponte entre o que há de humano e o risível.
Outro estudioso do riso ao qual nós recorremos é George Minois
(2003). Em sua obra História do riso e do escárnio extraimos visões do poder
transformador do riso ao longo de todos os tempos e o exemplo utilizado pelo
autor recai sobre a Inglaterra do século XVIII. Minois traz uma apresentação
do risível como forma de contestação social, como expurgação, uma espécie de
catarse em meio a cenários desfavoráveis para tal.

O humor sociológico requer a participação ativa do


ouvinte, sua cumplicidade. Ele gera uma simpatia, vinda
da solidariedade diante das desgraças e dificuldades do
grupo social, profissional, humano. É então que se
percebe a dimensão defensiva do humor, arma protetora
contra a angústia. (MINOIS, 2003 p. 559).

Minois (2003) comunga com estudos precedentes sobre a comicidade


incidindo sobre os vícios e defeitos individuais para preservar o corpo social.
Algo que necessita de transformação. É a representação da própria sociedade
local denunciando um presente que a irrita acreditando numa possível mudança
desse quadro. O “inimigo” é o estado social, as pessoas desejam destruí-lo,
substituí-lo para um futuro melhor.
Mas não é só na Inglaterra que se vê esse tipo de humor crescente.
Partamos para o sertão nordestino, século XX. Temos Lourdes Ramalho,
escritora norte-rio-grandense de Jardim do Seridó com morada em Campina
Grande, Paraíba. Com produção dramatúrgica, Maria de Lourdes Nunes
Ramalho (1923-) dá início a uma espécie de “fazer dentro da vida”, brotando
como (re)fluxo de continuidade em meio à sua própria experiência familiar,
cujos ramos da árvore genealógica apontam para momentos formativos da
poesia popular nordestina. Vejamos como Candido (2000), expressa sobre a
experiência do autor:
231

O panorama literário é dinâmico complicando-se pela


ação que a obra realizada exerce tanto sobre o público, no
momento da criação e na posteridade, quanto sobre o
autor, a cuja realidade se incorpora em acréscimo, e cuja
fisionomia espiritual se define através dela. Em
contraposição à atitude tradicional e unilateral, que
considerava de preferência a ação do meio sobre o artista,
vem-se esboçando na estética e na sociologia da arte uma
atenção mais viva para este dinamismo da obra, que
esculpe a sociedade as suas esferas de influência, cria o seu
público, modificando o comportamento dos grupos e
definindo relações entre os homens. (CANDIDO, 2000,
p. 74).

Desde adolescente, quando sua fatura artística causa furor ao denunciar


a estrutura de funcionamento do internato onde estudava em Recife-PE,
Lourdes já estava preocupada em dar forma à sua memória cultural e à sua
visão de mundo: era o limiar de uma linguagem teatral que, em seu
desenvolvimento, se aliou às possibilidades de expressão de uma menina-
mulher que nunca aceitou aquilo que podia ser modificado.
O teatro de Lourdes ficou conhecido por seu caráter de resgate
regional, realista, denunciador dos costumes e fortificador das tradições,
inclusive a tradição linguística do interior do nordeste o que deixa clara a
posição anticolonialista da autora. A título de um conhecimento de seus temas,
descreveremos, no decorrer da análise, dois de seus títulos e os aspectos
envolvidos em sua composição a fim de demonstrar que, mesmo sendo obras
trágicas (de acordo com as situações trágicas estabelecidas), emanam
características cômicas. E que esse cômico tem suas raízes no princípio da
carnavalização.

Análise

Segundo Bakhtin (2013), o realismo grotesco trata-se de um tipo


peculiar de imagens e, mais amplamente, de uma concepção estética da vida
prática que caracteriza a cultura popular e que postula a diferença entre ela e
outras culturas dos séculos posteriores. Essa é qualidade essencial do realismo e
o separa das demais formas “nobres” da literatura e da arte medieval. O riso
popular é então, ligado ao grotesco.
232

Para pontuar as características do grotesco, Bakhtin (2013), propõe o


princípio da vida material e corporal: imagens do corpo, as ações de comer,
beber, da satisfação das necessidades naturais e da vida sexual. São imagens
sempre exageradas. Em Rabelais, por exemplo, encontramos ainda um
fisiologismo grosseiro, um “biologismo” ou naturalismo.
Citadas essas características do grotesco, é imprescindível um encontro
desses pressupostos com a forma de composição da autora Lourdes Ramalho.
A fim de demonstrar tal consonância analisaremos alguns trechos das obras A
feira (1980) e As velhas (1976).
Em As Velhas, a saga de Mariana em busca do marido desertor e em
meio a uma vida nômade proposta aos retirantes, temos a denúncia da
famigerada “indústria das secas” com a denúncia de roubos dos políticos nas
chamadas frentes de emergência; em A feira história de uma pequena família
que chega à feira carregada de ilusões e esperanças de consumo e é agredida e
desagregada pela desumanização que ali se esboça, assistimos ao choque da
população rural indefesa, com a violenta população urbana, sob o ângulo do
velho nordeste despreparado para as rápidas transformações.
Comecemos a análise com a obra A feira, mais precisamente com a
apresentação dos personagens. Estes, já embebidos da água do arquétipo
carnavalesco, são apresentados como tipos comuns encontrados nas feiras: Filó
(a mãe – mulher da zona rural); Zabé (sua filha); Bastião (filho retardado de 15
anos); Chico das batatas (feirante); Malandro (marginal); Almira (tapioqueira);
entre outros, cujos nomes dão lugar ao arquétipo que representam: o fotógrafo,
o cego, o aleijado.
Na apresentação do título e dos personagens é possível observar sinais
que se somam aos aspectos carnavalescos. A feira, para o nordestino, pode ser
encarada como um ritual assim como os rituais carnavalescos, pois acontece de
maneira cotidiana, cíclica e recorrente. E a representação das personagens em
suas definidas funções arquetípicas já anuncia um diálogo com a teoria estudada
por Bakhtin. Ainda temos como reforço o fato de que a própria dramaturgia
cômica está estritamente ligada ao carnaval. Vejamos:

Os festejos do carnaval, com todos os atos e ritos cômicos


que a ele se ligam, ocupavam um lugar muito importante
na vida do homem medieval. [...] Além disso, quase todas
as festas religiosas possuíam um aspecto cômico, popular
e público, consagrado também pela tradição. Era o caso,
233

por exemplo, das “festas do templo”, habitualmente


acompanhadas de feiras com seu rico cortejo de festejos
públicos (durante os quais se exibiam gigantes, anões,
monstros e animais sábios). (BAKHTIN, 2013, p. 4).

Logo no início da peça, é conclamada ao palco uma série de conceitos


elaborados por Bakhtin em seu estudo sobre carnavalização. Vejamos em
passagens dos textos das peças, alguns dos princípios materiais e corporais
citados anteriormente. Como a dor indicando uma fragilidade do corpo, a
fome.

FILÓ- Peraí menina, é a dor me tomando de novo a arca


do peito. Enquanto vocês num me acharem tesa num
canto num diz que eu tô doente/ Que é que eu faço pra
achar meu velho, uma falência desadorada, um bolo
assubindo do estambo;
CHICO- Criatura, seu mal é fome. (RAMALHO, 1976, p.
20).

Demonstrações como essa são comuns ao longo do texto. Temos com


recorrência o apelo ao carnal, com um jogo de linguagem que impacta pelo
nível em que se concebe, mas logo somos levados a crer que não passa da
inocência deturpada. Como na passagem abaixo, onde Bastião, o menino,
anseia por uma tapioca:

BASTIÃO- Arreganhe sua tapioca pra eu ver se tem coco


dentro.
TAPIOQUEIRA- Mande a mãe arreganhar primeiro.
BASTIÃO- Ô mulher da tapiocona roxa! (RAMALHO,
1976, p. 22).

Como bem se percebe, é pontual que, assim como Bakhtin descreve e


prepara o leitor para as obras de Rabelais, podemos pegar o mesmo alerta e
enviar aos leitores e expectadores ramalhianos. Ambos os autores exigem uma
reformulação radical das concepções artísticas, um desprendimento para
compreender a ideologia e a capacidade de reinventar o gosto literário, e ainda,
propõem como exercício que se faça uma investigação dos domínios da
literatura cômica popular que tem sido tão pouco e tão superficialmente
234

explorada. Desse modo observamos um dos motivos para o estranhamento


provocado por essas obras: o impacto do não-aprofundamento no assunto.
No decorrer da obra A feira, vemos surgir do texto o que há de cômico.
O apelo ao corpo e às necessidades materiais é uma forma de conceber o
cômico, visto que, tal apelo vai de encontro ao que se propunha no texto sério
como a tragédia, por exemplo. Vejamos essa passagem do texto teatral:

ZABÉ- Num já veio se consultar? Agora largue essa cara


de enterro. Parece até que deixaram a porta do cemitério
aberta.
FILÓ- Que culpa tenho eu de viver amorrinhada e
esquecida?
ZABÉ- Esquecida? Será que esqueceu o dinheiro?
FILÓ- Da cevada ou o das galinhas?
ZABÉ- Todo. Pensa que aquilo é nada pros meus
aprontamento?
FILÓ- Também tem minha consulta e a distração do
dente de Bastião.
ZABÉ- Bastião consulta no posto, dão até mostra grátis e
a senhora vai para a maternidade.
FILÓ- Vôtes! Eu num vou ter menino! (RAMALHO,
1976, p. 18).

O trecho teórico a seguir, nos fortalece quanto ao aspecto analisado e


proposto por Henri Bergson:

[...] o poeta trágico tem o cuidado de evitar tudo que possa


chamar nossa atenção para a materialidade de seus heróis.
Desde que ocorra uma preocupação com o corpo, é de
temer uma infiltração cômica. Daí os heróis da tragédia
não comerem, não beberem, não se agasalharem.
Inclusive, na medida do possível, nunca se sentam. Sentar-
se no meio de uma fala seria lembrar que tem um corpo.
Napoleão, que era psicólogo nas horas vagas, observou
que se passa da tragédia à comédia pelo simples ato de
sentar. (BERGSON, 1987, p. 33).

A obra apresenta situações marcadamente trágicas, mas o cômico se


sobrepõe pela maneira como é conduzido. Temos a presença esmagadora do
“rapa” na feira, demonstrando a humilhação a que os menores eram
235

submetidos. Violência física, moral. Temos a moça Zabé iludida pelo Malandro
e indo trabalhar no cabaré. O menino não “distrai” o dente problemático.
Descobre-se que o pai fora preso. E a matriarca Filó morre, provavelmente de
ataque cardíaco na porta do cabaré onde a filha estava. Tem o seu leito de
morte à porta do prostíbulo. Uma senhora tão cheia de recato e vergonhas.
Quando cai, em seus últimos suspiros, é ridicularizada pelos transeuntes da
feira:

MULHER – Mas pia mesmo essa velha. Deve tá num


bruto porre de cana.
HOMEM – E veio cair mesmo em frente ao cabaré da
feira. – Será que ainda pretendia alguma coisa?
MULHER – Mais que cachaça braba! – Tá escutando o
ronco? (RAMALHO, 1976, p. 49).

Nesta passagem, relembramos rituais que ocorriam no folclore


primitivo romano, citados por Bakhtin:

Nas etapas primitivas, dentro de um regime social que não


conhecia ainda nem classes nem Estado, os aspectos
sérios e cômicos das divindades, do mundo e do homem
eram, segundo todos os indícios, igualmente sagrados e
igualmente “oficiais”. No primitivo Estado romano,
durante a cerimônia do triunfo, celebrava-se e escarnecia-
se o vencedor em igual proporção; do mesmo modo
durante os funerais, chorava-se ou celebrava-se e
ridicularizava-se o defunto. (BAKHTIN, 2013, p. 5).

Há no final da peça, um acentuado paradoxo entre o trágico e o


cômico, como se o cômico ou o que há de risível, servisse para aplacar um
acontecimento cruel e injusto. É como se o riso nos resgatasse da dor tamanha
de ler e sentir algo tão chocante. É o “rir para não chorar”.
No que diz respeito à obra As velhas, primeiramente observamos um
jogo de antonímia entre o título da obra e a falta de referência no enredo e na
descrição das personagens, que não são de fato, velhas. Nesse ponto,
percebemos características de carnavalização e grotesco, já que o tema da
velhice era visto como risível para essa teoria. Lourdes Ramalho, que não por
acaso, tem suas influências ibéricas e medievais, sugere no título esse mesmo
236

enfoque dado pela teoria da carnavalização (BAKHTIN, 2013), que propunha o


zombar do ciclo natural e biológico da vida.
Na obra, temos a história de duas mulheres, Mariana e Vina, que não
são velhas, mas, provavelmente, para que ocorresse o efeito pretendido, assim
eram estereotipadas: mulheres de 40 e 42 anos eram velhas. É necessário
enfatizar que essa nomenclatura ainda pode dialogar com o fato de que as
mulheres no sertão nordestino sofriam em detrimento das condições de vida e
possivelmente tinham uma baixa expectativa de vida.
Segundo Bakhtin (2013, p. 7) “Na época inicial do grotesco, o tempo
aparece como uma simples justaposição das duas fases do desenvolvimento: o
começo e o fim.” Tal conceito sugere que as imagens grotescas, com seus sinais
ambivalentes, convertem-se no principal meio de expressão artística e
ideológica do Renascimento.
Além de ambivalentes, as imagens do grotesco são contraditórias,
disformes, horrendas, era a forma de ir de encontro ao que era matéria clássica,
era a estética da vida cotidiana conservando seu conteúdo e matéria tradicional:
o coito, a gravidez, o parto, o crescimento corporal, são imagens que se opõem
às imagens clássicas belas e acabadas. Bakhtin refere-se ao tema da velhice
como sendo uma dessas contradições propostas pelo grotesco. Vejamos:

Contrariamente às exigências dos cânones modernos, o


corpo é sempre de uma idade tão próxima quanto possível
do nascimento ou da morte: a primeira infância e a
velhice, com ênfase posta na sua proximidade do ventre
ou túmulo, o seio que lhe deu a vida ou que o sepultou.
(BAKHTIN, 2013, p. 23).

Com um enredo bastante entrecortado de ações do destino,


conhecemos os retirantes da família de Mariana. Se arrancham embaixo de uma
oiticica e fazem dali sua morada: ela e os dois filhos: Branca e Chicó. A pouca
distância dali, sua inimiga de anos, Vina, se abriga em uma boa casa de fazenda
com seu então marido “roubado” de Mariana e seu filho único, José. Existe
uma inversão de posições na obra, que versa no passado das duas: Mariana era
dona de fazenda e Vina, uma cigana nômade. Mas, por obra do destino um
evento faz tudo isso mudar. Como nas reviravoltas propostas pelas tragédias
clássicas.
O marido de Mariana despencava a carne de um bode no curral para
servir de alimento à família. É quando surge a cigana Vina com seu vestido
237

arrastando no chão, pedindo um “taquinho” daquela carne tão saborosa, pois


estava grávida e desejava comer carne de bode. Imediatamente, Mariana avança
sobre a cigana, diz que não tem nada para ela naquela fazenda e ordena que
Vina retire-se.
A cigana por sua vez, vai embora praguejando e anunciando em alto e
bom som que a vida de Mariana não teria um curso feliz.
Pouco tempo depois, o marido de Mariana deixa a fazenda para viver
um amor com a cigana e vão embora seguir uma vida nômade.
Abriremos um parêntese para analisar um fator importante que
identificamos na obra: a presença do bode e a possível simbologia do mesmo
diante do estudo de textos trágicos. O bode é um animal referente ao
surgimento da tragédia e da comédia, tragos (“bode”) e oidé (“canto”), o termo
grego tragoedia significa “o canto do bode”.
Se não de propósito por parte da escritora, a presença do bode
corrobora como elemento desencadeador de desgraças. Podemos dizer que a
presença do animal é fortemente efetiva para estimular a intriga e confirmar os
conflitos que estavam por vir.
Ficamos conhecendo a existência do bode, na cena 03, quando Tomás
(o mascate) e Ludovina(a cigana) conversam a respeito dos incômodos que,
Melado, o bode de Ludovina, causa à vizinhança.

TOMÁS – Falar em Melado, eu me lembrei – vê se


prende ele uns dias... O bicho ta dando o maior trabalho
ao pessoal que se arranchou nas oiticica... Foi num foi
aparece lá e é um destempero...
VINA – Ah, é os retirantes que você anda parido por eles.
– Pois lhe informaram mal, Melado num sai de redor de
casa. Eu num digo – só terá de bode nessa terra ele?
TOMÁS – (INSISTENTE) – Que num sai de casa, Vina.
– Toda vizinhança vive se queixando. – Nem roupa se
pode mais deixar nas cerca que ele come tudo.
VINA – Pois é num deixar. – Quem lavar seus panos que
fique pastorando. (RAMALHO, 1976, p. 10).

O bode Melado está presente constantemente na ação da peça. Aqui


podemos nos perguntar: qual seria a intenção da autora ao incluir nas ações a
figura do bode? O bode além de simbolizar a tragédia e a comédia, é, no
contexto geográfico no qual se desenvolve a trama, um animal característico da
238

região. Contudo, sua inserção no texto da peça sugerem significações mais


efetivas e trágicas.
Na cena 05, Mariana chateada relembra o que ocorrera no passado, o
motivo pelo qual Tonho lhe abandonou. Nesse contexto, a presença do bode
sacrificado é imprescindível como causador da desgraça: a aproximação de
Tonho e da cigana Ludovina.

Mariana: Eu me lembro como se hoje fosse. – Tonho


tinha matado uma criação e tava despencando a
matutagem. Era um bodinho novo, de uma cabrinha que
dava leite pra Chicó. Eu ia me assentando junto, com
Chicó no colo, quando ela apareceu, puxando o menino
pela mão, e foi logo pedindo: “- Ganjão, me dê um
pedaço dessa carne, que eu tou de desejo...”(RAMALHO,
1976, p. 13).

A partir desse dia Tonho começa a se envolver com a cigana, abandona


sua família e segue mundo afora com Ludovina. Além do incomodo que o bode
Melado causava à família de Mariana recém chegada naquele lugar, e dos
conflitos do passado revelados por Mariana, mais adiante o bode será peça
fundamental para os encontros de Branca e José, filhos das velhas. Melado era
uma espécie de pombo-correio, um leva e traz que era utilizado por Branca para
enviar bilhetinhos escondidos na tira do pescoço para José. Vejamos:

BRANCA – Tava doidinha pra lhe ver.


TOMÁS – E eu também, pra lhe passar um carão. Que
estória é essa de fazer bilhete e esconder na tira do
pescoço do bode – será pombo-correio?
– (...) – O coro do bicho só cheira a mijo de rato.
BRANCA – É água de flor que eu boto. – Num posso
botar no dono.(RAMALHO, 1976, p. 10).

O serviço do bode contribui para o envolvimento de Branca e José,


culminado com a gravidez de Branca. Consequentemente esse acontecimento
será motivo do reencontro das antigas rivais e das revelações do passado.
Portanto o bode presente no texto não se trata apenas de uma figura
representativa da região em que se passa a história, mas sim uma figura que
contribui tanto para a aproximação das duas famílias, quanto para o surgimento
de ações trágicas.
239

Continuando com nossa análise, é importante pensar as obras em seu


aspecto linguístico. Um estudo de traços da linguagem utilizada corrobora para
a possível relação com mais aspectos ligados à teoria da carnavalização. Trata-se
do rebaixamento da linguagem. Um método que permite que as ações deslizem
através do linguajar das personagens. Vejamos:

Aprecio aqui um excesso de precisão, uma espécie de


exatidão maníaca da linguagem, uma loucura de descrição
de embate de falas. Assistimos a esse paradoxo: a língua
literária abalada, ultrapassada, ignorada, à medida mesmo
que ela se ajusta à língua “pura”, à língua essencial, à
língua gramatical. A exatidão em questão não resulta de
um encarecimento de cuidados, não é mais - valia retórica,
como se as coisas fossem cada vez mais bem descritas –
mas de uma mudança de código: o modelo (longínquo) da
descrição já não é o discurso oratório (já não se pinta
nada), mas uma espécie de artefato lexicográfico.
(BARTHES, 2013, p. 34).

Temos passagens em que o chulo e a linguagem popular da praça, vêm


à tona nos diálogos. Nessas passagens, enumeramos as várias vezes em que a
parte baixa do corpo e seus orifícios são evocados. Partes do corpo
consideradas de menor valia e respeito, segundo as observações de Bakhtin (
2013).Vejamos alguns desses diálogos:

CHICÓ- (limpando o ganzá, a quem dedica um carinho


todo especial) Isso já passou, minha gente. É meter os
peito de novo. Pra que tamo vivo? Só tenho um prazer-
tamo de retirada com os piquáio no lombo, mas nunca
baixemo o cangote. Sempre seguimo o sonselho da velha
que toda vida diz: “Quem se abaixa demais... o cu
aparece.”;

VINA- sente homem, pra descansar as pernas.


TOMÁS- é as perna descansando e o trazeiro tendo
trabalho;

VINA- aquilo era cabra preguiçoso...só aparecia na hora


de comer e era enchendo o rabo, virando a perna pra
240

tomar fresco e roncar... e tanto roncava pelo norte como


pelo sul. (RAMALHO, 1976, p. 50).

Outro aspecto do estudo proposto pela carnavalização, a sexualidade


natural, como uma essência humana ou animal, também revelam-se na obra.
Quando a filha de Mariana se apaixona pelo filho de Vina, José, pouco tempo
“se aguentam” com o desejo do sexo e se entregam por trás de uma moita.
Como um ato animalesco ressaltado.

MARIANA- minha filha, minha donzela, num passa duma


desavergonhada, que se entregou nos mato, como bicho
bruto... E agora, prenha, corre atrás do macho, rebaixada
até o último ponto – mulher bulida, sem valia,
mendigando a compaixão que num merece. (RAMALHO,
1976, p. 53).

Para pontuar na nossa análise a presença de aspectos da carnavalização


nas palavras utilizadas na composição, citamos o juramento como uma
representação do burlesco por ser até certo ponto similar à grosseria de acordo
coma teoria da carnavalização. O juramento e a grosseria são considerados
como um gênero verbal especial, com características semelhantes, pois são de
caráter isolado, acabado. Segundo Bakhtin (2013, p.25), “inicialmente os
juramentos não tinham nada a ver com o riso, mas como foram eliminados da
linguagem oficial , porque infringiam suas regras verbais, não lhes restou outro
recurso senão o de implantar-se na esfera livre da linguagem familiar”.
A obra termina com as duas velhas unidas em uma espécie de prece
por seus filhos que estavam entrincheirados na mata, em guerra contra os
poderosos da região, prece esta repetida com inúmeras juras. Uma falava, a
outra repetia. Vejamos:

MARIANA- pela vida do meu filho e pela salvação dele...


VINA- Pela vida do meu filho e a salvação dele...
MARIANA-juro por Deus...
VINA-juro por Deus...
MARIANA-não quero encontrar mais ele vivo...
VINA- não quero encontrar mais ele vivo...
MARIANA- se quebrar minha jura...
VINA- se quebrar minha jura...
241

MARIANA- juro por toda a corte celeste...


VINA-juro por toda a corte celeste...
(desaparecem as duas caminho afora, sob o vermelho do
acaso, ainda murmurando juras). (RAMALHO, 1976, p.
58).

Vemos o riso ser construído e estabelecido justamente nestas palavras,


que não significam nada, pois elas não esclarecem o que estão jurando ou
prometendo. Além de suscitar que as inimigas não dizem a verdade uma à
outra. Exemplificando o não-valor daquelas palavras. Juras que seriam
facilmente quebradas no momento de estabilização da situação. Juras que
alimentam o arquétipo que elas carregam fortemente: a figura da mãe
nordestina. Exemplo do matriarcalismo existente nos sertões, comportamento
este, que, por si só, já trata de burlar a ordem social de um nordeste tão
masculinizado.

Considerações finais

Bakhtin (2013), e a sua teoria de carnavalização geralmente são


enquadrados e reduzidos à simples acepção da ocorrência de uma inversão
hierárquica durante o espetáculo carnavalesco, mas essa teoria é muito hábil
quanto às categorias fundamentais que ela utiliza. Para Bakhtin(2013), o
carnaval era sim um conjunto de manifestações populares onde todos eram
livres, mas também formava um princípio organizado e coerente para o
entendimento e interpretação de mundo.
Em seus conceitos temos “a carnavalização da Literatura” como um
rito processual que une as ações, os gestos e a linguagem. O texto carnavalesco,
sem atores, sem palco, sem diretor, derruba as barreiras hierárquicas, sociais,
ideológicas, de idade e de sexo. Representa a liberdade, o extravasamento; é um
mundo às avessas no qual se diluem todas as diferenças entre os homens para
substituí-las por uma atitude carnavalesca especial: um contato livre e familiar
entre os homens.
O uso generalizado de profanações e blasfêmias, juras, imprecações,
obscenidades e expressões de teor insultuoso definem a linguagem carnavalesca
na sua função ambivalente, ou seja, ao mesmo tempo humilhante e libertadora.
Lourdes Ramalho, ao revisitar a cultura popular em forma de texto
teatral, buscou exatamente o efeito estético dessa linguagem, coerente e
engenhosa em seu fazer literário. Através dessa forma de fazer drama, ela
242

sempre remontou a crítica, a sátira aos valores vigentes e viabilizou, inclusive,


essa possibilidade investindo no rebaixamento da linguagem. Nas vozes das
personagens de Lourdes notamos vozes que foram caladas pela comunicação
oficial. E através de uma palavra que seja, a expressão se liberta e vira deboche,
protesto. O drama de Lourdes tenta com isso, igualar a todos (ricos e pobres;
brancos e pretos; homens e mulheres). E igualar por baixo. Porque todos
morrem, comem, bebem, cagam, fazem sexo.
Entendemos com essa análise, que nas obras estudadas a cultura e a
região nordestina são tratadas com a rusticidade e o sofrimento, que têm
caracterizado a literatura regionalista nordestina. Mas aspectos como a
ridicularização de mundo e o rebaixamento total da linguagem tornam as obras
de Lourdes de difícil categorização. Sua produção literária possui uma posição
singular. Assim como a de Rabelais exaltado por Bakhtin em seu estudo.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no


Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi
Vieira. São Paulo: Hucitec, 2013.

BARTHES, Roland. O prazer do texto. Trad. J. Guinsbrgl. 6. ed. São Paulo:


Perspectiva, 2013.

BERGSON, Henri. O riso: ensaio para significação do cômico. 2.ed. , Rio


de Janeiro: Zahar, 1983.

CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história


literária. 8.ed. São Paulo: T.A.Queiroz, 2000.

MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. Trad. Maria Elena O.


Ortiz
Assumpção. São Paulo: Editora UNESP, 2003.

RAMALHO, Lourdes. Teatro Nordestino – Cinco Textos para Montar ou


Simplesmente Ler – A Feira, As Velhas, Festa do Rosário, O
Psicanalista, Fogo Fátuo. Campina Grande: RG Gráfica e Editora, 1998.

SOERENSEN, Claudiana. A carnavalização e o riso segundo Mikhail


Bakhtin. Revista Travessia. Vol. XI, p. 318 a 331.
243

O PAÍS SOB MINHA PELE: PATRIARCALISMO E CONSTRUÇÃO


DA IDENTIDADE FEMININA

Joelma de Araújo Silva Resende


Sebastião Alves Teixeira Lopes

Considerações iniciais

Em O país sob minha pele percebe-se que o patriarcalismo é


predominante na sociedade nicaraguense. Gioconda Belli, que escreveu suas
memórias a partir de suas vivências na época da ditadura na Nicarágua, embora
às vezes aja submetendo-se ao que a sociedade determina, na maioria das vezes
tenta desvencilhar-se de comportamentos que diminuem e excluem a mulher,
seja através de sua escrita ou de seu comportamento diante dos
companheiros/família/sociedade.
Optou-se em analisar as memórias de Belli por ser um livro que traz a
voz de uma mulher que durante toda sua vida buscou impor-se como dona de
sua própria história. Belli não aceitou permanecer em um casamento fracassado
só para manter as aparências; apaixonou-se e se permitiu viver suas paixões sem
se prender aos padrões patriarcais que predominavam no contexto da sociedade
nicaraguense e também lutou pela liberdade de seu país, como membro da
FSLN (Frente Sandinista de Libertação Nacional). Há muitas abordagens que
poderiam ser feitas sobre O país sob minha pele, mas optou-se por enfocar, neste
trabalho, o comportamento de Belli diante de uma sociedade patriarcalista,
visto que mesmo dentro de um movimento que buscava a liberdade de seu país,
o pensamento machista predominava.
Esse trabalho foi desenvolvido através de pesquisa qualitativa
bibliográfica, examinando o patriarcalismo e as instituições patriarcais que
perpetuam a dominação do homem sobre a mulher; a busca por emancipação
feminina através das atitudes de Belli também é examinada. Nessa análise, são
citadas autoras como Iop (2009) e Saffioti (1987), que retratam os papeis que
normalmente são exercidos por homens e mulheres em uma sociedade
patriarcal; e Beauvoir (1970), que se apresenta como uma referência em estudos
de gênero, por discutir questões ligadas ao universo patriarcal.
244

Patriarcalismo em o país sob minha pele

Segundo Iop (2009), a consolidação do patriarcado ocorre com a


constituição do Estado, da propriedade privada e da família. Assim, as
desigualdades de gênero vão sendo perpetuadas ao longo dos anos e amparadas
por leis. A mulher passa a ser explorada em diversos âmbitos, na rua, no
trabalho e até mesmo em seu lar, por seu companheiro. Nas sociedades
ocidentais, a mulher como propriedade do homem é um fato que perdura até a
segunda metade do século XX. Nesse contexto patriarcal, a mulher não tem
direitos, é desrespeitada e violentada. O homem sempre age conforme melhor
lhe convier, pode ser infiel, por exemplo; já a mulher que comete tal ato pode
até mesmo ser morta. O sistema capitalista, desde o início, coloca a mulher em
desvantagem em relação ao homem na sociedade, principalmente no trabalho.
Gioconda Belli forma-se em um colégio de freiras na Espanha. Com 17
anos termina seus estudos e obtém seu primeiro emprego em uma agência de
publicidade em Manágua. Conhece seu primeiro marido, que agrada a seus pais
por ser de uma família do mesmo círculo social que eles. Belli casa logo em
seguida, em 1967, com apenas 18 anos. Só após o casamento, percebe o
comportamento fechado e solitário de seu esposo. No momento da cerimônia
matrimonial já se sente incomodada com aquele ritual em que seus pais a
entregam a um homem como se fosse um embrulho de presente. Nota-se com
frequência no comportamento de Belli o incômodo com o comportamento
patriarcal, machista, que exclui a mulher, tratando-a como objeto.
Butler (2010) entende que a discussão sociológica busca compreender a
noção de pessoa como algo que “reivindica prioridade ontológica aos vários
papéis e funções pelos quais assume viabilidade e significados sociais” (2010, p.
37). A coerência da pessoa não é característica lógica ou analítica da condição
de pessoa e sim uma norma socialmente instituída. A identidade é assegurada
por conceitos de sexo, gênero e sexualidade que são estabilizadores e aqueles
que não se conformam com esses conceitos endurecidos tendem a questionar a
própria noção de pessoa. Belli questiona certos comportamentos das pessoas de
seu meio, sente-se deslocada, diferente e entediada na companhia das pessoas
que tinham o comportamento padrão da sociedade.

Entediavam-me os sábados no Country Club, repetindo a


vida de nossos pais: os maridos jogando golfe, as crianças
na piscina, enquanto nós outra vez com as babás, a pílula,
245

o dispositivo intra-uterino de cobre ou os ginecologistas


da moda. A única coisa interessante para mim nesse
tempo foi a chegada de Neil Armstrong à Lua. (BELLI,
2002, p. 53).

Apesar da sociedade ser predominantemente patriarcal, a mãe de Belli


mostra-se em alguns momentos uma mulher moderna, o que dá a entender que
a educação que deu à filha não foi tão conservadora. Em um evento em que só
permitem maiores de dezesseis anos, sendo que Belli tinha apenas catorze, a
mãe burla a norma e maquia a filha para que pareça mais velha. Assistem a um
espetáculo em que um homem e uma mulher, seminus, sugerem uma cópula
apaixonada. Fala com a filha sobre as mudanças em seu corpo, menstruação e
sexo. Conscientiza Belli sobre a dádiva que é ser mulher:

Eu era mulher. No gênero humano a única que podia dar


vida, a designada para continuar a espécie. Os corpos
humanos eram o mais perfeito da criação, obras de arte
maravilhosas e precisas, mas o da mulher, exatamente por
sua função, era mais belo e assombroso. Éramos a obra-
prima da natureza. (BELLI, 2002, p. 47).

Por outro lado, ainda que tenha instruído sua filha desde pequena
sobre o corpo humano e dito que considera o puritanismo algo atrasado, a mãe
de Belli, pouco antes da lua-de-mel da filha, pondera: “Uma mulher deve ser
uma dama em sua casa, mas não na cama. Na cama com seu marido, poderá
fazer o que quiser. Nada é proibido. Nada – enfatizou” (BELLI, 2002, p. 46).
Nesse aconselhamento pode-se compreender que para a mãe de Belli a mulher
deve seguir o pensamento machista de que a mulher deve ser “uma dama na
sociedade e uma puta na cama?” Por que no meio social ela deve ser uma dama,
uma mulher contida? Por que a liberação somente na cama? A imposição de
comportamento para a mulher, de como deve ser e agir é um reflexo do
patriarcalismo que quer negar à mulher o poder de escolha de seus atos.
O primeiro casamento torna-se entediante. Ela que casou cedo por
querer sair logo da casa dos pais, agora percebe que cometeu um erro. Seu
marido é distante, apático e já não demonstra a paixão de antes. Descobre que
são muito diferentes um do outro: “Eu era toda curiosidade, otimismo,
vitalidade. Ele, ao contrário, era pessimista, apenas suportava a vida” (BELLI,
2002, p. 57). Além disso, ele mostra comportamento machista ao propor que
246

Belli deixe o emprego e fique em casa, como as outras mulheres casadas faziam.
Ela faz um escândalo e não aceita. Além de não querer deixar o emprego, Belli
não suporta a vida doméstica: “Eu não sabia cozinhar. Era uma digna herdeira
de minha mãe, que sempre odiou a vida doméstica e sonhava com o dia que
pudéssemos nos alimentar com pílulas, tal como os astronautas” (BELLI, 2002,
p. 89). Nesse momento, Belli não aceita a imposição social de que a mulher
casada deve ficar reclusa em casa, privada no ambiente doméstico. Ela reage,
diz ”não” a essa ideia machista de que homens e mulheres devem desempenhar
papeis sociais diferentes. De acordo com Saffioti (1987), não é difícil perceber
que homens e mulheres ocupam posições diferentes na sociedade. Esta delimita
os espaços em que homem e mulher podem atuar: a mulher cuida dos filhos e
do espaço doméstico; o homem deve trabalhar para sustentar a família.
Segundo a autora, todo esse processo de discriminação passa a ser considerado
natural, pois é transmitido ao longo das gerações como se fosse o “correto”:

É de extrema importância compreender como a


naturalização dos processos socioculturais de
discriminação contra a mulher e outras categorias sociais
constitui o caminho mais fácil e curto para legitimar a
“superioridade” dos homens, assim como a dos brancos, a
dos heterossexuais, a dos ricos. (SAFFIOTI, 1987, p. 8).

No século XX, acontecem algumas transformações por causa do


contato entre as diversas sociedades e as influências políticas, culturais,
econômicas e sociais que cada grupo experimenta. O Feminismo surge como
uma força internacional, refletindo avanços na educação de mulheres e
buscando novas ideias que defendam os direitos dessas mulheres. O Feminismo
traz desde inovações na maneira de se vestirem até grandes lutas como a busca
do direito ao voto e liberdade sexual. A partir desse movimento é que começa a
nascer a busca pela igualdade de direitos entre homens e mulheres.
Belli reclama do comportamento do marido. Ela chora, se desespera.
Ele opta por calar-se. No trabalho, começa a receber investida do Poeta, que
logo percebe a infelicidade dela no casamento. Com o tempo, cede às investidas
dele e passam a ser amantes. Belli busca sua felicidade, mas em alguns
momentos sente-se culpada por estar sendo infiel: “Não me parecia justo que
um contrato social como o casamento implicasse minha eterna resignação a
uma situação que não era mais que o produto de um conceito errado, de um
equívoco. E mesmo assim eu queria ser uma boa esposa” (BELLI, 2002, p. 57).
247

Ao se entregar ao Poeta pela primeira vez, Belli sente-se plena e chega à


conclusão de que o amor vale a pena. Na época tinha 21 anos e ele 26; a partir
daí passa a sentir que essa intimidade é o que a vida oferece de mais belo.
Sentiu-se atrevida e sem nenhum remorso naquele momento:

Essa transgressão foi meu Big Bang pessoal. Fez-me


questionar meus deveres e considerar meus direitos, o que
minha vida era e o que podia ser. O desejo de liberdade se
expandiu por todo o universo. De minha vida de jovem
casada da classe alta ficou apenas a enganosa e polida
superfície. Dentro de mim começaram os sete dias da
criação, os vulcões, os cataclismos. (BELLI, 2002, p. 59).

Sabe-se que em uma sociedade patriarcal, o adultério feminino é algo


gravíssimo; por isso, apesar do casamento malsucedido, Belli reluta em
entregar-se ao amor do Poeta. A princípio, sente-se presa a padrões tradicionais
da sociedade. Para Koller e Narvaz (2006), a organização familiar é feita ao
longo da história; a principal forma de organizá-la é colocando a figura
masculina como central. Fala-se em declínio do patriarcado a partir do final do
século XVII, porém, se ainda há o direito natural de poder do homem sobre a
esposa, pode-se afirmar que existe um patriarcado moderno. Ainda nos dias
atuais há o discurso de que a maternidade é fundamental para a mulher se sentir
completa ou de que o fato de a mulher trabalhar fora de casa é causa de
desagregação familiar. Apesar das imposições sociais, homens e mulheres são
capazes de subverter a norma, tornando-se transgressores. A pluralidade do ser
humano abre possibilidade para que os papeis sejam reinventados, a sociedade
patriarcal normatiza, mas ao mesmo tempo há espaço para a transgressão. É
isso que Belli tenta fazer, se reinventar, subverter a norma, já que o casamento
não trouxe a felicidade desejada.
Para Rocha-Coutinho (1994), o ser homem e o ser mulher são
categorias que se constroem socialmente, resultados de uma rede de
significações sociais. O “ser mulher” representa o grupo mais numeroso na
maioria das sociedades e diz respeito a mulheres de grupos étnicos e camadas
sociais diversas. Ao tentar fazer estudos referentes à identidade feminina,
pesquisadores esbarram na opressão e subordinação da mulher; ao constatar a
universalidade da opressão masculina sobre as mulheres, esses estudiosos
reduzem as mulheres a vítimas indefesas de uma sociedade dominada por
homens; deixam de lado, em suas pesquisas, questões importantes a respeito da
248

mulher e de formas de exercício de poder em uma sociedade. Essas análises


reducionistas falseiam o fato de que o poder é relativo e, embora um dos
indivíduos se sobressaia, seu poder não impede que o outro o influencie em
algum momento. Dessa forma, para Rocha-Coutinho (1994), a mulher sempre
articula, de alguma forma, maneiras de resistir ao poder socialmente
reconhecido dos homens. Segundo a autora:

Confinadas por séculos no espaço da casa, onde reinavam


quase que absolutas, enfeitiçando maridos e filhos com a
máscara da perfeição, as dedicadas e abnegadas mães e
esposas encontraram formas especiais e silenciosas de
articular sua resistência, em murmúrios que se perdiam,
muitas vezes, no coro forte dos homens que as
sufocavam. Nem vítimas, nem algozes, acreditamos que as
mulheres ao longo dos anos foram tecendo modos de
resistência a esta opressão masculina, formas de exercer
um certo controle sobre suas vidas a despeito de uma
situação social tão adversa. (ROCHA COUTINHO, 1994,
p. 19).

Rocha-Coutinho (1994) argumenta que os homens sempre detiveram


alguma autoridade sobre as mulheres, usufruindo direitos legitimados
culturalmente para exercer opressão sobre elas. Isso ocorre em quase todas as
sociedades. Em O país sob minha pele, Belli descreve-se rodeada por esses
homens que de alguma forma tentam aprisioná-la, seja o primeiro marido, que
quer mantê-la presa a um casamento fracassado, tentando transformar a esposa
em uma prisioneira do ambiente doméstico; sejam os líderes do movimento
sandinista (organização que luta contra a ditadura em seu país), que sempre
tentam deixá-la nos bastidores do movimento, embora algumas vezes ela queira
enfrentar o perigo de frente. Sufocada pela vida doméstica, encontrava refúgio
nas leituras:

A vida doméstica me afogava. Comecei a ter pesadelos em


que metade de meu corpo convertia-se em
eletrodoméstico e eu me agitava em máquina de lavar. Por
essa época lia livros feministas. Germaine Greer, Betty
Friedan, Simone de Beauvoir. Quanto mais lia menos
podia tolerar a perspectiva de anos e anos conversando
249

sobre receitas de cozinha, móveis, decoração interior.


(BELLI, 2002, p. 53).

Rocha-Coutinho prossegue com o raciocínio: “a naturalização dos


papéis atribuídos às mulheres tornou invisível a regulação de seus desejos”
(1994, p. 39). Não somente a violência física, mas a simbólica também oculta as
relações de poder estabelecidas nas sociedades; as mulheres sempre foram
orientadas a permanecer no espaço privado, a serem dóceis e submissas. Isso
implica o desprezo por seu desejo frente ao desejo dos outros e a aceitação de
uma posição secundária, de uma vida invisível diante do espaço público. A
subordinação faz parte do cotidiano das mulheres de forma natural, sem que
muitas delas sejam conscientes dessa subordinação. Muitas mulheres também
passam a sonhar como possibilidade de evasão, para esquecer sua realidade.
Belli não aceita a posição de subordinada e as imposições do marido,
entregando-se à causa sandinista independentemente do que a sociedade iria
falar de sua pessoa.
Quando estava na Costa Rica em 1976, exilada, Belli sofre com a
distância de seu país, seus pais e principalmente das filhas, mas sabe que essa
tristeza é algo passageiro e controlável; reflete e chega à conclusão de que o que
sofre é pouco se comparado à prisão, tortura e morte que muitos sandinistas
sofrem. Depois que consegue trabalho, decide que quer suas filhas morando
com ela. Arruma um apartamento e entra em contato com seus pais, pois as
meninas estão com eles, para que as enviem para ela. Sobre a maternidade,
Zinani (2006) afirma que, ainda que vinculada às condições socioculturais,
contribui positivamente para que a mulher estabeleça sua identidade. A
maternidade, segundo a autora, promove realização pessoal e responde à
necessidade que o ser humano possui de ser imortal. Belli revela que a cada
cinco anos era possuída por um desejo incontrolável de engravidar novamente:
“Meu corpo pedia gritando que eu usasse sua fertilidade” (BELLI, 2002, p.
212). É nas duas filhas que Belli procura a força para continuar a lutar por um
país justo. É no amor que tem por elas que Belli se apega para criar coragem e
seguir em frente.
O fato de ser mãe faz com que Belli reflita sobre sua atuação no
movimento sandinista. O medo de que algo aconteça a ela e as filhas fiquem
desamparadas é constante; acha que, como mãe, não tem o direito de correr
certos riscos. Porém, o desejo de lutar contra a ditadura prevalece. Ao pedir aos
seus pais que mandem suas filhas para a Costa Rica, recebe a recusa do marido.
250

Liguei para meu marido. Quis conservar a calma, mas não


pude. Como podia fazer isso comigo? Ele conhecia,
melhor do que ninguém, as razões pelas quais eu havia
partido e não podia voltar. Respondeu-me com
arrogância, desafiante. A maternidade não era apropriada
para mim, disse. Minhas prioridades eram outras. (BELLI,
2002, p. 181).

Ao receber a recusa do marido, Belli procura um advogado que


confirma que ela não tem direitos, pois era uma fugitiva; mas ela não desiste de
procurar uma solução para o problema. E encontra. Lembra-se de uma situação
em que o marido dá a ela dinheiro e uma arma. Resolve ligar para ele e
chantageá-lo; diz ao marido que voltará à Nicarágua, pois preferia ser presa a
ouvir dizerem que abandonou as filhas. Diz ao marido que se for pega, irá
afirmar que ele a havia ajudado; o marido volta atrás e permite que as filhas
vivam com a mãe na Costa Rica. Mais uma vez, Belli não aceita que imponham
o que pode ou não fazer. Se ela quer morar com as filhas, significa que as ama
muito; seu envolvimento com o sandinismo não implica que não seja uma boa
mãe. Belli quer estar perto das filhas, ver o crescimento delas, abraçá-las.
Impedir que isso acontecesse, como o marido pretendia, era mais uma ação
machista de um homem que queria aplicar um castigo a uma mulher que não se
comportou como ele queria.
Para Touraine (2007), o aspecto em mais se observa a mudança
provocada pelo Feminismo é no próprio comportamento feminino, seja na
busca pela valorização de seu trabalho ou na não aceitação de maus tratos de
seu companheiro. As mulheres acreditam na identidade feminina, não se
consideram vítimas; carregam dentro de si ideias positivas e a vontade de viver
em uma sociedade transformada por elas. É o caso de Belli, que tenta
transformar o meio em que vive ao ingressar no movimento sandinista e no
plano pessoal também busca realização ao não aceitar imposições sociais, não
prosseguindo com o casamento fracassado e buscando, assim, sua felicidade.
Deve-se rejeitar a ideia da existência de uma natureza feminina. A
análise do comportamento feminino deve partir da ideia de que gênero é uma
construção do patriarcalismo. As mulheres devem dar prioridade ao
relacionamento consigo mesmas e só depois pensar na relação com os outros.
Mesmo tendo consciência de sua dependência, precisam afirmar-se
primeiramente; isso significa que existem para elas mesmas: “... é a afirmação
251

do ser positivo das mulheres que lhes permite, em lhes dando uma autoestima
maior, transformar-se em atrizes da própria vida e da vida de todas e de todos”
(TOURAINE, 2007, p. 29). Hoje, a mulher tem consciência de sua função.
Livre e responsável, não aceita ser vista como objeto construído a partir de
imposições do outro. Essa não aceitação deu origem ao movimento feminista
que, mesmo que tenha sido radical, não pode ser visto como um movimento
revolucionário, mas sim democrático. O feminismo transformou leis e
reconheceu os mesmos direitos para homens e mulheres. As mulheres precisam
libertar-se “de toda referência ao seu ser próprio” (TOURAINE, 2007, p. 47).
Não é questão de criar uma identidade feminina, mas de destruir a imagem de
natureza feminina definida por sua oposição ao homem:

A construção de si pelas mulheres é fundada sobre aquilo


que resiste à sua identidade social, isto é, sobre uma
natureza que não se reduz a uma cultura ou a uma
organização social. É assim que as mulheres vão se
erguendo até chegar à afirmação da singularidade e à
liberdade de escolher sua própria vida, definida por
oposição a toda definição imposta de fora. (TOURAINE,
2007, p. 47).

Deve-se combater o discurso essencialista sobre a natureza das


mulheres que simplesmente opõe seus comportamentos aos dos homens. As
mulheres têm objetivos positivos e não somente de luta contra o domínio
masculino. O objetivo principal do Feminismo é que a mulher construa a si
mesmo, ou seja, que se preocupe mais com ela mesma do que com os homens.
Percebe-se que os homens estão em uma posição enfraquecida, pois
houve uma mudança de posição das mulheres na sociedade. Isso quer dizer que
as mulheres pretendem passar de consumidoras para produtoras de uma
organização social. Buscam seu desenvolvimento pessoal e lutam por uma
transformação de sua vida privada, relação com o corpo e construção da
própria sexualidade:

O inimigo principal das mulheres não é o homem


dominador, mas a ideia de que a vida social e política deva
ser separada da vida privada, esta última sendo
abandonada à diversidade de culturas. As mulheres, ao
contrário, pensam que é necessário partir da vida privada
252

para transformar este espaço público. (TOURAINE,


2007, p. 89).

As mulheres de hoje estão descobrindo um mundo novo; sentem que


podem criar uma nova maneira de viver, com o objetivo de suprimir as
discriminações sofridas pelas mulheres. O movimento feminista foi além,
questionando o fundamento da dominação, geradora das categorias de
dominantes e dominados. As mulheres buscam criar um modelo de cultura que
deve ser vivido por homens e mulheres, em que a oposição referente aos sexos
seja eliminada. Essa nova cultura não pretende colocar o homem em uma
posição inferior e sim eliminar a ideia de superioridade e inferioridade.
Ao receber as filhas na Costa Rica, Belli passa a ter uma vida nova:
“Minha solidão encheu-se de sons” (BELLI, 2002, p. 183). Belli matricula a
filha mais velha na escola e sente-se extremamente feliz. Porém, na Nicarágua a
ditadura não descansa e Belli recebe notícias das atrocidades cometidas em seu
país. Faz o que pode para ajudar, trabalhando em campanhas publicitárias,
organizando redes de apoio, escrevendo comunicados e artigos para a imprensa.
É nessa época que tenta recuperar a noção de si mesma e de seu poder de
mulher que foi deixado de lado por conta de seu relacionamento com Marcos,
um sandinista por quem teve uma paixão avassaladora:

Despertou-se em mim um instinto quase masculino de


conquista. Os homens deixaram de surpreender-me (...).
Decidi decifrar as mitologias que atribuíam ao meu gênero
o caos, o fim da racionalidade, a capacidade de provocar
guerras e cataclismos universais com uma mordida em
uma maçã ou o desatar de uma sandália. A exploração
dissipou as dúvidas sobre meu poder, mas não afugentou
a tristeza. Compreendi que o único mecanismo de
controle do transbordante erotismo feminino é que requer
amor para liberar-se plenamente. (BELLI, 2002, p. 185,
186).

Ainda em 1976, Belli conhece o brasileiro Sérgio, que passa a convidá-


la para sair. Belli ainda chora muito por causa de Marcos; Sérgio a consola e
pacientemente espera o momento em que ela esteja disposta a relacionar-se
novamente. Em 1977, ela aceita que morem juntos, mas sem muito entusiasmo.
Em uma viagem que faz ao México, conhece Andrea e descobre que elas
253

haviam se relacionado com Marcos no mesmo período. Ao retornar dessa


viagem, entrega-se completamente ao amor de Sérgio: “Sérgio me esperava no
aeroporto com minhas filhas. Aterrissei sobre seu peito. Depois dessa viagem
me entreguei a ele, a seus cuidados, a sua maneira de encarregar-se de tudo.
Enrolei-me como uma gata” (BELLI, 2002, p. 200).
O comportamento tradicional também se mostra com a atitude do pai
de Belli que não aceita que ela viva com Sérgio sem que sejam casados:
“Concordei em casar porque estava cansada de que meu pai se negasse a visitar-
me porque morava com um homem que não era meu marido” (BELLI, 2002,
p. 211). Porém, no dia da cerimônia, faltou um documento e o casamento foi
simbólico. Não contou isso aos pais, pois para ela e Sérgio o que importava era
que se sentiam casados, independente de qualquer formalidade legal. Percebe-
se, contudo, que, apesar de não ser apegada a certos valores tradicionais, Belli
acaba se submetendo a certas imposições sociais. No primeiro casamento sente-
se mal na cerimônia, como se fosse um objeto sendo entregue a um homem.
Agora com Sérgio ocorre o mesmo: se sujeita a uma formalidade por causa de
seus pais.
É comum que em uma sociedade patriarcalista, a mulher submeta-se a
certos comportamentos, mesmo não desejando. Há situações que outras
pessoas estão envolvidas, os pais, os filhos, e esses laços sentimentais muitas
vezes falam mais alto e se impõem sobre as decisões da mulher. É nesses
momentos que a mulher precisa se descontruir, quebrar barreiras, transgredir.
Sem luta feminina, a sociedade patriarcalista jamais mudará.
Em 1978, na gravidez de seu terceiro filho, ao estar casada com Sérgio,
Belli sente-se mal e vai para o hospital. Lá, reclama do tratamento dado às
mulheres, tratadas como se fossem estúpidas:

- Quer dizer que você não tem se mexido em todos esses


dias? – perguntou-me o médico do plantão, quando me
recuperei o suficiente. - Não. Foi isso que me disseram –
expliquei. – Que não me mexesse. - Ah, senhora –
suspirou. – Isso é o que dizemos a todas as mulheres
nesse salão para que fiquem quietas. De qualquer forma,
nunca obedecem. - Se dessem mais crédito à inteligência
delas talvez estivessem melhor – disse-lhe furiosa.
(BELLI, 2002, p. 227).
254

Belli teve uma longa discussão com o médico por causa disso. Ela
queria ser tratada como pessoa, que conhece seu corpo, não queria explicações
simplificadas. As outras mulheres começam a falar em voz baixa, reconhecendo
que Belli tem razão, pois também se sentem ofendidas com o tratamento dado
a elas, como se fossem meninas malcriadas. Não explicam a elas direito o que
está acontecendo, como se não fossem capazes de compreender. É mais uma
situação de predomínio da misoginia, situação que coloca a mulher em posição
inferior, depreciando-a, desvalorizando-a, como se ela fosse incapaz.
Ainda em 1978, a pedido de Modesto, líder sandinista, Belli faz um voo
clandestino para o Panamá, onde participa do Congresso Continental de
Solidariedad à Nicarágua. Na ocasião estava o general Torrijos, que havia
concedido asilo político no Panamá aos membros do comando que em agosto
havia tomado o Palácio Nacional. Torrijos tem muito prestígio na América
Latina por haver tirado o Panamá de uma tradição semicolonial e colocado o
país definitivamente no mapa latino-americano. Nessa viagem, Belli tem a
intenção de falar pessoalmente com Torrijos e solicitar-lhe passaportes e
dinheiro para alguns companheiros sandinistas.
Após a conferência, Torrijos decide reunir-se com um grupo de
assistentes em sua casa, sendo que Belli é também convidada para essa reunião.
Após o coquetel, Torrijos impede que Belli saia de sua casa e deseja que durma
com ele. O general tenta insistentemente, mas ela não aceita e fica chocada com
o comportamento de Torrijos, que é acostumado a usar o poder para conseguir
a mulher que quer:

Aquele foi meu primeiro contato com essa mistura


explosiva de poder e sexo que sobe à cabeça dos homens.
O poder lhes dá a segurança que talvez não teriam.
Entregam-se a essa embriagadora sensação, e com o peito
erguido, sobre a árvore mais alta, chefes da manada,
descem sobre a tribo e suas fêmeas. Vingam-se assim de
qualquer triste lembrança de infância ou adolescência; das
meninas metidas que em pátios escolares se atreveram a
recusá-los, do temor que alguma vez suas mães lhes
inspiraram. (BELLI, 2002, p. 256).

O general Torrijos vive cercado de mulheres em sua casa, que estavam


à sua disposição para o que quisesse. Ao sentir desejo por Belli, acredita que ela
também está disponível e que não recusará dormir com ele. De acordo com
255

Zinani (2006), a mulher só se constitui sujeito na medida em que recusa ser


objeto. Belli recusou. Não aceitou ser objeto como as outras mulheres que
rodeavam o general. Sobre a dominação patriarcal, Zinani (2006) escreve que:

a dominação patriarcal se legitima, tanto pela força da


tradição que demarca o conteúdo dos ordenamentos
como pelo livre arbítrio de seus senhor. A dominação
patriarcal é constituída por associações de caráter
comunitário, regidas pelo „senhor‟, o qual é obedecido
pelos „súditos‟. O poder do patriarca alicerça-se na ideia
arraigada nos dominados de que essa dominação é um
direito próprio e tradicional do dominador e que se exerce
no interesse deles próprios. (ZINANI, 2006, p. 59-60).

Ser fiel ao „senhor‟ é um princípio básico, que se legitima pela tradição;


não é possível criar novas normas, já que estas existem desde sempre e devem
ser seguidas. Se algo não se enquadra ao que está estabelecido, o senhor age de
acordo com suas preferências para resolver a questão. Para Zinani, a
problemática de gênero, em grande parte, situa-se na própria mulher,
“condicionada por uma cultura androcêntrica, que sempre definiu e priorizou
os papéis sociais a partir do homem” (2006, p. 65). A mulher deve abandonar
práticas que reproduzem a cultura tradicional e superar “estigmas genéricos
cristalizados” (ZINANI, 2006, p. 66), reconhecendo sua capacidade e
competência.
Para Spivak (2012), o sujeito subalterno é aquele que pertence “às
camadas mais baixas da sociedade constituídas pelos modos específicos de
exclusão dos mercados, da representação política e legal, e da possibilidade de
se tornarem membros plenos no estrato social dominante” (2012, p. 13-14).
Essa situação é vivida principalmente pelo sujeito feminino. A mulher
subalterna encontra-se em uma posição ainda mais periférica, ainda mais na
obscuridade, em decorrência dos problemas referentes às questões de gênero.
Segundo a autora, “a mulher como subalterna, não pode falar e quando tenta
fazê-lo não encontra os meios para se fazer ouvir” (SPIVAK, 2012, p. 17-18).
Belli se vê em uma situação de total desespero com o general Torrijos; embora
ela diga que não quer ficar com ele, há a insistência por parte dele e as outras
mulheres da casa nada fazem para ajudá-la. Para ele, o dominador, ela não tem
voz, não tem escolha. Só depois de muito tempo, convence-o de que o melhor
a fazer é deixá-la em paz.
256

Ainda sobre o patriarcado, Beauvoir (1970) defende que a história foi


feita pelos homens; recusar a cumplicidade com estes seria renunciar às
vantagens que a aliança com seus superiores poderiam conferir-lhes. A mulher
vassala, por exemplo, não quer perder a segurança proporcionada por seu
homem suserano. Para Beauvoir, esse é um caminho passivo, alienado, nefasto,
porque a mulher é privada de valores. A mulher não se reivindica como sujeito,
por sentir o laço necessário que a prende ao homem, sem reclamar a
reciprocidade dele e muitas vezes satisfaz-se no papel de Outro. Na situação
com Torrijos, Belli precisava da ajuda dele, mas não se comporta como a
mulher vassala, que faz o que o homem deseja para que essa cumplicidade
exista e também consiga o que quer.
Surge mais um líder sandinista: Modesto. A situação do sandinismo faz
com que ele e Belli fiquem muito próximos, surgindo um desejo muito forte
entre eles. Apesar de ainda viver com Sérgio, Belli entrega-se à paixão pelo líder
sandinista; no início sente culpa, mas termina por entregar-se ao que, segundo
ela, “foi um amor devastador que se apoderou de mim e me fez romper todas
as bússolas” (BELLI, 2002, p. 262). Em seu relacionamento com Modesto,
Belli passa a comportar-se de maneira submissa, fraca, apesar de aparentar ser
uma mulher forte e corajosa. Eles vivem uma paixão intensa e incontrolável;
Modesto mostra-se um homem instável; quando estão a sós, é carinhoso e
apaixonado; quando estão diante de outros sandinistas e lidam com assuntos
relacionados à política e defesa da Nicarágua, trata Belli como uma militante
qualquer. Belli, contudo, não consegue por fim ao relacionamento: “Não sabia
ficar sozinha. Havia me arriscado às balas, à morte, traficado armas,
pronunciado discursos, ganhado prêmios, tido filhos, tantas coisas, mas não
sabia como era a vida sem que a ocupasse o pensamento de um homem, o
amor de um homem” (BELLI, 2002, p. 346).
Apesar de ser uma mulher transgressora em alguns momentos, que luta
pelo que acha correto, percebe-se que Belli é fraca diante de Modesto. Sofre
com o tratamento recebido por ele, mas não consegue terminar o
relacionamento. De acordo com Zinani (2006), em certos casos, as próprias
mulheres perpetuam o comportamento machista, através de suas atitudes de
submissão e da educação e valores que repassam aos filhos. As próprias
mulheres se discriminam na medida em que assumem os papeis tradicionais.
Belli aceita esse papel submisso quando desiste do trabalho da televisão e se
submete a acompanhar Modesto:
257

- É um erro – disse-me Bayardo quando comentei com


ele. – Você é uma mulher inteligente. O trabalho da
televisão é o tipo de trabalho que você faz bem. O que
está me propondo é andar com ele... passar a ser a
mulherzinha do homem. Você irá se enrolar – advertiu-
me com um sorriso malicioso que deixou entrever seus
caninos afiados. (BELLI, 2002, p. 316).

No relacionamento com Modesto, Belli comporta-se como uma


mulher que segue os padrões sociais. Ela segue Modesto cegamente, movida
por sua paixão; apesar de situações em que se sente mal pelo tratamento que é
dado a ela, Belli continua seguindo o companheiro. Em uma série de viagens
que fazem a países socialistas, voam até a Líbia. Nessa ocasião, Belli não
participa do evento como militante, simplesmente é ignorada por ser mulher.
Na foto que é tirada com todos os companheiros, ela não aparece. Na refeição,
é colocada em uma mesa à parte, pois segundo o Alcorão, as mulheres não têm
alma. Modesto pede que se acalme e entenda que ali é outra cultura. Ela retruca:
“Mas também éramos de outra cultura, por que não dizer isso aos líbios?”
(BELLI, 2002, p. 341).
Belli mostra variação em seu comportamento; ora é transgressora, ora
submissa. Sua identidade é abalada principalmente por conta de paixões
avassaladoras, como a que teve por Modesto. Os estudos sobre identidade têm
apresentado uma série de dificuldades em virtude da natureza do ser humano.
Para Backes (2006), no campo teórico dos Estudos Culturais não se deve
acreditar em noções homogêneas de identidades coletivas, seja de classe, raça,
etnia, cultura ou gênero, visto que os sujeitos são imprevisíveis. É no cotidiano
que o sujeito se depara com a reprodução cultural, articulando sua identidade e
diferenças. À medida que o cotidiano adquire novos contornos, os processos de
construção de identidade também mudam. Assim, vão sendo realizadas as
trocas entre cultura e sujeito e a primeira torna-se um espaço de luta e
contestação.
Ainda em 1978, Belli ganha o Prêmio Casa de las Américas, laurel mais
prestigiado da América Latina. Segundo ela, o prêmio foi uma surpresa; diante
da agitação de sua vida, havia esquecido o concurso. Essa notoriedade para ela
seria útil, pois abriria portas para que pudesse falar da situação da Nicarágua.
Ao começar a escrever, incentivada pelo Poeta, entre 1970 e 1971, sua poesia é
considerada erótica, torna-se alvo de críticas e é considerada inadequada para
uma mulher casada. Sua tia a repreende:
258

- Pobre de seu marido – disse-me uma tia no domingo, dia


seguinte à publicação. – Como é possível que você tenha
escrito e publicado estes poemas? Como lhe ocorreu
escrever um poema sobre a menstruação? Que horror.
Que vergonha. - Como? – respondi. – Vergonha?
Vergonha por quê? Minha tia olhou-me horrorizada. Com
um “ai filhinha!”, se despediu. (BELLI, 2002, p. 67).

O escândalo reside no fato de os poemas enaltecerem seus poderes de


mulher. Não há nada de explícito ou pornográfico neles, segundo Belli. Seu
marido diz que ela deve mostrar os poemas para ele e esperar que ele os libere
para que possam ser publicados. Belli não aceita e não se rende diante do
preconceito que sofre. “A polêmica não me deteria. Ao contrário. A reação da
parte mais conservadora da sociedade fez-me perceber que, sem me propor a
isso, havia encontrado outra via para a subversão” (BELLI, 2002, p. 69). A
poesia para Belli significa libertação; uma forma de exteriorizar o que sente
como mulher: “Desde que a admiti em minha vida e lhe dei rédea solta, a
poesia frequentemente se desencadeava dentro de mim como uma corrente
elétrica. As descargas deixavam minhas mãos cheias de novos poemas”
(BELLI, 2002, p. 99).
De acordo com Zinani (2006), a voz da figura feminina passa a ser
ouvida por meio da desconstrução do discurso patriarcal, o que possibilita a
expressão de uma nova ordem social e a transformação dos sistemas de poder
existentes. Belli em suas poesias aborda questões femininas que naquela época
provocavam escândalos. Porém, é o início da mudança que ocorre com a
desconstrução da sociedade patriarcal:

Não era comum que uma mulher celebrasse seu sexo em


1970. Minha linguagem subvertia a ordem das coisas. De
objeto, a mulher passava a sujeito. Nos poemas eu
nomeava minha sexualidade, me apropriava dela, exercia-a
com gozo e pleno direito. Os poemas não eram explícitos,
muito menos pornográficos, mas enalteciam meus plenos
poderes de mulher. Aí residia o escândalo. (BELLI, 2002,
p. 67-68).

A libertação da mulher envolve um percurso longo e árduo, pois é


necessário desconstruir os conceitos tradicionais, redesenhar os papéis de
259

homens e mulheres e prepará-los para assumir as novas tarefas com igualdade e


respeito. Isso é percebido em O país sob minha pele, em que Belli luta contra a
ditadura junto com os homens, porém as posições de chefia sempre são deles.
A identidade de gênero é proposta como uma construção cultural que verifica a
especificidade de atitudes e comportamentos masculinos e femininos,
procurando questionar os estereótipos sociais, para que possam ser
estabelecidas as bases de uma sociedade mais aperfeiçoada.
Na década de 1980, ao retornar à Nicarágua, quando já tinha seu
escritório e era secretária executiva da Comissão Eleitoral da FSLN (Frente
Sandinista de Libertação Nacional), Belli é entrevistada pelo jornalista norte-
americano Carlos, que, segundo ela, tinha sentido de justiça; para ele, a pobreza
era intolerável. Os dois passam a se ver com frequência até que se entregam ao
amor. Apesar de anos de envolvimento com a luta, Belli preocupa-se com o
conflito que pode surgir por conta desse relacionamento. Porém sua
maturidade e confiança em si mesma e em Carlos fazem com que essas ideias se
dissipem logo. Isso é reforçado pelo membro do diretório sandinista, Bayardo
Arce, para quem cada um devia saber cuidar de suas calças ou saias: “Meu
trabalho era delicado, mas eu era muito consciente do valor de minha discrição”
(BELLI, 2002, p. 98). Porém, mais uma vez, Belli sente-se em uma situação em
que o machismo predomina. Por causa de seu relacionamento com Carlos, é
chamada por Tomás Borge, ministro do Interior, para uma conversa; ele pede
que Belli deixe de ver Carlos, com o argumento de que ele poderia passar
informações a grupos secretos. Belli obedece, apesar de contrariada com a
situação:

Dava-me raiva e angústia. A ideia de que duvidassem de


minha lealdade era para mim intolerável e dolorosa.
Entendia que o papel dos organismos de segurança da
Revolução era o de zelar pela preservação dos segredos, e
preocupavam-me as consequências daquela advertência
para meu trabalho, minha posição e a confiança que, até
então, me havia sido outorgada. (BELLI, 2002, p. 114).

Belli procura Carlos e conta-lhe sobre sua decisão. Carlos lamenta e diz
que nunca tentaria prejudicá-la. Alguns dias depois, após um comício em
comemoração ao aniversário da Revolução, Belli procura sua amiga Pía e lhe
relata o episódio com Tomás. Sua amiga fica furiosa:
260

Por acaso não havia percebido que a nenhum


companheiro colocavam entraves acerca de suas
companhias femininas? Não me dava conta de que eles se
permitiam deitar-se com estrangeiras, com jornalistas, com
quem tivessem vontade, mesmo tendo cargos mais
delicados que o meu? (...) Não vá me dizer que depois de
tanto tempo metida nisso, você vai aceitar mansamente
que desconfiem de você, que acreditem que por ser
mulher não pode distinguir o rabo da cabeça? O que
acontece é que são uns machistas incorrigíveis. Eles
podem fazer o que querem, mas que Deus nos guarde se
nos atrevemos a fazer o mesmo. (BELLI, 2002, p. 130).

Belli sente-se envergonhada por seu comportamento submisso diante


de Tomás Borge. Não era aceitável que ela, que militava nas lutas feministas,
agisse de maneira tão tradicional, aceitando preconceitos sem reclamar. Belli
começa a rir e dá um beijo em Pía. Resolve ligar para Tomás Borge para dizer
que se não confiam nela, que a demitam. Ela resolve também ligar para Carlos
para que voltem a se ver. Apesar das desconfianças que a cercam, não é
demitida.
Ainda sobre a dominação do homem sobre a mulher, Bourdieu (2010)
também aborda o assunto a partir de uma perspectiva simbólica. De acordo
com ele, o poder é imposto através de significações que são impostas como
legítimas, que dissimulam as relações de força. O poder é mantido através do
mascaramento presente nas relações, infiltrando-se no pensamento e na
concepção de mundo. Segundo ele, é necessário o questionamento sobre quais
os mecanismos históricos que mantém estruturas de divisão sexual. A violência
simbólica conta com a contribuição de instituições como o Estado, a igreja, a
escola e a família. Estas praticam e perpetuam comportamentos machistas, de
inferioridade e incapacidade femininas, desconfiança sobre a mulher e outros
tantos aspectos que só aumentam a violência praticada contra o ser feminino.
Em 1986, Belli decide pedir Carlos em casamento, apesar das incertezas
de suas vidas. Ela, membro da FSLN, não tem intenções de sair da Nicarágua;
ele pretende voltar aos Estados Unidos. Sobre a proposta de casamento, ele
decide que vai pensar. “Pedi à vida que ele decidisse ficar comigo, porque
paradoxalmente, naquele homem, que me pegava pela mão e me olhava sobre a
borda do copo, eu intuía estar o porto final de minhas tempestades” (BELLI,
2002, p. 259). Apesar dos empecilhos, Belli e Carlos casam-se em 10 de abril de
261

1987 em Manágua. Belli sugere que façam escalas, passando um tempo em cada
país. Esse comportamento de Belli, que também é visto de maneira
preconceituosa, mostra que a mulher também pode ter iniciativa no
relacionamento amoroso. Ela pode e deve decidir o que quer para sua vida,
somente ela pode dizer o que a faz feliz.

Considerações finais

Percebe-se que Gioconda Belli é um ser cheio de contradições, como


todo ser humano. Mas o que fica claro é que se trata de uma mulher que tenta
fazer o diferencial, sem se curvar diante de imposições sociais; às vezes sente-se
acuada, com medo, mas isso não a impede de agir, seja para lutar por seu país,
suas filhas ou seus amores.
A todo o momento precisa lutar para conseguir realizar-se. Seja como
mãe, ao fazer de tudo para estar perto de suas filhas; seja como mulher,
deixando o marido, tendo amante e sempre terminando relacionamentos e
iniciando outros novos ao se sentir insatisfeita; seja como cidadã de seu país, ao
arriscar sua vida em um movimento revolucionário.
Ao tentar ter a própria voz, construir sua identidade, lutar pelo que
acredita e a faz feliz, Belli precisa reagir contra a sociedade patriarcal, pois não
encontra lugar para sua realização. Precisa transgredir ao que a sociedade
considera correto e que é previsível. Não encontra suporte nem mesmo em
alguns familiares ou amigas, que limitam-se a seguir o que é imposto
socialmente. Belli mostra-se transgressora nesse sentido; não fraqueja e não
aceita o que não a faz feliz.
Percebe-se em todo o texto que instituições como a família e a
sociedade querem perpetuar comportamentos que são considerados adequados
ou não para a mulher. Sua tia envergonha-se de seus poemas, considera-os
inadequados. O pensamento da tia segue o padrão machista de que a mulher
não deve falar sobre seu corpo, sexo, menstruação e outros temas mais íntimos.
A mulher deve se esconder, deve ser contida e nunca revelar seus desejos.
Mesmo seus companheiros da FSLN não dão oportunidade para que
Belli (ou outras mulheres inseridas no movimento) participem de decisões. Elas
exercem funções consideradas mais simples ou apenas de execução do que os
homens planejaram, mostrando a predominância do pensamento machista, até
mesmo dentro de um movimento revolucionário e a favor da liberdade.
262

Referências

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da identidade afrodescendente. Educ. Soc., Campinas, vol. 27, n. 95, p.
429_443, maio/ago. 2006.

BEAUVOIR, S. O segundo sexo. São Paulo: Difusão Europeia do Livro,


1970. Tradução de Sérgio Milliet.

BELLI, Gioconda. O país sob minha pele: Memórias de amor e guerra. Rio
de Janeiro: Record, 2002. Tradução de Ana Carla Lacerda.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução Maia Helena


Kuhner. 9ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.

BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e subversão da


identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

IOP, Elizandra. Condição da mulher como propriedade em sociedades


patriarcais. Visão Global, Joaçaba, v.12, n.2, p. 231250, jul/dez,2009.

KOLLER, Sílvia Helena; NARVAZ, Martha Giudice. Famílias e patriarcado: da


prescrição normativa à subversão criativa. Psicologia & Sociedade;18 (1): 49-
55; jan/abr. 2006.

ROCHA-COUTINHO, Maria Lúcia. Tecendo por trás dos panos: a mulher


brasileira nas relações familiares. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

SAFFIOTI, Heleieth I. B. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987.


(Coleção Polêmica).

SPIVAK, Gayatri C. Pode o subalterno falar? Tradução de Sandra Regina


Goulart Almeida, Marcos Pereira Feitosa e André Pereira Feitosa. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2012.

TOURAINE, Alain. O mundo das mulheres. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.


263

ZINANI, Cecil Jeanine Albert. Literatura e gênero: a construção da


identidade feminina. Caxias do Sul, RS: EdUCS, 2006.

______, Cecil Jeanine Albert. Literatura e história na América Latina:


representações de gênero. MÉTIS: história & cultura – v.5, n.9, p. 253-270,
jan. Jun.2006.
264

A FORMAÇÃO CONTINUADA E A PERSPECTIVA DO


LETRAMENTO MATEMÁTICO NO ENSINO FUNDAMENTAL

Michelle Kilvia Lopes Queiroz

Considerações iniciais

O presente trabalho é proveniente das discussões afloradas no decorrer


do curso de pós-graduação em Alfabetização e Multiletramentos, realizado pela
Universidade Estadual do Ceará – UECE acerca da necessidade de se
desenvolver a Matemática no contexto escolar na perspectiva do letramento
matemático, considerando que o ensino de Matemática tendo como prioridade
apenas as representações, o ensino do cálculo e da contagem não contribui
para o pleno desenvolvimento do aluno e nem corresponde às demandas
exigidas pela sociedade contemporânea.
Nessa perspectiva, os cursos de formação continuada de professores
se tornam um excelente espaço de discussão e mediação acerca do Letramento
Matemático, tendo em vista que as discussões sobre esta temática ainda são
incipientes no contexto escolar e que esta perspectiva de ensino tem sido
fortemente defendida pelo Programa Internacional de avaliação de alunos-
(PISA) e pela Base Nacional Comum Curricular- (BNCC), a qual estabelece que
o Ensino fundamental deve ter compromisso com o letramento matemático,
compreendendo-o como um conjunto de competências e habilidades.
Temos dois objetivos em nossa pesquisa: refletir sobre a relevância da
formação continuada no Ensino Fundamental, enfatizando a sua contribuição
para os professores que lecionam Matemática nesta etapa de ensino e discutir
sobre letramento matemático, levando em conta a proposta de diversos
autores e a concepção defendida pela BNCC e pelo documento do PISA,
tendo em vista, apontar caminhos para que a formação continuada dos
professores em exercício, possa subsidiar uma prática pedagógica voltada para
o letramento matemático dos estudantes, contribuindo para superar o enfoque
tradicional da Matemática, que ainda impera na masioria das escolas.
Inicialmente, faremos uma análise bibliográfica, tendo em vista reiterar
a relevância da formação continuada para os docentes que lecionam Matemática
nas séries iniciais do Ensino fundamental, considerando, que estes são
pedagogos e não receberam uma formação especifica para este fim,
enfatizando-a como um oportuno espaço de reflexão e ressignificação da
prática pedagógica, como aponta Tozetto (2017). A seguir, abordaremos as
265

concepções de diferentes autores sobre o ensino de Matemática a partir da


perspectiva do letramento matemático, dentre os quais, podemos citar:
D‟Ambrósio (2009), Gonçalves (2010), Barguil (2019). Em seguida, teceremos
uma breve análise sobre concepção de Letramento Matemático presente na
BNCC e no documento do PISA. Após as discussões apresentadas,
concluiremos com as considerações finais, procurando apontar caminhos para
que a formação continuada se consubstancie como um espaço de
ressignificação do ensino de Matemática nos anos iniciais possibilitando o
letramento matemático dos estudantes.

A relevância da formação continuada no ensino fundamental

A formação do professor tem sido alvo de políticas públicas pelos


órgãos governamentais e tema de constantes discussões no âmbito acadêmico,
bem como nos próprios espaços educativos em que diversos esforços e
recursos são canalizados diariamente na busca por solucionar os problemas do
ensino e, assim, elevar qualitativamente o índice de aprendizagem dos discente.
A preocupação com a formação continuada do professor no contexto
brasileiro ao contrário do que se pode pensar, não é recente, tem sido pauta
das discussões acerca da educação nos últimos trinta anos. No entanto, a partir
da década de 1980 passou a ganhar ênfase, tendo em vista a necessidade da
reconfiguração do papel do educador e do rompimento com práticas
conservadoras de ensino baseadas na passividade e transmissão de conteúdo.
Uma investigaçao feita por Araújo e Silva (2009), revela que a formação
continuada dos professores na década de 1990 foi marcada por várias
tendências, as quais estão implícitas na nomeclatura utilizada nesse período para
designar os processos formativos do professor, tais como: reciclagem,
capacitação de professores, treinamento e aperfeiçoamento. Vale ressaltar, que
esses cursos estavam imbuidos de um caráter compensatório, se voltavam para
a qualificação, tendo em vista que muitos professores estavam atuando no
magistério sem a formação adequada.
A Lei de Diretrizes e Bases 9394/96, estabeleceu o prazo específico
para que todos os profiisionais que atuam em sala de aula obtivessem
habilitação em curso superior, período em que ficou conhecido como década
da educação. A partir desta determinação, houve uma corrida dos professores
para alcançar a formação exigida. No entanto, a diversidade dos cursos tinha
como característica o aligeiramento na formação.
266

Treze anos após a instituição da chamada década da educação, a


realidade ainda se mostra insatisfatória, os resultados obtidos em avaliações
externas de desempenho, demonstram os baixos índices de aprendizagem
apresentadas pelos alunos de escolas públicas do ensino fundamental,
principalmente nas disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática.
Na última década, os cursos de formação de professores, de modo
geral, têm se voltado para o enfoque do professor reflexivo, no entanto, é
importante ponderarmos, tendo em vista, que este enfoque poderá estar
imbuído de um caráter reducionista por parte de algumas instituições
formadoras, que acreditam que a formação do professor reflexivo pode ser
possibilitada apenas com alguns cursos ou com apreensão de algumas técnicas e
estratégias. É preciso considerar que o processo de reflexividade do professor
só irá promover uma efetiva ressignificação da prática pedagógica por meio da
pesquisa, do estudo gradativo, da discussão teórica. Assim, o professor saberá
“o que faz”, “porque faz” e “para que faz”.
O processo de reflexividade do professor é processual, continuo e deve
assumir uma dimensão coletiva como afirmam Wengynksi e Tozetto (2012, p.
6): “A prática reflexiva, enquanto prática social, só pode ser realizada em
coletivos, o que leva à necessidade de transformar as escolas em comunidades
de aprendizagem nas quais os professores se apoiem e se estimulem
mutuamente.”
Nesse sentido, a formação continuada se torna um espaço intermitente
de troca de conhecimento, de experiências e de diálogo, em que a fala do
professor ganha significado, pois revela quais são as dificuldades vivenciadas
pelos professores no contexto de trabalho e nela se encontram as novas
possibilidades de enfrentamento. Como aponta Tozetto (2010, p.24542)47

A formação precisa trabalhar com ideias autônomas em


um processo de constante desenvolvimento profissional.
Acrescenta-se ainda que é importante a formação
continuada oportunizar o aprofundamento de
conhecimentos e o acesso a novos conceitos, que amplie a
situação de análise do ensino e venha a contribuir com o
desenvolvimento do profissional e da instituição em que
este se encontra inserido.

47
Embora, possa causar estranhamento, na obra consultada, de fato apresenta uma
numeração de pagina superior ao usual.
267

Diante disso, é importante que os cursos de formação continuada


contemple os seguintes elementos: troca de experências, aprofundamento de
conteúdos, atualização de conhecimentos, incentivo a pesquisa e ao
desenvolvimento de projetos. Pois, contribuir para que o professor se
desenvolva profissionalmente, estimulando e valorizando suas ideias é favorecer
para que mudanças significativas sejam implementadas na sua prática
pedagógica., de forma que o professor não caia no praticismo esvaziado
teoricamete.
Spagnolo e Santos (2018), apontam que o foco principal do processo
formativo do professsor está voltado para a prática, ou seja, para o dia a dia da
sala de aula. Isso não significa que a prática tem fim em si mesma, pois nossas
ações devem estar alinhadas a um projeto muito maior que soprepuja os muros
da escola. Daí a necessidade de falarrmos em letramento matemático.
Em relação à Matemática no contexto escolar, sabemos que a disciplina
ainda carrega o rótulo de um conhecimento austero, frio, difícil, acessível
apenas a algumas mentes mais favorecidas e que boa parte das crianças
demonstram dificuldades de pensar, de compreender a linguagem matemática,
de ler e interpretar notações simples, de relacionar a Matemática com as
situações do seu cotidiano.
A perspectiva de mudar esse quadro se encontra na possibilidade de
romper com práticas reducionistas que ainda imperam no contexto escolar e
comprometer-se com uma prática que intenciona o aprendizado para além das
atividades de contagem, comparações, e resolução de exercícios. Sendo
necessário, que se priorize também nas aulas de Matemática atividades que
envolva leitura, interpretação, escuta e escrita, realcionando a Matemática com
outras representações como a Arte, a dança, o teatro, a música, dentre outras.
De acordo com Quadros (2016, p.56), “[...] este compromisso só pode
ocorrer por meio da mediação docente. Mas a mediação docente é uma postura
epistemológica e pedagógica determinada pelo processo formativo do
professor”. Partindo dessa premissa, podemos entender que prática pedágogica
e formação são processos intrinsicamente ligados, de forma que não tem como
o professor adquirir uma boa formação e não desenvolver uma prática
coerente..
A formação continuada além de possibilitar aos docentes ampliar ou se
aprofundar em conceitos e aplicações próprios da disciplina que muitas vezes
não foram bem compreendidos durante a sua formação inicial, questão que
ocorre principalmente com os professores polivalentes, os quais tem que dar
268

conta de vários âmbios do conhecimento. É comum professores que lecionam


Matemática nos anos finais do Ensino Fundamental I, apresentar dificuldades
em determinados conteúdos.
Desta feita, torna-se imprescindível que o docente procure se
aprofundar nos conteúdos com os quais irá trabalhar. Se houver um
esvaziamento de conteúdo na formação do professor, este, ao se deparar com
uma sala de aula, irá buscar na forma como fora ensinado, nas suas experiências
escolares o modo de trabalhar o conteúdo que nem sempre é a melhor forma
ou a mais adequada.
Por outro lado, o domínio dos conteúdos próprios da disciplina,
porém, com uma abordagem pedagógica mecânica, restrista baseada na
repetição, na memorização e no aprendizado do cálculo também não favorecerá
uma compreensão ampla. Nesse caso, o aluno aprenderá a técnica, mas uma
técnica sem muito significado, ou seja, um conteúdo que ele pode utilizar,
entretanto, não sabe explicar tendo em vista que apenas assimilou o que lhe foi
repassado, sem no entanto, compreender o processo de costrução daquele
conhecimento.
Sobre isso, Falcão e Farias, (2015, p. 152) concebem que é fundamental
estar atento aos processos de formação docente e as estratégias adotadas de
modo que possamos impulsionar ações que tragam a reflexão e a crítica como
marcas centrais. No entanto, Tozetto (2017, p.p. 24542 - 24543) salienta.

Não confundindo a reflexão com um ato de pensar sobre


a prática, sem um suporte teórico norteador, ficando
reduzido a um saber pragmático/praticista. Ao contrário,
é um movimento dialético que conduz a mudança,
permitido pelo distanciamento do sujeito a situação do
cotidiano da docência, gerando uma conversa consigo
mesmo, sua prática e suas concepções teóricas.

Partindo desse entendimento, torna-se improvável que o professor


possa desenvolver a Matemática em sala de aula na perspectiva do letramento
matemático como propõe a BNCC, sem que esteja a par das discussões sobre
essa perspectiva de ensino, pois como afirma Barguil (2019, p. 14), “há uma
diversidade de termos voltados para o ensino de Matemática. Cada um deles
expressa uma determinada concepção dos processos de ensinar e aprender,
sendo importante que o professor conheça cada um deles e avalie seus limites e
suas possibilidades”.
269

Portanto, torna-se evidente que a formação continuada se constitui um


espaço de incentivo para que os professores possam repensar cotidianamente
sobre os seus fazeres pedagógicos, sobre a necessidade de desenvolver uma
prática que não se identifique com um “piloto automático”, com uma atividade
repetitiva e reprodutiva, ou que se drene diante das dificuldades. Os momentos
de formação se constituem como pontes desafiadoras entre os saberes e a
prática do professor, entre o que vem sendo discutido e o que realmente vem
sendo feito no espaço escolar. Desse modo, essas discussões são motores que
possibilitam uma prática refletida, possibilitando uma ressignificação
pedagógica na perspectiva do letramento matemático dos estudantes

Letramento matemático: o que propõem alguns autores

A terminologia letramento é proveniente das discussões elaboradas


por pesquisadores e especialistas da área de língua portuguesa que tinham por
objeto estudar os impactos sociais da linguagem escrita contrapondo um ensino
com ênfase apenas na alfabetização, ou seja, na apreensão do código escrito.
A expressão letramento, que anteriormente era utilizada apenas para
designar o fato de uma pessoa ser ou não ser letrada (entendendo o sinônimo
de letrada como uma pessoa erudita, ou seja, versada em letras), passou a ser
bastante utilizada, a partir de meados de 1980, no discurso de estudiosos das
áreas da Educação e da Linguística.
Para Soares (2002), o termo letramento não surgiu dos dicionários de
língua portuguesa, até mesmo porque o registro desse verbete só constava em
dicionários muito antigos, em que o significado atribuído era o de escrita. O
termo correspondia a passagem de uma palavra da língua inglesa para o
português: literacy. [...] literacy, é o estado ou condição que assume aquele que
aprende a ler e a escrever. Implícita nessa condição, está a ideia de que a escrita
traz consequências sociais, culturais, políticas, econômicas, cognitivas,
linguísticas, quer para o grupo social em que seja introduzida, quer para o
indivíduo que aprenda a usá-la. (SOARES, 2002, p.17).
A perspectiva de um ensino voltado para o letramento, deslocou o foco
do ensino de Língua Portuguesa que anteriormente era centrado na apreensão
do código linguístico e passou a considerar também as práticas sociais,
compreendendo que não basta apenas saber ler e escrever é necessário fazer
uso da leitura e da escrita. Essa perspectiva, também, gerou impacto no ensino
270

de Matemática, demandando o desenvolvimento de competências e habilidades


que venham atender a esse novo perfil de sociedade.
Nesse sentido, vale citar o entendimento de D‟Ambrósio (2009, p. 66)

Na sociedade moderna dominada pela tecnologia,


profundamente afetada pela globalização, e na qual as
prioridades maiores são a busca de paz nas suas múltiplas
dimensões, alfabetização e contagem, embora necessárias,
são insuficientes para o pleno exercício da cidadania.

A partir da afirmação acima, podemos entender que o conhecimento


matemático, desde as suas primeiras manifestações, sempre esteve a serviço da
humanidade, com o objetivo de auxiliar o homem a resolver problemas
cotidianos, portanto, precisamos fazer com que nossos alunos adquiram essa
compreensão por meio de atividades práticas, ou seja, percebam uma
associação dos conhecimentos abordados na escola com situações do seu
cotidiano para que possam não apenas tornarem-se capazes de representar, mas
também de argumentar e fornecer explicações embasadas matematicamente.
Nesse sentido, D‟Ambrósio (2009, p.22), afirma que:

O cotidiano está impregnado de saberes e fazeres próprio


da cultura. A todo instante os indivíduos estão
comparando classificando, quantificando, medindo,
explicando, generalizando e inferindo, e de algum modo,
avaliando, usando os instrumentos materiais e intelectuais
que são próprios de sua cultura.

Essa dualidade, conhecimento escolar e conhecimento de mundo se


tornou alvo de pesquisas, reflexões e discussões apoiadas em abordagens
voltadas para as práticas desenvolvidas no contexto escolar sob uma
perspectiva sociocultural, com o intuito de estabelecer uma relação entre o
saber sistematizado e o cotidiano matemático e de romper com um ensino
centrado no domínio do código. Foram essas discussões que orientaram as
concepções de letramento matemático, tendo em vista uma prática pedagógica
que levasse em consideração os usos que se estabelecem na sociedade.
Vale ressaltar que as discussões sobre letramento matemático são
passíveis de controvérsias na medida em que há diferentes posicionamentos
271

entre os autores. Diante disso, não buscaremos uma definição fechada, mas
algumas elucidações que possam contribuir para sua compreensão.
De acordo com Nacarato (2018, p. p 17 -18) letramento “era um
conceito muito presente na Educação de Jovens e Adultos, muitas vezes com a
denominação numeramento [...]”. Então, o uso desse conceito nos anos iniciais
do Ensino Fundamental é bastante recente. Ele foi incorporado a partir da
elaboração do material de matemática para o Pacto Nacional pela Alfabetização
na Idade Certa (PNAIC).
Vale ressaltar que o termo letramento matemático, que antes era
utilizado como 48alfabetização matemática, ou numeramento49, vem ganhando
ênfase após ter sido abordado na Base Nacional Comum Curricular – (BNCC)
e passou a ser utilizado em pesquisas sobre adolescentes.
A perspectiva de letramento matemático pressupõe que a Matemática
no contexto escolar ocorre para além da abordagem do cálculo, de forma
refletida, tendo em vista que o sujeito letrado em Matemática não apenas
compreende as ideias matemáticas como também as utiliza no cotidiano. Nesse
sentido, a leitura e a escrita que anteriormente eram relacionadas apenas ao
ensino de Língua Portuguesa, exerce um papel fundamental.
Sobre as atividades de leitura na disciplina de Matemática, Chagas
Gomes, (2018, p.1026) afirma:

Reforçamos que os docentes possam criar situação nas


aulas de Matemática que possam ter como propósitos o
favorecimento do acesso ao assunto ou tema tratado nos
textos, nas leituras dos livros, textos trazidos para o debate
em sala de aula, que possam permitir que os alunos
arrisquem e façam antecipações bastante aproximadas
sobre as informações que os mesmos trazem; centralizar a
leitura dos problemas desenvolvidos em sala na
construção de significado, e não na pura decodificação e
simples desenvolvimento de cálculos mentais.

Para tanto, faz-se necessário que o professor desenvolva a sua


competência leitora, a fim de que possa estimular e desenvolver essa mesma

48 Alfabetização matemática busca compreender os processos de como a criança


aprende, sendo, portanto, mais utilizado na educação infantil.
49 Numeramento ou numeralização foram termos utilizados por alguns autores para se

referir a influência da aprendizagem matemática na educação infantil.


272

competência em seus alunos. Na sociedade atual, não basta ler e escrever, é


preciso responder às demandas e aos usos que são praticados na sociedade.
Nesse sentido, a Matemática que aprendemos hoje, na maioria das escolas tem
uma função utilitária e por isso não deve ser trabalhada nas escolas de maneira
descontextualizada.
Buscando uma aproximação para o conceito de letramento
matemático, Gonçalves (2010), traça alguns parâmetros importantes que podem
nos auxiliar nesta compreensão. De acordo com o mesmo autor, é importante
reconhecer e compreender a linguagem matemática enquanto constituída de
símbolos matemáticos e os conceitos que os representam como uma
linguagem que não difere das demais e cujo objetivo é fazer o indivíduo
interagir com o meio em que vive; compreender o conhecimento matemático que
assim como os demais conhecimentos gerados pela humanidade tem uma
função utilitária, uma função de auxílio, sendo que na escola, essa função
utilitária gira na resolução de problemas.
Além disso, tratar o conhecimento matemático nos seus diversos campos, de
forma que haja uma gama de possibilidades que o professor pode trazer para
sala de aula, que se estende desde explicações, demonstrações, como jogos,
brincadeiras e literatura; A abordagem da Matemática como um conhecimento
científico, escolar e político; O reconhecimento da importância da disciplina de
Matemática de forma plena com um planejamento adequado de conteúdos e
métodos e com a formação adequada do professor, que o possibilite fazer um
programa..
Ao analisarmos essas questões anteriormente apontadas por Gonçalves
(2010), vislumbramos um caminho promissor para o trabalho com a
Matemática no contexto escolar, sendo necessária uma compreensão ampla da
linguagem matemática, dos conceitos, do conhecimento matemático associados
à sua função utilitária e em diversos campos; o tratamento, a abordagem da
disciplina e o reconhecimento da disciplina na forma de um planejamento
adequado e formação adequada do professor. Embora haja diferentes
perspectivas de ensino da Matemática, acreditamos que estes parâmetros são
relevantes a todas elas.
Barguil (2019, p. 21) ressalta a “urgência para que professores,
formadores e pesquisadores dirijam suas atenções para o delicado processo de
leitura, para o acesso a gêneros textuais próprios da atividade matemática
escolar”. O que se torna um verdadeiro desafio para nós professores, pois a
associação da matemática apenas com cálculo está tão impregnada em nossa
273

cultura, em nossa formação que precisamos nos empenhar na busca de


estratégias, de atividades e de aportes como livros paradidáticos que possam
efetivamente promover atividades de leitura no ensino de Matemática. Pois,
segundo Barguil (2019, p. 24) “É urgente extirpar a crença que encurta a
matemática ao cálculo, ainda mais quando ele é visto numa perspectiva
meramente operacional. ”
Portanto, as atividades de leitura e escrita, as quais estiveram há tanto
associadas à disciplina de Língua Portuguesa, precisam ser consideradas na
disciplina de Matemática para que o processo de calcular não se torne tão
mecânico e limitante, impactando negativamente na aprendizagem dos
estudantes. Segundo Barguil (2019), tanto a Língua Portuguesa quanto a
Matemática possuem leitura e escrita (processo de notação, registro), bem como
escuta e fala (processo de oralidade). Para que as crianças da educação infantil e
das séries iniciais aprendam é necessário que vivenciem os conceitos
matemáticos por meio de vários procedimentos de linguagem.
Quanto a isso, Silva, Sousa e Lima (2018, p. 792), afirmam que [...]
acrescentar a leitura e escrita como papel fundante é base primordial como
aspectos que também estão na Matemática, trará novas perspectivas dos alunos
sob os conceitos da linguagem Matemática e suas funções. [...]. Pois, assim
como a Língua portuguesa, a Matemática possui uma linguagem específica, que
lhe é própria, formada por seu conjunto de regras e símbolos. A dificuldade de
ler e escrever interfere no aprendizado da apropriação desses símbolos, na
compreensão dos conceitos matemáticos como também da interpretação de
determinadas situações. As práticas de leitura e escrita requer uma série de
habilidades como decodificar, analisar, inferir, refletir, comunicar, validar,
dentre outras, as quais potencializam o desenvolvimento cognitivo dos alunos e
os auxiliam no aprendizado dos conhecimentos matemáticos.
O conhecimento construído pela humanidade corresponde a um todo
articulado com infinitas possibilidades, no entanto, foi compartimentalizado em
disciplinas apenas para facilitar a sistematização no contexto escolar. Associar o
cálculo com as habilidades de leitura, de produção escrita, de produções
artísticas e culturais, políticas, significa avançar para além de um modelo de
currículo estanque e disciplinar.
No decorrer deste trabalho, falamos muito da necessidade de
contextualizar o conhecimento matemático, mas precisamos entender que a
contextualização se faz com a interação e o entrecruzamento de vários
274

compartimentos disciplinares, necessita, portanto, de que a Matemática se


desenvolva de forma interdisciplinar.
Sobre isso, Tomaz e Davi (2008, p.13), afirmam que: “difunde-se ainda
na maioria das escolas um conhecimento fragmentado, deixando para o aluno
estabelecer sozinho as relações entre os conteúdos”. Esse entendimento,
reforça a necessidade de se trabalhar a Matemática numa dimensão mais ampla,
articulada, de forma que os alunos sejam estimulados a estabelecer interações
entre si e com os conteúdos que estão sendo desenvolvidos.
Acreditamos que as concepções de letramento matemático e as práticas
que delas suscitam podem apontar elementos importantes que nortearão o
professor da educação básica, principalmente no ensino fundamental, além de
suscitar estratégias para o desenvolvimento de práticas em sala de aula que
contribuam efetivamente para a aprendizagem significativa dos estudantes. A
seguir, analisaremos a concepção de letramento matemático em documentos
importantes para a educação no Brasil, como a BNCC e o documento do PISA.

Letramento matemático na perspectiva da BNCC e do PISA

Como foi afirmado, anteriormente, letramento matemático é uma


temática recente, e que passou a ser mais amplamente discutida após ter sido
abordada em documentos importantes como a Base Nacional Comum
curricular - (BNCC), a qual norteia e rege o conjunto de aprendizagem que os
alunos deverão ter ao longo da Educação Básica, e o documento do Programa
Internacional de Avaliação de Estudantes- (PISA), conduzido pela Organização
para Cooperação e Desenvolvimento Econômico – (OCDE), cujo objetivo é
produzir indicadores que contribuam para melhoria da qualidade da educação
dos países participantes, implicando na definição e no direcionamento de
políticas públicas. Vale ressaltar que no Brasil, o referido programa é
coordenado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
Anísio Teixeira- (INEP).
De acordo com o INEP (2019), a avaliação do PISA representa um
estudo comparativo internacional realizado a cada três anos, de forma que os
resultados permitem a cada país, avaliar os conhecimentos e habilidades dos
estudantes com 15 e 16 anos, em comparação com estudantes de outros países.
Os domínios avaliados pelo programa correspondem a leitura, Matemática e
Ciências, sendo que a cada edição, um domínio torna-se principal de forma que
os estudantes se submetem a mais itens naquela área. Em 2018, o domínio
275

principal foi leitura. O objetivo é avaliar a aquisição de conhecimentos e


habilidades essenciais para a vida dos jovens.
Conforme os resultados apresentados na última edição do PISA,
referentes ao ano de 2018, segundo o INEP (2019), “Quando comparado com
os países da América da Sul, analisados pelo Pisa, o Brasil é o pior país em
Matemática, empatado estatisticamente com a Argentina, com 384 e 379
pontos, respectivamente [...]”. Ainda, no que concerne ao INEP, este cenário
abrange situações de incapacidade na compreensão de textos, na resolução de
cálculos e questões científicas simples e rotineiras, assinalando assim, a baixa
proficiência dos estudantes brasileiros nos três domínios se comparado aos
estudantes de outros países, não alcançando o nível básico para o pleno
exercício da cidadania.
Diante de tantos desafios e números que necessitam ser superados,
torna-se relevante refletir sobre a perspectiva para o ensino de Matemática na
concepção de letramento matemático abordada em ambos os documentos,
(BNCC e PISA), os quais exercem implicações diretas no desenvolvimento das
práticas pedagógicas para o ensino básico na contemporaneidade.
De acordo com Brasil (2017, p. 7)

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é um


documento de caráter normativo que define o conjunto
orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que
todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e
modalidades da Educação Básica, de modo a que tenham
assegurados seus direitos de aprendizagem e
desenvolvimento, em conformidade com o que preceitua
o Plano Nacional de Educação (PNE).

Veremos a seguir a definição de letramento matemático de acordo com


a BNCC (Brasil, 2017, p. 266).

O Ensino Fundamental deve ter compromisso com o


desenvolvimento do letramento matemático, definido
como as competências e habilidades de raciocinar,
representar, comunicar e argumentar matematicamente, de
modo a favorecer o estabelecimento de conjecturas, a
formulação e a resolução de problemas em uma variedade
de contextos, utilizando conceitos, procedimentos, fatos e
ferramentas matemáticas. É também o letramento
276

matemático que assegura aos alunos reconhecer que os


conhecimentos matemáticos são fundamentais para a
compreensão e a atuação no mundo e perceber o caráter
de jogo intelectual da matemática, como aspecto que
favorece o desenvolvimento do raciocínio lógico e crítico,
estimula a investigação e pode ser prazeroso (fruição).

Considerando que a BNCC se refere a direitos de aprendizagem, o


letramento matemático se constitui um direito de aprendizagem com o qual as
escolas devem ter compromisso em desenvolver ao longo do Ensino
Fundamental. (1º ao 9º ano). No entanto, vale ressaltar que muitos professores
que atuam com a Matemática escolar não estão muito inteirados da temática em
questão, ou mesmo ainda não tiveram leitura sobre o assunto.
A BNCC deixa claro que o saber matemático se projeta para além do
cálculo, se relaciona com o desenvolvimento do pensamento lógico, cognitivo e
com o desenvolvimento da capacidade de explicação e argumentação utilizando
os fatos matemáticos. Assim, a Matemática é um conjunto de conhecimento
que exige não apenas a sistematização de procedimentos, mas também, o
desenvolvimento do pensamento crítico - reflexivo, de maneira que os sujeitos
possam comunicar o porquê e o para quê do uso de determinadas escolhas e
procedimentos.
Segundo o documento da Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE, PISA, 2002. p. 48), a definição para
Letramento Matemático (mathematical literacy) corresponde a:

The capacity to identify, to understand, and to engage in


mathematics and make well-founded judgenents about the
role that mathematics plays, as needed for na in dividual‟s
current and future private file, ocupacional life, social life
with peers and relatives, and life as constructive,
concerned, and reflective citizen. (OCDE, PISA, 2002. p.
48).

Portanto, letramento matemático para o PISA, corresponde à


capacidade de identificar, entender e se envolver com a matemática, de fazer
julgamentos bem fundamentados, sobre o papel que a Matemática desempenha
para a vida privada, atual e futura de um indivíduo, vida ocupacional, vida
social, com colegas e parentes e vida como um cidadão construtivo e reflexivo.
Assim, o conhecimento matemático, por esta perspectiva volta-se para além da
277

aprendizagem operacional e para além do conhecimento escolar, tendo em


vista, a formação de indivíduos capazes de resolver problemas reais no contexto
social em que atuam.
No entanto, podemos perceber no referido documento, uma ênfase no
desenvolvimento de estratégias e habilidades individuais, evidenciando assim,
uma visão mais competitiva, mais capitalista afastando-se um pouco da
perspectiva de letramento matemático como uma prática social comprometida
com a coletividade.
De um modo geral, entendemos que tanto a BNCC, quanto o
documento do PISA, apontam para a necessidade urgente de se trabalhar a
Matemática numa perspectiva que faça sentido para a vida no meio social, uma
Matemática que se volta para os usos reais que se estabelecem na sociedade.
Eis, um grande desafio para os professores. Certamente que ainda estamos
muito aquém, mas já é possível vislumbrar um novo cenário nas escolas, ainda
que sejam práticas isoladas. Todavia, importa avançar, o caminho não está
pronto, precisamos construí-lo.

Considerações finais

É inegável a relevância dos cursos de formação continuada para o


aperfeiçoamento profissional do professor seja na dimensão individual, seja na
dimensão coletiva, tal como ocorre na formação continuada em exercício
oferecida aos professores do Ensino Fundamental, a qual privilegia a troca de
experiências, a elaboração e a resolução de atividades, o desenvolvimento de
estratégias e metodologias. Em todas elas, de alguma forma se agrega o
conhecimento à prática pedagógica do professor.
Todavia, é na dimensão crítico- reflexiva que se possibilita de fato ao
professor, ressignificar sua prática pedagógica, pois por mais que o docente
tenha contato com novas propostas de atividades, novos métodos, mudanças
significativas na prática do professor, só ocorrerão, se este se tornar capaz de
refletir sobre a sua realidade de forma a agir conscientemente sobre o que faz e
porque faz. Portanto, orna-se necessário que esse processo de reflexividade da
prática, seja mediado por uma fundamentação teórica subjacente.
Essa constatação foi vivenciada na minha própria prática pedagógica,
pois anteriormente refletia sobre as dificuldades de professores e alunos com
relação ao ensino de Matemática e isso era algo que me angustiava. Porém,
quando pensava em soluções para essa realidade me restringia na busca de
278

atividades que pudessem favorecer a aprendizagem dos estudantes, uma vez


que, não tinha conhecimento sobre letramento matemático e de todos os
elementos imbricados nessa perspectiva de ensino que se amplia para além
desenvolvimento de atividades. Logo, faltava-me subsídio teórico para que
houvesse, de fato, uma ressignificação da prática pedagógica. Porém, durante o
curso de pós-graduação, pude conhecer e me aprofundar sobre a perspectiva de
letramento matemático e esse conhecimento impactou não apenas a minha
maneira de pensar a Matemática como a minha prática de sala de aula.
Vale salientar, que a minha perspectiva com relação às formações,
também mudou. Ao longo das leituras, pude perceber de maneira mais nítida a
relevância da formação continuada para a prática pedagógica e para a
construção da identidade do profissional, enquanto categoria, enquanto
coletividade. Precisamos desses momentos de conhecimento, de troca e de
discussão. Não podemos ficar isolados nas escolas, cada um com suas práticas.
Sabemos que uma das maiores dificuldades apresentadas pelos alunos
se relacionam à compreensão de situações-problema, porém, para que o aluno
adquira esta habilidade, faz-se necessário que ele desenvolva competência
leitora, capacidade de interpretação e de produção escrita. Todas essas
competências são muito complexas e não se desenvolvem por meio de aulas
expositivas. Nesse sentido, a formação continuada pode se tornar um grande
laboratório subsidiando na construção e no compartilhamento de atividades e
de materiais que favoreçam a leitura, a interpretação e o raciocínio lógico e o
registro, tornando as aulas mais significativas e diversificadas.
Portanto, destacamos que os materiais utilizados nas formações devem
ser atuais e com sugestões de atividades práticas. As propostas de atividades
diferenciadas envolvendo jogos, dinâmicas, desafios e a literatura são excelentes
recursos que, ao serem explorados nas formações muito podem contribuir para
que o professor desenvolva uma aula mais interativa e assim saia da “zona de
conforto” focando não apenas nas representações dos alunos como também na
construção dos conceitos e significados.
Com relação às dificuldades dos pedagogos no que se refere aos
conteúdos da disciplina de Matemática, é importante que os encontros de
formação continuada contemplem o aprofundamento de conteúdos,
priorizando aqueles em que os professores apresentam mais dificuldades. Essa
é uma questão que merece destaque, pois se o professor não tiver plena
compreensão das bases conceituais com as quais irá trabalhar não conseguirá
desenvolver com os alunos esses conteúdos de maneira ampla.
279

Trabalhar na perspectiva do letramento matemático dos alunos, requer


uma aproximação entre a Matemática do cotidiano e a Matemática
sistematizada e é imprescindível estimular a participação e a interação entre eles.
Desta feita, o planejamento do professor merece total atenção de forma que as
estratégias e as atividades selecionadas estejam adequadas aos conteúdos e aos
objetivos que se pretende alcançar, respeitando também os diferentes níveis de
aprendizagem dos alunos, daí a necessidade de se propor atividades
flexibilizadas com o intuito de contemplar inclusive os alunos com necessidades
especiais. Assim sendo, é importante que os professores se apropriem da
BNCC para que possam alinhar o seu planejamento com as orientações
propostas no documento.
Diante do exposto, entendemos que o curso de formação continuada
em exercício contempla uma carga horária reduzida, abarca toda uma
complexidade e não se constitui a solução para todos os problemas acerca do
ensino de Matemática. Todavia essas formações são uma ótima oportunidade
para que os professores possam atualizar e aprofundar conhecimentos além de
possibilitar discussões que cotidianamente favoreçam o desenvolvimento de
uma prática pedagógica com vista à cidadania.

Referências

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professores, docência e avaliação educacional em debate: Diálogos (Im)
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2018/arquivos/49.pdf. Acesso em 22 jun.2019.
282

SOBRE OS AUTORES

Alaide Angelica de Menezes Cabral Carvalho


Mestre em Ciências da Linguagem pela Universidade do Estado do Rio Grande
do Norte (UERN). Especialista em Leitura e Produção Textual (UERN).
Membro do Grupo de Pesquisa em Linguística e Literatura (GPELL).
Interessa-se atualmente por pesquisas na área de Análise do Discurso Crítica
(ADC) e Multimodalidade. E-mail: angelicamenezes05@gmail.com

Alessandra Santa Rosa da Silva


Graduada em Letras pela UFRN, com Especialização em Educação de Jovens e
Adultos. Mestre em Linguística Aplicada (UFRN/2015) é, atualmente, aluna do
doutorado do Programa de Pós Graduação em Estudos da Linguagem,
PPGEL/UFRN, onde desenvolve pesquisa a respeito do valor do rascunho na
escrita escolar. Professora de Língua Portuguesa e revisora linguística, é
vinculada à Liga de Ensino do Rio Grande do Norte, ministrando aulas de
Português e Redação na Escola Doméstica de Natal e Complexo de Ensino
Henrique Castriciano, onde também colabora com a revisão linguística de
textos produzidos no complexo. E-mail: santarosa.asr@gmail.com

Ana Berenice Peres Martorelli


Doutora em Filologia, pela UNED - Madri. Mestrado em Letras - Linguística
Aplicada e Especialização pela UFPB. Professora da Universidade Federal de
Paraíba, do Departamento de Línguas Estrangeiras Modernas e atual diretora
do mesmo. Linhas de pesquisa e docência: linguística aplicada ao ensino de
espanhol como L2/LE e formação docente. Publicou diversos artigos em
periódicos e anais de eventos nacionais e internacionais. E-mail:
anaberenice.ufpb@gmail.com

Ana Paula Santos de Souza


Doutoranda em Letras pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.
Mestra em Letras pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
(UERN). Graduada em Letras - Licenciatura Plena em Língua Portuguesa pela
Universidade Federal de Campina Grande - UFCG. Especialista em Educação
para as Relações Étnico-Raciais pela Universidade Federal de Campina Grande
- UFCG. Especialista em Metodologia do Ensino de Língua Inglesa e Língua
Portuguesa pela UNINTER. E-mail: anapaulassletras@gmail.com
283

Dheiky do Rêgo Monteiro Rocha


Mestre em Letras, pela Universidade Estadual do Piauí. Professor Provisório da
Universidade Federal do Piauí, atuando no curso de Graduação Licenciatura em
Letras – Língua Portuguesa e Literatura de Língua Portuguesa, com interesse e
experiência de pesquisa na área de Letras, com ênfase em Teoria da Literatura,
Literatura Brasileira Contemporânea, Literatura Infantil e Juvenil,
desenvolvendo estudos principalmente nos seguintes temas: fantasia e real,
ficção e história, leitura literária e formação do leitor. E-mail:
dheiky@yahoo.com.br

Eduarda Maria Moreira Lopes


Licenciada em Letras pela Universidade Federal de Campina Grande (2010).
Especialista em Estudos Literários pela mesma universidade (UFCG/2012).
Mestra pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (2017), na linha
de pesquisa: Literatura, crítica e cultura. Atualmente é doutoranda do Programa
de Pós Graduação em Letras também pela Universidade do Estado do rio
Grande do Norte. Tem experiência na área de Língua Portuguesa e Literatura
como professora do Ensino Fundamental e Médio do Ação e Curso em Sousa,
PB. Professora efetiva de Língua Portuguesa pelo Estado da Paraíba na Escola
Estadual de Ensino Fundamental Antônio Teodoro Neto, em Sousa – PB. E-
mail: eduarda-mariah@hotmail.com

Fernanda Gonçalves Dantas


Licenciada em Letras com habilitação em língua espanhola e suas respectivas
literaturas pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, campus Pau
dos Ferros. E-mail: bcg_nanda@hotmail.com

Francisca Damiana Formiga Pereira


Graduada em Letras (Língua Vernácula e Língua Inglesa) pela Universidade
Federal de Campina Grande (2014). Especialista em Língua Portuguesa pela
mesma instituição (2016). Mestre em Letras pelo Programa de Pós-Graduação
em Letras da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (2017).
Doutoranda pelo mesmo programa e instituição. Membro do Grupo de
Pesquisa em Estudos Funcionalistas (GPEF) e Estudos Funcionalistas e Ensino
de Línguas (EFEL). Atualmente leciona como professora substituta na
Universidade Federal de Campina Grande (UFCG/CFP). Tem experiência na
área de Letras, com ênfase em Língua Portuguesa e Linguística, atuando
284

principalmente nos seguintes temas: ensino de Língua Portuguesa, ensino de


gramática e interação, formação e prática docente. E-mail:
nara_deus@yahoo.com.br

Francisca Janiele Buriti


Graduada em Letras (habilitação em Língua Portuguesa) pela Universidade do
Estado do Rio Grande do Norte (2009). Possui experiência em docência,
principalmente, no ensino de Língua Portuguesa. Atuou como diretora escolar -
rede municipal de ensino de Itajá/RN (2013-2016). Atualmente é mestranda em
Ciências da Linguagem pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da
Linguagem/UERN, com ingresso em 2018. Dedica-se a estudos centrados,
principalmente, nas correntes teóricas: Análise Crítica do Discurso e Análise do
Design Visual. E-mail: janieleburity@hotmail.com

Francisco Lindenilson Lopes


Professor de Língua Espanhola do Departamento de Letras Estrangeiras da
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Mestre e
doutorando em Letras Pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da mesma
instituição. Como pesquisador, tem experiência na área de Linguística Textual
com ênfase em Análise Textual dos Discursos. Atualmente conduz pesquisas
voltadas para a interrelação entre texto, discurso e ensino. E-mail:
professordenilsonllopes@gmail.com

Iza Maria Pereira


Mestre em Ciências da Linguagem pela Universidade do Estado do Rio Grande
do Norte (UERN). Especialista em Linguista Aplicada (UERN). Membro do
Grupo de Pesquisa em Linguística e Literatura (GPELL). Pesquisa, atualmente,
na área de Análise de Discurso Crítica (ADC). E-mail:
iza.pereira@ufersa.edu.br

Joelma de Araújo Silva Resende


Mestre em Letras (UFPI – 2015). Professora de Língua Portuguesa do Instituto
Federal do Piauí – Campus Angical. Email: joelma.resende@ifpi.edu.br

José Roberto Alves Barbosa.


Doutor em Linguística, professor-pesquisador da Universidade Federal Rural
do Semi-Árido (UFERSA), com vínculo no Programa de Pós-Graduação em
285

Ciências da Linguagem (PPCL). Membro do Grupo de Pesquisa em Linguística


e Literatura (GPELL), na linha de pesquisa Discurso, gênero e estilo.
Atualmente se interessa pela análise crítica multimodal do discursopolítico em
contextos midiáticos. E-mail: jrabarbosa1971@gmail.com

José Rodrigues de Mesquita Neto


Doutorando em Letras pelo PPGL/UERN. Mestre em Ciências da Linguagem
pelo PPCL/UERN (2018) e em Linguística Espanhola pela UNISAL (2016).
Especialista em Docência da Língua Espanhola pela FVJ (2010). Graduado em
Letras com habilitação em língua espanhola e respectivas literaturas pela UERN
(2009). Docente do Departamento de Letras Estrangeiras da Universidade do
Estado do Rio Grande do Norte, campus Pau dos Ferros e professor
conteudista/formador pela Universidade Aberta do Brasil (UAB/IFRN).
Membro do Grupo de Pesquisa e Estudos Aplicados em Línguas Estrangeiras
(EALE) e do Grupo de Pesquisa em Fonética e Fonologia (GPeFF).
Desenvolve pesquisas nas áreas da fonética e fonologia, interlíngua e ensino de
línguas estrangeiras. E-mail: rodriguesmesquita@gmail.com

Juzelly Fernandes Barreto Moreira


Mestra e doutoranda em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal do
Rio Grande do Norte (UFRN), onde também é vinculada ao grupo de pesquisa
“Texto, Gramática e Ensino”. Atualmente, é professora do quadro efetivo do
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte
(IFRN). Sua produção intelectual é composta por trabalhos que versam sobre
os estudos linguísticos do texto e, dentro desse domínio, seus interesses de
pesquisa voltam-se, principalmente, para os seguintes temas: referenciação
textual, estilo e linguística do texto coseriana. E-mail: juzelly@gmail.com

Karla Jane Eyre da Cunha Bezerra Souza


Possui graduação em Letras - Língua Portuguesa pela Universidade do Estado
do Rio Grande do Norte - UERN (2006), especialização em Língua Portuguesa
pela Faculdade Internacional Signorelli (2013) e mestrado em Ciências da
Linguagem pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN
(2018). Atualmente é Secretária Executiva da Universidade Federal Rural do
Semi-Árido - UFERSA. Tem experiência na área de Linguística, com ênfase em
Linguística Aplicada. E-mail: karlajane@ufersa.edu.br
286

Maraísa Damiana Soares Alves


Mestra e doutoranda em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal do
Rio Grande do Norte (UFRN). Atualmente, é professora de espanhol do
quadro efetivo do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio
Grande do Norte (IFRN). Sua produção intelectual é composta por trabalhos
que versam sobre os estudos linguísticos do texto e da Sociolinguística. Seus
interesses de pesquisa voltam-se, principalmente, para os seguintes temas:
linguística textual, variação e mudança, dialetologia e ensino de ELE. E-mail:
maraisaalves25@gmail.com

Maria Arlinda de Macêdo Silva


Graduada em Letras Vernáculas com habilitação em Língua Portuguesa pela
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN, Especialista em
Ensino de Gramática em 2014 na mesma instituição, Mestre em Ciência da
Linguagem também pela UERN. Pesquisadora na área de Linguística,
especialmente em Linguística Funcional com ênfase em Gramaticalização,
membro do grupo de pesquisa Estudos Funcionalistas e Ensino de Línguas -
EFEL. Com experiência na atividade docente no Ensino Fundamental e
Ensino Médio. E-mail: arlindamacedorn@hotmail.com

Maria dos Remédios Silva


Curso de Licenciatura em Letras – Língua Portuguesa e Literatura de Língua
Portuguesa, pela Universidade Federal do Piauí. E-mail:
mariasilvaremedios@hotmail.com

Michelle Kilvia Lopes Queiroz


Graduada em Pedagogia - Licenciatura Plena, pela Universidade Estadual do
Ceará – UECE, Especialista em Psicopedagogia pela Universidade Estadual
Vale do Acaraú,- UVA, Especialista em Alfabetização e Multiletramentos pela
Universidade Estadual do Ceará - UECE. Professora de Matemática no Ensino
Fundamental na rede Municpal de Fortaleza, Professora da rede Estadual do
Ceará. E-mail: michellequeirozwe@gmail.com

Nabupolasar Alves Feitosa


Pós-doutorado, obtido sob a supervisão da Profa. Dra. Irenísia Torres de
Oliveira (Universidade Federal do Ceará – UFC), no programa de pós-
graduação em História da UFC; Doutor em Ciências Sociais: Política, pela
287

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); mestre em Filosofia


pela Universidade Estadual do Ceará (UECE); especialista em O Teatro
Moderno em Língua Inglesa (UECE); graduado em Letras (UECE); e em
Ciências Sociais pela UFC. E-mail: nabupolasarfeitosa@gmail.com

Sebastião Alves Teixeira Lopes


Mestrado em Letras, Área de Concentração: Inglês e Literatura
Correspondente, pela Universidade Federal de Santa Catarina (1996); Doutor
em Letras, Área de concentração: Língua Inglesa e Literaturas Inglesa e Norte-
Americana, pela Universidade de São Paulo (2002); Pós-Doutorado na
Universidade de Winnipeg, Canadá (2007); Pós-Doutorado na Universidade de
Londres/School of Oriental and African Studies, Inglaterra (2014). Atualmente
é professor Associado da Universidade Federal do Piauí. E-mail:
slopes10@uol.com.br

Silvana Maria de Freitas


Graduada em Letras (Língua Espanhola e respectivas literaturas) pela
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Atua como
professora de Língua Espanhola na Educação Básica no Estado do Rio Grande
do Norte. Colabora em projetos de pesquisas voltados para a interrelação entre
texto, discurso e ensino. E-mail: freitassilvana891nunes@gmail.com

Tatiana Maranhão de Castedo


Licenciada em Letras pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
Especialista em Língua e Literatura Espanholas pela Universidade Estadual da
Paraíba (UEPB), onde atuou como professora substituta; concluiu Mestrado e
Doutorado na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), onde fui professora
substituta, no Departamento de Línguas Estrangeiras Modernas - DELEM. É
professora de espanhol do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
da Paraíba (IFPB), Campus Cabedelo, onde coordena a Especialização em
Língua Estrangeiras Moderna, com foco em inglês e espanhol, na modalidade a
distância. Pesquisa nas áreas da Variedade Linguística e linguística aplicada ao
ensino do espanhol como L2/LE. Publicou artigos em periódicos e anais de
eventos nacionais e internacionais. E-mail: tatimaranhao@hotmail.com

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