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quatro

quatro
dez 2021
EXPEDIENTE

EDITORES André Piero Gatti, Flávio de Souza Brito e


Humberto Pereira da Silva

REVISÃO Djamila Oliveira

DIAGRAMAÇÃO Sísifo Magnani Gatti

PROJETO GRÁFICO Ana Key Kapaz

PESQUISA DE IMAGEM Fabiola Notari, Catarina Forbes, Catarina


Walter

ILUSTRAÇÃO DE CAPA Ary Diesendruck

CONSELHO EDITORIAL

Arthur Autran Universidade Federal de São Carlos


Carlos Alberto Mattos Blog carmattos .com
Filipe Salles Universidade Estadual de Campinas
Ivonete Pinto Universidade Federal de Pelotas
José Inácio de Melo Souza Cinemateca Brasileira
Marília Franco Universidade de São Paulo
Sheila Schvarzman Universidade Anhembi-Morumbi

COLABORADORES André Piero Gatti, Arthur Autran, Artur Ilha,


DESTA EDIÇÃO Catarina Forbes, Celeza Ramalho, Donny
Correia, Enrico Alchimim, Equipe Caliban,
Fabiola Notari, Humberto Pereira da Silva,
Ivonete Pinto, José Carlos Sebe Bom Meihy,
José Inácio de Melo Souza, Luca Scupino,
Lúcio Aguiar, Luiza Lusvarghi, Monica
Fonseca Wexell Severo, Marcos Keiji, Teresa
Noll Trindade, Zilda Marcia Yokoi
Revista disponível para download
gratuito nos formatos EPUB e PDF www.mnemocine.com.br

ISSN 1980 6590


índice
EDITORIAL
Número quatro
p. 3

DOSSIÊ - SILVIO TENDLER


Entrevista: Cine-Zap e o último Tsunami
p. 5 Fabiola Notari

Silvio Tendler: visto por outros,


comentado por ele mesmo José Carlos Sebe Bom Meihy e
p. 31 Zilda Marcia Yokoi

Silvio Tendler, um caso de


sucesso de bilheteria
p.36 Teresa Noll Trindade

Os nexos causais e o Marighella


de Tendler
p. 52 Ivonete Pinto

Ousar pensar, ousar dizer


p. 59 Monica Fonseca Wexell Severo

Silvio Tendler por nós


p. 66 Equipe Caliban

NOTA HISTÓRICA
Meu ENEM 2019
p. 68 José Inácio de Melo Souza

HISTÓRIAS DE CINEMA
A busca do hedonismo brasileiro
em O Capitão Bandeira contra
o Dr. Moura Brasil ou, Hugo
Carvana e o hedonismo no cinema
p. 73 Celeza Ramalho

TECNOLOGIA
29,97FPS: U-MATIC e destruição criadora
p. 77 Lúcio Aguiar

CINEMA E... AS MULHERES


As cineastas brasileiras: feminismo
e cinema autoral no Brasil
p. 88 Luiza Lusvarghi

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ANÁLISE FÍLMICA
A crise do intelectual em tempos de
Bolsonaro - Notas acerca de #eagoraoque,
de Jean Claude Bernardet e Rubens Rewald
Arthur Autran p. 103

A narrativa da tela: A hipótese da pintura


roubada, de Raúl Ruiz
Donny Correia p.110

NOVOS OLHARES
Vá e Veja: Klimov, o horror da guerra
e a infância perdida
Catarina Forbes p. 123

O Cinema-Verdade ou a Verdade do Cinema


Luca Scupino p. 127

Uma análise crítica da Nouvelle Vague


Marcos Keiji p. 140

O desejo de capturar o real e a crise do jogo


de aparências no cinema de Maurice Pialat
Enrico Alchimim p. 160

Arte e ocultismo: Kenneth Anger e a


linguagem mágica do cinema experimental
Artur Ilha p. 173

RESENHA
A propósito de uma certa crítica: um certo
cinema brasileiro em 50 filmes
André Piero Gatti p. 179

O cinema paulistano em foco: Spcine,


audiovisual e democracia nos tempos
pós-retomada
Humberto Pereira da Silva p. 185

ANEXO
filmografia completa de Silvio Tendler
(disponível para download no site)
p. 192

SUBMISSÃO DE ARTIGOS PARA A EDIÇÃO CINCO:


As normas para submissão de textos estão
disponíveis em: http://mnemocine.com.br/
index.php/revista-mnemocine/

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editorial

número quatro

Apresentamos a Revista Mnemo- Finalizamos o dossiê com o


cine número QUATRO !!! sensível depoimento da Equipe
Caliban, disponibilizando anexa
Mais extensa que as anteriores, sua filmografia (versão integral
desta vez homenageamos Silvio para download no site Mnemocine).
Tendler. Escolha plenamente
afinada com a proposta da ...
Mnemocine e o momento histó-
rico em que vivemos: seja pelo Em nossas editorias temáticas,
conjunto de sua obra, como por a coluna Nota Histórica de José
sua atuação recente diante dos Inácio de Melo Souza traz uma
golpes e restrições da pandemia, instigante reflexão sobre tema
realizando novos filmes e de redação do ENEM de 2019: a
participando dos “Estados Gerais “democratização do acesso ao
da Cultura”. cinema no Brasil”.

Abrimos o Dossiê Tendler com a Na sequência, em Histórias de


entrevista realizada por Fabiola Cinema, Celeza Ramalho apre-
Notari, trazendo as impressões senta uma bem-humorada
recentes desse cineasta e ativista homenagem ao ator e diretor
em tempos sombrios. Hugo Carvana.

Em seguida, explorando sua A seção Tecnologia explora a


obra e processo de trabalho, transição do meio fotoquímico
selecionamos o trecho de uma para o magnético, com a conso-
conversa com os professores José lidação do U-Matic e o VHS Home
Carlos Sebe e Zilda Yokoi durante a Vídeo, por Lúcio Aguiar.
elaboração do “Catálogo (in)disci-
plinado”, seguido por três ensaios: Já Cinema e..., dedica-se ao
o primeiro, de Teresa Noll Trindade, universo feminino no Brasil, onde
em torno dos maiores sucessos de Luiza Lusvarghi atualiza os debates
bilheteria de Tendler; o segundo, teóricos sobre o tema.
de Ivonete Pinto, sobre Marighella,
com Mônica Fonseca enfocando A Análise Fílmica de Arthur Autran
a relação entre alimentos e examina a crise do intelectual em
agrotóxicos. tempos de Bolsonaro, tendo como

3
impulso o filme #eagoraoque, A incerteza brasileira para 2022
enquanto Donny Correia discute nem permite promessas; só a
a “fenomenologia da percepção” de que continuaremos juntos
de uma imagem, tendo por diante dos desafios (em todos os
referência o filme A hipótese da âmbitos) que se colocam para os
pintura roubada, de Raúl Ruiz. próximos anos.

Em Novos Olhares contamos Este editorial apenas para nos


com artigos de estudantes de colocar à disposição, oferecer
graduação da Faap, sob a cura- espaço para suas iniciativas e
doria de Humberto Silva, e uma convidá-los/las para os novos
colaboração da Universidade do planos !!!
Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).
Abraços fraternos e desejos de
Concluímos com as Resenhas um ótimo 2022 !!!
dos livros: O cinema brasileiro
contemporâneo em 50 filmes de
Marcelo Ikeda, por André Piero
Gatti; e, Depois da última sessão
de cinema – Spcine, audiovisual
e democracia, organizado
por Fabio Maleronka Ferron e
Alfredo Manevy, apresentado por
Humberto Pereira da Silva.

...

Após cinco edições, felizes pelo


que realizamos, graças a um
maravilhoso conselho editorial
e generosos colaboradores;
também certa frustração por
ideias não realizadas, pedin-
do desculpas por eventuais
imperfeições.

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entrevista

Silvio Tendler
Cine-Zap e o
Último Tsunami
Fabiola Notari
Fabiola Notari é artista visual, professora e pesquisadora. Doutora
em Literatura e Cultura Russa (FFLCH/USP). Lecionou de 2012 a 2020 no
Centro Universitário Belas Artes de São Paulo. Coordena o Grupo de Estudos
Livros de Artista, Livros-objetos: entre vestígios e apagamentos e é criadora
do Núcleo de Livros de Artista, iniciativas apoiadas e realizadas na Casa
Contemporânea. É co-fundadora e diretora administrativa do Instituto Angelim.
www.fabiolanotari.com

Silvio Tendler teve no cineclu- Chris Marker. Em 1975 licenciou-se


bismo a porta de entrada para o em História pela Universidade de
universo do cinema nos anos 1960. Paris 7 e em 1976 obteve título de
Sua atuação como cineclubista mestre com dissertação sobre
nos anos de chumbo da ditadura a obra de Joris Ivens, na Escola
militar no Brasil, no entanto, se de Altos Estudos em Ciências
tornou perigosa; por isso, no Sociais (EHESS). Importante para
início da década seguinte, ele se seu trajeto como cineasta e sua
mudou para o Chile, governado visão sobre o cinema foi ter sido
por Salvador Allende. Em sua aluno na primeira turma do Curso
estada chilena, Tendler registrou “Cinema e História”, conduzido
em imagens diferentes projetos pelo historiador Marc Ferro.
populares estraçalhados pelo
golpe de 1973. Em solo chileno, De volta ao Brasil, realizou,
então, realizou um filme sobre a dentre outros trabalhos, Os Anos
política governamental intitulado JK - Uma Trajetória Política (1980)
La Cultura Popular Vá! Do Chile, e Jango (1984), documentários de
ele viajou em seguida a Paris em grande sucesso de público. Entre
1972 para estudar cinema, quando esses dois personagens marcantes
participou de coletivo ligado a de nossa história política, dirigiu

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também com grande sucesso ética nesse período de pandemia,
de público O Mundo Mágico pandemônio. A ideia é desenvolver
dos Trapalhões (1981). Mas, de esse conceito, refletindo sobre o
fato, Tendler se notabilizou como quanto a COVID-19 e o (des)go-
grande documentarista ao verno de Jair Bolsonaro afetam
retratar diferentes personalidades a sua produção, sem contar
de nossa história político-cultural, todos esses movimentos que
como Carlos Marighella, Glauber você está encabeçando. Eu acho
Rocha, Milton Santos, Tancredo que de alguma forma os Estados
Neves e Josué de Castro. A Gerais da Cultura (1) deve entrar
articulação entre cinema e história nesse recorte temporal (2020-
ganha em Utopia e Barbárie 2021) sobre como você, Silvio, vem
(2010) um esforço de síntese dos pensando e repensando o cinema,
acontecimentos mais importantes as conexões com as pessoas...
ocorridos nos últimos cinquenta
anos. Ele nos lega ao longo de sua Silvio Tendler: O cinema é uma
trajetória, com mais de 70 filmes arte libidinal. Isso é muito interes-
entre curtas, médias e longas- sante. Essa confusão metafísica
-metragens, um acervo riquíssimo entre arte, amor e libido. Tudo se
de imagens e depoimentos mistura. Os cineastas mais libi-
sobre o mundo contemporâneo, dinais são os documentaristas,
material que cresce na medida os que estão mais próximos do
real. Eu acho que os ficcionistas
em que inúmeros projetos cine-
sublimam a criação artística. Isso é
matográficos e televisivos são
muito curioso. Todos os meus gurus
concretizados, como é o caso
eram muito libidinais, assim como
de Militares da Democracia: Os
também os cineastas que fizeram
Militares que Disseram Não e Os
a minha cabeça. Chris Marker era
Advogados Contra a Ditadura:
extremamente libidinal; Joris Ivens
Por uma Questão de Justiça,
e Jean Rouch também.
ambos de 2014.
FN: Visceral. Vida e arte juntos…
Esta entrevista foi realizada pelo Acredito que a questão seja
Zoom em 20 de janeiro de 2021 o roteiro. Os ficcionistas ficam
e faz parte da pesquisa de pós- no roteiro, já os documentaristas
-doutoramento de Fabiola Notari. fogem do roteiro, o qual, muitas
Foi generosamente cedida para a vezes, não existe. Eles deixam
Revista Mnemocine. acontecer…
...
Fabiola Notari: Vamos partir de ST: Eu não tenho roteiro. Nunca
como você está lidando com as fiz roteiro na vida. Nunca escrevi
questões da poética, técnica e um porque acredito que o filme

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acontece à medida que é cons- e você não ganha para me
truído. Eu tenho projetos. Eu vou passar outras. Aí há uma relação
mandar para você o projeto do de troca igualitária. Não estou
Cine-Zap… Estou trabalhando vendendo nenhum produto e
com uma equipe que nunca fez você também não. Nós estamos
cinema, para fazer o Cine-Zap. trocando ideias. E se eu juntar
Agora na pandemia, inventei tudo isso numa linha do tempo,
o Cine-Zap. Porque, na verdade, posso reconstituir a história da
acho que a arte está sendo pandemia. E é isso o que estou
superada pelo comércio; então, as fazendo com o Cine-Zap. É
pessoas estão muito mais ligadas essa invenção. Mas como ele
a direitos e propriedade do que tem limitações técnicas, não
à criação. E aí, veio a pandemia. é possível fazer blocos longos,
Sempre fui arredio a ter WhatsApp, ele não transmite, então estou
mas na pandemia não tive montando pequenos blocos que
outra saída. Comecei a receber fazem parte de um projeto maior.
milhares de coisas por dia, todos Esse filme vai ser montado como
os dias. Os amigos me mandam um quebra-cabeças, em que o
músicas, mensagens, um meme, espectador vai assistir na ordem
um card… Um dia a música vem e na sequência que quiser. O filme
triste, outro dia vem alegre. Muita não tem numeração. Não tem
paródia sendo feita. Muita crítica. início, nem meio e nem fim.
Muita política. Muito humor. E, com
esse material recebido, posso Isso, na verdade, era a ideia
refazer o mapa da pandemia. A do Glauber Rocha, no filme A
partir desse conteúdo recebido Idade da Terra. Quando ele
por WhatsApp, sou capaz de fez esse filme, queria que não
reconstruir minha relação com as tivesse créditos de abertura e
pessoas no dia a dia. E, também, de fim, que os rolos não fossem
posso (re)contar a história da ordenados. Os rolos deveriam ser
pandemia. Tudo por meio desse projetados na ordem em que o
material que recebo diariamente projecionista quisesse. É um filme
pelo WhatsApp. barroco. Com conceito barroco.
Longuíssimo, com vários Cristos,
E qual é a vantagem do What- branco, preto... A Embrafilme não
sApp? Ele venceu. Ele derrotou deixou. Ela encaretou. Obrigou
o mundo do comércio. Tudo me colocar “Embrafilme apresenta”
chega de graça e repasso de no primeiro rolo e “fim” no último
graça. Então a palavra lucro foi rolo (2). E com isso você tinha uma
abolida da nossa relação. Eu não ordem. A ideia do Glauber era você
ganho para te mandar coisas entrar no cinema num momento,

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ver um trecho do filme. Sair do que gera outros produtos. Ela
cinema, tomar uma cachacinha, aboliu a questão da propriedade.
fumar um cigarro. Voltar para o As pessoas interferem em músicas
cinema, ver outro trecho do filme. e imagens, e ninguém mete
Cansar e ir embora para casa. processo em ninguém. Eu rece-
No dia seguinte você voltava e bi, por exemplo, por esses dias,
via mais um trecho. Então o filme um trecho de Casablanca. Na
A Idade da Terra é para ser visto verdade, uma releitura de um de
com a mesma intensidade que seus trechos: a cena de embarque
você lê um livro do Saramago, de Ingrid Bergman com Humphrey
por exemplo. Ninguém lê de uma Bogart, em que eles estão discu-
talagada só um livro de 400 tindo se ela vai tomar cloroquina
páginas. E nem vê um filme de ou não. É maravilhoso. Eu já recebi
várias horas de uma vez só. Então duas versões do filme sobre o
a ideia do Glauber era essa. Era bunker do Hitler. Uma, é o Hitler
para ser uma experiência a ser brigando. O Hitler/Bolsonaro
curtida. Ver um trecho e discutir dizendo que não vai fazer a
com os amigos. Conversar sobre. vacinação, e termina dizendo
Voltar no dia seguinte para rever, que o Dória já fez. E o último, é
fazer uma releitura. Não deixaram a discussão do impeachment.
ele fazer isso. Ele morreu com essa Em uma semana, eu recebi duas
dor. E eu, que sou formado pela versões diferentes.
mente glauberiana, fiz um filme
sobre ele. E agora estou fazendo O aniversário do Gilberto Gil
uma homenagem a ele com foi comemorado por mais de
o Cine-Zap. Este é o sonho do 70 artistas. Se você pagasse o
Glauber. Alguns dos meus ídolos cachê daqueles caras, seria um
adorariam fazer o que eu estou filme milionário. Mas ele foi feito
fazendo. O Chris Marker é um de graça. Circulou de graça pelo
deles. Hoje, ele estaria fazendo WhatsApp. Ou seja, nós abolimos
Cine-Zap. E Glauber também. o comércio das nossas relações.
Porque é a coisa mais moderna e Essa é a coisa mais revolucionária
mais revolucionária que há. que existe.

Durante a pandemia, enquanto FN: E com relação às fake news?


a vemos de uma forma
extremamente perversa, já matou ST: As fake news sempre existiram.
211.000 pessoas no Brasil (3), hoje, Na minha infância existia a fofoca
no mundo, mais de 2 milhões, da Candinha. Candinha era uma
também criou um outro nicho de personagem que escrevia em
solidariedade na humanidade revistas especializadas na vida de

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artistas e que contava fofocas de casal Rosenberg foi assassinado
Cauby Peixoto, Marlene, Emilinha nos Estados Unidos; foram
Borba... Botavam eles para brigar executados na cadeira elétrica
entre si. Isso sempre aconteceu. As por causa do que seria hoje fake
fake news sempre existiram. Uma news, uma mentira. Disseram que
das manchetes da Tribuna de eles eram espiões soviéticos e que
Imprensa de 1954 ajudou a der- enviaram para a União Soviética
rubar Getúlio Vargas. A manchete o desenho da bomba atômica. O
dizia: “Somos um povo honrado desenho que Julius Rosenberg fez,
governado por ladrões”; assim do que seria a bomba atômica,
começou o desmantelamento é um desenho mais infantil do
do governo Vargas. E estou que o de uma criança de 5 anos.
falando de 1954. Então, isso não Jamais os soviéticos construiriam
é uma invenção contemporânea. uma bomba atômica com aquele
Durante a vida inteira o Juscelino desenho. Era tudo falso… E a gente
foi chamado de ladrão. Com convive a vida inteira com isso.
isso, teve uma vida remediada.
O Jango foi deposto acusado Na verdade, o responsável
de corrupção. Nunca acharam pelas fake news não é o emissor,
nada na vida do Jango. E ele foi é o receptortransmissor. Ontem
deposto. Então essa coisa da fake recebi um negócio de que se
news sempre aconteceu. E era eu não autorizasse o WhatsApp
dos dois lados. a mandar todas as minhas
fotos para o Instagram eu seria
Eu não acredito nessas teses cancelado. Aí, me ensinaram a
conspiratórias de Steve Bannon. cloroquina eletrônica. Eu mandei
É um ladrão que foi anistiado uma mensagem para 10 pessoas
pelo Trump, que antes de sair do com o texto: “Não autorizo. Não
governo perdoou ele. Na verdade, autorizo.”. O babaca aqui fez
o que ele fez foi arrecadar (risadas). E era falso. Então, eu fui
dinheiro. Essa cientificidade na mais responsável pelas fake news
campanha Trump-Bolsonaro é do que o gozador que criou isso.
uma mentira. O que eles fizeram O cara falou: “Vou sacanear. Vou
foi se comunicar com o povo. O botar uns idiotas para circular
que nós esquecemos de fazer. informação falsa”.
Como não queremos falar dos
nossos defeitos, só queremos falar Na época do auge da Aids, a
de nossas qualidades, atribuímos Claudia Raia teve que fazer uma
ao outro o problema... Eu acho fotografia com a cópia do exame
que as fake news são as feiticeiras laboratorial dando negativo. Isso
de Salém contemporâneas. O foi capa da revista IstoÉ. Porque

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circulava pela mídia que ela tinha falava: “Na verdade não fui eu, foi
contraído Aids. Naquela época, minha prima que trabalha no
a Aids era um estigma, era vista hospital e que conhece alguém
como uma doença. Ter Aids que trabalha no laboratório, e foi
era ser banido do convívio. As essa pessoa que viu a Claudia
pessoas tinham medo. As pessoas Raia dando entrada para fazer o
não bebiam no mesmo copo, não exame de sangue… e ele deu
comiam com os mesmos talheres, positivo.”. Quando entrevistavam
não compartilhavam nada. Por a tal da prima, ela respondia: “Eu
conta de uma fofoca, ela teve que nunca trabalhei nesse laboratório,
desmentir publicamente, e por ser trabalho num escritório de enge-
também uma pessoa pública. nharia, mas no escritório de
engenharia tem uma amiga cujo
Mário Gomes passou por algo marido…”. Tudo era mentira.
parecido, por causa de um Circulação de boato.
desentendimento com o Carlos
Imperial. O Carlos Imperial Esse idiota que está aí (Jair
queria que Mário fizesse um filme Bolsonaro) não foi eleito por causa
com ele, mas ele não das fake news. Ele foi eleito porque
aceitou. Então, o Carlos Imperial o Brasil está povoado de idiotas.
espalhou a notícia de que o Mário Porque houve uma construção.
Gomes deu entrada no hospital Outro dia vi um filme de uma
Municipal Miguel Couto, aqui no cineasta israelense da TV alemã
Rio de Janeiro, com uma cenoura (Deutsche Welle - DW) na TV
enfiada no cu. O intervalo de Cultura. No filme, ela entrevistava
tempo entre o Carlos Imperial pessoas nuas... E um americano
falar e isso virar um rastilho de falou que ele se preocupava
pólvora não demorou mais de dez muito menos com o Trump do que
minutos. No final, já tinha gente com o eleitor do Trump. Então é
que dizia que tinha visto ele isso. Nesse mundo que estamos
dando entrada no hospital. Aí vivendo, me preocupo muito
passou a ter testemunhas. menos com esse idiota que está
no poder do que com os seus
No caso da Claudia Raia, eleitores idiotas. Estou cercado de
também tinham muitas testemu- idiotas. Eu tenho uma cuidadora
nhas dizendo que ela tinha Aids. que é uma pessoa maravilhosa,
Na época, eu fui casado com a mas ela é fanatizada pelo
jornalista que fez a reportagem Bolsonaro. E um fisioterapeuta,
na IstoÉ sobre esse assunto, a que tive de dispensar porque
capa que contei anteriormente. era impossível conviver com ele:
Era assim, a pessoa que tinha visto entrava na minha casa para

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fazer fisioterapia e ficava me caído no chão. Começamos a
provocando. Até dá para coexistir, correr o mundo para ver o que se
mas não ficar sendo provocado poderia fazer. Fomos a um grande
enquanto tenho um problema de hospital de referência, me fizeram
saúde… um diagnóstico e disseram que
não iriam me operar. Ai a Fabiana
Dentre os meus projetos atuais, perguntou: “E o que que ele faz?”.
tem o Último Tsunami. Por que ele A médica respondeu… “Viva um
se chama assim? Porque eu vivi dia atrás do outro”.
muitas crises na minha vida. Vivi
o Golpe de 64, o AI-5. Em 69, um Eu nem me lembro mais…
amigo sequestrou um avião e, por A Fabiana está aqui e pode
ser meu amigo, fui perseguido e contar melhor essa história.
tive que me esconder. Fui morar
no Chile, de Allende. Em 71 minha Fabiana Fersasi: A médica disse
mãe foi presa... Aliás, vou mandar que eu estava acelerando o
uma homenagem para ela. Hoje processo de morte dele e que
faz 50 anos que ela foi presa. 50 eu não deveria mexer nele, nem
anos que minha mãe foi presa e tocar mais no corpo dele. Quando
humilhada no DOI-CODI. Teve voltamos ao Rio, nós já estávamos
o golpe contra o Allende, mas bem desacreditados, pensando
também vivi muitos momentos o que iríamos fazer, que outro
bons: a luta pelas Diretas Já e especialista buscar. Conhecemos
pela Lei da Anistia. Vivemos o o doutor Paulo Niemeyer Filho,
impeachment do Fernando Collor graças ao Roberto D’Avila. O
de Mello e o da Dilma Rousseff. doutor Paulo usou os mesmos
Vivemos a eleição do Jair exames feitos nesse hospital de
Bolsonaro... Quando achávamos referência, que o Silvio não quer
que estávamos no fundo do poço, dar o nome, e eu também não
veio a pandemia do COVID-19. vou dar. Tivemos uma conversa
muito longa. Aí percebemos a
Em 2011, tive um tsunami pessoal diferença entre o técnico, que
muito complicado quando fiquei é o cara que usa um aparelho
tetraplégico. Um dia acordei e vê o que o aparelho diz, para
sem nenhum movimento. Estava um grande médico, que é o
deitado na cama quando chamei cara que casa a informação do
a Fabiana, minha esposa, e falei: resultado do exame com o seu
“Não consigo me mexer”. Ela histórico de vida. O doutor disse:
pensou que fosse alguma brin- “É… se eu não te operar, você vai
cadeira ou algo do tipo. Quando morrer. E, Fabiana, você tem que
chegou no quarto eu estava mexer muito no Silvio. Mexer no

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corpo dele…”. Silvio e eu ficamos ST: É o último que estou vivendo…
nos olhando nesse momento, Até agora eu desabafei… Agora
e o doutor perguntou: “O que vamos organizar esse filme e a his-
foi?”. Respondi: “A orientação da tória da pandemia (risadas). Vou
outra doutora era para eu não dar um recorte temporal, como em
mexer no Silvio…”. Paulo reafirmou: alguns pontos de minha vida. Em
“Sim, tem que mexer e muito para 2006, Encontro com Milton Santos
continuar dizendo para o cérebro ou O Mundo Visto do Lado de
que o corpo quer continuar vivo, Cá. Aliás, a entrevista com ele foi
se mexendo.”. em 2001 e na época estava com
poucos recursos; por conta disso
ST: Existem médicos e artistas. estava apavorado, pois entrevis-
Esse é o artista… tava um gigante. Milton Santos
me percebeu e disse: “Você sabe,
FF: Ele operou o Silvio exatamente com pequenos objetos também
uma semana depois da consulta. se fazem grandes coisas”.
Recomecei a fazer cinema a partir
ST: E eu estou aqui com você, oito daí. Milton Santos foi o primeiro
anos depois. E mais de oito filmes… corte. Em 2011 tive essa tetraplegia
e, para mim, tem um lado que é
FF: E o doutor Paulo não cobrou muito dramático, porque sempre
nada. Só pagamos o anestesista. gostei muito de fotografar, filmar,
E depois, o clínico geral, ele cobrou e perdi o movimento das mãos.
direitinho (risadas). Doutor Paulo Me recuperei, mas fiquei com uma
Niemeyer Filho e a equipe dele certa parestesia, que é o primo
não cobraram nenhum centavo. pobre da tetraplegia, não ter
força. Então não consigo filmar,
FN: Pelo visto a cirurgia foi nem fotografar. Mas negociei
arriscada… com Deus para não perder a
fala e o raciocínio. E estou aqui
ST: Não foi, na verdade foi por trabalhando...
causa do coração… Eu enfartei
duas vezes na mesa de cirur- FN: Pelo menos pode dirigir quem
gia… Estou aqui vivo contando a estiver segurando a câmera,
história. O riso é fundamental. Se direcionar o olhar…
não rir, atrofia.
ST: Isso. De 2011 para cá
FN: E você chama de Último desencalacrei uma série de filmes
Tsunami porque também chega que estavam na minha cabeça,
de tsunami, né? incompletos, inacabados... Eu

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tinha feito, em 2009, Utopia e Estou refletindo sobre o Cine-
Barbárie e de lá para cá já fiz Os -Zap. Terminei um filme sobre o
Advogados Contra a Ditadura, Chico Mário (4). Estou fazendo
Militares da Democracia: Os uma série para a televisão sobre
Militares que Disseram Não, arte urbana. Quero sempre
ambos em 2014. Em 2016, fiz discutir a liberdade da arte. E a
Sonhos Interrompidos e em 2017, arte que ocupa a cidade é a arte
dei continuidade ao projeto da liberdade. Ela foge das prisões
Caçadores da Alma. Em 2018, e dos casulos das galerias. Nas
Alma Imoral, e em 2020, Em Busca entrevistas começo a descobrir
de Carlos Zéfiro. Ainda tem uma que essa arte urbana também
tem valor comercial. Por exemplo,
série e um longa-metragem sobre
se você quiser filmar na frente de
o Ferreira Gullar, A Arqueologia de
um grafite, você tem que pagar
um Poeta. Fiz Nas Asas da Pan Am.
pelos direitos autorais. Na cidade
Eu tenho uma vasta filmografia de
em que eu moro tem que pagar
lá para cá. Também virei múltiplo,
direitos autorais. Também estou
porque, essa coisa que você discutindo essa questão. A liber-
falou no começo da entrevista, dade da arte urbana. A liberdade
sempre tive uma atividade social para mim é a arte. Sem liberdade
e política muito grande e, de não há arte. Discuto essa questão
repente, comecei a virar um certo da liberdade da arte, o que mais
organizador. E aí foi quando, me importa. Fiz a curadoria do
no auge dessa pandemia, criei 53º Festival de Brasília do Cinema
os Estados Gerais da Cultura, Brasileiro. Em um mês colocamos
uma forma de unir as pessoas de pé esse festival. Ninguém
em torno da questão da arte. acreditava que iria acontecer e
Nós começamos em agosto e já teve uma programação incrível.
fizemos vinte encontros. O último
foi maravilhoso, com um fotógrafo FN: Trouxe o espírito do festival de
cadeirante de favela – ele chama volta. Quando lemos sobre ele,
de favela e não de comunidade... no passado ele era um festival
Ele é fotógrafo-poeta do complexo muito importante, de grande
da Maré e da Nova Holanda, ele movimentação e reflexão entre
se chama Bira Carvalho. Já foram intelectuais e artistas.
vinte encontros, desde enormes
professores doutores até gente do ST: ...em um mês.
povo, tão maravilhosa e filosófica
quanto. Pensamos o mundo. FN: Fico pensando como é
Pensamos o Brasil. importante ter uma boa equipe...

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ST: Vou me elogiar um pouco... A as pessoas assistirem de dentro
gente pode ser um pouco vaidoso das suas casas. Genial. Quando
também. A arte traz um pouco de ele me contou desse projeto,
vaidade (risadas). Eu sei agre- estávamos num programa de TV,
gar pessoas. A equipe que está eu disse: “Isso precisa ser filmado,
na Caliban está azeitadinha. documentado. Isso é um filme”. Ele
Ela é maravilhosa. Somos pou- me respondeu: “Maravilha, então
cos, pero buenos. Nós nos gos- você vai dirigir!”. Respondi: “Aceito
tamos. É uma produtora, mas, participar com vocês, mas eu, de
ao mesmo tempo, é agregadora, maneira nenhuma, quero roubar o
fraterna, solidária. Briguei muito protagonismo de ninguém. Se vocês
com o pessoal da equipe, que quiserem convidar outro diretor,
de sacanagem me chama de convidem. Pois estou dentro como
patrão (risadas). Eu digo: “Eu não equipe, quero participar do projeto,
sou patrão, eu sou companheiro, mas não necessariamente dirigir”.
estou junto com vocês”. Eu criei Ele disse: “Mas quem vai dirigir é
essa produtora porque se não você”. E aí, estou dentro. Eles estão
fosse assim não teria feito o filme fazendo uma produção com afinco,
Jango. Ninguém queria produzi-lo. com amor. A última coisa que eles
Tinha quem financiasse, mas arranjaram, você não vai acreditar…
nenhuma produtora que topasse O Sóca é gênio! Ele pediu para uma
fazer um filme sobre Jango em menina de lá pipas com LED, e na
plena ditadura (5). A Caliban noite da projeção, imagine, vão ter
nasceu e neste ano completa 50 pipas com LED no céu.
40 anos. Tem uma bela história:
Jango, Marighella, Milton Santos, Vai ser um festival maravilhoso.
Castro Alves. Fotografei esse país Vai ser um filme maravilhoso. Já
e consegui afinar esta equipe. No combinei com eles drones para
Festival de Brasília agregamos filmar de cima. Filmar o entardecer.
uma equipe legal. Nos Estados Filmar as casas, as pessoas.
Gerais da Cultura há outra equipe Algumas pessoas com o celular
tão legal quanto. Então, na em casa se filmando e filmando a
verdade, o que eu sei é agregar projeção. Fazer um filme na hora,
pessoas. no coletivo. Estou querendo dar
o nome, vou ver se eles aprovam:
A última atividade que estou “Esse filme é pra Oscar”. A gente vai
metido não menos importante: falar da comunidade.
Tem um cara que me procurou,
o Sóca, que é um agitador FN: Você comentou sobre a Caliban,
cultural da Rocinha. O projeto que hoje em dia é administrada pela
dele é muito legal: projetar três Ana Rosa Tendler, sua filha. Fale um
filmes no Morro Dois Irmãos para pouco mais sobre sua produtora.

14
ST: A Ana nasceu um ano antes queriam trabalhar com um
da Caliban. A Caliban é uma estreante. Eu era aquele cara
construção de muitos anos. que tinha acabado de chegar da
Porque eu tive várias Calibans, França querendo fazer cinema.
várias equipes. Todas elas funda- Imagine só, eles pensavam:
mentais. A Caliban foi criada para “Trabalhar com esse cara… Já
fazer Jango. A equipe que fez esse trabalhei com Cacá Diegues,
filme é maravilhosa. Chico Moreira Nelson Pereira. Você acha que
montou Os Anos JK, Jango e O vou trabalhar com esse cara aí…”.
Mundo Mágico dos Trapalhões. Então falei assim para o Chico:
Ele era uma pessoa muito querida, “Vamos fazer nós dois esse filme.
amada aqui no Rio de Janeiro. Eu Vamos montar nós dois esse filme”.
tenho o maior orgulho de dizer O Chico com esse filme ganhou
que o Chico foi meu assistente vários prêmios - Prêmio de
quando eu era o responsável pela Melhor Montagem no Festival de
seleção de curtas-metragens Gramado, Melhor Montagem pela
para o programa Coisas Nossas Associação Paulista dos Críticos
da Embrafilme, que ia para o de Arte. Em seguida montou
ar pela TV Educativa do Rio. O Jango e O Mundo Mágico dos
apresentador era o José Carlos Trapalhões. Mas, o que ele mais
Avellar, eu era diretor e o Chico gostava era de arquivo. Então,
era meu assistente. Era o cara que ele só montava os filmes que ele
servia cafezinho... Só que descobri quisesse.
trabalhando com ele que ele sabia
mais de cinema do que eu, pelo Quando fui convidado para ser
menos umas cinco vezes mais. E responsável pela organização do
que ele tinha a maior biblioteca arquivo da Cinemateca do MAM,
de cinema, além de muitos o (José Carlos) Avellar e o Cosme
equipamentos. Ele assistia de 6 a (Alves Netto) me chamaram.
7 filmes por semana, sabia tudo. E Cada um me abordou de um
na verdade, a seleção de curtas lado e respondi: “Olha, eu não
quem fazia era ele. Me entregava vou aceitar, porque não sou bom
pacotes de curtas dizendo: “Olha, o suficiente; mas vou indicar a
isso é lixo, nem veja… Estes, se faltar pessoa certa para vocês.”. Eles
filme a gente pega… E aqueles é ficaram irritados comigo, achando
para você assistir”. Então, quando que eu estava fugindo. Apresentei
eu consegui o dinheiro para fazer o Chico a eles. Mas o Chico era
Os Anos JK eu o levei comigo. um cara meio “estranho”, tinha um
cabelo estilo Roberto Carlos, e eles
Nós fomos atrás de grandes ficaram com medo, politicamente,
montadores para JK, mas eles porque ainda vivíamos aquela
tinham o maior desprezo, não paranoia do começo dos anos

15
80: transição da ditadura, o Wagner Tiso, Milton Nascimento,
governo do Figueiredo. Respondi com músicas do Túlio Mourão e
a eles: “Ele é confiável”. Assim, ele Mauro Senise. É um filme para
virou o responsável pelo acervo ninguém colocar defeito.
da Cinemateca e deslanchou
em sua carreira. Fez curso na Assim nasceu a Caliban e as
FIAF (Federação Internacional coisas foram acontecendo,
de Arquivos de Filmes) e foi aos fazendo projetos... Teve um
Estados Unidos fazer curso de momento que eu troquei o cinema
recuperação de acervo. Ele pela paixão. De 1985 até meados
salvou, pelo menos, metade dos dos anos 90 não produzi nada.
filmes brasileiros que estavam Em 1987 produzi Memória do Aço,
se perdendo por falta de depois ainda dois trabalhos em
conservação adequada. Era Pernambuco, pouca coisa. Fiz o
uma figura maravilhosa. Fundei primeiro programa político do
a Caliban com ele, foi meu PCB, o primeiro e o segundo do
primeiro sócio. E também tinha o PSB, mas eu estava envolvido
Américo Vermelho, que entrou na em uma atormentada paixão.
Tinha um desejo de trabalhar
sociedade, mas só porque eram
com coisas públicas, fui diretor
necessários três nomes para a
da Fundação Rio do Janeiro,
sociedade.
quando o PCB assumiu a direção
da Rio Arte, depois, em 1995, da
Olívio Petit trabalhou comigo,
Televisão Brasília. Segundo minha
foi meu assistente, segurou todas
mulher na época, esse canal
as barras do filme Jango. Depois tinha menos audiência do que o
foi trabalhar para a Rede Globo carro da pamonha (risadas). Em
de Televisão. Trabalhei com os seguida secretário de Cultura do
filhos do general (Antônio Carlos Cristovam Buarque, trabalhei na
da Silva) Muricy (6). Eles vieram UNESCO até que em 1998 com os
trabalhar comigo no filme Jango filmes Castro Alves, Marighella,
e conseguiram o depoimento do Glauber fui voltando a ser o que
pai. Conseguimos um general do eu era, cineasta... Milton Santos,
golpe do Jango graças aos filhos Utopia e Barbárie…
dele. Teve o Serginho, a Cássia, a
Maria Paula Araújo, que hoje é FN: Interessante observar a
uma grande professora de oportunidade que você teve
história... Maria Muricy, Toninho nesses cargos públicos, porque
Muricy. Fotografia do Lúcio assim estaria do outro lado.
Kodato e Edgar Moura. Só gente No lugar da gerência e não da
importante. Trilha sonora do produção.

16
ST: Foi muito bom, tenho muito formação e reflexão, mas não
orgulho da minha vida. quero viver preso, quero ter a
liberdade total de transitar de
FN: Isso também possibilitou o igual na favela e na Avenida Vieira
contato com pessoas diversas em Souto. Quando começam a me
diferentes áreas. Não só do gueto dar carteirada que eu não posso
do cinema? falar de negro, que eu não posso
falar de gay, eu respondo: “Meu
ST: Não gosto de ficar em casulo lugar de fala é o mundo. Eu tenho
nenhum, não consigo viver em toda a liberdade do mundo. Eu
guetos… Sou de origem e formação tenho 70 anos. Lutei muito para
judaica. Quando tinha 16 anos, conquistar essa liberdade.
meu pai me obrigou a participar Ninguém vai me meter o dedo na
do movimento sionista. Nas cara. Ninguém vai me impedir de
reuniões dançávamos aquelas falar.” Adorei o encontro dos
danças, ficávamos falando de Estados Gerais da Cultura deste
Israel com a nostalgia de quem último domingo, porque o Bira
nunca viveu, mas sempre sonhou. falou exatamente isso: “Nós temos
Eu desejava ir para um kibutz que estender pontes e não muros”.
em Israel e viver o socialismo. Eu pensei: “Estou contigo”.
Logo, veio a Guerra dos Seis Dias
que me impactou muito. Eu quis FN: (É muito interessante a visão
ir combater, mas meu pai não do Bira, pois falaram da cidade
deixou. Ele disse: “Você é maluco. repartida, quando ele disse que
Fica aqui, primeiro se forma e vê a cidade como um todo. Não
depois vai para Israel.”. Saí do que os outros domingos não
grupo sionista em 1967 e para a tenham sido tão interessantes e
tragédia do meu pai, em maio importantes quanto este. Mas,
de 1968 começou o movimento este em especial, você trouxe o
estudantil e escancarou o mundo, fazer artístico dentro da comuni-
uma rebeldia generalizada. E falei: dade, foi uma virada muito bonita
“Que Israel, que nada… Meu lugar para o ano de 2021).
é o mundo, quero estar nessa
política de parir o loiro preto, FN: Silvio, uma outra dúvida.
quero miscigenar”. Abandonei Nesse período em que você
essa história de gueto judeu. trabalhou em cargos públicos
você continuou lecionando na
Eu tenho em mim sangue judeu, PUC-Rio?
a cultura judaica me encanta,
adoro sua comida, seus escritores, ST: Sempre. Lecionei durante
seu humanismo; admiro sua 41 anos. Em alguns momentos,

17
quando fui morar em Brasília por político na Secretaria de Cultura
exemplo, tive que me licenciar porque nossos amigos do PT de
da PUC. Mas quando estava no Brasília não eram fáceis. A história
Rio de Janeiro, na Fundação Rio, se repetiu, falei para o Cristovam:
por exemplo, continuei. Fui diretor “Vou sair porque estou te atrapa-
de Arte e Cultura da Fundação lhando mais do que ajudando”.
Rio quando o Partido Comunista Fui para a UNESCO, encarregado
assumiu. Eu nunca fui do partido, da parte do audiovisual para o
nem filiado, mas eu era muito Brasil no Mercosul. Assim comecei
amigo deles. Eu fiz seu primeiro a preparar minha volta para o
programa nacional, a primeira cinema. Desde 1998 estou nessa
vez que tocou A Internacional vida de cineasta, que é muito
na televisão em cadeia nacio- boa.
nal, no horário nobre. Era o che-
fe de figuras como Modesto da A PUC-Rio mudou com a nova
Silveira, um superadvogado, Mo- direção. Em 2018 ela teve uma
acir Félix, grande poeta. Depois, reformulação. O meu grupo
em 1992 fui diretor do Castelinho político, que administrou por
do Flamengo, uma videoteca 41 anos o Departamento de
criada no Rio de Janeiro. Fiquei Comunicação, começou a se
lá por 6 meses. Vi que era uma aposentar. Nós temos uma parcela
embromação, não ia acontecer grande de responsabilidade. Eu
nada, não iam comprar os equi- digo nós, porque eu me incluo
pamentos. Então, procurei a Se- nesse grupo. Nós fizemos as
cretaria de Cultura e disse: “Fui piores escolhas na sucessão.
convidado para dirigir uma vi- Construímos mal. Assumiram
deoteca e descobri que sou ca- pessoas que nós tínhamos muito
seiro numa mansão na praia do respeito, mas que se revelaram
Flamengo”. Pedi demissão. Em horrorosas, desmantelando o
1995, fui dirigir a TV Brasília, mas Departamento. Acabaram com
descobri que era um negócio o Curso de Cinema. O curso hoje
meio esquisito. Pedi demissão. Na é um curso de mídias, sei lá o
época, um amigo me disse: “Silvio, que… Demitiram os professores
você ao sair de um emprego mais antigos. Estão colocando
tem que ter outro em vista, caso os amigos. Como eu era um dos
contrário vão sempre te humilhar. mais antigos, fiz um acordo. Eles
Vão dizer que o Silvio se fodeu”. davam sopão para quem pedia
Daí, eu virei secretário de Cultura demissão, eu saí com meu sopão.
de Brasília durante o governo E estou aqui fazendo as coisas
de Cristovam Buarque. Mas, eu que eu quero, vários filmes. E aí
estava vivendo um massacre veio a pandemia.

18
Nós estávamos fazendo Chico faz assim, ou não faz. O que vocês
Mário, Arte Urbana, estávamos preferem?”. Preferiram fazer…
começando a produzir A Bolsa (risadas). Disse: “Vamos descobrir
ou a Vida. Ainda não havia o como recuperar esse material.”.
COVID-19 quando começamos Começamos a fazer as entrevistas.
com essa discussão, que mais do Não só a metodologia deu certo
que nunca precisa ser debatida. como muita gente começou a
E também tem o filme sobre o trabalhar assim também. Virou
SINPRO. Em dezembro, não tínha- uma estética nova. Eu criei meu
mos conhecimento do COVID-19, pensamento, não sei se é original,
só fomos saber dele oficialmente não sei se outros devem ter
em março. Em dezembro de 2019, pensado a mesma coisa. A arte
eu almocei com a presidente é fruto da técnica, da estética
da Fiocruz e combinamos que e da ética do tempo que ela é
faríamos um filme sobre o SUS. produzida. Hoje você tem uma
Estávamos com tudo acertado ética que te leva para um certo
quando a pandemia começou. tipo de reflexão. Você trabalha a
Falamos: “Agora é o momento”. temática movido por essa ética.
Você usa a técnica que é possível,
A equipe que trabalha comigo que existe. No cinema silencioso
agora é maravilhosa, mas meio você não conseguia fazer cinema
careta. Filme de estúdio tem que ter sonoro. Hoje, você pode fazer
cromaqui e etc… Questionaram- filmes sonoros ou silenciosos. Você
-me: “Como vamos fazer? Não tem as duas técnicas que lhe são
podemos sair para filmar…”. Nesse oferecidas. Você pode fazer cor
instante, preparei um coquetel - ou preto e branco. Não podemos
uma porção de Chris Marker com fazer filmagens externas, porque
dois dedinhos de Milton Santos, estamos respeitando o confina-
que disse: “Com pequenos mento. Há alguns malucos que
objetos se fazem grandes coisas”. estão ousando, é um direito deles.
Eu filmei Milton Santos com uma Toda a minha produtora está
câmera barata, uma Panasonic, em home office. Então, estamos
que foi indicação de Chris Marker. usando a técnica que nos é
O Chris Marker inventou a imagem possível, no caso, a videocon-
negra no cinema, foi o primeiro a ferência. Compramos StopShot.
filmar em vídeo. Juntei tudo isso, Estamos captando imagens da
sacolejei e disse: “Vamos filmar internet, para depois entrarmos
por vídeo conferência”. Ai meus em contato com os detentores
preclaros colegas disseram: dos direitos. Continuamos com o
“Véio, se tá louco? Você vai fazer trabalho, fazendo essa série de
merda.” Aí eu disse: “Ou a gente filmes que eu te falei.

19
Entrevistei uma artista trans- Gloria Seddon, José Carlos Sebe
gênero que conheci no Festival Bom Meihy e Simone Rodrigues
de Brasília. Ela topou participar, (7). O debate é tão bom quanto
ser entrevistada, apresentou seu o filme. Ele traz o filme para a
cirurgião plástico, que a está atualidade. Porque eu fiquei com
modificando. Então, vou fazer um medo do Zéfiro ser superado.
filme sobre um tema que é um Ser uma coisa de época. E eles
novo aprendizado. E agora, estou disseram que não, ele é impor-
com esse pessoal da Rocinha, tante hoje. Estamos vivendo esse
trabalhando com novas estéticas negacionismo. O Zéfiro continua
colaborativas, abarcativas entre revolucionário. E o Jango também.
os Estados Gerais da Cultura, Estamos vendo a confusão com
a Escola Superior da Paz, o a China. Vale lembrar que Jango
Cineclube Muiraquitã, o Cineclube foi o primeiro político ocidental
Macunaíma. É a vida que segue. a ir para a China. Eu não estou
falando da América do Sul. Estou
FN: Como está o seu arquivo falando do mundo ocidental. O
pessoal? O material que você me mundo era fechado para a China.
mandou do processo está bem A China só tinha relações com
interessante. Sei que a partir dele União Soviética, bloco socialista
conseguirei escrever sobre seu e com Jango, vice-presidente do
processo de criação. Brasil, que foi visitar a China (8). Tá
lá o aperto de mão dele com Mao
ST: A Elianne Barroso fez um Tsé-Tung. Ninguém me rouba essa
trabalho bem interessante para cena (risadas)...
a Revista Alceu. Ela partiu de
algumas fotografias. Vou te NOTAS:
mandar o artigo do Rodrigo (1) Estados Gerais da Cultura é
Fonseca. Ele fez uma entrevista um movimento encabeçado por
comigo sobre o filme Em Busca Silvio Tendler em defesa daarte e
de Carlos Zéfiro. Nela, digo que da cultura. O lema do movimento
estou migrando da história para a é: com arte, ciência e paciência
memória. Você viu o debate sobre mudaremos o mundo. O Estados
Zéfiro ontem no canal do Youtube Gerais da Cultura nasceu com a
do Cineclube da ABI? pandemia, após um chamamento
virtual no qual Tendler reuniu
Foi maravilhoso. Entra no canal artistas, intelectuais e profissionais
do Youtube da ABI. Lá está que acreditam na arte e na
o debate sobre o Zéfiro, com cultura como forma de resistência
Ricardo Cota representando o às medidas de destruição do
cineclube da ABI, Juca Kfouri, governo Bolsonaro, que investe

20
contra instituições, programas, tenham sido assassinados pela
incentivos que têm o objetivo de Operação Condor. Importante
reforçar a identidade artístico- destacar também que, apesar de
-cultural de nosso povo. ainda estamos na ditatura militar,
o início dos anos 1980 é marcado
(2) A Idade da Terra foi lançando pela “abertura política”; por isso,
em DVD pela Versátil Home justamente, Tendler pôde fazer JK
Vídeo em 2008. O DVD segue o e em seguida Jango.
conceito original proposto por
Glauber Rocha; ou seja, cada um (6) Comandante do Destacamento
dos 16 rolos é exibido em ordem Tiradentes em Minas Gerais, foi
aleatória. O espectador, com isso, não apenas um general golpista,
toda vez que assistir ao filme terá mas na cúpula militar um perso-
uma abertura e um final diferentes. nagem chave para que fosse bem
sucedida a articulação que deu
(3) No momento em que a o golpe em 1964 e implantou a
entrevista foi realizada, havia ditadura no Brasil.
morrido 211 mil pessoas no Brasil.
No momento em que ela está (7) Link para o debate https://
sendo editada, 585 mil pessoas www.youtube.com/watch?v=UH-
já morreram. Número que, infeliz- 8dHEKqB1k
mente, deverá ser maior quando
você estiver lendo esta entrevista. (8) Aqui Tendler não leva em
conta a tensão entre o regime
(4) Compositor e violinista, Chico de Moscou e a China comunista
Mário (1948-1988) foi o irmão justamente no momento da visita
menos conhecido do cartunista de Jango, em 1961. Em 1960, Mao
Henfil e do sociólogo Betinho. Tsé-Tung rompeu alinhamento
ideológico com a União Soviética
(5) Vale destacar que antes de e, dos países do bloco comunista
Jango Tendler havia feito Anos JK, no auge da Guerra Fria, a China
produzido pela Terra Filmes, de só tinha como aliado a Albânia.
Hélio Ferraz. Tanto quanto Jango,
a imagem de Juscelino não era
de agrado dos militares. Ambos,
ao lado do conservador Carlos
Lacerda, criaram em 1966 a Frente
Ampla, grupo contrário à ditadura.
Dez anos depois, os três morreram
num curto intervalo de tempo
e até hoje há suspeitas de que

21
Ensaio visual: Fabiola Notari
Silvio Tendler, visto
por outros, comentado
por ele mesmo
José Carlos Sebe Bom Meihy
e Zilda Marcia Yokoi

José Carlos Sebe é professor aposentado do Departamento de História da USP, onde foi titular da ca-
deira de História Ibérica. É autor, entre outros, de A Guerra Civil Espanhola e A revolta da vacina, ambos
publicados pela Editora Ática.

Zilda Marcia Yokoi é professora titular de História da USP e atua na área de História da Relações dos
Movimentos Sociais. É autora de Igreja e Camponeses na América Latina: Teologia da Libertação e a
luta pela terra Brasil-Peru, publicado pela Hucitec.
Sim, é preciso falar de Silvio dos vencidos”. É como se eu me
Tender... Além de notável posicionasse sempre do lado
documentarista, trata-se de um dos mais fracos, dos traídos, dos
ser humano digno de destaque. humilhados... Isso é verdadeiro,
Amigos e conhecidos sempre mas até certo ponto, pois veja
ressaltam entre suas qualidades que, no referente ao papel dos
o senso crítico, o humor picante, vencidos políticos que eu abordo,
a disposição para o trabalho. os resultados foram se fazendo ao
Entre outros aspectos, seus filmes sabor do tempo, e das possibili-
marcam a cena cultural brasileira, dades... Eu nunca consegui criar
com extensões mais amplas. A um nexo causal muito consistente
profícua lista de filmes o distingue unindo os meus filmes... Entre o JK
pela variedade temática e pela e o Jango (1) há sim, um elo, mas
clareza do posicionamento é mais fortuito do que se supõe...
político que atravessa mais de Aparente porque no meio, entre
70 títulos. Tal produção tem lhe um e outro, aconteceu O Mundo
valido títulos que se constituem Mágico dos Trapalhões, lançado
no recorte seguinte. Como parte em 1981, e, em seguida, depois,
de um projeto amplo, resultado fiz o Glauber, e, ainda, produzi
no Silvio Tendler, Catálogo uma série independente com o
(in)disciplinado, o fragmento Marighella, o Castro Alves, o Milton
da entrevista contida nessa Santos (2)... Veja que o fio comum,
publicação da Editora Lacre, Rio o tal nexo, se orienta no fato de
de Janeiro, revela o diálogo entre tratar do gênero documentário
ele e Zilda Yokoi e José Carlos .
Sebe Bom Meihy em setembro de Sabe, para ser muito franco,
2020. eu pouco me importo com o
resultado conjunto do cinema
EU COLECIONO DEFINIÇÕES: que vou fazendo... Sigo em
frente... E até digo mais: acho
Depois de tantos anos de não cabe a mim me explicar... Eu
trabalho e de tanta coisa que coleciono definições... Essa coisa
acontece com alguém que se do “cineasta dos vencidos”, por
mete a fazer filmes, a gente exemplo, se deu pela referência
acaba conhecido; conhecido feita por um colega amigo meu,
e rotulado... Eu tenho algumas o embaixador Arnaldo Carrilho,
referências que merecem consi- que sempre foi um apaixonado
derações; positivas umas, outras por cinema... Ele, aliás, conheceu
não. Creio que o jargão pelo o Glauber nos anos 60, foi lá em
qual sou mais referido é “cineasta Buraquinho na Bahia, onde ele es-

32
tava filmando Barravento, se ligou tempo, eu produzi o Privatizações:
no Cinema Novo e promoveu minha A Distopia do Capital (2014),
aventura no documentário sobre que é um filme que demonstra o
o Glauber... O Carrilho acabou processo retrogrado que o Brasil
fazendo carreira diplomática, foi começou a viver desde o primeiro
pro Itamaraty, mas manteve-se Fernando, o Collor de Melo, e que
apaixonado por cinema... Foi ele continuou no segundo Fernando,
que me definiu como “cineasta o Fernando Henrique, que
dos vencidos”. Imagine que principalmente depois de 1997
não satisfeito, considerando privatizou tudo o que conseguiu
minha obra, ele foi mais longe e pôr à venda... Diria, contudo, que
cunhou outra referência “cineasta a consciência pública da distopia
dos sonhos interrompidos...” veio mais tarde, quando o governo
Sinceramente, gosto mais desta da Dilma começou a sacolejar
menção porque permite uma liga em 2013... Foi nessa ocasião que
temática subjetiva, um nexo mais a gente percebeu que estava
lógico entre todos esses perso- perdendo tudo o que havia
nagens que eu trabalhei... Todos conseguido. Foi nesse momento
foram pessoas que não conse- que fui chamado o “cineasta da
guiram concluir seus projetos de distopia”. O filme foi lançado em
vida e de sonhos. Não foi assim 2014...
com o JK, com o Glauber, com
o Jango? O JK, Jango, Glauber Soube que também me chamam
são personagens que terminaram de “trotskista do escurinho...” Eu
a vida sem concluir os projetos não sou trotskista e pra falar a
de vida deles, o mesmo com o verdade devo dizer que tenho
Marighella. Sabe, gosto mais simpatia pelo Trotsky, mas
dessa definição dele: cineasta conheço pouco de sua obra. Eu
dos sonhos interrompidos. sinto certa afinidade pelo fato dele
ser um intelectual judeu, alguém
Tenho recebido também outros que se meteu na política, mas
“apelidos” ou “qualificativos” que que, pessoalmente, se saiu mal.
sempre me provocam... Um dos Foi preterido por Stalin, exilado e
mais intrigantes é “cineasta da acabou morto por um fanático,
distopia” que, acho, é o mais no México... Sinceramente, gosto
recente... Acredito que a causa mais do Lev Davidovich Bronstein,
desta referência se deu devido do tipo humano que pagou pelos
ao documentário que fiz sobre seus sonhos, que do personagem
o processo das privatizações revolucionário histórico. Mas
iniciadas com o Fernando também não é simplesmente pelo
Henrique Cardoso... Por esse fato dele ter sido exilado e vítima

33
de perseguição que o distingo... disso. Sou muito pautado pelo
O exílio não significa necessaria- humanismo judaico...
mente que ele fosse melhor que
o Stalin, pois ambos sustentaram Pois é: tem gente que me chama
uma briga louca pelo poder... Na de “Michael Moore dos trópicos...”
verdade, quando se deram os Michael Moore tropical, pode?!...
desentendimentos entre Stalin Olha, diria para este frasista que
e Trotsky, a fase heroica da luta o Michael Moore é que é o Sílvio
socialista já havia terminado e Tendler das Américas. Veja, como
com ela rodou o orgasmo da documentarista eu vim antes dele.
história, a utopia da revolução. Os meus filmes JK e o Jango são
De certa forma tudo se resumia à anteriores ao Roger and Me, que,
luta pelo poder... Acho que nesse afinal, o Michael Moore fez depois
segundo momento da Revolução (3). Eu dei uma sorte histórica por
Soviética as coisas já estavam ter nascido em 1950, ele é mais
meio que perdidas, muitas criança, nascido em 1954. E tem
propostas já tinham dado errado. mais, ele começou a fazer cinema
Para ser franco, não acho que ao depois de mim. E desconfio que
fim Trotsky tenha sido tão melhor tem um cara, um cidadão que
que o Stalin, não. Trotsky foi vítima ajudou muito ele a fazer o Roger
do Stalin, do stalinismo que, afinal and Me, um sujeito chamado,
sempre foi uma figura abjeta, mas acho, Pierce – até parece que é
que historicamente também tem primo do Bush, e que depois de
sua grandeza. ver Jango, passou a ideia para
ele. Então eu não tenho certeza,
Faço esta consideração mas mantenho minhas dúvidas se
pensando no frasista que ele não teria assistido Jango...
me chama de “trotskista do
escurinho...” Na verdade dá Então, eu digo que Michael
vontade de rir porque isso mostra Moore é o Sílvio Tendler da
como o autor me conhece América... Se eu tenho uma
mal... Eu não sou nem trotskista, definição de mim mesmo?
nem stalinista, eu não sei se eu Deixe-me ver... Definições de
sou marxista, porque eu tenho mim?!... Acho que me classificaria
muito pouca leitura de Marx. Eu, como Anarco-Castrista-
digamos, não sou um teórico... Eu -Marqueliano... Anarco porque
sou uma pessoa que politicamente sou mesmo meio anarquista;
está no lado das esquerdas, que Castrista porque eu mantenho
se posiciona no campo do socia- simpatia pela Revolução Cubana,
lismo... Defendo ideias socialistas, e, Marqueliano porque elegi
sim, tenho uma convicção Markel meu guru... Deixe-me

34
explicar porque Markel... Carrego (2) Glauber o Filme - Labirinto do
uma posição muito tendenciosa, Brasil (2003), 110 min.; Marighella
algo que esteve e está instalado - Retrato Falado do Guerrilheiro
em mim. Sempre, sempre, me (2001), 44 min.; Castro Alves -
coloco do lado dos fracos... Isso Retrato Falado do Poeta (1999),
é inegável... Aprecio muito uma 110 min.; Milton Santos, pensador
história contada no filme Level Five do Brasil (2001), 55 min.
de Chris Marker, lançado em 1997.
Trata-se de uma personagem que (3) Roger e Eu (1989), Michael
me faz a cabeça, uma certa moça Moore, 91 min.
chamada Laura que se propõe
fazer um jogo de computador, REFERÊNCIA:
sobre a Batalha de Okinawa, na MEIHY, José Carlos Sebe Bom
Segunda Guerra. Ela buscava Meihy. Catálogo (in)disciplinado.
informações por meio de entre- Rio de Janeiro: Editora Lacre, 2020.
vistas com testemunhas, fato que
a faz pensar profundamente no
sentido pessoal das memórias e,
mais que isto, das perguntas para
ativar a memória... Sabe, podem
dizer o que for sobre minha figura,
mas mais que tudo, gostaria que
fosse conhecido como alguém
que teve utopias... Quis trans-
formar o mundo. Tentei bastante
e se deixar o sonho vivo já está
de bom tamanho. Que tal se
me chamarem apenas de Silvio
Tendler, o cineasta que cultivou
a solidariedade... Solidariedade,
condição que me move muito
mais do que a ideologia. Com
solidariedade o mundo não seria
o que é.

NOTAS:
(1) Os Anos JK – Uma Trajetória
Política (1980), 110 min; Jango
(1984), 117 min.

35
Silvio Tendler,
um caso de sucesso
de bilheteria
Teresa Noll Trindade

Teresa Noll Trindade é doutora e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Multimeios da UNICAMP,
com pesquisa sobre o mercado do documentário no Brasil e na França. É autora do livro Documentário
e mercado no Brasil: da produção à sala de cinema.
Eu sou fã incondicional do documentário. Eu acho que o
documentário é a memória viva sempre. Ele não morre. Ele é
imperecível

(Silvio Tendler)

Silvio Tendler pode ser consi- Nos anos 1980, o Brasil vivia
derado um dos grandes nomes a última etapa de uma longa e
do documentário. Reconhecido truculenta ditadura civil-militar,
e premiado, vem realizando um que teve início com o golpe em
conjunto de produções políticas 1964 e terminou em 1985. Durante
e sociais desde os anos 1970 até esse período, uma das funções
os dias atuais. Este artigo busca do cinema nacional era ser
analisar três filmes realizados por um instrumento de educação,
ele na década de 1980: Os anos estratégico para a integração
JK – Uma trajetória política (1980); nacional, e que portanto deveria
O mundo mágico dos trapalhões ser mantido e protegido frente
(1981); e Jango – Como, quando ao cinema norte-americano.
e por que se derruba um presi- Nessa perspectiva nasceu a
dente (1984). As três obras seguem
Empresa Brasileira de Filmes
até hoje as maiores bilheterias em
(Embrafilme): seguindo a lógica
sala de cinema do documentário
de “desenvolvimentismo cine-
nacional, com 800 mil, 1,8 milhão
matográfico”, buscando um
e 1 milhão de espectadores (1),
cinema de proporções industriais,
respectivamente – bem superior
aos sucessos de público das possibilitando a coprodução
décadas posteriores: Vinícius com empresas estrangeiras e
(2005), com 272 mil espectadores; exercendo algum controle sobre
Todos os corações do mundo a entrada dos filmes estrangeiros
(1996), com 265 mil; e Pelé Eterno no país (RAMOS, 1983, p. 53). Ela
(2004), com 258 mil, aproxima- buscava distribuir e promover
damente (2). Para que possamos os filmes fora do Brasil, e
compreender em que contexto desempenhou um papel político
esses três documentários foram e econômico na atividade
produzidos, distribuídos e exibidos, cinematográfica, procurando
é essencial situá-los no ambiente fortalecê-la e regulá-la.
político da época.

37
Entre os anos de 1970 e 1980, a Trapalhões contou ainda com as
Embrafilme viveu um período prós- empresas UCB (União Cinemato-
pero sob a gestão do cineasta gráfica Brasileira) e Cinematográ-
Roberto Farias. Foi um momento fica Haway.
em que a empresa passou a
comandar os três pilares da O primeiro longa-metragem
indústria (produção, distribuição e analisado, Os anos JK – Uma
exibição), e que o público voltou trajetória política, apresenta a
às salas de cinema para assistir vida política de Juscelino
a filmes nacionais – o Brasil Kubitschek, desde os tempos em
chegou a alcançar até 36% do que era telegrafista auxiliar,
seu mercado (AUTRAN, 2004, p. 9). passando pelos cargos de
deputado, prefeito, governador e
O Brasil dos anos 1980 atravessou chegando à presidência do Brasil.
uma grande crise econômica, Com narração de Othon Bastos, o
decorrente do esgotamento filme conta com vídeos, fotografias
do modelo de desenvolvimento e áudios da época, assim como
implementado pelos militares, entrevistas. Descreve o
e viveu um cenário de aumento
desenvolvimento do governo de
da dívida externa, desemprego,
JK, alianças, feitos políticos, a
inflação e vulnerabilidade social.
construção de Brasília, viagens
Durante este período, a Embrafilme
internacionais em busca de
sofreu uma crise administrativa
recursos financeiros para seu
e orçamentária. Em contraste,
projeto desenvolvimentista, bem
dentro deste contexto desfa-
como as tentativas de golpe
vorável, havia uma espécie de
euforia diante da possibilidade de contra seu governo e as
eleições – mesmo que indiretas, negociações com movimentos
como resultado da campanha grevistas. A narrativa abrange
pelas Diretas Já em 1984 – a serem ainda o início do governo de João
realizadas pelo Colégio Eleitoral. Goulart, o golpe civil-militar de
1964, a cassação de JK, seu exílio
Foi nessa mesma década que e sua morte em um acidente de
Silvio Tendler ficou consagrado carro, que causou comoção
com os três documentários aqui nacional.
analisados. Todos foram distri-
buídos pela Embrafilme. JK o foi A produção do filme, primeiro
exclusivamente pela empresa; longa e estreia de Tendler no
Jango contou também com a cinema, foi realizada por Hélio
distribuição da recém-criada Paulo Ferraz (3) com recursos
Caliban, produtora de Tendler; e próprios:

38
O regresso de Silvio Tendler montagem (6). O documentário
ao Brasil, em 1976, após um obteve vários prêmios, entre os
período de seis anos de exílio quais o Troféu Margarida de Prata
voluntário, foi viabilizado por – C.N.B.B. (1980); Melhor Montagem
Antônio Paulo Ferraz que lhe – Associação Paulista dos Críticos
ofereceu uma passagem em de Arte (1981); Prêmio São Saruê –
um navio cargueiro. Hélio F.C.C.R.J. (1981); e Prêmio de Quali-
Paulo Ferraz, irmão mais velho dade – Concine (1980).
de Antônio, já atuava como
produtor de cinema quando O filme vinha sendo exibido no
Tendler chegou ao Brasil e o cinema havia poucos dias, porém
procurou: ‘Chego pro Hélio sem angariar muito público,
e peço ajuda para fazer um sofrendo inclusive o risco de sair
filme. A gente senta, discute de cartaz. Contudo, um evento
e tal. E ele diz «por que você trágico mudou esse percurso.
não faz um filme, então, sobre Segundo Tendler (OLIVEIRA, 2018,
o Juscelino?» Mas ele disse pp. 167-168), após o atentado a
também: «Faz, mas não faz bomba que ocorreu na sede do
esses negócios papo cabeça. Conselho Federal da Ordem dos
Quero filme pra público». Ele Advogados do Brasil (OAB) em
me respeitou como autor e agosto de 1980, que resultou na
eu respeitei a vontade dele, morte da secretária Lyda Monteiro
claro. E fiz um filme de público’. da Silva, o filme passou a receber
(OLIVEIRA, 2018, p. 106). (4) uma atenção também como
uma obra de relevância política
para aquele momento, quando
Embora o filme não tenha obtido havia mobilização para o fim da
recursos de produção da Embra- ditadura civil-militar.
filme, quando este ficou pronto, o
então presidente da estatal, Celso É importante pontuar que o final
Amorim (5), aceitou distribuí-lo. desse período no país não foi
pacífico – uma série de atentados
Em 1980, JK foi exibido no Ciclo foram praticados pela linha dura
Perspectivas do Cinema Brasileiro, do Exército brasileiro, que se
mostra de cinema realizada no opunha a uma possível abertura
Museu de Arte de São Paulo (MASP), política. Além da carta-bomba
onde outros filmes inéditos foram da OAB, houve outros eventos,
apresentados, e na sequência como o atentado do Riocentro,
teve seu lançamento no 8o Festival que pretendia atingir um grupo
de Cinema Brasileiro de Gramado, muito maior de pessoas. O plano
onde recebeu o prêmio de melhor era explodir três bombas durante

39
um show onde se apresentavam Um ano após o lançamento de
artistas como Chico Buarque em JK, Tendler apresentou O mundo
comemoração ao dia do Trabalho, mágico dos trapalhões (1981), filme
e incriminar grupos ligados à que foi convidado pelo produtor
esquerda, dificultando a transição Paulo Aragão Neto a dirigir.
para a democracia. Contudo, Realizado pela Renato Aragão
o projeto fracassou: a bomba Produções Artísticas em come-
explodiu antes, no carro onde se moração aos quinze anos de
encontravam dois sargentos, um história do quarteto, foi seu maior
dos quais morreu. Este e outros sucesso de bilheteria: 1,8 milhão
atos demostraram que o governo de espectadores é até hoje o
de João Batista Figueiredo não maior público alcançado por um
conseguia controlar alas militares documentário nacional lançado
radicais contra a abertura política. em sala. O filme é narrado por
Tal ação resultou num enfraque- Chico Anysio e apresenta os
cimento do regime, na queda integrantes do grupo – Renato
do então chefe da Casa Civil, Aragão (Didi), Manfried Sant’Anna
general Golbery do Couto e Silva, (Dedé), Antônio Carlos (Mussum)
e por consequência numa mobili- e Mauro Faccio (Zacarias) – bem
zação social ainda mais forte pelo como momentos de seu cotidiano.
fim da ditadura – a qual se fez Através da obra, tomamos
presente na exibição do filme de contato com os bastidores das
Silvio Tendler. Todo esse processo gravações dos programas tele-
político pelo qual o país vinha visivos, filmes e apresentações
passando ajudou a impulsionar ao público. Imagens das sessões
a divulgação e a atrair cada vez de cinema lotadas, ou ainda dos
mais o público interessado. grandes públicos dos eventos
abertos, permitem dimensionar a
Atualmente, o documentário, grande popularidade do grupo.
disponível na plataforma Video- Conhecemos também um pouco
camp (7) e na página do YouTube da vida pregressa de cada um
da Caliban, permanece sendo dos integrantes, suas preferências
exibido em mostras e festivais de e referências humorísticas. São
cinema, assim como em eventos e incluídas algumas entrevistas na
discussões sobre a obra do diretor, narrativa, como a de Caetano
sobre o gênero documentário ou Veloso e Millôr Fernandes, além
sobre temáticas relacionadas da dos próprios Trapalhões – que
à ditadura e à história do país, abordam temáticas diversas,
o que mostra sua relevância e entre as quais racismo, precon-
permanente atualidade. ceitos e censura.

40
Os filmes dos Trapalhões eram […] não filme papo-cabeça.
todos produzidos pela Renato Elas não queriam saber da
Aragão Produções Artísticas, que história, não queriam saber
geria os negócios do grupo, como que o Zacarias é o Mauro
filmes, discos etc. Começaram a Faccio Gonçalves, ou que
ser lançados em meados dos anos o Renato tinha uma grande
1960 e se tornaram um fenômeno casa em Teresópolis que
nacional de público. O Rei e os ele comprou de uma família
Trapalhões (1980), por exemplo, nobre. (informação verbal).
fez cerca de 4,2 milhões de
espectadores, assim como Os Três Duas estratégias adotadas
Mosqueteiros Trapalhões (1980) e pela produtora dos Trapalhões
O Incrível Monstro Trapalhão (1981); ajudaram a estabelecer uma
Os Trapalhões na Serra Pelada cultura fílmica do grupo junto ao
(1982) levou aos cinemas 5 milhões público: lançar filmes com muita
de pessoas (8). As produções da frequência e em período de
trupe na época tinham tamanho férias escolares. Se analisarmos
êxito que Tendler avalia que seu seus lançamentos, veremos que
filme até fica aquém: havia dois por ano, normalmente
um em junho/julho e outro em
Os Trapalhões fizeram 1 milhão dezembro/janeiro, pensando
e 800 mil espectadores, mas em seu público-alvo – crianças
isso eu não atribuo nem a e adolescentes. Algo de que o
mim nem ao filme, eu atribuo documentário de Tendler também
aos próprios Trapalhões, se beneficiou, pois foi lançado em
que naquela época faziam julho de 1981. Fica claro que sua
5 milhões de espectadores. produção, portanto, mesmo com
Então na carreira deles, O o público abaixo das ficções da
Mundo Mágico do Trapalhões trupe, embarcou nesse cenário de
representa até uma queda. grandes bilheterias.
(informação verbal) (9).
Três anos depois do sucesso
Para Tendler, muitas pessoas do documentário sobre os
que iam assistir ao seu documen- Trapalhões, Silvio Tendler lançou
tário pensavam que veriam um Jango – Como, quando e por
filme dos Trapalhões, e não um que se derruba um presidente,
filme sobre os Trapalhões: que conta a história de João
Goulart, vice de JK de 1956 a
Ele foi lançado para crianças, 1961 e presidente do Brasil até
e as crianças queriam ver as 1964, quando foi deposto pelo
trapalhadas dos Trapalhões golpe civil-militar em 1o de abril.

41
Jango contou novamente com Jango nos apresenta a rápida
Paulo Hélio Ferraz na produção trajetória política de João Goulart
e com a recém-criada Caliban. até a presidência, passando pelos
Segundo o diretor, a produção foi cargos de deputado estadual,
complexa, uma vez que ninguém federal, secretário do Interior de
queria produzir este filme em Justiça do RS, presidente nacional
plena ditadura. do PTB e ministro do Trabalho de
Getúlio Vargas – figura central
O filme alcançou 1 milhão de para sua entrada na vida
espectadores, e seu financiamen- política. Narrada por José Wilker,
to teve quatro fontes diferentes: a obra nos apresenta não só a
além do produtor, familiares de vida política do ex-presidente,
Jango, um ex-ministro e amigo, e mas também seu lado familiar,
a equipe do filme: a figura de pai, de marido, de
fazendeiro, através de uma
Jango foi produzido através reunião de vídeos e fotos raras,
de quatro cotas de finan- um riquíssimo material de arquivo.
ciamento privado. […] Esse Essas imagens, somadas à trilha
montante foi dividido entre: sonora de Milton Nascimento,
a família Goulart, nas figuras conferem ao filme um caráter
de Denize Goulart, filha de mais dramático, se comparado
Jango, e de sua mãe, Maria a JK. O documentário se estende
Thereza; o advogado baiano até o golpe militar, que pôs fim à
Antônio Balbino de Carvalho carreira política de Jango. A fim de
Filho, que fora ministro nos dar voz às narrativas contrárias,
governos Getúlio Vargas (1951- Tendler também nos apresenta a
1954) e João Goulart (1961- versão da oposição ao governo,
1964); e o empresário industrial através de entrevistas de mili-
e produtor de cinema Hélio tares. No entanto, a perspectiva
Paulo Ferraz. A quarta cota dominante da obra é nostálgica:
de investimento do filme foi a sequência fílmica dos assassi-
bancada por toda a equipe natos – Che Guevara na Bolívia
técnica e artística, que em 1967; o estudante secunda-
aceitou trabalhar de graça ou rista Edson Luís de Lima Souto no
quase de graça (alguns rece- Rio de Janeiro em 1968; Carlos
beram uma parte em dinheiro, Marighella em São Paulo em 1969;
outros colocaram dinheiro do o anúncio do que ocorreria em 1973
próprio bolso) até o retorno da com Salvador Allende no Chile; a
bilheteria após o lançamento. Operação Condor e a posterior
(OLIVEIRA, 2018, pp. 97-98). morte de Jango no exílio em 1976

42
– deixa claro que essas mortes Como o Brasil é o Brasil, o meu
representam o aniquilamento de assistente que era boa praça,
uma época, não só no Brasil, onde morava na Tijuca, ofereceu
muitos sonhos por uma sociedade carona para uma censora que
mais justa vigoravam. também morava na Tijuca,
e daí eles foram no carro
Na época de seu lançamento, conversando. Aí ela falou para
Silvio Tendler pediu liberação ao ele: ‘Olha, meu amigo, bota
Serviço de Censura de Diversões a boca no trombone, senão
Públicas do Rio de Janeiro (SCDP/ vocês não vão liberar esse
SR/RJ) para passar seu filme no filme nunca. (TENDLER, infor-
Festival de Gramado, e para tanto mação verbal).
realizou uma sessão de Jango
para os censores. A projeção foi Poucos dias depois, Silvio Tendler
interrompida antes do fim pelos organizou uma exibição fechada
censores, que argumentaram para projetar Jango para a
que não autorizariam aquele imprensa – uma sessão que,
filme. Para os militares, a figura segundo ele, foi tensa. “Convidei
de João Goulart representava a toda a grande imprensa brasi-
mobilização social, o poder de leira, todo mundo estava dentro
integrar as massas em comícios daquela sala trancado para a
e greves, uma realidade que Polícia Federal não poder invadir,
deveria ser esquecida e apagada roubar as cópias, interromper.”
da história. Além do tema e do (informação verbal). Com a
personagem, a ocasião também exibição, a imprensa realizou
não era propícia para o regime: uma série de reportagens, que
naquele ano completava-se 20 aguçaram a curiosidade das
anos do golpe, e o lançamento pessoas e exerceram uma pressão
de um filme como aquele poderia pela liberação do filme. Jango
gerar ainda mais insatisfação recebeu espaço nos principais
com a situação política do país. jornais da época, entre eles Veja,
JB, Folha de S. Paulo e O Globo:
Logo após a exibição que
culminou na proibição do filme, No espaço de tempo de
o assistente de Tendler ofereceu três meses, de fevereiro a
uma carona para uma das abril de 1984, foram cerca
técnicas da censura, e nesta de dez artigos, trinta notas,
viagem ficou claro que o filme não vinte matérias (nem todas
seria liberado de forma habitual. exclusivas sobre o filme), cinco

43
críticas, quatro primeiras É pertinente pontuar que,
páginas de cadernos quando o filme foi lançado, o país
culturais, três chamadas vivia a fase final da ditadura e a
de capa dos jornais, cinco campanha das Diretas Já, que
entrevistas concedidas por ocorreu em 1984 e tomou as
Tendler, incluindo uma nas grandes capitais do país por meio
páginas amarelas da revista de comícios que, como no caso
Veja, e outra no suplemento de São Paulo, chegaram a reunir 1
dominical Folhetim, todo ele milhão de pessoas. Parte da
dedicado a um amplo debate população brasileira estava unida
sobre o governo do ex-presi- na luta pela volta da democracia
dente João Goulart, sobre o e pelo voto direto para presidente.
golpe, sobre o filme e sobre Este cenário, somado à figura
uma peça escrita por Glauber carismática do presidente João
Rocha sobre Jango. (OLIVEIRA, Goulart, que foi o último contato
2018, pp. 175-176). da população com a democracia,
contribuiu para o sucesso do filme
Diante dessa pressão, o filme – que foi inclusive intitulado o
foi liberado, e Tendler passou a “filme das Diretas” (10).
preocupar-se com a circulação
da obra. O diretor relatou que, ao Silvio Tendler avalia que havia
conversar na Embrafilme sobre a uma clara demanda pelo filme, e
distribuição de Jango, escutou o isso contribuiu para o seu sucesso.
seguinte: “Meu amigo, eu vou te Em relação à escolha dos perso-
dar um conselho de irmão: não nagens, ele é enfático em dizer
distribui esse filme não, pra você que são estes que o procuram:
não perder mais dinheiro além do
que você já perdeu na produção.” A minha ideia sempre foi fazer
(informação verbal). Apesar disso, cinema político, mas quem
Silvio Tendler, através da sua me escolheu foram sempre
empresa, que já havia sido criada os personagens, eu nunca
para a produção do filme, realizou escolhi nenhum personagem,
também a sua distribuição, eles que vieram atrás de
que posteriormente também mim, bateram na porta da
contou com a Embrafilme. O minha casa e falaram: ‘Seu
documentário foi lançado com 17 Silvio, o senhor precisa fazer
cópias, inicialmente em SP e no a minha biografia’. Foi assim
RJ, e depois nas demais capitais com JK, que foi uma decisão
do país, e recebeu o prêmio de com o produtor. Com Jango,
melhor filme do Júri Popular e eu soube que o Raul Ryff,
o Prêmio Especial do Júri no 12o que tinha sido assessor de
Festival de Cinema de Gramado. imprensa do Jango, tinha os

44
filmes do Jango na China e (1976) e em circunstâncias poste-
na URSS. Daí eu liguei para riormente questionadas pela
ele para saber sobre esse Comissão Nacional da Verdade,
material e ele […] me chamou causou comoção nacional.
para uma reunião e me falou:
‘Por que que tu não fazes um O mundo mágico dos Trapalhões
filme sobre o Jango?’ Eu falei pode ser analisado em outra
‘Eu adoraria, mas não vou chave, a do documentário que já
conseguir dinheiro’. […] Daí ele nasce num contexto favorável –
conseguiu, me apresentou os lançamentos de filmes anuais
a filha do Jango, amigo do e bem-sucedidos da trupe. Mas
Getúlio, daí já tínhamos 50%. esses fatores não diminuem a
Aí o Hélio Paulo e os técnicos importância desta obra enquanto
entraram. Foi um momento narrativa histórica de uma época,
épico da minha vida. (infor- que apresenta personagens
mação verbal). centrais na nossa cultura de
massa e que ali estão registrados
Jango e JK foram lançados para a história.
ainda durante a ditadura civil-
-militar, e portanto representam O alcance dessas três produções
um grito de liberdade. Esse grande é muito maior do que o público
público que foi às salas de cinema que foi vê-las no cinema, uma vez
neste período também foi a que elas seguem em circulação
população que ficou praticamente – e talvez seja essa uma das
vinte anos sob um regime opressor características do cinema de
e que talvez tenha visto nesses Tendler: ele é atual, traz reflexões
filmes um ato de resistência. importantes, e pode sempre ser
Assistir a essas obras no cinema revisto a fim de nos trazer maior
proporcionava uma reflexão sobre clareza sobre aspectos sociais
o que havia sido aquele país que e políticos de nosso país. Muito
viveu na democracia, sucumbiu à além da análise e da perspectiva
ditadura e foi silenciado por ela. de mercado dessas obras,
Ambos os documentários nasce- elas carregam uma dimensão
ram em momentos importantes acadêmica, uma vez que são
de mobilização política e social, filmes que trazem um riquíssimo
apresentando dois presidentes material didático complementar
que haviam sido eleitos democra- ao estudo de uma época crucial,
ticamente no mesmo breve em que o Brasil uniu democracia e
período de democracia que desenvolvimento econômico.
vivemos entre 1945 e 1964. Note-se
também que a morte dos dois
líderes, ocorrida no mesmo ano ***

45
Na década de 1980, os presidente Fernando Henrique
documentários nacionais eram Cardoso, ampliou-se a entrada
produzidos e circulavam em de produtos importados mais
cineclubes, em alguns canais de modernos que os nacionais, o que
TV, mas a exibição em sala era a acarretou um cenário adverso
exceção. Foi o momento em que a estes últimos. Não poderia ser
o Brasil passou por profundas diferente para o cinema e para
mudanças econômicas, com as salas de exibição brasileiras,
a abertura de mercado, e que se encontravam bastante
igualmente transformações degradadas, sem grande atrativo
políticas e sociais. Na década para um público que já se
seguinte, de 1990, a cultura, e mostrava cativo da televisão e do
especialmente o cinema nacional, videocassete. Os documentários
foi profundamente atingida pelas continuaram a ser produzidos,
novas medidas governamentais porém perderam quase comple-
de Collor, que mergulharam a tamente o espaço em salas de
indústria cinematográfica num cinema – algo que seria retomado
processo de decadência que só somente a partir dos anos 2000.
seria superado anos mais tarde
com a chamada Retomada do Com o Plano Real e a estabiliza-
cinema brasileiro. ção da economia brasileira, a
renda da população brasileira
Não bastasse a concorrência aumentou consideravelmente e
dos programas de televisão, as salas de cinema voltaram a ter
com a abertura democrática público. Ao mesmo tempo, o
do regime militar, liberaram- mercado exibidor norte-america-
-se os filmes pornográficos. no buscava novos espaços para
Os exibidores se viram diante seus produtos, uma vez que já
de um fenômeno de grandes tinham atingido seu limite no
bilheterias e não tiveram a mercado interno. Progressivamente
mínima condescendência em um novo modelo de salas chegava
transformar antigos ‘palácios no Brasil: as salas multiplex.
de cinema’ que, neste Trazidas através de empresas
momento, estavam vazios, em norte-americanas, tratava-se de
salas pornográficas. (LUCA, espaços que dispunham de uma
2010, p. 58). tecnologia de ponta em relação
ao que existia no parque exibidor
Com a abertura econômica e brasileiro. Conforme esse modelo
com a lógica da competitividade foi crescendo dentro de shopping
e do livre mercado, vigentes no centers, progressivamente os
governo Collor e mantidas pelo cinemas de rua foram perdendo

46
espaço e ficando cada vez mais infância, em 1962, por aí, foi
abandonados, impossibilitados que o Roberto Farias lançou
de concorrer com este mercado O Assalto ao trem pagador,
tecnológico. A consequência que é um dos primeiros clás-
disso tudo foi uma mudança no sicos brasileiros. (informação
circuito exibidor brasileiro: agora verbal).
dentro de shoppings e com um
ingresso mais caro, esta atividade A maior parte dos filmes lançados
cultural passou a ser consumida em shoppings valorizam o sucesso
principalmente pelas classes A e no menor tempo de exposição
B. Nesse contexto, vigente até possível, o que acaba por bene-
hoje, a distribuição e exibição de ficiar aquelas produções que têm
produções independentes em condições econômicas para fazer
sala tem sido cada vez mais rara. muitas cópias para lançamentos
Some-se a isso o último ano e simultâneos. O resultado disso é
meio de pandemia, em que boa encontrarmos os mesmos filmes
parte das salas esteve fechada, e em diferentes cinemas, e aquelas
tem-se uma concorrência ainda produções com um lançamento
mais acirrada por esta janela. menor de cópias têm dificuldade
Essa mudança é clara na análise de encontrar espaço.
de Silvio Tendler:
Nos anos 90, quando o cinema
Uma coisa era você passear é sequestrado pelo shopping,
no centro do Rio de Janeiro, ir o espaço do cinema papo-
na Cinelândia e, entre tantas -cabeça vai sendo ocupado.
salas de cinema, você tinha Então você hoje vai a um
uma diversidade que te era shopping mais para comer
oferecida. Os bairros também, pipoca e tomar Coca-cola
as cidades do interior tinham do que para ver o filme. Se
sala de cinema. Eu passei a você entra no shopping para
minha infância e adolescência comprar roupa de marca,
passando férias em Teresópo- tênis de marca, comer fast-
lis, que era uma cidadezinha -food, o que que te levaria
pequena que tinha cinco a ver um filme como Jango
cinemas com troca de filmes e JK? Nada! Então esse
duas vezes por semana. espaço do cinema político foi
Então você tinha uma oferta sequestrado. […] Essas minhas
de mais ou menos dez três maiores bilheterias, elas
filmes por semana, de tudo, correspondem ao apogeu do
romântico e tal, e também cinema democrático, em que
em alguns momentos filmes você tem cinema para todos
papo-cabeça. Nessa minha os gostos. (informação verbal).

47
Segundo dados do Anuário longas-metragens. Hoje acumula
Estatístico do Cinema Brasileiro mais de 80 produções, das quais
de 2019 do Observatório Brasileiro podemos destacar filmes como
do Cinema e do Audiovisual Glauber – o filme, labirinto do
(OCA), 88% das salas de cinema Brasil (2003); Encontro com Milton
se localizam em shopping centers, Santos: o mundo global visto do
e apenas 12% delas poderiam ser lado de cá (2006); Utopia e barbárie
consideradas cinemas de rua. (2009); e Tancredo, a travessia
Há uma evidente mudança em (2011). Suas produções vão muito
relação ao cenário em que Silvio além do restrito espaço destinado
Tendler lançou seus três docu- aos documentários na sala de
mentários. O público consumidor cinema; elas circulam em canais
de cinema também mudou: ele de televisão, mostras, festivais,
agora se vê associado a um novo cineclubes, universidades, sindi-
conjunto de gastos que estão catos e escolas, além de estarem
envolvidos nessa combinação em sua maioria disponíveis no
cinema e consumo, a qual canal do YouTube da Caliban.
envolve a prática cultural de ir ao
cinema no shopping. Isso se ilustra Silvio Tendler, cujos filmes ajudam
claramente nas palavras de Anita a entendermos nossa realidade
Simis: social e política, acredita que
suas produções devem atingir
O cinema deixou de ser um aqueles que estão interessados
entretenimento de massa e se em vê-las, e que devem portanto
tornou um entretenimento de estar disponíveis gratuitamente.
uma classe social com poder Para ele, suas obras não existem
aquisitivo capaz de pagar o se não forem vistas. “Meu filme
bilhete de entrada acrescido existe no teu olhar. Se você não
de todo o consumo ao seu assistir ao meu filme, meu filme
redor, desde os alimentos ofe- não existe. Então tá tudo liberado,
recidos pela própria sala, até a arte é livre”. (informação verbal).
ao que está nas vitrines das
lojas que estão no percurso Através dessa difusão gratuita,
até se chegar à sala. (SIMIS, Tendler também acompanha
2015, pp. 70-71). as visualizações que suas obras
obtêm. Além de estarem no canal
Desde os seus grandes sucessos de sua produtora, documentários
de público dos anos 1980, Tendler como O Veneno está na Mesa –
manteve sua produção quase que aborda os riscos da mono-
anual de filmes, séries e vídeos cultura e do consumo dos agrotó-
institucionais, curtas, médias ou xicos no país – são republicadas

48
por outros canais, o que amplia NOTAS:
seu alcance. Outra produção, 1 Dados da Caliban Produções
Privatizações: a distopia do Cinematográficas, produtora de
Capital – que analisa as priva- cinema criada em 1981 por Silvio
tizações e o neoliberalismo – só Tendler, que produz e distribui boa
na página da Caliban teve mais parte das suas produções, além
de 300 mil visualizações. Assim, o de possuir um grande acervo
diretor pode monitorar o interesse audiovisual de registros históricos,
pelos seus filmes e temáticas. com cerca de 80 mil títulos,
Portanto, existe uma preocupação segundo a empresa.
com a difusão da obra e de tornar
esse acesso o mais livre possível. 2 Dados do Observatório Brasi-
leiro do Cinema e do Audiovisual
Atualmente, com as incertezas – OCA.
do futuro pós-pandemia so-
mando-se à crise no setor do 3 “Hélio Paulo Ferraz nasceu no Rio
audiovisual no país, Tendler segue de Janeiro, em 1946. Graduou-se
religiosamente seus projetos, em Direito pela PUC – Rio. Foi
buscando construir novas presidente e vice-presidente de
estratégias de produção, sempre empresas e associações ligadas
tendo em mente o documentário à indústria naval brasileira. É filho
político como meta: “Eu entendo do armador Paulo Ferraz, dono
essa lógica de mercado, entendo do Estaleiro Mauá e de uma das
esse neoliberalismo e construo maiores fortunas do Brasil, nos
outras estratégias. Então por anos 1970 e início dos 1980. É neto
exemplo, eu vou fazer filmes de do historiador Hélio Silva. No início
forma colaborativa e difusão da década de 1980, atuou como
gratuita via YouTube […] eu vou vice-presidente do Estaleiro Mauá,
por um outro caminho, eu vou mas mantinha atividade paralela
fazer cinema vinculado as lutas como produtor de cinema desde
sociais e aos movimentos sociais.” meados dos anos 1970. Ao lado de
(informação verbal). seu irmão, o ator e diretor de tea-
tro e cinema Buza Ferraz (Alberto
Em um país sem memória, Paulo Ferraz), Hélio Paulo Ferraz
em que museus pegam fogo, foi responsável pela realização
arquivos desaparecem, corpos de diversos filmes, tais como: Vai
são ocultados, o cinema de Silvio trabalhar, vagabundo (1973) e Se
Tendler se torna mais do que Segura, Malandro (1978), ambos
urgente; ele é nossa memória viva dirigidos por Hugo Carvana;
da história. Marília e Marina (Luiz Fernando

49
Goulart, 1976); Briga de Galos (Luiz 9 Em entrevista concedida à
Carlos Lacerda, 1978); Chuvas de autora por videoconferência em
Verão (1978) e Xica da Silva (1976), junho de 2021.
ambos dirigidos por Carlos (Cacá)
Diegues; Os 7 Gatinhos (1980) e 10 “E Jango, nesse momento ímpar
Rio Babilônia (1982), dirigidos por da história política brasileira, em
Neville d’Almeida; Gabriela (Bruno meio a uma mobilização popular
Barreto, 1983); e Os anos JK (1980) de grandes proporções, consi-
e Jango (1984), de Silvio Tendler.” derada por muitos como a maior
(OLIVEIRA, 2018, p. 98). da história do Brasil, passou a ser
chamado de ‘o filme das Diretas’
4 A fala de Silvio Tendler é retirada (FOLHA DE S. PAULO, 26 mar.
de BROOKEY, M. P. História e uto- 1984. Caderno Ilustrada, p. 28).”
(OLIVEIRA, 2018, p. 144).
pia: o cinema de Silvio Tendler. Rio
de Janeiro: Multifoco, 2010, p. 66.
BIBLIOGRAFIA:
AMANCIO, Tunico. Artes e manhas
5 O diplomata Celso Amorim
da Embrafilme: cinema estatal
foi diretor-geral da Embrafilme,
brasileiro em sua época de ouro
entre 1979 e 1982. Posteriormente (1977-1981). Niterói: EdUFF, 2011.
assumiu os postos de Ministro das
Relações Exteriores e Ministro da AUTRAN, Arthur. O Pensamen-
Defesa nos governo de Luiz Inácio to Industrial Cinematográfico
Lula da Silva e Dilma Rousseff. Brasileiro. 2004. Tese (Doutorado
Brasileiro
em Multimeios) – Instituto de
6 Os montadores do filme são Artes, Universidade Estadual de
Gilberto Santeiro e Francisco Campinas, Campinas, 2004.
Sérgio Moreira.
LUCA, Luiz Gonzaga Assis de.
7 Videocamp é uma plataforma Mercado exibidor brasileiro:
online e gratuita que possibilita do monopólio ao pluripólio.
exibições públicas de produções In: MELEIRO, Alessandra (Org.).
audiovisuais que podem ser Cinema e mercado.
mercado São Paulo:
realizadas por qualquer pessoa, Escrituras, 2010, pp. 53-73.
o que amplia a formação de
público e auxilia na estratégia OLIVEIRA, Geórgia. Jango (Silvio
de lançamento e divulgação dos Tendler, 1984):
1984) um documentário
filmes. que fez história. Dissertação (Mes-
trado em História) – Faculdade de
8 Dados do Observatório Brasileiro Filosofia e Ciências, Universidade
do Cinema e do Audiovisual Federal de Minas Gerais, Belo
– OCA. Horizonte, 2018.

50
RAMOS, José Mário Ortiz. Cinema,
Estado e lutas culturais:
culturais Anos 50 /
60 / 70. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1983.

SIMIS, Anita. Economia Política do


Cinema: a exibição cinematográ-
fica na Argentina, Brasil e México.
Versión. Estudios de Comunicación
Versión
y Política, v. 36, pp. 54-75, mayo/
oct. 2015.

TRINDADE, Teresa Noll. Docu-


mentário e mercado no Brasil:
Brasil da
produção à sala de cinema. São
Paulo, Alameda, 2014.

51
Os nexos causais e o
Marighella de Tendler
Ivonete Pinto
Ivonete Pinto é jornalista, doutora pela ECA-USP; presidente da Abraccine
(gestão 2019-2021) professora no curso de Cinema UFPel; coeditora da revista
Teorema, colaboradora do site CinemaEscrito; é autora dos livros A Mediocri-
dade, Descobrindo o Irã, Samovar nos Trópicos e Cinemas Periféricos – estéti-
cas e contextos não hegemônicos; coorganizadora de Bernardet 80: Impacto
e Influência no Cinema Brasileiro e Ismail Xavier – um Pensador do Cinema
Brasileiro.

Martin Heidegger em Ser e Tendler pensa o Brasil. Mesmo


Tempo (2005) faz uma busca em Utopia e Barbárie (2009),
pelo sentido do ser e nela diz no qual enquadrou episódios
que o cuidado é da essência históricos do mundo quanto a um
do existir. O que nos coloca projeto socialista, o Brasil é sua
em uma perspectiva ética em linha de partida e de chegada.
relação a uma responsabilidade Em Marighella - Retrato Falado
de preservação da história, que do Guerrilheiro (2011), não fez
pode ser lida como um cuidado diferente. Nele, o documentarista
para com a humanidade, para se ocupa em cumprir o que está
com nossa existência em um lugar no seu DNA: investiga, resgata,
específico, como uma nação. Silvio registra e interpreta fatos e
Tendler faz este movimento em biografias.
direção a um cuidado da memória
em toda sua extensa filmografia. É de Tendler a primeira iniciativa
Desde Os Anos JK - Uma Trajetória para um público mais amplo de
Política (1980), passando por se documentar a vida e a morte
Glauber o Filme - Labirinto do deste que foi líder estudantil,
Brasil (2003) e incluindo sua obra militante político, poeta, ex-de-
mais recente e autobiográfica, putado pelo Partido Comunista e
Nas Asas da Pan Am (2020). Em guerrilheiro, Carlos Marighella.
sua produção de quase 50 filmes Depois é que vieram Marighella
e séries para a TV como diretor, (2011) de Isa Grinspum Ferraz e o

52
tão aguardado Marighella (2019), Tendler tem apenas 55 minutos
de Wagner Moura. O de Ferraz, e é formatado para televisão (a
sobrinha do personagem, é um produção é da TV Cultura, por
registro documental (com isto ele é referido em muitas fontes
montagem da recém falecida como “vídeo”), e o de Moura é uma
Vânia Debs), enquanto o de Moura ficção com um orçamento em
é uma ficção baseada na torno de 10 milhões de reais, com
biografia Marighella: o guerrilheiro estrutura da O2 Filmes e Globo
que incendiou o mundo, de Mário Filmes para um público de sala de
Magalhães, lançada em 2012. cinema, somado as perspectivas
Cabe também citar um para o streaming, que elevam seu
documentário em curta-metra- potencial de audiência.
gem de nome É Preciso Não Ter
Medo: Relatos de Carlos Isa Ferraz desenhou um retrato
Marighella (2005), de Silvia Luísa afetivo de seu tio. Seu filme abre
Melo e Tayra Vasconcelos. Pelo afirmando que ele era o inimigo
que sabemos, não circulou ao número 1 da ditadura militar (título
ponto de gerar debate ou de dado pela imprensa) e já mos-
tornar o personagem mais trando a imagem do tio morto na
conhecido. emboscada da polícia (DOPS) em
São Paulo, em 1969. A narração é
É preciso, ainda, mencionar dividida entre a própria diretora
Chris Marker, que realizou em e Lázaro Ramos, que incorpora
1970 o seu curta On vous parle Marighella em primeira pessoa.
du Brésil: Carlos Marighella. Neste documentário, o papel da
Apenas um ano depois da morte mãe do biografado tem real-
do personagem, faz um retra- ce: uma mulher negra, de origem
to a quente do guerrilheiro, no sudanesa, que se casou com
estilo bem ensaístico de Marker um italiano branco. O baiano
e com depoimentos tomados em Carlos Marighella é pintado como
Cuba, com um exilado anônimo herdeiro do anarquismo com a
filmado na sombra (José Dirceu?). revolta dos Malês
O filme faria parte de uma
trilogia de Marker para denunciar É Antônio Cândido, em depoi-
internacionalmente a ditadura mento à Isa Ferraz, quem melhor
militar brasileira. define o personagem quanto
ao resultado da mistura: nesta
Este artigo fará um deslocamen- união, ele encarnava o povo
to entre a versão de Isa Ferraz e biológica, moral e psicologica-
Wagner Moura, concentrando-se mente. Segundo Cândido, nesta
no Marighella de Sílvio Tendler, condição, não abandonou sua
que se encontra disponível no classe. Foi muito mais do que
YouTube. Vale lembrar, para “apenas um mulato baiano”, como
destacar as diferenças, que o de gostava de se apresentar.

53
Só mesmo como síntese do Embora convencional na
brasileiro pode-se desvendar linguagem, o filme traz uma
o personagem. A mesma figura montagem ágil, uma trilha
que saía vestido de mulher no criativa e não se limita a um
carnaval, cantando a marchinha cenário de cabeças falantes;
“Eu quero é rosetar”, é a que dá há discordâncias, memórias
a vida, literalmente, pelos seus que se traem, empolgações
ideais. sentimentais, descrições de dores
de torturas ainda vivas, e muitas
Enquanto Tendler apresenta mulheres (!) a provar que a luta
Marighella, Isa quer entendê-lo armada, operária e estudantil,
e Moura quer colocá-lo no lugar também foi feita por mulheres.
dos mártires (que ele foi), sem, no
entanto, romantizar a guerrilha. Nos três longas aqui tratados,
Em todos, a ideia que fica é de há que se observar o contexto
que o integralismo deixou marcas político e histórico de suas
indeléveis e seguidores impro- produções: governo Fernando
váveis. De certa forma, quando Henrique Cardoso em 2001, sem
o povo for às ruas em 2022, será ameaça visível de regime de
ainda contra o integralismo. exceção e com o controle da
inflação como maior desafio; em
2013 o governo Dilma sofrendo o
A CADA MARIGHELLA, início de uma crise econômica e
UM CONTEXTO enfrentando o golpe civil e por fim
2021, com o governo Bolsonaro,
Mistura de modo expositivo perpetuador de ataques às
com interativo, na concepção instituições que garantem a
de Bill Nichols, e seguindo uma democracia. Naturalmente, outras
construção de corte didático, circunstâncias são determinantes
Marighella - Retrato Falado do para diferenciar o momento atu-
Guerrilheiro abre com definições al dos anteriores, sobretudo a
do que seja um guerrilheiro. O pandemia e o crescimento do
narrador, Othon Bastos, com voz streaming, que afetam toda e
suave e firme, fala do guerrilheiro qualquer operação no campo do
urbano (o que luta contra a dita- cinema.
dura militar com armas, utilizando
métodos não convencionais) e do A questão é: como olhar para o
revolucionário político (patriota passado das décadas de 1960 e
ardente). São descrições tiradas 1970, em que o Estado tinha como
do Manual do guerrilheiro urbano, práxis a tortura e o assassinato de
de autoria de Marighella. insurgentes, o passado recente da

54
feitura do documentário de Tendler Tudo isto para dizer que a figura
e o presente do lançamento do de Marighella, sua memória, é a
Marighella de Moura? Quanto memória de um país e não pode
distanciamento temporal preci- ficar no passado, como que
samos para ver com clareza este enterrada. Não porque ele tenha
personagem? Quantos marighellas sido um herói da esquerda, porque
precisam existir para nos darmos muitos o foram e porque isto pode
conta da vulnerabilidade das não vir ao caso, mas porque
democracias com a sucessão de empreendeu uma militância
golpes na América do Sul? visceral pela liberdade e contra a
desigualdade, aquela que dá sua
Nos parece que a compreensão própria vida em favor de ideias,
sobre o significado da história é vital que de geração em geração
para pensar a figura de Marighella ganha novos significados. Na
no cenário atual, por isso o filme circunstância atual, com a sombra
de Tendler adquire certo poder de de uma ditadura se agigantando,
iluminação, 20 anos após ter sido é por demais evidente que
feito. Em maio de 2021 a Fundação contar esta história faz parte de
Palmares, uma instituição pública um processo de conhecimento.
para a preservação da memória, Afinal, o que podemos aprender
divulga aos quatro ventos que o com o contexto político dos
acervo com os arquivos relativos anos do regime militar e o de
a Carlos Marighella será jogado agora? O próprio comunismo,
fora... como ideologia, não mais pode
ser entendido como o foi. E o
Voltando a Heidegger, vemos filme de Tendler dá pistas para
que há dois sentidos básicos para a necessidade de tomarmos
o conceito de história. Um se refere distância e só assim percebermos
ao que é passado, um passado que a experiência da época
que significa “não ser mais simplesmente não pode ser
simplesmente dado, embora sem repetida. Porém, invocada sempre.
‘efeito’ sobre o ‘presente’” (ibidem.,
p. 183). Já o outro passado, o OS SEM FOTO
histórico, no entendimento do
filósofo, “também possui um Preso pela primeira vez aos 25
significado contrário quando anos, Marighella foi torturado
dizemos: não se pode escapar durante 23 dias pela polícia
da história.” (idem). Eis, pois, a getulista comandada por Filinto
história que continua produzindo Müller; saiu da cadeia queimado,
efeito. (Não nos esqueçamos que com marcas de agulha embaixo
a máxima vale para o próprio das unhas e mais disposto ainda
filósofo alemão e sua controversa, a reagir. Preso novamente na
ainda que estratégica, adesão ao ditadura militar em 1964, foi
nacional-socialismo). baleado e mais uma vez torturado.

55
56
Já na clandestinidade, sofreu o ter foto de ninguém em casa. A
atentado dos agentes do DOPS polícia chegava, prendia todos e
em 1969. ia atrás dos que apareciam nas
fotos. Além de coragem e doses
Como é possível que as de ingenuidade, o grau de ide-
gerações de hoje, inconformadas alismo desta nossa cultura da
com a irracionalidade do produção de imagens permitiria
governo vigente, se inspirem em hoje viver sem tirar fotos?
Marighella? A resposta está um
pouco no filme de Tendler: não é No geral, era um mundo com
possível. Não há como imaginar poucas imagens, por conta das
que a juventude atual queira condições tecnológicas de então,
pegar em armas e correr o risco sendo que o universo específico
de passar por martírios físicos e dos militantes e guerrilheiros nos
mentais. O jornalista Noé Gertel deixou menos imagens ainda.
oferece a melhor pista sobre o que Alguém comenta no documentário
significava a luta armada e por de Tendler que as únicas imagens
que hoje ela não está no horizonte. em movimento de Marighella são
Em seu depoimento para Tendler com ele já morto. Hoje os bebês
diz: era o quadro político da épo- nascem e podem assistir vídeo-
ca (ele repete o da época para -clips de quando eram fetos...
não deixar dúvida). Empolgados
com as táticas da resistência O filme de Tendler também se
francesa na II Guerra, havia um ocupa em entender o Partido
clima entre os dirigentes comu- Comunista, que teria acabado
nistas da América Latina em que quando Marighella e seus compa-
a ideia de dar a vida pelo povo nheiros descobriram os crimes de
era aceitável e até desejável. Era Stalin. A debandada do partido
o quadro comunista político da começou ali. De todo modo, o
época. A frase faz ressoar como senso comum sobre comunismo
resposta à direita obtusa que vê passa pelo totalitarismo stalinista.
comunistas por todos os cantos. Assim como, claro, o medo dos
assaltos a banco, dos sequestros,
Outro detalhe que nos faz enfim, da violência. Mesmo que
distantes da possibilidade de o comunismo tenha passado ao
virarmos guerrilheiros naqueles longo dos anos pelas variações
moldes é que eles não podiam nas siglas, indo do stalinismo ao
tirar fotos. Clara Charf, a maoísmo, chegando agora ao
companheira de Marighella na pragmatismo de sua liderança
clandestinidade e sua viúva, fala através de Manuela D’Ávila ─ e
a Tendler que eles não podiam que a própria China ostente uma

57
economia de mercado galopante filosóficas” para refletir sobre
─, a população neófita não quer a violência. E são suas ações
saber. Segue acreditando que que o documentário de Tendler
o inimigo está nesta concepção reforça através da lembrança dos
torta de que quem é contra as depoentes.
desigualdades representa perigo.
Filmes como o de Tendler, Isa
Inescapável a alcunha de Ferraz e Wagner Moura nos
“terrorista” impingida pelos inspiram a pensar que revelar o
militares e aceita pela imprensa, passado ilumina o presente. E
que é determinante para a imagem vice-versa. E que os nexos causais
dos militantes guerrilheiros. O dos regimes que se implantam no
Manual do guerrilheiro urbano Brasil estão ligados à reação que a
existe, não é uma invenção do população tem – ou não – quanto
tipo Os Protocolos dos Sábios
às arbitrariedades de cada um
de Sião ou do Kit Gay. Neste
destes nexos. Faz sentido que
livreto de Marighella, encontrável
se estabeleçam relações entre
para download na internet
aquela opção dos militantes que
para quem quiser checar, há
viraram guerrilheiros e pegaram
recomendações básicas para um
candidato a guerrilheiro urbano em armas, e a ideia que parte da
se fazer invisível na cidade, população tem de que qualquer
organizar a expropriação dos manifestação racional seja
grandes capitalistas, e matar sinônimo de comunismo e que,
policiais dedicados à repressão. portanto, é preciso combater, pois
E um capítulo inteiro dedica- comunismo é sinônimo de armas.
do ao uso de armas. Afinal,
trata-se de um manual, de O nexo causal que as futuras
um “como agir”, diferente por gerações irão analisar em relação
exemplo do pensamento sobre à atual conjuntura pode estar
a práxis revolucionária de Os nesta chave: podemos não dar
Condenados da Terra (1961), de a vida por uma causa porque
Frantz Fanon, que circulava na os tempos são outros, mas o
época e que Marighella deve ter conformismo diante de mais um
lido (“Condenados” foi lançado golpe também é a morte. Não é?
no Brasil em 1968, com grande
divulgação entre os intelectuais REFERÊNCIA:
de esquerda em função do HEIDEGGER, Martin, Ser e tempo.
prefácio de Sartre). O manual do Tradução: Marcia Sá Cavalcanti
brasileiro oferecia orientações Schuback. Rio de Janeiro: Editora
para a prática e não “ferramentas Vozes, 2005.

58
Overicer firtuidemum mo treorim probsena, cupionsus, Paturis. Veribunte factum, di praris.
Eciam istur unti caedees ignatilicute dici parista ndactortem. Vala perfirit, Cat conentro hos, virioculinum dium
fur labus, nem il tam se occhi, curius issenimum pro caperi sedem a dem effrevi tissus igna, nequod ad Castre
ommor auctata vilis, de eo, men sillemor loctus, utem, conesulero, ut atus consus eo, Cupicas terribusqui simis-
s i d nem-

“Ousar pensar,
nonsu
con-
lost octo
ina- tussa-

ousar dizer”
tum t ra t i l i i
se n i s u s
cons
pro- bse-
nius, q u e
Monica fonseca Wexell Severo
dit, que aure ne tervist? Nihintre quid ine estam caperit publieres! Unt. Evir publibu lviritanum sed culvivid
condioccia L. Eremque mantiu et fatia escessul untium resciptio viveris etis me cae forei taterni amquam om-
peconsum huctus etiam teresse, quo mendem ina, noc, nox menatimilium tem nons igna, fur, sula nonsula mo
egerturnius iturem fore peri fincertum iam me acenatum ment. Ahalartero, nostam nihicas convena triurnum
nos fur aciossendam ad it, pris fue issulic ipionlo cchucon nis hore que publium obsenaturs aut grae tillabu
liniam. Vivit is.

Monica Fonseca Wexelll Severo é mestre em Filosofia, professora e produtora cultural.


Aconteceu certo dia... Roubei a semente do fogo e a escondi dentro
do oco de uma árvore. Foi esse fogo que entreguei à espécie
humana. O fogo serviu para lhe despertar o espírito. Do fogo tiraram
todas as artes e o conhecimento. Era o que Zeus não queria. Queria
mantê-los bestiais, analfabetos, grosseiros. [...] Graças a mim, os
homens se apegaram à vida. Alguns, pelo conhecimento, até mesmo
perderam o medo da morte. E inventaram a dignidade, a liberdade
e tantos valores. Compreenderam o que isso significa em relação ao
poder absoluto pretendido por Zeus? (ÉSQUILO, 2010, p. 25-28).

Na tragédia de Ésquilo, levada Silvio Tendler, o contador de


ao palco em Atenas em V a.C., histórias, nos oferece na trilogia
Prometeu, um Titã, é submetido os filmes O Veneno Está na
a terrível sofrimento por ousar Mesa I, (2011) O Veneno Está
despertar na humanidade a na Mesa II (2014) e Agricultura
curiosidade sobre as coisas do Tamanho Família (2014). O tempero
mundo, a capacidade de formular é rico em saberes populares e
perguntas e buscar insistente- científicos. Muitas vozes podem
mente respostas, de construir e ser ouvidas, numa polifonia que
utilizar arte e conhecimento. O caracteriza também a filosofia.
herói sabe o que lhe aguarda,
pois conhece o futuro. Sempre Em O Veneno Está na Mesa I
soube que sua ousadia abalava temos a crítica em seu caráter
o poder do mito. de negação, que não é sinônimo
de demonizar. Investigação
independente de preconceitos,
Se o tema for filosofia da
examina, avalia minuciosamente,
ciência, com acompanhamento
buscando a fidedignidade ou a
de política e molho de ética,
validade de conceitos, hábitos e
sirva “a trilogia da terra”, de
argumentos. A obra nos aponta
Silvio Tendler. O cardápio tem os limites das convicções e
nutrientes que podem ser dogmas impostos pela nossa
absorvidos por pesquisadores tradição. Não, a revolução verde
de pós-graduação, estudantes não alimentou nem sanou a fome
de graduação e ensino médio. É no mundo. Nossas sementes
arte e conhecimento, curiosidade crioulas estão sendo eliminadas
herdada de Prometeu, ousadia de pelas sementes pertencentes a
quem recusa ser bestial, grosseiro, empresas transnacionais. Sim,
de quem faz uso da dádiva somos os campeões mundiais do
da provocação. Coragem de uso de agrotóxicos. Testamos, em
quem não tem medo de apontar nossos corpos e nos de nossos
possibilidades de superação, pois filhos, a tese de que não nos farão
há porta de saída. mal.

60
Recente estudo que envolve de pesquisa, entidades de
pesquisadores da Fundação defesa da ordem jurídica,
Oswaldo Cruz (Fiocruz), o Instituto dos interesses democráticos
Nacional do Câncer (INCA) e e organizações sociais, espe-
a Universidade Federal do Rio cialmente com a ampliação
de Janeiro (UFRJ), relaciona nacional da comercialização
os bioquímicos recentemente de produtos que não são
inseridos em nossa cesta básica. utilizados em outros países.
Seus efeitos são classificados Neste cenário, é possível
como “provável cancerígeno”, ou que o Brasil se consolide
“possível cancerígeno”; “evidência como um grande mercado
sugestiva de potencial carcinogê- para produtos obsoletos,
nico”; “evidência de desregulação que podem causar danos
em pelo menos uma espécie às populações expostas e à
utilizando animais intactos”; biodiversidade. (FRIEDRICH K
“evidência in vitro de atividade et al, p. 2).
biológica relacionada a desre-
gulação endócrina”. O relatório A obra de Tendler relaciona
aponta que 81% dos agrotóxicos os alimentos campeões, com
autorizados no Brasil não têm seus respectivos e temerários
permissão de uso em pelo menos temperos, que ingerimos no dia a
três países da Organização para dia. Esclarece, tira as máscaras,
a Cooperação e Desenvolvimento expõe. Embora a realidade seja
Econômico (OCDE). Em 2017, indigesta, a crítica é fundamental
consumimos 539.944,95 toneladas para salvar vidas. Tem poder de
de agrotóxicos, das quais 9,7% mobilização, acredite, vi.
sequer foram especificados. Deste
vultoso volume, 67,2% “apresenta A crítica pretende apontar o que
ao menos um critério relacionado está errado no vigente. Pode-se, a
a danos à saúde humana e ao partir disso, assumir uma posição
meio ambiente” e 16,4% não são que não reconhece um potencial
autorizados na Comunidade positivo que a técnica, a ciência
Europeia. e a tecnologia podem ter em
nosso cotidiano. Esse caminho
Para além da fragilidade não reconhece nenhuma possibi-
do atual quadro regula- lidade emancipatória inscrita nas
tório brasileiro, as recentes ferramentas tecnológicas, quer
propostas de alteração da seja na produção de alimentos,
legislação apontam para de energia, na substituição do
uma flexibilização, fato que trabalho humano e criação de
tem preocupado instituições espaço para o desenvolvimento

61
de outras atividades, no prolon- conhecemos e nos rendemos à
gamento da vida ou na diminuição agrofloresta. A fumaça das quei-
da dor. Na filosofia, chamamos tal madas - as do ministro que está
posição de tecnofobia. aproveitando a pandemia para
“passar a boiada” - nos sufoca,
Num caminho diferente, encon- mesmo sem aparecer no vídeo.
tramos críticos que pretendem Se não sentíamos a necessidade
despertar nas pessoas a da mudança, somos dominados
consciência da necessidade de pela percepção de que nossas
mudanças. Sustentam que, além vidas dependem disso. O fogo de
dos membros da comunidade Prometeu nos aquece.
científica, este debate pode
e deve envolver a todos. Os Tocados, cada um movimenta-
adeptos desta tese fazem uso -se de uma maneira. Não há
do potencial positivo da crítica: um padrão. Mas ninguém sai
a invenção e a prática de novas da experiência de espectador
formas de ciência, com a utili- sem modificar-se. Como afirma
zação da tecnologia, das cons- o laureado cineasta cubano,
truções teóricas e instrumentos Thomaz Gutierrez Alea:
práticos voltados à realização de
valores de solidariedade e justiça, [...] a própria contemplação
ao invés da acumulação de não constitui uma simples
capital; substituindo a noção de apropriação passiva pelo
dominação da natureza pela de indivíduo, que responde a
respeito ao meio ambiente. Para uma necessidade humana de
estes, outro mundo é possível. melhorar as condições de vida
e implica já numa certa ativi-
dade. Essa atividade pode ser
Neste grupo, encontramos O
maior ou menor na depen-
Veneno Está na Mesa II e, ainda
dência não somente do sujeito
mais profundamente, Agricultura
e de sua localização social e
Tamanho Família. Nestas obras histórica, mas também – e é
conhecemos o que alguns o que nos interessa destacar
brasileiros realizam, alimentando agora – das peculiaridades
sem poluir, sem degradar, sem do objeto contemplado
destruir as florestas. Sustentam, e de como estas podem
nutrem os humanos e protegem a constituir um estímulo para
natureza. Aprendemos com cien- desencadear no espectador
tistas, produtores rurais e artistas uma atividade de outro tipo,
que outra realidade já é possível. A uma ação consequente mais
obra audiovisual nos mostra como além do espetáculo. (ALEA,
e quem o faz. Sem sair da cidade 1984, p. 48)

62
Já experimentei, o menu alimen- dade da pesquisa científica.
ta a todos, mesmo que fiquemos A inter-relação entre o ético e
de estômago embrulhado com o científico penetra em cada
aquilo que não podemos mais aspecto da controvérsia sobre
deixar de enfrentar. Cada um os transgênicos. Os modos
absorve os nutrientes segundo comuns de entender a ciência
suas possibilidades: mas todos e a ética – os quais afirmam
somos chamados ao que Alea que os juízos factuais e de
caracteriza como “tomada de valor estão fundamentalmente
consciência dialética sobre a separados, que a ciência é
realidade” (ibidem., p. 53). Somos “objetiva” e “livre de valores” e
guiados para o caminho de busca a ética “subjetiva” – tendem a
da verdade e de ação prática obscurecer esta inter-relação
transformadora. e, portanto, a tornar difícil
que os grupos em oposição
Nosso artista estimula, inquieta- aprendam os argumentos
-nos. Fica para cada espectador de seus oponentes. O
descobrir qual é o papel que pode entendimento do que está
desempenhar nesta arena. Na envolvido na controvérsia
filosofia da ciência este mesmo acerca dos transgênicos – e
convite é estabelecido nestes o entendimento é um pré-
termos: -requisito para a resolução
razoável desta disputa –
As soluções para as repousa necessariamente
questões éticas envolvendo sobre uma filosofia da ciência
transgênicos requerem o input adequada, que clarifique e
da pesquisa científica, por forneça inteligibilidade exa-
exemplo, no que concerne aos tamente ao modo como a
riscos e ao potencial produtivo ciência e os valores interagem,
das alternativas agrícolas; incrementando a integridade
porém, as questões éticas e a credibilidade de ambos.
não podem ser respondidas (LACEY, 2006, p. 9-10).
somente com pesquisa cien-
tífica; não podem ser redu- Em sua “trilogia da terra”,
zidas a questões científicas. Silvio Tendler clarifica e fornece
Além disso, a identificação de inteligibilidade sobre a relação
qual é a pesquisa científica entre ciência e valores. Com arte.
relevante a ser conduzida
implica por si mesmo juízos Mas se o assunto que desejas
éticos, mas de um modo que destrinchar for relações de
não deve abalar a objetivi- poder, neoliberalismo, Estado,

63
hegemonia, soberania ou ideolo- “puro” e inconsciente é o
gia, sugiro que sirvas Jango (1984) cientista deste papel que se
e Privatizações: A Distopia do lhe atribui, melhor o interpreta
Capital (2014). As necessidades e daí o interesse de um sistema
nutricionais de cada um de nós, de prêmios, consistente em
que são variáveis dependendo dinheiro efetivo, em prestígio
do contexto ou problema que individual ou em migalhas de
enfrentamos, devem guiar nossas poder.
escolhas nesta filmografia. O que (LÉVY-LEBLOND, 1970).
sua arte oferece “não é simples
via de escape ou consolo para Esse não é o caso do “cineasta
o espectador atribulado, mas dos vencidos”, ou o “cineasta
o que propicia o regresso do dos sonhos perdidos” a que nos
espectador a outra realidade [...] referimos. Esse personagem fez
não complacente, tranquilo, des- suas escolhas há muito tempo.
carregado, apaziguado, inerte, Não colocou seu talento à
mas estimulado e armado para disposição de difundir a ideologia
a ação prática”. (ALEA, op. cit., p. da classe dominante, não prega
46). nenhuma pretensa imparcialidade
e assume sua posição de defensor
E não nos enganemos com do socialismo, crítico mordaz das
homenagens. Muitas delas esca- crueldades e mazelas múltiplas
moteiam obscuros interesses: do capitalismo – esse modelo
em que 1% de vampiros sugam as
Por acaso não se outorgam riquezas produzidas pelos 99%.
os prêmios científicos àqueles
que cumpriram da melhor
Iniciamos esta reflexão parafra-
maneira com o papel que
seando o capitão Carlos Lamarca,
lhes assinala esta sociedade?
que encerrava seus textos
São premiados por propagar
emulando a ação, a ousadia da
e manter a ideia de uma
ciência politicamente neutra e
tomada de decisão de mover-se
socialmente progressista, por para construir o mundo que é,
acertar e difundir a ideologia assim como era, tão necessário.
de elite e de competição e “Ousar lutar, ousar vencer”, clama
por ajudar, assim, a classe o capitão da guerrilha. Lutar por
dominante a mascarar os um mundo mais justo e igualitário.
mecanismos de exploração e O capitão fez uso da crítica das
opressão sobre os quais está armas, nosso homenageado da
fundada esta sociedade. E, arma da crítica. Nenhum deles
naturalmente, quanto mais fugiu da luta.

64
Ousar fazer a travessia, ousar LÉVY-LEBLOND. Sobre a
construir o novo, novas relações, neutralidade científica. Discurso,
novos valores. Ousar vencer e 1970. Publicado em Les Temps
fazer um futuro com a nossa cara, Modernes nº 288. Júlio/70.
a nossa voz, o nosso sotaque, a Disponível em https://xdocs.com.
nossa ginga. O nosso pensar. br/doc/estacio-filosofia-da-
-ciencia-anexo-48ge126gk9n2
REFERÊNCIAS: Acesso em 25.05.2021.
ALEA, Tomás Gutiérrez. Dialética
do Espectador: seis ensaios do FILMOGRAFIA:
mais laureado cineasta cubano. Agricultura Tamanho Família
Trad. Itoby Alves Correa Jr. – São (2014). Silvio Tendler. Brasil, 2014,
Paulo: Summus, 1984. digital, 58 min.

ÉSQUILO. Prometeu. In: AGUIAR, Jango (1984). Silvio Tendler. Brasil,


L. A., Prometeu/Ésquilo; Alceste/ 1984, 35mm, 117 min.
Eurípedes. – 2° Ed. – Rio de
Janeiro: Difel, 2010. Nas Asas da Pan Am (2020). Silvio
Tendler. Brasil, 35mm, 110 min.
FRIEDRICH K et al. Situação
regulatória internacional de O Veneno Está na Mesa I (2011).
agrotóxicos com uso autorizado Silvio Tendler. Brasil, 2011, digital,
no Brasil: potencial de danos sobre 48 min.
a saúde e impactos ambientais.
In: Cadernos de Saúde Pública, O Veneno Está na Mesa II (2014).
2021; 37(4):e00061820. Disponível Silvio Tendler. Brasil, digital, 100
em http://cadernos.ensp.fiocruz. min.
br/static//arquivo/1678-4464-cs-
p-37-04-e00061820.pdf Privatizações: A Distopia do
Acesso em 28.05.2021 Capital (2014). Silvio Tendler. Brasil,
2014, digital, 56 min.
LACEY, Hugh. A controvérsia dos
transgênicos. Aparecida: Ideias e
Letras, 2006.

65
Silvio Tendler por nós
Equipe Caliban

Criada por Silvio Tendler em 1981, a Caliban Produções Cinematográficas é


uma empresa multimídia, produtora e distribuidora de cinema e vídeo.

Pense no caos. É assim que simultâneos, não tem roteiro e nem


nós, uma equipe fixa de seis, ponto final, assim como seus filmes.
sete pessoas levamos a vida, E nem é pra ter. Silvio é labirinto e
em meio a um turbilhão de 2368 redemoinho. Um tsunami a cada
mensagens e demandas por dia. 24 horas.
No comando, Silvio Tendler, um
“senhor” de 71 anos, cadeirante, No final do dia, a gente tem a
com energia de menino. Tem tranquilidade de estar fazendo um
estresse e tem afeto. Tem cinema no qual a gente acredita
enxurrada de meme e de piada de verdade. Sempre. Porque o
e tem textão sobre neorrealismo Silvio é isso: o cara que não erra a
italiano e o neoliberalismo inglês. aposta, que tem um olhar afiado
As proporções… variam de acordo pra saber para onde a bússola da
com o dia. A gente organiza, história está apontando. O cineasta
ele bagunça. A gente prevê, ele dos grandes personagens e dos
entra com o imponderável. A esquecidos, dos temas sólidos, da
gente coloca no orçamento, ele justiça social. Ali, dentro do caos, a
decide outra coisa em cima da gente luta por um mundo melhor
hora. todos os dias.

Silvio encontra tempo para De 2015 pra cá, a política brasi-


tudo e é um agitador cultural leira nos tem levado a mais revezes
de mão cheia. Fez um milhão de do que vitórias. Passamos pelo
amigos e tem um fã clube fiel, impeachment da presidente Dilma
de Japeri a Paris. Não recusa um Rousseff, o governo Temer, a eleição
bom debate de ideias, seja com de Jair Bolsonaro e atravessamos
um motorista de táxi aleatório ou a maior emergência sanitária que
com intelectuais da academia. esta geração conheceu. Como
O dia a dia com ele, girando fazer cinema em um país que está
os pratos de vários projetos afundando? Décadas mais jovens

66
do que ele, nós desanimamos muitas vezes ao longo da jornada, enquanto
ele se mantém um otimista aguerrido, uma Polyana pós-moderna, quase
um quixote solitário.

Garante que a cultura floresceu nos anos de chumbo e que resistiríamos.


Desconfiamos um pouco, é claro. Silvio deu a volta em todos nós (ainda
bem!), encontrou novas formas de sobrevivência para a produtora e,
aos trancos e barrancos, continuamos a fazer do cinema social o nosso
ganha-pão e nossa arma de luta. Estamos trancados em casa há 15
meses e preparamos uma nova safra de filmes para fazer pensar o mundo
de hoje. É um luxo, como ele gosta de dizer.

...

Ana Rosa Lilia Diniz Maycon Almeida


Produtora Executiva Diretora Assistente Produtor

Taynara Mello Tao Burity Diego


Assistente de Coordenador de Pesquisador
Pós Produção Pós Produção

67
nota histórica

Meu ENEM 2019


José Inácio de Mello Souza

José Inácio de Melo Souza é ensaísta com diversos livros publicados, entre os
quais Salas de cinema e história urbana de São Paulo (1895-1930), publicado
pela editora Senac SP (1916) e A carga da brigada ligeira: intelectuais e crítica
cinematográfica, publicado pela Editora Mnemocine (1917)

“De acordo com a Constituição duas divisões dentro da sociedade


Federal de 1988, a “Constituição entre o normal e o patológico,
Cidadã”, há uma garantia dos como estudou Émile Durkheim.
brasileiros de acesso ao lazer. Filmes Formam-se cidadanias mutiladas
brasileiros como Cine Holliúdy, em que os direitos universais não
por exemplo, exemplificam o podem ser vividos por todos os
impacto positivo no cotidiano das cidadãos. Vê-se uma elitização
cidades da chegada do cinema, da produção cinematográfica,
promovendo por meio de obras enfraquecendo o princípio de que
cinematográficas a modernidade, todos os cidadãos devem ter o
a socialização e a cultura. Mas direito ao lazer e ao entretenimento.
se observarmos os impedimentos
que existem para a promoção do Concorrem para essa situação
bem-estar do homem moderno,
de exclusão os abusivos preços
verificamos que o acesso ao
dos ingressos, a obrigatoriedade
cinema no Brasil é feito de forma
de consumo de bebidas e
excludente. As camadas mais
alimentos adquiridos somente
pobres da população não têm
dentro do cinema e as categorias
acesso aos bens culturais, fazendo
do cinema nichos de exclusividade escalonadas de conforto, nos
daquelas de rendas mais altas. Há quais os preços sobem conforme
uma negligência governamental se oferecem mais regalias.
sobre o tema, além da pequena Como explica Pierre Bourdieu,
discussão devotada ao assunto. sociólogo francês, são elementos
que distinguem um homem de
Sociedades que restringem o outro na sociedade, apontando
acesso ao cinema, haja vista o simbolicamente para aqueles que
preço dos ingressos em que não há não conseguem acesso às salas de
um escalonamento regional, criam luxo, aumentando a desigualdade.

68
Portanto, cabe ao Estado por Essa não é uma redação
meio do Ministério da Educação chamada de “nota mil” (1.000
e da Cultura, da Secretaria pontos; a média foi de 592) entre
Especial da Cultura do Ministério os 3,9 milhões que realizaram
da Cidadania, dos governos a primeira prova para o Exame
estaduais e municipais, em Nacional do Ensino Médio - ENEM
parceria com a iniciativa privada, de 2019. Trata-se de um pastiche
da Ancine – Agência Nacional das somente 18 redações entre 53
de Cinema promoverem um “notas mil” publicadas nos sites
amplo debate sobre a abertura de notícias da internet, e que
de empreendimentos que chegaram até o exitoso resultado
não sejam em locais elitistas, final (1) (143 mil tiraram zero por
reduzindo o preço dos custos
diversas razões, entre as quais
para o consumidor de baixa
56.945 por a deixaram em branco,
renda, enfim, democratizando o
sem pensar no tema proposto)
acesso à cultura cinematográfica,
Os números sobre o ENEM são
tirando-a da situação de
sempre gigantescos: 6.384.957
alienação e insuficiência em
que se situam as classes mais inscritos, 5.095.308 que tiveram
baixas. Por meio de incentivos sua inscrição confirmada, isto é,
fiscais os preços dos ingressos os isentos da taxa de R$ 85,00
podem ser reduzidos. Eventos (46,9 %) mais os pagantes (33,1%).
em áreas periféricas, nacionais Quase 4 milhões responderam
ou internacionais, devem ser às 45 questões da prova de
incentivados. Os centros culturais Linguagem, Códigos e Tecnologia,
devem ser promovidos por que incluía como última etapa a
meio das redes sociais, além de ser vencida a redação, realizada
passarem por reformas periódicas, no dia 3/11/2019. A maior faixa
que os habilitem como locais de de candidatos estava entre os
excelência ao alcance de todos. jovens de 17 a 19 anos, entre os
O Ministério da Educação pode quais predominavam as mulheres.
incluir na Base Nacional Comum Os que tinham concluído ou
Curricular projetos que envolvam estavam concluindo o ensino
a exibição de filmes de acordo médio eram também a maioria
com a prática pedagógica, (87,6%), provavelmente os mais de
chamando a atenção dos alunos 2,4 milhões de candidatos que
para o desenvolvimento de uma faziam o exame pela primeira vez,
consciência cultural. Com esses apontando para a vontade de
requisitos, os brasileiros terão o seguirem para o ensino superior
direito garantido pela Constitui- com uma boa nota no ENEM.
ção como uma realidade.”

69
A razão para alinharmos todas do cinema de rua nos anos 1970 e
essas informações sobre o ENEM a renovação dos anos 1990 com o
2019 encontra-se no seu tema: “cinema de shopping”, que levou a
“Democratização do acesso ao uma elitização dos espectadores,
cinema no Brasil”. Causa espécie isto é, uma concentração das
a proposta porque vinha de salas nos grandes centros,
um governo que logo depois deixando-se de fora os estados
seria contra a democratização do Norte e do Nordeste, periferias
do acesso ao cinema, além urbanas e cidades pequenas
de ser dotado de uma política e médias do interior. Com base
altamente golpista, reacionária e nessas “motivações” o estudante
antidemocrática, devotando uma deveria escrever uma redação em
oposição sistemática ao campo português formal, relacionando-
cultural. Pouco mais de seis meses -os de forma coerente à
depois da prova, o ministro da exposição do seu ponto de vista,
Educação que coordenou o que não poderia ser inferior a sete
processo do ENEM 2019 foi posto linhas.
para fora do governo Bolsonaro
por dizer algumas barbaridades Quem são estes estudantes da
contra o poder Judiciário, sendo nossa pequena amostragem?
agraciado com uma prebenda no Em geral, estão na média entre
exterior, escapando de uma pena de 18 a 21 anos, excepcio-
exemplar. nalmente mais velhos, alguns
conhecedores do sistema com
O exame contém quatro textos várias tentativas em provas do
chamados de “motivadores”, ENEM, mas, de qualquer maneira,
sendo um deles um gráfico extra- moradores em capitais, Brasília,
ído do site meioemensagem.com Goiânia, Teresina, ou cidades
sobre porcentagens relacionando médias e grandes, do estado de
a ida ao cinema e a visão de filmes Minas Gerais na maioria, como
na televisão. O primeiro texto Uberlândia, configurando, pela
era de Jean-Claude Bernardet idade, o público-alvo do mercado
sobre a primeira exibição em exibidor. Pela amostragem, com
Paris, no dia 28 de dezembro de exceção de uma candidata, todos
1895, pinçado do seu livro O que é os outros moravam em cidades
cinema. O segundo era baseado com cinemas. Mas somente uma
numa definição de Edgar Morin, estudante citou filmes de lança-
tirado de um artigo de Cristiane mento recentes à prova, como
Gutfreind (E-Compós, v. 6, 11, 2006). Coringa e Vingadores: Ultimato.
O quarto texto novamente era Por outro lado, o fato de alguns
capturado da internet, do site da dos estudantes citarem filmes
Ancine, tratando da decadência brasileiros, Cine Holliúdy ou Na

70
Quebrada, com a média de cinco dos surdos (sentir no ar qual
anos de lançamento frente ao ano vai ser o tema da redação ano
da prova, não fornece indícios de do ENEM é uma das tarefas
que teriam sido vistos no cinema dos cursinhos preparatórios).
local ou na TV. Portanto, há uma “pegadinha”,
como os alunos experimentaram
Na sua maioria, os candidatos nas 44 questões anteriores,
escrevem uma página com 300 que deveria ser relevada. No
a 400 palavras em média (para caso de 2019 era Edgar Morin a
ser mais exato, 383 palavras; vítima. Imagino, não conheço as
para a amostragem, formatei provas anteriores, que os textos
todos os textos na tipologia motivadores que orientam os
times new roman, tamanho 12); os candidatos são aqueles que
mais loquazes chegaram a 600 fornecem dados para o trabalho
palavras; a média dos textos foi de redacional. No caso de 2019, foi o
30 a 40 linhas, às vezes um pouco texto da Ancine a principal base
menos, raramente chegando a 49 para a construção do discurso.
linhas. Depois de alinhar informações
sobre as alterações no mercado
Os textos “motivadores” motivam exibidor entre 1975 e 1997, a Ancine
alguma coisa? Quanto a frase de propiciava a pedra de toque da
Edgar Morin, sem dúvida não. Já exclusão de “populações inteiras”
o texto de Bernardet inspirou uma do sistema exibidor, um tema que
candidata escolada em ENEM, em geral vem sendo repisado por
que abriu sua argumentação diversas fontes orais, impressas
com a abordagem proposta ou “telemáticas”, como gostam
pela “primeira exibição”, sem de falar os nobres parlamentares
que isso gerasse um processo brasilienses, fornecendo ampla
de comparação com o Brasil. A matéria para reflexão sobre o
história do cinema brasileiro, pela empobrecimento e a elitização
amostragem, passou em branco. do já antigo “ir ao cinema ver um
Isso não espanta porque são filme”.
estudantes que talvez possam
até se candidatar a um curso Há na formação das argu-
de cinema universitário, porém, mentações uma padronização
para o momento da prova são que inclui um enunciado forte
obrigados a serem generalistas, em que alguns apelaram para a
respondendo um ano a uma Constituição, ou pelo art.6º, ou
questão sobre racismo, noutro pelo art.215, ou por uma genera-
à intolerância religiosa, noutro lidade – consta da Constituição,
ainda à formação educacional por exemplo –, o direito ao lazer.

71
Um outro ponto muito insistente gratuidade aos mais pobres,
que aparece na argumentação orientação por cartilhas elucida-
é o apelo a alguma autoridade: tivas, ou seja, uma parafernália
filósofo, cientista social, geógrafo de medidas que remonta aos
ou um teórico sem especificação anos 1950, pelo visto ainda bem
de qualificação, que fortaleça o presentes na mentalidade geral
enunciado, além de demonstrar a da população. O pretenso regime
qualidade da leitura do candidato. da economia liberal parece
Nesse campo, a lista é longa e que ainda não chegou ao seu
variada. De Nietzsche a Foucault, nascimento. Todas essas medidas
de Aristóteles a Nick Couldry (esse seriam proporcionadas pelos
eu tive que procurar para saber ministérios (Economia, Educação,
quem era), de Durkheim a Milton Turismo, Cultura), e suas agências,
Santos, temos uma plêiade de como a Ancine.
nomes ilustres, ou não tão ilustres
assim como Claudio Mazzilli, por Uma análise dos textos “nota
certo uma citação a um professor mil” dos anos anteriores, com
que deve ter impressionado seu seus temas variando a cada
aluno. São nomes que calçam ano, revelaria se o do ano 2019
o enunciado – o direito ao lazer foi algo excepcional (o afunila-
– desenvolvendo a segunda mento a tão poucos dentro dessa
parte, isto é, a desigualdade massa gigantesca do alunado)
social e econômica do país. Há ou se estamos diante de uma
um direito, mas que é esbulhado
fôrma, de um padrão, posto
por uma sociedade elitista que
que a Constituição contém o
enfraquece o seu direito a ele.
argumento de base para qualquer
Por fim há uma conclusão, um
situação que se apresente. Se isso
“portanto”, em que o estudante
ocorrer, estamos diante de um
exprime a sua “proposta de
intervenção” sobre o problema da bacharelismo nouveau genre, de
falta de acesso ao preceito cons- uma retórica de convencimento
titucional. Na maioria dos casos, o de fazer inveja às nossas bisavós,
Estado é o grande culpado, como o que significa, convenhamos,
sempre, por permitir um preço menos um exercício argumentativo
proibitivo, abusivo dos ingressos, e mais um apelo a formulações
que deveria lançar um “Plano infecundas, formando gerações
Nacional de Democratização ao de bitolados.
Cinema no Brasil”, que poderia
incluir cinemas ao ar livre nas (1) Textos capturados nos sites
periferias, subsídios, redução de de notícias da globo.com e no uol.
impostos, regulação do mercado, com.br em 4/10/2020.

72
Histórias de
cinema
A busca do hedonismo brasileiro
em O Capitão Bandeira Contra o
Dr. Moura Brasil ou Hugo Carvana
e o hedonismo no cinema
Celeza Ramalho

Celeza Ramalho é formado em Cinema pela Fundação Armando Álvares


Penteado (FAAP). Trabalhou em produtoras de Cinema como O2 e Academia
de Filmes. Foi Produtor e Programador de Cinema do Museu da Imagem
e do Som de São Paulo (MIS). Atualmente trabalha no Departamento de
Promoção e Parcerias Internacionais da Spcine.

Entre o riso e a lágrima quase sempre há apenas o nariz.


Millôr

- Até porque hoje qualquer da segunda metade do século


malandro se dá bem. passado. Fico pensando se a
culpa é de quem produz o filme ou
- É, isso é! da sala que o exibe. No fundo, no
Brasil, deve ser culpa de todos os
Norma Bengel entra no bar ao envolvidos. Dizem por aí que o som
som de Jorge Ben. Oba, lá vem ela, é metade de um filme, e algumas
seus seios estão à mostra debaixo vezes mais do que isso. Aliás, curto
de uma camisa transparente. mais Blow Out do que Blow Up.
Boquiaberto apenas observo Mas isso é outro papo. Também
como o mundo pode ser um lugar vou me abster de comentar alguns
agradável e, até quem sabe, feliz. deslizes na fotografia do Beato no
Minha mãe sempre reclamou do filme abaixo comentado.
som nos filmes brasileiros que ela
via no cinema. Ao que parece, o Mas voltando ao pé da conversa,
som, junto com o Collor, é o grande ou do texto, vendo O Capitão
vilão das produções brasileiras Bandeira Contra o dr. Moura

74
Brasil pretendia escrever um a malandragem de pendurar a
texto elogioso ao grande Hugo conta sempre para amanhã, e
Carvana, algo como o pontapé fazer disso um viver de fato. O
inicial em uma bola que poderia brasileiro, enfim. Penso em como
(poderá?) virar um artigo maior e o João Gilberto, apesar do que
mais bem redigido. cantava, era feliz sozinho, mas
sempre tinha uma companheira.
Do alto dos meus trinta e
poucos anos, recém-saído de um Faço esta pequena introdução
relacionamento lucrativo e um para dizer que Hugo Carvana
emprego bonito, ou ao contrário, está embrenhado nas minhas
ou ambos, escrutinei o horizonte memórias cinematográficas mais
e vislumbrei poucos caminhos felizes e mais contestadoras.
a seguir. Algo me prendia a um Teria sido meu colapso nervoso
sentimento pesado de culpa no primeiro semestre deste
e de desperdício. Teria sido o ano, o desencadeador desta
golpe, as eleições desastrosas carga imagética tão cara à
de 2018 ou apenas as esfihas que minha personalidade? Estou
eu havia pedido pelo aplicativo tergiversando.
para almoçar? De maneira que
tenho assistido a muitos filmes Comecei a assistir o O Capitão
razoáveis e pouquíssimos filmes Bandeira Contra o dr. Moura
bons. Hugo Carvana sempre me Brasil de maneira descontraída,
cativou pela sua pluralidade. rindo com as aparições pontuais
Fiquei horrorizado com seu do Pereio e me apaixonando
desempenho em O Anjo Nasceu, perdidamente pela Norma Bengel
do Julinho Bressane. Não consigo e seus seios firmes e macios. A
lembrar do encadeamento dos trilha sonora deste filme merece
fatos e das cenas, mas lembro um texto à parte. Somos presen-
dele baleado ou ferido de morte teados a todo instante por temas
indo ao cinema. Lembro de um nacionais de grande apreço
barco furado. Planos frustrados, cultural y popular e ao mesmo
pressa de chegar a algum lugar. tempo por takes ao vivo de Naná
Tive a oportunidade de assistir a Vasconcelos improvisando, o que
Os Fuzis no cinema, talvez até em me pareceu um contraste tão
película e mais uma vez lá estavam marcante quanto a alteração
aquelas sobrancelhas marcantes, constante da cor para pb na
contrastadas por um nariz que fotografia. As imagens que se
atua sozinho nas cenas em close. desenrolavam na frente dos
No Vai Trabalhar Vagabundo, tem meus olhos começaram a tomar
as manhas de escrever, atuar e mais importância à medida
dirigir a fita. Este é daqueles filmes que o filme se adensava. Uma
que marcam um adolescente e o história confusa, papo cabeça de
faz querer fumar, beber e venerar arrependimento, grilos, dinheiro,
as mulheres mais cedo na vida. mulheres, amor e insanidade,
Carvana é Carvana. É o animal nada de novo debaixo do sol,
no seu habitat, as ruas e botecos o professor, quando lá pelas
do Rio de Janeiro. O drible, o gole, tantas do filme me identifiquei

75
com o personagem principal, um olhar indiferente, o filme salta da
malandro boa praça muito bem tela, atravessa nossa cabeça e
interpretado por Cláudio Marzo. volta para tela com nossos olhos.
Não pela malandragem, nem Como é bom se ver da tela e todo
pelo sucesso com mulheres (que aquele papo do Paulo Emílio e
me passam longe), mas pelas patota. Ainda rola uma tiração de
dúvidas e falta de significado onda com o Cinema Novo e com
em nossas vidas. O que é um o Glauber, o que é permitido para
emprego? Quanto dura o amor? alguém que transa os dois lados
Será que vai dar pé? Não imagino da mesma trincheira cultural como
respostas para essas e quaisquer Carvana transava. Metacinema
outras perguntas que podem que ri de sua seriedade e não
mudar a vida de uma pessoa, ou aponta o dedo nem caminhos.
a história de um filme. Como já Aliás, entre o Cinema Novo e o
disse o franco-argelino lá, é tudo dito Cinema Marginal (ou Udigrudi
um grande absurdo. para os mais chegados), Calmon
faz um Cinema que vai na sua
E quando livre, ou quase, das própria pista, misturando método
convenções sociais caretas de de produção comercial com
uma época barra pesada, o elementos bem experimentais.
Cláudio Marzo ainda tem tempo de Coisa fina. Li por aí que o filme fez
se encontrar com ninguém menos sua estreia no Festival de Cannes
que Sonia Braga, menina-em- de 1971 e depois entrou no circuito
-flor e interagir numa atmosfera comercial em pouco mais de
meta-hippie-cinematográfica dez salas no Rio de Janeiro. Taí
bem onírica na praia. Também o sucesso do diretor de cinema
tem a Maria Gladys fazendo brasileiro moderno: estreia
uma ponta, e fumando várias, de très chic na riviera francesa e
Maria Gladys mesmo. E aqui devo papagaios para pagar em casa.
admitir que tenho pela Maria Continuo tergiversando.
Gladys, sua dentição imperfeita,
a pinta enorme que enfeita o Do meio pro final do filme, quando
canto inferior esquerdo do seu as coisas já estão fazendo pouco
rosto, pouco acima da boca, seus ou nenhum sentido, a razão salta
seios enristados e arrepiados, da boca do Carvana…, mas eu
além da maior e mais respeitável não sou um homem de ação, eu
admiração profissional, meu mais sou um brasileiro, cafajeste. Meu
sincero tesão e mais resoluto amor negócio é coqueiro, sacou? O que
platônico (sim, outro). Tudo nesta eu quero é vida mansa, samba. Eu
mulher me chama a atenção de quero combinar com a paisagem.
um jeito estranhamente bom. Que E tá errado? Somos brasileiros e
diria Maria Gladys de mim? temos que retomar o hedonismo
e a insolência que são a distinção
Mas voltando ao filme, vou e o softpower real da raça.
contar, porque vocês não vão
assistir mesmo. Terra em Transe, Vem aqui, tu qué tomar uma
barato total, morena sestrosa de Brahma?

76
Tecnologia
tecnologia

29,97FPS: U-MATIC e
destruição criadora
Lúcio Aguiar
Lúcio Aguiar é formado em Economia (UFRJ). Foi analista e coordenador da
aprovação de projetos da Ancine (2003-2007), coordenador de produção
financeira da Diretores Brasileiros do Cinema e do Audiovisual (DBCA - 2017) e
superintendente da Cinemateca Brasileira (2019). Dirigiu, roteirizou e produziu 15
curtas e 1 longa independentes, sem quaisquer recursos públicos. Presta assessoria
em leis de incentivo para empresas produtoras brasileiras.

O montador decanta e o editor filtra


Gustavo Dahl

INTRODUÇÃO Em todas estas situações


historicamente determinadas, com
Tenho uma teoria sobre o cinema qualquer rótulo aplicável ao bem
de Joaquim Pedro, segundo a produzido, lidaremos sempre com
qual ele fazia ficção ao realizar a estética determinada e limitada
documentários e documentários por uma modalidade econômica
ao realizar ficção. Tomo seu de produção (1). Nesse caso, no
bressoniano Poeta do Castelo e sentido clássico e neoclássico, para
o derradeiro O Homem do Pau além da formação de emprego
Brasil como exemplos relevantes. e renda ou sua capacidade de
Transgredir a fronteira narrativa reprodutibilidade e consumo ou
é sinal de evolução da própria ainda suas formas de produção,
linguagem em relação à camisa sempre teremos uma interface
de força dos gêneros, modalidade com a expressão cultural induzida
criada na fase seminal do cinema, por um efeito-demonstração
mais para função de comércio, dentro de uma dada coletividade,
a qual, quem diria, tornou-se um gerando, como consequência, um
dogma na era das videolocadoras. processo identitário afirmativo ou

78
de deculturação. Nesse ponto, por Albert Fishlow(5) e outros
objetivo examinar alguns aspectos autores pós-cepalinos. Esta
econômicos da hibridização esquematização também aca-
que constituiu a passagem do bou influindo na “teoria da cauda
meio tecnológico de suporte longa” de Chris Anderson(6),
químico para o meio de suporte em que o nicho de mercado
magnético durante os anos 1980 metonimiza a política de gêneros
e 1990, determinando um padrão narrativos. Em suma, esquema-
estético imposto pela tecnologia ticamente, podemos adaptar o
de vídeo. modelo cíclico tanto à evolução
tecnológica quanto às mudanças
Por conta do limite tecnológico estruturais da economia
ocorrem crises cíclicas de no Brasil a partir de quatro
produção devido ao patamar fases: prosperidade, recessão,
superior de consumo, gerado depressão e recuperação. Como
pela inelasticidade de demanda, é patente, o mesmo conceito é
provocando a necessidade de aplicável ao ciclo de produto
introdução de novas formas de em que as quatro fases se
oferta tecnológica para reativar repetem enquanto introdução,
o consumo, o que vulgarmente crescimento, maturidade e
se traduz no chamado ciclo declínio. Observe-se que o declínio
schumpeteriano(2).Este modelo corresponde ao acesso universal
por seu turno deriva do estudo à tecnologia (vulgarização) em
publicado por Nikolai Kondratiev relação diametralmente oposta à
em 1928(3), a partir de análise fase inicial de introdução, quando
estatística de dados econômicos o bem tecnológico só é acessível
do século XVIII até a década a uma pequena parcela de
de 1920, em que conclui sobre consumidores.
a existência de “ondas” com
movimentos ascendentes e Agrego a estas balizas teóricas
descendentes a cada cinquenta a questão acessória da barreira
anos. Embora criticado à época, à entrada(7) que impede o
foi assimilado e aperfeiçoado acesso universal de produtores
por Schumpeter associando de conteúdo ao financiamento
diretamente ao processo de de suas ideias, questão central e
renovação tecnológica. Assim pouco discutida tanto na evolução
como, no Brasil, por Ignácio estética das expressões audio-
Rangel(4) adaptando as ondas de visuais no Brasil, como no papel
Kondratiev aos limites das subs- restritivo que as leis de incentivo
tituições de importação, o que causam neste próprio acesso
de certa forma acabou ressoado ao financiamento. Neste último

79
ponto, cito godardianamente hemisfério norte, com todas as
o meu professor Carlos Lessa, consequências em termos de
simplesmente propondo, como processamento e conservação
fazia de forma recorrente em que tal padrão nos trouxe.
sala de aula, que deixemos esta
questão enquanto “dada” para Em primeiro lugar, o custo
efeito de análise, visto o escopo unitário de 10 minutos da matéria-
desta presente abordagem -prima cinematográfica, a
envolver apenas uma parte da película em 16mm ou 35mm subiu
raiz específica deste problema de cerca de 4.000% (quatro mil por
restrição de crédito como forma cento), somente entre maio de
de bloqueio de expressão. 1979 e agosto de 1981(9), devido a
economia plenamente dolarizada
e caminhando a passos largos
DO U-MATIC AO VHS para a especulação financeira
como mecanismo de proteção
A passagem do suporte químico ao grande capital para a crise
para o suporte magnético estrutural da dívida, leia-se “open
coincide com a crise da dívida market” e “overnight”, cujo bode-
externa ocorrida ao longo do -expiatório foi novamente a crise
Governo Figueiredo (1979-1984). do preço do petróleo, abstraindo
Esse recorte temporal marca a nossa histórica propensão à
tanto a consolidação do formato especulação.
U-Matic(8) como a implantação
do sistema VHS Home Vídeo por Em segundo lugar, associado
aqui. a esse quadro inflacionário,
encontramos uma situação de
Como na Economia da Cultura monopsônio para a aquisição do
sempre fomos constantes negativo centralizado na Kodak
consumidores tecnológicos, sem Brasileira, mero entreposto de
quaisquer preocupações em vendas de material sucateado
desenvolver bens de capital ou “hecho in Mexico”, quando não era
similares nacionais, em que pese vendido fora ou no limite de sua
a teórica política de substituição validade, ou mesmo sem número
de importações, no caso em de borda, fator essencial para
tela, demonstrando um caráter a montagem do negativo. Esta
seletivo, nos restou a condição é a primeira barreira à entrada
de assimiladores / importadores porque só adquiria o produto
da inteligência tecnológica quem fosse cadastrado, ou seja,
produzida nas condições normais não se vendia para pessoa física,
de temperatura e pressão do somente para a jurídica.

80
Em terceiro lugar, como a adicionais de restauração dessas
estrutura operacional do cinema produções porque simplesmente a
já adquirira um grau de matu- captação original em 16mm foi-se
ridade, os custos obedeciam a embora nesse processo de fina-
um padrão no qual o material lização. Cabe ressaltar que esse
sensível não alcançava mais do parâmetro estrutural serviu tanto
que dez por cento do orçamento aos longas como à crescente
global. Com a espiral inflacionária produção de curtas, fazendo
daquele período, essa relação letra-morta aquela pueril máxima
avinagrou, em que pese algumas sobre o declínio de preços com o
acomodações empreendidas em aumento da demanda.
termos de “facilidades”, como
o puro e simples contrabando Por último, a espiral inflacionária
do negativo Orwo da Alemanha do material sensível provoca um
Oriental, praticado dentro de um efeito em cadeia no conjunto
grande laboratório de revelação, dos demais itens orçamentários,
o que acabou “sobrando” para os resultando em orçamentos cada
funcionários da expedição após vez mais inflacionados para
uma operação da Polícia Federal. a filmografia financiada pela
Assim como a utilização de filme Embrafilme (Empresa Brasileira
vencido por parte de diversos de Filmes S/A), empresa de
produtores independentes ou economia mista que agrega a
mesmo ligados à produção de produção cultural oposta ao
pornochanchadas, resultado cinema comercial da Boca e do
certamente da circulação de Beco, centrada na comédia de
informação entre fotógrafos da costumes, mais conhecida como
Boca do Lixo paulistana e do pornochanchada.
Beco do Cinema carioca.
Deste modo, um simples fator
Uma alternativa mais a par da como o preço do negativo
economia formal aplicada ao impacta e determina uma barreira
problema foi a pura e simples à entrada ou permanência de
substituição do negativo 35mm produtores independentes no
pelo negativo 16mm(10), implicando mercado. O fracasso das duas
um processo de ampliação do Cooperativas criadas para
corte final da obra para 35mm sobrevida dos associados da
através de contratipagem, mesmo ABRACI (Associação Brasileira de
com o custo dessa operação Cineastas) e da ABD (Associação
totalizar quase o dobro da simples Brasileira de Documentaristas),
revelação e copiagem do material respectivamente a CBC (Coo-
bruto, o que hoje traz problemas perativa Brasileira de Cinema)

81
e a CORCINA-RJ (Cooperativa funções que requeriam uma truca
dos Realizadores Cinemato- como fades, legendagem ou
gráficos Autônomos), a primeira demais efeitos visuais, com um
enveredando pela exibição e a simples aperto de botão eram
segunda obrigada a se restringir resolvidos em tempo mínimo. Por
à esfera do curta-metragem e outro lado, a reciclagem profis-
simultaneamente impedida de sional era obrigatória, implicando
crédito por parte da Embrafilme adquirir um conhecimento
para compra de equipamentos tecnológico em princípios diversos
de produção, acaba provocando do então existente, donde uma
um fluxo migratório para as novas forma adicional de barreira à
tecnologias de vídeo. Por sinal, entrada, no caso, para o técnico
a última atividade desenvolvida de finalização.
pela CORCINA-RJ foi um curso
de capacitação em U-Matic para A eliminação do aparato fílmico
seus cooperados. inicia também um processo
de terceirização de serviços
Em paralelo, o próprio padrão de com a abertura por antigos
produção televisivo também sofre funcionários das emissoras de
uma modificação estrutural. Toda produtoras independentes que
a operação de captação e trans- servem de apoio a produções
missão de conteúdo jornalístico institucionais, ofertando também
e documental era centralizada seu equipamento de gravação
nas próprias emissoras até a e edição para o emergente
chegada do U-Matic. Como no mercado de videomakers que
restante do mundo, filmava-se começa a se afirmar no limiar
em 16mm reversível com banda da Nova República. Como
magnética, material que era habitualmente o aluguel de uma
revelado na própria emissora. moviola compreendia um turno
Também havia todo aparato de de 6 horas, com um resultado
finalização, incluindo moviolas de prático de 6 minutos, se tanto e
2, 4 ou 6 pratos e estúdio de som. se bem decupado e organizado
A introdução da fita magnética o material, uma ilha no mesmo
de gravação portátil reduziu o tempo, em iguais condições de
custo de revelação, impondo uma “dever de casa” estruturado,
mudança estrutural em termos de poderia render um resultado 5 a
captação de imagem pelo “Custo 6 vezes maior, o preço de aluguel
X Benefício” resultante, sobretudo de uma hora de ilha de edição
em termos de finalização do equivalia a um turno inteiro de
processo, visto que todas as moviola.

82
Essa relação “espaço x tempo”, teórico de acordo de mercado
dentro de um prazo de entrega, entre oligopolistas com a
ao se ajustar dentro de uma pers- heterogeneidade estrutural das
pectiva taylorista de organização redes de televisão após o fim
de trabalho, conduz à perda do da regionalização operacional
tempo reflexivo que o vagar da promovida a partir do final da
moviola proporcionava. Em outras década de 1960, momento no
palavras, a aceleração de colocar qual o conteúdo passa a ser
um plano atrás do outro provoca determinado exclusivamente
uma alteração na equação pela cabeça da rede instalada
possível implícita na teoria da no eixo Rio-São Paulo, a qual se
montagem kulechoviana, na qual subordinam dezenas de emissoras
a soma de dois planos cria um regionais que abandonam a
terceiro conceito. Em todo o caso, maior parte da produção local,
triunfo da montagem invisível. tornada um nicho na grade
de cada afiliada, em favor da
Essa relação “espaço x tempo”, construção de uma programação
dentro de um prazo de entrega, de cunho nacional mais lucrativa
ao se ajustar dentro de uma pers- em termos de visibilidade e anun-
pectiva taylorista de organização ciantes. Dentro dessa perspectiva
de trabalho, conduz à perda do que consolida três redes nacionais
tempo reflexivo que o vagar da (Globo, Bandeirantes e Record),
moviola proporcionava. Em outras a modificação operacional do
palavras, a aceleração de colocar sistema químico para o magnético
um plano atrás do outro provoca é uma unanimidade. Mas,
uma alteração na equação produzirá respostas diferentes
possível implícita na teoria da de programação em função da
montagem kulechoviana, na qual rigidez da grade construída em
a soma de dois planos cria um cada rede.
terceiro conceito. Em todo o caso,
triunfo da montagem invisível. Assim, a minúscula TV
Corcovado no Rio vendia horários
AMPLIAÇÃO E DIVERSIFICAÇÃO para a emergente produção
DO MERCADO AUDIOVISUAL independente (Noites Cariocas,
Barra Pesada) e a Bandeirantes
Mas, se esse movimento amplia e coloca a estética inovadora de
diversifica o mercado audiovisual Mocidade Independente em sua
em uma década perdida para grade de horário nobre noturno,
a inflação e o desemprego, abrindo caminho para a compra
também produz efeitos adversos. de horários para além dos
Aqui cabe confrontar o modelo televangelistas, com o Programa

83
Goulart de Andrade. Já a TV grade da CBS americana com
Globo, em sua grade engessada, o nosso padrão documental
regride em termos estéticos seu institucional de Jean Manzon,
único programa da linha de show Isaac Rozemberg ou Cesar
no viés documental a ocupar o Borges, versão contemporânea
privilegiado horário entre a novela dos cavadores dos anos 1920. Esse
das oito e a novela das dez, qual hibridismo cria um personagem
seja, o Globo Repórter. Esse, com “Amaral Netto”, espécie de Indiana
a substituição da película pelo Jones avant la lettre, capaz de
magnético, termina por virar mais estar nos Pampas e na Pororoca
repórter do que nunca, a ponto Amazônica entre um programa e
de moldar toda uma geração outro, com direito inclusive a jogar
com essa visão do documentário fora uma Arri Bl-16mm para poder
enquanto mera reportagem. sobreviver em uma situação de
perigo real ocorrida durante as
Como é sabido, o Globo Repórter gravações de um dos episódios.
derivou do programa Globo-Shell Simultaneamente, o programa
Especial, que ocupava as noites se inscreve tanto na construção
de quinta-feira após a novela das da imagem de “Brasil Grande” do
10, entre 1971 e 1973, produzido governo Médici (1969-1974) como
pela Blimp Filmes, empresa de no projeto de unificação territorial
Guga Oliveira, irmão de Boni, em redes nacionais da televisão.
superintendente de Produção e Com essa bagagem, para além
Programação da Rede Globo. O de tornar seu programa a primeira
programa seguia uma experiência atração em cores da emissora, o
de terceirização de conteúdo, por repórter se reelege seguidamente
sinal amplamente praticada nas como deputado federal, até o
redes americanas, experiência encerramento do programa em
que a gestão da empresa brasi- 1981, no auge da crise da dívida,
leira tenta repetir, após o sucesso quando passa a se dedicar
da parceria com a produtora integralmente à vida pública,
Plantel no Programa Amaral centrando sua pauta no projeto
Netto, O Repórter, a partir de da pena de morte...
1970, quando a TV Globo obtém
o licenciamento em sua grade, Por contraste, o programa
retirando-o da grade da TV Tupi. Globo-Shell envereda por uma
leitura culturalista da identidade
Amaral Netto, braço direito do nacional, com a participação de
ex-governador Carlos Lacerda, documentaristas do Cinema Novo
udenista de quatro costados, na realização desse conteúdo,
desenvolve um programa que como Geraldo Sarno, Walter Lima
mescla o formato de docu- Jr, Gustavo Dahl, Maurice Capovilla
mentário-jornalístico exitoso na e Paulo Gil Soares, que se tornará

84
o diretor desse núcleo quando esse patrimônio será uma das
a atração deixar de ser uma raízes para o orwelliano crachá no
terceirização e se transformar em afã de evitar que os funcionários
produção exclusiva da emissora a da casa fizessem trabalho para
partir de 1973, embora, eventual- fora, também denominado “jabá”
mente ainda utilize a Blimp para no jargão televisivo.
algumas produções.
Tanto o Globo-Shell como o
De forma dialética, o Globo- Globo-Repórter incorporam a
-Repórter surge dentro de um linguagem documental cinema-
contexto cultural no qual o novista, embora importem-se
conceito do nacional e popular alguns formatos americanos de
está em evidência, inclusive como docudrama como no caso de
forma de afirmação cultural ante Últimos dias de Lampião (Maurice
o avanço do colonialismo cultural Capovilla – 1975) que reconstitui
representado pelo cinema a morte do cangaceiro com
hegemônico de Hollywood e características narrativas de
pela expansão dos “enlatados” documentário, espécie de versão
(seriados e filmes para televisão) local de Os últimos dias de Cristo
por todas as redes e emissoras. (1973), produzido pela CBS e
Agregando um arco de realiza- exibido anteriormente no mesmo
dores majoritariamente ligados à programa.
esquerda tradicional e ocupando
uma posição privilegiada no Como resultado de uma pauta
jornalismo da emissora, possuindo subliminarmente gramsciana do
dois núcleos de produção em nacional e popular, passam a
São Paulo e no Rio, onde ocupa ocorrer áreas de atrito com áreas
uma casa fronteiriça à sede da do governo federal, culminando
emissora na rua Pacheco Leão, com a censura de Seis dias de
local destinado posteriormente Ouricuri, de Eduardo Coutinho
ao CEDOC (Centro de Documen- (1976), e Wilsinho Galileia, de
tação) da TV Globo. João Batista de Andrade (1978).
Paradoxalmente, a censura
Se na fase Globo Shell ocorre a do documentário de Coutinho
necessidade de utilizar serviços representa um grande benefício
de terceiros como os estúdios para o movimento cineclubista
Della Riva para finalização carioca, porque o conteúdo
sonora, com o Globo Repórter em 16mm foi disponibilizado
tudo se resolve interna corporis, gratuitamente pela Filmoteca da
com moviolas, nagras, Arris Bl Globo, que funcionava ao lado
16mm, Lentes, Mini Bruts, Fresnels, da portaria da Lopes Quintas,
estúdio de sonorização e base propiciando um verdadeiro tour
de produção concentrados no do realizador pelos cineclubes
mesmo espaço. Curiosamente, da cidade para debater tanto

85
o conteúdo, como a censura viagem no tempo (1985) e China,
e outras pautas de resistência o império do centro (1987), da
cultural, como era usual à época. Intervídeo, todos transmitidos
pela TV Manchete.
Quando a crise da dívida
impacta diretamente no custo de CONCLUSÃO
produção de cinema e televisão,
a solução U-Matic é colocada em Em resumo, a passagem do
prática. Suspende-se o programa meio fotoquímico para o meio
para reformulação conceitual magnético com a introdução do
por alguns meses e ao retornar U-Matic foi o balão de ensaio para
em março de 1982, no lugar de um ciclo de destruição criadora, o
um media-metragem, ocorrem modelo schumpeteriano, no qual
várias “reportagens especiais” de lança-se uma nova tecnologia
15 minutos no formato magnético. para ultrapassar o limite de
Na verdade, a reestreia é um consumo alcançado pela
teste de audiência que também tecnologia anterior.
é suspenso, sob o pretexto da
preparação para a Copa de 1982, Com isso, adicionalmente,
retornando à grade, definitiva- impõe-se uma ou diversas
mente, em 1983, sob a direção barreiras à entrada, seja pela
de Roberto Feith, que posterior- necessidade de reciclagem
mente iria se transferir para a profissional constante no lado
organização da área documental da mão-de-obra, seja para
da TV Manchete em meados o investimento na constante
dos anos 1980. O novo formato necessidade de compra de bens
edulcora e apara as arestas com a de produção atualizados pelo
censura e com o governo, trazendo lado do produtor. Praticamente
progressivamente uma pauta em um intervalo de cinco anos,
voltada ao cotidiano apolítico todos envolvidos na produção
e ecológico, entronizando os audiovisual, em decorrência da
paradigmas de reportagem condição de consumidores e
jornalística, como praticado em não de desenvolvedores tecno-
outros telejornais da emissora, lógicos, ficariam desde meados
como eixo narrativo. Contudo, dos anos 1980 ao sabor da no-
dada a visibilidade do programa, vidade externa, sucessivamente
forma toda uma geração com passando pelo Betacam-SP,
uma recepção que metonimiza Digibeta, DV Cam, Mini-DV até
essa diegese de reportagem a convergência digital dos anos
enquanto paradigma narrativo 2000, ao preço da perda da
de documentário. Interessante discussão estética em favor dos
notar que ao descenso estético modismos trazidos por cada uma
do Globo Repórter corresponderá destas inovações tecnológicas,
a ascensão de modelos mais que afetam diretamente, no
próximos ao formato inicial desse caso específico do documentá-
programa como o Documento rio, a sua transformação de sua
Especial, dirigido por Nelson centralidade imagética em favor
Hoineff, e as séries Japão, uma de uma centralidade verbal.
86
NOTAS: vídeo, visando equilibrar perda de
1
– BORDWELL, David; STAGIER, resolução, podendo utilizar fitas
Janet; THOMPSON, Kristen. The de até 60 minutos para o corte
Classical Hollywood Cinema: film final.
style & mode of production to
1960. Londres: Routledge. 1991. 9
– O preço de aquisição de uma
lata de 1000 pés / 300 metros
2
– SCHUMPETER, Joseph A. em 35mm do negativo Kodak
Bussiness cycles. New York: 5231-Plus X que paguei em 1979
McGraw-Hill, 1939. para meu primeiro curta 35mm foi
de Cr$ 3.000,00 (Três mil cruzei-
3
– KONDRATIEV, Nicolai. Los ciclos ros) e no segundo curta 35mm a
largos de la coyuntura economica. mesma lata de negativo custava
México D.F.: UNAM, 1992. R$ 120.000,00. Apesar de o dólar
na primeira compra ser cotado a
4
– RANGEL, Ignácio. Dualidade R$ 24,775 e na segunda compra
básica da economia brasileira. a R$ 99,110 era alegado à época
Rio de Janeiro: Instituto Superior que a aceleração do preço da
de Estudos Brasileiros, 1957. base de fixação do acetato, o sal
de prata chileno, havia disparado
5
– FISHLOW, Albert. Origens e com a desindustrialização e repri-
consequências da substituição de marização promovida no governo
importações no Brasil. São Paulo: Pinochet. Novamente temos aqui
Estudos Econômicos, (7): 7-75, dez. um exemplo acabado de como
1972. funciona o processo especulativo,
onde o pretexto faz a festa ante a
6
– ANDERSON, Chris. A Cauda vista grossa do poder público.
longa. Rio de Janeiro: Campus/
Elsevier, 2006. 10
– Uma lata de 1000 pés / 300
metros em 35mm equivalendo
7
SCHERER, Frederic M. Preços a 11 minutos e uma lata de 1200
industriais: teoria e evidência. Rio pés / 360 metros em 16 mm equi-
de Janeiro: Editora Campus, 1979. valendo a 33 minutos. Cabe aqui
mencionar que a maioria dos
8
– Fita cassete magnética de ¾ produtores comprava latas de 120
Polegadas com capacidade de metros por conta da maioria das
20 minutos de gravação captada câmeras locadas neste período só
por câmera de 3 tubos R-G-B possuírem chassis neste tamanho,
acoplada a um gravador, o que o que implicava um custo adi-
obrigava à gravação incluir obri- cional unitário em relação à lata
gatoriamente um cinegrafista e maior que obrigava a cortar o
um operador de vídeo. O material rolo numa sala escura, processo
bruto era editado em uma ilha artesanal sempre resolvido na
com waveform e vectorscope base de uma relação informal de
para monitoramento do sinal de pagamento por esse serviço.

87
o cinema e...
as mulheres

As cineastas
brasileiras: feminismo
e cinema autoral no
Brasil
Luiza Lusvarghi
Luiza Lusvarghi é docente permanente vinculada à pós-graduação em
Multimeios e pesquisadora do grupo GENECINE (Grupo de Estudos Sobre Gêneros
Cinematográficos e Audiovisuais) da Unicamp, membro da Abraccine e dos
Coletivos Elviras, Mais Mulheres e Manifesta.

INTRODUÇÃO A primeira cineasta a dirigir uma


obra popular que atingiu grandes
As mulheres que contribuíram audiências foi Gilda de Abreu, com
para o fazer cinema no Brasil estão o longa O Ébrio (1948), que obteve
presentes desde a era silenciosa, oito milhões de espectadores, e
a maioria invariavelmente em era protagonizada por seu marido,
funções de atriz ou produtora. A o cantor Vicente Celestino. É
primeira realizadora oficial a ser possível afirmar que a maior parte
creditada foi Cleo de Verberena, da produção feminina no cinema
com o longa-metragem criminal nacional dos anos de 1930 até a
de suspense O Mistério do Dominó década de 1960 buscava espaços
Preto (1930). A reação da imprensa mais vinculados à visão tradicional
e mercado era quase sempre de cinema do período, sem
discriminatória: grandes arroubos experimentais.
Carmen Santos era próxima aos
Uma senhora convidada integrantes do ciclo de Cataguases
a assumir a direção de um e a Humberto Mauro, com quem
filme, em São Paulo, onde trabalharia em Sangue Mineiro
as dificuldades chegam a (1929), tendo também atuado
desanimar muitos homens... como atriz em Limite (1931), de Mário
desejasse entrar para o sol dos Peixoto. Ela começa a produzir com
que batalham pelo cinema Peixoto Onde a Terra Acaba (1933),
brasileiro, de bom grado se que seria finalizado por Octavio
submeteria à direção de uma Gabus Mendes, mas deixou como
senhora? (1) diretora apenas o drama histórico
88
Inconfidência Mineira (1948). É, propõem à Assembleia Nacional,
portanto, da década de 1960 em em 1789, um documento pedindo
diante que podemos pensar em igualdade de direitos. No entanto,
um cinema feminino de cunho a escritora francesa Olympe de
autoral e feminista, com Helena Gouges, autora de Os Direitos
Solberg, A Entrevista (1968), Ana da Mulher e da Cidadã (1791),
Maria Magalhães, Mulheres de texto profundamente ancorado
Cinema (1976), Tereza Trautman, no liberalismo, é guilhotinada
Os Homens que Eu Tive (1973), e em 1793, por ter ambicionado ser
Ana Carolina, Mar de Rosas (1977), um “homem de estado”. Outra
o que está perfeitamente condi- intelectual importante foi a inglesa
zente com o contexto mundial do Mary Wollstonecraft (ibidem., p. 25,
feminismo e do cinema. posição 269), que publicou ensaio
crítico às ideias de Rousseau
É entre as décadas de 1960 e sobre as mulheres em 1792.
1970 que os movimentos pelos
direitos civis e o feminismo, em Em 1865, John Stuart Mill propõe
meio a protestos contra a Guerra ao Parlamento inglês um projeto
do Vietnã (2), ganham destaque de lei dando voto às mulheres, e
e começam a influenciar o no ano seguinte surge em
imaginário mundial e a socie- Manchester o Comitê pelo
dade brasileira, que até então Sufrágio Feminino. O processo é
não tinha passado pelo contexto semelhante aos dos Estados
do feminismo de massas como Unidos, mas o movimento se
ocorreu em outros países. O radicaliza, criando conflitos entre
sufragismo enquanto movimento as pacifistas e as sufragettes. “A
massivo surge nos Estados Unidos luta pelo voto feminino no Brasil
em 1848, com a Convenção dos não teve as características de
Direitos da Mulher em Seneca movimento de massas, como
Falls (ALVES, PITANGUY, 2017, ocorreu nos Estados Unidos e na
p.32, posição 335), que aprovou Inglaterra. Iniciou-se bem mais
uma moção que afirmava “ser tarde, em 1910, quando a
o dever de toda mulher o direito professora Deolinda Daltro funda
ao sufrágio”. A luta pelo direito ao o Partido Republicano Feminino”
voto feminino e à igualdade de (ibidem., p.34, posição 538).
direitos de homens e mulheres,
entretanto, é anterior. O conceito No Brasil surgem articulações
de movimento de mulheres como de mulheres no âmbito do
ação política organizada, e como mercado audiovisual somente
uma questão específica surge na a partir da década de 1970.
França, onde as revolucionárias Sob o impacto da ditadura

89
militar e da censura aos jornais, maior visibilidade internacional,
são poucas as manifestações graças ao Cahiers du Cinéma
artísticas e políticas, e, sobretudo, (ibidem., 2004). Cineastas como
feministas, que ganham visibi- Roberto Santos, mais vinculados
lidade. Magalhães, Trautman e ao neorrealismo italiano e aos
Ana Carolina integram a extinta cenários que ilustram os conflitos
Associação Brasileira de Mulheres urbanos trazidos pela
do Cinema em 1979 (SARMENTO, industrialização, vão ficar quase
TEDESCO in TEDESCO, HOLANDA, sempre em segundo plano.
2017, p.120), que pleiteavam a
presença feminina na direção da Valorizava-se acima de tudo
Embrafilme. a vontade de transformação,
a ação para mudar a História
É da França, contudo, terra da e para construir o homem
primeira cineasta a produzir novo, como propunha Che
ficção, Alice Guy-Blaché (1873- Guevara, recuperando o
1968), que surge o movimento jovem Marx. Mas o modelo
artístico e estético que influenciaria para esse homem novo
o cinema brasileiro e as primeiras estava, paradoxalmente, no
cineastas - a Nouvelle Vague. O passado, na idealização de
“novo cinema” é lançado pelo um autêntico homem do povo,
Cahiers du Cinéma (André Bazin) com raízes rurais, do interior, do
como Nouvelle Vague (Nova “coração do Brasil”, suposta-
Onda), e cria o conceito da mente não contaminado pela
Câmera Stylo (câmera caneta), modernidade urbana Capita-
cunhado por Alexandre Astruc em lista. (RIDENTI, 2005, p.84).
1948. A Cahiers du Cinéma é a
revista que vai consagrar os É interessante perceber que
cineastas Glauber Rocha, Nelson as diretoras brasileiras vão se
Pereira dos Santos e Ruy Guerra remeter menos a conceitos como
internacionalmente, respectiva- a Estética da Fome, o manifesto
mente diretores de Deus e o Diabo escrito por Rocha para discutir as
na Terra do Sol (1964), Vidas Secas especificidades brasileiras, e mais
(1963) e Os Fuzis (1964), considerada às questões políticas do cotidiano,
a trilogia de ouro do Cinema Novo aos conflitos sociais urbanos,
(FIGUEIRÔA, 2004). A visão de um que impactam diretamente
Brasil rural, de onde viria a na condição feminina, e nisso
revolução, explorada também por coincidem com a única cineasta
cineastas homens ligados ao mulher da Nouvelle Vague, Agnès
Cinema Novo não é o único Varda, a quem Teresa Trautman
conceito que vai predominar no chegou a ser comparada pela
movimento cinemanovista, mas crítica ao estrear Os Homens que
certamente é a que angariou Eu Tive.
90
AS CINEASTAS BRASILEIRAS E O sua intimidade e liberdade de
AUTORISMO escolha sexual com tanta natu-
ralidade? Como uma jovem de
O cinema documental de 22 anos ousava ser a primeira
Helena Solberg em sua primeira diretora do cinema brasileiro no
fase é claramente influenciado período ditatorial e ainda trazer
por essa nova onda: com uma à tona esse tipo de temática?
câmera na mão e muitas ideias E se as mulheres das boas
na cabeça a jovem autora famílias resolvessem pensar assim
produz A Entrevista (1966), e sai também? O “mal” teria que ser
do país, estabelecendo-se nos cortado pela raiz, com a tesoura
Estados Unidos, onde realiza sua moral da censura (VEIGA, Ana
trilogia feminista, The Double Day Maria, 2013, p. 241).
(“Dupla Jornada”), The Emerging
Woman (“A Nova Mulher”, 1975), e Ana Carolina estreia seu
Simplesmente Jenny (1978). A jovem primeiro longa-metragem Getúlio
Tereza Trautman é comparada Vargas (1973), um documentário
pela crítica a Agnès Varda (1928- de montagem eminentemente
1919) por discutir no cinema a autoral, porém mais distante dos
liberalização de costumes e a ideais cinemanovistas que ela
contestação à moral burguesa que exibe nos curtas. Em 1977 estreia
é associada ao movimento hippie na ficção com Mar de Rosas,
e à contracultura, referências libertário e irreverente, ao qual
predominantes em Os Homens se seguiriam Das Tripas Coração
que Eu Tive (VEIGA, 2013, p.63) (1982) e Sonho de Valsa (1987),
que deveria ser estrelado por alegórica e teatral, marcando
Leila Diniz, morta precocemente, posição como autora. É visível
e que foi substituída por Darlene na linguagem experimental e
Glória, autêntico ícone erótico do alegórica de Mar de Rosas o
cinema do período. O filme de anseio libertário e iconoclasta
Trautman, um drama de costumes de cineastas franceses como
sobre uma jovem mulher, Pity, Godard, conforme relato do livro
que juntamente com seu marido, Ana Carolina (Teixeira Soares):
Dode, vive relações abertas e se cineasta brasileira.
relaciona com outros parceiros,
foi um dos mais censurados Tempos depois, quando eu
durante a ditadura militar. O que tinha 20 anos, fui ver Le Petit
parece ter chamado a atenção Soldad, de Jean-Luc Godard,
[...] é o comportamento de uma no Cine Regência, na Rua
mulher casada e “liberada”. Afinal, Augusta. Eram os primórdios
como essa personagem poderia daquela febre godardiana
desvendar ao público espectador que tomou conta dos cinéfilos

91
do mundo. Esse foi o meu Gaijin, os Caminhos da Liberdade
segundo estágio em direção (1980), Susana Amaral, A Hora
ao cinema. Esse filme bateu da Estrela (1985), Lucia Murat,
forte em mim. (MOCARZEL, O Pequeno Exército Louco (1982)
2010, p.20) e Que Bom te Ver Viva (1989), ano
fatídico para o cinema brasileiro,
O uso da simbologia religiosa por conta das primeiras eleições
cristã é recorrente nas obras diretas do país, que colocam
de Ana Carolina (AMARAL, 2019) Fernando Collor de Mello como
inclusive em Gregório de Mattos, arauto do neoliberalismo local,
seu filme mais enigmático, que e assinalam o fim da Embrafilme
a aproxima de Jacques Rivette, sob a acusação de corrupção,
ainda que ela nunca o mencione. e a produção brasileira só viria a
A influência do cinema europeu, se recuperar sob o processo da
e particularmente do cinema Retomada, em meados de 1990
italiano e francês (MOCARZEL, (4).
op. cit.), advindas de educação
rígida de colégio alemão, está Lucia Murat, cuja obra se inicia
presente em Mar de Rosas, filme nesse hiato, oscila entre a ficção
que promove a associação e o filme-ensaio, mesclando
explícita entre a família patriarcal documental e ficção, criando
e a ditadura militar. Nela, Sérgio alter-egos que falam de sua
(Hugo Carvana), provavelmente experiência como presa política,
um colaborador do governo, está mas também revelando sua
em plena crise conjugal com preocupação com os rumos
Felicidade (Norma Benguel), a mãe, do país e da cultura, o que
deixando a filha Betinha (Cristina se consolidaria ainda mais no
Pereira) (3) num autêntico limbo, documentário manifesto Olhar
representando uma juventude Estrangeiro (2006), sobre como
desiludida pelos padrões conser- os estrangeiros retratam o Brasil
vadores impostos, mas não sabe em suas obras, baseado na tese
bem para onde ir e, ao final do publicada em livro de Tunico
filme, revela uma atitude punk – Amâncio O Brasil dos Gringos:
pouco importa para onde, ela Imagens do Cinema (2000), e em
quer é se livrar dessas amarras Praça Paris (2018), uma discussão
religiosas e da servidão e seguir sobre contratransferência que
vivendo. coloca em discussão a identidade
lusitana e a brasileira, a elite e
Livre das amarras do Cinema a favela, no contexto de uma
Novo, mas ainda sob o jugo da universidade e de uma relação
ditadura, a década de 1980 vê psicanalítica. Tizuka, outro nome
surgir ainda Tizuka Yamasaki, com que desponta na década de

92
1980, afirma-se como diretora em retratar seu cotidiano
sem abrir mão de suas raízes e da doméstico, a vida subjetiva, sem
ascendência nipônica, colocando abrir mão das questões políticas.
nas telas a saga da imigração Embora o primeiro grande êxito da
japonesa em nosso país, com Retomada seja o drama histórico
Gaijin, que teve uma sequência e farsesco Carlota Joaquina (1995),
muito mais tarde, com Gaijin, literalmente a maior bilheteria dos
Ama-me Como Sou (2005), mas anos que se seguiram à Era Collor,
também os ecos dos movimentos com 1,5 milhão de espectadores, o
políticos como o Diretas Já em cinema feito por mulheres a partir
Patriamada (1984). Sua última da Retomada é marcado por
produção, Encantados (2018), personagens do entorno urbano
pode ser descrita como cinema e dos conflitos sociais advindos
fantástico, lidando com lendas, do desenvolvimento das grandes
etnia, e com a condição feminina, cidades, como a trágica e sen-
além de reafirmar uma vocação sível cabeleireira Dalva (Leona
para trabalhar com o universo Cavalli), de Tata Amaral em Um
infanto-juvenil. Murat e Yamasaki Céu de Estrelas (1997), e Pequeno
representam as duas cinemato- Dicionário Amoroso (1996), de
grafias mais sólidas do cinema Sandra Werneck. Enquanto
brasileiro feito por mulheres, em Amaral trabalha com questões
criatividade e em dados de identitárias que remetem às
produção – Murat conta com 14 camadas médias urbanas e à
longas-metragens e Yamasaki periferia, Sandra Werneck retoma
com 13 longas-metragens em sua tradições de linguagem de
trajetória. produções consideradas menos
politizadas pelo ciclo cinema-
A partir da década de 1990, novista, como as de Domingos
conhecida como a era da de Oliveira, apostando mais no
Retomada, que se segue ao drama de costumes com toques
desastre cultural promovido ligeiramente poéticos.
pela era Collor, surge um
cinema produzido por mulheres, A construção dramatúrgica
que possui uma clara postura das personagens é um dos
ideológica no sentido de buscar pontos fortes deste cinema com
uma representação mais ampla muito protagonismo feminino,
da mulher, mas também dos trazendo temas densos, e essas
excluídos sociais e das questões características também podem
urbanas. Trata-se claramente de ser encontradas nas obras de
um cinema que quer ampliar seu outras cineastas que vão marcar
público, e que está preocupado sua presença a partir da virada

93
do milênio, como Laís Bodansky, O protagonista masculino fica
que estreia na ficção com Bicho solto no palco comandando
de Sete Cabeças (2000), e Anna a ação. Mulvey reconhece na
Muylaert com Durval Discos (2002). atualidade que essas reflexões
estavam pautadas pelo cinema
AS TEORIAS FEMINISTAS E O mainstream o das grandes
CINEMA bilheterias, o star system criado
por Hollywood. De passagem
O primeiro texto a exercer pelo Brasil, Mulvey dará uma
influência sobre a teoria do entrevista à Revista de Estudos
cinema foi o ensaio de Laura Feministas (2005), dizendo que
Mulvey intitulado Prazer Visual e embora mantivesse os conceitos
Cinema Narrativo (In: XAVIER, 2018), formulados em seu texto,
publicado originalmente em 1975, escrito em meio ao processo
na revista Screen. Nele, ela prega de consolidação das princi-
um uso político da psicanálise: pais teorias cinematográficas,
para o sistema já existe uma visão admitia que seu ensaio se
da mulher como eterna vítima, referia explicitamente a filmes
pois é a mulher castrada que mainstream hollywoodianos, e
significa o falo como presença não necessariamente a todos
simbólica. A mulher é portadora os filmes produzidos nos Estados
de significado e não produtora de Unidos naquele período, ou
significado. Hollywood sempre se produzidos por homens.
restringirá a uma mise-en-scène
formal que reflete os conceitos Mulvey incorpora em seu
dominantes. Mulvey situa o prazer famoso ensaio os buddy movies,
no olhar em dois momentos: o da normalmente repletos de
escopofilia pura e simples, que bailarinas, dentre os quais se
toma as pessoas como objetos, encontram ainda os filmes de
e o da constituição do ego guerra, que incluem os filmes de
narcísico, associado ao momento Joseph Sternberg, sobretudo
em que a criança se reconhece os realizados com Marlene
no espelho, necessário para que Dietrich, consagrada por O Anjo
esse espectador se identifique Azul (1930), a personagem Kay
com o seu lado masculino. Eis o Weston de Marilyn Monroe no
cinema convencional propagado drama faroeste O Rio das Almas
sobretudo por Hollywood, a Perdidas (1954), de Otto Preminger,
mulher como imagem destinada e praticamente todos os filmes
ao prazer, o homem como dono de Hitchcock, classificados como
do olhar: ativo masculino e passivo de pura escopofilia fetichista,
feminino. característica que ela vê também

94
na obra de Sternberg (MULVEY, construção se dá tanto a partir da
op. cit., p. 598). Em todos eles formação de um olhar crítico pela
a identificação masculina se audiência negra confrontada com
faz pela ação, enquanto a a sua representação pelo homem
mulher está quase sempre como branco, quanto na elaboração de
uma ilustração desse poder. um tratamento cinematográfico
Para Mulvey, o protagonismo capaz de reverter essa
feminino, bastante estimulado representação. Ela reconhece,
nos women buddy movies, uma contudo, que muitos filmes do
nova sensação do cinema cinema negro independente
contemporâneo, não significa estadunidense reproduziram
necessariamente uma ruptura a mulher negra como objeto,
desse olhar. O male gaze refere-se tal qual Hollywood, e ela inclui
ao olhar masculino heterossexual enfaticamente Spike Lee nessa
que define a mulher como objeto categoria. Quando atrizes negras
de seu desejo e imagem estática, como Lena Horne entram para o
é a percepção do outro sob um star system, muitos espectadores
mecanismo de poder. De certo se dão conta de que ela não
modo, Butler (2018) ratifica essa estava num filme sobre negros,
posição ao pontuar o feminine ela era uma atriz negra num
gaze mais como uma reação do filme feito para brancos, e Hooks
que uma desconstrução desse pontua a crítica Julie Burchill
poder, numa espécie de backlash como uma das poucas críticas
(retrocesso). E. Ann Kaplan (2012), brancas a discutir a intersecção
outra estudiosa do tema cinema, de raça e gênero na construção
mulher e feminismo vai ainda de personagens femininas no
cunhar o termo imperial gaze, cinema dominante (5).
conceito pós-colonial que para
ela é ainda mais importante Para Mary Ann Doane (2018,
do que a questão feminina, ou p. 618), o cinema mudo teria
seja, determinar o centro desse criado um corpo fantasmático
poder é uma forma de deter sua e desincorporado da ação. A
expansão. sincronização entre imagem e som
é o evento mais importante no
Já a ativista e ensaísta negra cinema narrativo contemporâneo.
bell hooks vai criar a partir A tela deve parecer viva aos olhos
dessa discussão outro conceito da plateia, e o advento do som
essencial, o do oppositional gaze, é que reitera o star system, e a
ou seja, a criação de um olhar imagem da mulher vamp e fálica,
de resistência ao male gaze e ao assegurando o ressurgimento da
sistema patriarcal e racista. Essa aura por meio do culto. Para ela a

95
dublagem por vezes se configura Harvey vai identificar na
como a “narração mascarada em femme fatale do noir a mulher
diálogo”. Enquanto para Doane do pós-guerra, em que a
as femmes fatales são sempre desestruturação familiar e as
punidas por problemas morais em novas oportunidades profissionais
toda a cinematografia ocidental, abrem espaço para o surgimento
para Sylvia Harvey, mesmo de conflitos sociais e existenciais
quando morrem ao final, elas são no cotidiano e faz com que as
uma nova visão da “mocinha”, são mulheres passem a questionar
glamourosas, e são o interesse seu lugar no mundo. Casamentos
amoroso do protagonista dos convencionais e uma sólida
clássicos noir, invariavelmente posição no lar não estão mais no
masculino, ainda que entrem em horizonte dessa nova mulher, e
cena para servir como sexual a representação desses anseios
commodity (1998, p. 72). As femme por mulheres glamourizadas e
fatales do noir buscam formas de aparentemente frias é uma forma
escapar a seu destino tedioso, mais conservadora de colocar
a casamentos convencionais, à em cena uma personagem que
alienação, elas representam as representa essa mudança.
mulheres do pós-guerra.
O PROTAGONISMO FEMINISMO
Para os estudiosos das questões E A DIVERSIDADE DE GÊNEROS
de gênero dentro do noir, como FICCIONAIS
Frank Krutnik (1991), as mulheres
fatais representam a sedução É a partir de posicionamentos
do capitalismo. Praticamente o políticos que se refletem até
oposto de Harvey, ele exemplifica mesmo nos enquadramentos de
esse ponto de vista através da câmera que podemos identificar
sequência de Pacto de Sangue esse novo olhar das cineastas
(1944) em que Phyllis Dietrichson brasileiras, buscando uma nova
(Barbara Stanwick) seduz o representação da mulher diante
corretor de seguros Walter Neff das câmeras, e não apenas no
(Fred McMurray) para induzi-lo set. E essa tendência é mais forte,
a matar seu marido. Harvey não seguramente, a partir da década
é a única a contestar, a própria de 1970, período em que no
Kaplan concorda: “O que retemos mundo inteiro surgem pequenas
de muitos desses filmes não é o revoluções, materializadas até
tratamento repressivo contra as mesmo nos primeiros ensaios
mulheres – em termos narrativos e sobre o tema mulher e cinema. Mas
visuais – mas a força da imagem sob a ditadura militar é forçoso
das mulheres diante da repressão reconhecer que dificilmente as
textual” (KAPLAN, 1998, p.19) (6) mulheres e suas criações artísticas

96
e politicamente posicionadas Em seus importantes trabalhos
seriam tão bem-vindas. A trilogia sobre a imigração japonesa,
feminista de Solberg se dá no Tizuka Yamasaki é discreta e faz
autoexílio nos EUA, e seu docu- do romance interseccional de sua
mentário Dupla Jornada (Double imigrante seu maior arroubo, mas
Day) sobre as mulheres latino- nos longas de temática política
-americanas não inclui o Brasil ela expressa melhor os dilemas
por um motivo simples – os rolos das mulheres contemporâneas.
de filmes gravados em solo pátrio Apaixonadas por homens
foram confiscados (TAVARES, 2011). poderosos e conscientes de
Helena Solberg, de volta ao Brasil, seu papel na história, a poeta
reafirma a narrativa feminista modernista Anayde Beiriz (Tania
com o documentário em favor Alves), em Parahyba Mulher Macho
da legalização do aborto Meu (1983), e a jornalista Carolina
Corpo Minha Vida (2017), lançado (Debora Bloch), de Patriamada
diretamente no canal GNT. (1984), enfrentam conflitos internos
entre as suas carreiras e as de
Betinha, a adolescente de Mar seus objetos de desejo. Na mesma
de Rosas, arremete todo seu década, a primeira cineasta
ódio contra a mãe, Felicidade, na negra do Brasil entre em cena –
verdade uma reação irreverente Adélia Sampaio produz e dirige
em relação ao modelo que ela Amor Maldito (1983) -, colocando
representa. Da mesma forma, a nas telas duas mulheres que são
personagem de Clarice Lispector, ícones de beleza do período,
Macabea (Marcelia Cartaxo), de Monique Lafond e Wilma Dias, a
A Hora da Estrela (1985), ganha garota da banana do Fantástico,
vida nas mãos de Suzana Amaral, apaixonadas, e enfrentando a
exibindo uma delicadeza e uma sociedade moralista (COSTIN
ternura que o conto homônimo FUSER, 2018, p.29)
não nos permite experimentar,
criando uma empatia entre Em 2015 tivemos o lançamento
a jovem nordestina pobre e o de um marco dentro do cinema
espectador que não existe na feminino e feminista no Brasil:
novela. A adolescente desengon- Que Horas ela Volta?, de Anna
çada deixa de ser uma notícia Muylaert, narra a história de
de jornal, aparentemente a fonte uma empregada doméstica a
de Lispector, para se tornar uma partir da cozinha da casa em
cidadã do mundo, a protagonista, que trabalha, transformada em
e faz o público torcer e sofrer por principal locação. A popularidade
ela. do filme pode ser atestada pelos

97
memes durante as declarações ser um fenômeno episódico. A
do Ministro da Economia Paulo virada do milênio assinala a
Guedes sobre a crise financeira estreia de cineastas como Laís
e defendendo a alta do dólar, Bodansky, Anna Muylaert, e
alegando que o país tinha de sair reafirma trajetórias como as de
da farra em que até “empregada Lucia Murat, Tata Amaral, Tizuka
doméstica viaja para a Disney”, e Yamasaki. Enquanto Amaral,
naturalmente pelos prêmios que Bodansky e Muylaert inves-
amealhou mundo afora. Bodansky tem em dramas e personagens
aborda temáticas feministas e que representam subjetividades
familiares em seus filmes Chega políticas e as desigualdades
de Saudade (2007), e o mais sociais na sociedade brasileira,
recente, Como Nossos Pais (2017), Murat aprofunda ainda mais a
em que Maria Ribeiro interpreta linha de filmes-ensaio, presente
Rosa, uma mulher que almeja sobretudo nas obras que
conciliar carreira profissional, mesclam ficção e documental,
relações conjugais, a relação com como o recente Ana. Sem Título
as filhas e a conflituosa relação (2020) e Yamazaki, que se lançou
com a própria mãe, chegando como autora de dramas históricos
a um processo de esgotamento se volta cada vez mais para o
nervoso. Sua estreia no cinema público infanto-juvenil e o cinema
ficcional foi com Bicho de Sete fantástico, traço marcante de
Cabeças (2000), que lançou Encantados (2017).
Rodrigo Santoro e se tornou
O cinema negro tem cada vez
referência para o movimento
mais cineastas, e Adélia Sampaio
antimanicomial no Brasil,
já não é um nome solitário. Viviane
com roteiro baseado no livro
Ferreira, Camila de Moraes,
autobiográfico de Austregésilo
Glenda Nicásio fazem a diferença
Carrano Bueno, Canto dos
com seus longas e a produção
Malditos.
de curtas e médias das cineastas
– Lílian Solá Santiago e Edileusa
Assim, podemos afirmar que Penha nos permitem vislumbrar
embora a década de 1980 tenha produções futuras de porte.
sido fundamental para afirmar a Ainda em pequeno número, mas
produção autoral de cineastas com grande empenho, surgem
como Ana Carolina, Suzana ainda cineastas indígenas como
Amaral, é a partir da Retomada, Larissa Duarte e Patrícia Ferreira
em que pontificam Carla Pará Yxapy. A diversidade e a
Camurati e Tata Amaral, que o pluralidade não estão garantidas,
cinema autoral feito por mulheres mas passam a ter mais visibilidade
vai se consolidar, deixando de e a ocupar espaços.

98
APONTAMENTOS PARA ANÁLISE O documentário, e, sobretudo,
DO CINEMA AUTORAL FEMININO aquele que não se ocupa explici-
BRASILEIRO tamente de questões identitárias
e subjetivas da construção do
Em meio à diversidade de feminino no cotidiano, mas
projetos e estratégias narrativas também de questões político-
da atual produção contempo- -identitárias, como é o caso das
rânea, pode-se afirmar que o obras de Petra Costa e Maria
cinema autoral feminino brasileiro Augusta Ramos, também
vem contribuindo para resgatar representa de forma interessante
e colocar como protagonistas as a mulher no nosso cinema, mas
personagens femininas, retirando- não é alvo desta reflexão inicial.
-as do papel estático reservado Ramos estreia com Brasília, um
em muitas obras do cinema Dia em Fevereiro (1995), mas
nacional, e, portanto, rompendo acaba se radicando na Holanda.
A partir de 2004 se consagra
com o conceito do male gaze.
como umas das mais vigorosas
Para criar esses personagens
documentaristas do cinema
densos que se revelam na ação,
brasileiro, com a câmera sempre
é possível perceber a importância
apontada para as grandes
dada à estrutura dramatúrgica
mazelas do Basil – racismo,
desses filmes por suas cineastas- injustiça social e preconceito.
-autoras. O conjunto de diretoras Costa se lança dentro do docu-
abordado nesse artigo não mentário biográfico, com Elena
representa a totalidade da (2012), para em seguida enveredar
produção feminina em exercício, pelo documentário de cunho
mas aquela que produziu filmes ensaístico, o que a aproxima de
de maior bilheteria, e que, Murat. Seus filmes são autênticos
portanto, se relacionam com seus manifestos, como o recente A
públicos por meio dos circuitos de Democracia em Vertigem (2019).
distribuição comercial e de canais
tradicionais da grande mídia. A vertente do cinema de horror,
Dentre as produções que almejam e ainda do cinema fantástico,
grandes públicos, temos ainda as reúne cada vez mais contribuições
diretoras de comédias, o nosso instigantes de autoras como
blockbuster nacional, como Cris Juliana Rojas, Anita Rocha da
D´Amato, Julia Rezende, que vêm Silveira, Gabriela Amaral Almeida.
criando protagonistas femininas A produção experimental de
importantes, e vêm discutindo as cinema, outra vertente que se
questões de gênero. origina na década de 1960, e que

99
se propõe a incorporar a relação Ampliar essa mirada para
do cinema com outras artes, é uma perspectiva decolonialista
forte e agrega muitas mulheres requer a participação cada vez
desde Ligia Pape a Helena Ignez, maior das mulheres negras, das
passando por Marília Rocha, mulheres de diferentes etnias
Monica Demes Melissa Dullius. Por extremamente oprimidas, como
outro lado, cresce ainda mais a é o caso das mulheres indígenas,
produção voltada as questões pois sem elas teremos sempre
étnicas, e para a questão do uma expressão parcial da cultura
negro na sociedade brasileira, brasileira e o triunfo de um sistema
reunindo nomes como Viviane patriarcal violento e voltado para
Ferreira, Camila de Moraes, a manutenção de elites e privilé-
Glenda Nicásio, Sabrina Fidalgo, gios que remontam ao tempo das
Juliana Vicente. capitanias hereditárias. O olhar
que rompe com o male gaze, esse
A produção feminina do cinema olhar opositor, é coletivo.
nacional nunca foi tão prolífica,
assertiva, engajada e diversifica- NOTAS:
da. O fato de ter nascido mulher, (1) Diário de São Paulo, Uma
por si só, não garante um olhar diretora de filmes brasileiros, 1930
cinematográfico voltado para a apud Luciana Corrêa de Araújo in
construção da subjetividade a Feminino Plural, 2018, pg.18, sobre
partir de uma perspectiva o lançamento de O Mistério do
feminista e crítica, mas a chance Dominó Preto.
de encontrar esse olhar numa
produção feita por mulheres (2) A esse respeito, assistir
engajadas nessa construção é aos depoimentos reunidos no
bem maior. documentário She´s Beautiful
When she´s Angry (2014), de Mary
Muitas mulheres negras não Dore, disponível em https://www.
veem diferente justamente youtube.com/watch?v=e-n829Q-
porque suas percepções da zZ58. Acesso 05/09/2021.
realidade são profundamente
colonizadas, moldadas pelas (3) No depoimento transcrito
formas de saber dominantes. no livro de Mocarzel, ela faz
Como Trinh T. Minh-há apon- referência à Betinha ser portadora
ta em Outside In Inside Out da Síndrome de Down, o que não
(De fora para dentro, de den- fica muito claro no filme, apesar
tro para fora): A subjetividade de ser evidente a forma infantili-
não consiste apenas em falar zada como ela, já adolescente, se
de si mesma [.....] seja essa fala comporta com relação ao pai, que
indulgente ou crítica”. (hooks, idolatra, e à mãe, com quem entra
2019, pag. 188) em conflito aberto. Ana Carolina,

100
que se formou em medicina antes AMARAL, Erika. A simbologia
de estudar cinema, cuidou de religiosa no cinema de Ana
crianças portadoras de defici- Carolina: diálogos com Luis Buñuel
ências antes de enveredar pela e Glauber Rocha. Buenos Aires:
carreira artística. Revista Imagofagia, no 20, 2019.

(4) A Embrafilme, que produzia BUTLER, Judith. Problemas de


filmes brasileiros, foi extinta em 16 Gênero. Feminismo e Subversão
de março de 1990, sem a abertura da Identidade. Rio de Janeiro,
de qualquer processo adminis- Civilização Brasileira, 2018.
trativo ou discussão pública que
pudesse reorientar sua missão DOANE, Mary Ann. A Voz no Cinema:
e a estratégia pelo Programa a articulação de corpo e espaço.
Nacional de Desestatização In: XAVIER, Ismail. A experiência do
(PND), do governo de Fernando cinema. Rio de Janeiro, São Paulo:
Collor de Mello. Foi criada a Paz e Terra, 2018.
Agência Nacional do Cinema, DOANE, Mary Ann. Femmes Fatales:
Ancine. em 2001. No governo Lula, Feminism, Film Theory, Psychoa-
em 2003, foi criada a comissão nalysis. New York: Routledge, 2013.
para discutir a Ancinav, Agência
E-book.
Nacional de Cinema e Audiovisual,
FIGUEIRÔA, Alexandre. Cinema
mas a proposta não teve apoio.
Novo: a Onda do Jovem Cinema
e sua Recepção na França.
(5) O cinema negro independente
Campinas, Papirus Editora, 2004.
se refere não apenas à onda
blaxploitation, que tinha
estrelas como Pam Grier, ou FUSER, Marina Costin. Bruta flor,
ainda à geração L.A. Rebellion, delicadas frestas: ensaio sobre
das décadas de 1970 e 1980, o erotismo e a dor no cinema
ele se inicia antes, ainda no lésbico brasileiro. In: LUSVARGHI,
cinema mudo, e tem suporte de Luiza, VIEIRA DA SILVA, Camila
empresários negros, quase como (orgs). Mulheres atrás das
um cinema de gueto, os race films. câmeras. As cineastas brasileiras
de 1930 a 2018. São Paulo: Estação
(6) Tradução da autora. Liberdade, 2018.

BIBLIOGRAFIA: HARVEY, S. Woman´s Place. The


ALVES, Bianca Moreira, PITANGUY, Absent Family of Film Noir. In:
Jacqueline. O que é feminismo. KAPLAN, E. Ann. Woman in film noir.
Coleção Primeiros Passos, Editora ed.; London: British Film Institute,
Brasiliense, 1a Edição Ebook 2017. 1980.

101
hooks, bell. Olhares Negros, Raça RIDENTI, Marcelo. Artistas e
e Representação. São Paulo: intelectuais no Brasil pós-1960.
Editora Elefante, 2019. Tempo Social, revista de sociologia
da USP, v. 17, n. 1, pp. 81-110, 2004.
ENTREVISTA com Laura Mulvey.
Intercom – Sociedade Brasileira
Rev. Estud. Fem., Florianópolis,
de Estudos Interdisciplinares da
v. 13, n. 2, p. 351-362, Aug. 2005.
Comunicação.
Disp, em <http://www.scielo.br/
scielo.php?script=sci_arttext&pi-
TAVARES, Mariana. Helena
d=S0104-026X2005000200008&l-
Solberg, do Cinema Novo ao
ng=en&nrm=iso>. access on 17
Documentário Contemporâneo.
Oct. 2020. https://doi.org/10.1590/
São Paulo: Imprensa Oficial do
S0104-026X2005000200008.
Estado de São Paulo, 2014.
KAPLAN, E. Ann, Looking for the
Other: Feminism, Film and the VEIGA, Ana Maria, Tereza Trautman
Imperial Gaze. New York: Routledge, e Os homens que eu tive: uma
2012. história sobre cinema e censura.
KRUTNIK, Frank. In a lonely street – Revista Significação, v. 40, no40,
film noir, genre, maculinity. Talylor & 2013, pp. 52-73.
Francis Ltd, 1991.
FILMOGRAFIA:
HOLANDA, Karla, TEDESCO, Marina She´s Beautiful When she´s
Cavalcanti (orgs). Feminino e Plural. Angry (2014), Mary Dore, Estados
Mulheres no Cinema Brasileiro. Unidos, digital, 92 min. Disponível
Campinas: Papirus, 2017. em https://www.youtube.com/
watch?v=e-n829QzZ58.
MOCARZEL, Evaldo. Ana Carolina
Teixeira Soares, cineasta brasileira.
São Paulo: Coleção Aplauso,
Imprensa Oficial, 2010.

MULVEY, L. Prazer Visual e Cinema


Narrativo. In: XAVIER, Ismail. A
experiência do cinema. Rio de
Janeiro, São Paulo: Paz e Terra,
2018.

102
Análise
Fílmica
A crise do intelectual em
tempos de Bolsonaro -
Notas acerca de
#eagoraoque
Arthur Autran
Arthur Autran é professor de história do cinema na Universidade Federal de São
Carlos. É autor dos livros Alex Viany: Crítico e Historiador (2011) e O Pensamento
Industrial Cinematográfico Brasileiro (2013).

... queremos fazer filmes de combate na hora do combate


(ROCHA, 1981, p. 17).

Na realidade esposou pouco o corpo brasileiro, permaneceu


substancialmente ela própria, falando e agindo sobre si mesma.
Essa delimitação ficou bem marcada no fenômeno do Cinema
Novo. A homogeneidade social entre os responsáveis pelos filmes
e o seu público nunca foi quebrada [grifo meu]
(GOMES, 1980, p. 83).

A proposta de #eagoraoque, O cinema de intervenção parece


desde a referência modernizada ser tão mais necessário nesse
ao título do famoso livro de Lênin, momento de forte ataque às insti-
é retomar as possibilidades de um tuições democráticas, aos direitos
cinema de intervenção mais direta humanos e à saúde pública,
na arena política brasileira. Neste ataque promovido pelo próprio
sentido, não deixa de lembrar o presidente da República junto a
brado de Glauber Rocha que me militares & civis cúmplices em uma
serviu de primeira epígrafe. série infindável de crimes.

104
A produção de #eagoraoque tes e assembleias, executando
não possui recursos do Estado e músicas ao piano, suas relações
foi feita com base na cooperação com o pai – chamado Jean-
dos envolvidos, o que é sublinhado -Claude Bernardet – e a filha, as
pelos créditos nos quais não trocas de ideias com uma aluna
há designação das funções, de negra, além de duas tentativas
maneira coerente com a proposta de diálogo absolutamente
política do filme. fracassadas: com um rapaz negro
– interpretado por Valmir do Côco
Porém, e aí remeto à segunda – e com um conjunto de jovens
epígrafe, o sistema de produção da periferia. O pai de Safatle
que possibilitou a realização do no filme, ou seja, Jean-Claude
filme também delimita em grande Bernardet, também tem destaque
medida o circuito no qual ele e podemos acompanhá-lo
circula, circuito cujo público lembrando as formas de atuação
majoritário é integrado pela da esquerda no passado, autoin-
mesma franja social dos seus flingindo-se cortes, sendo irônico
diretores, Jean-Claude Bernardet com a empregada doméstica
e Rubens Rewald, o que significa e aprendendo a atirar com um
dizer não apenas um recorte de instrutor.
renda, mas ainda de capital
cultural e de visão política. A De início, vale destacar a cena
característica apontada por em que pai e filho estão assistindo
Paulo Emílio Salles Gomes no a um espetáculo do Teatro
contexto dos anos 1960 e do Oficina. Safatle é alvo de um
Cinema Novo encontra-se personagem da peça que o
reposta, demonstrando os limites aborda violentamente, prenúncio
algo exasperantes do cinema de outras situações enfrentadas
brasileiro de intervenção política. pelo intelectual ao longo do filme.
A ligação com o Oficina não é
* casual, pois, além de estabelecer
certo pertencimento social aos
O longa-metragem #eagora- personagens centrais, também é
oque, para tentar resumir o fio um dos elementos na obra que
de trama de uma obra bastante articula vínculos entre os anos
disjuntiva, gira em torno de um 1960 e os dias atuais.
intelectual branco de classe
média chamado Vladimir Safatle #eagoraoque não possui
em diversos tipos de contatos e propriamente uma progressão
confrontos. Vemos suas aulas, sua dramática, mas houve evidente
participação em múltiplos deba- preocupação da equipe de

105
realização em que a parte final marcar posições contra as
fosse marcada pela situação injustiças sociais, tendo nas mídias
dramaticamente mais forte massivas um importante veículo
das diversas que nos são para suas ideias. Ela remonta à
apresentadas: uma conversa Émile Zola e sua luta na imprensa
tensa entre Safatle e um grupo de em prol da libertação de Alfred
jovens da periferia. Voltarei a esta Dreyfus.
cena.
A questão do intelectual de
É necessário demarcar que não esquerda, em especial o cineasta,
se deve confundir as personas e da barreira que o separa do
públicas de Safatle e Bernardet povo, ao qual busca se dirigir,
com os personagens homônimos é um tema importante na obra
de #eagoraoque, muito embora de Jean-Claude Bernardet, o
o filme, na sua economia de codiretor do filme ao lado de
informação, se aproveite de Rubens Rewald. Está presente
dados das vidas destas pessoas tanto nos livros fundamentais
para compor os personagens da Brasil em tempo de cinema e
ficção. O fato de na realidade Cineastas e imagens do povo
Bernardet não ser pai de Safatle quanto no belo documentário
demonstra, por óbvio, que não se Sobre os anos 60. De maneira
deve recair na confusão mencio- matizada, esta temática também
nada. perpassa um dos textos de
Historiografia clássica do cinema
Entretanto, se há algo destas brasileiro, o qual se dedica a
duas personas que é transposto pensar a metáfora do escritor
para as personagens dos filmes desenvolvida para representar o
é o fato de serem intelectuais cineasta em várias películas dos
com ampla participação na anos 1960.
vida brasileira: Bernardet seria
tributário das práticas e ideias de Uma das formas de se abordar
esquerda dos anos 1960-1970 – a #eagoraoque é evidentemente
referência aos sindicatos em um a partir da questão da relação
diálogo evidencia isso – e Safatle do intelectual com o povo.
mais antenado com as formas do Primeiramente, é preciso dizer
ativismo contemporâneo. que a representação do povo
em #eagoraoque não é a
Ambos têm em comum o fato mesma do Cinema Novo – cujas
se serem herdeiros da tradição películas foram analisadas
de intelectuais que participam por Bernardet nos livros e no
do debate público e que buscam documentário citados. Para este

106
movimento, o povo era uma com jovens da periferia, a qual
unidade sem divisões marcantes. me referi antes, eles dizem ao
Já #eagoraoque trabalha expli- intelectual que não têm neces-
citamente as divisões de gênero sidade dele para a luta. E algo
e raça que atravessam o tecido parecido é dito a Safatle em outro
social, de maneira que não há momento forte do filme: quando
mais unidade na representação ele debate com um rapaz negro –
do povo, mas claro entendimento tanto mais forte porque o efeito de
da sua diversidade. Muito embora encenação se rompe e a equipe
também seja de se notar que não de filmagem entra em cena.
se apresentem no filme oposições Tudo isso retira qualquer solo de
e divergências existentes no discussão e coloca o intelectual
interior dos setores mais pobres, fora do debate. Trata-se de algo
ao contrário, a cena da estudante novo, a meu ver, pois o centro da
negra – interpretada por ação começa a se deslocar, no
Palomaris Mathias – percorrendo nível do filme, do intelectual de
a vizinhança na periferia para classe média para as pessoas da
saber informações sobre uma periferia. A recusa não se estende
senhora que deseja auxílio de a toda categoria de intelectuais,
uma cooperativa popular lembra mas para ser aceito é necessário
o CPC (Centro Popular de Cultura) vir da periferia, daí o destaque de
na representação idealizada do Mano Brown em #eagoraoque.
povo.
A tradição que surgiu com Zola,
Se antes, nas obras de Bernardet, do intelectual que pontifica na
a questão se colocava em torno mídia suas posições e busca
de uma impossibilidade nascida marcar uma liderança moral e/
do papel autoatribuído pelos ou política, no Brasil dos anos
cineastas-intelectuais de levar a 1960 poderia ser identificada com
consciência ao povo e pela falta Ferreira Gullar ou Glauber Rocha
de clareza da própria situação e hoje com Vladimir Safatle – e
de classe destes cineastas- neste caso não me refiro ao per-
-intelectuais, em #eagoraoque sonagem do filme, mas à persona
as coisas colocam-se em uma pública de Safatle.
dimensão diferente: o povo –
ou as pessoas com as quais É importante notar que no filme
podemos identificá-lo no filme – esta tradição atravessa uma
recusa ao fim e ao cabo o diálogo crise. O intelectual interpretado
com o intelectual e não atribui a por Vladimir Safatle fala muito e
ele papel relevante. Na longa fala sempre, mas quem o ouve
cena da discussão de Safatle mais é a classe média cultivada

107
(seja nos salões, nas aulas e Finalmente, cabe uma obser-
assembleias na universidade ou vação com respeito à cena em
em programas da TV Cultura). que Safatle e sua filha fazem uma
E este intelectual fala bastante, apresentação musical em um
mas pouco dialoga: os conta- convescote burguês. Esta cena
tos com o pai são tensos a ponto é bipartida: a primeira parte é a
de Safatle preferir ficar ao piano, apresentação em si, com Safatle
com a filha não parece haver um ao piano e a filha cantando de
entendimento efetivo e mesmo na forma emocionante. Ao encerrar
conversa com a aluna negra as o número musical, Safatle é
colocações do personagem são cumprimentado pelos presentes
muito rasas – ele chega a dizer e resolve esfregar na cara deles
que os pobres deveriam roubar os crimes de cada um. Trata-se
um banco ao invés de participar do momento mais impostado
de uma cooperativa. do filme, uma representação
por demais artificial a ponto de
O filme aponta para a falência incomodar.
da função política do intelectual
e, por extensão, do cineasta. Pode se tratar, é claro, de
Ou pelo menos de certo tipo de uma forma artificial para
intelectual: este cuja a tradição representar a artificialidade da
esbocei antes e que hoje parece burguesia brasileira – ou daque-
totalmente consumido pelo circo les burgueses, pelo menos. Eles
midiático – vide o momento em querem demonstrar uma sofisti-
que Bernardet lê um artigo do filho cação que não possuem e estão
no jornal e solta uma interjeição envolvidos, na sua maioria, em
irônica ou ainda a profusão de situações das mais condenáveis.
aparições do personagem Safatle
na televisão. Entretanto, como Mas toda esta impostação
bem lembrou Leandro Saraiva e artificialidade da represen-
no debate acerca da película tação também pode ser uma
ocorrido no “I Ciclo Cinema dificuldade de o filme construir
e Política” (1), há outros tipos uma crítica mais estruturada à
de intelectuais que não estão burguesia. E o fato de a “arte”
mergulhados nesta crise, pois têm não se deixar conspurcar pelos
uma atuação diferente, menos burgueses é um recalque por
midiática e mais orgânica – diria demais significativo. Afinal, como
eu –, pois vinculada diretamente já apontava Paulo Emílio sobre
a determinado setor social ou
o Cinema Novo, há uma notável
causa política.
“homogeneidade social” entre
*

108
cineastas e espectadores – nos ROCHA, Glauber. O Cinema
anos 1960 e agora também – e Novo. In: Revolução do Cinema
entre os que criticam e os que são Novo. Rio de Janeiro: Alhambra /
criticados em #eagoraoque. A Embrafilme, 1980. P. 15-17.
homogeneidade parece impedir
uma representação mais aprofun- FILMOGRAFIA:
dada de determinadas situações #EAGORAOQUE. Brasil, 2020,
sociais, aparentemente se ficção, cor, 70 min. Companhia
afigura ainda difícil compreender produtora: Confeitaria de Cinema.
as contradições implicadas Direção: Rubens Rewald e Jean-
na nossa condição de classe, -Claude Bernardet. Roteiro: Jean-
embora isso seja mais necessário -Claude Bernardet e Rubens
do que nunca, pois o parente Rewald. Fotografia: Andre Moncaio.
autoritário, racista e misógino, Montagem: Gustavo Aranda.
que há alguns anos parecia ser Produção: Simone Hernández.
um tipo quase folclórico fadado Elenco: Vladimir Safatle, Palomaris
ao desaparecimento, foi para Mathias, Jean-Claude Bernardet,
as ruas, defendeu um golpe que Valmir do Côco, Lincoln Péricles.
derrubou a presidente Dilma
Rousseff, apoiou a eleição da
extrema direita no Brasil e não
parece disposto a sair de cena.

NOTAS:
(1) Trata-se de um evento
promovido em maio de 2021 pelo
Depto. de Artes e Comunicação
da Universidade Federal de São
Carlos, com a coordenação da
Profa. Eliane Coster.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
GOMES, Paulo Emílio Salles.
Cinema: trajetória no subdesen-
volvimento In: Cinema: trajetória
no subdesenvolvimento. Rio de
Janeiro: Paz e Terra / Embrafilme,
1980. P. 71-87.

109
análise fílmica

A narrativa da tela:
A hipótese da pintura
roubada, de Raul Ruiz
Donny Correia
Donny Correia é crítico e professor de história da arte e do cinema; doutor em
Estética e História da Arte pela USP e colaborador em diversos periódicos como
Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo, Cult, Brasil 247 e ArteCapital (Portugal). Autor
entre outros de Cinefilia crônica: comentários sobre o filme de invenção (2021, ed.
Desconcertos) e Filmes de urgência: Fragmentos de um País no Novíssimo Cinema
Brasileiro (2021, Cinemascope). É membro da Abraccine e da ABCA.

Vemos as coisas mesmas, o mundo é aquilo que vemos – fórmulas desse


gênero exprimem uma fé comum ao homem natural e ao filósofo desde
que abre os olhos, remetem para uma camada profunda de “opiniões”
mudas, implícitas em nossas vidas. Mas essa fé tem isto de estranho: se
procurarmos articulá-la numa tese ou num enunciado, se perguntarmos
o que é este nós, o que é este ver e o que é esta coisa ou este mundo,
penetraremos num labirinto de dificuldades e contradições.
Maurice Merleau-Ponty (1)

Você sabe como é: nós refletimos, refletimos, não avançamos e depois,


de repente, aí está, nós vemos. Vemos o que estava sob os olhos, o
que ainda não tínhamos visto, sendo que era, justamente, da ordem da
evidência.
Daniel Arasse (2)

I. uma perspectiva narrativa lógica,


O que mais me agrada na seja no mundo das ideias, para
combinação do pensamento de os filósofos, seja no quadrilátero
Merleau-Ponty e Arasse, nesses dois que envolve uma tela estática.
trechos, é a possibilidade de haver Estática? Talvez o movimento seja

110
apenas uma questão de detalhe Esclarecendo, o que Merleau-
na antevisão do espectador. Um -Ponty chama de fé perceptiva
quadro pressupõe uma narra- é um conceito que admite um
tiva para além do figurativo. Já número imenso de variantes,
mencionei isso e esse é o mote do mas vou simplificar para este
trabalho que agora você lê. Sendo trabalho evocando o básico. A
assim, proponho um enigma: fé perceptiva é algo da ordem
em que medida a assertiva de da apreensão imediata. Do que

Arquiduque Leopold Wilhelm em sua galeria (1651), David Teniers, óleo sobre tela, 127 cm x 163,8, National Trust, Petworth House
and Park, West Sussex, Inglaterra.

Merleau-Ponty complementa vemos de supetão e daquilo que


o que pensa Arasse, não como imediatamente reconhecemos por
ponto definitivo da fé perceptiva contiguidade empírica. É o mundo
nos termos da estética, mas como como o reconhecemos, desde a
uma dialética? idealização que somos capazes de

111
erigir no útero materno, até as um segundo quadro. Qual seria
primeiras lembranças da infância. o assunto relativo a ele? Outra
O que vemos e reconhecemos aquisição ou outra moeda de
não deixa sombra de dúvida negociação? Dois outros rapazes
de sua origem e de seu destino. conversam enquanto observam
Sempre que somos confrontados uma pilha de papéis esparsos
com uma narrativa fragmentária, sobre a mesa da galeria. Seriam
um pedaço de história cujo início e gravuras a serem consideradas
fim foram ignorados, apuraremos pelo arquiduque? Seriam gravuras
nossos sentidos privilegiados para colocadas em negociação
compreender o que há. por seu proprietário? Seriam
cartas, catálogos, anotações ou
Se olhamos a pintura documentos contábeis? Aliás,
Arquiduque Leopold Wilhelm por que os bustos repousam
em sua galeria, do belga David quase escondidos no topo de
Teniers, o jovem (1610-1690) – uma uma estante, alijados, e não em
obra não pautada pelas narra- destaque, às vistas de qualquer
tivas bíblicas, o que muito nos espectador de semelhante
abre o leque de interpretações coleção? De quem seriam os
–, primeiro podemos nos admirar cães que cruzam, graciosamente,
pela bela paisagem composta a cena e como teriam ido parar
de obras diversas. Muitas delas, ali? Quem é a figura ajoelhada à
sim, criadas em louvor da igreja, esquerda da cena, e o que faz?
alguns retratos de autoridades Qual o assunto de cada quadro
da época, além de alguns bus- da exposição e qual o critério
tos. A proporção figurativa do adotado pelo arquiduque e seus
arquiduque e sua trupe de es- funcionários na disposição de
clarecidos não é exatamente da cada peça? Há uma relação que
excelência com a qual o Barroco liga uma pintura a outra, numa
costumava trabalhar, mas ainda narrativa lógica ou simbólica ao
assim nos convencemos de que seu proprietário?
cada um tem seu papel. Quando
esta cena se nos revela, vemos Vou propor uma leitura
Leopold num ato de inspeção especulativa e oferecer a você uma
de seu espólio, guiado por algum possibilidade de compreender
supervisor que lhe aponta uma razoavelmente o quadro fazendo
obra. Seria uma obra recém uso apenas de dados históricos
adquirida? Seria ela uma obra e datas específicas. Leopold
separada para ser negociada? Wilhelm (1614-1662) foi um
À esquerda do dono da coleção, importante membro da casa dos
outro funcionário prece chamar Habsburgo da Áustria. Foi o último
a atenção do colecionador para dos sete filhos do imperador

112
Felipe II e, além de ordenado precoce, excêntrico até mesmo
bispo, entre 1647 e 1656 ocupou para as anomalias próprias
o governo dos Países Baixos daqueles tempos em que a
Espanhóis, que compreendia medicina e a pesquisa científica
regiões entre a Holanda, Bélgica desabrochavam, apenas. Sendo
e Luxemburgo. O pintor David assim, é melhor pensarmos que o
Teniers era seu consultor de arte. velho pode ser uma visita ilustre. O
Além de pintor, ocupava-se de homem que aponta o quadro no
prospectar e avaliar obras dos chão poderia ser, ele sim, Leopold,
artistas flamencos, indicando enquanto o homem que segura o
quais melhores aquisições seu quadro, à sua frente, poderia ser
cliente deveria levar em conta Teniers “em pessoas”, repetindo o
para sua imensa coleção. A obra gesto de Rafael Sanzio e de tantos
de Teniers data de 1651, portanto outros que vieram depois. Eu ainda
depois da mudança de Leopold vou retornar à presença ostensiva,
para Bruxelas, quando assumiu aos “cameos” dos artistas em
seu mandato. suas obras. O arquiduque estaria
oferecendo ao velho uma visita à
Você me dirá que o pintor, então, sua preciosa sala de arte? Estaria
reproduziu uma cena de uma ele procurando negociar algumas
possível chegada da exuberante de suas obras e, assim, teríamos
coleção do arquiduque a um cliente na figura do velho?
Bruxelas. Os quadros parecem Teniers teria registrado para a
poluir a imensa parede porque, posteridade uma gentileza de seu
na verdade, estariam ali apenas cliente ao que Leopold o havia
provisoriamente. Isso explicaria o recomendado a algum outro
fato de os bustos estarem displi- cliente em potencial, utilizando
centemente escondidos no topo como argumento sua própria
de um armário. Estão ali porque coleção construída com a consul-
Teniers representou um galpão, toria do pintor? Quem sabe?
uma reserva técnica de seu
cliente, que compõe o espaço Ofereci um exercício baseado
da galeria, conforme o título da na própria habilidade que todos
obra. As pessoas em volta seriam temos de imaginar um campo
ajudantes encarregados de narrativo para cada ação
organizarem o espaço. Pronto, estática com que nos deparamos.
juntos, matamos a charada, mas... Precisamos completar o passado
Leopold nasceu em 1614. Em 1647, de uma cena com a mesma viva-
contava 33 anos. Portanto, a cidade com a qual imaginamos
figura do velho não pode ser nosso o futuro da imagem. Embora
personagem central, a menos que os sentidos nos compilam a
sofresse de um envelhecimento segmentar o mundo como se

113
apresenta, não existe uma linha Para cada ponto e para
temporal e o Barroco, no decurso cada vírgula que colocamos na
da evolução estética que afetou narrativa de um quadro, mais e
não só o artista, mas sobretudo mais nos enredamos no sistema
seu espectador, nos ensinou a proposto pelo artista. E, nessa
exercitar o dom da fábula. Algo obra, é possível se imaginar uma
que, para o cinema, é como uma história para cada uma das
artéria. É a partir do exercício telas da coleção. É possível se
fabular que os conceitos temporais especular infinitas teorias para a
lineares e as amarras da lógica disposição das telas, seus lugares
se dissolvem e observamos um marcados na galeria e sobre as
fenômeno da ordem da mais pura pessoas que rodeiam a coleção.
inerência. A boa notícia é que não há uma
verdade absoluta.
O presente ainda conserva
em suas mãos o passado ime- II.
diato, sem pô-lo como objeto,
e, como este retém da mesma Escrito e dirigido pelo chileno
maneira o passado imediato Raúl Ruiz (1941-2011), A Hipótese
que o precedeu, o tempo da Pintura Roubada (1978) é um
escoado é inteiramente média-metragem produzido na
retomado e apreendido no
França, a partir de uma história
do escritor Pierre Klossowski (1905-
presente. O mesmo acontece
2001), que também colaborou
com o futuro iminente que terá,
no roteiro do filme. Na trama, o
ele também, seu horizonte de
espectador é apresentado a um
futuro que o envolvia, tenho,
colecionador de arte em sua
portanto, o meu presente
suntuosa galeria. O colecionador,
efetivo visto como futuro
ao longo de todo o filme, trava
deste passado. Com o futuro
um diálogo denso com uma voz
iminente, tenho o horizonte onipresente e onisciente de algum
de passado que o envolverá, interlocutor que faz o papel de
tenho, portanto, meu presente contraponto a respeito das ideias
efetivo como passado deste que o colecionador tem sobre a
futuro. Assim, graças ao arte e sobre uma curiosa coleção,
duplo horizonte de retenção em particular, uma série de sete
e de protensão, meu presente pinturas de um certo Frédérique
pode deixar de ser um pre- Tonnerre, da qual uma foi suprimida
sente de fato, logo arrastado e encontra-se desaparecida. O
e destruído pelo escoamento colecionador está convencido de
da duração, e tornar-se um que as obras, incluindo a pintura
ponto fixo e identificável em roubada, formam uma narrativa
um tempo objetivo (3). orgânica e se ligam entre si pelos
114
seus pormenores, no mais das Não um em que um detetive
vezes não notados pelos espec- decadente junta pistas para
tadores. Tampouco se sabe muito desvendar um assassinato, qual a
da vida do pintor em questão. O motivação do crime e quem são
colecionador menciona que após as pessoas envolvidas. Trata-se
uma exposição da série num de uma investigação que visa a
salão de artes, em fins do século remontar um quebra-cabeças
19, o trabalho de Tonnerre causou deixado por um pintor polêmico,
comoção e escândalo, inclusive cuja reputação se despedaçou
com a presença da polícia e uma a partir de uma construção
ostensiva perseguição posterior artística que agora parece
aos trabalhos do artista. a única ferramenta que esse
colecionador tem para chegar
A partir dessa história, Ruiz nos às suas conclusões. Por isso o
oferece uma releitura das tramas filme guarda uma inusitada forma
policiais muito caras ao cinema narrativa, embasada na cons-
noir e o tratamento dado à tante meditação do atual dono
encenação, à fotografia e à trilha dos quadros, enquanto trava um
sonora como um todo faz com diálogo sofista com o observador
que nos sintamos diante de um onipresente.
estranho filme policial.
Fig. 1, reconstituição de um quadro de Tonnerre.

115
Fig. 2, a tela de Tonnerre
Uma pintura em especial lhe
Assim que somos apresentados chama a atenção (fig. 1). A cena
aos dois personagens que do quadro reproduz uma espécie
travarão suas especulações em de sala medieval de reuniões,
torno de Tonnerre, o colecionador onde dois cavaleiros cruzados
vaga cuidadosamente em jogam xadrez numa mesa posta
torno de cada umas das seis sobre uma espécie de altar,
pinturas remanescentes da série observado por outro cavaleiro, de
de sete tentando encontrar um pé, ao lado da mesa. No primeiro
ponto de partida, uma tela que plano, um jovem, que poderia ser
possa marcar o ponto inicial de um escudeiro, repousa meditativo,
uma secreta mensagem que o no chão. O colecionador tem
colecionador acredita estar por plena ciência de que Tonnerre
trás do arranjo de cada cena pintou uma cena altamente
pintada. Eis aqui o primeiro desafio teatral, dada a concepção dos
de um espectador, que se prostra gestos de seus personagens. Mas
diante de um quadro e se dispõe o que significaria teatral? Para
a compreender a narrativa que a o colecionador é muito simples:
obra sugere. a luz. No quadro, há duas fontes

116
de iluminação, dois fachos que não deve ser procurada no quadro
entram por duas frestas, uma em si, mas numa outra pintura da
vinda da direita e outra, da série que, desta vez sim, parece
esquerda. Por fim, cruzam-se na marcar o início da narrativa.
exata proporção do meio da tela.
Estaria Tonnerre sugerindo um A outra pintura (fig. 2) em questão
mundo com dois sóis? Em caso é uma cena mitológica, baseada
afirmativo, então a tela seria uma no poema Metamorfoses, de
alegoria e não uma impressão? Ovídio. Diana, a deusa caçadora,

Fig. 3, a encenação do colecionador


é flagrada pelo guerreiro Acteão
Para dar o primeiro passo enquanto se banha num lago.
em direção às respostas, o Transtornada, transforma o
colecionador chega à conclusão guerreiro num cervo e o abate
que deverá mergulhar mais fundo a flechadas. Neste momento,
neste espelho de águas turvas o colecionador é literalmente
para, literalmente, entrar nas colocado dentro da pintura
cenas e decifrá-las em cada (fig. 3). Para conseguir uma visão
minúcia. Além disso, a resposta mais clara das minúcias que
imediata aos jogadores de xadrez permeiam a obra, Ruiz coloca o

117
espectador num universo paralelo, A próxima pintura, segundo
onde os quadros ganham vida e a intuição do colecionador, é
ação diante do olhar inquisitivo uma espécie de paródia de
do proprietário da coleção São Sebastião diante de seus
de Tonnerre. Somente a partir carrascos. No entanto, o jovem
desse escrutínio in loco é que o que representaria o santo está
colecionador notará uma terceira prestes a ser enforcado, e não
figura, um jovem escondido atrás crivado de flechas, como contam
dos arbustos, empunhando um os escritos bíblicos. Aliás, o jovem
espelho que rebate o brilho do é o elemento menos importante
sol numa direção aleatória. Com da cena, já que seu observador
alguma calma, nosso investigador se vê intrigado com uma figura no
entende que o reflexo do canto da tela. Não é muito fácil
espelho em Diana, a caçadora, compreender essa figura clerical
é o segundo sol da pintura dos envolta em penumbra, apenas
templários. Um quadro ligado a perceptível por, novamente, um
outro por um pequeno detalhe discreto reflexo de um espelho
de luz. Um mínimo dado que liga que compõe a mise-en-scène. A
ambas as cenas, tão distantes misteriosa figura imita o histórico
uma da outra, dentro do mesmo gesto que alude à Trindade
universo narrativo. Divina: Deus, Pai e Espírito Santo,

Ainda, passa pelas especulações


do colecionador que Tonnerre não
só ligou os quadros pelo detalhe
do reflexo, mas, como pintura
autônoma, a cena dos cruzados
poderia sugerir a presença do
sol e da lua refletidas cada uma
pelas laterais da tela. Eis uma
nova chave para o hermetismo da
simbologia templária na histórica
tensão entre os mitos pagãos e
a aurora do cristianismo como
empresa e como projetos social e
político.

São João Batista (1508), Leonardo da Vinci, óleo sobre


*** madeira, 69 cm x 57 cm, Museu do Louvre, Paris

118
Fig. 4, cena de A Hipótese da Pintura Roubada
e sua forma, mas não quero tomar
muito seu tempo com elucida-
conforme a simbologia renas- ções puramente ligadas ao enre-
centista consagrou, sobretudo do cinematográfico. Aqui, prefiro
quando olhamos o São João instigar você a partir dos desve-
Batista (1513-1516), de Leonardo los que se emaranham no uni-
da Vinci, com seu gesto da verso das artes plásticas. Assim,
mão direita, que aponta o céu, você poderá aplicar seu método
indicando a o caminho para o próprio diante de um longa ou de
Deus sublime. um curta-metragem.

É nesse momento que o cole- Sigamos. Enfim, o colecionador


cionador intui que a sequência chega à tal pintura escandalosa
lógica para essa cena é, justa- que foi barrada no salão de 1887
mente, a pintura subtraída da sé- (fig. 5). É uma cena trivial, numa
rie de sete. E, no passeio que nosso sala de estar característica do
personagem faz pela diegese de fim do século 19, mas suspeita-se
cada quadro, Ruiz o coloca numa que o escândalo tenha a ver
sala completamente vazia, para com algumas revelações íntimas
representar a ausência da tal obra de uma família nobre. O curioso
roubada. É uma bela metáfora é observar como para Tonnerre,
interpretativa do sentido do filme não existe obrigatoriamente

119
uma coesão histórica que ligaria inconfessável. Olhar para a tal
seus quadros. Acima da lógica imagem instiga especulações
temporal, está a evolução dos possíveis somente por meio de
simbolismos ancestrais que vão uma leitura intuitiva, levando-se
se concretizar na representação em conta critérios históricos e
da vida cotidiana em sua época. morais próprios do tempo. Há

Fig. 5, reconstituição de mais um quadro de Tonnerre.


um personagem que, a exemplo
de outras telas, esquiva seus
Talvez o simples ato de posar gestos faciais dos outros, mas se
para uma pintura de família tenha revela a nós, os espectadores,
sido a causa da celeuma. Talvez fazendo-nos cúmplices.
o fato de “esta” família posar
signifique uma ostentação frente Como já disse, há vários
a algo condenável que tenha elementos no roteiro de A Hipótese
havido entre seus membros. Se da Pintura Roubada que servirão
há esqueletos escondidos na vida para dar base às especulações
daquelas pessoas da mais alta do colecionador, mas estas não
estirpe, seus retratos nos pare- nos servem aqui, porque quero
ceriam sinais de uma ostentação continuar concentrado neste
vã, uma vida de aparências processo intuitivo puramente
para esmorecer uma verdade plástico e estático, como se não

120
houvesse, ainda, o cinema e como do fictício Frédérique Tonnerre,
se lidássemos com o tableau o homem viu transformar a
vivant, nome pelo qual, diga-se imaginação estática em imagens
de passagem, os primeiros filmes que se movem, com um sentimento
da história eram chamados: urgente de completar tramas que
quadros vivos, na falta de uma só existem na subjetividade de
gramática fílmica, que só nasce- cada espectador.
ria anos depois da invenção do
cinematógrafo ou do kinetoscópio. As últimas telas examinadas
pelo colecionador retomam
Pouco a pouco, o colecionador símbolos do paganismo, como o
encontra gestos que sugerem Baphomet, que se especula ser o
movimentos mais claramente demônio punitivo da danação na
interligados dessa tela às qual a família nobre mergulhara
outras seguintes. Formam uma após os escândalos internos. Mas,
sequência lógica de planos e também pode ser um grito urgente
que vão se encontrar ao final, daqueles que sucumbiram à
quando nos fica claro que cada desgraça familiar em busca de
uma delas versava sobre a uma reencarnação, de uma outra
passagem determinada dentro vida que não aquela em que
de uma trama de traições e inveja foram postos. Tanto mais que a
no seio daquela família anônima série, segundo a interpretação
que Tonnerre pintou. Está claro pessoal do colecionador, termina
que a capacidade inata para o com uma referência do culto a
reconhecimento de padrões está Mitra, que também é a lenda de
na base do desenvolvimento de Hórus e, até mesmo, de Cristo.
narrativas que se fiam no olhar, Todos os símbolos “poluem” a
seja para uma imagem estática, pureza da moral cristã, que se eri-
seja para segmentos inteiros de ge invisível por trás das aparências
histórias soltas. da burguesia contemporânea a
Tonnerre. A questão conclusiva
Com este poderoso dom, somos está na última tela, que faz
capazes e olhar o vasto espólio referência ao culto de Mitra, que
imagético do Impressionismo, também é a lenda de Hórus,
por exemplo, e conseguimos criar Krishna, Dioniso e, até mesmo,
verdadeiras narrativas completas Cristo.
a partir das figuras humanas, dos
locais onde se encontram, dos O escândalo que nosso erudito
gestos e ações que os pintores detetive procurou foi, então,
imortalizaram. Num processo desvendado? Trata-se de uma
evolutivo intangível à época perseguição a um artista que

121
ousou criticar o vazio moral da
burguesia por meio de símbolos
considerados escandalosos pela
retidão religiosa que tal burguesia
seguiu, no mais das vezes, apenas
para “inglês ver”? Tonnerre
enfrentou a hipocrisia social,
moral e artística de seu tempo e
da história pregressa?

Impossível saber. Assim como


um pesquisador que se debruça
sobre um filme como Limite (1930),
de Mário Peixoto, ou Cidade dos
Sonhos (2001), de David Lynch,
o colecionador do filme de Raúl
Ruiz não e capaz de satisfazer
com apenas a possibilidade que
construiu de momento. O espírito
deve ser livre para flanar por
imagens e delas se servir não só
para ratificar o repertório com
que já contamos, mas também
para potencializá-lo.

NOTAS:
(1) MERLEAU-PONTY, M., O visível e
o invisível. Perspectiva, São Paulo,
2014, p. 15.

(2) ARASSE, Daniel., Nada se vê –


seis ensaios sobre pintura. Editora
34. São Paulo, 2019, p. 31.

(3) MERLEAU-PONTY, M. Fenome-


nologia da percepção. Martins
Fontes. São Paulo, 1999, p. 106.

FILMOGRAFIA:
A Hipótese da Pintura Roubada
(1978), Raúl Ruiz, Áustria/França,
66 min.

122
Novos
Olhares
Vá e Veja: Klimov,
o horror da guerra
e a infância perdida
Catarina Forbes
Catarina Forbes é formada em cinema pela FAAP. Roteirizou e dirigiu os curtas
Torcida Única (2019) e Cinéfilo com Causa (2021). O primeiro, foi exibido na 23a
Mostra Tiradentes. Atualmente trabalha como roteirista e montadora na produtora
Avocado Content...

Quando o Cordeiro abriu o quarto selo, ouvi a voz do quarto ser


vivente dizer: ‘Vem e vê!’. E olhei, e eis um cavalo amarelo, e o
nome do que estava montado sobre ele era Morte; e o inferno
seguia com ele. E foi-lhe dado o poder sobre a quarta parte da
terra para matar à espada, e com a fome, e com a peste, e
com as feras da terra.

É curioso pensar que Vá e Veja não com a mesma eficácia ou


não foi o título originalmente coragem: nos mostrar, afinal, o que
pensado por Elem Klimov para seu de fato seria essa tal de guerra.
filme de 1985. Mais que um convite,
vemos uma espécie de comando Nela não há heróis nem vilões,
que obriga o espectador a se salvação ou redenção, milagres ou
desligar de todo seu entorno e esperança. Não há vencedores nem
testemunhar em silêncio, com o perdedores. Existem os meninos
olhar, o verdadeiro apocalipse. traumatizados que fingem ser
Comando também pelo qual homens, as meninas espancadas e
Klimov sintetiza sua obra, fazendo estupradas, as famílias fuziladas e
aquilo que surpreendentemente as 628 vilas massacradas. Aqui não
nenhum outro filme de guerra há uma canção final que reúne e
jamais ousou fazer, pelo menos conforta soldados desiludidos,

124
uma borboleta que impede a Assim, ele foge para se reaver
violência no campo de batalha, com sua família, a qual ele tenta
muito menos um ato heroico por se convencer que ainda está viva.
um bem maior. Vemos nada mais Essa é uma das únicas partes
que a dura verdade: a de que do filme na qual vemos algo que
a guerra é o total desamparo e Florya não vê: os moradores de
aniquilação; a destruição total do sua vila fuzilados. Uma escolha de
indivíduo em si e de tudo que o Klimov para criar uma sensação
cerca. de que muitas vezes o não olhar
ou o não saber pode ser mais
No filme presenciamos todo aterrorizante do que a prova em
esse processo por meio de Florya si diante de nós, o que introduz
(Aleksei Kravchenko), o garoto o horror que começa a consumir
que entrou na guerrilha com Florya e inicia a sua assombrosa
o entusiasmo proporcional ao luta pela sobrevivência.
desespero de sua mãe e outros
moradores de sua vila, que o Mas para nós, as provas se
alertam para o caminho que apresentam sem censura: nós
ele decide tomar. Sua porta de viemos, agora temos que ver.
entrada para o grupo (e também Sobrevivente da invasão nazista na
o gatilho para toda a trama) se agora Belarus, Klimov faz questão
dá pelo fuzil por ele encontrado, de nos forçar a presenciar aquilo
o qual ele toma como o único que ele foi forçado a experienciar,
companheiro que o segue por em um caminho semelhante ao
toda sua jornada. A arma espelha do protagonista. A destruição de
aquilo que Florya quer ser: um tudo e todos era o que sempre
comandante admirado que mata esteve à sua volta, sem nenhuma
nazistas, como Kosach (Liubomiras perspectiva de esperança ou
Laucevičius). A questão é que salvação em meio a brutalidade
Florya é ainda um menino, que e crueldade que caracterizam o
sonha sem ter noção da realidade; que de fato é a guerra.
esta que, quando se apresenta,
denuncia a sua então inocência: Uma brutalidade que, no entanto,
quando tem a chance de disparar é captada de maneira inusual;
sua arma algumas vezes, seja por com simbolismos e um viés belo,
uma ordem que lhe foi dada ou lírico e poético, que transforma a
uma oportunidade para se salvar crua realidade em uma espécie
e evitar o pior, Florya não tem de sonho, que aqui vira um pesa-
coragem para apertar o gatilho. delo: com a câmera sempre frontal

125
e próxima dos personagens, O mal está presente em todos
estes sempre nos encaram com nós. Por mais inocentes e indefesos
olhares cada vez menos vívidos que possamos parecer no início,
e lúcidos. Tiros atravessam o céu, ele está lá, esperando para um
iluminando-o como se fossem dia se revelar e tomar o indivíduo
fogos de artifício. O som se torna em seu âmago; e através dessa
abafado e é acompanhado de persona se expressar. Florya
um zumbido, refletindo a surdez percebe isso, saindo do seu transe
parcial de Florya, adquirida na e se deparando com a verdade.
bomba que explode ao seu Ele olha para nós com os olhos
lado, anunciando a tragédia. A cheios de lágrimas, procurando
trilha sonora clássica, pesada e pela última vez algum consolo,
melancólica, em um crescente enquanto casas ainda pegam
vai ditando o clima de terror do fogo e os soldados soviéticos
início ao fim. O uso frequente da reiniciam sua marcha. Marcha
steadicam possibilita uma câmera essa que agora não está à
que flutua pela URSS devastada, procura do inimigo, mas em fuga
que transita levemente enquanto de tudo e todos. Encarnado em
crianças são fuziladas, mulheres nossa sociedade, o mal sempre
arrastadas pelos cabelos, e nos rondará. Quanto a isso,
nazistas comemoram e dançam sem nada a se fazer, resta a
enquanto incendeiam um vilarejo humanidade caminhar, sempre à
inteiro: O verdadeiro apocalipse procura de uma luz no horizonte,
que nos é anunciado no título. que, no entanto, é somente uma
ilusão que nos engana em um
Um caos que culmina no percurso que, de fato, não possui
desfecho. É aqui que a mensagem rumo algum.
do filme fica clara. Florya,
dolorosamente envelhecido, se
depara com a personificação
do mal que o destruiu. Como
resposta, sozinho, acabado e com
sua inocência despedaçada, já
não é mais um menino. Pega seu
fuzil e o dispara pela primeira
vez no filme. O primeiro tiro abre
caminho para o segundo, e assim
a sequência se sucede. Porém,
a grande questão aparece: é
possível matar Hitler? Por mais
tentados que fiquemos, sabemos
que a negativa é inevitável.

126
Novos
Olhares
O Cinema-Verdade ou
a Verdade do Cinema
Luca Scupino
Luca Scupino é graduando em cinema na FAAP, cineasta, cinéfilo e pesquisador
da área do audiovisual.

O PROBLEMA DO DOCUMENTÁRIO imagem sobre a qual não pesaria


a hipoteca da liberdade de
A questão da representação da interpretação do artista, e nem a
realidade no cinema é um assunto irreversibilidade do tempo” (BAZIN,
ontológico inesgotável e fonte de 2018, p. 40). O cinema, no entanto,
inúmeras elaborações criativas enquanto linguagem, nem mesmo
tanto no domínio da ficção no documentário prescinde de
quanto no do documentário. mecanismos de representação e
Neste último, por suas próprias de atribuição simbólica – e deste
intenções de registrar o acaso e modo o espectro do realismo
seu compromisso de se aproximar persegue a sua história, até que
do real conforme ele se manifesta entre os anos 1950 e 1960 a própria
diante da câmera, o assunto se noção de verdade no cinema sofre
torna ainda mais complexo, na reelaborações.
medida em que a linha entre
real e ficção é posta em xeque Se o domínio documental posa
pelas deliberações criativas do a questão da impossibilidade de
cineasta, por meio dos processos uma captura imediata do real,
de captação de imagens e de o advento do documentário de
pós-produção, em especial as Cinema-Verdade (ou Cinema-
decisões de montagem. Para -Vérité) na França, representado
efeito de discussão, tomemos por pela obra de Jean Rouch e Edgar
base que essa apreensão do real Morin, responde ao Cinema Direto
permanece como o que o crítico americano com uma provocação.
de cinema André Bazin denomina Na medida em que essa
“mito do cinema total”, em que ela apreensão direta da realidade
adquire proporções de um realismo permanece apenas como mito –
integral, “de uma recriação do percebido desde que Flaherty, nos
mundo à sua imagem, uma anos 1920, passa a compreender

128
a natureza representacional do do princípio básico de que o
documentário em Nanook, o cineasta pode intervir livremente
esquimó (1922) e posteriormente na obra e que é deste processo
por John Grierson, em Drifters que sairão todas as suas possibi-
(1929) –, caberia ao cinema o lidades de verdade – método
reconhecimento de suas próprias considerado por Silvio Da-Rin
limitações, de modo que estas como “interativo”, no qual o diretor
pudessem ser fonte de outras pode se utilizar de entrevistas e
elaborações da verdade, ou do do contato direto com os atores
que se enxerga como tal, aos olhos sociais para assim pavimentar os
direcionados do cineasta. Deste caminhos em direção a uma
modo, não mais se tentaria utilizar “verdade cinematográfica”,
a película para que determinada surgida pela articulação subjetiva
concepção externa de realidade da realidade pelo cineasta
fosse registrada, mas antes o (DA-RIN, 2004, p. 135), pela
papel do cineasta estaria em interação contínua entre ele e os
compreender sua função elabo- atores durante o processo de
rativa e a natureza imanente da produção do filme, e pela
verdade, que passa a ser interna constante interpenetração entre
ao filme, vista como potência do ficção e realidade. Assim, os
falso, conforme propõe Deleuze dispositivos criados pelo diretor
– não mais a captura de uma possibilitam o desenrolar de ações
realidade externa, mas produto cujo intuito seria a obtenção da
da própria encenação fílmica. verdade a partir de sua própria
perturbação; para Deleuze, ele
Assim, enquanto o cinema direto “não será um cinema da verdade,
americano, de Drew, Leacock e mas a verdade do cinema”
Wiseman, se propunha a (DELEUZE, 2018, p. 219).
representar a realidade em filme
de modo que este fosse o mais Essa participação ativa gera
próximo possível da experiência uma grande cisão, pois ao passo
vivida pelo cineasta, o Cinema- em que o cinema direto coloca
-Verdade francês, surgido a câmera como uma “mosca na
paralelamente, no final da década parede”, o Cinema-Verdade a
de 1950 e começo da década de desloca para uma “mosca na
1960, procura também criar a sopa”, de acordo com Teixeira:
realidade; juntamente com repre-
sentá-la, fabular em cima dela e Nos extremos em que se
possibilitar meios para que ela pode situar o cinema direto
seja elaborada dentro da americano, o mais caudatário
estrutura do filme. Parte, portanto, dos métodos de reportagem

129
de seus jornalistas, e o cinema- ROUCH E MORIN, PENSADORES
-verdade francês, resultado DO CINEMA
de um deslocamento de
práticas etnográficas, os O grande paradigma desse
antagonismos de métodos modo de documentário é o filme
imediatamente vêm à tona. Chronique d’um été (Crônica
Se o primeiro reivindicava de um verão), dirigido por Jean
a metáfora da “mosca na Rouch e Edgar Morin, cujo solitá-
parede” uma vez em campo rio abalo sísmico na concepção
(observação, contemplação, de documentário foi fonte de
não-implicação ou interferên- infindáveis análises desde
cia no que se passava diante seu lançamento, em 1961. Para
da câmera), para o outro, compreender o filme, é preciso
era a da “mosca no leite” também conhecer seus criadores
ou “na sopa” (participação, e a experiência de ambos nos
interação, eliminação da campos da etnologia.
distância entre os dois lados
da câmera). É como se, para Rouch já era um cineasta
um, a pintura ainda se cons- consolidado a este ponto, que
tituísse como “janela aberta desde os anos de 1940 realizava
para o mundo”, ao passo documentários sobre indivíduos
que, para o outro, o quadro já no continente africano, a partir
tivesse saído da parede para de um interesse etnográfico, e
o ambiente. Sob a exigência vinha jogando com os limites
de “não-intervenção” na entre a ficção e documentário
realidade, que pretendia – processo do qual os principais
abstrair o “ruído” do dispositivo representantes são os filmes
na situação filmada, é como Jaguar (gravado em 1954, com
se o cinema direto desse uma lançamento apenas em 1967),
guinada para trás, anterior no qual três atores nigerianos
ao método de “observação dramatizam suas próprias ex-
participante” de um Flaherty, periências como migrantes em
por exemplo. Já o cinema- busca de trabalho; e Moi, un noir
-verdade começava a entrar (Eu, um negro), filme de 1959 que
na era do que se poderia também retrata um grupo de jo-
chamar, usando de um vens nigerianos, desta vez no
trocadilho antropológico, de subúrbio de Treichville, na Costa
“participação observante” do Marfim, e une as imagens de
(TEIXEIRA, 2006, p. 272). seus cotidianos, dos costumes

130
locais e das influências culturais em um artigo escrito por Morin
eurocêntricas, com cenas alguns meses antes, intitulado
evidentemente ficcionalizadas, Por un nouveau cinéma-vérité,
passando do retrato como si tendo em vista tanto um novo
próprios à autofabulação como cinema documental que seria
outros (TEIXEIRA, op. cit., p. 278). possibilitado pela união da
etnografia com a sociologia,
O filme promove o uso, inclusive, semiologia e psicanálise, como
da dublagem e de sequências as tendências já observadas nos
oníricas, recursos que rompem Estados Unidos, com o cinema
diretamente com as presunções de Drew e Leacock. Assim como
realistas do documentário – o cinema direto, este modo
afinal, a formação etnográfica, documental também possui suas
que envolve um contato direto a bases nas novas tecnologias
partir do convívio, entrevistas e que possibilitavam uma maior
processos de transferência mútua liberdade do cineasta para se
entre pesquisador e nativo, dá movimentar e capturar cenas fora
a Rouch a consciência de que, de estúdios, como afirma Fernão
“sempre que uma câmera é ligada, Pessoa Ramos:
uma privacidade é violada” (DA-
-RIN, op. cit., p. 149). O Cinema Verdade/
Direto revoluciona a forma
Morin, por sua vez, se destaca documentária, através de
no ramo da sociologia e da procedimentos estilísticos
filosofia, considerado um dos proporcionados por câmeras
grandes pensadores dos séculos leves, ágeis e, principalmente,
XX e XXI, posteriormente ao o aparecimento do gravador
filme desenvolveu a “teoria da Nagra. Planos longos e
complexidade”, criticando os imagem tremida com câmera
sistemas quantitativos da ciência na mão constituem o núcleo
ocidental e propondo uma nova de seu estilo. O aparecimento
forma de pensamento, que do som direto conquista um
associa as ciências com outros aspecto do mundo (o som
campos de conhecimento e sincrônico ao movimento)
analisa a realidade como sistema que os limites tecnológicos
complexo, incapaz de ser definido haviam, até então, negado ao
por apenas uma maneira. Esse documentário. Através do som
histórico intelectual, unido à do mundo e do som da fala,
pesquisa de campo de Rouch, o Cinema Verdade inaugura
constituiu as bases para o que a entrevista e o depoimento
eles próprios definiriam como como elementos estilísticos.
“Cinema-Verdade”, inaugurado (RAMOS, 2004, p.81-82)

131
O termo “cinema-verdade” Segundo Da-Rin, a vida social é
parte da tradução em francês concebida para os autores como
do termo kinopravda, título dado “um conjunto de rituais, uma
pelo cineasta soviético Dziga espécie de teatro cujos papéis
Vertov a um tipo de cinema que incorporamos ao nosso cotidiano:
buscaria a compreensão da o conteúdo da vida subjetiva
verdade a partir do encontro entre emerge através de um processo
o cineasta e os atores sociais por que revela ocultando e oculta
meio do filme, em oposição a revelando.” (DA-RIN, op. cit., p.
uma verdade absoluta ou sem 154). Ora, se a própria realidade,
manipulações (NICHOLS, 2001, p. tal qual a concebemos, envolve
155). Em seu texto O cinema ou o mecanismos de representação
homem imaginário, de 1958, Morin e de performance própria do eu
analisa o papel da participação perante o outro, como realizar um
afetiva do espectador como algo documentário social sem levar
que está na essência do cinema, em conta a presença inelutá-
participação que irá possibilitar a vel da encenação nas relações
imersão na obra a partir da reali- interpessoais e em nossa própria
dade que a ela atribuímos e será concepção de verdade? É este
a grande geradora de significado o processo que será investigado,
no filme. O filósofo afirma que elaborado, e até estimulado, no
essa característica de projeção- filme Crônica de um verão.
-identificação se dá também na
vida privada, em que estamos O filme parte da seguinte
constantemente nos relacionando afirmação de Rouch, em voz
com os outros a partir de off, enquanto mostra pessoas
processos como o role taking e a caminhando por uma rua em
impersonation, encenados pelo Paris: “este filme não foi repre-
indivíduo no cotidiano: sentado por atores, mas vivido
pelos homens e mulheres que
Representamos um papel na dedicaram momentos de suas
vida, não só perante os outros, vidas a uma experiência nova de
mas também (e sobretudo) Cinema-Verdade”. Em seguida,
perante nós próprios. O apresenta sua proposta por meio
vestuário (esse disfarce), de uma conversa entre Rouch,
o rosto (essa máscara), as Morin, e Marceline, uma jovem
palavras (essa convenção), judia, sobrevivente dos campos
o sentimento da nossa de concentração na Alemanha,
importância (essa comédia), que pode ser considerada a
tudo isso alimenta, na vida “protagonista” do filme. Eles
corrente, esse espetáculo que explicam a ela o procedimento do
damos a nós próprios e aos qual irão partir e que será levado
outros, ou seja, as projeções- a cabo por ela, partindo de
-identificações imaginárias uma simples pergunta de ordem
(MORIN, 2018, p. 124). psicanalítica, o leitmotif do filme:
132
“você é feliz?”. Marceline, então, mais sobre eles próprios do que
parte pelas ruas de Paris com se a câmera os registrasse sem
um microfone, perguntando a que soubessem, desviando as
sujeitos anônimos suas respostas palavras em atos de fabulação
à pergunta, enquanto a câmera (TEIXEIRA, op. cit., p. 279).
grava a uma distância pequena.
As respostas são das mais diversas, Trata-se de um sociodrama
e encadeiam-se com a apari- que aborda questões desde o
ção de diversos atores sociais, impacto do holocausto na França
cada um com uma origem e até a guerra na Argélia e a des-
presença diferente no território da colonização na África como um
cidade: estudantes universitários todo, o racismo no país, a classe
franceses, imigrantes pretos trabalhadora urbana e, em
do Congo, trabalhadores da última instância, uma reflexão
indústria automobilística e outras
metalinguística acerca da própria
figuras como Marilou, uma italiana
produção do filme, realizada ao
vivendo na França, a qual permite
mesmo passo em que o filme está
a gravação de sessões de terapia
sendo feito e a montagem ainda
em que ela expõe suas angústias
não foi concluída – e culmina em
em relação às pessoas com quem
convive no país de destino e, ao sua sequência final, quando os
longo do filme, até verifica uma próprios membros da equipe e
resposta aos seus medos, quando elenco discutem se o projeto foi
consegue um novo amor para si. bem-sucedido ou não, e sobre
em que medida se pode falar na
Crônica de um verão acompa- autenticidade dos atores sociais
nha todos esses personagens do quando se sabe que a ação
começo ao fim dessa estação fílmica foi condicionada pelos
do ano, em 1960, e seu título não cineastas, inicialmente. Antes de
é ao caso: o filme é uma crônica procurar uma resposta para tal
porque se propõe a mostrar esse questão, Rouch e Morin optam
pequeno recorte da “realidade” por explorar sua ambiguidade,
a partir de um ponto de vista, distanciando uma visão do real
de uma enunciação que se enquanto verdade absoluta
autodefine como enviesada, e mesmo compreendendo a
determinada pelo dispositivo da natureza ilusória da verdade e
entrevista, que então possibilita as possibilidades de atingi-la por
a elaboração livre dos atores caminhos diversos. O interesse
sociais em mecanismos de perfor- aqui não é no documentário
mance, de formulações criativas, como tal, mas naquilo que pode
devaneios e meditações. Esse ato ser revelado, explorado e criado a
discursivo revelará, então, muito partir de suas técnicas e métodos.

133
No entanto, a novidade que aproxima do papel explicativo
Crônica de um verão inaugura, que ela teria no documentário
dentro do cinema de Rouch, clássico, o qual se utiliza de voice-
não está em seus métodos de -overs e letreiros como recursos
hibridização entre ficção e docu- frequentes para quando não se
mentário, que já eram presentes consegue expressar algo por
em filmes como os mencionados meios puramente visuais, ou
Jaguar, Eu um negro e o docu- mesmo como forma de didatismo.
mentário lançado também em 1961 No Cinema-Verdade, devemos
de título A pirâmide humana, no primeiro compreender a palavra
qual Rouch investiga a interação como imagem, a palavra como
entre jovens de diferentes classes ação, como resultado direto do
sociais a partir de uma situação pensamento e do inconsciente,
“montada” pelo cineasta. Da-Rin herdando da semiologia os
afirma que a grande mudança conceitos de que o cinema seria
verificada no filme de Rouch estruturado conforme linguagem
e Morin reside no emprego da (TEIXEIRA, op. cit., p. 263). Desse
linguagem verbal: modo, é a partir dela que se revela
a verdade, e os discursos dos
(...) no uso direto da palavra, quais ela parte seriam possibilita-
possibilitando as longas dos apenas pela espontaneidade
conversações em grupo, do cinema, pela captação
as enquetes de rua e os daquilo que é imediato, não
monólogos espontâneos, obstante essa própria
como o de Marceline diva- determinação também seja esta-
gando solitária. A palavra belecida desde o princípio pelos
não estava mais exilada da diretores, como afirma Morin:
filmagem, devendo esperar a
etapa de sonorização para O ato, afinal, é a palavra; o ato
vir juntar-se às imagens. Este se traduz através dos diálogos,
emprego direto da palavra é das discussões, conversas,
o que nos permite considerar etc. O que me interessa
o filme um protótipo do modo não é o documentário que
interativo (DA-RIN, op. cit., p. mostra as aparências, é uma
165). intervenção ativa para ir
além das aparências e extrair
Não se deve entender, delas a verdade escondida
entretanto, que o uso da palavra ou adormecida (DA-RIN apud
dentro do cinema-vérité se MORIN, op. cit., p. 152).

134
ANÁLISE DE SEQUÊNCIAS – como quando ela associa os
CRÔNICA DE UM VERÃO imigrantes africanos na França
primeiramente a suas habilidades
A verdade é vista, então, a partir na dança e seus aspectos físicos.
do exercício psicanalítico da fala, Landry, um imigrante congolês à
e se contrasta constantemente mesa, responde que gostaria que
com as imagens visuais de modo os negros fossem lembrados por
que gera outros significados, por algo a não ser a maneira como
um processo de interdependência eles dançam. Daí, inicia-se uma
criadora. Um bom exemplo discussão sobre a descolonização
disso no filme está nos planos na África que leva Marceline a
de Marilou, a imigrante italiana, uma reflexão sobre sua experi-
durante seu segundo monólogo, ência como judia nos campos de
em que ela revela tantas coisas concentração nazistas, a partir do
sobre si própria, ao ponto em momento em que Rouch pergunta
que os close-ups em seu rosto diretamente a Landry o que ele
demonstram que “as palavras pensa que é o número tatuado no
são arrancadas de seu coração” braço de Marceline.
(LAWSON, 1967, p. 249).
Uma primeira questão a ser
Por outro lado, a autenticidade abordada é a maneira como os
das palavras e das imagens cineastas retratam essa conversa,
é constantemente posta em tendo em vista a representação
questão no filme, sendo as de Landry e Raymond, os dois imi-
cenas com Marceline as mais grantes africanos à mesa. O olhar
paradigmáticas, nesse quesito. Em direcionado do cineasta já se
especial, se destaca a conversa inicia nesse momento, na medida
entre vários dos participantes do em que é problemática a maneira
filme em um restaurante, mais ou como a pele preta é representada
menos na metade do longa, da em câmera, sendo altamente
qual participam também Rouch contrastada com o fundo e
e Morin, que não hesitam em desprovida da mesma textura que
colocar questões para que os têm os personagens brancos, de
atores sociais discutam à mesa. A modo que nem mesmo os olhos
pauta abordada, inicialmente, é o dos personagens são visíveis na
racismo, quando Marceline afirma maior parte das cenas (figura 1)
que não se casaria com um homem – pode-se afirmar que a própria
negro por não se sentir atraída por película utilizada também foi
ele, revelando por meio da fala desenhada para retratar os tons
alguns aspectos inconscientes de pele branca no cinema, mas a
de seu próprio preconceito racial, escolha deliberada de enquadrá-

135
-los contra o fundo branco sem uma situação que os próprios
ter em vista o estereótipo que estabelecem e verificando
poderia ser criado aos olhos do seu desenrolar conforme lhes
espectador, majoritariamente interessa, por meio da montagem
europeu, já indica que mesmo que une o som captado direta-
Rouch, autoproclamado “eu, um mente pelos gravadores portáteis
negro” após seu filme de 1958, não e as imagens que demonstram
distancia por completo seu olhar uma espontaneidade da ordem
de pesquisador estrangeiro. do discurso, não da situação.

Outros procedimentos também O que vem em seguida é ainda


apontam para articulações mais interessante. Marceline
mais intencionais da montagem caminha solitária por uma vazia
e cinematografia para criar Place de la Concorde, em Paris
determinados contextos de (coincidência ou não, o local
verdade, como quando, após o marcado na história por suas
momento em que Marceline fala execuções públicas durante a
de sua experiência nos campos Revolução Francesa), enquanto
de extermínio durante a Segunda ouvimos em voice-over um
Guerra Mundial (figura 2), a câmera monólogo da jovem judia sobre
imediatamente faz um rápido a experiência nos campos de
movimento de pan para a direita, concentração e a separação dela
de modo que mostra a reação de seu pai, que veio a ser uma das
de Landry, o qual evidentemente vítimas do holocausto (figuras 5 e
não imaginava o passado 6). Entre as rememorações desse
trágico de Marceline (figura 3). A momento sombrio e o lamento
cena também termina com uma pela falta que sente da família,
escolha de montagem consciente, a câmera acompanha Marceline
quando os cineastas fazem um caminhando, em um travelling
freeze frame das mãos de Marce- out contínuo pelas ruas de Paris.
line acariciando uma rosa, após O que é instigante na cena é
a conversa sobre o holocausto como o retrato de Marceline não
(figura 4) – cena que parece ter pode de maneira alguma ser visto
sido gravada em outro momento, como espontâneo, na medida
pois nos planos anteriores essa em que tanto a câmera se
rosa não era visível e ela segurava anuncia evidentemente com um
em mãos um cigarro. Novamente, movimento radical, como também
os cineastas não demonstram a própria voz off da personagem
interesse em uma apreensão já indica a interferência direta da
do real da exata maneira como montagem no conteúdo. A ambi-
ele se apresenta, partindo de guidade da cena, e seu caráter

136
documental, consiste na verdade
trazida pelo monólogo, de uma
situação que foi de fato vivida pela
mulher, enquanto a maneira como
isso se articula em cena ocorre por
processos intencionalmente artifi-
ciais, como se apenas esse recurso
à encenação pudesse exprimir a
profundidade dos sentimentos,
do terror experimentado por Figura 4

Marceline no passado (UEMA,


2018, p. 08).

Figura 5

Figura 1

Figura 6

A NOÇÃO DE REAL NO
Figura 2 DOCUMENTÁRIO

A própria Marceline, em uma


entrevista após o lançamento
do filme, cita como seus
procedimentos de encenação
a permitiram alcançar o que ela
gostaria de expressar:

Eu me coloquei em situação,
Figura 3 no drama, eu escolhi um

137
personagem que eu interpretei existem fora do filme, mas são
na medida das possibilidades possibilitadas apenas a partir dos
do filme, um personagem mecanismos de representação
que é ao mesmo tempo um que a presença da câmera e
aspecto de uma realidade da equipe de filmagem inevita-
de Marceline e também um velmente evocam, mostrando
personagem dramatizado relações humanas tomadas pela
criado por Marceline (DA-RIN, palavra cinematográfica, e que
op. cit., p. 155). nunca são apresentadas pelo
filme como se fossem espelho do
Por esse procedimento, Rouch mundo (DA-RIN, op. cit., p. 167),
e Morin conseguem capturar mas sim aspectos do processo do
os atores sociais a partir de cinema.
diferentes dimensões, partindo
de como os próprios atores se O cinema-vérité, então, traz
enxergavam, de como escolhiam pela primeira vez uma desasso-
se representar, de como os outros ciação direta entre a verdade e
no filme os viam a partir da ence- o real no cinema, privilegiando
nação e, além de tudo, de como a subjetividade do cineasta
a obra captura todo este jogo ao passo em que também
entre realidade e representação encontra esta verdade a par-
de modo que encontre alguma tir da incorporação do acaso
verdade por meio da interrelação e dos acidentes de linguagem,
(ibidem., p. 156). Crônica de um promovidos entre as trocas
verão se torna, portanto, algo humanas que são possibilitadas
além de um exercício puro para no (e pelo) filme. Desse modo,
mostrar a encenação a partir é o que abre caminho para o
da realidade, na medida em surgimento do cinema de autor
que esse grupo de personagens no domínio do documental, e já
selecionados pelos cineastas prenuncia todo o futuro promissor
aprofundam (ou distanciam) as que a Nouvelle Vague teria a partir
relações entre si ao longo do filme, da incorporação de elementos
de modo que eles próprios auto- de ficção no documentário e
nomizam a situação inicialmente vice-versa (em especial nos
planejada e promovem trocas, filmes da “margem esquerda”
contatos, diálogos, jogos, a do movimento, como os dos
partir de suas máscaras sociais. cineastas Agnès Varda e Alain
O filme pode ser visto, assim, Resnais), assim como possibilita
quase como um experimento o surgimento do modo reflexivo
sociológico que somente o de documentário, o filme-ensaio
formato cinematográfico poderia (do qual Godard é um grande
explicitar – essas relações não expoente).

138
Além desses, é impossível MORIN, Edgar. A alma do cinema.
compreender o cinema con- In: XAVIER, Ismail (org.) A experiência
temporâneo, não apenas do cinema - antologia. Rio de
documental, sem ter como base Janeiro/São Paulo: Paz e Terra,
a ousadia de Rouch e Morin – 2018.
com modalidades tais quais o
documentário performático e o DA-RIN, Silvio. Espelho partido. Rio
poético, que transcrevem esse de Janeiro: Azougue, 2004.
domínio na dimensão íntima de
um “cinema do eu” (TEIXEIRA, op. NICHOLS, Bill. Introdução ao
cit., p. 284); o docudrama (no documentário. Campinas: Papirus,
qual os iranianos se destacam a 2001.
partir dos anos 1990, nos filmes
de Abbas Kiarostami e Mohsen TEIXEIRA, Francisco Elinaldo.
Makhmalbaf); a autoficção, tão Documentário moderno. In:
presente no cinema brasileiro MASCARELLO, Fernando. História
produzido atualmente (nas obras do cinema mundial. Campinas:
de André Novais Oliveira, em Papirus, 2006.
que o cineasta coloca a própria
família para encenar situações RAMOS, Fernão Pessoa.
interpretando a si próprios); e até Cinema verdade no Brasil. In:
Documentário no Brasil – tradição
mesmo o reality show, gênero
e transformação. São Paulo:
propriamente televisivo que toma
Summus, 2004.
por base a construção de uma
realidade cênica onde realidade
UEMA, Maria Vitória. O real no
e performance se confundem no
cinema-verité. Revista Gestão
processo de midiatização. Se o
Universitária, Vol. 10, 2018.
audiovisual contemporâneo toma
como base esses procedimentos,
FILMOGRAFIA:
é muito devido à barreira que CRÔNICA de um verão (1961).
o Cinema-Verdade finalmente Edgar Morin e Jean Rouch. França,
quebra no que se refere à liberdade 90 min.
participativa do documentarista
nos processos criativos de uma DRIFTERS (1929). John Grierson.
realidade cinematográfica. Reino Unido, 49 min.

REFERÊNCIAS: Eu, um negro (1958). Jean Rouch.


BAZIN, André. O que é cinema? São Costa do Marfim/França, 70 min.
Paulo: Ubu Editora, 2018.
Jaguar (1967). Jean Rouch. França,
DELEUZE, Gilles. Cinema 2 – a 1967, 88 min.
imagem-tempo. São Paulo:
Editora 34, 2018. Nanook, o esquimó (1922). Robert
Flaherty, Estados Unidos: 1922, 78
LAWSON, John Howard. O min.
processo de criação no cinema.
Rio de Janeiro: Civilização A Pirâmide Humana (1961). Jean
Brasileira, 1967. Rouch. França, 1961, 90 min.
139
Novos
Olhares
Uma análise crítica da
Nouvelle Vague
Marcos Keiji
Marcos Keiji é graduando em cinema pela FAAP, cinéfilo e curioso pela história
do cinema.

A “era de Aquário” está aqui. Em vista de tudo isso, não é


Uma nova geração de jovens, que possível fazer um estudo breve
cresceu dentro dos cinemas, nos da Nouvelle Vague sem cair na
anos de 1960, concebe maneiras superficialidade. A despeito da
inovadoras de perceber e realizar curta duração (em teoria, já que
a arte cinematográfica. Estes qualquer delimitação sem rigor
jovens artistas tomam para si os é ineficaz em abranger toda a
holofotes com sua irreverência, extensa produção com bordas
radicalizando por meio da turvas), o movimento abrange três
demolição e reconstrução das momentos específicos: os debates
estruturas do cinema clássico. que antecipam as realizações,
A Nouvelle Vague é o principal a chamada a fase crítica, as
representante desse movimento, realizações propriamente (inicial-
cuja revolução não deixa a desejar mente com os curtas-metragens, e
em comparação às demais nas em seguida os longas-metragens)
outras artes. Por consequência, de e o fim do movimento, com as
imediato, é possível endereçar ao consequências para a história do
fato de este ser o movimento mais cinema. Assim, este texto percor-
influente da história do cinema e, rerá boa parte da formação dos
de maneira controversa, o mais “jovens turcos”, o grupo formado
importante. A partir da Nouvelle em torno da revista Cahiers du
Vague, representantes da “New Cinéma, que foi influenciado por
Wave” se espalharam pelo mundo Henri Langlois e André Bazin. Para
inteiro, fincando vigorosas raízes isso, serão feitas paradas em textos
e deixando influências até o fundamentais da época e em
presente, não só na produção revisões críticas feitas posteriores,
cinematográfica, mas também em escritas por Michel Marie e Alfredo
como o cinema é estudado. Manevy. Tudo para culminar no

141
exame da “política dos autores”, menores entre eles, os dois grupos
esquematizada por François concordavam nas ideias de um
Truffaut, a partir de indicações de modernismo cinematográfico,
André Bazin e Alexandre Astruc, produzindo filmes com os mesmos
e no filme-manifesto Acossado princípios. Inclusive, Agnès Varda
(1960), de Jean-Luc Godard. realizou um dos filmes que
antecipou o movimento, La pointe
DA CINEFILIA À PRODUÇÃO courte, de 1955. Além desses dois
CINEMATOGRÁFICA: grupos, no movimento de reno-
vação do cinema franças que
“A Nouvelle Vague francesa culminará na Nouvelle Vague
é um movimento coerente, vale citar Jacques Tati e Robert
limitado no tempo, cujas Bresson, contemporâneos aos
condições de emergência dois grupos, que realizaram filmes
foram favorecidas por uma individuais, cada um com um estilo
série de fatores simultâneos, próprio. Afinal, o que une todos
que intervieram no fim dos estes autores é, simplesmente, a
anos 50, mais precisamente diferenciação que tinham diante
em 1958-1959 [...] é, antes de de toda a produção da época
tudo, um slogan jornalístico na França, representado pelo
justaposto a um movimento “cinema francês de qualidade”.
crítico [...]” (MARIE, 2011, p. 10).
Falar sobre esta “tendência
É preciso mencionar que a do cinema francês” é colocar as
Nouvelle Vague envolveu dois peças de um verdadeiro campo
grupos separados simbolicamente de batalha. Os jovens críticos dos
pelo rio Sena. Na margem direita, Cahiers du Cinéma, em especial
rive droite, estavam os jovens François Truffaut, eram impiedosos
turcos, François Truffaut, Jean em como o cinema francês havia
Luc-Godard, Claude Chabrol, se reconfigurado após a 2a Guerra
Jacques Rivette e Éric Rohmer; Mundial. Na ocasião, diante de
já na margem esquerda, rive uma situação semelhante ao
gauche, estavam Agnès Varda, do cinema italiano, os franceses
Alain Resnais, Jacques Demy, precisavam resolver como iriam
Chris Marker e Jean Pierre retomar a produção cinemato-
Melville. Os integrantes do rive gráfica, após 4 anos de ocupação
gauche não tiveram o mesmo nazista. Diferentemente dos
sucesso financeiro e nem foram italianos, a França não produziu
tão populares quanto os jovens um neorrealismo, sua reação foi
turcos. A despeito dessa clara a de retomar o setor com uma
diferenciação e de alguns atritos indústria cinematográfica nos

142
moldes dos americanos. E assim foi radicalização de esquerda, o
feito pelos próximos 15 anos, com mesmo não poderia ser dito para
algumas raras exceções, como todos. Os jovens turcos tinham
por exemplo o já mencionado posicionamentos muito diferentes
Robert Bresson. O cinema em dentro do grupo. É notório o
questão foi marcado por adap- posicionamento mais conservador
tações literárias fiéis ao material de François Truffaut. Há quem o
base, ponto de maior crítica dos acuse de ser simpático ao cola-
jovens turcos, uma direção de arte boracionismo, o auge da polari-
virtuosa, isenção política e, como zação política na França.
a maioria dos filmes norte-ameri-
canos da época, tinha o roteirista Um breve adendo sobre o
e, acima de tudo, os produtores colaboracionismo e a situação
como os grandes autores. Os filmes política da França: desde a
do cinema de qualidade francês, década de 1930, como em
em parte, eram ovacionados pela outros lugares do mundo, o país
crítica especializada da época presenciou o conflito ideológico
e, até, ganhavam prêmios em fortíssimo entre a extrema
festivais, as obras dos diretores esquerda comunista e a extrema
Claude Autant-Lara, Henri- direita alinhada ao nazifascismo e
-Georges Clouzot e René Clement, até com tendências monarquistas.
por exemplo. Em 1954, François O conflito estava tão acirrado
Truffaut agride violentamente que, quando a Frente Popular
esse cinema com o seu artigo de esquerda venceu as eleições
Uma certa tendência do cinema de 1936, a extrema direita, com a
francês. Por meio deste, Truffaut força cedida pelo nazifascismo,
inaugura a polêmica que funda não facilitou a liderança do
e motiva a Nouvelle Vague, a governo. Com o estopim da 2a
polêmica da adaptação. Guerra Mundial, a invasão da
Polônia (1939), o governo da
A nomeação do grupo “jovens época declarou guerra contra a
turcos” não foi por acaso. O nome Alemanha, em concordância com
é provocativo, erudito e levanta os aliados. No entanto, logo mais,
um dos pontos mais turvos da em 1940, a França foi invadida
Nouvelle Vague, qual é o pelas tropas nazistas, em apenas
posicionamento político do grupo 35 dias. A polêmica do colabora-
dos Cahiers du Cinéma? É difícil cionismo está exatamente nesta
dizer. Por mais que a carreira de rápida ocupação que, como
alguns dos diretores individuais, foi apontado posteriormente,
principalmente Godard, tenha to- foi facilitada pelos mesmos
mado um rumo de uma grupos de extrema direita. Com

143
a desocupação, após 4 anos, em partes da política no cinema.
das tropas nazistas, uma dúvida Tanto é que Truffaut defendia o
pairou no ar, quem foi resistência cinema norte-americano e, mais
e quem foi colaboracionista? tarde em sua carreira, partiu,
A questão permeia todas as assim como Claude Chabrol, para
próximas gerações de intelectuais um cinema mais popular, uma
franceses. E é aqui que entra posição polêmica para quem
novamente François Truffaut, o ratificou a “política dos autores”.
ponto de maior discordância
entre ele e o, altamente politizado, Para o entendimento desta
Jean-Luc Godard, e o motivo do “política” e das contradições
rompimento da amizade. dentro dela, é imprescindível a
análise da formação teórica e
Truffaut, por mais que defendesse fílmica dos jovens turcos, com
ideias conservadoras, era republi- destaque para a influência que
cano, ele não concordava com sofreram de Henri Langlois e
ideias autoritárias, mas também André Bazin. Bazin é simplesmente
não as combatia. E tudo isso boa parte do embasamento
pode ser visto no seu contra- teórico da Nouvelle Vague, o
ditório posicionamento quanto qual foi por vezes fomentado e
ao cinema: enquanto Godard por outras rebatido pelos jovens
defendia uma forte politização turcos. Entretanto, inicialmente, é
dos filmes (como Glauber Rocha prudente destacar o cofundador
faria também) – posteriormente da Cinemateca Francesa, Henri
a Acossado, mais no final da Langlois, responsável por boa
Nouvelle Vague - Truffaut escolheu parte do acervo crítico e fílmico
um posicionamento mais brando que é a mente dos jovens turcos.
e neutro, tanto em suas críticas “A Nouvelle Vague foi o primeiro
quanto em seus filmes. É público os movimento cinematográfico
conflitos internos que ocorreram produzido com base em um
nos Cahiers du Cinéma, uma interesse pela memória do cinema”
revista “neutra” com uma posição (MANEVY, 2012, p. 224), Langlois,
majoritariamente de direita, em em sua eterna luta contra a
especial considerando a defesa morte do cinema e com um gosto
do cinema hollywoodiano. Truffaut eclético, programou cineclubes
acabou sendo o maior símbolo robustos em Paris, frequentados
desta contradição, com a defesa religiosamente pelos jovens
convicta dos assuntos que mais o turcos. Apesar de não ser uma
interessavam, chegando ao pon- novidade na história do cinema,
to de apontar a covardia de quem a cinefilia ganha um rosto ainda
não se posicionava, e isenção mais sofisticado com o estudo

144
de teorias cinematográficas e de educação pode ser utilizada como
análise de filmes do mundo inteiro. propaganda de guerra, como
Langlois acabou por “[...] semear uma maneira de disseminação
uma nova consciência crítica – a de ódio, de culto à personalidade
da Nouvelle Vague – e consolidar e de manipulação. Apesar disso,
o status de arte adquirido pelo estes diretores soviéticos não
cinema.” (ibidem., p. 224) e isso estavam interessados no poder
pode ser visto nas principais, e do cinema como alienação, mas
ricas, referências dos jovens turcos: sim em proliferar as ideias que
o cinema soviético, Hollywood e os eles defendiam, de usar o “olho”
filmes B, neorrealismo italiano e a da câmera como uma extensão
produção documental do Cinema da mente deles. Langlois, poste-
Direto e do Cinema Verdade. riormente, formalizou essa ideia
do cinema como educação, por
Este mosaico de referências meio de um processo de estudo
reflete as, já mencionadas, do cinema como qualquer outra
contradições políticas do formação artística, investigando e
movimento e ver cada influência analisando cinematografias fora
individualmente deixa evidente do eixo europeu, e percebendo
os motivos. É intuitivo o quão novas maneiras de fazer cinema.
polêmico, ou até contraditório, Um posicionamento muito
aproximar movimentos como o semelhante ao de André Bazin.
cinema soviético e Hollywood,
quer dizer, os dois lados Do outro lado do mundo, no
antagônicos da Guerra Fria. No ocidente, Hollywood desenvolveu-
entanto, na prática, cada um dos -se com uma lógica diferente. O
movimentos tem alguma contri- diretor tem um papel muito menor
buição relevante para o mosaico na concepção de um filme, ele é
“nouvellevagueano”. Em primeiro um empregado do estúdio para
lugar, o Realismo Socialista, de realizar a visão deles colocada
diretores como Mikhail Romm em um roteiro. Claro que há
e Mikhail Chiaureli, com um exceções, a maioria idolatrada
projeto que misturava estética pelos jovens turcos, diretores
e ideologia e que expandiu autores que conseguem navegar
os potenciais expressivos do pelas limitações do sistema de
cinema. Os realizadores do estúdios, com um número de
movimento acreditavam no sucessos na filmografia e, por
potencial do cinema como uma consequência, o aval para ter
forma de educar as pessoas e, o controle criativo integral (a
como tanto o cinema soviético controvérsia está na possibilidade
quanto o nazifascista provaram, a de esse controle não ser possível).

145
Os jovens turcos se considerarem estar sendo produzido seguindo
“hitchcock-hawksianos” não era esta linha mais moderna. Com o
por acaso, afinal, com o fim da 2a final da guerra, Roberto Rossellini,
Guerra, uma enxurrada de filmes Vittorio de Sica e Luchino Visconti
norte-americanos, censurados usaram uma Itália completamente
durante os 4 anos de ocupação devastada como pretexto para
nazista, foi acessada pelos jovens produzir alguns dos filmes que
durante a adolescência. Eles mais demoliram o clássico, até o
tinham uma admiração muito momento. Claro que, como por
grande pelos filmes noir e os filmes exemplo Rossellini (um dos autores
B, que não precisavam de grandes favoritos dos jovens turcos),
orçamentos para contar estórias utilizam de algumas estruturas
de gênero de maneira criativa e do clássico, em especial o melo-
efetiva. Havia muita admiração drama, para contar estórias no
por cineastas como: John Ford, cenário devastado da Guerra ou
Alfred Hitchcock, Howard Hawks, em uma Europa em reconstrução.
Orson Welles, Samuel Fuller, Estes autores queriam mostrar a
entre muitos outros considerados vida como ela de fato é, tendo
autores pelos jovens turcos. O como inspiração muito dos
cinema hollywoodiano ofereceu documentários clássicos, o que
o melhor da técnica, oferecendo não era o esperado pelo grande
as principais ferramentas para público. Com o cinema moderno,
fazer o clássico, mesmo que nem as pessoas passam a entender
sempre operando-as de maneira o cinema não mais como só
a alcançar seus potenciais entretenimento, mas como uma
dramáticos. Começa a crise do maneira de alcançar a realidade.
cinema clássico.
E é nesta discussão que os mo-
Como já foi afirmado à exaustão, vimentos documentários Cine-
Cidadão Kane (Orson Welles, ma Direto e Cinema Verdade
1941) é o primeiro filme moderno, se manifestam, de maneira
com sua narrativa não linear, um contemporânea, ao que estava
defunto narrador e a introdução sendo feito na França pelos
de uma maneira diferente de jovens turcos. De um lado, Robert
entender o clássico. No entanto, o Drew e a Drew Associates, nos
épico de Orson Welles foi um ponto Estados Unidos, que defendiam
fora da curva, ninguém estava a possibilidade de capturar a
fazendo filmes como Welles. realidade empírica, sem nenhuma
Quando o filme saiu, a 2a Guerra interferência da câmera, sem a
ainda estava em pleno vapor e, projeção da subjetividade do
por isso, nada na Europa poderia operador da câmera (mesmo

146
com a inevitável pressão sentida ocorreu com a fotografia,
pelos atores sociais de estarem progressivamente, o público
diante das câmeras). Do outro consumidor pudesse produzir os
lado, Jean Rouch e Edgar Morin seus próprios filmes (a
iniciaram a crítica ao pensamento popularização de equipamentos
de que é possível encontrar a de filmagem só ocorreria de fato
verdade com o olhar da câmera, alguns anos depois, porém é
a tese dos dois era alcançar a relevante com a movimentação
realidade por meio da interferên- do cinema clássico para o cinema
cia, na criação de situações que moderno), não mais só os grandes
provocassem reações autênticas estúdios. Só a partir deste ponto
dos atores sociais. Com as duas que os jovens turcos poderiam
novas maneiras de produzir produzir seus próprios filmes,
documentários em pauta, os dentro do movimento natural de
jovens turcos acompanharam cinéfilos, passando por estudiosos
a observação, por André Bazin, e críticos, até, finalmente,
de uma tendência do cinema realizadores de curtas e longas-
mundial: a imersão na realidade. -metragens.

Bazin observou que, desde o Os jovens turcos tinham uma


começo do cinema, os realizadores ideia fundamental, seguindo uma
procuravam sempre um realismo certa admiração pela técnica, a
pelo aprimoramento das técnicas de controle integral do filme pelo
cinematográficas, na tentativa de autor, o que faz parte da tese
aprisionar o tempo, pausar a de François Truffaut quando ele
entropia natural do universo. escreveu Uma certa tendência
Quando os equipamentos do cinema francês. O problema
chegaram em um ápice, em que deste culto à técnica é o que
se percebeu que esse realismo ocorreu com os realizadores do
era impossível, assim como Cinema Direto, uma “submissão
ocorreu na transição entre o ao realismo”. Segundo Bazin, era
Cinema Verdade e o Cinema necessário que os cineastas não
Direto. Nos anos de 1960, já era agissem de maneira passiva com
possível fazer a captação de o equipamento, que não fossem
filmes com câmeras mais leves, como os “funcionários” (conceito
fazer o som direto com de Vilém Flusser) de Hollywood,
equipamentos maleáveis e, por não há como o automatismo
consequência, o cinema estava da câmera chegar ao real,
começando a se democratizar. A como o Cinema Direto provou.
miniaturização destes equipa- Os aparelhos, ou caixas pretas
mentos permitiu que, como (como Flusser chama as máquinas

147
fotográficas, que podem muito Alexandre Astruc, que escreveu
bem nomear qualquer aparelho, um artigo premonitório, em 1948,
incluindo a câmera de cinema), na revista L´écran français: Nasci-
precisam ser utilizados de manei- mento de uma nova vanguarda:
ra lúdica, com o objetivo de ir das a caméra-stylo. No artigo, Astruc
funcionalidades de um manual de sente a iminência da populari-
instruções. No cinema é a mesma zação do cinema moderno com
coisa, assim como Bazin defen- uma vanguarda que iria anunciar
de, deve-se utilizar dos elementos o nascimento deste novo cinema.
das linguagens cinematográfi- A caméra-stylo, da qual Astruc se
cas para criar uma realidade que refere, é o entendimento de que
respeite o real. No entanto: a câmera do cineasta é análoga
à caneta do escritor, por meio
Respeitar o real, aqui, não é desta ambos os artistas podem
filmar passivamente tudo que criar arte com as respectivas
aparece na frente da câmera, linguagens. Falar sobre este
como poderia parecer, dada assunto é perceber a amplitude
a concepção bazaniana de utilizações das linguagens
de realismo automático da cinematográficas e, com essa
câmera. Respeitar o real, ao percepção, os novos autores iriam
contrário, é também subtrair, explorar os novos limites da jovem
escolher, retirar, despojar o real arte, agora consolidada.
de alguns de seus atributos
(COUTINHO, 2017, p. 26). Astruc também antecipa a
política dos autores na questão
Por consequência, o realismo da adaptação de livros para
de Bazin exige um certo controle o cinema. Já que todos esses
sobre a concepção do filme, o que teóricos – Bazin, Astruc e os
está completamente alinhado jovens turcos – defendem o
à “política dos autores”, da qual cinema como uma arte indepen-
ele é diretamente responsável. dente das outras, que vai além
Uma das principais caracterís- da “tirania do visual” (ASTRUC,
ticas é o controle total da mise- 1948). Até então (no caso, até os
-en-scène, de maneira a garantir anos de 1960), como no cinema
a autoria dentro de um filme. A de qualidade, as adaptações de
problemática do automatismo da livros para o cinema tinham como
câmera e o poder da mise-en- o maior objetivo a fidelidade. Ou
-scène como parte da linguagem melhor, como Truffaut acusa, “uma
do cinema comentada por Bazin e crise da coragem” (MARIE, op. cit.,
os jovens turcos é compartilha por p. 41) e anuncia, na revista Arts:
um outro teórico, amigo de Bazin, “o cinema francês está morrendo

148
sob falsas lendas” (ibidem., p. 40). adulta, escreveram textos sobre
Segundo o crítico, os diretores cinema em influentes veículos
franceses contemporâneos a sobre o assunto, as revistas. Para
ele não tinham o controle dos chegar nesse patamar, os jovens
próprios filmes, cediam a autoria críticos dos Cahiers du Cinéma
para terceiros, o que provoca o estudaram e viram muitos filmes,
rebaixamento deles como simples graças ao apadrinhamento de
funcionários (provocação que figuras notórias como André Bazin
cria ressentimentos em algumas e Henri Langlois. Só que, os jovens
pessoas, as quais carregam até entendiam melhor do “sentimento
depois da morte de Truffaut). do mundo” (XAVIER, 2003, p. 19) da
E é neste pretexto que Truffaut época - referência ao contexto
escreve Uma certa tendência temporal e espacial de uma obra
do cinema francês para incitar (e à Carlos Drummond de Andrade)
uma mudança, que para ele era – pelo menos em comparação
necessária no cinema francês. aos seus mentores, os filmes deles
É uma atitude jovem, cujos traziam um pleno entendimento
resultados vão além do próprio do zeitgeist. Por consequência,
cinema. são símbolos da mudança
profetizada por Alexandre Astruc,
O MOVIMENTO: eles são a vanguarda moderna
que trouxe o tremor de um novo
A Nouvelle Vague produziria cinema.
uma diferente hierarquia de
valores diante dos filmes, uma A fase das críticas representa
“despolitização” produtiva da o esforço dos jovens turcos para
percepção: “Um ponto comum entrar em evidência na indústria
que havia na Nouvelle Vague cinematográfica francesa, em
é que nós amávamos tudo pleno crescimento. Em 1958,
que havia de bom. Nós gostá- essa indústria se estabelece
vamos do jovem Cassavetes no momento em que os jovens
e do velho Renoir ao mesmo turcos começam a se aventurar
tempo. E mais, o que havia de na produção de filmes. Até este
bom no cinema, nós tínhamos ponto, o cinema francês conti-
nos livrado das obras-primas nuava na mesma situação, filmes
(MANEVY, op. cit., p. 232). feitos por produtores, roteiristas e
diretores, com ideias retrógradas
E é assim que o movimento se e imóveis. A questão é que em
iniciava, um grupo de amigos 1954 François Truffaut inicia sua
cinéfilos que se conheceram em primeira ofensiva contra o cinema
cineclubes e, às portas da vida francês de qualidade, cuja

149
principal polêmica é o ataque a são autores [...] Outros nunca
alguns dos mais estimados dire- serão considerados como tal,
tores dessa época, acusando-os mesmo se tiverem êxito em um
de serem medíocres. Novamente, filme [...].
estas críticas estão direcionadas à
escolha de filmar um livro. Truffaut 3. “Não há obras, só há
levantava bandeira pelo contrário, autores” [...] (MARIE, op. cit., p.
a completa traição do material 42).
base se for necessário para uma
adaptação cinematográfica da As teses em questão são a
obra, que consiga traduzir em provocação definitiva de Truffaut
linguagem cinematográfica a e seus amigos, um empurrão em
obra original que, portanto, fica direção ao que eles sabiam ser
como uma base, não um molde. bons filmes. Eles não escondem as
O crítico parece exausto de contradições das teses: a descon-
adaptações com voice-over de sideração do cinema como uma
passagens do livro redundando arte coletiva, o roteirista como
com as imagens. A adaptação uma profissão e o fato de que
acaba se tornando uma aventura as escolhas de autores feitas por
de reconstruir a obra original por eles caem na pura subjetividade.
meio das subjetividades de um É tentador criticar as teses como
autor. uma informalidade grosseira,
antiacadêmica. Todavia, tais
Com esse trampolim que foram críticas caem justamente no tom
as críticas de Truffaut, os outros irônico dos idealizadores das
jovens turcos uniram-se para teses, cada uma delas foi feita
formular o projeto político definidor para causar uma reação forte
da Nouvelle Vague, a “política dos e imediata do leitor. Sem contar
autores”, que consistia em três que os juízos de valor fazem
teses: parte da profissão de críticos de
cinema deles, e não de acadê-
1. Só há um único autor de filme micos, há uma confusão nesse
e este é o diretor. Qualquer sentido. Há lógica nas palavras
paternidade criadora é dos jovens turcos: a defesa aqui
negada ao roteirista, que parece uma generalização para
somente fornece a matéria- fins acadêmicos (como é feito
-prima ao autor. de fato), o estudo de um diretor
(autor) em relação à sua filmo-
2. Essa política é bem seletiva, grafia como um todo, observando
fundada em decisões e juí- os padrões (temáticos e estéticos)
zos de valor. Alguns diretores na sua mise-en-scène que

150
permeiam sua carreira, portanto, experiências do autor. O curta
o estilo do autor. As teses é uma adaptação do conto
parecem um convite para que o Virginales (1955) de Maurice Pons,
leitor avalie aspectos além do que descreve, com um voice-over
roteiro e defenda aqueles que ele irônico e nostálgico, o despertar
considera como autores. É uma sexual de um grupo de jovens
escolha profundamente subjetiva garotos que se apaixonam por uma
que serve como combustível para mulher e fazem de tudo para que
uma discussão sobre cinema mais ela seja “deles”, acabando com as
sofisticada do que o “gosto ou possibilidades de ela se relacionar
não gosto”. As perguntas partem com homens. O interessante aqui
para: “como o diretor articula não é somente uma abordagem
tais elementos da linguagem bem-humorada de uma estória
cinematográfica para chegar no coming of age – expressão que
resultado pretendido?”. E como descreve o amadurecimento de
Bazin defende, neste momento, personagens, seja prematura-
há o público para ser considerado mente como já na idade adulta,
na análise do filme, como ele seguindo uma lógica dramática
apreende as articulações de bem clássica – mas é também
tema e estética no filme. um experimento de linguagem,
na adaptação do conto para
Assim, fica fácil falar da Nouvelle o cinema. O filme parte dos
Vague como movimento cine- mecanismos clássicos – o drama,
matográfico, já está claro como o voice-over e a linearidade
eles pensam, agora é preciso da narrativa – para introduzir
comentar como eles vão executar elementos modernos – o uso de
(ou não) as ideias que pregam. A slow motion e a utilização de um
começar pela fase dos curtas- narrador com personalidade, um
-metragens, em que os críticos dos garotos narrando a estória
pavimentam um caminho em do futuro, com um ponto de
direção aos longas e à aplicação vista claramente afetado pelas
do projeto de cinema que eles memórias.
tinham. Em Os Pivetes (François
Truffaut, 1959), o diretor aplica Se tudo isso pode ser falado
algumas dessas ideias, conce- de apenas um curta do início da
bendo até alguns elementos carreira dos jovens turcos, os longas
mais anárquicos, quase como exigem ainda mais comentários.
um vídeo caseiro entre amigos. Os primeiros longas dos diretores
Em primeiro lugar, o filme não é o da Nouvelle Vague, em conjunto
primeiro curta de Truffaut, porém com os curtas-metragens, são o
tem uma temática que antecipa sucesso que permite a produção
Os Incompreendidos (François de Acossado e a marca que os
Truffaut, 1959), interações juvenis jovens turcos deixam no mundo.
que remetem diretamente às Esses filmes conquistaram prêmios
151
e tiveram resultados positivos de 3. são privilegiados os cenários
bilheteria, em especial: Hiroshima, naturais e se exclui o recurso
mon Amour (Alain Resnais, 1959), aos cenários reconstituídos
Os Incompreendidos (1959) e em estúdio;
Acossado (1960). Enquanto isso,
os outros diretores dos Cahiers 4. utilização de uma equipe
e rive gauche também faziam “leve”, de poucas pessoas
suas tentativas de alcançar a [Neorrealismo italiano, Cinema
tela grande, em especial, Nas verdade e Cinema direto];
garras do vício (Claude Chabrol,
1958), Paris nos Pertence (Jacques 5. opção pelo “som direto”,
Rivette, 1961), O Signo do Leão gravado no momento
(Éric Rohmer, 1962) – para citar da filmagem, em vez de
alguns. Novamente, para utilizar pós-sincronização [Cinema
uma delimitação mais restrita, verdade e Cinema direto, nem
Os Incompreendidos será sempre isso foi possível para
considerado o primeiro filme da os primeiros filmes da Nouvelle
Nouvelle Vague, mas vale mais Vague];
uma vez destacar La pointe
courte como o precursor principal 6. tentativa de não empregar
do movimento. iluminação adicional muito
pesada [Cinema verdade,
Sobre Os Incompreendidos, Cinema direto e Neorrealismo
é uma ótima introdução para italiano], com a escolha, junto
as principais características com a câmera, de uma pelí-
estéticas, técnicas e temáticas cula bem sensível [em todos os
da Nouvelle Vague. Michel movimentos filmados à luz do
Marie faz um bom resumo das dia, com uma alta exposição
características estéticas, em seu do Sol];
livro A nouvelle vague e Godard:
7. utilização de não
1. o autor realizador é também profissionais para interpretar
o roteirista do filme [Política os personagens [Cinema
dos autores]; verdade, Cinema direto,
Neorrealismo italiano e
2. ele não faz a decupagem Realismo soviético];
estrita preestabelecida, um
grande espaço é deixado à 8. quando se recorre a
improvisação na concepção profissionais, opção por novos
das sequências, dos diálogos atores, dirigidos de maneira
e da atuação dos atores livre [Hollywood dos Filmes B].
[Cinema verdade e Cinema (MARIE, op. cit., p. 65-66).
direto];

152
Com a transcrição detalhada leve possível as pesadas
de Marie, e comentada por mim, restrições do cinema conce-
alguns comentários podem ser bido no modelo comercial e
feitos. Todas as características industrial. Elas visam eliminar
estéticas da Nouvelle Vague as fronteiras entre cinema
são derivadas dos movimentos profissional e amadorismo,
mencionados nas influências, como entre filme de ficção e
alguns com mais presença que filme documentário ou filme
outros. Toda a parte da produção de pesquisa (ibidem., p. 66).
é muito marcada pelas influências
do neorrealismo italiano e dos
documentários modernos. Já ACOSSADO – O MANIFESTO
a pós-produção é fortemente
influenciada pelo cinema Acossado era o tipo de filme
soviético. E quanto ao cinema de em que tudo era permitido, era
Hollywood? Além dos atores sem essa sua natureza. Qualquer
muita experiência, nos filmes de coisa que fizessem, tudo podia
baixo orçamento, suas referências se integrar ao filme. Eu parti
vão ganhar mais clareza em disso. Eu dizia a mim mesmo:
Acossado, na comunicação entre Houve Bresson, acabou de
o cinema francês e o cinema aparecer Hiroshima, certo
norte-americano. Quanto à Os cinema termina, talvez ele
Incompreendidos, o filme é a tenha se acabado, então,
primeira ratificação da maioria coloquemos um ponto-final,
destas características, especial- mostremos que tudo é permi-
mente na preferência de locações tido. O que eu queria era partir
reais, que trazem toda uma carga de uma história convencional
de pessoalidade, por serem locais e refazer, mas diferentemente,
de grande significado para o todo o cinema que já tinha
diretor. O filme em questão não é sido feito. Eu queria também
tão anárquico quanto Acossado dar a impressão de que
de Godard, é bem diferente acabávamos de encontrar ou
na maneira como lida com as de sentir os procedimentos do
emoções e a nostalgia. Truffaut cinema pela primeira vez. A
utiliza dessas características abertura em íris mostrava que
para contar uma estória pessoal era permitido voltar às fontes
e envolve o público com a sua do cinema e o encadeamento
autenticidade. No fim: vinha daqui, simplesmente,
como se acabássemos
Todas essas escolhas se de inventá-lo [“Cahiers du
direcionam para uma maior Cinéma, n. 138, p. 1977, “Especial
agilidade de direção e se Nouvelle Vague” (dezembro de
esforçam para tornar o mais 1962), Jean-Luc Godard”].

153
Godard, ao ver os filmes de seus finais da vida de Michel, um
amigos, sabia que o potencial ladrão de carros malandro que,
do novo cinema ainda não tinha em um momento de ostentação
sido alcançado, a mise-en-scène de um dos carros roubados, é
continuava convencional. Por isso, detectado por um patrulheiro da
o jovem autor decidiu realizar o polícia, Michel mata o homem
objetivo demiúrgico de concre- e acaba sendo perseguido por
tizar todo o cinema moderno. Os investigadores. Michel volta para
anúncios já haviam sido feitos, Paris e, como nos filmes noir, visa
agora, seguindo os exemplos dos fugir com a sua amada, Patrícia,
modernos que antecederam os para o “outro lado da fronteira”,
jovens turcos, Godard ratificou a quer dizer, a Itália. Patrícia é uma
demolição da sintaxe do cinema. jornalista norte-americana, cujos
Com Acossado, Godard utilizou o sentimentos não são compatíveis
clássico como assento, com um aos de Michel, o que, por maior
roteiro clássico fechado hermeti- que seja a atração sexual sentida
camente, e o realizou como algo por ela, inicia um conflito interno
nunca visto. Segundo Godard, os nela: denunciar ou fugir com ele.
primeiros filmes da Nouvelle Vague A barreira entre os dois vai além
são filmes de cinéfilos e, portanto, da ética, ela se estende para
oferecem uma exposição, em a comunicação. E isso motiva
pastiche, de muito do repertório a denúncia de Patrícia e a
fílmico do autor. Além disso, oferece eventual execução de Michel. Em
todo um panorama da Nouvelle suma, Acossado é uma adap-
Vague: com participações tação de uma história real, lida
especiais de Jacques Rivette e em um jornal, que assume a
do próprio Godard, por exemplo, identidade jornalística em todos
uma referência direta aos Cahiers os elementos da mise-en-scène.
du Cinéma (uma representação Godard escolhe um estilo extraído
literal e expositiva da “juventude”) das reportagens e a executa de
e, é claro, a congregação de maneira a manchar toda a sintaxe
todos os elementos da mise-en- clássica com coloquialismos
-scène de Godard para provar a coerentes com o tom jornalístico.
eficácia da política dos autores.
A mise-en-scène criada em
O filme é baseado em um torno da reportagem parece
argumento de François Truffaut assumir a inspiração no Cinema
(cedido por meios contratuais), Direto, em como traz elementos
cuja inspiração principal foi dessa cinematografia para
o crime de Michel Portail, que todos os elementos disponíveis
ocorreu no começo dos anos na linguagem cinematográfica.
de 1950. O enredo, de maneira Tudo exala uma urgência, um
simplificada, narra os momentos ritmo frenético, objetivo. É no-

154
tório o trabalho artesanal de filme foi amplamente captado em
Godard, e da equipe de edição, locações com uma iluminação
em reduzir o filme ao mínimo integralmente natural, Godard,
possível (considerando as 2h10 em conjunto com a equipe de
que Acossado teria). A montagem fotografia, precisou utilizar uma
alterna entre momentos com película hipersensível que só
planos sequências (de mais de era produzida para câmeras
dois minutos), reminiscentes da fotográficas. Consequentemente,
admiração a Roberto Rossellini, foram feitos ajustes tanto na
e uma montagem mais frenética captação quanto na revelação do
com uma dialética própria, filme, que incluíram a adaptação
reminiscente de Eisenstein. A da película fotográfica para o
questão aqui é que Godard cinema e revelação em um espaço
quebra algumas das regras de testes com produtos químicos
do cinema clássico, não como foras do comum. Além disso, a
desleixo, mas como a execução equipe utilizou de meios para
coerente do estilo escolhido. Os movimentar e esconder a câmera
“amadorismos” mais gritantes são inusitados, que, mesmo assim,
os falsos raccords, que assumem tiveram resultados arrebatadores.
na montagem a descontinuidade, A fotografia de Acossado acaba
chegando ao ponto de sendo uma série de fotos jorna-
cortar várias vezes no mesmo lísticas que flagram os momentos
enquadramento (o que seria uma e compõem uma complexa
blasfêmia no cinema clássico). reportagem.

Acossado parece um filme A construção sonora de


captado ao vivo, mesmo sem o som Acossado também é um dos
direto sendo feito no momento, pontos de destaque e é a prova
Godard radicalizou até no tanto final do tamanho controle da mise-
de dias de filmagem, que não -en-scène de Godard. O som em
passaram de 21 (em detrimento Acossado tem três camadas: os
do padrão de algumas semanas diálogos, os ruídos e a música. Em
de filmagens – seguido, inclusive, primeiro lugar, os diálogos escritos
por Chabrol e Truffaut, até aquele por Godard alimentam a comuni-
momento). As locações, natu- cação caótica, e até sem nexo,
ralmente, eram todas reais e entre os personagens. Há muitos
variavam entre pontos turísticos estrangeirismos, gírias, piadas
e os “quartos de empregada”, internas e coloquialismos, que
não exatamente o local mais servem de ruído na comunicação
glamoroso (muito inspiradas no tanto com Patrícia quanto para
neorrealismo italiano). Como o o espectador. Por vezes, até os

155
diálogos parecem se tornar não se estendem a outras artes. A
diegéticos, como se estivessem principal referência direta é, claro,
sendo comentados posteriormen- o cinema noir norte-americano,
te, exatamente como foi feito em isso fica claro logo de início do filme
Eu, um negro (Jean Rouch, 1958), quando Godard dedica a obra ao
uma das maiores inspirações Monogram Pictures, uma famosa
para Godard no momento. Como produtora de filmes B do gênero
um complemento a isso, os ruídos noir. E, ainda, Godard localiza
da paisagem sonora urbana de Acossado em um subgênero, o
Paris são diversos e representam mesmo de estórias como Bonnie
uma linguagem coloquial urbana, and Clyde (que, ironicamente, será
dão texturas às imagens e criam um dos filmes inauguradores da
mais uma camada ruidosa na Nova Hollywood, no final dos anos
comunicação que o filme está de 1960), os filmes de crime em que
estabelecendo. Por último, a o meliante é perseguido durante
trilha musical de Jazz oferece toda a projeção, na maioria das
uma última camada com um vezes com um final trágico. Outra
significado a mais. O Jazz, além referência importante é o gesto
de ser uma escolha mandatória de passar o dedo nos lábios, que
nos filmes noir, é um estilo musical era feito por Humphrey Bogart,
que resume bem o trabalho de adotado pelo Michel. Além disso,
Godard no filme: “[...] o sucesso todas as referências na estética
de Acossado se deve evidente- do filme valem ser mencionadas,
mente à imaginação de Godard já que vão de encontro com os
e, sobretudo, porque é essa, movimentos cinematográficos tão
na minha opinião a sua maior admirados pelo autor.
qualidade, ao seu talento para
o improviso (grifo meu) [...] ([Raoul Uma das referências mais
Coutard, diretor de fotografia] importantes, que merece uma
Em Le Nouvel Observateur, 22 de atenção especial, encontra-se
setembro de 1965)” (MARIE, op. cit., na sequência final de Acossado.
p. 180). Durante algumas cenas do filme,
Michel quebra a 4a parede e
O pastiche de Godard tem chega até a falar com a câmera,
algumas camadas, desde as que é colocada como a passa-
referências mais diretas – como geira do carro roubado e uma
enquadramentos, gestos, diálogos ouvinte paciente dos devaneios
e situações – como também as do personagem. Esse movimento
mais intertextuais – dentro do de radicalização de Godard
acervo ilimitado do inconsciente é somado ao gesto Humphrey
de Godard, com referências que Bogart na sequência final do filme.

156
Patrícia denuncia Michel e, em um Nouvelle Vague. Na obra, Bergman
momento de confrontação anti- conta a estória de Mônica e Harry,
climático, volta para o estúdio em um jovem casal com um rela-
que o casal estava hospedado cionamento claramente frágil,
para contar de sua decisão para que está junto apenas porque é
Michel. No entanto, em um belo melhor do que ficarem sozinhos.
plano sequência que transita do Os personagens são amostras de
ponto de vista dela para o dele, um proletariado que sofre com
Michel não reage com o surto que os abusos sexistas e de classe,
se esperaria de um criminoso em ela é mulher e ele trabalho em
um filme noir, o personagem está um galpão de porcelana. A vida
calmo e pensando em se entregar. em casa não é nada melhor,
O protagonista sai do estúdio Mônica apanha do pai e Harry
para encontrar um colega seu tem um pai doente. Mônica sai de
com o dinheiro que é devido a ele, casa e, junto com Harry, decide
o colega, então, entrega o objeto embarcar em uma jornada de
que sela o destino de Michel: barco pela Suécia. Essa jornada é,
uma arma. Neste momento, a novamente, o coming of age, nada
polícia chega e baleia Michel nas ortodoxo, dos dois personagens.
costas, ele corre por uma rua de O Bergman aqui explora essa
Paris. Patrícia segue o homem até questão da juventude, da imatu-
ele cair no paralelepípedo, ele ridade e do amadurecimento de
olha para ela e, mais uma vez, a maneira semelhante a Truffaut,
chama de desprezível e Patrícia e a Godard. Para entrar neste
novamente não entende. Patrícia, mundo de adultos, cada um dos
então, olha para a câmera, faz o personagens precisa tomar uma
gesto nos lábios e vira de costas. decisão que consiste em ser
Fade out. Fin. infeliz ou lutar pela felicidade. No
filme do Bergman, é a decisão,
O que é interessante desta mesmo com uma filha, de trair
sequência é como ela encapsula Harry, agora seu marido. Em Os
o filme e é a frase impactante Incompreendidos, Antoine Doinel
do final do manifesto. Godard, foge do internato. E, em Acossado,
para variar, convoca o espec- Patrícia liga para a polícia. Por fim,
tador para perceber que o olhar o que todos esses filmes têm em
de Patrícia vai além da morte comum, o olhar diretamente em
do Michel. O olhar remete a uma direção à câmera, desarmando
referência ainda inédita neste qualquer que tente julgar os
texto, Mônica e o Desejo (Ingmar personagens.
Bergman, 1953), um dos filmes Em Acossado especificamente,
estrangeiros que mais antecipa a o olhar da Patrícia em conjunto

157
com o gesto é uma indicação a posição política de Acossado
do que Godard está falando: a é contrária a despolitização, à
personagem absorveu a admi- imobilidade de não tomar uma
ração do amante pelo cinema posição. E isso eventualmente
norte-americano. Ela representa acontece dentro do grupo dos
Godard e os jovens turcos, Cahiers du Cinéma.
jornalistas promissores que se
deparam com a força de uma O grupo se junta por uma
burguesia artística fechada e última vez em 1968, durante as
arrogante, mesmo que não muito manifestações estudantis, dentre
inteligente, e eles denunciaram as reivindicações, a reivindicação
seus crimes contra o cinema. O dos cinéfilos era pela readmissão
crime da mediocridade. Esta é a de Henri Langlois à Cinemateca
frase final do manifesto, uma ode a francesa, que fora demitido por
todas as ideias que se nutriram lá suas escolhas excêntricas de
com Bazin e sua fé no “[...] realismo filmes. O governo da época, assim
construído por um cineasta nada como mostra Acossado, tinha uma
passivo, ao contrário, com a ativa força de repressão controlada por
participação do espectador grupos conservadores. A contra-
e escrito com a câmera.” cultura francesa está em seu auge.
(COUTINHO, op. cit., p. 30). No entanto, como é muito bem
ilustrado em Godard mon amour
(Michel Hazanavicius, 2007), o
O FIM E O COMEÇO DO CINEMA grupo dos jovens turcos estava
MODERNO: ruindo, exatamente quando a
mentalidade de esquerda se
E com isso, pode-se falar do infiltra na mente de Godard. O
último ponto ainda relevante de autor vira maoísta, um pouco antes
Acossado: a politização. Pode das greves estudantis, produz
parecer que ela não está presente filmes como Week-end à francesa
em Acossado. Na verdade, o filme (1967) e A Chinesa (1967), rompe
“ostenta, de maneira bem provo- com a Nouvelle Vague (e sua
cativa, uma indiferença ao mundo amizade com François Truffaut)
político como tal.” (MARIE, op. cit., e cria o grupo Dziga Vertov,
p. 143). Ela está presenta a toda cujo objetivo era uma produção
volta de Michel, principalmente cinematográfica comunista.
nos meios de comunicação, Neste momento, cada um dos
porém, no meio de todos os realizadores segue em frente com
ruídos de sua vida cotidiana, ele suas carreiras, com contribuições
resolve não escutar (familiar, não sem iguais na concretização do
é mesmo?). Por consequência, cinema moderno.

158
REFERÊNCIAS: WEBGRAFIA:
BAZIN, André. O que é o cinema?. ALMEIDA, Marília. Nouvelle vague:
São Paulo: Ubu Editora, 2018. os jovens turcos. Digestivo Cultural,
30 de janeiro de 2007. Disponível
BAZIN, André. O realismo impossível. em: https://www.digestivocultural.
Belo Horizonte: Autêntica Editora, com/colunistas/coluna.asp?codi-
2017. go=2184&titulo=Nouvelle_Vague:_
os_jovens_turcos. Acesso em 14 de
COUTINHO, Mário Alves. A junho de 2021.
invenção do realismo, ou tudo
que vive é sagrado. In: BAZIN, ASTRUC, Alexandre. Nascimento
André. O realismo impossível. Belo de uma nova vanguarda: a câmera
Horizonte: Autêntica Editora, 2017. stylo. L’Écran français n° 144, 30
de março de 1948. Traduzido por
FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa Matheus Cartaxo. Disponível em:
preta. São Paulo: É Realizações, http://www.focorevistadecinema.
2018. com.br/FOCO4/stylo.htm. Acesso
em 31 de maio de 2021.
MANEVY, Alfredo. Nouvelle Vague.
In: MASCARELLO, Fernando. Nouvelle vague. Academia
História do cinema mundial. Internacional de Cinema,
Cinema 25 de
Campinas, SP: Papirus, 2012. outubro de 2018. Disponível em:
https://www.aicinema.com.br/
MARIE, Michel. A nouvelle vague nouvelle-vague/. Acesso em 14 de
e Godard. Campinas, SP: Papirus, junho de 2021.
2011.

XAVIER, Ismail. Prefácio. In: ROCHA,


Glauber. Revisão crítica do cinema
brasileiro. 1a ed. São Paulo: Cosac
& Naify, 2003. ...

159
Novos
Olhares
O desejo de capturar
o real e a crise do jogo
de aparências no cinema
de Maurice Pialat
Enrico Alchimin
Enrico Alchimin é graduado em cinema pela FAAP, dirigiu o curta Aparições
Noturnas (2020), exibido na Mostra Filmes na Quarentena 2.

INTRODUÇÃO: as dificuldades de catego-


rizar o trabalho de uma das
“O mal está feito”. É o que o crítico figuras mais importantes
Jean Narboni declara a respeito e idiossincráticas da pós
do cinema de Maurice Pialat, em nouvelle vague (WAREHIME,
1979 na revista Cahiers du Cinéma. 2006, p. 1). (1)
Essa é apenas uma das muitas
frases que aproximam sua obra A lenda do diretor que trans-
de uma noção de maldade. Se há formava seus sets de filmagem
um consenso a respeito de Pialat, num verdadeiro inferno; que
é que ele é, de fato, um cineasta não poupava seus atores da
maldito. Não apenas por causa humilhação e da exaustão
de seus filmes, mas especial- emocional. Pialat cultivou essa
mente pela imagem que assumiu imagem até sua morte, em 1993,
enquanto espécie de outsider do o que explica, em parte, o porquê
cinema francês. da sobrevivência dessas histórias,
já que o próprio diretor não fazia
Chamar Maurice Pialat de questão de desmenti-las. Falar de
“marginal du centre” (literal- Maurice Pialat é, portanto, falar de
mente uma “figura marginal um método, ou melhor, métodos.
do centro”, um pivô ou outsider
influente) – como os Cahiers Pialat é o tipo de diretor cuja
du Cinéma fizeram em 1983 busca permanece quase a mesma
- sugere as contradições da por toda a sua obra, mas nunca
carreira de Pialat e resume esgota os próprios meios, recu-

161
sa a repetição e a autoparódia que passa longe de utopia e
e, acima de tudo, está sempre do idealismo aparentes de tais
comprometido com a liberdade ambições. Pialat não quer a
de experimentação de seus transposição exata daquilo que
trabalhos (Hou Hsiao-hsien, Jia se vê “como realidade”, não há
Zhang-ke, Chantal Akerman, o desejo de esconder ou apagar
Jacques Rivette são outros a câmera das filmagens, pelo
exemplos). Assim, embora não contrário: o movimento pialatiano
exista nenhum registro formal é o de extrair dos atores as reações
da concepção de um projeto somente possíveis naquele meio.
cinematográfico escrito por
Pialat, o olhar sobre sua obra Filmar as pessoas, filmar o
revela preocupações que vão mundo como se o cinema
além do que se costuma chamar estivesse nascendo naquele
por cinema realista. Segundo Luiz momento; desconfiar da
Carlos Oliveira Jr, o que existe instituição cinema, da
em Maurice Pialat é a vontade máquina reprodutora
mesma de um retorno ao estado de aparências; rejeitar a
primeiro do dispositivo cinemato- decupagem técnica e todo
gráfico, às origens mitológicas do o savoir faire do cinema; agir
cinema, aos irmãos Lumière. como se não houvesse uma
linguagem cinematográfica
Apesar de admirar Bresson,
já constituída; redescobrir
Carné, Pagnol e outros
a potência primitiva do
cineastas franceses, Pialat diz
cinematógrafo: eis o caminho
que sua verdadeira influência
que Pialat escolhe quando
é Lumière (“o último pintor
começa a filmar (ibidem. , p
impressionista”, segundo
92).
Godard). O que ele busca
em seus filmes é a nudez de
olhar que caracteriza aquelas “Quando começa a filmar”. É
pequenas vistas lumièrianas necessário enfatizar as últimas
em que as pessoas são palavras de Oliveira, pois Maurice
filmadas pela primeira vez Pialat é dono de uma obra
(OLIVEIRA, 2013, p. 91). que se estende por mais de 20
anos do cinema francês. O que
O processo de criação em Pialat analisaremos aqui são justamente
está contaminado pele desejo os primeiros passos do diretor.
de capturar o real por meio de Como Maurice Pialat concebe
imagens, de colocar em crise as bases de seu cinema? Se sua
o jogo de aparências que se obra trabalha a partir de uma
instaura a partir da presença da tradição de cinema realista, o que
câmera. Uma vontade, porém, seus filmes trazem de novo?

162
É em seus primeiros dois longas- a infância, a presença de Fran-
-metragens que encontramos çois Truffaut fez com que fosse
as principais propostas de seu impossível que Pialat olhasse
cinema. Infância Nua (1968) e Nós para a década de 1960 do
Não Envelheceremos Juntos (1972) cinema francês e não tivesse por
constituem um pequeno, mas referência Os Incompreendidos
potente, corpo de experimenta- (1959). Ambos procuram o retrato
ção temática e imagética, cujos de uma infância fraturada, sem
motifs e métodos farão eco e serão perspectiva. Infância Nua acom-
desenvolvidos em seus filmes panha momentos da vida de um
posteriores. É claro que antes de garoto órfão, François (Michel
1968 Pialat já possuía experiência Terrazon), que tenta se estabe-
na área cinematográfica, mas lecer nas famílias que desejam
seus curtas-metragens, quase adotá-lo, mas que são incapazes
todos documentários feitos sob de conter seu gênio intempestivo.
encomenda, são incapazes de Se Truffaut traça um caminho de
sustentar um projeto coerente de “despir o cinema de uma certa
cinema. Iremos investigar como, capa de fantasia” (ANDRADE,
nesse intervalo de 4 anos, surge o 2014), de recusar os artifícios
cinema de Maurice Pialat: o corpo do cinema clássico e colocar o
a corpo com o real, a montagem cinema em contato com o real,
que recusa relações causais, o Pialat irá levar tais propostas a
improviso dos atores, a imagem níveis radicais.
crua, criada a partir da filma-
gem: “um filme não é a realização Visto à luz de Infância Nua,
de um projeto, mas a descoberta porém, o filme de Truffaut
de um evento desencadeado na parece um belo, bem-
frente da câmera.” (ibidem., p.93). -comportado e inofensivo
conto de fadas. Se pensarmos
INFÂNCIA NUA: UM MODO DE no cinema moderno francês
TRABALHO como uma busca pela verdade,
por mais que seja necessário
A obra de Pialat surge no cravar as demandas históricas
período final da Nouvelle Vague, e perceber que o cinema de
quando os projetos cinematográ- Pialat talvez não existisse,
ficos de cineastas como Jean- não fosse o corte epistemo-
-Luc Godard e François Truffaut lógico feito pela Nouvelle Va-
já sofriam suas respectivas crises. gue, é inevitável a sensação
Este último, inclusive, foi produtor de que todos os filmes até
do primeiro filme de Pialat. E o momento estavam ape-
justamente por causa do tema, nas aplainando o terreno

163
para a chegada de Infância com uma liberdade total,
Nua. Mais que isso, a força seus achados mais saborosos
de seus choques estéticos surgiram no fogo da ação,
é tamanha que provoca graças ao clima moral que
uma generalizada inversão ele sabia fazer reinar em sua
de polaridades: diante da equipe. (BAZIN, 2016, p. 9-10)
primeira obra-prima de Pialat,
todo o cinema francês dos Talvez este seja o primeiro choque
anos anteriores parece não ao se deparar com Infância Nua:
um corpo-a-corpo com o real, seus atores. Das crianças aos
mas, ao contrário, um elogio idosos, todos carregam uma
das mediações e dos artifícios performance extremamente livre,
(ibidem., 2014). concebida, na maior parte do
filme, no momento presente da
É com esse filme que Maurice filmagem. A direção de Pialat
Pialat ganha seu status de “diretor consistia em não escrever todos
realista”. Ora, existem tantos os diálogos das cenas, mas dar
realismos quanto existem diretores. aos atores pontos dramáticos em
Se Pialat recupera um fazer cine- que a cena deveria chegar. Essa é
matográfico inaugurado com as uma herança clara do cinema de
vistas lumierianas, como este é Jean Renoir, que, antes de tudo,
colocado em prática? É preciso é um cinema de atores. Jacques
levar em consideração que Pialat Aumont chama atenção para
também toma como grande outro recurso característico do
referência Jean Renoir, mestre do cinema de Renoir incorporado por
cinema moderno francês, cujo Pialat: o ponto de vista.
estilo de encenação também se
baseava em certa liberdade da [...] a tradição renoiriana iria
interpretação dos atores, como já ser renovada por dentro
dizia André Bazin: por Maurice Pialat, que se
esforçava, acima de tudo,
Renoir era o cinema francês por encontrar, com o seu
no que ele havia de melhor, modelo ilustre, a liberdade
seus métodos artesanais, total do ponto de vista, o
suas possibilidades de gosto das representações dos
improvisação, e mesma atores registradas ao vivo, a
sua desordem. Todos os planificação (decupagem)
testemunhos dos seus fluida e tão pouco “teatral”
colaboradores confirmam: quanto possível em termos
ele precisava trabalhar com de ponto de vista (AUMONT,
a inspiração do momento 2008, p. 67).

164
Em Infância Nua, Pialat deter- Em uma entrevista, Yann Dedet,
mina aquele que seria sempre montador recorrente de Pialat
o ponto de vista de seus filmes: (mas não de Infância Nua)
a própria câmera, nunca o esclarece o sentimento do diretor:
personagem. Toda a sua mise-
-en-scène se guia pelo princípio Ora, o interesse da progressão
de uma câmera observadora, que de um filme é quando voltamos
tensiona o jogo dos atores e se a procurar nos duplos aban-
submete a eles. donados há três meses e
encontramos tesouros. Porque
O que importa é a verdade nesse momento, um acidente
dos atores, não há desejo da rodagem, a representação
de ficção que possa desviar baça de um ator, que nos
Pialat desse desejo outro, tinha levado a afastar a
primordial, de captar um tomada, faz surgir a cena a
momento inédito e inesperado uma luz diferente da que tinha
se baseando nos atores não sido prevista. (ENTREVISTA, por
profissionais com que trabalha Laurent Vachaud, Positif, n 369,
(OLIVEIRA, op. cit., p. 96). Nov. 1991)

Nesse filme, Pialat trabalha A câmera de Pialat funciona,


com atores não profissionais, então, como unidade reveladora
ou, como André Bazin preferia, da força dos atores. Se para o
atores ocasionais. As filmagens cinema clássico a filmagem é o
ocorreram a partir de muitos momento de concretização de
encontros com seus atores, e o uma ideia muito bem elaborada
resultado foi um corte de mais de e construída na cabeça de seus
4 horas. Os produtores exigiram realizadores, materialização de
que Pialat montasse uma versão um filme pré-existente, para
menor: Pialat ela é o processo próprio de
nascimento do filme. Seu cinema
O critério para a reduzir a é feito de aberturas, é permeável
metragem do filme, então, às circunstâncias do presente, à
será o seguinte: a verdade incidência inesperada de uma luz
do ator é a grande evidência e à reação (ou todo um monólogo)
a se procurar; tudo o que não inesperada de um ator.
soar falso deve ser suprimido,
assim como tudo o que soar A importância de Infância Nua
demasiadamente calculado está justamente na fundação
do ponto de vista da mise- de um modo de trabalho tão
-en-scène (ibidem., p. 96). único que será aprimorado em

165
seus filmes posteriores. Filmar a ideia de um trabalho caótico,
as crianças, os pais e os avós sem planejamento prévio. Embora
presentes no filme se torna uma seu cinema extraia suas forças do
questão de encontrar o melhor “aqui e agora” da filmagem, este
caminho para que possa criar não é de forma alguma anár-
uma realidade única a eles. Não quico ou desregrado. O olhar
se trata de uma questão social mais atento percebe o trabalho
(de fazer sentir a realidade de de preparação estética de seus
pessoas daquele meio), como filmes. O que Pialat não tem
o próprio diretor diz, mas sim é um traço estético único, um
de materializar uma emoção signo capaz de ser reconhecido
(presente em todos) que só pode facilmente pelo olhar cinéfilo que
vir à tona quando se está diante procura a “identidade de um
de uma câmera. Dessa forma, diretor”. Seu marco está justa-
ambas as tradições (Lumière e mente em seu projeto de implodir
Renoir) são condensadas em a linguagem cinematográfica.
Pialat: eis seu realismo. Pialat não possui signos porque
seu objetivo é desconstruí-los.
Num filme de Pialat, a qualidade
técnica de um plano nunca é O estilo de Pialat é tão somente
mais importante que a qualidade sua maneira particular de
da performance e, como vimos, atacar o real, seu olhar direto
isso se torna um critério crucial e nada indulgente para tudo
para a montagem de Infância o que está diante da câmera
Nua. Se a câmera perde o foco (OLIVEIRA, op. cit., 2013, 93).
preciso ou treme durante um
movimento longo é porque isso Temos um ótimo exemplo desse
pouco importa diante da brutali- retorno ao primitivo no momento
dade e da crueza de um gesto. O em que François deixa a casa
foco não é exato no momento e de sua primeira família adotiva.
que François rouba um relógio da A câmera, colocada lateral-
bancada de um bar, mas o gesto mente aos atores e num plano
foi visto e sentido, uma mão não aberto, acompanha o menino,
muito nítida encontra um relógio e a mulher e a assistente social
o leva ao bolso. enquanto saem da casa. A isso
são interligados poucos planos: a
No entanto, muito apegadas mãe observa o carro dar partida;
a esses aspectos de seu cine- um contracampo de François
ma, as leituras da obra de Pia- retribuindo o olhar da mãe; um
lat, assim como de outros gran- plano de dentro do carro que se
des diretores, acabam por repetir distancia, enquanto observamos,

166
pelo vidro traseiro a figura da mãe Para ele, o plano deve existir
se juntar ao fundo. Retornamos enquanto fragmento da imagem
à mãe, que retorna à casa e a que cria suas próprias regras.
suas atividades domésticas. Em Assim, nunca um plano de Pialat
plano aberto, enquadrando toda será igual a outro, assim como uma
a cozinha, ela lava a louça. Tudo pincelada de Cézanne ou Degas
é filmado do modo mais sereno jamais se igualará a outra. Em
possível, a distância, puro cinema Infância Nua não existe o medo de
primitivo. um desequilíbrio estético, o medo
de cortar um corpo pela metade,
Essa crueza do olhar de Pialat de deixar que uma paisagem ao
também está ligada, num nível fundo fique superexposta ou que
mais profundo, ao seu passado uma cor se sobressaia a outra. A
enquanto pintor. Esse é um lado beleza se constrói com o que está
geralmente ignorado por boa à frente da câmera.
parte daquilo que se escreve
sobre o diretor. Fábio Andrade, em NÓS NÃO ENVELHECEREMOS
um artigo para a revista Cinética, JUNTOS: A MONTAGEM DE PIALAT
comenta como Infância Nua revela
sua filiação à pintura francesa, e Em 1972, num contexto diferente,
Maurice Pialat filma seu Nós Não
como esta está em total acordo
Envelheceremos Juntos. Dessa vez
com seu projeto cinematográfico.
ele não trabalha com atores não
profissionais, mas sim com Jean
A relação [de Pialat com a
Yanne e Marlène Jobert, figuras já
pintura] se dá mais por uma
conhecidas do cinema francês da
afinidade no reconhecimento
década de 1960. Segundo Pialat, o
com a necessidade
projeto, em parte autobiográfico,
Impressionista de se desvirtuar foi uma catarse que eu tive que
dos preceitos estéticos realizar.
dominantes em nome de um
contato mais direto com o O filme representou uma
mundo, que possa, por sua série de estreias para Pialat:
vez, produzir uma expressão seu primeiro filme com
artística mais adequada ao atores famosos, sua primeira
presente (ANDRADE, op. cit., tentativa com autobiografia,
2014). seu primeiro filme a ser
selecionado para o Festival de
Pialat também busca o olhar Cannes e seu primeiro sucesso
menos mediado (formal e ideo- comercial (MÉRIGEAU, 2002, p.
logicamente) do Impressionismo. 81–2; 97–102).

167
Seu nome se torna conhecido e Se em Infância Nua já era
Pialat começa a trilhar o caminho possível perceber um modo
do “marginal do centro” sugerido como a montagem, por meio
por Alain Bergala. Mais do que de cortes muito bruscos,
isso, é aqui começam as histórias fragmenta os espaços e a vida
de seus sets de filmagem infernais, dos personagens, em Nós Não
graças, sobretudo, à Jean Yanne, Envelheceremos Juntos ela
que se recusava a comparecer será a principal construtora de
aos ensaios e a apreender seu tensão do filme e fundadora
personagem. Pialat termina o de um processo que assume
filme sob uma atmosfera intensa papel definitivo em sua estética.
e delicada, e sua relação com Oliveira e Vincent Amiel traçam
as figuras do cinema francês à considerações complementares
época começa a se deteriorar. sobre a montagem de Pialat:
Conta-se que, durante uma
conversa com o produtor do filme,
Uma narrativa de Pialat,
Jean-Pierre Rassam, sobre os
consequentemente, nada
problemas que Yanne causava
mais é que uma sucessão de
durante as filmagens, Pialat
fragmentos de existências
chegou a quebrar uma garrafa
selecionados em virtude de
de vinho na cabeça de Rassam.
sua maior ou menor carga de
Para completar, o único prêmio
intensidade, não necessaria-
que o filme recebe no Festival de
Cannes de 1972 foi o de melhor mente compondo um arranjo
ator para Yanne. o que só faz ficcional claramente estrutu-
nascer em Pialat o sentimento de rado (OLIVEIRA, op. cit., 2013,
que ele estava sozinho. p. 95).

O mesmo clima de tensão que E também:


dominou as filmagens também é
constante durante o filme. Jean [...] a montagem não vem
(Jean Yanne) é um homem casado expor as articulações de um
que tem um caso com Catherine desenvolvimento, mas opor,
(Marlène Jobert), e o filme não confrontar ou “empilhar”
faz nada além de nos mostrar momentos que fazem o
muitos dos encontros entre os peso e a matéria do mundo
dois. A secura e aspereza da compacto ao qual ela é
relação dos dois é transposta a confrontada, como todas as
todo tratamento estético do filme, personagens de Pialat o são
especialmente à montagem. (AMIEL, 2010, p. 139).

168
Assim, a montagem de Pialat não Mas sua montagem não se pre-
procura relações causais entre ocupa unicamente em “empilhar”
um plano e outro ou entre uma os planos. Ela, antes de tudo,
cena e outra. Suas passagens dá também continuidade ao
não são suturadas, mas antes método estabelecido em Infância
revelam as lacunas que existem Nua. É importante saber quando
entre elas. É por isso que este filme cortar, quando colocar mais
de Pialat é também o seu mais um plano ou iniciar outra cena
angustiante: não há momento nessa sequência de angústias,
(exceto o ultimíssimo plano) em pois seus planos são mais longos
que Catherine esteja livre da e sua câmera se movimenta
presença (por si extremamente menos, os atores trabalham
violenta) de Jean. O espectador mais, absorvem mais a energia
não é agraciado com um único da cena e, consequentemente,
momento de respiro, cena após criam mais. Nesse filme, Pialat
cena vemos a autodestruição de e seus dois montadores, Arlette
um casal que também só existiu Langmann (com quem trabalhará
enquanto lacuna do casamento em seus dois filmes seguintes) e
de Jean. Bernard Dubois, optam sempre
pela saída de campo ou de cena
A montagem, ao mesmo dos personagens. O que vale é
tempo em que não nos poupa que os dois corpos estejam se
de um tapa, um grito ou um combatendo dentro do plano,
empurrão, também trabalha sempre sendo puxados para
como amálgama da relação seu centro apenas para depois
dos dois. Nesse sentido, Nós Não serem expelidos para fora por um
Envelheceremos Juntos é também gesto brusco. O plano se estende
o filme mais existencialista de até depois da saída, uma folha
Pialat. Assim como na peça teatral que caiu de uma árvore próxima
de Jean-Paul Sartre, Entre quatro atravessa os personagens ou
paredes (1944), a existência das uma pessoa ao fundo olha para
personagens está condicionada a câmera. Filipe Furtado comenta
à violência sofrida/cometida pelo rapidamente um momento de
outro. Parece mesmo impossível extrema sutileza, onde fica clara
que Catherine, mesmo após essa irrupção do real possibilitada
tantos abusos, se desvencilhe de pela montagem:
Jean, por mais que, a qualquer
momento, ela possa ir embora, Há um momento no meio
deixá-lo às moscas. A partir daqui de Nós Não Envelheceremos
essa carga será carregada (e Juntos em que, depois que
desenvolvida) em todos os filmes Jobert se recusa a fazer sexo,
de Pialat. Yanne faz uma birra e sai da

169
sala batendo a porta ao sair o Sol de Satã (1987), um caso único
e, a seguir, a câmera fica para em sua carreira. De toda forma,
trás enquanto o ar move o Maurice Pialat não se importa
cabelo de Jobert. De alguma com temas, com a importância ou
forma, essa reação em cadeia urgência de determinado assunto.
contém tudo o que torna Um tema é apenas um ponto de
os filmes de Pialat tão bons onde pode partir para lançar seu
(FURTADO, 2020). olhar, isto sim em desenvolvimento
constante.
Essa cadeia de pequenos acon-
tecimentos poderia muito bem A partir de então, o método de
ser interrompida por um corte Pialat atingirá outros níveis. Em Aos
sincronizado com o bater da porta. Nossos Amores, seu filme nominal,
É a montagem que a permite, que durante uma cena de jantar, o
carrega a força dos gestos. personagem do pai (interpretado
pelo próprio Maurice Pialat)
PIALAT ALÉM retorna repentinamente após ter
abandonado a família. Pialat deu
Os filmes seguintes de Maurice essa informação apenas para
Pialat estendem todos os alguns atores, mas Evelyne Ker,
processos que fundou em seus atriz que interpreta a mãe, não
dois primeiros longas-metragens. sabia que isso aconteceria. Sua
Poderíamos muito bem ver surpresa (e consequente surto)
como o diretor se desenvolve ao ver Maurice Pialat entrar em
tematicamente, mas Pialat não cena é genuína, e nasce de uma
é um cineasta de temas. Suas relação intensa com o diretor, em
células temáticas mais básicas quem dá um tapa ao final da
se encontram em Infância Nua e cena.
Nós Não Envelheceremos Juntos
e serão desenvolvidas ao longo Ao longo dos anos, os filmes de
de sua obra: a morte (figurada Pialat definitivamente se tornaram
e literal) da família e a inevitável um pouco mais polidos, mas o
violência dos amores. diretor mantém seu status de
“marginal do centro”. Seu discurso
Por vezes, ambos os temas se ao receber a Palma de Ouro
encontram em um só filme, caso por Sob o Sol de Satã é um dos
de A Ferida Aberta (1974), Aos momentos de maior polêmica do
Nossos Amores (1983) e Van Gogh festival após maio de 1968, e deixa
(1991). Ou então Pialat não se volta claro que pouco se importa com o
a nenhum dos dois, como em Sob sistema do cinema francês.

170
CONCLUSÃO Zhang-ke e Affonso Uchoa podem
ser considerados herdeiros (diretos
Maurice Pialat é um cineasta ou indiretos) de Pialat. A inserção
que oferece muitas formas de do real na imagem, a busca pela
aproximação. O caminho aqui verdade dos atores: as premissas
tomado foi uma tentativa de básicas de um cinema recuperado
compreensão do nascimento de por Maurice Pialat estão nas
seu cinema, mas poderíamos obras desses outros diretores.
muito bem ter nos aproximado de Seria mesmo possível traçar um
outros aspectos de sua carreira caminho comparativo entre as
ou tratado de outras coisas em obras desses poucos cineastas
mais detalhe. Seu trabalho como que, não à toa, também são dos
ator abre espaço para outras maiores que o cinema já viu.
discussões e questionamentos
a respeito da performance em Pialat não viu os rumos que
seu cinema, ou mesmo sobre cinema tomou na virada do
o improviso presente em seus século. A ascensão do digital,
trabalhos, o que o coloca em a proliferação dos multiplex e
cotejo com outros diretores como a mentalidade fin-de-siècle
John Cassavetes e Jacques tomada por muitos cineastas
Rivette. que acreditavam que o cinema
estaria prestes a morrer. Pialat foi
Há também o seu passado um cineasta das mãos, um dos
como pintor e curta-metragista. maiores exemplos de artesãos
Embora seus curtas metragens que há na história do cinema,
não tenham despertado interesse atrás apenas, claro, de Lumière e
o suficiente da crítica, eles ainda Meliès. Raramente olhava a cena
podem revelar um outro Pialat. pelo visor, para ele, é preciso
As pinturas de Maurice Pialat que a cena exista “tatilmente,
ainda são muito desconhecidas, fisicamente, antes de existir
embora na internet tenhamos visualmente” (OLIVEIRA, op. cit., p.
acesso a apenas alguns poucos 100).
retratos -- mas é conhecida sua
filiação impressionista também na Se há algo para se tomar do
pintura. Um trabalho de pesquisa cinema de Maurice Pialat, é sua
de suas telas com certeza seria postura diante do real. Saber
capaz de trazer à tona outro lado compreender o peso dos gestos,
de um dos maiores artistas do dos surtos, da materialidade da
século passado. imagem e, mais importante ainda,
de que o cinema não existe fora
A influência de Pialat é sen- do mundo. “O cinema de Pialat,
tida por todo o cinema todo ele energia, sensação,
contemporâneo. Cineastas como pulsão, matéria, consiste em viver
Hou Hsiao-hsien, Pedro Costa, ao invés de só ‘fazer cinema’”
Apichatpong Weerasethakul, Jia (MAGNY, 1991, p.28).

171
NOTA: THOMPSON, David; BELL, James.
(1) Todos as citações em inglês Sight & Sound. Nov. 2019, Vol. 29
e francês foram traduzidas pelo Issue 11, p. 42-45.
autor.
VINCENDEAU, Ginette. Sight &
REFERÊNCIAS: Sound. Nov. 2019, Vol. 29 Issue 11, p.
AMIEL, Vincent. Estética da 46-47
montagem. Lisboa: Texto e Grafia,
2010. WAREHIME, Marja. Maurice Pialat.
Manchester: Manchester University
AUMONT, Jacques. O cinema e Press, 2006.
a encenação. Lisboa: Texto e
Grafia, 2008.

BAZIN, André. O realismo


impossível. São Paulo: Autêntica,
2016.

ANDRADE, Fábio. Redefinindo


impressões. Cinética, 2014.
Disponível em: http://revistacine-
tica.com.br/home/infancia-nua-
-lenfance-nue-de-maurice-pia-
lat-franca-1968/. Acesso 04 de
Jun. 2020.

FURTADO, Filipe. Comentário no


site Letterboxd, 2013. Disponível
em: https://letterboxd.com/filipe_
furtado/film/we-wont-grow-old-
-together/. Acesso 05 de Jun. de
2020.

OLIVEIRA JR., Luiz Carlos. A mise-


-en-scène no cinema: Do clássico
ao cinema de fluxo. Campinas:
Papirus, 2013.

MAGNY, Joël. Le geste de Pialat.


Cahiers du Cinéma, n. 449, nov.,
1991.

172
Novos
Olhares
Arte e ocultismo:
Kenneth Anger e a
linguagem mágica do
cinema experimental
Artur Ilha
Arthur Ilha é graduando no Curso de Realização Audiovisual da Universidade
do Vale do Rio dos Sinos, RS.

Kenneth Anger, em um caderno por Bobby Beausoleil, preso em


de anotações sobre a antologia 1970 por assassinato a mando de
Magick Lantern Cycle, que Charles Manson, e conta com a
agrupa as principais obras de sua participação de figuras notórias
filmografia, refere-se ao cinema- da contracultura estadunidense
tógrafo como sua “arma mágica” como Anthony LaVey, fundador
(ANGER apud SITNEY, 2002, p. 108) da Igreja de Satã, além de Mick
(1). O cineasta é um dos principais Jagger, que também compôs a
nomes do cinema experimental trilha sonora do curta.
estadunidense, conhecido como
um dos pioneiros do cinema queer Para Anger, Lúcifer representa
e por seu forte envolvimento com a força criativa e o espírito de
a filosofia esotérica do ocultista subversão, o “Anjo Rebelde” com
inglês Aleister Crowley. a mensagem de que “a chave
da alegria é a desobediência”
Se Anger tem a câmera como (ibidem., p. 113). O “feitiço” realizado
arma mágica, entende-se os filmes por ele é a exaltação romântica
realizados como seus feitiços. Em da subversão através do poder
1969, ele lançou o curta Invocation imaginativo da arte, utilizando
of My Demon Brother, feito a partir uma série de recursos formais
de material filmado originalmente que se opõem à tradição da
para outro filme seu, Lucifer Rising. linguagem fílmica na busca por
Esta obra retrata um ritual de uma experiência estética que
invocação a Lúcifer, interpretado transcenda os limites do cinema.

174
MAGIA COMO SINÔNIMO DE ARTE Ou seja, Moore entende a
magia como sinônimo de arte,
A ideia de que suas obras podem pois ambas estão preocupadas
ser consideradas “filmes-feitiços” com fenômenos que ocorrem no
não se limita apenas à visão de campo imaterial (i.e., intangível)
Anger sobre o próprio trabalho. da consciência humana. Para ele,
Alan Moore, escritor e ocultista a arte é o principal meio pelo qual
conhecido por suas histórias a consciência se revela, deixando
em quadrinhos (que geralmente de ser apenas uma abstração
envolvem temas místicos), define para tomar forma concreta. Em
magia como “a ciência de suas palavras: “entendendo
manipular símbolos, palavras ou arte como magia, imaginando
imagens, para operar mudanças caneta ou pincel [ou câmera]
de consciência” (MOORE, 2002). como varinha, devolvemos ao
Esta definição, propositalmente
mago seus poderes xamânicos e
ampla, implica que qualquer
impacto social originais, damos de
manifestação artística é um ato
volta ao ocultismo tanto produto
mágico, pois envolve a utilização
quanto propósito” (ibidem., 2002).
da linguagem para estimular na
consciência ideias que não têm
relação material com a obra. Como os xamãs da antiguidade,
os artistas navegam pelo
Por exemplo, um livro formado território abstrato da imaginação,
por símbolos (letras) impressos em comunicando suas experiências
papel invoca imagens, histórias através da linguagem. A função
e realidades imateriais na ima- social da arte é a mesma da
ginação da pessoa que o lê. No magia (e da psicanálise, sua
cinema, a montagem produz prima requintada), a de explorar e
um efeito similar, observado no expressar a psique humana, coisa
famoso experimento realizado que a ciência, com seu método
por Lev Kulechov: a imagem baseado em resultados materiais
de um rosto inexpressivo (infor- verificáveis, não pode fazer. Ao
mação luminosa impressa em equiparar arte e magia, devolve-
fotogramas) justaposta com a de -se à última a credibilidade
um prato de comida desperta no necessária para desempenhar sua
espectador a ideia de “fome”, que função criativa que, na época dos
não está implícita nas imagens, alquimistas, originou abstrações
muito menos na base material das quais derivaram os primeiros
onde elas foram impressas. métodos científicos.

175
No texto A Alma do Cinema, o A LINGUAGEM DA SUBVERSÃO
filósofo Edgar Morin traz a magia
para um contexto psicológico É difícil encontrar uma definição
ao falar da transferência de satisfatória de “cinema experi-
subjetividade por meio da arte: mental”. Algumas características
“Quando os nossos sonhos — os comumente associadas a esse tipo
nossos estados subjetivos — se de cinema são a experimentação
desligam de nós para fazerem com linguagem e tecnologia, um
corpo com o mundo, dá-se a circuito de produção e exibição
magia.” (MORIN,1983, p. 147). O às margens da indústria, a
filme é o objeto de projeção- ausência de narrativa e a abor-
-identificação do espectador, dagem de temáticas subversivas.
que não só recebe a subjetividade O teórico e historiador de cinema
do cineasta como também P. Adams Sitney, que preferia o
projeta na obra a sua própria, em termo “cinema de vanguarda”,
um processo em que “operam- via como uma analogia útil a de
-se verdadeiras transferências que o cinema experimental está
entre a alma do espectador e o para o cinema comercial como a
espetáculo na tela” (ibidem., p. poesia está para a prosa (SITNEY,
154). op. cit., p. 12). Estas definições,
ainda que limitadas, ajudam
No cinema comercial, a a compreender a proposta do
projeção-identificação ocorre cinema experimental, e todas
na esfera narrativa do filme, se aplicam às obras de Kenneth
com a forma fílmica servindo Anger.
para comunicar o enredo da
maneira mais “eficiente” possível. Em Invocation, Anger combina
Em Invocation of My Demon uma variedade de técnicas
Brother, Anger transmite sua como a utilização de prismas,
subjetividade ao espectador em projeção de imagens sobre os
diversas camadas, construindo atores, movimentos acelerados,
uma experiência estética funda- superimpressão de diversos
mentada na linguagem radical planos e ritmo de monta-
do filme como expressão da gem caótico com o objetivo de
subversão personificada por tensionar os limites estéticos do
Lúcifer e complementada pelo cinema. Ele cria uma explosão de
simbolismo místico. linguagem que, combinada com

176
a retórica ocultista e o erotismo, O cinema clássico é um reflexo
imbui o filme com o espírito de da percepção humana comum.
rebelião que forma sua unidade A maneira como o mundo é
estética e temática. A falta de percebido, fenomenologicamente,
estrutura narrativa ou linearidade é traduzida no cinema através de
faz com que o espectador tenha uma estrutura de linguagem espe-
papel ativo na construção da cífica, que se tornou hegemônica
obra. Segundo Sitney, “o filme por ser referenciada facilmente à
marca um passo radical de Anger realidade. O cinema comercial, ao
na direção da forma aberta, onde mesmo tempo que é produto desse
a montagem não depende da consenso linguístico, o reproduz. A
ilusão ou sugestão de relações linguagem autoperpetuante do
espaciais e temporais entre cinema convencional forma um
planos.” (ibidem., p. 119). ouroboro que limita a experiência
humana através da reprodução
Essa forma aberta remete ao de sua própria percepção
cinema lírico-abstrato de Stan limitada.
Brakhage, amigo e colega de
Anger. Ele defendia um cinema O cinema experimental, por sua
livre das amarras do realismo vez, tem o objetivo de emancipar
fotográfico, preocupado não o meio cinematográfico dessa
somente em registrar uma suposta linguagem padronizada que tem
“realidade” objetiva, mas em criar como objetivo principal (e muitas
a sua própria realidade a partir vezes, único) o retorno finan-
de imagens que transcendem a ceiro, em busca de ferramentas
percepção humana. A linguagem que possibilitem novas formas
proposta por ambos os cineastas de expressão. Em uma conversa
reflete a concepção mágica da com Sitney após o lançamento
arte, pois tem como objetivo a de Invocation, Anger comentou
exploração e o desenvolvimento que estava descontente com os
do cinema como meio artístico. “materiais básicos do cinema”,
Nas palavras de Brakhage: “sugiro dizendo que preferiria “projetar os
uma busca de conhecimento filmes diretamente na cabeça das
fora da língua, baseada na pessoas” (SITNEY, op. cit., p. 117).
comunicação visual, solicitando
a evolução do pensamento ótico A relação com o esoterismo,
e confiando na percepção, no presente não só na filmografia
sentido mais profundo e original de Anger como nas de outros
da palavra.’’ (BRAKHAGE, 1983, nomes importantes do cinema
p. 342). de vanguarda como Maya Deren,

177
Jordan Belson, James Broughton REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
e o próprio Brakhage, não parece BRAKHAGE, Stan. Metáforas
ser apenas uma coincidência. da visão. In: XAVIER, Ismail. A
As obras desses cineastas estão experiência do cinema. Rio de
entre as tentativas mais bem- Janeiro: Edições Graal, 1983.
-sucedidas, talvez na história
das manifestações artísticas, MOORE, Alan. Fossil Angels. 2002.
de representar experiências Disponível em: https://bit.ly/3hI-
místicas e estados alterados de pU9f. Acesso em: 06 fev. 2021.
consciência muito associados às
filosofias e práticas ocultistas. MORIN, Edgar. A alma do cinema.
In: XAVIER, Ismail. A experiência do
Nas palavras poéticas de cinema. Rio de Janeiro: Edições
Moore, a arte é o “ocultismo Graal, 1983.
vital e progressivo, lindamente
expresso, que não tem obrigação SITNEY, P. Adams. Visionary Film. 3
de se explicar ou justificar. Cada ed. Oxford University Press, 2002.
pensamento, linha e imagem
criados primorosamente por
nenhum propósito senão o de FILMOGRAFIA:
serem oferendas dignas dos The mindscape of Alan Moore
deuses, da arte, da própria magia” (2003). Direção: Dez Vylenz. EUA,
(MOORE, op. cit.). Reafirmando 77 min. Disponível em: https://bit.
a arte como magia, é (re)cons- ly/3yvDN1m. Acesso em: 06 fev.
truído um espaço onde ambas 2021.
podem dedicar-se devidamente
ao seu progresso e refinamento Invocation of my demon brother
como ferramentas importantes de (1969). Direção: Kenneth Anger.
expressão subjetiva, sem perder EUA, 11 min. Disponível em: https://
tempo com comparações fúteis bit.ly/3dShtY1. Acesso em: 06 fev.
com a ciência uma vez que, por 2021.
definição, não se comprometem
com o conhecimento científico.

NOTA:
(1) Todas as traduções de textos
em inglês neste artigo foram feitas
pelo autor. ...

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Resenha
A propósito de
uma certa crítica
Um certo cinema
brasileiro em 50 filmes
André Piero Gatti
André Piero Gatti fez mestrado na ECA-USP e doutorado na Unicamp. É professor
universitário e pesquisador cinematográfico. Sua tese de doutorado, Distribuição
e exibição na indústria cinematográfica brasileira (1993-2003), foi publicada pela
Editora Mnemocine.

O AUTOR E O SEU PERFIL DE UM em movimento. Pois, Ikeda-san


SUJEITO MUITO PRÓXIMO trabalhou durante um bom tempo
na Ancine, isso graças à sua
Marcelo Ikeda é figura de formação de economista. Essa
proa do cinema e do audiovi- formação, aliada a uma sensibili-
sual brasileiro contemporâneo. dade estética e cinefilia rigorosa,
Prática e teoria estão presentes lhe permite uma abordagem mais
nessa personalidade que conjuga abrangente do filme, fato raro na
sólido conhecimento do campo crítica cinematográfica brasileira.
cinematográfico, além de ser Esta que recentemente criou
um arguto observador do atual especialistas sem conhecimento
estado das coisas do audiovisual, de causa, sem entender o
no seu sentido mais amplo. Nos esqueleto que sustenta a carne
seus trabalhos, técnica, estética e cinematográfica, ou melhor
economia tendem a se conjugar dizendo, sua indústria. Este
de maneira bastante peculiar, fator segmento da crítica encara o
esse que o destaca em relação à filme apenas como um fenômeno
maioria dos seus pares. estético, a chamada crítica ide-
alista, alienada do processo do
Do campo da tecnocracia cinema em sua totalidade. Este
econômica procede a sua fato nos remete ao filme Tem Coca-
formação e carreira iniciática na -Cola no Vatapá (Pedro Farkas e
atividade das coisas das imagens Rogério Correa, 1975), em que por

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ocasião do registro de uma aula cinecasulofilia.com e www.marce-
do crítico-mor, Paulo Emilio Salles loikeda.com ). Ou seja, Ikeda-san
Gomes, uma aluna de então, é um ser multimidiático, desses
Luna Alkalay, afirma: “Paulo Emilio raros de se encontrar por aí. Além
você só vê o cinema como uma disso, ele tem outra faceta menos
indústria?” E o crítico-mor rebate: conhecida, a de sambista. O que
“Mas o cinema é uma indústria, não deixa de ser curioso por sua
fato que muitos dos cri-críticos de origem com um pé na terra do Sol
hoje parecem desconhecer”. Nascente. Banzai!

O currículo do autor de O cinema O CENÁRIO DO CAMPO CINEMA-


brasileiro contemporâneo em 50 TOGRÁFICO BRASILEIRO
filmes (Editora Sulina, 175 págs.)
é algo que deve ser destacado. Curiosamente, os filmes que
Ikeda-san trabalhou na Ancine Ikeda-san escolheu nessa publi-
entre 2002 e 2010, atualmente é cação são justamente aqueles
professor do curso de graduação que fogem ao esquema do
em Cinema e Audiovisual da cinema dito industrial brasileiro.
Universidade Federal do Ceará Este que tem sido abastecido,
(UFC). Destacando-se hoje como há um bom tempo, por polpudas
um profícuo autor de obras que verbas oriundas do espectro
abordam a cinematografia estatal: municipal, estadual e
brasileira contemporânea. Além federal. Estado brasileiro que há
da supracitada, juntamente com o quase trinta anos hidrata este
cineasta Dellani Lima ele publicou setor, que não consegue se inserir
Cinema de garagem, exatamente e se resolver no mercado sem
há dez anos, depois vieram outros tal ajuda. O cinema brasileiro
tantos títulos: Cinecasulofilia industrial é um junkie, cujo apetite
(2014), Cinema brasileiro a partir insaciável por recursos milionários
da retomada: aspectos políticos não teve até hoje a competência
e econômicos (2015) e Fissuras e em se estabelecer. Ainda que a
fronteiras: o Coletivo Alumbra- responsabilidade desse fato não
mento e o cinema contemporâneo seja exatamente da classe. Isso
brasileiro (2019). Esta publicação porque as políticas públicas do
foi resenhada brilhantemente período não tiveram a coragem de
pelo nosso editor e crítico-esteta, enfrentar o dragão da maldade
Humberto Silva, no número do cinema norte-americano.
anterior de nossa publicação.
O campo do cinema brasileiro
Não bastasse esse longo adquiriu uma nova complexi-
currículo, Ikeda-san também dade, notadamente a partir da
atua como cineasta, curador e chamada Retomada. Portanto,
mantem sites na Internet (www. tal renovação se encontra no

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limiar de completar três décadas. cioso. Entretanto, a participação
Pois, a marca da Retomada é percentual do filme brasileiro no
o edital “Resgate do cinema mercado pátrio ainda não atingiu
brasileiro”, que foi articulado pelo os percentuais nem os números
setor audiovisual junto ao Estado, que o cinema local atingiu no
via Minc e a então Secretaria do seu período áureo, ou seja, entre
Desenvolvimento do Audiovisual 1975 e 1979. Ainda que pese o fato
(SDAv). A expressão “retomada” de que mais do que dobramos
é derivada justamente do título os lançamentos nas salas de
do edital, quando a imprensa cinema no período recente.
especializada da época dizia Como consequência disso, uma
que vivíamos uma retomada realidade não mudou, o mercado
da produção cinematográfica continua sendo controlado por
brasileira. Além do citado edital, empresas transnacionais que
esse movimento veio articulado tomaram conta dos espaços
com a reedição da Lei do Audio- economicamente mais lucrativos
visual, Lei no 8.685. O ano destes do setor.
marcos? 1993. De lá para cá, muita
água passou embaixo da ponte. A RENOVAÇÃO DO CINEMA
BRASILEIRO NAS PRIMEIRAS
BREVE RETROSPECTO DO PERÍO- DÉCADAS DO SÉCULO XXI
DO ABORDADO PELO AUTOR
O movimento de reorgani-
Dos anos 2000 até os dias de zação e renovação do campo
hoje, o cinema e o audiovisual cinematográfico foi anteriormente
no Brasil passaram por grandes observado na década de 1950.
transformações estruturais e Período este que foi marcado por
uma reorganização do campo uma situação diferenciada, até
de forma inusitada. Pois, além de então inédita, do campo, com
tudo, surgiram novas tecnologias bem observa Glauber Rocha, no
de produção, distribuição e seu clássico Revisão crítica do
exibição. A revolução tecnológica cinema brasileiro. A citação aqui
digital apresentou suas garras. não é gratuita. Pois, com esta obra,
Glauber redefiniu um parâmetro
No que diz respeito ao número historiográfico que foi o de narrar
de produções, pode-se dizer que a trajetória do cinema brasileiro
foram atingidos níveis inéditos de pelas obras cinematográficas
novas obras e de estreias em salas com projeto e/ou caráter autoral.
de cinema, streaming, tv aberta e Este paradigma, de maneira
tv por assinatura. Aparentemente, consciente ou inconsciente,
trata-se de um cenário auspi- virou uma prática comum entre

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nós, de lá para cá. Lembrando brasileira do período a que se
que originalmente a publicação debruça autor, trata-se de árdua
do Revisão ... se deu em 1963 e tarefa devido a vários fatores. Um
somente muitos anos depois veio deles nos remete ao problema
a ser reeditado pela hoje extinta crônico do cinema brasileiro. O
editora Cosac&Naif, com introdu- filme tupiniquim historicamente
ção do glauberiano-mor, Ismail se encontra fadado à baixa
Xavier. circulação em solo pátrio. Via
de regra, boa parte das obras
Entretanto, há algumas diferen- audiovisuais apresentadas na
ças entre estas duas situações, obra de Ikeda-san teve exibição
mormente no campo da crítica bastante limitada, basicamente
cinematográfica, sob vários restrita aos circuitos de festivais
aspectos. O primeiro deles é a e mais recentemente aos canais
perda de centralidade que a de streaming que estão se
crítica tradicional deixou de ter diversificando no ambiente digital.
para o público médio. Como Na realidade, poucos filmes
consequência, nos dias de hoje, a entraram em cartaz nos circuitos
influência da crítica especializada tradicionais de exibição cinema-
junto aos leitores no âmbito dos tográfica e, mesmo assim, ficando
grandes veículos de comunicação muito pouco tempo nas telas das
é praticamente desprezível. Isso salas e muitas vezes em horários
se deve a vários motivos. Mas, bastante rarefeitos.
penso que o principal é que o
público frequentador de salas Por outro lado, o autor contem-
de cinema em especial não dê pla filmes de curta-metragem que
muita atenção para essa litera- não têm exibição de tela em sala
tura atualmente, porque prefere de cinema garantida. Ainda que
os materiais veiculados pela pese o fato de que a chamada
internet e seus espaços. Para tal Lei do Curta se encontre em vigor,
tipo de assunto tem vasta litera- neste caso o acesso à maioria
tura e videografia. A praga dos fica restrito aos canais digitais,
youtubers e influencers, o império nem sempre abertos ao público.
do amador apresentou suas Além disso, pesa o volume de
armas. produção tanto de curtas quanto
de longas metragens que se
Dimensionar a produção cine- encontra no mais alto patamar
matográfica de cerca uma dé- de toda a trajetória do cinema
cada, com certeza, não se trata brasileiro. Enfim, estamos diante
de uma tarefa das mais simples. de um cenário raro e que ainda
No caso da cinematografia padece de uma melhor compre-

183
ensão de sua matéria, esperan- crítica realmente deslinda uma
do uma produção historiográfica realidade singular da obra em
que venha dar conta teórica e questão. Ela pode, sim, representar
criticamente do período em que o um avanço, que nem o próprio
autor se debruça. Isto para além autor do filme estava preparado
do que a academia brasileira ou atento ao fato. Como diria
resolver chamar de uma “Nova Jean Renoir: “Bazin enxerga coisas
história do cinema brasileiro”, que nos meus filmes que eu jamais
por sua vez não contempla esta observei”.
nova cinematografia.
Para minha surpresa, vi que dos
A PUBLICAÇÃO PROPRIAMENTE 50 filmes comentados por Ikeda-
DITA: 50 + 100 FILMES -san tenho intimidade com mais
de 50% dos títulos ou dos diretores
O livro trata originalmente de comentados no corpo do livro.
50 filmes, que são comentados Fator este que me permite fazer
em seu corpo propriamente um julgamento com alguma base.
dito. Entretanto, há um anexo Então, vamos lá. Primeiro que a
que contém uma lista com exemplo da maioria dos críticos,
mais 100 filmes. O que nos dá a Ikeda-san destila um gosto muito
entender que ainda devemos ter próprio sobre o tipo de filme que
um segundo e terceiro volumes melhor lhe agrada. Portanto, não
desta obra. Não sei se o mercado se trata, a rigor, de um texto de
editorial brasileiro tem fôlego para análise fílmica, o autor evita o
tanto. Isso porque livros de cinema academicismo exacerbado que
brasileiro pouco vendem, na sua vemos em outros críticos de sua
maioria. geração. Este seu gosto particular
parece ter encontrado um
Vou brevemente comentar o público que está bastante atento
estilo do autor, que escreve de para suas pílulas fílmicas. Nesta
maneira ágil e se esquiva de obra encontramos um ponto de
maneirismos afetados que tanto partida para discutir de maneira
caracterizam nossa crítica mais embasada e sistêmica sobre
contemporânea. Especialmente a a história recente do cinema
acadêmica, com suas citações e brasileiro alternativo, que não
referências, mormente, encontra, via de regra, exposição
estrangeiras. Entendo que o texto sistêmica no circuito tradicional de
crítico nunca pode ser maior do exibição cinematográfica. Dado
que o seu objeto, se não ele se a estes fatores, recomenda-se a
transforma em um fim em si leitura da obra que flui de maneira
mesmo. Isto só vale quando a leve e saborosa.

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Resenha
O cinema paulistano
em foco: Spcine, audio-
visual e democracia nos
tempos pós-retomada.
Humberto Pereira da Silva
Humberto Pereira da Silva é professor de filosofia e de história do cinema, além
de crítico de cinema. Publicou Glauber Rocha – cinema, estética e revolução (Paco
Editorial, 2016), Ver e Ver Como – ensaios sobre cinema e cineastas marcantes
(Paco Editorial, 2018), entre outros. É membro da Abraccine.

A cidade de São Paulo, que se Assim nasceu a Spcine, no clima


orgulha em ser a de maior dos novos tempos, na sequência
economia do Brasil, precisava de das cíclicas “retomadas” de nosso
um órgão público para cuidar de cinema (que se encontra, mais
seu cinema. Nos anos de Retomada uma vez, abalado com a nova
do cinema brasileiro, houve um ordem política no poder federal...).
impulso notável na criação de O livro organizado por Fabio Male-
órgãos que estimulam a produção ronka Ferron e Alfredo Manevy,
do cinema nacional, a elaboração Depois da última sessão de cine-
de legislações específicas para o ma – Spcine, audiovisual e
setor e em decorrência a movi- democracia (Autonomia Literária,
mentação de recursos por meio 419 págs.), conta a “história” da
dos mais variados editais, Spcine por meio de diversas entre-
incentivos fiscais, assim como a vistas de quem participou ativa-
adoção de um vocabulário com mente de sua criação e também
palavras que hoje parecem não tão ativamente.
comezinhas: film commission, VOD,
streaming, doctoring, tax rebate, Marcelo Ikeda é um nome
cash rebate, benchmarking... (se importante na publicação de
essas palavras não são “naturais” livros que tratam dos meandros e
para um leitor apenas ilustrado, marcos políticos e legais na cria-
então ele precisa se antenar...) ção de órgãos voltados para o

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cinema nos anos da Retomada. título sugestivo, Um trailer (algo
Escreveu nesse decênio recente como preparar o espírito para o
Cinema brasileiro a partir da re- que se vai ler). E assim, jogando
tomada, Lei da Ancine comen- com a imaginação, estabelece
tada, Leis de incentivo para o as coordenadas para uma
audiovisual e, saindo do forno, imaginária filmagem do livro. Este,
Utopia da autossustentabilidade: por sua vez, é um investimento de
impasses, desafios e conquistas fôlego, em que “o campo visual
da Ancine (Ikeda-san é destaque será descrito sob o ponto de
na outra resenha desta edição da vista de São Paulo”. Maleronka
Mnemo). O livro organizado por acentua que o caminho tomado
Maleronka e Manevy, com foco em para a realização das entrevistas
São Paulo, acresce a bibliografia foi pautado pela pluralidade de
que se destina à configuração pontos de vista: são “quarenta
e mapeamento das condições verdades que se apresentam
de possibilidade de filmar e ter lado a lado, em contraposição
o filme visto nos anos recentes, e diálogo”. Realça, igualmente,
sob impulso da Retomada. tendo em mente que o “gargalo”
Assim como os livros de Ikeda do cinema brasileiro está na
destacados acima, Depois da distribuição, que o Circuito Spcine
última sessão de cinema... é leitura fez 1 milhão de espectadores
obrigatória para quem quiser em pouco mais de dois anos de
saber e entender um tanto da atuação. O título do prefácio,
cozinha do cinema em São Paulo. Um trailer, um bom exercício de
E, ainda que seja um aspecto intertextualidade (descreve que
derivado da leitura, fundamental os bastidores das conversas,
para a compreensão e reflexão das quais resultaram o livro, se
sobre os humores da produção cruzam com as locações citadas:
e exibição fílmica a partir de um os cinemas de rua, as salas
órgão que atua no município. multiplex, a Mostra de Cinema...),
Com isso, enseja uma boa dose carrega um sentido de otimismo
de otimismo, entusiasmo e um sobre o papel da Spcine desde
naco de “utopia”, aludindo talvez sua criação...
inadequadamente ao título do
livro de Ikeda-san. A introdução/prefácio de
Manevy, por seu turno, (não é o
Maleronka e Manevy escrevem caso de precisar a distinção en-
os prefácios de Depois da última tre uma e outro...) traz um título
seção de cinema... (embora o de que deixa o leitor na expectati-
Manevy venha como introdução...). va: No olho do furacão. E com ele,
O texto de Maleronka tem um quem sabe se calculadamente

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como contraponto ao que Ma- Certo, mas, depois dos ricos,
leronka escreveu, a lembrança insinuantes e elucidativos
desconfiada da ciclicidade prefácios, chegam as entrevistas.
dos ciclos cinematográficos. Um primeiro ponto para quem ler
Manevy traça de modo rápido um livro com entrevistas sobre a
a tentativa de industrialização criação de um órgão como a
da Vera Cruz nos anos de 1950 Spcine é sobre os critérios na
e os ciclos que se seguiram até escolha dos entrevistados. No
chegar à criação da Spcine em caso, um total, como já assinalado,
2013. Para, a partir de então, falar de quarenta entrevistas, um
das realizações desta última. número redondo, pois. Os
Ele dá ênfase, principalmente, à escolhidos foram cineastas, pro-
atuação de personagens-chave dutores, distribuidores, exibidores,
para a consolidação do órgão
políticos com atuação
(no plano político, stricto-sensu,
parlamentar, militantes políticos,
e na condução da engrenagem).
ativistas, agentes diretamente
Apesar da lembrança de que
envolvidos na criação e
o cinema brasileiro se move em
consolidação da Spcine... Aqui
ciclos – e assim a continuidade
de qualquer inciativa está sujeita uma aposta delicada e
a chuvas e trovoadas –, Manevy melindrosa: num jogo que ocorre
não antecipa um diagnóstico na cozinha, as inevitáveis idas à
pessimista, mas também não alcova. Em nome da pluralidade,
destaca como se deu a atuação temos quarenta “verdades em
da Spcine na sequência de sua contraposição e diálogo”. Mas no
saída da presidência do órgão, jogo político a alcova é,
no fim do governo de Sergio justamente, o lugar em que se
Haddad em 2018 (Bruno Covas e separam “gregos e baianos” (alu-
Ricardo Nunes não são citados, dindo, antes de ser acusado de
nem para dizer se houve fricções “racismo estrutural”, a livro de
com respeito à gestão anterior). O José Paulo Paes). E, para o leitor
título No olho do furacão pode ser que lê na rua os rumos de um
que traga alguma ironia. O mundo empreendimento na esfera
do cinema no Brasil é sempre pública, as boas maneiras na
perigoso – aludindo à conhecida cozinha, que resultaram em
máxima de Guimarães Rosa –, decisões de interesse coletivo,
levar adiante uma iniciativa “no encobrem divergências políticas
olho do furacão” é se colocar e de protagonismos (nas
numa situação de perigo a cada entrelinhas, os entrevistados falam
movimento. Por isso, na discrição de um bom diálogo e sutis rusgas
de Manevy quanto à continuidade com o governo estadual).
de uma gestão a outra, algo paira
no ar.

188
Na alcova, efetivamente, o jogo indagar se um ou outra agrade-
de forças que torna viável uma cida não teria mais a dizer sobre
iniciativa cuja realização uma a Spcine que uma ou outro entre-
entrevista mascara (no campo da vistado... – novamente, segredos
esquerda, para ficar no trivial, não de alcova).
dá para encobrir embates com
divergências inconciliáveis: gregos Nas questões pautadas para as
e baianos, ainda que se abriguem entrevistas algumas constantes.
na mesma casa, dormem em Quase todas foram realizadas
alcovas distintas). Com isso, pois depois do impacto da pandemia;
segredos de alcova são segredos com isso, um assunto que já
de alcova, inevitável que fique no estava na ordem do dia ganha
ar como desafios políticos para a destaque: o confronto entre
continuidade foram postos sobre streaming e salas de cinema.
a mesa da cozinha (as rusgas com A diversidade de posições dos
o partido no governo estadual entrevistados é notável. E com
passaram a ser administradas, ela o leitor tem um painel que
com a troca de gestões, por esse lhe permite entrever os diversos
mesmo partido na prefeitura). fatores e interesses que estão em
jogo, e não simplesmente ficar no
Ainda, sobre os escolhidos clichê de um possível “fim do cine-
para as entrevistas, procurou-se ma...”. Algumas posições revelam
garantir a pluralidade de pontos disposição de vontade (desejo)
de vista, mas, com um número com cacoetes de sociologia de
redondo de entrevistados, para ocasião sobre a simbologia de
um leitor desconfiado alguém que uma sala de cinema, mas revelam
teve atuação na criação e conso- igual e subliminarmente que o
lidação da Spcine teria sobrado? assunto “cinema” é extremamente
Por quais critérios? Claro, pode-se sensível a apelos do mercado (a
justificar que qualquer seleção é regulação do streaming é um
aleatória. Mas assim não se pode ponto nefrálgico a esse respeito:
negar que a aleatoriedade gere inevitável pôr sobre a mesa da
desconforto, e que alguns dos cozinha essa realidade presente,
entrevistados tenham entrado na tanto quanto seu efeito para as
lista menos em razão de sua im- salas de exibição). E para falar
portância efetiva para a Spcine de mercado, desde o catecismo
do que por seu atrativo, digamos, do “velho barbudo”, não se pode
midiático (na carta que antecede escapar das malhas da concor-
os “prefácios” é exibida uma rência e dos interesses em disputa.
exaustiva lista de agradecimentos No capitalismo, o mercado implica
e, então, um leitor curioso pode em aposta e na aposta quem

189
ganha e quem perde. Explícita ou pergunta que poderia ser feita
implicitamente entrevistados que a Kleber Mendonça, justamente
abordaram o confronto streaming um dos entrevistados do livro:
e salas de cinema manifestam Vinil Verde (2004), um curta que
que o jogo do mercado não pode antecipa seus longas posteriores,
ser subestimado. Ao longo do foi financiado pela Funcultura.
livro, aliás, o emprego exaustivo
de termos referentes ao mercado Entre as questões constantes,
– ao mundo do dinheiro e dos destaco, ainda, sobre a imple-
negócios, pois: “cinema é uma mentação do Circuito de Cinema
indústria”, sustenta Paulo Emílio Spcine, os CEUs, a relação com
– bate de frente com o “roman- um público “carente” de cinema,
tismo” de uma “última sessão de as dificuldades para estabelecer
cinema” em lugar público. uma programação voltada
para quem não frequenta
Outra constante nas perguntas multiplex no Shopping Center. As
foi sobre a relação entre a respostas trazem um dado que
Spcine e a Riofilme. Diversas não se pode perder de vista. A
entrevistas acentuam as conver- relação complexa entre cinema,
gências e divergências entre os educação e Estado como
dois órgãos. Interessante, para elemento formador. A discussão
o leitor, ter em mente que de aqui, se aprofundada em termos
algum modo a criação da Spcine de sociologia do comportamento,
traz à tona a rivalidade entre Rio cairia no problema do mercado
e São Paulo. De algum modo, – a alienação para voltarmos
para o leitor, é como se fora ao vocabulário marxista –, certo
deste eixo que “domina” a cena incontornável “paternalismo”
cultural no Brasil não houvesse e a expressão espontânea do
iniciativas para impulsionar a que é “melhor” para quem está
produção cinematográfica – ou na “periferia”. As respostas a
elas foram discretamente igno- esse respeito revelam “boas
radas pelos entrevistadores... intenções” num campo minado.
Qual a diferença, por exemplo, A perspectiva do Outro, tenho
entre a atuação da Spcine e em vista #eagoraoque analisado
da Funcultura, em Pernambuco, nesta edição da Mnemo por
estado do qual saíram os filmes Arthur Autran, exibe a existência
mais premiados no Brasil nas duas de armadilhas insondáveis.
décadas recentes? Para o leitor
que acompanha a produção A constatação de que se deve
cinematográfica brasileira dos levar o “cinema” para onde não
últimos anos, essa, talvez, uma há “cinema” é louvável (a palavra

190
“democracia” no subtítulo do ser mais importante em Depois
livro é pedra de toque: uma da última sessão de cinema...:
sociedade democrática, lato oferece um mapa sobre a cozinha
sensu, é aquela que garante do cinema em sentido amplo
igualdade de acesso a todos). O (não ignoro, por suposto, que as
alcance que a inciativa tem pode palavras “cinema”, “audiovisual”
ser aferido pelo fluxo – 1 milhão e... “games” comportem nuances
de espectadores em dois anos ... conceituais, mas os entrevistados
–, mas o que isso significa para e o próprio título do livro, inad-
quem recebe o “cinema” levado? vertidamente, usam em sentido
Além dos “pancadões”, um entre- lato a palavra “cinema” como
tenimento a que não tinha acesso filme e sala de projeção... – levar
ou um “alimento” para formação o “cinema” para a periferia é
cultural? (A palavra “democracia”, um slogan, certo?), ilumina ao
assim, ganha outro contorno: qual mesmo tempo as dificuldades
é o efeito efetivo do acesso à e o amplo leque de realizações
uma “sala de cinema” para além – guardada a pluralidade em
do entretenimento?). Como expe- que entram em cena indígenas/
riência vivida, para quem vive na autóctones, negros/negras,
periferia, me parece difícil traçar mulheres/negras, trans... –, que
uma linha entre o lazer propiciado merecem ser vistas e ter espaço
por um “pancadão” – ou um filme de discussão (tomo novamente
“convenientemente” escolhido a palavra “democracia” para
para projeção – e, do ponto de indicar outro contorno; sim, pois
vista cultural, algo além da pura e além da frequente vagueza com
simples fruição. que ela é usada, trata-se de uma
palavra que requer nuance). E,
Li o livro, claro, supondo a principalmente, procura atualizar
importância da criação e da e antenar o leitor sobre os diversos
consolidação da Spcine. Por isso, caminhos pelos quais a produção
entendo, há certo desequilíbrio na e circulação de filmes está
seleção de entrevistados. Tendo passando. Nesse sentido, com foco
em mira esse pressuposto, há na cidade de São Paulo, trata-se
entrevistas que parecem apenas de um potente diagnóstico sobre
tangenciar o foco, enquanto o que está acontecendo e o que
outras oferecem um cabedal de se pode esperar (com ou sem
informações e de dados que levam utopia – novamente, Ikeda-san).
o leitor a compreender nuances, Enfim, um livro, pois, fundamental.
detalhes e óbices sobre como uma Uma referência para quem quiser
política de “cinema” é implemen- ter o retrato do que de mais
tada: a que veio, o que se espera relevante tem sido feito no campo
dela, até onde pode chegar. Sob da produção e circulação de
esse aspecto, o que me parece filmes com a criação da Spcine.

191
anexo

Filmografia
Silvio Tendler*
*Informações retiradas do site Caliban Cinema e Conteúdo (http://caliban.com.
br/filmografia/) e do livro Catálogo (in)discipliado de José Carlos Sebe Bom Meihy.

FANTASIA PARA ATOR E TV (1968), 10 JANGO - COMO, QUANDO E POR QUE


min. Produção: Mapa Filmes. Direção: SE DERRUBA UM PRESIDENTE (1984),
Paulo Alberto Monteiro de Barros. 114 min. Produção: Caliban. Direção:
Assistência de direção: Silvio Tendler. Silvio Tendler. Prêmio Especial do Júri,
melhor filme do Júri Popular e melhor
LA CULTURA POPULAR VÁ! (1973). trilha sonora do Festival de Gramado
Departamento de Desenvolvimento (1984). Prêmio Especial do Júri, Festival
Social. Chile. (Esse filme se perdeu e de Havana (1984).
não chegou a ser montado).
RONDÔNIA: VIAGEM À TERRA PRO-
LA SPIRALE (1975), 145 min. Produção: METIDA (1986), 53 min. Produção: Otília
Reggane Films. Coprodução: Seuil Quadros, Madalena P. de Mendonça,
Audiovisuel. Filme coletivo. Equipe: Glaucia Alves Vieira. Direção geral:
Armand Mattelart, Jacqueline Washington Novaes. Direção: Silvio
Meppiel, Valérie Mayoux, Chris Marker, Tendler. Realização: Rede Manchete.
François Perier, Jean-Michel Folon, Episódio da série “Rondônia: Caminhos
Jean-Claude Bloy, Pierre Flemont, da sobrevivência”, produzida para a
Silvio Tendler. TV Manchete.

OS ANOS JK - UMA TRAJETÓRIA PO- MEMÓRIA DO AÇO (1987), 41 min.


LÍTICA (1980), 110 min. Produção: Hélio Direção: Silvio Tendler. Este filme foi
Paulo Ferraz. Direção: Silvio Tendler. doado ao Ministério da Indústria e do
Prêmio Especial do Júri e Prêmio de Comércio pelas seguintes empresas:
Melhor Montagem no Festival de Benafer S.A., Ferrostaal do Brasil S.A.,
Gramado (1980). Intermesa Trading S.A., Mipesca S.A.,
Real Metalco S.A., Rio Negro Comércio
O MÁGICO MUNDO DOS TRAPA- e Indústria de Aço S.A., Transbras
LHÕES (1981), 88 min. Produção: Renato Transportadora Brasil LTDA., Siderbrás
Aragão Produções. Direção: Silvio – Siderurgia Brasileira S.A.
Tendler. Maior bilheteria da história
do cinema documentário brasileiro: PROGRAMA NACIONAL DO PCB (1987).
1 milhão e 800 mil espectadores. Direção: Silvio Tendler.

192
PROGRAMA DO PSB (1987), 60 min. JOSUÉ DE CASTRO – CIDADÃO DO
Direção: Silvio Tendler MUNDO (1994), 50 min. Produzido pela
Bárbaras Produções. Direção: Silvio
APRENDER, ENSINAR E TRANSFORMAR Tendler. Menção Especial do Riocine
(1988), 34 min. Direção: Silvio Tendler. Festival (1994). Produtores associados:
Filme institucional. Produzido para a Vídeo Fundição, Caliban Produções
Fundação Educar. Cinematográficas, Truques Cinema-
tográficos, Provídeo, Lamounier, Sky
CAÇADORES DA ALMA I (1988), 59 Light, Delart.
min. Execução de produção: RCV.
Produtor associado: CPCE – UnB. CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS: VES-
Direção: Silvio Tendler. TÍGIOS DE QUILOMBO (1996), 31 min.
Produção: Liz Ramos. Direção: Silvio
A ERA JK - SAUDADES DO BRASIL Tendler. Realização TV Viva. Produtor
(1992), 22 min. Um vídeo de Silvio Associado: Brasília Vídeo.
Tendler. Dividido em quatro partes, o
projeto foi produzido para exibição ANTONIETA (1997), 20 min. Produção:
durante a mostra “A Era JK – Artur Angeli. Direção: Silvio Tendler.
Saudades do Brasil”, do CPDOC da Produzido para o Canal Plus (França).
FGV, com criação e produção da
Memória Brasil. CIDADE CIDADÃ (1998), 17 min.
Produzido pela Caliban Produções
ANOS REBELDES (1992) - 11h20 (total). Cinematográficas para a Prefeitura
Produção TV Globo. Direção-geral: do Rio de Janeiro. Direção: Silvio
Dennis Carvalho. Direção: Dennis Tendler.
Carvalho, Silvio Tendler e Ivan Zettel.
CASTRO ALVES – RETRATO
NOSSAS CRENÇAS (1992), 13 min.
FALADO DO POETA (1998). 70 min.
Equipe de realização: Cristóvão Brito,
Produção Caliban Produções
Mario Lobão Neto, Rogério Frota,
Cinematográficas. Idealização e
Vinícius Reis, Tânia Fusco, Ronaldo
realização Instituto Itaú Cultural.
Rosas, Mu Chebabi e Silvio Tendler.
Direção: Silvio Tendler.
Produzido pela Caliban Produções
Cinematográficas para a Vale do Rio
Doce. ENVIRA (1998), 15 min. Produção:
Caliban Produções Cinematográ-
50 ANOS - VALE DO RIO DOCE (1992), ficas. Realização: UNESCO Brasil.
Produção Caliban. Direção: Silvio Direção Geral: Silvio Tendler. Direção:
Tendler. Filme institucional em 3 Artur Angell. Vídeo Documental
episódios de 60 min. sobre o programa de alfabetização
realizado pela Comunidade Solidária
VIVER EM CONDOMÍNIO (1993), 17 min. do Governo Federal e adotado pela
Produção Caliban. Direção: Silvio UNESCO, na cidade de Envira, no
Tendler. Filme institucional. estado do Amazonas.

193
DR. GETÚLIO - ÚLTIMOS MOMENTOS PÍLULAS HISTÓRICAS (2002) -
(2000), 7 min. Escrito, dirigido 3 episódios: Episódio 1: O Brasil
e produzido por: Silvio Tendler. de JK (26’) Episódio 2: Reforma,
Produzido para o Museu da Revolução e Contrarrevolução (26’)
República. Episódio 3: Os Anos de Chumbo e a
Redemocratização (26’). Produção:
BÓSNIA (2000), 19 min. Direção: Silvio Equipe Caliban: Produzido em
Tendler. Série de 4 vídeos produzidos parceria com o Museu da República.
para uma peça de Luís Fernando Direção: Silvio Tendler.
Lobo.
GLAUBER - O FILME, LABIRINTO DO
RIO REPUBLICANO (2000), 5 min. BRASIL (2003), 118 min. Produção
Escrito, dirigido e produzido por:
e Pesquisa: Arthur Angeli, Carolina
Silvio Tendler. Vídeo produzido para o
Paiva, Silvio Arnaut, Terêncio Pereira
Museu da República.
Porto. Direção, roteiro e montagem:
Silvio Tendler.
MILTON SANTOS, PENSADOR DO
BRASIL (2001), 97 min. Direção: Silvio
FRAGMENTOS DO EXÍLIO (2003),
Tendler.
6 min. Produção: Equipe Caliban.
MARIGHELLA, RETRATO FALADO Direção: Silvio Tendler. Produzido
DO GUERRILHEIRO (2001), 55 min. para a Jornada da Bahia. 30 Anos
Coprodução da TV Cultura. Exibido do Golpe no Chile.
na Tv Cultura. Escrito, dirigido e
produzido por: Silvio Tendler. MEMÓRIA, PAZ E INCLUSÃO DIGITAL
(2003), 4 min. Produção: Equipe
ENTREVISTA COMPLETA DE MILTON Caliban. Um vídeo de Silvio Tendler.
SANTOS (2001). Entrevista com Milton Filme institucional. Produzido para a
Santos realizada em 2001. Produzido UNESCO.
para o Sindicato dos Professores. Um
filme de Silvio Tendler. TZEDAKÁ (2003), 10 min. Produzido
para a Fundação Froien Farain.
ABRINDO ESPAÇOS (2002), 15 min. Direção: Silvio Tendler. Assistente
Um Vídeo de Silvio Tendler. Filme de direção e produção: Ana Rosa
institucional. Produzido para a Tendler.
UNESCO.
PAULO CARNEIRO: ESPELHO E
JK - O MENINO QUE SONHOU UM MEMÓRIA (2003), 38 min. Produção:
PAÍS (2002), 57 min. Produção: Equipe Equipe Caliban. Direção: Silvio
Caliban. Direção: Silvio Tendler. Tendler. Vídeo-biografia de Paulo
Filme institucional. Produzido para a Carneiro, representante do Brasil
Fundação Banco do Brasil. Projeto
junto à UNESCO. Filme institucional.
Memória Juscelino Kubitschek.

194
OSWALDO CRUZ – O MÉDICO ENCONTRO COM MILTON SANTOS:
DO BRASIL (2003), 32 min. Filme O MUNDO GLOBAL VISTO DO LADO
institucional. Produzido para a DE CÁ (2006), 99 min. Produção
Fiocruz. Projeto Memória. Fundação Executiva: Ana Rosa Tendler. Um
Banco do Brasil. Direção, Roteiro e Filme de: Silvio Tendler.
Edição: Silvio Tendler.
O AFETO QUE SE ENCERRA EM
AS REDES QUE A UNESCO TECE NOSSO PEITO JUVENIL (2007),
(2004), 18 min. Produção: Equipe 50 min. Produção Executiva: Ana
Caliban. Direção: Silvio Tendler. Rosa Tendler. Produção Martha
Filme institucional. Produzido para a Twice. Roteiro e Texto: Silvio Tendler.
UNESCO. Assistente de Direção: Alexandre
Santini. Filme institucional. Produzido
CORRENDO ATRÁS DOS SONHOS para a Fundação Roberto Marinho,
(2004), 19 min. Produção: Equipe UNE e Petrobrás.
Caliban. Um Filme de: Silvio Tendler.
ERA DAS UTOPIAS (2009) - 3 episódios:
Filme institucional. Produzido para o
episódio 1: Utopia Socialista (52’48”);
SESC.
episódio 2: Utopia Capitalista (53’28”);
Episódio 3: As Novas Utopias (25’46”).
INSTITUCIONAL IRB (2004), 6 min.
Uma série de Silvio Tendler. Produção
Produção: Equipe Caliban. Direção:
Executiva: Ana Rosa Tendler. Equipe
Silvio Tendler. Filme Institucional. Caliban.
Produzido para o Instituto de
Resseguros do Brasil. UTOPIA E BARBÁRIE(2009), 121 min.
Direção: Silvio Tendler. Produção
MILTON SANTOS - POR UMA OUTRA executiva: Ana Rosa Tendler.
GLOBALIZAÇÃO (2004), 55 min.
Produção: Equipe Caliban. Filme PRETO NO BRANCO, A CENSURA
produzido com recursos da Prefeitura ANTES DA IMPRENSA (2009) - 2
da cidade do Rio de Janeiro – episódios; episódio 1: A Censura
Secretaria das culturas / RIOFILME. antes da Imprensa (26’25”); episódio
2: O ofício das Palavras (29’32”).
O OLHAR DE CASTRO MAYA (2004), Produzido para a TV Brasil. Direção:
12 min. Direção: Silvio Tendler. Filme Silvio Tendler.
institucional. Produzido para o Museu
Castro Maya. CARTA A ZELITO VIANNA – AO MESTRE
COM CARINHO (2010), 34 min. Pro-
MEMÓRIA E HISTÓRIA EM UTOPIA E dução Executiva: Ana Rosa Tendler.
BARBÁRIE (2005), 55 min. Produtor Produção: Equipe Caliban. Direção:
associado: Alice Bornhofen. Um Filme Itauana Coquet, Katherine Chediak e
de: Silvio Tendler. Silvio Tendler. Filme produzido para a
Jornada de Salvador de 2010.

195
GIAP – MEMÓRIAS CENTENÁRIAS DE MARCHA DAS MARGARIDAS (2013),
RESISTÊNCIA (2011), 16 min. Produção 18 min. Produção: Jurandir Costa.
executiva: Ana Rosa Tendler. Direção: Produção executiva: Ana Rosa
Sílvio Tendler. Tendler. Direção e roteiro: Silvio
Tendler.
MATZEIVA, JULIANO (2011), 5 min.
Produção executiva: Ana Rosa AGRICULTURA TAMANHO FAMÍLIA –
Tendler. Um Vídeo de: Silvio Tendler. UMA ALTERNATIVA AO AGRONEGÓ-
CIO (2014), 59 min. Equipe Caliban.
TANCREDO, A TRAVESSIA (2011), Produção Executiva: Ana Rosa
104 min. Produção: Cláudio Pereira Tendler. Produção: Isabela Souza,
Roberto D’ Ávila. Coprodução: Maycon Almeida. Direção: Silvio
Caliban Filmes e Terra Brasilis. Direção Tendler. Diretor Assistente: Luís Carlos
e Roteiro: Silvio Tendler. Alencar
.
O VENENO ESTÁ NA MESA (2011), 49 BRASIL MÍSTICO (2014) - 13 Episódios.
min. Produção Executiva: Ana Rosa Produção: Maycon Almeida. Assis-
Tendler. Direção e Roteiro: Silvio tente de Produção: Laine Fabrício.
Tendler. Produção Executiva: Ana Rosa
Tendler. Direção geral: Silvio Tendler.
CAÇADORES DA ALMA II (2012) - Diretor Assistente: Luís Carlos
13 episódios. Uma Série de: Silvio Alencar. Assistentes de Direção:
Tendler. Argumento, Roteiro e Texto: Pablo Markwald (Episódios 01 a 13) e
Silvio Tendler. Diretor Assistente: Luís Maycon Almeida (Episódios 06 ao 13).
Carlos de Alencar. Assistente de Edição: André Markwald (Episódio 01,
Direção: Vladimir Seixas. Produção 05, 09, 10), Isac Maia (Episódios 02, 06,
Executiva: Ana Rosa Tendler. 10, 11), Sabrina Lima (Episódios 03, 07,
10, 12), Ricardo Moreira (Episódios 04,
SUJEITO OCULTO NA ROTA DO 08, 10, 13). Produzido para +GloboSat.
GRANDE SERTÃO (2013), 26 min.
Produção: Isabela Souza e Maycon J. CARLOS – O CRONISTA DO RIO
Almeida. Equipe Caliban. Produção (2014), 30 min. Equipe Caliban.
Executiva: Ana Rosa Tendler. Direção: Produção executiva: Ana Rosa
Silvio Tendler. Diretor Assistente: Luís Tendler. Produção: Maycon Almeida.
Carlos de Alencar. Um Filme de: Sílvio Tendler e Norma
Bengell. Diretor Assistente: Luís Carlos
O BRASIL NA TERRA DO MISHA (2013), de Alencar.
26 min. Produção: Equipe Caliban.
Produção Executiva: Ana Rosa MILITARES DA DEMOCRACIA: OS
Tendler. Direção: Silvio Tendler. Diretor MILITARES QUE DISSERAM NÃO
Assistente: Luís Carlos de Alencar. (2014), 109 min. Produção Executiva:
Exibida na ESPN. Ana Rosa Tendler. Produção: Maycon

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Almeida. Direção, argumento, roteiro e Diretor Assistente: Luís Carlos de
texto: Silvio Tendler. Diretor Assistente: Alencar. Assistente de Direção:
Luís Carlos de Alencar, Vladimir Sei- Vladimir Seixas. 2o Assistente de
xas. Premiado com a Menção Hon- Direção: Laura Cantal.
rosa no Recine – Festival Internacio-
nal de Cinema de Arquivo – Cinema OS ADVOGADOS CONTRA A DITA-
e Literatura (2014) no Rio de Janeiro, DURA (2014) - 5 Episódios. Produção
Brasil. executiva: Ana Rosa Tendler.
Produção: Maycon Almeida. Direção,
MILITARES DA DEMOCRACIA (2014) Roteiro e Texto: Sílvio Tendler. Diretor
- 5 Episódios. Produção Executiva: Assistente: Luís Carlos de Alencar.
Ana Rosa Tendler. Produção: Maycon Assistente de Direção: Vladimir
Almeida. Direção, Argumento, Seixas. 2o Assistente de Direção:
Roteiro e Texto: Sílvio Tendler. Diretor Laura Cantal. Edição: Elder Barbosa
Assistente: Luís Carlos de Alencar
(Episódios 01, 03, 05), André Markwald
e Vladimir Seixas. Edição: Daniel
(Episódio 02 e 04).
Haimson (Episódio 01, 02), Isac Maia
(Episódio 03, 05), Ricardo Moreira
O VENENO ESTÁ NA MESA II (2014),
(Episódio 04, 05). Edição adicional:
100 min. Equipe Caliban. Produção
Isac Maia (Episódio 01, 02), Ricardo
Executiva: Ana Rosa Tendler. Direção:
Moreira (Episódio 01, 02) e Silvania
Silvio Tendler. Diretor Assistente:
Azevedo (Episódio 01, 02).
Luís Carlos Alencar. Prêmio: Festival
internacional de Cinema e Vídeo
PRIVATIZAÇÕES: A DISTOPIA DO
CAPITAL (2014), 56 min. Produção Ambiental (Fica 2015).
Executiva: Ana Rosa Tendler.
Produção: Maycon Almeida. Roteiro HÁ MUITAS NOITES NA NOITE (2015),
e Direção: Silvio Tendler. Diretores 7 Episódios. Produção executiva:
Assistentes: Luís Carlos de Alencar Ana Rosa Tendler. Produção: Maycon
e Vladimir Seixas. Assistente de Almeida. Assistente de produção:
Direção: Alessandra Schimite e Laura Laine Fabrício. Uma série de Silvio
Cantal. Realização do Sindicato dos Tendler. Diretores assistentes: Luís
Engenheiros no Estado do Rio de Carlos de Alencar, Vladimir Seixas.
Janeiro (Senge-RJ) e da Federação Baseado na vida e na obra de
Interestadual de Sindicatos de Ferreira Gullar.
Engenheiros (Fisenge), com o apoio
da CUT Nacional. PARIR É NATURAL (2015), 26 min.
Produção Executiva: Ana Rosa Tendler.
OS ADVOGADOS CONTRA A Produção: Maycon Almeida. Direção:
DITADURA: POR UMA QUESTÃO DE Silvio Tendler. Diretor Assistente: Luís
JUSTIÇA (2014), 130 min. Produção Carlos de Alencar, Vladimir Seixas.
Executiva: Ana Rosa Tendler. Assistente de Direção: Sabrina Lima.
Produção: Maycon Almeida. Direção Filme institucional. Produzido para a
Geral, roteiro e textos: Silvio Tendler. Fiocruz.

197
HAROLDO COSTA – O NOSSO ORFEU Castilhos. Argumento, Roteiro e Texto:
(2015), 26 min. Equipe Caliban. Silvio Tendler. Diretora Assistente: Lilia
Produção: Ana Rosa Tendler. Souza Diniz.
Produção: Maycon Almeida. Um filme
de Silvio Tendler. Diretor Assistente: CAÇADORES DA ALMA III (2017)
Luís Carlos de Alencar. Assistente de - 13 episódios. Equipe Caliban.
Direção: Maycon Almeida. Produzido Produção Executiva: Ana Rosa
em parceria com a Fundação Tendler. Produção: Maycon Almeida.
Palmares. Assistente de Produção: Dayane
Hamada. Argumento, Roteiro e
CASTRO MAYA – CARIOCA DA Direção: Silvio Tendler. Diretores Assis-
PERFEIÇÃO (2016), 15 min. Equipe tentes: Lilia Souza Diniz. José Antônio
Caliban. Produção Executiva: Ana Medeiros.
Rosa Tendler. Produção: Maycon
Almeida e Cyntia Lamas. Argumento, ALMA IMORAL (2018), 5 episódios.
Roteiro, Texto e Direção: Silvio Tendler. Equipe Caliban. Produção Executiva:
Diretora Assistente: Anna Azevedo. Ana Rosa Tendler. Produção: Maycon
Assistente de Direção: Lilia Souza Almeida e Cynthia Lamas. Direção e
Diniz. Argumento: Silvio Tendler. Diretores
Assistentes: Lilia Souza Diniz, Luís
SONHOS INTERROMPIDOS (2016) Carlos de Alencar e Douglas Duarte.
- 5 Episódios. Equipe Caliban. Assistente de Direção: Vladimir Seixas
Produção Executiva: Ana Rosa
e Patrícia Francisco.
Tendler. Produção: Maycon Almeida.
Assistente de Produção: Flor
BRASIL, TRAVESSIAS (2018),
Castilhos. Argumento, Roteiro e Texto:
13 episódios. Equipe Caliban.
Silvio Tendler. Diretora Assistente: Lilia
Produção Executiva: Ana Rosa
Souza Diniz.
Tendler. Produção: Maycon Almeida.
Assistente de Produção: Dayane
DEDO NA FERIDA (2017), 91 min.
Hamada. Direção: Silvio Tendler.
Equipe Caliban. Produção Executiva:
Diretora Assistente: Lilia Souza Diniz.
Ana Rosa Tendler. Produção: Maycon
Almeida. Assistente de Produção:
Dayane Hamada. Direção e Roteiro: FERREIRA GULLAR, ARQUEOLOGIA
Silvio Tendler. Diretora Assistente: Lilia DO POETA (2018), 103 min. Equipe
Souza Diniz. Assistentes de Direção: Caliban. Produção Executiva: Ana
Álvaro Lazzarotto e Ludmila Curi. Rosa Tendler. Produção: Maycon
Prêmio: Festival do Rio 2017 Melhor Almeida. Assistente de Produção:
Documentário pelo Júri Popular, FICIP. Dayane Hamada. Direção, Roteiro e
Argumento: Silvio Tendler. Diretores
SONHOS INTERROMPIDOS (2017), Assistentes: Lilia Souza Diniz, Luís
86 min. Equipe Caliban. Produção Carlos de Alencar e Vladimir Seixas.
Executiva: Ana Rosa Tendler. Assistente de Direção: Juliana de
Produção: Maycon Almeida. Aragão, Aline Deluna e Fabiana
Assistente de Produção: Flor Fersasi.

198
FIO DA MEADA (2019), 77 min. Equipe EM BUSCA DE CARLOS ZÉFIRO OU
Caliban. Produção Executiva: Ana POR TANTO LEITE DERRAMADO
Rosa Tendler. Produção: Maycon (2020), 90 min. Equipe Caliban.
Almeida. Assistente de Produção: Produção Executiva: Ana Rosa
Dayane Hamada. Direção e Tendler. Produção: Maycon Almeida.
Argumento: Silvio Tendler. Diretora Assistente de Produção: Dayane
Assistente: Lilia Souza Diniz. Assistente Hamada. Direção e Argumento:
de Direção: Joana Guedes. Silvio Tendler. Diretora Assistente: Lilia
Souza Diniz
ALMA IMORAL (2019), 120 min. Equipe
Caliban. Produção Executiva: Ana NAS ASAS DA PAN AM (2020) – 110 min.
Rosa Tendler. Produção: Maycon Equipe Caliban. Produção Executiva:
Almeida e Cynthia Lamas. Assistente Ana Rosa Tendler. Produção:
de Produção: Dayane Hamada. Maycon Almeida. Assistente de
Direção e Argumento: Silvio Tendler. Produção: Dayane Hamada. Direção,
Diretores Assistentes: Lilia Souza Diniz, Argumento e texto: Silvio Tendler.
Luís Carlos de Alencar e Douglas Diretora Assistente: Lilia Souza Diniz.
Duarte. Assistente de Direção:
Vladimir Seixas e Patrícia Francisco. CHICO MÁRIO - A MELODIA DA
LIBERDADE (2020), 100 min. Direção:
IBIÚNA, PRIMAVERA BRASILEIRA Silvio Tendler.
(2019), - 71 min. Equipe Caliban. Produ-
ção Executiva: Ana Rosa Tendler. Pro-
dução: Maycon Almeida. Assistente
de Produção: Dayane Hamada.
Direção e Roteiro: Silvio Tendler.
Diretora Assistente: Lilia Souza Diniz.

SANTIAGO DAS AMÉRICAS OU


O OLHO DO TERCEIRO MUNDO
(2019), 93 min. Equipe Caliban.
Produção Executiva: Ana Rosa
Tendler. Produção: Maycon Almeida.
Assistente de Produção: Dayane
Hamada. Direção, Argumento e texto:
Silvio Tendler. Diretora Assistente: Lilia
Souza Diniz.

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