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Cinema na época

do fundo perdido
Diálogo sobre a
cultura Guarani

TRAULITO
#2
Julho/Agosto de 2010

Uma publicação da
Companhia do Latão

A formação de
Traduções inéditas uma crítica teatral
de Brecht
CARTAS À REDAÇÃO

Traulito
Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz 2008
Parabéns pela publicação do “Traulito”!
Ganhei um ontem, fui dar uma lida antes de dormir e não parei até
chegar na última página... Adorei (principalmente a entrevista com
Jean-Pierre Sarrazac).
Bel Teixeira EXPEDIENTE

Distribuição gratuita
Maquiavel
Muito interessante esse tal de Maquiavel. Que música ele escutava? Edição
Sérgio de Carvalho
Black Berserk
Co-edição
Sobre a matéria “Arte e objeto: uma discussão brasileira” Roberta Carbone
Depois de ler conversa com Luiz Renato Martins, Arte e objeto: uma Projeto gráfico e diagramação
discussão brasileira, publicada no último Traulito, achei por bem ao Pedro Penafiel
menos informar uma “ imprecisão” que os autores cometeram. No texto
Produção
introdutório à discussão, é dito que “a conversa a seguir ocorreu em 16 João Pissarra
de outubro de 2008, durante uma mesa-redonda, organizada pelo corpo
Imagem da capa
discente do Departamento de Artes Plásticas da USP, chamada ‘Daquilo
Inspirada no cartaz para a peça O inspetor
que não se vê: presença greenberguiana na formação em artes’”. Como geral de Gogol, parte do acervo do Museu
então aluno de graduação do Departamento de Artes Plásticas e um dos Mayakovsky em Moscou.
Desenhos de Hans Staden.
organizadores do referido debate, estive presente na ocasião e observei que,
na publicação do Traulito, faltou dizer que os debatedores propriamente Colaboração nesta edição
da mesa eram outros dois professores do departamento, Sônia Salzstein e Adriana Mendonça, Ana Petta, Anahí
Santos, Carlos Escher, Cássio Brasil, Felipe
Marco Giannotti. Gustavo Motta e Deyson Gilbert, aluno e ex-aluno, Moraes, Fernando Vilela, Gabriela Villen,
estavam, com eu, na audiência, que de fato participou da discussão depois Helena Albergaria, Jerá Giselda, Lincoln
Antonio, Luiz Gustavo Cruz, Manoel Rangel,
das apresentações dos três debatedores. Não sou capaz de dizer se a parti-
Mariângela Alves de Lima, Martin Eikmeier,
cipação deles na discussão condiz com o que foi publicado e também não é Maurício Braz, Ney Piacentini, Patricia
esse o ponto. O ponto é que, da maneira como foi colocada, a matéria passa Zuppi, Renan Rovida, Renata Amaral,
Roberta Carbone, Rogério Bandeira, Sérgio de
a falsa impressão de que o debate teria ocorrido apenas entre os três sujeitos Carvalho, Tercio Redondo, Walter Garcia.
que aparecem dialogando quando, na verdade, o evento abrangia outras
pessoas e foi proposto pelos discentes do departamento no âmbito de uma Agradecimentos
Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz
atividade mais ampla que buscava pensar a dinâmica interna de ensino e 2008 e Cooperativa Paulista de Teatro
debate sobre arte ali. Ressalto que não discuto a “ legitimidade da discussão”
Impressão
entre os três. Só o que não compreendi foi a omissão, no texto introdutório, Provo Gráfica
de certos aspectos do contexto em que ela teria acontecido. Porque o texto fala
em “mitologia autoral”, “narcisismo” e , portanto, “constituição do autor”, Tiragem
3000 exemplares
me permitiu pensar que ele próprio – o texto – é um bom exemplo disso.
Thiago Gil Contatos da publicação
Companhia do Latão
(11) 38141905
Reposta da redação companhiadolatao@gmail.com
Caro Thiago, vintém@uol.com.br
www.companhiadolatao.com.br
Obrigado por sua observação. Haverá um texto de retomada daquele debate blog.companhiadolatao.com.br
na próximo número. Incluiremos uma nota com suas sugestões, à exceção, é
claro, do comentário dispensável sobre o narcisismo.
Editores de Traulito
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Entrev ista com Jerá Giselda,
líder Guarani e professora

ENTRE DOIS MUNDOS

Luiz Gustavo Cruz


TRAULITO – Sua aldeia se TRAULITO – E a sua mãe
chama Tenonde Porã. O que isso aprendeu a falar japonês?
quer dizer ? JERÁ – Aprendeu. Fala bas-
JERÁ GISELDA – Tenonde tante japonês, mas ela nunca quis
significa algo que está na frente, nos ensinar. Ela dizia: “o que você
futuro. E porã é algo bom, boni- vai fazer com esta língua? Tem
to. “O futuro que traz esperança que falar Guarani!”
de ser bom, bonito”. No estado de TRAULITO - Essa aldeia é muito ranizona”, baixinha, cabelo comprido,
São Paulo temos 24 aldeias. Qua- antiga? preto, olho bem rasgadinho. Uma cor TRAULITO – E foi na terra dos
tro na capital, como a minha. JERÁ – Tem mais de 60 anos. O meu bem Guarani. E aí às vezes ela acorda na japoneses que começou a aldeia?
Todas elas Guarani Mbya. Cada falecido avô parecia um pouco com um aldeia e começa a falar japonês, o que é JERÁ – Eu não sei exatamen-
uma tem suas particularidades e a japonês. Baixinho, troncudinho, per- muito hilário. Ela conta umas partes da te o que aconteceu, mas a família
mesma questão: a dificuldade em nas grossas, meio branco, olho rasgado, história da aldeia que eu não consigo de- de japoneses resolveu ir embora.
demarcar a área pela Funai. Das meio carequinha, acho que não é muita talhar. Diz que um japonês contava que E já existiam outras famílias gua-
24 aldeias, a Tenonde é a mais característica de Guarani, mas ele era era o mundo da guerra, que fazia parte ranis por ali. E ele então resolveu
numerosa. Tem quase mil pes- assim. Ele veio do Rio Grande do Sul, de um mundo em que matava para não doar a terra para essas famílias. E
soas numa área de 26 hectares, com a minha mãe, que tinha dois anos, morrer. E que ele estava em um navio deixou o meu avô como cacique.
que é muito pequena. Para se ter e minha tia. Tinha uma época, nas dé- muito grande, e não sei em que águas ele Mas meu avô ficou meio surta-
uma idéia: o ideal de um espaço cadas de 1920 e 1930, em que muitos falou ao irmão dele: eu vou pular, por- do com a idéia e não quis. Falou
para viver, plantar, caçar é aque- guaranis se concentravam no centro de que não quero matar e não quero mor- para os outros guaranis que esta-
le em que para você visitar outro vam lá: “fiquem aqui que eu vou
núcleo familiar deve andar uma dar uma passeada e já volto.” Aí
ou duas horas a pé. Na minha “Para falar de cultura, o ponto com minha mãe e minha tia foi
aldeia eu caminho dois minutos para uma aldeia no Rio Branco,
e já chego à outra casa. Quando primordial é a questão da terra.” que é próxima também, fica con-
eu era criança tinha 20 famílias. centrada na Mata Atlântica, entre
Hoje tem mais de 100 vivendo São Paulo, vendendo artesanato. Nessa rer. Ele era um coronel e o irmão falou Mongaguá, Peruíbe e Itanhaém.
apertadas. Mesmo assim a gente época, na região onde é a aldeia hoje, assim: pula você, eu não vou pular. Ele Ficaram muitos anos no Rio
conhece todo mundo, desde o morava uma família de japoneses que vi- pulou, e de repente estava lá. Quando Branco, depois foram para o Sul.
pequenininho ao velhinho. Mas nha para o centro também. Eles conhe- passavam aviões na aldeia, ele tinha fei- Os Guarani têm muito isto de
agora, faz algumas semanas, es- ceram o meu avô e o convidaram para ir to buracos na terra. Aí cobria com folha não ficar parados em uma aldeia
tou vendo pessoas estranhas. Eu morar na área, com mais duas famílias de palmito esses buracos. Quando ouvia só. Só depois retornaram para a
vivo muito nos dois mundos – no de japoneses. Ele gostou muito do meu som de avião ele se enfiava no buraco, Tenonde Porã.
meu mundo Guarani e no da cul- avô porque achou que ele era um paren- ficava três, quatro dias e não saía. Acho
tura de vocês. E sei que onde tem te perdido. (risos) Cultivavam algumas que tem algo a ver com a Segunda Guer- TRAULITO – O seu avô nun-
muita gente, como numa cidade, plantações, se deram super bem e fica- ra. Ele estava traumatizado. Minha mãe ca foi cacique?
é impossível todo mundo conhe- ram com eles até minha mãe completar não sabia direito falar a língua deles ain- JERÁ – Não, ele não aceitou.
cer o outro. 12 anos. Minha mãe é uma “super gua- da, mas ia e pegava água para eles. Quando ele voltou para a aldeia,

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já tinha outro guarani, o Eduar- mundos, fala: “ele não deve ser liderança grupo e falar dos sonhos. Outras pesso- para a mata. É só ali que pode falar dos
do, que era o cacique. porque não tem essa parte!” Tradicional- as começam a falar dos sonhos e o líder princípios do equilíbrio do ser guarani
mente, quem liderava a aldeia era o xe- interpreta. Quando eu era criança, tinha com os seres da mata, com a natureza. A
TRAULITO – Como se deci- ramoi, o líder espiritual. Cacique é uma um amiguinho guarani com quem eu gente tem dois tempos divididos, o Tem-
de quem é o cacique? palavra que não vem da nossa cultura. gostava de brincar porque era muito di- po Novo e o Tempo Velho. No Tempo
JERÁ – Por exemplo, num gru- Uns trinta anos atrás, tinha essa coisa de vertido. Depois de algum tempo ele co- Velho, não pode matar certos animais.
po como o de vocês aqui do teatro, cacique, vice-cacique e cabo. Mas isso meçou a se afastar de mim sempre que Há limites. Por exemplo: durante um ano
tem sempre alguém para liderar. não é da tradição. Então eu falei para os estávamos na casa de reza ou em reunião um guarani não pode matar mais de um
Isso acontece com naturalidade na líderes da aldeia: como a gente vive nos na aldeia. Eu queria sempre brincar mais animal de grande porte, como uma anta.
aldeia. Na Constituição de 1988 dois mundos, então precisamos de dois com ele e ele foi se fechando, queria ficar Por quê? Nhanderu, quando fez a terra
foi garantido que o indígena tives- caciques. Um cacique só para lidar com sentado. Hoje ele é um xeramoi. Quem para os Guarani, colocou esses princípios.
se uma educação diferenciada. E as coisas internas e outro só para lidar é xeramoi tem que deixar de fazer algu- Sem a terra, muitas aldeias Guarani per-
um dos pontos para que isso acon- com os lá de fora. Eu ainda não achei mas coisas para se concentrar e assim ver dem essa situação. É quando isso ocorre,
tecesse era ter uma formação para ninguém para dividir no meio. outras coisas que estão acontecendo. com a perda desse Tempo, que a televisão
o professor índio ligada a sua et- acaba tomando espaço. Os mais velhos
nia. Tornam-se professores aqueles ficam tentando falar nos princípios, nos
que sabem falar um pouco melhor valores. Mas o que o Guarani tinha antes
o português, os que conseguem era tudo na prática. Agora é tudo mui-
ler, escrever documentos, fazer a to oral. O povo Guarani tem mesmo o
ponte de fora para dentro. Então, hábito de transmitir os saberes através da
é comum que essas pessoas sejam oralidade, o que é uma coisa muito for-
convidadas a serem lideranças. Só te também. Mas isso fica muito voltado
que não dá! Nem todos os profes- para a questão espiritual: você vai para
sores têm capacidade para dialogar casa de reza, escuta o xeramoi falar, faz
com o mundo de fora, para se co- as danças, os cantos, as rezas. Mas é dife-
locarem a frente de projetos, lutar rente quando você tem uma relação com
e reivindicar. Então, eu diria que a natureza. Na prática do plantio tem
tem pessoas que já nascem com o uma série de coisas com que você tem
perfil de liderar, de ser cacique, ou que aprender a lidar. Em todas as ações
de ser um xeramoi, que é o que vo- como Guarani você tem que respeitar
cês conhecem como pajé. O Edu- os princípios. Quando você perde isso,
ardo já tinha esse perfil, então ra- os Guarani ficam muito vulneráveis. Aí
pidamente as pessoas reconhecem então você precisa ficar na escola falando
e falam: “você é o cacique.” o tempo todo: “não precisa se arrumar,
não precisa vir de salto alto para escola,
TRAULITO – O xeramoi que a escola é em uma aldeia, gente!” Porque
você fala é o pajé, com a função alguns adolescentes já começam a falar:
mais de liderar o ritual? Como é “não vou para a escola porque o senhor
que se sabe quem é ele? não comprou sapato novo para mim.” E
JERÁ – No xeramoi mais ain- isso surge porque aqueles que são filhos
da porque ele sempre se destaca da de assalariados na aldeia têm calçados
maioria. Na nossa religião tem um novos, uma roupa nova, e quando vão
lugar na aldeia aonde a maioria das para a escola chamam a atenção de todo
pessoas vai para rezar, cantar, dan- o grupo.
çar, agradecer mais um dia de vida.
A criança, quando tem 8 ou 9 anos TRAULITO – Você já falou que
e já tem um comportamento dife- é da tradição Guarani mudar muito,
rente, vai para a casa de reza com se mover muito. Isso está nas histórias
mais frequência. É mais centrada, TRAULITO – São sempre homens? TRAULITO – Quais são as maio- antigas? Tem alguma história mito
se interessa por aprender outras coi- JERÁ – A maioria. Aqui no esta- res dificuldades quando vocês pensam que tem a ver com isso?
sas. E aos poucos se torna o pajé, do de São Paulo nenhuma aldeia tem na sua cultura no meio de dois mun- JERÁ – Pelo que eu estudo do meu
como vocês falam, que tem o perfil uma liderança feminina. Líder espiri- dos? É forte a influência da televisão, povo, essa situação de ficar mudando
de liderar a comunidade interna- tual tem. Mas liderança que envolve dos valores do consumo? sempre fez parte do mundo Guarani,
mente. Só que hoje, como a gente um trabalho com os de lá fora não JERÁ – Para falar de cultura, o ponto muito voltado para o equilíbrio do ser
vive nos dois mundos, surgiu um tem, eu sou a única. primordial é a questão da terra. Os Gua- guarani com a natureza. Quando era
pouco de atrito com essa situação, rani tradicionalmente precisam de um tudo mato, um núcleo se localizava em
no caso em que ele não sabe escre- TRAULITO – Mas para ter lide- espaço maior. Quando não têm esse es- um espaço e ali plantavam, colhiam,
ver, não sabe ler, não tem muito rança espiritual também tem que ter paço, muitas ações voltadas à cultura, aos pescavam. Aí, depois, mudavam desse
acesso ao mundo de fora. Porque dom de visões e sonhos? valores do povo, vão deixando de existir. espaço para outro, para o primeiro se
a comunidade, sabendo que hoje JERÁ – Sim, geralmente começa Por exemplo, um pai acorda e não tem a recuperar. Depois de um tempo, volta-
o cacique tem que viver nos dois assim. Tem um perfil de sentar em um oportunidade de levar seus filhos homens vam. Todos aqueles lugares em que você

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passa vão ficando como um território TRAULITO – Quais os outros ri- voltou ao mbojape nhemongarai, batizado e jogar o amba para fora!” Mas logo
seu. Um lugar em que você já esteve, tuais? do milho. O xeramoi lá em Angra falou ele disse: “vão pedir para colocar a
onde um parente seu morreu e foi enter- JERÁ – Este é um dos principais. Nos para mim: “eu nunca vi esse negócio de gente em um hospício.” Eu falei
rado. Um lugar que você conhece. últimos anos ele foi substituído pelo nhe- ficar molhando a cabeça das pessoas, não que tudo bem, é uma influência. A
mongarai, que é um batizado só para dar precisa fazer isso para dar nome a elas.” E gente está cheio de influências dos
TRAULITO – Fale mais sobre o um nome à criança. A gente tem um xe- de fato na aldeia dele não tem esse amba e de lá. Mas a cultura é viva, então
Tempo Novo e o Tempo Velho. ramoi lá no litoral, Jejoko, que teve muito a cruz. É só a parede com alguns instru- ela também vai se transformando,
JERÁ – Para o Guarani tem estes contato com os de lá – com os católicos. mentos: mbaraka miri, hy’akua, mba’epu. vai mudando, devido a contatos.
dois tempos, só. Ara pyau, que é o Tem- Ele se autoclassifica como Tupi-Guarani Mas a maioria das aldeias tem o amba, Mas enfim, o amba já faz parte da
po Novo e Ara yma que é o Tempo Ve- ou, como nós dizemos, xiripa. Ele fi- que é uma coisa muito forte. situação religiosa do Guarani e não
lho. Ara pyau é o tempo de calor, época cou muito forte e passou tudo o que ele tem como jogar fora. A gente pode
em que o Guarani pode plantar, colher, aprendeu para as aldeias Guarani. Nesse TRAULITO – E na sua aldeia, contar toda a história, conversar
caçar. Antigamente, o Guarani planta- ritual, o nhemongarai, tem uma casa de existe a cruz? com os guaranis mais jovens, mas
va em grande escala e depois guardava reza com um altar, amba, que tem uma JERÁ – Em uma viagem em que eu não pode ser radical assim.
para consumir no tempo do inverno,

Patricia Zuppi
que é frio. E no Tempo Velho não se TRAULITO – Como você
caça porque não é bom para entrar na aprendeu a falar tão bem o por-
mata. E como a procriação começa no tuguês?
final do Tempo Novo, no Tempo Velho JERÁ – Eu tinha 10 anos e não
estão crescendo os filhotinhos: então falava nada, não entendia. Aí mi-
você não pode caçar. O Tempo Novo nha mãe conseguiu me matricular
é também aquele em que acontecem os na primeira série com quase 11
principais rituais para o Guarani. Pri- anos e minha irmã com 13. Não sei
meiro, é o mbojape nhemongarai, bati- o que ela fez, talvez a diretora fosse
zado do milho: a gente rala o milho e japonesa. (gargalhadas!) Foi meu
assa o milho ralado, coberto com umas primeiro contato com este mundo
folhas, embaixo da brasa, e aí faz um de vocês. Eu me lembro que era
mel. E aí leva para a casa de reza onde muito cruel: um monte de crianças
acontece a consagração por esse alimen- como eu, mas que falavam uma
to, que já começa na reza para plantio, língua estranha. Tinha uma pro-
colheita e nova colheita. É nessa con- fessora que era a Inês Maria Ma-
sagração que os xeramoi concedem os chado. Tinha vezes que eu chorava
nomes Guarani para as crianças com e não queria ir para a escola. Então
mais de um ano. Aí se faz uma reza e ela aparecia, me pegava pela mão,
o xeramoi se comunica com os espíritos fazia carinho na minha cabeça e
das crianças. E o espírito fala com qual me levava de volta para a escola.
nome ele tem que ser chamado. Mas em agosto eu já estava alfabe-
tizada e tentava ensinar as crianças
TRAULITO – Depois de um ano da minha aldeia. Já queria ser igual
de idade ? à Inês Maria Machado. (risos)
JERÁ – Isso. Para os Guarani, até
perto de um ano, o espírito ainda está TRAULITO – Você teve con-
um pouco distante do corpo físico. Se tato com ela recentemente?
der o nome Guarani à criança antes de JERÁ – Eu tentei várias vezes,
um ano, ele pode errar, a comunicação mas não consegui. Da última vez
não está tão boa. (risos). Muitas crian- soube que ela morava em um apar-
ças que recebem o nome antes de um tamento em Interlagos, eu fui até
ano tem que trocar, porque às vezes se lá, mas ninguém sabia, não era ela.
tornam crianças tristes. Neste caso é cruz. A cruz é como um barquinho, e fui conhecer uma aldeia na Argentina, o Foi ela que me ajudou no contato
desvendado que a criança está com o no batizado você coloca algumas folhas cacique da minha aldeia estava junto. E com este outro mundo. Foi a pri-
nome errado. de uma árvore específica, faz o líquido, teve um depoimento de uma guarani do meira que me tirou da aldeia e me
e aí faz um contorno de pó em volta des- lado da Argentina que foi muito forte. levou para Parelheiros, um bairro
TRAULITO – Você falou em nome te amba, onde vai grudando as velinhas Ela tinha muita segurança e clareza das mais próximo. Eu ficava parada na
Guarani. Há um nome não Guarani que são feitas de ceras de abelha e que coisas. Disse coisas que eu sempre quis rua e via as motos, os carros. E um
também? são acesas. Depois de toda uma reza, o falar para as pessoas mais velhas, mas monte de pessoas passando: pare-
JERÁ – Isso, nesse mundo em que a xeramoi pega a água e molha a cabeça de nunca consegui. Contou toda a história ciam meio iguais. Aí quando eu
gente vive, desde que a criança nasce tem todas as pessoas que estão ali para serem dos jesuítas, das missões, falou das enga- atravessava a rua, nossa, eu suava.
que receber um nome português. Porque purificadas novamente e para aqueles nações, dos assassinatos de líderes e ex-
para tomar vacina e uma série de coisas que vão receber o nome. Só que já tem plicou que nós sofremos muita influên- TRAULITO – Você tinha
tem que ter documento, e para isso tem muitas aldeias percebendo essa história. cia da cultura jesuíta. Aí o meu cacique quantos anos?
que ter um nome em português. Neste ano de 2010, uma lá em Angra falou assim: “vamos voltar para a aldeia JERÁ – Tinha 11. E na minha

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família ninguém falava portu- que as crianças de 8, 9 anos são alta- por semana com a gente. Ele é guaxu, das, tem novos caminhos vindos
guês. Eu não comia nada de fora. mente politizadas. Eu queria conhecer como nós chamamos a homossexuali- dos dois mundos. Por exemplo,
Minha mãe fazia pão de milho, um pouco mais. Ver aulas, participar dade. Em nenhum momento ele quis entre os de lá, temos amigos mui-
o mbojape, a farinha. Meu pai de algumas coisas, mas ainda não tive esconder isso. E foi acolhido mesmo to queridos. Gente que vem de
pescava, caçava, então tudo era essa oportunidade. entre os homens. Ele gosta muito de família muito culta, rica, mas que
ali dentro. Não tinha televisão, um mito Guarani: guando Nhanderu chega na aldeia, tira o sapato, vai
não tinha luz, nada. Eu gostava TRAULITO – Imagino que deve criou o mundo, fez os homens primei- para o matinho, se identifica com
muito de estudar. Fazer frases, haver muita gente da universidade ro. E aí um dia disso para os filhos: “vai o lugar, como as coisas são. Eles
então era uma coisa muito es- atrás de você, que domina os idiomas e lá na terra ver como o povo está.” E aí reclamam do seu mundo, dizem
pecial para mim. Eu gostava de conhece bem o trânsito entre os “dois o filho de Nhanderu veio e viu que os que as pessoas não parecem pes-
ficar pensando em tudo que eu mundos”. Como é a sua relação com homens estavam namorando. E tinha soas. E alguns deles nos ajudam a
tinha feito. E só de pensar na os pesquisadores? um homem grávido. Aí ele volta para abrir caminhos, sabe? Para reivin-
professora, fazia gestos como JERÁ – As aldeias Guarani talvez o pai e relata o que está acontecendo. E dicações da comunidade indíge-
ela. E de vez em quando eu me não sejam tão assediadas quanto as aí o pai diz: “volta lá e cria um parceiro na. Muitos jovens na cidade têm
encontrava com meus amigos e aldeias lá do meio da Amazônia. Mas para esses homens, uma mulher lá na um coração mais aberto, mais
ficava me comportando como teve uma época da minha vida que eu terra.” E aí ele veio e gerou a mulher. consciente. Isso vai determinando
ela, ensinando. E eles olhavam não estava fazendo mais nada, só dan- E o homem grávido falou assim: “e eu? outros caminhos. Desde os meus
estranho pra mim. do atenção aos estudantes. Eles que- E agora?” “Não. Você não vai ter o seu 11 anos de idade eu conheci várias
riam fazer tese sobre a língua, comida, filho aqui Nhanderu fez uma morada pessoas, com diferentes formas de
TRAULITO – E quando che- religião guarani. E ocorre que às vezes sagrada para você ficar lá.” E aí ele acei- ver a vida. A grande maioria teve
gou a luz? a gente não vai com a cara da pessoa tou. E até hoje ele está lá, em uma mo- muita importância para este meu
JERÁ – Eu tinha 14 ou 15 anos. e então enrola até ela desistir. Porque rada sagrada. E aí eu digo brincando desenvolvimento nos dois mun-
Mas foi de uma forma boa. Não o importante é que haja uma situação para o gringo: “está vendo! Gay tam- dos. Aprendi a lidar com pessoas
tinha mais cheiro de querosene, de troca, independente do que faz e do bém existe no mundo dos Guaranis diferentes e aprendi a lidar com
que fazia as pessoas passarem mal. que não faz. Se eu faço uma pesquisa desde que o mundo é mundo! Tem um as contradições. O número de
Quando chegou a luz, tudo se ilu- e escrevo um livro e vendo, com cer- até grávido!” pessoas ignorantes é grande, mas
minava à noite. Eu podia estudar o o número de pessoas conscientes
alfabeto, as vogais. Então a luz era também é grande. Por outro lado,
uma coisa muito boa. Mas com o
passar do tempo, alguns de lá leva-
“Passavam filmes de bangue-bangue na aldeia as pessoas também estão
estudando a sua cultura. Apren-
ram uma televisão e colocaram na
casa de reza. Então todo mundo fi-
e muitos índios meio que dem as coisas aqui de fora e vão
deixando de ser ingênuas. Tenho
cava junto. Eu me lembro de coisas
bem cruéis, de conflito. Passavam
torciam para o branco”. muitos amigos que me ajudam
a entender esse mundo de vocês
filmes de bangue-bangue e me que é muito complexo para mim.
lembro que os indígenas se apro- teza isso não deve ficar só para mim. TRAULITO – Esse teu jeito bem- Para mim é sempre muito impor-
ximavam do branco para matá-lo O que eu posso compartilhar com as humorado é característica dos Guara- tante fazer contato com o outro
com arco e flecha. Mas muitos ín- pessoas da aldeia? Posso dar um curso? ni ou de muitos índios? mundo, com idéias diferentes. É
dios meio que torciam para o bran- Ensinar alguma coisa? Eu acho que in- JERÁ – Os Guarani vivem rindo, sempre enriquecedor para mim
co. E os mais velhos falavam: “olha dependentemente de ser guarani tem fazendo piada de quase tudo o que como guarani. Não tem como
o índio, olha o índio.” Depois veio que ter isso. Como eu recebo muitas acontece no seu dia-a-dia. Mesmo em viver só no meu mundo. E aí,
tudo o que a gente tem hoje para ligações, às vezes vejo quem eu gosto, encontros com outras etnias, quando então, vamos lutar juntos pela de-
todos: televisão para todo mundo, por telefone mesmo. E aí atendo, pro- chegam os Guarani é um transtorno. marcação de terras, lutar por uma
rádio, vídeo-game, máquina de la- curo ter uma conversa. Às vezes eu me Todo mundo brincando. É um dos causa mais justa, não só indígena,
var roupa, fogão. engano, mas geralmente eu tenho uma princípios. Nhanderu diz que, se você mas com outras realidades. Con-
capacidade para sentir as pessoas. vai viver mais um dia de vida, então tribuir para que mais gente tenha
TRAULITO – Vocês têm al- tem que viver com alegria. Não pode uma realidade melhor.
guma relação com o MST? Parece TRAULITO – Alguns desses pes- ficar jururu. Se tem algum problema,
existir muita afinidade entre a sua quisadores devem ficar fascinados com tem que resolver sem perder a alegria TRAULITO – Obrigado pela
reflexão sobre a terra e a deles. o contato com vocês… de viver. A vida é uma coisa muito es- entrevista maravilhosa.
JERÁ – Quando tem alguma JERÁ – Ficam mais do que deviam sencial. Nhanderu te trouxe lá de outra JERÁ – Eu gostei de estar aqui
manifestação em Brasília ou algu- ficar, porque se identificam, só saem esfera aqui, para você viver. Você tem com vocês.
ma reivindicação de terra e gente quando são expulsos. (risos) Por outro que viver bem, é um dos princípios.
se encontra. Mas até onde eu sei o lado, tenho um amigo que consegue Entrevista realizada por Adriana
pessoal do Mato Grosso é que tem fazer uma comunicação diretamente TRAULITO – Como você vê a si- Mendonça, Ana Petta, Carlos Escher,
mais contato. Sempre ouvi falar da com a língua indígena. É o George. Ele tuação dos Guarani no Brasil, de um Gabriela Villen, Luiz Gustavo Cruz,
questão da linha pedagógica deles é muito bom com línguas. Um ameri- modo geral? Martin Eikmeier, Maurício Braz,
para ensinar as crianças. Eu tinha cano que fala japonês, espanhol, portu- JERÁ – Falando de um modo ge- Ney Piacentini, Renan Rovida,
uma amiga que tinha um trabalho guês. Em um ano ele aprendeu guara- ral, eu não vou mentir: quase perco a Roberta Carbone, Rogério Bandeira e
com eles. E quando ela falava, o ni fluente e ensina muito bem. Ele foi esperança. Mas não perco. Apesar de Sérgio de Carvalho. Edição de Sérgio
olho dela brilhava. Ela contava muito aceito na aldeia. Fica três vezes nossas terras estarem muito diminuí- de Carvalho.

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MONAN PIRIRIGUÁ
(Primeira versão)

Por Sérgio de Carvalho

Piririguá Obyg tinha 130 anos quando o missionário da Companhia de Jesus


o procurou no aldeamento de Itanhaém. A pele enrugada do velho tupiniquim
sobrava nas costelas e coxas, mas não no rosto descarnado. Portava adornos
descoloridos da virtude guerreira antiga. Foi um homem principal, disso sabiam
todos, e não só o prestígio, mas o corpo magro e riscado fascinara o jesuíta.
Piririguá Obyg sentiu que lhe tapavam o sol e mal distinguiu o vulto ou dis-
cerniu a voz do jovem interessado no resgate de sua alma. Alma índia arcaica,
túnica sobre a qual já não se imprime quase nada.
“Quero batizá-lo!”, disse o missionário, “fazê-lo cristão, para que seu ser não
se perca após a derrocada da carne”. “Sua vida é sem querelas, contam-me os Eterno ser desprezado e humilhado. Mais do que a recusa, por que o esqueci-
que lhe conheceram.” “Há muitas décadas é aliado dos nossos.” “E já se gastou mento? E Monan perambulou sua velhice absoluta até erguer-se e pairar no alto,
a memória dos seus feitos mais remotos.” “Ensino-te a necessária doutrina – já de onde melhor contemplava a vida desordenada e ingrata, e a proximidade sem
o tratava por tu – e estarás salvo.” contato. E no sonho de Piririguá se avistavam pedaços de armas e mantos, cor-
Ao sentir na mão um aperto forte, Piririguá sorriu como fazia sempre com os das roídas, balas de canhões dos brancos, flautins de ossos quebrados, uma terra
brancos amistosos. E soprou da boca trêmula palavra de concordância, interpre- esfarelada depois da batalha. Pairando sobre a paisagem, Monan-Celeste subiu
tada pelo jesuíta como um indiscutível “sim”. ao seu ponto mais alto, e ao atingir o supremo da ira, despejou Tatá-Fogo sobre
Então, todas as manhãs, o moço ia a Piririguá. Descia a colina da igreja todo o mundo. E o mais foi correria e labaredas e dor. Piririguá soube que só um
levado à tapera pela tarefa de soprar no coração do gentio uma sabedoria nova, homem seria salvo. Talvez o tenha visto no meio da luz. E acordou.
que o animasse na outra vida. A começar pelo fundamento: “É só um o Deus Na manhã do seu batismo, foi conduzido à capela por seus netos. À frente deles
poderoso, criador de todas as coisas. Ele ressoa para além do Trovão-Tupã, des- caminhavam alguns noviços. Sustentava-se num bordão. Seus pés amortecidos, com
locador das águas e dos raios. Em sua unidade, ele é Pai, Filho e Espírito.” firmeza, venciam as pedras ásperas da colina ao colégio. “Veja o velho”, apontava o
No primeiro dia da conversão, o jesuíta se admirou muito da prontidão do jesuíta da janela, “a alma sequiosa de Deus anima os membros encarquilhados.”
velho em repetir lições e temas que na língua brasílica pouco cabiam. A expres- Piririguá incensado, foi assentado numa cadeira ao transpor a porta. Arfa-
são Espírito Santo, entretanto, não houve meio de traduzir. A dupla geração va, fixava o nada. Não disfarçavam o riso os curumins-cristãos. Ele inalava a
da divindade, Piririguá demonstrava aceitar, mas o terceiro nome da Trindade fumaça do rito, ouvia o passo coral dos jesuítas contritos. E soube responder à
nunca se formou em sua boca. pergunta acordada: “O que queres, Piririguá?”
A cada dia de trabalho, o jesuíta mais se entusiasmava. Havia claros sinais de “Ser batizado”, recitou rápido o velho. Então, sem que lhe fosse perguntado,
uma mística fusão entre o receptáculo pagão e o líquido sagrado. Era como se acrescentou de modo pouco compreensível: “Pela noite toda vi a ira dele. E vi
Deus dilatasse no velho, ouvidos, pu- como vai viver a outra geração.”
pilas e o próprio decurso da jornada, O jesuíta responsável, concentra-
para que sua verdade se cumprisse. do na prática, sem dar pelas palavras
Em algumas semanas Piririguá era murmuradas, fez-lhe os exorcismos
capaz de recitar os mistérios cruciais devidos. Após o tremor do magro ros-
da Encarnação e Ressurreição. E os to antigo ao contato da água abençoa-
virginais: Concepção, Assunção, As- da, felicitou o seu velho-menino.
censão, “termos parecidos para coisas Piririguá compreendeu o sentido
diferentes”, demonstrava o jesuíta do momento. Pôs-se de pé e começou
com gestos, confiante. a chorar, a esfregar os olhos e mais
E mais ainda lhe pasmou ver Piriri- chorar. Diziam-lhe os muitos presen-
guá perguntar, não sem labial dificul- tes: “Alegra-te, és de novo nascido.” E
dade, sobre detalhes de certas figuras fizeram com que se sentasse, para que
da cristandade. Pedia que repetissem se acalmasse. E como um símbolo se
as particularidades, sempre algo abs- comportasse.
tratas, enunciadas nos milagres. E foi Imóvel, por trás da vista embaçada,
nesse instante de indagação, que o ve- Villa da Conceição de Ytanhaem Piririguá enxergou seus pais e avós,
lho Piririguá ficou mesmo maior aos conchas e barcos, e intuiu a presença
olhos do jovem catequista. “Orgulho-me, mais do que nunca, de ti. Teus netos do Fogo-Incêndio-Tatá.
e filhos, todos cristãos convertidos, jamais hesitaram nas partes. Por isso te digo, Então, no controle pleno de seu esforço, ergueu-se e falou limpidamente: “Ele
Piririguá Obyg, és bem alheio dos outros índios com que tratei nessa imensa venceu a morte e subiu ao céu. Muito irado, há que ter muita ira. Para queimar
costa, pois eles não sabem duvidar, e assim ignoram o verdadeiro aprender.” o mundo todo e destruir todas as coisas.”
Piririguá estava pronto. Do fundo da igreja respondeu num grito de êxtase o jesuíta: “Deus verda-
“Será amanhã”, avisou o jesuíta. deiro é Jesus. E você está nele, Piririguá. E havemos de ressuscitar todos.” E
Em sua rede, naquela noite, véspera do batismo incomum, Piririguá foi visi- comandou, orgulhoso, um cântico final para a cerimônia.
tado em sonho. Era uma representação de Monan, sujeito mítico supremo, sem Piririguá Obyg, conhecido por sua vida sem querelas, tupiniquim de feitos
fim nem começo, o Velho-Monan, origem de todo o tempo. E ele viu Monan- guerreiros, em toda a existência amigo dos portugueses, adormeceu naquela noite
Antigo entre os homens, de enorme cabeleira cinza, andar entre as tribos que com nome cristão. Na hora de sua morte, meses depois, a voz-vontade de Monan,
outrora lhe davam honras e abrigo e prantos intensos de alegria. E viu Monan- o Velho, ainda soava em seu ouvido: “a grande ira.”
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Entrevista com Mariângela Alves de Lima

A MEMÓRIA
DA CRÍTICA

8 t 5SBVMJUPtOt+VMIP"HPTUPEF
MARIÂNGELA – Eu sei que há MARIÂNGELA – Havia muito também tratava de teatro brasilei-

Luiz Gustavo Cruz


mil vertentes críticas, algumas ligadas público e muitos jornais cobrindo. ro. O Décio chamava a isso, desde
à participação, feitura etc. Mas fun- Hoje em dia você fala em dois grandes sua atuação no Suplemento Literá-
damentalmente eu sou aquela crítica jornais. Antigamente existia uma boa rio do Estadão, dar uma resposta
espectadora, que senta numa cadeira imprensa alternativa que era até eco- interessada no momento
e espera que os outros façam alguma nomicamente estruturada, com uma
coisa. Eu digo que a crítica é uma ati- força que acabou se perdendo. Tinha TRAULITO – Como a pri-
vidade preguiçosa, prazerosa. Daquela o Bondinho, logo depois o Pasquim, meira crítica em São Paulo a ter
primeira turma, só eu e a Maria Lúcia jornais como A Última Hora, além dos formação em teatro, você inau-
Candeias nos formamos. Eu escrevo verpertinos e matutinos, vários cader- gura uma crítica pós-acadêmica,
há 38 anos, quase quatro décadas de nos especiais. E havia muitos críticos digamos assim. Você acha que
crítica teatral. trabalhando. isso marca o tipo de crítica que
você passou a escrever? Consegue
TRAULITO – No momento de TRAULITO – Você acompanhou a avaliar hoje, a forma de sua crítica
sua entrada na crítica, começava uma produção crítica de gente como o Al- no início?
cena contracultural, como oposição ao berto D’Aversa e João Apolinário, entre MARIÂNGELA – Na verda-
teatro mais crítico e politizado. Você tantos que escreviam além de Décio de de eu imitei e segui meus prede-
acompanhou isso? Almeida Prado e Sábato Magaldi? cessores. O Décio era professor
MARIÂNGELA – É, tem muitas MARIÂNGELA – O D’Aversa es- de História do Teatro Brasileiro
coisas simultâneas nessa época. Todas tava parando quando eu cheguei a São na Escola de Arte Dramática.
surgiam com força porque eram bem Paulo, então eu não acompanhei. O Sábato era professor de Crítica e,
representadas por grandes artistas, por Apolinário, de origem portuguesa, é por isso, interferiu diretamente e
grupos muito bons. Isso que você diz um crítico que desapareceu da memó- muito na minha formação. Suas
da contracultura, por exemplo, entrava ria do teatro paulista porque o jornal aulas de texto eram pensadas para
em São Paulo, mas estava também no A Última Hora desapareceu. Mas as o jornalismo. Fiquei muito tempo
Teatro Ipanema1, no Rio de Janeiro. coisas dele eram muito interessantes. com a mesma estrutura e o mes-
Estava ainda nas experiências do Amir Eu adorava. Era polêmico, assumia a mo tipo de pensamento dele.
Haddad. Era um espírito que se disse- posição de um crítico de uma esquer-
minou pelo mundo inteiro. Por outro da de plantão. Tudo era rigorosamente TRAULITO – E qual era essa
lado, o Teatro de Arena de São Paulo já avaliado de acordo com um critério estrutura?
estava acabando como grupo político. ideológico antes de tudo. Era muito MARIÂNGELA – A ques-
Tinha ainda uma atividade teórica mui- interessante. tão histórica era predominante.
to grande, impregnando toda a crítica. Como fator de observação, Sába-
E a dramaturgia que o Arena ajudou a TRAULITO – Por que você fala to tinha chegado a uma espécie
impulsionar, praticamente neo-realista “esquerda de plantão”? Ele cobrava de fenomenologia do espetáculo.
(nunca chegou a ser realista, mas ela postura ideológica? Nós víamos o espetáculo, sentá-
começa com esse impulso), dava frutos MARIÂNGELA – Exatamente. vamos todos juntos, debatíamos.
no trabalho de autores como Lauro Cé- Cobrava dos espetáculos e analisava E ele conduzia o debate para a ilu-
sar Muniz e Plínio Marcos. Em todas de acordo com esse critério, quase que minação, a atuação, a adequação
as frentes surgiam coisas muito interes- exclusivamente. Era bem interessante, entre a personagem e a atuação,
santes. O que começou a declinar foi uma postura firme. a cenografia. Ele analisava assim,
o repertório internacional de qualidade dissecando as partes. A crítica do
TRAULITO – Como o teatro apa- que o TBC fazia: clássicos da drama- TRAULITO – O Décio ainda esta- João Apolinário era muito dife-
receu na sua vida? turgia internacional com encenações va escrevendo, em 1967? rente. Ele conferia a adequação
MARIÂNGELA ALVES DE LIMA de grandes diretores. Isso eu já não vi. MARIÂNGELA – Quando eu da obra à necessidade histórica.
– Sou da primeira turma da Escola de Há um último representante desse tipo comecei o Décio já tinha parado. Na O Sábato treinou a gente para ob-
Comunicações e Artes, e o teatro era uma de teatro – uma cena que procura or- Folha tinha o Paulo Mendonça, que servar os dados de realização, de
coisa muito fantástica em 1967. Era a ati- ganizar tecnicamente a emoção, que é eu lia quando morava no interior. Era estrutura: como a coisa se mani-
vidade cultural mais interessante, tinha o Ademar Guerra. Já o Antunes Filho, um crítico bem instrutivo, com quem festava. E você via a obra um pou-
uma dimensão política muito intensa que que vem da mesma tendência, parte aprendi muito sobre Tragédia Grega. É co isoladamente. Como crítico de
agregava os estudantes universitários. En- para uma forma de encenação mais isso que a crítica tem que fazer: lembrar jornal, você não estabelecia uma
tão, a qualidade do teatro me fez passar pessoal a partir do Peer Gynt2. que todo dia nasce um leitor. Ou me- continuidade entre as coisas, não
do curso de Jornalismo, que era a minha lhor, que aquele leitor nasceu hoje e não refletia muito. Você via um a um,
intenção primeira, para o de Artes Cêni- TRAULITO – Os jornais debatiam sabe o que aconteceu semana passada. cada elemento. Acho que faço isso
cas, onde me formei em Crítica. Antes de essas correntes na época? Isso tudo tornava o teatro interessante, até hoje. Quando eu quero pensar
terminar a ECA, trabalhei em jornal. E vi debatido, muito esmiuçado. Tinha a um pouco, eu saio do jornal, vou
1
Companhia teatral formada no fim dos anos Revista Argumento que era muito boa. fazer um ensaio, outra coisa. O
que era o que eu gostava de fazer.
1960 pelos artistas Rubens Corrêa e Ivan de
Albuquerque, responsável por importantes es- A Revista Civilização Brasileira com Sábato havia tido uma experiên-
TRAULITO – O seu interesse, en- petáculos nas décadas de 1970 e 1980. uma cobertura ampla da cultura e os cia mais sociológica, com o tex-
2
Peça do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen,
tão, não foi inicialmente o da ativida- melhores articulistas das universidades. to prevalecendo. Mas em 1967,
escrita em 1867 e encenada pela primeira vez no
de prática, mas o da teoria? Teatro de Cristiânia, em Oslo, no ano de 1876. O Suplemento Literário de Minas Gerais 1968, ele fala: “bom, agora, va-

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mos ter que ver o espetáculo.” O é antiga: acho que ela é moderníssima, TRAULITO – A Elza era realmen- TRAULITO – E chegou a haver
Idart, que foi feito sob orientação contemporânea. te uma professora fora do comum, o contrário, melhorar os modelos da
do Sábato, também teve esse viés. pessoa maravilhosa. televisão?
É uma coisa da época. TRAULITO – A crítica na sua MARIÂNGELA – Bem assim, com MARIÂNGELA – A televisão ga-
forma-mercadoria, no estilo do Sar- o caderninho na mão, pondo tudo em nhou muito durante um certo tempo.
TRAULITO – Vendo a sua cey, comentador do teatro francês do ordem. Vocês se lembram de uns programas
crítica em uma fase posterior, eu século XIX, continua atual. juvenis, que eram feitos pelo Hamilton
tenho a impressão de que você faz MARIÂNGELA – Tem uma coisa TRAULITO – Você acha que a Vaz Pereira? Tinha o Armação Ilimita-
uma espécie de diminuição da sub- meio escandalosa nisso. A Bárbara faz tendência de valorizar a cena contra o da do Guel Arraes e do Daneil Filho.
jetividade aparente do texto. O que rir, ela é muito engraçada pessoalmen- chamado “textocentrismo” não acabou Narrativas interessantes surgiram.
eu quero dizer é o seguinte, pare-
ce que a geração do Sábato ainda
tinha algo do crítico cronista: a
“É isso que a crítica tem que fazer: TRAULITO – Como você avalia
uma certa acusação que o Asdrúbal
marca pessoal do observador estava
presente no texto. E me parece que
lembrar que todo dia nasce um leitor.” Trouxe o Trombone3 sofreu na época,
a de difundir um espírito pop e alien-
o seu texto procura uma objetivida- te. Lendo eu não acho muita graça gerando o contrário: um “cenocentris- ado de classe consumista? Você achava
de do espetáculo e da obra sem a porque resvala para uma coisa cruel. mo” que subestima a importância da esse tipo de crítica reacionária?
necessidade de se expor, como ob- Os leitores riem com ela, até perdem reflexão dramatúrgica? MARIÂNGELA – É difícil dizer,
servador, como figura. Você acha de vista o objeto. Não sei se levam MARIÂNGELA – Essa perda de porque tudo tem uma coisa de gosto e
que isso acontece de fato? muito a sério o que ela fala. Mas ela, importância do texto é uma coisa que preferência. Mas eu adorei essas coisas
MARIÂNGELA – Você tem em si, é uma cronista. todo o teatro brasileiro fez, não só os que vieram dos anos 1970 e duraram nos
razão. Naturalmente há uma es- críticos. O teatro estava nesse rumo. anos 1980. Faziam uma criação coletiva
pécie de pudor, que é uma coisa TRAULITO – Você acha que essa Era extraordinariamente criativo o mais solta. Havia também, naqueles co-
pessoal. Se você gosta de ficar na marca objetivista e fenomenológica espetáculo e não havia uma drama- mentários, a idéia de que para se fazer
obscuridade da platéia tem uma sua, ligada ao espetáculo, tem a ver turgia, naquela ocasião, igualmente um teatro interessado politicamente,
coisa de não querer usar a primei- com uma influência do Anatol Rosen- inventiva. De fato, o texto ficou um você precisa ser sempre realista.
ra pessoa. Mas, na verdade, essa feld, que já no começo dos anos 1960 pouco negligenciado.
subjetividade já faz parte, ela é encampou esse debate teórico? TRAULITO – Mas é um fato que
iniludível. As relações todas que MARIÂNGELA – A história do TRAULITO – Por que você acha a criação coletiva nos outros países da
você estabelece, com uma obra, Anatol é muito peculiar, mas acho ele que a dramaturgia não acompanhou América Latina, entre o fim dos anos
com um espetáculo, com qual- definitivo para o que você está falando. esse movimento? Era um limite do 1960 e 1980 foi, de modo geral, muito
quer coisa, já estão permeadas Ele trabalhou com as pessoas que esta- modelo dramático fechado em que politizada. Aqui, ela entrou, nos casos
por essa experiência: o seu lugar vam se formando para olhar o teatro muitos dramaturgos insistem? mais famosos, associada mais a um es-
na história, o seu lugar no tempo, com olhos novos. Ele dava aulas, na casa MARIÂNGELA – Pode ser. Acon- pírito antiburguês.
o seu lugar na sociedade, o seu do Jacó, para um grupo que o Sábato teceu aqui e ali. Mas muitos drama- MARIÂNGELA – Nós tivemos
lugar geográfico, a sua situação freqüentou. Ele formou muita gente. O turgos procuraram coisas novas. Eu aqui também uma ala mística e com-
pessoal. Essas relações entre você doutor Alfredo tinha arrastado algumas acho que o Hamilton Vaz Pereira é portamental, aliás, muito interessante,
e a obra fazem o texto. Não pre- pessoas pelo colarinho, porque eram um deles. Começou com uma coisa que saía da PUC de São Paulo, com o
cisa mais. De qualquer maneira amigos, para dar aulas em sua escola de coletiva, uma coisa de grupo, e acabou pessoal dos Lobos, do Marinho Pia-
essa crônica que você fala eu não teatro, a EAD. Mas vários deles, como produzindo textos que pensam na sua centini. Eles tinham uma ênfase muito
faria. Eu não tenho esse interesse o Jacó, quando começaram não tinham feitura, alguns fortíssimos. Há outros grande no trabalho corporal. Foram os
substancial e pessoal pelas coisas. idéia do que fosse teatro. Décio estava, exemplos. Muita gente via que não pre- primeiros que eu me lembro a fazerem
também por acaso, enveredando para o cisa haver mais aquela salinha de estar, a chamada expressão corporal. Ou seja,
TRAULITO – Uma crítica meio. Quem deu uma base, um método aquele drama de classe média, aquela atores mudos, falando com o corpo.
como a Bárbara Heliodora, que de estudo e que estimulou foi o Anatol. briga entre pai e filho, entre marido e
produz do início nos anos 1960 Então, eu acho que com o Anatol tudo mulher. Pode ser outra coisa. TRAULITO – A precária histo-
e continua ativa hoje, é muito mudou muito. E ia mudar de qualquer riografia do teatro nacional costuma
marcadamente personalista. Ela jeito. Mas ele deu um instrumental e su- TRAULITO – Você acha que o eleger marcos simbólicos. Um deles é o
é uma personagem de cada texto geriu um caminho. fato de alguns desses dramaturgos Macunaíma do Antunes Filho. A mon-
dela. Por que esse modelo sobre- terem ido trabalhar na televisão tam- tagem anuncia a encenação autoral
vive sendo tão antigo? Tem um TRAULITO – Você chegou a con- bém tem a ver com a sobrevivência do plástica que estava surgindo, no mod-
lado de mercadoria nisso? viver com ele? modelo convencional e com o afasta- elo Bob Wilson, mas extraía o principal
MARIÂNGELA – Ele faz MARIÂNGELA – Ele deu aulas mento da cena mais experimental? de suas forças inventivas do trabalho
muito sucesso na cultura de mas- pra nós durante dois anos como profes- MARIÂNGELA – Não, eles foram de criação coletiva e do repertório do
sa, na cultura mercadológica. É sor convidado. Eram aulas fantásticas. trabalhar na TV porque no mercado nacional-popular modernista, que en-
um estilo que está na crônica so- As do Jacó e do Sábato também eram de teatro não dava mais para sobrevi- trava em cena numa espécie de canto
cial, nas crônicas que os jornais muito boas. Era uma escola muito boa. ver. Uma pessoa como Maria Adelaide
têm: essa coisa do “eu”, “eu sou Tinha uma professora de História do Amaral continua produzindo o tipo 3
Grupo carioca formado em 1974, liderado
mais eu”. Você vende a personali- Teatro, formada pela EAD, uma se- de dramaturgia que ela gosta e sempre por Hamilton Vaz Pereira, que revelou di-
versos comediantes brasileiros como Regina
dade, a máscara. Isso é uma coisa nhora que tinha saído da Letras, a Elza fez. O fato de ela ter ido para a televi- Casé, Luiz Fernando Guimarães e Evandro
de produto. Eu não acho que ela Cunha de Vicenzo. Ela era ótima. são não quer dizer nada. Mesquita, entre outros.

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de cisne: o último momento em que o sou muito velhinha, vi o Victor Garcia. pela geração do Décio. Eles queriam o jornal diário perdeu importância e
Brasil estava em pauta no teatro. Por Aquilo era uma novidade grande para a que? Um teatro tão bom quanto o me- ambição. Aquele jornalismo parti-
que os temas ligados ao país saíram de minha geração. Depois daqueles festi- lhor de Nova Iorque ou Paris. Já era tão cipante, ambicioso intelectualmen-
pauta a partir dos anos 1980? vais internacionais em que vimos Bob bom quanto. Chega desse complexo de te, não tem mais. Hoje predomina
MARIÂNGELA – Eu acho que o Wilson e outros, o Gerard Thomas não provincianismo. Então, do patamar de a divulgação e o entretenimento. E
que aconteceu em 1978, ano do Ma- era uma grande novidade. Mas acho onde nós partimos você não precisava isso nos afeta muito. No espaço e
cunaíma, foi uma atualização de uma que ninguém é. Há sempre todo um ser programático. E graças ao trabalho na pauta. Eu não posso dizer que
espécie de desejo reprimido de um mod- arranjo diferente de elementos. Eu não deles. O Décio fez a mesma coisa no tenha uma pauta que me impeça de
ernismo no teatro. Isso de um ponto de sei como vai ser o teatro daqui para teatro que fizeram os intelectuais do sé- criticar alguma coisa, mas ela me
vista pessoal, o do Antunes. Ele quis frente, mas o século XX foi extrema- culo XIX com a Literatura Brasileira. conduz a comentar coisas que eu
isso, ele fez isso. Ele pegou o Mário de mente iconoclasta. Aquela coisa de trabalhar com mode- não teria privilegiado. A orientação
Andrade, não pegou só o Macunaíma. los, de divulgar, de corrigir, de estimu- da empresa é essa agora. É uma coi-
Ele pegou as idéias todas do Mário de TRAULITO – Na medida em que lar, de pegar um autor novo e colocar lá sa de entretenimento. Por isso, tal-
Andrade. Porque ele achou que todo o o teatro é efêmero, a crítica acaba sendo em cima. Ele fez isso no teatro. E o Sá- vez, que muitos grupos produzam
programa modernista ainda não tinha muito usada em pesquisas históricas, bato também, pelo menos no começo. seus próprios debates hoje. Eles
se cumprido no teatro. Ele fez isso in- como documento de época. Ela não Uma coisa de qualificação e de progra- internalizaram a atividade crítica.
tencionalmente, juntou todas as coisas. deveria assumir de vez essa responsabil- ma. Não tínhamos mais essa pretensão, Muitas vezes com publicações pa-
Agora, na verdade, muitos dos temas idade? Não recai sobre você esse peso e nem olhavamos mais de cima. Nós ralelas. Porque não tem outro meio
do modernismo são temas que contin- de ser também uma historiadora? estávamos sendo formados, agora, por de reflexão e divulgação favorável.
uam até hoje. Tira a palavra Brasil para MARIÂNGELA – Cobram muito aquele teatro brasileiro que nos chega-
você ver o que ele discute. Ele discute o isso. Por exemplo, no Idart fazíamos va. Não tínhamos que ir à Europa para TRAULITO – Que critérios
multiculturalismo, esta coisa chamada obras de referência, catálogos de fontes conhecer avanços. Em tese, por que de- marcam um teatro muito ruim?
hibridismo que também é uma moda de informação. Sempre aparecia um pois chegou o AI-5 e acabou com isso. MARIÂNGELA – Como eu
universitária. Ele discute todos os te- artista chorando porque não aparecia Daí você precisava sim ir para algum disse, não tenho uma expectativa
mas que confluem na formação de uma no catálogo, como se tivesse sido ex- lugar, até para poder ver um filme. sobre o que o teatro deveria ser.
cultura. Antropologia da cultura está cluído da história. Mas na verdade, Mas eu tenho em relação a al-
aí. Todos são temas discutidos o tempo ele não vai ficar na história. Porque a TRAULITO – Mas isso não põe o guns grupos que eu já conheço.
inteiro. Até o Gerald Thomas faz isso coisa que ele faz se dilui, porque o te- crítico a reboque da produção que está E tem essa outra coisa do crítico
quando traz coisas lá de Nova York e usa atro é uma experiência física, ligada ao ali, do imediato do ambiente? ser novidadeiro. Eu gosto de ir a
uma terminologia de antropofagia, são um lugar aonde nunca fui. Ver
os mesmos temas. É só tirar a coisa na-
cional. Por que o grande tema do mod-
“Aquele jornalismo um grupo que nunca vi, gente de
quem nunca ouvi falar.
ernismo era isso: como é que você liga
o particular com o universal. Então eu
participante, ambicioso TRAULITO – Você consegue
acho que foi o nacionalismo que saiu. E
não vejo por que deveria continuar.
intelectualmente, não tem mais.” assistir e não estar escrevendo a
crítica enquanto assiste?
presente. E história depende muito de MARIÂNGELA – Exatamente. Faz MARIÂNGELA – Tem gente
TRAULITO – Há um tempo o quem narra. É um índice da experiên- com que você vá à deriva. Eu conto uma que escreve, toma nota durante o
Gerald Thomas escreveu um texto no cia humana. Não é a experiência hu- coisa que aconteceu. Não estou dizendo espetáculo. Eu não posso imaginar
jornal um pouco magoado com uma mana. É simbólica. se é bom ou não. Eu sou inteiramente alguém escrevendo mentalmente.
perda de reconhecimento crítico. Ele formada pelo que vejo. Não tenho mui- Não quero nem saber que eu vou
acha que novos diretores da moda estão, TRAULITO – Você agora há pouco to desejo também. Eu não estou acima escrever uma crítica. Eu não ouço
supostamente, diluindo seus métodos. assumiu, como dado de formação, ser de nada. Estou satisfeita, seguindo. nem barulho de platéia. Também
É comum essa cobrança aos críticos? uma crítica voltada para a análise esté- não gosto de conversar quando saio.
MARIÂNGELA – Todo mundo tica de cada obra. Daria para dizer que TRAULITO – Nesses anos de tra- Acho que gasta. A não ser que seja
se queixa. Um ator maravilhoso, pelo essa suspensão do comentário histórico balho, mudou muito o estilo de jorna- um espetáculo muito idiota, desses
qual uma geração suspira, escreve car- conduz a uma crítica menos militante do lismo cultural? que você anda um metro e meio
tas de amor e se suicida, é esquecido em que, por exemplo, a do Décio, um de seus MARIÂNGELA – Muito. Diminuiu e esquece, você vai saindo e anda
cinco anos. Todos vocês sofrerão com modelos? Ele fez uma crítica programáti- o espaço do debate. A saída do Décio da muito com ele. É uma experiência
isso. As pessoas de teatro são mais facil- ca pela modernização no etilo TBC. De crítica e dos suplementos, em 1968, já que dura, ela entra na memória e
mente esquecidas que um objeto, que modo certo ou errado, ele tomou partido. foi uma cisão entre a universidade e o vai se misturando com outras. É
dura mais tempo. Com ele aconteceu É verdadeiro dizer que você é uma crítica jornal. Enfim, entre os intelectuais que uma coisa pessoal e delicada. Não
a mesma coisa. Chora-se uma semana que não encampou um projeto? pensam o mundo de uma maneira mais é para ir gastando assim o teatro.
pelo Paulo Autran. Logo se dirá: quem MARIÂNGELA - Verdadeiro. Eu geral, profunda, e o jornalismo. Acho E quando eu vou escrever, é o que
era Paulo Autran? Só vão se lembrar as também vejo isso nos meus compa- que começou lá. E acho que começou sobrou dessa memória.
pessoas que o viram, que tiveram aque- nheiros de geração, no Yan Michalski, no mundo inteiro, não foi só aqui não.
la experiência. E de qualquer modo, no Alberto Guzik, todos críticos que Os jornais franceses também se queixam Entrevista realizada por Felipe
a importância do Gerald Thomas é trabalharam ao mesmo tempo em que disso. Ao mesmo tempo começou uma Moraes, Gabriela Villen, Luiz
relativa. Para a história da encenação eu já não tinham essa necessidade. Em coisa que não existia antes. Uma produ- Gustavo Cruz e Sérgio de
é pequena, porque ele lida com coisas primeiro lugar porque o teatro brasilei- ção universitária com revistas, ensaios, Carvalho. Edição de Roberta
que a gente já conhece muito. Eu, que ro tinha atingido um patamar desejado teses. No jornalismo, ficou um vazio. O Carbone e Sérgio de Carvalho.

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BRECHT: POEMAS DO EXÍLIO
Apresentação e tradução de de teatro, destinadas em princípio ao Na fase inicial do exílio dinamar- Não obstante a urgência da hora,
Tercio Redondo público alemão. Nesse contexto de quês surgiram diversos poemas de- a vida do trabalhador não deixou de
confisco das possibilidades da expres- nunciando a tirania e os preparativos ser abordada na poesia de Brecht. O
Em 1933, logo após a ascensão são dramática, a lírica se tornou um para o assalto às nações vizinhas. autor dos Poemas de Svendborg sabia
de Hitler ao poder, Brecht deixou a meio privilegiado para dizer aquilo Nessa época o “milagre econômico” que, vencido o inimigo mais imediato,
Alemanha para onde voltaria apenas que, naquelas circunstâncias, ainda alemão, ancorado no esforço de pre- começaria novamente a dura luta pela
quinze anos depois. No país natal seus podia ser dito. Os oito poemas aqui paração para a guerra, era alardeado emancipação do proletariado. O poe-
livros foram retirados das bibliotecas traduzidos foram escritos durante esse pela máquina de propaganda nazis- ma “Discurso do camponês a seu boi”
e queimados em praça pública; no es- período, passado em sua maior parte ta na forma de um inusitado acesso trata da patética luta de um lavrador
trangeiro inexistiam as condições mí- na Dinamarca (1933-1939) e nos Esta- ao consumo de bens duráveis, do exaurido na tarefa de manter o animal
nimas para a encenação de suas peças dos Unidos (1941-1947). automóvel inclusive. A Alemanha que deveria sustentá-lo. No limite, en-
nazista, que havia engendrado seu contram-se ambos, homem e animal,
Ilustrações de Fernando Vilela para O Círculo próprio fordismo, produzia então o num mesmo patamar de indignidade
de Giz Caucasiano da Companhia do Latão. Volkswagen, o carro do povo. Brecht e impedimento à satisfação das neces-
logo apontou o engodo embutido sidades mais elementares da existência.
no brinde anunciado: “popular” na Igualmente paradoxal é a situação que
verdade era o blindado que levaria o se apresenta em “Fala de um trabalha-
trabalhador alemão à frente de bata- dor a um médico”: a doença que conso-
lha, como advertia o poema “Homem me o paciente é diagnosticada por ele
com o casaco puído”. A matança que mesmo. O clínico não pode diagnosti-
se avizinhava era tematizada também car e tratar com eficácia aquilo que, an-
nas estrofes da “Canção dos bandos tes de se revelar à lente do microscópio,
de estorninhos”. está patente no mísero salário pago aos
No plano das con- empregados de uma fábrica ou de uma
dições de uso da mina de carvão.
língua as agruras Em 1941 Brecht conseguiu um vis-
do escritor banido to de entrada nos Estados Unidos e
não se resumiam à foi para Los Angeles, onde pretendia
censura e à impos- escrever para o cinema. A decepção
sibilidade de aceder com Hollywood não tardou, e depois
diretamente a seu da guerra ele ainda teve de enfrentar as
público leitor e espectador. As difi- vozes da direita americana, que o con-
culdades de elaborar uma linguagem sideravam um enemy alien, um “alia-
lírica ou épico-dramática autêntica do” indigno de confiança. As “Elegias
tinham ainda uma outra face, que de Hollywood”, aqui apresentadas,
Paul Celan sintetizaria anos depois constituem um momento alto da lí-
ao expor cruamente sua situação de rica brechtiana; expõem em elevadís-
escritor germanófono: “Minha língua simo grau de concentração o funcio-
materna é a língua dos assassinos de namento da “máquina de sonhos” que
minha mãe”. A afirmação de Celan o poeta deparou nos estúdios cinema-
não apenas aludia ao assassínio de tográficos e nas mansões de Beverly
sua família nos campos de extermí- Hills. As elegias apresentam o quadro
nio nazistas, ela sugeria a ideia de um da iniquidade social reinante, o sexo
logocídio. mercantilizado e fetichizado, a boça-
O nazismo se apropriara da língua lidade dos “escrevinhadores” de rotei-
e a instrumentalizara esvaziando-a ros, gente bem paga pela indústria do
a ponto de torná-la virtualmente es- cinema para produzir obscenidades
téril. Era preciso ter muito cuidado culturais que Brecht e outros “emigra-
para escrever as coisas com clareza. dos” repudiaram.
Brecht não aceitava, por exemplo, “O retorno”, o último desta pe-
ser chamado de emigrante, denomi- quena seleção de poemas do exílio,
nação usual para os exilados alemães mostra o quão traumática foi para
que se espalhavam por toda a Euro- Brecht a experiência dessa década
pa. A precisão vocabular constituía e meia de vida forasteira. A própria
ingrediente importante na luta pelo perspectiva do reencontro com a Ale-
desmascaramento das mentiras do manha prestes a se render, evento que
fascismo; tornava-se parceira da lu- deveria suscitar a mais intensa felici-
cidez política. Em “Acerca do termo dade, transforma-se aqui em imagem
emigrantes” Brecht diz o que signi- funesta. O nazismo, afinal, não seria
ficava de fato viver em terra estranha derrotado sem antes garantir a com-
fugindo aos algozes de Hitler. pleta destruição do país.
DIE DAS FLEISCH WEGNEHMEN AQUELES QUE TIRAM A CARNE ANSPRACHE DES BAUERN AN DISCURSO DO CAMPONÊS A
VOM TISCH DA MESA SEINEN OCHSEN SEU BOI
Lehren Zufriedenheit. Dão lições de contentamento. (Nach einem ägyptischen Bauernlied, (Segundo uma canção de camponeses
Die, für die die Gabe bestimmt ist Aqueles que recebem as dádivas 1400 v. d. Zt.) do Egito, 1400 AC)
Verlangen Opfermut. Cobram espírito de sacrifício.
Die Sattgefressenen sprechen zu den Aqueles que se empanturram falam aos O großer Ochse, göttlicher Pflugzieher Ó, grande boi, divino puxador da
Hungernden famintos Geruhe, gerade zu pflügen! Bring die charrua,
Von den großen Zeiten, die kommen Sobre os grandes dias vindouros. Furchen Tenha a bondade de arar em linha reta!
werden. Aqueles que conduzem o Reich ao Freundlichst nicht durcheinander! Du Seja bonzinho
Die das Reich in den Abgrund führen abismo Gehst voraus, Führender, hüh! E não confunda os sulcos!
Nennen das Regieren zu schwer Dizem que governar é sumamente Wir haben gebückt gestanden, dein Você vai à frente, condutor, oa!
Für den einfachen Mann difícil Futter zu schneiden Nós nos curvamos para lhe cortar o
Para o homem comum. Geruhe jetzt, es zu verspeisen, teurer feno;
Ernährer! Sorg dich nicht Tenha a bondade de comê-lo,
MANN MIT DER HOMEM COM O CASACO Beim Fressen um die Furche, friß! dispendioso provedor de nosso pão!
ZERSCHLISSENEN JACKE: PUÍDO: Für deinen Stall, du Beschützer der Enquanto come, não se preocupe com
In den Textilfabriken Nas confecções Familie os sulcos, apenas coma!
Weben sie für dich einen Tuchrock Preparam-lhe um jaquetão de pano, Haben wir ächzend die Balken Arrastamos pesadas vigas para edificar
Den nicht du zerreißen wirst. E não será você que o rasgará. hergeschleppt. Wir seu estábulo,
Liegen im Nassen, du im Trockenen. Grande protetor da família! Deitamo-
Der du zur Arbeit läufst stundenlang Saiba você, que caminha horas até o Gestern nos
In zerfetzten Schuhen: der Wagen trabalho, Hast du gehustet, geliebter No molhado, você no seco. Ontem
Der für dich gebaut wird, hat Metido em surrados sapatos: o carro Schrittmacher. Você tossiu, amado pioneiro.
Eine Eisenwand nötig. Que se monta para seu uso tem Wir waren außer uns. Willst du etwa Quase enlouquecemos. Vai então
Uma blindagem de ferro. Vor der Aussaat verrecken, du Hund? Morrer à frente da sementeira,
cachorro?
Um einen Topf Milch für deine Kinder Para dar uma tigela de leite a seus filhos
Gießt du eine große Flasche, Gießer Você, fundidor, funde uma grande
Die nicht für Milch bestimmt ist. Wer garrafa.
Wird aus ihr trinken? Uma que não é feita para o leite. Quem
Vai beber dessa garrafa?

LIED DER STARENSCHWÄRME CANÇÃO DOS BANDOS DE


ESTORNINHOS

1 1
Wir sind aufgebrochen im Monat Partimos no mês de outubro,
Oktober Vindos da província de Suiyuan.
In der Provinz Suiyuan Durante cinco dias, sem qualquer
Wir sind rasch geflogen in südlicher desvio
Richtung, ohne abzuweichen E atravessando quatro províncias,
Durch vier Provinzen fünf Tage lang. voamos céleres para o sul.
Fliegt rascher, die Ebenen warten Voem rápido, as planícies estão à
Die Kälte nimmt zu und espera,
Dort ist Wärme. O frio aumenta e
Lá faz calor.

2 2
Wir sind aufgebrochen und waren Partimos num grupo de oito mil,
achttausend Vindos da província de Suiyuan.
Aus der Provinz Suiyuan Nosso número cresceu diariamente aos
Wir sind mehr geworden täglich um milhares à medida que avançamos
Tausende, je weiter wir kamen Durante cinco dias, atravessando
Durch vier Provinzen fünf Tage lang. quatro províncias.
Fliegt rascher, die Ebenen warten Voem rápido, as planícies estão à
Die Kälte nimmt zu und espera,
Dort ist Wärme O frio aumenta e
Lá faz calor.

3 3
Wir überfliegen jetzt die Ebene Sobrevoamos agora a planície
In der Provinz Hunan Da província de Hunan.
Wir sehen unter uns große Netze und Abaixo de nós observamos redes
wissen enormes e vemos
Wohin wir geflogen sind fünf Tage lang: Para onde voamos durante cinco dias:
Die Ebenen haben gewartet As planícies esperaram,
Die Wärme nimmt zu und O calor aumenta e
DerTod ist uns sicher. A morte é certa.
5SBVMJUPtOt+VMIP"HPTUPEFt 13
REDE EINES ARBEITERS AN FALA DE UM TRABALHADOR A ÜBER DIE BEZEICHNUNG ACERCA DO TERMO
EINEN ARZT UM MÉDICO EMIGRANTEN EMIGRANTES

Wir wissen, was uns krank macht! Sabemos o que nos deixa doentes! Immer fand ich den Namen falsch, den Sempre achei falsa a alcunha que nos
Wenn wir krank sind, hören wir Quando adoecemos, dizem man uns gab: Emigranten. deram: emigrantes.
Daß du es bist, der uns heilen wird. Que é você quem cura. Das heißt doch Auswanderer. Aber wir Ela diz respeito à gente que escolheu
Wanderten doch nicht aus, nach freiem mudar de país. Nós, porém,
Zehn Jahre lang, heißt es Sabemos que você Entschluß Não nos mudamos por livre e
Hast du in schönen Schulen Durante dez longos anos Wählend ein anderes Land. Wanderten espontânea vontade
Die auf Kosten des Volkes errichtet Aprendeu a curar wir doch auch nicht Optando por uma nova pátria. Nem
wurden Em belas escolas mantidas Ein in ein Land, dort zu bleiben, nos mudamos
Gelernt, zu heilen, und für deine Com o dinheiro do povo, e para esse womöglich für immer. Para ficar, se possível para sempre.
Wissenschaft conhecimento Sondern wir flohen. Vertriebene sind Pelo contrário, fugimos. Somos gente
Ein Vermögen ausgegeben. Despendeu-se todo um patrimônio. wir, Verbannte. expulsa, banida.
Du mußt also heilen können. Você é decerto capaz de curar. Und kein Heim, ein Exil soll das Land E o país que nos acolheu não é um
sein, das uns aufnahm. novo lar, é um exílio.
Kannst du heilen? Você é capaz de curar? Unruhig sitzen wir so, möglichst nahe Permanecemos inquietos, tão próximos
den Grenzen da fronteira quanto possível,
Wenn wir zu dir kommen Quando o consultamos, Wartend des Tages der Rückkehr, jede Aguardando o dia do retorno, atentos
Werden uns unsere Lumpen abgerissen Nossos trapos são rasgados kleinste Veränderung À menor mudança do lado de lá,
Und du horchst herum an unsern E você nos examina o corpo nu. Jenseits der Grenze beobachtend, jeden inquirindo
nackten Körper. Uma espiada em nossos trapos Ankömmling Com impaciência o recém-chegado,
Über die Ursache unserer Krankheit Diria mais Eifrig befragend, nichts vergessend und nada esquecendo e nada consentindo
Würde dir ein Blick auf unsere Lumpen Sobre a causa da doença. Uma mesma nichts aufgebend E não perdoando nada do que passou,
Mehr sagen. Dieselbe Ursache zerschleißt causa Und auch verzeihend nichts, was absolutamente nada.
Unsere Körper und unsere Kleider. Corrói nosso corpo e nossa roupa. geschah, nichts verzeihend. Ah, a momentânea tranquilidade não
Ach, die Stille der Stunde täuscht uns nos ilude! Ouvimos os gritos
Das Reißen in unserer Schulter O reumatismo de nossos ombros, nicht! Wir hören die Schreie Que nos chegam dos campos de
Kommt, sagst du, von der Feuchtigkeit, Diz você, é causado pela umidade, Aus ihren Lagern bis hierher. Sind wir concentração. Nós mesmos
von der Causadora também de uma mancha doch selber Nos tornamos quase rumores das
Auch der Fleck in unserer Wohnung em nossas casas. Fast wie Gerüchte von Untaten, die da iniquidades que vazam
kommt. Diga-nos portanto: entkamen Pela fronteira. Ao caminhar em meio à
Sage uns also: De onde vem a umidade? Über die Grenzen. Jeder von uns multidão,
Woher kommt die Feuchtigkeit? Der mit zerrissenen Schuhn durch die Trazendo os sapatos estropiados, cada
Menge geht um de nós
Zu viel Arbeit und zu wenig Essen Trabalho de mais e comida de menos Zeugt von der Schande, die jetzt user É o testemunho vivo da desgraça que
Macht uns schwach und mager. Fazem-nos débeis e magros. Land befleckt. macula nosso país.
Dein Rezept lautet: Diz a sua receita: Aber keiner von uns Mas nenhum de nós ficará aqui. Não se
Ihr müßt zunehmen. Vocês precisam engordar. Wird hier bleiben. Das letzte Wort proferiu ainda
Du kannst auch dem Schilf sagen Do mesmo modo você poderia dizer ao Ist noch nicht gesprochen. A última palavra.
Es soll nicht naß werden. junco
Que não devia se molhar.
Wieviel Zeit wirst du haben für uns? Quanto tempo terá para se ocupar de
Wir sehen: ein Teppich in deiner nós?
Wohnung Logo vemos: um tapete em sua casa
Kostet so viel, wie dir Custa tanto quanto o que recebe
Fünftausend Untersuchungen Por cinco mil consultas.
einbringen.

Du sagst wahrscheinlich, daß du Você provavelmente dirá que


Unschuldig bist. Der feuchte Fleck Não tem culpa. A mancha úmida
An der Wand unserer Wohnung Na parede de nossas casas
Sagt nichts anderes. Não diz outra coisa.

14 t 5SBVMJUPtOt+VMIP"HPTUPEF
HOLLYWOOD-ELEGIEN ELEGIAS DE HOLLYWOOD DIE RÜCKKEHR O RETORNO

I I Die Vaterstadt, wie finde ich sie doch? A cidade natal – como encontrá-la?
Das Dorf Hollywood ist entworfen nach O vilarejo de Hollywood foi Folgend den Bomberschwärmen Vou para casa
den Vorstellungen arquitetado de acordo com as Komm ich nach Haus. Seguindo os esquadrões de
Die man hierorts vom Himmel hat. representações Wo denn liegt sie? Wo die ungeheueren bombardeiros.
Hierorts Que aqui se fazem do céu. Gebirge von Rauch stehen. Onde está a cidade? Está
Hat man ausgerechnet, daß Gott Imaginou-se então que Deus, Das in den Feuern dort Onde as gigantescas montanhas de
Himmel und Hölle benötigend, nicht Precisando de céu e inferno, em vez de Ist sie. fumaça se avolumam.
zwei Projetar dois estabelecimentos, Ela é aquilo
Etablissements zu entwerfen brauchte, Projetou um único – o céu. Este serve, Que jaz no meio do fogo.
sondern Para os despossuídos e malogrados,
Nur ein einziges, nämlich den Himmel. De inferno. Die Vaterstadt, wie empfängt sie mich A cidade natal – como haverá de me
Dieser wohl? receber?
Dient für die Unbemilttelten, Erfolglosen Vor mir kommen die Bomber. Tödliche Antes de mim chegam os
Als Hölle. Schwärme bombardeiros. Esquadrões da morte
Melden euch meine Rückkehr. Anunciam-te meu retorno. Labaredas
II II Feuersbrünste de fogo
Am Meer stehen die Öltürme. In den Do mar se erguem torres de petróleo. Gehen dem Sohn voraus. Precedem teu filho.
Schluchten Nos desfiladeiros
Bleichen die Gebeine der Goldwäscher. Jazem os brancos esqueletos dos
Ihre Söhne garimpeiros de ouro. Seus filhos
Haben die Traumfabriken von Edificaram as fábricas de sonho de
Hollywood gebaut. Hollywood.
Die vier Städte As quatro cidades
Sind erfüllt von dem Ölgeruch Estão impregnadas do cheiro de óleo
Der Filme. Dos filmes.

III III
Die Stadt ist nach den Engeln genannt A cidade foi batizada em memória dos
Und man begegnet allenthalb Engeln. anjos,
Sie riechen nach Öl und tragen goldene Que são encontrados por toda a parte.
Pressare Recendem a óleo e usam pessários de
Und mit blauen Ringen um die Augen ouro
Füttern sie allmorgentlich die Schreiber E, com círculos azuis em torno dos
in ihren Schwimmpfühlen. olhos,
Durante toda a manhã alimentam os
escrevinhadores em suas piscinas.

IV IV
Unter den grünen Pfefferbäumen Sob a copa das pimenteiras
Gehen die Musiker auf dem Strich, zwei Os músicos fazem seu trottoir andando
und zwei de par em par
Mit den Schreibern. Bach Com os escrevinhadores. Bach
Hat ein Strichquartett im Täschchen. Tem um quarteto de cordas no bolso;
Dante schwenkt Dante remexe
Den dürren Hintern. O traseiro descarnado.

V V
Die Engel von Los Angeles Os anjos de Los Angeles
Sind müde vom Lächeln. Am Abend Estão cansados de sorrir. À noite,
Kaufen sie hinter den Obstmärkten Desesperados, compram atrás dos
Verzweifelt kleine Fläschchen mercados de frutas
Mit Geschlechtsgeruch. Pequenos frascos
Com cheiro de sexo.

VI VI
Über den vier Städten kreisen die Os caças da defesa aérea sobrevoam
Jagdflieger As quatro cidades mantendo-se em
Der Verteidigung in großer Höhe elevada altitude
Damit der Gestank der Gier und des A fim de que o fedor da cobiça e da
Elends miséria
Nicht bis zu ihnen heraufdringt. Não os empesteie lá em cima.

Tercio Redondo é mestre e doutor em língua e literatura


alemã, tradutor e professor da Universidade de São Paulo.
5SBVMJUPtOt+VMIP"HPTUPEFt 15
A BRUTALIDADE DO FATO
Desenhos de Cássio Brasil

“Abr iram-se-lhe em torno as


vestes, ampl amente, mantendo-a à
tona qual sereia, por instantes : ”

“E el a cantava trechos de
canções ant igas, como que
sem noção do transe que se
achava.”

16 t 5SBVMJUPtOt+VMIP"HPTUPEF
HAMLET, Ato IV, Cena VII – descrição da morte de Ofélia pela Rainha
(Tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos)

“Mas, em breve, as suas


vestes, já embebidas e
pesadas.”

“Levaram a infeliz, do
canto melodioso, para
a lodosa mor te.”

Cássio Brasil é cenógrafo,


figurinista e diretor teatral

5SBVMJUPtOt+VMIP"HPTUPEFt 17
CONVERSA SOBRE MÚSICA E TRADIÇÃO POPULAR
Por Lincoln Antonio e Walter Garcia

Dois compositores que já


colaboraram com a Companhia
do Latão desenvolvem
importantes pesquisas sobre Para: Walter
música popular brasileira. Assunto: Santo Antonio no Cariri
Lincoln Antonio é pianista, Data: 16/06/2010
compositor e produtor cultural, pro Santo que havia gravado numa festa
domingo em casa, ouvimos a ladainha
integrante do grupo A Barca. Santo Antonio foi calmo, passamos o 15 dias antes. Lá eles fazem uma festa
já tínhamos comemorado em Barbalha,
Walter Garcia é músico, em casa e assim foi. De certa maneira a festa do Pau da Bandeira. Os caras
de maio e vai até o dia 13. Começa com
pesquisador e professor da que começa no último fim de semana erada sobe em cima, um misto de sacana-
o, uma tora de 23 metros, e carregam por várias ruas, a mulh
Universidade de São Paulo. A pega m um tronc na alvorada, o dia amanhecendo, a
nem tanto... Mas quando chegamos ainda
parceria nas canções se estende gem e devoção ao Santo. Bem, devoção , tudo lembrou muito o clima de Lisbo
a
tadas com a imagem do Santo com flores
também à reflexão teórica: a cidade vazia, as casinhas antigas enfei cidade, e quando cheg amos já depo is da
nio nasceu em Lisboa, é padroeiro da
troca de correspondência que se que vimos no ano passado. Santo Anto alha esse fund o devociona l que ainda permanece ali
e
no ar. Achei muit o parec ido em Barb
segue decorre de uma viagem de ainda havia um clima patro cínio
festa soterrado pelo som altíssimo, o
uma cidade. Infelizmente isso tudo é
pesquisa de Lincoln ao nordeste que é sincero, delicado, mobiliza toda a, nessa questão da comida, havia ao menos
as
inho de calabresa (em Lisbo
do Brasil e tem como tema o de certa marca de cerveja e o churrasqu o que chegam e tocam em frent e à igreja
uém na alvorada, só as bandas de pífan
trabalho dos mestres populares. deliciosas sardinhas). Não tinha ning Mais tarde vão chegando outros grupos, o público,
. Nós tamb ém, fotóg rafos ...
ainda fechada, nós e alguns fotógrafos Mas não esperamos pra ver. Acompanhamos
cresce. Cresce até o insuportável.
vem gente de toda a região e a festa 3 da tarde e a gente estava desde às 5
da
trando no centro caímos fora. Já eram
um pouco o pau e quando ele ia aden
manhã. Taí, o Santo Antonio do ano.

Para: Lincoln.
Assunto: Entrevista
com Totonho
Data: 19/06/2010

Você falou do Santo


Antonio, lembrei da
vista que fiz com o festa do jongo em Gu
Totonho. Fui procu aratinguetá – Santo
marquei a data, 4/6 rar as fitas, são do Antonio, São João,
/2000. Achei junto tipo “microcassette”, São Pedro. Ainda nã
a tra nsc pra gra vad or de jorna lista. Se o passei pra você a
“Não são iguais as rição de algumas pa rá que ainda usam entre-
festas. A gente faz ssagens: esse gravador? Nas
muitos anos. Os no novos pontos, o qu fitas
ssos avós vêm preser e dá um a empolgação, um
eram em nagô. Ele vando. Nasceu na a afirmação, uma pre
s cantavam para os época dos escravos. ser vação do folclore.
Orixás, para socorr Só que nessa época O jongo, ele vem de
por meio de magia er do sofrimento. A era um ritua l um po
.” cantoria, que eles can uco mais diferente
“Jongo nada mais é tavam, era pra ating . As cantorias
que um combate, a ir o senhor de senzal
desabafo e uma ma arm a qu e o escravo tinha pra a, o capataz
gia. Esse folclore vem se defender. Ao me
“Jongo vem do bairr até ago ra e a gente procura pre sm o tem po , era uma louvação, um
o do Machadinho, ser var.” ritua l, um sofrimen
bairro aqui [Taman na serra. Depois, na to, um
daré] foi um fazendã Tamandaré, na Torne
o, um a fazenda de escrav irin ha . De pois, em frente à cas
“Nós usamos os no os. Tinha muita can a de uma jongueira
ssos versos e usamo a e aqui era um engen muito antiga. Este
mesmo! O peso da s também o lado esp ho.”
magia. O jongo é ass iritua l do povo pra
im , atr avé co mb ate r na rod
“(cantando) Compad s de demandas.” a de jongo. Pessoa vai fic
re cambará / Vai lá ando tonta, tonta,
cozinhá. Convidand em casa passeá / Me tonta e cai
o jongueiro pra dema u compadre cambará
nd a.” / Va i lá em casa passeá / Lá tem
“(cantando) Vovó, pra feijão-cavalo / Feijão
que tu qué o didá?/ -cavalo do duro de
defender? (cantand Olha que suncê, oi,
o) Eu já trouxe lá de já não sabe costurá!
casa / Agulha, linha Pra que cutucar os outro
Veio na folhinha de e carreté. Eu já vim s, se ela mesma não
Guiné. Caboclo.” de casa preparado pra sabe costurar, não sab
“Eu gostaria que o demanda. (cantand e se
jongo não chegasse o) Foi encomendado
arma. Nós que estam a findar. Que essa ger de Angola /
os dentro do jongo ação agora preser vas
, sabemos o perigo se e cultivasse uma
“(cantando) São Joã que é. A maioria do coisa saudável, não
o batizou Cristo / Cr s versos são cheios usasse o jongo mais
“(cantando) Santo An isto ba tiz ou João. Saudação a de segredos.” como uma
tonio é santo de mesa Xangô.”
“(cantando) A balan / São Benedito é san
ça de São Miguel / Pr to maior. Santo An
quem sou eu! Como a pesar um pecado me tonio tanto traba lha
é que o jongueiro vai u. Ninguém pode jul pro bem quanto pro
de gar ninguém. (canta ma l. Santo casamen
Eu sei, Lincoln, “fi sco brir quem sou eu? Só ndo) Nesse mundo qu teiro.”
ca faltando a melod Deus sabe quem sou em não peca? / Diz pri
E, no total, foram ia” , fic am faltando a voz do To eu , só Ele sab e o meu pecado.” meiro
duas horas de entre tonho e o batuque
vista. Quando eu dig que ele fazia, na me
ita lizar as fitinhas, sa ou na cadeira, co
lhe mandarei. Se é m a ponta dos dedo
que o mofo não inu s.
tilizou tudo.

18 t 5SBVMJUPtOt+VMIP"HPTUPEF
Anahí Santos
Para: Wa lter
ão
Assunto: Tradição e invenç
Data: 21/06/2010 ra. Não sei se
é mesmo uma grande figu
a. De algu ns pon tos dá pra adivinhar. E Totonho , vers os e melodias se
melodi r. Mesmo sendo tradição
de Totonho, quase ouço a blema da tradição popula
Quase consigo ouvir a voz o ele. E esse é um pro a esse pap el larg amente. Por
gue iro atu alm ent e que tenha tantos pontos com ciso inv ent ar tam bém . Totonho desempenh de
há outro jon
o criadora, renovadora, é pre as músicas “por inspiração
serv and o ao lon go do tempo, é preciso uma mã leva de toa das . Cad a boi , cada cantador prepara nov car nav al de
con João é uma nov a boi de Cururupu. Já no
hão cada temporada de São muita benção. Cantam num
outro lado, aqui no Maran o / Pedindo min has toad as / E dan do
tus de baque solto, os ma raca tus rur ais,
do/ eu sonhei com São Joã ertório, a não ser nos maraca
São João”: Eu tava dormin ocli nho exis te pouca novidade no rep
o, ma raca tu e cab
Pernambuco, com todo frev fixa. os, que se movem de uma
brin-
e o vers o é sem pre imp rovisado, não existe letra por um lado , há a per manência de melodias, vers s can tad ores
ond
e tradicional, tem essa dup
la característica: improviso, ou seja, os bon
A cultura popular, de bas ro lado , há a var iaçã o constante até o ponto do viol a. Em resu mo,
iação. De out dalidades da cantoria de
manecem com alguma var as complexas como as mo
cadeira pra outra, mas per improv isam a par tir de form u de var iaçã o, qua ndo não
transformam os versos ou sempre com certo gra
sempre variam a melodia, e con tinu ida de de form as, mas elas se apresentam car na par titu ra esta música. A
nal existe a permanência e ineficiência em colo
na música popular tradicio popular, daí a dificuldade
o. Ach o esta um a car acterística fundamental do inte rmi náv eis.
com alto grau de variaçã exata, e as variações são formalismo do mer-
teri a que dar con ta de todas as variações pra ser izar é que é a cois a, sobretudo face ao extremo
notação musica l em sist em atiz ar ou pad ron se esg ota. Essa conversa
o din âm ico da cult ura popular, essa dificuldade . Não é à toa que dur a pouco, logo se consome,
Esse traç o pronto, acabado, fechado
ontra todo o tipo de produt
cado cultura l onde se enc gos to demais, é um trecho d’
O Banquete:
icas do inacabado. As técn
icas
me fez lembrar um texto
do Mário de Andrade que
? Exi stem técn icas do acabado, como existem técn ma is aca bad a de
do inacabado psicologia do material a
mplo, do valor dinâmico que a escultura, que é por
“Você se esquece, por exe disc uss ão, e é por isso teat ro, que são as arte s
ente dogmáticas, afirmativa
s sem contrário: o desenho, o
do acabado são eminentem ais e reli gio sas de ant es da Idade Moderna. Pelo , (...) são arte s do ina cab ado,
ensinadora das artes dita
tori ão, o conselho, o convite
todas as artes, foi a mais esboço, a alusão, a discuss pela própria insatisfação
do
ure za, as ma is abertas e permitem a mancha, o par a o combate, há técnicas que
mais inacabadas por nat tem arte s ma is pro píci as mit e ma s exig e
ncionismo do combate. E
assim como exis a de combate, não só per
mais próprias para o inte (...) Tod a obr a de circ unstância, principa lmente . É din âm ico, enfi m.
itam o espectador e o põe
m de pé. é convidativo e insinuante
inacabado, ma ltratam, exc impositivo. O inacabado
âm icas do ina cab ado . O acabado é dogmático e
e din
as técnicas mais violentas
1
Arma o nosso braço.”
pp.61-2.
lo: Dua s Cidades, 1989,
O banquete. 2ª ed. São Pau
1 ANDR ADE , Mário de.

5SBVMJUPtOt+VMIP"HPTUPEFt 19
Para: Lincoln.
Assunto: A roda, a volta do
mundo
Data: 26/06/2010

Não faz muito tempo, na


biblioteca da universidade,
Vale. Veja a quadra, anotad reparei num livro que des
a de forma incompleta, que conhecia: Elementos de folc
o autor publica: A roda do lore musical brasileiro2, de
mim, tem dó. Como se trat mundo é grande / Nosso sam Flausino Rodrigues
a da 3ª edição, não sei se ba ind ’ é maió / (...) parang
ção feitas, em 1947, para os vers os já estavam na 1ª edição, publica a / Tem pena de
a 2ª edição. Seja como for, da em 1936, ou se entrara
cidade mineira”. E, nesse a quadra é cantada desde m quando da revisão e da
tempo e nesse lugar, cantava pelo menos a primeira me amplia-
-se com o fim de “invocar tade do século XX, a “du
Você certamente reparou o espírito de Pai Mateus”. as léguas de uma grande
de imediato, a quadra, ou
São José, de Pirapemas (M o que há dela, é bem sem
A), em 2004, e incluída na elhante àquela segunda par
caix a Trilha, Toada e Trupé d’A te de “Volta do mundo”,
mundo é grande / Os poder Barca 3: Eu vim salvar terr cantada pela Tenda
de Deus é maior. E a Juçara eiro / Tem pena de mim, tem
dó / A volta do mundo é gra Marça l não cantou, naquele dó / A volta do
nde / Os poder de Deus é ma show que vocês dois fizeram
que a Tenda São José can ior, que ela ouviu em Mi , São Benedito, tenha pena
ta. E, salvo engano da min nas, não foi? Agora, a mel de mim, tenha
ha memória, as duas melodi odia anotada por Flausin
modo, a forma dos versos, as tam bém são diversas daquela o R.V ale é diversa da
e variaram as entidades, var que a Juçara canta. Mante
Por outro lado, há uma pas iaram as melodias. ve-se, de certo
sagem em que o Luis da
do cacófato) Herskovits e Câmara Cascudo (Literat
de João Nogueira (não con ura oral do Brasil), apoian
fundir com o sambista), afir do-se em estudos de M.
Haiti e que trechos “de ópe ma que “uma canção de ma J. (não tenho culpa
ras ou canções ouvidas nos rcha francesa faz parte do
um outro ponto do Totonh teat ros” fazem parte de congos culto vodun” no
o: Tiraram coco do meu terr no Nordeste do Brasil.4 De
Totonho me explicou o sign eiro / Sacudiram meu bam maneira enviezada, isso me
ificado. Nem “coco” é “co bua l / Tir aram coco do meu terreiro lembra
mensagem cifrada, pra can co”, nem “ga lho” é “ga lho / Deixaram um galho no meu
tar um segredo como tan ”. Qu and o com pôs, ele se apoiou no que qui ntal.
O grande problema talvez tas vezes se dá no jongo. via concretamente pra cria
seja aquele mesmo, qua l o r uma
acuda da cerveja. Aí no Ma limite entre a experiência
ranhão, assisti a um Tambor do sujeito e o som ensurd
-de -Crioula muito bom, ainda ecedor, entre a vida comuni
o que se cantava, mas era que feito pra turista, no Cen tária e o deus-nos-
a reclamação de que não tro Histórico de São Luís.
falou rindo pra quem esta havia pau pra amarrar o Não guardei
va próximo: “Como não cav alo. Dep ois de um tempo, um dos homens
tem pau? Amarra o cavalo do grupo parou de cantar
2
nessa árvore!”. e
VALE, Flausino Rodrigu
es. Elem
entos de folclore musical bras
3
A Barca nasce em 1998 ileiro. 3ª ed. São Paulo: Ed.
da reunião de amigos em Naciona l/ Brasília: INL ,
à pesquisa, pelo norte, nor torn 1978.
deste e sudeste do país, das o de idéias como viagem, música popular, Brasil
Princesas e Trilha, toada tradições populares da mú e Mário de Andrade. A liçã
e trup é. sica brasileir a e ao registro dessa inve o do modernista levou o
4
CASCUDO, Luis da Câm stigação nos CDs Turista grupo
ara. Literatura oral do Bras aprendiz, Baião de
il. 3a ed. Belo Hor
izonte: Itatiaia/ São Paulo:
Edu sp, 1984, p. 46.

ar al
Renata Am

Para: Walter
Assunto: São João no Maranhão
Data: 30/06/2010
Mas hoje é véspera de São
entre si, embora com o mesmo tema.
a te falar de outra s ocorr ência s da “volta do mundo”, todas elas diferentes
Eu queri
de boi em Maracanã. em milhares de fogueiras por todo o Nord
este.
João e estamos saindo pra um batizado
ém de São João, que está no centr o das festas juninas, e pra quem se acend gener oso e empr esta
Depois eu queria falar tamb is brincarem. Mas o santo é
João tem um boizi nho, um boi predi leto, que o santo empresta pros bumba-bo
Aqui no Maranhão, São
Marçal, 30 de junho.
festa, e assim a brincadeira chega até São ral e o chapéu de vaqueiro
também pros outros santos fazerem sua . Estava com batina, mas sobre ela o peito
eu te conta ria do padr e que foi chamado pra batizar o boi de Maracanã tamb ém estam os porque temos a divindade
Daí, nós
eçou dizen do que não é só São João que está na glória, todos na bebida,
bordados como nos bumba-bo is. Com ja porque, recomendando a moderação
boi, porq ue só às pesso as cabe o batis mo, e poderia dizer que abençoou a cerve
dentro de nós. Benzeu o
, um remédio.
, dos beneditinos, com função medicinal canto e pela dança. Como
lembrou que a cerveja era invenção deles e lugar . Como o povo organiza o mundo pelo
is, eu queri a te dizer da festa popu lar como experiência de outro tempo hoje já é véspe ra de São Pedro, encontro
Depo
adeir as e, porta nto, se pode alcançar outra dimensão, outra realidade. Mas
o sagrado é a base de muitas brinc
pobreza e sua
de bois na capela. no Maranhão, em contraste com sua
que não há nada como a inten sidad e de uma festa popular. Ainda mais aqui socie dade . Todo mundo já
Por fim, eu diria e da
mundo bumba-boi como base da vida
Os mara nhen ses pode riam fazer uma pacífica revolução instituindo o
política. porque a boiada ainda está na rua!
preciso encerrar a conversa por hora,
tem sua matraca. Eu tenho a minha e

20 t 5SBVMJUPtOt+VMIP"HPTUPEF
Entrev ista com Manoel Rangel

Manoel Rangel é diretor presi-


dente da Ancine, Agência Nacional
O QUE FAZER COM O zar sua produção. Isso condiciona o
discurso, o tema, a forma de abor-
do Cinema. É pesquisador de cine-
ma dos mais ativos e politizados. CINEMA NACIONAL? dagem e o tipo de produto que vai
de encontro àquilo que os diretores
Foi um dos idealizadores do projeto de marketing das empresas estão
da Ancinav, aquele que tentou fa- esperando encontrar. Esse é um
zer avançar as relações produtivas editar a Sinopse, dedicada a uma defesa o debate das questões de distribuição, condicionamento importante. Evi-
no cinema nacional e foi derruba- radical do cinema moderno e uma in- da produção, do problema das leis de dentemente, isso não significa dizer
do numa batalha midiática, pelo terlocução mais ampla com as questões incentivo, do regramento que estava es- que é tudo igual, não significa dizer
lobby de produtores e artistas pre- da produção, também com o cinema tabelecido para a produção, a partir do que só houve um estilo de produ-
ocupados com seu livre acesso aos de massas, no sentido de um confronto pressuposto de que o ambiente de pro- ção. Mas significa estabelecer uma
fundos públicos. Nessa entrevista, com o material da indústria cinemato- dução também condiciona a estética. tendência dominante. Um segun-
realizada gentilmente no Estúdio gráfica, com as grandes produções de No campo cinematográfico isso é ainda do aspecto é que havia então uma
do Latão, ele debateu as contradi- Hollywood, entendendo que esses fil- mais forte do que no teatro. Há uma sensação no ar de que, durante os
ções de se fazer cinema no Brasil. mes também se prestavam a uma lei- limitação objetiva, que são os recursos, anos 1960 e 1970, um determina-
tura da sociedade e do tempo em que as condições, os meios para poder reali- do padrão estético de um discurso
TRAULITO – Nós tomamos vivemos quando bem analisados. zar, sempre de alta monta, funcionando dominante ligado ao Cinema Novo
conhecimento do seu trabalho como um limitador efetivo. impediu o florescimento de outras
muitos anos atrás, ao ler a Sinopse, TRAULITO – Em que sentido era formas de realização cinematográ-
uma publicação alternativa sobre essa defesa do cinema brasileiro mo- TRAULITO – Do ponto de vista fica. Quando você vai ver mesmo
cinema das mais inventivas. Você derno? produtivo, qual a diferença entre o cine- o que aconteceu nos anos 1960 e
pode comentar a experiência? RANGEL – Criticávamos o processo ma brasileiro da retomada e o anterior? 1970, isso não é verdade. Mas na-
MANOEL RANGEL – De de restauração do naturalismo e do aca- RANGEL – Há uma diferença bas- quele momento, de 1995, 1996, o
fato, a Sinopse foi muito importan- demicismo, sem os traços estéticos que tante profunda no modelo de como o grande lema daqueles que debatiam
te para mim e para um grupo de o cinema moderno legou em sua grande Estado organiza a relação produtiva. O o cinema no Brasil era uma espécie
pessoas que tiveram a oportunida- maioria. Ao mesmo tempo procuráva- ambiente do mercado se alterou radical- de banimento do debate estético.
de de iniciar a aproximação com mos uma reflexão sobre as questões do mente na esteira da criação da Lei Roua- Não se queria falar sobre os acertos,
o campo cinematográfico por vol- desenvolvimento da atividade cinema- net. Surge o fato de que o cinema precisa os erros, as repetições e as reitera-
ta de 1995. Fazendo a Faculdade tográfica no Brasil. Começamos a fazer sair em busca de empresas para viabili- ções desta produção da retomada.
de Cinema da USP, começamos Em favor do grande lema da diver-
Divulgação

a tomar contato com as idéais do sidade e da pluralidade do cinema


Paulo Emílio Salles Gomes, com brasileiro, não se deveria travar o
o trabalho do Ismail Xavier na corpo a corpo com os filmes que
crítica e na teoria, também com a eram feitos. Eu só menciono essas
atuação do Carlos Augusto Calil. coisas para dizer que esse era o cal-
Nesse momento, nós estávamos do de cultura que estava em torno
vivendo o período da chamada re- da Sinopse.
tomada do cinema brasileiro: é um
momento de exaltação e de euforia TRAULITO – Talvez por essa
da retomada, dentro de um mode- percepção sobre como o cinema se
lo de produção diferente do que liga a suas condições de produção
existia durante as décadas de 1970 é que você tenha sido chamado a
e 1980. Começam a se multiplicar trabalhar no governo.
as iniciativas dos festivais de cine- RANGEL – Isso é inevitável.
ma e, de algum modo, até por esse O sujeito não pode simplesmente
contentamento, havia uma espécie decidir: eu quero ser um profis-
de interdição de um debate crítico sional de cinema. Ele decide isso
e estético. Nós nos juntamos a par- e no dia seguinte ele é confron-
tir de um evento de homenagem à tado com como criar condições
produção crítica do Paulo Emílio, para fazer cinema no Brasil. Eu
logo depois produzimos um único produzi meu primeiro curta-me-
número de uma revista chamada tragem e logo fui convidado para
Balalaica, dedicada a ensaios so- ser da Associação Brasileira de
bre cinema. E finalmente vamos Deus e o diabo na ter ra do sol Documentaristas de São Paulo.

5SBVMJUPtOt+VMIP"HPTUPEFt 21
Neste movimento, acabei acom- depois devia ser ressarcido em primeira RANGEL – E da incapacidade in- A produção em série, o financiamento
panhando, em 2002, o processo mão, quando o filme fosse lançado no clusive de cumprir o seu objetivo pri- dessa produção, o esforço de comuni-
preparatório de discussão do pla- mercado. A Embrafilme nunca dava o meiro, de conseguir continuar girando cabilidade. Mas, ao mesmo tempo, ele
no de governo do Lula. Quando dinheiro a fundo perdido. Era um in- a manivela. Mas eu acho que a questão reivindica que isso deve ser orbitado por
Gilberto Gil foi convidado a ser vestimento com perspectiva de retorno, que está no cerne disso que você coloca um conjunto de produtoras que pre-
ministro, Orlando Senna foi con- dando a possibilidade de reaplicação. é o problema da escala de recursos que servem a autonomia intelectual, a au-
vidado a ser Secretário do Audio- eu preciso para viabilizar uma obra ci- tonomia estética dos realizadores. E se
visual e Leopoldo Nunes para ser TRAULITO – Quero fazer uma per- nematográfica. No cinema, muitos dos você for ver bem, aquilo que o Glauber
Chefe de Gabinete da Secretaria gunta um pouco ingênua, de quem não é avanços estéticos são respostas objetivas propugnou de uma indústria de autor,
do Audiovisual. Foi aí que me da área. Quem estuda a história do cine- à condição de fazer. Aquela maravilho- foi, de um jeito ou de outro, aquilo que
convidaram a ir para a Secretaria ma descobre que um filme como o Deus sa luz do Cinema Novo, a luz dura do aconteceu nos anos 1970 e 1980: a Em-
do Audiovisual, para atuar com e o diabo na terra do sol foi feito por uma sertão, a luz brasileira, é também uma brafilme cumprindo em tese o papel de
eles no desenho da política de au- equipe de sete pessoas, em condições do impossibilidade de meter filtro, ou de ter ser o elemento industrial.
diovisual no país. Este foi o meu que hoje se chama, depreciativamente, um galpão cheio de luz para reproduzir
salto para o governo. cinema de guerrilha. E que muitas obras condições artificiais. Esse diálogo, entre TRAULITO – O que eu vejo nor-
centrais dos anos 1960 foram feitas em as condições de produzir e o resultado malmente no debate é que em vez de se
TRAULITO – Como vocês condições precárias de produção, tendo estético dessa produção é o diálogo fun- tentar desenvolver um modelo adequa-
dialogaram com a Embrafilme, ela altíssima invenção estética. A questão
já estava extinta? ingênua é: um cinema de um país como
RANGEL – Já estava extinta a o nosso não devia custar menos? Por
cinco, seis anos. Mas da Embrafil- que sempre se fala na tal necessidade de
me que foi criada em 1969 à Em- uma indústria nacional cinematográfica
brafilme que o Collor extinguiu, quando o melhor que fizemos foi artesa-
nós tivemos várias Embrafilmes nal? Não há uma idealização desse mo-
de perfis diferentes. Uma primeira delo industrial, que no fundo interessa
convivia com o Instituto Nacional aos negociantes da área?
de Cinema e foi construída simples- RANGEL – O cinema sempre traz
mente para lidar com a exportação esse debate porque ou ele consegue ter
de filmes. Houve depois um gran- ferramentas para ocupar uma fatia im-
de momento, em 1975, quando se portante do mercado ou, sim, ele pode
decidiu juntar a Embrafilme com produzir obras de alta relevância estética
o Instituto Nacional de Cinema. e não conseguir ter um diálogo amplo
Era um grupo ligado ao Cinema com toda a sociedade. E assim não vai
Novo que assume o comando da conseguir criar as condições de susten-
gestão da política cinematográfi- tação de um conjunto de obras. Em
ca: eles tomam a decisão de criar geral, essas obras que foram feitas nos
uma distribuidora e logo depois o anos 1960, de alta invenção estética,
Concine, que cumpre funções de com equipes reduzidas, sempre foram
regulação do mercado. Ali se criou feitas em condições muito penosas. Al-
uma sinergia profunda, foi o pe- gumas em condições de alienação de
ríodo da Embrafilme mítica, que patrimônio pessoal, de hipotecar a casa
conseguiu elevar a participação de em que o sujeito mora, de tomar dinhei-
mercado para a ordem de 30, 35%, ro no banco e ficar pendurado. Certos
que conseguia demarcar território. desenvolvimentos da arte cinematográ- Gl auber Rocha
Você tinha cota de tela de quase fica foram conseqüência do esforço dos damental permanente da indústria cine- do à nossa condição periférica, o que se
150 dias de obrigatoriedade de fil- realizadores. Mas é preciso diminuir as matográfica. O Glauber, no Revisão crí- faz é postular um mercado imaginário,
me brasileiro nas salas de cinema. incertezas nesse território. E para con- tica do cinema brasileiro1, lá pelas tantas, com uma escala industrial inalcançável,
Esse período vai até 1981. tinuar rodando a manivela você precisa fala em uma indústria de autor. Ele está mas com a rede de segurança do Estado.
que parte da produção nacional tenha reivindicando, portanto, uma combina- Você entende?
TRAULITO – A Embrafilme bilheteria, constitua um gênero, encon- ção de instrumentos que permitissem RANGEL – Você está me dizendo:
produzia diretamente com dinhei- tre um jeito de se comunicar com um uma colocação maciça de obras cinema- alguém sempre coloca a necessidade da
ro de orçamento? grande público, de tal maneira que eu tográficas no mercado, que tivessem diá- indústria para poder sair da encrenca do
RANGEL – Não. A Embra- dou ao espectador a expectativa de que logo com o público e que conseguissem, cinema. Eu entendo. E sei que estou con-
filme botava dinheiro no projeto ele vai encontrar algo que ele já conhece. portanto, gerar as receitas necessárias tornando a questão. Mas se eu não con-
como co-produtora. Ela financiava Portanto, eu tenho um potencial a mais para continuar realizando, reconhecen- sigo te dar uma resposta mais precisa é
o produtor. O dinheiro da Em- de levá-lo à sala de cinema. Esse é o pa- do a necessidade de instrumentos indus- porque no fundo o desafio é o seguinte:
brafilme ia na forma de participa- drão lá de fora. triais, ou seja, de uma distribuidora que como é que você faz filmes que se comu-
ção nos resultados, de compra de agrupe todo mundo e lance no mercado. niquem de maneira maciça? O problema
um pedaço do filme. E uma outra TRAULITO – Até o limite da dilui- é se comunicar de maneira maciça. É o
1 ROCHA, Glauber. Revisão crítica do cine-
parte ia a título de avanço sobre a ção completa, do estereótipo e da mer- desafio de falar com milhões. Porque se
ma brasileiro. Org. Ismail Xavier. São Paulo:
distribuição. Era um dinheiro que cantilização total da forma... Cosac Naify, 2003. eu não tenho filmes que estejam buscan-

22 t 5SBVMJUPtOt+VMIP"HPTUPEF
do falar com milhões, eu não consigo en- prazo, ele atua no tempo. Uma obra o esforço que o estado brasileiro tem clara a idéia, você acha que, diante
trar no mercado, eu não consigo entrar de 15 mil ecoa em outras obras, em hoje em relação à atividade cinemato- da ameaça do capitalismo externo, é
na sala de cinema. Eu não consigo ser dis- outros cineastas. Um bom teatro, gráfica: nós queremos que exista, no preciso que o Estado ampare o nos-
tribuído. Porque o território está ocupado como foi o Arena de pouco mais de ambiente da cinematografia brasileira, so mercado de cinema. É isso?
pelo produto estrangeiro. É um processo 100 lugares, se irradia por gerações. filmes de grande capacidade de co- RANGEL – No estágio em que
tenso, mas se você olhar no passado, em RANGEL – Eu vou me aventurar municação com o público e filmes de nós estamos, sim. É preciso que o
obras como Xica da Silva, também há um no território que vocês dominam pro- alta relevância estética. O que nós não Estado alavanque essas produções.
esforço de comunicação e de invenção. fundamente. Mas o esforço da comédia queremos são os filmes que não sejam No caso do cinema eu não tenho
Bye bye Brasil, também é um esforço do no Brecht não é o esforço de se comu- nem uma coisa nem outra. Só que tem dúvida alguma sobre isso. Eu não
Cacá Diegues nessa direção. O Eles não nicar em larga escala, maciçamente? um outro problema, que é o seguin- estenderia isso automaticamente a
usam black-tie do Leon Hirszman tam- te: eu estou disputando um mercado todas as artes. Porque o problema é
bém é um esforço nessas duas chaves. TRAULITO – É, mas sempre com com uma produção estrangeira que o seguinte: o meu adversário direto
sofisticada elaboração poética, forma vem largamente ancorada por ter o é um gigante que controla o merca-
TRAULITO – É que o critério da experimental, atitude dialética radical, mercado mundial como combustível. do em 150 países. E que não precisa
comunicabilidade em abstrato pode complexidade política… Então, estamos disputando com o ca- que o filme dele se pague inteira-
dar no elogio do consumível, do pa- RANGEL – Ou seja, ele é um ar- pital norte-americano, com essa força mente no mercado em que ele se
latável, do já visto – tudo o que define tista que conseguiu dominar a tensão, de diluição de custos, sabendo que ela originou, o norte-americano. Mas a
questão é estimular uma continui-

Divulgação
dade. Foi por isso que construímos
o Fundo Setorial do Audiovisual:
ele põe o recurso no filme, mas
não é a fundo perdido. Quando o
filme ganha, ele alimenta o fundo.
Eu vou te dar um exemplo: o Chico
Xavier, do Daniel Filho, que já ba-
teu 3 milhões de espectadores essa
semana. O Fundo Setorial investiu
nesse filme e tende a recuperar todo
o dinheiro investido. Então essa é a
operação que eu entendo que é de-
sejável para o cinema brasileiro. Um
filme ajuda a pagar o próximo.

TRAULITO – Acho que você


entende nossa insistência. Há mui-
tos anos admiramos seu trabalho
como crítico entusiasmado pela
herança do Cinema Novo e nossa
conversa agora acontece com o ges-
tor do governo Lula. Aprendemos
vendo você lidar com essa contra-
dição. Só estamos querendo ouvi-lo
argumentar sobre isso.
RANGEL (rindo) – Deixem-me
a forma mercadoria. Não é preciso ser centrou a sua obra em uma determina- tem estruturas muito fortes de coloca- abrir um parêntese. Esta conversa
nenhum xiita do cinema autoral para da forma de se comunicar, para atingir ção dos seus produtos no país. para mim é muito prazerosa...
perceber que esse critério da comuni- um objetivo complexo, mas ao mesmo
cabilidade quase sempre resvala em tempo conseguir dar larga penetração. TRAULITO – Como são essas es- Optamos em desligar o gravador.
facilitação mercantil. truturas? Mais tranquilamente, falamos ain-
RANGEL – Ele é perigoso, como é TRAULITO – Na verdade, a maior RANGEL – São corporações de mí- da, um bom tempo, sobre a Ancinav,
perigoso viver. Mas aí você deve olhar parte da obra dele foi feita para o futuro, dia que operam no mundo inteiro: a a batalha perdida. Sobre correlação
pelo outro lado, pelo lado dos artistas escrita no exílio, longe dos palcos. Sony, a Paramount, a Universal, a Fox, de forças. E sobre militância política
mais radicais, que imaginaram a sua RANGEL – Ok. Mas a própria tur- a Disney e a Warner. E todas elas têm em tempos adversos.
arte como um instrumento de inter- ma do Cinema Novo fez a reflexão ob- estrutura de financiamento no sistema
venção na realidade, e que tiveram um jetiva de que seus filmes foram vistos bancário americano. Por outro lado, Entrevista realizada por Adriana
propósito político de intervir no mundo. por muito pouca gente. Eles sabiam você tem um mercado brasileiro que é Mendonça, Ana Petta, Helena
Para eles, de que adianta falar com 10 do valor das obras, mas reconheciam muito pequeno, com apenas 2.100 sa- Albergaria, Luiz Gustavo Cruz,
mil, com 15 mil pessoas? esse limite. O problema geral a que las de cinema. Só para se ter uma idéia, Maurício Braz, Renan Rovida
temos que dar resposta é outro: como o México ainda hoje tem 4.500 salas. e Sérgio de Carvalho. Edição
TRAULITO – Mas o cinema não ter uma atividade cinematográfica em de Felipe Moraes e Sérgio de
fala só no imediato. Ele fala no longo território nacional? Eu diria que esse é TRAULITO – Então, só para deixar Carvalho.

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S I M ÃO , O S A PAT E I R O

(Um f rag mento)

Na ágora de Atenas, ele produzia sandálias, consertava


cadarços, conforme os jeitos dos pés e o desgaste das
pedras. No tempo da Democracia dizia cobrar um preço
justo. Era famoso não por essa impalpável medida, mas
pela habilidade de modif icar a matéria-prima conforme
sua qualidade, conforme as necessidades que lhe fossem
trazidas. Simão, o sapateiro, quando justiça se discutia,
tinha para si saudades da Tirania, devido a algumas
convicções íntimas que os homens acreditam serem
políticas. Mas Simão, comerciante do próprio trabalho,
notava no dorso dos dias, que os homens gastam mais
suas solas no vai e vem escarpado da ágora democrática,
nos desembarques dos portos, nas praças em gritaria.
Simão conheceu Sócrates. Dele ouviu a palavra f ilosof ia
enquanto esticava o couro por meio de duas presilhas.
Fragmento de Giácomo Soderini, poeta italiano do século 18.
Integra o caderno Epístolas a Helena, Pádua, Oficina Dalforno, 1996.

Tradução livre de Sérgio de Carvalho

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