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Lilian N. Nakahodo
(UFPR- bolsista CAPES)
Resumo: Neste artigo examino noções de cartografia e mapas com referência ao pensamento de Deleuze e Guattari,
explorando as conexões com a cartografia de origens geográficas e tradição visual, articuladas em particular através da
noção de mapear de Edward Casey. Faço isso para então refletir como essas noções podem estar incorporadas nas
poéticas sonoras de composições que utilizam sons do mundo-real. Projetos que se denominam “mapas sonoros” e
obras de Barry Truax, Teri Rueb, Janet Cardiff e Christina Kubisch compõem essa reflexão.
Abstract: In this article, I examine notions of cartography and mapping processes with references to the thought of
Deleuze and Guattari, exploring the conections with the mapping from geography origins and visual tradition,
articulated in particular through mapping notions by philosopher Edward Casey. I do that to then reflect how these
concepts might be incorporated in sound poetics of certain compositions that use real-world sounds. So called “sound
maps” projects, as well as workings by Barry Truax, Teri Rueb, Janet Cardiff and Christina Kubisch are part of this
investigation.
Introdução
En aquel Imperio, el Arte de la Cartografía logró tal perfección que el Mapa de una sola Provincia ocupaba toda una
Ciudad, y el Mapa del Imperio, toda una Provincia. Con el tiempo, estos Mapas Desmesurados no satisficieron y los
colegios de cartógrafos levantaron un Mapa del Imperio, que tenía el tamaño del Imperio y coincidía puntualmente con
él. Menos adictas al estudio de la cartografía, las generaciones siguientes entendieron que ese dilatado Mapa era Inútil y
no sin Impiedad lo entregaron a las Inclemencias del Sol y los Inviernos. En los Desiertos del Oeste perduran
despedazadas ruinas del Mapa, habitadas por animales y por mendigos; en todo el País no hay otra reliquia de las
Disciplinas Geográficas.
Jorge L. Borges, Del rigor en la ciencia1
O mapa que Borges nos retrata sugere uma representação tão perfeita da realidade que
coincide com a própria realidade. A crítica inscrita na história do escritor pode ser emprestada para
descrever um caminho em direção ao rigor científico que busca a imagem “fiel” do mundo,
percorrido sem o charme da abstração capaz de criar e transformar a realidade. Sob influência de
Deleuze e Guattari, poderíamos retratar essa estrutura 1:1 como um extremo decalque, uma
redundância mimética da realidade oposta à noção de mapa2 dos filósofos franceses. Entretanto, a
história de Borges ilustra pela ironia o poder retórico dos mapas e o encanto que a cartografia
Assim estabelecido o tema, o objetivo deste artigo é discutir a cartografia e o mapa como
noções incorporadas na poética de obras e práticas que trazem à reflexão uma escuta subjetiva do
mundo. Trago para esta discussão o quadro conceitual da cartografia como “método” de
investigação rizomático 3 focado no processo, conforme uma linha de práticas investigativas nas
ciências e nas artes que se inspiram fortemente no pensamento de Guattari e Deleuze. Essa
discussão engaja, em contraponto, com as teorias cartográficas enraizadas numa tradição visual de
(Cosgrove 2005) -, ou seja, questionando menos a sua natureza e significação e centralizando na sua
função e seus efeitos no mundo. Nesse âmbito, presta-se ao objetivo a criteriosa seleção de textos
influentes das principais correntes cartográficas de 1940 à 2010, editada por Dodge, Kitchin e
Perkins (2011) em The Map Reader4. Em vista à constatação de uma lacuna do tema em relação à
poética sonora, intuindo-se ao mesmo tempo uma omni-presença do caráter cartográfico nas em
certas composições que abarcam os sons do mundo-real, neste artigo pretendo iniciar uma discussão
através da abordagem dessas obras que engajam a escuta do ambiente e projetos que concebem uma
ideia de mapa sonoro. Tal abordagem dialogará com as reflexões de Edward Casey e Katharine
3 O Rizoma é um modelo epistemológico difundido por Deleuze e Guattari, que emprestam da botânica a
imagem de uma estrutura vegetal em que as ramificações partem de qualquer ponto, ou seja, sem uma
estrutura hierárquica sucessiva e central. Rolnik assim define: “os sistemas em rizoma [...] podem derivar
infinitamente, estabelecer conexões transversais sem que se possa centrá-los ou cercá-los” (Rolnik 2010,
387).
4 Essa ampla compilação nos mostra uma historiografia da produção e da leitura dos mapas que se engaja e
se enrique com diferentes filosofias científicas no curso do tempo e dos contextos culturais, entrando pela
geografia e revelando afinidades principalmente com as teorias cognitivas, comunicacionais, críticas e sociais.
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Cartografias como método de investigação
No Catálogo de mapas críticos compilado por Diana Alonso, a autora nos apresenta uma
gama de práticas cartográficas de artistas contemporâneos que utilizam os mapas para apresentar os
resultados obtidos nos seus processos investigativos (Alonso 2010). Segundo a ICA - Internacional
Cartographic Association, é notável tanto a gama de estudos das ciências humanas que endossam a
proliferação do uso da cartografia nas pesquisas científicas de fenômeno social como “método” de
investigação. Tais práticas investigativas são reflexos pálidos do racionalismo cartesiano, no qual a
cartografia era uma escola envolta no cientificismo baseado nas práticas de “classificação,
quantificação e instrumentação para assegurar a verdade dos seus registros visuais e representações”
(Cosgrove 2005). Nesse panorama da virada do milênio, entretanto, estão refletidas as noções
e mudam o foco para um mapear que enfoca em processos. Algumas dessas noções, baseadas em
Dodge, Kitchin e Perkins (2011), podem ser sintetizadas nas seguintes afirmações: i) os mapas não
representam a realidade, mas têm um papel ativo na construção social dela; ii) os mapas operam
funcionalmente na visualização do invisível à medida que se interage com seus signos; iii) os mapas
são objetos mutáveis cujos significados emergem de práticas sócioespaciais; iv) os mapas precedem
5 O “lugar” é um conceito da geografia humanista associado aos espaços físicos que preenchemos com
julgamentos e afetos através da experiência (Tuan 1983)
6 Fonte: Art & Cartography: Comission of the International Cartograhic Association - http://
artcarto.wordpress.com
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Da perspectiva investigativa, reflexões como as apresentadas nas Pistas do método da
7
cartografia propõem uma metodologia cartográfica que se constrói caso a caso pelo
realidades (Kastrup, 2009, 32; Passos e Eirado, 2009, 124). As “pistas” para a prática cartográfica aí
invés de regras e procedimentos metódicos a adotar (Kastrup 2009, 14). Objetiva-se, desse modo,
se dá pela conexão de redes rizomáticas8 a partir de pontos múltiplos e não hierarquizados. Nessa
dimensão, o ethos da pesquisa declara uma afinidade teórica ao pensamento de Gilles Deleuze e
Félix Guattari ao operar por um “plano do diferir” (Kastrup 2009, 10), afinidade que ecoa pela voz
hábil e influente de Suely Rolnik, uma das principais articuladoras do método cartográfico no Brasil.
Em sua cartografia, Rolnik circunda em torno das estratégias de formações do desejo em qualquer
autora se refira aos mapas como uma “representação estática” que se distingue da cartografia - esta,
paisagem”. Talvez essa distinção que hierarquiza conceitos - e que, de um ponto de vista pessoal,
contribuição ontológica dos mapas enraizadas numa tradição perceptiva de comparar territórios.
Para o cartógrafo, Rolnik continua, “teoria é sempre cartografia – e, sendo assim, ela se faz
juntamente com as paisagens cuja formação ele acompanha [...] Para isso, o cartógrafo absorve
matérias de qualquer procedência. [...] Tudo o que der língua para os movimentos do desejo, tudo o
que servir para cunhar matéria de expressão e criar sentido, para ele é bem-vindo. Todas as entradas
são boas, desde que as saídas sejam múltiplas” (Rolnik, 1989, 2). Em Micropolítica: cartografias
8Segundo Deleuze e Guattari, uma das características dos rizomas é seu princípio de conexão e
heterogeneidade: “qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo. É muito
diferente da árvore ou da raiz que fixam um ponto, uma ordem (Deleuze e Guattari 2000, 14).
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do desejo, Rolnik e Guattari apresentam um livro produzido com esse impulso cartográfico, cujo
preparo absorve e engendra materiais de procedência diversas 9 que “como qualquer outra
cartografia [...] trata-se da invenção de estratégias para a constituição de novos territórios, outros
O conceito de mapa apresentado por Deleuze e Guattari nos anos 80 é uma influência
notória não somente no pensamento metodológico cartográfico como aparenta ser uma citação
pela cartografia. Na concepção dos pensadores, a cartografia surge como um princípio do rizoma,
que não buscam estabelecer um caminho linear para atingir um fim. O que as práticas investigativas
por esse viés apresentam em comum é, portanto, um paradigma de percurso investigativo que se
vale da multiplicidade de pontos de partida e caminhos que se conectam, contra uma forma
Seriam mapas-rizomas que Deleuze e Guattari concebem (“não há diferença entre aquilo de que um
livro fala e a maneira como é feito” (2000, 11), em que a produção é o processo e o
9 Segundo Rolnik, Micropolítica é uma cartografia que traz a marca dos agenciamentos que o geraram: o
Brasil de 1982 e os acontecimentos ocorridos durante os três anos de elaboração do livro, impulsionados pela
visita de Guattari ao país. O livro é organizado em temas, cujos textos também são cartografias construídas por
fragmentos de “blocos de idéias, depoimentos de Guatari, falas de outras pessoas ou da autora, textos de Guattari e de
Rolnik escritos no decorrer do preparo do livo, e correspondência entre Guattari.
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Cartografia e mapa nas artes
categorias hegemônicas de representação das cidades 10. Ruth Watson, artista cartográfica, sugere
Deleuze e Guattari em 1987, paralelo à proliferação da map art nos anos 1980, indicam uma
‘representação’ bem sucedida pelos filósofos franceses para o que muitos artistas já vinham
expressando na década anterior. É a partir dessa época que um número expressivo de artistas
visual11, engajados em maior ou menor sentido com a noção geográfica de mapas, de acordo com a
autora (2009, 297). Watson atribui à série de mapas intitulada Mappa, de Alighiero e Boetti (1971),
como ícone para representar as mudanças do mapear na arte, por revelarem como a resposta aos
mapas havia mudado com o passar do tempo. Já o filósofo Edward Casey atribui à Robert
Smithson o emblema de precursor das praticas artísticas fora das galerias, que se engajariam com o
ambiente ou a geografia, sublinhando a importância das bases conceituais decorrentes das suas
land art nos anos 60 (Watson 2009, Casey 2005). De acordo com Watson, as práticas artísticas
atuais12 são motivadas por outros quadros conceituais e preocupações culturais, diferente daquelas
dos land artists das décadas anteriores. Artistas que usam a cartografia na arte contemporânea,
continua, estariam explorando novas metodologias que, no geral, representam um afastamento dos
10 Através de práticas como as derivas, por exemplo, Guy Debord pervertia a ótica tradicional da perspectiva
de “olho-de-pássaro” dos mapas, para um modo de vivenciar a cidade - mapeá-la - através de caminhadas
arbitrárias, por uma perspectiva marginal, “de baixo” (Cosgrove 2005)
11 Para saber mais sobre essas práticas (como o trabalho de Katherine Harmon, de 2003, intitulado You are
here: personal geographies and other maps of imagination, e a edição Map as Art: contemporary artists
explore cartography, que Harmon e Gayle fizeram em 2009), ver o catálogo de Diana Alonso, Catálogo de
Mapas Críticos, 2011.
12 Para uma lista de obras contemporâneas de map art, ver o artigo de Watson disponível em
http://www.academia.edu/491148/Mapping_and_Contemporary_Art
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mapas como imagem - no sentido associado aos problemas de representação - e vão em direção ao
mapa como evidência de uma investigação, ao mapear enquanto processo (Watson 2009, 299, 303).
Uma das mudanças que emergem dessas metodologias é a importância atribuída ao leitor-
adotavam uma postura ativista com nuances sociais, os artistas conceituais da década de 80 abraçam
a idéia de mapas como processos mas também objetos, enfocando em “metodologias teóricas de
2005).
Casey, em sua investigação para repensar a arte como forma de mapear 13, distingue quatro
maneiras básicas de mapeamento de qualquer natureza14 (2005, xxi). Explico resumidamente cada
geografia, sua estrutura, sua extensão mensurável; ii) Mapear para: implicaria em um objetivo
lugar a outro, sem preocupação de exatidão cartográfica; iii) Mapear com/no: se os dois tipos
anteriores de mapas procederiam por indicação, este procederia por simbolização e representação.
Ao invés de uma porção geográfica, o que seria mapeado era a experiência individual, ou seja, o
modo como um indivíduo experimenta o mundo conhecido: o enfoque passa de como chegar em um
ponto ou onde se está, para como se sente ao estar lá. Mapear um lugar, dessa forma, seria re-
presentar em um meio específico o que é estar nesse lugar, de uma maneira corporalmente
concreta.; iv) Mapping out: nesse perspectiva, sublinha-se o papel do corpo vivo na criação das
13 Case, em Earth-mapping: artistas reshaping landscaping, trata o tema através da discussão do trabalho
de artistas contemporâneos que apresentam uma sensibilidade especial para formas românticas de
casamento entre o mapear e pinturas (ou outras obras) de paisagens.
14 Os tipos de mapear são traduções minhas para mapping of, mapping for, mapping with/in e mapping out.
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Mapas e Cartografia sonora
Os mapas têm sua origem numa tradição visual de projetar o mundo. Reconhecemos
facilmente um mapa quando vemos um. No entanto, quais elementos nos fariam relacionar a um
mapa quando ouvimos um? Se os mapas são inerentemente visuais, é possível engajar a escuta para
uma “leitura” cartográfica? No outro “lado” do processo de leitura, como expressar em sons a
campo sônico o mapear das experiências dos lugares? São questões que se afinizam com o
pensamento pós-representacional da virada do milênio. Por essa perspectiva, o foco das reflexões
passam de uma preocupação com o que os mapas representam e significam, para como os mapas
trabalham e seus efeitos no mundo (Dodge, Kitchin e Perkins, 2011). Para poder respondê-las,
algumas relações com o campo visual enriquecem a reflexão. Como nota Katharine Norman, é
natural que a maioria dos mapas que se vê sejam representações que nos dizem o que procurar com
o olhar, já que pontos de referência (landmarks) são estáveis e em termos humanos, duráveis;
enquanto que os marcos sonoros15 são efêmeros, tendem a mudar com mais rapidez ao longo do
tempo (Norman 2004, 2-3). E então, se a visão faz seu trabalho de interceptar o mundo com muita
eficiência e rapidez, se a vida é um “panorama que roda em torno da visão”, pra que confiar num
meio sonoro como modelo conceitual de realidade? Concordo com Norman ao alegar que o mundo
projete o mundo com o caráter seletivo das imagens. Mas se o mundo pode parecer mais preciso e
específico pela visão, emprestaremos de Tuan a idéia de que é mais amplo e poético pelos ouvidos,
no que somos mais sensibilizados pelo que ouvimos do que pelo que vemos segundo o geógrafo
(2012, 22, 25). Através da escuta mapeada - como territorializamos o mundo pelos ouvidos -
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nossas tentativas de mapear o território criam um palimpsesto imaginativo através do qual
revelamos tanto sobre nós mesmos quanto o mundo que tentamos descrever” (Norman 2004, 4). A
afirmação poética de Norman poderia ainda ser ampliada, pois nessa revelação, não somente um
Várias iniciativas de mapeamento sonoro passam a ser encontradas a partir do ano 2000,
como o “London Sound Survey”, “Montréal Sound Map” e o “Open Sound New Orleans”,
projetos que disponibilizam uma coleção via website de gravações de campo realizadas nos
Fernando de Noronha, de 201318. Em todos esses projetos e inúmeros outros, os mapas sonoros
geralmente refletem um pensamento documental, concebidos como uma espécie de museu para
abrigar sons que seriam, de modo geral, significativos para a memória coletiva ou singulares. Em
uma perspectiva museológica, a idéia de um banco de sons importantes para se preservar a memória
coletiva é válida só até certo ponto, se lembrarmos que um signo sonoro é sempre ambíguo e sua
patrimoniais instáveis. Assim, o sino da catedral mais antiga pode facilmente ser colocado em uma
redoma e ser preservado como um patrimônio histórico ou cultural. Porém, seu simbolismo sonoro
pode se relacionar à várias formas aurais, como o alcance acústico que retrata mudanças na
paisagem, um modo específico de soar em datas especiais, etc. Gravar um som não implica em
preservar esse símbolo sonoro; entretanto, o ato de escutá-lo, mesmo através de um contexto
“museológico”, poderia fortalecer ou criar certas referências acústicas que participam da construção
de territórios na memória. Por uma perspectiva cartográfica, portanto, esses projetos se relacionam
16 Esses projetos funcionam como uma documentação sonora colaborativa de marcos sonoros, eventos e
situações de interesse, cuja tecnologia utilizada permite associar metadados localizacionais das amostras.
17 Disponível em: http://culturadigital.org.br/project/mapa-sonoro-do-estado-do-rio-de-janeiro.
18 O objetivo declarado do projeto é “construir um mapa sonoro e fotográfico de Pernambuco, dedicando-se a
formação de um banco de dados sobre as características sonoras e imagéticas singulares do Estado”. Fonte:
http://museumurillolagreca.com.br/?p=745
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à maneira mais convencional de mapear, de projetar espaços por modelos representacionais,
concebendo os mapas como artefatos culturais que utilizam certas convenções. No campo visual,
tais convenções projetam uma vista de cima para baixo sobre um plano, uma aplicação consistente
de redução em escala (Dodge, Kitchin e Perkins 2011), e “passos retóricos” em todas as etapas da
‘simbolização” (Harley 2011). Nesses mapas sonoros, incluem-se as mesmas etapas retóricas de
produção, porém num eixo temporal de redução (cujas proporções escalares poderíamos
sonora direcional, transmitida geralmente pela panorâmica 180o dos sistemas estereofônicos.
explorados pela escuta, essas gravações de campo são representações ambíguas: gravar implica em
mediar e aplicar um discurso de tempo e lugar, mesmo que não intencionado; implica em escolher e
interferir. Esses mapas refletem, em suma, o que Casey designa por fazer o mapa de um lugar
(mapping of), em suas tentativas de capturarem os sons que “retratam” um lugar geográfico. Mas
não seriam os melhores mapas para se viajar: são mapas que talvez pretendam, mas não abstraem a
realidade para mostrar como se sente ou como se é estar ou fazer parte de um lugar.
Outra categoria de obras que apelam para a escuta similar à essa concepção de mapa, seriam
certos registros e composições de paisagem sonora. Sublinho aqui essa diferença ao notar que
muitas dessas obras se auto classificam como soundscape, relacionado na ecologia acústica de
Schafer tanto à composição quanto à própria paisagem “real”; e o são, na medida em que sempre há
Entretanto, tais registros de paisagem sonora se configuram comumente como uma prática
documental de capturar sons quando se está um ambiente novo e instigante, pelo “exotismo” ou
simplesmente para se guardar como uma cópia fragmentada da realidade - postura que também me
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incluo. São amostras do que Isaac Sterling chama de fonografia 19 , cujo encanto reside (e aqui
concordo com Norman), com o fato de funcionarem como uma espécie de recordação de lugares
sublinha a importância de obras como a coleção The Vancouver Soundscape lançada em 1996. Nela,
bruto de arquivo” do projeto de documentação iniciado em 1973 pelo WSP 21 . Tal variedade
ofereceria uma gama de técnicas de mapeamento, “algumas mais direcionais que outras, mas todas
chamando atenção para a relação de escuta com a paisagem sonora que nos cerca, mais do que aos
sons em si” (2004, 5). A abordagem do WSP se aproximaria mais a uma cartografia crítica, na
medida que apresenta uma variedade de perspectivas ao longo do tempo da paisagem de Vancouver.
reflexões sobre os sons que se deseja preservar. Apesar do caráter seletivo que hierarquiza sons e
ruídos, o Vancouver Soundscape entra em ressonância com o que Diana Alonso afirma ser um dos
papeis do processo cartográfico na arte contemporânea, de criar novas ferramentas críticas políticas
(2010), transitando entre um estudo topográfico (ou topofônico, nestes casos) do território, para um
estudo topofílico22.
19 Fonografia seriam os “eventos auditórios selecionados, enquadrados por uma duração e método de captura
e apresentados em formatos e contextos particulares, todos nos quais se distinguem a gravação do seu evento
original aonde foi capturado” (Sterling apud Norman 2004, 6)
20 Uma pesquisa no grooveshark, por exemplo, indica várias faixas musicais enquadradas como um gênero
que obviamente parece abrigar diversas manifestações musicais. Alguns selos se dedicam ao gênero, como o
sounddesign japan (paisagens sonoras binaurais).
21 World Soundscape Project.
22 Topofilia é um dos temas discutidos por Tuan para compreender as bases universais do elo afetivo entre
pessoas e lugares. “Difuso como conceito, vivido e concreto como experiência pessoal” (Tuan 2012 19).
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realidade. Quando instigam uma escuta reflexiva 23 em colaboração com a escuta referencial,
transitando entre registros “fieis” e registros que são filtrados e interferidos, entre “real” e
dimensão, cartografar também é narrar uma experiência espacial real e imaginária, fazendo
conexões com lugares (um fenômeno enraizado em como percebemos e concebemos o ambiente) e
minutos da peça são tratados como um fonograma que situa o ouvinte numa estação de trem; a
passagem de um trem demarca um novo esquema narrativo, com a transformação gradual do som
ambiental para um evento sonoro que sabemos derivar do “real”, porém, marcado por uma
realidade e ouvimos o fragmento de uma estação. Paisagem externa e interna ao trem começam a se
mesclar, a medida que os sons são transformados gradualmente em pedais tonais mântricos
emulando o mundo interno do viajante que, embalado pelo trem, devaneia em seu trajeto repetitivo.
realidade ordinária de uma estação de trem, de uma projeção subjetiva da realidade de um viajante.
Diferença que se percebe pelo que o compositor escolhe deixar, direcionar a atenção e filtrar da
realidade, deixando espaço suficiente para que o ouvinte possa completar e explorar em relação à
sua realidade subjetiva. Como coloca Norman, há uma grande dísticao entre expressar o que o som
indica sobre o mundo de fora, e expressar como se sente esse mundo através da escuta (2004, 7).
Pendlerdrøm, como muitas composições com sons do mundo-real, funciona como um mapa que
projeta uma resposta mais profunda da escuta para uma percepção de um ambiente sônico familiar,
23Um tipo de escuta despertada pelo interesse nas qualidades acústicas do som, conduzindo em direção a
conteúdos imaginados. A escuta reflexiva levaria à criação, ou reinterpretação de significados imaginados
para o som, produzindo metáforas sonoras (Norman1996, 12 e 21).
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instigando o ouvinte a escutar o mundo por uma perspectiva diferente e incitando a transfiguração
Se cabe aos mapas mostrar o invisível, encontramos na poética dos Electrical Walks (2003)
de Christina Kubisch um processo cartográfico que ressoa ao que Casey chama de mapear no
território. Nessa série de caminhadas sonoras, a artista alemã explora o mapear por um território
do corpo. Ao deslocar por pontos pré-mapeado, o ouvinte, portando fontes especiais, escolhe uma
rota aleatória composta por uma “rede invisível de informação eletromagnética” 24 que se revela
estaria re-territorializando o espaço urbano como em uma deriva sonora articulada pela escuta e
pela experiência do indivíduo. Desvelando um mundo invisível por trás da realidade urbana cada
vez mais densa em equipamentos e informação visual pela interação com seus signos, os Electrical
Walks forneceriam um palimpsesto da cidade, cujas camadas revelariam ao corpo sua própria
presença no território.
Numa concepção semelhante de mapear, Teri Rueb articula poeticamente uma re-
territorialização de espaços através da caminhada por percursos pré-mapeados que desvelam uma
narrativa atrelada ao lugar físico. Em Trace (1999), reescreve o Parque Nacional de Yoho, nas
trajeto linear, o deslocamento do participante configura uma jornada física e subjetiva por uma
paisagem sonora que reflete a morte e as perdas pessoais através de uma trilha sonora dedicada à
locais específicos25 . Mas ao contrário dos Electrical walks, que apontam para o invisível no espaço
real, Trace e outros soundwalks de Rueb mapeia um território imaginário que é desvelado com a
junção da escuta eletroacústica (pelos signos sonoros simbólicos), com a experiência sensorial do
24Fonte: http://www.cabinetmagazine.org/issues/21/kubisch.php
25amostras de áudio de canções memoriais, poemas e estórias” são disparadas através de tecnologia de
geolocalização quando o caminhante atinge os pontos pré-mapeados.
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território físico. O mapear de Rueb não pretende representar a realidade, mas operar por uma nova
Nos sentimos desorientados, em muitos momentos, se nos movemos linearmente pelo Walk
Book (Schaub 2004). No entanto, trata-se de um livro cartográfico, cuja estrutura rizomática revela
um mapa de processos para quem deseja percorrer a poética dos audiowalks de Janet Cardiff . Um
caminho possível é se deixar conduzir pelas faixas do CD que acompanham-no, nas quais Cardiff se
personifica através de uma locução íntima e direcional, indicando “onde” ir, dialogando com
audiowalks, reflexões, imagens, diálogos teóricos, num processo de montagem que espelha os
próprios audiowalks da artista: através da experiência audiovisual que incorpora uma mediação
física (pelos fones, pelo caminhar, pelo folhear, pelo imaginar), o livro se desterritorializa e se
percepções coincidentes com o presente, diálogos e imaginações. Como reflete Norman, os mapas
requerem uma comparação imaginativa entre dois diferentes territórios, aquele que está no papel e o
que está à nossa volta (2004, 12). Posto de forma simples, a postura de ler algo como um mapa
requer uma conexão entre o real e o seu “representante” para operar. Nunca fiz um audiowalk de
Cardiff, mas percorri seu mundo pelo enquadramento que me ofereceram, e ao fazê-lo, não só
explorei uma poética audiovisual como encontrei várias saídas para a minha própria narrativa. Uma
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In-conclusão
compartilha uma localização relativa, ou seja, “espacialidade”, e além disso, especula Watson, as
mudanças no uso lingüístico do termo (o “mapa genético”, por exemplo) podem ter contribuído
para seu uso atualmente ubíquo e extensivo nas artes, à medida que o libertam das suas origens
geográficas (Watson 2009, 295). Apesar da diversidade de emprego, esses “artefatos”, como diz
Paul Tacon fazem sempre o mesmo: contam histórias de relações que são importantes para os
indivíduos e para os grupos que as contam; são artefatos que incorporam, reafirmam e divulgam a
pela libertação que oferece ao pesquisador-artista de uma verdade, ou de uma realidade una. Seriam
múltiplos os caminhos para se chegar a um fim, que também permanece aberto. Por essa
perspectiva, que ecoa nas práticas artísticas já há algumas décadas como nota Cosgrove (2005), há
uma concepção de obra que distingue a arte na base de práticas imaginativas, criativas,
objeto de arte da noção de tradição estética. Às vezes resultam em uma experiência aparentemente
concreta, se houver um diálogo com um percurso próprio. A leitura do mapa, como nos lembra
Norman, depende da conexão que se faz entre dois territórios, o do leitor e o do cartógrafo, para
produzir “efeito”, ou seja, para criar subjetividades que desestabilizam categorias pré-aceitas. No
campo aural, a própria experiência de escuta pode ser ampliada e re-significada através do jogo de
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representações que referenciam um território conhecido, por mais ordinário que seja, ao se
integrarem e conectarem aos processos sonoros que deixam espaço para a imaginação. Compor,
fazer mapas, escrever, seriam formas de fazer rizoma com o mundo ao se criar rede de conexões
que podem ter várias entradas e várias saídas. “Escrever nada tem a ver com significar, mas com
agrimensar, cartografar, mesmo que sejam regiões ainda por vir” (Deleuze e Guattari 2000, 12).
metafórico da palavra neste contexto - é um território ainda por vir. Apesar do amplo espaço a
espera de exploração, muitas cartografias se detêm na produção de mapas como imagens que
representam ambientes. Numa tentativa de contribuir para uma discussão dessa amplitude,
apresentei obras de artistas que exploram as fronteiras artísticas e integram o papel do corpo na
investigação poética. Todas elas são objetos e processos ao mesmo tempo; apresentam a
composição sonora como uma projeção singular do mundo propondo modos diferentes de escutá-lo
de sua forma ordinária. A composição sonora que projeta um lugar implica, como toda escolha, no
que incluir, no que direcionar a atenção e no que deixar de fora. Mas a obra como um bom mapa
torna-se, de certa forma, uma representação “pobre, que torna seu ponto de vista conhecido através
da filtragem de informação” (Norman 2004, p. 4), para que os espaços ausentes possam ser
Referências
Alonso, Diana P. 2011. Práticas cartográficas antagonistas en la Época Global: Catálogo de
Mapas Críticos. Dissertação de Mestrado (História da Arte), Universidade de Barcelona. Junho,
2011.
Casey, Edward S. 2005. Earth-Mapping: artists reshaping landscape. Londres: Minesota Press.
Kubisch, Christina. 2013. Electrical Walks. An introduction to Chrisina kubisch’s “Electrical
Walks” series of works. Vídeo (10’58”). Disponível em http://vimeo.com/54846163
Cosgrove, Denis. 2005. Maps, Mapping, Modernity: Art and Cartography in the Twentieth Century.
In The Map reader: Theories of Mapping Practice and Cartographic Representation. Wiley-
Blackwell (e-book).
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Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. (2000) Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, 1.ed. v.1. Neto,
Aurélio; Costa, Celia (Trad). São Paulo: Editora 34.
Dodge, Martin; Kitchin, Rob; Perkins, Chris. (2011). The map reader: Theories of Mapping
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