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CARTOGRAFIAS CINEMÁTICAS

Rego, Andrea de Almeida1¹

Universidade do Minho, Guimarães, Portugal.


Instituto de Ciências Sociais, Departamento de Geografia
andreadealmeidarego@hotmail.com

RESUMO
O cinema é objeto situado em um terreno teórico valioso para a compreensão de
eventos espaciais e humanos, por isso podendo esclarecer cada vez mais o que
costuma ser classificado como o “universo cotidiano”. Assim, a vasta oferta temática
que o cinema nos traz e o seu papel na formação cultural dos espaços tem exigido
novas metodologias e novas formas de análise pelos profissionais envolvidos com as
imagens_movimento1. Sob essa ótica, o cinema presta-se e oferece-se a exploração de
conexões teóricas cuja tendência dos últimos 30 anos estabeleceu-se em direção aos
estudos das novas materialidades, entrelaçadas nos vastos terrenos movediços
(ANDERSON ET AL, 2003, p. 05) das Teorias e a História do Cinema, estudos em Cultura
Visual, Geografia Cultural e Arquitectura. Esse artigo procura definir a disciplina
Cartografia Cinemática como método capaz de realizar a transdisciplinaridade entre
essas teorias e disciplinas diversas, de forma a explorar a representação dos espaços
materiais e os processos de significação relacionados a esses mesmos espaços no
cinema. Procura compreender através de uma analogia entre mapas e filmes, a
estrutura relacional e o duplo_efeito do seu engajamento na produção das cartografias
cinemáticas, no traçado de sua breve historiografia. Completa-se o artigo com a
caracterização fragmentária dessa forma de pensar conjuntamente, mapas e filmes.
Esse trabalho integra o Capítulo 3 da tese “Copacabana. Cartografias Cinemáticas de
uma Paisagem Cambiante”.

1
Imagens_movimento de acordo com o conceito de Gilles Deleuze. Ver: DELEUZE, Gilles. Cinema 1. A
imagem-movimento. Editora Brasiliense S.A., São Paulo: 1983.

CINEMA URBANA. imaginar mundos possíveis 1


Palavras-chave: Cartografias cinemáticas, cinema, cartografia, filmes, mapas.

TEXTO
INTRODUÇÃO

O que mapas e filmes têm em comum? Filmes podem mapear? Se eles podem ser
considerados mapas, como isso se dá? O mapeamento cinematográfico então, pode
ser mais do que uma metáfora? Os filmes podem ser considerados documentos
cartográficos? Essas questões foram elaboradas por Dr. Richard Misek2 (2012) em um
ensaio sobre a filmografia do cineasta francês Eric Rohmer (LES ROBERTS, 2010, p. 53).
Misek detectou na integralidade do trabalho de Rohmer um verdadeiro atlas de Paris,
cidade cartografada diversas vezes em sua obra, repleta de encontros e conexões
sempre praticadas pelas ruas da cidade. Se a resposta é afirmativa às questões
apresentadas por Misek, é preciso então adicionar outras como; se os filmes podem
cartografar, de que forma essas cartografias são feitas? São cartografias endereçadas
apenas ao mapeamento da paisagem e das cidades, ou podem ir além delas?

Funcionalmente, o processo cartográfico é capaz de reunir e inventar invisibilidades,


em campos dispostos tanto para a imagem como para a projeção de mundos
alternativos, na forma concreta dos mapas, exatamente como é possível nos filmes. A
este respeito, os mapas têm muito pouco a ver com representação como
representação, já que podem se permitir apenas parecer com o tema principal, não só
por causa de seu ponto de vista e escala, mas também porque eles tentam procurar
totalidades. Mais do que isso, a função dos mapas não é só retratar, mas precipitar um
conjunto de efeitos. Assim, os mapas não representam geografias ou ideias; em vez
disso, eles antecipam e afetam a sua realização, mesmo que sua base seja calcada na
realidade. O mapeamento não é só secundário nem somente representativo, mas
duplamente operacional: se por um lado ele escava, descobre e expõe, por outro ele
relaciona, conecta e estrutura, realizando uma montagem. Através da divulgação
visual, a dupla operacionalidade do mapa coloca em prática conjuntos relacionais
complexos que permanecem no tempo para atualização, como base infinita a ser
transformada. A versatilidade dos mapas permite a sua inscrição e reinscrição,
apresentando maleabilidade material e constitutiva, assim como permite a sua entrada
e travessia por diferentes passagens.

2
Diretor do documentário Rohmer in Paris (2013) In: https://www.youtube.com/watch?v=s8tH2KY-
iaM&ab_channel=RichardMisek. Acesso em maio de 2022. Mais sobre Dr. Richard Misek em
https://www.kent.ac.uk/arts/people/534/misek-richard. Acesso em maio de 2022

CINEMA URBANA. imaginar mundos possíveis 2


No que poderia ser uma clara alusão as capacidades subjacentes ao cinema, Gilles
Deleuze (1995, p. 20) nos diz que os mapas não são fechados sobre o inconsciente de
si mesmos, pelo contrário, eles são construtores de inconscientes. Mapas funcionam
como os enquadramentos do cinema, mesmo quando os objetos não são avistados no
quadro; estão lá o campo e o fora de campo disponíveis para liberar a imaginação,
iguais aos existentes nos filmes. Mapas são abertos e conectáveis em todas as suas
dimensões; são destacáveis, reversíveis, suscetíveis a modificações constantes, tal
como os filmes que aceitam reconexões, recortes, edições, remontagens e
reversibilidades temporais e narrativas. Mapas podem ser rasgados, invertidos,
adaptados a qualquer tipo de montagem, retrabalhados por um indivíduo, grupo ou
formação social e sujeitos a gostos estéticos e políticos de ocasião, tal como no
cinema. Mapas e filmes têm plasticidade e maleabilidade, tanto em sua materialidade
como no imaginário tornado possível. Os mapas podem ter uma multiplicidade
temática e espacial, podem ser narrativos e descritivos e tratar da terra, de outros
planetas e até do amor, pois tudo que possui componente espacial ou puder ser
espacializado a princípio, é mapeável, pois assim como o cinema, o mapeamento é
uma arte do espaço. Mapas são legíveis de vários pontos de vista e penetráveis a partir
de passagens, ou de vários pontos de entrada, tal qual os filmes. Mapas cinemáticos,
pelas suas possibilidades imaginárias e narrativas, são montagens de capturas de
instantes específicos das imagens_movimento. Assim, nesse jogo analógico de
intercâmbio de posições, faz-se a conexão entre a performatividade dos mapas e do
cinema, não só pelas suas possibilidades e múltiplas entradas materiais e imaginárias,
pela sua rizomaticidade, mas também com referência a uma capacidade construtora
de novos mundos – e de inconscientes.

POR UMA DEFINIÇÃO DE CARTOGRAFIAS CINEMÁTICAS

FILMES COMO MAPAS

Um filme pode ser entendido em um sentido amplo como uma espécie de diagrama ao
sentido deleuziano3, um mapa em cuja trama está enredada a colonização da
imaginação do público, seja ela espacial ou identitária. Os filmes encorajam o seu
público a pensar no mundo em concertação com a sua própria articulação do espaço
(CONLEY, 2007) por isso são compatíveis com mapas na medida de sua eficácia
simbólica e política, mas igualmente em função de sua identificação com um diagrama
cartográfico.

3
Ver: Deleuze, G.; Guattari, F. MIL PLATÔS. Capitalismo e Esquizofrenia (1995)

CINEMA URBANA. imaginar mundos possíveis 3


Um filme como uma projeção topográfica, pode ser entendido como uma imagem que
localiza e modela a imaginação dos seus espectadores (CONLEY, 2007). Da mesma
forma, quando projeta identidades nos ecrãs, elabora ou reafirma posicionamentos
sociais, raciais e de gênero. Assim, os filmes testemunham e memorizam essas
modelagens carregando-as nas continuidades espaço_temporais, reafirmando-as.

Um filme como um mapa pode ser iconográfico4, ao ser capaz de fornecer


possibilidades fenomenológicas para a legibilidade da imagem da cidade, tal como
conceituado por Kevin Lynch (1960) em seu trabalho seminal sobre o mapeamento
cognitivo5, no qual destacou elementos que contribuem para a elaboração mental e
legibilidade estrutural do meio urbano. Seu sistema destaca as vias, os limites, bairros,
cruzamentos de vias e pontos marcantes, ou marcos, como elementos tectônicos
utilizados pelas pessoas para se auto orientarem no espaço urbano. Mapas fílmicos
podem ser etnográficos na medida em que enquadram uma compreensão cartográfica
dos lugares, cultivada através de estilos de vida, práticas sociais e espaciais
incorporadas, em vez de, por exemplo, como produto de levantamentos cadastrais ou
de navegações virtuais. Na mesma medida mapas são performativos, ao recodificar as
paisagens urbanas como uma espécie de semiótica incorporada, no qual podem
representar performances afetivas ou incorporar a criatividade do cotidiano de cada
indivíduo. Os filmes podem ser mapas psicogeográficos ao convidar o espectador a
explorar o potencial de maleabilidade e plasticidade da paisagem urbana, como uma
espécie de bricolage imaginária. Uma bricolage fílmica que funciona como um
conjunto de ritmos e dinâmicas espaciais contrapostas subversivamente aos ritmos das
paisagens cotidianas. Mapas fílmicos são igualmente mapas em movimento, como
artefatos resultantes de deambulações de personagens, veículos, e matérias nos ecrãs.
São igualmente produtos de um conhecimento espacial situado, em geral interligados
às expressões pessoais do autor. São documentos de memória ou mnemônicos,
tornando-se uma espécie de portal através do qual pode-se restabelecer a ligação com
uma cartografia do tempo e lugar, no qual a cidade é revisitada como um evento ou
4
Intertextualidade extraída da análise do mapa diorama de Sohei Nishino’s, Diorama Map of London
(2010), em Les Roberts (2012:06), Mapping Cultures..
5
Apesar as críticas de Bruno (2002) a Kevin Lynch (1960), seu sistema de leitura da cidade é
fundamental para a compreensão de formas cognitivas de mapeamento e cartografia em práticas fílmicas,
sendo necessário valorizar a compreensão do contexto em que foi criado, e não demonizá-lo. Conley
(2007) exalta que a chave para o trabalho inovador de Lynch é a sua formulação de um sistema de signos
legíveis para a orientação de paisagens e espaços urbanos, o mapa cognitivo, o wayfinding. Criticas de
Giuliana Bruno (2002) especialista em cultura visual procedem, porque ela acredita que Lynch dá uma
posição individualista (não funciona coletivamente) e excludente para o sujeito feminino (masculinista),
não tem agenciamento político e nem considera processos históricos, focando exclusivamente na
fenomenologia, questões que teriam sido resolvidas depois apenas com o mapeamento cognitivo de
Jameson (1990). Jameson, incorporou processos sociais ao mapa cognitivo cuja base é a legibilidade e o
sistema fenomenológico de signos de Lynch. Mas se não existisse o mapa de Lynch não haveria o seu
posterior aperfeiçoamento por Jameson.

CINEMA URBANA. imaginar mundos possíveis 4


uma sucessão de sítios em momentos específicos da sua história (LES ROBERTS, 2010,
P. 06).

Filmes como mapas podem adquirir outras funções, como dentro de áreas
pedagógicas, ou na reconhecida função de atrair e divulgar imagens sedutoras de
determinadas cidades (mesmo que a intenção não seja tão óbvia) para excitar o desejo
de consumo espacial, haja visto as cidades de Nova York, Los Angeles, Paris e o Rio de
Janeiro. Eles podem também ser de valia para o auto reconhecimento social e espacial
de algumas comunidades, cujos marcos e espaços locais são oferecidos em um nível às
vezes rejeitado ou pouco claro em representações oficiais ou institucionais, em filmes
comerciais, ou nas diversas mídias como internet, jornais e televisão. Abre-se uma
exceção para a rejeição desse reconhecimento pela própria comunidade relativamente
àqueles lugares estigmatizados ou áreas perigosas, onde o tráfico ou os crimes
imperam (LES ROBERTS, 2010). Tal como no conjunto habitacional Cidade de Deus no
Rio de Janeiro, palco de um filme internacionalmente reconhecido6 de mesmo nome
(2002), por isso causador da difusão de um estigma já existente sobre o local, hoje
quase impossível de mudar, de tão marcante.

CONVERGÊNCIAS ENTRE CARTOGRAFIAS E CINEMA

De formações históricas muito diferentes, Cinema e Cartografia, compartilham


parâmetros conceituais, demonstrando que ambas as tecnologias visuais possuem
muito em comum, pois baseiam-se em muitos dos mesmos recursos e virtudes dos
códigos e formulações que informam a sua criação. Há um dupla lógica ao se
considerar o cinema e a cartografia conjugados: uma enraizada no arqueologia do
cinema, e a outra, que surge do facto de que o cinema fez-nos ver o mundo de forma
diferente, incluindo a maneira pela qual examinamos a Cartografia. No entanto, uma
análise pré-cinematográfica deve resistir à armadilha teleológica óbvia de se sair
afirmando que todas as coisas antes do alvorecer das imagens_movimento foram
projetadas para o advento do cinema. Mais frutífero é considerar o cinema
cartográfico como uma forma de détournement cartográfico, ou um desvio de rota da

6
Para mais informações ver, Wikipédia, acesso em março de 2022.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Cidade_de_Deus_(filme)#:~:text=Cidade%20de%20Deus.%20%28filme
%29%20Origem%3A%20Wikip%C3%A9dia%2C%20a%20enciclop%C3%A9dia,livro%20de
%20mesmo%20nome%20escrito%20por%20Paulo%20Lins.

CINEMA URBANA. imaginar mundos possíveis 5


cartografia, uma expressão usada pelo escritor Guy Debord7 em conexão com a sua
própria "imaginação cartográfica" (Pensz, 2017, p. 23)

Pode-se ressaltar que tanto em termos práticos quanto a nível cultural, tem se
desenvolvido desde os anos 1980 uma crescente convergência entre Cultura Visual e
Cartografia, diluindo as fronteiras epistemológicas entre o que pode ser considerado
um mapa ou uma imagem. Esse significativo desenvolvimento constituiu-se pela
importância crescente atribuída às propriedades locacionais das
imagens_movimento, e a processos concomitantes de navegação espacial e
temporal. São processos historiográficos, ontológicos, geográficos e
arquitectónicos, determinando uma mudança nos últimos anos da ênfase aos
significados implícitos nos filmes, para as práticas processuais e a própria
materialidade fílmica. Nesse sentido, em um meta nível de análise, a Cartografia
Cinemática se preocupa tanto com questões mais amplas de paisagem, espaço e
lugar, quanto com as especificidades da imagem_movimento como meio de
representação (CONLEY, 2007; LES ROBERTS, 2010).

O engajamento em duplo_efeito entre as práticas espaciais e visuais das cartografias e


as do cinema, passou a refletir com frequência crescente uma ampla gama de
interesses, tecnologias e perspetivas críticas, talvez em grande parte devido ao
surgimento de tecnologias de informação geográfica (SIG) e seu uso popularizado na
internet (KOECK & LES ROBERTS, 2010, p. 141). Como um marcante exemplo de
intercambialidade está uma das mais influentes aplicações cartográficas colaborativas
do século XXI - o Google Earth – inspirado pela variação dimensional proposta no filme
The Power of Tens (1977) realização do casal de designers norte-americanos Charles &
Ray Eames8. O filme traz uma síntese entre técnicas cartográficas e narrativas
cinematográficas, tornando-se importante modelo para as práticas cartográficas da
contemporaneidade devido ao recurso do zoom empregado para ordenar uma escala
relativa do universo, baseada no fator 10. Outro ponto importante a estreitar ainda
mais as relações entre cartografia e cinema, prende-se às discussões que rondam uma
profunda “crise” sobre a função e a revalidação dos mapas em Geografia Cultural
conforme estamos acostumados a conhecê-los, um tema frequentemente discutido
por autores como J. B. Harley (1987; 1988; 1989; 1992), Jacques Levy (2008) e Rasmus
Grønfeldt Winther (2020) entre outros teóricos em Cartografia. As ciências humanas e
7
Ver sobre Guy Debord em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Guy_Debord. Informações não veificadas.
Acesso em mios de 2022.
8
. Em tradução livre da pesquisadora: Um ensaio de filme científico, narrado por Phil Morrison. Um
conjunto de fotos de dois piqueniques em um parque, com a área de cada quadro um décimo do tamanho
do anterior. A partir de uma visão de todo o universo conhecido, a câmera aumenta gradualmente o zoom
até que estejamos vendo as partículas subatômicas na mão de um homem. In:
https://www.imdb.com/title/tt0078106/. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?
v=0fKBhvDjuy0. Acesso em fevereiro de 2022.

CINEMA URBANA. imaginar mundos possíveis 6


a Geografia Cultural ao se aproximarem dessas questões, expandiram o
compartilhamento de perspetivas, alcançando o cinema e seu impulso de
mapeamento. Esse engajamento fez surgirem novos enquadramentos nos modos
epistemológicos, ontológicos, estéticos e percetivos, permitindo um reposicionamento
do olhar cartográfico, que passou a incidir sobre as questões espaciais no cinema.

Considerada parte da viragem cultural nas disciplinas geográficas e cartográficas; e


espacial nas ciências sociais e humanas, além de radicadas das teorias de
desconstrução de mapas, a convergência epistemológica entre cartografia e cinema
pode ser considerada uma espécie de zona discursiva nas quais as ideias de
mapeamento e de mapas são cada vez mais chamadas a agir como dispositivos
retóricos na abordagem de preocupações socio_culturais imbricadas de alguma
maneira no espaço (ou vice-versa). Assim, as metáforas cartográficas têm deslocado
entendimentos mais literais com respeito ao significado de mapas e mapeamentos
(LES ROBERTS, 2012, p. 12).

As cartografias cinemáticas derivam também de trabalhos sobre as cidades no cinema,


como na obra canônica The Cinematic City, de David B. Clarke (1997), onde foram
conjugadas dimensões da teoria urbana e da teoria do cinema, em explorações sobre
uma diversidade de gêneros fílmicos, mas com olhos arquitetônicos bem abertos para
o mapeamento cultural das representações urbanas e o sentido háptico nos filmes.
Desenvolvendo-se exponencialmente dez anos depois, escapando do uso mútuo de
mapas e filmes como ferramentas auxiliares uma da outra, ou de teorias cujo olhar era
exclusivo sobre “cartografar” as cidades, o filólogo Tom Conley (2007) compatibilizou
as dimensões semióticas e metodológicas de ambas no livro Cartographic Cinema,
difundindo teorias de conexão através de explorações cartográficas do cinema em
estudos diversos, mesmo que esses casos de estudo ou as argumentações do próprio
Conley pareçam muitas vezes ainda estar aprisionadas à presença dos mapas em
filmes justificando a postura interdisciplinar adotada. Presença de mapas ou do globo
terrestre relacionados muitas vezes a filmes europeus ou norte-americanos e que
falam das guerras ou aventuras, em territórios outros.

Caquard & Taylor (2009) arriscaram uma definição apurada sobre as relações entre
Cartografia e Cinema, nomeadamente em uma disciplina denominada Cartografia
Cinemática. Muito mais voltados ao uso que a Cartografia pode fazer dos recursos do
cinema, do que no sentido inverso, os autores a definiram como capaz de “combinar o
lado documental da Cartografia com o lado ficcional do cinema; como mais do que o
estudo do mapeamento da memória do que a respeito do visionamento do futuro da
Cartografia; mais que sobre a metáfora do que sobre o filme como metáfora
cartográfica; mais sobre a integração do cinema no mapeamento, do que sobre o lugar

CINEMA URBANA. imaginar mundos possíveis 7


da Cartografia na filmagem e edição”. Na tentativa de justificar a integração em uma
forma híbrida de Cartografia, Caquard & Taylor (2009) reconheceram a objetividade e
a cientificidade da Cartografia, ressaltando, porém, a importância de reunir dimensões
não convencionais, como diferentes formas de sensações e emoções, perceções e
sentidos sobre os lugares através da linguagem cinematográfica. Para Les Roberts
(2010) as Cartografias Cinemáticas podem ser entendidas como um conjunto de
práticas sobrepostas e perspectivas críticas, informando maiores entendimentos
das relações entre paisagens, espaço, lugar, e imagens culturais.

Segundo Les Roberts (2010, p. 68) a Cartografia Cinemática possui cinco principais
diretrizes analíticas; a) mapeamentos e mapas como objetos presentes nos filmes
(onde Tom Conley, 2007, está instalado); b) mapeamento da produção e do consumo
dos filmes; c) mapeamento dos filmes e do turismo cinematográfico (lugar de Les
Roberts, 2010); d) cinema como crítica espacial - voltada a pesquisa da história urbana
em arquivos fílmicos amadores e finalmente e) como mapeamento cognitivo e
emocional (onde está instalada Giuliana Bruno, 2002). Embora a categorização de Les
Roberts organize as questões mais comuns do engajamento entre cartografia e
cinema, abordando a quase totalidade da prática daquelas pesquisas que as envolviam
na altura da confecção do seu estudo, considero sua categorização ou excessivamente
vasta - onde parece quase tudo se encaixar, ou excessivamente específica - como no
item d), incorrendo na insuficiência. Com respeito ao item d) acredito que os filmes
comerciais podem também mapear a história urbana dos espaços, paisagens ou
lugares e que sua contribuição pode-se aliar aos filmes amadores e fotografias,
ressignificando a importância dos registos visuais de todos os tipos para o
enriquecimento de pesquisas sobre a história urbana. Segundo, porque ao vasculhar-
se os textos de Les Roberts (2010) as propostas de leitura cartográfica do cinema de
Giuliana Bruno (2002) referentes aos mapas emocionais, embora reconhecida pelo
autor, parecem não ter sido tão bem compreendidas dentro da sua visão cientificista.
Assim, para propósitos específicos de outras pesquisas, alguns dos termos das suas
diretrizes podem ser recolocados ou acrescidos com; f) o compartilhamento semiótico
e estético entre mapas e cinema; g) filmes considerados metafóricamente como
objetos cartográficos ou como mapas em movimento, h) filmes de qualquer tipo como
documentos e arqueologia da memória social, cultural e da paisagem urbana.

A visão de mapas no filme de Conley (2007) modificou-se ao longo do tempo para a


consideração da performatividade do filme como o próprio mapa e ao que o cinema
faz espacialmente (e não só ao que ele é). O propósito de se definir as Cartografias
Cinemáticas é portanto, elaborar um edifício teórico de forma a permitir a exploração
de referências a filmes considerados como mapas em movimento, mapeamentos
cognitivos e emocionais e documentos de memória, procurando convergir essas
CINEMA URBANA. imaginar mundos possíveis 8
cartografias tanto nas diferentes formas de representação dos espaços, como nos
espaços fílmicos de representação9.

Filmes são sempre metonímias e associações de ideias e é através da disposição de


imagens pré-escolhidas - como em um mapa – é selecionado o que nos é permitido
ver, facto que costumamos aceitar involuntariamente. A perceção de um filme como
mapa exige considerar a relação da imagem com o movimento e o tempo, tal como um
“diagrama” ou um modelo que cartografa através do campo das imagens.

Quando filmes e mapas são estudados conjuntamente, permitem desdobrar como eles
podem contribuir entre si em termos semióticos e estéticos. Conceitos
cinematográficos e as técnicas de simulação de movimento, por exemplo, estimularam
os cartógrafos a criar mapas animados como uma nova maneira de transmitir a
essência dinâmica da Geografia, pela incorporação do tempo em imagens animadas,
alguns até mesmo inspirados nas categorizações da semiótica estruturalista do teórico
do cinema francês Christian Metz10 (CAQUARD & TAYLOR, 2009). Tanto filmes como
mapas apresentam-se como elementos narrativos, o que abre o caminho para uma
compreensão mais ampla dessa interação para além das técnicas de animação e
movimento (CAQUARD & TAYLOR, 2009). Sob um prisma autoral o cineasta pode ser
visto como um cartógrafo, desenhando, registrando, materializando e arquivando
elementos selecionados do mundo. A câmera torna-se uma ferramenta cartográfica
que pode contar todos os tipos de histórias geo_espaciais e geo_afetivas.

Pensar um filme como um mapa permite, portanto, perceber uma marca autoral em
sua expressividade. Pensar em cinema como processo cartográfico permite perceber
injunções na sua materialização, conceituação e parâmetros visuais. Já pensar em atlas
no contexto do cinema, significa configurar no imaginário uma coleção de imagens
associadas, como um acúmulo de mapas individuais, organizados de forma a
apresentar informações sobre lugares específicos em um período específico,
remetendo à uma cartografia da memória. Essa noção de atlas numa perspectiva
cinematográfica induz imaginá-los recortados e organizados com base em uma lógica

9
Para Henri Lefevbre (1991) (In: Schmid, 2012) a produção dos espaços sociais é conformada pela
prática espacial referindo-se a dimensão material como sistema resultante da articulação entre elementos
ou atividades; pela representação dos espaços, que dão imagem a esses mesmos espaços, assim como
arquiteturas, os mapas e o próprio cinema; e os espaços de representação, quando estes ganham uma
dimensão simbólica através de processos de significação que se conectam a um símbolo material. O
cinema, portanto, dá imagem aos espaços, mas é igualmente portador de valores simbólicos. As
atividades de assistir filmes, exemplificam uma das mais importantes práticas espaciais conectadas ao
cinema.
10
Ver sobre Christian Metz em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Christian_Metz. Informações não
verificadas. Acesso em maio de 2022.

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particular, projetada para proporcionar ao público uma sensação de progressão, ritmo
e estrutura.

Pensar em mapas, cartografia e atlas no contexto prospectivo do cinema, remete


ao mapa de Roma de Piranesi sobre a Forma Urbis Roma ou Forma Urbis
Severiana11 (fig. 1). É um mapa imenso e completo da cidade imperial de Roma,
mais precisamente com 235,00 m² executado em mármore, comprovando a
habilidade científica para o registo das arquitetônicas edificadas, locações
topográficas e cartografias, empreendidas pelos romanos. Ao longo do tempo, o
mapa deixou de pertencer a uma aula ou uma grande área interna, passando ao
exterior de uma igreja em sobreposições temporais, até ficar oculto por séculos.
Por volta de 1562, seus fragmentos foram redescobertos após escavações desde o
local original, impulsionando estudiosos a concentrar-se na reconstrução desse
gigantesco patchwork de mármore, cuja função original supõe-se, era funcionar
como uma planta cadastral. Em meados do sec. XVIII, Giovani Battista Piranesi
auxiliou Giambattista Noli12 (que também produziu muitos planos iconográficos
sobre Roma) na pesquisa e remontagem dos fragmentos da Forma. A Forma Urbis
Romae mais tarde se tornou um tema recorrente nas gravuras de Piranesi que a
representou inúmeras vezes, em diversas tentativas de reconstrução gráfica e
remontagem de seus fragmentos de mármore, para dar-lhes uma forma e um
sentido fiel ao original. Hoje tecnologias digitais estão sendo empregadas na
reconstrução desse registro esplendoroso da cartografia marmórea de Roma na
intenção de revelar seus propósitos originais, ainda não inteiramente esclarecidos.

Afinal, o leitor deve estar se perguntando qual a relevância da Forma para as


Cartografias Cinemáticas? Cartografia Cinemática é feita de intertextualidades, de
uma tecitura de fragmentos materiais e imateriais, de uma diversidade de
enfoques teóricos sobre o cinema (mesmo implícitos), de teorias no âmbito da
Geografia Cultural e Arquitetura e de experiências pessoais do cartógrafo
cinemático que pretende realizar a tarefa. É preciso dizer, qualquer trabalho de
investigação que pretenda isso, vai coletar fragmentos fílmicos – sequências,
planos e fotogramas, de acordo com o necessário para a elaboração do próprio
mapa psicogeográfico e diário cinetopofílico (BRUNO, 2002). Coexistirão
fragmentos de mapas e lembranças geo_afetivas do próprio investigador com
partes das derivas de personagens em busca de sua história, e vislumbres
escolhidos da história urbana das cidades. A cartografia da memória cultural
produzirá mapas nos quais recortes móveis das imagens plasmadas no plano de
11
Disponível em: https://socks-studio.com/2018/11/04/forma-urbis-romae/. O texto sobre o mapa foi
extraido do blog original e traduzido livremente pela autora. Acesso em fevereiro de 2022.
12
Maiores informações em: https://nolli.stanford.edu/. Acesso em fevereiro de 2022.

CINEMA URBANA. imaginar mundos possíveis 10


imanência, serão trazidas de volta. A associação de fragmentos fílmicos e
identitários, configuram um processo cartográfico no qual a realização de um
mapa completo é comprovadamente impossível, já que fatores espaciais estão
sempre associados a outros não comensuráveis. São registos de memória fílmica
associados na elaboração de ritmos e sequencias dentro de uma estrutura
pertencente a lógica particular de mapeamento do investigador. Uma lógica de
conjecturas, exatamente como no mapa bricolage de Piranesi - porque por mais
recursos tecnológicos que seja sua remontagem de Roma, restará sempre uma
dúvida quanto ao aspeto original, significados e as verdadeiras intenções de sua
confecção. Mesmo porque séculos se passaram desde que eles foram executados,
e assim, esses mapas nunca poderão ser inteiramente traduzidos por quem quer
que seja. Talvez nem fossem pelo seu autor.

Fig. 1: Mapa de Roma por Piranesi (LUCARELLI, 2018)


Fonte: https://socks-studio.com/2018/11/04/forma-urbis-romae/
Acesso em maio de 2022.

REFERÊNCIAS
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Handbook of Cultural Geography. London: Sage Publications, 2003.

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