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RESUMO
O cinema é objeto situado em um terreno teórico valioso para a compreensão de
eventos espaciais e humanos, por isso podendo esclarecer cada vez mais o que
costuma ser classificado como o “universo cotidiano”. Assim, a vasta oferta temática
que o cinema nos traz e o seu papel na formação cultural dos espaços tem exigido
novas metodologias e novas formas de análise pelos profissionais envolvidos com as
imagens_movimento1. Sob essa ótica, o cinema presta-se e oferece-se a exploração de
conexões teóricas cuja tendência dos últimos 30 anos estabeleceu-se em direção aos
estudos das novas materialidades, entrelaçadas nos vastos terrenos movediços
(ANDERSON ET AL, 2003, p. 05) das Teorias e a História do Cinema, estudos em Cultura
Visual, Geografia Cultural e Arquitectura. Esse artigo procura definir a disciplina
Cartografia Cinemática como método capaz de realizar a transdisciplinaridade entre
essas teorias e disciplinas diversas, de forma a explorar a representação dos espaços
materiais e os processos de significação relacionados a esses mesmos espaços no
cinema. Procura compreender através de uma analogia entre mapas e filmes, a
estrutura relacional e o duplo_efeito do seu engajamento na produção das cartografias
cinemáticas, no traçado de sua breve historiografia. Completa-se o artigo com a
caracterização fragmentária dessa forma de pensar conjuntamente, mapas e filmes.
Esse trabalho integra o Capítulo 3 da tese “Copacabana. Cartografias Cinemáticas de
uma Paisagem Cambiante”.
1
Imagens_movimento de acordo com o conceito de Gilles Deleuze. Ver: DELEUZE, Gilles. Cinema 1. A
imagem-movimento. Editora Brasiliense S.A., São Paulo: 1983.
TEXTO
INTRODUÇÃO
O que mapas e filmes têm em comum? Filmes podem mapear? Se eles podem ser
considerados mapas, como isso se dá? O mapeamento cinematográfico então, pode
ser mais do que uma metáfora? Os filmes podem ser considerados documentos
cartográficos? Essas questões foram elaboradas por Dr. Richard Misek2 (2012) em um
ensaio sobre a filmografia do cineasta francês Eric Rohmer (LES ROBERTS, 2010, p. 53).
Misek detectou na integralidade do trabalho de Rohmer um verdadeiro atlas de Paris,
cidade cartografada diversas vezes em sua obra, repleta de encontros e conexões
sempre praticadas pelas ruas da cidade. Se a resposta é afirmativa às questões
apresentadas por Misek, é preciso então adicionar outras como; se os filmes podem
cartografar, de que forma essas cartografias são feitas? São cartografias endereçadas
apenas ao mapeamento da paisagem e das cidades, ou podem ir além delas?
2
Diretor do documentário Rohmer in Paris (2013) In: https://www.youtube.com/watch?v=s8tH2KY-
iaM&ab_channel=RichardMisek. Acesso em maio de 2022. Mais sobre Dr. Richard Misek em
https://www.kent.ac.uk/arts/people/534/misek-richard. Acesso em maio de 2022
Um filme pode ser entendido em um sentido amplo como uma espécie de diagrama ao
sentido deleuziano3, um mapa em cuja trama está enredada a colonização da
imaginação do público, seja ela espacial ou identitária. Os filmes encorajam o seu
público a pensar no mundo em concertação com a sua própria articulação do espaço
(CONLEY, 2007) por isso são compatíveis com mapas na medida de sua eficácia
simbólica e política, mas igualmente em função de sua identificação com um diagrama
cartográfico.
3
Ver: Deleuze, G.; Guattari, F. MIL PLATÔS. Capitalismo e Esquizofrenia (1995)
Filmes como mapas podem adquirir outras funções, como dentro de áreas
pedagógicas, ou na reconhecida função de atrair e divulgar imagens sedutoras de
determinadas cidades (mesmo que a intenção não seja tão óbvia) para excitar o desejo
de consumo espacial, haja visto as cidades de Nova York, Los Angeles, Paris e o Rio de
Janeiro. Eles podem também ser de valia para o auto reconhecimento social e espacial
de algumas comunidades, cujos marcos e espaços locais são oferecidos em um nível às
vezes rejeitado ou pouco claro em representações oficiais ou institucionais, em filmes
comerciais, ou nas diversas mídias como internet, jornais e televisão. Abre-se uma
exceção para a rejeição desse reconhecimento pela própria comunidade relativamente
àqueles lugares estigmatizados ou áreas perigosas, onde o tráfico ou os crimes
imperam (LES ROBERTS, 2010). Tal como no conjunto habitacional Cidade de Deus no
Rio de Janeiro, palco de um filme internacionalmente reconhecido6 de mesmo nome
(2002), por isso causador da difusão de um estigma já existente sobre o local, hoje
quase impossível de mudar, de tão marcante.
6
Para mais informações ver, Wikipédia, acesso em março de 2022.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Cidade_de_Deus_(filme)#:~:text=Cidade%20de%20Deus.%20%28filme
%29%20Origem%3A%20Wikip%C3%A9dia%2C%20a%20enciclop%C3%A9dia,livro%20de
%20mesmo%20nome%20escrito%20por%20Paulo%20Lins.
Pode-se ressaltar que tanto em termos práticos quanto a nível cultural, tem se
desenvolvido desde os anos 1980 uma crescente convergência entre Cultura Visual e
Cartografia, diluindo as fronteiras epistemológicas entre o que pode ser considerado
um mapa ou uma imagem. Esse significativo desenvolvimento constituiu-se pela
importância crescente atribuída às propriedades locacionais das
imagens_movimento, e a processos concomitantes de navegação espacial e
temporal. São processos historiográficos, ontológicos, geográficos e
arquitectónicos, determinando uma mudança nos últimos anos da ênfase aos
significados implícitos nos filmes, para as práticas processuais e a própria
materialidade fílmica. Nesse sentido, em um meta nível de análise, a Cartografia
Cinemática se preocupa tanto com questões mais amplas de paisagem, espaço e
lugar, quanto com as especificidades da imagem_movimento como meio de
representação (CONLEY, 2007; LES ROBERTS, 2010).
Caquard & Taylor (2009) arriscaram uma definição apurada sobre as relações entre
Cartografia e Cinema, nomeadamente em uma disciplina denominada Cartografia
Cinemática. Muito mais voltados ao uso que a Cartografia pode fazer dos recursos do
cinema, do que no sentido inverso, os autores a definiram como capaz de “combinar o
lado documental da Cartografia com o lado ficcional do cinema; como mais do que o
estudo do mapeamento da memória do que a respeito do visionamento do futuro da
Cartografia; mais que sobre a metáfora do que sobre o filme como metáfora
cartográfica; mais sobre a integração do cinema no mapeamento, do que sobre o lugar
Segundo Les Roberts (2010, p. 68) a Cartografia Cinemática possui cinco principais
diretrizes analíticas; a) mapeamentos e mapas como objetos presentes nos filmes
(onde Tom Conley, 2007, está instalado); b) mapeamento da produção e do consumo
dos filmes; c) mapeamento dos filmes e do turismo cinematográfico (lugar de Les
Roberts, 2010); d) cinema como crítica espacial - voltada a pesquisa da história urbana
em arquivos fílmicos amadores e finalmente e) como mapeamento cognitivo e
emocional (onde está instalada Giuliana Bruno, 2002). Embora a categorização de Les
Roberts organize as questões mais comuns do engajamento entre cartografia e
cinema, abordando a quase totalidade da prática daquelas pesquisas que as envolviam
na altura da confecção do seu estudo, considero sua categorização ou excessivamente
vasta - onde parece quase tudo se encaixar, ou excessivamente específica - como no
item d), incorrendo na insuficiência. Com respeito ao item d) acredito que os filmes
comerciais podem também mapear a história urbana dos espaços, paisagens ou
lugares e que sua contribuição pode-se aliar aos filmes amadores e fotografias,
ressignificando a importância dos registos visuais de todos os tipos para o
enriquecimento de pesquisas sobre a história urbana. Segundo, porque ao vasculhar-
se os textos de Les Roberts (2010) as propostas de leitura cartográfica do cinema de
Giuliana Bruno (2002) referentes aos mapas emocionais, embora reconhecida pelo
autor, parecem não ter sido tão bem compreendidas dentro da sua visão cientificista.
Assim, para propósitos específicos de outras pesquisas, alguns dos termos das suas
diretrizes podem ser recolocados ou acrescidos com; f) o compartilhamento semiótico
e estético entre mapas e cinema; g) filmes considerados metafóricamente como
objetos cartográficos ou como mapas em movimento, h) filmes de qualquer tipo como
documentos e arqueologia da memória social, cultural e da paisagem urbana.
Quando filmes e mapas são estudados conjuntamente, permitem desdobrar como eles
podem contribuir entre si em termos semióticos e estéticos. Conceitos
cinematográficos e as técnicas de simulação de movimento, por exemplo, estimularam
os cartógrafos a criar mapas animados como uma nova maneira de transmitir a
essência dinâmica da Geografia, pela incorporação do tempo em imagens animadas,
alguns até mesmo inspirados nas categorizações da semiótica estruturalista do teórico
do cinema francês Christian Metz10 (CAQUARD & TAYLOR, 2009). Tanto filmes como
mapas apresentam-se como elementos narrativos, o que abre o caminho para uma
compreensão mais ampla dessa interação para além das técnicas de animação e
movimento (CAQUARD & TAYLOR, 2009). Sob um prisma autoral o cineasta pode ser
visto como um cartógrafo, desenhando, registrando, materializando e arquivando
elementos selecionados do mundo. A câmera torna-se uma ferramenta cartográfica
que pode contar todos os tipos de histórias geo_espaciais e geo_afetivas.
Pensar um filme como um mapa permite, portanto, perceber uma marca autoral em
sua expressividade. Pensar em cinema como processo cartográfico permite perceber
injunções na sua materialização, conceituação e parâmetros visuais. Já pensar em atlas
no contexto do cinema, significa configurar no imaginário uma coleção de imagens
associadas, como um acúmulo de mapas individuais, organizados de forma a
apresentar informações sobre lugares específicos em um período específico,
remetendo à uma cartografia da memória. Essa noção de atlas numa perspectiva
cinematográfica induz imaginá-los recortados e organizados com base em uma lógica
9
Para Henri Lefevbre (1991) (In: Schmid, 2012) a produção dos espaços sociais é conformada pela
prática espacial referindo-se a dimensão material como sistema resultante da articulação entre elementos
ou atividades; pela representação dos espaços, que dão imagem a esses mesmos espaços, assim como
arquiteturas, os mapas e o próprio cinema; e os espaços de representação, quando estes ganham uma
dimensão simbólica através de processos de significação que se conectam a um símbolo material. O
cinema, portanto, dá imagem aos espaços, mas é igualmente portador de valores simbólicos. As
atividades de assistir filmes, exemplificam uma das mais importantes práticas espaciais conectadas ao
cinema.
10
Ver sobre Christian Metz em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Christian_Metz. Informações não
verificadas. Acesso em maio de 2022.
REFERÊNCIAS
ANDERSON, Kay (Ed.); DOMOSH, Mona; PILE, Steve; THRIFT, Nigel.
Handbook of Cultural Geography. London: Sage Publications, 2003.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia 2. Editora 34,
Rio de Janeiro, 1995
HARLEY, J. B. The Map and the Development of the History of Cartography, p. 1-42,
Cap.1. In: HARLEY, J. B. & WOODWARD, David (Eds.). Vol. 1, Cartography in Prehistoric,
Ancient, and Medieval Europe and the Mediterranean. The University of Chicago Press,
Chicago: 1987.
___________ Historical geography and the cartographic illusion, p. 89-91. In: Journal of
Historical Geography, 15, 1. Amsterdam: Elsevier, 1989
______ & ROBERTS, Les (Eds.). The City and the Moving Image. Urban Projections.
Palgrave MacMillan, New York: 2010.
WINTHER, Rasmus Grønfeldt. When maps become the world. University of Chicago
Press, Chicago: 2020.