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Resumo
Um dos mais antigos meios de comunicação criados pelos
Thaís Amorim Aragão humanos, o mapa tem sua relevância reafirmada na era da
thaisaaragao@gmail.com digitalização, fenômeno perceptível nos intensos e variados usos
Orcid: https://orcid.org/0000- de mapas em dispositivos móveis difundidos no cotidiano. Este
0003-3549-5261. trabalho oferece uma visão geral sobre vertentes de pensamento
Doutora em Comunicação pela que tratam os mapas como meios, desde abordagens com
influências da teoria matemática da comunicação ou do pós-
Unisinos, com estágio doutoral na
estruturalismo, até uma perspectiva integradora trazida pela
Escola de Mídia, Artes e Design da
filosofia dos meios.
Universidade de Westminster, em Palavras-chave: Mapa, cartografia, filosofia dos meios.
Londres. Mestra em Planejamento
Urbano e Regional pela UFRGS e Abstract
produtora cultural da Universidade One of the oldest media created by humans, the map has its
Federal do Ceará, com atuação na relevance reaffirmed in the era of digitalization, a phenomenon
Rádio Universitária FM 107,9. especially noticeable in the intense and varied uses of maps in
mobile devices widespread in daily life. This work offers an
overview of ways of thinking maps as media, from approaches
influenced by the mathematical theory of communication or by
post-structuralism, to a integrative perspective brought by media
philosophy.
Keywords: Map, cartography, media philosophy.
A articulação dessas ideias gera um grande influenciado por ideias discutidas também no campo
número de perspectivas em relação aos mapas, que da comunicação. Os debates passam pela teoria
podem ser exemplificadas pela relação entre mente matemática da comunicação, pelo estruturalismo (o
e corpo. Se ambos forem concebidos como mapa tido como texto ou discurso), pela virada
separados um do outro, a razão instrumental torna- cultural (com ênfase nos contextos e foco que passa
se possível, e o mapa pode desvencilhar-se de da produção ao consumo), e finalmente chegam a
contingências subjetivas, adotando status de concepções pós-estruturalistas, em que teorias
observador distanciado do mundo e exercendo unificadoras e a noção de espaço absoluto são
posição de objetividade. Mas se mente e corpo deixadas de lado, favorecendo questões de
forem pensados como unidade, isso leva à ideia de relatividade e eventualidade.
que o conhecimento é encarnado e, assim, mapas Do pós-guerra até os anos 1980, tendências
são reconhecidos em suas qualidades mais híbridas representacionais prevaleceram; depois, esse
e subjetivas, em que é mais difícil diferenciar estatuto passou a ser desafiado. Naquele momento,
categoricamente observador e observado. era importante defender que os mapas tinham
O pensamento sobre a cartografia vem sendo estatuto de verdade. Com o objetivo de estabelecer
1
Cartografia será tratada aqui em seu sentido e Deleuze e Guattari (1996), por exemplo.
denotativo, não se relacionando diretamente com noções 2 Traduções da autora.
a cartografia como plenamente científica, parece não haver nenhum problema com esse
abandonou-se a influente ideia de cartografia como significado; mas e quanto à forma que a
arte. Em seguida, vieram abordagens aos mapas representação toma?” (Robinson; Petchenik, 1976,
como construções sociais, propondo uma p. 16).
desconstrução desses documentos e uma leitura de Buscava-se inovações como as dos mapas
suas entrelinhas, na busca pelos propósitos políticos coropléticos, em que cores, sombreamentos e outros
a partir dos quais mapas são criados e passam a grafismos eram associados a valores estatísticos, por
exercer efeitos sobre o mundo. É o início da exemplo. Também havia interface com as ciências
chamada cartografia crítica. A seguir, cognitivas, em voga naquele momento, de modo a
apresentaremos dois importantes trabalhos entender como as pessoas pensavam. Assim, a
discutidos no âmbito das teorias dos mapas, um cartografia poderia melhorar a exposição dos dados
alinhado à linha representacional e outro à linha e tornar os mapas mais compreensíveis. Embora
crítica, antes de chegarmos a uma abordagem mais outros autores afirmem que mapas são expressos a
contemporânea, ligada à filosofia dos meios, que partir de uma mistura de números, linguagem escrita
busca articulá-las entre si. e imagens visuais, para Robinson e Petchenik o
mapa é de natureza gráfica, algo da ordem da
1 Modelos comunicacionais cartográficos visualidade. Um estudo dos mapas, segundo eles,
deveria considerar a complexidade simultânea de
A partir da década de 1950, esforços particulares imagens visuais produzidas com uma boa dose de
se somaram para tornar a cartografia uma ciência intuição, como acontece no marco da pintura
disciplinar, prática e aplicada. O objetivo era artística (na contramão da tendência de sua época, a
capturar, da maneira mais acurada possível, dupla afirmava que a intuição, e não a análise,
aspectos importantes da superfície terrestre e suas dominava o campo da cartografia).
relações espaciais, representando-os a partir de uma Reconhecendo o cartógrafo como autor e o mapa
abstração em escala que lhes fosse fiel. Convencida como imagem, eles buscaram compreender de que
disso estava uma dupla de autores estadunidense maneira o mapa, transmitindo conhecimento sobre o
que, ainda nos anos 1970, publicou um importante espaço, funciona como instrumento de comunicação
estudo chamado The Nature of Maps. Robinson e entre cartógrafo e aquela pessoa que chamam de
Petchenik3 (1976) perguntaram-se o que faria um percipiente. Mencionam inclusive o termo
mapa ser um mapa, o que seria mapear, e onde o “cartologia”, que atenderia pelo estudo do mapa
mapa se encaixaria no sistema mais geral da como meio de comunicação. Além disso, atentaram
cognição humana. para a concretude do mapa enquanto medium: o
“Mapas são uma representação gráfica dos mapa é algo para o qual se pode olhar e que pode ser
arredores” (Robinson; Petchenik, 1976, p. 16). tocado, é uma coisa tangível. “Tradicionalmente,
Nesta definição, o território representado é aquele um mapa é em si mesmo um espaço” (Robinson;
que envolve o cartógrafo, e portanto no qual este Petchenik, 1976, p. 16).
está implicado. “Representar é corresponder a algo, Para eles, há a pessoa que mapeia e a pessoa que
simbolizar, descrever, retratar, apresentar faz mapas. A primeira processa informações que
claramente à mente, descrever, e assim por diante, e
3 Autora de dezenas de artigos acadêmicos, Barbara durante a Segunda Guerra Mundial, serviu como diretor
Bartz Petchenik foi editora cartográfica e se dedicou a da divisão cartográfica do Escritório de Serviços
projetos de educação envolvendo a popularização dos Estratégicos, órgão precursor da Agência Central de
mapas, especialmente entre o público infantojuvenil. Já Inteligência (CIA). Ele também é autor da popular
Arthur H. Robinson foi professor do departamento de Projeção de Robinson (1961) para o globo terrestre.
Geografia da Universidade de Wisconsin-Madison e,
capta do ambiente, a partir de suas “entradas” surgir visando elaborar princípios básicos do que
(inputs) sensoriais, e concebe as coisas a partir das seria uma linguagem cartográfica. Buscava-se
relações espaciais. “[A] condição sine qua non de avaliar a efetividade e eficiência da comunicação
quem mapeia é a habilidade de operar em um modo por meio de mapas considerando diversos públicos-
espacial” (Robinson; Petchenik, 1976, p. 17). alvo, e também lançar bases para uma teoria da
Porém, o que é desenvolvido a partir dessa comunicação cartográfica.
habilidade não passaria de um constructo mental Robinson e Petchenik tentaram pensar a
sem existência material – não teria a corporeidade cartografia a partir da cadeia de transmissão
de um mapa, por exemplo. Quem mapeia não proposta pela teoria matemática e pelo modelo de
necessariamente faz mapas; mas quem faz mapas, Lasswell (quem diz o que, a quem, por qual canal e
antes de saber fazê-los, precisa saber mapear. A com que efeito). Em algumas análises, o mundo e/ou
pessoa que faz mapas é chamada de cartógrafa. o cartógrafo se apresentavam como a fonte, o mapa
Do lado da recepção, tem-se 1) a pessoa como a mensagem codificada, as ondas de luz que
percipiente, 2) a leitora de mapas e 3) a usuária de tornavam a mensagem visível como o sinal, o
mapas. A leitora de mapas contempla o mapa para espaço como o canal e o receptor-destinatário como
achar o nome de alguma cidade ou saber quanto decodificador e receptor. Mas o uso do modelo
mede o pico mais alto da região, sem maiores variava.
consequências. Assim como a usuária de mapas, que No diagrama a seguir (Figura 1), percebe-se a
consulta algum dado em particular para poder se preocupação em comunicar uma concepção de
orientar no dia a dia, a leitora não necessariamente mundo (a do cartógrafo) por meio do mapa,
está ganhando em termos de conhecimento espacial. diminuindo a defasagem entre a mensagem
Esta seria uma característica da percipiente: aquela transmitida e a recebida. “A concepção do mundo
que percebe. Trata-se da pessoa que incrementaria real (seletiva) do cartógrafo (C2) é a mensagem a ser
consideravelmente seu conhecimento sobre o transmitida, o mapa (C3) é o sinal codificado e a
espaço a partir do contato com o mapa. A cartógrafa concepção do percipiente (C4) é a mensagem
faz o mapa pensando na percipiente. recebida” (Robinson; Petchenik, 1975, p. 10). A
A preocupação em saber se percipientes mensagem recebida pode ser entendida como a
compreendiam o que cartógrafos buscavam própria concepção do percipiente, o que, em certa
transmitir ao criar mapas só emergiu quando se medida, aproxima essa heurística da teoria
formalizaram as teorias da comunicação e hipodérmica, que toma receptores como atomizados
investigações em sistemas de processamento de e pouco afetados por seus contextos sociais.
dados. A partir daí, vários trabalhos começaram a
Figura 3 – Os Embaixadores
5
Os mapas tratados aqui serão os geográficos. A gêneros, como os cosmológicos e os ficcionais (Harley,
categoria, em termos mais amplos, inclui outros 2000 [1988], p. 303).
entre muitas armas usadas pelo imperialismo Para abrir a caixa-preta do cartógrafo, seria
(Harley, 2000, p. 282). A este, teriam servido como preciso entender que o pressuposto científico da
“um inventário gráfico, uma codificação de precisão pode ser usado para apagar vestígios do
informação sobre propriedade” (Harley, 2000, p. próprio enviesamento dos mapas ocidentais
285), muitas vezes antecipando-se, como profecias, modernos. É como se mapas pré-modernos ou
sobre o curso da geopolítica. Como “comunicadores mapas de outras culturas fossem de natureza inferior
de uma mensagem imperial” (Harley, 2000, p. 282), e inexata, incoerentes com a realidade. Isso porque
estas cartas geográficas podem ser usadas como eles não seguiriam um determinado modelo,
declarações, com efeitos práticos sobre o mundo. definido a partir de dois conjuntos de regras que,
O sigilo dos mapas e o controle dos meios de para Harley, subjazem e dominam a história da
produção cartográfica por grupos dominantes são cartografia ocidental desde o século XVII (Harley,
aspectos salientados para demonstrar o monopólio 2000, p. 4).
dessa forma de conhecimento. Em limites O primeiro conjunto de regras diz respeito à
domésticos, o mapa é entendido como instrumento produção técnica dos mapas. Ele é definido a partir
de disciplinamento espacial das pessoas comuns. de uma epistemologia científica que dita um padrão
Sua contraparte temporal seria o relógio, que passou de conhecimento e cognição. Expressas em termos
a regrar os ritmos cotidianos na modernidade. O matemáticos, essas regras estão fundadas na noção
controle dos corpos em termos globais pode ser de que o mundo representado é real e objetivo e que
compreendido, por exemplo, a partir do Meridiano a verdade cartográfica produzida a partir delas pode
de Tordesilhas, caso clássico das consequências ser verificada de forma independente. Esse modelo
sociais da arbitrariedade de um signo cartográfico. é tomado como parâmetro para qualificar qualquer
Harvey entende “mapas como um sistema ímpar mapa a partir de oposições, como falso ou
de signos, cujos códigos podem ser a um só tempo verdadeiro, subjetivo ou objetivo, literal ou
icônicos, linguísticos, numéricos e temporais, e simbólico, colocando mapas modernos ocidentais
como uma forma espacial de conhecimento” como isentos de juízos de valor, como documentos
(Harley, 2000, p. 300). Admitindo que existe uma não ideológicos.
linguagem cartográfica, ele propõe então uma No entanto, as regras da produção técnica seriam
análise do discurso dos mapas. Sua ideia de invariavelmente influenciadas por um segundo
linguagem está alinhada ao método iconológico do conjunto: as regras da produção cultural dos mapas.
historiador da arte Erwin Panofsky, embora o Elas dizem respeito a valores, como etnicidade,
geógrafo tome o mapa como um modo particular de política, religião, classe social, e se esconderiam nas
representação visual. A partir daí, adota uma tática entrelinhas do mapa, sendo operadas em atos nem
desconstrucionista para romper com a ideia de que sempre conscientes. “No mapa em si, estruturas
nos mapas existe uma ligação objetiva entre a sociais frequentemente se encontram disfarçadas
realidade e a representação. por um espaço instrumental, abstrato, ou
A epistemologia alternativa que Harley tinha em encarceradas nas coordenadas do mapeamento
mente está muito mais calcada nas teorias sociais do computacional” (Harley, 1989, p. 3).
que no positivismo científico que caracteriza boa O mapa comunica algo explicitamente, mas uma
parte da conduta voltada aos estudos da história dos análise de suas entrelinhas pode fazer emergir o que
mapas. Na abordagem proposta, mapas não são ele não necessariamente é feito para revelar, que são
apenas fruto da racionalidade, feitos apenas a partir os valores que regem aquela visão de mundo. “No
de normas geométricas, mas atendem também a sentido de Foucault, as regras podem nos tornar
valores e regramentos sociais. A cartografia teria aptos a definir uma episteme e a traçar uma
agendas ocultas (Harley, 1989, p. 3). arqueologia daquele conhecimento ao longo do
tempo” (Harley, 2000, p. 6). A tarefa do pesquisador expressas; e um interno, intrínseco ao mapa. O autor
seria investigar como esses dois conjuntos de regras, toma a lógica tipográfica, como elaborada por
técnicas e culturais, se articulam na produção dos McLuhan, para falar de uma “lógica do mapa” que
mapas e rastrear o papel deles na normalização do age sobre a consciência humana.
discurso, ainda que imperceptível à primeira
Temos que considerar, no caso dos mapas, os efeitos
observação. No exame dessa textualidade6, uma da abstração, uniformidade, repetição e visualidade em
teoria da retórica cartográfica caberia a todos os moldar estruturas mentais, e em comunicar um sentido
mapas, uma vez que Harley considera a retórica um dos lugares do mundo. É essa disjunção entre esses
sensos de lugar e muitas outras visões alternativas do
aspecto universal de todos os textos cartográficos que o mundo é, ou do que pode ser, que tem levantado
(Harley, 1989, p. 11). questões sobre o efeito da cartografia na sociedade.
Todo fazer mapa opera por seletividade. Se este (Harley, 1989, p. 13-14).
lida com determinado aspecto do território, aquele Para compreendermos o poder interno dos mapas
trabalhará outro. No entanto, mesmo mapas – o peso de sua influência enquanto medium – é
oferecidos em um manto de objetividade e precisão necessário dar atenção ao passo a passo no fazer dos
podem revelar manipulações de conteúdo mapas: “Seleção, omissão, classificação, a criação
grosseiras, porém escamoteadas. Enquanto alguns de hierarquias, e a ‘simbolização’” (Harley, 1989, p.
elementos são enfatizados, outros da mesma 11). Como são compilados? Como as categorias são
categoria são suavizados ou mesmo completamente selecionadas? Como as hierarquias entre os
omitidos (populações autóctones em relação a elementos da paisagem são construídas? Que regras
populações colonizadoras, por exemplo). É o que regem a abstração desses elementos? Como os
Harley chama de “silêncios” nos mapas. Tais estilos retóricos são empregados na representação
ausências também são altamente significativas no de forma a reproduzir o poder? Seria preciso
exame da retórica cartográfica. identificar geometrias subliminares, “silêncios”,
Essa análise também não deve se limitar ao que hierarquias representacionais, descobrir “a
mapas representam ou deixam de representar, pregnância do opaco” onde parece só haver
devendo estender-se ao modo como fazem ou transparência. “Ao fato podemos acrescentar o mito,
deixam de fazê-lo. Manipulação da escala, tamanho e no lugar de inocência, devemos esperar
dos ícones e caracteres, espessura das linhas, uso de duplicidade” (Harley, 1989, p. 8).
cores, hachuras e sombreamentos: Ao invés de lançar mão de uma ciência da
independentemente do conteúdo, todos esses comunicação formal, Harley prefere trabalhar com
“truques do ofício cartográfico” (Harley, 1989, p. 7) a história e com a antropologia da imagem no estudo
produzem efeitos em sua leitura. A ênfase em alguns das qualidades narrativas da representação
aspectos em detrimento de outros contribui para cartográfica. “Apenas por meio do contexto esse
construir uma hierarquia visual dos símbolos significado e essa influência podem ser
expressos, que muitas vezes refletem e reforçam desvendados” (Harley, 2000, p. 281). Mapas não são
desigualdades da ordem social a partir da qual o neutros, e reconhecer isto nos levaria a repensar as
mapa é feito. consequências sociais das práticas da cartografia.
A cartografia, segundo Harley, manifesta dois
níveis de poder: um externo, geralmente 3 A dupla vida do mapa em uma
centralizado e burocrático, imposto de cima para epistemologia crítica do medium
baixo, cujas diretrizes podem estar bastante
6
No sentido derridiano, texto é ato de construção, não simbólicos.
necessariamente dotado de elementos linguísticos, mas
A filósofa dos meios Sybille Krämer (2015) mapa enquanto opacidade. “O filme pode ser
apresenta uma terceira abordagem, em posição discutido em termos das condições ópticas,
mediadora nessa possível disputa teórica sobre a químicas, técnicas, sociais e culturais que fazem as
natureza epistemológica dos mapas. Que posições projeções fílmicas e a instituição do cinema serem
esta terceira media? possíveis” (Krämer, 2015, p. 189). Na primeira
A primeira posição é a da perspectiva orientada posição, no caso da cartografia, a produção do mapa
à naturalização, que Krämer associa à narrativa do não é mais uma arte, e sim uma ciência. Na segunda,
mapa como transparência. Ela traz o cinema para o mapa não apenas descreve o território, mas cria
fins de comparação: “Assim como a tela do cinema, território.
na qual um filme é projetado, o mapa é um artefato A seguir (Quadro 2), estão sistematizadas as
técnico e simbólico que desaparece ‘por trás’ da principais diferenças entre as duas maneiras de
informação que transmite” (Krämer, 2015, p. 188). interpretar os mapas no âmbito desse debate, sob a
A segunda posição é a da perspectiva construtivista- perspectiva de Krämer.
instrumentalista, comprometida com a narrativa do
Mais do que diferentes entre si, tais dimensões do mapa são reciprocamente dependentes na
abordagem mídio-teórica apresentada por Krämer. é um medium, mas, ao invés disso, uma coisa que porta
marcas visuais e que é fácil de manusear e pendurar na
Seriam como duas faces da mesma moeda. Quando parede. O mapa não se torna um medium até que esteja
o medium se encontra no curso de seu uso, a situado em práticas que, ao mesmo tempo, assumem
mensagem é perceptível, mas o medium, em si, não sua transparência representacional, como quando
alguém usa o mapa para se orientar. (Krämer, 2015, p.
(como a tela do cinema na hora do filme). Assim, 192, grifo da autora).
durante seu uso, o medium só é acessível como um
rastro na própria mensagem. Toda a crítica às Há uma relação triádica entre as pessoas, os
distorções, retóricas e mitos em torno da cartografia, mapas e os territórios, sendo os mapas esses
como se faz na perspectiva pós-moderna do mapa terceiros, mediadores, que se interpõem entre dois
enquanto opacidade, só seria possível porque, antes, diferentes, entre campos heterogêneos, ligando-os
se dá um processo de transmissão em que o medium sem que essa diferença seja eliminada. Usuário,
necessariamente se neutraliza, assume sua mapa e território formam, para Krämer, uma espécie
transparência. “[O] mapa pode ser considerado de unidade operacional que, em si, tem agência e
como um rastro na narrativa da opacidade apenas atributos de um ator em uma rede7. Como
porque, e na medida em que, ele funciona como um mensageiro (e também uma espécie de embaixador),
mensageiro na narrativa da transparência” (Krämer, o mapa exerce a função de facilitar a transformação
2015, p. 190-191). de lugares objetivos em espaços subjetivos, em
Segundo a proposição mídio-teórica, a narrativa cooperação com o usuário (Krämer, 2015, p. 193).
do mapa como transparência faz parte de uma
Algo como ‘agência’ só emerge na conexão tripartite
abordagem prática ao mapa como medium, prática na qual o medium está situado como [no] meio 8
enquanto a narrativa do mapa como opacidade faz e como mediador. A habilidade midiatizada de agir
parte de uma abordagem teórica, sendo que ambas deve, portanto, ser compreendida como um potencial
‘distribuído’, cuja produtividade sempre depende da
tendem a desconsiderar o outro lado da moeda para colaboração de componentes humanos e não humanos.
serem operativas. Esse tipo de atividade distribuída não é impedida, mas,
ao contrário disso, tornada possível pela heteronomia
Vejamos primeiro o lado prático, ao qual está dos media ou sua habilidade de incorporar atributos de
ligada a ideia de transparência do mapa. A filósofa ambos os mundos entre os quais mediam. (Krämer,
argumenta que a transparência do mapa não é um 2015, p. 208).
mero ideologema, mas uma exigência
Quando o usuário levanta os olhos do mapa, o
completamente prática de seu funcionamento como
ambiente em que se encontra, antes desconhecido
medium. Para se orientar por um território, o usuário
sob certos aspectos, não ressurge diante de si
precisa encontrar a si mesmo e encontrar as coisas
interpretado, mas transformado. O mapa não se
ao seu redor no mapa, daí porque a qualidade da
agrupa com os signos, nessa abordagem mídio-
representação é um critério válido de avaliação da
teórica, porque seu uso como medium no âmbito da
cartografia. “A mensagem do mapa é assim baseada unidade funcional usuário-mapa-território opera
em referência” (Krämer, 2015, p. 192).
uma transformação, e não uma interpretação. Esse
Heterônomo, sujeito a forças ou vontades alheias, o
emprego da cartografia “não significa simplesmente
mapa transmite um conhecimento sobre algo que
que o mapa é lido e interpretado como uma forma
está para além de si. de representação simbólica, significando, sim, que
‘Transparência’ e ‘representacionalidade’ são algo fora do mapa é alterado através do ato de
características do uso de mapas. Um mapa, em si, não alguém se orientar com o mapa” (Krämer, 2015, p.
7
A referência é a Teoria Ator-Rede, que se desenvolve “entre dois”. Em inglês, middle. A autora atenta para a
a partir dos anos 1980, pelos estudos de pesquisadores existência física do medium no espaço, para sua
como Michel Callon, Bruno Latour e Madelaine Akrich. materialidade.
8
A referência aqui é espacial: “meio” como “no meio”,
9 Dizer que os ambientes em que vivemos são bidimensionalidade dos mapas: eles costumam ficar
tridimensionais exclui a quarta dimensão do espaço, que desatualizados.
é o tempo. Tempo que também afeta a pretensa
emergência de práticas como a dos mash-ups: ontologia) para investigá-los enquanto conjunto de
alimentar conjuntos de dados globais com práticas em desdobramento (como os mapas
informações locais. Ela reconhece que “observações tornam-se, isto é, sua ontogênese) (Dodge et al.,
do mundo virtual de dados visualizados” (Krämer, 2009, p. 21).
2015, p. 205) demonstram proporcionar novas De maneira um tanto análoga a como Krämer
inspirações no campo da pesquisa científica e que é pensa a tríade usuário-mapa-território, os autores
provável que esteja em curso uma revolução ainda concebem o mapa como “uma produção co-
maior do que a Reforma Cartográfica entre os constitutiva entre inscrição, indivíduo e mundo;
séculos XVII e XVIII. uma produção que está constantemente em
A filósofa da mídia enfatiza as iniciativas de movimento, sempre procurando aparentar ser
mash-ups a partir de serviços como Google Earth e ontologicamente seguro” (Dodge et al., 2009, p. 21).
Google Maps como uma expressão do potencial dos A orientação que compartilham é que estejamos
mapas digitais no âmbito do cotidiano. Analisando atentos a como mapas emergem no curso das
os novos usos de mapas pela internet, ela pensou em práticas, nunca completamente formados. Isso
três dimensões que se encontram sempre integradas levaria, por exemplo, à produção de etnografias
no mapeamento digital: dimensão operacional, detalhadas do tornar-se mapa. O fazer mapa e o uso
dimensão de exploração e dimensão de do mapa, neste caso, devem ser observados na
apresentação. especificidade de seus contextos, buscando “a
Na dimensão operacional, aquele trabalho de compreensão das maneiras nas quais eles são
localizar-se no mapa e inscrever-se indexalmente construídos e inseridos em culturas de práticas e
nele agora é, em grande medida, realizado de afetos” (Dodge et al., 2009, p. 23).
maneira automatizada pelo computador, através do Para os autores, mapas são práticas: mapear
sistema de GPS. Já na dimensão de exploração, a como conhecer, interpretar, traduzir e comunicar.
própria observação do mundo torna-se virtual. Para quem estuda mapas como media, é portanto
“Através da hibridização de diferentes conjuntos de importante entendê-los também como práticas de
dados indexados geograficamente (resultado de mídia. Segundo Krämer, no atual momento da
levantamentos), novos conhecimentos podem ser digitalização da cartografia, o mapear se
adquiridos sobre as relações na ‘própria earth real’” transformou em técnica cultural voltada à
(Krämer, 2015, p. 205). Finalmente, na dimensão de navegação pelo que a filósofa chama de paisagens
apresentação, a autora afirma que, pela capacidade do conhecimento. “Essas ‘paisagens’, entretanto,
de mash-ups exibirem dados de forma visual e não são mais acessíveis, exceto através dos media”
linguística, das mais variadas maneiras e (Krämer, 2015, p. 206).
modalidades combinatórias, o mapa acaba Em uma epistemologia mídio-crítica dos mapas,
prestando-se como substituto para representações de como proposta por Krämer, não se trata de
informação apenas linguísticas. convenientemente fechar os olhos para as distorções
Há uma corrente, que vem sendo conhecida do mapa, tendo em vista que é plenamente viável
como cartografia pós-representacional, que não usá-lo satisfatoriamente no cotidiano, ou de
adere à ideia de mapa como verdade, mas que se desprezar a operacionalidade de seu manuseio
propõe ir além da abordagem de mapa como prático na hora de abordá-los teoricamente de
construção social. Por entenderem que mapas não maneira adequada. Além de integrar essas
são representações ontologicamente garantidas, Rob perspectivas, é necessário sempre pensar os mapas
Kitchin e Martin Dodge propuseram que a teoria do como aberturas para recalcular caminhos e pensar o
mapa deveria deixar de buscar compreender a mundo de novas maneiras, ainda que isso possa ser,
natureza dos mapas (como eles são, ou seja, sua de imediato, desorientador.