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Mapa como meio:


assumindo os dois lados da moeda
Map as medium: assuming both sides of the coin

Resumo
Um dos mais antigos meios de comunicação criados pelos
Thaís Amorim Aragão humanos, o mapa tem sua relevância reafirmada na era da
thaisaaragao@gmail.com digitalização, fenômeno perceptível nos intensos e variados usos
Orcid: https://orcid.org/0000- de mapas em dispositivos móveis difundidos no cotidiano. Este
0003-3549-5261. trabalho oferece uma visão geral sobre vertentes de pensamento
Doutora em Comunicação pela que tratam os mapas como meios, desde abordagens com
influências da teoria matemática da comunicação ou do pós-
Unisinos, com estágio doutoral na
estruturalismo, até uma perspectiva integradora trazida pela
Escola de Mídia, Artes e Design da
filosofia dos meios.
Universidade de Westminster, em Palavras-chave: Mapa, cartografia, filosofia dos meios.
Londres. Mestra em Planejamento
Urbano e Regional pela UFRGS e Abstract
produtora cultural da Universidade One of the oldest media created by humans, the map has its
Federal do Ceará, com atuação na relevance reaffirmed in the era of digitalization, a phenomenon
Rádio Universitária FM 107,9. especially noticeable in the intense and varied uses of maps in
mobile devices widespread in daily life. This work offers an
overview of ways of thinking maps as media, from approaches
influenced by the mathematical theory of communication or by
post-structuralism, to a integrative perspective brought by media
philosophy.
Keywords: Map, cartography, media philosophy.

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Introdução cartografia, o mapa é, a um só turno, prática e


artefato.
O mapa é um meio de comunicação que nos Para pensar as bases filosóficas da cartografia
acompanha desde a antiguidade, sendo “pelo menos contemporânea, estudiosos do campo da Geografia
tão antigo quanto a invenção da linguagem e, destacam que as teorias dos mapas se constituem a
possivelmente, tão significativo quanto o partir de dimensões que se dividem entre
desenvolvimento da matemática” (Dodge et al., abordagens representacionais e pós-
2011, p. xix). Novas tecnologias vêm levando os representacionais. Assumir o mapa como
mapas a novos patamares em termos de diversidade representação é, em geral, também comprometer-se
e popularidade, e é igualmente fecundo o com a busca por explicações gerais, com um
pensamento que acompanha as mudanças pelas princípio de ordem e racionalidade, baseando-se em
quais vêm passando teoria e práxis da cartografia1 um conjunto de dualidades antagônicas do qual faz
nas últimas décadas. Mapear tem, ao mesmo tempo, parte a própria distinção entre o mapa e o território
uma dimensão epistemológica e uma ontológica. É dito representado (Quadro 1).
simultaneamente saber sobre o mundo e a criação de
mundo, a partir do que afirma sobre ele. Medium da

Quadro 1 — Oposições binárias que regem o conhecimento sobre o mundo


Mente ↔ Corpo Estrutura ↔ Agência
Empírico ↔ Teórico Processo ↔ Forma
Absoluto ↔ Relativo Produção ↔ Consumo
Nomotético ↔ Ideográfico Representação ↔ Prática
Ideológico ↔ Material Funcional ↔ Simbólico
Subjetivo ↔ Objetivo Imutável ↔ Fluido
Essência ↔ Imanência Texto ↔ Contexto
Estático ↔ Em devir Mapa ↔ Território

Fonte: Dodge; Kitchin; Perkins (2009, p. 3)2.

A articulação dessas ideias gera um grande influenciado por ideias discutidas também no campo
número de perspectivas em relação aos mapas, que da comunicação. Os debates passam pela teoria
podem ser exemplificadas pela relação entre mente matemática da comunicação, pelo estruturalismo (o
e corpo. Se ambos forem concebidos como mapa tido como texto ou discurso), pela virada
separados um do outro, a razão instrumental torna- cultural (com ênfase nos contextos e foco que passa
se possível, e o mapa pode desvencilhar-se de da produção ao consumo), e finalmente chegam a
contingências subjetivas, adotando status de concepções pós-estruturalistas, em que teorias
observador distanciado do mundo e exercendo unificadoras e a noção de espaço absoluto são
posição de objetividade. Mas se mente e corpo deixadas de lado, favorecendo questões de
forem pensados como unidade, isso leva à ideia de relatividade e eventualidade.
que o conhecimento é encarnado e, assim, mapas Do pós-guerra até os anos 1980, tendências
são reconhecidos em suas qualidades mais híbridas representacionais prevaleceram; depois, esse
e subjetivas, em que é mais difícil diferenciar estatuto passou a ser desafiado. Naquele momento,
categoricamente observador e observado. era importante defender que os mapas tinham
O pensamento sobre a cartografia vem sendo estatuto de verdade. Com o objetivo de estabelecer

1
Cartografia será tratada aqui em seu sentido e Deleuze e Guattari (1996), por exemplo.
denotativo, não se relacionando diretamente com noções 2 Traduções da autora.

desenvolvidas por autores como Martín-Barbero (2002)

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a cartografia como plenamente científica, parece não haver nenhum problema com esse
abandonou-se a influente ideia de cartografia como significado; mas e quanto à forma que a
arte. Em seguida, vieram abordagens aos mapas representação toma?” (Robinson; Petchenik, 1976,
como construções sociais, propondo uma p. 16).
desconstrução desses documentos e uma leitura de Buscava-se inovações como as dos mapas
suas entrelinhas, na busca pelos propósitos políticos coropléticos, em que cores, sombreamentos e outros
a partir dos quais mapas são criados e passam a grafismos eram associados a valores estatísticos, por
exercer efeitos sobre o mundo. É o início da exemplo. Também havia interface com as ciências
chamada cartografia crítica. A seguir, cognitivas, em voga naquele momento, de modo a
apresentaremos dois importantes trabalhos entender como as pessoas pensavam. Assim, a
discutidos no âmbito das teorias dos mapas, um cartografia poderia melhorar a exposição dos dados
alinhado à linha representacional e outro à linha e tornar os mapas mais compreensíveis. Embora
crítica, antes de chegarmos a uma abordagem mais outros autores afirmem que mapas são expressos a
contemporânea, ligada à filosofia dos meios, que partir de uma mistura de números, linguagem escrita
busca articulá-las entre si. e imagens visuais, para Robinson e Petchenik o
mapa é de natureza gráfica, algo da ordem da
1 Modelos comunicacionais cartográficos visualidade. Um estudo dos mapas, segundo eles,
deveria considerar a complexidade simultânea de
A partir da década de 1950, esforços particulares imagens visuais produzidas com uma boa dose de
se somaram para tornar a cartografia uma ciência intuição, como acontece no marco da pintura
disciplinar, prática e aplicada. O objetivo era artística (na contramão da tendência de sua época, a
capturar, da maneira mais acurada possível, dupla afirmava que a intuição, e não a análise,
aspectos importantes da superfície terrestre e suas dominava o campo da cartografia).
relações espaciais, representando-os a partir de uma Reconhecendo o cartógrafo como autor e o mapa
abstração em escala que lhes fosse fiel. Convencida como imagem, eles buscaram compreender de que
disso estava uma dupla de autores estadunidense maneira o mapa, transmitindo conhecimento sobre o
que, ainda nos anos 1970, publicou um importante espaço, funciona como instrumento de comunicação
estudo chamado The Nature of Maps. Robinson e entre cartógrafo e aquela pessoa que chamam de
Petchenik3 (1976) perguntaram-se o que faria um percipiente. Mencionam inclusive o termo
mapa ser um mapa, o que seria mapear, e onde o “cartologia”, que atenderia pelo estudo do mapa
mapa se encaixaria no sistema mais geral da como meio de comunicação. Além disso, atentaram
cognição humana. para a concretude do mapa enquanto medium: o
“Mapas são uma representação gráfica dos mapa é algo para o qual se pode olhar e que pode ser
arredores” (Robinson; Petchenik, 1976, p. 16). tocado, é uma coisa tangível. “Tradicionalmente,
Nesta definição, o território representado é aquele um mapa é em si mesmo um espaço” (Robinson;
que envolve o cartógrafo, e portanto no qual este Petchenik, 1976, p. 16).
está implicado. “Representar é corresponder a algo, Para eles, há a pessoa que mapeia e a pessoa que
simbolizar, descrever, retratar, apresentar faz mapas. A primeira processa informações que
claramente à mente, descrever, e assim por diante, e

3 Autora de dezenas de artigos acadêmicos, Barbara durante a Segunda Guerra Mundial, serviu como diretor
Bartz Petchenik foi editora cartográfica e se dedicou a da divisão cartográfica do Escritório de Serviços
projetos de educação envolvendo a popularização dos Estratégicos, órgão precursor da Agência Central de
mapas, especialmente entre o público infantojuvenil. Já Inteligência (CIA). Ele também é autor da popular
Arthur H. Robinson foi professor do departamento de Projeção de Robinson (1961) para o globo terrestre.
Geografia da Universidade de Wisconsin-Madison e,

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capta do ambiente, a partir de suas “entradas” surgir visando elaborar princípios básicos do que
(inputs) sensoriais, e concebe as coisas a partir das seria uma linguagem cartográfica. Buscava-se
relações espaciais. “[A] condição sine qua non de avaliar a efetividade e eficiência da comunicação
quem mapeia é a habilidade de operar em um modo por meio de mapas considerando diversos públicos-
espacial” (Robinson; Petchenik, 1976, p. 17). alvo, e também lançar bases para uma teoria da
Porém, o que é desenvolvido a partir dessa comunicação cartográfica.
habilidade não passaria de um constructo mental Robinson e Petchenik tentaram pensar a
sem existência material – não teria a corporeidade cartografia a partir da cadeia de transmissão
de um mapa, por exemplo. Quem mapeia não proposta pela teoria matemática e pelo modelo de
necessariamente faz mapas; mas quem faz mapas, Lasswell (quem diz o que, a quem, por qual canal e
antes de saber fazê-los, precisa saber mapear. A com que efeito). Em algumas análises, o mundo e/ou
pessoa que faz mapas é chamada de cartógrafa. o cartógrafo se apresentavam como a fonte, o mapa
Do lado da recepção, tem-se 1) a pessoa como a mensagem codificada, as ondas de luz que
percipiente, 2) a leitora de mapas e 3) a usuária de tornavam a mensagem visível como o sinal, o
mapas. A leitora de mapas contempla o mapa para espaço como o canal e o receptor-destinatário como
achar o nome de alguma cidade ou saber quanto decodificador e receptor. Mas o uso do modelo
mede o pico mais alto da região, sem maiores variava.
consequências. Assim como a usuária de mapas, que No diagrama a seguir (Figura 1), percebe-se a
consulta algum dado em particular para poder se preocupação em comunicar uma concepção de
orientar no dia a dia, a leitora não necessariamente mundo (a do cartógrafo) por meio do mapa,
está ganhando em termos de conhecimento espacial. diminuindo a defasagem entre a mensagem
Esta seria uma característica da percipiente: aquela transmitida e a recebida. “A concepção do mundo
que percebe. Trata-se da pessoa que incrementaria real (seletiva) do cartógrafo (C2) é a mensagem a ser
consideravelmente seu conhecimento sobre o transmitida, o mapa (C3) é o sinal codificado e a
espaço a partir do contato com o mapa. A cartógrafa concepção do percipiente (C4) é a mensagem
faz o mapa pensando na percipiente. recebida” (Robinson; Petchenik, 1975, p. 10). A
A preocupação em saber se percipientes mensagem recebida pode ser entendida como a
compreendiam o que cartógrafos buscavam própria concepção do percipiente, o que, em certa
transmitir ao criar mapas só emergiu quando se medida, aproxima essa heurística da teoria
formalizaram as teorias da comunicação e hipodérmica, que toma receptores como atomizados
investigações em sistemas de processamento de e pouco afetados por seus contextos sociais.
dados. A partir daí, vários trabalhos começaram a

Figura 1 – Diagrama com Ênfase em Aspectos Conceituais

Fonte: Robinson e Petchenik (1975)4

4 Creditado ao Laboratório Cartográfico da Universidade de Wisconsin.

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Entretanto, a aplicação de uma teoria subjetividade. Apesar das ideias suscitadas no


desenvolvida para sistemas de telecomunicação na contato com a Teoria da Informação, Robinson e
análise de transmissões de mensagens por meio de Petchenik não aderiram completamente a ela.
mapas levantou declaradas dúvidas sobre quais Diante das tentativas – por vezes um tanto
seriam as corretas equivalências. Por exemplo: o desastradas – de aproximar a comunicação
que seria ruído na cartografia? Os mapas ainda não cartográfica das premissas do modelo matemático, a
haviam sido amplamente remediados nas mídias dupla apontou para a impossibilidade de uma
eletrônicas, então o processo foi pensado aplicação direta dos conceitos fundamentais dessa
considerando cartas impressas. A dupla de teóricos teoria ao caso dos mapas.
estava certa da existência de “uma marcada Um dos problemas identificados foi o da
diferença entre ruído eletrônico e ruído gráfico” mensuração da quantidade de dados geográficos,
(Robinson; Petchenik, 1975, p. 11). Porém, não cuja natureza difere daquela dos dados tratados pela
chegaram a pensar no desencaixe de cores na Teoria da Informação, em que informação não tem
impressão ou nas informações que se apagam com o necessariamente a ver com significado. “As
desgaste da dobra do papel como possíveis ruídos mensagens frequentemente possuem significado; ou
inerentes à materialidade desse medium impresso. seja, elas se referem a algum sistema de entidades
Ao invés disso, detiveram-se em problemas do lado conceituais ou físicas ou estão correlacionadas de
do percipiente, na leitura do mapa. acordo com ele. Tais aspectos da comunicação são
irrelevantes para o problema de engenharia”
Uma dor de cabeça severa ou distrações externas, que
interferem na concentração do percipiente, não são
(Shannon, 1948, p. 379, grifo do autor).
propriamente chamados de ruído porque não são uma Para o problema de cartografia, porém, o
parte do sistema. Mas mesmo aqui estamos em terreno simbolismo dos elementos é fundamental. Espaços
instável; é difícil afirmar que a cabeça de alguém,
mesmo que esteja latejando, não seja parte do sistema. vazios em um mapa podem se referir a coisas muito
(Robinson; Petchenik, 1975, p. 11). importantes no território que se pretende
representar, enquanto pode ser apenas ausência de
Embora considerem que o corpo está implicado
informação em outro sistema. Além disso, os
no processo comunicativo, ainda que de maneira
sistemas comunicacionais tratados por Shannon e
insólita, o papel que ele desempenha mostra-se
Weaver lidam com linhas de transmissão lineares.
instrumental. O percipiente estaria de um lado,
“Isso é totalmente diferente da percepção de uma
como destinatário-receptor, enquanto órgãos do
diversidade de marcas bidimensionais em uma
sentido ou partes do corpo estariam de outro, como
figura (mapa)”, afirmavam Robinson e Petchenik.
decodificadores da mensagem. Quando analisam o
O artigo em que declaram o mapa como sistema
processo comunicacional de uma conversa, fica
de comunicação – The Map as a Communication
mais aparente a dissociação entre mente e corpo na
System (1975) – termina com um apelo ao estudo
abordagem:
mais aprofundado dos processos perceptuais e
[O] mecanismo da voz do falante constitui o cognitivos humanos. Também trazem uma
codificador, levando os pensamentos da fonte e conclusão cética acerca da teoria matemática. Para
transformando-os em ondas sonoras, enquanto o
eles, ela deveria inspirar o entendimento dos
mecanismo auditivo do ouvinte é o decodificador,
transformando as ondas sonoras de volta a processos mediados pelos mapas, mas só poderia ser
pensamentos. (Robinson; Petchenik, 1975, p. 9). aplicada a esses meios mediante adaptações às
condições únicas apresentadas pela cartografia.
O aparelho fonador, produtor da voz, é tratado
Apesar de as limitações desses modelos de
com certa desconexão não só em relação ao resto do
comunicação cartográfica terem logo se tornado
corpo, como também do próprio falante enquanto
aparentes, especialmente pela flagrante perda de

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complexos processos de significação e metáfora na atmosfera ou em órbita. A impressão é de que se


(Pickles, 2004) e pela desconsideração da agência pode ter o mundo inteiro diante de si. Esta
dos usuários latente na ausência de feedback, eles exacerbação da verticalidade tem sido característica
acabaram se tornando bastante influentes, da cartografia moderna ocidental, em grande medida
comprometendo uma maior abertura da imaginação devedora do paradigma da objetividade.
geográfica. Dreyer-Eimbcke (1992, p. 15) fornece uma
concisa definição de mapa5: “Uma representação
O que Bruno Latour chamou de “o acordo moderno”
(o compromisso com uma lógica binária de sociedade-
reduzida e plana da superfície terrestre”. Mas plana
natureza e lógicas representacionais em política e é tudo o que a superfície da Terra não é. Portanto
ciência) permaneceu no coração do pensamento sempre haverá algum tipo de distorção nessa
cartográfico. A representação cartográfica continuou a
ser conceitualizada como a transferência técnica da imagem de mundo. Tais distorções – como as da
informação do mundo-real para os usuários dentro popular projeção cilíndrica de Mercator, que torna
desse acordo moderno. (Pickles, 2004, p. 35) os terrenos mais próximos aos polos
2 A análise cartográfica Pós-Moderna de desproporcionalmente mais extensos do que aqueles
Harley que se situam em torno do Equador – vêm sendo há
muito tempo questionadas. Por vezes, a crítica
A experiência de uso de um mapa, pelo menos o acontece no próprio marco da arte da representação.
gênero mais comum deles, se inicia com o que seria Para Tom McCarthy (2014), o pintor Hans Holbein,
uma visão do território a partir de cima. É um olhar o Jovem, traz esse debate na sua obra Os
que simula vir do céu, como se o espectador pairasse Embaixadores, de 1533.

Figura 3 – Os Embaixadores

Fonte: Holbein (1533).

5
Os mapas tratados aqui serão os geográficos. A gêneros, como os cosmológicos e os ficcionais (Harley,
categoria, em termos mais amplos, inclui outros 2000 [1988], p. 303).

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mais amplo’. Uma definição ‘para uso na comunicação


[A]rtistas desde Leonardo e Dürer até Boetti e Ruscha com o público em geral’ seria ‘Cartografia é a arte,
têm sido fascinados por mapas: o problema do ciência e tecnologia de fazer mapas’: enquanto para
cartógrafo é o problema do desenhista, o problema da ‘cartógrafos em atividade’ seria ‘Cartografia é a
perspectiva. Holbein entendeu isso perfeitamente. Em ciência e tecnologia de análise e interpretação de
sua famosa pintura Os Embaixadores, dois estadistas relações geográficas e a comunicação de resultados
perfilam-se rodeados por uma parafernália por meio de mapas’. Muitos devem achar
cartográfica: globos, um torquetum, um quadrante, e surpreendente que ‘arte’ não exista mais na cartografia
por aí vai. No entanto, no carpete, ocupando o espaço profissional. No presente contexto, porém, esses sinais
entre os dois homens, está uma mancha à maneira de esquizofrenia ontológica podem ser lidos como um
proto-Google, uma zona anamórfica na qual a imagem reflexo da urgente necessidade de repensar a natureza
toda dá “errado”. Como descobrem os visitantes da dos mapas a partir de perspectivas diferentes. (Harley,
National Gallery, em Londres, quando se movem em 1989, p. 2).
torno do quadro para olhá-lo de lado, esta zona se
revela como a imagem de uma caveira, que surge em Como mudança epistemológica, ele propôs uma
foco no preciso momento em que os homens e seus
instrumentos dissolvem-se em um imbróglio de
redefinição dos mapas como representação do
marcas aleatórias. Deste modo, Holbein nos confronta poder, no quadro de um pensamento pós-moderno
com a futilidade não apenas da riqueza e do status, influenciado por Foucault e Derrida (Harley, 1989,
como também da própria perspectiva: para lá de um
determinado ponto, ambos estão condenados à p. 1). Sob essa perspectiva, mapas são uma forma de
ausência de forma, ao desaparecimento – à caveira e, conhecimento, que por sua vez é uma forma de
por extensão, à morte. (McCarthy, 2014, p. 6).
poder. A existência de contextos políticos por trás
Nem a Terra é plana nem mapas são apenas da produção cartográfica e a maneira como o
representação. Para o geógrafo, cartógrafo e exercício do poder estrutura o conteúdo dos mapas
historiador John Brian Harley (2000 [1988], 1989), seria uma espécie de “universalidade” na história da
mapas representam o que seria o mundo, mas cartografia. “[E]m um nível simbólico, a
também possuem uma forte capacidade de comunicação cartográfica pode reforçar esse
influenciar a visão que temos dele. Mapas são uma exercício através do conhecimento do mapa”
“forma de conhecimento socialmente construído” (Harley, 2000, p. 280). Um dos principais problemas
(Harley, 2000, p. 277), uma maneira de conceber, éticos decorrentes disso reside no fato de que o
articular e estruturar o mundo humano. poder se dissocia das responsabilidades sociais e das
Nos anos 1980, quando métodos computacionais consequências de seu exercício: “Um risco que se
e Sistemas de Informações Geográficas (SIG) faz sobre um mapa pode determinar as vidas e
passaram a ser cada vez mais adotados, Harley mortes de milhões de pessoas” (Harley, 2000, p.
passou a perceber uma tendência na comunidade de 283).
cartógrafos de se livrar de um passado em que os Para Harley, mapas “dessocializam” o território
mapas seriam, em tese, pouco precisos em relação que representam, tomando o espaço como um vazio
às extensões e aos contornos físicos dos territórios. social. A abstração, nesses documentos, ajuda a
Os mapas costumavam estar repletos de diminuir a consciência do impacto das políticas
iconografias carregadas de estereótipos e sobre a vida das pessoas na paisagem de referência.
preconceitos raciais associados às populações das “As decisões sobre o exercício do poder são
áreas conquistadas ou em vias de conquista. Tais retiradas da esfera dos contatos imediatos cara a
clichês se traduziam também na autoimagem cara” (Harley, 2000, p. 303). Como mediador dessas
soberba desses conquistadores, como McCarthy relações, os mapas costumam traduzir uma
salienta no comentário sobre Os Embaixadores. costumeira desigualdade entre aqueles que os
produzem e aqueles que estão sujeitos à sua
[E]m um gesto ambíguo em relação à natureza dos representação.
mapas, a Sociedade Cartográfica Britânica propôs que
deveria haver duas definições de cartografia, ‘uma
Em sua maior parte, mapas integram o aparato
para cartógrafos profissionais e outra para o público intelectual do poder, configurando-se como uma
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entre muitas armas usadas pelo imperialismo Para abrir a caixa-preta do cartógrafo, seria
(Harley, 2000, p. 282). A este, teriam servido como preciso entender que o pressuposto científico da
“um inventário gráfico, uma codificação de precisão pode ser usado para apagar vestígios do
informação sobre propriedade” (Harley, 2000, p. próprio enviesamento dos mapas ocidentais
285), muitas vezes antecipando-se, como profecias, modernos. É como se mapas pré-modernos ou
sobre o curso da geopolítica. Como “comunicadores mapas de outras culturas fossem de natureza inferior
de uma mensagem imperial” (Harley, 2000, p. 282), e inexata, incoerentes com a realidade. Isso porque
estas cartas geográficas podem ser usadas como eles não seguiriam um determinado modelo,
declarações, com efeitos práticos sobre o mundo. definido a partir de dois conjuntos de regras que,
O sigilo dos mapas e o controle dos meios de para Harley, subjazem e dominam a história da
produção cartográfica por grupos dominantes são cartografia ocidental desde o século XVII (Harley,
aspectos salientados para demonstrar o monopólio 2000, p. 4).
dessa forma de conhecimento. Em limites O primeiro conjunto de regras diz respeito à
domésticos, o mapa é entendido como instrumento produção técnica dos mapas. Ele é definido a partir
de disciplinamento espacial das pessoas comuns. de uma epistemologia científica que dita um padrão
Sua contraparte temporal seria o relógio, que passou de conhecimento e cognição. Expressas em termos
a regrar os ritmos cotidianos na modernidade. O matemáticos, essas regras estão fundadas na noção
controle dos corpos em termos globais pode ser de que o mundo representado é real e objetivo e que
compreendido, por exemplo, a partir do Meridiano a verdade cartográfica produzida a partir delas pode
de Tordesilhas, caso clássico das consequências ser verificada de forma independente. Esse modelo
sociais da arbitrariedade de um signo cartográfico. é tomado como parâmetro para qualificar qualquer
Harvey entende “mapas como um sistema ímpar mapa a partir de oposições, como falso ou
de signos, cujos códigos podem ser a um só tempo verdadeiro, subjetivo ou objetivo, literal ou
icônicos, linguísticos, numéricos e temporais, e simbólico, colocando mapas modernos ocidentais
como uma forma espacial de conhecimento” como isentos de juízos de valor, como documentos
(Harley, 2000, p. 300). Admitindo que existe uma não ideológicos.
linguagem cartográfica, ele propõe então uma No entanto, as regras da produção técnica seriam
análise do discurso dos mapas. Sua ideia de invariavelmente influenciadas por um segundo
linguagem está alinhada ao método iconológico do conjunto: as regras da produção cultural dos mapas.
historiador da arte Erwin Panofsky, embora o Elas dizem respeito a valores, como etnicidade,
geógrafo tome o mapa como um modo particular de política, religião, classe social, e se esconderiam nas
representação visual. A partir daí, adota uma tática entrelinhas do mapa, sendo operadas em atos nem
desconstrucionista para romper com a ideia de que sempre conscientes. “No mapa em si, estruturas
nos mapas existe uma ligação objetiva entre a sociais frequentemente se encontram disfarçadas
realidade e a representação. por um espaço instrumental, abstrato, ou
A epistemologia alternativa que Harley tinha em encarceradas nas coordenadas do mapeamento
mente está muito mais calcada nas teorias sociais do computacional” (Harley, 1989, p. 3).
que no positivismo científico que caracteriza boa O mapa comunica algo explicitamente, mas uma
parte da conduta voltada aos estudos da história dos análise de suas entrelinhas pode fazer emergir o que
mapas. Na abordagem proposta, mapas não são ele não necessariamente é feito para revelar, que são
apenas fruto da racionalidade, feitos apenas a partir os valores que regem aquela visão de mundo. “No
de normas geométricas, mas atendem também a sentido de Foucault, as regras podem nos tornar
valores e regramentos sociais. A cartografia teria aptos a definir uma episteme e a traçar uma
agendas ocultas (Harley, 1989, p. 3). arqueologia daquele conhecimento ao longo do

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tempo” (Harley, 2000, p. 6). A tarefa do pesquisador expressas; e um interno, intrínseco ao mapa. O autor
seria investigar como esses dois conjuntos de regras, toma a lógica tipográfica, como elaborada por
técnicas e culturais, se articulam na produção dos McLuhan, para falar de uma “lógica do mapa” que
mapas e rastrear o papel deles na normalização do age sobre a consciência humana.
discurso, ainda que imperceptível à primeira
Temos que considerar, no caso dos mapas, os efeitos
observação. No exame dessa textualidade6, uma da abstração, uniformidade, repetição e visualidade em
teoria da retórica cartográfica caberia a todos os moldar estruturas mentais, e em comunicar um sentido
mapas, uma vez que Harley considera a retórica um dos lugares do mundo. É essa disjunção entre esses
sensos de lugar e muitas outras visões alternativas do
aspecto universal de todos os textos cartográficos que o mundo é, ou do que pode ser, que tem levantado
(Harley, 1989, p. 11). questões sobre o efeito da cartografia na sociedade.
Todo fazer mapa opera por seletividade. Se este (Harley, 1989, p. 13-14).

lida com determinado aspecto do território, aquele Para compreendermos o poder interno dos mapas
trabalhará outro. No entanto, mesmo mapas – o peso de sua influência enquanto medium – é
oferecidos em um manto de objetividade e precisão necessário dar atenção ao passo a passo no fazer dos
podem revelar manipulações de conteúdo mapas: “Seleção, omissão, classificação, a criação
grosseiras, porém escamoteadas. Enquanto alguns de hierarquias, e a ‘simbolização’” (Harley, 1989, p.
elementos são enfatizados, outros da mesma 11). Como são compilados? Como as categorias são
categoria são suavizados ou mesmo completamente selecionadas? Como as hierarquias entre os
omitidos (populações autóctones em relação a elementos da paisagem são construídas? Que regras
populações colonizadoras, por exemplo). É o que regem a abstração desses elementos? Como os
Harley chama de “silêncios” nos mapas. Tais estilos retóricos são empregados na representação
ausências também são altamente significativas no de forma a reproduzir o poder? Seria preciso
exame da retórica cartográfica. identificar geometrias subliminares, “silêncios”,
Essa análise também não deve se limitar ao que hierarquias representacionais, descobrir “a
mapas representam ou deixam de representar, pregnância do opaco” onde parece só haver
devendo estender-se ao modo como fazem ou transparência. “Ao fato podemos acrescentar o mito,
deixam de fazê-lo. Manipulação da escala, tamanho e no lugar de inocência, devemos esperar
dos ícones e caracteres, espessura das linhas, uso de duplicidade” (Harley, 1989, p. 8).
cores, hachuras e sombreamentos: Ao invés de lançar mão de uma ciência da
independentemente do conteúdo, todos esses comunicação formal, Harley prefere trabalhar com
“truques do ofício cartográfico” (Harley, 1989, p. 7) a história e com a antropologia da imagem no estudo
produzem efeitos em sua leitura. A ênfase em alguns das qualidades narrativas da representação
aspectos em detrimento de outros contribui para cartográfica. “Apenas por meio do contexto esse
construir uma hierarquia visual dos símbolos significado e essa influência podem ser
expressos, que muitas vezes refletem e reforçam desvendados” (Harley, 2000, p. 281). Mapas não são
desigualdades da ordem social a partir da qual o neutros, e reconhecer isto nos levaria a repensar as
mapa é feito. consequências sociais das práticas da cartografia.
A cartografia, segundo Harley, manifesta dois
níveis de poder: um externo, geralmente 3 A dupla vida do mapa em uma
centralizado e burocrático, imposto de cima para epistemologia crítica do medium
baixo, cujas diretrizes podem estar bastante

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No sentido derridiano, texto é ato de construção, não simbólicos.
necessariamente dotado de elementos linguísticos, mas

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A filósofa dos meios Sybille Krämer (2015) mapa enquanto opacidade. “O filme pode ser
apresenta uma terceira abordagem, em posição discutido em termos das condições ópticas,
mediadora nessa possível disputa teórica sobre a químicas, técnicas, sociais e culturais que fazem as
natureza epistemológica dos mapas. Que posições projeções fílmicas e a instituição do cinema serem
esta terceira media? possíveis” (Krämer, 2015, p. 189). Na primeira
A primeira posição é a da perspectiva orientada posição, no caso da cartografia, a produção do mapa
à naturalização, que Krämer associa à narrativa do não é mais uma arte, e sim uma ciência. Na segunda,
mapa como transparência. Ela traz o cinema para o mapa não apenas descreve o território, mas cria
fins de comparação: “Assim como a tela do cinema, território.
na qual um filme é projetado, o mapa é um artefato A seguir (Quadro 2), estão sistematizadas as
técnico e simbólico que desaparece ‘por trás’ da principais diferenças entre as duas maneiras de
informação que transmite” (Krämer, 2015, p. 188). interpretar os mapas no âmbito desse debate, sob a
A segunda posição é a da perspectiva construtivista- perspectiva de Krämer.
instrumentalista, comprometida com a narrativa do

Quadro 2 — Diferenças entre as Narrativas da Transparência e da Opacidade dos Mapas


PERSPECTIVA ORIENTADA À NATURALIZAÇÃO PERSPECTIVA CONSTRUTIVISTA-
INSTRUMENTALISTA
Busca a representação exata dos territórios Busca as condições de possibilidade do mapa
O mapa é transparente O mapa é opaco
Interessa o que o mapa representa Interessa como o mapa faz isso
Naturaliza o artificial Culturaliza o natural
Mapa como artefato técnico e simbólico Mapa como objeto
Ligada à tradição do empiricismo britânico Ligada à tradição da filosofia continental (europeia)
e sua crítica do discurso

Fonte: Aragão, a partir de Krämer (2015).

Para a filósofa, o esboço dessas ideias dá a portanto, inter-relacionadas?” (Krämer, 2015, p.


entender que tais formas de conceber o mapa são 189-190). A partir da filosofia dos meios, Krämer
opostas e que suas divergências são irreconciliáveis. aposta em uma conexão — para ela, inevitável —
No entanto, ela não concorda que uma separação entre as duas interpretações. O mapa seria
completa entre as duas perspectivas seja a única mensageiro dos territórios representados e do
maneira viável de pensá-las. “Não seria possível conhecimento de quem faz o mapa e, ao mesmo
entender ambas [...] não como excludentes, mas ao tempo, rastro das suas próprias condições de
invés disso como abordagens ao mapa inclusivas e, produção (Quadro 3).

Quadro 3 — Abordagem Mídio-Teórica sobre as Duas Perspectivas Integradas

MAPA EM SUA TRANSPARÊNCIA MAPA EM SUA OPACIDADE


Mapa como mensageiro Mapa como rastro
Dimensão explícita, manifesta Dimensão implícita, latente
Mapa como medium heterônimo Mapa como dispositivo cartográfico

Fonte: Aragão, a partir de Krämer (2015).

Mais do que diferentes entre si, tais dimensões do mapa são reciprocamente dependentes na

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abordagem mídio-teórica apresentada por Krämer. é um medium, mas, ao invés disso, uma coisa que porta
marcas visuais e que é fácil de manusear e pendurar na
Seriam como duas faces da mesma moeda. Quando parede. O mapa não se torna um medium até que esteja
o medium se encontra no curso de seu uso, a situado em práticas que, ao mesmo tempo, assumem
mensagem é perceptível, mas o medium, em si, não sua transparência representacional, como quando
alguém usa o mapa para se orientar. (Krämer, 2015, p.
(como a tela do cinema na hora do filme). Assim, 192, grifo da autora).
durante seu uso, o medium só é acessível como um
rastro na própria mensagem. Toda a crítica às Há uma relação triádica entre as pessoas, os
distorções, retóricas e mitos em torno da cartografia, mapas e os territórios, sendo os mapas esses
como se faz na perspectiva pós-moderna do mapa terceiros, mediadores, que se interpõem entre dois
enquanto opacidade, só seria possível porque, antes, diferentes, entre campos heterogêneos, ligando-os
se dá um processo de transmissão em que o medium sem que essa diferença seja eliminada. Usuário,
necessariamente se neutraliza, assume sua mapa e território formam, para Krämer, uma espécie
transparência. “[O] mapa pode ser considerado de unidade operacional que, em si, tem agência e
como um rastro na narrativa da opacidade apenas atributos de um ator em uma rede7. Como
porque, e na medida em que, ele funciona como um mensageiro (e também uma espécie de embaixador),
mensageiro na narrativa da transparência” (Krämer, o mapa exerce a função de facilitar a transformação
2015, p. 190-191). de lugares objetivos em espaços subjetivos, em
Segundo a proposição mídio-teórica, a narrativa cooperação com o usuário (Krämer, 2015, p. 193).
do mapa como transparência faz parte de uma
Algo como ‘agência’ só emerge na conexão tripartite
abordagem prática ao mapa como medium, prática na qual o medium está situado como [no] meio 8
enquanto a narrativa do mapa como opacidade faz e como mediador. A habilidade midiatizada de agir
parte de uma abordagem teórica, sendo que ambas deve, portanto, ser compreendida como um potencial
‘distribuído’, cuja produtividade sempre depende da
tendem a desconsiderar o outro lado da moeda para colaboração de componentes humanos e não humanos.
serem operativas. Esse tipo de atividade distribuída não é impedida, mas,
ao contrário disso, tornada possível pela heteronomia
Vejamos primeiro o lado prático, ao qual está dos media ou sua habilidade de incorporar atributos de
ligada a ideia de transparência do mapa. A filósofa ambos os mundos entre os quais mediam. (Krämer,
argumenta que a transparência do mapa não é um 2015, p. 208).
mero ideologema, mas uma exigência
Quando o usuário levanta os olhos do mapa, o
completamente prática de seu funcionamento como
ambiente em que se encontra, antes desconhecido
medium. Para se orientar por um território, o usuário
sob certos aspectos, não ressurge diante de si
precisa encontrar a si mesmo e encontrar as coisas
interpretado, mas transformado. O mapa não se
ao seu redor no mapa, daí porque a qualidade da
agrupa com os signos, nessa abordagem mídio-
representação é um critério válido de avaliação da
teórica, porque seu uso como medium no âmbito da
cartografia. “A mensagem do mapa é assim baseada unidade funcional usuário-mapa-território opera
em referência” (Krämer, 2015, p. 192).
uma transformação, e não uma interpretação. Esse
Heterônomo, sujeito a forças ou vontades alheias, o
emprego da cartografia “não significa simplesmente
mapa transmite um conhecimento sobre algo que
que o mapa é lido e interpretado como uma forma
está para além de si. de representação simbólica, significando, sim, que
‘Transparência’ e ‘representacionalidade’ são algo fora do mapa é alterado através do ato de
características do uso de mapas. Um mapa, em si, não alguém se orientar com o mapa” (Krämer, 2015, p.
7
A referência é a Teoria Ator-Rede, que se desenvolve “entre dois”. Em inglês, middle. A autora atenta para a
a partir dos anos 1980, pelos estudos de pesquisadores existência física do medium no espaço, para sua
como Michel Callon, Bruno Latour e Madelaine Akrich. materialidade.
8
A referência aqui é espacial: “meio” como “no meio”,

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207). o mapa. “Representacionalidade e relatividade não


Mas como isso é operacionalizado? Antes de são mutuamente exclusivas, mas inclusivas”
mais nada, pela indexalização. Ela é a conexão que (Krämer, 2015, p. 198).
faz lugares descritos no mapa serem transformados
O mapa vincula dados que documentam as estruturas
em espaços praticados e, portanto, é “um elemento de um território com as intenções do usuário do mapa
essencial a todas as abordagens operacionais aos (‘eu estou aqui e quero ir para lá’). Toda interpretação
mapas” (Krämer, 2015, p. 193). Ao olhar para um que considere mapas como sendo ou ilustrações ou
construções, portanto, falhará. (Krämer, 2015, p. 208).
mapa em uso, o usuário está presente de duas
maneiras: no território representado e na Aqui, o medium é aquele que deixa perceptível
representação do território. “Através dessa algo imperceptível. Isso é possível na cartografia
identificação indexical de sua própria localização, o através de processos de generalização,
usuário torna-se parte do mapa” (Krämer, 2015, p. esquematização e estilização. Seleciona-se,
193) e, ao mesmo tempo, assume a posição de uma simplifica-se, elimina-se, equaliza-se, retifica-se,
terceira pessoa, que vê a representação do território compõe-se tipograficamente. Mapas podem ser
como se estivesse do lado de fora. considerados, segundo a filósofa, uma modalidade
Essas correspondências só são possíveis de representação sui generis, que emerge
mediante algumas limitações. Mapa e território são semioticamente de uma interseção entre linguagem
necessariamente diferentes, têm naturezas e imagem.
ontológicas distintas. Mapas são planos
bidimensionais que trazem conhecimento sobre Diferente de quadros e fotografias, mapas não são
sistemas simbólicos ‘consistentes’, mas ‘desconexos’,
ambientes tridimensionais onde a vida se e podem, por conseguinte, ser altamente seletivos
desenrola9. Não é possível transmitir (mensurados de encontro ao território que
representam): eles equalizam coisas que são
tridimensionalidade através de bidimensionalidade
diferentes, omitem algumas coisas e destacam outras.
sem distorção: este é o inescapável paradoxo (Krämer, 2015, p. 199).
cartográfico.
A distorção é condição de existência do mapa, Mapas são blasés por excelência, porque só
que não pode descrever algo sem deformar alguma podem existir ao descartar a maior parte da
de suas singularidades. Escalas que indicam abundância que se apresenta aos nossos sentidos no
proporção entre distâncias, sistemas de coordenadas território. Além disso, são fruto da arte da abstração,
que aplicam relações matemáticas entre os lugares, pois precisam concretizar algo que está no nível das
métodos de projeções que adaptam as feições de um ideias, ou seja, devem encarnar algo que não está
volume esférico a um plano: todos são elementos acessível ao sensório. Em termos práticos, são
que integram a lógica inerente aos mapas e que responsáveis por trazer essas abstrações ao regime
acabam por ser infiéis a determinados aspectos do da percepção.
território representado para poder representá-lo sob Krämer ressalta quatro tipos de invisibilidade
um prisma mais específico. que entram em jogo, em diferentes níveis: o
É uma questão de escolha, e apenas observando conhecimento sobre o território (primeiro nível), o
o contexto de produção e uso do mapa é que se pode autoposicionamento nele (segundo nível), os corpos
analisar sua performance e seus limites (Krämer, políticos (terceiro nível) e aquilo que só é possível
2015, p. 197). O que define o que vai ser preservado ver na forma de mapa (quarto nível). No primeiro
e o que vai ser distorcido é o propósito ao qual serve nível, o mapa não representa o território, mas

9 Dizer que os ambientes em que vivemos são bidimensionalidade dos mapas: eles costumam ficar
tridimensionais exclui a quarta dimensão do espaço, que desatualizados.
é o tempo. Tempo que também afeta a pretensa

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“coisas epistêmicas” a respeito dele. Revela, mais Denis Cosgrove.


especificamente, relações espaciais entre elementos
Ter visão superior aos outros pontos de vista é ter a
do território e lhes dá relevo, pois estas não estão vocação para pintar um quadro maior, que discipline e
disponíveis a olho nu. No segundo nível, essas ordene as outras imagens em seu interior. Cosgrove
coisas epistêmicas tornadas perceptíveis fazem caracteriza esse movimento de apolíneo, ‘centrado no
homem’, ‘eurocêntrico’ e ‘transcendente’ em suas
possível que o usuário do mapa se situe qualidades, o que permite a fusão do Oeste como
concretamente nele. “Esse lugar indexical é um Mundo, a esfera, o olho, o seio materno, e como globo,
‘lugar conhecido’” (Krämer, 2015, p. 201). o globalismo e a globalização. Como a tecnologia
cartográfica, a pretensão a todos os saberes não pode
No terceiro nível, chega-se a entidades ser subestimada quanto a seus efeitos transformadores
territoriais quase nunca identificáveis no mundo nas ciências humanas e sociais. (Baker, 2012, p. 209).
fenomênico. “Mapas topográficos ou os assim
Esse princípio interno organizador e
chamados ‘mapas gerais’ sempre descrevem – como
disciplinador é senão a manifestação do sujeito
a maior parte dos mapas – uma constelação de poder
cognoscente que se afasta do objeto cognoscível: o
político. Esse poder consiste amplamente em ‘poder
sujeito moderno. A perspectiva apolínea marca a
nomear’” (Krämer, 2015, p. 201). Esse poder de
posição científica e filosófica moderna desse
nomear faria com que aquilo que é visualizado no
humano formulado na modernidade.
mapa seja, ao mesmo tempo, criado e instituído no
próprio ato de visualização, demonstrando, dessa A forma invisível que o mapa implicitamente visualiza
maneira, como os mapas podem dar a ver o que não é a função metodológica do sujeito moderno de ser
capaz de adotar a perspectiva de um observador
pode ser visto. externo, neutro. Ou, para expressar isso em termos
Por fim, alcança-se o quarto e, para a filósofa da kantianos, o que o mapa visualiza é o fato
mídia, talvez o mais significativo nível. “A epistemológico de que o sujeito não é parte do mundo,
e sim constitui a condição transcendental de sua
cartografia oferece maneiras pelas quais se pode visibilidade e cognoscibilidade. (Krämer, 2015, p.
classificar, representar e comunicar informação 202-203).
sobre áreas que são muito grandes e muito
Mas esse sujeito não pode ser confundido com o
complexas para serem vistas diretamente” (Dodge e
usuário do mapa. Enquanto aquele, posicionado no
Kitchin, 2001 in Krämer, 2015, p. 243). Por trazer
ponto de referência do “olho apolíneo” trata-se de
algo do ambiente em que se vive que não pode ser
uma abstração epistemológica própria ao campo do
acessado no ambiente em que se vive, o mapa
imaginário, “uma função ilustrativa no mundo
precisa acionar um ponto de referência não humano,
simbólico do mapa” (Krämer, 2015, p. 203), sem
além desse ambiente. “Sair” do território seria,
base em experiência real, o real usuário do mapa
então, a única forma de ver algumas das coisas
posiciona-se indexalmente no mapa e, então, pode
epistêmicas a respeito dele.
também enxergar sua localização como um
Mapas, por conseguinte, representam uma ‘vista de observador externo. O ponto de vista apolíneo do
lugar nenhum’, ou uma perspectiva apolínea. Com os sujeito cognoscente moderno é uma função
mapas, algo ingressa no nosso mundo graças à nossa
habilidade de imaginar que estamos dando um passo metodológica que leva à ideia de neutralidade,
para fora dele. (Krämer, 2015, p. 202). enquanto o ponto de vista do usuário do mapa existe
no mapa enquanto evento perceptível.
Mapas são planos, mas não são como pinturas e Mas, e quando o olho apolíneo, outrora apenas
fotografias. A perspectiva clássica dos mapas
imaginável, é ocupado materialmente por um
topográficos oferece uma visão geral verticalizada
satélite girando em órbita? Para Krämer, a grande
da superfície dos territórios. Como enfatiza a
novidade nas mudanças promovidas pela
filósofa, essa perspectiva que voga na cartografia é digitalização no âmbito da cartografia está na
a apolínea, ideia formulada pelo geógrafo britânico
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emergência de práticas como a dos mash-ups: ontologia) para investigá-los enquanto conjunto de
alimentar conjuntos de dados globais com práticas em desdobramento (como os mapas
informações locais. Ela reconhece que “observações tornam-se, isto é, sua ontogênese) (Dodge et al.,
do mundo virtual de dados visualizados” (Krämer, 2009, p. 21).
2015, p. 205) demonstram proporcionar novas De maneira um tanto análoga a como Krämer
inspirações no campo da pesquisa científica e que é pensa a tríade usuário-mapa-território, os autores
provável que esteja em curso uma revolução ainda concebem o mapa como “uma produção co-
maior do que a Reforma Cartográfica entre os constitutiva entre inscrição, indivíduo e mundo;
séculos XVII e XVIII. uma produção que está constantemente em
A filósofa da mídia enfatiza as iniciativas de movimento, sempre procurando aparentar ser
mash-ups a partir de serviços como Google Earth e ontologicamente seguro” (Dodge et al., 2009, p. 21).
Google Maps como uma expressão do potencial dos A orientação que compartilham é que estejamos
mapas digitais no âmbito do cotidiano. Analisando atentos a como mapas emergem no curso das
os novos usos de mapas pela internet, ela pensou em práticas, nunca completamente formados. Isso
três dimensões que se encontram sempre integradas levaria, por exemplo, à produção de etnografias
no mapeamento digital: dimensão operacional, detalhadas do tornar-se mapa. O fazer mapa e o uso
dimensão de exploração e dimensão de do mapa, neste caso, devem ser observados na
apresentação. especificidade de seus contextos, buscando “a
Na dimensão operacional, aquele trabalho de compreensão das maneiras nas quais eles são
localizar-se no mapa e inscrever-se indexalmente construídos e inseridos em culturas de práticas e
nele agora é, em grande medida, realizado de afetos” (Dodge et al., 2009, p. 23).
maneira automatizada pelo computador, através do Para os autores, mapas são práticas: mapear
sistema de GPS. Já na dimensão de exploração, a como conhecer, interpretar, traduzir e comunicar.
própria observação do mundo torna-se virtual. Para quem estuda mapas como media, é portanto
“Através da hibridização de diferentes conjuntos de importante entendê-los também como práticas de
dados indexados geograficamente (resultado de mídia. Segundo Krämer, no atual momento da
levantamentos), novos conhecimentos podem ser digitalização da cartografia, o mapear se
adquiridos sobre as relações na ‘própria earth real’” transformou em técnica cultural voltada à
(Krämer, 2015, p. 205). Finalmente, na dimensão de navegação pelo que a filósofa chama de paisagens
apresentação, a autora afirma que, pela capacidade do conhecimento. “Essas ‘paisagens’, entretanto,
de mash-ups exibirem dados de forma visual e não são mais acessíveis, exceto através dos media”
linguística, das mais variadas maneiras e (Krämer, 2015, p. 206).
modalidades combinatórias, o mapa acaba Em uma epistemologia mídio-crítica dos mapas,
prestando-se como substituto para representações de como proposta por Krämer, não se trata de
informação apenas linguísticas. convenientemente fechar os olhos para as distorções
Há uma corrente, que vem sendo conhecida do mapa, tendo em vista que é plenamente viável
como cartografia pós-representacional, que não usá-lo satisfatoriamente no cotidiano, ou de
adere à ideia de mapa como verdade, mas que se desprezar a operacionalidade de seu manuseio
propõe ir além da abordagem de mapa como prático na hora de abordá-los teoricamente de
construção social. Por entenderem que mapas não maneira adequada. Além de integrar essas
são representações ontologicamente garantidas, Rob perspectivas, é necessário sempre pensar os mapas
Kitchin e Martin Dodge propuseram que a teoria do como aberturas para recalcular caminhos e pensar o
mapa deveria deixar de buscar compreender a mundo de novas maneiras, ainda que isso possa ser,
natureza dos mapas (como eles são, ou seja, sua de imediato, desorientador.

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