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Cartografias
de erro: mapas
subjetivos
e territórios
redesenhados
Vânia
Medeiros
Este artigo analisa mapas subjetivos como dispositivos Cartografías de error: mapas subjetivos Cartographies of error: subjective maps
propositores de leituras e ressignificações dos territó- y territorios rediseñados and redesigned territories
rios contemporâneos. Considera-se “mapas subjetivos” Este artículo versa sobre mapas subjetivos This article analyzes subjective maps as devices
trabalhos que articulam fotografia, vídeo, desenho e como dispositivos propulsores de lecturas that propose readings and resignifications
y resignificaciones de los territorios of contemporary territories. “Subjective
textos, realizados por artistas visuais que se apropriam contemporáneos. Se consideran “mapas maps” are works that articulate photography,
da iconografia e dos termos da cartografia tradicional, subjetivos” los trabajos que articulan video, drawing and text, made by visual
subvertendo representações hegemônicas. Estas carto- fotografía, vídeo, diseño y textos realizados artists who appropriate the iconography
por artistas visuales que se apropian de la and the terms of traditional cartography,
grafias de “erro”, inexatas, são realizadas por criadoras e
iconografía y de los términos de la cartografía subverting hegemonic representations.
criadores conscientes do enorme poder dos instrumen- tradicional, subvirtiendo representaciones These inaccurate “error” cartographies are
tos cartográficos em gerar discursos e legitimar poderes. hegemónicas. Esas cartografías de “error”, carried out by creators who are aware of the
Busca-se traçar um percurso sucinto do uso dos mapas inexactas, son realizadas por creadoras y enormous power of cartographic instruments
creadores conscientes del enorme poder de to generate discourses and legitimize powers.
subjetivos nos anos 1950 pelos situacionistas e destacar, los instrumentos cartográficos en generar This article seeks to draw a brief history
mais contemporaneamente, trabalhos das artistas So- discursos y legitimar poderes. Se busca trazar of the use of subjective maps in the 1950s
phie Calle, Bouchra Khalili e Marina Camargo. Para re- un recorrido sucinto del uso de los mapas by the Situationists and highlight more
subjetivos en los años 50 por los Situacionistas contemporaneous works by the artists Sophie
fletir sobre as obras elencadas, articulam-se textos de y destacar, más contemporáneamente, Calle, Bouchra Khalili, and Marina Camargo.
pesquisadores como Renata Marquez, Paola Berenstein trabajos de las artistas Sophie Calle, Bouchra To reflect on the works from the artists listed,
Jacques, Francesco Careri, entre outras e outros. Acom- Khalili y Marina Camargo. Para reflexionar we articulate texts by researchers such as
sobre las obras enumeradas, se articulan Renata Marquez, Paola Berenstein Jacques,
panha o artigo um conjunto de ilustrações intitulado “Er-
textos de investigadores como Renata Francesco Careri, among others. Attached
ros”, realizadas pela autora do texto. Marquez, Paola Berenstein Jacques, to the article there is a set of illustrations
Francesco Careri y otros. En el artículo se entitled “Errors”, carried out by us.
Palavras-chave: cartografia; arte; representação adjunta un conjunto de ilustraciones titulado Keywords: cartography; art;
“Errores”, realizadas por la autora del texto. representation of territories.
de territórios.
Palabras clave: cartografía; arte;
representación de territorios.
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convivência, na medida em que o automóvel começava a maneiras — textos, desenhos, fotografias, filmagens etc.
ganhar cada vez mais importância nas escolhas urbanís- —, e a partir deste material eram feitas composições que
ticas das cidades. Essa ambiência suscita questionamen- pouco ou nada tinham da cartografia tradicional, mas
tos por partes de artistas e intelectuais, que se inclinam que pretendiam trazer representações de trajetos pos-
a ver a cidade para além de seus aspectos puramente síveis dentro da cidade.
morfológicos e econômicos, como cenário específico de O primeiro mapa psicogeográfico pensado de fato
relações humanas, do intercâmbio de ideias, de cotidia- para uso de um público é La Guide Psychogéographique
nidades particulares, como, portanto, um rico manancial de Paris feito por Guy Debord.
de interesses existenciais e estéticos.
É nesse contexto que criadores reunidos na Internacio- Está concebido para ser um mapa dobrável para ser
nal Situacionista1, em Paris, especialmente o escritor Guy distribuído aos turistas; mas é um mapa que convida a
Debord, propuseram o caminhar como método “passional perder-se. […] Ao abrirmos esse estranho guia, encon-
objetivo” de exploração da cidade (CARERI, 2013, p.85). O in- tramos Paris explodida em pedaços, uma cidade cuja
tuito era opor-se ao funcionalismo moderno, racional, que unidade foi completamente perdida e na qual reco-
priorizava o fluxo de carros e construções de grande escala nhecemos apenas fragmentos da cidade histórica que
em detrimento do espaço relacional, lento, humano, do pe- flutuam num espaço vazio. O hipotético turista deve
destre. Os situacionistas elaboraram o que se chamou de seguir as setas que unem unidades de ambiente, zonas
“teoria da deriva”, que tomava o “perder-se” como um va- homogêneas determinadas com base em relevos psi-
lor analítico, crítico e poético. A deriva seria a apropriação cogeográficos. (CARERI, 2013, p.92).
do espaço urbano pelo pedestre através da ação do andar
sem rumo, obedecendo a uma geografia afetiva, pessoal, A pergunta subjacente aos mapas de Debord não é
que Guy Debord chamou de “psicogeografia”. “aonde” esses dispositivos cartográficos podem nos le-
Os situacionistas propunham o uso do tempo e do es- var, mas “a que estado”. Os usos implícitos ali estão para
paço da cidade de forma não utilitária, e essa prática era além da racionalidade, exigem que outros sentidos, não
estruturante em seu projeto de “preparar uma revolução apenas o da visão, sejam também ativados.
fundada no desejo” (CARERI, 2013, p.98). Estar perdido tor- Para além de um aparato técnico geográfico, Deleuze
na-se, portanto, um valor, porque é quando se deixa de e Guattari propõem o mapa como um conceito filosó-
exercer controle e domínio, e se é dominado pelo próprio fico, a representação de um fenômeno em curso e não
espaço. Perder-se pode ser praticado, portanto, como como um decalque. O mapa é mais o desenvolvimento
forma de adquirir novos estados de consciência. que a imagem final, o processo — e suas contradições —
A criação de mapas foi uma prática fundamental na- em movimento. Podemos dizer que, para estes autores,
quele contexto. As derivas eram registradas de diversas assim como nas cartografias subjetivas propostas pe-
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ção clara de errar e de compartilhar essas experiências” ao espectador, convertendo este em um participante
(JACQUES, 2012, p.23). Jacques denomina esses relatos ativo do percurso construído por ela. Michel de Certeau
de “narrativas errantes” e defende a sua importância diz que “todo relato é um relato de viagem, uma práti-
enquanto catalizadores de fissuras em formas pasteu- ca do espaço (CERTEAU, 2014, p.183). Cada leitor de Suite
rizadas de analisar e sentir: Venitienne caminha com a artista pelas ruas de Veneza,
recriando o mapa feito inicialmente por ela e assim man-
As narrativas urbanas resultantes das experiências re- tendo-o vivo. Nas palavras de Jacques:
alizadas pelos errantes, sua forma de transmissão e
compartilhamento, podem operar como potente deses- Essas narrativas errantes são narrativas menores, são
tabilizador de algumas das partilhas hegemônicas do micronarrativas diante das grandes narrativas mo-
sensível e, sobretudo, das atuais configurações aneste- dernas; elas enfatizam a questão da experiência, do
siadas dos desejos. (JACQUES, 2012, p.11). corpo e da alteridade na cidade e, assim, reafirmam a
enorme potência da vida coletiva, uma complexidade
As ações de Calle quase sempre são publicadas em li- e multiplicidade de sentidos que confronta qualquer
vros cuidadosamente editados, dispositivos potentes de “pensamento único” ou consensual como o promovido
leitura e fruição das situações criadas pela artista. É o hoje por imagens midiáticas luminosas e espetacula-
caso de Suite Vénitienne, ação realizada em 1980. Na pri- res das cidades. (JACQUES, 2012, p.20-21).
meira página do livro a artista resume a situação que dá
origem ao trabalho: A cartografia ressurge como material, numa perspectiva
mais recente, em trabalhos de artistas que buscam criar
Por meses, eu segui estranhos na rua. Pelo prazer de narrativas do espaço a partir de experiências próprias,
segui-los, não porque eles particularmente me inte- mas também a partir de relatos de outros sujeitos, se
ressassem. Eu os fotografei sem que soubessem, to- convertendo, através dessas obras, em:
mei notas de seus movimentos e por fim os perdi de
vista e os esqueci. No final de janeiro de 1980, nas ruas […] ciência das qualidades em detrimento de campo
de Paris, eu segui um homem ao qual perdi de vista das quantidades: ao mesmo tempo que estuda, anali-
alguns minutos depois na multidão. Naquela mesma sa e produz um conhecimento espacial, o mapa propõe
noite, ele me foi apresentado em uma abertura de ex- a ativação das alteridades do espaço, e aí reside o seu
posição. Durante nossa conversa, ele me contou que potencial político pós-abissal e a sua proposição como
estava planejando uma viagem iminente para Veneza. geografia coexistente. (MARQUEZ, 2009, p.88).
Eu decidi segui-lo. (CALLE, 2015, p.1).
O uso de mapas nos últimos anos é preponderante, es-
Durante duas semanas em Veneza, Calle anota os fatos pecialmente em trabalhos feitos por artistas de países
ocorridos durante sua vigilância a Henri B., bem como do sul global2: Oriente Médio, África e América Latina.
suas próprias emoções enquanto procura-o, acha-o e Percebe-se a urgência de artistas dessas regiões em ten-
segue-o através dos labirintos de Veneza. O leitor se vê sionar as representações dos territórios — especialmente
seguindo Sophie, que segue Henri B., num caminho tri- aqueles desenhados por cartografias coloniais — e rede-
lhado a pé. As decisões de Henri B. dão o passo. As deci- senhá-los. Diana Nawi, ao pensar a presença significati-
sões de Calle — sua forma de narrar, as fotografias que va deste dispositivo, questiona: “Podemos encontrar uso
escolhe apresentar — transformam a trilha em narrati- neles como metáforas abertas e plataformas gerativas
va, na medida em que cartografam a cidade de Veneza que servem não para calcificar uma ideia de região, mas
a partir de sua errância. A imprevisibilidade, o erro, está nos ajudar a criar sentidos dentro de contornos de um
no cerne conceitual do trabalho. Calle se preocupa em mundo amplo?” (NAWI, 2015, n.p.).
seguir, esse é o jogo. As imagens captadas são, durante O trabalho de Bouchra Khalili como um todo, e sua
o processo, um mistério para a artista, que só será des- obra The Mapping Journey Project (2008-2011) em parti-
vendado no final, quando a experiência acabar. cular, são um exemplo significativo do uso de mapas como
A errância veneziana de Sophie Calle poderia perma- forma de mover simbolicamente fronteiras fixas e ques-
necer na dimensão pessoal da vida da artista, mas o fei- tionar os sentidos estabelecidos. Imagens de mapas téc-
to de transformá-la em relato transmite a experiência nicos, que se apresentam na forma de uma videoinstala-
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The Mapping
Journey Project
(2008-2011),
Bouchra Kalili.
“Brasil. Extrativismo”
(2017); “Gravidade
na linha do Equador”
(2015); “Ao sul
(abaixo da linha do
Equador)” (2015),
Marina Camargo.
artigo
poder de colonização cultural. A artesania das práticas mapas de erros, transformá-los em imagem, amplia o
localiza-se em campos não epistemológicos no sentido mapa do outro, gerando geografias paralelas. Boaven-
convencional do termo, ou seja, em lugares distintos tura de Souza Santos cunhou o termo “epistemologias
daqueles tais como universidades e centros de pesquisa do Sul” para falar de práticas que “visam a recuperação
científica. (SANTOS, 2008, p.11 apud MARQUEZ, 2009, p.17). dos saberes e práticas dos grupos sociais que, por via do
capitalismo e do colonialismo, foram histórica e sociolo-
O trabalho desta artista nos recorda que mapas não são gicamente postos na posição de serem tão só objecto ou
cópias, são projeções. E projetam concepções do espaço. matéria-prima dos saberes dominantes, considerados os
Ao se apropriar dos dispositivos cartográficos, gerando únicos válidos.” (SANTOS, 2008, p.11).
neles recortes, dobras, intervenções plásticas, ela dessa- Ao contrário das epistemologias do Norte, as episte-
craliza as imagens quase canônicas desses dispositivos. mologias do Sul procuram incluir o máximo das experi-
Para o senso comum, o mapa é uma verdade irrefutável ências de conhecimentos do mundo” (SANTOS, 2008, p.11).
sobre o espaço. Na medida em que interfere, Camargo Os mapas subjetivos citados, assim como outros, realiza-
esfacela discursos rígidos e propõe um olhar móvel, uma dos especialmente por artistas e criadoras(es) que tra-
geografia “coexistente”. balham numa perspectiva decolonial contribuem para
adensar as discussões sobre os regimes de poder e pro-
A partir da situação de geografia coexistente ou de põem leituras que trazem a “quinta dimensão” do espaço,
artesania da prática geográfica, o inventário e a aná- à qual se refere Milton Santos. Renata Marquez defende
lise da arte propostos pretendem deslocar o ponto de que essas contrageografias não são meros instrumen-
vista da reflexão, deixando a história canônica da re- tos expressivos de apoio, mas funcionam “como veículo
presentação artística ocidental para buscar conceitos epistemológico, parceiro de outros saberes na formação
e figuras científicas, ocupando um lugar conceitual di- de um conhecimento espacial. A arte inscreve na cultu-
verso da filosofia da arte, disciplina frequentemente ra modos de olhar o mundo, discursos que trabalham na
alheia ao mundo e ainda herdeira da sua dimensão infinita tarefa de indagação, tradução e imaginação do
romântica. Entendida como geografia coexistente, espaço.” (MARQUEZ, 2009, p.19).
nada mais natural do que investigar a arte e suas Pedro Fiori Arantes diz que uma proposta de “contra-
artesanias de produção do espaço a partir de cate- -mapa” tem a tarefa de expor o que é invisível. Tanto do
gorias geográficas ou de outras ciências sociais que lado das forças político-econômicas mercantilistas e suas
podem ser detectadas numa concepção hibridizada dinâmicas exploratórias quanto no sentido de tirar da in-
do espaço. (MARQUEZ, 2009, p.18). visibilidade sujeitos políticos e seus territórios de ocupa-
ção que, em geral, estão suprimidos nos mapas.
Referências
ARANTES, Pedro Fiori. Entrevista concedida
ao The Bartlett Development Planning
Unit. Disponível em: <www. youtube.com/
watch?v=FkiiAKlsQP4>.
Acesso em: 26 fev. 2017.
CALLE, Sophie. Suite Venitienne.
Catskill, NY: Sigilo Press, 2015.
CARERI, Francesco. Walkscapes.
O caminhar como prática estética.
São Paulo: Editora G. Gili, 2013.
DEBORD, G. A Sociedade do Espetáculo.
Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil platôs:
capitalismo e esquizofrenia, vol.1.
São Paulo: Editora 34, 1996.
GRACIOTTI, Thais. De súbito, um caminho.
In: Atlântida (catálogo de exposição na
RV Cultura e arte). Salvador, 2016.
JACQUES, Paola Berenstein. Elogio aos
Errantes. Salvador: EDUFBA, 2012.
MADERUELO, Javier. La idea de espacio
en la arquitectura y el arte contemporáneos
1960-1989. Madrid: Ediciones Akal, 2008.