Você está na página 1de 18

MARC AUGÉ

NÃO-LUGARES
INTRODUÇÃO A UMA
ANTROPOLOGIA DA
SOBREMODERNIDADE

Tradução de Miguel Serras Pereira

Scanned by CamScanner
Scanned by CamScanner
Claude Simon, em que «as recordações da escola religiosa, a ora- não os apaga mas põe-nos em plano recuado. São como indica-
ção da manhã em latim, o benedicite do meio-dia, o angelus ves- dores do tempo que passa e sobrevive. Perduram como as pala-
peral fixam pontos de referência entre as perspectivas, os planos vras que os exprimem, e os exprimirão ainda. A modernidade em
sobrepostos, as citações de toda a ordem, que provêm de todos os arte preserva todas as temporalidades do lugar, tal como estas se
· tempos da existência, do imaginário e do passado histórico, e que fixam no espaço e na palavra.
proliferam numa aparente desordem, em torno de um segredo Por detrás da roda das horas e dos pontos fortes da paisagem,
central ... ». Estas «figuras pré-modernas da temporalidade contí- encontram-se, com efeito, palavras e linguagens: palavras espe-
nua que o autor moderno entende mostrar não ter esquecido no cializadas da liturgia, do «antigo ritual», em contraste com as da
preciso momento em que se emancipa delas» são igualmente fi- oficina «que canta e que palra»; palavras também de todos aqueles
guras espaciais específicas de um mundo do qual Jacques Le Goff que, falando a mesma linguagem, reconhecem que pertencem ao
mostrou como, desde a Idade Média, se construíra, em torno da mesmo mundo. O lugar consuma-se através da palavra, da troca
sua igreja e do seu campanário, através da conciliação de uma pai- alusiva de certas senhas, na conivência e na intimidade cúmplice
sagem recentrada e de um tempo reordenado. O artigo de Staro- dos locutores. Vincent Descombes escreve, a propósito da Fran-
binski abre significativamente com uma citação de Baudelaire e do çoise de Proust, que ela partilha e define um território «retórico»
primeiro poema de Tableaux parisiens [Quadros Parisienses], no com todos os que são capazes de entrar nas suas razões, todos
qual o espectáculo da modernidade reúne num mesmo impulso: aqueles cujos aforismos, o vocabulário e os tipos de argumen-
tação compõem uma «cosmologia», aquilo a que o narrador da
. .. I.àtelier qui chante et qui bavarde; Recherche chama a «filosofia de Combray» .
Les tuyaux, les clochers, ces mâts de la cité, Se um lugar se pode definir como identitário, relacional e his-
Et les graneis ciels qui font rêver deternité. tórico, um espaço que não pode definir-se nem como identitário,
nem como relacional, nem como histórico definirá um não-lugar.
... a oficina que canta e que palra; A hipótese aqui defendida é que a sobremodernidade é produtora
Campanários e canos, mastros da cidade, de não-lugares, quer dizer, de espaços que não são eles próprios
E os céus bons pra sonharmos com a eternidade.1 lugares antropológicos e que, contrariamente à modernidade bau-
delairiana, não integram os lugares antigos: estes, repertoriados,
«Baixo contínuo»: a expressão utilizada por Starobinski para evo- classificados e promovidos a «lugares de memória», ocupam nela
caros lugares e os ritmos de outmra.~significativa: a modernidade uma área circunscrita e espedfica. Um mundo em que se nasce
na clínica e em que se morre'l!JD hospital. .em que se multiplicam,
em modalidades luxuosas ou U$1ll8ll8S, es pontos de trânsito e as
o m i p ~ ~ (as cadeiasliedmt6.is e:os squats, os clubes
• 6 ~ - · 4eJataprometides

Scanned by CamScanner
à d trui1rão ou a uma perenid,de em d omposição) em que s
lug~r e d~ esp~ço, uma análise que constitui aqui um preliminar
de envolv uma red e rrada de meios d transp rtc que são tam-
obngatóno. Nao opõe, pelo seu lado, os «lugares» aos «espaço »
b m e paç s habitad s em que o fr quentador habitual da gran - como o «lugares>) aos «não-luga re ». O espaço, para e! , um
de aup rftci , das ca· a automática e d cartõ s de crédito «lugar praticado», «um ruzamento de mobiles»: são os transeun-
reata o g t , do omércio «mudo», um mundo as im prom tido
tes que tran formam em espaço a rua geometricamente defin ida
à individualidade ' litária, à pa sag m, ao provi ório e ao efémero como lugar pelo urban ismo. A e te paralelo, estabelecido ntrc
propõe ao antropólogo, orno ao demais, um obje to novo ujas o lugar como conjunto de elementos coexistindo numa certa
dimensõ s inéditas convém que meçamos antes de nos pergun- ordem e o e paço como animação desses lugares pelo de locar-
tarmos de que olhar poderá ele relevar. Acr centemos que, evi- -se de um mobile, correspondem várias referências que precisam
dentemente, se pa sa com o não-lugar a mesma coisa que com o os seus termos. A primeira referência (p. 173) é a Merleau-Ponty
lugar: nunca exi te sob uma forma pura; o lugares recompõem -se que, na sua Phénoménologie de La perceplion [Fenomenologia da
nele; recon tituem -se nele relações; as «a túcias milenar s» da «in- Percepção], distingue do espaço «geométrico» o «e paço antro-
venção do quotidiano» e das «artes de fazer», das quais Michel de pológico» como espaço «existencial», lugar de uma experiência
Certeau propôs análise subtis, podem nele abrir caminho e nele de relação com o mundo de um ser essencialmente situado «em
desenvolver as ua estratégias. O lugar e o não-lugar são antes po- relação com um meio)>. A segunda é à fala e ao acto de locução:
laridades fugidias: o primeiro nunca é completamente apagado e «O espaço estaria para o lugar como aquilo em que se torna a
o segundo nunca se consuma totalmente - palimpsestos nos quais palavra quando é falada, quer dizer, quando é apreendida na
se reinscreve sem ce sar o jogo misto da identidade e da relação. ambiguidade de uma efectuação, transmutada num· termo re-
Os não-lugares são, todavia, a medida da época; medida quantifi - levando de convenções múltiplas, posta como acto de um pre-
cável e que poderíamos tomar adicionando, ao preço de algumas sente (ou de um tempo) e modificada pelas transformações
conversões entre superfície, volume e distância, as vias aéreas, fer- devidas a vizinhanças sucessivas .. . » (p. 173). A terceira decorre
roviárias, das auto-estradas e os habitáculos móveis ditos «meios da anterior e privilegia a narrativa como trabalho que, incessan-
de transporte» (aviõe , comboios, autocarros), os aeroportos, as temente, «transforma lugares em espaços ou espaços em lugares»
gares e as estações aeroespaciais, as grandes cadeias de hotéis, (p. 174). Do que se segue, naturalmente, uma distinção entre
os parques de recreio, e as grandes superfícies da distribuição, a «fazer» e «ver», detectável na linguagem comum, que tanto propõe
meada complexa, enfun, das redes de cabos ou sem fios que mobi- um quadro («há ... ») como organiza movimentos ( «entras, atra-
lizam o espaço extra-terrestre em benefício de uma comunicação vessas, viras ... »), ou nos indicadores dos mapas - desde os mapas
tão estranha que muitas vezes mais não faz do que pôr o indivíduo medievais, que comportam essencialmente o traçado de percur-
em contacto com uma outra imagem de si próprio. sos e de itinerários, aos mapas mais recentes dos quais desapare-
A distinção entre lugares e não-lugares passa pela oposição ceram «os descritores de percursos» e que apresentam, a partir de
10 do lugar ao espaço. Ora Michel de Certeau propôs, das noções de «elementos de origem díspar», um «estado> do saber geográfico. , 71

Scanned by CamScanner
nu, roliva, •nfin , · 'Spl'd 1lmcnl ' ·1 narr .. llvn d vi.~1g ·m, m- nossa alt cst · mo, ·nto, e qu • a a11ális · pr posta por Mi h J d ,
pôl' u m u dupl, tH: ·cs:sidad lê «l:w.cr I r d' 11vern ( «his tórias crl ·au da n<> 5o d ·spaço pod, ajudar-no · a superar.
dt andar 'Se d· g '. t )S snc h,ili:,a<las p ,tu ci ta,ã dos lu '~ r · · qu · l 'rmo « • pa o» m • i próprio mais abslra l d , gu O
s .1ulMiz.1m», l · 177), nYl r'l ·v·a '111 úl- d «lu ar», nlravés de uj •rnpr go nos referimos p ·lo m um,
a <d linqu n ia>, a um a onlc irn 'n l (q u tcv · lugar), a um mito (lieu -dil, lug, r
om nome) u • uma hislória (/1aut l/cu, lu, r nobr ). Aplica
-S' indifcr •nl m nl a uma ex l ·n, o, a urna dlsl · n ia nlrc duas
oi ' as ou d is p ntos (d i.x.a-s um« •spaço» de dois metros nlrc
nda p , l d uma v da ão) ou a uma ordcn1 d· ,rand za t m
pora l («no e p ç de uma cmon. »). J::: um termo mincnt m ,nt ·
bslr. t , port an l , signifi ativo qu hoj . ja obj to deu '<>
is lemáti co, ainda u pouco di fcr nciado, na Jin ruag 01 orr •n
lc nc lin ua n parti ular d algum. inslilui ôes rt:prc-
nlaliva do noss temp . Le rand Laroussc illusl r~ rc rv um
tralam nto à part à expres 'ão « paço a reo», que d igna uma
p rte da atm sfera na qual um Estado ontrola a circulação aér a
( xpr ão meno concreta que a ua homóloga para o domínio
madLimo: «a águas territoriai »). mas cita tam bém outros uso
que documentam a plasticidade do termo. Na xpre ão «e pa-
ço judicial europeu», vemos bem que está implícita a noção de
fronteira, mas que, abstraindo de sa n ção de fronteira, é de lodo
um conjunto in titucional e normativo pouco localizável que se
trata. A expressão «espaço publicitário» aplica-se indiferente-
mente a uma porção de superfície ou de tempo «deslinada a rece-
ber publicidade nos diferentes media», e a expressão «compra de
espaço» aplica-se ao conjunto das «operações efectuadas por uma
agência de publicidade sobre um espaço publicitário». A voga do
termo «espaço» aplicada por igual a salas de espectáculos ou de
encontro («Espace Cardin», em Paris, «Espace Yves Rocher».
em La Gacilly), a jardins («espaços verdes»), a assentos de avião
1
72 («Espace 2000») ou a automóveis («Espace» Renault) testemunha 73

Scanned by CamScanner
ao mesmo tempo os temas que obsidiam a época contemporâ- tente preencher esse vazio por meio das informações múltiplas e
nea (a publicidade, a imagem, os tempos-livres, a liberdade, o minuciosas que lhe propõem os guias turísticos ... ou as narrati-
deslocar-se) e a abstracção que os corrói e ameaça, como se os vas de viagem.
consumidores de espaço contemporâneo fossem, antes de mais, Quando Michel de Certeau fala do «não-lugar», é para aludir a
convidados a contentar-se com palavras. uma espécie de qualidade negativa do lugar, de uma ausência do
Praticar o espaço, escreve Michel de Certeau, é «repetir a lugar a si próprio que o nome que lhe é dado lhe impõe. Os nomes
experiência jubilacória e silenciosa da infância: é, no lugar, ser próprios, diz-nos ele, impõem ao lugar «uma injunção vinda do
outro e passar para o outro» (p. 164). A experiência jubilatória outro (uma história ... )». E é verdade que aquele que, traçando um
e silenciosa da infância é a experiência da primeira viagem, do itinerário, enuncia os nomes correspondentes não conhece neces-
nascimento como experiência primordial da diferenciação, do sariamente grande coisa a seu respeito. Mas os nomes por si só
reconhecimento de si como si e como outro, que reiteram a expe- bastarão para produzir no lugar «essa erosão ou não-lugar que nele
riência do andar como primeira prática do espaço e a do espelho escava a lei do outro» (p. 159)? Todo o itinerário, precisa Michel
como primeira identificação com a imagem de si. Toda a narra- de Certeau, é de certo modo «desviado» pelos nomes que lhe dão
tiva regressa à infância. Recorrendo à expressão «narrativas de «sentidos (ou direcções) até então imprevisíveis». E acrescenta:
espaço», Certeau quer falar ao mesmo tempo das narrativas que «Estes nomes criam não-lugar nos lugares; mudam-nos em pas-
«atravessam» e «organizam» lugares («Toda a narrativa é uma sagens.» (p. 156) Poderíamos dizer, inversamente, que o facto da
narrativa de viagem ... », p. 171) e do lugar que a escrita da nar- passagem dá um estatuto particular aos nomes de lugar, que a falha
rativa constitui (« ... a leitura é o espaço produzido pela prática escavada pela lei do outro e onde o olhar se perde é o horizonte
do lugar constituído por um sistema de signos - uma narrativa», de toda a viagem (adição de lugares, negação do lugar) e que o
p. 173). Mas o livro é escrito antes de ser lido; passa por diferentes movimento que «desloca as linhas» e atravessa os lugares é, por de-
lugares antes de constituir um lugar: como a viagem, a narrativa finição, criador de itinerários, isto é, de palavras e de não-lugares.
que fala dela atravessa vários lugares. Esta pluralidade de luga- O espaço como prática dos lugares e não do lugar procede,
res, o excesso que impõe ao olhar e à descrição (Como ver tudo? com efeito, de um deslocar-se duplo: do viajante, decerto, mas
Como dizer tudo?), e o efeito de «desambientamento» que daí também, paralelamente, das paisagens das quais nunca obtém
resulta (recompor-nos-emos mais tarde, por exemplo comentan- senão vistas parciais, «instantâneos» adicionados uns atrás dos
do a fotografia que fixou o instante: «Olha, estás a ver, aqui? Sou outros na sua memória e, literalmente, recompostos na narrati-
eu ao pé do Pártenon», mas no momento ter-nos-á acontecido va que deles faz ou no encadeamento dos diapositiv s cujo co-
experimentar uma espécie de espanto: «O que é que vim aqui mentário, por ocasião do regresso, impõe aos que o rodeiam.
fazer?> ) introduzem, entre o viajante-espectador e o espaço da A viagem (essa da qual o etnólogo desconfia a ponto de a <odiar»)
viagem que percorre ou contempla, uma ruptura que o impede constrói uma relação fictícia entre olhar e paisagem. E, se cha-
74 de ver nele um lugar, de nele se encontrar plenamente, ainda que mamos «espaço» à prática dos lugares que define especificamente 75

Scanned by CamScanner
a viagem, devemos ainda acrescentar que há espaços em que O Mais ainda do que em Baudelaire, que se satisfaz com O convi-
indivíduo se experimenta como espectador sem que a natureza t~ ~ viagen:1, pensamos aqui em Chateaubriand, que não pára de
do espectáculo para ele conte realmente. Como se a posição do VIaJar efectivamente, e que sabe ver, mas vê sobretudo a morte das
espectador con tituísse o essencial do espectáculo, como se, em civilizações, a destruição ou o embaciamento das paisagens onde
última análise, o espectador em posição de espectador fosse para outrora brilhavam, os vestígios decepcionantes dos monumentos
si mesmo o seu próprio espectáculo. Muitos folhetos turísticos desmoronados. A Lacedemónia desaparecida, a Grécia em ruínas
sugerem este desvio, este retomar do olhar que propõe antecipa- ocupada por um invasor ignorante dos seus antigos esplendores re-
damente ao amador de viagens a imagem de rostos curiosos ou metem ao viajante «de passagem» a imagem simultânea da história
contemplativo , solitários ou reunidos, que perscrutam o infinito perdida e da vida que passa, mas é o próprio movimento da viagem
do oceano, a cadeia circular de montanhas nevadas ou a linha de que o seduz e o arrasta. Este movimento tem-se apenas a si próprio
fuga de um horizonte urbano repleto de arranha-céus: a sua ima- por fim - apenas o da escrita que fixa e que reitera a sua imagem.
gem em suma, a sua imagem antecipada, que não fala senão dele, Tudo é claramente dito logo no primeiro prefácio de Jtinéraire
mas é portadora de um outro nome (Taiti, Alpe d'Huez, Nova Ior- de Paris à Jérusalem [Itinerário de Paris a Jerusal~m]. Chateau-
que). O e paço do viajante seria assim o arquétipo do não-lugar. briand defende-se aí da acusação de ter feito a sua viagem «para
O movimento acrescenta à coexistência dos mundos e à ex- a escrever», mas reconhece que nela queria procurar «ima~ens»
periência combinada do lugar antropológico e do que já não o é para Os Mártires. Não aspira à ciência: «Não caminho no rasto
(pela qual s arobinski define substancialmente a modernidade) dos Chardin, dos Tavernier, dos Chandler, dos Mungo Park, dos
a experiência particular de uma forma de solidão e, no sentido Humboldt ... » (p. 19). Assim, esta obra sem finalidade declarada
literal, de uma «tomada de posição» - a experiência daquele que, corresponde ao desejo contraditório d e não falar senão do seu
perante a paisagem que toma um dever contemplar e que não autor sem nada dizer a ninguém: «De resto, é o homem, muito
pode não contemplar, «faz pose» e tira da consciência dessa atitu- mais do que o autor, que se verá por toda a parte, falo eterna-
de um prazer raro e por vezes melancólico. Não é de surpreender, mente de mim, e falava com segurança, uma vez que não contava
portanto, que seja entre os «viajantes» solitários do século pas- publicar as minhas memórias.» (p. 20) Os pontos de vista privile-
sado, não entre os viajantes profissionais ou os cientistas, mas os giados pelo visitante e que o escritor descreve são evidentemen-
viajantes por humor, pretexto ou ocasião, que nós consigamos re- te aqueles de onde se descobrem uma série de pontos dignos de
descobrir a evocação profética de espaços onde nem a identidade, nota ( « •• • o Monte Himeto a leste, o Pentélico a norte, o Parnes a
nem a relação, nem a história fazem verdadeiramente sentido, em noroeste .. . »), mas a contemplação termina significativamente no
que a solidão se experimenta como superação ou esvaziamento momento em que, virando-se sobre si própria e tomando-se por
da individualidade, em que só o movimento das imagens deixa objecto, parece dissolver-se na multiplicidade incerta dos olhares
entrever., por instantes, àquele que as vê fugir, a hipótese de um passados e por vir: «Este quadro da Ática. o espectáculo que eu
passado e a possibilicfade de um futuro. contempla~ fora contemplado por olhos fechados há dois mil 77

Scanned by CamScanner
anos. Eu passarei também: outros homens tão fugidios como profunda - uma realidade que parece impor-se à intuição de al-
eu virão fazer as mesmas reflexões sobre as mesmas ruínas .. .» guns homens de Igreja, no começo do século XII, essa, pelo cami-
(p. 153) O ponto de vista ideal, porque acrescenta à distância o nho por mar, do cumprimento de um rito de passagem» (p. 31).
efeito do movimento, é a ponte do navio que se afasta. A evoca- Com Chateaubriand, trata-se de coisa muito diferente; o pro-
ção da terra que desaparece basta para suscitar a do passageiro pósito último da sua viagem não é Jerusalém, mas Espanha, onde
que procura ainda avistá-la: em breve não é mais do que uma vai juntar-se à sua amante (mas o Itinerário não é uma confis-
sombra, um rumor, um ruído. Esta abolição do lugar é também o são: Chateaubriand cala e «faz pose»); os lugares santos, especial-
cúmulo da viagem, a pose última do viajante: «A medida que nos mente, não o inspiram. Já se escreveu muito sobre eles: << ... Aqui
afastávamos, as colunas de Súnion pareciam mais belas acima das experimento um embaraço. Devo oferecer o quadro exacto dos
ondas: avistavam-se perfeitamente no azul do céu devido à sua lugares santos? Mas então não posso senão repetir o que já se
extrema brancura e à serenidade da noite. Estávamos já bastante disse antes de mim: talvez não haja tema menos conhecido dos
longe do cabo, mas atingiam ainda o nosso ouvido o fervilhar das leitores modernos, e, todavia, nunca outro tema foi mais comple-
ondas aos pés do rochedo, o murmúrio do vento nos zimbros, e tamente esgotado. Devo omitir a pintura destes lugares sagrados?
o cantar dos grilos que, só eles, habitam hoje as ruínas do templo: Mas tal não será pôr de lado a parte mais essencial da minha via-
foram os últimos ruídos que ouvi na terra da Grécia.» (p. 190 ) gem, e fazer desaparecer dela o que é o seu fim e o seu prop~ito?»
Diga o que disser («Serei talvez o último francês saído do meu (p. 308) Sem dúvida, ainda, em semelhantes lugares, o cristão que
país para viajar na Terra Santa, com as ideias, o propósito e os ele quer ser não pode, tão comodamente como perante Ática ou
sentimentos de um antigo peregrino», p. 331), Chateaubriand a Lacedemónia, celebrar o desaparecimento de todas as coisas.
não realiza uma peregrinação. O lugar nobre no qual culmina a Por isso, descreve com aplicação, revela uma erudição ostensiva,
peregrinação é, por definição, um lugar carregado de sentido. O cita páginas inteiras de viajantes ou de poetas como Milton ou
sentido que nele se procura vale hoje, como valia ontem, para Tasso. Esquiva, e com acerto desta feita, a abundância do verbo
cada peregrino. O itinerário que aí conduz, balizado por etapas e e dos documentos que permitiriam definir os lugares santos de
por pontos fortes, compõe com ele um lugar «de sentido único», Chateaubriand como um não-lugar muito próxinlo daqueles que
um «espaço», no sentido em que Michel de Certeau emprega o os nossos folhetos e os nossos guias põem em imagens e em fór-
termo. Alphonse Dupron t faz notar que a própria travessia ma- mulas. Se voltarmos por um instante à análise da modernidade
rítima tem aqui um valor iniciático: «Assim, aos caminhos da como coexistência deliberada de mundos diferentes (a moder-
peregrinação, a partir do momento em que se impõe a travessia, nidade baudelairiana), verificaremos que a experiência do não-
uma descontinuidade e como que uma banalização de heroicida- -lugar como reenvio de si para si e posição à distância simultânea
de. Terra e água que muito desigualmente ilustram e sobretudo, do espectador e do espectáculo nem sempre está ausente dela.
com os percursos por mar, uma ruptura imposta pelo mistério da Starobinski, no seu comentário ao primeiro poema de Quadros
Parisienses, insiste na coexistência dos dois mundos que fazem 79
78 água. Dados aparentes, a coberto dos quais se dissimulava, mais

Scanned by CamScanner
a cidade moderna, com chaminés e campanários que se confun- o tomava por objecto, pois é precisamente o olhar que se funde na
dem, mas situa também a posição particular do poeta que quer, paisagem e se torna objecto de um olhar segundo e indeterminá-
em suma, ver as coisas de cima e de longe, e que não pertence vel - o mesmo, um outro.
nem ao universo da religião, nem ao do trabalho. Esta posição É a estes deslocamentos do olhar, a estes jogos de imagens,
corresponde, para Starobinskí, ao duplo aspecto da modernida- a estes esvaziamentos da consciência que podem conduzir, em
de: «A perda do sujeito na multidão - ou, inversamente, o poder meu entender, mas desta feita de modo sistemático, generalizado
absoluto, reivindicado pela consciência individual.» e prosaico, as manifestações mais características daquilo a que
propus chamar «sobremodernidade». Esta impõe, com efeito, às
Mas podemos também observar que a posição do poeta que olha consciências individuais experiências e provações muito novas
é, em si própria, espectáculo. Neste quadro parisiense, é Baude- de solidão, directamente ligadas ao aparecimento e à proliferação
laire quem ocupa a primeira posição, essa de onde vê a cidade, de não-lugares. Mas era útil, sem dúvida, antes de passarmos ao
mas que um outro ele, à distância, estabelece como objecto de exame do que são os não-lugares da sobremodernidade, evocar,
«segunda vista»: ainda que alusivamente, a relação que mantinham com as no-
ções de lugar e de espaço os representantes mais reconhecidos
Les deux mains au menton, du haut de ma mansarde, da «modernidade» em arte. É sabido que uma parte do i.ntE:'fesse
Je verrai l'atelier qui chante et qui bavarde; dedicado por Benjamin aos «passages»3 parisienses e, mais geral-
Les tuyaux, les clochers ... mente, à arquitectura de ferro e de vidro, está ligado ao facto de
ter podido discernir neles uma vontade de prefigurar o que seria
Com as duas mãos no queixo, do alto da mansarda, a arquitectura do século seguinte, um sonho ou uma antecipação.
Irei vendo a oficina que canta e que paira; Podemos perguntar-nos analogamente se os representantes da
Campanários e canos . ..
2
modernidade de ontem, aos quais o espaço concreto do mundo
ofereceu matéria de reflexão, não esclareceram antecipadamen-
Assim, Baudelaire não poria simplesmente em cena a necessária te certos aspectos da sobremodernidade de hoje, não pelo acaso
coexistência da antiga religião e da indústria nova, ou o poder ab- de algumas intuições felizes, mas porque encarnavam já, a título
soluto da consciência individual, mas uma forma muito particu- excepcional (a titulo de artistas), situações (posturas, atitudes)
lar e muito moderna de solidão. A evidenciação de uma posição, que se tornaram, em modalidades mais prosaicas, parte do todo.
de uma «postura», de uma atitude, no sentido mais físico e mais
banal do termo, efectua-se no fim de um movimento que esvazia 3 Em Paris, existem inúmeras galerias comerciais construídas com o propósito de
de todo o conteúdo e de todo o sentido a paisagem e o olhar que permitir aos parisienses usufruírem de espaços comerciais tranquilos, luminosos e
isolados do mundo exterior. Grandes obras arquitectónicas, estas galerias situam-se,
normalmente, entre duas ruas, formando uma passagem coberta Walter Benjamin
80 2 Op. cit, ibid. 81
dedicou a este tema o seu livro Passages. (N. R)

Scanned by CamScanner
Vê-se bem que por «não-lugar» designamos duas realidades com - distância, como América, Europa, Ocidente, consumo, circula-
plementares mas distintas: espaços constituídos em relação com ção. Certos lugares existem apenas pelas palavras que os evocam,
certos fins (transporte, trânsito, comércio, tempos livres), e are- não-lugares nesse sentido, ou antes, lugares imaginários, utopias
lação que os indivíduos mantêm com esses espaços. Se as duas banais, clichés. São o contrário do não-lugar, segundo Michel de
relações se sobrepõem largamente, e, em todo o caso, oficialmen- Certeau, o contrário do lugar com nome (do qual quase nunca
te (os indivíduos viajam, compram, repousam) , nem por isso se sabemos quem o disse nem aquilo que diz). A palavra, aqui, não
confundem porque os não-lugares mediatizam todo um conjunto escava um fosso entre a funcionalidade quotidiana e o mito per-
de relações consigo e com os outros que só indirectamente têm dido: cria a imagem, produz o mito e no mesmo acto fá-lo funcio-
que ver com os seus fins: do mesmo m odo que os lugares an- nar (os telespectadores permanecem fiéis à emissão, os albaneses
tropológicos criam o social orgânico, os n ão-lugares criam con- instalam-se em campos em Itália sonhando com a América, o
tratualidade solitária. Como imagin ar a análise durkheimiana de turismo desenvolve-se).
uma sala de espera de Roissy? Mas os não-lugares reais da sobremodernidade, os que toma-
A mediação que estabelece o laço dos indivíduos com os que mos quando entramos numa auto-estrada, fazemos compras no
os rodeiam no espaço do não-lugar passa por palavras, ou ainda supermercado ou esperamos num aeroporto pelo próximo voo .
por textos. Sabemos, para começar, que há palavras que fazem para Lon dres ou Marselha, têm a particularidade de se definirem
imagem ou, antes, imagens: a imaginação de cada um dos que também pelas palavras ou pelos textos que nos propõem: as suas
nunca foram a Taiti ou a Marraquexe pode ganhar rédea solta instruções de uso, em suma, que se exprimem segundo os casos
assim que estes n omes são lidos ou ouvidos. Alguns concursos de maneira prescritiva («circular pela fila da direita»), proibitiva
televisivos tiram, assim, uma parte do seu prestígio do facto de ( «proibido fumar») ou informativa («está a entrar no Beaujolais»)
serem ricamente dotados em prémios, nomeadamente viagens e e que recorre ora a ideogramas mais ou menos explícitos e codi-
estadias («uma semana para dois num hotel de três estrelas em ficados (os do código da estrada ou dos guias turísticos), ora à
Marrocos», «quinze dias com pensão completa na Flórida») cuja língua natural. Instalam-se assim as condições de circulação em
evocação basta para causar o prazer dos espectadores que não espaços onde se considera que os indivíduos interagirão apenas
são, nem nunca serão, seus beneficiários. O «peso das palavras», com textos sem outros enunciadores além de pessoas «morais»
de que se orgulha um semanário francês que o associa ao «cho- ou instituições (aeroportos, companhias de aviação, ministério
que das imagens», não é apenas o dos nomes próprios; numero- dos transportes, sociedades comerciais, polícia de viação, muni-
sos substantivos comuns (estadia, viagem, mar, sol, cruzeiro ... ) cipalidades) cuja presença se adivinha vagamente ou se afirma
possuem ocasionalmente, em certos contextos, a mesma força de de modo mais explícito ( «o Conselho Geral financia este troço
evocação. Pode-se imaginar, em sentido inverso, a atracção que de estrada», «o Estado trabalha para melhorar as suas condições
puderam e podem exercer noutras paragens palavras para nós de vida»), por detrás das injunções, dos conselhos, dos comentá-
82 menos exóticas, ou até mesmo desprovidas de qualquer efeito de rios, das «mensagens» transmitidas pelos inumeráveis «suportes»

Scanned by CamScanner
(painéis, ecrãs, cartazes) que fazem parte integrante da paisagem
de tal maneira que o espaço abstracto que são regularmente con -
contemporânea.
<luzidos a ler, mais do que a olhar, acaba por se tornar com o
As auto-estradas em França foram bem desenhadas e revelam
tempo estranhamente familiar, como para outros, mais favoreci-
paisagens, por vezes quase aéreas, muito diferentes das que pode dos, o vendedor de orquídeas do aeroporto de Banguecoque ou a
avistar quem viaja pelas estradas nacionais ou departamentais. duty-free de Roissy I.
Através delas, passamos do filme intimista aos grandes horizon- Há cerca de trinta anos, em França, as estradas nacionais, as
tes dos westerns. Mas são textos disseminados pelo percurso que departamentais, as vias férreas penetravam a intimidade da vida
dizem a paisagem e explicitam as suas secretas belezas. Já não quotidiana. O percurso rodoviário e o percurso ferroviário opu-
atravessamos as cidades, mas os pontos mais notáveis são assina- nham-se, deste ponto de vista, como o direito e o avesso, e esta
lados por painéis nos quais se inscreve um verdadeiro comentá- oposição continua parcialmente actual para aquele que se atém,
rio. O viajante é, de certo modo, dispensado de parar e até mesmo hoje, a frequentar estradas departamentais e transportes ferrovi-
de olhar. Assim, é-lhe solicitado, na auto-estrada do Sul, que con- ários que não sejam o TGV, ou ainda linhas regionais, quando
ceda alguma atenção a certa aldeia fortificada do século xm ou a subsistem, uma vez que significativamente são estes serviços lo-
certa vinha de renome, a Vézelay, «colina eterna», ou ainda às pai- cais, estes ramais de serviço local, que desaparecem. Outrora, as
sagens do Avallonnais ou do próprio Cézanne (retorno da cultura estradas departamentais, hoje muitas vezes condenadas a contor-
numa natureza também ela posta fora de alcance, mas sempre nar as aglomerações, transformavam-se regularmente em ruas da
comentada). A paisagem toma as suas distâncias, e os seus por- cidade ou da aldeia, enquadradas de um lado e de outro pelas fa-
menores arquitecturais ou naturais tornam-se pretexto para um chadas das casas. Antes das oito horas da manhã, depois das sete
texto, por vezes enfeitado por um desenho esquemático, quando da tarde, o viajante ao volante atravessava um deserto de fachadas
se verifica que o viajante de passagem não está, na realidade, em encerradas (portadas fechadas, luzes coadas pelas persianas, ou
situação de ver atentamente o ponto notável indicado à sua aten- ausentes, uma vez que os quartos e as salas-de-star davam muitas
ção e se acha por isso condenado a tirar prazer da simples notícia vezes para as traseiras da casa): era testemunha da imagem digna
da sua proximidade. e compassada que os franceses gostam de dar de si próprios, que
O percurso da auto-estrada é, pois, duplamente notável: evita, cada francês gosta de dar de si próprio aos seus vizinhos. O auto-
por necessidade funcional, todos os lugares nobres dos quais nos mobilista de passagem observava alguma coisa das cidades que se
aproxima, mas comenta-os; as áreas de serviço completam essa tomaram hoje nomes num itinerário (La Ferté-Bemard, Nogent-
informação e tomam cada vez mais o aspecto de casas da cul- -le-Rotrou); os textos que lhe podia acontecer decifrar (tabuletas
tura regional, propondo alguns produtos locais, alguns mapas e dos estabelecimentos comerciais na cidade, portarias munici-
alguns guias que poderiam ser úteis àquele que se detivesse. Mas pais), beneficiando de um sinal vermelho ou de um abrandamen-
a maior parte dos que passam não se detém, com efeito, voltam to, não lhe eram prioritariamente destinados. O comboio, pelo
eventualmente a passar, todos os verões ou várias vezes por ano; seu lado, era mais indiscreto, continua a sê-lo ainda. A via-férrea, 85

Scanned by CamScanner
muitas vezes traçada nas traseiras das casas que formam a aglo- («Obrigado pela sua visita», «Boa viagem,,, «Obrigado pela sua
meração, surpreende os habitantes da província na intimidade da confiança»), qualquer de nós: fabricam o «hom em médio,>, defini-
sua vida quotidiana, já não do lado da fachada, mas do lado do do como utilizador do sistema viário, comercial ou bancário. Fa-
jardim, da cozinha ou do quarto e, à noite, do lado da luz, en- bricam-no e eventualmente individualizam-no: em certas estradas
quanto, se não fosse a iluminação pública, a rua seria o domínio e auto-estradas, a advertência súbita de um painel luminoso (no!
da sombra e da noite. E o comboio, outrora, não era tão rápido no!) chama à ordem o automobilista demasiado apressado; em
que impedisse o viajante curioso de decifrar de passagem o nome certos cruzamentos parisienses, a passagem de um sinal vermelho
da estação - o que a velocidade excessivamente grande dos com- é automaticamente registada e o veículo do culpado, identificado
boios actuais impede, como se certos textos se tivessem tornado, por meio de uma fotografia. Todos os cartões de crédito são porta-
para o passageiro de hoje, obsoletos. Outros lhe são propostos: dores de um código de identificação que permite à caixa automá-
no «comboio-avião» que o TGV é um pouco pode consultar uma tica fornecer informações ao titular do cartão, ao mesmo tempo
revista bastante parecida com as que as companhias aéreas põem que lhe recorda as regras do jogo: «Pode levantar 600 francos.»
à disposição da sua clientela; esta revista ilustrada lembra-lhe, Enquanto era a identidade de uns e outros que fazia o «lugar an-
através de reportagens, fotografias e anúncios publicitários, a ne- tropológico», através das conivências da linguagem, dos pontos de
cessidade de viver à escala (ou à imagem) do m undo de hoje. referência da paisagem, das regras não formuladas do saber-viver,
Outro exemplo de invasão do espaço pelo texto: as grandes su- é o não-lugar que cria a identidade partilhada dos passageiros, da
perfícies nas quais o cliente circula silenciosamente, consulta as clientela ou dos condutores de domingo. Sem dúvida, mais ainda,
etiquetas, pesa os legumes ou a fruta numa máquina que lhe in- o anonimato relativo que se liga a esta identidade provisória pode
dica, juntamente com o peso, o seu preço, depois estende o cartão ser experimentado como uma libertação por aqueles que, por um
de crédito a uma mulher nova, também ela silenciosa, ou pouco tempo, deixam de ter de m anter a sua condição, de manter a sua
faladora, que submete cada artigo ao registo de uma máquina des- posição, de cuidar da sua aparência. Duty-free: imediatamente a
codificadora antes de verificar o bom funcionamento do cartão seguir a ter declinado a sua identidade pessoal (a do passaporte
de crédito. Diálogo mais directo, mas ainda mais silencioso: o que ou do bilhete de identidade), o passageiro do voo que em breve
cada titular de um cartão de crédito mantém com a caixa automá- parte precipita-se no espaço «livre de taxas», livre, ele próprio, do
tica onde o insere e em cujo ecrã lhe são transmitidas instruções peso das suas bagagens e dos ónus da quotidianidade, meno para
de um modo geral encorajadoras, mas constituindo por vezes ver- comprar mais barato, talvez, do que para experimentar a realidade
dadeiras chamadas à ordem («Cartão incorrectamente inserido», da sua disponibilidade do momento, a sua qualidade irrecu ável
«Retire o seu cartão», «Leia atentamente as instruções»). Todas as de pa ageiro pre te a partir.
interpelaçõe que emanam das nossas estradas, dos nossos centros Só ma emelhante ao outros, o utilizador do não-lugar
comerciai ou da vanguarda do sistema bancário na esquina das está com e te (ou com a potência que o governam) numa re-
no as ruas visam simultânea, indiferentemente, cada um de nós lação contratual. A e.xi tên ia do contrato é-lhe oca ionalmente

Scanned by CamScanner
lembrada (as instruções de uso do não-lugar fazem dele parte): esteja ainda carregado com os cuidados da véspera, já preocupa-
o bilhete que comprou, o ticket que deverá apresentar na porta- do com o dia seguinte, mas o seu meio ambiente do momento
gem, ou até o carrinho que empurra à sua frente pelos corredo- afasta-o provisoriamente de tudo isso. Objecto de uma possessão
res do supermercado são outras tantas marcas, mais ou menos branda, a que se abandona com mais ou menos talento ou con-
fortes, da sua presença. O contrato refere-se sempre à identida- vicção, como qualquer outro possesso, saboreia por um tempo
de individual daquele que o subscreve. Para aceder às salas de as alegrias passivas da desidentificação e o prazer mais activo do
embarque de um aeroporto é necessário apresentar primeiro o desempenho de um papel.
bilhete no check in (onde foi registado o nome do passageiro); É com uma imagem de si próprio que se acha em última
a apresentação simultânea no posto de controlo da polícia do análise confrontado, mas com uma muito estranha imagem, na
cartão de embarque e de um documento de identidade fornece verdade. O único rosto que se desenha, a única voz que ganha
a prova de que o contrato foi respeitado: as exigências dos dife- corpo, no diálogo silencioso que desenrola com a paisagem-texto
rentes países são diversas a este respeito (bilhete de identidade, que a ele se dirige como aos demais, são os seus - rosto e voz de
passaporte, passaporte e visto), e é desde o início que se verifica uma solidão ainda mais desconcertante pelo facto de evocar mi-
se foram tidas em conta. O passageiro só conquista, portanto, lhões de outras. O passageiro dos não-lugares só reencontra a sua
o seu anonimato depois de ter fornecido a prova da sua iden- identidade no posto de controlo alfandegário, na portagem ou na
tidade, contra-assinado, de certo modo, o contrato. O cliente caixa registadora. Entretanto, obedece ao mesmo código que os
do supermercado, quando paga por cheque ou por cartão de outros, regista as mesmas mensagens, responde às mesmas solici-
crédito, declina também a sua identidade, do mesmo modo que tações. O espaço do não-lugar não cria nem identidade singular,
o utilizador da auto-estrada. De alguma maneira, presume-se nem relação, mas solidão e semelhança.
sempre que ao utilizador do não-lugar cabe provar a sua ino- Também não deixa espaço à história, eventualmente trans-
cência. O controlo a priori ou a posteriori da identidade e do formada em elemento de espectáculo, isto é, as mais das vezes,
contrato coloca o espaço do consumo contemporâneo sob o em textos alusivos. Nele reinam a actualidade e a urgência do
signo do não-lugar: só inocente se lhe tem acesso. As palavras momento presente. Uma vez que os não-lugares se percorrem,
aqui quase deixam de intervir. Não há individualização (direito medem-se em unidades de tempo. Os itinerários não se fazem
ao anonimato) sem controlo de identidade. sem horários, sem quadros de chegadas ou de partidas que re-
Bem entendido, os critérios da inocência são os critérios esta- servam sempre um espaço para a menção dos eventuais atrasos.
belecidos e oficiais da identidade individual (os que figuram nos Vivem-se no presente. Presente do percurso, que se materializa
documentos e que misteriosos ficheiros registam). Mas a inocência hoje nos voos de longo curso num monitor em que se inscreve
é outra coisa ainda: o espaço do não-lugar desembaraça quem nele a cada minuto que passa a progressão do avião. Se necessário,
penetra das suas determinações habituais. Aquele não é já senão o comandante à bordo explicita-o em termos um tanto redun-
88 o que faz ou o que vive COD1D ~ c:Jient.e, rondutor. Talvez dantes: «À ditei.ta ,J0 ~ }'A*iem avistar a cidade de Lisboa.»

Scanned by CamScanner
De facto, nada se avista; o espectáculo, uma vez mais, é só uma os supermercados, frequentados maioritariamente por mulheres.
ideia, uma palavra. Na auto-estrada, alguns painéis luminosos O tema da igualdade (ou até mesmo, a prazo, da indistinção) dos
indicam a temperatura do momento e as informações úteis à prá- sexos é aí abordado de maneira simétrica e inversa: os novos pais,
tica do espaço: «Na A3, congestionamento de trânsito num troço lemos por vezes nas revistas «femininas», interessam-se pelas lides
de dois quilómetros.» Presente da actualidade em sentido amplo: domésticas e pela toilette dos bebés. Mas também é perceptível nos
a bordo do avião, os jornais são lidos e relidos; várias companhias supermercados o rumor do prestígio contemporâneo: dos media,
asseguram mesmo a retransmissão dos telejornais. A maior parte das vedetas, da actualidade. Porque, todas as contas feitas, o mais
dos veículos automóveis está equipada com aparelhos de rádio. notável é aquilo a que poderíamos chamar as «participações cru-
A rádio funciona de maneira ininterrupta nas áreas de serviço zadas» dos aparelhos publicitários.
ou nos supermercados: as músicas do dia, os anúncios publici- As rádios privadas fazem publicidade às grandes superfícies;
tários, algumas notícias são propostas, impostas aos clientes de as grandes superfícies, publicidade às rádios privadas. As áreas de
passagem. No conjunto, tudo se passa como se o espaço fosse re- serviço no tempo de férias oferecem viagens à América e a rádio
cuperado pelo tempo, como se não houvesse outra história senão informa-nos da oferta. As revistas das companhias aéreas fazem
as notícias do dia ou da véspera, como se cada história individual publicidade aos hotéis que fazem publicidade às companhias aé-
extraísse os seus motivos, as suas palavras e as suas imagens do reas - sendo o aspecto interessante do caso o facto de todos os
stock inesgotável de uma inexaurível história no presente. consumidores de espaço se acharem assim apanhaàos nos ecos
Assaltado pelas imagens superabundantemente difundidas e nas imagens de uma espécie de cosmologia objectivamente
pelas instituições do comércio, dos transportes ou da venda, o pas- universal, diferente da que os etnólogos tradicionalmente estu-
sageiro dos não-lugares faz a experiência simultânea do presente davam, e simultaneamente familiar e prestigiosa. Daqui resultam
perpétuo e do encontro consigo. Encontro, identificação, imagem: pelo menos duas coisas. Por um lado, estas imagens tendem a
este quadragenário elegante que parece saborear felicidades inefá- formar sistema; desenham um mundo de consumo que qualquer
veis sob o olhar atento de uma hospedeira loura, é ele; este piloto indivíduo pode fazer seu porque é nele incessantemente inter-
de olhar seguro que lança o seu turbo-diesel em não se sabe que pelado. A tentação do narcisismo é, aqui, ainda mais fascinante
pista africana, é ele; este homem de máscara viril que uma mulher pelo facto de parecer exprimir a lei comum: fazer como os outros
contempla apaixonadamente porque usa uma água-de-colónia de para ser o próprio. Por outro lado, como todas as cosmologias,
perfume selvagem, é ele também. Se estes convites à identificação a nova cosmologia produz efeitos de reconhecimento. Paradoxo
são essencialmente masculinos, é porque o ideal do eu que difun- do não-lugar: o estrangeiro extraviado num país que não conhe-
dem é, com efeito, masculino e porque, por enquanto, uma mulher ce (o estrangeiro «de passagem») não se orienta nele senão no
de negócios ou uma condutora críveis são representadas como anonimato das auto-estradas, das áreas de serviço, das grandes
po suindo qualidades «masculinas». O tom muda, naturalmente, superfícies ou das cadeias de hotéis. O logótipo de uma marca de
gasolina constitui para ele um ponto de referência tranquilizador 91
e as imagem também, nos não-lugares menos prestigiados que são

Scanned by CamScanner
e descobre com alivio nas prateleiras do supermercado os produ- O vocabulário, aqui, é essencial porque tece a trama dos há-
tos sanitários, domésticos ou alimentares consagrados pelas fir- bitos, educa o olhar, informa a paisagem. Voltemos, por um ins-
mas multinacionais. Inversamente, os países de Leste conservam tante, à definição que Vincent Descambes propõe da noção de
um certo exotismo por não disporem ainda de todos os meios de «região retórica» a partir de uma análise da «.filosofia», ou antes,
aderirem ao espaço mundial do consumo. da «cosmologia» de Combray: «Onde é que a personagem está
em casa? A pergunta incide menos num território geográfico do
Na realidade concreta do mundo de hoje, os lugares e os espaços, os que num território retórico (tomando-se a palavra retórica no
lugares e os não-lugares, emaranham-se, interpenetram-se. A pos- sentido clássico, sentido definido por actos retóricos como a apo-
sibilidade do não-lugar nunca está ausente seja de que lugar for. O logia, a acusação, o elogio, a censura, a recomendação, o aviso,
regresso ao lugar é o recurso de quem frequenta os não-lugares (e etc.). A personagem está em sua casa quando se sente à vontade
sonha, por exemplo, com uma residência secundária enraizada nas na retórica das pessoas cuja existência partilha. O sinal de que se
profundidades de um solo natal). Lugares e não-lugares opõem- está em casa é a possibilidade de se ser compreendido sem de-
-se (ou chan1am-se) como as palavras e as noções que permitem masiados problemas e de, ao mesmo tempo, se conseguir entrar
descrevê-los. Mas as palavras da moda - as que há cerca de trinta nas razões dos interlocutores sem n ecessidade de longas explica-
anos não tinham o direito de existência - são as dos não-lugares. ções. A região retórica de uma personagem acaba onde o seus
Assim, podemos opor as realidades do trânsito (os campos de trân - interlocutores já não compreendem as razões que ela dá dos seus
sito ou os passageiros em trânsito) às da residência ou da mora- factos e gestos, nem os agravos que formula ou os sentimentos de
da, o viaduto (onde não nos cruzamos) à encruzilhada (onde nos admiração que manifesta. É uma perturbação da comunicação
encontramos), o passageiro (que o seu destino define) ao viajante retórica que atesta a transposição de uma fronteira, que devem os
(que deambula pelo caminho) - significativamente, os que para a decerto representar como uma zona fronteiriça, uma raia, mais
SNCF são ainda viajantes tornam-se passageiros quando apanham do que como uma linha bem traçada.» (p. 179)
o TGV 4 - , a urbanização de conjunto (ensemble: «grupo de habi- Se Descambes tem razão, devemos concluir que no mundo da
tações novas», segundo o Larousse), onde não vivemos juntos e sobremodernidade estamos sempre e já nunca estamos <<em casa»:
que nunca se situa no centro seja do que for (grandes urbanizações as zonas fronteiriças ou as «raias» de que nos fala já nunca introdu-
de conjunto: slmbolo das zonas ditas periféricas), ao monumento, zem a mundos completamente estrangeiros. A sobremodernidade
onde se partilha e comemora, a comunicação (os seus códigos, as (que procede simultaneamente das três figuras do excesso que são
suas imagens, as suas estratégias) à língua (que se fala). a superabundância de acontecimentos, a superabundância espa-
cial e a individualização das referências) encontra naturalmente
4 A companhia ferroviária francesa (SNCF, Societé National des Chemins de Fer) a sua expressão completa nos não-lugares. Por estes, pelo contrá-
distingue assim - ao contrário, por exemplo, do que se passa entre nós com a CP -
na sua ternunologia (voyageurs e passagers) os utilizadores das dua.s categorias de rio, transitam palavras e imagens que retomam raízes no luga-
comboio. (N. T.) res ainda diversos onde os homens tentam con truir uma parte 93

Scanned by CamScanner
da sua vida quotidiana. Acontece inversamente que o não-lugar espectáculo específico - e o mesmo se pode dizer que faz de todos
vá buscar as suas palavras ao solo natal, como vemos nas auto- os exotismos e de todos os particularismos locais. A história e o
-estradas, em que as «áreas de repouso» - sendo o termo «área» exotismo desempenham nela o mesmo papel que as «citações»
efectivamente o mais neutro possível, o mais afastado do lugar e no texto escrito - estatuto que se exprime às mil maravilhas nos
do lugar com nome - são por vezes designadas por referência a catálogos editados pelas agências de viagens. Nos não-lugares da
algum atributo particular e misterioso do solo natal próximo: área sobremodernidade há sempre um espaço específico (na montra,
de Hibou, área de Gite-aux- Loups, área de Combe-Tourmente, num cartaz, à direita do aparelho, à esquerda da auto-estrada)
área de Croquettes .. . Vivemos, pois, num mundo onde aquilo a para «curiosidades» apresentadas enquanto tais - ananases da
que os etnólogos chamavam tradicionalmente «contacto cultural» Costa do Marfim; Veneza, cidade dos Doges; a cidade de 'ían-
se tornou um fenómeno geral. A primeira dificuldade de uma et- ger; o sítio de Alésia. Mas aqueles não operam qualquer síntese e
nologia do «aqui» é o facto de esta estar sempre relacionada com nada integram, autorizam somente, pelo tempo de um percurso,
o «alhures», sem que o estatuto desse «alhures» possa ser consti- a coexistência de individualidades distintas, semelhantes e indi-
tuído em objecto singular e distinto (exótico). A linguagem do- ferentes umas às outras. Se os não-lugares são o espaço da sobre-
cumenta estas impregnações múltiplas. O recurso ao basic english modernidade, esta não pode então aspirar à mesmas ambições
das tecnologias da comunicação ou do marketing é a este respeito que a modernidade. A partir do momento em que os indivíduos
revelador: marca menos o triunfo de uma língua sobre as outras se aproximam, criam o social e ordenam lugares. O espaço da so-
do que a invasão de todas as línguas por um vocabulário de au- bremodernidade, esse, é trabalhado pela seguinte contradição: só
diência universal. É a necessidade deste vocabulário generalizado conhece indivíduos (clientes, passageiros, utentes, ouvinte), mas
que é significativa, mais do que o facto de ele ser inglês. O enfra- estes não são identificados, socializados e localizados (nome, pro-
quecimento linguístico (se denominarmos assim a diminuição da fissão, local de nascimento, local de residência) excepto à entrada
competência semântica e sintáctica na prática média das línguas e à saída. Se os não-lugares são o espaço da sobremodernidade,
faladas) é mais imputável a esta generalização do que à contami- é necessário explicar este paradoxo: o jogo social parece jogar-
nação e à subversão de uma língua por outra. -se alhures que não nos postos avançados da contemporaneidade.
Vemos bem, a partir daqui, o que distingue a sobremoderni- É à maneira de um imenso parênteses que os não-lugares acolhem
dade da modernidade tal como a define Starobinski através de indivíduos mais numerosos de dia para dia. Por isso, são também
Baudelaire. A sobremodernidade não é a totalidade da contem- particularmente visados por todos os que levam até ao terrorismo
poraneidade. Na modernidade da paisagem baudelairiana, pelo a sua paixão do território a preservar ou a conquistar. Se os aero-
contrário, tudo se mistura, tudo se conjuga: os campanários e os portos e os aviões, as grandes superfícies e as gares foram sempre
canos são os «senhores da cidade». O que o espectador da mo- o alvo privilegiado dos atentados (para já não falarmos dos auto-
dernidade contempla é a imbricação do antigo e do novo. A so- móveis armadilhados), tal fica a dever-se a razõe de eficácia, se
94 bremodern idade, pelo seu lado, faz do antigo (da história) um podemos servir-nos do termo. Mas talvez eja também porque, 95

Scanned by CamScanner
uni er al, d' annlar de fundar o lo al, d a.firm r e d recu ·ar
a rigem . •sta parl imp n ável do pod r que sempre fundou a
ordem ' O ial, e n ssári invertend , como que por meio do
arb trio d um fa to natural, os termos que s rvem para a pen-
ar en ontra, sem dúvida uma expre são particular na ontade
re lu ionária de pensar ao me mo tempo o univer al e a auto-
ridade, d r cusa.r ao mesmo tempo o de potismo e a anarquia,
ma é mais geralmente constituti a de toda a ordem localizada,
que por definição, tem de elaborar urna e:>...l)ressão espacializa-
da da autoridade. A imposição que pesa sobre o pen amemo de
Anacharsis Cloot (o que permite, ocasionalmente, sublinhar a
sua <,ingenuidade») e tá no facto de ele ver o mundo como um
lugar - lugar do género humano, decerto, mas que passa pela or-
ganização de um espaço e pelo recon hecimento de um centro.
É, de resto, bastante significativo que, quando e fala hoje da
Europa dos Doze ou da ova Ordem Mundial, a questão que
imediatamente se põe seja ainda a da localização do verdadeiro
centro de uma ou de outra; Bruxelas (para já não falarmos de
Estrasburgo) ou Bona (para não dizermos ainda Berlim)? ova
Iorque e a sede da ONU, ou Washington e o Pentágono? O pensa-
mento do lugar continua a assombrar-nos e a «ressurgência» dos
nacionalismos, que lhe confere uma actualidade nova, poderia
passar por um «regresso» à localização da qual o Império, como
pretensa figuração do género humano vindouro, poderia pare-
cer ter-se afastado. Mas, de facto, a linguagem do Império era a
mesma que a das nações que o rejeitam, talvez porque tanto o
antigo Império como as novas nações tenham de conquistar a sua
modernidade antes de pas arem a sobremodernidade. O Impé-
rio, pensado como universo «totalitário>,, nunca é um não-lugar.
A imagem que se lhe associa é, pelo contrário, a de um universo
5 •l.a ville ínquíete.., Le Temps de la réflexion, 1987. onde nunca ninguém está só, onde toda a gente está sob controlo 97

Scanned by CamScanner
imediato, onde o passado enquanto tal é rejeitado (fez-se dele
tábua rasa). O Império, como o mund o de Orwell ou de Kafka,
não é pré-m odern o, mas «para-moderno»; produto falhado da
mode rnida de, em caso nenh um é o seu futuro e não releva de
qualquer das três figuras da sobremodernidade que tentámos pôr
em evidência. É até mesmo, muito estritamente, o seu negativo.
Insensível à aceleração da história, reescreve-a; preserva os que
dele relevam do sentimento do estreitamento do espaço, limitan-
do a liberdade de circulação e de informação. Precisamente desse
modo (e como se revela nas suas reacções crispadas às iniciativas
tomadas a favor do respeito dos direitos do homem), afasta da sua
ideologia a referência individual e assume o risco de a projectar
no exter~or das suas fronteiras - figura rutilante do mal absoluto
ou da sedução suprema. Pensamos, decerto, aqui, antes de mais,
no que foi a União Soviética, mas há outros Impérios, grandes
ou pequenos, e a tentação que alguns dos nossos homens polí-
ticos por vezes têm de pensar que a instituição do partido único
e do executivo soberano constitui um prelim inar necessário da
democracia, em África e na Ásia, releva, estranhamente, dos es-
quemas de pensamento cujos arcaísmos e o carácter intrinseca-
mente perverso denunciam quando se trata do Leste Europeu. Na
coexistência dos lugares e dos não-lugares, a pedra de toque será
sempre política. Decerto, os países de Leste, e outros, encontrarão
o seu posto nas redes mundiais da circulação e do consumo. Mas
a extensão dos não-lugares que lhes correspondem - não-lugares
empiricamente recenseáveis e analisáveis cuja definição é, antes
de mais, económica - já ultrapassou a reflexão dos políticos que,
cada vez mais, só se perguntam para onde vão, porque sabem
cada vez menos onde estão.

Scanned by CamScanner

Você também pode gostar