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Escola Secundária da Maia

CESÁRIO VERDE

O SENTIMENTO DE UM OCIDENTAL
IV – Horas Mortas

Orientações de leitura

A deambulação finaliza já de madrugada. «Horas Mortas» é o último momento do longo


itinerário pelas ruas da cidade. O sujeito lírico deambula por uma Lisboa às escuras, apenas as
estrelas iluminam o seu trajeto e a realidade é cada vez mais perturbante. Deseja a perfeição e
a eternidade, alenta-se com uma possível aliança ao coletivo e ao sonho de uma raça futura,
mas é uma euforia que pouco dura. De facto, termina num tom disfórico que abarca todo o
coletivo português.

⮚ A secção “Horas mortas” corresponde ao último andamento de «O Sentimento de um


ocidental»; o tom é, agora, definitivamente perturbado e perturbante, a realidade é,
cada vez mais, surreal e fantasmagórica.

⮚ Estrofe 1: A viagem noturna do sujeito poético levou-o até ao momento da escuridão


mais profunda, momento esse em que todas as luzes se apagaram, restando apenas a
libertada pelos astros, isto é, uma luz natural, contudo, escassa. Talvez se possa
afirmar que tal escassez deriva da poluição, a qual faz com que os astros fiquem com
«olheiras». Trata-se de uma personificação, na medida em que os astros ganham
características humanas: as «lágrimas de luz dos astros com olheiras» traduzem a luz
pouco expressiva e baça que chega das estrelas ao ambiente baço da cidade.

⮚ O verso 3 cria uma imagem citadina metamorfoseada, surreal, de astros com «lágrimas
de luz» (uma luz «lacrimosa», nostálgica, triste?).

⮚ A noite natural (tudo se apagou) dá lugar ao desejo de partir para uma dimensão-outra,
à «quimera azul de transmigrar», metáfora de fuga para um espaço perfeito, mas que
apenas existe na imaginação. Tal desejo resulta da vontade de se libertar de um
espaço geográfico que se tornou uma espécie de prisão fantasmagórica que lhe retira
a liberdade e o amor, e do qual, consequentemente, o «eu» tem de se afastar.

Estrofe 2: O silêncio profundo e a escuridão permitem uma maior atenção aos apelos
sensitivos. Ampliam-se, deste modo, os sons do parafuso que cai nas lajes, ou das
fechaduras que rangem. Na escuridão, a visão súbita dos faróis «sangrentos» de uma
caleche espantam o «eu», permeável a todos os encontros. É extraordinária a
associação dos olhos / «olheiras» das estrelas e dos «olhos» / faróis da caleche.
Quanto ao uso do empréstimo (francês) «caleche», se bem que confira uma ideia de
modernidade, elegância e cosmopolitismo, esconde igualmente uma crítica à
sociedade mercantilista , «sangrenta». Por outro lado, os «olhos da caleche» poderão
ser «sangrentos» porque atingem e ferem inesperadamente o «eu», ofuscam, ainda
que momentaneamente, a sua visão.
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⮚ Na realidade, todos esses estímulos (reais ou imaginários, positivos ou de conotação


negativa) mantêm o sujeito lírico «vivo», enquanto leva a cabo o seu périplo pela
capital.

⮚ Estrofe 3. «E eu sigo»: verbos como «seguir», «errar», embrenhar-se, quando usados


na primeira pessoa, caracterizam uma poesia itinerante. Extraordinária é a
associação das ruas retas da cidade, que direcionam rigorosamente os passos do
sujeito poético, e as linhas retas de uma pauta musical.

No silêncio profundo «sobem», então, as «notas pastoris de uma longínqua flauta». A


sensação auditiva, real ou imaginária, transporta o sujeito poético para o campo, lugar
de regeneração e vitalidade. Estabelece-se um contraste entre a pesada fixidez das
estruturas confinantes da cidade («a dupla correnteza augusta das fachadas») e a
fragilidade etérea das notas de flauta pastoril. No meio da cidade inóspita, a música
suave («notas pastoris») lembra que há uma dimensão mais harmoniosa e natural do
ser humano, ligada ao campo, mas que parece estar ausente do espaço urbano
(«longínqua flauta»).

⮚ Estrofes 4 e 5 - O imaginário épico / a dimensão épica

O primeiro verso da estrofe 4 exprime uma ânsia de eternidade e perfeição, desejo


contrariado pelo uso do pretérito imperfeito que transmite a ideia de uma ação
hipotética e difícil de concretizar. Há também uma busca da reabilitação do real através
do imaginário: «Esqueço-me a prever castíssimas esposas, / Que aninhem em
mansões de vidro transparente». O adjetivo «castíssimas» e a expressão «de vidro
transparente» reforçam o desejo de pureza, fidelidade, lealdade e verdade do sujeito
poético. O mesmo desejo de perfeição acabará por se projetar também na estrofe 5
(vv. 19 e 20).

⮚ O verbo «prever» (v.15) define o poeta como alguém que vê na realidade com que se
cruza não só aquilo que ela é, aquilo que ela foi e aquilo que poderia ter sido, mas
também aquilo que poderá vir a ser, tendo em conta que em Cesário Verde «Falar do
real é falar poeticamente dele».

⮚ Estrofes 5 e 6: A ânsia de liberdade inscreve-se nos domínios espacial e temporal,


uma vez que no presente claustrofóbico da cidade, da sua atmosfera doentia, o sujeito
poético afirma a intenção de «explorar todos os continentes/ E pelas vastidões
aquáticas seguir!», anulando fronteiras de tempo e de espaço, ultrapassando todos os
limites, «…Como a raça ruiva do porvir, / E as frotas dos avós, e os nómadas
ardentes,». Ou seja, a opressão, a solidão, o confinamento e a morte, associados às
vivências urbanas, devem ser substituídos por uma maior nitidez, pela libertação e pelo
amor possível noutro espaço, aqui representado metaforicamente pelas «vastidões
aquáticas».

⮚ Mas as frotas desejadas não são localizadas no presente (o presente é morte),


pertencem …aos avós, os «nómadas ardentes», não se sabe de onde virão, porque
são sonhadas apenas. É clara a oposição entre aquilo que Cesário pretende que a
realidade seja e o que ele sente que ela é. Por mais que quisesse disfarçar, por mais
que quisesse celebrar «corretamente» a efeméride do nosso poeta épico com este
poema (o tricentenário), não o consegue.
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⮚ Evidencia-se, todavia, a esperança num futuro, na vida, que poderá ter como fonte de
inspiração um passado longínquo. O sujeito poético projeta numa nova geração («Ó
nossos filhos!», «a raça ruiva do porvir») a solução redentora, a capacidade de
religar o «porvir» ao fulgor do passado, regenerando a pátria doente num futuro
perfeito.

⮚ A dimensão épica está presente na referência às frotas dos avós e à exploração de


novos continentes através do mar. Num exercício de intertextualidade, poder-se-á ver
nessa «raça ruiva do porvir» uma alusão à raça superior futura, resultante da união dos
nautas com as ninfas, como se observa no episódio da Ilha dos Amores («Os
Lusíadas», canto IX).

⮚ Assim, o anseio de liberdade, que é um tema recorrente do poema, é transformado


num programa de ação cujo caráter necessariamente coletivo é acentuado pelo uso
enfático da primeira pessoa do plural - «nós», «nossos». A demarcação entre os
séculos é mais uma vez obliterada pela interseção do tempo e do espaço: mas agora
do presente e do futuro em vez do presente e do passado.

⮚ Estrofe 7 - Subversão da matéria épica

⮚ O desejo de percorrer os oceanos para encontrar novos locais em todos os


continentes apresenta-se, no entanto, como uma impossibilidade: «Mas se vivemos os
emparedados, /Sem árvores no vale escuro das muralhas!...».
⮚ A adversativa «Mas», seguida das expressões metafóricas, introduz a opinião do
sujeito poético sobre a condição humana: vivemos sem ar e sem luz («sem árvores»),
num espaço hostil, na clausura do «vale escuro das muralhas», como enterrados
/mortos vivos.
⮚ Por momentos, o sujeito poético imagina
⮚ O «eu» sofre do mesmo mal que os outros habitantes, o que acentua a sensação
claustrofóbica; a primeira pessoa do plural, «nós», apela ao coletivo, evidencia uma
convivência comum.
⮚ O futuro é um sonho impossível para os «emparedados» do Ocidente, já que
impossível é a fuga da cidade sufocante, claustrofóbica, soturna, melancólica, triste.
⮚ Dentro da cidade – ou da esterilizante estrutura social por ela significada – a renovação
da vitalidade criadora é, pois, uma esperança vã.
⮚ Lisboa é também um espaço perigoso de solidão e morte, favorável às desgraças:
«Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas / E os gritos de socorro ouvir,
estrangulados.». O mundo urbano impõe amarras ao homem moderno, causando-lhe
sofrimento.
⮚ A nível individual, cada português sente-se orgulhosos por fazer parte de um povo que
foi capaz de «dar novos mundos ao mundo», proeza evocada no poema. A nível
coletivo, a obra inspira-nos para a realização de novos feitos, igualáveis aos dos
nossos «avós» (antepassados), como no poema se aspira. Para isso, não devemos
ficar «emparedados», mas «buscar novas vastidões aquáticas».

⮚ Estrofe 8: A metaforização das ruas em «corredores nebulosos» desfaz toda a


possibilidade de esperança. Os «ventres das tabernas» suscitam na memória do «eu»
sensações olfativas que lhe causam náusea (provavelmente, o cheiro a álcool).
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⮚ Essa sensação olfativa liga-se a um quadro dinâmico: «cantam, de braço dado, uns
tristes bebedores». É agora esse espetáculo decadente e degradante do real que lhe
invade os olhos. (Aliás, na poesia de Cesário Verde, toda a matéria do real - o salutar e
o podre - é digna de ser poetizada sem forçosamente se moralizar). Note-se, ainda, a
possível aproximação com os emigrados que riam e se alienavam, jogando, na
brasserie («Noite Fechada»). Estes também «cantam», mas são «tristes»: a antítese
está ao serviço da alienação social.

⮚ Estrofe 9: Na escuridão, «afastam-se «dúbios caminhantes», mas o «eu» não receia


«os roubos».

⮚ O medo aumenta com o aparecimento dos cães vadios, «errantes», magros e doentes.
A sucessão de quatro adjetivos antepostos ao nome («sujos, ósseos, febris, errantes»)
expressa, de forma intensa, a ideia de perigo silencioso («sem ladrar»), de ferocidade,
que está também presente na comparação dos cães com lobos. O advérbio
«amareladamente» sugere talvez a intensidade da luz artificial que, de forma doentia,
incide sobre os animais. O uso expressivo do advérbio coloca a impressão pictórica (a
cor) em primeiro lugar, seguida do objeto em si, os «cães» (técnica típica do
Impressionismo).

⮚ Estrofe 10: Circularidade simbólica do poema: os «guardas» e as «imorais» voltam


a ser mencionados na parte final do poema, reforçando-se a sua carga semântica.

⮚ Estrofe 11: Na última estrofe, exprime-se enfaticamente a mesma certeza da estrofe 7:


num infindável movimento sem viagem, de inevitável retorno, em «marés de fel», num
«sinistro mar», é a «Dor humana» que aparece, «enorme» e sem esperança «nessa
massa irregular / De prédios sepulcrais» de uma cidade mórbida. O sofrimento
causado pela visão sufocante dos «prédios» «com dimensões de montes» projeta a
sua cura nos «amplos horizontes» de uma outra viagem épica, mas as «marés» que
metaforicamente banham a cidade já não são de água, mas de «fel», levando ao
extremo a intensidade da «dor humana» que fecha o poema.
⮚ A conclusão do quarto andamento é a conclusão de todo o poema «O Sentimento dum
Ocidental». A dor pessoal tornou-se a dor de toda a humanidade; dentro da cidade não
há possibilidade de sair do labirinto do sofrimento.
⮚ A atmosfera, o cenário e as condições de vida na cidade, por si só, condenam o
indivíduo a uma vida de dificuldade, de sofrimento, de melancolia.

⮚ Termina, assim, o canto disfórico da cidade de Lisboa no seu tempo, «povoada de


uma maioria de gente submissa e desgraçada, a contrastar com uma minoria abastada
e feliz (…). Uma Lisboa que representava, desgraçadamente, e para o pior, a realidade
amorfa, decadente aviltada, do país.»
⮚ O poema aproxima-se do discurso da prosa: não recorre a uma retórica pesada, usa
vocabulário do quotidiano e organiza-se em versos longos, em vários casos ligados por
encavalgamento.
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