Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
COLEÇÃO
CARTOGRAFIAS
DO CONFLITO
R io de Janeiro
FERNANDA SÁNCHEZ
PAULA C. MOREIRA
Organizadoras
2
CARTOGRAFIAS
DO CONFLITO
Rio de Jan eiro
FERNANDA SÁNCHEZ
PAULA C. MOREIRA
Organizadoras
Apoio
4
5
C316
Cartografias do conflito : Rio de Janeiro [recurso eletrônico] / organizadoras Fernanda Sánchez, Paula C. Moreira. - 1. ed.
- Rio de Janeiro : Letra Capital, 2019.
recurso digital ; 10 MB
Formato: epub
Requisitos do sistema: adobe digital editions
Modo de acesso: world wide web
Inclui bibliografia
ISBN 9788577856862 (recurso eletrônico)
1. Sociologia urbana - Rio de Janeiro. 2. Planejamento urbano - Rio de Janeiro - Aspectos sociais. 3. Livros eletrônicos.
I. Sánchez, Fernanda. II. Moreira, Paula C.
Sumário
MAPA-INTERVENÇÃO:
PERTURBANDO NARRATIVAS OFICIAIS DA CIDADE ....................................................... 76
Rosane Rebeca Santos, Marcus César Martins da Cruz e Grasiele Márcia Magri Grossi
símbolos, convidados a entrar nos mapas e legado, de forma a alcançar os cidadãos cariocas,
interpelados pelos autores desta obra. inclusive por meio de constantes editoriais
patrocinados por agentes das grandes empresas
A compreensão dos mapas como partes
imobiliárias e das grandes obras públicas.
do aparato simbólico de um projeto de cidade
deu origem a um esforço de produção de novas A utilização dos mapas como forma
categorias, símbolos e formas de classificação, de controle da produção de mercadorias,
no desafio de produzir um conhecimento extração de matérias primas e gerenciamento
acerca dos conflitos urbanos relacionados da população fora apontada por Revel (1989),
às transformações em curso, como partes do em um continuum até os tempos atuais,
processo de produção de cartografias críticas, como ferramenta de dominação. Como parte
ou contra cartografias. Nesse processo, atenção fundante da constituição da modernidade,
especial foi dada às cartografias que produzissem que inclui a colonização que a acompanha,
vínculos comunicativos, que convidassem os contou e conta com a postulação de uma forma
interlocutores a pensar leituras alternativas universal de linguagem. A forja desse consenso
da cidade, a invocar a imaginação espacial. sobre as formas de representação da realidade
Mediante a seleção e articulação de elementos dependeu ora de uma homogeneização, ora do
pouco convencionais, grafados no mapa, são apagamento de outras linguagens destoantes, se
possíveis análises e contrapontos que desvelam estabelecendo, assim outrora como estratégia de
os conflitos urbanos. subjugo dos povos originários e escravizados.
No campo político, então, o esforço Em outras palavras, as cartografias
centrou-se em alimentar o debate público sobre são expressão das mediações da linguagem,
conflitos e lutas urbanas, na busca por contribuir, produzidas em um tempo particular. Mapas,
assim, para a democratização das discussões assim como gramáticas, são códigos sociais que
acerca das intervenções e das formas de enfrentar regulamentam a conduta dos sujeitos, fixam
os seus efeitos negativos. A documentação e limites entre uns e outros e lhes transmitem a
divulgação dos conflitos, compreendidos por certeza de existir, reforçam presenças sociais
Simmel (1983) como forma de sociação, podem e reconhecimento público dos sujeitos e seus
assim, desvendar o caráter positivo da imaginação territórios. Assim, os mapas são um exemplo de
concebida pelo processo. A publicação das séries como as técnicas, em um determinado tempo-
de cartogramas produzidos moveu também os espaço foram importantes meios para a expansão
autores desta obra em seus trabalhos, orientados capitalista.
à ampliação dos diálogos com a população
Como produto da objetivação humana,
afetada, movimentos sociais, investigadores e
as cartografias estabelecidas como ferramenta
comunidade acadêmica.
monopolizada passaram fantasmagoricamente,
Pelo debate das cartografias busca- por assim dizer, a dominar os próprios humanos
se apresentar de forma crítica os agentes e os e determinar classificações e limites. Contudo,
processos que definiram e materializaram o essas formas não tomaram vida própria
excludente projeto de cidade concretizado sozinhas, é preciso situá-las como conhecimento
na Era Olímpica, mas ao mesmo tempo, construído em seus contextos e conjunturas. A
evidenciar como esse processo foi intensamente advertência epistemológica coloca justamente a
confrontado por lutadoras e lutadores no Rio de importância do que Harvey (2006) coloca como
Janeiro. Não menos importante nesta dimensão espaço relacional, no qual opera a memória
política da cartografia, os mapas pretendem e o simbólico cultural de um espaço-tempo
incitar à reflexão acerca da mídia como um particular. A questão “o que é o espaço?” é por
poderoso agente da estratégia discursiva do consequência substituída pela questão “como é
10 I N T RO D U Ç ÃO
que diferentes práticas humanas criam e usam Tais identidades deflagradas muitas vezes
diferentes concepções de espaço?” (HARVEY, pelo conflito, podem ser compreendidas, não
2006, p. 14). como reforço à ideia de criação do ‘outro’, mas
desvelam o protagonismo de sujeitos resistentes.
O apagamento do nome nos mapas
Muito embora as identidades possam recorrer
e mesmo nas placas de estadas e ruas pode
ao passado, como reporta o Movimento de
ser observado em diferentes contextos, em
Atingidos por Barragens, tais memórias são
que a estratégia assume um posicionamento
evocadas e transformadas por disputas políticas
político. Para os Beduínos do Negev1, contexto
do presente. As disputas vivenciadas pelos
aparentemente distante e culturalmente díspar,
movimentos de matriz africana na região do
tanto o apagamento dos nomes nos mapas
porto são outro exemplo, que aparece logo no
oficiais do Estado de Israel, como a retirada das
primeiro capítulo desta edição.
sinalizações das estradas, está acompanhada por
perda de direitos. As memórias, muito mais do que objetos
de museu, que precisam ser preservados,
Assim, mapeamento produzidos fora
constituem uma memória política (JUAREZ,
do estado, tem se tornado uma importante
2018). Nesse sentido, Renato Emerson dos Santos
ferramenta de disputa nas lutas simbólicas, que
(2018) propõe o termo ‘r-existir, uma existência
compõe a constituição de sujeitos políticos.
que lembra o passado, mas resiste no presente.
Diferentemente dos mapeamentos quem
Essas relações espacializadas não só colocam
vem sendo produzidos pelas empresas, que
a profundidade do tempo, como também
em muitos dos casos se aliam à produção
ajudam a combater um certo essencialismo
cartográfica liderada pelo Estado em busca
das identidades presentes nas idealizações
de governança, tais cartografias têm colocado
neoliberais.
uma ruptura epistêmica em relação as
territorialidades a serem representadas. Sobre Os primeiros três capítulos discutem
o conflito, despertado muitas vezes por um as dimensões raciais, da cultura e do setor
grande projeto desenvolvimento, sujeitos imobiliário imbricados na produção e disputa
políticos constituem identidades na luta política, da região portuária do Rio de Janeiro, de forma
e introduzem consigo novas formas de mapear, que essas análises se complementam para
novas imaginações espaciais, assim como criam a compreensão dos mais variados conflitos
a necessidade de novas classificações. acirrados pela implantação da Operação Urbana
Porto Maravilha.
Além de poder falar sobre um período
particular específico, que produz toda sorte O primeiro capítulo, “Repertórios
de relações espaciais, culturais, econômicas Espaciais de ação na Luta Anti-Racista: O Caso da
e ambientais, os exercícios cartográficos vêm Pequena África no Rio de Janeiro” foi encomendo
contribuindo como possibilidade de friccionar para a publicação ao Professor Renato Emerson
tempos diferentes sobre um mesmo plano de dos Santos, que discute a história espacializada
visão. Em outras palavras, pode tornar visível dos movimentos de r-existência da população
a relação entre o hoje e as condições materiais negra na região da Pequena África. O segundo
e objetivas de períodos históricos anteriores. capítulo, “Dinâmica imobiliária: para onde
Apesar de partirmos algumas vezes do olhar sopram os ventos”, foi produzido por Thiago Pinho
imediato do cotidiano, a busca por uma gênese e Paula Cardoso e articula diversos insumos da
histórica colocou como desafio compreender pesquisa sobre a dinâmica imobiliária na área da
quais são os contínuos e descontínuos da Operação Urbana Consorciada.
produção capitalista do espaço.
O terceiro capítulo, “Cartografia cultural:
1 encurtador.com.br/erAE7
o caso do Porto Maravilha”, de Fernanda
11
Sánchez, Amanda Wanis, Ana Carolina Machado que procuram dar visibilidade aos conflitos e
e Antônio Pimentel Júnior apresenta as disputas, às lutas sociais podem contribuir para integrar
assimetrias territoriais e desigualdades em torno realidades múltiplas e diversas formas de
ao fomento à cultura no porto, no contexto informação e, assim, ampliar a compreensão
dos grandes eventos esportivos. Os desiguais sobre o espaço em disputa.
e históricos agentes que são desvelados pelo
REFERÊNCIAS
conflito no porto aparecem também nos três
outros artigos que seguem, já em uma escala ACSELRAD, H (org.). Cartografia social e
ampliada de análise. Assim, o quarto capítulo, dinâmicas territoriais: marcos para o debate.
“O Mapa-Intervenção: Perturbando Narrativas Coleção Território, ambiente e conflitos sociais.
Oficiais da Cidade”, de Rosane Rebeca Santos, Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de
Grasiele Magri Grossi e Marcus Cesar Martins Janeiro, Instituto de Pesquisa e Planejamento
da Cruz, a partir da discussão metodológica Urbano e Regional, Editora A 4 Mãos
da cartografia, propõe o mapa-intervenção, Comunicação e Design, 2ª edição, 2012.
como uma produção de caráter relacional e HARVEY, D. Space as a keyword. In: Castree,
articuladora de recortes, estratos e segmentos de N. e Gregory, D. (org.) David Harvey: a critical
processos complexos. reader. Malden e Oxford: Blackwell, 2006.
O quinto capítulo, “Cartografia Crítica JUÁREZ, L. L. A memória política como
do Deslegado Olímpico”, de Fernanda Sánchez, estratégia de conformação e ação do Movimento
Poliana Gonçalves Monteiro, Ana Carolina de Atingidos pela Barragem de Tucuruí. Revista
Marques Machado e Paula Cardoso Moreira do Programa de Pós-Graduação em Extensão
propõe uma análise sobre diferentes tipos de Rural (UFV), V. 7, N.2, julho de 2018.
conflito decorrentes ou intensificados pelos
megaeventos esportivos sediados no Rio de LEFEBVRE, H. La produción del espacio.
Janeiro. Ao evidenciar e confrontar a narrativa Colección Entrelineas. Tradução de Emilio
oficial acerca das intervenções e destacar as Martinez Gutiérrez. Madrid, Capitan Swing,
narrativas resistentes, as autoras possibilitam 2013.
a reflexão crítica acerca do legado. O sexto e LEFEBVRE, H. La presencia y la ausencia:
último capítulo, “Cartografia, Estigmatização contribución a la teoria de las representaciones.
e Visibilidade” de Rosane Rebeca dos Santos, México, Fondo de Cultura Económica, 2006.
foi escolhido como fechamento da publicação
REVEL J. Conhecimento do território,
justamente pela sua proposta de reflexão
produção do território. França. Séculos XIII-
metodológica em torno da cartografia, assim
XIX”, in REVEL, J. A Invenção da sociedade,
como as disputas pela representação implicadas
DIFEL,1989, p.103-157
em sua produção.
SANTOS, Renato Emerson dos ; SILVA, K. S.
Muitas dessas inquietações sobre a
; RIBEIRO, L. P. ; SILVA, N. C. Disputas de lugar
relação espaço-temporal procuraram desvelar
e a Pequena África no Centro do Rio de Janeiro:
a ‘história que a história não conta’ e foram
Reação ou ação? Resistência ou r-existência
criadas em relação aos conflitos de hoje, que se
e protagonismo?. In: Natacha Rena; Daniel
voltam para a memória de forma posicionada,
Freitas; Ana Isabel Sá; Marcela Brandão. (Org.).
atenta às estruturas e instituições que compõem
Seminário Internacional Urbanismo Biopolítico.
nosso contexto presente. Em síntese, temos na
1ed.Belo Horizonte: Fluxos, 2018, v. 1, p. 464-491
representação e interpretação da realidade uma
tarefa extremamente complexa, que carrega SIMMEL, G. A natureza sociológica do
diversas limitações, mas também diversas conflito. In Moraes Filho, Evaristo (org.), Simmel.
possibilidades. As práticas de cartografia crítica São Paulo, Ática, 1983.
12
da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro, são Pedra do Sal, o Instituto dos Pretos Novos, o Afoxé
exemplos de redes de atores constituindo uma Filhos de Gandhi, a roda de samba da Pedra do
“área de movimento” em reação (na escala mais Sal, entre outros, vem já muito antes do Projeto
pontual do local e também na da cidade) ao Porto Maravilha disputando a carga semântica
projeto hegemônico - articulações compostas definidora do lugar.
como resposta (de modo mais amplo) ao
O que vem unificando as disputas desses
projeto de cidade e (mais pontualmente) a
grupos é a luta pela ressignificação da região, pela
suas iniciativas localizadas, contrapontos
valorização da história negra. A reivindicação da
a ele. Fazendo coro ao que propõe Santos
denominação da região como “Pequena África”,
(2011a), na leitura das espacialidades da ação
nome cuja criação é atribuída a Heitor dos
dos movimentos sociais, nestes casos “os
Prazeres no início do século XX e que realçava
interlocutores têm escalaridades/espacialidades
a grande aglomeração (populacional, mas
e, de alguma forma, eles acabam por definir ou
também cultural) negra na área que ia da Pedra
redefinir as escalaridades/espacialidades dos
do Sal até a Cidade Nova, guarda a convergência
movimentos” (pg. 188, grifo do autor).
de agires distintos destes grupos. Defendemos
Aqui, pretendemos estender a leitura aqui que, cada grupo a seu modo, realiza disputas
da ação dos sujeitos subalternos para um outro de lugar, com repertórios espaciais de ação
campo. Uma das vertentes de resistências que distintos. Para isto, iniciaremos debatendo o que
ao Projeto Porto Maravilha que vem ganhando estamos chamando de “repertórios espaciais de
visibilidade é a dos grupos vinculados à cultura ação”, como ferramenta para uma geografia da
e identidade negra e afro-brasileira, em suas ação e dos sujeitos. Em seguida, passaremos ao
múltiplas dimensões. Com efeito, a própria caso da Pequena África, para na última seção
incorporação no âmbito do Porto Maravilha de destacarmos a ação de alguns grupos escolhidos.
menções à presença negra na região, através do
Circuito Histórico e Arqueológico de Celebração POR UMA GEOGRAFIA DA AÇÃO E DOS
da Herança Africana, conjunto de pontos de SUJEITOS: REPERTÓRIOS ESPACIAIS DE
interesse constituindo quase que um museu de AÇÃO
percurso a céu aberto4, tem relação direta com a
resistência desses grupos, mais do que uma pré- Diversos autores vem, nas últimas
disposição dos gestores do projeto. Tomamos décadas, apontando para uma “virada espacial”
aqui como ponto de partida a hipótese defendida (cf. FOUCAULT, 2001; HAESBAERT, 2011;
por Santos et. Al (2018), de que há, por parte CLAVAL, 2013). Esta tendência se relaciona ao
desses grupos, “disputas de lugar”. E, segundo os que Edward Soja (1993) denomina “afirmação do
autores, estas disputas de lugar são anteriores ao espaço na teoria social crítica”, uma valorização
Porto Maravilha – ou seja, diferente das outras analítica (e, obviamente, também política)
iniciativas de resistência que aludimos acima, da dimensão espacial como algo imanente e
não tem suas espacialidades e temporalidades central nas relações e estruturas sociais. Esta
definidas pela interlocução com ele (ainda que, virada espacial, que podemos relacionar à
obviamente, passem a ser influenciadas pelo emergência de um novo regime de relações
novo contexto). Grupos como o Quilombo da (sociais, econômicas, de poder, etc.) chamado
de globalização, reposiciona as ferramentas
4 Estamos aqui utilizando tal denominação para realçar a espaciais dentro dos sistemas explicativos da
semelhança com outros casos de criações de certa maneira realidade (os campos de pensamento, que na
similares, em cidades como Porto Alegre e São Paulo, mas
ciência são chamados de campos disciplinares)
com a ressalva de que nem todos os pontos do Circuito
do Rio de Janeiro são exatamente “a céu aberto”, e um dos
e também nos próprios campos da vida social.
pontos é, em si, um museu, o Instituto dos Pretos Novos. Assim, de um lado vemos explicações espaciais
14 R E PE RTÓ R IO S E SPAC IA I S D E AÇ ÃO NA LU TA A N T I- R ACI SMO
00 0
(como, p. ex., a própria ideia de globalização) Na mesma direção, Santos (2011a)
sendo mobilizadas para as mais diversas constrói uma proposta de leitura geográfica
questões (políticas, econômicas, sociais, ou até da ação dos movimentos sociais, apontando
mesmo sobre temas como futebol, culinária, oito dimensões espaciais da ação (individual
música, etc.), e de outro vemos também o léxico e coletiva) dos movimentos: a materialização/
espacial (p. ex., território, escalas, redes, lugar, manifestação, que seria a cartografia dos
etc.) sendo mobilizado como ferramenta ou movimentos sociais em ato; recortes espaciais
objeto de disputa pelos mais diversos atores vinculando-se a construções identitárias; lutas
sociais (empresas, movimentos sociais, etc.). por/com/a partir de território & territorialidades;
a relação entre a ação, temário e agendas de
Temos, assim, um conjunto de tendências
lutas; espacialidades de interlocutores dos
que se retroalimentam neste movimento de
movimentos; espacialidades de atos, gestos e
virada espacial. Aqui, nosso interesse se volta
seus desdobramentos, impactos, efeitos, causas,
para a apropriação do léxico e das ferramentas
origem; esferas institucionais dos movimentos
espaciais como componente da ação de sujeitos
como distintas dimensões espaço-temporais ou
subalternos em luta – independente do fato
arenas de disputa; espacialidades dos sujeitos
de a apropriação ser consciente e enunciada
que constroem os movimentos.
pelos sujeitos em luta ou, ao contrário, ser algo
imanente e não enunciada, mas que salta aos Esta proposta de leitura espacial da
olhos do analista. Nos interessa a valorização ação dos movimentos sociais é, a todo tempo,
do agir em sua dimensão espacial - o que também uma proposição de que o espaço, em
compreende também os discursos ou mesmo suas diversas dimensões que são reguladoras
as significações atribuídas aos atos, mas não se de relações sociais, é um dado que informa
restringe a eles. Esta busca por uma “geografia da tomadas de decisão e estratégias de ação
ação” vem sendo proposta por diversos autores dos movimentos. Ao apontar a dimensão da
e autoras. Werlen (2005, p. 47) propõe “uma materialização/manifestação, por exemplo,
mudança rigorosa de categorias do espaço à o autor chama a atenção de que, na escolha
ação, ou do que eu chamo de uma ‘geografia das de locais de realização de atos públicos,
coisas’ para uma ‘geografia dos sujeitos’”. Diversos movimentos consideram históricos e cargas
esforços neste sentido podem ser registrados. A simbólicas de lugares, impactos em fluxos (de
“cartografia da ação” proposta por Ribeiro (2009) pessoas, de veículos, etc.) e isso é balizado pelos
aponta nesta direção, e indica pontos de uma objetivos de cada manifestação: a localização,
agenda que valoriza sujeitos e as espacialidades primado fundamental da análise espacial, é
de sua ação: critério definidor da ação. Mas, mais do que
(...) a valorização da ação possível, ainda apenas mobilizar sentidos e cargas simbólicas
que não apresente os traços esperados dos lugares como ferramenta para suas lutas, há
por teorias sociais e partidos políticos; movimentos que vão buscar construir e impor
a valorização dos usos do espaço, novos sentidos aos lugares, atribuir novas cargas
especialmente os construídos pelos e conteúdos na busca de disputar consciências
movimentos populares; a valorização
das pessoas que por eles passam ou neles vivem.
da memória popular das lutas urbanas
e no urbano; a valorização dos vínculos O caso da Frente 3 de Fevereiro5, grupo criado
entre identidades sociais e território em São Paulo em 2004 após o assassinato por
(territorialidades); a valorização dos policiais de um jovem negro, recém formado
estudos transescalares da ação social; a dentista, é lapidar: numa iniciativa intitulada
valorização de inovações institucionais “Zumbi somos nós”, o grupo iniciou um
identificadas a partir da análise dos
sentidos da ação social. (pg. 155) 5 http://www.frente3defevereiro.com.br/, acesso em
27/03/2019.
15
como sendo a verdade válida. Santos (2011b) espacialidade a chave central. Aqui, estamos
mostra como esse compartilhamento de poder chamando tais mobilizações de “repertórios
na produção do conhecimento cartográfico espaciais de ação”, conjunto de ferramentas,
varia entre experiências: em algumas, os grupos táticas, formas de atuar de movimentos, lutas
se apropriam dos instrumentos; em outras, são sociais e sujeitos que tem a dimensão espacial
as assessorias quem detém os instrumentos de (ou, a representação espacial) como elemento
conhecimento e os movimentos são depoentes; imanente. Os repertórios espaciais de ação
há casos híbridos entre essas duas possibilidades nos indicam espacialidades da ação social, nos
e, casos mais radicais em que os movimentos permitindo avançar para uma “geografia da
não apenas se apropriam dos instrumentos mas ação” e uma “geografia dos sujeitos”, como vimos
também questionam os próprios instrumentos propor Benno Werlen. Defendemos a ideia de
e, a partir deles, os cânones do eurocentrismo que isto nos fornece chaves de análise férteis
e a razão tecnocrática inerentes a eles. Nestas para pensar as resistências na Pequena África no
diferentes situações, ferramentas e processos Centro do Rio de Janeiro.
de produção ampliam e fortalecem repertórios
espaciais de ação dos grupos subalternizados em
luta. DISPUTAS DE LUGAR NA PEQUENA
ÁFRICA
Santos (2011a) mostra também como
movimentos mobilizam recortes espaciais
como base de sua identidade, p. ex., de Reconstituiremos, nesta seção, alguns
bairros, regionalistas ou mesmo nacionalistas. argumentos constitutivos da proposta de leitura
Movimentos pensam na possibilidade de saltos das resistências negras contemporâneas na
escalares na relação entre ato e desdobramentos: região do Porto Maravilha como “disputas de
p. ex., a ocupação de um prédio público de um lugar”, feita por Santos et. Al. (2018). O primeiro
órgão federal pode gerar um fato político distinto argumento toma que o Porto Maravilha, sendo
da ocupação de outra construção, assim como a um projeto de renovação urbana, almeja uma
ocupação de uma fazenda de uma figura pública transformação espacial, a instauração de novos
em escala nacional (como em 2002 o Movimento conteúdos, significados, funções, materialidades,
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra fez em composição social, etc., para um recorte espacial
fazenda do então presidente Fernando Henrique específico, a sua área de abrangência, o que
Cardoso) provoca um fato político distinto da comporta efetivamente também a relação desta
ocupação de outra fazenda. área com o restante da cidade e com redes e
fluxos que a extrapolam, em diferentes escalas.
Tais exemplos mostram como os
Busca a criação de um novo “lugar”, e os grupos
movimentos mobilizam raciocínios centrados
que resistem ao projeto disputam isso.
no espaço na constituição de suas estratégias.
Barrar fluxos (ao ocupar uma via de circulação), Um traço desta transformação era
mobilizar cargas simbólicas e históricas, acionar a proposta de adensamento da ocupação e
signos identitários, provocar atores relevantes mudança da composição social da região. Mas,
em jogos de poder em escalas específicas como se daria isso? Desde o seu início, as ações
são agenciamentos espaciais que vem sendo do Porto Maravilha tiveram nas remoções um
provocados pela ação de movimentos. Enunciar de seus traços mais marcantes. Os principais
lutas por território, como fazem movimentos objetivos da política de remoções na área eram
indígenas, quilombolas ou outros povos e as ocupações protagonizadas por movimentos
comunidades tradicionais, também. Aparece, de luta pela moradia (p. ex., Casarão Azul,
nesta leitura da ação de grupos subalternizados, Flor do Asfalto, Guerreiros do 234, Quilombo
mais uma ferramenta de ação que tem na das Guerreiras, Machado de Assis, Zumbi dos
17
Palmares, entre outras8), e moradores das la a partir do locus epistêmico dos grupos não-
favelas da área (Morro da Providência e Pedra brancos, sobretudo negros e indígenas. A partir
Lisa). Junto à política de remoções, o conjunto da experiência destes grupos subalternizados
de intervenções urbanas levaram à elevação do (ver SPIVAK, 2010), a formação do nosso
custo de vida na região, o que impulsiona o que a território é a experiência do branqueamento, que
literatura tradicionalmente chama de “remoção aparece em três dimensões: (i) branqueamento
branca” – destas intervenções, destaque para da ocupação, com a substituição dos estoques
a privatização da gestão dos serviços na região populacionais via extermínio (sobretudo dos
para a Companhia de Desenvolvimento Urbano indígenas), da expulsão (de grupos indígenas e
da Região do Porto do Rio de Janeiro (CDURP), negros quilombolas) ou de uma incorporação
e as ações nas áreas de favela, como a instalação subalternizante na sociedade de hegemonia
de um Teleférico no Morro da Providência e branca que comporta uma biopolítica de
uma Unidade de Polícia Pacificadora, entre violências, condições sociais desiguais e sempre
outras. Após 2013, os movimentos de resistência depauperadas na comparação com os brancos
organizados em torno do Fórum Comunitário ou mesmo do genocídio (caso da juventude negra
do Porto conseguiram deter os avanços das de favelas e periferias); (ii) branqueamento da
remoções nas favelas da região, mas estima- imagem, com a construção de narrativas sobre
se que, p. ex., somente as obras do teleférico o território que invisibilizam a presença (no
levaram à remoção de cerca de 200 famílias presente ou no passado) de grupos não-brancos,
(FAULHABER & AZEVEDO, 2015). o que interfere nas subjetividades e nas relações
de pertencimento de indivíduos e grupos, e assim
Como o plano inicial previa aumentar a
nas identidades territoriais, dado que informa
ocupação da região de 28 para 100 mil moradores,
posições de poder construindo hierarquias;
considerando-se que as remoções também
(iii) branqueamento cultural, com a imposição
faziam parte deste plano, o que era almejado era
de matrizes de relação sociedade e natureza
a mudança da composição social dos moradores
eurocêntricos, o que envolve dimensões como
– ou seja, pelo menos uma boa parte deles não
práticas, matrizes de saberes, estéticas, e padrões
estava prevista na categoria de “beneficiários”
de espiritualidade e religiosidade, entre outros
das melhorias preconizadas pelo projeto para
aspectos.
o local. Se na retórica oficial isso significava
renovação, revitalização ou requalificação, os Sendo uma ferramenta analítica para
movimentos de resistência denunciavam como pensar a formação do território a partir das
gentrificação. Mas, Santos et. all (op. Cit.) vão experiências de grupos subalternizados a partir
apontar que se trata, na verdade, de um projeto da dimensão racial, o conceito de branqueamento
que leva ao “branqueamento do território”: do território também é fértil para analisar as
falar de mudança da composição social numa experiências de grandes intervenções urbanas,
região cuja maioria da população é composta tão marcantes da história do Rio de Janeiro. As
por negros (os dados do Censo 2010 apontam remoções de favelas na Zona Sul da Cidade nas
no Morro da Providência que pretos e pardos décadas de 1960 e 1970 se descortinam como
perfazem 65% da população, e na Pedra Lisa dispositivos biopolíticos que levaram à criação
54%) é falar do branqueamento desta população. das áreas com composição populacional (e,
por que não dizê-lo, ethos) mais brancos da
Este debate remete ao conceito de
cidade (ver, p ex, os mapas de segregação racial
“branqueamento do território”, proposto por
de Rios Neto & Rianni, 2007). Mas, se olharmos
Santos (2009). Numa releitura crítica da formação
para a própria região onde agora se dá a política
do território brasileiro, o autor propõe pensá-
de “renovação” ou “requalificação”, a história
8 Ver, a respeito, Faulhaber & Azevedo (2015) e Sanchez urbana nos remete a grandes intervenções
et. All (2016).
18 R E PE RTÓ R IO S E SPAC IA I S D E AÇ ÃO NA LU TA A N T I- R ACI SMO
*Foto: Av. Barão de Tefé, da esquerda para a difeita: O sítio arqueológico do Cais do Valongo; o
armazém Pedro II, construído por André Rebouças para a Companhia Doca; emprendimentos sede
da L’Oreal e Vista Guanabra. Acervo Neplac.
25
mobilizados por tais sujeitos nos mostra um Confins [Online], 5 | 2009, posto online em 24
espaço praticado, disputado, aberto para abril 2009. URL : http://confins.revues.org/
múltiplas possibilidades como nos propõe index5724.html
imaginar Doreen Massey (2008). Mais do que um INCRA. Pedra do Sal: Relatório Técnico de
espaço “produzido”, temos um espaço disputado Identificação e Delimitação. Brasília: Ministério
– olhar que apenas leituras relacionais das do Desenvolvimento Agrário, 2010.
dimensões de poder imanentes aos processos de KOX, K. Spaces of dependence, spaces of
“produção” permitem captar, e que nem sempre engagement and the politics of scale, or: looking
estão presentes em perspectivas que buscam for local politics. Political Geography, Vol. 17, No.
observar a produção do espaço. Produzido, sim, I, pp. l-23, 1998
mas aberto, praticado, e, no caso da Pequena MASSEY, Doreen. Pelo Espaço: Uma nova
África, disputado por um conjunto de sujeitos política da espacialidade. Rio de Janeiro:
que protagonizam a luta anti-racismo, contra o Bertrand Brasil, 2008.
branqueamento do território no espaço urbano. NORA, Pierre. Entre memória e história: a
problemática dos lugares. Projeto história (10),
São Paulo, Editora da PUC-SP, dezembro de
BIBLIOGRAFIA 1993, pp.7-29.
REVEL, Jacques. “Microanálise e construção
ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz. do social”. In: _________, Jogos de Escala. Rio de
Preconceito contra a origem geográfica e de Janeiro: Edit. FGV, 1998.
lugar: As fronteiras da discórdia. São Paulo: RIBEIRO, Ana Clara Torres. Cartografia
Cortez, 2007. da ação social: região latino-americana e
BRENNER, Neil. “The limits to scale? novo desenvolvimento urbano. In: Poggiese,
Methodological reflections on scalar Hector; Egler, Tâmara Tania Cohen (Org.). Otro
structuration”. In: Progress in Human Geography, desarrollo urbano: ciudad incluyente, justicia
25(4), 2001, pp. 591-614. social y gestión democratica. Buenos Aires:
CLAVAL (2013) , Paul. O território na transição Clacso. p.147-156. 2009.
da pós-modernidade. GEOgraphia nº 2, Revista RIOS NETO, Eduardo e RIANI, Juliana
da Pós-Graduação em Geografia da UFF. Niterói: de Lucena Ruas. “Desigualdades raciais
UFF/EGG, 1999. Disponível em http://www. nas condições habitacionais na população
uff.br/geographia/ojs/index.php/geographia/ urbana”. In: Santos, Renato Emerson dos (Org.)
article/view/16/14 “Diversidade, Espaço e Relações Étnico-Raciais:
FAULHABER, L. & AZEVEDO, L. SMH 2016: o Negro no Ensino de Geografia”. Belo Horizonte:
remoções no Rio de Janeiro Olímpico. Rio de Ed. Autêntica, 2007.
Janeiro: Mórula, 2015. ROLNIK, Raquel. Territórios negros nas
FOULCAULT, M. 2001. “De outros espaços”. cidades brasileiras: etnicidade e cidade em
In: Ditos & Escritos. Rio de Janeiro: Forense São Paulo e Rio de Janeiro. In: Santos, Renato
Universitária. Emerson dos (Org.) “Diversidade, Espaço e
HAESBAERT, Rogério. Da Relações Étnico-Raciais: o Negro no Ensino de
multiterritorialidade aos novos muros: paradoxos Geografia”. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2007.
da desterritorialização contemporânea. Niterói, SANCHÉZ, Fernanda et. All. Cronologia
Universidade Federal Fluminense, 2011. p.1- crítica da cidade em disputa: o caso do Morro
15. Disponível em <http://www.posgeo.uff.br/ da Providência no Porto do Rio de Janeiro. In:
sites/default/files/da_multiterritorialidade_aos_ Oliveira, F. et. All (Orgs). Planejamento e conflitos
novos_muros.pdf>. Acesso em 02 jan. 2013. urbanos: experiências de luta. Rio de Janeiro:
HARLEY, John Brian. Mapas, saber e poder. Letra Capital, 2016.
27
Fonte: Elaboração própria, com dados de campo e base da Coordenadoria Técnica de Informações da Cidade do Instituto
Pereira Passos da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro (CTIC/IPP/PCRJ); * CARDOSO, Elizabeth Dezouzart et al. História
dos Bairros: Saúde - Gamboa - Santo Cristo - Zona Portuária. Rio de Janeiro: João Fortes Engenharia/ Editora Index, 1987
30 A O PE R AÇ ÃO UR BA NA C O N S ORCI A DA P O RTO MA R AV I L HA DE Z A NO S DEP O I S
“financeirização efetivamente existente” Brasil, primeiro mandato de Cesar Maia como prefeito
ou da “financeirização truncada” como Klink e (1993-1996)4, planos e projetos neste sentido
Souza (2018, p. 385) classificam esse processo no passam a ocupar papel central na agenda de
país. governo e dão os contornos do que começou a
ser colocado em prática ainda nos primeiros
Sendo assim, a primeira seção desse meses da gestão de Eduardo Paes, eleito em 2008.
trabalho faz apontamentos sobre os antecedentes
mais recentes e reflete sobre o aparato A gestão Cesar Maia inaugura uma nova
institucional e financeiro adotado pela OUCPM. coalizão no poder local carioca – que se manterá,
A segunda seção busca identificar e mapear os grosso modo, ao menos até os dois mandatos
principais agentes, públicos e privados, presentes de Paes – responsável por uma nova concepção
na Operação com foco na produção imobiliária. do planejamento urbano, próxima ao que a
Na terceira seção, discutimos a dinâmica literatura tem chamado de empreendedorismo
imobiliária da região, buscando refletir a partir urbano (HARVEY, 2005), planejamento
de distintas fontes de dados sobre a evolução estratégico ou empresariamento urbano
dos preços praticados, a partir e de acordo com (VAINER, 2000) ou urbanismo corporativo
as limitações das bases de dados disponíveis. (FERNANDES, 2013). Como símbolo dessa
Na quarta seção propomos uma reflexão sobre coalização, está o primeiro Plano Estratégico da
as distintas racionalidades que permeiam Cidade do Rio de Janeiro (PECRJ) de 1993 e a
o espaço aqui estudado e apresentamos a articulação para sua promoção entre Associação
proposta de uma tipologia, georeferenciada, que Comercial (ACRJ), Federação das Indústrias
congrega os temas debatidos nesse texto em um (FIRJAN) e Prefeitura, sendo esse o período
exercício cartográfico. Tal tipologia aponta para a em se “implanta de forma contínua, um novo
existência de três espacialidades distintas, ainda relacionamento, mais explícito” entre o poder
que com sobreposições: a) Espaço do Grande público local e o “empresariado com interesses
Capital Imobiliário; b) Espaço dos Pequenos econômicos no Rio de Janeiro” (OLIVEIRA,
Proprietários, e c) Espaço Popular. Por fim, na 2003, p. 83). É também na gestão de Maia que
última seção, são feitas as considerações finais se propõe o projeto “Porto do Rio: plano de
do artigo. recuperação e revitalização da região portuária
do Rio de Janeiro”, já em 2001, que tinha na
construção de uma filial do Museu Guggenheim,
ANTECEDENTES E O ARRANJO O onde hoje está o Museu do Amanhã, seu projeto
INSTITUCIONAL E FINANCEIRO DA âncora (PREFEITURA DA CIDADE DO RIO
OUCPM DE JANEIRO, 2011). Impedido de seguir com o
projeto pela justiça, posteriormente Maia chega
A ideia de se implementar um plano de a assinar um “Acordo de Cooperação Técnica”
“revitalização” da área portuária do Rio de Janeiro com o recém criado Ministério das Cidades,
existe ao menos desde os anos 19803 e começa a fruto de um grupo de trabalho que tinha por
tomar forma enquanto uma intervenção estatal objetivo “avaliar as propostas da prefeitura
estruturada na década seguinte. A partir do do Rio de Janeiro para a reabilitação da área
portuária” (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2005,
3 Em 1983, a Associação Comercial do Rio de Janeiro p. 30). Contudo, desconsiderando os esforços
(ACRJ) já havia proposto intervenções visando a “reciclagem
urbanística” da zona portuária. Nesta mesma década, outros 4 Luís Paulo Conde (secretário de urbanismo na gestão
projetos importantes como Corredor Cultural e SAGAS anterior) se elege em 1996 e Cesar Maia retorna à prefeitura
se ocupavam da manutenção do patrimônio histórico e para mais dois mandatos consecutivos, de 2001 a 2008.
cultural da região (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2005, p. Eduardo Paes também se elege para dois mandatos (2009-
27). 2016).
31
empreendidos pelo Ministério, o Prefeito Plano Diretor vigente, já que não havia previsão
promulga o decreto 26.852/2006 que cria a “Área daquele instrumento urbanístico8.
de Especial Interesse Urbanístico da Região
Portuária do Rio de Janeiro” (AEIU Portuária) A aprovação OUCPM foi beneficiada
e convoca empresas privadas a apresentarem pelas circunstâncias do período em que foi
“estudos de modelagem” de um projeto “para lançada. O alinhamento político entre os três
revitalização” da região5. entes federativos9 foi de grande relevância
para a viabilidade do projeto. Além disso, os
O Consórcio Mar e Vila, formado pelas megaeventos que seriam sediados pelo Rio
empresas Construtora Norberto Odebrecht Brasil de Janeiro (a Copa do Mundo de 2014 e os
S.A., Construtora OAS Ltda. e Carioca Christiani- Jogos Olímpicos de 2016), o bom momento
Nielsen Engenharia S.A., foi o único a apresentar macroeconômico do país e o aquecimento
um projeto. Essas são as mesmas empresas que do mercado imobiliário nas grandes cidades
futuramente viriam a ganhar a licitação para as brasileiras (em especial, no Rio de Janeiro),
obras do Porto Maravilha, que se baseou, em formavam uma conjuntura de grandes
vários aspectos, no estudo proposto. expectativas positivas ainda não vivenciada.
Klink e Souza (2018, p.385) chamam de como a principal sustentação do setor, tendo no
“reregulamentação” do setor, com a criação do FGTS e no Sistema Brasileiro de Poupança e
Sistema de Financiamento Imobiliário (SFI). Empréstimo (SBPE) seus alicerces (ROYER,
Surgem inúmeras inovações financeiras que 2009).
criam a possibilidade da terra urbana ser tratada Ao admitirmos a vigência de um Regime
como uma “forma de capital fictício” e “um de Acumulação Financeirizado de caráter
campo aberto para a circulação de capital que sistêmico e global, reconhecemos que o capital
rende juros” (Harvey, 2013, p. 471), processo financeiro passa a impor sua lógica de
potencializado “num contexto em que a acumulação, formas e temporalidades (padrões
financeirização dá o tom do processo de de rentabilidade, de liquidez e mobilidade), ao
acumulação” (PAULANI, 2016, p.529). capital produtivo, espraiando-se virtualmente
A restruturação regulatória e a sobre todas as relações de produção e também
ampliação do crédito, sobretudo no segundo sobre produção do espaço urbano. É claro que
mandato do governo Lula, impactam as essa imposição não acontece sem resistências,
estratégias das grandes empresas e possibilitam seja de outras frações do capital ou de classes
a entrada do capital estrangeiro no setor, ainda sociais que reclamam outras formas de
que não assuma o comando da acumulação apropriação deste espaço.
neste mercado (FIX, 2011, p. 136). Algumas Assim, é preciso compreender que a
dessas grandes empresas abrem seu capital na forma de inserção da economia brasileira neste
bolsa de valores13 e passam a sofrer constantes Regime dá a esse processo uma dinâmica e
pressões para se adequarem à lógica e à forma próprias no contato com a realidade
temporalidade dos mercados financeiros. Por brasileira e com os setores específicos de nossa
isso, partindo da noção de capital financeiro de economia. É por isso que outras lógicas15,
Hilferding (1985, p. 219) e das considerações de enraizadas em processos históricos na escala
Paiva (2007, p.140) sobre o capital financeiro nacional e local, permanecem centrais para a
imobiliário, sugerimos ser possível afirmar a compreensão do circuito imobiliário brasileiro
presença dessa última fração e, sobretudo, do caso estudado aqui. Tais
contemporaneamente no Brasil, sendo aspectos são cruciais para compreender a
caracterizada pela imbricação entre o capital “financeirização realmente existente no Brasil”
financeiro e o imobiliário, tendo nas inovações (KLINK E SOUZA, 2018, p.389). A articulação
financeiras de base imobiliária seu amálgama. política entre os três entes federativos
Não obstante o discurso de que a envolvidos no projeto, a centralidade da atuação
aproximação ao mercado de capitais ampliaria das grandes empreiteiras nacionais e a
os canais de crédito privado ao circuito participação do fundo público – seja por meio
imobiliário, é o fundo público14 que permanece dos recursos do tesouro municipal, dos terrenos
públicos localizados na área envolvidos no
13 Há hoje um número significativo de empresas com
capital aberto relacionadas ao circuito imobiliário: 16 exemplos importantes, e não são propriamente “receitas”
classificadas no segmento “Exploração de Imóveis”, 2 em estatais, são considerados fundos paraestatais e parafiscais.
“Intermediação Imobiliária”, 19 em “Edificações” e 151 O FGTS é um fundo gerado pela poupança compulsória dos
em “Fundos de Investimento Imobiliário”. Disponível em: trabalhadores, enquanto o SBPE é formado pela poupança
http://www.bmfbovespa.com.br/pt_br/produtos/listados- voluntária dos depositários.
a-vista-e-derivativos/renda variavel/acoes/classificacao-
15 É icônico o fato de Leo Pinheiro, dono OAS ser
setorial/. Acesso em: 29/05/2018.
“apontado como um dos mentores da operação urbana
14 Adotamos aqui uma noção ampla de fundo público. montada para o Porto Maravilha”. Disponível em: http://
Consideramos não apenas as receitas fiscais e tributárias oglobo.globo.com/brasil/cunha-investigado-por-
do Estado, mas também receitas e poupanças geradas suspeita-de-propina-em-financiamento-concedido-pela-
socialmente com destinação pública. O FGTS e SBPE são caixa-18312897. Acesso em: 29/05/2018.
35
participam de todas as fases da Operação, desde com subsidiarias de outras áreas. Além disso, foi
os estudos apresentados em 2006 até o contrato possível identificar o uso de títulos financeiro de
de PPP para obras e serviços da OUCPM base imobiliária (Certificados de Recebíveis
propriamente dita, além de possuírem Imobiliários) lastreados em seus
empreendimentos na região. Seus interesses e empreendimentos localizados na OUCPM
estratégias vão muito além da simples captação (PINHO, 2016, p. 189).
passiva da valorização fundiária em seus Outro agente identificado nesse grupo é
empreendimentos, ou da especulação pela a Tishman Speyer. Além de um especulador
compra (antes da valorização) e venda (depois estrutural, a atuação da Tishman parece
da valorização) de terrenos e empreendimentos. qualificá-la com um agente do capital financeiro
Essas empresas influenciam as decisões do imobiliário. A empresa nova-iorquina atua em
poder público e atuam ativamente na busca por vários países do mundo e está presente no Brasil
criar situações para promover a valorização de desde 1995. A estratégia de atuação da empresa
seus ativos na região, aplicando massivas está ancorada na captação de recursos por meio
quantidades de capital na área16. Por isso, de fundos de investimento imobiliários e parece
certamente podem ser qualificadas como seguir uma mesma receita em seus
“especuladores estruturais” nos termos de empreendimentos: a construção de grandes
Logan e Molocht (1987, p. 30). torres comerciais modernas e de alto padrão
A Odebrecht tem participação em projetadas por escritórios de arquitetos
quatro grandes empreendimentos que já renomados; a associação a outros capitais
consumiram CEPAC, todos no bairro Santo financeiros, sejam fundos de investimento ou
Cristo. Em todos eles o FIIPM tem participação, fundos de pensão nacionais e internacionais; e,
adquirindo parte do empreendimento em por fim, a pulverização posterior da propriedade
contrapartida à cessão de CEPAC e terreno, ou do empreendimento no mercado de capitais. A
apenas dos títulos. Tishman Speyer vem se configurando como
Ainda que Grupo Odebrecht esteja uma das principais incorporadoras na OUCPM
fortemente vinculado a investimentos e seus empreendimentos também contam com
produtivos, é possível afirmar que está a participação do FIIPM através de permutas
integrado ao processo de globalização por terrenos e CEPAC (até o momento seus
financeira. Seu capital é de origem nacional e empreendimentos são os que consumiram a
familiar, mas trata-se de uma grande maior quantidade de CEPAC) (PINHO, 2016, p.
multinacional presente em 27 países. A empresa 174).
atua também através de fundos de Seguindo este mesmo padrão, as
investimentos não só no Brasil (Fundo empresas GTIS Partners e Autonomy
Odebrecht Brasil, Odebrecht Africa Fund e Investimentos & Affiliates desenvolveram em
Odebrecht Latin Fund). Seu braço de parceria o Edifício Vista Guanabara. Criado em
investimentos imobiliários, a Odebrecht 2005, o GTIS Partners é um fundo de
Realizações Imobiliárias, tem 14,5% de seu investimentos fechado voltado para ativos
capital pertencente ao fundo de investimento imobiliários que administra aproximadamente
Gávea Investimentos, o que também acontece 3,2 bilhões de dólares em ativos. O fundo está
sediado em Nova York. A atuação do fundo no
16 É importante considerar essa articulação de interesses Brasil se dá de maneira semelhante à
de maneira mais ampla, para além dos limites da OUCPM. desenvolvida pela Tishman Speyer, com a
Sem ignorar as relações de natureza ilícita entre essas
captação de recursos no mercado financeiro
empresas e poder público, é preciso observar que elas
têm participação na realização e gestão de diversas outras estadunidense através da constituição de
obras e equipamentos públicos, tanto no âmbito municipal fundos de investimento. O modelo de negócios
quanto estadual.
37
desse fundo está “baseado no desenvolvimento São também “empresários ativos” a STX
de produtos imobiliários de alta rentabilidade e Desenvolvimento Imobiliário, de propriedade
na venda dos recebíveis a serem gerados pelos do empresário Marcelo Conde, cuja atuação tem
empreendimentos para fundos de private se focado no desenvolvimento dos chamados
equity” (PEREIRA, 2015, p. 244). Já a Autonomy condo-hotéis. Nesta modalidade, a
é o braço imobiliário no Brasil do fundo incorporadora realiza o empreendimento a ser
britânico de mesmo nome. O fundo brasileiro operado por uma marca hoteleira e suas
foi fundado em 2006, em associação com um ex- unidades autônomas podem ser negociadas
diretor da Tishman Speyer no Brasil (PINHO, junto a investidores (PINHO, 2016, p. 197). E,
2016, p. 195). por fim, a incorporadora JPL, do empresário
O Banco Fibra S.A também está presente José Portinari Leão, que se associou à
na OUCPM com um empreendimento de menor multinacional L’Oréal para a construção de uma
porte que ainda não se realizou. Trata-se de nova sede da empresa (PINHO, 2016, p. 200).
conglomerado de capitais de origem brasileira
pertencente ao Grupo Vicunha, vinculado à Pequenos proprietários
família Steinbruch (PINHO, 2016, p. 198).
Outras grandes empresas imobiliárias já Foi possível identificar ainda, a partir de
integradas ao circuito financeiro e que seriam trabalhos em campo e entrevistas, um grupo de
qualificadas como especuladores estruturais pequenos proprietários na área portuária que
chegaram a anunciar empreendimentos no possuem estratégias e estruturas distintas das
âmbito da OUCPM, mas restam dúvidas se tais empresas debatidas acima. Estes se dividem em
empreendimentos se concretizarão. É o caso da dois grupos.
Even Construtora e Incorporadora S.A., que O primeiro seria de pequenos
participaria da construção das Trump Towers especuladores e empresários. Em entrevista aos
em associação a outros fundos de investimento autores, o diretor comercial da imobiliária
internacionais (PINHO, 2016, p.201), e da Cyrela Sérgio Castro Imóveis, principal corretora
Brazil Realty S.A, que chegou a anunciar um imobiliária da região portuária, afirmou ter
acordo junto ao FIIPM para um grande intermediado a venda “de terceiros para
empreendimento no terreno Gasômetro17. terceiros” de cerca de 140 sobrados na região
Ambas são empreses de capital aberto. desde 2008, comprados por “pessoas normais,
Há ainda outros agentes, com menor investimentos de família”. Questionado se houve
poder de influência, mas ainda fortemente mudança de uso nesses imóveis, afirmou que
ligados ao mercado financeiro, que buscam se cerca de 70% foi negociada com investidores
colocar “no caminho do desenvolvimento” e que “compraram para guardar” ou que “estão
antecipar os movimentos do mercado, sendo segurando os imóveis fechados para poder
assim “empresários ativos” (LOGAN e alugar quando as coisas tiverem melhores”.
MOLOCHT, 1987, p. 30). É o caso da Global Ainda segundo o entrevistado, outra parte
Equity, que também atua financiando a desses imóveis foi negociada junto a pequenos
atividade de incorporação de empreendimentos empresários que passaram a desenvolver suas
por meio de fundos de investimentos para atividades na região (“temos também casos de
venda posterior de sua participação com a galeria de arte, bed and breakfast e pousada”).
valorização acionária, estratégia típica dos já Em algumas localidades há também
mencionados fundos de private equity. grande presença de pequenas manufaturas,
oficinas, distribuidoras e gráficas, bem como de
17 Disponível em: http://cyrela.globalri.com.br/admin/ pequenos comércios de varejo.
gestor/arquivos/pt/Cyrela_-_Comunicado_ao_Mercado_-_ No segundo grupo estão os “empresários
Gasometro.pdf. Acesso em: 10/05/2016
38 A O PE R AÇ ÃO UR BA NA C O N S ORCI A DA P O RTO MA R AV I L HA DE Z A NO S DEP O I S
ao total do Rio (19% e 66% respectivamente). foram negociados junto à CDURP em 2017,
Ainda que seja inevitável um lapso temporal como forma de superar o impasse entre a
entre a concessão da licença e do habite-se (o continuidade do contrato de PPP e a situação de
tempo de construção), além do fato de que as iliquidez declarada pelo FIIPM. Ou seja, o
licenças não se convertem necessariamente em Fundo declarava não ter recursos para cumprir
novos empreendimentos, esses dados reforçam com as obrigações por ele assumidas quando
a noção de uma queda nas expectativas do venceu o leilão de CEPAC. Mais uma vez, os
mercado imobiliário na cidade, e ainda maior recursos municipais arcam com os custos e os
na área portuária. Corroborando com essa riscos do projeto. Em maio de 2018, o FIIPM
afirmação, segundo o levantamento produzido declararia iliquidez pela terceira vez.
pelo Observatório das Metrópoles publicado Para melhor compreender a evolução da
pela Agencia Pública20, entre os 77 dinâmica imobiliária da área portuária,
empreendimentos privados licenciados na buscamos avaliar o movimento dos preços dos
região entre 2009 e 2017, 35 eram referentes a imóveis ao longo dos últimos anos. A análise
novas construções e destes apenas 7 estavam buscou munir-se de distintas fontes de dados
concluídos e em funcionamento em fevereiro de disponíveis. Assim, utilizamos dados do portal
2018. de anúncios “Zap Imóveis” e os “índices
A quantidade de CEPAC já negociadas FIPEZAP”, desenvolvido Fundação Instituto de
pelo FIIPM também indicam um movimento Pesquisas Econômicas (FIPE) em parceria com
similar. Segundo as demonstrações financeiras o portal21; dados referentes ao Imposto de
do Fundo, foram negociados apenas 14,3% dos
títulos entre dezembro de 2011 e dezembro de 21 Os dados para os bairros foram coletados diretamente
2017 (919.712 do total de 6.436.722 CEPACs). no site de anúncios (https://www.zapimoveis.com.br), que
dispõe de um gráfico com a série histórica do valor do m² e
Ocorre que grande parte desses títulos (340.676)
do tamanho da amostra. Já os do município foram obtidos
no site da FIPE (http://www.fipe.org.br/pt-br/indices/
20 http://observatoriodasmetropoles.net.br/wp/ fipezap/#indice-mensal) onde estão disponíveis apenas os
estagnacao-imobiliaria-e-crise-do-porto-maravilha/ preços.
Transmissão de Bens Imóveis Inter-Vivos (ITBI) dos bairros em alguns casos. Nestes, os dados
fornecidos pelo Instituto Pereira Passos (IPP/ perdem poder explicativo em função do número
PCRJ); e dados coletados diretamente em reduzido de observações, dificultando
campo22. afirmações mais precisas estatisticamente na
Os índices FIPEZAP são provavelmente comparação da série histórica desses bairros,
a fonte de dados mais utilizadas neste tipo de ainda que seja possível observar certas
análise. No entanto, tais índices apresentam tendências. Por outro lado, entendemos que o
algumas limitações. A primeira delas, em geral próprio número de anúncios é uma variável
observada na literatura, é que o índice é importante na descrição da dinâmica
formado pelos preços que constam nos imobiliária.
anúncios, o que não nos permite afirmar que Já a base fornecida pelo IPP/PCRJ
sejam estes os preços efetivamente praticados. compila dados de natureza diversa dos
Além disso, é provável que os dados sofram de comentados acima. Ela fornece informações das
um viés relacionado ao uso destes portais, tanto transações de imóveis sobre as quais incidem o
em relação ao tipo de anunciante que têm ITBI (inter-vivos), cuja arrecadação é de
acesso a esta ferramenta quanto ao possível competência municipal. Sendo assim, não se
aumento de anúncios à medida em que o site trata dos preços anunciados, mas daqueles de
fica mais conhecido ao longo dos anos. Outra fato realizados, ou ao menos declarados e
limitação é o tamanho das amostras quando se chancelados oficialmente pela Prefeitura para
busca informações desagregadas para o nível fins de cobrança do imposto. As informações
estão agregadas por logradouro sem identificar
22 O trabalho de campo se concentrou entre outubro os imóveis individualmente. Constam nessa
de 2017 e maio de 2018. Posteriormente foram realizadas base informações para os bairros Centro,
novas visitas a algumas das localidades. Não foram
Gamboa, Saúde e Santo Cristo, classificadas
coletados dados no interior do Morro da Providência
(Gamboa) e do Morro do Pinto (Santo Cristo), em função
pelo ano de lançamento do imposto, no período
das precárias condições de segurança no período da
pesquisa.
entre 2011 e 2018 (até o mês de julho)23. A base valores contratuais ligados ao merco
de dados foi ainda trabalhada para que fosse imobiliário, para que seja captada a variação
possível diferenciar quais logradouros do bairro real dos preços.
Centro se localizam dentro ou fora da área da No trabalho de campo, foram coletadas
OUC24. informações sobre imóveis com anúncios para
Para a análise das séries históricas, os venda e locação (nos bairros Saúde, Gamboa,
preços foram atualizados pelo Índice Geral de Santo Cristo e no trecho do Centro inserido nos
Preços do Mercado (IGP-M), indexador do nível limites da OUCPM), formando uma base de
dos preços mais utilizado para correção de dados que denominamos “ofertas imobiliárias”.
Entre as principais informações estavam o
23 As informações estão agregadas para cada endereço, o tipo de anúncio (locação ou venda),
logradouro e trazem o ano, o número de transações, o o tipo do imóvel (loja, sala, galpão,
valor médio das transações e o total da área construída apartamento) e o uso (comercial, residencial,
transacionado. Para se chegar ao preço médio do metro outro). Posteriormente, foram realizados
quadrado das transações, primeiro foi calculado a área
contatos via telefone com os anunciantes para
média transacionada (área total dividida pelo número
de transações) e então feita a razão do valor médio das
coleta de outras informações como preço,
transações sobre a área média transacionada. Após estas metragem, tempo vacância, se o anunciante era
operações foram calculadas as médias anuais para os o proprietário ou um intermediário e outras
bairros. informações declaradas pelo “entrevistado”.
24 Como não é possível identificar a localização exata Partindo do total de 147 contatos coletados foi
dos imóveis, foram considerados dentro da OUC os possível se chegar ao preço do metro quadrado
logradouros que estão totalmente ou apenas parcialmente para 88 imóveis25.
compreendidos na área da OUC
Além daqueles em que não foi possível o contato, há
também alguns casos de informações inconsistentes que 25 Além daqueles em que não foi possível o contato, há
impossibilitaram esse cálculo. também alguns casos de informações inconsistentes que
impossibilitaram esse cálculo
distintas que devem ser consideradas ao avaliar Os preços médios no bairro Gamboa
a evolução do número de anúncios e transações. ficam, em regra, entre os da Saúde e do Santo
Número de Domicílios particulares Cristo, mas sua variação real é a menor entre os
permanentes três bairros e ainda muito superior ao Centro e
Entre os principais bairros da área da ao Rio. O bairro registra uma variação negativa
OUCPM, a Saúde é o que apresenta os maiores de quase 30% entre 2008 e 2010, mas tem um
preços por metro quadrado e um grande crescimento vertiginoso entre 2010 e 2015. Por
crescimento percentual nos anos em que os isso, mesmo que em queda em todos anos
dados já estão consolidados (156,2%, entre 2009 seguintes, sua variação real fica em 95% entre
e 2017). O preço médio em 2018 volta a valores 2009 e 2017. Na média dos meses de 2018,
próximos de 2012. Este bairro possui um apresenta um preço pouco maior que o ano de
número significativamente menor de domicílios 2011. A Gamboa é o bairro que registra as
e também apresenta o menor número de maiores amostras entre os bairros contidos na
anúncios. Na grande maioria dos meses não há OUCPM. O número de meses sem nenhum
anúncios registrados na base de dados, mas ao anúncio é significativamente inferior aos
final de 2015 cresce o número de anúncios e o demais bairros. É possível observar que o
tamanho da amostra passa a variar entre 1 e 4 tamanho da amostra passa a crescer de maneira
anúncios. mais consistente a partir dos meses finais de
2013 e, apesar de um decréscimo em 2016, no
período final passa a variar em um patamar
Número de Domicílios particulares permanentes mais elevado, variando entre 9 e 17 anúncios.
Já o Santo Cristo apresenta, em geral, o
menor valor do metro quadrado entre os três
bairros, ao contrário de seu crescimento
percentual, o maior, considerando o período
entre 2009 e 2017. Os primeiros registros são de
agosto de 2009 e os preços na média anual têm
uma ligeira queda em 2010. A partir desse
Fonte: Censo IBGE 2000 e 2010 último ano os preços seguem uma tendência de
crescimento, mesmo que com uma queda
significativa em 2016. A média em 2017 registra Imóveis e os valores das duas bases de dados
um crescimento expressivo (65%) em relação ao são relativamente próximos, o que não acontece
ano anterior, mas cabe lembrar que os dados nos demais bairros.
deste bairro vão apenas até maio de 2017, No entanto, todos os bairros apresentam
prejudicando uma melhor comparação com os uma tendência de queda no número de
demais bairros. O número de anúncios também transações ao longo do período (gráfico a
é pequeno para esse bairro e permanece até a seguir27), ainda que com um crescimento em
setembro de 2010 variando praticamente entre 1 2017, ao contrário do número de anúncios
e 2 observações. Os valores finais da série registrados pelo Zap Imóveis. O número de
parecem sugerir um aumento no tamanho transações no Centro também é bastante
dessa amostra, que atinge seu maior valor (12 superior, não apenas em valores absolutos, mas
anúncios) no último mês para qual se tem os também proporcionalmente28.
dados. Os preços encontrados no bairro Saúde
Passando à análise dos dados do ITBI são bem menores se comparados aos outros
para os imóveis residenciais, também dois bairros inteiramente compreendidos na
observamos que as médias dos preços do metro OUC, com a exceção do ano de 2017, quando
quadrado encontradas nos bairros Gamboa, atinge o maior valor de sua série histórica.
Saúde e Santo Cristo são significativamente
menores que os do Centro. Outra informação 27 Não é possível comparar número de transações de
2018 com outros anos, pois os dados do ano corrente
relevante é que os valores encontrados para os
captam apenas as transações até o mês de julho. Ainda
logradouros do Centro que estão fora da área da assim, optamos por mostrar esses dados, pois parecem
OUC são sempre superiores aos do mesmo sugerir uma queda no número de transações (considerando
bairro localizados dentro do perímetro da OUC. proporcionalmente o tempo transcorrido e o número de
Os valores observados para o Centro transações), o que só poderá ser confirmado posteriormente,
seguem uma tendência mais clara ao longo dos com os dados completos para 2018.
anos: um crescimento entre 2011 e 2015 com 28 A razão entre soma de todas as transações (2011-2018)
queda nos anos seguintes. Essa tendência é e o número de domicílios no Censo IBGE de 2010 são:
similar àquela apresentada pelos preços do Zap 18,64% no Centro, 4,02% na Saúde; 3,43% na Gamboa; e
4,50% no Santo Cristo.
Saúde e Gamboa para os imóveis comerciais quando os preços começam a cair no município
(109,5% e 56,9%, respectivamente) é e nos bairros do Centro e Saúde, enquanto os
significativamente menor que os dos preços na Gamboa permanecem mais estáveis.
residenciais se compararmos o período entre Quanto às amostras de anúncios, os
2009-2016 (para os residenciais esses valores dados mostram um movimento muito
seriam 126% e 129%, respectivamente). discrepante de queda para todos os bairros que
Também é possível observar certa tendência de se obteve os dados entre o início de 2011 e
crescimento entre o início das séries e 2015, meados de 2014, que supomos ser causado por
algum erro na base de dados do site. Ainda residenciais. A tendência para o Centro
assim, é possível observar uma tendência de novamente é de crescimento dos preços no
crescimento nessa variável nos meses finais da início da série e queda ao final, mas se mantêm
série de dados, principalmente para o Centro e mais estáveis até 2016 e a queda nos últimos
Gamboa, que passam a variar em um patamar anos é menos significativa. Os preços nos
significativamente mais alto. logradouros do Centro localizados dentro área
Já a análise dos dados do ITBI não- da OUC também são inferiores aos localizados
residencial mostra tendências similares ao do fora esse limite. Por fim, ainda sobre o Centro, o
residencial com uma exceção clara e número de transações é muito superior às
importante: o movimento das variáveis residenciais e também apresentam uma
referentes ao bairro Santo Cristo a partir de tendência de queda.
2016. O bairro da Saúde apresenta uma tendência
Afora os últimos anos do Santo Cristo, os semelhante à do Centro, com crescimento entre
preços do Centro são bastante superiores aos 2011 e 2015, mas com queda em 2016, voltando
dos demais bairros, assim como observado nos a crescer em 2017. Ao longo de todo o período a
venda de um imóvel e o escriturado para Conselheiro Zacarias e Pedro Ernesto), mas não
cobrança do ITBI, chama atenção a diferença indicam um mesmo empreendimento.
entre os valores anunciados no Zap Imóveis e os Já os dados do Santo Cristo mostram a
registrados no ITBI para os bairros contidos na grande predominância de venda nos novos
OUCPM. Esses valores são muito mais próximos empreendimentos da Rua Equador em ambos
para o Centro, o que coloca em questão a os usos. Para os residenciais, as transações que
utilização dos anúncios do Zap Imóveis como vinham caindo acentuadamente ao longo da
proxy para medir a variação real dos preços em série, têm um expressivo crescimento em 2017.
menores escalas espaciais. Das 42 vendas realizadas nesse ano, 32 são
Outo ponto importante a ser ressaltado é referentes a unidades na Rua Equador, com um
que, se por um lado a grande variação dos valor médio do m² (R$ 4.327,42)
preços médios por logradouro do ITBI dificulta significativamente acima das outras 10
precisar a valorização dos preços nos bairros, transações (R$ 1.751,48), além de apresentarem
por outro, esta base de dados possibilita uma área média (23m²) excepcionalmente
identificar uma concentração espacial das inferior às demais. Tendo em vista essas
vendas, que parece estar correlacionada às características, deduzimos serem referentes aos
principais obras realizadas pela OUCPM, ao novos empreendimentos lançados nesse
trajeto do VLT e os novos empreendimentos. logradouro que possuem hotéis e torres
Para os imóveis residenciais na Saúde, comerciais (AC Hotel e Porto Atlântico)31, que
embora não se observe uma concentração em possivelmente tiveram vendas de unidades do
um mesmo logradouro e mesmo ano, o que tipo flat classificadas como residenciais na base
poderia indicar vendas em um mesmo de dados do IPP/PCRJ. É interessante notar que
empreendimento, destacam-se o Morro da entre 2011 e 2014 as transações estavam
Conceição e seu entorno para os residenciais concentradas nos logradouros no morro do
(rua do Jogo da Bola e Sacadura Cabral, ambas Pinto e seu entorno (ruas Dr. Piragibe, Nabuco
com 10 transações em todo período). Já para os de Freitas, Pedro Alves e Vidal de Negreiros). A
comerciais, inferimos que a maior parte das mesma situação é observada para os imóveis
transações estão concentradas em poucos comerciais. Das 285 transações de 2016, 282 são
empreendimentos próximos à Praça Mauá, referentes à rua Equador, com o preço médio de
notadamente nos logradouros: av. Venezuela (10 R$ 14.700,23 (o preço médio das demais é de R$
em 2011), av. Rodrigues Alves (64 em 2011; 14 2.600,00). Em 2017, são 124 transações com
em 2012; 17 em 2016; e 13 em 2017), travessa valor R$14.532,37 e apenas 2 transações não se
Coronel Julião (12 em 2011; 14 em 2012; 23 em referem a este logradouro e têm o preço médio
2014; 23 em 2016) e a av. Barão de Tefé (22 em abaixo de mil reais. E, por fim, as 3 transações
2018). À exceção da tv. Coronel Julião ocorridas em 2018 também são referentes
(possivelmente referentes a um edifício àqueles empreendimentos, o que elevou o preço
garagem), os outros logradouros são aqueles médio a R$ 14.700,00.
onde estão localizados grandes Entretanto, o destaque dado aos novos
empreendimentos que consumiram CEPAC e empreendimentos não parece refletir
onde se concentram as obras da OUCPM.
Na Gamboa são as ruas das imediações 31 Dois empreendimentos têm seus endereços registrados
da Praça da Harmonia e do trajeto do VLT na rua Equador nos “Relatórios trimestrais” da CDURP
próximo àquela praça que se destacam, tanto referentes às licenças para construção: AC Hotel Porto
nos residenciais como nos comerciais. Poucas Maravilha (“SPE STX”) e Porto Atlântico Business Square
ruas concentram a maior parte das transações (“Arrakis Empreen. Imob”), este conta com dois hotéis (Ibis
e Novotel). Disponível em: http://www.portomaravilha.
(ruas do Livramento, da Gamboa, do Proposito,
com.br/relatorios_trimestrais
51
onde ocorrem transações nos anos de 2017 e convertem em transações. Até o presente
2018 segundo o ITBI , sendo possível observar momento, é possível afirmar que a Operação
uma convergência com as ocorrências de Urbana não logrou sucesso em atrair novos
ofertas. empreendimentos residenciais (ou na mudança
É importante destacar o tempo de de uso dos imóveis já existentes), e aumentar a
vacância. Apenas 4 imóveis já haviam sido população residente em seus limites, um dos
locados ou vendidos no momento da ligação e objetivos declarados pelas autoridades
outros 4 estavam em uso, mas continuavam promotoras do projeto. Além disso, ainda que
sendo ofertados. Eram muitos os relatos de que registrado algum crescimento dos preços
o imóvel estava há vários anos vazio e a grande praticados, nos parece que a euforia dos agentes
maioria superava ao menos um ano de do mercado imobiliário ao anúncio do projeto
vacância, mesmo nas proximidades da Praça da deu lugar à “calmaria” do período atual.
Harmonia e das localidades próximas ao centro. Contudo, isso não significa dizer que alguns dos
Os dados analisados até aqui parecem agentes imobiliários que investiram seus
reforçar a noção de um movimento especulativo capitais nessa região não obtiveram ganhos,
nos anos iniciais da OUCPM com o aumento sobretudo quando se coloca em perspectiva as
dos valores anunciados, mas que não se diversas formas de apropriação do fundo
sustenta nos anos seguintes, já que não se público propiciada pela OUCPM.
R$ 7000
diferencia dos outros dois bairros, onde estão diretamente pelos proprietários ou
localizadas as favelas . Segundo o Censo de intermediados por uma imobiliária, bem como
201033, na Gamboa e Santo Cristo, as propriedades dos “empresários acidentais”.
respectivamente, a população negra (pretos ou Os antigos sobrados marcam a arquitetura desse
pardos) representava 58% e 54% dos habitantes espaço, “a mercadoria típica” da região
e suas rendas médias era de R$ 543,50 e R$ portuária segundo o diretor da imobiliária
633,61, enquanto na Saúde essas variáveis eram citado anteriormente, e certamente estão
49% e R$ 757,90. localizados ai muitos dos 140 imóveis desse tipo
que ele afirma ter negociado junto a pequenos
Espacialidade dos pequenos proprietários investidores. Estes são os que usaram de
“investimentos familiares” para comprar
A espacialidade dos pequenos imóveis para especulação (“para guardar”!).
proprietários estaria situada entre as duas já Entretanto, a heterogeneidade se
comentadas, ao longo da antiga linha do mar. sobressai especialmente nessa espacialidade. A
Optamos por assim denominá-la, pois é nesta disputa entre diferentes agentes, usos e formas
faixa territorial que se localiza a maior parte dos de apropriação definem a natureza desse
anúncios de “ofertas imobiliárias”, sejam feitos espaço. Talvez por essa característica de limiar, é
também onde deflagram a maior grande parte
33 Pessoas de 10 anos ou mais de idade e valor do dos conflitos. Além dos pequenos proprietários,
rendimento nominal médio mensal das pessoas de 10 anos influem nessa espacialidade alguns projetos de
ou mais de idade
que são expressão da vida individual, mas (2008) chamaria de “cultura do efêmero”, na
sobretudo coletiva – possui natureza dinâmica, qual a “experiência identitária e de cidadania
mutante. E é fundamental acrescentar essa foi deslocada para as relações de consumo”
dimensão à construção da cartografia crítica. (BARROS, 2007).
Esses processos de mutação, contudo, possuem
São exatamente essas tensões que buscamos
ritmos diferentes e até percepções distintas,
reconhecer e revelar no processo de construção
na ordem do visível. Essas mudanças podem
da cartografia, e que ficam evidentes nos
ocorrer por diversos motivos; dentre eles, são as
exercícios da pesquisa, transformados em
“trocas culturais”, que demandam nossa atenção.
produtos, conforme veremos no item que se
Essas “trocas” ocorrem de forma mais segue.
expressiva com a intensificação do próprio
processo de globalização, que acaba por HEGEMONIA FICCIONAL:
tensionar a relação mercado/ tradição. Aqui A CARTOGRAFIA CULTURAL E O
entram em jogo as negociações político- AFLORAMENTO DE DISPUTAS E
simbólicas de permanência e transformação que, CONFLITOS NA REGIÃO PORTUÁRIA
por vezes, atendem às pressões internacionais DO RIO DE JANEIRO
regidas por um mercado internacional de Frente ao forte marketing urbano e
bens culturais. Essas pressões acabam por dar às políticas urbano-culturais desenvolvidas
força aos agentes que promovem o consumo, na região para construir a imagem da cultura
como definidor dessa produção cultural. Nesse hegemônica, observamos, por meio do processo
movimento, observamos que as transformações cartográfico, com a sequência de mapas 1 que
culturais ocorrerem de forma violenta, acelerada a dinâmica cultural da região sofreu alterações.
pela própria dinâmica do capital. Aqui o Os pontos no mapa não nos dão a totalidade
entendimento da cultura deixa de ser de “troca” das ações realizadas no território, mas nos
e passar a ser de dominação cultural. permitem observar, de forma mais ampla, as
Os mercados simbólicos ganham força e transformações na dinâmica da área. Assim,
se reinventam, tornando-se cada vez mais fluidos dividimos os pontos em categorias que nos
em todas as sociedades. Este processo acaba possibilitam observar aquelas ações incentivadas
por interferir diretamente na permanência da pelo projeto Porto Maravilha – como as ações
memória dos lugares que passam por pressões, ligadas às iscas culturais, os empreendimentos
de forma desproporcional, para mudar e se criativos, as restaurações em edifícios de
adequarem ao novo ritmo de vida imposto, o interesse históricos e os eventos de promoção da
que configura uma nova dinâmica cultural que área “vitrine” do projeto – e aquelas ações que
ali se estabelece. Observamos também que as incidem no território a despeito do incentivo
políticas culturais são instrumentos por meio público-privado, em geral relacionadas às
dos quais os sujeitos buscam reestabelecer categorias: equipamentos culturais; associações,
um equilíbrio entre as tensões que envolvem manifestações e grupos; institutos, companhias
tradição e memória do lugar e uma cultura profissionais e produtoras. O mapa traz ainda
desterritorializada, num contexto de construção como base cartográfica as regiões que possuem
de múltiplas identidades, de diversidade cultural. os Certificados de Potencial Adicional de
No entanto, o que observamos são tais definições Construção e a porcentagem de sua vinculação
serem pautadas pelas dinâmicas dos mercados aos terrenos, apontando os edifícios que já foram
internacionais, pelo consumo acelerado, pela construídos na área com a utilização do CEPAC3.
imposição da renovação, pela transformação da
3 Certificados de Potencial Adicional de Construção,
experiência cultural em experiência do lazer e títulos financeiros utilizados como possibilidade de
entretenimento (BARROS, 2007), o que Canclini pagamento de outorga no contexto da OUC.
64 C ARTO G R A F IA C ULT UR A L
65
Mapa 4 – Conflitos culturais da região. Autores: WALTER, 1993). A ação tem caráter público e
Amanda Wanis, Ana Carolina Machado e Daniel reivindica o direito à cultura, à autonomia na
Brandão. Base CEPACs: Thiago Pinho e Paula produção cultural e à cidade, em seu aspecto
Cardoso. simbólico-cultural. O conflito encontra-se em
uma microescala, possui dinâmica difusa e,
vale destacar que as discussões em torno do cais portanto, ultrapassa a noção de “guerra cultural”,
abrem grande brecha para a implementação de discutida por Eagleton (2011), em uma percepção
inúmeras outras ações, que deram visibilidade mais complexa do que aquela apresentada pelo
às disputas no que se refere à hegemonia autor, apenas dois blocos representando: Cultura
daquele lugar, que nunca poderá ser resumido a e cultura, ou cultura mercantil e cultura popular.
um espaço para o lazer e entretenimento de uma
Desse modo, identificamos quatro
world class.
categorias de atores em disputas: os grupos
Na sequência, no mapa 4, observamos tradicionais, no que se refere ao tempo de
diversos outros pontos de disputas em torno do permanência no território; os novos grupos
Centro Cultural José Bonifácio (CCJB), Instituto territorializados, criados no movimento de
Pretos Novos (IPN), a Pedra do Sal e o quilombo renovação da área portuária anunciada ainda no
urbano de mesmo nome. Observamos também governo Cesar Maia (2000) e que estabelecem
que as disputas relacionadas à cultura negra relações com o lugar, seja pela natureza da
representam a maior parte, cerca de 80% dos atividade, seja pela atuação cultural em questão;
conflitos mapeados. Podemos perceber ainda os grupos cosmopolitas, geralmente vinculados
outros conflitos relacionados à cessão do espaço à chamada “classe criativa” e a coalizão de atores
às atividades culturais anteriores ao projeto. Para que atua na gestão do território, sejam eles da
reconhecer tais conflitos e disputas culturais gestão pública ou das parcerias público-privadas
existentes no território buscamos entender o consorciadas.
espaço público conforme aponta Mitchell (1995),
Tais grupos disputam desde os espaços
espaço onde há representação do material, mas
de atuação, recursos físicos e financeiros, até
também onde ocorrem as interações sociais e
ideias, políticas e representações culturais. Os
as atividades políticas, onde a própria cultura
conflitos se tornam múltiplos e complexos a
se constrói. Destacamos a dupla importância
partir do momento em que há a associação e
do espaço público: ele é produto e produtor
dissociações desses grupos entre si, frente a
das relações de inclusão, encontro de ações
conflitos de diversas naturezas. Tal fluidez de
políticas e liberdade de expressão, onde grupos
associações e desassociações é entendida como
marginalizados podem lutar por seus direitos,
estratégia de sobrevivência dos grupos culturais.
mas também onde se manifestam as disputas
simbólicas e políticas. Esses conflitos culturais, para além das
necessidades de cada grupo, quando analisados
Entendemos, portanto, conflito cultural
em seu conjunto, evidenciam a urgência de ações
como ação coletiva que interessa, engaja e
que promovam a possibilidade de igualdade
mobiliza atores culturais, grupos ou instituições,
de atuação dos diversos atores culturais. Essas
estimulados pela necessidade de sobreviver
ações em geral são demandadas à gestão local,
frente a novos grupos cultuais cosmopolitas e
mas acabam sendo também produzidas e
ou extra-locais, atraídos pelas transformações
estimuladas pela necessidade de articulação e
no território, num processo de re-existência.
formação de rede entre os grupos culturais.
Assim, tais ações podem ser ou não planejadas
e organizadas, e nem sempre promovem Observamos que os conflitos têm base
consciência acerca de desdobramentos e territorial, vinculados aos edifícios e espaços
significados possíveis do conflito (VAINER e públicos que ocupam, mas também têm
72 C ARTO G R A F IA C ULT UR A L
clivagens conceituais, que definem e defendem que o único ponto originalmente incluído
diferentes entendimentos de cultura, a ser no projeto relacionado a uma historicidade
inserida no projeto original. Esta última está negra é o que propõe transformar o Morro da
vinculada à construção dos lugares de memória Providência em grande complexo turístico a
e, consequentemente, ao reconhecimento céu aberto. Não apenas esse ponto, mas todos
da cultura negra na região. Os conflitos os outros relacionados aos conflitos da cultura
estão concentrados na região contígua ao negra foram abordados pela coalizão gestora do
Boulevard Olímpico, grande vitrine simbólica projeto enquanto lugares históricos congelados,
do projeto. Não coincidentemente, tanto o ou seja, apartados de sua constituição de
Boulevard quanto a concentração de conflitos memória social, cultural e política, entendida
acompanham as áreas de CEPACs estabelecidas aqui como complexa teia simbólica, neste
pela lei municipal. Conforme já observamos, a processo de disputas de lugar.
seletividade nas políticas culturais é empregada
É nessa reflexão territorial, mas também
no sentido de fortalecer a nova imagem síntese
simbólica, que evidenciamos por um lado
(Sánchez, 2010) perseguida pela coalizão gestora
que a cultura é um poderoso instrumento de
do território, que, por sua vez, é utilizada como
ressignificação dos lugares, nos processos
recurso para agregar valor à área, em favor das
de renovações urbano-culturais. Espaços
empresas beneficiadas pelos CEPACs.
emblemáticos – como a Praça Mauá, a Pedra do
A repressão empregada pelos agentes Sal ou o Cais do Valongo – são hoje transformados
de segurança pública, responsáveis por manter em cenários urbanos a serem consumidos. Mas
a imagem do projeto e os conflitos relacionados por outro lado, essas transformações se somam
com cessão do uso de edifícios ou espaços aos diversos processos de re-existências dos
públicos, em sua maioria, estão diretamente atores culturais, que acabam por tornar mais
vinculados ao caminho luminoso do projeto; complexas as disputas simbólicas pela atribuição
por conseguinte, no caminho das áreas mais de sentidos a pontos ou recortes espaciais
valorizadas para o mercado imobiliário, áreas de constitutivos de repertórios identitários.
CEPACs. Esses conflitos são aqueles gerados na
Nestes processos de disputas podemos
utilização da Praça Mauá por eventos que não
observar estratégias de articulações políticas
se alinham à gestão oligopolista da cultura, por
insurgentes, com destaque para os modos com
exemplo, às ações de despejo do Armazém da
os quais os grupos e atores culturais se articulam
Utopia e da AACTED; este último transferido da
e se desarticulam. O reconhecimento dessas
Av. Venezuela para a Rua Pereira Reis, conforme
relações nos permite ultrapassar a dualidade
mostra o mapa. A partir da leitura desse
entre sociedade civil e governo e tende a pontuar
mapa, fica evidente a transformação da região
amplas relações, conexões e redes estabelecidas
“luminosa” em área world class, que se alinha
no e pelo território, e percebê-lo como múltiplo
com as demandas do mercado imobiliário e alija
e conflitual por natureza. Ao mesmo tempo em
simbólica ou materialmente os atores culturais
que essa característica múltipla e conflitual é
locais. Nesse processo, vale destacar que a
utilizada como argumento para uma política
permanência do Armazém da Utopia também
cultural ordenadora e planificadora, que
representa uma fissura na proposta inicial do
exclui grande parte dos grupos livres, em geral
projeto, ainda que em 2019 nova ameaça esteja
desvinculados da lógica da economia criativa e da
em curso mobilizada também pelas novas
indústria cultural, ela também permite a criação
disputas simbólicas instauradas no país, a partir
de políticas culturais insurgentes que impactam
das eleições presidenciais de 2018.
diretamente aquela lógica ordenadora.
Quanto aos conflitos relacionados
Não se trata, no entanto, de um processo
especificamente à cultura negra, vale destacar
73
linear, de causa e consequência, mas de um o valor agregado dos imóveis ali projetados.
processo rizomático10, desvelado pelo processo
cartográfico, no qual as próprias linhas de fuga, por CONCLUSÃO
vezes impressas no território pelos atores sociais Com o processo cartográfico observamos
locais, também influenciam no reconhecimento que a área portuária é um lugar que, neste
das distintas formas de seletividade que vêm momento pós-olímpico, está bem definido
sendo operadas. Entendemos esse processo pelo conflito: sobre o que foi seu passado ou a
como um complexo de vetores que ora tende a natureza de sua “herança”, “sobre o que deveria
percorrer um caminho, ora outro, em direção à ser seu desenvolvimento presente, sobre o que
construção urbano-cultural da área. poderá ser seu futuro” (SANTOS et tal., 2018).
Assim, observamos que as disputas Esses conflitos, que abordamos aqui como
travadas por recursos e reconhecimento conflitos urbano-culturais, têm naturezas tanto
simbólico dos fazeres culturais por vezes territoriais quanto simbólicas. Nesse sentido
impulsionam disputas entre os próprios grupos constatamos que os conflitos também podem
culturais, uma vez que há uma administração ser entendidos como fissuras e brechas no tecido
equivocada dos recursos diretos11 destinados à homogeneizador proposto pelo projeto, num
cultura, sem transparência ou política pública processo de expropriação da sua positividade
acessível, que fomente todas as ações do indomável à homogeneização (PELBART, 2015).
território. Na acepção de Foucault, e em suas releituras
por Guatarri e Negri (apud PELBART, 2015), “a
No entanto, observamos também que
própria vitalidade social, quando dominada
essas disputas que por vezes unem, e por outras
pelos poderes que a vampirizam, aparece
separam os grupos frente às ações dominantes,
subitamente como uma potência que já estava lá
estabelecem um jogo fluido de associações e
desde sempre”, a potência da vida, a biopotência.
dissociações. Esse jogo acaba por ser um campo
fértil para tais políticas culturais insurgentes, Retomando Mitchell, entender o espaço público
que, do processo de tecer teias de relações e como lugar de liberdade de expressão e de conflito
parcerias como estratégia de sobrevivência, é reconhecer a dinâmica de transformação do
acaba por fortalecer a contestação ou crítica à território; reconhecer que novos vetores de fuga
operação urbana que vem sendo implementada. são dados pelo conflito e que, portanto, podem
vir a construir nova rota. Abafar o conflito e
Portanto, apesar dos esforços da coalizão
impor uma cultura hegemônica é matar o caráter
gestora da área portuária em construir uma
biopotente da própria cultura.
imagem sólida de uma área cosmopolita,
de consumo cultural para uma world class, Se por um lado podemos olhar os conflitos como
podemos observar, por meio da cartografia, que uma reação à tentativa de apagamento da cultura
essa hegemonia é uma grande ficção, forjada e local, em sua maioria relacionada à cultura
utilizada como mais um recurso para aumentar negra, visando uma dominação cultural imposta
pelo projeto, no sentido das guerras culturais de
10 Conceito de Deleuze e Guattari: estrutura
Eagleton; por outro, podemos observá-los como
horizontalizada de modo que uma parte pode e deve brechas e fissuras que tornam latente o caráter
se conectar a qualquer outra. Estrutura múltipla, sem biopotente dos grupos culturais em ação, que
distinção de dimensão superior, estabelecida de maneira por vezes conseguiram imprimir mudanças no
simples. Ipsis Litteris, “rizoma não cessaria de conectar projeto inicial, o que nos permite perceber as
cadeias semióticas, organizações de poder, ocorrências
possibilidades de uma política cultural outra,
que remetem às artes, às ciências, às lutas sociais”.
como resposta à primeira, imposta pela coalizão
11 Segundo relatório trimestral de atividades da CDURP gestora do território.
2017, R$ 3 milhões oriundos dos 3% dos CEPACs destinados
à cultura foram destinados à pagamentos diversos
74 C ARTO G R A F IA C ULT UR A L
Introdução Rizoma. In: Mil Platôs: capitalismo SÁNCHEZ, Fernanda; TORRES RIBEIRO, Ana
e esquizofrenia, v.1. Rio de Janeiro: Editora 34, Clara. City Marketing: a nova face da gestão das
1995. cidades no final do século. In: RIBEIRO, A. C.
T. Por uma sociologia do presente: ação, técnica
_____. 1933: Micropoítica e segmentaridade.
e espaço, 1ª. ed. [Prêmio ANPOCS 1996]. Rio de
In: Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, v.3.
Janeiro: Letra Capital, 2013, p.29-46.
Rio de Janeiro: Editora 34, 1996.
SANTOS, Milton. A natureza do espaço:
MITCHELL, Don. The End of Public Space?
técnica e tempo, razão e emoção, 4ª ed. São Paulo:
People’s Park, Definitions of the Public, and
editora da universidade de São Paulo, 1996.
Democracy. In: Anais do American Geographers,
v.85, n.1, 1995. SANTOS, Renato Emerson dos. SILVA, K. S.;
RIBEIRO, L. P. ; SILVA, N. C. Disputas de lugar
PELBART, Peter Pal. Políticas da vida,
e a Pequena África no Centro do Rio de Janeiro:
produção do comum e a vida em jogo... In: Saúde
Reação ou ação? Resistência ou r-existência
Soc. São Paulo, v. 24, supl.1, p. 19-26, 2015.
e protagonismo?. In: Natacha Rena; Daniel
PINHO, Thiago Araujo do. O capital Freitas; Ana Isabel Sá; Marcela Brandão. (Org.).
financeiro imobiliário no Brasil: O caso da Seminário Internacional Urbanismo Biopolítico.
Operação Urbana Consorciada Porto Maravilha. 1ed.Belo Horizonte: Fluxos, 2018, v. 1, p. 464-491.
Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS
Graduação em PlanejamentoUrbano e Regional
GERAIS, Grupo de pesquisa interdisciplinar.
da Universidade Federal do Rio do Janeiro. IPUR/
Cartografias emergentes: a distribuição territorial
UFRJ, Rio de Janeiro, 2015, 238p.
da produção cultural. Relatório CNPq, 2016,
PINTO, João R. L.; NASRA, Lucas; SANTOS, Belo Horizonte.
Suzy. Quem são os donos da educação e da
VAINER, Carlos; WALTER, Carlos. Reflexõs
cultura no Rio de Janeiro? Os contratos entre
Iniciais sobre Noção de Conflito Ambiental. Rio
a Fundação Roberto Marinho e a Prefeitura.
de Janeiro: IBASE, IGEO/UFF, IPPUR/UFRJ, 1993.
(Relatório de pesquisa). Rio de Janeiro: 2016.
WANIS, Amanda e SÁNCHEZ, Fernanda. A
RIBEIRO, Ana Clara Torres; BARRETO, Amélia
renovação “urbano-cultural” no projeto Porto
Rosa Sá; LOURENÇO, Alice; COSTA, Laura Maul
Maravilha: matrizes mobilizadas na reinvenção
de Carvalho; AMARAL, Luis César Peruci do.
da área. In: CASTRO, F.; RODRIGUES, L.; ROCHA,
Por uma cartografia da ação: pequeno ensaio
R. (Orgs) Políticas culturais para as cidades (Vol.
de método. In: Por uma sociologia do presente.
II). Salvador: EDUFBA, 2018. p. 35 - 56.
Ação, técnica e espaço, v. 4. Rio de Janeiro: Carta
Capital, 2013. WANIS, Amanda. Renovação-urbano-cultural
“Porto Maravilha”: a seletividade das políticas
RIBEIRO, Ana Clara Torres. Cartografia da
urbana e cultural na reconstrução simbólica
ação social: região latino-americana e novo
da região portuária do Rio de Janeiro. (Tese de
desenvolvimento urbano. In: Por uma sociologia
doutorado). Programa de Pós-Graduação em
do presente. Ação, técnica e espaço, v. 5 Rio de
Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal
Janeiro: Carta Capital, 2013.
Fluminense, Niterói, 2018.
SÁNCHEZ, Fernanda; GUTERMAN, Bruna.
WILLIAMS, Raymond. Cultura. Rio de Janeiro:
Disputas simbólicas na cidade Maravilhosa:
Terra e Paz, 1992.
atores, instrumentos e gramática territorial. In:
VAINER, Carlos et. al. (Org.). Os megaeventos e YÚDICE, George. A Conveniência da Cultura.
a Cidade. Perspectivas Críticas. Rio de Janeiro: Usos da cultura na era global. Belo Horizonte:
Letra Capital, 2016. Editora UFMG, 2013.
76
categoria cartográfica, impõe representações 1993) que assumem como categoria a noção
que ocultam permanências cruéis, cristalizações de “território usado” (SANTOS, 1996). Além
e (i)mobilismos. também da observação de conflitos sociais no
território (leitura de jornais, leitura sociológica
É por meio da atividade de cartografar
e criação de banco de dados), denominadas por
os espaços e sujeitos “que devem ser vistos”, em
“cartografia da ação” (RESENDE e TOZI, 2011;
detrimento de outros (invisibilizados), que se
RIBEIRO, 2013), que por sua potencialidade
sustenta, por exemplo, a construção simbólica
libertária pretende descobrir “o que não existe”,
da “Cidade Maravilhosa”. Em 2016, a Empresa
“o que está invisível”, as ordens não criticadas
de Turismo do Rio de Janeiro (Riotur) distribuiu
tradicionalmente (pois se tornou legítimo não
a turistas um mapa oficial da cidade (Fig. 1). As
reconhecê-las) para as quais a ação estratégica
decisões cartográficas tomadas na elaboração do
dominante é historicamente seletiva, indiferente
cartograma turístico impõem um recorte espacial
e, portanto, pseudodemocrática.
que não só aprisiona a dimensão da cidade
às áreas central, sul e pequena parte da zona No percurso metodológico destaca-se
norte - até onde se localiza o estádio de futebol um ensaio na forma de cartograma, que indica
Maracanã -, como exclui da sua geografia as dinâmicas de cristalização ou aprofundamento de
favelas que ocupam os morros situados nas áreas desigualdades socioespaciais: o portal eletrônico
representadas. Do mesmo modo, a localização
geográfica de eventos, objetos, acidentes
naturais e pontos turísticos tende-se a reproduzir Figura 1. Folheto distribuído pela Riotur, 2016.
estigmas e representações superficiais da Fonte: Nemézio e Oliveira, 2016:11.
realidade social, bem como fortalecer símbolos e
legitimar discursos hegemônicos sobre a cidade.
Como contestar representações da cidade
(sem conflitos) como a difundida pela Riotur?
Buscou-se orientações conceituais e diretrizes
teórico-metodológicas no levantamento e
sistematização de ações, formas e instrumentos
de luta usados por sujeitos, comunidades e
coletivos direta ou indiretamente afetados pelas
intervenções urbanas promovidas a propósito
dos Jogos Olímpicos de 2016 que apontassem
para cartografias não-hegemônicas que, de certa
forma, têm instrumentalizado táticas do que tem
sido chamado “planejamento insurgente”1.
Desta forma, a reflexão aqui realizada
buscou inspiração em algumas práticas
representacionais do “espaço vivido” (LEFEBVRE,
“Fogo no Barraco”2 (Fig. 2), criado por um grupo para a realização das Olimpíadas, na tentativa
de ativistas pela moradia e habitação para reunir, de apresentação ao mundo de uma imagem
publicar e interpretar as ocorrências de incêndios de cidade pacificada que ativou políticas de
em favelas da Grande São Paulo. As informações segurança pública em algumas favelas e espaços
são registradas em uma planilha colaborativa, públicos da cidade.
cujos dados abastecem um cartograma que
O projeto de Cidade Olímpica tendeu a
relaciona valorização imobiliária, distritos,
intensificar as ocorrências de “privação extrema”
favelas e remoções, e Operações Urbanas. Além
da vida, por meio de uma “política” de segurança
de apoiar as comunidades incendiadas, este
militarizada e estrategicamente localizada, fato
projeto perturba as narrativas do “acaso” com
que instigou este trabalho a buscar dados mais
a hipótese de que os incêndios pretendem a
concretos sobre tais conflitos e extrapolar a
expulsão dos moradores mais pobres das áreas
noção dominante sobre a violência, comumente
de interesse do mercado imobiliário.
associada apenas ao crime e ao sujeito criminoso,
A escolhas cartográficas nestes reduzindo-a à responsabilidade individual e
dois exemplos inspiram a possibilidade de menos como violação de direitos. É preciso
experimentos e táticas na elaboração de uma compreender que há formas de violências
cartografia crítica a fim de buscar análises mais menos visíveis praticadas por diferentes atores,
comprometidas com o reconhecimento das como a violência institucionalizada (praticada
complexas relações entre sociedade, Estado e pelo Estado) ou a violência psicológica
território no contexto estudado: a composição (dominação por meio de discursos, coações,
de “atributos” geoespaciais por indicadores e constrangimentos etc.), que também compõem
processos sócio-territoriais, geralmente não o quadro de insegurança nas cidades (BRAUD,
utilizados e nem combinados. 2006; NOVAIS et. al, 2015).
Para estabelecer uma leitura crítica
MAPA-INTERVENÇÃO em relação às formas de violência e ao modelo
de segurança militarizada empreendida na
Os confrontos armados constituem uma
consolidação da Cidade Olímpica, o primeiro
problemática cotidiana na cidade do Rio de
atributo a ser analisado se refere às ocorrências
Janeiro que por sua prática rotineira, evidenciam
de violência letal praticadas pelo Estado.
uma violência urbana organizada. Os conflitos
Conforme levantado pelo projeto “Onde a
entre a polícia militar e narcotraficantes
Polícia Mata” 3 , que teve como fonte o Instituto
ou entre facções criminosas rivais definem
de Segurança Pública do Rio, no período de
territorialidades de extrema privação na
2010 a 2015, a cidade do Rio de Janeiro teve
vida cotidiana, intensificando situações de
1.761 homicídios registrados como “autos
vulnerabilidade: como ir para o trabalho ou a
de resistência”, majoritariamente de pessoas
escola nestas áreas de conflito? Como é estar na
residentes no “subúrbio”, do gênero masculino e
própria casa na ameaça dela ser invadida por uma
negro4. Tomou-se, então, como segundo atributo
bala?! São expressões cotidianas de muitas áreas
na cidade do Rio de Janeiro, corriqueiras e, por
3 Iniciativa da Justiça Global, com apoio da Fundação
isso, naturalizadas, não só pela frequência que Heinrich Böll. Desenvolvido por Adriano Belisário com
ocorrem, mas por que acontecem em territórios colaboração de Cinco Euzébio. Dados e mapas disponíveis
estigmatizados como perigosos. Foi nesse em http://www.ondeapoliciamata.org/#, acesso em
sentido, que a questão da segurança pública se 28/11/2016.
tornou ponto prioritário na preparação da cidade 4 Conforme o relatório “O Bom Policial Tem Medo. Os
Custos da Violência Policial no Rio de Janeiro”, produzido
2 Disponível em: <http://blog.fogonobarraco.laboratorio. pela Human Rights Watch. Disponível em https://www.hrw.
us/#>, acesso em 26/11/2016. org/pt/report/2016/07/07/291589, acesso em 29/11/2016
79
avaliar por quais atributos se evidenciavam desejável que os próximos passos dessa pesquisa
certas precondições sociais estrategicamente sejam mais inclusivos e que a continuidade
invisibilizadas. A cidade do Rio de Janeiro, na desse processo se dê de forma colaborativa,
sua vida cotidiana, é marcada por construções como já é o caso de algumas práticas, como
simbólicas e reais de uma violência organizada a referenciada neste trabalho. Tal iniciativa
que ocupa seletivamente os canais de mídia e implicará na combinação de metodologias e
de debate político. Portanto, o principal desafio ferramentas, trazendo resultados ainda mais
para uma cartografia crítica seria o de provocar o dinâmicos, numa perspectiva potencializadora
pensamento por feições territoriais das diversas de ações autônomas dos sujeitos envolvidos e
formas de violência e privações, combinando articulações políticas.
atributos que permitam reconhecer e relacionar
Por fim, espera-se que as reflexões
condições (precárias) de vida cristalizadas
aqui apresentadas possam inspirar e provocar
na cidade, disputando, portanto, narrativas e
novas leituras da realidade socioespacial do Rio
representações sobre a “Cidade Maravilhosa”,
de Janeiro, assim como ações de resistência,
que se pretendia Olímpica.
perturbando os sentidos da produção do espaço
Considera-se que representar e urbano e de disputa pelo direito à cidade e de
interpretar a realidade é uma tarefa extremamente cartografar a cidade.
complexa, que carrega diversas limitações, dentre
as quais a de ser, ela mesma, uma representação REFERÊNCIAS
da realidade e não a realidade em si, assim como,
o lugar de fala dos sujeitos representados. Por
isso, faz-se necessário o exercício contínuo de ACSELRAD, Henri (2010). Mapeamentos,
indagar-se sempre o processo e os resultados, identidades e territórios. In: ACSELRAD, Henri.
razão pela qual convencionou-se dizer que os (org.) Cartografia social e dinâmicas territoriais:
produtos aqui apresentados são relacionais e marcos para o debate. IPPUR. UFRJ. Rio de
experimentais, pois apontam para processos Janeiro.
em movimento, cujas análises cartográficas
ARANTES, Otília.; MARICATO, Ermínia.;
não podem ser consideradas como produtos
VAINER, Carlos. A cidade do pensamento único.
acabados e como um fim em si mesmas.
Desmanchando consensos. Petrópolis: Vozes,
Nessa perspectiva, os exercícios 2000.
realizados abrem um campo de possibilidades a
BARREIRA, Marcus; BOTELHO, Maurilio
serem exploradas. Quantas outras variáveis que
Lima. O exército nas ruas: da Operação Rio
compõem a vida cotidiana dos cariocas podem
à ocupação do Complexo do Alemão. Notas
e devem ser iluminadas? É possível apontar
para uma reconstituição da exceção urbana.
ainda diversas outras formas de privação a
In: BRITO, Felipe e OLIVEIRA, Pedro Rocha de
que uma parte considerável da sociedade do
(Org.). Até o último homem: visões cariocas da
Rio de Janeiro está submetida e, por isso, o
administração armada. São Paulo: Boitempo,
projeto de Cidade Olímpica teria passado longe
2013, p. 129-168.
da vida cotidiana de boa parte das famílias
cariocas. Como a cartografia pode enunciar os BOURDIEU, P . O Poder Simbólico. Rio de
compromissos metropolitanos ignorados pelo Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
olimpismo urbano carioca? BRAUD, Philippe (2006). Violencias políticas.
Não menos importante, aponta-se para a Madrid: Alianza editorial.
necessidade de disponibilização dos cartogramas CRAMPTON, J.; KRYGIER, J. Uma introdução
produzidos a sociedade em geral, sendo à cartografia crítica. In: ACSELRAD, Henri. (org.)
82 MAPA- IN T E RV E N Ç ÃO PE RT URBA N D O NA RR AT I VA S O F I CI A I S DA CI DA DE
candidatura do Rio de Janeiro à sede dos Jogos prefeito afirmava genericamente que “Rio-2016
Olímpicos 2016. A construção da ideia de terá legado melhor que o de Barcelona”,
Legado Olímpico foi estratégica e necessária destacando a ilusória predominância de
para a legitimação dos Jogos Rio 2016. Por meio investimentos privados. Já em 2016, diante da
do discurso de que “os Jogos Olímpicos devem realidade inconteste, Paes modifica seu discurso
servir à cidade” e seriam viabilizados por e alega que os Jogos Olímpicos “são uma
investimentos privados, Eduardo Paes oportunidade perdida para o Brasil”8,
converteu o Urbanismo de Oportunidades em responsabilizando os outros entes federativos
modelo de desenvolvimento urbano. pelo insucesso. Ainda em 2016, em título
A Candidatura Rio 2016 é ressaltada tragicômico, a revista Isto É afirmava que “a
como um projeto coeso e integrado que Olimpíada nos deixa como legado a esperança”9.
beneficiaria a cidade de forma duradoura a
A alteração deliberada das nomencla-
partir do “Legado Olímpico”. A consolidação da
turas dos equipamentos olímpicos e as notícias
estratégia discursiva do legado permitiu
veiculadas, propositalmente desencontradas,
transformar custos em ganhos, afinal diante da
definiram a obscuridade do processo. A con-
“produção do bem comum para as atuais e
tradição entre discurso oficial, sustentado pela
futuras gerações”3 qualquer gasto se torna
mídia hegemônica, com a evidente realidade
justificável. A mídia hegemônica, em especial o
materializada, exige do pensamento crítico a
Grupo Globo, foi fundamental na consolidação
ação de visibilizar o que foi ocultado pela estraté-
dessa estratégia.
gia discursiva do legado.
O discurso sobre a materialidade do
“legado” no Rio de Janeiro vai cambiando diante
dessa contradição. O jornal O Globo afirmava
em 2011 que “O legado já é tangível e real”,
destacando a urbanização de todas as favelas da
cidade até 2020 por meio do Programa Morar
Carioca4, posteriormente abandonado sem
nenhuma nota na imprensa ou informação
oficial. Em 2012, Eduardo Paes declarava de
forma burlesca que a “Olimpíada é ‘desculpa
fantástica’ para mudar o Rio”5, dois anos depois
que “nossas deficiências viraram o maior ativo
da candidatura do Rio”6.
Em entrevista concedida em 20157, o ex-
Foto: “Queremos ficar sim!” - Muro na Vila
3 Ver: GUSMÃO, 2016, p. 112. Autódromo em 2016. Acervo GPDU.
4 Ver: https://oglobo.globo.com/rio/o-legado-ja-
tangivel-real-3355615
5 Ver: https://www.bbc.com/portuguese/
noticias/2012/03/120308_eduardo_paes_entrevista_jc
6 Ver: http://acervo.oglobo.globo.com/busca/?tipo
Conteudo=artigo&ordenacaoData=relevancia &allwords
=legado+ol%C3%ADmpico&anyword=&noword=&
exactword=legado 8 Ver: https://oglobo.globo.com/rio/
paes-olimpiada-uma-oportunidade-perdida-19686733.
7 https://www1.folha.uol.com.br/
esporte/2015/03/1603329-prefeito-eduardo-paes-diz-que- 9 Ver: https://istoe.com.br/o-brasil-sonhou-alto-e-
olimpiada-ajudara-o-rio-de-janeiro.shtml atingiu-grandes-metas/
86 C ARTO G R A F IA C R Í T I C A D O ( D E S )L E G A D O O L Í MPI CO
Em segundo plano, mas não menos Com um consenso forjado, o Rio Olímpico
importante, o mapa pretende incitar à reflexão deveria ser apresentado como uma cidade
acerca da mídia como um poderoso agente competitiva e unificada em torno do projeto.
da estratégia discursiva do legado, de forma Assim, concebido sob a premissa do consenso, o
a alcançar os cidadãos cariocas, inclusive por Dossiê de Candidatura afirmava que “o projeto
meio de constantes editoriais patrocinados por de sediar os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de
agentes do ambiente construído. Essa associação 2016 no Rio de Janeiro não enfrenta qualquer
fica clara com o editorial “Espaço Ilha Pura, oposição pública organizada”20.
em parceria com O GLOBO, tem programação
O primeiro mapa apresentado
variada durante o mês”, veiculado19 em 2014 com
nesta seguência, ‘Resistência na Cidade
o intuito de promover o condomínio destinado
Olímpica’, territorializa a ação dos diversos
à população de alta renda, que ainda hoje
movimentos e articulações21 que lutaram
permanece em grande parte vazio.
contra as remoções, as privatizações, os danos
A falta de participação popular e a ambientais, a militarização e as intervenções
ausência dos mecanismos democráticos de gestão
da cidade foram marcas do período olímpico. 20 Ver em Dossiê de Candidatura, vol. 1, p. 60.
19 Ver:https://oglobo.globo.com/rio/bairros/espaco- 21 É preciso apontar a atuação do Comitê Popular da
ilha-pura-em-parceria-com-globo-tem-programacao- Copa e das Olimpíadas na articulação e concepção de
variada-durante-mes-14415939 diversos das ações aqui representadas.
91
inclusive dos lugares de fala, que tem por atual de sintetização, e mesmo simplificação, de
objetivo auxiliar na compreensão de esquemas intelectuais que os tornam inteligíveis
subjetividades opacas, apontando para e palatáveis, em meio a um bombardeio de
possíveis caminhos de transformação das informações a que somos submetidos
representações do espaço e para uma diariamente. O problema é que, justamente seu
pluriversalidade (BOAVENTURA, 2009), que caráter simplificador e sedutor acaba
contribua efetivamente para um “giro camuflando seu conteúdo ideológico e as
decolonial” (QUIJANO, 2005) no imaginário do relações assimétricas nele contidas, além de
espaço urbano. transmitir uma falsa sensação de que “o
Busca-se também abordar, sob presente pode adquirir sentido, o outro se
diferentes vieses, o tema da visibilidade, que tornar inteligível e o espaço ser decifrado”
parece central para o ato de cartografar, (CHARTIER, 1990:17).
considerando principalmente uma BENACH (2017 In CARLOS; ALVES;
característica que lhe é ambivalente: ela é PADUA, 2017:24) chama a atenção justamente
estratégica, não apenas para quem “é visto”, mas para estes perigos, os quais podem levar a uma
também para quem “vê”. Em outras palavras, ela “estigmatização territorial”, que certamente não
pode ser utilizada tanto a favor como contra depende de mapas e representações
quem é visibilizado ou ocultado, a depender das cartográficas para vir a ser, mas que muitas
circunstâncias e propósitos, e necessita ser vezes é potencializada pelo seu uso, em função
avaliada em tempos de uma “cultura visual”3, de:
onde há constante incentivo à intensa e acrítica
(...) leituras simplificadas dos territórios
exposição.
que proporcionam flagrantes que às vezes
são difíceis de apagar, mesmo quando a
situação admita, de fato, leituras muito
REPRESENTAÇÃO E ESTIGMATIZAÇÃO
diferentes. (...), [estudos que utilizam
TERRITORIAL
mapas] podem contribuir a fixar uma
Os mapas estão no campo das
leitura da situação que, buscando
representações. Eles combinam de maneira
paliativos, omita de fato a análise de
complexa informações imagéticas e textuais
causas e, portanto, a possibilidade real de
selecionadas, constituem uma narrativa, que diz
mudança.
respeito a uma espacialidade, a qual precisa ser
compreendida no seu sentido mais amplo: com
E é desta maneira que as representações
suas múltiplas dimensões e escalaridades. São
desempenham um papel fundamental na
discursos, comunicam valores, visões de
produção do espaço: podem moldar o
mundo, tem intensões.
imaginário popular e construir visões
Embora as representações possam
estereotipadas e classificatórias de territórios e
apresentar-se de várias maneiras, as que
de sujeitos que ocupam esses territórios. Estas
possuem apelo visual, na nossa sociedade, tem
construções, por sua vez, via de regra, definem
preeminência, pois atendem a uma demanda
ações, modos de intervir, e de conceber
políticas, pois a forma como imaginamos o
3 RABENHORST (2017) mostra que diversos campos
espaço é crucial para a construção do próprio
do conhecimento vêm estudando como as experiências
visuais se tornaram a forma central de comunicação, espaço (MASSEY, 2008).
produção de significado e expressão social atualmente, Resulta deste pressuposto uma questão
inclusive buscando compreender como a visibilidade se relevante: que projeto de cidade está sendo
tornou um valor central da política, afetando de modo sustentado pelas representações espaciais
particular a própria compreensão da democracia como produzidas, mesmo sob o discurso contra
exercício público do poder.
96 C ARTO G R A F IA , E ST I G M AT I Z AÇ ÃO E V I SI BI L I DA DE
e diz que seu interesse está justamente na virada responder a essa questão julgou-se necessário
dos estudos que buscam falar pelo subalterno – explorar um pouco mais a fundo o tema da
o que ela chama de etnografia conscienciosa – visibilidade.
para os que buscam compreender como o A invisibilidade, em muitos casos, aponta para o
subalterno é constituído em objeto de resultado de relações assimétricas, em que um
representação e conhecimento. Em outras grupo ou sujeito não reconhece o outro como
palavras, ROY (2011) está colocando em pauta igual, e tem poder suficiente, dadas as
uma questão que atualmente tem sido muito circunstâncias e recursos de que dispõe, sejam
debatida, mas talvez ainda longe de ser bem materiais ou simbólicos, para fazer prevalecer as
compreendida: o lugar de fala, a posição do suas concepções e objetivos, nem que para isso
sujeito enunciador. seja necessário menosprezar, subjugar, silenciar,
É neste mesmo sentido que as extinguir, apagar em todos os sentidos outras
representações cartográficas dos territórios visões, práticas, existências7.
populares precisam ser problematizadas, pois Diversos trabalhos buscam expor esses
não é difícil perceber que ao longo do tempo, de processos de invisibilização, como por exemplo
uma maneira geral, eles passam de uma COSTA (2004), em seu trabalho etnográfico
invisibilidade, no sentido de negação completa, sobre a rotina dos garis da cidade universitária
para uma visibilidade que busca um da USP, que percebe a invisibilidade como
reconhecimento seletivo, e a partir da fenômeno psicossocial, o qual implica no
alteridade, com diversas contradições e desaparecimento de um sujeito dentre outros
ambiguidades (FERRAZ, 2016). sujeitos, em função de um processo de
humilhação social, construído historicamente.
A QUESTÃO DA VISIBILIDADE Neste caso particular trata-se da forma como
Se parte-se do pressuposto de que um tipo de ocupação dita “não-qualificada”, a
mapas são representações resultantes de começar pela própria nominação que lhe é
seleções de informações e conteúdos aferida, ocupa lugar inferior na “hierarquia
explicitados e ocultados, de maneira intencional valorativa” (SOUZA, 2006) da divisão social do
e com algum propósito, esbarra-se em um trabalho.
dilema que se refere, em última análise, à Segundo SOUZA (2006) há um critério
visibilidade: de dados, de territórios, de classificatório, “opaco e profundo”, que cristaliza
relações, de processos, e, o mais importante, de várias pressuposições de superioridade e
sujeitos (aos quais esses dados, territórios, inferioridade, facilmente detectável na oposição
relações e processos se referem). entre trabalho intelectual e trabalho manual:
Tornou-se notório que o tema da
visibilidade está em voga nos dias atuais, e, no
(...) a noção de disciplina e de controle
âmbito das lutas populares, geralmente, vem
do corpo que permite a ‘incorporação de
sendo associado a outro termo também
conhecimento útil’ — e o ‘conhecimento’ é
bastante difundido: empoderamento. Ao que
na verdade a única fonte de privilégios que o
parece, já se construiu no senso comum, e
capitalismo verdadeiramente democratiza
mesmo em algumas produções acadêmicas, a
em alguma medida (o conhecimento era
ideia de que quanto mais visibilidade a causa de
guardado a sete chaves nas sociedades
um grupo/sujeito ou o próprio grupo/sujeito
ganha, mais empoderamento esse grupo/sujeito 7 TODOROV (2003) demonstra como o sentimento de
terá. De fato, pode ser uma verdade em muitos superioridade é a chave para entendermos a dominação e
casos, mas será uma verdade que se aplica a a exploração: o ato de forçar o “outro” a se encaixar no seu
todos os casos e circunstâncias? Ao tentar sistema de valores, pressupõe uma visão hierárquica de
relação, que resulta em violências e destruição.
99
invisibilidade, nestes casos, e em muitos outros, de Dados (RGPD)10, que se refere ao tratamento
é uma estratégia de sobrevivência. Isto fica claro de dados de cidadãos da União Europeia. O
quando se chega à conclusão de que uma objetivo é aumentar o controle dos indivíduos
produção cartográfica que colocasse em sobre a coleta, registro, armazenamento,
evidência alguns locais de concentração desses consulta e divulgação de seus dados pessoais
sujeitos, potencialmente os colocaria em risco. por qualquer pessoa, empresa ou organização,
Há também os que buscam a invisibilidade para incluindo o tratamento desses dados fora do
a preservação de sua posição de poder, de território europeu. Para isto o regulamento
privilégio, de exclusividade. prevê a forma como o consentimento do
Assim, parece pertinente a introdução tratamento dos dados pessoais tem que ser
das seguintes reflexões: não haveria uma obtido a partir de agora: de livre vontade,
diferença importante entre ser invisibilizado e específico para uma determinada finalidade,
se invisibilizar? Quando e para quem a explícito e informado, o que implica a
visibilidade é desejável ou indesejável? E que especificação precisa de todos os dados
tipo de visibilidade se deseja ou se repudia? pessoais que serão manipulados e quem o fará.
Estas dicotomias estão mais presentes no dia a O pedido de consentimento também deve ser
dia do que se imagina: as próprias plataformas apresentado de forma clara e concisa, com
de comunicação tiveram que se adaptar às linguagem acessível, e ser distinguível de outras
demandas dos seus usuários para que esses informações como os termos e condições, ou
pudessem selecionar para quais contatos seja, não pode mais estar incluído num longo
desejavam estar “visíveis” ou “invisíveis” e em texto, o que era de praxe, e que raramente as
quais situações. Por exemplo: há opções de pessoas liam. Além disso, garante os direitos de
privacidade que restringem determinados tipos pedir o acesso aos próprios dados detidos, de
de postagem para grupos de contatos pré- pedir a um prestador de serviços que transfira
selecionados; outras opções restringem os dados pessoais a outro prestador de serviços
informações pessoais como idade, local de (por exemplo, ao mudar de uma rede social na
trabalho, de residência etc; há também a opção Internet para outra) e de “ser esquecido”, para os
de solicitação de autorização prévia para ser casos em que a pessoa queira que os seus dados
“marcado” (visibilizado) em publicações de sejam apagados. Isto busca garantir, por
terceiros, e assim por diante. Mais recentemente exemplo, a possibilidade de alguém solicitar
foi aprovado inclusive um novo parâmetro legal, desde o apagamento de alguns de seus registros,
chamado Regulamento Geral sobre a Proteção até mesmo todos os seus rastros na internet,
desaparecendo por completo dos sites e páginas
9 Medidas de repressão à imigração não desejada pelo diversas.
governo de Trump nos EUA, têm sido implementadas desde Estes, dentre tantos outros exemplos,
abril de 2018: a detenção por tempo indeterminado, seguida
servem para indicar que a invisibilidade pode
de acusação criminal e deportação em massa dos imigrantes
considerados ilegais entraram em vigor. Em especial, a ser desejável em mais contextos do que se pode
medida de separação de pais e filhos causou indignação imaginar, ou do que se induz a imaginar nesta
internacional e gerou uma enxurrada de críticas. Imagens era da informação e da celebração acrítica da
e vídeos de crianças trancadas em uma espécie de jaula exposição.
chocaram o mundo. Fonte: https://vestibular.uol.com.br/ RABENHORST (2017), alerta para o fato
resumo-das-disciplinas/atualidades/imigracao-nos-eua-
de alguns autores associarem a visibilidade,
a-politica-de-tolerancia-zero-e-o-drama-das-criancas-na-
fronteira.htm?cmpid=copiaecola, acessado em 24/06/2018.
10 Disponível em: https://ec.europa.eu/commission/
priorities/justice-and-fundamental-rights/data-
protection/2018-reform-eu-data-protection-rules_pt,
acessado em 26/07/2018
101
Consistiria principalmente em criar estratégias que por sua vez permitiram ampliar ainda mais
de desarticulação do sistema hegemônico de não apenas o alcance da vigilância, mas
visualização, procurando estabelecer assim um também torná-la bem mais difusa. De certo não
olhar mais igualitário. há mais uma “torre de controle”, que pode ser
Quando levado ao limite, este raciocínio facilmente identificada. RABENHORST (2017),
demonstra que a democracia, no seu sentido comenta que o sociólogo Thomas Mathiesen
mais amplo, só pode se efetivar quando há o acrescenta ao modelo Foucaultiano do
reconhecimento mútuo entre os sujeitos, o qual Panóptico o modelo do Sinóptico como novo
ocorre por meio do olhar recíproco. Em uma mecanismo de poder, onde não mais poucos
democracia representativa este princípio, em vigiam muitos, mas também muitos vigiam
tese, também se aplica. A própria noção de vida poucos, a partir da banalização e ampla difusão
pública remete a esta ideia: vida visível ao de dispositivos de vigilância e registro (câmeras,
público. Assim como espaço público relaciona- drones, celulares, gps). Ou seja, as pessoas
se à cena pública, na qual os atores representam observadas são agora também ávidas
o seu papel de homens públicos, segundo as observadoras. Desta forma, o Panóptico e o
convenções que orientam a vida em público ou Sinóptico operam em conjunto nos dias atuais.
as relações públicas (GOFFMAN,1973; Isto pode significar por um lado, e em
SENNETT, 1979). Porém, esta cena pública, determinados casos, a redução da assimetria de
entendida como cena de visibilidade, parece se visualidade, mas por outro lado, pode também
distanciar cada vez mais do propósito para o significar a intensificação do controle, que pode
qual foi idealizada: vir de todos os lados.
Há, portanto, este esforço em ocultar
Em seu célebre livro sobre as promessas não
áreas, espaços estratégicos para o exercício de
cumpridas da democracia, Bobbio afirma
um determinado poder, ao mesmo tempo em
que esta nasceu com propósito de fazer
que há técnicas e formas sofisticadas para
desaparecer o poder invisível, colocando
conhecer, esmiuçar e controlar os espaços e as
em seu lugar um poder transparente,
ações do outro. O que nos faz retomar mais uma
cujas decisões seriam sempre visíveis e
vez a metáfora do Panóptico para evidenciar
controláveis por todos/as. (RABENHORST,
que:
2017:203).
As cerimônias, os rituais, as marcas
Por isso, percebe-se uma crescente
pelas quais se manifesta no soberano
exigência de mecanismos de controle público
o mais-poder são inúteis. Há uma
por meio de prestações de contas,
maquinaria que assegura a dissimetria, o
transparência, fóruns de participação social
desequilíbrio, a diferença. Pouco importa,
mais direta etc. Não obstante, a visibilidade é
consequentemente, quem exerce o poder.
cada vez mais mediada pelos meios eletrônicos
Um indivíduo qualquer, quase tomado ao
e midiáticos, que não podem ser encarados
acaso, pode fazer funcionar a máquina
apenas como canais de transmissão da
(...). Do mesmo modo que é indiferente
informação, mas principalmente como
o motivo que o anima: a curiosidade de
geradores e modeladores de opinião.
um indiscreto, a malícia de uma criança,
Estas tentativas sutis e sofisticadas de escapar ao
o apetite de saber de um filósofo (...), ou
controle se desenvolvem paralelamente e
a maldade daqueles que têm prazer em
proporcionalmente às novas e mais avançadas
espionar e em punir. (...) O Panóptico é
tecnologias para efetuar o controle. Pode-se
uma máquina maravilhosa que, a partir
dizer que, em pleno século XXI, houve uma
dos desejos mais diversos, fabrica efeitos
atualização do sistema Panóptico, por meio de
homogêneos de poder. (FOUCAULT,
modernos meios de comunicação e informação,
103
SOBRE OS AUTORES