Você está na página 1de 108

1

COLEÇÃO

CARTOGRAFIAS
DO CONFLITO
R io de Janeiro
FERNANDA SÁNCHEZ

PAULA C. MOREIRA

Organizadoras
2

Cadê a Moradia? Acervo Neplac


3

CARTOGRAFIAS
DO CONFLITO
Rio de Jan eiro
FERNANDA SÁNCHEZ

PAULA C. MOREIRA

Organizadoras

Apoio
4
5

As organizadoras e os autores desta obra


coletiva destacam e agradecem aos colegas da
equipe de pesquisa pelo ambiente de discussão
e pelas significativas contribuições ao longo do
projeto “Planejamento e Conflitos Urbanos:
Experiências de planejamento urbano em
contextos de conflito social”:

Carlos Vainer, Fabricio Leal de Oliveira,


Giselle Tanaka, Luis Régis Coli Silva Jr.,
Glauco Bienenstein, Clarissa Moreira, Breno
Câmara, Fernanda Souza dos Santos, Felipe
Nin, Mariana Medeiros, Renato Cosentino,
Fernanda Helena de Menezes Mello Alves e
Yasmim Rodrigues Leite.

Ao Professor Gilmar Mascarenhas


em memória
6

Cartografias do conflito: Rio de Janeiro


© 2019 ETTERN | IPPUR | UFRJ | GPDU | PPGAU | UFF

Capa, projeto gráfico e fotografias entre capítulos | Paula C. Moreira


Revisão | Paula C. Moeira e Fernanda Sánchez

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

C316

Cartografias do conflito : Rio de Janeiro [recurso eletrônico] / organizadoras Fernanda Sánchez, Paula C. Moreira. - 1. ed.
- Rio de Janeiro : Letra Capital, 2019.
recurso digital ; 10 MB

Formato: epub
Requisitos do sistema: adobe digital editions
Modo de acesso: world wide web
Inclui bibliografia
ISBN 9788577856862 (recurso eletrônico)

1. Sociologia urbana - Rio de Janeiro. 2. Planejamento urbano - Rio de Janeiro - Aspectos sociais. 3. Livros eletrônicos.
I. Sánchez, Fernanda. II. Moreira, Paula C.

19-59060 CDD: 307.76098153


CDU: 316.334.56(815.3)

Vanessa Mafra Xavier Salgado - Bibliotecária - CRB-7/6644

Letra Capital Editora


Av. Treze de Maio, 13 gr. 1301 – Centro
CEP: 20031-901 – Rio de Janeiro – RJ
www.letracapital.com.br
7

Sumário

A CARTOGRAFIA COMO FERRAMENTA EPISTÊMICA E POLÍTICA ................................ 8


Fernanda Sánchez e Paula C. Moreira

REPERTÓRIOS ESPACIAIS DE AÇÃO NA LUTA ANTI-RACISMO:


O CASO DA PEQUENA ÁFRICA NO RIO DE JANEIRO ...................................................... 12
Renato Emerson dos Santos

A OPERAÇÃO URBANA CONSORCIADA PORTO MARAVILHA DEZ ANOS DEPOIS:


POR ONDE SOPRAM OS VENTOS? ........................................................................................ 28
Thiago Araújo do Pinho e Paula Moreira

CARTOGRAFIA CULTURAL: O CASO DO PORTO MARAVILHA ....................................... 60


Fernanda Sánchez, Amanda Wanis, Ana Carolina Machado e Antônio Júnior Pimentel

MAPA-INTERVENÇÃO:
PERTURBANDO NARRATIVAS OFICIAIS DA CIDADE ....................................................... 76
Rosane Rebeca Santos, Marcus César Martins da Cruz e Grasiele Márcia Magri Grossi

CARTOGRAFIA CRÍTICA DO (DES)LEGADO OLÍMPICO.................................................. 84


Poliana Monteiro, Fernanda Sánchez, Ana Carolina Machado e Paula Moreira

CARTOGRAFIA, ESTIGMATIZAÇÃO E VISIBILIDADE:


UM DEBATE SOBRE MÉTODO ............................................................................................... 94
Rosane Rebeca Santos

SOBRE OS AUTORES ............................................................................................................. 106


8

INTRODUÇÃO: Como uma representação do espaço,


a produção cartográfica, explorada nesta
A CARTOGRAFIA publicação, teve como movimento inicial
apresentar processos sob a perspectiva de sujeitos
COMO FERRAMENTA não hegemônicos. Como afirma Lefebvre (2013,
p. 72) “Demonstrar-se-á que o espaço serve,
EPISTÊMICA E POLÍTICA que a hegemonia se exerce por meio do espaço
constituindo-se por uma lógica subjacente, pelo
emprego do saber, das técnicas, em um sistema”.
Fernanda Sánchez e Por outro lado, as cartografias também podem
Paula C. Moreira ser ferramentas de reinterpretação da realidade
espacial, ilustrando argumentos posicionados,
O livro Cartografias dos Conflitos: descortinando relações até então não exploradas.
Rio de Janeiro é uma obra coletiva que No desenvolvimento do projeto
reúne contribuições de pesquisadores do de pesquisa a cartografia crítica acerca da
laboratório Estado, Trabalho, Território e produção do espaço foi tomada como objeto
Natureza (ETTERN), do Instituto de Pesquisa de investigação e debatida, ao mesmo tempo,
e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) no campo epistêmico e no campo político. Tal
da UFRJ e do laboratório Grandes Projetos debate revelou importantes relações entre esses
de Desenvolvimento Urbano (GPDU), do campos.
Programa de Pós-Graduação em Arquitetura
No campo epistêmico, a possibilidade de
e Urbanismo (PPGAU) da UFF, vinculados ao
analisar, desafiar e interpelar cartografias
Projeto de Pesquisa “Planejamento e Conflitos
oficiais da cidade do Rio de Janeiro passou pela
Urbanos: Experiências de planejamento urbano
necessária crítica às representações dominantes
em contextos de conflito social”, apoiado pela
das intervenções urbanas, discutidas em sua
Fundação Ford e desenvolvido no período 2015
natureza política. Longe de serem espelhos da
a 2019.
realidade, as representações são definidas pela
Ao longo dos últimos anos estes coletivos perspectiva daqueles que as concebem, são
de pesquisa vêm fazendo discussões em torno suportes de narrativas selecionadas, conforme
de cartografias e acerca dos métodos para orienta Lefebvre (2006).
elaborá-las, assim como avaliações acerca de seu
Os supostos “legados” dos projetos e
potencial criativo em contextos de conflito social.
operações urbanas são aqui tomados como
Nota especial cabe ao projeto “Observatório de
representações da chamada Era Olímpica.
Conflitos Urbanos no Rio de Janeiro”, no âmbito
Foram grafados nos mapas oficiais e difundidos
do ETTERN, que tem inspirado esta e outras
em diversos meios de comunicação. Ao acionar
pesquisas em curso. Destaca-se também, como
símbolos e esquemas de representação os
desdobramento dos esforços de pesquisa deste
sujeitos produtores das cartografias oficiais
grupo, o projeto em curso “Porto Maravilha
constroem narrativas sobre o Rio de Janeiro.
- Sujeitos, Narrativas e Disputas de Lugar no
Elegem e escondem frações da cidade, valorizam
Grande Projeto Urbano: entre o branqueamento
ou apagam relações sociais e promovem
e a reinvenção”, em desenvolvimento junto ao
determinadas formas de leitura das questões
Laboratório de História Oral e Imagem (LabHoi)
urbanas, seletivas e mitificadas. No processo de
do Programa de Pós-Graduação em História
pesquisa a crítica deu base à desnaturalização de
(PPGH) da UFF, no âmbito do Projeto PrInt
conceitos, categorias e imaginários cristalizados
CAPES 2018/2022, de internacionalização das
da cidade que orientaram a escolha desses
universidades.
9

símbolos, convidados a entrar nos mapas e legado, de forma a alcançar os cidadãos cariocas,
interpelados pelos autores desta obra. inclusive por meio de constantes editoriais
patrocinados por agentes das grandes empresas
A compreensão dos mapas como partes
imobiliárias e das grandes obras públicas.
do aparato simbólico de um projeto de cidade
deu origem a um esforço de produção de novas A utilização dos mapas como forma
categorias, símbolos e formas de classificação, de controle da produção de mercadorias,
no desafio de produzir um conhecimento extração de matérias primas e gerenciamento
acerca dos conflitos urbanos relacionados da população fora apontada por Revel (1989),
às transformações em curso, como partes do em um continuum até os tempos atuais,
processo de produção de cartografias críticas, como ferramenta de dominação. Como parte
ou contra cartografias. Nesse processo, atenção fundante da constituição da modernidade,
especial foi dada às cartografias que produzissem que inclui a colonização que a acompanha,
vínculos comunicativos, que convidassem os contou e conta com a postulação de uma forma
interlocutores a pensar leituras alternativas universal de linguagem. A forja desse consenso
da cidade, a invocar a imaginação espacial. sobre as formas de representação da realidade
Mediante a seleção e articulação de elementos dependeu ora de uma homogeneização, ora do
pouco convencionais, grafados no mapa, são apagamento de outras linguagens destoantes, se
possíveis análises e contrapontos que desvelam estabelecendo, assim outrora como estratégia de
os conflitos urbanos. subjugo dos povos originários e escravizados.
No campo político, então, o esforço Em outras palavras, as cartografias
centrou-se em alimentar o debate público sobre são expressão das mediações da linguagem,
conflitos e lutas urbanas, na busca por contribuir, produzidas em um tempo particular. Mapas,
assim, para a democratização das discussões assim como gramáticas, são códigos sociais que
acerca das intervenções e das formas de enfrentar regulamentam a conduta dos sujeitos, fixam
os seus efeitos negativos. A documentação e limites entre uns e outros e lhes transmitem a
divulgação dos conflitos, compreendidos por certeza de existir, reforçam presenças sociais
Simmel (1983) como forma de sociação, podem e reconhecimento público dos sujeitos e seus
assim, desvendar o caráter positivo da imaginação territórios. Assim, os mapas são um exemplo de
concebida pelo processo. A publicação das séries como as técnicas, em um determinado tempo-
de cartogramas produzidos moveu também os espaço foram importantes meios para a expansão
autores desta obra em seus trabalhos, orientados capitalista.
à ampliação dos diálogos com a população
Como produto da objetivação humana,
afetada, movimentos sociais, investigadores e
as cartografias estabelecidas como ferramenta
comunidade acadêmica.
monopolizada passaram fantasmagoricamente,
Pelo debate das cartografias busca- por assim dizer, a dominar os próprios humanos
se apresentar de forma crítica os agentes e os e determinar classificações e limites. Contudo,
processos que definiram e materializaram o essas formas não tomaram vida própria
excludente projeto de cidade concretizado sozinhas, é preciso situá-las como conhecimento
na Era Olímpica, mas ao mesmo tempo, construído em seus contextos e conjunturas. A
evidenciar como esse processo foi intensamente advertência epistemológica coloca justamente a
confrontado por lutadoras e lutadores no Rio de importância do que Harvey (2006) coloca como
Janeiro. Não menos importante nesta dimensão espaço relacional, no qual opera a memória
política da cartografia, os mapas pretendem e o simbólico cultural de um espaço-tempo
incitar à reflexão acerca da mídia como um particular. A questão “o que é o espaço?” é por
poderoso agente da estratégia discursiva do consequência substituída pela questão “como é
10 I N T RO D U Ç ÃO

que diferentes práticas humanas criam e usam Tais identidades deflagradas muitas vezes
diferentes concepções de espaço?” (HARVEY, pelo conflito, podem ser compreendidas, não
2006, p. 14). como reforço à ideia de criação do ‘outro’, mas
desvelam o protagonismo de sujeitos resistentes.
O apagamento do nome nos mapas
Muito embora as identidades possam recorrer
e mesmo nas placas de estadas e ruas pode
ao passado, como reporta o Movimento de
ser observado em diferentes contextos, em
Atingidos por Barragens, tais memórias são
que a estratégia assume um posicionamento
evocadas e transformadas por disputas políticas
político. Para os Beduínos do Negev1, contexto
do presente. As disputas vivenciadas pelos
aparentemente distante e culturalmente díspar,
movimentos de matriz africana na região do
tanto o apagamento dos nomes nos mapas
porto são outro exemplo, que aparece logo no
oficiais do Estado de Israel, como a retirada das
primeiro capítulo desta edição.
sinalizações das estradas, está acompanhada por
perda de direitos. As memórias, muito mais do que objetos
de museu, que precisam ser preservados,
Assim, mapeamento produzidos fora
constituem uma memória política (JUAREZ,
do estado, tem se tornado uma importante
2018). Nesse sentido, Renato Emerson dos Santos
ferramenta de disputa nas lutas simbólicas, que
(2018) propõe o termo ‘r-existir, uma existência
compõe a constituição de sujeitos políticos.
que lembra o passado, mas resiste no presente.
Diferentemente dos mapeamentos quem
Essas relações espacializadas não só colocam
vem sendo produzidos pelas empresas, que
a profundidade do tempo, como também
em muitos dos casos se aliam à produção
ajudam a combater um certo essencialismo
cartográfica liderada pelo Estado em busca
das identidades presentes nas idealizações
de governança, tais cartografias têm colocado
neoliberais.
uma ruptura epistêmica em relação as
territorialidades a serem representadas. Sobre Os primeiros três capítulos discutem
o conflito, despertado muitas vezes por um as dimensões raciais, da cultura e do setor
grande projeto desenvolvimento, sujeitos imobiliário imbricados na produção e disputa
políticos constituem identidades na luta política, da região portuária do Rio de Janeiro, de forma
e introduzem consigo novas formas de mapear, que essas análises se complementam para
novas imaginações espaciais, assim como criam a compreensão dos mais variados conflitos
a necessidade de novas classificações. acirrados pela implantação da Operação Urbana
Porto Maravilha.
Além de poder falar sobre um período
particular específico, que produz toda sorte O primeiro capítulo, “Repertórios
de relações espaciais, culturais, econômicas Espaciais de ação na Luta Anti-Racista: O Caso da
e ambientais, os exercícios cartográficos vêm Pequena África no Rio de Janeiro” foi encomendo
contribuindo como possibilidade de friccionar para a publicação ao Professor Renato Emerson
tempos diferentes sobre um mesmo plano de dos Santos, que discute a história espacializada
visão. Em outras palavras, pode tornar visível dos movimentos de r-existência da população
a relação entre o hoje e as condições materiais negra na região da Pequena África. O segundo
e objetivas de períodos históricos anteriores. capítulo, “Dinâmica imobiliária: para onde
Apesar de partirmos algumas vezes do olhar sopram os ventos”, foi produzido por Thiago Pinho
imediato do cotidiano, a busca por uma gênese e Paula Cardoso e articula diversos insumos da
histórica colocou como desafio compreender pesquisa sobre a dinâmica imobiliária na área da
quais são os contínuos e descontínuos da Operação Urbana Consorciada.
produção capitalista do espaço.
O terceiro capítulo, “Cartografia cultural:
1 encurtador.com.br/erAE7
o caso do Porto Maravilha”, de Fernanda
11

Sánchez, Amanda Wanis, Ana Carolina Machado que procuram dar visibilidade aos conflitos e
e Antônio Pimentel Júnior apresenta as disputas, às lutas sociais podem contribuir para integrar
assimetrias territoriais e desigualdades em torno realidades múltiplas e diversas formas de
ao fomento à cultura no porto, no contexto informação e, assim, ampliar a compreensão
dos grandes eventos esportivos. Os desiguais sobre o espaço em disputa.
e históricos agentes que são desvelados pelo
REFERÊNCIAS
conflito no porto aparecem também nos três
outros artigos que seguem, já em uma escala ACSELRAD, H (org.). Cartografia social e
ampliada de análise. Assim, o quarto capítulo, dinâmicas territoriais: marcos para o debate.
“O Mapa-Intervenção: Perturbando Narrativas Coleção Território, ambiente e conflitos sociais.
Oficiais da Cidade”, de Rosane Rebeca Santos, Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de
Grasiele Magri Grossi e Marcus Cesar Martins Janeiro, Instituto de Pesquisa e Planejamento
da Cruz, a partir da discussão metodológica Urbano e Regional, Editora A 4 Mãos
da cartografia, propõe o mapa-intervenção, Comunicação e Design, 2ª edição, 2012.
como uma produção de caráter relacional e HARVEY, D. Space as a keyword. In: Castree,
articuladora de recortes, estratos e segmentos de N. e Gregory, D. (org.) David Harvey: a critical
processos complexos. reader. Malden e Oxford: Blackwell, 2006.
O quinto capítulo, “Cartografia Crítica JUÁREZ, L. L. A memória política como
do Deslegado Olímpico”, de Fernanda Sánchez, estratégia de conformação e ação do Movimento
Poliana Gonçalves Monteiro, Ana Carolina de Atingidos pela Barragem de Tucuruí. Revista
Marques Machado e Paula Cardoso Moreira do Programa de Pós-Graduação em Extensão
propõe uma análise sobre diferentes tipos de Rural (UFV), V. 7, N.2, julho de 2018.
conflito decorrentes ou intensificados pelos
megaeventos esportivos sediados no Rio de LEFEBVRE, H. La produción del espacio.
Janeiro. Ao evidenciar e confrontar a narrativa Colección Entrelineas. Tradução de Emilio
oficial acerca das intervenções e destacar as Martinez Gutiérrez. Madrid, Capitan Swing,
narrativas resistentes, as autoras possibilitam 2013.
a reflexão crítica acerca do legado. O sexto e LEFEBVRE, H. La presencia y la ausencia:
último capítulo, “Cartografia, Estigmatização contribución a la teoria de las representaciones.
e Visibilidade” de Rosane Rebeca dos Santos, México, Fondo de Cultura Económica, 2006.
foi escolhido como fechamento da publicação
REVEL J. Conhecimento do território,
justamente pela sua proposta de reflexão
produção do território. França. Séculos XIII-
metodológica em torno da cartografia, assim
XIX”, in REVEL, J. A Invenção da sociedade,
como as disputas pela representação implicadas
DIFEL,1989, p.103-157
em sua produção.
SANTOS, Renato Emerson dos ; SILVA, K. S.
Muitas dessas inquietações sobre a
; RIBEIRO, L. P. ; SILVA, N. C. Disputas de lugar
relação espaço-temporal procuraram desvelar
e a Pequena África no Centro do Rio de Janeiro:
a ‘história que a história não conta’ e foram
Reação ou ação? Resistência ou r-existência
criadas em relação aos conflitos de hoje, que se
e protagonismo?. In: Natacha Rena; Daniel
voltam para a memória de forma posicionada,
Freitas; Ana Isabel Sá; Marcela Brandão. (Org.).
atenta às estruturas e instituições que compõem
Seminário Internacional Urbanismo Biopolítico.
nosso contexto presente. Em síntese, temos na
1ed.Belo Horizonte: Fluxos, 2018, v. 1, p. 464-491
representação e interpretação da realidade uma
tarefa extremamente complexa, que carrega SIMMEL, G. A natureza sociológica do
diversas limitações, mas também diversas conflito. In Moraes Filho, Evaristo (org.), Simmel.
possibilidades. As práticas de cartografia crítica São Paulo, Ática, 1983.
12

REPERTÓRIOS ESPACIAIS específicas, tornando reveladoras as nuances


das relações entre processos em escala macro
DE AÇÃO NA LUTA com as microconjunturas3.

ANTI-RACISMO: O CASO O presente texto se propõe como uma


contribuição neste sentido, tomando como
DA PEQUENA ÁFRICA NO objeto as disputas que vem emergindo numa
parte da área central do Rio de Janeiro. A
RIO DE JANEIRO1 ascensão de um projeto de renovação urbana
na Zona Portuária da cidade, intitulado Porto
Maravilha, anunciado em 2009, impulsiona um
conjunto de transformações na área. Chama
Renato Emerson dos Santos2 inicialmente a atenção, no caso, sua inserção
num novo projeto de cidade, pós-industrial, que
tem a promoção de grandes eventos como mote
O campo da compreensão espacial para a atração de investimentos, de fluxos, e para
das relações sociais vem, nas últimas décadas, a instauração de processos de transformação
incorporando uma crescente valorização urbana – social, material, de funções, etc. A
(analítica, mas também política) da ação proximidade da realização dos maiores eventos
de sujeitos sociais subalternizados. Se, esportivos em escala mundial (a Copa do Mundo
historicamente, as leituras espaciais das de Futebol e os Jogos Olímpicos), bem como
dinâmicas sociais priorizavam como objetos de a forma de realização do projeto de renovação
estudo (e, no mesmo movimento, priorizavam (uma Operação Urbana Consorciada, forma de
como protagonistas destas dinâmicas) o Estado parceria entre diversos entes do setor público
e os agentes do Capital (sobretudo, as grandes com a iniciativa privada), ganham relevo no
corporações), vem juntando-se a estes também caso, pois apontam para novas coalizões de
esforços focados no fazer e na experiência de forças definindo, planejando e implementando
indivíduos e grupos. (e, também, repartindo os ganhos de) um novo
projeto de cidade.
O entendimento de que a globalização é
marcada pela complexidade dos jogos de escalas Emergem também resistências. Se o
(BRENNER, 2001), e que estas são instrumento projeto inicialmente previa um conjunto de
da ação política de sujeitos (hegemônicos remoções de moradores da área, com vistas
e subalternos) que executam políticas de a mudanças na sua composição social (para
escalas (SWYNGEDOUW, 1977), redimensiona além do adensamento da ocupação), grupos
nas leituras espaciais a importância das de moradores da região vão se articular com
microanálises, que aparecem como reveladoras outros atores sociais (como, p. ex., universidade
de traços do real fundamentais para o e técnicos, ou outros movimentos sociais,
entendimento de processos mais amplos e que incluindo ameaçados de remoção em outras
eram invisibilizados em paradigmas anteriores. regiões afetadas pelo mesmo projeto de cidade).
Assim, análises passam também a focar sujeitos Articulações como o Fórum Comunitário do
com suas espacialidades e temporalidades Porto, iniciativa protagonizada por associações
de moradores locais, movimentos de ocupações,
1 Agradecimento especial à pesquisadora Paula Cardoso entre outros, que individual e coletivamente
Moreira, pela elaboração e autorização para uso dos mapas participavam também do Comitê Popular
apresentados ao longo do texto.
3 Ver, sobre tais articulações, o texto e a coletânea
2 Professor do IPPUR/UFRJ.
organizada por Revel (1998).
13

da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro, são Pedra do Sal, o Instituto dos Pretos Novos, o Afoxé
exemplos de redes de atores constituindo uma Filhos de Gandhi, a roda de samba da Pedra do
“área de movimento” em reação (na escala mais Sal, entre outros, vem já muito antes do Projeto
pontual do local e também na da cidade) ao Porto Maravilha disputando a carga semântica
projeto hegemônico - articulações compostas definidora do lugar.
como resposta (de modo mais amplo) ao
O que vem unificando as disputas desses
projeto de cidade e (mais pontualmente) a
grupos é a luta pela ressignificação da região, pela
suas iniciativas localizadas, contrapontos
valorização da história negra. A reivindicação da
a ele. Fazendo coro ao que propõe Santos
denominação da região como “Pequena África”,
(2011a), na leitura das espacialidades da ação
nome cuja criação é atribuída a Heitor dos
dos movimentos sociais, nestes casos “os
Prazeres no início do século XX e que realçava
interlocutores têm escalaridades/espacialidades
a grande aglomeração (populacional, mas
e, de alguma forma, eles acabam por definir ou
também cultural) negra na área que ia da Pedra
redefinir as escalaridades/espacialidades dos
do Sal até a Cidade Nova, guarda a convergência
movimentos” (pg. 188, grifo do autor).
de agires distintos destes grupos. Defendemos
Aqui, pretendemos estender a leitura aqui que, cada grupo a seu modo, realiza disputas
da ação dos sujeitos subalternos para um outro de lugar, com repertórios espaciais de ação
campo. Uma das vertentes de resistências que distintos. Para isto, iniciaremos debatendo o que
ao Projeto Porto Maravilha que vem ganhando estamos chamando de “repertórios espaciais de
visibilidade é a dos grupos vinculados à cultura ação”, como ferramenta para uma geografia da
e identidade negra e afro-brasileira, em suas ação e dos sujeitos. Em seguida, passaremos ao
múltiplas dimensões. Com efeito, a própria caso da Pequena África, para na última seção
incorporação no âmbito do Porto Maravilha de destacarmos a ação de alguns grupos escolhidos.
menções à presença negra na região, através do
Circuito Histórico e Arqueológico de Celebração POR UMA GEOGRAFIA DA AÇÃO E DOS
da Herança Africana, conjunto de pontos de SUJEITOS: REPERTÓRIOS ESPACIAIS DE
interesse constituindo quase que um museu de AÇÃO
percurso a céu aberto4, tem relação direta com a
resistência desses grupos, mais do que uma pré- Diversos autores vem, nas últimas
disposição dos gestores do projeto. Tomamos décadas, apontando para uma “virada espacial”
aqui como ponto de partida a hipótese defendida (cf. FOUCAULT, 2001; HAESBAERT, 2011;
por Santos et. Al (2018), de que há, por parte CLAVAL, 2013). Esta tendência se relaciona ao
desses grupos, “disputas de lugar”. E, segundo os que Edward Soja (1993) denomina “afirmação do
autores, estas disputas de lugar são anteriores ao espaço na teoria social crítica”, uma valorização
Porto Maravilha – ou seja, diferente das outras analítica (e, obviamente, também política)
iniciativas de resistência que aludimos acima, da dimensão espacial como algo imanente e
não tem suas espacialidades e temporalidades central nas relações e estruturas sociais. Esta
definidas pela interlocução com ele (ainda que, virada espacial, que podemos relacionar à
obviamente, passem a ser influenciadas pelo emergência de um novo regime de relações
novo contexto). Grupos como o Quilombo da (sociais, econômicas, de poder, etc.) chamado
de globalização, reposiciona as ferramentas
4 Estamos aqui utilizando tal denominação para realçar a espaciais dentro dos sistemas explicativos da
semelhança com outros casos de criações de certa maneira realidade (os campos de pensamento, que na
similares, em cidades como Porto Alegre e São Paulo, mas
ciência são chamados de campos disciplinares)
com a ressalva de que nem todos os pontos do Circuito
do Rio de Janeiro são exatamente “a céu aberto”, e um dos
e também nos próprios campos da vida social.
pontos é, em si, um museu, o Instituto dos Pretos Novos. Assim, de um lado vemos explicações espaciais
14 R E PE RTÓ R IO S E SPAC IA I S D E AÇ ÃO NA LU TA A N T I- R ACI SMO

00 0
(como, p. ex., a própria ideia de globalização) Na mesma direção, Santos (2011a)
sendo mobilizadas para as mais diversas constrói uma proposta de leitura geográfica
questões (políticas, econômicas, sociais, ou até da ação dos movimentos sociais, apontando
mesmo sobre temas como futebol, culinária, oito dimensões espaciais da ação (individual
música, etc.), e de outro vemos também o léxico e coletiva) dos movimentos: a materialização/
espacial (p. ex., território, escalas, redes, lugar, manifestação, que seria a cartografia dos
etc.) sendo mobilizado como ferramenta ou movimentos sociais em ato; recortes espaciais
objeto de disputa pelos mais diversos atores vinculando-se a construções identitárias; lutas
sociais (empresas, movimentos sociais, etc.). por/com/a partir de território & territorialidades;
a relação entre a ação, temário e agendas de
Temos, assim, um conjunto de tendências
lutas; espacialidades de interlocutores dos
que se retroalimentam neste movimento de
movimentos; espacialidades de atos, gestos e
virada espacial. Aqui, nosso interesse se volta
seus desdobramentos, impactos, efeitos, causas,
para a apropriação do léxico e das ferramentas
origem; esferas institucionais dos movimentos
espaciais como componente da ação de sujeitos
como distintas dimensões espaço-temporais ou
subalternos em luta – independente do fato
arenas de disputa; espacialidades dos sujeitos
de a apropriação ser consciente e enunciada
que constroem os movimentos.
pelos sujeitos em luta ou, ao contrário, ser algo
imanente e não enunciada, mas que salta aos Esta proposta de leitura espacial da
olhos do analista. Nos interessa a valorização ação dos movimentos sociais é, a todo tempo,
do agir em sua dimensão espacial - o que também uma proposição de que o espaço, em
compreende também os discursos ou mesmo suas diversas dimensões que são reguladoras
as significações atribuídas aos atos, mas não se de relações sociais, é um dado que informa
restringe a eles. Esta busca por uma “geografia da tomadas de decisão e estratégias de ação
ação” vem sendo proposta por diversos autores dos movimentos. Ao apontar a dimensão da
e autoras. Werlen (2005, p. 47) propõe “uma materialização/manifestação, por exemplo,
mudança rigorosa de categorias do espaço à o autor chama a atenção de que, na escolha
ação, ou do que eu chamo de uma ‘geografia das de locais de realização de atos públicos,
coisas’ para uma ‘geografia dos sujeitos’”. Diversos movimentos consideram históricos e cargas
esforços neste sentido podem ser registrados. A simbólicas de lugares, impactos em fluxos (de
“cartografia da ação” proposta por Ribeiro (2009) pessoas, de veículos, etc.) e isso é balizado pelos
aponta nesta direção, e indica pontos de uma objetivos de cada manifestação: a localização,
agenda que valoriza sujeitos e as espacialidades primado fundamental da análise espacial, é
de sua ação: critério definidor da ação. Mas, mais do que
(...) a valorização da ação possível, ainda apenas mobilizar sentidos e cargas simbólicas
que não apresente os traços esperados dos lugares como ferramenta para suas lutas, há
por teorias sociais e partidos políticos; movimentos que vão buscar construir e impor
a valorização dos usos do espaço, novos sentidos aos lugares, atribuir novas cargas
especialmente os construídos pelos e conteúdos na busca de disputar consciências
movimentos populares; a valorização
das pessoas que por eles passam ou neles vivem.
da memória popular das lutas urbanas
e no urbano; a valorização dos vínculos O caso da Frente 3 de Fevereiro5, grupo criado
entre identidades sociais e território em São Paulo em 2004 após o assassinato por
(territorialidades); a valorização dos policiais de um jovem negro, recém formado
estudos transescalares da ação social; a dentista, é lapidar: numa iniciativa intitulada
valorização de inovações institucionais “Zumbi somos nós”, o grupo iniciou um
identificadas a partir da análise dos
sentidos da ação social. (pg. 155) 5 http://www.frente3defevereiro.com.br/, acesso em
27/03/2019.
15

conjunto de intervenções no espaço urbano, representação de sua existência no espaço, o que


compreendendo apresentações artísticas, atos implica uma releitura espacial de sua existência
políticos e - o que mais nos interessa aqui – a - colocada num repositório de informações que
produção de grafias urbanas, como a construção é o mapa, ferramenta principal do campo da
de “monumentos horizontais”, que eram representação espacial –, processo que é uma
pinturas e esculturas de corpos caídos no chão leitura de si a partir de raciocínios centrados no
junto a datas, em locais onde houve episódios de espaço. No processo de gestação deste projeto,
assassinatos de jovens negros. Esse ato de “grafar entretanto, há um antecedente que foi registrado
a terra”, portanto, “geo-grafar”, objetivava disputar num livro do antropólogo intitulado “Carajás:
a consciência sobre o genocídio da juventude Guerra dos mapas”, no qual grupos - oprimidos
negra através da ativação de uma memória dos por aquela mineração e que eram invisibilizados
lugares. Algo semelhante é realizado no caso do nas cartografias oficiais e das consultorias de
Museu de Percurso do Negro de Porto Alegre6, avaliação de impactos necessárias aos processos
conjunto de pontos grafados no Centro daquela legais de licenciamento do empreendimento –
cidade que remetem à presença histórica se apropriaram e mobilizaram as ferramentas
negra, que é apagada da memória coletiva e das do campo da representação espacial como
narrativas históricas hegemônicas. A grafagem instrumento de suas lutas. Santos (2011b)
em pontos do espaço, que se transformam em reúne este e outros casos em que são realizadas
referenciais de releitura da história mobilizada cartografias (i) de movimentos, (ii) para os
por estes conteúdos atribuídos ao passado dos movimentos, (iii) pelos movimentos, (iv) com
lugares, ressignifica a relação entre indivíduos os movimentos, constituindo uma tendência
e sua ancestralidade, provocando câmbios de à apropriação das ferramentas cartográficas
identidade e pertencimento. É a disputa de por grupos subalternizados, que provoca
lugares como ferramenta de luta social. tensionamentos ao próprio campo da cartografia,
que além de instrumento de lutas se torna então
Outra ferramenta de ativismo que vem
objeto de disputa.
sendo acionada e tensionada por movimentos
sociais é a cartografia. No Brasil, talvez a iniciativa Se historicamente, como mostra Harley
mais difundida neste campo é a do projeto Nova (2009), a cartografia foi instrumento de atores
Cartografia Social7, liderada pelo antropólogo dominantes (sobretudo os Estados, as forças
Alfredo Wagner Berno de Almeida, que gerou um militares e as grandes corporações capitalistas),
estupendo volume de mais de 170 fascículos de emerge uma politização a partir dos subalternos
mapeamentos de sujeitos coletivos feitos pelos que tensiona os usos, mas também o próprio
próprios grupos (com a assessoria da equipe objeto cartográfico (os mapas e suas convenções,
do projeto). Neste projeto os próprios grupos denunciadas em seu eurocentrismo e alienação
se cartografam, e trazem nas representações em relação às experiências espaciais de grupos)
também diversos elementos que são importantes e, fundamental para nossa discussão aqui, o
para sua existência, o que pode a cada caso processo de produção cartográfica. Como um
compreender também interlocutores, conflitos, processo de produção de conhecimento, ele é
elementos de sua relação com a natureza, formas apontado como um conjunto de operações de
associativas, enfim, um conjunto de aspectos decisão (o que é mapeado, como é representado,
que eles consideram constitutivos de sua o que é válido e o que não é, etc.) que são exercícios
existência. Ou seja, os grupos constroem uma de poder. Ao se apropriarem e questionarem
as ferramentas cartográficas da representação
6 http://museudepercursodonegroemportoalegre.
espacial, grupos subalternizados disputam o
blogspot.com/, acesso em 28/02/2019.
poder da construção de narrativas, disputam
7 http://novacartografiasocial.com.br/, acesso em regimes de produção do conhecimento legítimo
28/02/2019.
16 R E PE RTÓ R IO S E SPAC IA I S D E AÇ ÃO NA LU TA A N T I- R ACI SMO

como sendo a verdade válida. Santos (2011b) espacialidade a chave central. Aqui, estamos
mostra como esse compartilhamento de poder chamando tais mobilizações de “repertórios
na produção do conhecimento cartográfico espaciais de ação”, conjunto de ferramentas,
varia entre experiências: em algumas, os grupos táticas, formas de atuar de movimentos, lutas
se apropriam dos instrumentos; em outras, são sociais e sujeitos que tem a dimensão espacial
as assessorias quem detém os instrumentos de (ou, a representação espacial) como elemento
conhecimento e os movimentos são depoentes; imanente. Os repertórios espaciais de ação
há casos híbridos entre essas duas possibilidades nos indicam espacialidades da ação social, nos
e, casos mais radicais em que os movimentos permitindo avançar para uma “geografia da
não apenas se apropriam dos instrumentos mas ação” e uma “geografia dos sujeitos”, como vimos
também questionam os próprios instrumentos propor Benno Werlen. Defendemos a ideia de
e, a partir deles, os cânones do eurocentrismo que isto nos fornece chaves de análise férteis
e a razão tecnocrática inerentes a eles. Nestas para pensar as resistências na Pequena África no
diferentes situações, ferramentas e processos Centro do Rio de Janeiro.
de produção ampliam e fortalecem repertórios
espaciais de ação dos grupos subalternizados em
luta. DISPUTAS DE LUGAR NA PEQUENA
ÁFRICA
Santos (2011a) mostra também como
movimentos mobilizam recortes espaciais
como base de sua identidade, p. ex., de Reconstituiremos, nesta seção, alguns
bairros, regionalistas ou mesmo nacionalistas. argumentos constitutivos da proposta de leitura
Movimentos pensam na possibilidade de saltos das resistências negras contemporâneas na
escalares na relação entre ato e desdobramentos: região do Porto Maravilha como “disputas de
p. ex., a ocupação de um prédio público de um lugar”, feita por Santos et. Al. (2018). O primeiro
órgão federal pode gerar um fato político distinto argumento toma que o Porto Maravilha, sendo
da ocupação de outra construção, assim como a um projeto de renovação urbana, almeja uma
ocupação de uma fazenda de uma figura pública transformação espacial, a instauração de novos
em escala nacional (como em 2002 o Movimento conteúdos, significados, funções, materialidades,
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra fez em composição social, etc., para um recorte espacial
fazenda do então presidente Fernando Henrique específico, a sua área de abrangência, o que
Cardoso) provoca um fato político distinto da comporta efetivamente também a relação desta
ocupação de outra fazenda. área com o restante da cidade e com redes e
fluxos que a extrapolam, em diferentes escalas.
Tais exemplos mostram como os
Busca a criação de um novo “lugar”, e os grupos
movimentos mobilizam raciocínios centrados
que resistem ao projeto disputam isso.
no espaço na constituição de suas estratégias.
Barrar fluxos (ao ocupar uma via de circulação), Um traço desta transformação era
mobilizar cargas simbólicas e históricas, acionar a proposta de adensamento da ocupação e
signos identitários, provocar atores relevantes mudança da composição social da região. Mas,
em jogos de poder em escalas específicas como se daria isso? Desde o seu início, as ações
são agenciamentos espaciais que vem sendo do Porto Maravilha tiveram nas remoções um
provocados pela ação de movimentos. Enunciar de seus traços mais marcantes. Os principais
lutas por território, como fazem movimentos objetivos da política de remoções na área eram
indígenas, quilombolas ou outros povos e as ocupações protagonizadas por movimentos
comunidades tradicionais, também. Aparece, de luta pela moradia (p. ex., Casarão Azul,
nesta leitura da ação de grupos subalternizados, Flor do Asfalto, Guerreiros do 234, Quilombo
mais uma ferramenta de ação que tem na das Guerreiras, Machado de Assis, Zumbi dos
17

Palmares, entre outras8), e moradores das la a partir do locus epistêmico dos grupos não-
favelas da área (Morro da Providência e Pedra brancos, sobretudo negros e indígenas. A partir
Lisa). Junto à política de remoções, o conjunto da experiência destes grupos subalternizados
de intervenções urbanas levaram à elevação do (ver SPIVAK, 2010), a formação do nosso
custo de vida na região, o que impulsiona o que a território é a experiência do branqueamento, que
literatura tradicionalmente chama de “remoção aparece em três dimensões: (i) branqueamento
branca” – destas intervenções, destaque para da ocupação, com a substituição dos estoques
a privatização da gestão dos serviços na região populacionais via extermínio (sobretudo dos
para a Companhia de Desenvolvimento Urbano indígenas), da expulsão (de grupos indígenas e
da Região do Porto do Rio de Janeiro (CDURP), negros quilombolas) ou de uma incorporação
e as ações nas áreas de favela, como a instalação subalternizante na sociedade de hegemonia
de um Teleférico no Morro da Providência e branca que comporta uma biopolítica de
uma Unidade de Polícia Pacificadora, entre violências, condições sociais desiguais e sempre
outras. Após 2013, os movimentos de resistência depauperadas na comparação com os brancos
organizados em torno do Fórum Comunitário ou mesmo do genocídio (caso da juventude negra
do Porto conseguiram deter os avanços das de favelas e periferias); (ii) branqueamento da
remoções nas favelas da região, mas estima- imagem, com a construção de narrativas sobre
se que, p. ex., somente as obras do teleférico o território que invisibilizam a presença (no
levaram à remoção de cerca de 200 famílias presente ou no passado) de grupos não-brancos,
(FAULHABER & AZEVEDO, 2015). o que interfere nas subjetividades e nas relações
de pertencimento de indivíduos e grupos, e assim
Como o plano inicial previa aumentar a
nas identidades territoriais, dado que informa
ocupação da região de 28 para 100 mil moradores,
posições de poder construindo hierarquias;
considerando-se que as remoções também
(iii) branqueamento cultural, com a imposição
faziam parte deste plano, o que era almejado era
de matrizes de relação sociedade e natureza
a mudança da composição social dos moradores
eurocêntricos, o que envolve dimensões como
– ou seja, pelo menos uma boa parte deles não
práticas, matrizes de saberes, estéticas, e padrões
estava prevista na categoria de “beneficiários”
de espiritualidade e religiosidade, entre outros
das melhorias preconizadas pelo projeto para
aspectos.
o local. Se na retórica oficial isso significava
renovação, revitalização ou requalificação, os Sendo uma ferramenta analítica para
movimentos de resistência denunciavam como pensar a formação do território a partir das
gentrificação. Mas, Santos et. all (op. Cit.) vão experiências de grupos subalternizados a partir
apontar que se trata, na verdade, de um projeto da dimensão racial, o conceito de branqueamento
que leva ao “branqueamento do território”: do território também é fértil para analisar as
falar de mudança da composição social numa experiências de grandes intervenções urbanas,
região cuja maioria da população é composta tão marcantes da história do Rio de Janeiro. As
por negros (os dados do Censo 2010 apontam remoções de favelas na Zona Sul da Cidade nas
no Morro da Providência que pretos e pardos décadas de 1960 e 1970 se descortinam como
perfazem 65% da população, e na Pedra Lisa dispositivos biopolíticos que levaram à criação
54%) é falar do branqueamento desta população. das áreas com composição populacional (e,
por que não dizê-lo, ethos) mais brancos da
Este debate remete ao conceito de
cidade (ver, p ex, os mapas de segregação racial
“branqueamento do território”, proposto por
de Rios Neto & Rianni, 2007). Mas, se olharmos
Santos (2009). Numa releitura crítica da formação
para a própria região onde agora se dá a política
do território brasileiro, o autor propõe pensá-
de “renovação” ou “requalificação”, a história
8 Ver, a respeito, Faulhaber & Azevedo (2015) e Sanchez urbana nos remete a grandes intervenções
et. All (2016).
18 R E PE RTÓ R IO S E SPAC IA I S D E AÇ ÃO NA LU TA A N T I- R ACI SMO

marcadas por remoção de populações também desses grupos – e, legitimam e viabilizam os


majoritariamente negras, como o “bota-abaixo” discursos que preconizam a necessidade de
dos cortiços na Reforma Pereira Passos no início “revitalização” e “requalificação” da área. É
do século XX, ou mesmo na eliminação de um contra tais leituras pejorativas, que alicerçam
conjunto de mais de mil imóveis nas quadras o que Albuquerque Jr. (2007) denomina
entre duas ruas paralelas para dar origem à “preconceito de origem geográfica e de lugar”, ali
Avenida Presidente Vargas, na década de 1940. associado também à dimensão racial, que grupos
Ou seja, o branqueamento pela remoção já é vão operar no cotidiano através de práticas
um dado marcante na região. Além disso, se culturais que, trazendo dimensões positivas
recuamos mais na história, a própria reforma do ao mundo da vida, disputam as significações
Cais do Valongo em 1843, para transformá-lo em atribuídas aos lugares. Esta disputa não se dá
Cais da Imperatriz, por ocasião do desembarque como resposta a uma intervenção específica,
da princesa Tereza Cristina, já foi também uma mas sim, contra as dimensões simbólicas de
tentativa de branqueamento do território, na significação do urbano que operam de forma
medida em que visava apagar dali a memória de contínua, grafando no espaço da cidade as
ter sido o principal porto de chegada de africanos clivagens e hierarquias sociais para localizar em
sequestrados e traficados para serem ali vendidos posições de subalternidade indivíduos e grupos
e escravizados, desde 1811 até 1831, quando foi cujos pertencimentos remetem a tais espaços.
proibido o tráfico. Esta tentativa de apagamento
Visto dessa maneira, ressignifica-se o
da memória já era o branqueamento da imagem,
conjunto de ativismos que caracterizam a história
a eliminação da presença negra da narrativa
da região, e que também é marca de sua história
sobre (a história d)o lugar, conforme proposto
e memória territorial. Pode-se estabelecer nexos
por Santos (2009).
políticos, analíticos e mesmo apontar uma
Temos, portanto, uma memória territorial cultura de resistência em campos distintos como
marcada pela invisibilização e desqualificação o cultural e o político, que se tornam imbricados
da presença negra na região. O papel que essa como imanentes ao tecido social e ao território.
região (que congrega a Zona Portuária e seus Ativismos episódicos no tempo, em reação a
inúmeros galpões espalhados na área, muitos alguma intervenção específica, ou permanentes
deles em desuso por atividades ligadas ao porto no cotidiano e com durações variáveis, por
há décadas, os morros da Providência e Pedra anos ou mesmo décadas. Assim, a memória e
Lisa, os bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo, história do território guardam marcas de lutas
além de uma parte em volta da Central do Brasil) como a Revolta da Vacina em 1904 (que teve
desempenhou na maior parte do século XX ali a importante liderança de Horácio José da
durante o período do projeto de industrialização, Silva, conhecido como “Prata Preta”), no mesmo
de ser o que Roberto Lobato Correia chamou de contexto da Reforma Pereira Passos e seu bota-
“Zona Periférica do Centro”, área marcada por abaixo, ou a organização marcadamente negra
“usos sujos” e pela depauperação que mantém de trabalhadores portuários na Sociedade de
uma bacia de força de trabalho de baixo custo Resistência dos Trabalhadores em Trapiche
para atividades na outra parte do centro, o e Café, fundada em 1905, um dos marcos do
“Central Business District”, permitiu que se início do sindicalismo brasileiro. Lutas em cujas
mantivesse como uma área de maioria negra ou, constituições tiveram papeis fundamentais as
no dizer de Rolnik (1988/2007), um “território redes de sociabilidade negras, com a cultura e a
negro” da cidade. religiosidade de matriz africana permitindo que
casas (como a de Tia Ciata na Praça Onze) se
Invisibilização e desqualificação
tornassem sítio para o encontro e a agregação de
desta presença negra, dimensões do racismo,
sujeitos, frutificando iniciativas fundamentais no
contribuem para a subalternização histórica
19

campo da cultura como da política. Se os exemplos trazidos acima já


nos evidenciam um tecido social pleno de
Nesta toada, compreendemos como
ativismos disputando significações do lugar,
parte desse ativismo imanente ao tecido social a
aqui pretendemos lançar foco para um conjunto
criação ali de uma das primeiras escolas de samba
de iniciativas fundamentais para as disputas
do Rio de Janeiro, a Vizinha Faladeira, em 1932,
que se instauram nos marcos do Projeto Porto
que foi campeã da divisão principal do carnaval
Maravilha, que tem na identidade, história e
em 1937 e introduziu uma série de inovações
cultura negras âncoras fundamentais de sua ação.
que permanecem até hoje caracterizando os
Por outro lado, é forçoso relembrar que estes
desfiles – p. ex., o uso de carro alegórico. Ligados
sujeitos, que lutam contra o branqueamento
ao samba, ali também foram criados Grupos
ressignificando o lugar através de suas práticas,
como o GRES Fala Meu Louro, fundado em 1938,
não tem sua espacialidade e nem temporalidade
o Bloco Carnavalesco Coração das Meninas,
dadas como reações a este mais recente projeto
existente desde 1964, e a Roda de Samba Banda
de intervenção urbana na região. Eles são
da Conceição, criada em 1973, para trazer
anteriores, com historicidades, temporalidades
alguns poucos exemplos. Mais recentemente,
e espacialidades distintas, o que no tempo
o Bloco Escravos da Mauá e o Cordão do Prata
presente também complexifica as construções
Preta vão retomar essa tradição do lugar, com
de lugar que vão emanar da convergência destas
suas denominações marcando posição sobre a
lutas. Museu Instituto dos Pretos Novos, Pedra
memória e história da região, e ressignificando o
do Sal (o quilombo e a roda de samba) e o Afoxé
lugar: o Prata Preta foi fundado por moradores
Filhos de Gandhi são grupos que, no processo
do bairro da Saúde em 2004, celebrando também
do Porto Maravilha, vem sendo protagonistas
o centenário da Revolta da Vacina.
centrais (de diferentes maneiras) nas disputas
Este conjunto de ativismos políticos e culturais de lugar que ocorrem na região. Defendemos
(as duas dimensões aí se imbricam e se mostram aqui que eles têm, como marca de suas disputas,
indissociáveis) disputam as significações do lugar. diferentes repertórios espaciais de ação.
Os mais recentes, como os exemplos trazidos
já mostram, buscam fazer tal ressignificação
através da criação do que Pierre Norá (1993) OUTROS ATORES DISPUTANDO O
LUGAR – PEDRA DO SAL, PRETOS
denomina “lugares de memória”, repositórios
NOVOS, FILHOS DE GANDHI
de cargas simbólicas atribuídas por sujeitos que
buscam articular passado e presente, sujeitos
posicionados em dinâmicas sociopolíticas e Nas últimas décadas, as lutas pela
que, por isso, transformam a memória em uma memória negra na região da Zona Portuária do
construção dinâmica, sempre em mutação, Rio de Janeiro vêm ganhando novas estratégias.
viva porque é disputada e, no dizer do próprio Um conjunto heterogêneo de atores vem
autor, “manipulada” – por isso, se diferencia da dando corpo a iniciativas que ganham forma
história9. e especificidades, mas que se retroalimentam
no seu conjunto. Acreditamos que um marco
9 “(...) longe de serem sinônimos, tomamos consciência
importante desse processo é a requisição de
que tudo opõe uma à outra. A memória é a vida, sempre
carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em
tombamento da Pedra do Sal em 1984 junto
permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do ao Instituto Estadual do Patrimônio Cultural
esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, (INEPAC), reconhecido em 1987, com forte
vulnerável a todos os usos e manipulações, susceptível de protagonismo de intelectuais militantes do
longas latências e de repentinas revitalizações. A história Movimento Negro da época, não moradores da
é a reconstrução sempre problemática e incompleta do
região, mas que aproveitando de um contexto
que não existe mais. A memória é um fenômeno sempre
atual, um elo vivido no eterno presente”. Nora, 1993, pg. 9.
20 R E PE RTÓ R IO S E SPAC IA I S D E AÇ ÃO NA LU TA A N T I- R ACI SMO

*A localização de grupos culturais no porto do Rio de Janeiro foi


levantada por Ana Carolina Machado e Antônio Júnior Pimentel.
21

favorável da gestão do Governo do Estado10, através da Resolução nº 23 e publicada no


construíram a proposta e lograram êxito no Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro
processo. em 11 de maio de 1987, é testemunho
cultural mais que secular da africanidade
Esta patrimonialização, mais do que uma brasileira, espaço ritual consagrado e
conquista, se torna instrumento de novas lutas o mais antigo monumento vinculado
– culturais, simbólicas, materiais e institucionais à história do samba carioca. Outrora
teve os nomes de Quebra-Bunda, Pedra
– na região. Ela cria (ou, ao menos, fortalece)
da Prainha e, como nas redondezas se
uma ambiência para uma revalorização da carregava o sal, popularizou-se como do
história negra em torno da Pedra do Sal e região. Sal. Ali se instalaram os primeiros negros
Valorizada como berço do samba, de casas de da Saúde, se encontraram as Tias Baianas,
candomblé, das casas de zungu (alimento feito soaram os ecos das lutas populares, das
à base de angu), entre outras manifestações festas de candomblé e das rodas de choro.
Nas ruas tortuosas e becos que a envolvem,
e figuras (como as tias, a exemplo de Ciata
nasceram os ranchos e o carnaval carioca.
e Carmen), se fortalece uma circulação de No dorso da Pedra do Sal estão inscritas as
sentidos que envolve a necessidade de mais raízes do nosso samba. (ARQPEDRA apud
iniciativas que, mobilizando tais enunciados do INCRA, 2010, pg. 19)
passado, criassem base para a ressignificação
Este grupo, já nessa época, começa a disputar
da negritude. Isto vai redundar em iniciativas
a memória negra da Pedra do Sal através da
dispersas, pulverizadas, efêmeras, mas que se
promoção de eventos com samba, religiosidade
articulam por essa circulação de sentidos. Assim,
e culinária negra em datas celebrativas, como
ainda na década de 1980 já acontecem rodas
o 20 de novembro (Dia da Consciência Negra),
de samba na área reivindicando tal acervo de
o 2 de dezembro (Dia do Samba) ou mesmo
memória.
o 23 de abril (Dia de São Jorge, identificado no
Na década de 2000 um grupo de sincretismo popular com o orixá Ogum). Tais
moradores da região começa a discutir o atividades, que são celebrações, festas, mas
reconhecimento de parte da área em volta da também a disputa da carga simbólica atribuída à
Pedra do Sal como quilombo, o que ganhou Pedra do Sal como lugar de memória da cultura
reconhecimento pela Fundação Cultural negra, são reforçadas a partir de meados da
Palmares. A ARQPEDRA (Associação da década de 2000 com a criação de rodas de samba
Comunidade Remanescente de Quilombo da semanais – sobretudo as rodas praticadas nas
Pedra do Sal) vai protagonizar tal processo, e a segundas-feiras. Estas rodas adotaram também
reivindicação da memória da presença e história a postura de reivindicação e defesa da memória
negra no local é elemento fundamental: negra do lugar:
A Pedra do Sal, tombada provisoriamente A história da Roda de Samba da Pedra se
em 20 de novembro de 1984 e, confunde com o reerguimento do samba na
definitivamente em 27 de abril de 1987
Região Portuária do Rio de Janeiro. Em 10
10 Falamos do contexto da gestão de Leonel Brizola anos de comprometimento com a cultura
(1983-1986), no cenário da redemocratização pelo do lugar, hiridizando gêneros regionais
enfraquecimento do regime militar. Ivair Santos (2006) tradicionais, trazidos de África pela insana
aponta que naquele contexto gestões de oposição ao regime
diáspora, o samba segue incólume, por
militar, na busca de construção de bases sociais e políticas
para governar, abriram diálogos com o Movimento Negro, o
todas as noites de segundas feiras. Ali
que resultou em experiências de incorporação da temática nunca se negociou memória ancestral
racial – o caso que ele analisa mais detidamente é o da (...) (http://rodadesambadapedradosal.
criação do Conselho de Participação e Desenvolvimento blogspot.com/ acesso em 15/02/2019)
da Comunidade Negra no Governo de São Paulo, então, na
gestão de André Franco Montoro.
22 R E PE RTÓ R IO S E SPAC IA I S D E AÇ ÃO NA LU TA A N T I- R ACI SMO

*A localização de grupos culturais no porto do Rio de Janeiro foi


levantada por Ana Carolina Machado e Antônio Júnior Pimentel.
23

A repercussão destas rodas de samba, transformação do Cais do Valongo em Cais da


sempre cheias de moradores de diversos Imperatriz, em 1843) apagou os possíveis lugares
bairros do Rio de Janeiro e região metropolitana de memória. Anos depois, a partir da ação dos
além de turistas, transformou a Pedra do Sal proprietários, da articulação com militantes do
num “lugar de memória” conhecido por toda Movimento Negro e profissionais (historiadores
a cidade, amplificando o seu papel como e arqueólogos) interessados e comprometidos,
ferramenta de disputa pelo pertencimento à foi criado o Museu Instituto dos Pretos Novos
ancestralidade negra. Samba e Quilombo, neste (IPN).
sentido, se retroalimentam enquanto sujeitos
Enquanto achado arqueológico, o IPN
da ressignificação do lugar – ou, por que não
se transformou numa ferramenta fundamental
dizê-lo, da própria criação da Pedra do Sal
para reforçar a hipótese da existência de um
como um “lugar”, um ente espacial reconhecido
conjunto de outros bens a serem protegidos na
e com um acervo de referenciais próprios de
região, e de particular interesse para a história
identidade. Neste processo de construção da
negra. Funcionou, então, duplamente, de um
ideia da região como Pequena África, que é
lado sendo uma referência para a difusão dessa
outro “lugar”, outro recorte espacial que reúne
história, na medida que recebe visitas de cariocas
um acervo de referenciais dos quais a Pedra do
(incluindo muitos estudantes em visitações
Sal é apenas uma parte, as ações do Samba e do
escolares) e turistas (brasileiros e estrangeiros),
Quilombo da Pedra são fundamentais. Estamos
e também como prova inegável da necessidade
falando, portanto, de dois processos interligados
de exploração de mais pontos na região. A partir
de “criação de lugares”, com abrangências e
dele pesquisadores puderam dar mais lastro às
recortes espaciais distintos mas interligados
investigações a respeito do complexo logístico do
(um é parte do outro), onde as disputa de
mercado de africanos sequestrados e traficados
significado e memória se retroalimentam. Que
para serem aqui escravizados, que chegavam
outros processos de certa forma semelhantes
pelo Cais do Valongo (ver o Mapa do Mercado
se vinculam ao da Pedra do Sal para constituir a
Escravagista e Cultura no Porto do Rio de
Pequena África contemporânea?
Janeiro, abaixo). Isto foi o que embasou pedidos
A reivindicação da memória e da história de salvaguarda de patrimônio arqueológico
negras da região já havia ganho impulso na quando das obras relacionadas ao Projeto
década de 1990, quando um casal ao reformar Porto Maravilha, as quais revelaram as próprias
sua casa na Rua Pedro Ernesto, na Gamboa, instalações do Cais do Valongo.
identificou fragmentos de ossos humanos.
Em 2011, durante as obras da revitalização
Primeiramente, consultaram a polícia, que
do Porto Maravilha, foi descoberta a localização
apontou se tratarem de ossadas humanas, mas
do antigo Cais do Valongo – e, por cima dele,
antigas. Então, profissionais historiadores e
também o Cais da Imperatriz, construído para
arqueólogos dos órgãos responsáveis, alguns
tampá-lo. Sendo um bem salvaguardado pelas
dos quais já cientes do debate sobre a existência
leis de proteção ao patrimônio arqueológico, ele
na região de um cemitério antigo onde eram
acabou impondo mudanças no planejamento
enterrados os africanos sequestrados e traficados
das obras. Daí, a prefeitura juntou a ele outras
que não resistiam ao chegarem aqui pelo Cais do
construções protegidas por tombamentos e criou
Valongo, identificaram se tratar ali a localização:
o Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração
era o antigo Cemitério dos Pretos Novos. Esta
da Herança Africana, conjunto de pontos que,
descoberta instaura novas possibilidades de
além do Cais, reúne a Pedra do Sal, o Largo
luta contra o branqueamento da narrativa
do Depósito (onde se localizava um mercado
histórica da região, cuja urbanização (conforme
de tráfico humano africanos escravizados),
já exemplificamos anteriormente com a própria
em frente a ele o Jardim Suspenso do Valongo
24

(construído no bojo da Reforma Pereira Passos resultados de mercado do projeto.


como embelezamento de instalações que
Estes paradoxos aparecem fortemente na
serviam de apoio ao tráfico, como barracões
maneira como o poder público vai se relacionar
conhecidos como casas de engorda, que serviam
com os grupos ligados à cultura e história negra.
para os seres humanos traficados recuperarem
Quando estes recebem algum apoio, a alocação
peso perdido na viagem de travessia em navios
de recursos é abissalmente inferior ao que é
chamados “tumbeiros”, e assim ganharem valor
carreado para iniciativas como o Museu do
comercial), o Cemitério dos Pretos Novos e o
Amanhã, o Museu de Arte do Rio (MAR), ou o
Centro Cultural José Bonifácio.
Aquário Marinho do Rio de Janeiro (AquaRio),
O Circuito apresenta-se como um equipamentos culturais instalados a partir da
paradoxo nas disputas de lugar: é fruto de revitalização. O caso do Afoxé Filhos de Gandhi,
conquista desses grupos que vinham disputando grupo que associa a religiosidade do candomblé
memória e história do lugar antes mesmo do à musicalidade em apresentações de afoxé, é
Projeto Porto Maravilha; mas, se insere neste lapidar: mesmo tendo sido criado em 1951, o
projeto que prevê remoção de população negra grupo funciona numa sede que é um casarão em
da região, portanto, foi transformado em peça condições precárias no Largo do Depósito, sem
discursiva de uma valorização da presença negra segurança jurídica e sob constante ameaça de
num projeto que expulsa populações negras e expulsão.
também outras instalações de atividades ligadas
O Filhos de Gandhi é um dos grupos
à cultura negra que é feita no presente, como
mais ativos no período recente em termos de
barracões de escolas de samba; é a primeira
disputa de lugar. Seu repertório espacial de
vez no Rio de Janeiro (cidade que, como já
ação no período recente contempla a realização
exemplificamos, tem sua história marcada por
de festas, ensaios e apresentações no Largo do
diversos grandes eventos de intervenção) que
Depósito, eventos com cortejos na região (p. ex.,
um projeto de grande intervenção urbana traz
o Rolezão Preto, organizado junto ao Movimento
alguma menção positiva à presença e cultura
Rua em março de 2018), lavagem das escadas do
negra mas, como se pode ver, são valorizadas
Cais do Valongo, desfiles no carnaval (na própria
as presenças e culturas do passado, numa
Zona Portuária mas também em outros locais,
concepção arqueológica de patrimônio, visto
como em Copacabana, Quinta da Boa Vista, etc.),
que populações negras e práticas culturais de
entre outros. Tais gestos evidenciam o câmbio da
grupos no presente são levados a deixar a região
invisibilização como estratégia de sobrevivência
– por força de remoções oficiais ou por força dos
(marca tradicional de grupos vinculados às

*Foto: Av. Barão de Tefé, da esquerda para a difeita: O sítio arqueológico do Cais do Valongo; o
armazém Pedro II, construído por André Rebouças para a Companhia Doca; emprendimentos sede
da L’Oreal e Vista Guanabra. Acervo Neplac.
25

religiões afro-brasileiras, para se proteger das instalação, mas, no reconhecimento como


violências do Estado e de outros agentes, que Patrimônio da Humanidade, junta-se a uma
marcam a história do racismo religioso no Zona de Amortecimento que reúne os pontos de
Brasil) para a busca de uma visibilização cada interesse do Circuito Histórico de Celebração da
vez maior nos espaços públicos. Aqui, vale Herança Africana mas não se confunde com ele.
destaque para a pluralização destes espaços Há, portanto, um processo múltiplo e complexo
públicos, o que contempla também a busca de de disputas de lugares, no qual diferentes sujeitos
interlocutores em espaços de representação lançam mão de diversos repertórios espaciais
política: o Gandhi recebeu, em novembro de ação, o que redunda numa multiplicidade
de 2017, a Medalha Pedro Ernesto, honraria de referenciais e recortes espaciais que se
concedida pela Câmara de Vereadores do Rio combinam (e, em alguns momentos, se
de Janeiro, a partir de requerimento do mandato atritam). O Mapa Circuitos da Memória traz
da vereadora Marielle Franco. Aparece, nesta esse conjunto de pontos – agregando, ainda, os
ação, uma articulação da luta do grupo com um pontos referenciados pelo projeto “Passados
mandato parlamentar de uma representante Presentes: Memória da escravidão no Brasil”,12
política negra, o que nos remete à leitura de Kox uma iniciativa de extensão da Universidade
(1998), que dissocia na ação dos grupos sociais Federal Fluminense que marca pontos de
“espaços de dependência” (aqueles necessários à interesse com códigos tipo QR, que a partir de
sua própria reprodução social enquanto grupos) um leitor óptico instalado como aplicativo em
e “espaços de engajamento” (aqueles que são dispositivos telefones celulares tipo smartphone,
ocupados estrategicamente pelos grupos como permite acesso a informações no formato voz
necessidade do seu jogo político). (das historiadoras coordenadoras do projeto ou
de lideranças da região). Na Pequena África, são
Quando vemos, então, o reconhecimento
19 pontos grafados pelo projeto.
pela UNESCO (Organização das Nações Unidas
para a Educação, a Ciência e a Cultura, uma
agência da ONU – Organização das Nações 4. PARA NÃO CONCLUIR
Unidas) do Cais do Valongo como Patrimônio da
Humanidade (o reconhecimento e a inscrição no O caso da Pequena África no Rio de Janeiro
livro foi em 2017, e a entrega do título em 2018), nos evidencia como, no período recente, a luta
citado na própria página da entidade como “o anti-racismo do Movimento Negro Brasileiro
lugar mais importante de memória da diáspora vem ampliando suas estratégias de ação. Ele
africana fora da África”11, isto é o resultado de nos mostra – esta foi a intenção deste artigo –
uma articulação de atores sociais em lutas pela como há o recurso crescente a repertórios de
ressignificação de lugares, disputas por memória ação centrados no espaço. Disputas de lugar,
e história grafando lugares – e, importante grafagens espaciais, atribuição de sentidos e
dizê-lo aqui, estamos falando de lugares com significados a lugares de memória, criação de
recortes e abrangências espaciais distintos e novas cartografias e, a luta pelo reconhecimento
combinados. A Pedra do Sal vem se tornando social e institucional destes referenciais espaciais
um lugar, um ponto de referência com cargas constituem algumas das ferramentas de luta
semântica, histórica e simbólica próprias, que social mobilizadas por sujeitos em luta contra o
compõe a Pequena África, mas se distingue do racismo.
Cais do Valongo. Este, por sua vez, é a sua própria Vimos, aqui, o espaço urbano como
palco, objeto e instrumento de disputa(s).
11 http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/about- A análise dos repertórios espaciais de ação
this-office/single-view/news/valongo_wharf_is_the_
new_brazilian_site_inscribed_on_unesco/, visita em 12 http://passadospresentes.com.br/site/Site/index.php,
13/02/2019. visita em 28/02/2019
26

mobilizados por tais sujeitos nos mostra um Confins [Online], 5 | 2009, posto online em 24
espaço praticado, disputado, aberto para abril 2009. URL : http://confins.revues.org/
múltiplas possibilidades como nos propõe index5724.html
imaginar Doreen Massey (2008). Mais do que um INCRA. Pedra do Sal: Relatório Técnico de
espaço “produzido”, temos um espaço disputado Identificação e Delimitação. Brasília: Ministério
– olhar que apenas leituras relacionais das do Desenvolvimento Agrário, 2010.
dimensões de poder imanentes aos processos de KOX, K. Spaces of dependence, spaces of
“produção” permitem captar, e que nem sempre engagement and the politics of scale, or: looking
estão presentes em perspectivas que buscam for local politics. Political Geography, Vol. 17, No.
observar a produção do espaço. Produzido, sim, I, pp. l-23, 1998
mas aberto, praticado, e, no caso da Pequena MASSEY, Doreen. Pelo Espaço: Uma nova
África, disputado por um conjunto de sujeitos política da espacialidade. Rio de Janeiro:
que protagonizam a luta anti-racismo, contra o Bertrand Brasil, 2008.
branqueamento do território no espaço urbano. NORA, Pierre. Entre memória e história: a
problemática dos lugares. Projeto história (10),
São Paulo, Editora da PUC-SP, dezembro de
BIBLIOGRAFIA 1993, pp.7-29.
REVEL, Jacques. “Microanálise e construção
ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz. do social”. In: _________, Jogos de Escala. Rio de
Preconceito contra a origem geográfica e de Janeiro: Edit. FGV, 1998.
lugar: As fronteiras da discórdia. São Paulo: RIBEIRO, Ana Clara Torres. Cartografia
Cortez, 2007. da ação social: região latino-americana e
BRENNER, Neil. “The limits to scale? novo desenvolvimento urbano. In: Poggiese,
Methodological reflections on scalar Hector; Egler, Tâmara Tania Cohen (Org.). Otro
structuration”. In: Progress in Human Geography, desarrollo urbano: ciudad incluyente, justicia
25(4), 2001, pp. 591-614. social y gestión democratica. Buenos Aires:
CLAVAL (2013) , Paul. O território na transição Clacso. p.147-156. 2009.
da pós-modernidade. GEOgraphia nº 2, Revista RIOS NETO, Eduardo e RIANI, Juliana
da Pós-Graduação em Geografia da UFF. Niterói: de Lucena Ruas. “Desigualdades raciais
UFF/EGG, 1999. Disponível em http://www. nas condições habitacionais na população
uff.br/geographia/ojs/index.php/geographia/ urbana”. In: Santos, Renato Emerson dos (Org.)
article/view/16/14 “Diversidade, Espaço e Relações Étnico-Raciais:
FAULHABER, L. & AZEVEDO, L. SMH 2016: o Negro no Ensino de Geografia”. Belo Horizonte:
remoções no Rio de Janeiro Olímpico. Rio de Ed. Autêntica, 2007.
Janeiro: Mórula, 2015. ROLNIK, Raquel. Territórios negros nas
FOULCAULT, M. 2001. “De outros espaços”. cidades brasileiras: etnicidade e cidade em
In: Ditos & Escritos. Rio de Janeiro: Forense São Paulo e Rio de Janeiro. In: Santos, Renato
Universitária. Emerson dos (Org.) “Diversidade, Espaço e
HAESBAERT, Rogério. Da Relações Étnico-Raciais: o Negro no Ensino de
multiterritorialidade aos novos muros: paradoxos Geografia”. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2007.
da desterritorialização contemporânea. Niterói, SANCHÉZ, Fernanda et. All. Cronologia
Universidade Federal Fluminense, 2011. p.1- crítica da cidade em disputa: o caso do Morro
15. Disponível em <http://www.posgeo.uff.br/ da Providência no Porto do Rio de Janeiro. In:
sites/default/files/da_multiterritorialidade_aos_ Oliveira, F. et. All (Orgs). Planejamento e conflitos
novos_muros.pdf>. Acesso em 02 jan. 2013. urbanos: experiências de luta. Rio de Janeiro:
HARLEY, John Brian. Mapas, saber e poder. Letra Capital, 2016.
27

SANTOS, Ivair Augusto A. O Movimento Negro


e o Estado (1983-1987): O caso do Conselho de
Participação e Desenvolvimento da Comunidade
Negra no Governo de São Paulo. São Paulo:
Prefeitura da Cidade de São Paulo, 2006.
SANTOS, Renato Emerson dos. Rediscutindo
o ensino de geografia: temas da Lei 10.639. Rio
de Janeiro: CEAP, 2009.
_______. Movimentos sociais e geografia:
sobre a(s) espacialidade(s) da ação social. Rio de
Janeiro: Consequência, 2011a.
_______. “Ativismos cartográficos: notas sobre
formas e usos da representação espacial e jogos
de poder”. Revista Geográfica de América Central
(online), v. 2, p. 1; Costa Rica, 2011b;
_______. SILVA, K. S.; RIBEIRO, L. P. ; SILVA, N.
C. . Disputas de lugar e a Pequena África no Centro
do Rio de Janeiro: Reação ou ação? Resistência ou
r-existência e protagonismo?. In: Natacha Rena;
Daniel Freitas; Ana Isabel Sá; Marcela Brandão.
(Org.). Seminário Internacional Urbanismo
Biopolítico. 1ed.Belo Horizonte: Fluxos, 2018, v.
1, p. 464-491.
SOJA, Edward. Geografias pós-modernas: a
reafirmação do espaço na teoria social crítica.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993.
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o
subalterno falar?. Belo Horizonte: Editora,
UFMG, 2010.
SWYNGUEDOUW, Eric. “Neither Global nor
Local: ‘Glocalization’ and the politics of scale”.
In: Cox, Kewin (Org.). Spaces of globalization:
reasserting the power of the local. New York/
London: The Guilford Press, 1997, pp. 137-166.
WERLEN, Benno. Regions and Everyday
Regionalizations: From a Space-centred Towards
an Action-centred Human Geography. In:
Houtum, Henk van; Kramsch, Olivier & Zierhofer,
Wolfgang. B/ordering space. Burlington/USA:
Ashgate Publishing Company, 2005.

Foto ao lado: Rua Camerino. Sede da


Associação Cultural e Recreativa Afoxé
Filhos de Gandhi.
Acervo Neplac
28

A OPERAÇÃO URBANA Operação Urbana Consorciada Porto Maravilha


(OUCPM)2 tem sido objeto de muitos de artigos,
CONSORCIADA PORTO dissertações e teses, com variados objetivos de
MARAVILHA DEZ ANOS pesquisa e referências teóricas.

DEPOIS : O presente trabalho tem como objetivo


central examinar o estado atual da OUCPM,
POR ONDE SOPRAM identificar, mapear e qualificar alguns dos
principais agentes atuantes na região e avaliar
OS VENTOS?¹ a evolução de sua dinâmica imobiliária. Para
isso, foram analisados dados referentes aos
Thiago Araújo do Pinho preços e transações dos imóveis na região,
bem como realizadas entrevistas e trabalho de
Paula Cardoso Moreira coleta dados em campo. Utilizamos também da
1
cartografia não só para representação dos dados,
mas como ferramenta de análise e compreensão
INTRODUÇÃO das relações de poder e disputas envolvidas
na produção desse espaço. Nesse sentido, é
A área portuária do Município Rio de fundamental mapear os principais agentes e
Janeiro tem sido palco de grandes transformações suas espacialidades.
nos últimos anos que já alteram de maneira
significativa a paisagem urbana do lugar. O levantamento da bibliografia
Grandes torres de alto padrão, com suas fachadas especificamente produzida para a região
de aço e vidro reluzentes, começam a fazer parte portuária revela que o projeto de reestruturação
do cenário da região. Praças “requalificadas”, dessa área não é novo e que a OUCPM carrega
antigos galpões reformados e novos edifícios de em seu desenho algumas dessas marcas de
uma arquitetura exuberante, com destaque para planejamentos pretéritos como indica Werneck
o Museu do Amanhã adentrando ao mar sobre (2017). Com base na contextualização histórica
o píer Mauá, são aspectos dessa transformação da produção do espaço, o trabalho de Broudehoux
notados ao longe. Há, contudo, muitos outros (2017) indica que a efetividade da revalorização
aspectos desta realidade que não são revelados à fundiária está atrelada à estigmatização e
primeira vista e que são escamoteados por detrás criminalização da população de baixa renda e à
dessa paisagem. posterior ressignificação simbólica da área (como
ocorre na Praça Mauá) com vias a uma futura
Essas transformações são apenas uma substituição da população. Ressaltando o papel
das faces de um processo complexo de interação da cultura no processo histórico de expulsão
entre a acumulação capitalista e a construção de uma parcela da população, catalisado pela
do espaço urbano, que pode ser apreendida Operação Urbana, Santos et al. (2018) destacam
sob múltiplas perspectivas. Por isso mesmo, a que o branqueamento da região portuária não
só provoca uma devida reação da população,
1 O artigo foi elaborado sob a orientação do Professor mas também é relativo à afirmação da cultura
Fabricio Leal de Oliveira (IPPUR/UFRJ), a quem
agradecemos pelas atenciosas notas, pela bibliografia e 2 A Lei Complementar nº 101 de 23 de novembro de
sobre tudo pelos diálogos. Agradecemos também ao debate 2009, que cria essa OUC a denomina de Operação Urbana
fomentado na sessão temática Desenvolvimento Urbano Consorciada da Região do Porto do Rio. Porém, fizemos
- Velhos Problemas, Novos Desafios, do XVIII Encontro a opção de nos referir a ela como Operação Urbana
Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Consorciada Porto Maravilha (OUCPM), ou apenas Porto
Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional - Natal, 2019, Maravilha, dando ênfase ao codinome pelo qual o projeto
no qual foi apresentado uma versão preliminar do trabalho. ficou popularmente conhecido.
29

local, ao que chamam de formas de r-existência. reestruturação urbana deste espaço.


Santos Junior et al. (2017) mostram que há
uma quantidade significativa e heterogênea de Em comum, várias dessas análises
pessoas que buscam nos cortiços da região o apontam que a reestruturação urbana promovida
atendimento de suas demandas por viver na área pela OUCPM, com a entrada de novos agentes
central da cidade. Martins (2015) parte da noção imobiliários e a atuação do poder público, está
de gentrificação e usa do referencial teórico orientada por uma lógica excludente fundada na
do rent gap (SMITH, 1996) para investigar a apropriação privada do fundo público.
valorização fundiária, os capitais ali investidos
Entendemos que a perspectiva que
e a renda potencial surgida em decorrência da
trata da vigência do Regime de Acumulação
restruturação urbana promovida pelo projeto.
sob Dominância Financeira (ou Regime de
Sem aprofundar no longo e complexo debate
Acumulação Financeirizado) (CHESNAIS,
sobre os processos de gentrificação, que já foi
2002) e da emergência de um novo padrão de
tratado anteriormente por Pereira (2015) e Galiza
planejamento urbano (empreendedorismo
(2015) para o caso estudado aqui, o essencial é
urbano, planejamento estratégico ou urbanismo
tratá-lo como um processo de substituição de
corporativo) alicerçado sobre uma lógica
moradores e frequentadores em determinado
empresarial e de competitividade urbana
espaço por outros estratos sociais de maior renda,
globalizada pode contribuir para o estudo do
não por uma simples mudança nas preferências
caso da Operação Urbana Consorciada Porto
desses estratos, mas por uma ação coordenada
Maravilha. E, no sentido contrário, a OUCPM
de frações do capital e do Estado, investidos na
pode contribuir para a compreensão da

Fonte: Elaboração própria, com dados de campo e base da Coordenadoria Técnica de Informações da Cidade do Instituto
Pereira Passos da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro (CTIC/IPP/PCRJ); * CARDOSO, Elizabeth Dezouzart et al. História
dos Bairros: Saúde - Gamboa - Santo Cristo - Zona Portuária. Rio de Janeiro: João Fortes Engenharia/ Editora Index, 1987
30 A O PE R AÇ ÃO UR BA NA C O N S ORCI A DA P O RTO MA R AV I L HA DE Z A NO S DEP O I S

“financeirização efetivamente existente” Brasil, primeiro mandato de Cesar Maia como prefeito
ou da “financeirização truncada” como Klink e (1993-1996)4, planos e projetos neste sentido
Souza (2018, p. 385) classificam esse processo no passam a ocupar papel central na agenda de
país. governo e dão os contornos do que começou a
ser colocado em prática ainda nos primeiros
Sendo assim, a primeira seção desse meses da gestão de Eduardo Paes, eleito em 2008.
trabalho faz apontamentos sobre os antecedentes
mais recentes e reflete sobre o aparato A gestão Cesar Maia inaugura uma nova
institucional e financeiro adotado pela OUCPM. coalizão no poder local carioca – que se manterá,
A segunda seção busca identificar e mapear os grosso modo, ao menos até os dois mandatos
principais agentes, públicos e privados, presentes de Paes – responsável por uma nova concepção
na Operação com foco na produção imobiliária. do planejamento urbano, próxima ao que a
Na terceira seção, discutimos a dinâmica literatura tem chamado de empreendedorismo
imobiliária da região, buscando refletir a partir urbano (HARVEY, 2005), planejamento
de distintas fontes de dados sobre a evolução estratégico ou empresariamento urbano
dos preços praticados, a partir e de acordo com (VAINER, 2000) ou urbanismo corporativo
as limitações das bases de dados disponíveis. (FERNANDES, 2013). Como símbolo dessa
Na quarta seção propomos uma reflexão sobre coalização, está o primeiro Plano Estratégico da
as distintas racionalidades que permeiam Cidade do Rio de Janeiro (PECRJ) de 1993 e a
o espaço aqui estudado e apresentamos a articulação para sua promoção entre Associação
proposta de uma tipologia, georeferenciada, que Comercial (ACRJ), Federação das Indústrias
congrega os temas debatidos nesse texto em um (FIRJAN) e Prefeitura, sendo esse o período
exercício cartográfico. Tal tipologia aponta para a em se “implanta de forma contínua, um novo
existência de três espacialidades distintas, ainda relacionamento, mais explícito” entre o poder
que com sobreposições: a) Espaço do Grande público local e o “empresariado com interesses
Capital Imobiliário; b) Espaço dos Pequenos econômicos no Rio de Janeiro” (OLIVEIRA,
Proprietários, e c) Espaço Popular. Por fim, na 2003, p. 83). É também na gestão de Maia que
última seção, são feitas as considerações finais se propõe o projeto “Porto do Rio: plano de
do artigo. recuperação e revitalização da região portuária
do Rio de Janeiro”, já em 2001, que tinha na
construção de uma filial do Museu Guggenheim,
ANTECEDENTES E O ARRANJO O onde hoje está o Museu do Amanhã, seu projeto
INSTITUCIONAL E FINANCEIRO DA âncora (PREFEITURA DA CIDADE DO RIO
OUCPM DE JANEIRO, 2011). Impedido de seguir com o
projeto pela justiça, posteriormente Maia chega
A ideia de se implementar um plano de a assinar um “Acordo de Cooperação Técnica”
“revitalização” da área portuária do Rio de Janeiro com o recém criado Ministério das Cidades,
existe ao menos desde os anos 19803 e começa a fruto de um grupo de trabalho que tinha por
tomar forma enquanto uma intervenção estatal objetivo “avaliar as propostas da prefeitura
estruturada na década seguinte. A partir do do Rio de Janeiro para a reabilitação da área
portuária” (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2005,
3 Em 1983, a Associação Comercial do Rio de Janeiro p. 30). Contudo, desconsiderando os esforços
(ACRJ) já havia proposto intervenções visando a “reciclagem
urbanística” da zona portuária. Nesta mesma década, outros 4 Luís Paulo Conde (secretário de urbanismo na gestão
projetos importantes como Corredor Cultural e SAGAS anterior) se elege em 1996 e Cesar Maia retorna à prefeitura
se ocupavam da manutenção do patrimônio histórico e para mais dois mandatos consecutivos, de 2001 a 2008.
cultural da região (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2005, p. Eduardo Paes também se elege para dois mandatos (2009-
27). 2016).
31

empreendidos pelo Ministério, o Prefeito Plano Diretor vigente, já que não havia previsão
promulga o decreto 26.852/2006 que cria a “Área daquele instrumento urbanístico8.
de Especial Interesse Urbanístico da Região
Portuária do Rio de Janeiro” (AEIU Portuária) A aprovação OUCPM foi beneficiada
e convoca empresas privadas a apresentarem pelas circunstâncias do período em que foi
“estudos de modelagem” de um projeto “para lançada. O alinhamento político entre os três
revitalização” da região5. entes federativos9 foi de grande relevância
para a viabilidade do projeto. Além disso, os
O Consórcio Mar e Vila, formado pelas megaeventos que seriam sediados pelo Rio
empresas Construtora Norberto Odebrecht Brasil de Janeiro (a Copa do Mundo de 2014 e os
S.A., Construtora OAS Ltda. e Carioca Christiani- Jogos Olímpicos de 2016), o bom momento
Nielsen Engenharia S.A., foi o único a apresentar macroeconômico do país e o aquecimento
um projeto. Essas são as mesmas empresas que do mercado imobiliário nas grandes cidades
futuramente viriam a ganhar a licitação para as brasileiras (em especial, no Rio de Janeiro),
obras do Porto Maravilha, que se baseou, em formavam uma conjuntura de grandes
vários aspectos, no estudo proposto. expectativas positivas ainda não vivenciada.

Eduardo Paes coloca a área portuária Muitas vezes os gestores envolvidos


entre as prioridades de seu governo e, mesmo e agentes interessados na OUCPM têm
antes de tomar posse, retoma a articulação apresentado o arranjo institucional e financeiro
política para superar os “obstáculos para a criado para o projeto como uma inovação
revitalização da Zona Portuária”6 enfrentados importante e um legado para as políticas
pelas gestões anteriores. Ainda nos primeiros urbanas e projetos similares dentro e fora do
meses de mandato, o prefeito encaminha à Brasil. Por outro lado, os estudos críticos ao
câmara de vereadores os projetos de lei que projeto têm apontado que tal arranjo combina
formam a base da Operação Urbana Consorciada formas de apropriação do fundo público e
da Região do Porto do Rio, todos aprovados em mecanismos de “acumulação por espoliação”,
20097. A lei que cria OUCPM, altera também o uma “megaoperação de extração de renda sobre
um patrimônio fundiário público” (ROLNIK,
5 O decreto também pressupunha que os projetos
deveriam propor “uma concessão ou parceria público-
2015, p. 360).
privada no intuito de implementar a intervenção requerida
para a área” e já nas justificativas considerava que “as
O projeto se constitui, basicamente,
intervenções, revitalizações e renovações urbanas bem de dois grandes pilares: o contrato de parceria
sucedidas nas áreas portuárias deram-se sempre mediante público-privado (PPP), que tem por objeto
parceria público-privada precedida da articulação entre o as obras e serviços “visando à revitalização,
Município e a Autoridade Portuária”. operação e manutenção da AEIU Portuária”
6 Disponível em: http://g1.globo.com/Noticias/ (CDURP, 2010, p.15); e o leilão de Certificado
Rio/0,,MUL847652-5606,00REVITALIZACAO+DA+ZONA+ de Potencial Adicional de Construção (CEPAC),
PORTUARIA+VAI+COMECAR+PELO+PIER+MAUA+DIZ+
PAES.html Lei nº 5.128 de 16 de Dezembro de 2009, que dispõe sobre
os benefícios fiscais concedidos pelo município no âmbito
7 O núcleo do projeto está na Lei Complementar nº 101 da OUC.
de 23 de novembro de 2009, que cria a OUC propriamente
dita, e na Lei Complementar nº 102, promulgada na mesma 8 Sob questionamento da constitucionalidade desse
data, que cria a Companhia de Desenvolvimento Urbano da procedimento, as OUC são incorporadas ao novo Plano
Região do Porto do Rio de Janeiro (CDURP). Além dessas, Diretor, em 2011.
devem ser mencionadas a Lei Complementar nº 105, de 22 9 O partido do Prefeito e do Governador do Estado
de Dezembro de 2009, que institui o Programa (Partido do Movimento Democrático Brasileiro - PMDB) era
Municipal de Parcerias Público-Privadas (PROPAR-RIO), aliado do Partido dos Trabalhadores (PT), na presidência da
regulamentando no âmbito municipal as PPP, e também a república.
32 A O PE R AÇ ÃO UR BA NA C O N S ORCI A DA P O RTO MA R AV I L HA DE Z A NO S DEP O I S

o título financeiro-imobiliário que financiaria, contrato. Para realizar o leilão e as transações


supostamente sozinho, o contrato de PPP. financeiras dele decorrentes, a CDURP criou o
Fundo de Investimento Imobiliário da Região
Para gerenciar a OUCPM foi criada a do Porto (FIIRP).
Companhia de Desenvolvimento Urbano da Como o CEPAC é um título financeiro de
Região do Porto do Rio de Janeiro (CDURP), uma emissão exclusiva do município que realiza a
sociedade por ações de economia mista, com OUC, a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro
personalidade jurídica de direito privado, a ser emitiu e aportou esses títulos no patrimônio da
controlada pelo município. A lei estabelece a CDURP, que por sua vez os transferiu ao capital
possibilidade de que participem de seu capital social do FIIRP. É este fundo a figura jurídica
social entidades da administração pública direta que de fato realizou o leilão. Os 6.436.722
ou indireta da União e do Estado do Rio de Janeiro, CEPACs foram leiloados em 2011, em lote único,
ou mesmo investidores privados. A CDURP pode sendo o Fundo de Investimento Imobiliário
ainda assumir a forma de companhia aberta e ter Porto Maravilha (FIIPM) o vencedor e único
até mesmo suas ações negociadas na bolsa de proponente. Este fundo tem como único cotista
valores, desde que o controle acionário seja do o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço
município, que é hoje seu único cotista. (FGTS) e é administrado pela Caixa Econômica
Houve ainda uma primeira etapa de Federal.
intervenções, que se ocupou basicamente de Embora o preço total dos CEPACs fosse
obras de infraestrutura e viárias em uma de R$ 3,5 bilhões, estava previsto que o
pequena parte da AEIU portuária nas vencedor do leilão se obrigava ao pagamento do
proximidades da praça Mauá. As obras foram custo total da OUCPM – R$ 8 bilhões (valores de
realizadas mediante licitação da Secretaria 2011) ao longo da duração da OUCPM, que
Municipal de Obras, vencida novamente por somava outros custos11, além dos R$ 7,6 bilhões
consórcio formado pela Odebrecht e OAS, além do contrato de PPP já citado.
da EIT- Empresa Industrial Técnica S/A. Essa Em contrapartida, além da totalidade
primeira fase teve o custo de R$ 186.972.613,10 dos CEPACs, o FIIPM adquiriu também o
ao tesouro municipal10, contrariando o discurso “direito de opção de compra” de uma série de
de que a OUCPM seria paga exclusivamente terrenos originalmente públicos que deveriam
com os recursos arrecadados no leilão de ser integralizados no FIIRP pela CDURP. Ao
CEPAC. envolver os terrenos nesse arranjo, dava-se
A segunda etapa compreende um solução a um dos mais importantes entraves
conjunto de obras e serviços muito mais amplo, para a aplicação desse instrumento urbanístico
previstas no contrato de PPP mencionado nessa região. Cerca de 75% da área é composta
acima, abrangendo, em tese, toda extensão dos por terrenos públicos, aproximadamente 63%
5 milhões de m² da AEIU. Para tanto, a CDURP de propriedade da União, 6% do Estado e 6% do
lançou um edital de licitação, no valor de R$
7.609.000.000,00 (valor corrente, em 2011), a ser 11 Estes custos são referentes, principalmente: ao
pago ao longo de 15 anos de duração do contrato de prestação de serviços do gerenciamento
contrato. O consórcio Porto Novo S.A, mais uma de obras do Contrato da PPP (aproximadamente R$ 25
vez formado pela Odebrecht, OAS e Carioca milhões); à manutenção da CDURP (5% do valor total do
leilão de CEPACs, aproximadamente R$175 milhões); à
Engenharia, foi o vencedor do certame. No
recuperação do patrimônio histórico (3% do valor total do
entanto, este arranjo estava condicionado ao leilão de CEPACs, aproximadamente R$ 105,2 milhões); aos
processo de leilão dos CEPACs, que garantiria os valores devidos ao Agente Fiscalizador dos CEPAC (0,38%
recursos necessários para o cumprimento do do valor total do leilão de CEPACs, aproximadamente R$
13,3 milhões. O Edital de leilão define todos os custos da
OUCPM (FIIRP, 2011, p. 5, p. 28).
10 Disponível em: http://riotransparente.rio.rj.gov.br
33

Município12. frente por este novo padrão de planejamento. É


De posse dos CEPACs e dos terrenos em importante notar que transformações nos
que exercesse o direito de compra, o FIIPM padrões de regulação urbanística, e na política
deveria negociá-los junto ao mercado urbana, são um dos fatores constitutivos da
imobiliário para o desenvolvimento de novos reestruturação do capitalismo (PEREIRA, 2015,
empreendimentos de forma a valorizar seu p. 285) e não meramente reflexo, ou produto, da
patrimônio, gerando ganhos que remunerariam emergência de um novo Regime de Acumulação
o capital investido pelo seu cotista, o FGTS, e os Financeirizado.
recursos destinados ao pagamento de suas Inserido nesse cenário, a OUCPM
obrigações assumidas no edital do leilão. Desta apresenta características típicas de uma política
forma, os repasses devidos pelo FIIPM ao FIIRP urbana muito próxima aos agentes de mercado
custeariam as despesas das obras e serviços da e seus interesses. Incorpora mecanismos
OUCPM, devidas pela CDURP ao Consórcio próprios da administração empresarial em sua
Porto Novo, fechando assim a “engenharia prática, desenho institucional e mesmo quanto
financeira e institucional” que sustenta o aos parâmetros utilizados para aferir seus
projeto. resultados. Ao condicionar a ação dos agentes
Entendemos que o caso OUCPM deve estatais à lógica de mercado, podemos mesmo
ser compreendido a partir de uma argumentar que o projeto se insere na
perspectiva que contemple múltiplas escalas, qualificação de um padrão de intervenção
como sugerem Klink e Souza (2018, p. 397), estatal na política urbana que acaba por
considerando que a maneira como estes provocar um processo de “privatização
instrumentos urbanísticos “são desenhados e funcional” destes agentes, conforme destaca
implementados” é reflexo de disputas também Pereira (2015, p. 226) em análise do caso do
multiescalares entre diversos “agentes públicos Porto Maravilha.
e privados sobre a organização e atuação Além disso, o projeto traz também certas
territorial do Estado por meio de projetos e características próprias ao mercado financeiro.
estratégias de financiamento e de regulação”. Não apenas os agentes do mercado imobiliário,
Disputas essas cristalizadas no arranjo final do mas também os entes estatais lançam mão de
projeto. instrumentos e estratégias próprias à esfera
Sendo assim, é importante considerar a financeira. A estrutura institucional adotada,
reestruturação do capitalismo e a vigência de utilizando de Fundos de Investimento
um Regime de Acumulação sob Dominância Imobiliário, a natureza jurídica dada à CDURP e
Financeira, bem como a emergência de um a comercialização dos Certificados de Potencial
padrão de planejamento urbano alicerçado Adicional de Construção (CEPAC), bem como a
sobre uma lógica empresarial e de utilização de outros títulos financeiros
competitividade urbana globalizada. Nesse imobiliários (como os Certificados de
contexto, as Parcerias Público-Privado (PPP), e Recebíveis Imobiliários) por grandes empresas
instrumentos urbanísticos como as Operações que passam a atuar na área e também a
Urbanas Consorciadas (OUC) no caso brasileiro, estrutura e estratégias de atuação destas
surgem contemporaneamente como prática empresas podem ser citados nesse sentido.
paradigmática da política urbana colocada à É importante ressaltar as
transformações ocorridas no circuito
12 Valores apresentados por Sérgio Lopes, diretor imobiliário brasileiro no sentido da
financeiro da CDURP à época, no curso “Parcerias público-
financeirização, principalmente após os anos
privadas em grandes projetos urbanos: marco regulatório,
instrumentos e modelagem”, realizado na Faculdade de 1990. Inserido em um processo de
Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo neoliberalização, acontece neste período o que
(FAU/USP), no dia 30 de setembro de 2015.
34 A O PE R AÇ ÃO UR BA NA C O N S ORCI A DA P O RTO MA R AV I L HA DE Z A NO S DEP O I S

Klink e Souza (2018, p.385) chamam de como a principal sustentação do setor, tendo no
“reregulamentação” do setor, com a criação do FGTS e no Sistema Brasileiro de Poupança e
Sistema de Financiamento Imobiliário (SFI). Empréstimo (SBPE) seus alicerces (ROYER,
Surgem inúmeras inovações financeiras que 2009).
criam a possibilidade da terra urbana ser tratada Ao admitirmos a vigência de um Regime
como uma “forma de capital fictício” e “um de Acumulação Financeirizado de caráter
campo aberto para a circulação de capital que sistêmico e global, reconhecemos que o capital
rende juros” (Harvey, 2013, p. 471), processo financeiro passa a impor sua lógica de
potencializado “num contexto em que a acumulação, formas e temporalidades (padrões
financeirização dá o tom do processo de de rentabilidade, de liquidez e mobilidade), ao
acumulação” (PAULANI, 2016, p.529). capital produtivo, espraiando-se virtualmente
A restruturação regulatória e a sobre todas as relações de produção e também
ampliação do crédito, sobretudo no segundo sobre produção do espaço urbano. É claro que
mandato do governo Lula, impactam as essa imposição não acontece sem resistências,
estratégias das grandes empresas e possibilitam seja de outras frações do capital ou de classes
a entrada do capital estrangeiro no setor, ainda sociais que reclamam outras formas de
que não assuma o comando da acumulação apropriação deste espaço.
neste mercado (FIX, 2011, p. 136). Algumas Assim, é preciso compreender que a
dessas grandes empresas abrem seu capital na forma de inserção da economia brasileira neste
bolsa de valores13 e passam a sofrer constantes Regime dá a esse processo uma dinâmica e
pressões para se adequarem à lógica e à forma próprias no contato com a realidade
temporalidade dos mercados financeiros. Por brasileira e com os setores específicos de nossa
isso, partindo da noção de capital financeiro de economia. É por isso que outras lógicas15,
Hilferding (1985, p. 219) e das considerações de enraizadas em processos históricos na escala
Paiva (2007, p.140) sobre o capital financeiro nacional e local, permanecem centrais para a
imobiliário, sugerimos ser possível afirmar a compreensão do circuito imobiliário brasileiro
presença dessa última fração e, sobretudo, do caso estudado aqui. Tais
contemporaneamente no Brasil, sendo aspectos são cruciais para compreender a
caracterizada pela imbricação entre o capital “financeirização realmente existente no Brasil”
financeiro e o imobiliário, tendo nas inovações (KLINK E SOUZA, 2018, p.389). A articulação
financeiras de base imobiliária seu amálgama. política entre os três entes federativos
Não obstante o discurso de que a envolvidos no projeto, a centralidade da atuação
aproximação ao mercado de capitais ampliaria das grandes empreiteiras nacionais e a
os canais de crédito privado ao circuito participação do fundo público – seja por meio
imobiliário, é o fundo público14 que permanece dos recursos do tesouro municipal, dos terrenos
públicos localizados na área envolvidos no
13 Há hoje um número significativo de empresas com
capital aberto relacionadas ao circuito imobiliário: 16 exemplos importantes, e não são propriamente “receitas”
classificadas no segmento “Exploração de Imóveis”, 2 em estatais, são considerados fundos paraestatais e parafiscais.
“Intermediação Imobiliária”, 19 em “Edificações” e 151 O FGTS é um fundo gerado pela poupança compulsória dos
em “Fundos de Investimento Imobiliário”. Disponível em: trabalhadores, enquanto o SBPE é formado pela poupança
http://www.bmfbovespa.com.br/pt_br/produtos/listados- voluntária dos depositários.
a-vista-e-derivativos/renda variavel/acoes/classificacao-
15 É icônico o fato de Leo Pinheiro, dono OAS ser
setorial/. Acesso em: 29/05/2018.
“apontado como um dos mentores da operação urbana
14 Adotamos aqui uma noção ampla de fundo público. montada para o Porto Maravilha”. Disponível em: http://
Consideramos não apenas as receitas fiscais e tributárias oglobo.globo.com/brasil/cunha-investigado-por-
do Estado, mas também receitas e poupanças geradas suspeita-de-propina-em-financiamento-concedido-pela-
socialmente com destinação pública. O FGTS e SBPE são caixa-18312897. Acesso em: 29/05/2018.
35

arranjo econômico-financiero da OUCPM ou AGENTES DO CIRCUITO IMOBILIÁRIO E


dos recursos do FGTS – devem ser evidenciados AGENTES CONTRA HEGEMÔNICOS:
ao tratar do Porto Maravilha. NOVOS VENTOS?
É preciso observar que, apesar do
discurso de não oneração dos cofres públicos, as Se, por um lado, o processo de financeirização
análises das experiências recentes mostram que observado no mercado imobiliário brasileiro
as OUC têm sido viabilizadas pelo fundo não explica sozinho a OUCPM, por outro,
público e promovido sua apropriação privada, o acreditamos que observar os agentes do grande
que coloca em questão seu suposto potencial capital imobiliário, suas estratégias e
redistributivo. instrumentos utilizados no intento de valorizar
Por fim, cabe salientar que, ao tentar seus capitais invertidos no âmbito da OUCPM
compreender as distintas lógicas de reprodução ajudam a compreender o processo de
e atuação das diversas frações do capital, do “financeirização realmente existente no Brasil”.
poder público e da população residente e Há também outros agentes que buscam a
usuária na área portuária do Rio de Janeiro, é valorização de seus patrimônios imobiliários
preciso também que se atente para os conflitos com características bastante distintas do grande
preexistentes e aqueles surgidos no contexto da capital, aos quais chamamos de pequenos
implementação da Operação Urbana proprietários. Por fim, buscamos compreender
Consorciada Porto Maravilha. a relação entre esses agentes e os diversos
grupos sociais (classes sociais, empobrecidas ou
não, associações culturais, ocupações
organizadas de moradia, entre outros) que há
muito constroem e se apropriam desse espaço
como condição de sua reprodução.

Grande capital imobiliário

Entre os agentes do grande capital


imobiliário estão aqueles que desenvolveram
empreendimentos para os quais são necessários
a aquisição de CEPAC. Em sua grande maioria,
esses empreendimentos foram desenvolvidos
em parceria com o FIIPM por meio de permutas
envolvendo aqueles títulos financeiros e
terrenos (nos casos em que o Fundo exerceu o
direito de compra dos terrenos junto à CDURP).
Destacamos aqui as empresas
Odebrecht, OAS e Carioca Engenharia, que

Foto ao lado foi tirada em novembro de 2017, no


seminário ‘Oportunidades de Investimento em
Operações Urbanas Consorciadas’ realizado no
Aqwa Corporate. Empreendimento da Tishman
Spier instalado no terreno da antiga ocupação
Flor do asfalto. Acervo Neplac.
36 A O PE R AÇ ÃO UR BA NA C O N S ORCI A DA P O RTO MA R AV I L HA DE Z A NO S DEP O I S

participam de todas as fases da Operação, desde com subsidiarias de outras áreas. Além disso, foi
os estudos apresentados em 2006 até o contrato possível identificar o uso de títulos financeiro de
de PPP para obras e serviços da OUCPM base imobiliária (Certificados de Recebíveis
propriamente dita, além de possuírem Imobiliários) lastreados em seus
empreendimentos na região. Seus interesses e empreendimentos localizados na OUCPM
estratégias vão muito além da simples captação (PINHO, 2016, p. 189).
passiva da valorização fundiária em seus Outro agente identificado nesse grupo é
empreendimentos, ou da especulação pela a Tishman Speyer. Além de um especulador
compra (antes da valorização) e venda (depois estrutural, a atuação da Tishman parece
da valorização) de terrenos e empreendimentos. qualificá-la com um agente do capital financeiro
Essas empresas influenciam as decisões do imobiliário. A empresa nova-iorquina atua em
poder público e atuam ativamente na busca por vários países do mundo e está presente no Brasil
criar situações para promover a valorização de desde 1995. A estratégia de atuação da empresa
seus ativos na região, aplicando massivas está ancorada na captação de recursos por meio
quantidades de capital na área16. Por isso, de fundos de investimento imobiliários e parece
certamente podem ser qualificadas como seguir uma mesma receita em seus
“especuladores estruturais” nos termos de empreendimentos: a construção de grandes
Logan e Molocht (1987, p. 30). torres comerciais modernas e de alto padrão
A Odebrecht tem participação em projetadas por escritórios de arquitetos
quatro grandes empreendimentos que já renomados; a associação a outros capitais
consumiram CEPAC, todos no bairro Santo financeiros, sejam fundos de investimento ou
Cristo. Em todos eles o FIIPM tem participação, fundos de pensão nacionais e internacionais; e,
adquirindo parte do empreendimento em por fim, a pulverização posterior da propriedade
contrapartida à cessão de CEPAC e terreno, ou do empreendimento no mercado de capitais. A
apenas dos títulos. Tishman Speyer vem se configurando como
Ainda que Grupo Odebrecht esteja uma das principais incorporadoras na OUCPM
fortemente vinculado a investimentos e seus empreendimentos também contam com
produtivos, é possível afirmar que está a participação do FIIPM através de permutas
integrado ao processo de globalização por terrenos e CEPAC (até o momento seus
financeira. Seu capital é de origem nacional e empreendimentos são os que consumiram a
familiar, mas trata-se de uma grande maior quantidade de CEPAC) (PINHO, 2016, p.
multinacional presente em 27 países. A empresa 174).
atua também através de fundos de Seguindo este mesmo padrão, as
investimentos não só no Brasil (Fundo empresas GTIS Partners e Autonomy
Odebrecht Brasil, Odebrecht Africa Fund e Investimentos & Affiliates desenvolveram em
Odebrecht Latin Fund). Seu braço de parceria o Edifício Vista Guanabara. Criado em
investimentos imobiliários, a Odebrecht 2005, o GTIS Partners é um fundo de
Realizações Imobiliárias, tem 14,5% de seu investimentos fechado voltado para ativos
capital pertencente ao fundo de investimento imobiliários que administra aproximadamente
Gávea Investimentos, o que também acontece 3,2 bilhões de dólares em ativos. O fundo está
sediado em Nova York. A atuação do fundo no
16 É importante considerar essa articulação de interesses Brasil se dá de maneira semelhante à
de maneira mais ampla, para além dos limites da OUCPM. desenvolvida pela Tishman Speyer, com a
Sem ignorar as relações de natureza ilícita entre essas
captação de recursos no mercado financeiro
empresas e poder público, é preciso observar que elas
têm participação na realização e gestão de diversas outras estadunidense através da constituição de
obras e equipamentos públicos, tanto no âmbito municipal fundos de investimento. O modelo de negócios
quanto estadual.
37

desse fundo está “baseado no desenvolvimento São também “empresários ativos” a STX
de produtos imobiliários de alta rentabilidade e Desenvolvimento Imobiliário, de propriedade
na venda dos recebíveis a serem gerados pelos do empresário Marcelo Conde, cuja atuação tem
empreendimentos para fundos de private se focado no desenvolvimento dos chamados
equity” (PEREIRA, 2015, p. 244). Já a Autonomy condo-hotéis. Nesta modalidade, a
é o braço imobiliário no Brasil do fundo incorporadora realiza o empreendimento a ser
britânico de mesmo nome. O fundo brasileiro operado por uma marca hoteleira e suas
foi fundado em 2006, em associação com um ex- unidades autônomas podem ser negociadas
diretor da Tishman Speyer no Brasil (PINHO, junto a investidores (PINHO, 2016, p. 197). E,
2016, p. 195). por fim, a incorporadora JPL, do empresário
O Banco Fibra S.A também está presente José Portinari Leão, que se associou à
na OUCPM com um empreendimento de menor multinacional L’Oréal para a construção de uma
porte que ainda não se realizou. Trata-se de nova sede da empresa (PINHO, 2016, p. 200).
conglomerado de capitais de origem brasileira
pertencente ao Grupo Vicunha, vinculado à Pequenos proprietários
família Steinbruch (PINHO, 2016, p. 198).
Outras grandes empresas imobiliárias já Foi possível identificar ainda, a partir de
integradas ao circuito financeiro e que seriam trabalhos em campo e entrevistas, um grupo de
qualificadas como especuladores estruturais pequenos proprietários na área portuária que
chegaram a anunciar empreendimentos no possuem estratégias e estruturas distintas das
âmbito da OUCPM, mas restam dúvidas se tais empresas debatidas acima. Estes se dividem em
empreendimentos se concretizarão. É o caso da dois grupos.
Even Construtora e Incorporadora S.A., que O primeiro seria de pequenos
participaria da construção das Trump Towers especuladores e empresários. Em entrevista aos
em associação a outros fundos de investimento autores, o diretor comercial da imobiliária
internacionais (PINHO, 2016, p.201), e da Cyrela Sérgio Castro Imóveis, principal corretora
Brazil Realty S.A, que chegou a anunciar um imobiliária da região portuária, afirmou ter
acordo junto ao FIIPM para um grande intermediado a venda “de terceiros para
empreendimento no terreno Gasômetro17. terceiros” de cerca de 140 sobrados na região
Ambas são empreses de capital aberto. desde 2008, comprados por “pessoas normais,
Há ainda outros agentes, com menor investimentos de família”. Questionado se houve
poder de influência, mas ainda fortemente mudança de uso nesses imóveis, afirmou que
ligados ao mercado financeiro, que buscam se cerca de 70% foi negociada com investidores
colocar “no caminho do desenvolvimento” e que “compraram para guardar” ou que “estão
antecipar os movimentos do mercado, sendo segurando os imóveis fechados para poder
assim “empresários ativos” (LOGAN e alugar quando as coisas tiverem melhores”.
MOLOCHT, 1987, p. 30). É o caso da Global Ainda segundo o entrevistado, outra parte
Equity, que também atua financiando a desses imóveis foi negociada junto a pequenos
atividade de incorporação de empreendimentos empresários que passaram a desenvolver suas
por meio de fundos de investimentos para atividades na região (“temos também casos de
venda posterior de sua participação com a galeria de arte, bed and breakfast e pousada”).
valorização acionária, estratégia típica dos já Em algumas localidades há também
mencionados fundos de private equity. grande presença de pequenas manufaturas,
oficinas, distribuidoras e gráficas, bem como de
17 Disponível em: http://cyrela.globalri.com.br/admin/ pequenos comércios de varejo.
gestor/arquivos/pt/Cyrela_-_Comunicado_ao_Mercado_-_ No segundo grupo estão os “empresários
Gasometro.pdf. Acesso em: 10/05/2016
38 A O PE R AÇ ÃO UR BA NA C O N S ORCI A DA P O RTO MA R AV I L HA DE Z A NO S DEP O I S

acidentais”18 (LOGAN e MOLOCHT, 1987, p. 29), negligenciando a presença de uma série de


que se tornam rentistas passivamente por outros agentes que não aqueles tratados acima,
motivos fortuitos a sua vontade, como aqueles que possuem outras formas de construção e
que recebem imóveis por herança, por exemplo. apropriação desse espaço.
Segundo o mesmo entrevistado, dentre os O período tratado nesse trabalho é
negócios realizados havia uma “quantidade marcado por um processo contínuo de
enorme de imóveis em inventário, herança de segregação socioespacial ao qual resistem
família”. Este também foi o caso de alguns dos inúmeros grupos culturais, movimentos sociais,
proprietários contatados a partir de anúncios ocupações organizadas de moradia,
para venda e locação de imóveis coletados associações, sindicatos e tantos outros grupos
diretamente em campo. singulares da região. Segundo Santos et al.
(2018), trata-se de um processo de longa
Os Agentes da sociedade civil, grupo temporalidade de “branqueamento do
culturais e de r-existência território”, tendo no Porto Maravilha apenas seu
evento mais recente. Neste sentido, lutas
O discurso que afirma a necessidade de simbólicas pela atribuição de significados
“revitalização” da área portuária parte do marcam a região portuária desde os primórdios
pressuposto que a área estaria “morta”, de sua ocupação até hoje. Estes agentes buscam
formas de “r-existências”, como “reinvenções de
18 Tradução livre de Serendipitous entrepreneurs, no
sua forma de ser e existir no tecido social”
original (Logan e Molotch, 1987).

Fonte do mapa: Elaboração própria, com dados de campo e base da CTIC/IPP/PCRJ.


39

(SANTOS, et al., 2018), no conflito com as forças DINÂMICA IMOBILIÁRIA: DA PROMESSA


hegemônicas. Grande parte da população DE VENTO EM POPA À CALMARIA
residente e usuária já disputava esse lugar IMOBILIÁRIA
(disputa que se intensifica com a OUCPM) pelo
direito de preservar sua memória e habitar na As Operações Urbanas carregam
região. Nesse sentido, destacamos aqui os intrinsecamente o imperativo da valorização
grupos culturais de matriz africana e as fundiária da área em que é realizada, e este
ocupações de moradia. imperativo impõe a lógica da segregação, que
Situações de conflito emergem pela expulsa a população mais pobre pelo aumento
contraposição entre as distintas formas de dos preços, que é, grosso modo, a hipótese da
apropriação do espaço urbano dos diversos gentrificação. O “sucesso” da OUC depende do
agentes tratados aqui. As remoções ocorridas na interesse e adesão dos agentes do mercado
área portuária são exemplos dessas situações e imobiliário, que buscarão extrair rendas por
se impõem como necessárias quando o grande meio da valorização fundiária promovida pela
capital imobiliário passa a ter na região OUC. Sendo assim, uma pergunta se torna
portuária uma nova fronteira extração de renda essencial: essa valorização ocorreu no caso da
e busca impor sua racionalidade a esse espaço. OUCPM?
Quando o projeto da OUCPM é
Assim, o mapa anterior ‘Novos e Antigos anunciado pelo poder público municipal, o
Agentes da região potuária’ foi elaborado de mercado imobiliário carioca vivia o início de um
forma a espacializar os agentes e conflitos período de grande crescimento. Tomando a área
deflagrados pela operação, assim como pré- total licenciada na cidade como indicativo de
existências que produzem o quadro atual. Com sua dinâmica imobiliária, é possível afirmar que
esse exercício, é possível notar algumas este cenário não era observado em tal
espacialidades distintas. A localização dos magnitude desde o fim dos anos 1970. Contudo,
empreendimentos (em azul) ligados ao grande este cenário é revertido, sobretudo, a partir de
capital imobiliário – ainda que apenas 2015, como parece demonstrar também os
anunciados em um dado momento – se dá na demais dados analisados adiante.
área aterrada, onde se encontra a maior parte Nesse contexto, ainda tendo por base as
do estoque de terras originalmente públicas licenças concedidas, a Região Administrativa
envolvidos no arranjo financeiro da OUCPM Portuária19 não só reflete a queda nas
(PINHO, 2016, p. 164). Não por acaso, é também expectativas do mercado, como também passa a
onde se localizavam as ocupações removidas. perder importância relativa frente as demais
Na área de ocupação mais antiga, regiões da cidade nos últimos anos. A área total
identificada pela Área de Preservação do licenciada na R.A. Portuária representava 0,37%
Ambiente Cultural dos bairros de Saúde, (17.325 m²) do total da cidade em 2008, chega a
Gamboa e Santo Cristo e parte do bairro do atingir 9,66% (575.002 m²) em 2013 – quando a
Centro (APAC/SAGAS), estão localizados os maior parte dos grandes empreendimentos da
imóveis anunciados para venda e locação região obtiveram suas licenças – e cai
coletados em pesquisa de campo, identificando bruscamente em 2017, sendo responsável por
o grupo de pequenos proprietários e também os apenas 0,92% (22.159 m²) do total do Rio de
assentamentos populares, onde reside a maior Janeiro. Além disso, a proporção entre a área
parte da população, principalmente nos morros licenciada e a concessão de “habite-se” entre
do Pinto e da Providência. 2008 e 2016 na R. A. Portuária é muito inferior

19 Compreende os bairros Saúde, Gamboa, Santo Cristo


e Caju.
40 A O PE R AÇ ÃO UR BA NA C O N S ORCI A DA P O RTO MA R AV I L HA DE Z A NO S DEP O I S

ao total do Rio (19% e 66% respectivamente). foram negociados junto à CDURP em 2017,
Ainda que seja inevitável um lapso temporal como forma de superar o impasse entre a
entre a concessão da licença e do habite-se (o continuidade do contrato de PPP e a situação de
tempo de construção), além do fato de que as iliquidez declarada pelo FIIPM. Ou seja, o
licenças não se convertem necessariamente em Fundo declarava não ter recursos para cumprir
novos empreendimentos, esses dados reforçam com as obrigações por ele assumidas quando
a noção de uma queda nas expectativas do venceu o leilão de CEPAC. Mais uma vez, os
mercado imobiliário na cidade, e ainda maior recursos municipais arcam com os custos e os
na área portuária. Corroborando com essa riscos do projeto. Em maio de 2018, o FIIPM
afirmação, segundo o levantamento produzido declararia iliquidez pela terceira vez.
pelo Observatório das Metrópoles publicado Para melhor compreender a evolução da
pela Agencia Pública20, entre os 77 dinâmica imobiliária da área portuária,
empreendimentos privados licenciados na buscamos avaliar o movimento dos preços dos
região entre 2009 e 2017, 35 eram referentes a imóveis ao longo dos últimos anos. A análise
novas construções e destes apenas 7 estavam buscou munir-se de distintas fontes de dados
concluídos e em funcionamento em fevereiro de disponíveis. Assim, utilizamos dados do portal
2018. de anúncios “Zap Imóveis” e os “índices
A quantidade de CEPAC já negociadas FIPEZAP”, desenvolvido Fundação Instituto de
pelo FIIPM também indicam um movimento Pesquisas Econômicas (FIPE) em parceria com
similar. Segundo as demonstrações financeiras o portal21; dados referentes ao Imposto de
do Fundo, foram negociados apenas 14,3% dos
títulos entre dezembro de 2011 e dezembro de 21 Os dados para os bairros foram coletados diretamente
2017 (919.712 do total de 6.436.722 CEPACs). no site de anúncios (https://www.zapimoveis.com.br), que
dispõe de um gráfico com a série histórica do valor do m² e
Ocorre que grande parte desses títulos (340.676)
do tamanho da amostra. Já os do município foram obtidos
no site da FIPE (http://www.fipe.org.br/pt-br/indices/
20 http://observatoriodasmetropoles.net.br/wp/ fipezap/#indice-mensal) onde estão disponíveis apenas os
estagnacao-imobiliaria-e-crise-do-porto-maravilha/ preços.

Evolução da Áreas (m²) Total Licenciada - 1980 - 2016

Fonte: Secretaria Municipal de Urbanismo da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro – SMU/PCRJ


(Evolução da ocupação e uso do solo 2014 – 2015 – 2016, p. 5).
41

Transmissão de Bens Imóveis Inter-Vivos (ITBI) dos bairros em alguns casos. Nestes, os dados
fornecidos pelo Instituto Pereira Passos (IPP/ perdem poder explicativo em função do número
PCRJ); e dados coletados diretamente em reduzido de observações, dificultando
campo22. afirmações mais precisas estatisticamente na
Os índices FIPEZAP são provavelmente comparação da série histórica desses bairros,
a fonte de dados mais utilizadas neste tipo de ainda que seja possível observar certas
análise. No entanto, tais índices apresentam tendências. Por outro lado, entendemos que o
algumas limitações. A primeira delas, em geral próprio número de anúncios é uma variável
observada na literatura, é que o índice é importante na descrição da dinâmica
formado pelos preços que constam nos imobiliária.
anúncios, o que não nos permite afirmar que Já a base fornecida pelo IPP/PCRJ
sejam estes os preços efetivamente praticados. compila dados de natureza diversa dos
Além disso, é provável que os dados sofram de comentados acima. Ela fornece informações das
um viés relacionado ao uso destes portais, tanto transações de imóveis sobre as quais incidem o
em relação ao tipo de anunciante que têm ITBI (inter-vivos), cuja arrecadação é de
acesso a esta ferramenta quanto ao possível competência municipal. Sendo assim, não se
aumento de anúncios à medida em que o site trata dos preços anunciados, mas daqueles de
fica mais conhecido ao longo dos anos. Outra fato realizados, ou ao menos declarados e
limitação é o tamanho das amostras quando se chancelados oficialmente pela Prefeitura para
busca informações desagregadas para o nível fins de cobrança do imposto. As informações
estão agregadas por logradouro sem identificar
22 O trabalho de campo se concentrou entre outubro os imóveis individualmente. Constam nessa
de 2017 e maio de 2018. Posteriormente foram realizadas base informações para os bairros Centro,
novas visitas a algumas das localidades. Não foram
Gamboa, Saúde e Santo Cristo, classificadas
coletados dados no interior do Morro da Providência
(Gamboa) e do Morro do Pinto (Santo Cristo), em função
pelo ano de lançamento do imposto, no período
das precárias condições de segurança no período da
pesquisa.

Evolução da Áreas (m²) Total Licenciada - 2008 - 2017

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados da SMU/PCRJ.


42 A O PE R AÇ ÃO UR BA NA C O N S ORCI A DA P O RTO MA R AV I L HA DE Z A NO S DEP O I S

entre 2011 e 2018 (até o mês de julho)23. A base valores contratuais ligados ao merco
de dados foi ainda trabalhada para que fosse imobiliário, para que seja captada a variação
possível diferenciar quais logradouros do bairro real dos preços.
Centro se localizam dentro ou fora da área da No trabalho de campo, foram coletadas
OUC24. informações sobre imóveis com anúncios para
Para a análise das séries históricas, os venda e locação (nos bairros Saúde, Gamboa,
preços foram atualizados pelo Índice Geral de Santo Cristo e no trecho do Centro inserido nos
Preços do Mercado (IGP-M), indexador do nível limites da OUCPM), formando uma base de
dos preços mais utilizado para correção de dados que denominamos “ofertas imobiliárias”.
Entre as principais informações estavam o
23 As informações estão agregadas para cada endereço, o tipo de anúncio (locação ou venda),
logradouro e trazem o ano, o número de transações, o o tipo do imóvel (loja, sala, galpão,
valor médio das transações e o total da área construída apartamento) e o uso (comercial, residencial,
transacionado. Para se chegar ao preço médio do metro outro). Posteriormente, foram realizados
quadrado das transações, primeiro foi calculado a área
contatos via telefone com os anunciantes para
média transacionada (área total dividida pelo número
de transações) e então feita a razão do valor médio das
coleta de outras informações como preço,
transações sobre a área média transacionada. Após estas metragem, tempo vacância, se o anunciante era
operações foram calculadas as médias anuais para os o proprietário ou um intermediário e outras
bairros. informações declaradas pelo “entrevistado”.
24 Como não é possível identificar a localização exata Partindo do total de 147 contatos coletados foi
dos imóveis, foram considerados dentro da OUC os possível se chegar ao preço do metro quadrado
logradouros que estão totalmente ou apenas parcialmente para 88 imóveis25.
compreendidos na área da OUC
Além daqueles em que não foi possível o contato, há
também alguns casos de informações inconsistentes que 25 Além daqueles em que não foi possível o contato, há
impossibilitaram esse cálculo. também alguns casos de informações inconsistentes que
impossibilitaram esse cálculo

Preço do m² (média anual) - Venda Residencial (IGPM)

Fonte: Zap Imóveis; ITBI (IPP/PCRJ). Elaboração própria.


43

Imóveis residenciais 2010, quando a média da cidade já se mostrava


em alta e as obras da OUCPM já se iniciavam.
O gráfico abaixo mostra, mensalmente, Crescem até meados de 2015 e passam então a
o preço do metro quadrado dos imóveis cair de maneira mais acentuada que a média do
residenciais anunciados para venda segundo o Rio, embora a valorização percentual em todo
Zap Imóveis. A série disponibilizada até o período nos bairros da OUCPM seja bastante
momento compreende o período entre janeiro superior.
de 2008 e julho de 2018 (exceto para o Santo Além disso, as interrupções nas linhas
Cristo, cujos dados vão até maio de 2017). do gráfico acima se devem a meses em que não
há sequer uma observação (conforme o gráfico
Os três bairros contidos na área da OUC a seguir )26.
seguem, em alguma medida, a tendência É preciso estar atento ao fato de que os
observada no Rio de Janeiro e no Centro, mas bairros analisados têm estrutura e dimensões
com níveis de preços um pouco inferiores.
Aqueles bairros se mantêm sem crescimento 26 O número de anúncios do bairro Centro segue o eixo
significativo por um período maior, até o final de secundário (à direita) por ser muito maior que os demais.

FIPEZAP - Preço m² - Venda Residencial (IGPM)

FIPEZAP - Número de Anúncios

Fonte: Zap Imóveis. Elaboração própria.


44 A O PE R AÇ ÃO UR BA NA C O N S ORCI A DA P O RTO MA R AV I L HA DE Z A NO S DEP O I S

distintas que devem ser consideradas ao avaliar Os preços médios no bairro Gamboa
a evolução do número de anúncios e transações. ficam, em regra, entre os da Saúde e do Santo
Número de Domicílios particulares Cristo, mas sua variação real é a menor entre os
permanentes três bairros e ainda muito superior ao Centro e
Entre os principais bairros da área da ao Rio. O bairro registra uma variação negativa
OUCPM, a Saúde é o que apresenta os maiores de quase 30% entre 2008 e 2010, mas tem um
preços por metro quadrado e um grande crescimento vertiginoso entre 2010 e 2015. Por
crescimento percentual nos anos em que os isso, mesmo que em queda em todos anos
dados já estão consolidados (156,2%, entre 2009 seguintes, sua variação real fica em 95% entre
e 2017). O preço médio em 2018 volta a valores 2009 e 2017. Na média dos meses de 2018,
próximos de 2012. Este bairro possui um apresenta um preço pouco maior que o ano de
número significativamente menor de domicílios 2011. A Gamboa é o bairro que registra as
e também apresenta o menor número de maiores amostras entre os bairros contidos na
anúncios. Na grande maioria dos meses não há OUCPM. O número de meses sem nenhum
anúncios registrados na base de dados, mas ao anúncio é significativamente inferior aos
final de 2015 cresce o número de anúncios e o demais bairros. É possível observar que o
tamanho da amostra passa a variar entre 1 e 4 tamanho da amostra passa a crescer de maneira
anúncios. mais consistente a partir dos meses finais de
2013 e, apesar de um decréscimo em 2016, no
período final passa a variar em um patamar
Número de Domicílios particulares permanentes mais elevado, variando entre 9 e 17 anúncios.
Já o Santo Cristo apresenta, em geral, o
menor valor do metro quadrado entre os três
bairros, ao contrário de seu crescimento
percentual, o maior, considerando o período
entre 2009 e 2017. Os primeiros registros são de
agosto de 2009 e os preços na média anual têm
uma ligeira queda em 2010. A partir desse
Fonte: Censo IBGE 2000 e 2010 último ano os preços seguem uma tendência de
crescimento, mesmo que com uma queda

ITBI Preço do m² - Residencial (IGP-M)

Fonte: IPP. Elaboração própria.


45

significativa em 2016. A média em 2017 registra Imóveis e os valores das duas bases de dados
um crescimento expressivo (65%) em relação ao são relativamente próximos, o que não acontece
ano anterior, mas cabe lembrar que os dados nos demais bairros.
deste bairro vão apenas até maio de 2017, No entanto, todos os bairros apresentam
prejudicando uma melhor comparação com os uma tendência de queda no número de
demais bairros. O número de anúncios também transações ao longo do período (gráfico a
é pequeno para esse bairro e permanece até a seguir27), ainda que com um crescimento em
setembro de 2010 variando praticamente entre 1 2017, ao contrário do número de anúncios
e 2 observações. Os valores finais da série registrados pelo Zap Imóveis. O número de
parecem sugerir um aumento no tamanho transações no Centro também é bastante
dessa amostra, que atinge seu maior valor (12 superior, não apenas em valores absolutos, mas
anúncios) no último mês para qual se tem os também proporcionalmente28.
dados. Os preços encontrados no bairro Saúde
Passando à análise dos dados do ITBI são bem menores se comparados aos outros
para os imóveis residenciais, também dois bairros inteiramente compreendidos na
observamos que as médias dos preços do metro OUC, com a exceção do ano de 2017, quando
quadrado encontradas nos bairros Gamboa, atinge o maior valor de sua série histórica.
Saúde e Santo Cristo são significativamente
menores que os do Centro. Outra informação 27 Não é possível comparar número de transações de
2018 com outros anos, pois os dados do ano corrente
relevante é que os valores encontrados para os
captam apenas as transações até o mês de julho. Ainda
logradouros do Centro que estão fora da área da assim, optamos por mostrar esses dados, pois parecem
OUC são sempre superiores aos do mesmo sugerir uma queda no número de transações (considerando
bairro localizados dentro do perímetro da OUC. proporcionalmente o tempo transcorrido e o número de
Os valores observados para o Centro transações), o que só poderá ser confirmado posteriormente,
seguem uma tendência mais clara ao longo dos com os dados completos para 2018.
anos: um crescimento entre 2011 e 2015 com 28 A razão entre soma de todas as transações (2011-2018)
queda nos anos seguintes. Essa tendência é e o número de domicílios no Censo IBGE de 2010 são:
similar àquela apresentada pelos preços do Zap 18,64% no Centro, 4,02% na Saúde; 3,43% na Gamboa; e
4,50% no Santo Cristo.

ITBI Número de Transações - Residencial (IGP-M)

Fonte: IPP. Elaboração própria.


46 A O PE R AÇ ÃO UR BA NA C O N S ORCI A DA P O RTO MA R AV I L HA DE Z A NO S DEP O I S

Sem uma tendência clara ao longo da compreendidos na área da OUC e o único em


série, o preço médio do metro quadrado em que as transações em 2017 superam as do início
2017 é bastante superior ao padrão observado da série. Ainda assim, é possível afirmar que há
nos outros anos, e por isso o crescimento (230%) uma tendência de queda nessa variável.
é tão superior a todos os bairros, considerando o
período dos dados já consolidados (2011-2017). Imóveis comerciais
O número de transações tem patamares
significativamente inferiores aos demais e a Encontramos maior dificuldade para
tendência é de queda. análise dos dados do Zap Imóveis para os
Em regra, os maiores preços médios do imóveis comerciais. Não foram encontrados
metro quadrado para imóveis residências são dados para o Santo Cristo e para os demais
observados na Gamboa. Este bairro apresenta bairros analisados estão disponíveis apenas
uma tendência mais regular de crescimento dos para período entre janeiro de 2008 e novembro
preços ao longo dos anos, com uma variação de de 2016, enquanto para a cidade como um todo
57,3% entre 2011 e 2017. O número de a abrangência vai de janeiro de 2012 a julho de
transações na Gamboa também apresenta uma 201829, o que dificultou a bastante a análise.
tendência de queda, oscilando perto do seu Contudo, podemos apontar que os
valor inicial até o ano de 2015 e caem bairros da OUC apresentam níveis de preços
bruscamente em 2016. Mesmo com o pequeno bastante inferiores à média da cidade, sendo
crescimento em 2017 (12 transações), é essas diferenças ainda maior que as observadas
importante observar que este valor não para os imóveis residenciais.
representa nem mesmo a metade das Além disso, o crescimento nos bairros
transações de 2011.
29 Não foi possível obter os dados para os imóveis
Por sua vez, o Santo Cristo não
comerciais dos bairros da OUC da mesma forma utilizada
apresenta uma tendência muito clara quanto ao para os residenciais. Não estão disponíveis os gráficos
movimento dos preços, embora a variação entre por bairro que mostram tanto o preço quanto a amostra
2011 e 2017 registre um crescimento de 62,7%. quando se faz a busca por imóveis comerciais no site
Após um crescimento entre 2011 e 2014, os (www.zapimoveis.com.br). Estes dados foram encontrados
valores tem uma queda bastante significativa (apenas para Centro, Saúde e Gamboa) em uma extensão
desse site (http://www.zap.com.br/imoveis/fipe-zap/)
em 2015 e 2016 e atingem seu maior valor em
aparentemente desatualizada, onde estão disponíveis
2017. Este é o bairro que apresenta, em regra, o dados somente até a data mencionada. Para a cidade, os
maior número de transações entre aqueles índices da FIPE só estão disponíveis a partir de 2012.

ITBI - Preço m² - Residencial (IGP-M)

Fonte: IPP. Elaboração própria.


47

Saúde e Gamboa para os imóveis comerciais quando os preços começam a cair no município
(109,5% e 56,9%, respectivamente) é e nos bairros do Centro e Saúde, enquanto os
significativamente menor que os dos preços na Gamboa permanecem mais estáveis.
residenciais se compararmos o período entre Quanto às amostras de anúncios, os
2009-2016 (para os residenciais esses valores dados mostram um movimento muito
seriam 126% e 129%, respectivamente). discrepante de queda para todos os bairros que
Também é possível observar certa tendência de se obteve os dados entre o início de 2011 e
crescimento entre o início das séries e 2015, meados de 2014, que supomos ser causado por

FIPEZAP - Preço do m² -Venda Comercial (IGP-M)

Fonte: Zap Imóveis. Elaboração própria.

Preço do m² (média anual) – Venda Comercial (IGPM)

Fonte: Zap Imóveis; ITBI (IPP/PCRJ). Elaboração própria.


48 A O PE R AÇ ÃO UR BA NA C O N S ORCI A DA P O RTO MA R AV I L HA DE Z A NO S DEP O I S

algum erro na base de dados do site. Ainda residenciais. A tendência para o Centro
assim, é possível observar uma tendência de novamente é de crescimento dos preços no
crescimento nessa variável nos meses finais da início da série e queda ao final, mas se mantêm
série de dados, principalmente para o Centro e mais estáveis até 2016 e a queda nos últimos
Gamboa, que passam a variar em um patamar anos é menos significativa. Os preços nos
significativamente mais alto. logradouros do Centro localizados dentro área
Já a análise dos dados do ITBI não- da OUC também são inferiores aos localizados
residencial mostra tendências similares ao do fora esse limite. Por fim, ainda sobre o Centro, o
residencial com uma exceção clara e número de transações é muito superior às
importante: o movimento das variáveis residenciais e também apresentam uma
referentes ao bairro Santo Cristo a partir de tendência de queda.
2016. O bairro da Saúde apresenta uma tendência
Afora os últimos anos do Santo Cristo, os semelhante à do Centro, com crescimento entre
preços do Centro são bastante superiores aos 2011 e 2015, mas com queda em 2016, voltando
dos demais bairros, assim como observado nos a crescer em 2017. Ao longo de todo o período a

ITBI - Preço m² - Não Residencial (IGP-M)

ITBI Número de Transações - Não Residencial (IGP-M)

Fonte: IPP. Elaboração própria.


49

valorização foi de 53,9%. O número de O Santo Cristo apresenta características


transações, diferentemente do que acontece nos peculiares. Entre 2011 e 2015 o bairro
imóveis residenciais, é muito superior aos apresentou os menores preços médios quando
registrados tanto na Gamboa quanto no Santo comparado a Saúde e Gamboa. Ocorre que a
Cristo (com exceção dos anos de 2016 e 2017). partir de então o crescimento do preço é
No entanto, há uma tendência pertinente de exponencial, acompanhado pelo número de
queda, interrompida em 2016, mas com nova transações, devido a vendas realizadas nos
queda no ano seguinte30. novos empreendimentos lançados, como
Na Gamboa não é possível observar uma comentado mais adiante.
tendência inequívoca quanto aos preços. Estes O mapa abaixo possui a somatória
permanecem relativamente estáveis até 2017, espacial das ocorrências de transações
quando há uma queda acentuada. Por isso, se informadas pelo imposto sobre a transmissão de
observado o período entre 2011 e 2017, os bens imóveis do período de 2011 a 2018. Os
preços se desvalorizaram em 42,2%. O número logradouros representados em vermelho
de transações cresce significativamente entre possuem pelo menos uma ocorrência de bem
2011 e 2014, saindo de 5 transações para 23. residencial, enquanto em amarelo comerciais.
Entretanto caem bastante nos anos seguintes, Há, como se pode observar, logradouros com
atingindo apenas 4 em 2017. perfil misto em que os usos se sobrepõem.
É interessante notar que, ainda que seja
30 Cabe relembrar que os dados sobre o ITBI de 2018 vão possível uma diferença entre o valor pago na
apenas até o mês de julho.

Fonte: IPP. Elaboração própria.


50 A O PE R AÇ ÃO UR BA NA C O N S ORCI A DA P O RTO MA R AV I L HA DE Z A NO S DEP O I S

venda de um imóvel e o escriturado para Conselheiro Zacarias e Pedro Ernesto), mas não
cobrança do ITBI, chama atenção a diferença indicam um mesmo empreendimento.
entre os valores anunciados no Zap Imóveis e os Já os dados do Santo Cristo mostram a
registrados no ITBI para os bairros contidos na grande predominância de venda nos novos
OUCPM. Esses valores são muito mais próximos empreendimentos da Rua Equador em ambos
para o Centro, o que coloca em questão a os usos. Para os residenciais, as transações que
utilização dos anúncios do Zap Imóveis como vinham caindo acentuadamente ao longo da
proxy para medir a variação real dos preços em série, têm um expressivo crescimento em 2017.
menores escalas espaciais. Das 42 vendas realizadas nesse ano, 32 são
Outo ponto importante a ser ressaltado é referentes a unidades na Rua Equador, com um
que, se por um lado a grande variação dos valor médio do m² (R$ 4.327,42)
preços médios por logradouro do ITBI dificulta significativamente acima das outras 10
precisar a valorização dos preços nos bairros, transações (R$ 1.751,48), além de apresentarem
por outro, esta base de dados possibilita uma área média (23m²) excepcionalmente
identificar uma concentração espacial das inferior às demais. Tendo em vista essas
vendas, que parece estar correlacionada às características, deduzimos serem referentes aos
principais obras realizadas pela OUCPM, ao novos empreendimentos lançados nesse
trajeto do VLT e os novos empreendimentos. logradouro que possuem hotéis e torres
Para os imóveis residenciais na Saúde, comerciais (AC Hotel e Porto Atlântico)31, que
embora não se observe uma concentração em possivelmente tiveram vendas de unidades do
um mesmo logradouro e mesmo ano, o que tipo flat classificadas como residenciais na base
poderia indicar vendas em um mesmo de dados do IPP/PCRJ. É interessante notar que
empreendimento, destacam-se o Morro da entre 2011 e 2014 as transações estavam
Conceição e seu entorno para os residenciais concentradas nos logradouros no morro do
(rua do Jogo da Bola e Sacadura Cabral, ambas Pinto e seu entorno (ruas Dr. Piragibe, Nabuco
com 10 transações em todo período). Já para os de Freitas, Pedro Alves e Vidal de Negreiros). A
comerciais, inferimos que a maior parte das mesma situação é observada para os imóveis
transações estão concentradas em poucos comerciais. Das 285 transações de 2016, 282 são
empreendimentos próximos à Praça Mauá, referentes à rua Equador, com o preço médio de
notadamente nos logradouros: av. Venezuela (10 R$ 14.700,23 (o preço médio das demais é de R$
em 2011), av. Rodrigues Alves (64 em 2011; 14 2.600,00). Em 2017, são 124 transações com
em 2012; 17 em 2016; e 13 em 2017), travessa valor R$14.532,37 e apenas 2 transações não se
Coronel Julião (12 em 2011; 14 em 2012; 23 em referem a este logradouro e têm o preço médio
2014; 23 em 2016) e a av. Barão de Tefé (22 em abaixo de mil reais. E, por fim, as 3 transações
2018). À exceção da tv. Coronel Julião ocorridas em 2018 também são referentes
(possivelmente referentes a um edifício àqueles empreendimentos, o que elevou o preço
garagem), os outros logradouros são aqueles médio a R$ 14.700,00.
onde estão localizados grandes Entretanto, o destaque dado aos novos
empreendimentos que consumiram CEPAC e empreendimentos não parece refletir
onde se concentram as obras da OUCPM.
Na Gamboa são as ruas das imediações 31 Dois empreendimentos têm seus endereços registrados
da Praça da Harmonia e do trajeto do VLT na rua Equador nos “Relatórios trimestrais” da CDURP
próximo àquela praça que se destacam, tanto referentes às licenças para construção: AC Hotel Porto
nos residenciais como nos comerciais. Poucas Maravilha (“SPE STX”) e Porto Atlântico Business Square
ruas concentram a maior parte das transações (“Arrakis Empreen. Imob”), este conta com dois hotéis (Ibis
e Novotel). Disponível em: http://www.portomaravilha.
(ruas do Livramento, da Gamboa, do Proposito,
com.br/relatorios_trimestrais
51

exatamente um aquecimento desse mercado, já Ofertas imobiliárias


que os prédios construídos permanecem
praticamente todos vazios. Ainda que tenha A análise das “ofertas imobiliárias” coletadas em
sido noticiada a ida de algumas empresas para campo indica uma concentração das ofertas no
esses ocupar esses empreendimentos, suas bairro da Saúde nas proximidades do centro de
taxas de vacância ainda são altíssimas – caíram negócios da cidade e no bairro Gamboa, no
de 87,5% para 75,1% entre 2017 e julho 201832. entorno da Praça da Harmonia . Nessas
Ao descrever a dinâmica entre os localidades há também uma concentração das
bairros, o diretor comercial da imobiliária citado ofertas intermediada por imobiliárias, enquanto
anteriormente, afirmou que o “Santo Cristo não aquelas feitas pelo proprietário estão mais
tem procura de ninguém, a única procura que dispersas.
eu tenho são centenas de pessoas que O mapa abaixo é um produto do campo
compraram salas no Porto Atlântico e estão de 2017 e 2018. Localiza diferentes tipo de
arrependidíssimas porque estão pagando ofertantes de aluguel e venda de imóveis
condomínio” enquanto as salas permaneciam encontrados. Destaca-se a imobiliária Sérgio
vazias. Castro por sua recorrência, além da
concentração de anúncios em geral nos setores
32 Disponível em: https://oglobo.globo.com/economia/ A, I, J K e L.
retomada-do-mercado-imobiliario-do-rio-enfrenta-dois- Nota-se um gradiente de preços que
desafios-23032716. aumenta à medida que se aproxima do centro. O
mapa a seguir mostra também as principais vias

Fonte: Campo 2017 - 2018. Elaboração própria.


52 A O PE R AÇ ÃO UR BA NA C O N S ORCI A DA P O RTO MA R AV I L HA DE Z A NO S DEP O I S

onde ocorrem transações nos anos de 2017 e convertem em transações. Até o presente
2018 segundo o ITBI , sendo possível observar momento, é possível afirmar que a Operação
uma convergência com as ocorrências de Urbana não logrou sucesso em atrair novos
ofertas. empreendimentos residenciais (ou na mudança
É importante destacar o tempo de de uso dos imóveis já existentes), e aumentar a
vacância. Apenas 4 imóveis já haviam sido população residente em seus limites, um dos
locados ou vendidos no momento da ligação e objetivos declarados pelas autoridades
outros 4 estavam em uso, mas continuavam promotoras do projeto. Além disso, ainda que
sendo ofertados. Eram muitos os relatos de que registrado algum crescimento dos preços
o imóvel estava há vários anos vazio e a grande praticados, nos parece que a euforia dos agentes
maioria superava ao menos um ano de do mercado imobiliário ao anúncio do projeto
vacância, mesmo nas proximidades da Praça da deu lugar à “calmaria” do período atual.
Harmonia e das localidades próximas ao centro. Contudo, isso não significa dizer que alguns dos
Os dados analisados até aqui parecem agentes imobiliários que investiram seus
reforçar a noção de um movimento especulativo capitais nessa região não obtiveram ganhos,
nos anos iniciais da OUCPM com o aumento sobretudo quando se coloca em perspectiva as
dos valores anunciados, mas que não se diversas formas de apropriação do fundo
sustenta nos anos seguintes, já que não se público propiciada pela OUCPM.

R$ 7000

Fonte: IPP; Dados de Campo 2017 -2018. Elaboração própria.


53

ESPACIALIDADES NO PORTO envolvidos no arranjo financeiro da OUCPM,


MARAVILHA onde hoje se localizam alguns dos grandes
empreendimentos já produzidos.
A partir das análises realizadas, passamos a Essa é a espacialidade dos agentes
sugerir que é possível indicar algumas imobiliários que seguem a uma racionalidade
espacialidades que se distinguem no interior da mais próxima à lógica financeira, com
área da OUCPM, cujas raízes estão na própria estratégias, instrumentos e produtos típicos
formação histórica dessa área e parecem se dessa racionalidade. Aqueles agentes que
reforçar com a OUC. O próprio projeto da definimos como especuladores estruturais estão
Operação indica de alguma maneira essas ali localizados e, não por acaso, são
distinções quando prevê as áreas em que se beneficiados pelas obras de reestruturação
permite o uso dos CEPAC, por exemplo. desse espaço, cujo trajeto do VLT parece ser um
Assim, apontamos a existência de três exemplo bem ilustrativo. Em que pese a
espacialidades que aqui denominamos: do heterogeneidade e suas influências na
grande capital imobiliário, de pequenos elaboração do projeto, é possível argumentar
proprietários e popular. Claro, não se tratam de que a OUCPM está orientada à extração de
espaços herméticos e a existência de renda fundaria por esses agentes e ancorada no
“infiltrações” e sobreposições expõem o conflito fundo público que, de diversas maneiras,
e correlação de forças entre os diversos agentes custeia e assume a maior parte dos riscos do
que produzem e se apropriam destes espaços a projeto. Os conflitos e as remoções das
partir de racionalidades e práticas muito ocupações de moradia que estavam
distintas. Além disso, em todas elas se estabelecidas nessa área também mostram essa
encontram uma miríade de agentes
heterogêneos, mesmo dentro de uma mesma
espacialidade, cuja simplificação exposta aqui
tem objetivos meramente analíticos, mas que,
por isso mesmo, acreditamos ser útil para a
compreensão deste espaço e da própria
Operação Urbana.

Espacialidade do grande capital


imobiliário

Como se viu os agentes do grande


capital imobiliário estão localizados na área
aterrada, desde o píer Mauá ao trecho do bairro
do Caju (“ponta do Caju’) inserido na OUCPM.
O aterramento dessa área no início do século XX
teve por objetivo a construção do “novo porto
do Rio de Janeiro” (ABREU, 1987, p.63) e se
caracterizou pela concentração das atividades
portuárias e industriais, que passaram a ser
desativadas ao longo do tempo. Esse seu uso vai
se tornando obsoleto a partir da década de 1970,
deixando subutilizados os grandes lotes, galpões
e estabelecimentos fabris. É portanto nessa área Foto: Espacialidade do grande capital imobiliário:
que se concentram os grandes terrenos públicos
Av. Rio de Jeneiro. Acervo Neplac.
54 A O PE R AÇ ÃO UR BA NA C O N S ORCI A DA P O RTO MA R AV I L HA DE Z A NO S DEP O I S

intencionalidade. Morro da Providência, a “primeira favela”, e o


Por se tratar de uma área Morro do Pinto) e também no Morro da
predominantemente de uso não-residencial, Conceição. Sendo assim, sua fisionomia
característica que a OUCPM não conseguiu urbanística e fundiária se caracteriza por lotes
transformar até o momento, nela estão os pequenos e de uso residencial, onde se
principais logradouros onde ocorreram concentram as transações exclusivamente desse
transações de imóveis desse uso. uso segundo os dados do ITBI.
A apropriação desse espaço se dá sobre
Espacialidade popular outras lógicas que não as do grande capital
imobiliário e se destina à habitação e
De ocupação que remete ao período reprodução das classes sociais que ali vivem e
colonial, intensificada nos meados do século XX produzem essa espacialidade. Vários dos grupos
por uma população de trabalhadores, sobretudo culturais e associações de matriz africana, além
ligados à atividade portuária, a área mais ao de outras associações identificados nesse
centro dos limites da OUC claramente se trabalho, estão nesse território.
distingue da espacialidade comentada acima. Para além desses aspectos, que
É nesta área que se concentra a justificam a identificação dessa espacialidade
população residente nos bairros da OUCPM, como “popular”, este espaço é igualmente
cujo maior adensamento demográfico está no heterogêneo. A população residente na Saúde
interior dos bairros Gamboa e Santo Cristo, (sua maior parte no Morro da Conceição) possui
notadamente nos assentamentos populares (o um perfil de renda e cor ou raça que se

Foto: Espacionalidade popular: Rua Rêgo Foto: Espacionalidade pequenos proprietários:


Barros, próximo a entrada para da Pedra Lisa Sobrados da rua Alexandre Mackenzie no
e da Estação Central do Brasil. Acervo Neplac. Centro. Acervo Neplac.
55

diferencia dos outros dois bairros, onde estão diretamente pelos proprietários ou
localizadas as favelas . Segundo o Censo de intermediados por uma imobiliária, bem como
201033, na Gamboa e Santo Cristo, as propriedades dos “empresários acidentais”.
respectivamente, a população negra (pretos ou Os antigos sobrados marcam a arquitetura desse
pardos) representava 58% e 54% dos habitantes espaço, “a mercadoria típica” da região
e suas rendas médias era de R$ 543,50 e R$ portuária segundo o diretor da imobiliária
633,61, enquanto na Saúde essas variáveis eram citado anteriormente, e certamente estão
49% e R$ 757,90. localizados ai muitos dos 140 imóveis desse tipo
que ele afirma ter negociado junto a pequenos
Espacialidade dos pequenos proprietários investidores. Estes são os que usaram de
“investimentos familiares” para comprar
A espacialidade dos pequenos imóveis para especulação (“para guardar”!).
proprietários estaria situada entre as duas já Entretanto, a heterogeneidade se
comentadas, ao longo da antiga linha do mar. sobressai especialmente nessa espacialidade. A
Optamos por assim denominá-la, pois é nesta disputa entre diferentes agentes, usos e formas
faixa territorial que se localiza a maior parte dos de apropriação definem a natureza desse
anúncios de “ofertas imobiliárias”, sejam feitos espaço. Talvez por essa característica de limiar, é
também onde deflagram a maior grande parte
33 Pessoas de 10 anos ou mais de idade e valor do dos conflitos. Além dos pequenos proprietários,
rendimento nominal médio mensal das pessoas de 10 anos influem nessa espacialidade alguns projetos de
ou mais de idade

Fonte: IPP; Dados de Campo 2017 -2018. Elaboração própria.


56 A O PE R AÇ ÃO UR BA NA C O N S ORCI A DA P O RTO MA R AV I L HA DE Z A NO S DEP O I S

grandes empreendimentos, algumas ocupações, investidos na região, onde ocorreram as grandes


grupos de matriz africana e muitos daqueles obras e a remoção de grande parte das
que protagonizam o que Santos et al. (2018) ocupações. Nessa espacialidade, se observamos
chamam de “disputas de lugar”. a expulsão de uma parcela dos antigos
Também nesse sentido, os dados do ITBI moradores – talvez mais diretamente pelas
mostram que os logradouros sob essa remoções e menos via preços – ainda não
espacialidade se destacam na venda tanto de parece haver a chegada de uma nova classe
imóveis residenciais quanto não-residenciais. social de maior poder aquisitivo. Essa dinâmica
parece estar mais ligada à população usuária
CONSIDERAÇÕES FINAIS: O QUE VEM desse espaço e aos eventos culturais ali
VINDO NO VENTO? realizados.
Levando em conta as estratégias dos
Após a euforia dos anos iniciais do diversos agentes e seus desdobramentos,
projeto, os dados parecem indicar um momento maiores conclusões sobre a gentrificação,
de calmaria. A tendência geral de crescimento também nas espacialidades dos pequenos
dos anúncios em contrapartida à queda no proprietários e popular, devem ser possíveis
número de transações registradas no ITBI é um após a divulgação do Censo de 2020, quando
dos indicativos do momento atual, confirmado poderemos melhor examinar os perfis
pelos trabalhos em campo. Em muitas das áreas socioeconômicos dos habitantes antes e depois
visitadas foi possível verificar que os imóveis do OUCPM.
anunciados permanecem sem ocupação. Para além de avaliar a dinâmica
Embora a dinâmica entre os bairros se imobiliária, buscamos demonstrar nesse
diferencie, em regra, é possível afirmar que há trabalho que a análise da OUCPM evidencia
sim uma valorização em relação aos preços alguns aspectos da “financeirização realmente
praticados nos primeiros anos para os quais existente no Brasil”. O arranjo institucional e
temos os dados. Os baixos valores praticados financeiro adotado, a presença de agentes do
incialmente e a expectativa de crescimento da grande capital imobiliário cujas estratégias e
renda da terra potencial com a reestruturação instrumentos estão mais próximos a uma
urbana da região, ou seja, a formação um rent racionalidade financeira ajudam a compreender
gap (SMITH, 1996) elevado, fazem da área esse processo. Não obstante, observamos
portuária uma nova “fronteira” para a também que a valorização desse capital,
valorização do capital imobiliário. Acontece que embora se conecte ao circuito financeiro, tem
essa renda potencial não parece ter sido na apropriação do fundo público um
realizada, ao menos não na magnitude e tempo importante propulsor. Esta é uma característica
esperados. Mesmo nos bairros e momentos de fundamental da OUCPM (e porque não dizer da
maior valorização, o baixo número de financeirização do circuito imobiliário
transações, sobretudo residencial, parece brasileiro), já que é o fundo público que assume
indicar que a não realização da renda potencial a maior parte dos custos e dos riscos do projeto.
acaba por refrear o processo de gentrificação. Por fim, ao confrontar todas as análises ao
Ao que parece, estamos ante a um mapeamento da localização dos diferentes
momento de interstício. São evidentes as agentes presentes na área da OUCPM sugerimos
transformações na estrutura urbana em uma ser possível identificar três espacialidades
parcela desse território, em especial na distintas, mas não herméticas, que ajudam a
espacialidade que aqui identificamos como do compreender a construção e as transformações
grande capital imobiliário, promovida por uma ocorridas nesse espaço.
grande massa de recursos (e terras) oriundos do Como agenda de pesquisa, cabe dizer
fundo público e também de capitais privados
57

que análises aqui realizadas devem ser GALIZA, H. R. S. Reabilitação de áreas


aprofundadas, além de seguir acompanhado a centrais sem gentrificação. Tese de doutorado.
dinâmica imobiliária e a atuação dos agentes Rio de Janeiro: UFRJ/FAU, 2015.
presentes na OUCPM. HARVEY, David. A produção capitalista do
espaço. Tradução Carlos Szlak. São Paulo:
REFERÊNCIAS Annablume, 2005.
HILFERDING, R. O Capital financeiro. São
ABRAMO, P. A regulação urbana e o regime Paulo: Nova Cultural, 1985.
urbano: a estrutura urbana, sua JESSOP, B., BRENNER, N., & JONES, M. (set/
reprodutibilidade e o capital. Ensaios FEE, v. 16, dez de 2017). Teorizando as Relações
n. 2, 1995. Socioespaciais. Niterói: Universidade Federal
ABREU, Maurício de. A evolução urbana do Fluminense.
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IPLANRIO; Zahar, KLINK, J.; SOUZA, M. B. De uma economia
1987. política das escalas espaciais a um agenda
BROUDEHOUX, A.M. A reinvenção da zona renovada para os estudos críticos espaciais. In:
portuária do rio de janeiro: estigmatização BRANDÃO, C.A; FERNANDÉZ, V.R; RIBEIRO.
territorial, ressignificação simbólica e L.C.Q. (Org.). Escalas Espaciais,
repovoamento planejado no projeto porto Reescalonamentos e Estatalidades: lições e
maravilha. In: XVII Encontro Nacional da desafios para América Latina. 1ed.Rio de
Associação Nacional de Pós-Graduação e Janeiro: Carta Capital, 2018, v.1, p. 361-397.
Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional. LOGAN, John R.; MOLOTCH, Harvey L.
Anais. São Paulo, 2017. Urban Fortunes: The Political Economy of Place.
CASTRO, Cláudio. Entrevista [Julho, 2018]. Los Angeles: University of California Press, 1987.
Entrevistador: Thiago Araujo do Pinho. Rio de MARTINS, Renato Domingues Fialho. O
Janeiro, 2018. Arquivo Mp3. (125 min.) projeto Porto Maravilha e o rent gap de Neil
CHESNAIS, Francois. A teoria do regime de Smith. In: Rev. Bras. Estud. Urbanos Reg., V.17,
acumulação financeirizado: conteúdo, alcance e N.3, p.195-214, RECIFE, SET./DEZ. 2015 http://
interrogações. Campinas, Economia e rbeur.anpur.org.br/rbeur/article/view/5027
Sociedade, jan/jun 2002. MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2005.
COMPANHIA DE DESENVOLVIMENTO Reabilitação de centros urbanos. Brasília: 2005.
URBANO DA REGIÃO DO PORTO DO RIO DE OLIVEIRA, Fabricio Leal de. Competitividade
JANEIRO (CDURP). Contrato de Parceria e pragmatismo no Rio de Janeiro: a difusão de
Público-Privada – PPP. 2010. Disponível em: novas práticas de planejamento e gestão das
http://www.portomaravilha.com.br/ cidades na virada do século. Tese de doutorado.
contratos/#porto. Acesso em: 31/08/2015. Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de
FERNANDES, A. Decifra-me ou te Devoro: Regional, Universidade Federal do Rio de
Urbanismo Corporativo, Cidade-fragmento e Janeiro. Rio de Janeiro, 2003.
Dilemas da Prática do Urbanismo no Brasil. In: PAULANI, LEDA MARIA. Acumulação e
PAVIANI, A.; GONZALES, S. F. N.; rentismo: resgatando a teoria da renda de Marx
FRANCISCONI, J. G. (Org.). Planejamento e para pensar o capitalismo contemporâneo. Rev.
Urbanismo na atualidade brasileira. Brasília: Econ. Polit., São Paulo , v. 36, n. 3, p. 514-535,
Livre Expressão, 2013 Set. 2016 . Disponível em: http://www.scielo.
FIX, Mariana. Financeirização e br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-
transformações recentes no circuito imobiliário 31572016000300514&lng=en&nrm=iso. Acesso
no Brasil. Tese de doutorado. Campinas: IE/ em: 29/07/2015.
UNICAMP, 2011. PAIVA, Claudio Cesar. A Diáspora do capital
58 A O PE R AÇ ÃO UR BA NA C O N S ORCI A DA P O RTO MA R AV I L HA DE Z A NO S DEP O I S

imobiliário e sua dinâmica de valorização no Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional.


capitalismo contemporâneo: a Irracionalidade Anais. São Paulo, 2017.
em Processo. Tese de Doutorado. Campinas: SMITH, N. New urban frontier: gentrification
Instituto de Economia, Universidade Estadual and the revanchist city. London: Routledge,1996.
de Campinas, 2007. SMU – SECRETARIA MUNICIPAL DE
PEREIRA, A. L. S. Intervenções em centros URBANISMO, Prefeitura da Cidade do Rio de
urbanos e conflitos distributivos: modelos Janeiro. Evolução da Ocupação e Uso do Solo
regulatórios, circuitos de valorização e 2014 – 2015 – 2016. Rio de Janeiro, 2017.
estratégias discursivas. Tese de doutorado. São VAINER, Carlos B. Pátria, empresa e
Paulo: Faculdade de Direito da Universidade de mercadoria: notas sobre a estratégia discursiva
São Paulo, 2015. do planejamento estratégico urbano. In
PINHO, Thiago Araujo do. O capital ARANTES, O.; VAINER, C.; MARICATO, E.
financeiro imobiliário no Brasil: O caso da (Orgs.) A cidade do pensamento único.
Operação Urbana Consorciada Porto Petrópolis: Vozes. 2000.
Maravilha. Dissertação de Mestrado. Instituto WERNECK, Mariana. Porto Maravilha:
de Pesquisa e Planejamento Urbano de agentes, coalizões de poder e neoliberalização.
Regional, Universidade Federal do Rio de Dissertação de Mestrado. Instituto de Pesquisa e
Janeiro. Rio de Janeiro, 2016. Planejamento Urbano e Regional, Universidade
PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2016.
JANEIRO. Secretaria Municipal de Urbanismo.
Instituto Pereira Passos. Porto do Rio: plano de
recuperação e revitalização da região portuária
do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2001.
ROLNIK, R. Guerra dos Lugares: a
colonização da terra e da moradia na era das
finanças. São Paulo: Boitempo, 2015.
ROYER, Luciana de Oliveira. Financeirização
da política habitacional: Limites E Perspectivas.
Tese de doutorado. Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2009.
SANTOS, Renato Emerson dos ; SILVA, K. S. ;
RIBEIRO, L. P. ; SILVA, N. C. . Disputas de lugar e
a Pequena África no Centro do Rio de Janeiro:
Reação ou ação? Resistência ou r-existência e
protagonismo?. In: Natacha Rena; Daniel
Freitas; Ana Isabel Sá; Marcela Brandão. (Org.).
Seminário Internacional Urbanismo Biopolítico.
1ed.Belo Horizonte: Fluxos, 2018, v. 1, p. 464-
491.
SANTOS JUNIOR, O. A. S.; LACERDA, L. G.; Foto ao lado: Reflexo do Morro da
WERNECK, M. G. S.; RIBEIRO, B.C. Providência nos edifícios espelhados
Invisibilidade, heterogeneidade e construídos pela Odebrecht. Tirada
em 2016 em campo por Thiago Pinho.
vulnerabilidade: os cortiços na área portuária do
Rio de Janeiro. In: XVII Encontro Nacional da
Associação Nacional de Pós-Graduação e
59
60

CARTOGRAFIA CULTURAL: otimizar sua exploração pelo capital imobiliário.


Tais orientações e ações são notáveis nos
O CASO DO PORTO discursos dos gestores da operação, agentes
empresariais e da mídia local, quando se
MARAVILHA referem ao novo ethos do lugar, ou aos sujeitos-
tipo, consumidores desejados e esperados para
aquele espaço: os “cariocas”. Essa expressão é
Fernanda Sánchez, ressignificada de forma seletiva e classista. A
palavra “carioca” tem servido de referência para
Amanda Wanis, designar os cidadãos que não frequentavam
Ana Carolina Machado e aquela área, notoriamente moradores de bairros
com alto IDH. Além dos “cariocas” busca-se
Antônio Júnior Pimentel atrair para a área turistas nacionais e
internacionais, conforme as diversas manchetes
INTRODUÇÃO do jornal1 de maior circulação no país: a
“retomada” da área pelos “cariocas”, “agora a
Na última década observamos uma série região portuária está aberta aos ‘cariocas’” ou
de transformações na região portuária do Rio de então “o ‘carioca’ redescobre a região portuária”,
Janeiro que buscaram imprimir profundas ignorando a existência dos grupos sociais
mudanças na estrutura urbana local, advindas originários, como se eles não fossem também
da Operação Urbana Consorciada que teve cariocas.
início em 2009. Tais transformações têm uma A partir das narrativas contemporâneas
dimensão simbólico-cultural que, para alguns hegemônicas sobre a região portuária do Rio de
autores (Broudehoux e Monteiro, 2017; Wanis et Janeiro percebemos a reconstrução de sua
tal, 2019), constitui a alavanca necessária para imagem, baseada em modelos internacionais,
os negócios imobiliários. Ainda acerca desta de reconversão de áreas industriais e portuárias
dimensão, avaliamos que a cultura efetivamente obsoletas em áreas atraentes para o capital
compôs ferramenta legitimadora da própria internacional, utilizando como recurso a
operação urbana, por meio da construção de cultura, sobretudo aquela relacionada com
uma nova imagem-marca do território, o que atividades dos chamados distritos criativos.
nos permite entender esta operação urbana Nesse processo de renovação da região
consorciada (OUC) “Porto Maravilha” como um supostamente vazia, observamos a construção
instrumento urbanístico que combina a de um parque linear, como “vitrine” do projeto,
exploração imobiliária com a renovação a Orla Prefeito Luiz Paulo Conde. A partir dela,
urbano-cultural (Wanis, Sánchez, 2018). as narrativas de área renovada com atrativos
Assim, percebemos que a OUC incentiva culturais são apropriadas pelas empresas do
determinadas ações culturais que buscam setor imobiliário, como fator de agregação de
moldar e impor uma nova cultura local, a partir valor de seus empreendimentos na região. Tanto
de uma gestão oligopolista mercantil. Esse essa apropriação pelas empresas como a
processo, portanto, utiliza-se da construção de transformação da Orla em Boulevard Olímpico,
um discurso prévio sobre o território, chancelam e solidificam no senso comum a
apontando-o como espaço “vazio”, o que, homogeneização da região, sob as bases dos
portanto, exclui as manifestações culturais modelos internacionais de renovações urbano-
pretéritas. Essa estratégia possibilitaria
reconfigurar uma nova economia simbólico- 1 Consultar informação em matéria publicada em 7
cultural da região, de modo a atrair um público mai. 2016 no jornal O Globo. Disponível em: <https://
consumidor desejável para o território, além de oglobo.globo.com/rio/boulevardda-orla-conde-aberto-ao-
publico-19255055>, acessado em: 08 mar. 2017
61

culturais word-class. gestores da operação, empresários e grandes


No entanto, quando observamos os grupos midiáticos) quanto os conflitos gerados
processos por meio de uma lente mais na sobreposição do projeto às dinâmicas
aproximada do território, buscamos traçar o culturais já consolidadas.
caminho inverso ao dos idealizadores da OUC,
Neste momento buscamos trabalhar
mapeando as práticas conseguimos
com a cartografia crítica, no exercício de adaptá-
desnaturalizar aquilo que o projeto dominante
la às peculiaridades da análise dos processos
apresenta, e podemos desvelar rupturas,
culturais. Nosso objetivo primeiro era evidenciar
conflitos e disputas nele existentes. Tais práticas
a seletividade, por parte dos gestores do território,
enquadram e desafiam o projeto, este idealizado
na reconstrução simbólica da região, no entanto,
dentro de escritórios de urbanistas e
o desdobramento da cartografia nos trouxe
empresários.
dimensões mais complexas do que o binarismo
É nesse processo de busca de
entre aquelas ações desejadas pela OUC e
contrapontos, de superação de imagens
aquelas não desejadas. O processo cartográfico
pasteurizadas e dominantes do território, que a
ampliou o olhar sobre o território e evidenciou
cartografia crítica se torna instrumento
também as múltiplas relações, associações e
fundamental. Ela permite a comparação e
rupturas impressas pelos atores culturais locais.
contraposição de dados, de processos a
princípio desconexos. Possibilita desvelar Sendo assim, partimos do entendimento
relações muito mais complexas do que aquelas de cidade como um espaço experimental
que costumam ser apontadas nos projetos de (RIBEIRO, 2013), no qual a espontaneidade e o
renovação urbana. Assim, neste artigo ordenamento se entrecruzam de forma dinâmica,
buscamos evidenciar a importância da de modo que produzimos uma cartografia “em
cartografia crítica aplicada à análise da processo” na qual seu processo de construção
territorialização de ações e políticas culturais A se torna, ele mesmo, mais uma ferramenta de
cartografia crítica constitui, assim, instrumento análises somada à própria elaboração dos mapas.
revelador das disputas de hegemonia na Nesse sentido, a proposta da cartografia
implementação de projetos urbanos. Para testar é o exercício de desnaturalizar as representações
o alcance da cartografia nas avaliações das oficiais do projeto dominante no território,
mudanças urbano-culturais, utilizamos como dando ênfase às dinâmicas culturais prévias
caso a OUC Porto Maravilha. à OUC. A partir delas, conhecer e reconhecer
lugares vividos e construídos (SANTOS, 1996),
nesse momento de transformação física e
CARTOGRAFIA CULTURAL: simbólica da região, mapeando os atores que
NOTAS DE MÉTODO participam dessa reconstrução e das próprias
mudanças de sentido da cultura. Assim, podemos
observar, em diferentes escalas, a imposição
Ao longo do trabalho de campo, realizado de modelos internacionais gentrificadores em
entre os anos 2015 e 2016 na região portuária do meio às resistências culturais, em uma mescla de
Rio de Janeiro, para o reconhecimento da área, discursos, práticas, teorias e ações no território.
observamos indícios de que tanto a aplicação das
ações e políticas culturais quanto a distribuição Na cartografia crítica voltada às dinâmicas
de recursos estavam concentradas e localizadas culturais foi estratégico levantar dados tanto
na região “vitrine” do projeto. A partir de então das ações e instalações que estão contempladas
buscamos localizar territorialmente tanto as no projeto, quanto daquelas que não estão
atuações, relações e formações dos grupos compreendidas pelas políticas implementadas
dominantes (apoiadas/incentivadas pelos na região, desvelando assim os agentes
62 C ARTO G R A F IA C ULT UR A L

culturais convidados e os insurgentes. Para o institucionalização; 5) Institutos, companhias


mapeamento das ações que seriam incluídas profissionais e produtoras/ grupos culturais
na cartografia, foi de fundamental importância já institucionalizados, que estabelecem com
o contato aproximado com os atores culturais o poder público e privado outras relações de
locais no formato de entrevistas. A partir destas, negociação; 6) Empreendimentos criativos
reconhecemos aquelas atividades ou ações – empresa ou coletivo que caracteriza sua
que não estavam incluídas no projeto original atividade fim como pertencente ao setor criativo,
da OUC. As entrevistas contaram com uma conforme as definições do ideário de Economia
dinâmica que nos permitiu, inclusive, perceber Criativa; 7) Circuitos – criados a partir de pontos
as teias e rupturas entre os atores culturais, a de memória ou história da herança africana.
partir da indicação de um ator por outro. No
Para cada um dos itens, buscamos
momento da entrevista tais indicações puderam
responder às seguintes questões: 1) Localização
contribuir com esse reconhecimento, e novas
geográfica; 2) Região de inscrição: Boulevard
relações foram identificadas.
Olímpico, Cais do Valongo, Largo São Francisco
Desse modo, nosso mapeamento teve da Prainha, Pedra do Sal, Praça da Harmonia,
como marco temporal atividades existentes Praça dos Estivadores; 3)Categoria: Aquário; Arte
até o ano 2016. Para eventos, foram mapeados Urbana; Artes Digitais; Artes Visuais; Artesanato;
aqueles realizados em 2016, ano de grandes Biblioteca; Carnaval; Capoeira; Centro Cultural;
transformações em razão dos Jogos Olímpicos. Cinema e Vídeo; Circo; Comunicação; Cultura
Os meios utilizados para o levantamento dessas Popular; Dança; Design e Arquitetura; Espaço
informações derivaram desde monitoramento para Eventos; Festa; Gastronomia; Moda;
de mídias de grande circulação, materiais de Multicultural; Música; Patrimônio Imaterial;
divulgação do Governo Municipal, como a Patrimônio Material; Publicidade; Teatro; 4)Se
Revista Porto Maravilha, o site da gestora do há relação com a Cultura Negra; 5) Se há relação
projeto (CDURP), agendas culturais da região, com os Jogos Olímpicos; 6) Ano de início/
folders, material publicitário, até entrevistas com restauro/realização;7) Tipo de financiamento:
grupos culturais minoritários e associações de público, privado, público-privado ou pessoal;
moradores, pesquisas em redes sociais e blogs. 8) Valor de financiamento; 9) Política cultural
relacionada com as ações; 10) Realização:
Para facilitar a análise dos dados
Comunidade Local, Poder Público, Economia
categorizamos as atividades da seguinte
Criativa; 11)Relação com a CDURP: excluído,
forma: 1) equipamentos culturais – edificações
incluído, parcialmente incluído;
fixas ou itinerantes nas quais se desenvolve
um conjunto de atividades permanentes. Neste sentido, o processo de construção
Desse item, destacamos as chamadas iscas de mapas nos permitiu comparar as formas
culturais2. 2) Eventos – atividades efêmeras dominantes de construir, gerir e representar o
realizadas em espaços públicos, entre as quais espaço, mas também nos possibilitou “pensar
incluem-se feiras, festas, mostras, intervenções com diagramas”, como propõe Becker (2009)
urbanas etc.; 3) Restaurações – podendo ser de ou identificar os sujeitos e as relações nas
edificações públicas ou privadas, destacando- novas “gramáticas territoriais” (SÁNCHEZ,
se a atividade fim realizada na edificação, por GUTERMAN, 2016) da renovação urbano-
vezes referidas como patrimônio material cultural.
e imaterial; 4) Associações, manifestações
É importante, no entanto, perceber que a
e grupos livres/organização de pessoas
cultura, sobretudo em seu sentido antropológico
com fins culturais, porém sem processos de
mais amplo – entendida como conjuntos de
signos e atribuições simbólicas do fazer humano
2 segundo acepção de Arantes, 2009.
63

que são expressão da vida individual, mas (2008) chamaria de “cultura do efêmero”, na
sobretudo coletiva – possui natureza dinâmica, qual a “experiência identitária e de cidadania
mutante. E é fundamental acrescentar essa foi deslocada para as relações de consumo”
dimensão à construção da cartografia crítica. (BARROS, 2007).
Esses processos de mutação, contudo, possuem
São exatamente essas tensões que buscamos
ritmos diferentes e até percepções distintas,
reconhecer e revelar no processo de construção
na ordem do visível. Essas mudanças podem
da cartografia, e que ficam evidentes nos
ocorrer por diversos motivos; dentre eles, são as
exercícios da pesquisa, transformados em
“trocas culturais”, que demandam nossa atenção.
produtos, conforme veremos no item que se
Essas “trocas” ocorrem de forma mais segue.
expressiva com a intensificação do próprio
processo de globalização, que acaba por HEGEMONIA FICCIONAL:
tensionar a relação mercado/ tradição. Aqui A CARTOGRAFIA CULTURAL E O
entram em jogo as negociações político- AFLORAMENTO DE DISPUTAS E
simbólicas de permanência e transformação que, CONFLITOS NA REGIÃO PORTUÁRIA
por vezes, atendem às pressões internacionais DO RIO DE JANEIRO
regidas por um mercado internacional de Frente ao forte marketing urbano e
bens culturais. Essas pressões acabam por dar às políticas urbano-culturais desenvolvidas
força aos agentes que promovem o consumo, na região para construir a imagem da cultura
como definidor dessa produção cultural. Nesse hegemônica, observamos, por meio do processo
movimento, observamos que as transformações cartográfico, com a sequência de mapas 1 que
culturais ocorrerem de forma violenta, acelerada a dinâmica cultural da região sofreu alterações.
pela própria dinâmica do capital. Aqui o Os pontos no mapa não nos dão a totalidade
entendimento da cultura deixa de ser de “troca” das ações realizadas no território, mas nos
e passar a ser de dominação cultural. permitem observar, de forma mais ampla, as
Os mercados simbólicos ganham força e transformações na dinâmica da área. Assim,
se reinventam, tornando-se cada vez mais fluidos dividimos os pontos em categorias que nos
em todas as sociedades. Este processo acaba possibilitam observar aquelas ações incentivadas
por interferir diretamente na permanência da pelo projeto Porto Maravilha – como as ações
memória dos lugares que passam por pressões, ligadas às iscas culturais, os empreendimentos
de forma desproporcional, para mudar e se criativos, as restaurações em edifícios de
adequarem ao novo ritmo de vida imposto, o interesse históricos e os eventos de promoção da
que configura uma nova dinâmica cultural que área “vitrine” do projeto – e aquelas ações que
ali se estabelece. Observamos também que as incidem no território a despeito do incentivo
políticas culturais são instrumentos por meio público-privado, em geral relacionadas às
dos quais os sujeitos buscam reestabelecer categorias: equipamentos culturais; associações,
um equilíbrio entre as tensões que envolvem manifestações e grupos; institutos, companhias
tradição e memória do lugar e uma cultura profissionais e produtoras. O mapa traz ainda
desterritorializada, num contexto de construção como base cartográfica as regiões que possuem
de múltiplas identidades, de diversidade cultural. os Certificados de Potencial Adicional de
No entanto, o que observamos são tais definições Construção e a porcentagem de sua vinculação
serem pautadas pelas dinâmicas dos mercados aos terrenos, apontando os edifícios que já foram
internacionais, pelo consumo acelerado, pela construídos na área com a utilização do CEPAC3.
imposição da renovação, pela transformação da
3 Certificados de Potencial Adicional de Construção,
experiência cultural em experiência do lazer e títulos financeiros utilizados como possibilidade de
entretenimento (BARROS, 2007), o que Canclini pagamento de outorga no contexto da OUC.
64 C ARTO G R A F IA C ULT UR A L
65

Na análise do mapa é evidente o organizados ou geridos pela comunidade local


aumento da quantidade de ações culturais ou possuem algum vínculo com o território.
no território, principalmente na primeira Diferentemente das categorias incentivadas pelo
região de implementação do projeto, mais GPU, que possuem como perfil uma atividade
focalmente concentradas na região “vitrine” sem relação territorial.
ou ainda luminosa do projeto (Boulevard
Observamos ainda que os eventos
Olímpico), segundo o conceito de Milton
levantados, geralmente incentivados pela
Santos4. Observamos que não apenas as ações
CDURP ou apenas divulgados pela Revista Porto
incentivadas pelo GPU ganham corpo, mas
Cultural, materializam a noção de área luminosa
também outras que surgiriam a partir de 2009.
do projeto, com maior concentração na Praça
Ações não vinculadas diretamente ao projeto,
Mauá e no Boulevard Olímpico, como podemos
mas estimuladas pela iluminação da área. Houve
perceber no mapa, a partir da mancha de calor
um aumento tanto de equipamentos culturais
pela incidência de eventos. Percebemos que
quanto de institutos, companhias profissionais
espaços públicos, que guardam relação histórica
e produtoras, assim como de associações,
com ações culturais locais, como Largo São
manifestações e grupos livres. Estes se encontram
Francisco da Prainha, Praça da Harmonia e Pedra
espalhados pelo território; muitos deles são

4 Territórios que acumulam densidades técnicas e


informacionais e, portanto, se tornam mais aptos a atrair
Mapas 1a, 1b e 1c - Mudanças na dinâmica
atividades econômicas, capitais, tecnologia e organização. cultural da região por período. Autores: Amanda
(SANTOS,1996) Wanis, Ana Carolina Machado, Daniel Brandão.
Base CEPACs: Thiago Pinho e Paula Cardoso.
66 C ARTO G R A F IA C ULT UR A L
67

Mapa 2 - Investimentos culturais da região. reforçando o discurso de região criativa, que


Autores: Amanda Wanis, Ana Carolina Machado seria alavancado em 2014 pela criação do Distrito
e Daniel Brandão. Base CEPACs: Thiago Pinho e Criativo do Porto.
Puala Cardoso.
Observamos também que os
empreendimentos relacionados a essa classe se
concentram na área de implementação inicial do
do Sal, têm sido disputados no que diz respeito projeto, mas ainda alguns outros pontos podem
ao perfil de eventos ali realizados. Ao mesmo ser encontrados próximos ao Santo Cristo, região
tempo em que são locus de ações de cultura e com maior percentual de CEPACs vinculados.
construção popular, vinculadas à cultura negra, Já os projetos de restauração vinculados ao
têm sido utilizados por agentes vinculados ao GPU também estão concentrados na área da
mercado de entretenimento, como é o caso primeira fase de implementação, reforçando o
da festa Moo, de música eletrônica, realizada entendimento de cultura como estratégia para
normalmente na Zona Sul da cidade, que teve alavancar o próprio GPU.
sua edição em 2016 na Praça da Harmonia.
Quando analisamos o mapa 25, que
A análise mais relevante com relação a estabelece a relação entre a territorialidade e os
esse aumento de ações culturais no território, recursos empregados, conseguimos evidenciar
recai sobre a multiplicação daquelas vinculadas ainda mais a concentração das ações na região
aos empreendimentos criativos. Observamos luminosa do projeto, apontando para uma
que este não era o perfil da área mas, a partir hegemonia daquela cultura, alavancada pela
de 2009, houve um aumento significativo nessa coalizão gestora do território. A área luminosa
direção. Atribuímos tal processo à política de representa, no entanto, pequena fração do
atração da chamada “classe criativa”; também total da área do GPU, e é a que recebe maior
vale ressaltar o processo pelo qual o Morro da quantidade de recursos. Esta área também é a
Conceição passou nos últimos anos. responsável por transformar a imagem simbólica
Sob a influência de modelos da região como um todo e também impulsionar
internacionais de atração de artistas para áreas o aumento do valor da terra na área, visto que as
industriais e com baixos aluguéis, somado a ações incentivadas também se apresentam no
um processo semelhante ocorrido no bairro de rastro dos terrenos que possuem os CEPACs.
Santa Teresa, no Rio de Janeiro, observamos um
aumento significativo de ateliês de artes plásticas 5 Para a construção desse mapa, usamos os valores
na região como um todo, principalmente no divulgados pelos órgãos municipais e pelo relatório UNIRIO/
Morro da Conceição. Com a referência do bairro UFRJ (PINTO; NASRA; SANTOS, 2016). Percebemos que há
várias fontes de recursos em diferentes escalas; no entanto,
de Santa Teresa, conhecido por ser um lugar
algumas delas nos dão a confiabilidade necessária para
boêmio da cidade, que abriga um grande número estabelecer a análise. Assim, trabalhamos cinco fontes de
de artistas, o Morro da Conceição, após o anúncio recursos: os 3% dos recursos arrecadados pela venda dos
do GPU, começou a ser cobiçado por diversos CEPACs, com destinação à preservação do patrimônio, em
artistas, atraídos também pelos aluguéis mais sua forma direta, aqui “apelidado” de (1) 3% dos CEPACs, os
baratos. Nesse movimento, observamos vários editais; (2) Porto Maravilha Cultural; (3) Pró-APac Sagas, com
recursos também oriundos dos 3% dos CEPACs, mas que
eventos de difusão dessa imagem de boemia,
merecem uma distinção por sua forma de seleção via edital;
incentivados pela coalizão gestora do território; (4) os convênios diretos, estabelecidos entre a prefeitura e
dentre eles, o projeto Mauá, semelhante ao que a FRM; (5) outros recursos, que podem ser oriundos de leis
ocorre no bairro de Santa Teresa, com o Santa de incentivo à cultura; em sua maioria, com financiamento
Teresa de Portas Abertas. Tal evento atraiu do BNDES, como é o caso da Fábrica de Espetáculos do
diversos artistas a abrirem seus ateliês na região, Theatro Municipal, ou ainda via capital aberto, como
aquele estabelecido na criação da S.A., que gere o AquaRio.
68 C ARTO G R A F IA C ULT UR A L

Observamos ainda que não há do Sal e Praça da Harmonia.


investimentos significativos nas áreas históricas
Quando observamos a distribuição de
marcadas pela permanência ou alta circulação
recursos na categoria que se refere ao patrimônio
das camadas populares, essas áreas são
notamos nitidamente o entendimento de valor
principalmente nos arredores do Morro da
patrimonial como recurso para a turistificação da
Providência, próximos a Central do Brasil e Rua
cidade, que apresenta uma história dominante
Barão de São Felix. Já o Morro da Conceição,
forjada, a qual não contempla a cultura baseada
como mencionamos anteriormente, ganhou
nas raízes africanas, principalmente quando
um status de área boêmia, artística, e trata-se
comparamos a criação dos circuitos sobre a
do morro da região que concentra parte desses
história do desembarque de africanos na região
investimentos.
– veja-se mapa 4. Esses bens patrimoniais
A partir da concentração de recursos, fica mais contemplados com recursos de restauração estão
evidente a disputa por hegemonia naqueles próximos à área da primeira fase do projeto e,
espaços públicos reconhecidos por suas não raro, abrigam alguma atividade da chamada
ativações culturais, como o Largo São Francisco “classe criativa”. Ainda sobre os investimentos,
da Prainha, em maior medida, seguido da Pedra observamos que os valores empenhados não
representam a proporcionalidade da vivência
cultural no território, uma vez que 40% dos
Mapa 3 – Apagamento da Herança Africana. equipamentos levantados na pesquisa têm
Autores: Amanda Wanis, Ana Carolina Machado vínculo com a cultura negra, mas estes receberam
e Daniel Brandão. Base CEPACs: Thiago Pinho e apenas 0,55% do total de recursos empregados
Paula Cardoso.
69

na categoria6. A proporção entre a cultura encontram mais no interior da área, na parte


praticada no território e a alocação de recursos do tecido histórico, e as atividades incentivadas
só se mantém quando este é proveniente do pela coalizão gestora, que se concentram na
edital Porto Maravilha Cultural, disputado junto parte aterrada; o segundo ponto é a nítida
à CDURP pelo movimento dos atores culturais observação do processo de apagamento da
locais. cultura negra ou, como diz (SANTOS et tal.,
2018), o embranquecimento do território em sua
Desse modo, a cartografia nos aponta
vertente cultural. Observamos nessa sequência
para mudanças nas dinâmicas culturais, que
que a quantidade de pontos do segundo mapa
diferem do discurso de “vazios” propagado
acaba por deixar opacas as atividades ligadas à
pela coalizão gestora, tais mudanças têm gerado
cultura negra, impactando na “re-existência”
impactos nos processos de permanência da
(SANTOS et tal., 2018) da memória do lugar
memória do lugar, disputado pelos grupos
enquanto “Pequena África”.
ligados à cultura negra reconhecidos na região
como partes da “Pequena África”7, processo Tal reconhecimento deste lugar de
ignorado pelo projeto inicial. Observamos que memória8 é uma luta do movimento negro
ao longo dos 10 anos de implementação do que, segundo Santos et tal. (2018), realizava
projeto alguns elementos da chamada “cultura articulações de grupos ligados à cultura e
negra” foram incluídos no processo, no entanto, história negra9, desde antes do projeto Porto
associados a uma narrativa que invisibilizava Maravilha, enfatizando o valor arqueológico
a amplitude da existência negra na região, da região. Estes grupos, mediante a resistência,
portanto, descolada de seu caráter político e de aproveitam as brechas para sua valorização e
disputa pela manutenção de tradições enraizadas reconhecimento, para dar visibilidade à sua
no território. Esses processos são detalhados na historiografia, buscando combater as ameaças
pesquisa do Professor Renato Emerson Santos, de seu apagamento, como, por exemplo, com a
com resultados expostos no capítulo X deste “descoberta” do Cais do Valongo.
livro.
Podemos observar assim algumas
No primeiro mapa da sequência de conquistas, entendidas por nós como fissuras
mapas 3, podemos observar todas as ações impressas no projeto inicial. Dentre elas,
elencadas pela pesquisa que se relacionam com destacamos o movimento em torno do Cais do
a cultura negra. Em seguida, acrescentamos Valongo, descoberto no que teria sido apenas uma
todas as outras atividades, que como vimos grande avenida ou, ainda, o Circuito da Herança
na sequência de mapas 1, tiveram grande Africana, ainda que essas ações não representem
impulso com a implementação do projeto ou uma valorização dos atores da presença negra no
simplesmente com a “iluminação” da área. território (SANTOS et tal., 2018). Algumas destas
ações surgem estereotipadas e acabam por ser
Com a sobreposição das atividades estimuladas
eleitas vitrines do projeto urbano-cultural. Mas
pela coalizão gestora do espaço e as atividades
ligadas à cultura negra, historicamente
8 Conceito de Pierre Norá que relaciona a memória
enraizadas naquele território, destacamos dois
à uma construção dinâmica que relaciona passados e
pontos: o primeiro deles se trata das atividades presentes na sua representação simbólica. NORÁ 1993;
relacionadas à cultura negra, as quais se SANTOS et Tal 2018.

9 A resistência e a afirmação do território como lugar


6 Fonte WANIS, 2018. de memória estão ligadas a cultura de ancestralidade,
passagem do legado histórico e cultural, que se faz
7 O movimento negro vem reivindicando, há muito
presente nas relações do povo negro, observado ao longo
tempo, o reconhecimento da Zona Portuária por sua
da construção da pesquisa.
história de matriz africana, de forma a dar visibilidade
à cultura afro-brasileira fortemente presente na área.
70 C ARTO G R A F IA C ULT UR A L
71

Mapa 4 – Conflitos culturais da região. Autores: WALTER, 1993). A ação tem caráter público e
Amanda Wanis, Ana Carolina Machado e Daniel reivindica o direito à cultura, à autonomia na
Brandão. Base CEPACs: Thiago Pinho e Paula produção cultural e à cidade, em seu aspecto
Cardoso. simbólico-cultural. O conflito encontra-se em
uma microescala, possui dinâmica difusa e,
vale destacar que as discussões em torno do cais portanto, ultrapassa a noção de “guerra cultural”,
abrem grande brecha para a implementação de discutida por Eagleton (2011), em uma percepção
inúmeras outras ações, que deram visibilidade mais complexa do que aquela apresentada pelo
às disputas no que se refere à hegemonia autor, apenas dois blocos representando: Cultura
daquele lugar, que nunca poderá ser resumido a e cultura, ou cultura mercantil e cultura popular.
um espaço para o lazer e entretenimento de uma
Desse modo, identificamos quatro
world class.
categorias de atores em disputas: os grupos
Na sequência, no mapa 4, observamos tradicionais, no que se refere ao tempo de
diversos outros pontos de disputas em torno do permanência no território; os novos grupos
Centro Cultural José Bonifácio (CCJB), Instituto territorializados, criados no movimento de
Pretos Novos (IPN), a Pedra do Sal e o quilombo renovação da área portuária anunciada ainda no
urbano de mesmo nome. Observamos também governo Cesar Maia (2000) e que estabelecem
que as disputas relacionadas à cultura negra relações com o lugar, seja pela natureza da
representam a maior parte, cerca de 80% dos atividade, seja pela atuação cultural em questão;
conflitos mapeados. Podemos perceber ainda os grupos cosmopolitas, geralmente vinculados
outros conflitos relacionados à cessão do espaço à chamada “classe criativa” e a coalizão de atores
às atividades culturais anteriores ao projeto. Para que atua na gestão do território, sejam eles da
reconhecer tais conflitos e disputas culturais gestão pública ou das parcerias público-privadas
existentes no território buscamos entender o consorciadas.
espaço público conforme aponta Mitchell (1995),
Tais grupos disputam desde os espaços
espaço onde há representação do material, mas
de atuação, recursos físicos e financeiros, até
também onde ocorrem as interações sociais e
ideias, políticas e representações culturais. Os
as atividades políticas, onde a própria cultura
conflitos se tornam múltiplos e complexos a
se constrói. Destacamos a dupla importância
partir do momento em que há a associação e
do espaço público: ele é produto e produtor
dissociações desses grupos entre si, frente a
das relações de inclusão, encontro de ações
conflitos de diversas naturezas. Tal fluidez de
políticas e liberdade de expressão, onde grupos
associações e desassociações é entendida como
marginalizados podem lutar por seus direitos,
estratégia de sobrevivência dos grupos culturais.
mas também onde se manifestam as disputas
simbólicas e políticas. Esses conflitos culturais, para além das
necessidades de cada grupo, quando analisados
Entendemos, portanto, conflito cultural
em seu conjunto, evidenciam a urgência de ações
como ação coletiva que interessa, engaja e
que promovam a possibilidade de igualdade
mobiliza atores culturais, grupos ou instituições,
de atuação dos diversos atores culturais. Essas
estimulados pela necessidade de sobreviver
ações em geral são demandadas à gestão local,
frente a novos grupos cultuais cosmopolitas e
mas acabam sendo também produzidas e
ou extra-locais, atraídos pelas transformações
estimuladas pela necessidade de articulação e
no território, num processo de re-existência.
formação de rede entre os grupos culturais.
Assim, tais ações podem ser ou não planejadas
e organizadas, e nem sempre promovem Observamos que os conflitos têm base
consciência acerca de desdobramentos e territorial, vinculados aos edifícios e espaços
significados possíveis do conflito (VAINER e públicos que ocupam, mas também têm
72 C ARTO G R A F IA C ULT UR A L

clivagens conceituais, que definem e defendem que o único ponto originalmente incluído
diferentes entendimentos de cultura, a ser no projeto relacionado a uma historicidade
inserida no projeto original. Esta última está negra é o que propõe transformar o Morro da
vinculada à construção dos lugares de memória Providência em grande complexo turístico a
e, consequentemente, ao reconhecimento céu aberto. Não apenas esse ponto, mas todos
da cultura negra na região. Os conflitos os outros relacionados aos conflitos da cultura
estão concentrados na região contígua ao negra foram abordados pela coalizão gestora do
Boulevard Olímpico, grande vitrine simbólica projeto enquanto lugares históricos congelados,
do projeto. Não coincidentemente, tanto o ou seja, apartados de sua constituição de
Boulevard quanto a concentração de conflitos memória social, cultural e política, entendida
acompanham as áreas de CEPACs estabelecidas aqui como complexa teia simbólica, neste
pela lei municipal. Conforme já observamos, a processo de disputas de lugar.
seletividade nas políticas culturais é empregada
É nessa reflexão territorial, mas também
no sentido de fortalecer a nova imagem síntese
simbólica, que evidenciamos por um lado
(Sánchez, 2010) perseguida pela coalizão gestora
que a cultura é um poderoso instrumento de
do território, que, por sua vez, é utilizada como
ressignificação dos lugares, nos processos
recurso para agregar valor à área, em favor das
de renovações urbano-culturais. Espaços
empresas beneficiadas pelos CEPACs.
emblemáticos – como a Praça Mauá, a Pedra do
A repressão empregada pelos agentes Sal ou o Cais do Valongo – são hoje transformados
de segurança pública, responsáveis por manter em cenários urbanos a serem consumidos. Mas
a imagem do projeto e os conflitos relacionados por outro lado, essas transformações se somam
com cessão do uso de edifícios ou espaços aos diversos processos de re-existências dos
públicos, em sua maioria, estão diretamente atores culturais, que acabam por tornar mais
vinculados ao caminho luminoso do projeto; complexas as disputas simbólicas pela atribuição
por conseguinte, no caminho das áreas mais de sentidos a pontos ou recortes espaciais
valorizadas para o mercado imobiliário, áreas de constitutivos de repertórios identitários.
CEPACs. Esses conflitos são aqueles gerados na
Nestes processos de disputas podemos
utilização da Praça Mauá por eventos que não
observar estratégias de articulações políticas
se alinham à gestão oligopolista da cultura, por
insurgentes, com destaque para os modos com
exemplo, às ações de despejo do Armazém da
os quais os grupos e atores culturais se articulam
Utopia e da AACTED; este último transferido da
e se desarticulam. O reconhecimento dessas
Av. Venezuela para a Rua Pereira Reis, conforme
relações nos permite ultrapassar a dualidade
mostra o mapa. A partir da leitura desse
entre sociedade civil e governo e tende a pontuar
mapa, fica evidente a transformação da região
amplas relações, conexões e redes estabelecidas
“luminosa” em área world class, que se alinha
no e pelo território, e percebê-lo como múltiplo
com as demandas do mercado imobiliário e alija
e conflitual por natureza. Ao mesmo tempo em
simbólica ou materialmente os atores culturais
que essa característica múltipla e conflitual é
locais. Nesse processo, vale destacar que a
utilizada como argumento para uma política
permanência do Armazém da Utopia também
cultural ordenadora e planificadora, que
representa uma fissura na proposta inicial do
exclui grande parte dos grupos livres, em geral
projeto, ainda que em 2019 nova ameaça esteja
desvinculados da lógica da economia criativa e da
em curso mobilizada também pelas novas
indústria cultural, ela também permite a criação
disputas simbólicas instauradas no país, a partir
de políticas culturais insurgentes que impactam
das eleições presidenciais de 2018.
diretamente aquela lógica ordenadora.
Quanto aos conflitos relacionados
Não se trata, no entanto, de um processo
especificamente à cultura negra, vale destacar
73

linear, de causa e consequência, mas de um o valor agregado dos imóveis ali projetados.
processo rizomático10, desvelado pelo processo
cartográfico, no qual as próprias linhas de fuga, por CONCLUSÃO
vezes impressas no território pelos atores sociais Com o processo cartográfico observamos
locais, também influenciam no reconhecimento que a área portuária é um lugar que, neste
das distintas formas de seletividade que vêm momento pós-olímpico, está bem definido
sendo operadas. Entendemos esse processo pelo conflito: sobre o que foi seu passado ou a
como um complexo de vetores que ora tende a natureza de sua “herança”, “sobre o que deveria
percorrer um caminho, ora outro, em direção à ser seu desenvolvimento presente, sobre o que
construção urbano-cultural da área. poderá ser seu futuro” (SANTOS et tal., 2018).
Assim, observamos que as disputas Esses conflitos, que abordamos aqui como
travadas por recursos e reconhecimento conflitos urbano-culturais, têm naturezas tanto
simbólico dos fazeres culturais por vezes territoriais quanto simbólicas. Nesse sentido
impulsionam disputas entre os próprios grupos constatamos que os conflitos também podem
culturais, uma vez que há uma administração ser entendidos como fissuras e brechas no tecido
equivocada dos recursos diretos11 destinados à homogeneizador proposto pelo projeto, num
cultura, sem transparência ou política pública processo de expropriação da sua positividade
acessível, que fomente todas as ações do indomável à homogeneização (PELBART, 2015).
território. Na acepção de Foucault, e em suas releituras
por Guatarri e Negri (apud PELBART, 2015), “a
No entanto, observamos também que
própria vitalidade social, quando dominada
essas disputas que por vezes unem, e por outras
pelos poderes que a vampirizam, aparece
separam os grupos frente às ações dominantes,
subitamente como uma potência que já estava lá
estabelecem um jogo fluido de associações e
desde sempre”, a potência da vida, a biopotência.
dissociações. Esse jogo acaba por ser um campo
fértil para tais políticas culturais insurgentes, Retomando Mitchell, entender o espaço público
que, do processo de tecer teias de relações e como lugar de liberdade de expressão e de conflito
parcerias como estratégia de sobrevivência, é reconhecer a dinâmica de transformação do
acaba por fortalecer a contestação ou crítica à território; reconhecer que novos vetores de fuga
operação urbana que vem sendo implementada. são dados pelo conflito e que, portanto, podem
vir a construir nova rota. Abafar o conflito e
Portanto, apesar dos esforços da coalizão
impor uma cultura hegemônica é matar o caráter
gestora da área portuária em construir uma
biopotente da própria cultura.
imagem sólida de uma área cosmopolita,
de consumo cultural para uma world class, Se por um lado podemos olhar os conflitos como
podemos observar, por meio da cartografia, que uma reação à tentativa de apagamento da cultura
essa hegemonia é uma grande ficção, forjada e local, em sua maioria relacionada à cultura
utilizada como mais um recurso para aumentar negra, visando uma dominação cultural imposta
pelo projeto, no sentido das guerras culturais de
10 Conceito de Deleuze e Guattari: estrutura
Eagleton; por outro, podemos observá-los como
horizontalizada de modo que uma parte pode e deve brechas e fissuras que tornam latente o caráter
se conectar a qualquer outra. Estrutura múltipla, sem biopotente dos grupos culturais em ação, que
distinção de dimensão superior, estabelecida de maneira por vezes conseguiram imprimir mudanças no
simples. Ipsis Litteris, “rizoma não cessaria de conectar projeto inicial, o que nos permite perceber as
cadeias semióticas, organizações de poder, ocorrências
possibilidades de uma política cultural outra,
que remetem às artes, às ciências, às lutas sociais”.
como resposta à primeira, imposta pela coalizão
11 Segundo relatório trimestral de atividades da CDURP gestora do território.
2017, R$ 3 milhões oriundos dos 3% dos CEPACs destinados
à cultura foram destinados à pagamentos diversos
74 C ARTO G R A F IA C ULT UR A L

Entendemos como uma política cidade do pensamento único: desmanchando


insurgente essa outra política cultural: imbuída de consensos. Petrópolis: Vozes, 2009.
seus dispositivos de subjetivação (BARBALHO,
_____. Berlin e Barcelona: duas imagens
2016) eclode em processos de disputas e foge ao
estratégicas. São Paulo: Annablume, 2012.
processo planificador com vetores de fuga. Essa
política acaba por modificar o regime urbano BARBALHO, Alexandre. Política Cultural e
visível, ainda que de forma desproporcional frente desentendimento. Fortaleza: IBDCult, 2016.
àquelas dominantes. Desse modo, entendemos BARROS, José Marcio. Cultura, mudança
que, a reboque do modelo de renovação urbano- e transformação: a diversidade cultural e os
cultural implementado na região portuária do desafios de desenvolvimento e inclusão. In:
Rio de Janeiro, surgem políticas de outra natureza Anais do III ENECULT, 2007, Salvador.
nas próprias interações urbanas, nos conflitos
e disputas e, portanto, podemos considerá-las BAUDRILLARD, Benjamin. Para uma crítica
políticas culturais urbanas insurgentes. Sua da economia política do signo:
insurgência acaba por trazer à cena e tornar mídia, mundialização cultural e poder.
visíveis manifestações e movimentos culturais Lisboa: Edições 70, 1995.
existentes no território, bem anteriores à operação
BECKER, Howard. Falando da sociedade:
urbana Porto Maravilha, ou mesmo aqueles que
ensaios sobre as diferentes maneiras de representar
eclodem a partir de seu desenvolvimento.
o social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009.
A cartografia foi o instrumento pelo qual 308p.
pudemos desvelar não apenas a disputa pelo
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de
espaço, mas também pela representação
Janeiro: Editora Bertrand, 1989.
simbólica do lugar. Desvelamos, com auxílio
de mapas, os processos de transformação do _____. A distinção: crítica social do julgamento.
território e suas dinâmicas na construção de Porto Alegre:
redes e ações insurgentes. Desvelamos uma Zouk, 2007.
sociabilidade emergente (PELBART, 2015), que,
de uma forma complexa, busca redesenhar BRUNNER, Joé Joaquín. Politicas culturales
a lógica da cidade. Assim, ao mesmo tempo para la democracia. In: Material de discución.
em que os conflitos culturais apontam para Programa Flacso-Santiago del Chile, n. 69, 1985.
uma urgência de ações capazes de promover CÂMARA, Breno Pimentel. Conflitos Urbanos
a igualdade de tratamento dos diversos atores no Rio: mapear a desigualdade, colecionar lutas.
culturais por parte do poder público, acabam In: OLIVEIRA, Fabrício Leal de et. al. (Org.).
também sendo vetores da construção de outras Planejamento e conflitos Urbanos: experiências
políticas culturais e dinâmica territorial. Ao de luta. Rio de Janeiro, Letra Capital, 2016.
mesmo tempo em que os projetos de renovação
CANCLINI, Nestor García. Culturas Híbridas.
urbano-culturais buscam construir e manter
São Paulo: EDUSP, 2008.
sua hegemonia, o caráter biopotente dos
movimentos culturais imprime linhas de força, CDURP. In: Relatório Trimestral de Atividades,
ações insurgentes e contra-hegemônicas no Jan./mar. 2017.
território. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio
de Janeiro: Contraponto, 1997.
REFERÊNCIAS EAGLETON, Terry. A ideia de cultura. São
ARANTES, Otília. Uma estratégia fatal: a Paulo: Editora UNESP, 2011.
cultura nas novas gestões urbanas. In: ARANTES, GUATTARI, Félix; DELEUZE, Gilles.
O.; VAINER, C.; MARICATO, E. (Org.). 5ª ed. A
75

Introdução Rizoma. In: Mil Platôs: capitalismo SÁNCHEZ, Fernanda; TORRES RIBEIRO, Ana
e esquizofrenia, v.1. Rio de Janeiro: Editora 34, Clara. City Marketing: a nova face da gestão das
1995. cidades no final do século. In: RIBEIRO, A. C.
T. Por uma sociologia do presente: ação, técnica
_____. 1933: Micropoítica e segmentaridade.
e espaço, 1ª. ed. [Prêmio ANPOCS 1996]. Rio de
In: Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, v.3.
Janeiro: Letra Capital, 2013, p.29-46.
Rio de Janeiro: Editora 34, 1996.
SANTOS, Milton. A natureza do espaço:
MITCHELL, Don. The End of Public Space?
técnica e tempo, razão e emoção, 4ª ed. São Paulo:
People’s Park, Definitions of the Public, and
editora da universidade de São Paulo, 1996.
Democracy. In: Anais do American Geographers,
v.85, n.1, 1995. SANTOS, Renato Emerson dos. SILVA, K. S.;
RIBEIRO, L. P. ; SILVA, N. C. Disputas de lugar
PELBART, Peter Pal. Políticas da vida,
e a Pequena África no Centro do Rio de Janeiro:
produção do comum e a vida em jogo... In: Saúde
Reação ou ação? Resistência ou r-existência
Soc. São Paulo, v. 24, supl.1, p. 19-26, 2015.
e protagonismo?. In: Natacha Rena; Daniel
PINHO, Thiago Araujo do. O capital Freitas; Ana Isabel Sá; Marcela Brandão. (Org.).
financeiro imobiliário no Brasil: O caso da Seminário Internacional Urbanismo Biopolítico.
Operação Urbana Consorciada Porto Maravilha. 1ed.Belo Horizonte: Fluxos, 2018, v. 1, p. 464-491.
Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS
Graduação em PlanejamentoUrbano e Regional
GERAIS, Grupo de pesquisa interdisciplinar.
da Universidade Federal do Rio do Janeiro. IPUR/
Cartografias emergentes: a distribuição territorial
UFRJ, Rio de Janeiro, 2015, 238p.
da produção cultural. Relatório CNPq, 2016,
PINTO, João R. L.; NASRA, Lucas; SANTOS, Belo Horizonte.
Suzy. Quem são os donos da educação e da
VAINER, Carlos; WALTER, Carlos. Reflexõs
cultura no Rio de Janeiro? Os contratos entre
Iniciais sobre Noção de Conflito Ambiental. Rio
a Fundação Roberto Marinho e a Prefeitura.
de Janeiro: IBASE, IGEO/UFF, IPPUR/UFRJ, 1993.
(Relatório de pesquisa). Rio de Janeiro: 2016.
WANIS, Amanda e SÁNCHEZ, Fernanda. A
RIBEIRO, Ana Clara Torres; BARRETO, Amélia
renovação “urbano-cultural” no projeto Porto
Rosa Sá; LOURENÇO, Alice; COSTA, Laura Maul
Maravilha: matrizes mobilizadas na reinvenção
de Carvalho; AMARAL, Luis César Peruci do.
da área. In: CASTRO, F.; RODRIGUES, L.; ROCHA,
Por uma cartografia da ação: pequeno ensaio
R. (Orgs) Políticas culturais para as cidades (Vol.
de método. In: Por uma sociologia do presente.
II). Salvador: EDUFBA, 2018. p. 35 - 56.
Ação, técnica e espaço, v. 4. Rio de Janeiro: Carta
Capital, 2013. WANIS, Amanda. Renovação-urbano-cultural
“Porto Maravilha”: a seletividade das políticas
RIBEIRO, Ana Clara Torres. Cartografia da
urbana e cultural na reconstrução simbólica
ação social: região latino-americana e novo
da região portuária do Rio de Janeiro. (Tese de
desenvolvimento urbano. In: Por uma sociologia
doutorado). Programa de Pós-Graduação em
do presente. Ação, técnica e espaço, v. 5 Rio de
Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal
Janeiro: Carta Capital, 2013.
Fluminense, Niterói, 2018.
SÁNCHEZ, Fernanda; GUTERMAN, Bruna.
WILLIAMS, Raymond. Cultura. Rio de Janeiro:
Disputas simbólicas na cidade Maravilhosa:
Terra e Paz, 1992.
atores, instrumentos e gramática territorial. In:
VAINER, Carlos et. al. (Org.). Os megaeventos e YÚDICE, George. A Conveniência da Cultura.
a Cidade. Perspectivas Críticas. Rio de Janeiro: Usos da cultura na era global. Belo Horizonte:
Letra Capital, 2016. Editora UFMG, 2013.
76

MAPA-INTERVENÇÃO: sobre o território e as territorialidades. Assim,


o exercício cartográfico em tela, mais do que
PERTURBANDO um mapa-representação (na sua concepção
de produto acabado), propõe-se como um
NARRATIVAS OFICIAIS DA “mapa-intervenção” – de caráter relacional e
articulador de recortes, estratos e segmentos
CIDADE de processos complexos, capazes de configurar
feições espaciais dos “territórios usados” e de
novas territorialidades –, no sentido de disputar
Rosane Rebeca Santos sentidos e desencantar consensos, enfrentando
representações dominantes da cidade, uma vez
Marcus César Martins da Cruz “Maravilhosa” e, agora também, “Olímpica”,
Grasiele Márcia Magri Grossi que “renderiza” sua imagem em novos cartões
postais que redefinem o que “não deve ser visto”
e modelam a sua paisagem urbana com “o que e
INTRODUÇÃO
como deve ser visto”.
Este trabalho apresenta um exercício
cartográfico experimental provocado pelas MOTIVAÇÕES E INSPIRAÇÕES
primeiras discussões no âmbito do projeto de
pesquisa “Planejamento e Conflito Urbano:
experiência de planejamento urbano em Nas últimas décadas, o Rio de Janeiro
contextos de conflito social”, Financiado pela tem sido palco de experimentação de técnicas do
Fundação Ford, e coordenado pelo IPPUR/UFRJ, planejamento urbano por meio dos megaeventos
e mais especificamente no eixo de trabalho que perfilam com a estratégia neoliberal de city
responsável pela produção de cartografia com marketing, de forma a ajustar a cidade aos rumos
mapeamento dos conflitos relacionados à do capitalismo globalizado (cf. SÁNCHEZ, 2003).
realização das Olimpíadas 2016 na cidade do Rio Nesse contexto, a cartografia é dispositivo com
de Janeiro. potencial modelador de imagens-síntese da
cidade sob a lógica da persuasão e da construção
O objetivo da pesquisa era registrar por do consenso, a partir de um esforço local em
meio de técnicas cartográficas conflitos urbanos, selecionar, omitir espaços e práticas sociais
sujeitos e interesses em disputa, bem como (conflitos e insurgências).
políticas, programas e ações do poder público
no contexto do urbanismo olímpico carioca. Em termos de método, buscou-se resistir
O esforço de leitura crítica das lacunas entre as aos riscos do poder do “espacialismo”, que
“promessas” de reinvenção da cidade do Rio determina e circunscreve identidades sociais
de Janeiro e o que foi de fato realizado motivou e culturais na cidade do Rio, que orientam
a necessidade de se contrapor às narrativas pensamentos instantâneos, consensos e
discursivas e cartográficas oficiais orientadas autoritarismos sobre a cidade. Pode-se dizer
pela retórica promotora da imagem de Cidade que a cartografia tradicional, que toma como
Olímpica, a partir de uma cartografia que desse categoria de análise o território (absoluto),
ressonância também às resistências sociais ao assume formas e, por que não dizer, feições
projeto olímpico. espaciais da desigualdade social, naturalizando-
as, negando assim, sua produção classística,
O desafio metodológico de borrar as suas precondições e seus conflitos. É necessário,
fronteiras entre a “Cidade Olímpica” e a “Cidade portanto, alargar o pensamento no que se
Vivida” se manifestou no tratamento como refere ao absolutismo do território que, como
atributos socioespaciais os efeitos e impactos
77

categoria cartográfica, impõe representações 1993) que assumem como categoria a noção
que ocultam permanências cruéis, cristalizações de “território usado” (SANTOS, 1996). Além
e (i)mobilismos. também da observação de conflitos sociais no
território (leitura de jornais, leitura sociológica
É por meio da atividade de cartografar
e criação de banco de dados), denominadas por
os espaços e sujeitos “que devem ser vistos”, em
“cartografia da ação” (RESENDE e TOZI, 2011;
detrimento de outros (invisibilizados), que se
RIBEIRO, 2013), que por sua potencialidade
sustenta, por exemplo, a construção simbólica
libertária pretende descobrir “o que não existe”,
da “Cidade Maravilhosa”. Em 2016, a Empresa
“o que está invisível”, as ordens não criticadas
de Turismo do Rio de Janeiro (Riotur) distribuiu
tradicionalmente (pois se tornou legítimo não
a turistas um mapa oficial da cidade (Fig. 1). As
reconhecê-las) para as quais a ação estratégica
decisões cartográficas tomadas na elaboração do
dominante é historicamente seletiva, indiferente
cartograma turístico impõem um recorte espacial
e, portanto, pseudodemocrática.
que não só aprisiona a dimensão da cidade
às áreas central, sul e pequena parte da zona No percurso metodológico destaca-se
norte - até onde se localiza o estádio de futebol um ensaio na forma de cartograma, que indica
Maracanã -, como exclui da sua geografia as dinâmicas de cristalização ou aprofundamento de
favelas que ocupam os morros situados nas áreas desigualdades socioespaciais: o portal eletrônico
representadas. Do mesmo modo, a localização
geográfica de eventos, objetos, acidentes
naturais e pontos turísticos tende-se a reproduzir Figura 1. Folheto distribuído pela Riotur, 2016.
estigmas e representações superficiais da Fonte: Nemézio e Oliveira, 2016:11.
realidade social, bem como fortalecer símbolos e
legitimar discursos hegemônicos sobre a cidade.
Como contestar representações da cidade
(sem conflitos) como a difundida pela Riotur?
Buscou-se orientações conceituais e diretrizes
teórico-metodológicas no levantamento e
sistematização de ações, formas e instrumentos
de luta usados por sujeitos, comunidades e
coletivos direta ou indiretamente afetados pelas
intervenções urbanas promovidas a propósito
dos Jogos Olímpicos de 2016 que apontassem
para cartografias não-hegemônicas que, de certa
forma, têm instrumentalizado táticas do que tem
sido chamado “planejamento insurgente”1.
Desta forma, a reflexão aqui realizada
buscou inspiração em algumas práticas
representacionais do “espaço vivido” (LEFEBVRE,

1 Miraftab (2009) caracteriza o planejamento insurgente


como práticas de planejamento contra-hegemônicas,
transgressoras e imaginativas, enfatizando a importância
da insurgência popular para a prática do planejamento
participativo e radical, ou seja, a cidadania insurgente e o
conflito como condições essenciais para a construção do
espaço urbano.
78 MAPA- IN T E RV E N Ç ÃO PE RT URBA N D O NA RR AT I VA S O F I CI A I S DA CI DA DE

“Fogo no Barraco”2 (Fig. 2), criado por um grupo para a realização das Olimpíadas, na tentativa
de ativistas pela moradia e habitação para reunir, de apresentação ao mundo de uma imagem
publicar e interpretar as ocorrências de incêndios de cidade pacificada que ativou políticas de
em favelas da Grande São Paulo. As informações segurança pública em algumas favelas e espaços
são registradas em uma planilha colaborativa, públicos da cidade.
cujos dados abastecem um cartograma que
O projeto de Cidade Olímpica tendeu a
relaciona valorização imobiliária, distritos,
intensificar as ocorrências de “privação extrema”
favelas e remoções, e Operações Urbanas. Além
da vida, por meio de uma “política” de segurança
de apoiar as comunidades incendiadas, este
militarizada e estrategicamente localizada, fato
projeto perturba as narrativas do “acaso” com
que instigou este trabalho a buscar dados mais
a hipótese de que os incêndios pretendem a
concretos sobre tais conflitos e extrapolar a
expulsão dos moradores mais pobres das áreas
noção dominante sobre a violência, comumente
de interesse do mercado imobiliário.
associada apenas ao crime e ao sujeito criminoso,
A escolhas cartográficas nestes reduzindo-a à responsabilidade individual e
dois exemplos inspiram a possibilidade de menos como violação de direitos. É preciso
experimentos e táticas na elaboração de uma compreender que há formas de violências
cartografia crítica a fim de buscar análises mais menos visíveis praticadas por diferentes atores,
comprometidas com o reconhecimento das como a violência institucionalizada (praticada
complexas relações entre sociedade, Estado e pelo Estado) ou a violência psicológica
território no contexto estudado: a composição (dominação por meio de discursos, coações,
de “atributos” geoespaciais por indicadores e constrangimentos etc.), que também compõem
processos sócio-territoriais, geralmente não o quadro de insegurança nas cidades (BRAUD,
utilizados e nem combinados. 2006; NOVAIS et. al, 2015).
Para estabelecer uma leitura crítica
MAPA-INTERVENÇÃO em relação às formas de violência e ao modelo
de segurança militarizada empreendida na
Os confrontos armados constituem uma
consolidação da Cidade Olímpica, o primeiro
problemática cotidiana na cidade do Rio de
atributo a ser analisado se refere às ocorrências
Janeiro que por sua prática rotineira, evidenciam
de violência letal praticadas pelo Estado.
uma violência urbana organizada. Os conflitos
Conforme levantado pelo projeto “Onde a
entre a polícia militar e narcotraficantes
Polícia Mata” 3 , que teve como fonte o Instituto
ou entre facções criminosas rivais definem
de Segurança Pública do Rio, no período de
territorialidades de extrema privação na
2010 a 2015, a cidade do Rio de Janeiro teve
vida cotidiana, intensificando situações de
1.761 homicídios registrados como “autos
vulnerabilidade: como ir para o trabalho ou a
de resistência”, majoritariamente de pessoas
escola nestas áreas de conflito? Como é estar na
residentes no “subúrbio”, do gênero masculino e
própria casa na ameaça dela ser invadida por uma
negro4. Tomou-se, então, como segundo atributo
bala?! São expressões cotidianas de muitas áreas
na cidade do Rio de Janeiro, corriqueiras e, por
3 Iniciativa da Justiça Global, com apoio da Fundação
isso, naturalizadas, não só pela frequência que Heinrich Böll. Desenvolvido por Adriano Belisário com
ocorrem, mas por que acontecem em territórios colaboração de Cinco Euzébio. Dados e mapas disponíveis
estigmatizados como perigosos. Foi nesse em http://www.ondeapoliciamata.org/#, acesso em
sentido, que a questão da segurança pública se 28/11/2016.
tornou ponto prioritário na preparação da cidade 4 Conforme o relatório “O Bom Policial Tem Medo. Os
Custos da Violência Policial no Rio de Janeiro”, produzido
2 Disponível em: <http://blog.fogonobarraco.laboratorio. pela Human Rights Watch. Disponível em https://www.hrw.
us/#>, acesso em 26/11/2016. org/pt/report/2016/07/07/291589, acesso em 29/11/2016
79

Figura 2. Projeto “Fogo no Barraco”

Figura 4. “Sombras da Violência”


Territórios de atuação das UPPs e Áreas Integradas de Segurança Pública (AISP) que registraram mais de 100 mortes
decorrentes de ação policial entre 2010 a 2015 (Fonte: Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro (ISP RJ),
sobre percentual de população declarada negra e parda (Fonte: Censo 2010, IBGE).

Fonte de dados geográficos: IPP. Autor: Elaboração própria (2018).


80 MAPA- IN T E RV E N Ç ÃO PE RT URBA N D O NA RR AT I VA S O F I CI A I S DA CI DA DE

a distribuição da população negra e parda na sem mandado judicial, toque de recolher,


cidade do Rio de Janeiro, segundo dados do controle sobre o cotidiano dos moradores) e
Censo 2010, indicando uma maior concentração outras formas de violação de direitos (BARREIRA
de negros e pardos em áreas que, em grande e BOTELHO, 2013).
parte, coincidem com níveis de menor renda.
Neste exercício experimentou-se
Para compor o cartograma, foram destacadas
traduzir práticas e técnicas sociais, modos de
também as favelas contempladas pelo programa
vida e resistências em atributos socioespaciais
de Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), criado
que possam construir feições geográficas
pelo Estado do Rio de Janeiro, principal política
de “territórios usados” e indicar outras
de segurança vinculada aos Jogos Olímpicos.
territorialidades. A proposta aqui colocada
Deste modo, tem-se o cartograma “Sombras da
deve ser reconhecida como oportunidade
Violência” (Fig. 4).
de se alargar o pensamento sobre o fazer
A composição destas informações cartográfico, sem a pretensão de apresentar
permite identificar um modelo de segurança argumentos conclusivos: um ensaio cartográfico
pública que atua violentamente nas áreas experimental, pretensamente crítico que
periféricas e favelas da cidade do Rio de Janeiro, perturbe as representações superficiais e
habitadas em grande parte pela população simplificadas de uma realidade social complexa
negra e parda. A concentração do número de como a vivida na cidade do Rio de Janeiro.
mortos pela atuação policial em tais locais
durante o período de preparação para os Jogos AUTOCRÍTICA: L
reforça uma lógica de militarização sobre tais IMITES E PERSPECTIVAS
populações, intensificada por uma violência
institucionalizada em termos de violação de
direitos humanos, do direito à cidade, etc. Entende-se que apostar em
A seletividade socioespacial da política representações cartográficas contra-
de segurança pública também possui expressão hegemônicas implica numa postura conceitual e
na distribuição territorial das UPPs. A maioria metodológica que provoque perturbações entre
das unidades foi instalada nas favelas situadas na as formas científicas e não-científicas. As técnicas
proximidade com áreas associadas à realização cartográficas insurgentes assinalam uma disputa
do megaevento esportivo, visto que não se por poder através da disputa pelo conhecimento,
identifica UPP no extremo oeste da cidade. Não além de darem visibilidade, em suas diferentes
obstante, a estratégia de ocupação por UPPs formas de representação, às lutas por direitos dos
configura fronteiras bem definidas de lugares sujeitos coletivos, ampliada pelas possibilidades
onde predominam habitantes autodeclarados de democratização das ferramentas de técnica
negros e pardos, como se vê na Zona Sul cartográfica (ROCHA e OLIVEIRA, 2014).
(próximo e dentro do “Anel Copacabana”). Cabe O exercício de leitura crítica do projeto de
ponderar que, apesar da retórica oficial sobre o Cidade Olímpica, por meio da cartografia no uso
programa tomar por base a ideia de retomada de variáveis ausentes no discurso promotor do
por parte do Estado de territórios sob domínio megaevento esportivo, possibilita a apresentação
de narcotraficantes, possibilitando, com isso, a de categorias socioespaciais que reconheçam as
entrada de serviços nas favelas, na prática se viu realidades impostas às populações periféricas e
poucos avanços sociais e tal programa se revelou grupos sociais mais vulneráveis da cidade do Rio
muito mais uma estratégia de controle territorial de Janeiro.
de uma parcela populacional enxergada como
Para além da análise economicista da
“potencialmente perigosa”, através de medidas
desigualdade social, esse exercício buscou
repressivas (revistas indiscriminadas, buscas
81

avaliar por quais atributos se evidenciavam desejável que os próximos passos dessa pesquisa
certas precondições sociais estrategicamente sejam mais inclusivos e que a continuidade
invisibilizadas. A cidade do Rio de Janeiro, na desse processo se dê de forma colaborativa,
sua vida cotidiana, é marcada por construções como já é o caso de algumas práticas, como
simbólicas e reais de uma violência organizada a referenciada neste trabalho. Tal iniciativa
que ocupa seletivamente os canais de mídia e implicará na combinação de metodologias e
de debate político. Portanto, o principal desafio ferramentas, trazendo resultados ainda mais
para uma cartografia crítica seria o de provocar o dinâmicos, numa perspectiva potencializadora
pensamento por feições territoriais das diversas de ações autônomas dos sujeitos envolvidos e
formas de violência e privações, combinando articulações políticas.
atributos que permitam reconhecer e relacionar
Por fim, espera-se que as reflexões
condições (precárias) de vida cristalizadas
aqui apresentadas possam inspirar e provocar
na cidade, disputando, portanto, narrativas e
novas leituras da realidade socioespacial do Rio
representações sobre a “Cidade Maravilhosa”,
de Janeiro, assim como ações de resistência,
que se pretendia Olímpica.
perturbando os sentidos da produção do espaço
Considera-se que representar e urbano e de disputa pelo direito à cidade e de
interpretar a realidade é uma tarefa extremamente cartografar a cidade.
complexa, que carrega diversas limitações, dentre
as quais a de ser, ela mesma, uma representação REFERÊNCIAS
da realidade e não a realidade em si, assim como,
o lugar de fala dos sujeitos representados. Por
isso, faz-se necessário o exercício contínuo de ACSELRAD, Henri (2010). Mapeamentos,
indagar-se sempre o processo e os resultados, identidades e territórios. In: ACSELRAD, Henri.
razão pela qual convencionou-se dizer que os (org.) Cartografia social e dinâmicas territoriais:
produtos aqui apresentados são relacionais e marcos para o debate. IPPUR. UFRJ. Rio de
experimentais, pois apontam para processos Janeiro.
em movimento, cujas análises cartográficas
ARANTES, Otília.; MARICATO, Ermínia.;
não podem ser consideradas como produtos
VAINER, Carlos. A cidade do pensamento único.
acabados e como um fim em si mesmas.
Desmanchando consensos. Petrópolis: Vozes,
Nessa perspectiva, os exercícios 2000.
realizados abrem um campo de possibilidades a
BARREIRA, Marcus; BOTELHO, Maurilio
serem exploradas. Quantas outras variáveis que
Lima. O exército nas ruas: da Operação Rio
compõem a vida cotidiana dos cariocas podem
à ocupação do Complexo do Alemão. Notas
e devem ser iluminadas? É possível apontar
para uma reconstituição da exceção urbana.
ainda diversas outras formas de privação a
In: BRITO, Felipe e OLIVEIRA, Pedro Rocha de
que uma parte considerável da sociedade do
(Org.). Até o último homem: visões cariocas da
Rio de Janeiro está submetida e, por isso, o
administração armada. São Paulo: Boitempo,
projeto de Cidade Olímpica teria passado longe
2013, p. 129-168.
da vida cotidiana de boa parte das famílias
cariocas. Como a cartografia pode enunciar os BOURDIEU, P . O Poder Simbólico. Rio de
compromissos metropolitanos ignorados pelo Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
olimpismo urbano carioca? BRAUD, Philippe (2006). Violencias políticas.
Não menos importante, aponta-se para a Madrid: Alianza editorial.
necessidade de disponibilização dos cartogramas CRAMPTON, J.; KRYGIER, J. Uma introdução
produzidos a sociedade em geral, sendo à cartografia crítica. In: ACSELRAD, Henri. (org.)
82 MAPA- IN T E RV E N Ç ÃO PE RT URBA N D O NA RR AT I VA S O F I CI A I S DA CI DA DE

Cartografias Sociais e Território. IPPUR. UFRJ. MIRAFTAB, Faranak. Insurgent planning:


Rio de Janeiro, 2008. situating radical planning in the global south. In:
Planning Theory, V. 8, 2009. pp. 32-50.
COMITÊ POPULAR DA COPA E OLIMPÍADAS
DO RIO DE JANEIRO. Megaeventos e Violações MONTEIRO, Simone Rocha da Rocha
dos Direitos Humanos no Rio de Janeiro - Pires. O marco conceitual da vulnerabilidade
Olimpíada Rio 2016, os jogos da exclusão. Dossiê social. Sociedade em Debate, Pelotas, jul.-dez,
do Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do 2011, pp.29-40. Disponível em: revistas.ucpel.
Rio de Janeiro, 3ª Edição, 2015. Disponível em edu.br/index.php/rsd/article/view/695/619
http://www.childrenwin.org/wp-content/ (25/11/2016).
uploads/2015/12/Dossie-Comit%C3%AA-
NAME, L.; NACIF, C. Notas sobre mapas,
Rio2015_low.pdf.
mapeamentos e planejamento urbano
HAESBAERT, Rogério.Viver no limite: participativo no Brasil na perspectiva de uma
território e multi/transterritorialidade em tempos cartografia crítica. Biblio 3W. Revista Bibliográfica
de insegurança e contenção. 1. Ed. – Rio de de Geografía y Ciencias Sociales. Universidad de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2014 Barcelona, 2013, Vol. XVIII, nº 1018.
HEIDRICH, Álvaro Luiz (2010). Esquema para NEMÉZIO, Núbia F. de Oliveira; OLIVEIRA,
dialogar com descartógrafos. In: WASHINGTON, Fernanda Gomes de. A representação das favelas
Cláudia; ARAÚJO, Lúcio de; GOTO, Newton no mapeamento e informação do turismo no Rio
(Org.). Recartógrafos. Curitiba: edição do autor, de Janeiro. IV Encontro da Associação Nacional
v. 1, p. 33-41, 2010. de Pesquisa e Pós-Graduação em Arquitetura
e Urbanismo, Porto Alegre, 2016. Disponível
ICONOCLASISTAS. Algumas Considerações
em: https://enanparq2016.files.wordpress.
a cerca da Prática do Mapeamento Coletivo.
com/2016/09/s43-05-nemezio-n-gomes-de-
Disponível em http://www.iconoclasistas.net/
oliveira-f.pdf (29/05/2018).
portugues/ (29/07/2015), 2012.
NOVAIS et. al. Violência estatal, desigualdade
LEFEBVRE, Henri. The Production of Space.
social, respostas comunitárias. In: People, places
London, Blackwell. 2013.
and infrastructure: countering urban violence
MAIA, Flávia; PÉREZ, Ayara; RAMOS, and promoting justice in Mumbai, Rio and
Amanda. As favelas do lado do olimpo: Durban (Relatório de pesquisa). Tata Institute of
mapeamento colaborativo na disputa simbólica Social Sciences, Universidade Federal do Rio de
pelo Rio de 2016. Anais do XVI Encontro da Janeiro, University of Kzwazulu-Natal, 2015.
Anpur. Belo Horizonte, 2015. Disponível em
PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE
http://xvienanpur.com.br/anais/?wpfb_dl=457
JANEIRO. Rio 2016. Jogos Olímpicos e Legado.
(28/07/2015).
Caderno de Políticas Públicas. Rio de Janeiro. ,
MASSEY, Doreen B. Pelo espaço: uma nova 2016. Disponível em http://www.rio.rj.gov.br/
política da espacialidade. Rio de Janeiro: dlstatic/10112/4379008/4130519/RIO2016_
Bertrand Brasil, 2008. estudos_PORT.pdf (25/11/2016).
MESQUITA, André Luiz. Mapas dissidentes. RIBEIRO, Ana Clara Torres et al (2013a). Por
Proposições sobre um mundo em crise (1960- uma cartografia da ação: pequeno ensaio de
2010). Tese de doutorado em História Social. métod. In Por uma sociologia do presente: ação,
Programa de Pós-Graduação em História Social técnica e espaço. Vol. 4, Rio de Janeiro: Letra
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Capital, 2013.
Humanas da Universidade de São Paulo. São
Paulo, 2013.
83

__________ (2013b). A cidade neoliberal:


crise societária e caminhos da ação. In: Por uma
sociologia do presente: ação, técnica e espaço, Vol.
5, Rio de Janeiro: Letra Capital, 2013.
ROLNIK, Raquel. Guerra dos lugares: A
colonização da terra e da moradia na era das
finanças”. São Paulo: Boitempo, 2015.
SÁNCHEZ, Fernanda. A reinvenção das
cidades para um mercado mundial. Chapecó:
Argos, 2003.
SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço.
Técnica e Tempo. Razão e Emoção. São Paulo,
Hucitec, 1996.
SIMMEL, G. A natureza sociológica do conflito.
In MORAES FILHO, Evaristo (org.), “Simmel”.
São Paulo, Ática, 1983.

Foto: Edifício da Ocupação Casarão


Azul depois da Remoção.
Acervo Neplac.
84

CARTOGRAFIA CRÍTICA UM “URBANISMO DE OPORTUNIDADES”


PARA UMA CIDADE DESIGUAL
DO (DES)LEGADO
O projeto que trouxe as Olimpíadas ao Rio de
OLÍMPICO Janeiro foi viabilizado por um pacto entre
grandes proprietários de terra, empresários do
Poliana Gonçalves Monteiro setor imobiliário, grandes empreiteiras
nacionais e poder público, além da decisiva
Fernanda Ester Sánchez García atuação da mídia hegemônica. A falta de
Ana Carolina Marques Machado participação popular e a ausência dos
Paula Cardoso Moreira mecanismos democráticos de gestão da cidade,
previstos em lei, foram marcas do período. Há
mais de vinte anos vigora, na cidade do Rio de
Janeiro, uma convergência de modelos e
Os Jogos Rio 2016 serviram de fachada
projetos de cidade que representam
para a realização de um grande projeto
essencialmente a mesma articulação de forças
neoliberal de cidade, por meio do chamado
econômicas e sociais. A era dos projetos
Urbanismo de Oportunidades, aqui convertido
pautados no chamado Urbanismo de
em modelo de desenvolvimento urbano.
Oportunidades, que se ocupa da produção do
Oportunidades para os negócios, às custas dos
ambiente construído como meio de valorização
direitos da população, constantemente violados
focado na especulação imobiliária, culmina em
nesse processo. Nesse contexto, a construção da
2016 em meio à grave crise política, institucional
ideia de Legado Olímpico foi estratégica e
e econômica1. Os megaeventos, certamente, não
necessária para a legitimação dos Jogos Rio 2016
inauguraram a segregação socioespacial e a
frente à sociedade e à opinião pública.
periferização da pobreza, mas acentuaram e
Enquanto o discurso oficial e midiático é
aceleraram esses processos2.
taxativo sobre o consenso do legado olímpico,
Os Megaeventos, que prometeram
em discordância, a materialidade evidente dos
promover a cidade, atrair investimentos e
processos espaciais nos fizeram produzir uma
transformar o cenário urbano, apresentam
nova categoria, a do (Des)legado Olímpico. Para
como principais efeitos a concentração de
desenvolver a reflexão pretendida, o artigo
investimentos públicos nas áreas mais ricas da
estrutura-se em três partes, além desta
cidade, a privatização de áreas públicas e
Introdução. Na primeira serão apresentados os
comuns, a violenta remoção de milhares de
poderosos agentes que lideraram o Urbanismo
famílias e a intensificação da periferização da
de Oportunidades concretizado no Rio
pobreza.
Olímpico. Em seguida, será analisado o
processo de consolidação da estratégia A ESTRATÉGIA DISCURSIVA DE UM
discursiva que permitiu transformar custos em PACTO PODEROSO
ganhos. Na terceira parte apresentamos a
Cartografia Crítica do (Des)Legado Olímpico, O clima de otimismo e exaltação do Rio
uma ferramenta concebida para sua e do Brasil, apresentados como cenário incrível
apropriação e reconstrução coletiva e e inigualável, bem como a solidez da economia
permanente, além de constituir um suporte brasileira e o apoio total e unificado dos três
possível para a visibilização e confrontação das níveis de governo, definem o discurso oficial da
práticas de planejamento urbano hegemônicas
empreendidas no Rio Olímpico. 1 Ver: SÁNCHEZ; BIENENSTEIN; OLIVEIRA, 2016.

2 Ver: COSENTINO; MONTEIRO, 2017.


85

candidatura do Rio de Janeiro à sede dos Jogos prefeito afirmava genericamente que “Rio-2016
Olímpicos 2016. A construção da ideia de terá legado melhor que o de Barcelona”,
Legado Olímpico foi estratégica e necessária destacando a ilusória predominância de
para a legitimação dos Jogos Rio 2016. Por meio investimentos privados. Já em 2016, diante da
do discurso de que “os Jogos Olímpicos devem realidade inconteste, Paes modifica seu discurso
servir à cidade” e seriam viabilizados por e alega que os Jogos Olímpicos “são uma
investimentos privados, Eduardo Paes oportunidade perdida para o Brasil”8,
converteu o Urbanismo de Oportunidades em responsabilizando os outros entes federativos
modelo de desenvolvimento urbano. pelo insucesso. Ainda em 2016, em título
A Candidatura Rio 2016 é ressaltada tragicômico, a revista Isto É afirmava que “a
como um projeto coeso e integrado que Olimpíada nos deixa como legado a esperança”9.
beneficiaria a cidade de forma duradoura a
A alteração deliberada das nomencla-
partir do “Legado Olímpico”. A consolidação da
turas dos equipamentos olímpicos e as notícias
estratégia discursiva do legado permitiu
veiculadas, propositalmente desencontradas,
transformar custos em ganhos, afinal diante da
definiram a obscuridade do processo. A con-
“produção do bem comum para as atuais e
tradição entre discurso oficial, sustentado pela
futuras gerações”3 qualquer gasto se torna
mídia hegemônica, com a evidente realidade
justificável. A mídia hegemônica, em especial o
materializada, exige do pensamento crítico a
Grupo Globo, foi fundamental na consolidação
ação de visibilizar o que foi ocultado pela estraté-
dessa estratégia.
gia discursiva do legado.
O discurso sobre a materialidade do
“legado” no Rio de Janeiro vai cambiando diante
dessa contradição. O jornal O Globo afirmava
em 2011 que “O legado já é tangível e real”,
destacando a urbanização de todas as favelas da
cidade até 2020 por meio do Programa Morar
Carioca4, posteriormente abandonado sem
nenhuma nota na imprensa ou informação
oficial. Em 2012, Eduardo Paes declarava de
forma burlesca que a “Olimpíada é ‘desculpa
fantástica’ para mudar o Rio”5, dois anos depois
que “nossas deficiências viraram o maior ativo
da candidatura do Rio”6.
Em entrevista concedida em 20157, o ex-
Foto: “Queremos ficar sim!” - Muro na Vila
3 Ver: GUSMÃO, 2016, p. 112. Autódromo em 2016. Acervo GPDU.
4 Ver: https://oglobo.globo.com/rio/o-legado-ja-
tangivel-real-3355615

5 Ver: https://www.bbc.com/portuguese/
noticias/2012/03/120308_eduardo_paes_entrevista_jc

6 Ver: http://acervo.oglobo.globo.com/busca/?tipo
Conteudo=artigo&ordenacaoData=relevancia &allwords
=legado+ol%C3%ADmpico&anyword=&noword=&
exactword=legado 8 Ver: https://oglobo.globo.com/rio/
paes-olimpiada-uma-oportunidade-perdida-19686733.
7 https://www1.folha.uol.com.br/
esporte/2015/03/1603329-prefeito-eduardo-paes-diz-que- 9 Ver: https://istoe.com.br/o-brasil-sonhou-alto-e-
olimpiada-ajudara-o-rio-de-janeiro.shtml atingiu-grandes-metas/
86 C ARTO G R A F IA C R Í T I C A D O ( D E S )L E G A D O O L Í MPI CO

Base do IPP. Mapa produzido por Poliana Monteiro.


87

Base do IPP. Mapa produzido por Poliana Monteiro.


88 C ARTO G R A F IA C R Í T I C A D O ( D E S )L E G A D O O L Í MPI CO

A CARTOGRAFIA CRÍTICA COMO FERRA- A construção de cartografias alternativas,


MENTA DE LUTA de outro modo, pode contribuir para a efetivação
O critério para estabelecer as prioridades de direitos e construção do poder popular12. A in-
olímpicas pode parecer incógnito de antemão, formação socializada elabora saberes que, con-
mas os impactos do Urbanismo de Oportuni- centrados em um mapa, permite a elaboração
dades, legitimado pelos megaeventos, perman- de estratégias de resistência. Nessa perspectiva,
ecem e os (des)legados são evidentes. A ação apresentamos em seguida a Cartografia Críti-
de territorializar os processos de produção do ca do (Des)Legado Olímpico, uma ferramenta
espaço mediante uma cartografia crítica pode concebida para a apropriação e a reconstrução
colocar as práticas hegemônicas de planejamen- coletiva, além de constituir um suporte para
to urbano em xeque. A cartografia foi utilizada, a visibilização e confrontação das práticas de
historicamente para a demarcação e apropriação planejamento urbano hegemônicas13 empreen-
de territórios pelo poder dominante10, pautado didas no Rio Olímpico.
pelos interesses da reprodução do capital. Desse A escolha do Brasil como sede das
modo, as distorções e omissões são escolhas Olimpíadas foi celebrada em notícia de capa
políticas e ideológicas que invisibilizam o que
não interessa ou é contestatório11. 12 A experiência do Mapa dos Jogos da Exclusão,
que reuniu todos os impactos da preparação dos Jogos
10 Ver em ACSELRAD, 2010. Olímpicos sobre a cidade, precisa ser destacada aqui como
inspiradora e potente.
11 Ver: http://www.global.org.br/blog/
ainvisibilizacaodapobrezaedospobresnorioolimpico/ 13 Ver em RISLER; ARES, 2013.

Base do IPP. Mapa produzido por Poliana Monteiro.


89

no jornal O Globo, que afirmava: “2016, o ano removeu diversas comunidades16 e


que já começou: agora só faltam 7 [anos] para reassentou seus moradores em conjuntos
fazer uma estação de metrô por ano, duplicar as habitacionais construídos no extremo
vagas da rede hoteleira, despoluir 85% da Baía oeste da cidade . Os “legados olímpicos”
17

e as Lagoas da Barra e construir e reformar 33 correspondem às intervenções presentes na


instalações esportivas”14. O clima de otimismo é Matriz de Responsabilidades e no Plano de
delineado nos anos seguintes em editoriais que Políticas Públicas dos Jogos Rio 2016 e foram
promovem as promessas que irão consolidar a representados alegoricamente como anéis
estratégia discursiva do legado olímpico. olímpicos, remetendo aos temas apresentados
no Dossiê de Candidatura18.
Nesse sentido, segundo mapa
apresentado nesta seguência, ‘A Estratégia
Discursiva do Legado’ busca em primeiro lugar
CAVALLIERI; LOPES, 2008
evidenciar como a definição das Zonas Olímpicas
priorizou regiões infraestruturadas e com maior
16 As remoções atingiram pelo menos 20.299 famílias.
Índice de Desenvolvimento Social (IDS)15,
Ver: FAULHABER; AZEVEDO, 2015.

14 Ver: http://acervo.oglobo.globo.com/consulta-ao-ace 17 Ver em COSENTINO; MONTEIRO, 2017.


rvo/?navegacaoPorData=200020091003 18 O Dossiê de Candidatura é composto por 17 temas
15 O IDS foi inspirado no Índice de Desenvolvimento estabelecidos pelo COI como essenciais. Para essa análise
Humano (IDH), incluindo outras dimensões que destacamos os temas que mais se relacionam com a
caracterizam o aspecto urbano. Para mais informações ver: produção do espaço.

Base do IPP. Mapa produzido por Poliana Monteiro.


90 C ARTO G R A F IA C R Í T I C A D O ( D E S )L E G A D O O L Í MPI CO

Em segundo plano, mas não menos Com um consenso forjado, o Rio Olímpico
importante, o mapa pretende incitar à reflexão deveria ser apresentado como uma cidade
acerca da mídia como um poderoso agente competitiva e unificada em torno do projeto.
da estratégia discursiva do legado, de forma Assim, concebido sob a premissa do consenso, o
a alcançar os cidadãos cariocas, inclusive por Dossiê de Candidatura afirmava que “o projeto
meio de constantes editoriais patrocinados por de sediar os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de
agentes do ambiente construído. Essa associação 2016 no Rio de Janeiro não enfrenta qualquer
fica clara com o editorial “Espaço Ilha Pura, oposição pública organizada”20.
em parceria com O GLOBO, tem programação
O primeiro mapa apresentado
variada durante o mês”, veiculado19 em 2014 com
nesta seguência, ‘Resistência na Cidade
o intuito de promover o condomínio destinado
Olímpica’, territorializa a ação dos diversos
à população de alta renda, que ainda hoje
movimentos e articulações21 que lutaram
permanece em grande parte vazio.
contra as remoções, as privatizações, os danos
A falta de participação popular e a ambientais, a militarização e as intervenções
ausência dos mecanismos democráticos de gestão
da cidade foram marcas do período olímpico. 20 Ver em Dossiê de Candidatura, vol. 1, p. 60.
19 Ver:https://oglobo.globo.com/rio/bairros/espaco- 21 É preciso apontar a atuação do Comitê Popular da
ilha-pura-em-parceria-com-globo-tem-programacao- Copa e das Olimpíadas na articulação e concepção de
variada-durante-mes-14415939 diversos das ações aqui representadas.
91

urbanas autoritárias e excludentes. Os diversos especulativos, isenções fiscais a grandes


movimentos organizados questionaram de empresas e flexibilização de leis urbanísticas que
forma audaciosa e criativa o projeto de cidade possibilitaram lucros privados que caracterizam
hegemônico, evidenciando um Rio Olímpico bem danos ao erário público. Vale comentar que a
menos consensual e ufanista. Desse movimento degradação do meio ambiente também marca
se fez fluxo e as articulações construídas ainda a parceria, como o desmatamento de 58 mil
sustentam as lutas contra os novos ataques e metros quadrados da Área de Preservação
retiradas de direitos. No Rio ainda ecoam os de Marapendi para a construção do Golfe
gritos de Fora Cabral! Não vai ter Copa! Não às Olímpico24. A retórica sobre os investimento
Remoções! privados foi utilizada de forma recorrente por
Eduardo Paes, que em diversas ocasiões afirmou
A percepção de que os interesses
que “quase 60% do custo das Olimpíada serão de
do grande capital influenciam o governo e,
recursos privados”25.
consequentemente, o projeto de cidade em
curso nutriu a resistência dos movimentos Os Gastos Olímpicos, usualmente
sociais e se consubstancia na afirmação “Os apresentados como Custos ou Investimentos,
medalhistas das Olimpíadas 2016 não serão centralizaram boa parte da discussão sobre os
decididos até o ano que vem, mas já existe Jogos Rio 2016. Os gastos já iniciados na cifra
um competidor que dispara na corrida ao de Bilhões e dilatados ao longo do processo
ouro olímpico”22. O poderoso pacto firmado foram continuamente diluídos na abreviatura
viabilizou o processo que retirou da esfera BI que informa pouco sobre a magnitude da
política a discussão sobre a prioridade dos transformação urbana e social operada sob a
investimentos públicos. O terceiro mapa premissa do Urbanismo de Oportunidades. O
apresentado nesta seguência, ‘Os Donos do debate focado no Quanto? seguindo a recorrente
Legado’ espacializa o domínio das principais prática de explicar para confundir, permitiu
construtoras que, em obras compartilhadas, aos sujeitos do poderoso pacto firmado seguir
se revezaram na megaempreitada olímpica. dissimulando seus interesses particulares
A partir desse exercício de espacialização enquanto interesses gerais da sociedade, por
foi formado o pódio dos Jogos Rio 2016. A meio da omissão de outra pergunta que traria
Odebrecht desponta em primeiro lugar, seguida respostas mais reveladoras: Onde?
pela OAS, Andrade Gutierrez, Carvalho Hosken
O mapa abaixo, ‘Um Projeto Injusto
e Queiroz Galvão, em práticas que indicam a
para uma Cidade Desigual’ territorializa onde
clara formação de cartel23.
se “investiu” no Rio Olímpico. Em entrevista,
A adoção das Parcerias Público- Eduardo Paes afirmou que “é loucura dizer
Privadas (PPPs) e concessões, legitimada pelo que não teve investimentos nas áreas pobres.
discurso falacioso de que graças às Olimpíadas Se as pessoas dizem isso, não conhecem a
a cidade obteria grandes ganhos com poucos geografia da cidade”26. Mas com a “geografia da
gastos, foi uma das marcas do Rio Olímpico. As cidade” representada, o óbvio se apresenta. Os
PPPs envolveram repasses de terra pública a
empresas, bancos públicos financiando negócios 24 Ver: https://oglobo.globo.com/rio/camara-
vota-projeto-que-exclui-area-do-parque-de-
22 Artigo publicado no The Guardian em 2015, em
marapendi-7107158.
menção ao emresário Carlos de Carvalho, proprietário
da Construtora Carvalho Hosken. Ver: https://www. 25 Ver: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/
theguardian.com/sport/2015/aug/12/o-empresario- noticia/2014/04/rio-apresenta-plano-para-populacao-
carioca-na-esperanca-de-um-legado-olimpico-proprio- cobrar-o-que-falta-para-olimpiadas.html
de-bilhoes.
26 Ver: https://oglobo.globo.com/rio/paes-olimpiada-
23 Ver: https://www.brasildefato.com.br/node/13506/ uma-oportunidade-perdida-19686733
92 C ARTO G R A F IA C R Í T I C A D O ( D E S )L E G A D O O L Í MPI CO

Base do IPP. Mapa produzido por Poliana Monteiro.


93

gastos oficiais divulgados no Plano de Políticas REFERÊNCIAS


Públicas e na Matriz de Responsabilidades
foram confrontados com relatórios do Tribunal
ACSELRAD, Henri (Org.). Cartografia social e
de Contas da União (TCU), Tribunal de Contas
dinâmicas territoriais: marcos para o debate. 2º
do Estado (TCE-RJ) e Tribunal de Contas
ed. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio
do Município (TCM-RJ), e os valores gastos
de Janeiro, Instituto de Pesquisa e Planejamento
em cada intervenção foram calculadas por
Urbano e Regional, 2012.
metro quadrado considerando sua área de
BRASIL. Dossiê de Candidatura: Rio 2016,
abrangência.
Cidade Candidata. Vol. 1, Brasília, 2009.
Os gastos referentes ao Plano de Políticas CAVALLIERI, Fernando; LOPES, Gustavo
Públicas, representados na base do mapa, P. Índice de desenvolvimento social - IDS:
evidenciam o padrão territorial desigual no comparando as realidades microurbanas da
contraste entre investimentos que iniciam em cidade do Rio de Janeiro. Coleção Estudos
até R$10,00 por metro quadrado até superar Cariocas. Rio de Janeiro, 2008.
R$1.000,00. A localização dos poucos pontos COSENTINO, R. Olimpíadas da Barra
vermelhos em contraposição à extensão da Tijuca 2016: a construção de uma nova
verde diz muito sobre o projeto olímpico. Os centralidade no Rio de Janeiro. In: VAINER,
gastos relativos à Matriz de Responsabilidades Carlos; BROUDEHOUX, Anne Marie; SÁNCHEZ,
estão representados nos anéis olímpicos em Fernanda; OLIVEIRA, Fabricio Leal (Org.). Os
porcentagens que destacam o poder do pacto Megaeventos e a Cidade: Perspectivas Críticas. 1º
que efetivamente trouxe as Olimpíadas à Barra da Ed. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2016. (p. 389-
Tijuca27, região que recebeu 84% do orçamento 429)
destinado às obras consideradas essenciais para COSENTINO, Renato; MONTEIRO, Poliana.
a realização das Olimpíadas. Rio 2016: projeto, orçamento e (des)legados
Em síntese, temos na representação olímpicos. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich
e interpretação da realidade uma tarefa Böll, 2017, v.1. p.43.
extremamente complexa, que carrega diversas FAULHABER, Lucas; AZEVEDO, Lena. SMH
limitações. As práticas de cartografia crítica que 2016: Remoções no Rio de Janeiro Olímpico. 1º ed.
procuram dar visibilidade aos conflitos e às lutas Rio de Janeiro: Mórula, 2015.
sociais, podem contribuir para integrar realidades GUSMÃO, Nelma. Os megaeventos esportivos
múltiplas e diversas formas de informação e, e a retórica do legado: uma operação contábil
assim, ampliar a compreensão sobre o território que se converte em discurso. In: VAINER, Carlos;
em disputa. A Cartografia Crítica do (Des)Legado BROUDEHOUX, Anne Marie; SÁNCHEZ,
Olímpico, nesse sentido, busca apresentar de Fernanda; OLIVEIRA, Fabricio Leal (Org.). Os
forma crítica os agentes e os processos que Megaeventos e a Cidade: Perspectivas Críticas. 1º
definiram e materializaram o excludente projeto Ed. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2016. (p. 100-127).
de cidade concretizado no Rio Olímpico, mas ao RISLER, Julia; ARES, Pablo. Manual de mapeo
mesmo tempo, evidenciar como esse processo colectivo: recursos cartográficos críticos para
foi intensamente confrontado por lutadoras e procesos territoriales de creación colaborativa. -
lutadores no Rio de Janeiro. 1a ed. Buenos Aires: Tinta Limón, 2013.
SÁNCHEZ, Fernanda; BIENENSTEIN; Glauco;
OLIVEIRA; Fabricio Leal. Olimpíadas 2016: um
balanço de véspera. In: MASCARENHAS, Gilmar
(Org.). Dossiê Cidades Olímpicas. Revista ADVIR,
ISSN 1518-3769, Rio de Janeiro, ASDUERJ, jul,
2016.
27 Ver em COSENTINO, 2016.
94

CARTOGRAFIA, próprias informações.


O que antes se caracterizava como um
ESTIGMATIZAÇÃO E campo muito restrito a técnicos, especialistas e
ao próprio Estado, começou a ser encarado
VISIBILIDADE: UM como instrumento de disputa para a produção
de novos imaginários e territórios. Trata-se da
DEBATE SOBRE MÉTODO cartografia crítica, entendida aqui como aquela
que busca alternativas para as categorias –
pressupostos e noções tradicionais – que
Rosane Rebeca Santos moldam o conhecimento científico
(CRAMPTON & KRYGIER, 2008), e que disputa
narrativas e sentidos.
INTRODUÇÃO Considera-se que este exercício pode ser
muito útil para análises de diversos propósitos,
Vive-se em uma época de crescente por seu potencial em explicitar territorialidades
importância e abrangência das imagens, um de contradições, assimetrias e conflitos,
mundo repleto de representações e apelos contribuindo também para o surgimento de
visuais de distintos propósitos, dentre os quais novas perspectivas sobre o espaço urbano e,
destaca-se como objeto de grande interesse o consequentemente, novas formas de agir sobre
próprio território1, haja visto a profusão do o mesmo, transformando-o. Como afirmou
impressionante material produzido pelo Google BENACH (In CARLOS; ALVES; PADUA, 2017), os
Maps2, para citar como exemplo. Atualmente limites e incompletudes dos estudos sobre
este dispositivo disponibiliza mapas, rotas, desigualdade e direito à cidade estão,
imagens de satélites, fotografias em 360º e precisamente, no fato de estarem pouco
muitas outras informações espaciais, de e para espacializados.
praticamente qualquer ponto do globo terrestre. Entretanto, coloca-se como imperativa a
Se por um lado, o avanço destas necessidade de problematização de algumas
tecnologias voltadas para a representação questões relacionadas à produção de um
espacial tem possibilitado o mapeamento e conteúdo cartográfico crítico. A primeira delas
monitoramento de territórios, por outro, a refere-se ao caráter de representação das peças
democratização crescente dos aparelhos cartográficas. Como imagens-síntese os mapas
eletrônicos e da internet, têm dado acesso a um são poderosos e eficazes para sintetizar e
sem número de possibilidades para diversos propagar ideias, podendo criar consensos, que
tipos de usuários, que por sua vez têm muitas vezes se cristalizam em forma de
explorado essas plataformas para produzir suas estigmatização de territórios. Assim como todo
conhecimento é produzido e reproduzido em
1 De acordo com o geógrafo Rogério Haesbaert (2009), um determinado contexto de práticas e relações
atualmente vem se falando em diversos conceitos de sociais (SANTOS & MENESES, 2009), as
território, que se diferenciam por enfatizar uma ou outra representações espaciais também refletem
dimensão das relações entre espaço e poder, como a
relações, que são hierarquizadas. A grande
dimensão material (infraestruturas, planejamento urbano,
etc.) e a dimensão simbólica (locais sagrados, históricos,
pergunta que emerge, portanto, é: quem mapeia
etc), por exemplo. Para o autor, entretanto, não deve haver quem? Esta pergunta não é trivial, muito menos
distinção rígida entre os conceitos de espaço geográfico e de secundária, em se tratando de representações.
território, e é esta perspectiva que adotamos. Sem a pretensão de apresentar respostas
2 Um dos produtos-serviços desenvolvido e fornecido absolutas, este trabalho se coloca como um
pela web gratuitamente pela empresa estadunidense exercício de questionamento e reflexão,
Google.
95

inclusive dos lugares de fala, que tem por atual de sintetização, e mesmo simplificação, de
objetivo auxiliar na compreensão de esquemas intelectuais que os tornam inteligíveis
subjetividades opacas, apontando para e palatáveis, em meio a um bombardeio de
possíveis caminhos de transformação das informações a que somos submetidos
representações do espaço e para uma diariamente. O problema é que, justamente seu
pluriversalidade (BOAVENTURA, 2009), que caráter simplificador e sedutor acaba
contribua efetivamente para um “giro camuflando seu conteúdo ideológico e as
decolonial” (QUIJANO, 2005) no imaginário do relações assimétricas nele contidas, além de
espaço urbano. transmitir uma falsa sensação de que “o
Busca-se também abordar, sob presente pode adquirir sentido, o outro se
diferentes vieses, o tema da visibilidade, que tornar inteligível e o espaço ser decifrado”
parece central para o ato de cartografar, (CHARTIER, 1990:17).
considerando principalmente uma BENACH (2017 In CARLOS; ALVES;
característica que lhe é ambivalente: ela é PADUA, 2017:24) chama a atenção justamente
estratégica, não apenas para quem “é visto”, mas para estes perigos, os quais podem levar a uma
também para quem “vê”. Em outras palavras, ela “estigmatização territorial”, que certamente não
pode ser utilizada tanto a favor como contra depende de mapas e representações
quem é visibilizado ou ocultado, a depender das cartográficas para vir a ser, mas que muitas
circunstâncias e propósitos, e necessita ser vezes é potencializada pelo seu uso, em função
avaliada em tempos de uma “cultura visual”3, de:
onde há constante incentivo à intensa e acrítica
(...) leituras simplificadas dos territórios
exposição.
que proporcionam flagrantes que às vezes
são difíceis de apagar, mesmo quando a
situação admita, de fato, leituras muito
REPRESENTAÇÃO E ESTIGMATIZAÇÃO
diferentes. (...), [estudos que utilizam
TERRITORIAL
mapas] podem contribuir a fixar uma
Os mapas estão no campo das
leitura da situação que, buscando
representações. Eles combinam de maneira
paliativos, omita de fato a análise de
complexa informações imagéticas e textuais
causas e, portanto, a possibilidade real de
selecionadas, constituem uma narrativa, que diz
mudança.
respeito a uma espacialidade, a qual precisa ser
compreendida no seu sentido mais amplo: com
E é desta maneira que as representações
suas múltiplas dimensões e escalaridades. São
desempenham um papel fundamental na
discursos, comunicam valores, visões de
produção do espaço: podem moldar o
mundo, tem intensões.
imaginário popular e construir visões
Embora as representações possam
estereotipadas e classificatórias de territórios e
apresentar-se de várias maneiras, as que
de sujeitos que ocupam esses territórios. Estas
possuem apelo visual, na nossa sociedade, tem
construções, por sua vez, via de regra, definem
preeminência, pois atendem a uma demanda
ações, modos de intervir, e de conceber
políticas, pois a forma como imaginamos o
3 RABENHORST (2017) mostra que diversos campos
espaço é crucial para a construção do próprio
do conhecimento vêm estudando como as experiências
visuais se tornaram a forma central de comunicação, espaço (MASSEY, 2008).
produção de significado e expressão social atualmente, Resulta deste pressuposto uma questão
inclusive buscando compreender como a visibilidade se relevante: que projeto de cidade está sendo
tornou um valor central da política, afetando de modo sustentado pelas representações espaciais
particular a própria compreensão da democracia como produzidas, mesmo sob o discurso contra
exercício público do poder.
96 C ARTO G R A F IA , E ST I G M AT I Z AÇ ÃO E V I SI BI L I DA DE

hegemônico? moradias precárias ou informais, acesso


Um caso que pode trazer à luz vários inadequado à água e saneamento e insegurança
aspectos da estigmatização territorial, por da posse”.
exemplo, é o da denominação de parcelas No Brasil, também se estima que mais da
urbanas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e metade da população das grandes cidades viva
Estatística (IBGE) como “aglomerados em moradias que acabam se enquadrando na
subnormais”, entenda-se, que estão abaixo do concepção de informalidade ou precariedade:
normal. Em outras palavras, segundo a favelas, loteamentos irregulares e clandestinos,
perspectiva difundida pelo Instituto eles dentre outras formas de ocupação
estariam não apenas fora da normalidade, mas (FERNANDES; ALFONSIN, 2006). Frente a esse
seriam inferiores à mesma. Haveria então algum panorama, não seria razoável questionar a
aglomerado supranormal? E afinal, o que seria definição de normalidade dos assentamentos
um aglomerado normal? Qual a definição de urbanos definida pelo IBGE? Se a maioria das
normal? Segundo a definição do próprio IBGE, pessoas vive em condições ditas subnormais,
um aglomerado subnormal seria: seriam as nossas cidades subnormais? Ou seria
mais apropriado assumir que a normalidade,
(...) o conjunto constituído por 51 ou mais
isto é, a situação mais comum, mais frequente, é
unidades habitacionais caracterizadas por
justamente a considerada subnormal? Tal
ausência de título de propriedade e pelo
situação exemplifica o que SCHWARZ (1992)
menos uma das características abaixo:
cunhou como “ideias fora do lugar”. Maricato
irregularidade das vias de circulação e do
(2000), ao associar essa expressão às cidades,
tamanho e forma dos lotes e/ou carência
traduz tal percepção de descolamento em “lugar
de serviços públicos essenciais (como
fora das ideias”, embora sujeitos da esfera
coleta de lixo, rede de esgoto, rede de água,
técnico-institucional busquem racionalizar,
energia elétrica e iluminação pública).4
ordenar e classificar as diversas situações
problema. Então ocorre o que LEFEBVRE
Apesar de não haver nenhuma menção ou
(2001[1968]) muito bem expressou ao refletir
definição do que seja um aglomerado normal,
sobre a prática tecnicista no campo do
poderíamos inferir, com base na definição
urbanismo:
acima, que a normalidade idealizada estaria
delimitada por uma caracterização oposta a esta Como pôr ordem nessa confusão caótica?
descrita. Entretanto, há um fato não levado em É assim que o racionalismo de organização
consideração, ou mesmo ocultado: mais da coloca seu problema. Essa desordem não é
metade dos habitantes das cidades do “Sul normal. Como instituí-la a título de norma
Global” habitam em condições equivalentes a e de normalidade? (p.30 – grifo nosso).
essas consideradas pelo Instituto como
subnormais, segundo ROLNIK (2015). A autora Ocupação desordenada, irregular, informal,
diz que um estudo realizado pelas Organização surgem assim como formas de classificar e
das Nações Unidas (ONU), em 2011, estimou nominar territórios em condições de alteridade
que 924 milhões de pessoas no mundo viviam em relação à ordem jurídico-urbanística
em slums, palavra adotada pela agência dominante. Não fica claro, porém, que estas
internacional para definir assentamentos configurações territoriais “fora da regra” na
urbanos caracterizados por “superlotação, verdade são “a regra” e não a exceção, sendo
mais nebulosas ainda suas causas: a falta de
4 Trecho retirado de publicação do IBGE, disponível acesso ao mercado “formal” de terra e habitação
em: https://ww2.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/ por parte da maioria da população, ao contrário
imprensa/ppts/00000015164811202013480105748802.pdf, de uma intenção deliberada dessa mesma
acessado 31/07/2018.
97

população em infringir a norma e a lei. acerca da criminalidade e da violência


No fundo tal negação do que está fora, do que certamente são das mais consolidadas. Um
está “subnormal”, daquilo que é considerado exemplo bastante emblemático, que pode ser
uma “aberração”, pode ser lido como uma citado é uma espécie de mapeamento da
tentativa de direcionar a atenção para um ponto atuação de facções criminosas no território
falso, para encobrir, ou não admitir, o foco do carioca, veiculado pela Folha Online e intitulado
problema. O “informal” não está fora, ele é que “Mapa da divisão de facções que comandam o
configura, forma as nossas cidades; ele não é tráfico no Rio de Janeiro” (título atribuído pela
subnormal ou mesmo anormal, é o mais fonte6). Pode-se dizer que esta peça cartográfica
comum, o mais corriqueiro; e não é uma expressa uma simplificação no mínimo
aberração, pois não constitui desvio e sim o inadvertida da problemática que envolve o
padrão, como forma que mais se repete. A comércio ilegal de entorpecentes e sua agência
depender de quem formula a ideia de (a) na cidade do Rio de Janeiro. Primeiro porque
normalidade, talvez a negação possa ser, ao fim associa, sem nenhum tipo de mediação ou
e ao cabo, à própria ordem vigente, que ponderação, os “morros”, entendidos no
desenhou ao longo do tempo diversos cenários contexto carioca como favelas, às facções
de precariedade. criminosas: “conheça os territórios do CV
Este entendimento, porém, não é (Comando Vermelho), do TC (Terceiro
evidente, requer uma análise menos simplista Comando) e do ADA (Amigo dos Amigos)”. Um
da realidade urbana. Trata-se de uma relação de reducionismo que descarta por completo outras
diferença que DERRIDA (1991) chama de formas de vivência, de apropriação, de
“exterior constitutivo”: não é um oposto, mas significados, de dinâmica cotidiana nas favelas.
sim uma condição conflitante, um externo que, Segundo porque induz à ideia, já bastante
estando dentro, cria uma “indecidibilidade difundida, de que este problema começa e
radical”, ou seja, torna impossível a própria termina nestes locais, se encerra neles.
categoria da cidade formal ou idealizada, ROY (2011) levanta questões
revelando os sérios limites e contradições dos semelhantes, só que no âmbito das produções
grandes centros urbanos. cinematográficas, ao citar o longa metragem
É cômodo e conveniente assim encarar “Slumdog Millionaire”, ambientado em Dharavi,
como problema os sujeitos subalternizados5 e Mumbai, considerada a maior favela da Ásia.
estigmatizar os territórios por eles ocupados, Segundo a autora a produção cinematográfica,
justamente porque o enfrentamento efetivo que teve grande repercussão mundial, suscitou
destes limites passa pelo enfrentamento do protestos na Índia:
tema da desigualdade estrutural, uma questão
(...) tanto por seu retrato apocalíptico da
complexa, que envolve o questionamento dos
favela como pornografia da pobreza –
privilégios e bônus de alguns, ao mesmo tempo
não somos ‘cães’, bradavam os moradores
que sobre tantos outros recaem apenas os ônus.
de favelas da Índia – quanto por sua
A classificação mediante representações não
romantização de uma forma de sair da
para no estigma da ilegalidade ou
favela (...) (ROY, 2011:8,9).
informalidade: os territórios populares são alvos
frequentes de outras construções de
A autora aborda a problemática da
subjetividades a seu respeito. As representações
representação desses territórios, mesmo
quando não há intenção clara em depreciá-los,
5 Importante esclarecer a opção pela utilização do termo
“subalternizados” ao invés de “subalternos”, pois entende-
6 Fonte: Folha Online, sem data. Disponível em https://
se que assim ressalta-se a implicação da ação que subjuga
www1.folha.uol.com.br/folha/especial/2002/traficonorio/
e dos sujeitos dessa ação, não naturalizando as relações
divisao_do_trafego.shtml, acessado em 03/08/2018.
hierárquicas de poder.
98 C ARTO G R A F IA , E ST I G M AT I Z AÇ ÃO E V I SI BI L I DA DE

e diz que seu interesse está justamente na virada responder a essa questão julgou-se necessário
dos estudos que buscam falar pelo subalterno – explorar um pouco mais a fundo o tema da
o que ela chama de etnografia conscienciosa – visibilidade.
para os que buscam compreender como o A invisibilidade, em muitos casos, aponta para o
subalterno é constituído em objeto de resultado de relações assimétricas, em que um
representação e conhecimento. Em outras grupo ou sujeito não reconhece o outro como
palavras, ROY (2011) está colocando em pauta igual, e tem poder suficiente, dadas as
uma questão que atualmente tem sido muito circunstâncias e recursos de que dispõe, sejam
debatida, mas talvez ainda longe de ser bem materiais ou simbólicos, para fazer prevalecer as
compreendida: o lugar de fala, a posição do suas concepções e objetivos, nem que para isso
sujeito enunciador. seja necessário menosprezar, subjugar, silenciar,
É neste mesmo sentido que as extinguir, apagar em todos os sentidos outras
representações cartográficas dos territórios visões, práticas, existências7.
populares precisam ser problematizadas, pois Diversos trabalhos buscam expor esses
não é difícil perceber que ao longo do tempo, de processos de invisibilização, como por exemplo
uma maneira geral, eles passam de uma COSTA (2004), em seu trabalho etnográfico
invisibilidade, no sentido de negação completa, sobre a rotina dos garis da cidade universitária
para uma visibilidade que busca um da USP, que percebe a invisibilidade como
reconhecimento seletivo, e a partir da fenômeno psicossocial, o qual implica no
alteridade, com diversas contradições e desaparecimento de um sujeito dentre outros
ambiguidades (FERRAZ, 2016). sujeitos, em função de um processo de
humilhação social, construído historicamente.
A QUESTÃO DA VISIBILIDADE Neste caso particular trata-se da forma como
Se parte-se do pressuposto de que um tipo de ocupação dita “não-qualificada”, a
mapas são representações resultantes de começar pela própria nominação que lhe é
seleções de informações e conteúdos aferida, ocupa lugar inferior na “hierarquia
explicitados e ocultados, de maneira intencional valorativa” (SOUZA, 2006) da divisão social do
e com algum propósito, esbarra-se em um trabalho.
dilema que se refere, em última análise, à Segundo SOUZA (2006) há um critério
visibilidade: de dados, de territórios, de classificatório, “opaco e profundo”, que cristaliza
relações, de processos, e, o mais importante, de várias pressuposições de superioridade e
sujeitos (aos quais esses dados, territórios, inferioridade, facilmente detectável na oposição
relações e processos se referem). entre trabalho intelectual e trabalho manual:
Tornou-se notório que o tema da
visibilidade está em voga nos dias atuais, e, no
(...) a noção de disciplina e de controle
âmbito das lutas populares, geralmente, vem
do corpo que permite a ‘incorporação de
sendo associado a outro termo também
conhecimento útil’ — e o ‘conhecimento’ é
bastante difundido: empoderamento. Ao que
na verdade a única fonte de privilégios que o
parece, já se construiu no senso comum, e
capitalismo verdadeiramente democratiza
mesmo em algumas produções acadêmicas, a
em alguma medida (o conhecimento era
ideia de que quanto mais visibilidade a causa de
guardado a sete chaves nas sociedades
um grupo/sujeito ou o próprio grupo/sujeito
ganha, mais empoderamento esse grupo/sujeito 7 TODOROV (2003) demonstra como o sentimento de
terá. De fato, pode ser uma verdade em muitos superioridade é a chave para entendermos a dominação e
casos, mas será uma verdade que se aplica a a exploração: o ato de forçar o “outro” a se encaixar no seu
todos os casos e circunstâncias? Ao tentar sistema de valores, pressupõe uma visão hierárquica de
relação, que resulta em violências e destruição.
99

tradicionais) já que o capital econômico prisma. O caso das mulheres é bastante


passa pelo sangue como em qualquer ilustrativo: invisíveis do ponto de vista
sociedade pré-moderna (...). (SOUZA, político, por exemplo, elas são, em
2006 – grifo nosso). contrapartida, excessivamente “visíveis”
nos meios de comunicação social e na
publicidade, aparecendo sobretudo a
É mister acrescentar a esta percepção que não
partir de representações visuais que
se trata de qualquer tipo de conhecimento, e
reforçam estereótipos de gênero.
sim àquele concebido pelo projeto da
modernidade, ou seja, o conhecimento burguês,
Outro aspecto a ser ponderado é que
cientificista e tecnocrático, que é útil à
nem sempre a visibilidade é desejável. Se faz
reprodução desse modelo de sociedade.
notório que para alguns grupos sociais, em
Qualquer outro tipo de conhecimento ou saber
determinados contextos, a visibilidade é
não é considerado verdadeiro ou válido, e,
ameaçadora. Por exemplo, pessoas que se
portanto, descartável (SANTOS & MENESES,
encontram em situação de rua, ao menos nas
2009).
grandes cidades brasileiras, quanto mais visíveis
A busca por visibilidade, nestes
estiverem mais expostas à violência. Há
contextos apresentados, se impõe como
inúmeros casos conhecidos de agressões,
necessidade de mostrar-se, fazer conhecida sua
inclusive fatais, direcionadas a esses sujeitos8.
condição ou posição, de afirmar-se, no intuito
Pode ser citada também a situação dos
de reivindicar reconhecimento e lutar por
imigrantes chamados “ilegais”, alvos de violação
direitos negados. Isto é, um processo de
de direitos, ultimamente legitimada pelas
resistência frente às tentativas de rebaixamento
chamadas políticas de “tolerância zero”9. A
e apagamento social, que tem importância, não
apenas do ponto de vista do direito, mas
8 Podemos citar como alguns exemplos: a tragédia que
também no âmbito sociológico. O ficou conhecida como “chacina da candelária”, no Rio de
reconhecimento é uma condição necessária à Janeiro, ocorrida no ano de 1993, em que seis menores
construção da autopercepção, da própria e dois maiores de idade morreram e várias crianças e
existência intersubjetiva e em vias de fato adolescentes ficaram feridos, devido a disparos efetuados
(HONNETH, 2003). por policiais (Fonte: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/
noticia/2015/07/chacina-da-candelaria-sobrevivente-
Daí é possível entender a importância
ainda-tem-pesadelos-diz-irma.html, acessado em
atribuída ao fato de “estar no mapa”, e à 18/06/2018); o bárbaro assassinato do indígena Galdino
necessidade de “tornar-se visível”, que tem se Jesus dos Santos, que ocorreu em Brasília, no ano de
constituído cada vez mais em um passo 1997, quando cinco jovens de classe média lhe atearam
considerado fundamental para desafiar as fogo enquanto dormia em uma parada de ônibus (Fonte:
injustiças sociais naturalizadas. Entretanto, há http://g1.globo.com/distrito-federal/noticia/2015/07/
condenado-por-atear-fogo-em-indio-no-df-tem-posse-
que se considerar que a visibilidade por si só
na-policia-civil-barrada.html, acessado em 18/06/2018);
não garante necessariamente o reconhecimento e mais recentemente, em fevereiro de 2018, o assassinato
social que se espera, nem tampouco resultados de um homem em situação de rua não identificado, que
apenas positivos. Primeiro porque há diferentes foi alvejado por um motociclista após ter sido expulso de
formas de visibilidade, o que parece escapar a um supermercado em um bairro nobre de Niterói (Fonte:
muitas formulações sobre esta questão https://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2018/02/5517062-
morador-de-rua-e-assassinado-em-niteroi-apos-brigar-
complexa, conforme chama atenção
com-seguranca-de-supermercado.html, acessado em
RABENHORST (2017:198,199): 18/06/2018).
(...) alguns grupos sociais, por exemplo,
são invisíveis sob certo ângulo, mas eles
são excessivamente visíveis sob outro
100 C ARTO G R A F IA , E ST I G M AT I Z AÇ ÃO E V I SI BI L I DA DE

invisibilidade, nestes casos, e em muitos outros, de Dados (RGPD)10, que se refere ao tratamento
é uma estratégia de sobrevivência. Isto fica claro de dados de cidadãos da União Europeia. O
quando se chega à conclusão de que uma objetivo é aumentar o controle dos indivíduos
produção cartográfica que colocasse em sobre a coleta, registro, armazenamento,
evidência alguns locais de concentração desses consulta e divulgação de seus dados pessoais
sujeitos, potencialmente os colocaria em risco. por qualquer pessoa, empresa ou organização,
Há também os que buscam a invisibilidade para incluindo o tratamento desses dados fora do
a preservação de sua posição de poder, de território europeu. Para isto o regulamento
privilégio, de exclusividade. prevê a forma como o consentimento do
Assim, parece pertinente a introdução tratamento dos dados pessoais tem que ser
das seguintes reflexões: não haveria uma obtido a partir de agora: de livre vontade,
diferença importante entre ser invisibilizado e específico para uma determinada finalidade,
se invisibilizar? Quando e para quem a explícito e informado, o que implica a
visibilidade é desejável ou indesejável? E que especificação precisa de todos os dados
tipo de visibilidade se deseja ou se repudia? pessoais que serão manipulados e quem o fará.
Estas dicotomias estão mais presentes no dia a O pedido de consentimento também deve ser
dia do que se imagina: as próprias plataformas apresentado de forma clara e concisa, com
de comunicação tiveram que se adaptar às linguagem acessível, e ser distinguível de outras
demandas dos seus usuários para que esses informações como os termos e condições, ou
pudessem selecionar para quais contatos seja, não pode mais estar incluído num longo
desejavam estar “visíveis” ou “invisíveis” e em texto, o que era de praxe, e que raramente as
quais situações. Por exemplo: há opções de pessoas liam. Além disso, garante os direitos de
privacidade que restringem determinados tipos pedir o acesso aos próprios dados detidos, de
de postagem para grupos de contatos pré- pedir a um prestador de serviços que transfira
selecionados; outras opções restringem os dados pessoais a outro prestador de serviços
informações pessoais como idade, local de (por exemplo, ao mudar de uma rede social na
trabalho, de residência etc; há também a opção Internet para outra) e de “ser esquecido”, para os
de solicitação de autorização prévia para ser casos em que a pessoa queira que os seus dados
“marcado” (visibilizado) em publicações de sejam apagados. Isto busca garantir, por
terceiros, e assim por diante. Mais recentemente exemplo, a possibilidade de alguém solicitar
foi aprovado inclusive um novo parâmetro legal, desde o apagamento de alguns de seus registros,
chamado Regulamento Geral sobre a Proteção até mesmo todos os seus rastros na internet,
desaparecendo por completo dos sites e páginas
9 Medidas de repressão à imigração não desejada pelo diversas.
governo de Trump nos EUA, têm sido implementadas desde Estes, dentre tantos outros exemplos,
abril de 2018: a detenção por tempo indeterminado, seguida
servem para indicar que a invisibilidade pode
de acusação criminal e deportação em massa dos imigrantes
considerados ilegais entraram em vigor. Em especial, a ser desejável em mais contextos do que se pode
medida de separação de pais e filhos causou indignação imaginar, ou do que se induz a imaginar nesta
internacional e gerou uma enxurrada de críticas. Imagens era da informação e da celebração acrítica da
e vídeos de crianças trancadas em uma espécie de jaula exposição.
chocaram o mundo. Fonte: https://vestibular.uol.com.br/ RABENHORST (2017), alerta para o fato
resumo-das-disciplinas/atualidades/imigracao-nos-eua-
de alguns autores associarem a visibilidade,
a-politica-de-tolerancia-zero-e-o-drama-das-criancas-na-
fronteira.htm?cmpid=copiaecola, acessado em 24/06/2018.
10 Disponível em: https://ec.europa.eu/commission/
priorities/justice-and-fundamental-rights/data-
protection/2018-reform-eu-data-protection-rules_pt,
acessado em 26/07/2018
101

antes de mais nada, à ideia de “observalidade”. O O Panóptico é uma máquina de dissociar


próprio Michel Foucault, notório por suas teses o par ver-ser visto: no anel periférico se
sobre as formas de controle social por meio das é totalmente visto, sem nunca se ver; na
instituições modernas, chegou a afirmar que “A torre central vê-se tudo, sem nunca ser
visibilidade é uma armadilha” (FOUCAULT, visto. (FOUCAULT, 1975: 167).
1975:166). É uma consideração que merece, no Depreende-se, portanto, que há neste
mínimo, atenção. Para entende-la é preciso exemplo três pares “ver-ser visto” no Panóptico:
olhar para sua análise do “Panóptico” – do vigiado em relação ao vigia, que é “não ver-
concebido por Jeremy Bentham (1785) –, que ser visto”; do vigia em relação aos vigiados, que
nada mais é que um modelo arquitetônico de é “ver-não ser visto”; e do vigiado em relação aos
edifício cuja finalidade era manter sob controle outros vigiados, que é “não ver-não ser visto”.
constante uma série de sujeitos que tivessem Há diversas leituras que podem ser extraídas
que ser submetidos a algum tipo de custódia. dessas relações de visibilidade. A primeira
Em primeiro lugar, cada sujeito estaria refere-se aos pares “não ver-ser visto” e “não ver-
“perfeitamente individualizado” e depois não ser visto”. Nos dois casos a condição
“constantemente visível”. Para esses sujeitos, imposta ao vigiado é “não ver”: nem quem o
nestas condições, o fato de serem vistos o tempo vigia, nem seus pares. E aqui podem ser
todo foi considerado uma armadilha. E vislumbrados possíveis pontos-chaves para a
explorando ainda mais este cenário, o autor ação de resistência: a quebra do isolamento e a
prossegue: “contra-visualidade” (MIRZOEFF, 2011). Como
mencionado acima, o contato e comunicação
Cada um em seu lugar, está bem trancado
entre os sujeitos vigiados é uma ameaça para o
em sua cela de onde é visto de frente pelo
poder estabelecido. Assim, talvez a reflexão
vigia; mas os muros laterais impedem que
fundamental, em uma situação de
entre em contato com seus companheiros.
desvantagem, diria respeito não à visibilidade
É visto, mas não vê; objeto de informação,
em si, mas principalmente para quem se tornar
nunca sujeito numa comunicação.
visível.
(FOUCAULT, 1975:166).
O outro ponto-chave apontado, tem a
ver com o terceiro par: “ver-não ser visto”, este
Aqui está uma pista valiosa sobre dois
refere-se ao fato de o poder estabelecido
tipos de visibilidades totalmente distintas: o ser
observar e vigiar, ao passo que obscurece a si
visto pelo vigia e o ser visto pelos companheiros
mesmo. Esta é uma tática, uma estratégia
de confinamento. No modelo analisado pelo
fundamental para a manutenção do poder, que
autor o segundo tipo é negado, justamente por
tem sido utilizada há muito tempo.
ser considerado favorável aos confinados: a
Nicholas Mirzoeff (2011) vai afirmar que
partir do estabelecimento de uma comunicação
desde sua origem, que ele associa à plantação
entre esses sujeitos, haveria a possibilidade de
escravista e ao exército moderno, a
união e organização dos mesmos, favorecendo
“visualidade”11 esteve relacionada ao
um complô, uma revolta, ou coisa que o valha. O
conhecimento absoluto do “outro”, a partir de
fato de ser “sujeito numa comunicação”, ou seja,
uma forma assimétrica de visualização na qual
protagonista em uma fala, em uma ação, neste
não há reciprocidade do olhar. Baseado nisto ele
contexto, significava uma ameaça em potencial
vai introduzir o conceito do “direito de olhar”,
à ordem estabelecida pelo sistema de vigilância.
que seria em suma, uma “contra-visualidade”.
E a maneira de bloquear esta ameaça foi, de
certa forma, engenhosa, como destaca a
continuação do texto: 11 O autor em questão utiliza o termo “visualidade”
ao invés de “visibilidade”, mas no mesmo sentido que
empregamos o segundo aqui neste trabalho.
102 C ARTO G R A F IA , E ST I G M AT I Z AÇ ÃO E V I SI BI L I DA DE

Consistiria principalmente em criar estratégias que por sua vez permitiram ampliar ainda mais
de desarticulação do sistema hegemônico de não apenas o alcance da vigilância, mas
visualização, procurando estabelecer assim um também torná-la bem mais difusa. De certo não
olhar mais igualitário. há mais uma “torre de controle”, que pode ser
Quando levado ao limite, este raciocínio facilmente identificada. RABENHORST (2017),
demonstra que a democracia, no seu sentido comenta que o sociólogo Thomas Mathiesen
mais amplo, só pode se efetivar quando há o acrescenta ao modelo Foucaultiano do
reconhecimento mútuo entre os sujeitos, o qual Panóptico o modelo do Sinóptico como novo
ocorre por meio do olhar recíproco. Em uma mecanismo de poder, onde não mais poucos
democracia representativa este princípio, em vigiam muitos, mas também muitos vigiam
tese, também se aplica. A própria noção de vida poucos, a partir da banalização e ampla difusão
pública remete a esta ideia: vida visível ao de dispositivos de vigilância e registro (câmeras,
público. Assim como espaço público relaciona- drones, celulares, gps). Ou seja, as pessoas
se à cena pública, na qual os atores representam observadas são agora também ávidas
o seu papel de homens públicos, segundo as observadoras. Desta forma, o Panóptico e o
convenções que orientam a vida em público ou Sinóptico operam em conjunto nos dias atuais.
as relações públicas (GOFFMAN,1973; Isto pode significar por um lado, e em
SENNETT, 1979). Porém, esta cena pública, determinados casos, a redução da assimetria de
entendida como cena de visibilidade, parece se visualidade, mas por outro lado, pode também
distanciar cada vez mais do propósito para o significar a intensificação do controle, que pode
qual foi idealizada: vir de todos os lados.
Há, portanto, este esforço em ocultar
Em seu célebre livro sobre as promessas não
áreas, espaços estratégicos para o exercício de
cumpridas da democracia, Bobbio afirma
um determinado poder, ao mesmo tempo em
que esta nasceu com propósito de fazer
que há técnicas e formas sofisticadas para
desaparecer o poder invisível, colocando
conhecer, esmiuçar e controlar os espaços e as
em seu lugar um poder transparente,
ações do outro. O que nos faz retomar mais uma
cujas decisões seriam sempre visíveis e
vez a metáfora do Panóptico para evidenciar
controláveis por todos/as. (RABENHORST,
que:
2017:203).
As cerimônias, os rituais, as marcas
Por isso, percebe-se uma crescente
pelas quais se manifesta no soberano
exigência de mecanismos de controle público
o mais-poder são inúteis. Há uma
por meio de prestações de contas,
maquinaria que assegura a dissimetria, o
transparência, fóruns de participação social
desequilíbrio, a diferença. Pouco importa,
mais direta etc. Não obstante, a visibilidade é
consequentemente, quem exerce o poder.
cada vez mais mediada pelos meios eletrônicos
Um indivíduo qualquer, quase tomado ao
e midiáticos, que não podem ser encarados
acaso, pode fazer funcionar a máquina
apenas como canais de transmissão da
(...). Do mesmo modo que é indiferente
informação, mas principalmente como
o motivo que o anima: a curiosidade de
geradores e modeladores de opinião.
um indiscreto, a malícia de uma criança,
Estas tentativas sutis e sofisticadas de escapar ao
o apetite de saber de um filósofo (...), ou
controle se desenvolvem paralelamente e
a maldade daqueles que têm prazer em
proporcionalmente às novas e mais avançadas
espionar e em punir. (...) O Panóptico é
tecnologias para efetuar o controle. Pode-se
uma máquina maravilhosa que, a partir
dizer que, em pleno século XXI, houve uma
dos desejos mais diversos, fabrica efeitos
atualização do sistema Panóptico, por meio de
homogêneos de poder. (FOUCAULT,
modernos meios de comunicação e informação,
103

1975:167 – grifo nosso). Admite-se também que, no que se refere à


reinvindicação por reconhecimento social do
É justamente aqui que mora outra direito de representação e participação cidadã, a
grande questão sobre a visibilidade. Se alguns visibilidade é imprescindível, e a cartografia
grupos subalternizados são expostos, em crítica tem tido um importante papel neste
determinadas circunstâncias, não importa sentido. Entretanto, há outros pares de “ver-ser
exatamente quem os expôs ou com que intuito o visto”, e em circunstâncias onde não há
fez, pois como demonstrou FOUCAULT, tão condições iguais de reciprocidade do olhar,
somente o fato de ser observado em uma necessariamente, há que se questionar que tipo
situação desfavorável é suficiente para criar de visibilidade está em jogo, e principalmente,
constrangimentos e coagir. que resultados trará para o/s lado/s com mais
desvantagens em um determinado contexto
CONSIDERAÇÕES FINAIS social.

A discussão empreendida aqui busca REFERÊNCIAS


trazer para a pauta o fato de que os mapas,
mesmo que não intencionalmente, podem ACSELRAD, Henri. Mapeamentos,
servir para reforçar imaginários geográficos identidades e territórios. In: ACSELRAD, Henri.
hegemônicos, reproduzindo relações desiguais (org.) Cartografia social e dinâmicas territoriais:
e de dominação. Seria então o caso de abrir marcos para o debate. IPPUR. UFRJ. Rio de
mão por completo do ato de cartografar? Janeiro, 2010.
Acredita-se que não, pois as peças cartográficas ARANTES, Otília.; MARICATO, Ermínia.;
também podem ser transformadas em VAINER, Carlos. A cidade do pensamento único.
instrumentos de explicitação dessas relações. Desmanchando consensos. Petrópolis: Vozes,
Podem muito bem provocar rupturas e 2000.
subversões nas leituras tradicionais de BOURDIEU, P. O Poder Simbólico. Rio de
territórios e territorialidades. Mas para isto, são Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
necessárias algumas precondições, tais como CARLOS, Ana Fani Alessandri; ALVES, Gloria
decidir cuidadosamente o quê ou quem Anunciação; PADUA, Rafael Faleiros de. Justiça
cartografar, e para quê e para quem cartografar. espacial e o direito à cidade. São Paulo:
Acredita-se também no esforço de ir além da Contexto, 2017.
representação pela representação, ou seja, os CARLOS, Ana Fani Alessandri. O Espaço
mapas não precisam ser uma imagem estanque, Urbano: Novos Escritos sobre a Cidade. São
com um fim em si mesma. Podem, sobretudo, Paulo: FFLCH, 2007, 123p.
servir como meios, como instrumentos, que CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre
auxiliem na compreensão de processos práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990.
complexos, dinâmicas em curso e com muitas COSTA, Fernando Braga da. Homens
possibilidades em aberto. invisíveis: relatos de uma humilhação social. São
Trata-se de escolhas, pois o que é o Paulo: Globo, 2004.
mapa senão a seleção de informações que COSTA, Maria Luiza C. de C. O mapa de
pretendem representar um determinado ponta-cabeça. World Congress on
território? Como toda a representação, o mapa é Communication and Arts, São Paulo, April 17 -
uma imagem-síntese, que reúne informações 20, 2011. Disponível em: https://repositorio.
selecionadas dentre tantas outras que poderiam unesp.br/bitstream/handle/11449/134669/
fazer parte dele. Cabe, portanto, a quem se ISSN2317-1707-2011-01-01-193-197.
propõe a esta tarefa deixar clara suas opções, pdf?sequence=1, acessado em 05/07/2018.
justificando-as. CRAMPTON, Jeremy; KRYGIER, John. An
104 C ARTO G R A F IA , E ST I G M AT I Z AÇ ÃO E V I SI BI L I DA DE

Introduction to Critical Cartography. ACME: An MENDONÇA, F.; SAHR, C. L. L.; SILVA, M.


International E-Journal for Critical Geographies, (org.). Espaço e tempo: complexidade e desafios
4(1), p. 11-33, 2006. do pensar e do fazer geográfico. Curitiba:
DERRIDA, Jacques. A diferença. In: Margens Ademadan, 2009.
da filosofia. Campinas: Papirus, 1991, p. 33-63. _________. Viver no limite: território e multi/
DUSSEL, Enrique. 1492. El encubrimiento del transterritorialidade em tempos de insegurança e
otro. Hacia el origen del mito de la modernidad. contenção. 1. Ed. – Rio de Janeiro: Bertrand
Madrid, Nueva Utopía, 1992. Brasil, 2014.
ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os HARLEY, John Brian. Deconstructing the
estabelecidos e os outsiders. Rio de Janeiro: Jorge map. Cartographica, v. 26, n. 2, p. 1-20, 1989.
Zahar Ed., 2000. _________. Mapas, saber e poder. Confins
FAULHABER, Lucas; AZEVEDO, Lena. SMH [Online], 5 | 2009, publicação online de 24 abril
2016: remoções no Rio de Janeiro Olímpico.1ª de 2009. Disponível em http://www.educadores.
Ed., Rio de Janeiro, Mórula, 2015. diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/agosto2011/
FERRAZ, Nicoli Santos. Mapeamento das geografia_artigos/6art_mapas_saber_poder.pdf,
favelas cariocas: do vazio cartográfico ao acessado em 09/07/2018.
espetáculo da integração. IV Encontro da HARVEY, David. O direito à cidade. Lutas
Associação Nacional de Pesquisa e Pós- Sociais, São Paulo, n.29, p.73-89, jul./dez. 2012.
Graduação em Arquitetura e Urbanismo Porto _________. Cidades rebeldes: do direito à
Alegre, 25 a 29 de Julho de 2016. cidade à revolução urbana. Martins fontes, são
FERRAZ, Sonia. M. T. A Mídia no Combate à paulo, 2014.
Violência: A Operação Rio. Favelados e favela _________. Paris, capital da modernidade.
como os bodes expiatórios. In: 9ª COMPÓS - São Paulo, Boitempo, 2015.
Encontro Anual das Associações dos Programas HEIDRICH, Álvaro Luiz. Esquema para
de Pós Graduação em Comunicação, Porto dialogar com descartógrafos. Publicado em
Alegre RS, 2000. WASHINGTON, Cláudia; ARAÚJO, Lúcio de;
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: GOTO, Newton.. (Org.). Recartógrafos. Curitiba:
nascimento da prisão. 36ª ed. Petrópolis: Vozes, edição do autor, 2010, v. 1, p. 33-41.
2009. HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a
GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: gramática moral dos conflitos sociais.Tradução
verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia de Luiz Repa. São Paulo: Ed. 34, 2003.
das Letras, 2007. ICONOCLASISTAS. Algumas Considerações
GIRARDI, Eduardo Paulon. Proposição acerca da Prática do Mapeamento Coletivo.
teórico-metodológica de uma cartografia 2012. Disponível em http://www.iconoclasistas.
geográfica crítica e sua aplicação no net/portugues/, acessado em 29/07/2015.
desenvolvimento do atlas da questão agrária _________. Manual de mapeo colectivo:
brasileira. Tese (doutorado) - Universidade recursos cartográficos críticos para procesos
Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e territoriales de creación colaborativa. 1a ed.
Tecnologia, 2008. Buenos Aires: Tinta Limón, 2013.
GOTTDIENER, M. A produção social do KOWARICK, Lúcio. A espoliação urbana. 2ª
espaço urbano. 2.ed. São Paulo: Edusp, 2010. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.
GUERREIRO RAMOS, Alberto. Introdução LEEDS, Anthony; LEEDS, Elizabeth. A
crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: sociologia do Brasil urbano. Rio de Janeiro:
Editora da UFRJ, 1995. Zahar, 1978.
HAESBAERT, Rogério. Território e região LÉFÈBVRE, Henri. (1979) Lógica formal/
numa ‘constelação’ de conceitos. In: lógica dialética. 6ª ed. Rio de Janeiro: Civilização
105

Brasileira, 1995. Ciudad autônoma de Buenos Aires, Argentina,


__________. (1968). O direito à cidade. 2005.
Tradução de Rubens Eduardo Frias. São Paulo: RABENHORST, Eduardo Ramalho.
Centauro, 2001. Visibilidade e direito: esboço de um problema.
__________. (1974). La producción del Periódico do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre
espacio. Introducción y traducción de Emilio Gênero e Direito, Centro de Ciências Jurídicas -
Martínez Gutiérrez. Primera edición en Capitán Universidade Federal da Paraíba, V. 6 - Nº 01 -
Swiny: Noviembre 2013. Ano 2017.
MAIA, Flávia; PÉREZ, Ayara; RAMOS, RIBEIRO, Ana Clara Torres et al. Por uma
Amanda. As favelas do lado do olimpo: cartografia da ação: pequeno ensaio de método.
mapeamento colaborativo na disputa simbólica In Por uma sociologia do presente: ação, técnica
pelo rio de 2016. Disponível em http:// e espaço. Vol. 4, Rio de Janeiro: Letra Capital,
xvienanpur.com.br/anais/?wpfb_dl=457, acesso 2013.
em 28/07/2015. ROLNIK, R. Guerra dos lugares: A
MASSEY, Doreen B. Pelo espaço: uma nova colonização da terra e da moradia na era das
política da espacialidade. Rio de Janeiro: finanças. São Paulo: Boitempo, 2015.
Bertrand Brasil, 2008. ROY, Ananya. Planejamento e Gestão
MESQUITA, André Luiz. Mapas dissidentes. Espacial da Pobreza. Revista Brasileira de
Proposições sobre um mundo em crise (1960- Estudos Urbanos e Regionais. v. 11, n. 1, 2009
2010)”. Tese de doutorado em História Social. (p.129-139).
Programa de Pós-Graduação em História Social __________. Cidades Faveladas. Repensando
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências o urbanismo subalterno. Revista e-metropolis, nº
Humanas da Universidade de São Paulo. São 31, 2011.
Paulo, 2013. SANDERCOK, Leonie. Debatendo o
__________. Contracartografia e a experiência preconceito: a importância das histórias e de
de mapear o poder. Editoriais de Escola da sua narração na prática do planejamento. In:
Cidade, 2017. Disponível em http://www.ct- Cadernos IPPUR, ano XIX, ½, jan-dez 2005,
escoladacidade.org/contracondutas/editorias/ p.289-315.
mapas-imagens-e-intervencoes-praticas-de- SANTOS, Boaventura de Souza; MENESES,
oposicao/contracartografia-e-a-experiencia-de- Maria Paula. Epistemologias do Sul. Coimbra,
mapear-o-poder/, acessado em 17/04/2018. Edições Almendina, 2009.
MIRAFTAB, Faranak. Insurgent planning: SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço.
situating radical planning in the global south. In: Técnica e Tempo. Razão e Emoção. São Paulo,
Planning Theory. 2009; 8; pp. 32-50. Hucitec, 1996.
MIRZOEFF, Nicholas. The Right to Look: A __________. A urbanização brasileira. 5ª. ed.
Counterhistory of Visuality. Durham, NC: Duke São Paulo: Edusp, 2005.
University Press Books, 2011. SIMMEL, G., A natureza sociológica do
QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder e conflito. In MORAES FILHO, Evaristo (org.),
classificação social. In SANTOS, Boaventura de Simmel, São Paulo, Ática, 1983.
Souza & Meneses, Maria Paula. Epistemologias SOUZA, Jessé (Org). A invisibilidade da
do Sul. Coimbra, Edições Almendina, 2009. desigualdade brasileira. Belo Horizonte: UFMG,
_________. Colonialidade do Poder, 2006.
Eurocentrismo e América Latina. In: SOUZA, Marcelo Lopes de. Os conceitos
Colonialidade do Saber: eurocentrismo e ciências fundamentais da pesquisa sócio-espacial. 1 ed.,
sociais. Perspectivas latinoamericanas. Edgardo Rio de Janeiro: Betrand Brasil, 2013.
Lander (org). ColeccíonSurSur, CLACSO,
106

SOBRE OS AUTORES

Ana Carolina Marques Machado. Graduada em Arquitetura e Urbanismo na


Universidade Federal Fluminense. Pesquisadora do grupo de pesquisa Grandes
Projetos de Desenvolvimento Urbano, Laboratório Globalização e Metrópole
GPDU/PPGAU/UFF.

Antônio Júnior Pimentel. Graduando em Arquitetura e Urbanismo na


Universidade Federal Fluminense. Pesquisadora do grupo de pesquisa
Grandes Projetos de Desenvolvimento Urbano, Laboratório Globalização e
Metrópole GPDU/PPGAU/UFF.

Amanda Wanis. Produtora Cultural. Mestre e Doutora no Programa de Pós-


graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense
(PPGAU/UFF). Pesquisadora do grupo de pesquisa Grandes Projetos de
Desenvolvimento Urbano, Laboratório Globalização e Metrópole GPDU/
PPGAU/UFF.

Fernanda Sánchez. Professora Titular do Departamento de Urbanismo da


Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense, líder do
grupo de pesquisa Grandes Projetos de Desenvolvimento Urbano, Laboratório
Globalização e Metrópole GPDU/PPGAU/UFF, pesquisadora associada do
Laboratório Estado, Trabalho, Território e Natureza (ETTERN/IPPUR/UFRJ) e
pesquisadora do CNPq.

Grasiele Márcia Magri Grossi. Arquiteta e Urbanista. Mestre e Doutora no


Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade
Federal Fluminense (PPGAU/UFF). Pesquisadora do grupo de pesquisa Grandes
Projetos de Desenvolvimento Urbano, Laboratório Globalização e Metrópole
GPDU/PPGAU/UFF e pesquisadora associada do Laboratório Estado Trabalho
Território e Natureza (ETTERN/IPPUR/UFRJ).
107

Marcus César Martins da Cruz. Arquiteto e Urbanista. Mestre no Programa de Pós-


graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (PPGAU/
UFF). Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo
da Universidade Federal de Minas Gerais (NPGAU/UFMG). Arquiteto Analista do
Conselho de Arquitetura e Urbanismo de Minas Gerais – CAU/MG. Pesquisador
do grupo de pesquisa Grandes Projetos de Desenvolvimento Urbano, Laboratório
Globalização e Metrópole GPDU/PPGAU/UFF e do grupo de pesquisa Cosmópolis
(EA/UFMG).

Paula Cardoso Moreira. Arquiteta e Urbanista. Mestranda em Planejamento Urbano


e Regional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pesquisadora associada do
grupo Grandes Projetos de Desenvolvimento Urbano, Laboratório Globalização
e Metrópole GPDU/PPGAU/UFF e pesquisadora do Laboratório Estado Trabalho
Território e Natureza (ETTERN/IPPUR/UFRJ).

Poliana Monteiro. Arquiteta e Urbanista. Mestre em Planejamento Urbano e Regional


pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutoranda no Programa de Pós-
graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (PPGAU/
UFF). Pesquisadora do grupo de pesquisa Grandes Projetos de Desenvolvimento
Urbano, Laboratório Globalização e Metrópole GPDU/PPGAU/UFF e pesquisadora do
Laboratório Estado Trabalho Território e Natureza (ETTERN/IPPUR/UFRJ).

Renato Emerson dos Santos. Geógrafo. Mestre em Planejamento Urbano e Regional


pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutor em Geografia pela Universidade
Federal Fluminense. Professor adjunto no Instituto de Pesquisa e Planejamento
Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Coordena o Núcleo de
Estudos e Pesquisas em Geografia, Relações Raciais e Movimento Sociais (NEGRAM).
Pesquisador do Laboratório Estado Trabalho Território e Natureza (ETTERN/IPPUR/
UFRJ).
Rosane Rebeca de Oliveira Santos. Arquiteta e Urbanista. Mestre em Arquitetura
e Urbanismo pela Universidade de São Paulo. Doutoranda no Programa de Pós-
graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (PPGAU/
UFF). Pesquisadora do grupo de pesquisa Grandes Projetos de Desenvolvimento
Urbano, Laboratório Globalização e Metrópole GPDU/PPGAU/UFF e pesquisadora
associada do Laboratório Estado Trabalho Território e Natureza (ETTERN/IPPUR/
UFRJ).

Thiago Araújo do Pinho. Graduado em Ciências Econômicas pela Universidade


Federal de Minas Gerais (UFMG) e em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais (PUC-MG). Mestre e Doutorando em Planejamento Urbano e Regional
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pesquisador associado do Laboratório
Estado Trabalho Território e Natureza (ETTERN/IPPUR/UFRJ).
108

Você também pode gostar