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anais

EIXO TEMÁTICO 1
HISTORIOGRAFIA E
PENSAMENTO URBANÍSTICO

ORG.
Dilton Lopes de Almeida Júnior
Fabio Macedo Velame
José Carlos Huapaya Espinoza
ORGANIZAÇÃO

Dilton Lopes de Almeida Júnior


Fabio Macedo Velame
José Carlos Huapaya Espinoza

PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO

Alyssa Volpini Lustosa


Igor Gonçalves Queiroz
Júlia Dominguez da Silva
Leonardo Vieira de Souza

www.xvishcu.arq.ufba.br

Salvador - Bahia
2021

S471a Seminário de História da Cidade e do Urbanismo (16.: 2021 : Salvador, BA)


Anais [do] XVI Seminário de História da Cidade e do Urbanismo, 15-18 Junho 2021. -
Salvador: UFBA, 2021 / Organização Dilton Lopes de Almeida Júnior, Fábio Macedo
Velame, José Carlos Huapaya Espinoza.

Tema: 30 anos: atualização crítica.


ISSN: 2178-7158

1. Planejamento urbano - Congtressos. 2. Cidades e vilas – Congressos. 3. Urbanização


– História - Congressos. I. Almeida Júnior, Dilton Lopes. II. Velame, Fábio Macedo. III. Espinoza,
José Carlos Huapaya.

CDU: 711.4(091)

Sistema Universitário de Bibliotecas – UFBA


Elaborada por Geovana Soares Lira CRB-5: BA-001975/O
ANAIS

16º SHCU
SEMINÁRIO DE HISTÓRIA
DA CIDADE E DO URBANISMO

30 anos . atualização crítica


16º SHCU Entre 15 e 18 de junho de 2021, trinta anos após
o 1º Seminário de História Urbana, o Programa
SEMINÁRIO DE HISTÓRIA de Pós-Graduação da Faculdade de Arquitetu-
ra da UFBA recebeu pela quarta vez (1990, 1993
DA CIDADE E DO URBANISMO e 2002) o Seminário de História da Cidade e do
Urbanismo. Passadas três décadas, surgem al-
gumas indagações: quais seriam as questões
30 anos . atualização crítica teóricas e metodológicas que, com toda a ex-
periência acumulada em pesquisas, interpre-
tações e narrativas históricas das cidades e do
15-18 . junho . 2021 urbanismo no país, guiariam uma atualização
crítica desse campo de conhecimento? Quais
Salvador - Bahia seriam os temas, problemas, teorias, metodo-
logias, sujeitos e redes envolvidas nesse pro-
cesso de construção intelectual da história do
pensamento urbanístico entendido como uma
problemática contemporânea em suas diversas
abrangências? Como os diferentes campos de
pesquisa sobre as cidades, a partir dos limiares
entre os campos da Arquitetura, do Urbanismo
e da História, têm produzido experiências multi
ou transdisciplinares? Quais as dimensões pre-
sentes na construção de nosso campo de deba-
tes relativas às experiências e culturas urbanas
cotidianas, às coletividades, aos saberes tradi-
cionais, aos silenciamentos, às questões étni-
co-raciais e de gênero?

Bienalmente realizado desde 1990, o SHCU en-


contra-se na sua décima sexta edição em 2021,
caracterizada por equacionar, divulgar e estimu-
lar a construção da historiografia da cidade e do
urbanismo no âmbito dos diversos programas
de pós-graduação. Mediante trocas disciplina-
res profícuas por mais de trinta anos, acolhen-
do contribuições de campos de conhecimentos
diversos – Arquitetura e Urbanismo, a História, a
Geografia, a Sociologia, a Antropologia etc. – o
SHCU é o mais importante fórum de debates, di-
fusão, trocas no campo da história urbana entre
pesquisadores, programas de pós-graduação e
prática profissional.

Nesse sentido, nesta edição foram propostos


quatro eixos: 1. Historiografia e Pensamento Ur-
banístico no qual interessa refletir questões te-
órico-metodológicas, os problemas, as teorias,
as metodologias, os atores, as redes intelectu-
ais e os regimes de historicidade; 2. História,
Urbanismo e outros campos do conhecimento
16º SHCU sobre as cidades onde o interesse volta-se para
30 anos . Atualização Crítica experiências, multi, inter e transdisciplinares,
os saberes tradicionais e a dimensão da expe-
riência urbana cotidiana; 3. Escritas da História
Urbana através do qual propomos vislumbrar
as temporalidades, os silenciamentos, os mo-
dos de narração e as práticas historiográficas
– história oral, comparada, conectada, relatos,
testemunhos, cidade letrada, literatura, biogra-
fias, montagens etc e; 4. Cidades, Memórias e
Arquivos o qual se debruça sobre as fontes, os
documentos, as materialidades, os patrimônios,
as cartografias, as iconografias e outras fontes,
documentos e vestígios.

Se, há exatos trinta anos, houve um claro flores-


cimento do interesse pela História no campo do
Urbanismo – que resultou na proposta do 1º se-
minário feita por jovens professores e pesquisa-
dores –, como essa aproximação com o campo
da História e da Historiografia ainda pode con-
tribuir para a discussão das questões urbanas?
Quais seriam hoje as escritas da história urbana,
os modos de narração e as práticas historiográ-
ficas relacionadas às cidades? Como diferentes
fontes documentais vêm sendo ressignificadas
entre memórias e arquivos, cartografias e ico-
nografias urbanas? Como fazer e atualizar criti-
camente a história das cidades e do urbanismo
na conturbada conjuntura atual do Brasil?

As respostas e reflexões de alguns desses ques-


tionamentos podem ser encontradas nas 41 Ses-
sões Temáticas, 30 Mesas Temáticas e 160 vídeo
posters apresentados ao longo do evento e que
agora são disponibilizados em forma de Anais.
Esse conjunto de trabalhos evidenciam, ainda,
uma série de lacunas e temas emergentes que
apontam para a possibilidade (e necessidade) de
ampliação e revisão de questões voltadas para a
história da cidade e do urbanismo e sua inter-re-
lação e fortalecimento com outros campos de
saber como forma de problematizar e contribuir
nas discussões atuais do campo.

Dilton Lopes de Almeida Júnior


Fabio Macedo Velame
José Carlos Huapaya Espinoza

Coordenadores Executivos do 16º Seminário


de História da Cidade e do Urbanismo
16º SHCU Coordenação Honorária

Seminário de História Ana Fernandes

da Cidade e do Urbanismo Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA

Marco Aurélio A. de Filgueiras Gomes


comissão organizadora Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA

Coordenação Executiva

Dilton Lopes de Almeida Júnior


Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA

Fabio Macedo Velame


Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA

José Carlos Huapaya Espinoza


Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA

Coordenação Organizadora

Alexandre Pajeú Moura


Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA

Anna Paula Ferraz


Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA

Aparecida Netto Teixeira


Arquitetura e Urbanismo – PPTDS/UCSAL

Cibele Moreira Nobre Bonfim


Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA

Fellipe Decrescenzo Andrade Amaral


Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA

Igor Gonçalves Queiroz


Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA

Janayna Victória Araujo


16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica Arquitetura e Urbanismo – FAUFBA
Josane dos Santos Oliveira Anna Paula Ferraz
Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA

Júlia Dominguez Fellipe Decrescenzo Andrade Amaral


Arquitetura e Urbanismo – FAUFBA Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA

Juliana Cardoso Nery Igor Gonçalves Queiroz


Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA

Laila Nazem Mourad Janayna Victória Araujo


Arquitetura e Urbanismo – PPTDS/UCSAL Arquitetura e Urbanismo – FAUFBA

Larissa Corrêa Acatauassú Josane dos Santos Oliveira


Arquitetura e Urbanismo – MPCECRE/UFBA Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA

Luiz Antonio de Souza Júlia Dominguez


Arquitetura e Urbanismo - PPGAU/UFBA Arquitetura e Urbanismo – FAUFBA
Urbanismo – UNEB
Ramon Martins da Silva
Nivaldo Vieira de Andrade Junior Arquitetura e Urbanismo - PPGAU/UFBA
Arquitetura e Urbanismo - PPGAU/UFBA

Paola Berenstein Jacques Comunicação e Design GráfIco


Arquitetura e Urbanismo - PPGAU/UFBA
Alyssa Volpini
Ramon Martins da Silva Arquitetura e Urbanismo – FAUFBA
Arquitetura e Urbanismo - PPGAU/UFBA
Dilton Lopes de Almeida Júnior
Sonia Mendes Reis Nascimento Silva Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA
Arquitetura e Urbanismo - PPGAU/UFBA
Igor Gonçalves Queiroz
Sophia Lluís de Oliveira Ramos Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA
Arquitetura e Urbanismo - FAUFBA
Leonardo Vieira de Souza
Arquitetura e Urbanismo – FAUFBA
Secretaria
Ramon Martins da Silva
Alexandre Pajeú Moura Arquitetura e Urbanismo - PPGAU/UFBA
Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA
Sofia de Carvalho Costa e Lima
Alyssa Volpini Arquitetura e Urbanismo – FAUFBA
Arquitetura e Urbanismo – FAUFBA
16º SHCU Márcia Genésia de Sant’Anna
Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA)
Seminário de História Coordenadora

da Cidade e do Urbanismo Adriana Caúla


Arquitetura e Urbanismo – UFF
comissão científIca
Ana Claudia Scaglione Veiga de Castro
Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/USP

Aparecida Netto
Arquitetura e Urbanismo – PPTDS/UCSAL

Carolina Pescatori
Arquitetura e Urbanismo – PPG-FAU/UnB

Cátia Antônia da Silva


Geografia – PPGHS/UERJ

Clarissa Campos
Arquitetura e Urbanismo – UFSJ

Eduardo Rocha Lima


Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA

Elisângela Chiquito
Arquitetura e Urbanismo -DURB/EA/UFMG

Fernanda Arêas Peixoto


Antropologia – PPGAS/USP

Francisco de Assis da Costa


Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA
Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFPB

George Alexandre Ferreira Dantas


Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFRN

José Tavares Correia de Lira


Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/USP

José Simões de Belmont Pessôa


16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFF
Josianne Francia Cerasoli Thaís Bhanthumchinda Portela
História – PPGH/UNICAMP Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA

Laila Mourad Thiago Canettieri


Arquitetura e Urbanismo – PPTDS/UCSAL Geografia – PPGG/UFMG
EA/UFMG
Leandro Cruz
Arquitetura e Urbanismo – FAU/UnB

Luciana Sabóia
Arquitetura e Urbanismo – PPG-FAU/UnB

Luiz Antônio de Souza


Arquitetura e Urbanismo – Urbanismo/UNEB
Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA

Marcio Cotrim Cunha


Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA

Margareth da Silva Pereira


Arquitetura e Urbanismo – PROURB /UFRJ

Milton Araújo Moura


História – PPGH/UFBA
PPGCS/UFBA

Paulo Cesar Borges Alves


Sociologia – PPGCS/UFBA

Rafael Soares Gonçalves


Direito – PUC Rio

Robert Moses Pechman


História – IPPUR/UFRJ

Ricardo Trevisan
Arquitetura e Urbanismo – PPG/FAU UnB

Sarah Feldman
Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/IAU USP

Renata Campello Cabral


Arquitetura e Urbanismo – MDU/UFPE
16º SHCU Apoios e parceiros

Seminário de História João Carlos Salles Pires da Silva

da Cidade e do Urbanismo
Reitor da Universidade Federal da Bahia

Fabiana Dultra Britto


Pró-reitora de Extensão - PROEXT UFBA

Flávia Goulart
Diretora da EDUFBA

Sergio Kopinski Ekerman


Diretor da Faculdade de Arquitetura da UFBA

Nivaldo Vieira de Andrade Junior


Coordenador do PPGAU-UFBA

Larissa Corrêa Acatauassú Nunes Santos


Coordenadora do MP-CECRE-UFBA

Maina Pirajá Silva


Coordenadora PPG-TAS-UCSAL

Márcio Moraes Valença


Presidente da ANPUR

Ricardo Trevisan
Presidente da ANPARQ

Luiz Antonio de Souza


Presidente do IAB-BA

Renato Gama-Rosa Costa


Presidente do Docomomo-BR

Conferencistas

Adrian Gorelik
Universidad Nacional de Quilmes

Silvia Arango
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica Universidad Nacional de Colombia
Wlamyra de Albuquerque Pesquisa HI-SHCU
Universidade Federal da Bahia
Washington Drummond
José Eduardo Ferreira dos Santos
História – PPGH/UNEB Alagoinhas
Acervo da Laje Coordenador

Ângela Mingas Alyssa Volpini


Universidade Lusíada de Angola Arquitetura e Urbanismo – FAUFBA

Redy Wilson Ana Luiza Silva Freire


Universidade Nova de Lisboa Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA

Conferencistas Participantes do I SHU de 1990 Dilton Lopes de Almeida


Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA
Célia Ferraz
PROPUR/UFRGS Eloísa Marçola
Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA
Fânia Fridman
IPPUR/UFRJ Igor Gonçalves Queiroz
Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA
Carlos Roberto Monteiro de Andrade
IAU/USP Luiz Antonio Souza
Arquitetura e Urbanismo PPGAU/UFBA
Maria Cristina Leme Urbanismo – UNEB
FAU/USP
Mauricio José de Jesus
Maria Stella Brescianni História – PPGH/UNEB Alagoinhas
CIEC/UNICAMP
Paola Berenstein Jacques
Pedro Vasconcelos Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA
PPGPTDS/UCSAL
Ramon Martins da Silva
Cibele Rizek Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA
IAU/USP
Roberto Luis Bonfim dos Santos Filho
Antônio Heliodório História – PPGH/UNEB Alagoinhas
PPGAU/UFBA
Thaís Gouveia Calazans Dantas
História – PPGH/UNEB Alagoinhas
16º SHCU Participantes do shu de 1990
entrevistados e homenageados pela pesquisa hi-shcu
Seminário de História
Ana Fernandes
da Cidade e do Urbanismo PPGAU/UFBA

Ângela Lúcia de Araújo Ferreira


PPGAU/UFRN

Carlos Roberto Monteiro de Andrade


IAU/USP

Célia Ferraz de Souza


PROPUR/UFRGS

Cibele Rizek
IAU/USP

Fania Fridman
IPPUR/UFRJ

Heliodorio Sampaio
PPGAU/UFBA

Joel Outtes
FA/UFRGS

José Geraldo Simões Junior


FAU/UPM

José Tavares de Lira


FAU/USP

Maria Cristina Leme


FAU/USP

Maria Stella Bresciani


CIEC/UNICAMP

Pasqualino Magnavita
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica PPGAU/UFBA
Pedro Vasconcelos Sophia Lluis Oliveira Ramos
PPGPTDS/UCSAL Tadeu de Brito
Tafnes Amaral
Raquel Rolnik
Talita Lima Sousa
FAU/USP
Victor cesar borges fonseca
Robert Moses Pechman
IPPUR/UFRJ Debatedores de Vídeo-Pôsteres

Alexandre Pajeú Moura


monitores
PPGAU/UFBA
Aretha de Macedo Cardoso
Aparecida Netto
Berta de Oliveira Melo
PPGPTDS/UCSAL
Danilo Lemos de Araújo
Deborah Sandes de Almeida
Cátia Antônia
Eloísa Marçola
PPGHS/UERJ
Ester Moreira Santos
Gabriella Suzart Santana Clarissa Campos
Gisa Maria Gomes de Barros Almeida UFSJ
Guilherme Ferreira dos Santos
Iris Priscila Nunes da Silva Oliveira Dilton Lopes

Jefferson Felipe Macedo Bonfim PPGAU/UFBA

Jiselle Dias
Eliana Queiróz
Jonas Oliveira Santana
PPGAU/UFBA
Júlia Dominguez
Laise Santos Pires Eloísa Marçola
Márcio roque batista Lima PPGAU/UFBA
Maria Janaina Anunciação Ventin
Mariana Cristina da Silva Gomes Elisângela Queiroz Veiga
Mário Pinto Calaça Júnior PPGAU/UFBA

Nathan Andrey Merenciano Bastos


Fellipe Descrescenzo
Paula Mussi Bittencourt
PPGAU/UFBA
Pedro Bahia
Rafael Souza Janaína Bechler
Richardson Thomas da Silva Moraes
PPGAU/UFBA
Robson Dean Araujo de Souza
Rodrigo Oliveira Mato Grosso Pereira Joaquim Nunes
Simone Buiate Brandão PPGAU/UFBA
16º SHCU Josane Oliveira
PPGAU/UFBA
Seminário de História
da Cidade e do Urbanismo José Pessoa
PPGAU/UFF

Josianne Cerasoli
CIEC/UNICAMP

Julia Pela Meneghel


PPGAU/UFBA

Leandro Cruz
FAU/UnB

Leonardo Poli
UNIME

Luz Adriana Iriarte López


PPGAU/UFBA

Marcos Britto
PPGAU/UFBA

Rafaela Izeli
PPGAU/UFBA

Ramon Martins
PPGAU/UFBA

Robert Pechman
IPPUR/UFRJ

Sarah Feldman
PPGAU/IAU USP

Sônia Silva
PPGAU/UFBA

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
SISGEENCO

Júlia Rocha
Clesio Marinho
Carlos Nonato
Bruno Tavares
Robson Tavares

Festa de Encerramento

Spadina Banks
Aimée Lumiére
Nadine Nascimento
Gustavo Ortega
16º SHCU EIXO TEMÁTICO 1

HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO


SEMINÁRIO DE HISTÓRIA
DA CIDADE E DO URBANISMO Refletir as questões teórico-metodológicas, os
problemas, as teorias, as metodologias, os ato-
res, as redes intelectuais e os regimes de histo-
EIXOS temáticOs ricidade.

EIXO TEMÁTICO 2

HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS


DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

Debruçar-se sobre as experiências, multi, inter


e transdisciplinares, os saberes tradicionais e a
dimensão da experiência urbana cotidiana.

EIXO TEMÁTICO 3

ESCRITAS DA HISTÓRIA URBANA

Vislumbrar as temporalidades, os silenciamen-


tos, os modos de narração e as práticas historio-
gráficas – história oral, comparada, conectada,
relatos, testemunhos, cidade letrada, literatura,
biografias, montagens etc.

EIXO TEMÁTICO 4

CIDADES, MEMÓRIAS E ARQUIVOS

Debruçar-se sobre as fontes, os documentos,


as materialidades, os patrimônios, as cartogra-
fias, as iconografias e outras fontes, documen-
tos e vestígios.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
índice . artigos

EIXO TEMÁTICO 1
HISTORIOGRAFIA E
PENSAMENTO URBANÍSTICO
ARTIGOS mesas temáticas

ARQUITETURA, SOCIOLOGIA, ESTUDOS URBANOS:


EIXO TEMÁTICO 1 APROXIMAÇÕES À CONSTITUIÇÃO DE UM CAMPO NA

HISTORIOGRAFIA E
AMÉRICA LATINA (1950-1970)
ARAVECCHIA-BOTAS, Nilce; CASTRO, Ana Claudia Veiga de;
PENSAMENTO URBANÍSTICO HUAPAYA ESPINOZA, José Carlos; NEGRELOS, Eulalia Portela;
BRUSCHI, Maria Alejandra; CHIQUITO, Elisângela de Almeida.

30

ÁVIDOS POR ESCUTAR O CORPO, O TEMPO, A


MATÉRIA DA CIDADE: VIVÊNCIAS COMO PRÁTICA
METODOLÓGICA DA HISTÓRIA URBANA
SILVA, Maria Angélica da; CERQUEIRA, Louise Maria;
MELO, Thalita Carla; CARNEIRO, Ana Karolina.

58

CRÍTICA IMANENTE, EMPIRIA E TEMPORALIDADES – SOBRE


ALGUNS TEMAS DE HISTORIOGRAFIA E TEORIA URBANA
CHIQUITO, Elisangela de Almeida; OLIVEIRA, Carlos
Alberto; URVOY, Phillipe; VELLOSO, Rita.

78

NEBULOSAS DO PENSAMENTO URBANÍSTICO: NARRAR


POR OCUPAÇÕES, TRAMAS, VESTÍGIOS E EMBATES
PEREIRA, Margareth da Silva; REYES, Paulo; CIDADE,
Daniela; CHIQUITO, Elisângela de Almeida; CERASOLI,
Josianne; NOVO, Leonardo; SOUZA, Luiz Antonio;
SANTOS, Vinícius Rafael; MONTE, Igor.

96

NEBULOSAS DO PENSAMENTO URBANÍSTICO: NARRAR


POR RELAÇÕES, TRANSVERSALIDADES, PAISAGENS E
DISCURSOS
CERASOLI, Josianne F.; IZELI, Rafaela; VIEIRA, Leonardo;
CRUZ, Luciana Saboia Fonseca; TREVISAN, Ricardo; COURI,
Aline; ORTIZ, Daniela; CASTRO, Ana Claudia Veiga de; SILVA,
Joana Mello de Carvalho e LIRA, José Tavares Correia de.

114

O UNIVERSO TRANSESCALAR DOS CONGRESSOS


DE URBANISMO: DINÂMICAS E DEBATES EM
PERSPECTIVA INTERNACIONAL

SIMÕES JR., José Geraldo; CERASOLI, Josianne Francia;


FERNANDES, Ana; OUTTES, Joel.
16º SHCU
132
30 anos . Atualização Crítica
PLANEJAMENTO METROPOLITANO EM BELO
HORIZONTE: IDEIAS, MÉTODOS, PRÁTICAS E SEUS
sessões temáticas
DESDOBRAMENTOS

CHIQUITO, Elisângela de Almeida; COSTA, Geraldo A CONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO URBANÍSTICO


Magela; COSTA, Heloisa Soares de Moura; MENDONÇA,
PARA O RURAL E SEUS ECOS NO BRASIL
Jupira Gomes de; TONUCCI FILHO, João Bosco Moura.

148 MOREIRA, Paula Adelaide Mattos Santos.

184
REFORMA URBANA EM PAÍSES DA AMÉRICA LATINA:
MOVIMENTOS PARTILHADOS, TEMPOS IMBRICADOS, A IMAGEM PLURAL DO CENTRO NA METRÓPOLE
EXPERIÊNCIAS INSTIGANTES DO RIO DE JANEIRO (1810-1850): FRÜHBECK,
RUGENDAS E HILDEBRANDT SOBREVIVENTES
HUAPAYA ESPINOZA, José Carlos; FERNANDES, Ana;
TREFFTZ, Erich.
TEJERO BAEZA, Pilar.
164
208

APONTAMENTOS TEÓRICOS PARA UMA ANÁLISE


HERMENÊUTICA DAS CIDADES

SALES JR., Dário R.

232

CRISE, COALIZÃO, URBANISMO:


O PÓS-1929 EM PORTO ALEGRE

KRAUSE, Cleandro; FRIDMAN, Fania.

250

HISTORICIDADE IN LOCO : UMA ANÁLISE DOS IMÓVEIS


URBANOS DO BARÃO DE ITAPURA - UM AGENTE
MODELADOR DA CIDADE DE CAMPINAS (1875-1902)

MENEGALDO, Ana Beatris Fernandes; PEREIRA, Renata


Baesso.

270

NOTAS SOBRE A NOÇÃO DE CIDADE ESCRAVISTA:


UM ESTUDO SOBRE OS MODOS DE FAZER CIDADE
NO BRASIL

FARINA, Eduarda.

290

O URBANISMO SANITARISTA COMO INDUTOR DE


MUDANÇAS E DE PLANEJAMENTO DE CIDADES

PICCINATO JUNIOR, Dirceu.

308
ARTIGOS REVISTA ARQUITETURA _ IAB 1961-1968: PRINCIPAIS
TEMAS E REDESMUDANÇAS E DE PLANEJAMENTO DE
CIDADES

EIXO TEMÁTICO 1 LAGE DA GAMA LIMA, Marina.

326
HISTORIOGRAFIA E
PENSAMENTO URBANÍSTICO SAÚDE, O URBANO E A HISTÓRIA: APONTAMENTOS
EM TEMPOS PANDEMICOS

CHALO, Guilherme.

344

TRANSNACIONAL, INTERNACIONAL: SOBRE A


CIRCULAÇÃO DE IDEIAS E A HISTORIOGRAFIA DO
URBANISMO

REGO, Renato Leão.

366

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
BELO HORIZONTE, CIDADE PLANEJADA (PARA A ELITE
vídeo-pôsteres BRANCA)
PASSOS, Rogério Lucas Gonçalves.
A FORMULAÇÃO DO PLANEJAMENTO URBANO
510
SOB INFLUÊNCIA DOS AGENTES NA PRODUÇÃO DA
PAISAGEM URBANA: O CASO DO MUNICÍPIO DE
CONCEIÇÃO DAS ALAGOAS – MG CADÊNCIAS DA REVITALIZAÇÃO URBANA:
UM RETRATO ATUAL DO CENTRO DE SALVADOR
CARVALHO, Bruna; GUIMARÃES, Camila.

386 MARINHO, Caio Oliveira E.

530
A HISTORIOGRAFIA DE GÊNERO NA ARQUITETURA
CIDADES NÃO-SEXISTAS: REVISITANDO A TEORIA
EGHRARI, Susan.
DE DOLORES HAYDEN NA CONTEMPORANEIDADE
402
CARMO, Carolina Guida Cardoso do; BERNARDINI, Sidney
Piochi.
A MISSÃO DA CNPU NA FORMAÇÃO DA REGIÃO
552
METROPOLITANA DO RIO DE JANEIRO

FERREIRA, Luiza de Cavalcanti A.


CIDADES, PRÁTICAS, SABERES: REFLEXÃO
414 TEÓRICO-METODOLÓGICA PARA ESTUDOS HISTÓRICOS

CRUZ, Giovana.
A PARTICIPAÇÃO DE LE CORBUSIER E DE
570
MALLET-STEVENS NA FUNDAÇÃO DO CIAM E DA UAM,
DUAS ENTIDADES COMPLEMENTARES
CONFERÊNCIAS E PLANOS: O PAPEL CATALISADOR
ZAKIA, Silvia Amaral Palazzi.
DE AGACHE NO CENÁRIO URBANÍSTICO CARIOCA
430 (1927-1930)

FONSECA, Thiago.
APROXIMAÇÕES AO PENSAMENTO URBANÍSTICO E DA
586
CONSERVAÇÃO DE FRANÇOISE CHOAY

RIBEIRO, Cecilia; PONTUAL, Virgínia.


INFRAESTRUTURAS DE MOBILIDADE: REFLEXÕES
454 TEÓRICAS PARA UMA CRÍTICA DE PROJETO URBANO

GONÇALVES, Luísa.
AS CIDADES DOS ANÉIS. CRUZAMENTOS DO PLANO DE
606
AVENIDAS PARA SÃO PAULO COM O PLANO TECHINT
PARA SANTA CRUZ DE LA SIERRA
O AVESSO DA RUA
GIROTO, Ivo.

470 CORRÊA, Elyane Lins.

620

BARROCO MINEIRO: ORIGENS E TRADUÇÕES EM


TERMOS DE ARQUITETURA E PLANO URBANO O CAMPO DA CONSULTORIA NAS POLÍTICAS DO
URBANO: UM ESPAÇO RESTRITO DE DECISÕES SOBRE
STEINBACH, Ana Carolina; FLORENTINO, Maria Caroliny
A PRODUÇÃO DAS CIDADES
Camargo.

492 BARBOSA, Bárbara Lopes.

632
ARTIGOS O CONJUNTO HABITACIONAL PÓS-1964 NA
HISTORIOGRAFIA DO URBANISMO NO BRASIL:
PERMANÊNCIAS E DESCONTINUIDADES ENTRE
REGIMES POLÍTICOS
EIXO TEMÁTICO 1
NEGRELOS, Eulalia Portela.

HISTORIOGRAFIA E 646

PENSAMENTO URBANÍSTICO PANORAMA HISTÓRICO DA JANELA RESIDENCIAL

DAS NEVES, Mariana Fernandes; GONDIM, Mônica Fiuza.

668

PIONEIROS DO EMPRESARIAMENTO HABITACIONAL:


A COMPANHIA EVONEAS FLUMINENSE E A COMPANHIA
DE SANEAMENTO DO RIO DE JANEIRO
GENNARI, Luciana Alem.

682

PLANEJAMENTO, CONSERVAÇÃO E TURISMO CULTURAL


NO PDLI DE OLINDA

BACELAR, Aline.

700

PLANEJAMENTO E FLUXOS MIGRATÓRIOS: DO


AGRO PONTINO ITALIANO ÀS COLÔNIAS AGRÍCOLAS
NACIONAIS BRASILEIRAS (1931-1948)

COSTA, Lucas Felicio; TREVISAN, Ricardo.

720

POR UMA EDUCAÇÃO URBANA: PERSPECTIVAS DO


URBANISMO

VALADARES, Raquel Gomes.

742

POSITIVISMO: PASSAGENS DE SATURNINO DE BRITO


SOBRE SUA EPISTEMOLOGIA

DEMINICE, Daniel.

758

REGIÃO METROPOLITANA DO RIO DE JANEIRO: A CRISE


DE SANEAMENTO NA BAIXADA FLUMINENSE E SEUS
REFLEXOS NA DISSEMINAÇÃO DE EPIDEMIAS
SANTOS, Eric; MACIEL, Mariana; FERRARI, Laís.

16º SHCU 772


30 anos . Atualização Crítica
SÃO PAULO,1938-1968: A METROPOLIZAÇÃO
DISSEMINADA
FELDMAN, Sarah.

792

SOBRE URBANISMO E DESENVOLVIMENTISMO:


A OBRA DE FRANK SVENSSON NA SUDENE
LIMA, Carlos Henrique de; NERES, Tamara; COSTA, Caio
César.

810

TERRITORIALIDADE QUEER: UMA PERSPECTIVA


DE ANÁLISE
Silva, Áureo Rosa.

826

TROCAS DE SABERES E A HISTÓRIA TRANSNACIONAL:


A QUESTÃO DA IMIGRAÇÃO E DA HABITAÇÃO EM SÃO
PAULO NO COMEÇO DO SÉCULO XX

ALMEIDA, Renata Geraissati Castro de; REIS, Philippe


Arthur dos.

842
EIXO TEMÁTICO 1

HISTORIOGRAFIA
E PENSAMENTO URBANÍSTICO
EIXO TEMÁTICO 1

HISTORIOGRAFIA
E PENSAMENTO URBANÍSTICO

mesas temáticas
EIXO TEMÁTICO 1 RESUMO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Os avanços tecnológicos e o desenvolvimen-
to econômico que marcaram o Segundo pós-
mesa temática -Guerra levaram Eric Hobsbawn a chamar as
décadas de 1950 e 1960 - organizadas sob um
conjunto determinado de práticas de controle,
ARQUITETURA, SOCIOLOGIA, tecnologias, hábitos de consumo e configura-
ções político-econômicas - de a “Era de Ouro do
ESTUDOS URBANOS: APRO- Capitalismo”. Mas segundo o historiador inglês,
o distanciamento histórico permitiu divisar as
XIMAÇÕES À CONSTITUIÇÃO profundas contradições que marcaram aqueles
anos dourados do Estado de Bem Estar-Social.
DE UM CAMPO NA AMÉRICA Nos países centrais, desequilíbrios começam a

LATINA (1950-1970) se tornar perceptíveis já ao final da década de


1970, após a deflagração da crise do petróleo,
quando aquele modelo de crescimento fordis-
ARCHITECTURE, SOCIOLOGY, URBAN STUDIES: ta-keynesiano começou a apresentar os pri-
APPROXIMATIONS TO A FIELD IN CONSTRUCTION IN meiros sinais de insustentabilidade econômica,
LATIN AMERICA (1950-1970) ambiental, política e cultural (HOBSBAWN, 1998,
p. 253-81).
ARQUITECTURA, SOCIOLOGÍA, ESTUDIOS URBANOS:
Na América Latina, por outro lado, onde um
APROXIMACIONES A LA CONSTITUCIÓN DE UN CAMPO
Estado de Bem-Estar chegou a ser ensaiado
EN AMÉRICA LATINA (1950-1970)
em alguns países, mas sem de fato conseguir
se efetivar, as transformações e os ajustes do
ARAVECCHIA-BOTAS, Nilce
capitalismo a partir da década de 1970 provoca-
Professora Doutora FAU USP ram efeitos ainda mais perversos que os nota-
nilcearavecchia@usp.br dos nos países centrais. As cidades latino-ame-
CASTRO, Ana Claudia Veiga de ricanas, a maioria delas vivendo processos de
expansão demográfica sem um lastro de indus-
Professora Doutora FAU USP
anacvcastro@usp.br
trialização efetivo, veriam suas margens se es-
tenderem imensamente, acolhendo pobres ru-
HUAPAYA ESPINOzA, José Carlos rais expulsos de um campo que se mecanizava.
Professor Doutor FAU UFBA Periferias surgiram da noite para o dia e nelas
jhuapayae@gmail.com as chamadas camadas populares, os pobres ur-
banos, ao se fixarem, vivenciavam cidades com
NEGRELOS, Eulalia Portela pouca ou nenhuma infraestrutura. Os aconteci-
Livre docente; IAU USP mentos passaram a ganhar desde então formu-
negrelos@sc.usp.br lações conceituais e programáticas elaboradas,
BRUSCHI, Maria Alejandra tornando-se um tema nas universidades e nos
institutos de pesquisa e planejamento.
Doutoranda; IAU USP
alejandrabruschi@usp.br
Nesse contexto se consolidam os campos do
CHIQUITO, Elisângela de Almeida planejamento urbano e regional e também da
Professora Doutora EA UFMG sociologia urbana na América Latina, como ati-
lisalmeida@ufmg.br vidades inter e multidisciplinares, que envolveu
arquitetos, engenheiros, economistas, sociólo-
16º SHCU gos, assistentes sociais, advogados, legislado-
30 anos . Atualização Crítica
res, entre outros profissionais. Contribuir para
30 o exame mais detido do diálogo entre as discipli-
nas e dos elementos que as compõem, por meio do capitalismo industrial, essa ação coincide
de atores, instituições e casos exemplares, bem com os interesses dos reformadores urbanos.
como os desdobramentos da contribuição téc- O Museu Social Argentino criado em 1911, em
nica e intelectual desses agentes, é o objeto moldes do que existia em Paris desde finais do
desta mesa temática. século XIX, é um ponto evidente das relações
entre o ambiente intelectual francês e latino-a-
O fenômeno da expansão urbana é simultâneo mericano, que incluía a ação social da igreja ca-
à produção da “cidade latino-americana” como tólica (CAMPOS, 2002, p.143; YAÑES ANDRADE,
figura do pensamento social que, para Adrián 2020, p.9). Mas essa ação passaria por transfor-
Gorelik, teve lugar entre décadas de 1950 e 1970, mações consideráveis ao longo da primeira me-
quando o olhar dessas disciplinas convergem tade do século XX, quando a ação social católi-
para a América Latina, conformando um novo ca se aproxima da sociologia e, por extensão, do
mapa intelectual, acadêmico e político. Com pensamento marxista. É o que está na base do
acerto, esse autor antevê no marco teórico do pensamento do padre dominicano Louis Joseph
funcionalismo norte-americano um ponto fun- Lebret, fundador do Movimento Economia e Hu-
dante desse movimento que iria ecoar em âmbi- manismo na França em 1941. Em sua ação desde
to pan-americano no pós-guerra, numa rede de 1947, ano de sua passagem por diversos países
instituições como Unesco, Cepal, Siap, Funda- latino-americanos, Lebret forma inúmeros qua-
ções Ford e Rockfeller, entre outras, ao mesmo dros e funda instituições técnicas de urbanismo
tempo em que apontaria a crítica da década de nos diversos países (PONTUAL, 2016). Essa tra-
1960 como o início da ruptura com esse movi- jetória estava vinculada a um movimento maior
mento. (GORELIK, 2005, pp. 115-118). que dizia respeito à ação das agências interna-
cionais, sobretudo OEA e ONU, para tratar dos
Entretanto, um olhar mais aproximado dos ato- problemas do subdesenvolvimento na América
res e instituições pode indicar uma dinâmica Latina (CHIQUITO, 2017, pp.136-37).
mais complexa dos movimentos e correntes
intelectuais que estiveram na base do planeja- Em outro movimento, os estudos marxistas
mento territorial na América Latina, que atra- também estavam de alguma maneira vincu-
vessou e esteve no âmago dos diálogos inter- lados aos Partidos Comunistas de orientação
disciplinares. soviética, com engajamento das disciplinas das
Ciências Humanas. As vertentes católica e mar-
Há que se considerar que a própria presença do xista cruzam-se de distintas maneiras, cujos
meridiano teórico do funcionalismo norte-ame- seus atores por vezes apresentam trajetórias
ricano já vinha de uma longa série de corren- de dupla inserção (LEME e LAMPARELLI, 2001,
tes cientificistas desde o positivismo, um dos pp.675-676).
pontos comuns importantes na triangulação de
ideias entre Europa, EUA e América Latina ainda Nessa fronteira, a relação entre ação social e
no século XIX. Mas esse olhar cientificista, com elaboração teórica a partir da formulação de
grande presença de teóricos da Escola de Chi- interpretações sobre as condições de vida da
cago no subcontinente, foi acompanhado por população pobre gera uma produção intelectual
pelo menos dois outros movimentos de origens original na América Latina, que ecoa nos am-
distintas, que valem ser mencionados. Eles di- bientes dos países ditos centrais, influenciando
zem respeito à interlocução dos países da Amé- sobremaneira sua intelectualidade. Por exem-
rica Latina com a França, que também já vinha plo, é reconhecido o impacto que a obra A geo-
desde o século XIX. grafia da fome, do pernambucano Josué de Cas-
tro, que foi publicado em 1946 e traduzido para
A questão social, com o aparecimento da pobre- diversas línguas, teve no mundo todo e em es-
za urbana e as consequentes formas de se lidar pecial na trajetória do próprio Padre Lebret, im-
com ela, contou com a participação da Igreja Ca- pulsionando seu trabalho internacional (LEME e
tólica em seu viés assistencialista, que na Amé- LAMPARELLI, 2001, p. 677; DE ANGELO, 2010).
rica Latina estivera presente desde a coloniza-
ção. No século XIX, no contexto da consolidação Desse processo, e da construção de um pen-
EIXO TEMÁTICO 1 samento marxista cada vez mais autônomo em
relação à União Soviética, e desde a inspiração
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO da Revolução Cubana (1959) e dos movimentos
de independência na África e na Ásia, origina-
va-se o conceito de Terceiro Mundo, cunhado
pelo demógrafo francês Aufred Sauvy. A ideia
de intervir politicamente, sem alinhamento aos
Estados Unidos ou à União Soviética, uniu diver-
sos intelectuais que numa série de encontros
regulares forjaram uma aliança que resultou
em 1966 na Organização de Solidariedade dos
Povos de África, Ásia e América Latina, advinda
desde anos antes, do Movimento de Países não
Alinhados (GILMAN, 2012, pp.45-46).

A ideia de “Terceiro Mundo”, entretanto, seria


também disputada pelas vertentes liberais e
pelas agências internacionais, como ONU, OEA,
BID, Fundação Ford e Rockfeller, agindo nos pa-
íses por meio de programas de cooperação téc-
nica. Desta maneira, forma-se entre as décadas
de 1950 e 1970 um arcabouço singular de conhe-
cimento desde o diálogo entre as mais diversas
instâncias disciplinares e também de vertentes
católicas, laicas, cientificistas e marxistas, na
constituição dos Estudos Urbanos na América
Latina naquele momento.

Desde os campos do direito, da sociologia, da


arquitetura e do urbanismo, buscando eluci-
dar os diálogos inter e transdisciplinares, numa
perspectiva transnacional, os trabalhos desta
mesa temática são peças na composição des-
se complexo mosaico. Pretende-se assim con-
tribuir com os esforços de entender a relação
da arquitetura e do urbanismo com os demais
campos do conhecimento, e suas conexões
transnacionais no âmbito latino-americano.
Parte-se do princípio que os Estudos Urbanos e
o campo do planejamento urbano que se formou
naqueles anos, contribuíram de maneira origi-
nal e decisiva para os debates mundiais sobre
a modernidade, e também sobre seus limites e
sucessivas crises.

Referências
16º SHCU CAMPOS, Candido Malta. Os rumos da cidade:
30 anos . Atualização Crítica
urbanismo e modernização em São Paulo. São
32 Paulo: Editora Senac, 2002.
YAÑES ANDRADE, Juan. Carlos. El Museo ABSTRACT
Social Argentino (1911-1925). Los vínculos de
los reformadores sociales en el Cono Sur de
América. Quinto Sol, Universidad Nacional de The second post-war period, especially the 1950s
la Pampa, Santa Rosa, Argentina. vol. 24, nº 1, and 1960s, was maked by technological advances
enero-abril 2020, pp. 1-23. and economic development that Eric Hobsbawn
called by “Golden Age of Capitalism” . But accor-
CHIQUITO, Elisangela. A Comissão interestadu- ding to the English historian, the historical dis-
al da Bacia Paraná-Uruguai. Do planejamento tancing made it possible to discern the profound
de vale aos pólos de desenvolvimento. São contradictions that marked those golden years of
Paulo: Alameda, 2017. the welfare state. In central countries, imbalan-
DE ANGELO, Michely. Les Développeurs: Louis- ces began to become noticeable at the end of the
-Joseph Lebret e a SAGMACS na formação de 1970s, after the outbreak of the oil crisis, when
um grupo de ação para o planejamento urbano that Fordist-Keynesian growth model began to
no Brasil. Tese (Doutorado). IAU USP, 2010. show the first signs of economic, environmental,
political and cultural unsustainability ( HOBS-
GILMAN, Claudia. Entre la pluma y el fusil. De- BAWN, 1998, pp. 253-81).
bates y dilemas del escritor revolucionario en
América Latina. Buenos Aires: Siglo XXI, 2012. In Latin America, on the other hand, where a wel-
fare state came to be tested in some countries,
HOBSBAWN, Eric. A era dos extremos. Breve
but without actually being able to become ef-
século XX - 1914-1991. São Paulo: Cia das Le-
fective, the transformations and adjustments of
tras, 1988.
capitalism from the 1970s onwards caused even
LEME, M. C. da S.; LAMPARELLI, C. A poli- more perverse effects than those noted in central
tização do Urbanismo no Brasil: a vertente countries. Latin American cities, most of them
católica. In: Anais do IX Encontro Nacional experiencing processes of demographic expan-
da Associação Nacional de Programas de sion without an effective industrialization ballast,
Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento would see their margins extend immensely, wel-
Urbano e Regional. Rio de Janeiro. p.675-687, coming rural poor people expelled from a mecha-
2001. nized field. Peripheries emerged overnight and in
them the so-called popular strata, the urban poor,
GORELIK, Adrián. A produção da cidade latino-
when settling, experienced cities with little or no
-americana. Tempo Social, Revista de Socio-
infrastructure. Events have since gained elabo-
logia da USP, São Paulo, vol. 17 n.1 jun., 2005,
rate conceptual and programmatic formulations,
pp.111-33.
becoming a topic in universities and research and
GORELIK, Adrian. La aldea en la ciudad. Ecos planning institutes.
urbanos de un debate antropológico. Revista
del Museo de Antropología, Universidad Nacio- In this context, the fields of Urban and Regional
nal de Córdoba, n. 1, out., 2008. planning and Urban sociology in Latin America
are consolidated, as inter and multidisciplinary
PONTUAL, Virigina. Luis Joseph Lebret na activities, which involved architects, engine-
America Latina: um exitoso laboratório de ex- ers, economists, sociologists, social workers,
periências em planejamento humanista. Reci- lawyers, legislators, among other professionals.
fe: Letra Capital/ Ed. UFPE, 2016 Contributing to the closer examination of the dia-
logue between the disciplines and the elements
that compose them, through actors, institutions
CIDADE SOCIOLOGIA ARQUITETURA E URBANISMO
and exemplary cases, as well as the unfolding of
ESTUDOS URBANOS HISTORIOGRAFIA the technical and intellectual contribution of the-
se agents, is the object of this thematic table.

The phenomenon of urban expansion is simulta-


neous with the production of the “Latin American
EIXO TEMÁTICO 1 city” as a figure of social thought that, for Adrián
Gorelik, took place between the 1950s and the
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO 1970s, when the look of these disciplines conver-
ged on Latin America, forming a new map intel-
lectual, academic and political. With certainty,
this author foresees in the theoretical framework
of the American functionalism a fundamental
point of this movement that would echo in the
pan-American ambit in the post-war, in a network
of institutions such as Unesco, Cepal, Siap, Ford
and Rockfeller Foundations among others, while
pointing out criticism n of the 1960s as the begin-
ning of the break with this movement. (GORELIK,
2005, pp. 115-118).

However, a closer look at the actors and institu-


tions may indicate a more complex dynamic of the
intellectual movements and currents that were at
the basis of territorial planning in Latin America,
which crossed and was at the heart of interdisci-
plinary dialogues.

It must be considered that the very presence of


the theoretical meridian of American functiona-
lism already came from a long series of scientific
currents since positivism, one of the important
common points in the triangulation of ideas be-
tween Europe, USA and Latin America in the 19th
century. But this scientific look, with a large pre-
sence of theorists from the Chicago School in the
subcontinent, was accompanied by at least two
other movements of different origins, which are
worth mentioning. They concern the dialogue be-
tween the countries of Latin America and France,
which has also been around since the 19th cen-
tury.

The social issue, with the emergence of urban


poverty and the consequent ways of dealing with
it, counted on the participation of the Catholic
Church in its assistentialist bias, which in Latin
America had been present since colonization. In
the 19th century, in the context of the consolida-
tion of industrial capitalism, this action coincides
with the interests of urban reformers. The Argen-
tine Social Museum, created in 1911, in line with
what has existed in Paris since the end of the 19th
century, is an evident point in the relationship be-
tween the French and Latin American intellectual
16º SHCU environment, which included the social action of
30 anos . Atualização Crítica
the Catholic Church (CAMPOS NETO, 2002 , p.143;
34 YAÑES ANDRADE, 2020, p.9). However, this action
would undergo considerable transformations du- ted in 1966 in the Solidarity Organization of the
ring the first half of the 20th century, when Catho- Peoples of Africa, Asia and Latin America, which
lic social action came closer to sociology and, by came from years before , from the Movement of
extension, to Marxist thought. This is what under- Non-Aligned Countries (GILMAN, 2012, pp.45-46).
lies the thinking of Dominican priest Louis Joseph However, the idea of “Third
​​ World” would also be
Lebret, founder of the Economy and Humanism disputed by the liberal strands and by interna-
Movement in France in 1941. In his action since tional agencies, such as the UN, OAS, IDB, Ford
1947, the year of his visit to several Latin Ameri- Foundation and Rockfeller, acting in countries
can countries, Lebret forms countless staff and through technical cooperation programs. In this
founds institutions urbanism techniques in dif- way, between the 1950s and the 1970s, a unique
ferent countries (PONTUAL, 2016). This trajectory framework of knowledge was formed from the
was linked to a larger movement that concerned dialogue between the most diverse disciplinary
the action of international agencies, especially bodies and also from Catholic, secular, scientific
OAS and UN, to address the problems of under- and Marxist strands, in the constitution of Urban
development in Latin America (CHIQUITO, 2017, Studies in Latin America at that time.
pp.136-37).
Aiming to elucidate the inter and transdisciplinary
In another movement, Marxist studies were also dialogues among the law, sociology, architectu-
in some way linked to Soviet-oriented Communist re and urbanism, in a transnational perspective,
Parties, with engagement in the disciplines of the the works of this thematic table are pieces in the
Humanities. The Catholic and Marxist strands in- composition of this complex mosaic. It is inten-
tersect in different ways, whose actors someti- ded to contribute to efforts to understand the
mes have double insertion trajectories (LEME and relationship between architecture and urbanism
LAMPARELLI, 2001, pp.675-676). with other fields of knowledge, and their transna-
tional connections in the Latin American context.
In this frontier, the relationship between social It is assumed that Urban Studies and the field of
action and theoretical elaboration based on the urban planning that was formed in those years,
formulation of interpretations about the living contributed in an original and decisive way to the
conditions of the poor population generates an global debates on modernity, as well as on its li-
original intellectual production in Latin America, mits and successive crises.
which echoes in the environments of the so-cal-
led central countries, greatly influencing their
intellectuality. For example, the impact that the CITY SOCIOLOGY ARCHITECTURE AND URBANISM
work Geography of Hunger, by Pernambuco from URBAN STUDIES HISTORIOGRAPHY
Josué de Castro, which was published in 1946 and
translated into several languages, is recognized
all over the world and especially in the trajectory
of Father Lebret himself, boosting his internatio-
nal work (LEME and LAMPARELLI, 2001, p. 677; DE
ANGELO, 2010).

From this process, and from the construction of


an increasingly autonomous Marxist thought in
relation to the Soviet Union, and since the inspi-
ration of the Cuban Revolution (1959) and the in-
dependence movements in Africa and Asia, the
concept of the Third World originated, coined by
the French demographer Aufred Sauvy. The idea
of intervening
​​ politically, without alignment with
the United States or the Soviet Union, brought
together several intellectuals who, in a series of
regular meetings, forged an alliance that resul-
EIXO TEMÁTICO 1 RESUMEN
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Los avances tecnológicos y el desarrollo eco-
nómico que marcaron el segundo período de la
posguerra llevaron a Eric Hobsbawn a llamar a
las décadas de 1950 y 1960, organizadas bajo un
determinado conjunto de prácticas de control,
tecnologías, hábitos de consumo y configuracio-
nes político-económicas, de un “Edad de oro del
capitalismo”. Pero según el historiador inglés, el
distanciamiento histórico permitió vislumbrar
las profundas contradicciones que marcaron
aquellos años dorados del estado del bienestar.
En los países centrales, los desequilibrios co-
menzaron a notarse a fines de la década de 1970,
tras el estallido de la crisis del petróleo, cuando
ese modelo de crecimiento fordista-keynesiano
comenzó a mostrar los primeros signos de insos-
tenibilidad económica, ambiental, política y cul-
tural (HOBSBAWN, 1998, págs. 253-81).

En América Latina, en cambio, donde se llegó


a poner a prueba un estado del bienestar en al-
gunos países, pero sin llegar a ser efectivo, las
transformaciones y ajustes del capitalismo a
partir de la década de 1970 provocaron efectos
aún más perversos que los señalados en los paí-
ses centrales. Las ciudades latinoamericanas, la
mayoría de ellas en procesos de expansión demo-
gráfica sin un lastre de industrialización efectivo,
verían ampliarse inmensamente sus márgenes,
acogiendo a los campesinos pobres expulsados​​
de un campo mecanizado. Las periferias surgie-
ron de la noche a la mañana y en ellas los llama-
dos estratos populares, los pobres urbanos, al
asentarse, experimentaron ciudades con poca
o ninguna infraestructura. Desde entonces, los
eventos han adquirido elaboradas formulaciones
conceptuales y programáticas, convirtiéndose en
un tema en universidades e institutos de investi-
gación y planificación.

En este contexto, los campos del planeamiento


urbano y regional y la sociología urbana en Améri-
ca Latina se consolidan, como actividades inter y
multidisciplinarias, que involucran a arquitectos,
ingenieros, economistas, sociólogos, trabajado-
res sociales, abogados, legisladores, entre otros
16º SHCU profesionales. Contribuir al análisis más detenido
30 anos . Atualização Crítica
del diálogo entre las disciplinas y los elementos
36 que las componen, a través de actores, institu-
ciones y casos ejemplares, así como el despliegue intelectual francés y latinoamericano, que incluía
del aporte técnico e intelectual de estos agentes, la acción social de la Iglesia Católica (CAMPOS
es el objeto de esta mesa temática. NETO, 2002 , p.143; YAÑES ANDRADE, 2020, p.9).
Pero esta acción sufriría considerables transfor-
El fenómeno de la expansión urbana es simultá- maciones durante la primera mitad del siglo XX,
neo a la producción de la “ciudad latinoamerica- cuando la acción social católica se acerque a la
na” como figura del pensamiento social que, para sociología y, por extensión, al pensamiento mar-
Adrián Gorelik, tuvo lugar entre las décadas de xista. Esto es lo que subyace al pensamiento del
1950 y 1970, cuando la mirada de estas discipli- padre dominicano Louis Joseph Lebret, fundador
nas convergió en América Latina, conformando del Movimiento Economía y Humanismo en Fran-
un nuevo mapa. intelectual, académico y político. cia en 1941. En su acción desde 1947, año de su
Con certeza, este autor vislumbra en el marco te- visita a varios países de América Latina, Lebret
órico del funcionalismo estadounidense un punto forma innumerables colaboradores y funda ins-
fundamental de este movimiento que se haría eco tituciones. técnicas de urbanismo en diferentes
en el ámbito panamericano de la posguerra, en países (PONTUAL, 2016). Esta trayectoria estuvo
una red de instituciones como la Unesco, Cepal, vinculada a un movimiento más amplio que se
Siap, Ford y Fundaciones Rockfeller, entre otras. centró en la acción de los organismos internacio-
, al tiempo que señala la crítica de la década de nales, especialmente la OEA y la ONU, para abor-
1960 como el comienzo de la ruptura con este mo- dar los problemas del subdesarrollo en América
vimiento. (GORELIK, 2005, págs. 115-118). Latina (CHIQUITO, 2017, pp.136-37).

Sin embargo, una mirada más cercana a los ac- En otro movimiento, los estudios marxistas tam-
tores e instituciones puede indicar una dinámica bién estaban vinculados de alguna manera con
más compleja de los movimientos y corrientes in- los partidos comunistas de orientación soviética,
telectuales que fueron la base de la planificación con participación en las disciplinas de las huma-
territorial en América Latina, que atravesó y estu- nidades. Las vertientes católica y marxista se
vo en el centro de los diálogos interdisciplinarios. entrecruzan de diferentes formas, cuyos actores
Hay que considerar que la presencia misma del a veces tienen trayectorias de doble inserción
meridiano teórico del funcionalismo americano (LEME y LAMPARELLI, 2001, pp.675-676).
ya provenía de una larga serie de corrientes cien-
tíficas desde el positivismo, uno de los puntos co- En esta frontera, la relación entre acción social y
munes importantes en la triangulación de ideas elaboración teórica basada en la formulación de
entre Europa, Estados Unidos y América Latina interpretaciones sobre las condiciones de vida
en el siglo XIX. Pero esta mirada científica, con de la población pobre genera una producción in-
gran presencia de teóricos de la Escuela de Chi- telectual original en América Latina, que resuena
cago en el subcontinente, estuvo acompañada en los entornos de los llamados países centrales,
por al menos otros dos movimientos de diferente influyendo mucho en su intelectualidad. Por
origen, que vale la pena mencionar. Se refieren al ejemplo, se reconoce el impacto que tuvo la obra
diálogo entre los países de América Latina y Fran- Geografía del hambre, de Pernambuco, Josué de
cia, que también existe desde el siglo XIX. Castro, que fue publicada en 1946 y traducida a
varios idiomas, a nivel mundial y especialmente
El tema social, con el surgimiento de la pobreza en la trayectoria del propio Padre Lebret, impul-
urbana y las consecuentes formas de abordarla, sando su obra internacional. (LEME y LAMPA-
contó con la participación de la Iglesia Católica en RELLI, 2001, p. 677; DE ANGELO, 2010).
su sesgo asistencialista, que en América Latina
había estado presente desde la colonización. En A partir de este proceso, y de la construcción de
el siglo XIX, en el contexto de la consolidación del un pensamiento marxista cada vez más autóno-
capitalismo industrial, esta acción coincide con mo en relación con la Unión Soviética, y desde la
los intereses de los reformadores urbanos. El Mu- inspiración de la Revolución Cubana (1959) y los
seo Social Argentino, creado en 1911, en línea con movimientos independentistas en África y Asia,
lo que existía en París desde finales del siglo XIX, se originó el concepto de Tercer Mundo, acuñado
es un punto evidente en la relación entre el ámbito por el demógrafo francés Aufred Sauvy. La idea
EIXO TEMÁTICO 1 de intervenir políticamente, sin alineamiento con
Estados Unidos o la Unión Soviética, reunió a va-
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO rios intelectuales que, en una serie de reuniones
periódicas, forjaron una alianza que culminó en
1966 en la Organización de Solidaridad de los Pue-
blos de África, Asia y América Latina, que surgió
desde años antes. , del Movimiento de Países No
Alineados (GILMAN, 2012, págs. 45-46).

La idea de “Tercer Mundo”, sin embargo, también


sería cuestionada por las corrientes liberales y
por agencias internacionales como la ONU, OEA,
BID, Fundación Ford y Rockfeller, actuando en
los países a través de programas de cooperación
técnica. De esta forma, entre las décadas de 1950
y 1970, se formó un marco de conocimiento único
a partir del diálogo entre los más diversos cuer-
pos disciplinarios y también de vertientes católi-
cas, laicas, científicas y marxistas, en la consti-
tución de los Estudios Urbanos en América Latina
en ese momento.

Desde los campos del derecho, la sociología, la


arquitectura y el urbanismo, buscando dilucidar
los diálogos inter y transdisciplinares, en una
perspectiva transnacional, los trabajos de esta
mesa temática son piezas en la composición de
este complejo mosaico. Se pretende contribuir
a los esfuerzos por comprender la relación entre
arquitectura y urbanismo con otros campos del
conocimiento y sus conexiones transnacionales
en el contexto latinoamericano. Se asume que los
Estudios Urbanos y el campo del urbanismo que
se formó en esos años, contribuyeron de manera
original y decisiva a los debates globales sobre la
modernidad, así como sobre sus límites y suce-
sivas crisis.

CIUDAD SOCIOLOGÍA ARQUITECTURA Y URBANISMO


ESTUDIOS URBANOS HISTORIOGRAFÍA

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

38
39
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
EIXO TEMÁTICO 1 O LIVRO IMPERIALISMO Y URBANIZACIÓN EN
AMÉRICA LATINA: A RELAÇÃO ENTRE SOCIÓLOGOS
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
E ARQUITETOS NAS DÉCADAS DE 1960 E 1970

mesa temática
Em 1973 é publicado na coleção Ciência Urba-
nística, da editora espanhola Gustavo Gili, o livro
ARQUITETURA, SOCIOLOGIA, coletivo Imperialismo y urbanización en Améri-
ca Latina, organizado pelo sociólogo espanhol
ESTUDOS URBANOS: APRO- radicado na França Manuel Castells e reunindo
17 artigos de intelectuais de diversas origens.
XIMAÇÕES À CONSTITUIÇÃO Com exceção dos brasileiros Paul Singer, eco-
nomista, e Milton Santos, geógrafo, os demais
DE UM CAMPO NA AMÉRICA autores presentes na coletânea são sociólogos
ou arquitetos. A aproximação desses dois campos
LATINA (1950-1970) disciplinares - sociologia e arquitetura - parece
se ligar na América Latina ao impacto que os pro-
cessos de modernização sobretudo no segundo
ARCHITECTURE, SOCIOLOGY, URBAN STUDIES: pós-Guerra provocaram nas suas cidades. Cres-
APPROXIMATIONS TO A FIELD IN CONSTRUCTION IN cimento acelerado e desvinculado de processos
LATIN AMERICA (1950-1970) de industrialização, habitação precária, margina-
lidade, extensão da mancha urbana e surgimento
ARQUITECTURA, SOCIOLOGÍA, ESTUDIOS URBANOS: de periferias sem infra-estrutura foram alguns
APROXIMACIONES A LA CONSTITUCIÓN DE UN CAMPO dos fenômenos então observados. Nesse con-
EN AMÉRICA LATINA (1950-1970) texto, centros universitários e instituições de
pesquisa teriam um papel fundamental para a
estruturação dos campos da sociologia urbana
e do planejamento no continente, que por sua
vez remontam à diversos fatores. Entre eles, a
presença do pensamento da Escola de Sociologia
de Chicago, a incursão do Movimento Economia
e Humanismo, sob a liderança do Padre Lebret,
nas décadas de 1940 e 1950, ecoando também
a sociologia urbana francesa, da qual Castells é
um nome chave.

Essa comunicação busca examinar o livro Im-


perialismo y urbanización en América Latina,
percorrendo seus artigos e a trajetória de seus
autores, de modo a traçar algumas linhas entre
a arquitetura e a sociologia na conformação de
uma sociologia urbana na América Latina. Entre
os autores que marcam presença na coletânea,
alguns nomes se destacam nesse diálogo, tendo
também influência significativa nos rumos dos
debates em seus próprios campos. Vejamos.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

40
Figura 1: Capa do livro Imperialismo y urbanización en
America Latina em sua primeira edição (Reprodução).

O sociólogo peruano Aníbal Quijano, radicado no


Chile por algum tempo, havia escrito em 1966 o
texto “Notas sobre el concepto de marginalidad
social” para a CEPAL (publicado em português em
Populações marginais, volume organizado por Luiz
Pereira em 1978), buscando aprofundar a reflexão
sobre os sentidos do termo “marginalidade”. É
justamente sobre esse tema que Quijano escreve
na coletânea, publicando o artigo “La formación
de un universo marginal en las ciudades de Amé-
rica Latina”, apresentando a dimensão urbana
do fenômeno da marginalidade. Nos anos 1980,
Quijano reelabora essas questões à luz do debate
pós-colonial, forjando o conceito de “colonialida-
de do poder” e se tornando a partir daí um nome
fundamental dos estudos decoloniais.

Figura 2: Capa do relatório interno de Aníbal Quijano:


“Notas sobre el concepto de la marginalidad social” (1967)
e capa do livro de Luís Pereira, Populações “marginais”,
onde o artigo é publicado em português (Reprodução).
EIXO TEMÁTICO 1 O sociólogo brasileiro Fernando Henrique Cardo-
so, jovem professor da USP exilado no Chile de
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO 1964 até 1967 (e depois na França), havia lançado
em 1967, com Enzo Falleto, o livro Dependência e
Desenvolvimento na América Latina. Contribuiu
na coletânea com um artigo sobre São Paulo,
escrito em parceria com os também sociólogos
Cândido Procópio e Lucio Kowarick: “Considera-
ciones sobre el desarrollo de São Paulo: cultura
e participación”, publicado anos antes na revista
chilena Eure. Dois anos depois, os três intelectuais
participariam de uma pesquisa encomendada
pela Cúria Metropolitana de São Paulo sobre as
condições materiais de vida dos trabalhadores,
que resultou no volume coletivo São Paulo 1975:
Crescimento e Pobreza, no qual também colaborou
Paul Singer, presente no livro de Castells.

Figura 3: Capa do livro São Paulo 1975: crescimento e


pobreza, resultado da pesquisa encomendada pela Ar-
quidiocese de São Paulo (Reprodução).

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

42
Do campo da arquitetura, destaca-se a presença
do argentino Jorge Enrique Hardoy, que vai criar
em 1975 o Centro de Estudios Urbanos y Regio-
nales em Buenos Aires, e que já publicara alguns
volumes sobre as cidades latino-americanas -
entre eles, Ciudades Precolombinas (1964) e Las
ciudades de América Latina. Seis ensayos de ur-
banización contemporánea (escritos entre 1965
e 1969 e publicados em 1972) - abrindo a história
urbana para os universos sociais, econômicos e
culturais contemporâneos, em retroalimentação
com o planejamento.

Figura 4: Capas dos livros de Hardoy sobre as cidades


latino-americanas, as precolombianas e as contempo-
râneas (Reprodução).
EIXO TEMÁTICO 1 O arquiteto chileno Enrique Browne - que publica
o artigo “Planificación para los planificadores o
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO para el cambio social?” em parceria com o colega
Gillermo Geisse, ambos pesquisadores do Centro
Interdisciplinar de Desenvolvimento Urbano e
Regional (CIDUR) da Universidade Católica do Chile
- também terá importância para a reflexão sobre
a produção de arquitetura na América Latina. Ao
buscar definir suas características específicas a
partir do conceito de “lugar”, tema explorado em
seu livro Otra Arquitectura en América Latina, pu-
blicado em 1988, Browne vai se tornar referência
na discussão de uma arquitetura sustentável.

Figura 5: Capa do livro de Browne publicado em 1988 (Re-


produção).

Nesse conjunto, Manuel Castells é o nome que


articula as diversas colaborações, destacan-
do-se no campo desde suas contribuições para
discussão do fenômeno urbano, sistematizadas
no livro La question urbaine (publicado em Paris
em 1972). O sociólogo se valeria das reflexões já
16º SHCU publicadas por aqueles diversos intelectuais nas
30 anos . Atualização Crítica
revistas Espace et Societés (Paris) e Eure (San-
44 tiago), compondo a coletânea aqui em exame.
Nessas discussões, categorias sociológicas como REFERÊNCIAS
“imperialismo”, “dependência”, “luta de classes”
passavam a ser associadas às especificidades
do fenômeno urbano na América Latina. Foi tam- BROWNIE, Enrique. Otra arquitectura en Amé-
bém por esse caminho que a própria noção de rica Latina. México: Ed G. Gilli, 1988.
marginalidade foi incorporada como elemento
de particularização regional. CAMARGO, Cândido Procópio (Org.). São Pau-
lo 1975: crescimento e pobreza. São. Paulo:
Castells e Patrício Velez (arquiteto equatoriano), Loyola, 1976. 
no texto de apresentação do livro, pontuariam a
importância do Chile para o aprofundamento teó- CASTELLS, Manuel. La question urbaine. Pa-
rico desse debate, referenciando-se às condições ris, François Mapero, 1972.
sociais particulares chilenas, que propiciaram
CASTELLS, M. Imperialismo y urbanización
investigações de caráter propriamente científico
en América Latina. Barcelona: Gustavo Gili.
sobre as relações entre dependência (cultural e
1973.
econômica) e os fenômenos urbanos. Os autores
parecem se referir à excepcionalidade do encon- CARDOSO, Fernando Henrique e FALETTO, Enzo.
tro entre diversas instituições, como a CEPAL ([1967] 1970), Dependência e desenvolvimento
e também o CIDUR (Centro Interdisciplinario de na América Latina: ensaio de interpretação
Desarrollo Urbano y Regional) da Universidade sociológica, Rio de Janeiro: Zahar, 1970.
Católica do Chile, que faziam parte da efervescên-
cia intelectual fruto de um Chile governado pela QUIJANO, Anibal. “Notas sobre o conceito de
experiência do socialismo democrático liderado marginalidade social”. In: PEREIRA, Luiz. Po-
por Allende. pulações “marginais”. São Paulo: Duas Cida-
des,1978, pp. 11-72.
Nessa comunicação buscaremos recuperar tais
debates e iluminar algumas perspectivas do di- HARDOY, Jorge Enrique. Ciudades Precolom-
álogo entre sociologia e arquitetura que definiu binas. Buenos Aires, Infinito, 1964.
um caminho interpretativo das cidades latino-a-
mericanas desde então. ___________________. Las ciudades de América
Latina. Seis ensayos de urbanización contemporá-
nea. Buenos Aires, Paidos, 1972
EIXO TEMÁTICO 1 CHARLES ABRAMS, UM “EXPERTO NO CAMPO DA
HABITAÇÃO POPULAR”: IMPRESSÕES E PROPOSTAS
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
PARA A AMÉRICA DO SUL, 1947-1967

A historiografia especializada tem definido um


momento de inflexão em relação à visão e ao co-
nhecimento da chamada cidade popular a partir
das propostas do arquiteto inglês John F. C. Turner
difundidas mundialmente a partir da década de
1960. Apesar da importância dessas contribuições
é possível perceber que, na verdade, essa atitude
em relação às barriadas, aos seus moradores e
aos problemas gerados pelo déficit de habitação
popular eram questões já trabalhadas, discutidas
e aprofundadas nos países latino-americanos
por profissionais latino-americanos; ainda mais,
Turner não foi o único estrangeiro aprendendo e
apreendendo com a realidade continental.

Figura 1: Charles Abrams. Fonte: Abrams (1947, p. 199).

Por exemplo, outro caso significativo é o do ad-


vogado e expert em habitação popular, Charles
Abrams (Figura 1). Pouco se sabe sobre sua vinda
16º SHCU para a América do Sul entre as décadas de 1950
30 anos . Atualização Crítica e 1960 - no mesmo período que Turner-, sobre
46 as articulações que facilitaram sua vinda e, me-
nos ainda, sobre as propostas que desenvolveu Autónomo Corporación Venezolana de Guayana
para os países que visitou. Abrams teve um papel - CVG (Rodwin, 1967; Izaguirre, 1977) que estaria
fundamental na elaboração de leis voltadas para encarregado da proposta para o planejamento da
habitação social nos Estados Unidos a partir da Cidade Guayana, fundada no ano seguinte (Peat-
década 1930. tie, 1990). Em 1962, a CVG contratou o Join Center
for Urban Studies na qualidade de consultor e é
As referências a Abrams na América do Sul são nessa articulação que Abrams visita o país, sendo
pontuais, porém, relevantes. Em 1947 apareceu encarregado de analisar, também, a problematica
seu primeiro artigo em castelhano “Política y vi- habitacional.
vienda” na revista argentina Nuestra Arquitectura,
onde é considerado como um dos maiores espe- Suas impressões sobre a Venezuela centram-se,
cialistas da temática. Sua vinculação às Nações em especial, a partir dos casos das cidades de
Unidas na qualidade de consultor lhe permitiu Caracas e Ciudad Guayana. Da mesma forma que
afastar-se da realidade estadunidense, provo- para o caso Boliviano, Abrams chama a atenção
cando-lhe um interesse por se aproximar das para os processos de autogestão e da neces-
realidades dos chamados “países em subdesenvol- sidade do olhar antropológico no cotidiano dos
vimento”; dois casos específicos foram decisivos: habitantes (Abrams, 1967). Para ele:
Gana e Turquia, em 1954.
It may also stem from the cooperative or-
A vinda de Abrams para a América Latina, e es- ganization of the squatter group prior to
pecificamente para a Bolívia e a Venezuela, nos the sortie. Help in the building thus may
revelam, de um lado, redes e articulações pro- take on the semblance of a mutual self-help
fissionais estabelecidas e, de outro, interesses project. In one Caracas squatting area, a
estadunidenses específicos (Quintana, 2016). No savings cooperative will enable cooperators
caso boliviano, Abrams foi convidado por Aníbal to borrow for necessary materials and repay
Aguilar Peñarrieta, Ministro de Trabalho desse the debts in installments. The cooperative
país, para realizar entre agosto e setembro de also intends to buy materials at reduced
1959 uma avaliação e formulação de propostas prices (ABRAMS, 1966, p. 21)
para a política de habitação então implantado
(Abrams, 1960). Nesse sentido, essa viagem incluiu
a visita a La Paz, Cochabamba e Santa Cruz, além
dos povoados entre essas cidades. Apesar de
que ele evidencia diversos problemas em relação
ao problema da habitação, algumas afirmações
chamam a atenção uma vez que, vários países
naquele momento (inclusive a Bolívia) haviam op-
tado por afrontar o déficit habitacional a partir da
implantação de grandes conjuntos. Para Abrams:

[...] los monumentos arquitectónicos pue-


den convertirse en sepulcros del régimen
económico que hizo posible su construcci-
ón, y las promesas políticas no cumplidas en
sus vanos epitafios [...] Sin embargo, si se
levantan casitas bien construidas de forma
que puedan ampliarse y mejorarse, lo más
probable es que los nuevos barrios vayan
mejorando de aspecto. (ABRAMS, 1960, p. 6)

No caso Venezuelano, a chegada de Abrams a


esse país em janeiro 1962, foi também estraté-
gica. Dois anos antes, através do decreto nº 430
de 29 de dezembro de 1960 foi criado o Instituto
EIXO TEMÁTICO 1
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

48
REFERÊNCIAS

ABRAMS, Charles. “Política y vivienda”. Nuestra


Arquitectura. Buenos Aires, v. 19, n. 215, jun. 1947, p.
199–201, 176.

ABRAMS, Charles. Informe sobre el financiamien-


to de la vivienda en Bolivia. Nova Iorque: Nações
Unidas, 1960.

ABRAMS, Charles. Man’s Struggle for Shelter in


an Urbanizing World. Cambridge: The M.I.T. Press,
1964.

ABRAMS, Charles. Squatter Settlements. The pro-


blem and the opportunity. Washington: Agency for
Internacional Development, 1966.

ABRAMS, Charles. La lucha por el techo en un mun-


do en urbanización. Buenos Aires: Infinito, 1967.

BARRIOS, Carola. Can Patios Make Cities? Urban


Traces of TPA im Brazil and Venezuela. Zarch. Jour-
nal of Interdisciplinary studies in Architecture and
Urbanism, Zaragoza, n. 1, p. 70–81, 2013.

Figura 2: Capas dos livros “Man’s struggle for shelter in IZAGUIRRE P., Maritza. Ciudad Guayana y la es-
an urbanizing world” (1964), “Squatter Settlements. The trategia del desarrollo polarizado. Buenos Aires:
problem and the opportunity” (1966) e “Habitação, desen- Sociedad Interamericana de Planificación, 1977.
volvimento e urbanização” (1967).
MESA, Jospé de (Org.). 100 años de arquitectura
paceña, 1870-1970. La Paz: Colegio de Arquitectos
de La Paz, 1989.
Tomando como fonte principal alguns livros do
próprio Abrams (Figura 2), neste artigo propomos PEATTIE, Lisa. Planning: rethinking Ciudad Guaya-
de um lado, entender suas impressões sobre as na. Ann Arbor: The University of Michigan Press,
cidades sul-americanas a partir de sua experiên- 1990.
cia com a Bolívia e a Venezuela; e de outro lado,
buscamos compreender como esses eventuais QUINTANA TABORGA, Juan Ramón (Org.). Un siglo
impactos foram decisivos para as propostas de de intervención de EEUU en Bolívia. Volumen IV
políticas de habitação elaboradas por ele para (1950-1964). La Paz: SPC Impresores, 2016.
esses países. Esta aproximação nos permite
perceber que o entendimento das favelas como RODWIN, Lloyd. Planejamento urbano em países
possibilidade foi um posicionamento, também, em desenvolvimento. Rio de Janeiro: Bloch, 1967.
compartilhado por outros profissionais estrangei-
ros; inclusive, no caso de Abrams, ele antecipou
algumas das propostas difundidas por Turner.
EIXO TEMÁTICO 1 A DESINTEGRAÇÃO ENTRE HABITAÇÃO E
PLANEJAMENTO. BRASIL E URUGUAI, FAVELAS
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
E “CANTEGRILES”

Buscamos problematizar Problematizamos al-


gumas relações entre produção de habitação
social e planejamento no Brasil e no Uruguai, entre
as décadas de 1950-1970, quando se encontram
dialeticamente os campos da arquitetura, do
urbanismo e da sociologia no tratamento dos
assentamentos informais: favelas e “cantegriles”.

O período envolve ações em torno do Panameri-


canismo, no contexto da Guerra Fria, da Operação
Pan-americana/Aliança para o Progresso (OPA/
ALPRO), de 1961. O planejamento ocuparia um
lugar central sob a Comissão Econômica para a
América Latina (CEPAL) e as teorias de Prebisch
para alavancar o desenvolvimento; ideias que
irão se modificando até ganhar protagonismo,
nos anos 1960, a Teoria da Dependência. Nesse
quadro, Brasil e Uruguai trataram o problema de
favelas e “cantegriles”, oferecendo respostas com-
binadas com os interesses das políticas locais, da
academia e dos técnicos envolvidos.

No Brasil a resposta oficial predominante foi a


remoção de favelas, contrastando com propos-
tas alternativas de projetos de melhorias, pra-
ticamente sem integração entre as propostas
estatais de moradia e de planejamento urbano
e a realidade da formação de favelas. Entre os
anos 1950 e o início da ditadura militar em 1964, a
política vigente fornecia, através dos Institutos de
Aposentadoria e Pensões (IAPs), financiamentos
para associados: compra de lotes e material para
autoconstrução ou aluguel/compra de unidades
promovidas pelos institutos; a Fundação da Casa
Popular (FCP), junto com prefeituras, atuou em
favelas, com propostas de sua remodelação.

O sistema IAP/FCP teve baixa produção e a ditadu-


ra justifica sua atuação pela demanda acumulada,
privilegiando a produção de conjuntos habitacio-
nais. IAPs e FCP, extintos, foram inseridos na nova
estrutura institucional: SFH/BNH/COHABs/SER-
FHAU (Sistema Financeiro da Habitação/Banco
Nacional da Habitação/Companhias de Habitação/
16º SHCU Serviço Federal de Habitação e Urbanismo), sem
30 anos . Atualização Crítica
programas em favelas, apenas sua remoção para
50 os conjuntos (como o caso da Vila Kennedy, no Rio
de Janeiro, promovido com recursos da ALPRO). mostraria seus limites, já revelados desde os anos
1940. Segundo a visão estatal, as famílias em si-
As análises críticas em relação ao fenômeno da tuação paupérrima, obrigadas a deixar seu lugar
favelização e às formas de tratamento estatal de origem e migrar para a cidade, não lograriam
interessam na compreensão da dicotomia fave- solucionar seus problemas habitacionais.
la/conjunto e da ausência de integração entre
a produção habitacional e o planejamento, cuja A primeira atuação deu-se com provisão de vi-
institucionalização ocorre desde os anos 1930 vendas de emergência, esperando que a situação
intensificando-se a partir dos anos 1950 (FELD- melhoraria uma vez incorporados esses morado-
MAN, 2012; 2019). res à indústria. O Instituto Nacional de Viviendas
Económicas (INVE) produziria esta solução para
No Rio de Janeiro, onde o advento de favelas re- trabalhadores “com problemas de acesso à mo-
monta à abolição da escravidão em 1888, implan- radia”, no caso de Montevidéu, junto à Comisión
taram-se os “parques proletários provisórios” Departamental, sendo construídos em 1950/1952,
(RODRIGUES, 2013). Entre 1940-1945, no Estado cinco bairros de emergência.
Novo, Leeds e Leeds (1978) reconstroem os con-
flitos entre disciplinas, com a arquitetura voltada Com o tempo ficou claro que este tipo emergencial
aos conjuntos residenciais operativos da ideia de não resolveria a questão, já que o problema era
“construção da nação moderna” e a cidade seria o social, além da provisão de moradia (BOLAÑA,
lócus privilegiado do que se considerou “política 2018, p. 100). O “cantegril” tipificado deveria ser es-
populista autoritária”. tudado, diagnosticado e inserido num plano maior,
no caso de Montevidéu, o Plano Diretor de 1956.
Em São Paulo, com 16 favelas na década de 1940
(TASCHNER, 2001), o estudo da SAGMACS, liderado A questão deveria ser tratada como social e in-
por Lebret, de 1958, inclui a favela como um tipo tegral, em “unidades habitacionais”, passando as
habitacional; o PUB (Plano Urbanístico Básico), de famílias por um processo de recuperação, para
1968, considera os barracos em favela, os cortiços estarem aptas a viver na cidade. Por terem “per-
e as casas precárias de periferia os 3 tipos de dido as possibilidades naturais de superação”, a
moradia inadequada. Após a instituição do Plano solução para as famílias nos “cantegriles” seria
Nacional de Habitação Popular (PLANHAP) em diferenciada daquela das famílias de baixa renda
1973, a Secretaria de Bem-Estar Social realiza não moradoras destas áreas. Propuseram-se três
o Cadastro de Favelas (1973-1975), instalando a unidades habitacionais nesses anos: Buceo e Cer-
favela definitivamente no horizonte das políticas ro (destinadas à classe trabalhadora”) e Casavalle,
públicas paulistanas (TASCHNER, 1977); ao mes- inserida no “plano progressivo de readaptação
mo tempo, as COHABs ampliam a promoção de social” (BOLAÑA, 2018, pp. 109-111).
conjuntos habitacionais. Apenas no governo de
Mário Covas (1982-1985) inicia-se um incipiente A partir dos anos 1960, há um incremento na in-
programa de “reurbanização de favelas”. tervenção dos organismos internacionais, con-
dicionando os empréstimos à concreção de pla-
No Uruguai, a partir dos anos 1940 surge a preocu- nos. Com a criação da Comisión de Inversiones
pação com os “rancheríos”, habitações precárias y Desarrollo Económico (CIDE), no contexto da
localizadas sobretudo no campo, mas também ALPRO, inicia-se o levantamento exaustivo da
nas periferias da capital e de algumas cidades realidade nacional com a planificação em diver-
do interior. A finais dessa década aparecem os sas áreas, incluindo habitação e planejamento
primeiros estudos sobre a questão: as Missões regional. Este processo resultou na aprovação
Sócio-Pedagógicas, dos estudantes de Pedago- em 1968 da Ley de Vivienda, indicando a realização
gia, a partir de 1945, e as Equipes de Bem Comum, do Plan Nacional de Vivienda, cuja aplicação seria
inspiradas em Lebret. centro de debates nos anos 1970, no contexto do
governo conservador, às vésperas do golpe de
Na década de 1950, o Uruguai, sob a presidência de Estado de 1973.
Luis Batlle Berres, encontrava-se num momento
de crescimento e ampliação de direitos; porém, a Segundo Risso e Boronat (1992, p. 56), a questão
industrialização por substituição de importações dos “cantegriles”, tratada pelo governo com a er-
EIXO TEMÁTICO 1 radicação e produção de convênios entre o INVE
e as prefeituras, é inserida num plano geral visan-
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO do solucionar os problemas de desenvolvimento
habitacional e urbano, porém os empréstimos
cobriam apenas a realização da habitação, sem
serviços e infraestrutura, evidenciando a desinte-
gração entre plano e projeto habitacional, tratado
sem preocupação urbanística.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

52
REFERÊNCIAS LOUIS-JOSEPH LEBRET, EXPERT DA ONU:
CONTRIBUIÇÃO À TEORIA DO DESENVOLVIMENTO
BOLAÑA, M.J. Pobreza y segregación urbana. A PARTIR DA EXPERIÊNCIA NA AMÉRICA LATINA
Cantegriles montevideanos.1946-1973. Monte-
video: Rumbo, 2018.
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FELDMAN, S. As Comissões de Plano da Cidade 1970, um conjunto de novas teorias e experiências
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nismo na Era Vargas: a transformação das partir de uma gama de questões urbano-regionais
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Intertexto, 2012, pp. 21-44. da guerra fria e pelos múltiplos desdobramentos
dos processos de urbanização nos países subde-
_______. O Serviço Federal de Habitação e Ur-
senvolvidos (GORELIK, 2005). O enfrentamento
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profissional do urbanista. In: LEME, M.C.S. (org.)
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Urbano. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978. de superação dos limites administrativos são
parte de um conjunto de questões que orientam
RISSO, M. R.; BORONAT, J. Y. La vivienda de in- todo um repertório de trabalhos, os quais foram
terés social en el Uruguay: 1970-1983. Monte- responsáveis pela introdução de novas perspec-
video: Fundación de Cultura Universitaria, 1992. tivas teóricas para a compreensão dos processos
constituindo novas bases para o pensamento e a
RODRIGUES, R. I. “Aspectos fundiários da po- prática em planejamento nesse período.
lítica governamental para as favelas do Rio de
Janeiro nas décadas 1940 e 1950.” In: Anais do O desvendamento da realidade dos países sub-
XV ENANPUR, Rio de Janeiro, 2013. desenvolvidos através da interlocução entre dis-
ciplinas como a geografia, sociologia, economia,
TASCHNER, S.P. Favelas em São Paulo – cen- arquitetura e urbanismo e a compreensão das
so, consensos e contra-sensos. São Paulo. In: particularidades e dos problemas do desenvol-
Cadernos Metrópole, n.º 5, 2001, pp. 9-27. vimento dos países latino-americanos, em suas
múltiplas dimensões, se articulam aparato ins-
_______. Favelas do município de São Paulo: titucional montado no 2o pós guerra voltados
resultado de pesquisa. São Paulo, FAU-USP, para o financiamento e cooperação técnica dos
1977. países subdesenvolvidos, como a criação Organi-
zação das Nações Unidas (ONU) em 1945 e o Point
Four Program de 1949 do governo Truman. Essa
montagem possibilitou uma ampla circulação de
profissionais de diferentes países que se dirigem à
América Latina que, com sua expertise, contribuí-
ram para o intercâmbio de teorias e práticas entre
diferentes partes do mundo, tornando os países
latino-americanos verdadeiros laboratórios para
a compreensão da realidade subdesenvolvida em
nível internacional. Entre estes experts destaca-
-se a atuação do francês Louis-Joseph Lebret na
América Latina (PONTUAL, 2016).

A despeito de Lebret e da SAGMACS ter sido foco


de uma ampla gama de pesquisas no âmbito da
historiografia do urbanismo sobretudo nos úl-
EIXO TEMÁTICO 1 timos vinte anos (LEME e LAMPARELLI, 2001;
ANGELO, 2010; CHIQUITO, 2016; PONTUAL, 2016;
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO GODOY, 2016; CESTARO, 2017; entre outros) sua
atuação como expert da ONU imbricada com o
papel que desempenhou nos países da América
Latina ainda merece ser aprofundada. A ONU
permite a Lebret a interlocução com outros es-
pecialistas de diferentes áreas, Além de Lebret,
compunham a comissão de experts para a aná-
lise do desenvolvimento Raymond Firth, Erland
Hofsten, Otávio Alexander de Moraes, V. Rao e
Philip Hauser (FIGURA 1), tendo também entre os
consultores dessa comissão o brasileiro Josué
de Castro.

Figura 1 – Capa do relatório e carta de encaminhamento


assinada pela Comissão de experts. Fonte: ONU, 1954.

A interlocução de Lebret no âmbito da ONU com


especialistas de diferentes áreas como economia
e sociologia vindos de diferentes países contribuiu
tanto para o avanço dos métodos e conceitos de
avaliação da situação econômica e social mun-
dial como proporcionou também a difusão inter-
nacional da abordagem teórica e metodológica
do Movimento Economia & Humanismo. Lebret
reconhece que sua participação na ONU, na qua-
lidade de especialista, foi uma oportunidade para
que ele compreendesse que “a generalização de
seus métodos de análise permitiria a percepção
das necessidades das comunidades de base, em
função do estabelecimento de planos nacionais
ou de territórios dependentes, e de um plano geral
de intervenção” entendidos como instrumentos
16º SHCU capazes de revelar as situações e necessidades
30 anos . Atualização Crítica de populações em diferentes “fases do desenvol-
54 vimento”. (LEBRET, 1956).
Ao mesmo tempo que Lebret aplica, nos estudos
latinoamericanos, os métodos que estavam sen-
do formulados por ele no âmbito do Movimento
Economia e Humanismo (FIGURA 2), a experiência
latinoamericana - especialmente os trabalhos
feitos para a Comissão Interestadual da Bacia
Paraná-Uruguai (CIBPU) que constituem os pri-
meiros estudos regionais de Lebret no contexto do
subdesenvolvimento latinoamericano -, possibilita
testar e redefinir sua metodologia a partir deste
“laboratório” que ele chama de “estudo de um caso
concreto” (FIGURA 3) e permitindo assim sua con-
tribuição tanto para a reformulação dos métodos
da ONU na criação dos primeiros indicadores de
desenvolvimento mundial (CHIQUITO, 2016) quanto
para a formulação de sua “Contribuição à Teoria
do Desenvolvimento”. Vale ressaltar nessa trama
que Lebret também participou ativamente da
redação da encíclica Populorum Progressio, refe-
rência principal do chamado desenvolvimentismo
católico.

Figura 3 – Método para identificação dos problemas de


desenvolvimento a partir de estudo de caso. Fonte: SAG-
MACS (1954)

Essa comunicação, portanto, busca analisar a


“Contribuição à Teoria do Desenvolvimento” de
Lebret como uma das importantes vertentes do
debate sobre a questão do desenvolvimento nos
países da América Latina, compreendendo-a par-
tir da atuação imbricada de Lebret nas institui-
ções e organismos internacionais e a partir das
relações entre economia, sociologia e o desen-
volvimentismo católico.

Figura 2 – Capa da Revista Economie & Humanisme


EIXO TEMÁTICO 1 REFERÊNCIAS
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
ANGELO, M. Les Développeurs: Louis-Joseph
Lebret e a SAGMACS na formação de um grupo
de ação para o planejamento urbano no Brasil.
Tese (Doutorado). IAU USP, 2010.

BIELCHOWSKY, Ricardo. (2000), Pensamento


econômico brasileiro: o ciclo ideológico do
desenvolvimentismo. Rio de Janeiro: Contra-
ponto, 5a ed.

BONNECASE, V. La construction des savoirs


sur les niveaux de vie au Burkina Faso, au
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16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

56
57
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
EIXO TEMÁTICO 1 RESUMO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Se cidades abrigam espaços, abrigam tempos.
Que se acumulam não só nos monumentos des-
mesa temática cascados, nas ruínas, no corpo dos envelheci-
dos, nas árvores centenárias, mas ainda, nos si-
lêncios da palavra, no canto obscuro, no recorte
ÁVIDOS POR ESCUTAR O geográfico desprezado.

CORPO, O TEMPO, A MATÉRIA E entre sobrevivências e ausências, o saber his-


toriográfico seleciona. Salienta um fato e outro,
DA CIDADE: VIVÊNCIAS COMO legitima ou cala discursos, personagens, espa-
ços movidos por razões que envolvem as dispu-
PRÁTICA METODOLÓGICA DA tas ideológicas sobre a quem e a que a História

HISTÓRIA URBANA deve contemplar. A academia, além de repro-


duzi-las no ensino, também se coloca na posi-
ção de produtora dessas narrativas, através da
GREAT FOR LISTENING TO THE BODY, TIME, atuação no campo da pesquisa e extensão. Mais
THE MATTER OF THE CITY: EXPERIENCES AS A ainda, as universidades, como espaços de po-
METHODOLOGICAL PRACTICE OF URBAN HISTORY der, atuam consagrando ou desabonando dis-
cursos. Portanto, averiguar estes caminhos de
produção e também seus métodos, se colocam
GRANDE PARA ESCUCHAR EL CUERPO, EL TIEMPO, LA
como um desafio atual.
MATERIA DE LA CIUDAD: LAS EXPERIENCIAS COMO
PRÁCTICA METODOLÓGICA DE LA HISTORIA URBANA
Não diferente ocorre do campo da história da
cidade e do urbanismo, onde enormes áreas de
SILVA, Maria Angélica da sombra e luz foram e são construídas. O que di-
Professora Titular; FAU/UFAL
fere é que, quando história, memória e cidade
mas.ufal@gmail.com confluem, as marcas edificadas estão disponí-
veis. Temos o privilégio de reportar ao passado
CERQUEIRA, Louise Maria com a possibilidade, por vezes, de tocá-lo. Isto
faz pensar o tempo presente como campo pri-
Doutora; PPGAU/UFAL
luh.mmc@gmail.com
vilegiado da história se torne uma questão ainda
mais clara, visto que se os monumentos foram
construídos no passado, dialogam com os seres
MELO, Thalita Carla
do presente, e podem alcançar futuros.
Doutoranda; PPGAU/UFAL
thalitalima@gmail.com
Para além disto, os mergulhos no tempo podem
ter espessuras diversas. Se o que chamamos
CARNEIRO, Ana Karolina passado se aproxima do ontem, de horas atrás,
Mestranda; PPGAU/UFAL a vida pulsante se torna o objeto de reflexão e
karol.corado@gmail.com contemplar o quase hoje, as fímbrias do contem-
porâneo, já significa produzir História Urbana.

Isso significa que o contemporâneo não é


apenas aquele que, percebendo o escuro
do presente, nele apreende a resoluta luz;
é também aquele que, dividindo e interpo-
16º SHCU lando o tempo, está à altura de transfor-
30 anos . Atualização Crítica
má-lo e de colocá-lo em relação como os
58 outros tempos, de nele ler de modo iné-
dito a história, de “citá-la” segundo uma a importância da imaginação, da arte, da intui-
necessidade que não provém de maneira ção?
nenhuma do seu arbítrio, mas de uma exi-
gência à qual ele não pode responder. É Trazemos ao evento as contribuições ligadas à
como se aquela invisível luz, que é o escu- Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Uni-
ro do presente, projetasse a sua sombra versidade Federal de Alagoas, compreendendo
sobre o passado, e este, tocado por esse atividades realizadas no âmbito do ensino, pes-
facho de sombra, adquirisse a capacidade quisa e extensão. Em particular, abordaremos
de responder às trevas do agora. (AGAM- aspectos da trajetória do Grupo de Pesquisa
BEN, 2009: 72). Estudos da Paisagem, trazendo suas realiza-
ções no campo da história das cidades realiza-
Neste sentido, se nos movemos em busca de tem- das durante as suas duas décadas de existên-
pos que tocam o presente, em olhar o avesso e cia. Voltado para o estudo das cidades e de suas
convocar outros atores e outras temáticas, uma paisagens, elas aqui surgem não apenas como
outra escrita historiográfica deverá emergir. superfície de observação à distância, mas va-
zadas, misturadas, interpenetradas pelos que
Na busca de trazer a presença para a História e as constroem e vivenciam. Cidades vistas por-
a História para a cidade, não há como não con- tanto através das temporalidades, das margens,
vocar as pessoas. Pois a cidade existe basica- e de sujeitos corporificados.
mente enquanto objeto material frente ao qual,
a cada dia, nos postamos para cumprir o ordiná- As ações a serem apresentadas buscaram ter
rio sequenciamento das nossas vidas. Buscan- como meta investir em um conhecimento que
do colocar o anteparo no presente e o tempo no adquire por vezes a estabilidade, adotando for-
espaço, as propostas que se discutem aqui são matos convencionais como um livro, uma tese,
parte do esforço de construir esta História pre- mas que também é produzido de maneira bre-
sentificada e corporificada. ve, enquanto etapa metodológica de pesquisa, a
partir de vivências e experimentos realizados no
O que conta para a escrita destas memórias de contato com os espaços da cidade.
cidade, neste caso, não será exatamente o dis-
tanciamento, o tempo antigo, grisalho, mas o Neles se busca utilizar ferramentas que convo-
presente e a operacionalidade com que aciona- cam o corpo, como a deriva, os exercícios com
mos temporalidades para o enriquecimento ou os canais perceptivos, com as sensibilidades.
a complexificação da vida atual. Aventa-se por- Que podem se guiar, no caminhar, pelos sons ou
tanto a possibilidade do recorte temporal não pelas imagens. E até mesmo perderem-se ne-
se mover apenas regido pelo vetor dos tempos les. Uma história das cidades que passa pela vi-
sucessivos mas de tempos que se entrelaçam. vência dos lugares urbanos. Onde se faz urgen-
Que seus fragmentos, compreendidos em mo- te pensar o cotidiano popular, os grupos sociais
saico, possam ser acionados, avizinhados. Até postos à margem e onde o experimentar surge
mesmo será acatada que a construção lacunar, como etapa metodológica essencial.
descontínua, seja possibilidade posta a quem
pensa a História. O indagar sobre os anacronis- A isto se soma a vontade do próprio vivenciador.
mos, as permanências, os tempos dos fantas- Porque o processo se ancora buscando a moti-
mas também se tornam convidáveis. vação interna de cada um. Se tudo se inicia dei-
xando a sala de aula, a experiência do caminhar
E se pensamos numa história inclusiva, que se pode se dar pela livre opção de entrar num mo-
apoia em zonas de sombreamento, não cabe- numento ou seguir beira rio. Assim, os próprios
ria convocar os chamados “errantes da cida- exercícios do autor da produção científica se
de” (JACQUES, 2012)? Os esfarrapados, os sem incorporam no processo de escrever a narrati-
chance, os à margem? E por que não também os va historiográfica, através das suas vivências e
brincantes, os que, em malabarismo, por vezes dos experimentos estéticos que pode produzir.
em situação de vulnerabilidade, fazem da vida, A deriva, motivada não apenas a partir das téc-
graça? Ou os que sublinham na sua existência, nicas psicogeográficas mas também do elogio
EIXO TEMÁTICO 1 anacrônico às práticas do perambular e à ne-
cessidade de acordar os sentidos, anima-se
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO em tempos de celulares nas mãos, na busca de
ressensibilizar os corpos. Portanto, já não se
persegue a história da cidade como a narrati-
va dos fatos consolidados mas os trazidos pela
imersão nos espaços. O associar-se à arte e o
observar até mesmo o que é banal.

Gostaria de escrever sobre as “flores” em


Moscou, e não só sobre as heroicas flo-
res-da-verdade, mas falar também das
malvas-rosas imensas nos abajures que
os mascates brandem orgulhosamente
pela cidade. (...) Podia mencionar também
tudo aquilo que o frio inspira, os xales
camponeses cujas estampas, bordadas
com lã azul, imitam as flores que o gelo
forma nas janelas. O inventário das ruas
é inesgotável. (...) (BENJAMIN, 1994, p.73).

Assim como Deleuze e Guattari abordaram os


processos de territorialização que se dobram
e redobram, colocar-se adiante da escrita da
história das cidades e na prática do urbanismo
pode responder a um convite de atar nós ou
esgarçar temporalidades. Farrapos de tempos
que não se anulam, que co-habitam os espaços,
que se superpõem, se aproximam ou colidem
entre si. E que, apesar dos duros embates, po-
dem resultar em amorosidade e afeto como es-
tratégias de luta.

Se nos colocamos como seres que se resolvem


na espacialização, então os lugares que esta-
mos importam. E assim, uma imersão na região
onde vivemos, na própria paisagem do Nordeste
do Brasil, ativa a possibilidade atávica do telú-
rico e da ginga. As searas nordestinas, não são
acionadas aqui de forma alguma por ideias vizi-
nhas a um determinismo geográfico ou folclóri-
co mas pulsando e reconhecendo os atributos
do território. Espaços de céu, mares, vastidões
sertanejas, se avizinham mesmo de quem mora
nas cidades. Essa paisagem domiciliar – quen-
te, úmida, visguenta, solar – se abre como uma
experiência oferecida a ser desfrutada e propí-
cia à percepção.

16º SHCU Por outro lado, uma situação dita “periférica”,


30 anos . Atualização Crítica
incorpora o Nordeste à via da pobreza, e, con-
60 sequentemente, da ainda forte presença dos
excluídos, dos que um dia foram chamados por ABSTRACT
Milton Santos, de “homens lentos”. Atravessa-
mos assim, da paisagem do óbvio verde e azul
turístico, para a explosão pulsante da terra. Tra- If cities harbor spaces, they harbor times, which
balho estafante, força de vontade, empenho em accumulate not only in the peeling of the monu-
extrair condições de vida de um mundo pouco ments’ layers, in the ruins, in the bodies of the
grato. aged, in the centenary trees, but still, in the silen-
ces of a word, in the obscure corner, in the despi-
Finalmente, a proposta incorpora uma outra sed geographical outline.
frente que alia os produtos gerados pelo méto-
do a este jogo de capturas que iremos chamar And between survivals and absences, there is
de História. O fato de criar situações, de bus- selection in historiographical knowledge. It hi-
car espacialidades incitando as suas traduções ghlights one fact and another, legitimizes or si-
em objetos gráficos ou volumétricos - os cha- lences speeches, characters, spaces stimula-
mados diários de bordo - que concentram as ted for reasons that involve ideological disputes
narrativas das derivas e faz com que História e about who and what History should contemplate.
Design conversem. Mas também tais traduções The academy, in addition to reproducing them
podem incorporar a cartografia de gestos. Os in teaching, also places itself in the position of
próprios corpos podem executar movimentos e producer of these narratives, through the field
eles mesmos se tatuarem em histórias urbanas. of research and extension. Furthermore, univer-
Pois dentros e foras se misturam. E o corpo sur- sities, as spaces of power, act consecrating or
ge como baluarte. disapproving speeches. Therefore, ascertaining
these production paths and also their methods is
a current challenge.
VIVÊNCIAS CORPO TEMPORALIDADES
Not unlike this is the field of city history and urba-
nism, where huge areas of shadow and light were
and are built. What differs is that when history
memory and city converge, the built marks are
available. We are privileged to report to the past
with the possibility of sometimes touching it. This
makes the present time a privileged field of his-
tory even clearer, since if the monuments were
built in the past, they dialogue with the beings of
the present, and can reach futures.

In addition, the diving into the time can different


thicknesses of layers. If what we call the past
approaches yesterday or hours ago, the pulsa-
ting life becomes the object of reflection; thus,
the contemplation of today, the borders of the
contemporary, already means producing Urban
History.

“This means that the contemporary is not


just one who, perceiving the darkness of
the present, captures the resolute light in
it; it is also the one who, dividing and inter-
polating time, is capable of transforming
it and placing it in relation to other times,
of reading history in an unprecedented
way, of “quoting” it according to a need that
EIXO TEMÁTICO 1 does not come in no way from his choice,
but from a demand to which he cannot
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO respond. It is as if that invisible light, whi-
ch is the darkness of the present, cast its
shadow on the past, and this past, touched
by that shadow beam, acquired the capaci-
ty to respond to the obscurity of the now. ”
(AGAMBEN, 2009: 72)

In this sense, if we move in search of times that


touch the present, looking inside out and summo-
ning other actors and other themes, another his-
toriographical writing should emerge.

In the quest to bring the presence to the history


and history to the city, there is no way not to sum-
mon people. Because the city basically exists as
a material object in front of which, every day, we
stand to fulfill the ordinary sequencing of our li-
ves. Seeking to put the screen in the present and
time in space, the proposals discussed here are
part of the effort to build this presentified and
embodied History.

What counts for the writing of these city memo-


ries, in this case, will not be exactly the distance,
the old, graying time, but the present and the ope-
rationality with which we trigger temporalities for
the enrichment or the complexity of the current
life. Therefore, there is the possibility of the time
being not only governed by the vector of succes-
sive times, but of times that intertwine. The pos-
sibility that its fragments, comprised in a mosaic,
can be activated, brought together. It will even be
accepted that the lacunal, discontinuous cons-
truction is a possibility for those who think about
history. Inquiring about anachronisms, perma-
nencies, the times of ghosts is also inviting.

And if we think of an inclusive story, which is ba-


sed on areas of shading, wouldn’t it be necessary
to summon the so-called “wanderers in the city”
(JACQUES, 2012)? The ragged, the “unlikely”, the
marginalized? And why not the playful ones, who,
in juggling, sometimes in situations of vulnerabi-
lity, make fun out of life? Or those who underline
in their existence, the importance of imagination,
art, intuition?

16º SHCU We bring to the event the contributions linked to


30 anos . Atualização Crítica
the Faculty of Architecture and Urbanism of the
62 Federal University of Alagoas, comprising acti-
vities carried out within the scope of teaching, what is commonplace.
research and extension. In particular, we will ad-
dress aspects of the trajectory of the Estudos da I would like to write about the “flowers”​​
Paisagem Research Group, bringing its achieve- in Moscow, and not only about the heroic
ments in the field of the history of cities carried flowers of the truth, but also about the
out during its two decades of existence. Aimed huge hollyhocks in the lamps that the pe-
at the study of cities and their landscapes, they ddlers proudly brand around the city. (...) I
appear here not only as a surface for observation could also mention everything that the cold
at a distance, but hollow, mixed, interpenetrated inspires, the peasant shawls whose prints,
by those who build and experience them. Cities embroidered with blue wool, imitate the
therefore seen through temporalities, margins, flowers that ice forms on the windows. The
and embodied subjects. street inventory is inexhaustible. (...) (BEN-
JAMIN, 1994, p.73).
The actions to be presented sought to have as a
goal to invest in knowledge that sometimes ac- Just as Deleuze and Guattari approached the
quires stability, adopting conventional formats processes of territorialization that are doubling
such as a book, a thesis, but which is also pro- and redoubling, putting oneself ahead of the wri-
duced briefly, as a methodological stage of rese- ting of the history of cities and in the practice of
arch, from experiences and experiments carried urbanism can respond to an invitation to tie knots
out in contact with city spaces. or tear up temporalities. Rags of times that do not
cancel each other, that co-inhabit spaces, that
They seek to use tools that summon the body, overlap, approach or collide with each other. And
such as drifting, exercises with perceptual chan- that, despite the hard clashes, they can result in
nels, with sensitivities. Who can be guided, in wa- love and affection as strategies of struggle.
lking, by sounds or images. And even getting lost
in them. A history of cities that goes through the If we place ourselves as beings that resolve them-
experience of urban places. Where it is urgent selves in spatialization, then the places we are in
to think about the popular daily life, the social matter. And so, an immersion in the region where
groups placed on the margins and where experi- we live, in the very landscape of Northeast Brazil,
mentation appears as an essential methodologi- activates the atavistic possibility of telluric and
cal step. ginga. The northeastern lands are not triggered
here in any way by ideas neighboring a geogra-
To this is added the will of the experiencer him- phical or folkloric determinism but pulsating and
self. Because the process is anchored seeking recognizing the attributes of the territory. Spaces
the internal motivation of each one. If everything of sky, seas, hinterland expanses even come clo-
starts by leaving the classroom, the experience of se to those who live in cities. This home landsca-
walking can be given by the free option of entering pe - hot, humid, viscous, solar - opens up as an
a monument or following the path by a river. Thus, experience offered to be enjoyed and conducive
the author’s own scientific production exercises to perception.
are incorporated into the process of writing the
historiographical narrative, through his experien- On the other hand, a so-called “peripheral” situ-
ces and the aesthetic experiments he can produce. ation, incorporates the Northeast into the path
of poverty, and, consequently, of the still strong
The drift, motivated not only by psychogeogra- presence of the excluded, of whom Milton San-
phic techniques but also by anachronistic praise tos once called “slow men”. We crossed, from the
for the practices of wandering and the need to landscape of the obvious green and blue tourist,
wake up the senses, is animated in times of cell to the pulsating explosion of the earth. Strenuous
phones in the hands, in the search to resensitize work, willpower, commitment to extract living
the bodies. Therefore, the history of the city is no conditions from a world that is not grateful.
longer pursued as the narrative of consolidated
facts, but those brought about by immersion in Finally, the proposal incorporates another front
spaces. To associate with art and to observe even that combines the products generated by the me-
EIXO TEMÁTICO 1 thod with this game of captures that we will call
History. Incorporates also the fact of creating
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO situations, of looking for spatialities by inciting
their translations into graphic or volumetric ob-
jects - the so-called logbooks - that concentrate
the narratives of the drifts and make History and
Design come together. But such translations can
also incorporate gesture cartography. The bodies
themselves can perform movements and them-
selves get tattooed in urban stories. For inside
and outside mix. And the body appears as a bas-
tion.

EXPERIENCES BODY TEMPORALITIES

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

64
RESUMEN leer la historia de una manera inédita, de
“citarla” según una necesidad que no no
proviene de ninguna manera de su agen-
Si las ciudades albergan espacios, albergan tiem- cia, sino de una demanda a la que no puede
pos. Que se acumulan no sólo en los monumentos responder. Es como si esa luz invisible, que
pelados, en las ruinas, en los cuerpos de ancia- es la oscuridad del presente, proyectara su
nos, en los árboles centenarios, sino aún, en los sombra sobre el pasado, y este, tocado por
silencios de la palabra, en el rincón oscuro, en el ese rayo de sombra, adquiriera la capaci-
despreciado trazado geográfico. dad de responder a la oscuridad del ahora ”.
(AGAMBEN, 2009: 72).
Y entre supervivencias y ausencias, el saber his-
toriográfico selecciona. Destaca un hecho y otro, En este sentido, si nos movemos en busca de
legitima o silencia discursos, personajes, espa- tiempos que toquen el presente, mirando de
cios movidos por motivos que involucran disputas adentro hacia afuera y convocando a otros acto-
ideológicas sobre quién y qué debe contemplar la res y otros temas, debe surgir otra escritura his-
Historia. La academia, además de reproducirlos toriográfica.
en la docencia, también se coloca en la posici-
ón de productor de estas narrativas, a través de En la búsqueda de traer la presencia de la his-
la actuación en el campo de la investigación y la toria y la historia a la ciudad, no hay forma de no
extensión. Además, las universidades, como es- convocar a la gente. Porque la ciudad existe bási-
pacios de poder, actúan consagrando o desapro- camente como un objeto material frente al cual,
bando discursos. Por lo tanto, conocer estas ru- todos los días, nos encontramos para cumplir la
tas de producción y también sus métodos, es un secuencia ordinaria de nuestras vidas. Buscando
desafío actual. poner la pantalla en el presente y el tiempo en el
espacio, las propuestas aquí discutidas son parte
No muy diferente del campo de la historia de la del esfuerzo por construir esta Historia presenti-
ciudad y el urbanismo, donde se construyeron y ficada y encarnada.
se construyen grandes áreas de sombra y luz.
Lo que se diferencia es que, cuando la historia, Lo que cuenta para la escritura de estas memo-
la memoria y la ciudad convergen, las marcas rias de la ciudad, en este caso, no será exacta-
construidas están disponibles. Tenemos el privi- mente la distancia, el tiempo viejo y gris, sino el
legio de informar al pasado con la posibilidad, en presente y la operatividad con la que desencade-
ocasiones, de tocarlo. Esto hace que pensar en el namos temporalidades para el enriquecimiento o
presente como un campo privilegiado de la histo- la complejidad de la vida actual. Por tanto, la po-
ria se convierta en una cuestión aún más clara, sibilidad del corte de tiempo no solo está regida
ya que si los monumentos fueron construidos en por el vector de tiempos sucesivos, sino de tiem-
el pasado, dialogan con los seres del presente, y pos que se entrelazan. Que sus fragmentos, com-
pueden alcanzar futuros. prendidos en mosaico, se puedan activar cerca.
Incluso se aceptará que la construcción disconti-
Además, las inmersiones de tiempo pueden tener nua, discontinua es una posibilidad para quienes
diferentes espesores. Si lo que llamamos pasado piensan en la historia. Indagar sobre anacronis-
se acerca ayer, hace horas, la vida palpitante se mos, permanencias, los tiempos de los fantas-
convierte en objeto de reflexión y la contemplaci- mas también es atractivo.
ón casi hoy, el fin de lo contemporáneo, ya signifi-
ca producir Historia Urbana. Y si pensamos en una historia inclusiva, que se
basa en áreas de sombreado, ¿no sería apropia-
“Esto significa que el contemporáneo no es do convocar a los llamados “vagabundos de la
solo aquel que, percibiendo la oscuridad ciudad” (JACQUES, 2012)? ¿Los andrajosos, los
del presente, captura la luz resuelta en él; improbables, los marginados? ¿Y por qué no los
es también quien, dividiendo e interpolan- juguetones, que en los malabarismos, a veces en
do el tiempo, es capaz de transformarlo y situaciones de vulnerabilidad, hacen la vida di-
ponerlo en relación con otros tiempos, de vertida? ¿O aquellos que subrayan en su existen-
EIXO TEMÁTICO 1 cia, la importancia de la imaginación, el arte, la
intuición?
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Traemos al evento las aportaciones vinculadas
a la Facultad de Arquitectura y Urbanismo de la
Universidad Federal de Alagoas, que comprenden
actividades que se desarrollan en el ámbito de la
docencia, la investigación y la extensión. En par-
ticular, abordaremos aspectos de la trayectoria
del Grupo de Investigación Estudos da Paisagem,
aportando sus logros en el campo de la historia
de las ciudades realizados durante sus dos déca-
das de existencia. Dirigidas al estudio de las ciu-
dades y sus paisajes, aparecen aquí no solo como
una superficie de observación a distancia, sino
huecas, mezcladas, interpenetradas por quienes
las construyen y experimentan. Las ciudades, por
tanto, vistas a través de temporalidades, márge-
nes y sujetos encarnados.

Las acciones a presentar buscaron apuntar a


invertir en un conocimiento que en ocasiones
adquiere estabilidad, adoptando formatos con-
vencionales como un libro, una tesis, pero que
también se produce de manera breve, como eta-
pa de investigación metodológica, a partir de ex-
periencias y experimentos realizados en contacto
con los espacios de la ciudad.

Buscan utilizar herramientas que convoquen al


cuerpo, como la deriva, ejercicios con canales
perceptivos, con sensibilidades. Quién puede
ser guiado, al caminar, por sonidos o imágenes.
E incluso perderse en ellos. Una historia de ciu-
dades que pasa por la experiencia de los lugares
urbanos. Donde urge pensar en la cotidianeidad
popular, los grupos sociales marginados y donde
la experimentación aparece como paso metodo-
lógico imprescindible.

A esto se suma la voluntad del propio experimen-


tador. Porque el proceso está anclado buscando
la motivación interna de cada uno. Si todo empie-
za saliendo del aula, la experiencia de caminar se
puede dar con la opción gratuita de entrar en un
monumento o seguir el río. Así, los propios ejer-
cicios de producción científica del autor se in-
corporan al proceso de redacción de la narrativa
historiográfica, a través de sus vivencias y los ex-
16º SHCU perimentos estéticos que puede realizar.
30 anos . Atualização Crítica

66 La deriva, motivada no solo por técnicas psicoge-


ográficas sino también por el elogio anacrónico y, en consecuencia, de la aún fuerte presencia de
de las prácticas de deambular y la necesidad de los excluidos, a quienes Milton Santos alguna vez
despertar los sentidos, se anima en tiempos de llamó “hombres lentos”. Cruzamos, desde el pai-
teléfonos móviles en las manos, en la búsqueda saje del evidente turista verde y azul, hasta la pul-
de resensibilizar los cuerpos. Por tanto, la historia sante explosión de la tierra. Trabajo arduo, fuerza
de la ciudad ya no se persigue como la narrativa de voluntad, compromiso por extraer condiciones
de hechos consolidados, sino los provocados por de vida de un mundo que no es agradecido.
la inmersión en los espacios. Asociarse con el
arte y observar hasta lo cotidiano. Finalmente, la propuesta incorpora otro frente
que combina los productos generados por el mé-
Me gustaría escribir sobre las “flores” en todo con este juego de capturas que llamaremos
Moscú, y no solo sobre las heroicas flores de Historia. El hecho de crear situaciones, de bus-
la verdad, sino también sobre las enormes car espacialidades incitando a su traducción en
malvas en las lámparas que los vendedores objetos gráficos o volumétricos -los llamados
ambulantes orgullosamente marcan por la bitácoras- que concentran las narrativas de las
ciudad. (...) También podría mencionar todo derivas y hacen hablar a Historia y Diseño. Pero
lo que inspira el frío, los mantones cam- estas traducciones también pueden incorporar
pesinos cuyos estampados, bordados con cartografía de gestos. Los propios cuerpos pue-
lana azul, imitan las flores que forma el hie- den realizar movimientos y ellos mismos tatuarse
lo en las ventanas. El inventario de la calle en historias urbanas. Para mezcla interior y exte-
es inagotable. (...) (BENJAMIN, 1994, p. 73). rior. Y el cuerpo aparece como bastión.

Así como Deleuze y Guattari abordaron los proce-


sos de territorialización que se están duplicando EXPERIENCIAS CUERPO TEMPORALIDADES
y redoblando, adelantarse a la escritura de la his-
toria de las ciudades y en la práctica del urbanis-
mo puede responder a una invitación a atar nudos
o deshilachar temporalidades. Trapos de tiempos
que no se anulan, que conviven en espacios, que
se superponen, se acercan o chocan entre sí. Y
que, a pesar de los duros enfrentamientos, pue-
den resultar en el amor y el cariño como estrate-
gias de lucha.

Si nos ubicamos como seres que se resuelven en


la espacialización, entonces los lugares en los
que estamos en la materia. Y así, una inmersión
en la región donde vivimos, en el propio paisaje
del Nordeste de Brasil, activa la posibilidad atá-
vica de telúrico y ginga. Los cultivos del nordeste
no son de ningún modo accionados aquí por ideas
vecinas a un determinismo geográfico o folclóri-
co, sino que palpitan y reconocen los atributos del
territorio. Espacios de cielo, mares, extensiones
del interior, incluso se acercan a los que viven en
las ciudades. Este paisaje hogareño, cálido, hú-
medo, viscoso, solar, se abre como una experien-
cia ofrecida para ser disfrutada y propicia para la
percepción.

Por otro lado, una situación denominada “periféri-


ca”, incorpora al Nordeste a la senda de la pobreza
EIXO TEMÁTICO 1 “PASSAS EM EXPOSIÇÃO”: A HISTÓRIA DA CIDADE
EM LIVRO, GESTOS E IMAGENS
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO

“Passas sem ver teu vigia


mesa temática Catando a poesia
Que entornas no chão”

ÁVIDOS POR ESCUTAR O (As vitrines, Chico Buarque).

CORPO, O TEMPO, A MATÉRIA


DA CIDADE: VIVÊNCIAS COMO O caminhar, as imagens, a criação, foram compa-
nheiros inseparáveis de um determinado método
PRÁTICA METODOLÓGICA DA de construir, refletir e imaginar a história das ci-
dades e de praticar as suas vivências. Buscando
HISTÓRIA URBANA acompanhar tempos em movimento, se trará a
narrativa sobre alguns experimentos que demons-
tram uma forma de ver a história urbana a partir
GREAT FOR LISTENING TO THE BODY, TIME, de temporalidades que se superpõem realizados
THE MATTER OF THE CITY: EXPERIENCES AS A pelo Grupo de Pesquisa Estudos da Paisagem.
METHODOLOGICAL PRACTICE OF URBAN HISTORY
São eles um livro, um vídeo e uma exposição. Em
GRANDE PARA ESCUCHAR EL CUERPO, EL TIEMPO, LA comum, o fato de se remeterem a um mesmo solo
MATERIA DE LA CIUDAD: LAS EXPERIENCIAS COMO metodológico, que tenta discutir a história urba-
PRÁCTICA METODOLÓGICA DE LA HISTORIA URBANA na como um ato que presentifica os tempos em
dobras. Estilhaços se entrelaçando, contorcendo,
se embaraçando, podem colocar em conexão ou
simplesmente deixar evidentes os movimentos
de se esquivarem.

O primeiro deles a ser abordado, a produção de


um livro, foi um esforço de cerca duas dezenas de
anos, visto que foi um trabalho de pesquisa aliado
a uma atividade de formação. Além de se mover
através dos recursos dos projetos que propor-
cionavam a possiblidade da equipe se colocar em
viagem, acompanhou também os anos necessários
para a formação de cada pesquisador.

“A invenção da cidade” diz sobre a novidade que se


configurou a experiência de instalar os ´povoados,
vilas e cidades, ao tempo da conquista colonial,
em seus vários matizes, do assombro à violência.
Esta abordagem foi calcada nas experiências das
viagens contemporâneas e na leitura acerca das
jornadas de outros viajantes à época da instalação
destes núcleos urbanos.

Mas o primeiro gesto foi conhecer a si mesmo. O


primeiro autor foi o próprio estudante/pesquisador
16º SHCU indagando-se enquanto habitante de cidades. As
30 anos . Atualização Crítica
descobertas partilhadas viraram texto, as ima-
68 gens iluminaram os caminhos. Mapas, desenhos,
pinturas - a linguagem sem letras cara aos arqui- sobre uma mesa à abertura sempre renovada de
tetos e aos tempos de hoje - permitiram mostrar possibilidades, novos encontros, novas multipli-
que os tempos nem sempre só se sucedem mas cidades, novas configurações. A beleza-cristal do
permanecem ou se revestem de diversos forma- quadro - sua centrípeta beleza achada fielmente
tos. Uma outra fonte importante foram aa mídias, fixada, como um troféu, sobre o plano vertical
permitindo o retorno aos locais através das vis- da parede - dá lugar, sobre uma mesa, à beleza
tas aéreas propiciadas pelo Google e similares. rompida das configurações que nela ocorrem,
centrífugas belezas-achados indefinidamente
O segundo produto, um vídeo denominado “Entre- moventes sobre o plano horizontal de seu platô.
céus”, se aproveita das ligações que céus e mares (DIDI-HUBERMAN, 2018, p.24).
proporcionam. Fruto de um projeto que teve o
patrocínio da Embaixada da Holanda, buscou mos- Mais que o quadro, a mesa, mais que o sentar, o
trar a arte holandesa seiscentista que observou caminhar. As atividades rumo à construção da
de forma alada, lugares urbanos e a natureza dos exposição passou pela vivência dos diversos lu-
trópicos. Foi misturada aos registros de viagem gares urbanos. Para produzir pesquisa sobre os
realizados pela equipe de pesquisadores, aliado primórdios da urbanização no Brasil necessitou-se
aos relatos dos viajantes. Recebeu o Troféu Ci- atentar como em frente à velha igreja as crianças
nememória de Melhor documentário do 4º Curta se sentiam à vontade para brincar com a bola.
Brasília (2015). https://vimeo.com/104818237 Bem como frequentar o cotidiano das periferias
das cidades de hoje para saber sobre um beco,
Fazer a história das cidades pôde significar apre- por exemplo.
sentá-las em exposição. A terceira experiência
foi a recente montagem de uma mostra que lan- Numa superfície de três metros de diâmetro, sobre
uma camada de 50 quilos de açúcar, projetou-se
çou o livro e reapresentou o vídeo. Levou o nome
caravelas, rosa dos ventos, plantas de cidades,
“Taba-êtê: desvelando brasis”, onde os termos
monumentos, arruados, mas também cenas do fa-
da língua indígena, traduzem a forma da cidade
brico do açúcar e da farinha, alimentos essenciais
ser falada entre os verdadeiros donos da terra. A
para a história da construção territorial do Brasil.
exposição ocorreu durante a Bienal do Livro de
Assim o edificar dos lugares urbanos mostrava que
Alagoas. Trata-se, segundo a chamada, da única
encontrava abrigo e sentido nas práticas culturais,
produzida por uma universidade pública.
conformando valores e significados adensados
Nesta edição de 2019, pela primeira vez, ela dei- através dos séculos.
xou o espaço confinado de um grande centro de
Segundo os dados disponibilizados pela Universi-
convenções para se fazer na rua. Foi montada no
dade Federal de Alagoas, cerca de 300 mil pessoas
bairro de Jaraguá, local apontado como o berço
visitaram a Bienal. Um material em geral desco-
de nascimento de Maceió. Tirando partido do ce- nhecido do público, migrou da pesquisa para a
nário de velhos galpões de açúcar, a exposição se exposição. Com o provimento de imagens em alta
beneficiou deste entorno, cruzando o patrimônio resolução tornou-se possível brincar com seus
material com várias manifestações do imaterial. detalhes e montar jogos de quebra cabeça.
Na UFAL, a rotina do Grupo de Pesquisa se faz em Em torno da roda dispôs-se sínteses visuais sobre
torno de uma grande mesa, onde se colocam os as cidades, oferecendo um conjunto de pistas para
objetos, os livros, os materiais para realizar algum o visitante criar suas próprias conexões, conti-
processo de materialização de ideias. Numa repro- nuando a tarefa infindável de buscar desvendar
dução desta mesa, construiu-se o artefato princi- mistérios, perseguidos desde o livro, passando
pal da exposição: uma roda, dotada de movimento. pelas imagens dotadas de movimento do vídeo e
da exposição, e aberta a cada um de nós, cidadãos,
“A mesa é o suporte de um trabalho sempre a re-
que se interessam pelos tempos das cidades.
tomar, a modificar, se não for para iniciar. Ela é
somente uma superfície de encontros e de dis-
posições passageiras: deposita-se nela e nela se
despeja, alternadamente, tudo o que seu “plano de
trabalho”, como se diz tão apropriadamente, acolhe
sem hierarquia. A unicidade do quadro dá lugar,
EIXO TEMÁTICO 1 SILENCIAMENTOS E RESISTÊNCIAS NAS POÉTICAS
VISUAIS DA ESTÉTICA AFRO-DIASPÓRICA 1
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
NO BRASIL: POR UMA “QUILOMBAGEM
ESTÉTICO-AFETIVA”

“Por que escrevo? / Porque eu tenho de/ Porque


minha voz, / em todos os seus dialetos, / tem sido
calada por muito tempo.” (Jacob Sam-La Rose).

Esse breve poema reflete a encruzilhada de his-


tórias que me tocam nesse trabalho: a minha en-
quanto mulher e pesquisadora-artista negra, as
dos povos negros diaspóricos, e a deste estudo
que é da ordem do falar – das falas e dos modos de
falar de negros-sujeitos que ocupam a cidade com
artes-falantes e as artes com suas cidades-falan-
tes. Pois, como diz Kilomba (2019), ao comentar o
texto de Rose, “este não é um poema sobre a perda
contínua causada pelo colonialismo. É também um
poema sobre resistência, sobre fome coletiva de
ganhar voz, escrever e recuperar nossa história
escondida.” (ibid, 27).

Tal prelúdio sinaliza alguns pontos de encontro da


nossa proposta com certas inquietações do 16º
SHCU (Seminário de História da Cidade e do Urba-
nismo) que se dobra sobre a conjuntura contempo-
rânea e se pergunta: quais os temas, problemas,
teorias, metodologias, sujeitos e redes que permi-
tiriam a atualização crítica da História da Cidade
e do Urbanismo como campo de conhecimento?
Longe de definir direções, mas, “rodando a saia
e levantando a poeira”, o estudo aqui apresenta-
do se interessa pelos modos de comunicação e
experimentação de poéticas visuais, na estética
afro-diaspórica contemporânea no Brasil, que se
inserem como resistências político-afetivas no
jogo de poder das visibilidades e silenciamentos
históricos da cultura/arte afro-brasileira. E para
tal, partimos da visão de Almicar Cabral (1980, p.58)
quando afirma que é na arte/cultura “que reside a
capacidade (ou responsabilidade) da elaboração
do germe que garante a continuidade da história”.
Sendo assim, consideramos a estética/episte-

1. Conceito trabalhado a partir do livro “Da diáspora” de Stuart


Hall e da compreensão de Fernanda Santos, no seu texto “Cor-
po em diáspora”: A estética diaspórica é formulada a partir
16º SHCU
da ideia central de que ‘o eu é confinado dentro do território
30 anos . Atualização Crítica
do outro’. (PEFTER, 2003) A diáspora surge como inspiração
70 para artistas que partilham suas subjetividades diaspóricas.
mologia afro-diaspórica como um solo fértil para artes visuais. Nesse contexto, outro elemento
atualizar histórias escondidas no presente e seus experimental é a produção de narrativas visuais
regimes de historicidade. Como este é um campo (vídeos, montagens e colagens de imagens), como
vasto, a linha-mestra que a pesquisa segue resulta forma de criar modos outros de contar histórias,
empiricamente das poéticas visuais dos artistas essa dimensão metodológica do estudo chamo de
negros contemporâneos no Brasil (Rosana Paulino, “pesquisador como artista”.
Sidney Amaral, Eustáquio Neves, etc), conceitual-
mente do pensamento pós-colonial e decolonial Essas incursões são balizadas pela ‘prática experi-
(Amílcar Cabral, Frantz Fanon, Stuart Hall, Sueli mental da montagem urbana’, que intenta produzir
Carneiro, Grada Kilomba, etc) e de alguns pensa- variações narrativas sobre o campo apreendido.
dores pós-estruturalistas (Michel Foucault, Gilles Proposta metodológica, esta, apresentada por Pa-
Deleuze, Felix Guattari, etc), e metodologicamente ola Jacques (2015) a partir dos seus estudos sobre
de práticas experimentais como a deriva virtual, a montagem em autores como Walter Benjamin,
a montagem e narrativas artístico-visuais (Paola Georges Bataille, Aby Warburg e Didi-Huberman.
Jacques). Essa prática busca relacionar uma multiplicidade
de narrativas heterogêneas, díspares, da experi-
Como o eixo temático “Historiografia e Pensa- ência urbana, sejam elas cartográficas, etnográfi-
mento Urbanístico” se interessa em vislumbrar os cas, artísticas, literárias, históricas, mnemônicas,
problemas, teorias, metodologias, atores, redes corporais, dentre outras. Para isso, a montagem
intelectuais e regimes de historicidade, ponde- urbana propõe uma forma de articulá-las, a par-
ramos que a questão de “método” é elo entre este tir de seus fragmentos, para uma compreensão
estudo, o Eixo temático e a proposta coletiva do mais complexa da cidade. Funciona ao modo de
Grupo de Pesquisa Estudos da Paisagem (FAU/ um colecionador, que busca minucias, retalhos e
UFAL). Visto que o grupo tem como elemento trans- raridades para compor um quadro compreensivo
versal em seus trabalhos a inquietante busca por sobre seu material de interesse. A autora defende
atualizar a historiografia das cidades através da que a montagem urbana pode ser incorporada nos
inventividade e experimentação metodológica estudos históricos da cidade e do Urbanismo, como
por meio dos caminhos da montagem urbana e formas narrativas menores ou micronarrativas,
da colagem com outros saberes, se utilizando de que teriam o peso de produzir contrapontos às
recursos diversos para explorar o campo de es- grandes narrativas modernas, ainda hegemônicas,
tudo, tais como derivas pelos espaços da cidade ao enfatizarem experiências coletivas, do corpo,
e da virtualidade, a produção de diários de campo da memória e da alteridade na cidade.
criativos e de exercícios visuais, artesanais, plás-
ticos e literários com os temas das pesquisas em Nesse contexto, esta pesquisa visa produzir ges-
andamento. Corroborando com esse contexto, a tos e poéticas de quilombagem a partir do cru-
pesquisa aqui em questão nasceu com a inten- zamento de criações artísticas da pesquisadora
ção de produzir narrativas poéticas do fenômeno e de sujeitos/grupos da arte afro-diaspórica no
urbano que pudessem contar estética, política e Brasil, almejando criar ruídos, fissuras, linhas de
afetivamente histórias das negras existências e fuga, rupturas e desestabilização do establish-
heterotopias (Foucault, 2013) de uma cidade que ment brasileiro que atualiza a violência estrutural
não se quer ver, mas que tem muito para falar. contra negros periféricos. Intenta, assim, contar
histórias outras da poética da negritude e possi-
Para identificar, na estética afro-diaspórica bra- bilitar ações futuras, que subsidiem não só ações
sileira contemporânea, os modos de comunica- e programas governamentais, mas também intra-
ção e experimentação de poéticas visuais que se comunitárias, com a potência de garantir o direito
apresentam como resistências político-afetivas da população afro-brasileira de existir e preservar
construímos, inicialmente, o conceito chave – qui- sua existência.
lombagem estético-afetiva – para guiar metafo-
ricamente o olhar no processo cartográfico das
produções artísticas de afro-brasileiros. Essa car-
tografia está se materializando através de derivas
virtuais na tentativa de encontrar artistas negros
contemporâneos que se comuniquem através das
EIXO TEMÁTICO 1 O QUE REVERBERAM AS CAVIDADES DA CIDADE?
A PERCEPÇÃO SONORA COMO FERRAMENTA PARA
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
COMPREENSÃO DOS ESPAÇOS DE POBREZA EM
MACEIÓ-AL

“O silêncio não é diretamente observável e no


entanto ele não é o vazio, mesmo do ponto de
vista da percepção: nós o sentimos, ele está “lá”
(no sorriso da Gioconda, no amarelo de Van Gogh,
nas grandes extensões, nas pausas).” (ORLANDI,
2007; p. 45). Construo este trabalho ao perse-
guir o dissimular do corpo pobre, os silenciados
e invisibilizados da cidade. Costuro elementos
e signos, como se costuram os vales e grotas2
na malha urbana de Maceió, Alagoas, de onde os
percebo. Apesar de ser majoritariamente pobre, -
com cerca de 76,6% da população em situação de
pobreza segundo a ONU Habitat (2019) – a cidade
discerne o lugar da miséria, escoando grande
parte desse percentual para dentro das grotas
que perfuram o tabuleiro, uma apropriação que
exprime outra forma às favelas.

Intrincados. Esparramados. Obliterados das pai-


sagens, a investigação desses territórios popula-
res se faz na experimentação, no caminhar e parar
em locais dissonantes do meio urbano, no estar
nas grotas, no ouvir, no perscrutar dos sentidos
e no regurgitar do método e estudo, sendo este o
fulcro da proposta ao eixo temático historiografia
e pensamento urbanístico do 16º SHCU. “Quando se
trata do silêncio, nós não temos marcas formais,
mas pistas e traços. É por fissuras, rupturas, fa-
lhas, que ele se mostra, fugazmente.” (ORLANDI,
2007; p. 46). A precariedade que compõe seus
territórios de base, ocultos na construção de sen-
tido, estimulou a investigação de urbanidades
que evocam de áreas de pobreza em Maceió, por
meio de métodos de estudo capazes de deslocar
a construção hegemônica da cidade. Me atento a
mecânica do corpo pobre que reverbera no urbano
como uma grande cacofonia, inquietações que
derivam do fluxo e do intercâmbio, sendo a própria
experiência do corpo no campo que evidenciou
as sonoridades como ferramenta para ampliar a
compreensão de suas múltiplas temporalidades,

16º SHCU
2. Grandes depressões distribuídas por todo o tabuleiro,
30 anos . Atualização Crítica
ou seja, a região alta e plana da cidade, causadas pelos
72 numerosos capilares de água que deságuam no mar.
formas de existir e se expressar: seja a conversa, ras e não apenas sonoras).” (SANTOS, 2002, p.11).
o barulho da motocicleta, o cacarejar da galinha ou
o tiro na madrugada. Dentre elas, por sedimentar Este acesso sonoro – que pode ser visto por exem-
o escasso, o lugar trouxe de maneira quase imbri- plo, na figura do vendedor ambulante - carrega
cada a necessidade e a busca pela sobrevivência, signos trazidos pelas ferramentas de trabalho, do
acompanhadas por táticas que levam na maioria animal de tração para o suporte de atividades, até
das vezes a grota a irradiar as demais paisagens o entoar das vozes que distorcem sua condição
da cidade. Neste sentido, se a história permanece de Ser invisibilizado. Ainda que de forma efêmera,
corporificada e incorporada nas dinâmicas espa- o grito vira não apenas um mecanismo laboral,
ciais, então acessar cavidades deste território até mas uma tática para driblar as barreiras impostas
então pouco explorado e amortecido na narrativa para estes corpos nos espaços urbanos. O corpo
oficial urbana, nos possibilita expandir o compre- sensório conduz a sonoridade existente nestes
ender das formas de articulação e as táticas de espaço não apenas como mais um canal percep-
enfretamento do corpo-território que é negado tivo mas como uma forma de se construir mate-
em outras instâncias da cidade. rialmente os lugares e de desvendar estratégias
que demonstram a sutileza de suas manobras.
Para desenvolver este estudo, me atento ao modo Para quem observa estes fatos, abre-se a possi-
como a pobreza se expande pela cidade através blidade de uma forma de compreensão irradiante,
do som e o que este denuncia, desdobrando os gerando sinapses de percepções e pensamentos
territórios pela própria percepção, permitindo que passam a se conectar a outras informações
compreender seus modos de acesso em espa- geradas nas grotas, obtidas pelo observar, pelo
ços não de exceção mas de intercessão urbana. acesso aos noticiários, pelos documentos disponí-
Ancorada na experiência da proximidade, através veis, sobrepondo narrativas e revelando nuances
de contínuas visitas de campo e de registros por da cidade e de sua estruturação que a imersão
meio do recurso do audiovisual, do desenho e neste mundo propicia alcançar.
do diálogo, foi possível o reestruturar do pensa-
Dessa forma, o conhecimento construído através
mento por bricolagens como vídeos montagens
das sonoridades urbanas me leva a uma contínua
e cartografias, e nessa contaminação, a escuta
reflexão de natureza crítica e metodológica, e se
se revelou uma ferramenta bastante operativa,
torna uma forma de transgredir as fronteiras im-
transformando o som no dispositivo prioritário
postas, propondo uma maneira aberta de pensar
desta pesquisa. A busca, desencadeou no ras-
e representar as cidades. O aproximar de uma
treamento das práticas, caminhos, mediações
compreensão mais porosa frente aos amálgamas
e ligações que esbarram no cotidiano dos po-
que elas constroem no seu cotidiano, os sulcos de
bres urbanos para além dos limites geográficos
suas transições, a paisagem menos enrijecida e
das grotas. Apesar de postos como simbologias
portanto, mais plural, tornando o debate urbano
praticamente inertes, estas pessoas não apenas
mais dinâmico e salientando suas referências
atravessam os territórios negados a elas, como
políticas.
criam redes e suportam o cotidiano da cidade.
Ebulições que explodem o significado de interno,
de periférico, de violento e descartável. Os sons
permitem perfurar a representação da cidade lida
de forma dura e fixa, e compreender as amalga-
mas dos cotidianos que são penetrados por uma
espontaneidade carregada de signos, fragmentos
e restos, que levam a evidenciar táticas plurais
evocadas por territórios silenciados. Além disto,
sua potência permeia o imaginário e a memória, de
modo que não apenas se torna uma representa-
ção, mas uma co-criação da cidade. “É através da
percepção e das formas criativas de audição que
temos condições de reinterpretar continuamente
o mundo - o “outro” - e suas manifestações (sono-
EIXO TEMÁTICO 1 No olhar do embaralhado: feiras livres em
cidades de Alagoas através de gestos
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
e imagens

Entre 2015-2016, um rastreamento cultural foi


realizado nos 102 municípios de Alagoas. Tal em-
preitada seguiu a metodologia instituída pelo Iphan
- Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Na-
cional - para coletar manifestações imateriais, o
INRC, Inventário Nacional de Referências Culturais.
Intitulado Salvaguarda do Patrimônio Imaterial de
Alagoas, gerou milhares de fichas de bens cultu-
rais, as quais foram majoritariamente embasadas
em entrevistas com os detentores dos saberes,
ao que se somou a um grande banco audiovisual.

Nesse levantamento, as feiras livres surgiram


como portas abertas para acesso aos diferentes
bens culturais que abrigavam, de forma a serem
compreendidas como “lugares focais da vida social”
(IPHAN, 2000, p.32).

Percebeu-se então que elas, muito estudadas


em outras áreas do saber, pareciam ainda pouco
exploradas no campo da arquitetura e do urba-
nismo. O que poderiam revelar sobre cidades e
suas opacidades espaciais? Como o hoje da feira
destrincha a história urbana no descamar de seus
tempos superpostos? Mas, ainda antes disso...
Como criar uma nova forma de vivenciar e, con-
sequentemente, interpretar esses espaços, para
além da categoria já estabilizada de “lugar”? Seria
possível elaborar um novo tipo de acesso meto-
dológico às feiras livres?

O olhar sobre o rico acervo de fotografias se fez


prolongado. Tal riqueza da coleção audiovisual foi
a primeira resposta para o início deste percurso:
feira livre a partir de imagens. Feiras como ima-
gens. Trata-se, aqui, de um conjunto composto de
mais de 2.800 fotografias de um passado recente,
de 39 feiras em 37 cidades do estado. Assim, a
imagem foi eleita como fonte proporcionadora e
evocadora de experiências relacionadas a essas
espacialidades, e na sua potência de oferecer ao
pesquisador a possibilidade de elaborar novas
questões. Ela, frequentemente utilizada como
ilustração, parecia iluminar caminhos outros como
16º SHCU
fonte de reflexões próprias.
30 anos . Atualização Crítica

74 A segunda resposta veio pôr ao avesso posturas


metodológicas usuais: ao escolher embaralhar conhecimento acadêmico...
todas as fotografias, agora já contempladas na sua
forma material, ao misturá-las todas, foi possível Por fim, houve um terceiro movimento que impli-
um acesso que fizesse surgir a feira menos a partir cou a cidade delineada pela feira em outras espa-
de suas histórias e geografias individuais e mais cialidades que conformam seus bastidores. Ela
a partir da sua fisionomia congelada: feira como traz para o meio urbano, no seu surgimento quase
gestos em imagens. Isso desestabilizou a noção de abrupto, um pedaço do canavial, do coqueiral,
lugar. Desta feita, obteve-se uma feira-amálgama, da casa de farinha, paisagens outras, enfim, que
um mosaico de fragmentos visuais. Buscou-se estão embutidas em alguns produtos e que estão
criar avizinhamentos e conjuntos a partir do cruza- ausentes da feira enquanto evento e espaço de
mento de espacialidades distintas. Tal movimento comercialização, mas que trazem dentro de si
de mistura foi inspirado, dentre outras coisas, pelo os ritmos, as dores, calos e riscos do trabalho no
Atlas warburguiano (DIDI-HUBERMAN, 2018), onde feitio dos produtos.
as temporalidades se cruzam e há um impulso
Buscou-se enriquecer as narrativas com situações
heurístico, uma motivação criativa que mobiliza
etnográficas vivenciadas tanto nas feiras livres,
as relações entre as imagens.
como nessas outras espacialidades que a confor-
mam e que congregam também a vida urbana. Ne-
A imagem, então, foi entendida de forma rela-
las, cartografou-se o visível e o invisível, a presença
cional, ou seja, a partir das vizinhanças que as
e a ausência, o real e o imaginado, o desejado e o
aproximavam, pela semelhança, pelo contras-
indesejado, a lembrança e o esquecimento. Em al-
te... Foi geradora de narrativas visuais em que
guns momentos, a fala de entrevistados no projeto
se entrelaçaram os movimentos de imaginação
foi requisitada; noutros, o anonimato instalou o
e de memória. Tomou-se como mote, então, à
insondável. Rostos sem nomes povoaram o acervo,
deriva visual, o perder-se e deixar-se levar pelos
mas seus gestos “enunciavam” modos de agir no
meandros das fotografias. Mas não sem antes se
espaço: carregar, debulhar, olhar, dormir, fazer
perguntar: seria realmente possível derivar sem
gambiarra, reutilizar. Mas também mapearam-se
sair do lugar? A deriva, cujo principal aporte teórico
gestos de produção do conhecimento: de delimi-
se ampara nos escritos situacionistas (JACQUES,
tar, de embaralhar, de perceber, de fotografar. Por
2003), poderia ser deslizada de movimentos pela
fim, fez-se questionar as fronteiras sensoriais, da
cidade para através do olhar? Na prática, nesse tra-
arquitetura, dos códigos usados (entre pesquisador
balho, ela foi operacionalizada como método que
e pesquisado), entre aproximações e invasões (nas
possibilitou encontrar nas feiras os seus espaços
abordagens de pesquisa), entre outros.
opacos, embora de forma menos consciente que
intuitivamente. Então pensar até onde adaptações Mais que misturar espaços, observou-se que as
da deriva podem se configurar como formas criati- cidades reveladas pelas feiras abrigam vários tem-
vas de conhecer a cidade não espetacularizada se pos. Muitas vezes impulsionadas pela carência, há
fez um caminho de pensamento fértil. Esse novo ações que se mantêm revelando cascas antigas.
problema teórico-metodológico permanece ainda Seja no trabalho infantil, numa visão outra que a de
em aberto para futuras reflexões, em especial em conquistas recentes como o Estatuto da Criança e
tempos de pandemia, em que se têm evidenciados do Adolescente, seja nas práticas sanitárias, esses
os caminhos digitais, a ponto de parecerem ter espaços se mostram com resistências do tempo.
ampliado as possibilidades de errâncias. Mas, por debaixo de tudo isso, parece que a razão
surge quase sempre motivada pela escassez: a
Nessa relação de deriva com as imagens emba- ideia de troca e de sobra aqui revela-se, nas feiras
ralhadas, buscou-se criar narrativas suscitadas de Alagoas, numa lógica operante e de certa forma,
pelo embate do olhar. Assim, destacou-se um viés eficaz, do pouco.
subjetivo, o que envolveu pensar o próprio cor-
po sensório que experienciou a feira e que olha
as imagens. Corpo sensível, presentificado no
estudo, que percebe rememorando, recriando.
Essa atenção ao corpo fez inclusive questionar
se a potência pode fazer morada no impreciso no
EIXO TEMÁTICO 1 REFERÊNCIAS
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Santos, F. C. Por uma escuta nômade: a músi-


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16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

76
77
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
EIXO TEMÁTICO 1 RESUMO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Num plano crítico, todo juízo é estratégico,
como disse Walter Benjamin, (BENJAMIN, frag-
mesa temática mento 140, 2014). A estratégia da crítica, dian-
te de cada obra, deve ser explicitar os detalhes
pelos quais a obra julgada se transforma num
CRÍTICA IMANENTE, EMPIRIA manancial de singularidades que podem man-
tê-la viva no presente, justamente porque se
E TEMPORALIDADES – difere deste. Toda obra tem uma historicidade
própria que diz respeito ao momento de sua pro-
SOBRE ALGUNS TEMAS DE dução, isto é, um tempo singular, no passado. O
que uma crítica pergunta é de que modo e por
HISTORIOGRAFIA E TEORIA que razão a obra reverbera no presente da sua

URBANA interpretação. Não se trata de emular o passa-


do, ou de buscar conjugar a expectativa do pre-
sente com o que foi realizado preteritamente.
IMMANENT CRITICISM, EMPIRICISM AND Cada obra criticada o é segundo a conjuntura do
TEMPORALITIES - ON SOME THEMES OF momento histórico que vive o intérprete ou his-
HISTORIOGRAPHY AND URBAN THEORY toriador. Isso significa, em primeiro lugar, que
toda crítica deve evidenciar no detalhe material
a distância histórica que separa a obra, em sua
CRÍTICAS INMANENTE, EMPIRISMO Y
concretude histórica, do momento em que ela
TEMPORALIDADES - SOBRE ALGUNOS TEMAS DE LA
se apresenta à experiência de um espectador
HISTORIOGRAFÍA Y LA TEORÍA URBANA
ou intérprete.

CHIQUITO, Elisangela de Almeida Benjamin denomina como plano da crítica um


Doutora em Arquitetura e Urbanismo USP; NPGAU UFMG
movimento referido a distância e transmissão:
lisalmeida@ufmg.br primeiramente, reconhecer a distância históri-
ca que separa o passado do presente, em vez
OLIVEIRA, Carlos Alberto de buscar primeiro por supostas semelhanças;
a seguir, estabelecer que essa distância tam-
Doutor em História; Unicamp; CIEC
oliveirahcp@gmail.com
bém é apreendida de várias maneiras, segundo
o modo nada inocente de sua transmissão.
URVOY, Phillipe
Mas, afinal, como realizar a crítica? Em princí-
Doutor em História; UFMG pio, na medida em que cada obra é uma síntese
ph.urvoy@gmail.com
determinada, desmontá-la. Depois, desagre-
gar, despedaçar os componentes, disseminar
VELLOSO, Rita as unidades construtivas. E então, uma vez
Doutora em Filosofia UFMG; NPGAU UFMG historiados esses fragmentos, recompô-los,
ritavelloso@gmail.com fazer sua remontagem. Trata-se de constituir
e desdobrar a ordem inerente à obra segundo
uma análise minuciosa do material histórico e
filológico que a determina (GAGNEBIN,1980, ). A
crítica, por meio da análise, abre a possibilidade
de transformação da obra.

16º SHCU O urbano exige sempre uma análise materialis-


30 anos . Atualização Crítica
ta, seja pela duração que o caracteriza (sua pro-
78 dução), seja pela simultaneidade e efemeridade
da experiência que provoca ( sua frequentação). a história urbana com estes dois filósofos mate-
Parece ajustado à natureza da cidade criticá- rialistas é preciso considerar a temporalidade
-la em termos materialistas, seja analisando da vida cotidiana, em termos da alienação que
a constituição dos lugares construídos ou as a submete, saber como superá-la por meio da
ações performadas nesses lugares, uma vez apropriação do tempo e do espaço - em outras
que o materialismo almeja dar conta do momen- palavras, é pensar o cotidiano em termos de co-
to concreto de produção e de recepção da obra nhecimento e recognoscibilidade.
- sua história anterior e sua história posterior,
quando foi produzida, quando é recebida. Foi em 1970 que Henri Lefebvre formulou sua
hipótese tardia sobre a urbanização completa
Nesses termos, por meio da crítica cada obra situando-a na cronologia das tipologias de for-
- objeto ou acontecimento - é compreendida mações urbanas: primeiramente realizamos
como um fenômeno singular que, ao ser retira- uma sociedade comercial, a seguir uma socie-
do do fluxo da coisificação e da abstração, deixa dade industrial, e finalmente concretiza-se uma
ver uma totalidade parcial. A cidade, a bem da sociedade urbana. Para o filósofo francês, um
verdade, é o objeto limítrofe da crítica. Nela, Urbano transformado em substantivo exige ser
analisamos sempre fragmentos materiais che- compreendido enquanto processo; ou, pelo me-
gados do passado, numa montagem cuja cons- nos, segundo a soma de muitos processos - reu-
trução de sentido se dá na atualidade, quando a nião de processos de implosão (concentração,
experimentamos. A cidade é um objeto que não adensamento, condensação de bens, objetos,
se mostra diretamente, mas apenas em seu re- populações), reunião de processos de explosão
flexo refratário. Num objeto ou acontecimento (projeção, dispersão, fragmentação em vazios,
urbanos refletem-se o conhecimento, a percep- periferias, cidades satélites).
ção e os gestos dos habitantes - e por isso Ben-
jamin denomina à cidade medium-de-reflexão O eixo que atravessa transversalmente a mon-
(Reflexionsmedium): os lugares em que se vive a tagem das dinâmicas urbanas é o cotidiano;
cidade são sempre junção, articulação - arranjo só sua análise permite desvelar novas formas
de formas de conhecer, perceber e agir. sociais, novas experiências, novas narrativas,
produção, consumo, distribuição e circulação,
Com vistas a refletir sobre questões teórico- acessibilidades, mobilidades. Analisar o coti-
-metodológicas os trabalhos apresentados diano é retornar à superfície, ao visível dos fe-
nesta mesa fazem uma discussão desde o ma- nômenos - se deter, atentamente, à superfície
terialismo histórico, mas não somente, e toma fenomênica da realidade social, ali onde o pro-
a cidade em consideração a partir dos atores, cesso de reprodução espacial se articula ao pla-
redes intelectuais e de contestação, conflitos e no da reprodução da vida.
institucionalidades.
Se reunirmos a isso os conceitos benjaminianos,
A análise materialista a partir desse medium- então teríamos um plano historiográfico efetivo:
-de-reflexão permite combinar a temporalidade faz-se uma reflexão concreta materialista sobre
da experiência do espaço (a simultaneidade) e o o que está mais próximo, dá-se primeiramente
desdobramento (a longevidade) das tramas de importância a à apresentação daquilo que nos é
produção do espaço e, necessariamente, con- familiar e que nos condiciona (BENJAMIN, 2006,
juga crítica à narrativa histórica. Mas ainda é c0,5). Se pensamos no que define a estrutura
preciso demonstrar a que propósito servem, no sob os processos urbanos, veremos que mesmo
campo da história urbana, esses princípios filo- a regulação urbana, por meio de planos e leis,
sóficos de tais crítica e narrativa. afeta o cotidiano no modo como direitos são
distribuídos e implementados. Uma política ur-
O modo de demonstrá-lo é reivindicar a inclusão bana, por exemplo, incide diretamente sobre os
da crítica da vida cotidiana como parte consti- processos da vida cotidiana quando condiciona
tuinte da historiografia urbana. Crítica, nesse a oferta de serviços e bens coletivos.
caso, não só nos termos de Walter Benjamin,
mas também de Henri Lefebvre. Para escrever Para os casos aqui trazidos ao debate o que
EIXO TEMÁTICO 1 temos são momentos e movimentos de resis-
tência, nos quais as queixas se articulam em
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO contextos que são suporte de experiências co-
tidianas vividas, ampla e repetidamente, nas
cidades. É do mundo da vida cotidiana que se
constroem os laços e as alianças baseadas em
interesses e experiências da cidade, que sedi-
mentam as estratégias dos movimentos.

É decisivo, para a historiografia e para a críti-


ca, considerar que o urbano atual é uma mul-
ti-territorialidade de relações de dominação e
subordinação e resistências. Se o urbano é um
substantivo incontornável na constituição da
práticas e propostas emancipatórias, dele de-
duz-se um arranjo espacial de configurações
inumeráveis - as cidades em seus tantos dese-
nhos - que em si são um elemento frágil frente
aos vetores do poder. Para compreender esse
movimento entre dominantes e dominados no
interior do urbano, isto é, a partir dos processos
de urbanização e de experiências urbanas, é
preciso ser capaz de mudar o olhar e confrontar
a opacidade que tanto caracteriza a morfologia
das cidades (LEPETIT,1996,107).

HISTORIOGRAFIA CRÍTICA ESPAÇO PÚBLICO


CONFLITOS INSTITUCIONALIDADES

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

80
ABSTRACT seems adjusted to the nature of the city to critici-
ze it in materialistic terms, either by analyzing the
constitution of the built places or the actions per-
On a critical level, every judgment is strategic, as formed in those places, since materialism aims to
Walter Benjamin said, (BENJAMIN, fragment 140, account for the concrete moment of production
2014). The strategy of criticism, in the face of each and reception of the work - its previous history
work, must be to make explicit the details by whi- and its later history, when it was produced, when
ch the work judged becomes a source of singu- it was received.
larities that can keep it alive in the present, pre-
cisely because it differs from it. Every work has In these terms, through criticism each work - ob-
its own historicity which concerns the moment of ject or event - is understood as a singular phe-
its production, that is, a singular time in the past. nomenon that, when it is removed from the flow
What a criticism asks is how and why the work re- of commodification and abstraction, lets a par-
verberates in the present of its interpretation. It is tial totality be seen. The city, for the sake of tru-
not a question of emulating the past, or of seeking th, is the object bordering on criticism. In it, we
to conjugate the expectation of the present with always analyze material fragments coming from
that which was previously realized. Each work cri- the past, in an assembly whose construction of
ticized is so according to the historical moment in meaning takes place today, when we experience
which the interpreter or historian lives. This me- it. The city is an object that does not show itself
ans, in the first place, that every criticism must directly, but only in its refractory reflection. In an
show in material detail the historical distance urban object or event the knowledge, perception
that separates the work, in its historical concre- and gestures of the inhabitants are reflected -
teness, from the moment in which it is presented and for this reason Benjamin calls the city me-
to the experience of a spectator or interpreter. dium-deflection (Reflexionsmedium): the places
in which one lives the city are always junction, ar-
Benjamin calls a movement referring to distan- ticulation - an arrangement of ways of knowing,
ce and transmission a plan of criticism: first, to perceiving and acting.
recognize the historical distance separating the
past from the present, instead of first searching In order to reflect on theoretical-methodological
for supposed similarities; then, to establish that issues, the works presented at this table make
this distance is also apprehended in various the discussion based on historical materialism
ways, according to the not at all innocent way of but not only, and consider the city based on the
its transmission. actors, intellectual and contestation networks,
conflicts and institutionalism.
But, in the end, how can the criticism be carried
out? In principle, to the extent that each work is The materialistic analysis from this medium-de-
a determined synthesis, dismantle it. Then, to flection allows the combination of the temporality
disaggregate, to break down the components, of the experience of space (simultaneity) and the
to disseminate the constructive units. And then, unfolding (longevity) of the plots of production of
once these fragments have been historically re- space and, necessarily, conjugates criticism to
counted, we recompose them, reassemble them. the historical narrative. But it is still necessary to
It is a matter of constituting and unfolding the or- demonstrate what purpose these philosophical
der inherent in the work according to a detailed principles of criticism and narrative serve in the
analysis of the historical and philological mate- field of urban history.
rial that determines it (GAGNEBIN, 1980, 16 ). Cri-
ticism, through analysis, opens up the possibility The way to demonstrate this is to claim the in-
of transformation of the work. clusion of the critique of everyday life as a cons-
tituent part of urban historiography. Criticism,
The urban always requires a materialistic analy- in this case, not only in the terms of Walter Ben-
sis, either by the duration that characterizes it (its jamin, but also of Henri Lefebvre. To write urban
production) or by the simultaneity and ephemera- history with these two materialistic philosophers
lity of the experience it causes (its frequency). It it is necessary to consider the temporality of
EIXO TEMÁTICO 1 everyday life, in terms of the alienation that sub-
jects it, to know how to overcome it through the
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO appropriation of time and space - in other words,
to think of everyday life in terms of knowledge and
recognizability.

It was in 1970 that Henri Lefebvre formulated his


late hypothesis on complete urbanization, placing
it in the chronology of the typologies of urban for-
mations: first we realise a commercial society,
then an industrial society, and finally an urban
society. For the French philosopher, an Urban
transformed into a noun demands to be unders-
tood as a process; or, at least, according to the
sum of many processes - assembly of implosion
processes (concentration, thickening, condensa-
tion of goods, objects, populations), assembly of
explosion processes (projection, dispersion, frag-
mentation into voids, peripheries, satellite cities).
The axis that transversally crosses the assembly
of urban dynamics is the daily life; only its analy-
sis allows unveiling new social forms, new expe-
riences, new narratives, production, consump-
tion, distribution and circulation, accessibilities,
mobilities. To analyze everyday life is to return to
the surface, to the visible surface of phenomena
- to pause attentively at the phenomenal surfa-
ce of social reality, where the process of spatial
reproduction articulates itself to the plane of the
reproduction of life.

If we join to this the Benjaminian concepts, then


we would have an effective historiographic plan:
a concrete materialistic reflection is made on
what is closest to us, first of all the importance
is given to the presentation of what is familiar
to us and which conditions us (BENJAMIN, 2006,
c0.5). If we think about what defines the structu-
re under urban processes, we will see that even
urban regulation, through plans and laws, affects
everyday life in the way rights are distributed and
implemented. An urban policy, for example, has
a direct impact on the processes of everyday life
when it conditions the supply of services and col-
lective goods.

What we have here are moments and movements


of resistance in which complaints are articulated
in contexts that are the support of everyday ex-
16º SHCU periences lived, over and over again, in cities. It is
30 anos . Atualização Crítica
from the world of daily life that bonds and allian-
82 ces are built based on interests and experiences
of the city, which sediment the strategies of the RESUMEN
movements.

It is decisive for historiography and criticism to En un nivel crítico, cada juicio es estratégico,
consider that today’s urban is a multi-territoria- como dijo Walter Benjamin, (BENJAMIN, frag-
lity of relations of domination and subordination mento 140, 2014). La estrategia de la crítica, fren-
and resistance. If the urban is an inescapable te a cada obra, debe ser explicar los detalles por
noun in the constitution of emancipatory practi- los cuales la obra juzgada se convierte en fuente
ces and proposals, a spatial arrangement of cou- de singularidades que pueden mantenerla viva en
ntless configurations - the cities in their many de- el presente, precisamente porque difiere de ella.
signs - which in themselves are a fragile element Cada obra tiene su propia historicidad que con-
in the face of the vectors of power, can be dedu- cierne al momento de su producción, es decir, un
ced from it. In order to understand this movement tiempo singular en el pasado. Lo que una crítica
between the dominant and the dominated within pregunta es cómo y por qué la obra reverbera en
the urban, i.e. from the processes of urbanization el presente de su interpretación. No se trata de
and from urban experiences, it is necessary to be emular el pasado, ni de tratar de conjugar la ex-
able to change one’s gaze and confront the opa- pectativa del presente con lo que se realizó an-
queness that so characterizes the morphology of teriormente. Cada obra criticada lo es según el
cities (LEPETIT,1996,107). momento histórico en el que vive el intérprete o
el historiador. Esto significa, en primer lugar, que
toda crítica debe mostrar con detalle material la
HISTORIOGRAPHY CRITICISM PUBLIC SPACE distancia histórica que separa la obra, en su con-
CONFLICTS INSTITUTIONALITIES creción histórica, del momento en que se presen-
ta a la experiencia de un espectador o intérprete.
Benjamín llama al plan de la crítica un movimien-
to que se refiere a la distancia y a la transmisión:
primero, reconocer la distancia histórica que se-
para el pasado del presente, en lugar de buscar
primero supuestas similitudes; luego, establecer
que esta distancia también se aprehende de va-
rias maneras, según el modo nada inocente de su
transmisión.

Pero, después de todo, ¿cómo llevar a cabo la crí-


tica? En principio, en la medida en que cada obra
es una síntesis determinada, desmantélela. Lue-
go, para desagregar, romper los componentes, di-
seminar las unidades constructivas. Y luego, una
vez que estos fragmentos han sido historiados,
para recomponerlos, para reensamblarlos. Se
trata de constituir y desplegar el orden inherente
a la obra según un análisis detallado del material
histórico y filológico que la determina (GAGNEBIN,
1980, ). La crítica, a través del análisis, abre la po-
sibilidad de transformación de la obra.

Lo urbano siempre exige un análisis materialis-


ta, ya sea por la duración que lo caracteriza (su
producción), o por la simultaneidad y efímero de
la experiencia que provoca (su frecuencia). Pare-
ce ajustado a la naturaleza de la ciudad criticar-
la en términos materialistas, ya sea analizando
EIXO TEMÁTICO 1 la constitución de los lugares construidos o las
acciones realizadas en esos lugares, ya que el
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO materialismo pretende dar cuenta del momento
concreto de producción y recepción de la obra -
su historia anterior y su historia posterior, cuando
se produjo, cuando se recibió.

En estos términos, a través de la crítica cada obra


-objeto o evento- se entiende como un fenómeno
singular que, al ser retirado del flujo de coisifica-
ción y abstracción, deja ver una totalidad parcial.
La ciudad, por el bien de la verdad, es el objeto
que raya en la crítica. En ella, siempre analizamos
fragmentos materiales provenientes del pasado,
en un ensamblaje cuya construcción de signifi-
cado tiene lugar hoy, cuando lo experimentamos.
La ciudad es un objeto que no se muestra direc-
tamente, sino sólo en su reflejo refractario. En un
objeto o evento urbano se refleja el conocimiento,
la percepción y los gestos de los habitantes - y por
esta razón Benjamin llama a la ciudad medio-de-
flexión (Reflexionsmedium): los lugares en los que
se vive la ciudad son siempre un punto de unión,
articulación - una disposición de formas de cono-
cer, percibir y actuar.

Con el fin de reflexionar sobre cuestiones teórico-


-metodológicas, los trabajos presentados en este
cuadro hacen la discusión desde el materialismo
histórico, e considera la ciudad desde los acto-
res, las redes intelectuales y de contestación, los
conflictos y las institucionalidades.

El análisis materialista basado en esta desviación


del medio permite combinar la temporalidad de la
experiencia del espacio (simultaneidad) y el des-
pliegue (longevidad) de las tramas de producción
del espacio y, necesariamente, conjuga la crítica
a la narrativa histórica. Pero todavía es necesario
demostrar qué propósito tienen estos principios
filosóficos de la crítica y la narrativa en el campo
de la historia urbana.

La forma de demostrarlo es reclamar la inclusi-


ón de la crítica de la vida cotidiana como parte
constitutiva de la historiografía urbana. Críticas,
en este caso, no sólo en los términos de Walter
Benjamin, sino también de Henri Lefebvre. Para
escribir la historia urbana con estos dos filósofos
16º SHCU materialistas es necesario considerar la tempo-
30 anos . Atualização Crítica
ralidad de la vida cotidiana, en términos de la alie-
84 nación que la somete, saber superarla a través de
la apropiación del tiempo y el espacio, es decir, construyen lazos y alianzas a partir de intereses
pensar la vida cotidiana en términos de conoci- y experiencias de la ciudad, que sedimentan las
miento y reconocibilidad. estrategias de los movimientos.

Fue en 1970 cuando Henri Lefebvre formuló su Es decisivo para la historiografía y la crítica con-
última hipótesis sobre la urbanización comple- siderar que lo urbano de hoy es una multiterrito-
ta, situándola en la cronología de las tipologías rialidad de relaciones de dominación y subordina-
de las formaciones urbanas: primero realizamos ción y resistencia. Si lo urbano es un sustantivo
una sociedad comercial, luego una sociedad in- ineludible en la constitución de las prácticas y
dustrial y finalmente una sociedad urbana. Para propuestas emancipadoras, de él se deduce una
el filósofo francés, una Urbana transformada en ordenación espacial de innumerables configura-
sustantivo exige ser entendida como un proceso; ciones - las ciudades en sus tantos diseños - que
o, por lo menos, según la suma de muchos proce- en sí mismas son un elemento frágil frente a los
sos - reunión de procesos de implosión (concen- vectores del poder. Para comprender este mo-
tración, espesamiento, condensación de bienes, vimiento entre dominantes y dominados dentro
objetos, poblaciones), reunión de procesos de de lo urbano, es decir, a partir de los procesos
explosión (proyección, dispersión, fragmentación de urbanización y las experiencias urbanas, es
en vacíos, periferias, ciudades satélite). necesario poder cambiar la mirada y enfrentar
la opacidad que caracteriza la morfología de las
El eje que atraviesa transversalmente el conjun- ciudades (LEPETIT,1996,107).
to de las dinámicas urbanas es la vida cotidiana;
sólo su análisis permite desvelar nuevas formas
sociales, nuevas experiencias, nuevas narrativas, HISTORIOGRAFÍA CRÍTICA ESPACIO PÚBLICO
producción, consumo, distribución y circulación, CONFLICTOS INSTITUCIONES
accesibilidad, movilidad. Analizar la vida cotidia-
na es volver a la superficie, a lo visible de los fenó-
menos - detenerse, atentamente, a la superficie
fenoménica de la realidad social, donde el proce-
so de reproducción espacial se articula al plano
de la reproducción de la vida.

Si reunimos a esto los conceptos benjamineses,


entonces tendríamos un plan historiográfico
efectivo: hacemos una reflexión materialista con-
creta sobre lo que está más cerca, damos prime-
ra importancia a la presentación de lo que nos es
familiar y que nos condiciona (BENJAMIN, 2006,
c0.5). Si pensamos en lo que define la estructura
bajo los procesos urbanos, veremos que incluso
la regulación urbana, a través de planes y leyes,
afecta a la vida cotidiana en la forma en que se
distribuyen y aplican los derechos. Una política
urbana, por ejemplo, afecta directamente a los
procesos de la vida cotidiana cuando condiciona
el suministro de servicios y bienes colectivos.

Para los casos que aquí se plantean, lo que tene-


mos son momentos y movimientos de resistencia,
en los que las quejas se articulan en contextos
que son el soporte de experiencias cotidianas vi-
vidas, amplia y repetidamente, en las ciudades.
Es desde el mundo de la vida cotidiana que se
EIXO TEMÁTICO 1 A TRAMA MULTIESCALAR E INTERTEMPORAL:
REFLEXÕES SOBRE UMA POSSIBILIDADE DE
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
INTERPRETAÇÃO DAS INSTITUCIONALIDADES

mesa temática
Trama ou tecido, de raiz etimológica imbricada com
a palavra texto, são ambos derivados do verbo texere

CRÍTICA IMANENTE, EMPIRIA em latim que significa tecer, construir, entrelaçar


fios. O trabalho de tecer, portanto, se associa ao tra-

E TEMPORALIDADES – balho de narrar e aproxima o seu desígnio à prática


de seu entrelaçamento e que passa por escolhas -

SOBRE ALGUNS TEMAS DE das fontes, dos métodos, das perguntas. Se como
afirma (RANCIÈRE, 1994:61) a “verdade do relato
HISTORIOGRAFIA E TEORIA funda-se sobre a reserva de sentido das cartas
exibidas e ordenadas”, na escolha dos fios a serem
URBANA tecidos, conectados, hierarquizados, se encontra
um primeiro princípio fundador da narrativa pela
trama. Nesse sentido, o objeto é o próprio entre-
IMMANENT CRITICISM, EMPIRICISM AND laçamento. Ao entrelaçar o objeto e seu contexto
TEMPORALITIES - ON SOME THEMES OF consideramos que ambos são partes constitutiva
HISTORIOGRAPHY AND URBAN THEORY de um mesmo universo e que a simultaneidade e a
relação dialética entre estes produzem mutuamente
CRÍTICAS INMANENTE, EMPIRISMO Y sua construção, ainda que com temporalidades
TEMPORALIDADES - SOBRE ALGUNOS TEMAS DE LA distintas. Assim, ao contrário de apresentar de
HISTORIOGRAFÍA Y LA TEORÍA URBANA forma dissociada o objeto e seu contexto, busca-
-se construir a narrativa de maneira a explicitar
essa simultaneidade, variando o foco no decorrer
da narrativa e buscando evidenciar os pontos de
conexão entre objeto e contexto. Assim, a trama é
aqui é mobilizada como perspectiva analítica como
possibilidade de superação dessa dualidade, evi-
denciando na própria construção do objeto os fios
que o compõe simultaneamente.

Narrar pela trama passa também pela variação de


escala defendida por Lepetit (1993) utilizando esse
recurso para tecer os fios de modo a não privilegiar
nenhum dos focos específicos - micro ou macro -
mas a sua pluralidade e interlocução. Dessa forma,
se para Lepetit (1993:242) a micro-história fornece
o modelo de um indivíduo que faz escolhas e do
“conjunto dessas escolhas individuais resultam
processos macroscópicos”, a configuração e a ex-
tensão dos campos em que os atores são capazes
de agir constituem fontes principais de suas ações.
Nesse sentido é a partir da mudança do ponto de
vista - do macro e do micro - no decorrer da narrativa
que se torna possível compreender os processos e
suas institucionalidades. É na variação do ângulo
16º SHCU de visão, para Lepetit (1993:243) que o sistema de
30 anos . Atualização Crítica
contextos pode ser reconstituído, como resultado
86 da tessitura de “milhares de situações particulares”
e que ao mesmo tempo dá sentido a todas elas. A ESCRITA DA HISTÓRIA COMO INVENÇÃO DO FUTURO
Nessa perspectiva, compreender as instituições
- ALGUMAS OBSERVAÇÕES CRÍTICAS SOBRE AS
e institucionalidades de planejamento como ca- DISPUTAS PELO ESPAÇO PÚBLICO
tegorias do espaço social (Revel, 2010), passa pelo
estudo do “novelo das relações entretecidas entre os
O ponto em que, por vezes, nós, estudiosos do
agentes individuais, entre esses agentes e o grupo”,
urbano, somos trapaceados pela documentação
o entrelaçamento dos saberes e das práticas e, além
ou caímos nas armadilhas da memória será o tema
disso, em diferentes escalas e temporalidades. Se
central desta comunicação que pretende proble-
para Revel (2010:135), as instituições em suas múlti-
matizar os riscos das apropriações do documento
plas formas são resultados de uma trama complexa
histórico como artefato isolado e do esvaziamento
entre as “trajetórias dos agentes e as relações, de
da pluralidade de narrativas acerca das temáticas
natureza diversa, que eles empreendem entre si e
do campo. Para tanto, serão apresentadas algu-
com os contextos plurais nos quais se situam”, estas
mas considerações acerca das narrativas sobre a
são inseparáveis da configuração do jogo social. Nos
modernização e da circulação de conhecimentos
termos de Ginzburg & Poni (1989) a escala “individual
que dizem respeito às disputas pelo espaço pú-
não é vista aqui como contraditória ao social: ela
deve tornar possível uma abordagem diferente des-
blico em suas dimensões física e política.
te, ao acompanhar o fio de um destino particular - de
O eurocentrismo entre as primeiras tentativas de
um homem, de um grupo de homens - e, com ele, a
interpretação de suas identidades era constante-
multiplicidade dos espaços e dos tempos, a meada
mente sobreposto ao pluralismo e aos conflitos
das relações nas quais ele se inscreve”.
constitutivos da vida em sociedade. Europeus
Esta comunicação portanto tem como objetivo eram considerados pela maioria das elites lati-
apresentar e desenvolver as reflexões iniciadas no no americanas como elementos essenciais na
âmbito da publicação do Tomo 3 do livro “Nebulosas formulação de uma nova identidade. A projeção
do Pensamento Urbanístico: Modos de Narrar” sobre de uma“identidade” a ser construída como ima-
a narrativa pela trama composta por ideias, práti- gem idealizada a partir do molde do colonizador
cas, circuitos pessoais e profissionais, processos apoiava a posição de intelectuais como Joaquim
políticos, iluminando os embates, dissenso, desloca- Nabuco, expressiva ao diferenciar o negro e o
mentos, bifurcações, divergências e consonâncias índio, na expectativa de que a “raça” brasileira
que configuram um espaço comum. deveria ser outra. No mesmo contexto, outros
pensadores buscaram, na diferença cultural, a
construção de uma identidade branca, a partir
da interiorização e negação do negro e do índio.
Eles sustentaram ideais eurocêntricos de desen-
volvimento do continente americano, como An-
drés Bello na Venezuela, por pensar uma América
Latina inferior; Domingo Faustino Sarmiento na
Argentina, auto-intitulando o grupo de intelec-
tuais ao qual se identificava como Apóstolos da
República e da civilização europeia e do qual Juan
Bautista Alberdi também era expoente e afirmava
não serem outra coisa senão europeus nascidos
na América.

No século XX, o pensamento político brasileiro


também contribuiu para ampliação da interpreta-
ção da modernização como processo constituidor
e formador de identidades. Como observou Bres-
ciani, a universalidade científica pretendida pelos
intelectuais constituiu-se como uma das bases
da formulação das “ideias fora do lugar”, que nos
EIXO TEMÁTICO 1 anos 1960 seriam retomadas como argumento
explicativo para o desenvolvimento brasileiro
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO (BRESCIANI, 2005, p. 173). Intelectuais como Oli-
veira Vianna, Sérgio Buarque de Holanda, Azevedo
Amaral e Nestor Duarte, cada um à sua maneira,
compreenderam que seria necessário definir a
constituição identitária do Brasil a partir de con-
jugações metodológicas, fosse para explicar o
passado, fosse para analisar o presente, fosse
para versar sobre o futuro.

Permanece até hoje como saída mais fácil para


explicação das cidades e das culturas urbanas o
argumento da importação, da cópia, da implan-
tação de modelos. No Brasil, a coexistência en-
tre escravidão e liberalismo não encontraram
explicação que não se baseasse no argumen-
to da falha original. No caso argentino, por sua
vez, cópia, modelo e periferia aparecem na jus-
tificativa de uma constituição identitária com
elementos portenhos e europeus. É o caso de
Beatriz Sarlo, quando em entrevista concedida
ao jornalista Guilherme de Freitas e publicada no
blog do Jornal O Globo em 2 de outubro de 2010,
começa explicando seu Modernidade Periférica
(publicado pela primeira vez em 1988) justamente
a partir da afirmação de Roberto Schwarz de que
as ideias estão fora do lugar, afirmando, ainda, que
a “cultura de mescla” apontada em seus escritos
consiste em “uma cultura cujo traço distintivo é
a cópia, a imitação, a importação de diferentes
fontes e origens” (FREITAS, 2018, p.2). Nessa obra,
Sarlo analisa Buenos Aires entre 1920 e 1930 como
expressão dessa cultura de mescla argentina,
onde “coexistem elementos defensivos e residuais
junto com os programas renovadores; traços cul-
turais da formação criolla ao lado de um processo
descomunal de importação de bens, discursos e
práticas simbólicas” (SARLO, 2010, p.58).

Como podemos ler o lugar da periferia, do modelo


e da cópia em reflexões como a de Sarlo? Embo-
ra Adrian Gorelik considere em seu La Grilla y el
Parque (publicado pela primeira vez em 1998) ser
incontestável a existência de critérios internacio-
nais na elaboração e ressignificação de Buenos
Aires entre 1887 e 1936, e a força da definição de
“cultura de mescla”, ele reconhece que hoje a
perspectiva da noção de influência para entender
16º SHCU o que se produziu enquanto cidade e sociedade é
30 anos . Atualização Crítica
inútil e não atende nossa necessidade de entender
88 a cidade enquanto artefato material, cultural e
político (GORELIK, 1998, p. 28). PENSAR A HISTÓRIA URBANA À LUZ DOS CONFLITOS
SOCIAIS : ESBOÇOS DE UMA CARTOGRAFIA NOTURNA
Neste caso, o historiador José Luiz Romero, ao
estudar as cidades em transformação entre 1880
e 1930, chama a atenção para entender as ex- Esta comunicação propõe discutir possíveis relei-
periências culturais dentro dos processos de turas da história da cidade contemporânea atra-
urbanização com a intensificação das suas trocas vés da ideia de cartografia noturna. Tal conceito,
internas e em diferentes escalas, e que essas já utilizado por nós em outros trabalhos, sugere
trocas seriam em si mesmas constitutivas da uma perspectiva teórica que tem por objeto as
cidade latino-americana, pluralizando as formas territorialidades não hegemônicas, historicamen-
de modernidade (ROMERO, 2009). te reprimidas, produzidas ou imaginadas no seio
dos conflitos sociais urbanos, desde a consolida-
A tarefa de destituir de eurocentrismo as leituras
ção da cidade moderna. Em suma, interessa-nos
acerca da modernidade, ou as explicações sobre
historicizar modos de habitar o território urbano,
o desenvolvimento urbano brasileiro, enfrenta
caracterizados como ilegais ou informais pelo
desafios postos pela instrumentalização da me-
poder, e por essas razões deixados nos “cantos
mória como exercício de invenção do futuro, que
tem nas narrativas de desenvolvimento e progres- de sombra do mapa” da historiografia sobre a
so, sua principal fonte de recursos. Assumindo cidade moderna (URVOY, 2017).
a cidade como artefato composto por relações
Partimos inicialmente da seguinte premissa: a
heterogêneas, aceitamos definitivamente que
compreensão da urbanização dos territórios,
“a história dos diferentes grupos sociais marca a
desde o século XIX, nas Américas, na Europa
cidade de maneira clara” (REIS FILHO, 1991, p.16) e
e em suas colônias, como um amplo processo
que, à medida que essas marcas se sobrepõem,
de apagamento de determinadas culturas e de
ao historiador é imposto o desafio da montagem,
sua relação com o ambiente habitado. Ao longo
da reinterpretação dos consensos e dissensos,
da modernização das sociedades, um discurso
da revelação dos apaziguamentos e dos conflitos.
científico e racional sobre o espaço, integrando
o urbanismo mas também a geografia e a carto-
grafia, passou a reformular o território segundo
as prioridades definidas pela economia capitalista
em expansão, como identificado por James Scott
(1999). Se inserem nesta dinâmica as sucessivas
reformas urbanas das grandes capitais da Europa
e das Américas, de Paris a Buenos Aires, passando
pelo Rio de Janeiro e Barcelona. Ao analisá-las,
observamos que quase todas incluem um pro-
jeto de demolição de zonas urbanas populares
julgadas indesejadas pelas elites, a partir de cri-
térios morais, econômicos, estéticos ou políticos.
A destruição de tudo que não cabe nesse novo
padrão que é a modernidade seria um sacrifício
necessário para a criação de um espaço renovado,
segundo a própria definição do Barão Hausmann
– responsável pela Reforma Urbana de Paris no
Segundo Império Francês –, que se autoqualifica-
va um “artista-demolidor” (HAUSMANN, 1890, p.
10). Da demolição dos bairros medievais da antiga
Paris àquela do maior cortiço do Rio de Janeiro, o
Cabeça de porco, em 1893, passando pelo projeto
de destruição do Raval pelo Cerdá, em Barcelona,
tais reformas sistematizam a prática estatal de
remoção de espaços urbanos populares, modo
EIXO TEMÁTICO 1 de intervenção autoritário sobre o espaço que
se tornará prática padrão na história da cidade
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO moderna.

Tal reorganização dos espaços urbanos implicou


portanto um amplo processo de silenciamento,
análogo àquele identificado por Michel Foucault
em seu trabalho sobre o surgimento da moderni-
dade. Com efeito, uma das hipóteses que funda-
menta suas reflexões – como apontado por ele
em uma entrevista de 1971 – é a ideia de que o
ocidente, para construir um saber e um discurso
sobre o outro – o que poderíamos chamar a sua
escrita do mundo – tomou a palavra a partir de um
silêncio imposto à força. Tal gesto se espalhou
geograficamente quando o ocidente colonizou
e escravizou àqueles que considerava como in-
feriores nos cinco continentes, produzindo ao
mesmo tempo um discurso universal, inspirado no
Iluminismo, sobre tais culturas e populações não
europeias (FOUCAULT, 1971, p. 11). Qualificando o
outro de bárbaro, lhe retirou o direito à fala e ao
raciocínio para falar em seu próprio nome, gesto
que o escritor martinicano Aimé Césaire qualifi-
cou de “coisificação”. Em seu Discurso sobre o
colonialismo, o ensaísta da negritude já associa
esse não apenas a um silenciamento dos sujeitos,
mas também a uma reescrita do território, na
qual “terras confiscadas” e “sociedades esvazia-
das” abrem espaço para uma ideia quantitativa
de “progresso” imposta com seus “quilômetros de
estradas, canais e estradas de ferro” (CÉSAIRE,
2004, p. 23). Este progresso, segundo o mesmo
autor, se alimentaria do apagamento de culturas
inteiras, que ele interpreta como “possibilidades
suprimidas” do curso da história.

No entanto, na tentativa de padronizar a totalidade


de um território ou de uma cidade, a modernidade
sempre teve de conviver com seu avesso, seu
efeito colateral, que ela sempre definiu como seu
contrário: espaços da (des)ordem, do (in)formal,
dos quilombos e favelas às lutas de moradores,
squats e ocupações urbanas, limitando-nos aqui
aos exemplos mais evidentes. A cidade moderna
foi historicamente modelada por esse conflito, no
qual outras formas de habitar nunca cessaram
de surgir entre as linhas do desenho planejado,
reocupando espaços vazios após cada reinte-
16º SHCU gração de posse. A partir dos conceitos citados,
30 anos . Atualização Crítica
e baseando-se na crítica anticolonial à moderni-
90 zação do território proposta por Césaire, a ideia
de cartografia noturna nos convida à construir PENSAR POR EXTREMOS E AGRUPÁ-LOS: COMO
coletivamente metodologias que permitem his- ESBOÇAR UMA HISTORIOGRAFIA URBANA A PARTIR
toricizar essas “possibilidades suprimidas” da
DE INSURREIÇÕES
história urbana.

Na última parte do trabalho, propomos apresentar


Método, para a pesquisa das insurreições urbanas
alguns esboços desta cartografia noturna atra-
é interromper, descontinuar, somar os tempos de
vés do estudo de duas experiências distintas de
sobrevivência, a duração de um edifício, de um
produção da cidade que tiveram suas origens em
lugar, escavar os vestígios de um uso. É ação de
meio à lutas sociais de moradores : a auto-cons-
reconhecimento e partilhamento do que aconteceu
trução de bairros realizada pelos movimentos de
ocupações de terras urbanas no Brasil, estudadas - o que passou não é mudo e cada passado, se parti-
através da experiência de Belo Horizonte, da dé- lhado, está carregado do presente de cada instante.
cada de 1960 até os dias de hoje, e a experiência
Todo método de investigação em arquitetura, essa
de construção habitacional iniciada pelos movi-
“disciplina desmembrada e multiforme”, como
mentos de moradores em Portugal, a partir da
disse Tafuri, conduz a uma questão sobre o tempo,
Revolução dos Cravos. Para além da produção da
pois edifícios e cidades habitados , abandonados,
cidade em si, veremos também como tais experi-
arruinados, redescobertos, todos implicam con-
ências podem carregar dinâmicas de transmissão
frontar o presente com seus relatos históricos,
da memória que nos levam a refletir sobre outros
abrir o agora ao anacronismo dos objetos desper-
espaços de produção e difusão da história urbana,
cebidos pela história, que sobrevivem ocultos,
fora do âmbito da academia. Propõe-se, aqui, em
transformados, enredados com o presente.
suma, uma releitura da historiografia urbana e de
seus métodos a partir de experiências sociais con-
“De nada adianta projetar no passado certeza a
cretas nas quais lutar produz o espaço habitado.
superar” (TAFURI, 1968,219). Faz-se história da
arquitetura por que se procura o significado dos
desdobramentos da arquitetura atual. No ponto
de vista anacrônico, a distância histórica não é
um obstáculo epistemológico. Cumpre-se, ao
contrário, capturar os aspectos mais atuais do
passado e contar a história a partir de uma con-
tingência. Um objeto histórico, jamais neutro,
leva consigo um tipo de assinatura que o consti-
tui como imagem, e determina e condiciona sua
legibilidade. Não se trata de uma restauração.
Trata-se de uma criação com materiais pretéritos,
e de pensar - por princípio - a prática histórica
como tarefa política.

Esta comunicação apresenta, retoma e desenvol-


ve uma reflexão iniciada no âmbito da publicação
do Tomo 3 do livro “Nebulosas do Pensamento Ur-
banístico: Modos de Narrar” sobre a narrativa por
processos, tomando por objeto as insurgências
que irrompem atualmente nas cidades, desem-
penhadas necessariamente a partir de condições
e modos de vida urbanos.

Para pensar, no presente da cidade, sua duração,


deve-se pensar os usos em movimento de um
lugar, por que apenas o raciocínio sobre a ação
desempenhada nos espaços promove o que ben-
EIXO TEMÁTICO 1 jamin designa por liberar as energias críticas das
obras, no presente, isto é, no tempo em que a obra
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO é experimentada. Para o historiador materialista
trata-se de vislumbrar, num objeto - a obra, o
lugar, a ação - suas histórias: a anterior, quando
foi produzida, a posterior, quando é recebida.
Colocar o objeto no tempo em que ele se abre ao
olhar - o tempo do agora.

Transmitir significa interromper a naturalização.


Tal ordenação implica em dizer que o historiador
está obrigado a estabelecer com o passado uma
experiência política. Toda investigação histórica
tem um fundamento político, e há uma indelével
marca nos lugares e nas ações quando o desig-
namos por lutas urbanas - se é o mármore, dos
vencedores, ou o movimento dos vencidos.

Com relação à experiência de temporalidade dos


movimentos anti-sistêmicos é crucial assinalar a
sua singularidade, pois diz respeito a aprender o
resgate dos vestígios muitas vezes ocultos de sua
própria história, cruzando um passado não raro
abandonado, oculto, e um movimento, uma dispo-
sição, para reativar essa herança na atualidade.

“Los movimientos antisistémicos cuentan


con tres fuentes de aprendizaje: la historia
de las resistencias, la reflexión sobre las
luchas que protagonizan en cada período
histórico y las experiencias de otros
movimientos en otras partes del mundo.
En síntesis: el pasado, el presente y las
experiencias de los otros abajos. Así ha sido
siempre en la historia de los movimientos”.
(ZIBECHI, 2014, p.165)

Ademais, é preciso descrever as contestações


urbanas segundo sua espacialidade específica,
pois uma decisiva transformação nas lutas sociais
se deu quando a constituição do território dessas
lutas passou a ser uma variável incontornável,
tanto em termos práticos quanto analíticos. Se
toda luta urbana é um uso do espaço disrupti-
vo da lógica do capital, em cada acontecimento
dessa natureza a dimensão das relações sociais
desempenhada a partir de um território em uso
passou a implicar uma exigência para a análise
da repercussão das lutas. Na atualidade, conflito
social exige ser compreendido enquanto disputa
16º SHCU encarnada no território, isto é, quando o espaço
30 anos . Atualização Crítica
é apropriado e instituído pelos sujeitos e grupos
92 sociais que, por meio dele, reivindicam suas de-
mandas e desempenham sua contestação. REFERÊNCIAS
Há que se pensar o uso dos lugares como uma
BENJAMIN, W. Passagens. Belo Horizonte:
invenção que é resultado de novas capacidades
Editora UFMG, 2006.
para a micro-coordenação das ações sociais;
como capacidade de enfrentar a geometria do BRESCIANI, Maria Stella Martins. O charme da
poder (dos poderes) na cidade. Indivíduos nos ciência e a sedução da objetividade: Oliveira
protestos são um híbrido e uma justaposição, e Vianna entre intérpretes do Brasil. São Paulo:
por causa disso é que se dão conta do potencial Unesp, 2005.
indeterminado que lhes é próprio. Sua potência
decorre simplesmente do seu encontro. BRESCIANI, M. S. M. O Charme da Ciência e a
Sedução da Objetividade. São Paulo: Editora
A análise das insurreições refere-se, ao fim e ao UNESP, 2005
cabo, à análise do uso do espaço enquanto prá-
ticas espaciais dissidentes. São usos resultantes BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas. Sobre a
tanto da racionalidade individual quanto da iden- Teoria da Ação. Campinas: Papirus Ed., 1996.
tidade coletiva, e que permitem demonstrar a
relação entre os modos de surgimento de alianças CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio
e solidariedades e os modos de organização dos de Janeiro: Forense-Universitária, 1982.
grupos urbanos. Trata-se, com (LEPETIT, 1, 48) de,
por trás das revoltas reconhecer os contornos de CÉSAIRE, Aime .́ Discours sur le colonialisme.
um saber social e o processo de sua materialidade Paris: Présence Africaine, 2004. 92 p.
, materialização. os lugares que revelam modos
de estar juntos. FELDMAN, S. Instituições de Urbanismo no
Brasil: espaços de intermediação entre pen-
Tanto podem se lutas transversais ( que não se samento e prática. In: Anais do VII Seminário
limitam a um país, que não estão confinadas a de História da Cidade e do Urbanismo, vol. 1.
uma forma política e econômica particular de Salvador: PPGAU-UFBA, 2002.
um governo); lutas contra a ação direta de ins-
tâncias de poder que são próximas; ação do po- FOUCAULT, Michel. Freedom and knowledge,
der sobre os indivíduos; as lutas anárquicas que (1971), Amsterdam: Fons Elders, 2012.
não esperam a solução de problemas no futuro,
FREITAS, Guilherme. Crítica Beatriz Sarlo fala
mas miram em um inimigo imediato; = lutas que
sobre ‘Modernidade periférica’ (entrevista). O
questionam o estatuto do indivíduo: afirmam o
Globo, Rio de Janeiro, p. 1-3, 2 out. 2010. Dis-
direito de ser diferente, enfatizam tudo aquilo
ponível em: <http://blogs.oglobo.globo.com/
que os torna verdadeiramente individuais; lutas
prosa/post/critica-beatriz-sarlo-fala-sobre-
que atacam tudo aquilo que os separa dos outros,
-modernidade-periferica-329148.html>. Aces-
tudo que fragmenta a vida comunitária, tudo que
so em: 28 fev. 2018.
o liga coercitivamente a uma identidade isolada.
GAGNEBIN, J. A propósito do conceito de
crítica em Walter Benjamin. Discurso, n. 13, p.
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16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

94
95
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
EIXO TEMÁTICO 1 RESUMO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
A narrativa, como modo de organização dis-
cursiva, tem ocupado o conhecimento históri-
mesa temática co e tem mobilizado debates que multiplicam
perguntas sobre as próprias formas de narrar.
Uma das primeiras ponderações sobre o tema,
NEBULOSAS DO PENSAMENTO por exemplo, Heródoto, apresenta três motivos
para justificar a narrativa: “para que os feitos
URBANÍSTICO: NARRAR dos homens se não desvaneçam com o tempo,
nem fiquem sem renome as grandes e maravi-
POR OCUPAÇÕES, TRAMAS, lhosas empresas, realizadas quer pelos Helenos
quer pelos Bárbaros; e sobretudo a razão por
VESTÍGIOS E EMBATES que entraram em guerra uns com os outros [...].”
(Heródoto, Histórias).
NEBULAE OF URBAN THINKING: WAYS OF NARRATING
Apesar de explicitar para que e porque narra-
va, seu texto nada tem do sentido apaziguador
NEBULOSAS DEL PENSAMIENTO URBANO: MODOS DE
sugerido em sua resposta. Nele, entrecruza nu-
NARRAR
merosas questões acerca do lugar dos testemu-
nhos, das memórias, da alteridade, das razões
PEREIRA, Margareth da Silva das narrativas, de modo a se justificar o título da
obra mantido no plural: são histórias.
(Coord.)
Doutora; PROURB/ UFRJ
margaspereira@gmail.com Não apenas o que se narra, a relatividade de
pontos de vistas e o estatuto da verdade são
REYES, Paulo; CIDADE, Daniela tidos como importantes quando se escreve.
Ainda na Antiguidade, Aristóteles amplia essas
Doutor; PROPUR UFRGS; Doutora; UFRGS
paulo.reyes@ufrgs.br; daniela.cidade@ufrgs.br
questões: como se narra? Como as palavras ga-
nham sentido quando articuladas? A partir daí
distingue categorias de palavras e de gêneros
CHIQUITO, Elisângela de Almeida
de discurso, e acrescenta à pluralidade a alteri-
Doutora; NPGAU/EAUFMG
dade, pensada nas reflexões dedicadas à retóri-
lis_arq@yahoo.com.br
ca, à poética e à política.

CERASOLI, Josianne; NOVO, Leonardo


Longe de propor uma genealogia das reflexões
Doutora; CIEC/Unicamp; Doutorando; CIEC/Unicamp sobre narrativa, essas observações parecem
cerasoli@unicamp.br; leonovo7@gmail.com oportunas por serem mobilizadas, contrasta-
das, e intensamente criticadas tanto por his-
SOUZA, Luiz Antonio; SANTOS, Vinícius Rafael; MONTE, Igor toriadores quanto por filósofos, sobretudo
Doutor; PPGAU/UFBA; Mestrando; PPGAU/UFBA; UNEB aqueles envolvidos nas nebulosas intelectuais
lasouza@terra.com.br; rafavs1@hotmail.com dedicadas às análises de discurso desde os
anos 1960-70 e suas imbricações com o agir e o
pensar. A desnaturalização da narrativa, a refle-
xão do campo de conhecimento sobre suas pró-
prias práticas, a desconstrução de fronteiras
entre os campos, os deslocamentos teóricos no
campo do conhecimento e da historiografia são
16º SHCU heranças que continuam a indagar o narrar.
30 anos . Atualização Crítica

96 Relações entre linguagem e poder; considera-


ções sobre sujeito e subjetividade; condições de compreender e, sobretudo, trazer à tona a con-
enunciação e possibilidade da verdade histórica; figuração do pensamento urbanístico, coloca,
são temas que têm atravessado vários campos como se vê, as narrativas em um campo de in-
disciplinares. Cada vez mais, o ofício do historia- dagações que é específico, não por ser espe-
dor – e inclusive do historiador da arquitetura e do cializado, mas, por sua irredutível pluralidade.
urbanismo – tem sido colocado diante de pergun- Múltiplo, plural, citadino e urbano, concreto e
tas que atualizam antigas questões sobre práti- abstrato, o campo do urbanismo requer que, ao
cas e regimes de memória e de temporalização: lado do texto, se interpele também as imagens
quem narra? Para que(m)? Sobre o que se narra? e os dispositivos materiais e imateriais, enten-
dendo-os como narrativas e perguntando a
Na atualidade, as formas de narrar têm passado quem e a que servem? O que perpetuam? Quan-
pelo crivo de embates sobre diferentes práticas do/como transgridem?
– corporais, discursivas, visuais, políticas. No-
tam-se deslocamentos epistemológicos provo- Nesta sessão os modos de narrar se cruzam in-
cados por esses embates no interior das discus- contornavelmente com uma metáfora, expres-
sões decoloniais, graças a uma historicização e sa ainda na coletânea: a ideia de nebulosa. Ela
crítica rigorosas acerca de quem narra e pode evoca as configurações possíveis, embora sem-
falar. Esse estado de coisas sinaliza o quanto a pre moventes, que pressupõe cada nuvem e
questão mobiliza a sensibilidade contemporâ- conjunto de nuvens nas suas formações, no seu
nea e quão pertinente é o tema quando se apro- ir-e-vir, nos seus choques, em sua estabilidade
xima questões de narrativa daquelas do conhe- relativa, em sua capacidade de se transmutar
cimento científico, histórico, antropológico e ora nas tempestades que varrem os céus das
político. Trazida ao campo do urbanismo, essa ideias feitas, ora lentamente na chuva fina que
discussão não se resume ao debate sobre qual irriga o solo e o fertiliza.
história do urbanismo narrar. Ao tomar como
foco a cidade, locus privilegiado da vida social Experiências, tempos e sistemas abertos e
e política, o urbanismo carrega para a narrativa conflituais de interações, de relações, de nexos,
seu aspecto múltiplo e transdisciplinar. de sentidos, conduzem as aproximações sobre
modos de narrar reunidos em torno das ideias
Além aproximar mais uma vez essas indagações de intriga, vestígios que insuflam a formação
de pesquisas sobre história e historiografia do das nebulosas. É por meio da intriga – ou o modo
urbanismo, esta sessão temática é motivada como miramos e construímos ou montamos
pelo propósito de trazer ao debate público al- o objeto a partir de questões – que se alinhava
guns temas e aspectos desenvolvidos a partir o narrado, com todas as instabilidades que as
de um trabalho reunido no terceiro tomo da co- questões e intuições podem provocar. É tam-
letânea Nebulosas do pensamento urbanístico: bém com o trabalho com os vestígios da expe-
modos de narrar. Depois dos tomos sobre Modos riência – com os documentos em suas distintas
de pensar e Modos de fazer, buscamos discutir a formas – que se compõe a narrativa. É no entre-
diversidade de entendimentos sobre as intrigas laçamento dessas duas dimensões contempla-
que emergem na trama e na tessitura histórica. das na coletânea – a da intriga e do trabalho com
São indagações advindas de experiências de os vestígios – que o modo de narrar aproxima
pesquisa e escrita dos diferentes grupos que nebulosas, ao mesmo tempo que outras perma-
constroem essa investigação coletiva sobre a necem soltas, desviantes.
formação do pensamento urbanístico. Busca-
-se considerar a multiplicidade de visadas sobre O esforço de montagem das intrigas é uma sín-
o urbanismo, indagar sobre as formas de vestí- tese, e é ela que sustenta toda narração, como
gios que sustentam narrativas e interrogar so- lembra Ricoeur. Objetivos, causas, acasos são
bre o que permanece e desaparece, ou seja, as reunidos, graças aos vestígios acumulados da
sedimentações de saberes comuns e a parte de experiência, sob a unidade temporal de uma
fragmentos e eventuais desvios. ação que assim parece ser total e completa.
“É esta síntese do heterogêneo que aproxima a
A atenção à linguagem, no ato de interpretar, narrativa da metáfora.” (Ricoeur, Tempo de nar-
EIXO TEMÁTICO 1 rativa 1). Contudo, parece ser desejável, como
se tenta aqui, não esquecer que são as nebulo-
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO sas desviantes que, abrindo espaço, mantêm o
imprevisível.

NEBULOSAS DO PENSAMENTO URBANÍSTICO NARRAÇÃO


HISTÓRIA DO URBANISMO HISTORIOGRAFIA

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

98
ABSTRACT thinking. The denaturing of narrative, the reflec-
tion of the field of knowledge on its own practices,
the deconstruction of boundaries between fields,
The narrative, as a mode of discursive organiza- the theoretical shifts in the field of knowledge
tion, has occupied historical knowledge and has and historiography are heritages that continue to
mobilized debates that multiply questions about question narration.
the very ways of narrating. One of the first con-
siderations on the subject, for example, Herodo- Relations between language and power; conside-
tus, presents three reasons to justify the narra- rations about subject and subjectivity; conditions
tive: “so that the deeds of men do not fade over of enunciation and possibility of historical truth;
time, nor do the great and marvelous companies, are themes that have crossed several disciplinary
carried out either by Helen or by the Barbarians, fields. More and more, the office of the historian
become without renown; and above all the reason - and even the historian of architecture and urba-
why they went to war with each other [...]. (Hero- nism - has been placed before questions that up-
dotus, Stories). date old questions about practices and regimes
of memory and temporalization: who narrates?
(Herodotus, Stories). Although he explained why For whom? What is the narrative about?
and for what reason he narrated, his text has no-
thing of the soothing meaning suggested in his Nowadays, the ways of narrating have passed
reply. In it, he interpolates numerous questions through the sieve of clashes about different prac-
about the place of testimonies, of memories, of tices - corporal, discursive, visual, political. Epis-
otherness, of the reasons for the narratives, in or- temological dislocations caused by these clashes
der to justify the title of the work kept in the plural: within the decolonial discussions are noted,
they are stories. thanks to a rigorous historicization and critique of
who narrates and can speak. This state of affairs
Not only what is narrated, the relativity of points signals how much the issue mobilizes contempo-
of view and the status of truth are considered im- rary sensitivity and how pertinent the subject is
portant when writing. Still in antiquity, Aristotle when it approaches narrative issues from those
expands on these questions: how do you narra- of scientific, historical, anthropological and poli-
te? How do words make sense when articulated? tical knowledge. Brought to the field of urbanism,
From there he distinguishes categories of words this discussion is not limited to the debate about
and genres of discourse, and adds to the plurality which history of urbanism to narrate. By focusing
the otherness, thought of in the reflections dedi- on the city, the privileged locus of social and po-
cated to rhetoric, poetics and politics. litical life, urbanism carries to the narrative its
multiple and transdisciplinary aspect.
Not only what is narrated, the relativity of points
of view, and the status of truth are considered im- In addition to bringing together once again these
portant when writing. Still in antiquity, Aristotle research questions about history and historiogra-
expands on these questions: how do you narrate? phy of urbanism, this thematic session is motiva-
How do words gain meaning when articulated? ted by the purpose of bringing to the public debate
From there he distinguishes categories of words some themes and aspects developed from a work
and genres of discourse, and adds to the plurality gathered in the third volume of the collection Ne-
the otherness, thought of in the reflections dedi- bulosas do pensamento urbanístico: modos de
cated to rhetoric, poetics and politics. narrar. After the volumes on Ways of Thinking and
Ways of Doing, we seek to discuss the diversity of
Far from proposing a genealogy of reflections on understanding about the intrigues that emerge
narrative, these observations seem timely becau- in the plot and the historical tessitura. These are
se they are mobilized, contrasted, and intensely questions arising from the research and writing
criticized by both historians and philosophers, experiences of the different groups that build this
especially those involved in the intellectual ne- collective investigation on the formation of urba-
bulae dedicated to discourse analysis since the nistic thought. The aim is to consider the multi-
1960s-70s and their imbrications with acting and plicity of visions about urbanism, to inquire about
EIXO TEMÁTICO 1 the forms of traces that sustain narratives, and
to question what remains and disappears, that is,
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO the sedimentation of common knowledge and the
part of fragments and eventual deviations.

The attention to language, in the act of interpre-


ting, understanding and, above all, bringing out
the configuration of urban thought, places the
narratives in a field of inquiry that is specific,
not because it is specialized, but because of its
irreducible plurality. Multiple, plural, urban and
urban, concrete and abstract, the field of urba-
nism requires that, alongside the text, images
and material and immaterial devices are also in-
tertwined, understanding them as narratives and
asking who and what they serve? What do they
perpetuate? When/how do they transgress?

In this session, the ways of narrating are inevita-


bly crossed with a metaphor, expressed still in the
collection: the idea of nebula. It evokes the possi-
ble configurations, although always moving, that
presuppose each cloud and set of clouds in their
formations, in their coming and going, in their
shocks, in their relative stability, in their capacity
to transmute themselves sometimes in the stor-
ms that sweep the skies of the ideas made, some-
times slowly in the fine rain that irrigates the soil
and fertilizes it.

Experiences, times and open and conflictual sys-


tems of interactions, relationships, nexus, sen-
ses, lead the approaches on ways of narrating
gathered around the ideas of intrigue, vestiges
that inflate the formation of the nebulae. It is
through intrigue - or the way we look at and build
or assemble the object from questions - that the
narration is aligned, with all the instabilities that
questions and intuitions can provoke. It is also
with the work with the traces of experience - with
the documents in their different forms - that the
narrative is composed. It is in the interweaving of
these two dimensions contemplated in the collec-
tion - that of intrigue and the work with the traces
- that the way of narrating approximates nebulae,
while others remain loose, deviant.

The effort to assemble the intrigues is a synthe-


sis, and it is it that sustains all the narration, as
16º SHCU Ricoeur reminds us. Objectives, causes, hazards
30 anos . Atualização Crítica
are gathered, thanks to the accumulated traces
100 of experience, under the temporal unity of an ac-
tion that thus seems to be total and complete. “It RESUMEN
is this synthesis of the heterogeneous that brin-
gs the narrative closer to the metaphor. (Ricoeur,
Time of Narrative 1). However, it seems desirable, La narración, como modo de organización discur-
as one tries here, not to forget that it is the de- siva, ha ocupado el conocimiento histórico y ha
viant nebulae that, by opening space, keep the movilizado debates que multiplican las pregun-
unpredictable. tas sobre las formas mismas de narrar. Una de
las primeras consideraciones sobre el tema, por
ejemplo, Herodoto, presenta tres razones para
NEBULAE OF URBAN THOUGHT NARRATION justificar la narración: “para que las acciones de
HISTORY OF URBANISM HISTORIOGRAPHY los hombres no se desvanezcan con el tiempo, ni
las grandes y maravillosas compañías, llevadas a
cabo por Helena o por los bárbaros, se vuelvan sin
renombre; y sobre todo la razón por la que fueron
a la guerra unos con otros [...]. (Herodoto, Histo-
rias).

Aunque explicó por qué y para qué narró, su texto


no tiene nada del significado tranquilizador suge-
rido en su respuesta. En ella interpola numerosas
preguntas sobre el lugar de los testimonios, los
recuerdos, la alteridad, los motivos de los relatos,
para justificar el título de la obra que se mantiene
en plural: son historias.

No sólo lo que se narra, la relatividad de los pun-


tos de vista y el estado de la verdad se conside-
ran importantes al escribir. Aún en la antigüedad,
Aristóteles amplía estas preguntas: ¿cómo se
narra? ¿Cómo tienen sentido las palabras cuando
se articulan? A partir de ahí distingue categorías
de palabras y géneros de discurso, y añade a la
pluralidad la alteridad, pensada en las reflexiones
dedicadas a la retórica, la poesía y la política.

Lejos de proponer una genealogía de reflexiones


sobre la narrativa, estas observaciones parecen
oportunas porque son movilizadas, contrastadas
e intensamente criticadas tanto por historiado-
res como por filósofos, especialmente los que se
ocupan de las nebulosas intelectuales dedicadas
al análisis del discurso desde los años 60 y 70 y
sus imbricaciones con la acción y el pensamiento.
La desnaturalización de la narración, la reflexión
del campo del conocimiento sobre sus propias
prácticas, la deconstrucción de las fronteras en-
tre los campos, los cambios teóricos en el campo
del conocimiento y la historiografía son herencias
que siguen cuestionando la narración.

Las relaciones entre el lenguaje y el poder; las


consideraciones sobre el sujeto y la subjetividad;
EIXO TEMÁTICO 1 las condiciones de enunciación y la posibilidad de
la verdad histórica; son temas que han atravesa-
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO do varios campos disciplinarios. Cada vez más, el
oficio de historiador - e incluso el de historiador
de la arquitectura y el urbanismo - se ha colocado
ante preguntas que actualizan las viejas cuestio-
nes sobre las prácticas y los regímenes de memo-
ria y temporalización: ¿quién narra? ¿Para qué?
¿De qué trata la narración?

Hoy en día, las formas de narrar han pasado por el


tamiz de los choques sobre las diferentes prácti-
cas - corporales, discursivas, visuales, políticas.
Las dislocaciones epistemológicas causadas por
estos choques en el seno de las discusiones des-
coloniales son notorias, gracias a una rigurosa
historización y crítica de quien narra y puede ha-
blar. Esta situación indica hasta qué punto el tema
moviliza la sensibilidad contemporánea y cuán
pertinente es el tema cuando se abordan las cues-
tiones narrativas con las del conocimiento cientí-
fico, histórico, antropológico y político. Llevado al
campo del urbanismo, esta discusión no se limita
al debate sobre qué historia del urbanismo narrar.
Al centrarse en la ciudad, lugar privilegiado de la
vida social y política, el urbanismo lleva a la nar-
ración su aspecto múltiple y transdisciplinario.

Además de reunir una vez más estas cuestiones


de investigación sobre la historia y la historiogra-
fía del urbanismo, esta sesión temática está mo-
tivada por el propósito de llevar al debate público
algunos temas y aspectos desarrollados a partir
de una obra recogida en el tercer volumen de la
colección Nebulosas do pensamento urbanístico:
modos de narrar. Después de los volúmenes so-
bre Formas de pensar y Formas de hacer, busca-
mos discutir la diversidad de comprensión sobre
las intrigas que surgen en la trama y la tesitura
histórica. Estas son preguntas que surgen de las
experiencias de investigación y escritura de los
diferentes grupos que construyen esta investiga-
ción colectiva sobre la formación del pensamien-
to urbanístico. Se trata de considerar la multipli-
cidad de visiones sobre el urbanismo, de indagar
sobre las formas de rastros que sustentan las
narraciones y de cuestionar lo que permanece y
desaparece, es decir, la sedimentación del cono-
cimiento común y la parte de fragmentos y even-
16º SHCU tuales desviaciones.
30 anos . Atualização Crítica

102 La atención al lenguaje, en el acto de interpretar,


comprender y, sobre todo, sacar a la luz la confi- que otras permanecen sueltas, desviadas.
guración del pensamiento urbano, sitúa las narra- El esfuerzo por ensamblar las intrigas es una sín-
ciones en un campo de investigación específico, tesis, y es lo que sostiene toda la narración, como
no por su especialización, sino por su pluralidad nos recuerda Ricoeur. Los objetivos, las causas,
irreductible. Múltiple, plural, urbano y urbano, los peligros se reúnen, gracias a las huellas acu-
concreto y abstracto, el campo del urbanismo muladas de la experiencia, bajo la unidad tem-
requiere que, junto al texto, se interpolen tambi- poral de una acción que así parece ser total y
én las imágenes y los dispositivos materiales e completa. “Es esta síntesis de lo heterogéneo lo
inmateriales, entendiéndolos como narraciones que acerca la narración a la metáfora. (Ricoeur,
y preguntándose a quién y a qué sirven? ¿Qué es Time of Narrative 1). Sin embargo, parece dese-
lo que perpetúan? ¿Cuándo y cómo transgreden? able, como se intenta aquí, no olvidar que son las
En esta sesión, las formas de narrar se cruzan nebulosas desviadas las que, al abrir el espacio,
inevitablemente con una metáfora, expresada mantienen lo impredecible.
aún en la colección: la idea de una nebulosa. Evo-
ca las posibles configuraciones, aunque siempre
en movimiento, que presuponen cada nube y gru- NEBULOSAS DEL PENSAMIENTO URBANO NARRACIÓN
po de nubes en sus formaciones, en su ir y venir, HISTORIA DEL URBANISMO HISTORIOGRAFÍA
en sus choques, en su relativa estabilidad, en su
capacidad de transmutarse a veces en las tor-
mentas que barren los cielos de las ideas hechas,
a veces lentamente en la fina lluvia que riega el
suelo y lo fertiliza.

En esta sesión, las formas de narrar se cruzan


inevitablemente con una metáfora, expresada
aún en la colección: la idea de nebulosa. Evoca
las configuraciones posibles, aunque siempre en
movimiento, lo que presupone a cada nube y con-
junto de nubes en sus formaciones, en su ir y ve-
nir, en sus choques, en su relativa estabilidad, en
su capacidad de transmutarse a veces en las tor-
mentas que barren los cielos de las ideas hechas,
a veces lentamente en la fina lluvia que riega el
suelo y lo fertiliza.

Experiencias, tiempos y sistemas abiertos y


conflictivos de interacciones, relaciones, cone-
xiones, sentidos, conducen los planteamientos
sobre formas de narrar reunidos en torno a las
ideas de intriga, vestigios que inflan la formación
de las nebulosas. Es a través de la intriga - o de
la forma en que miramos y construimos o ensam-
blamos el objeto a partir de las preguntas - que la
narración se alinea, con todas las inestabilidades
que las preguntas y las intuiciones pueden provo-
car. Es también con el trabajo con las huellas de
la experiencia - con los documentos en sus dife-
rentes formas - que se compone la narración. Es
en el entrelazamiento de estas dos dimensiones
contempladas en la colección - la de la intriga y la
del trabajo con los vestigios - que la forma de nar-
rar se aproxima a las nebulosas, al mismo tiempo
EIXO TEMÁTICO 1 Narrar por projeto e pelas ocupações -
ou onde as ocupações (des)encontram
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
o projeto

mesa temática
Este artigo coloca em questão narrativas. Reco-
nhece o projeto arquitetônico-urbanístico predo-

NEBULOSAS DO PENSAMENTO minante nas escolas e academias de arquitetu-


ra do mundo como uma narrativa unidirecional:

URBANÍSTICO: NARRAR conjunto de ordens de serviço precisas e advin-


das de um autor que comandam uma produção.
POR OCUPAÇÕES, TRAMAS, Como crítica a esta característica, propomos
outro projeto-narrativa possível. Exploramos for-
VESTÍGIOS E EMBATES mas de narrar pelo projeto que se desviam desta
prática tradicional – onde o projeto representa
a exteriorização exclusiva da subjetividade do
NEBULAE OF URBAN THINKING: WAYS OF NARRATING arquiteto-autor que o concebeu. É preciso que-
brar o monopólio da narrativa de autoria e admitir
NEBULOSAS DEL PENSAMIENTO URBANO: MODOS DE que o arquiteto e urbanista é apenas um entre os
NARRAR vários narradores do projeto. Que o projeto não é
a prática solitária de um único gênio individual,
mas sim um processo coletivo de motivação e
objetivos sociais.

Propõe-se então narrativas de projeto polifôni-


cas que deem voz ao outro, àqueles comumente
considerados estranhos e alheios ao exercício
de projeto, ou mesmo que esses outros em de-
terminadas contextos assumam o protagonismo
do projeto em colaboração com o arquiteto urba-
nista. Para operar na realidade latino-americana
de desigualdade social em que nos encontramos,
faz-se necessária a radical suspensão da narrati-
vidade personalista ensinada dentro da academia
a que se acostumaram os arquitetos nos seis
séculos de influência da recíproca, concomitante
e corrosiva tétrade da modernidade, capitalismo,
colonialidade e racismo.

A busca de outros sentidos de narrativa no de-


bate sobre o projeto e o planejamento urbano
oferece uma resposta à urgência da produção
de novas ferramentas no campo da arquitetura,
principalmente quando se refere às ocupações.
Nesta discussão, é necessário reconhecer que
nossos modelos de ensino e prática profissional
em Arquitetura e Urbanismo baseiam-se ainda
nos ateliês-mestre-aluno da École de Beaux Arts
parisiense do séc. XIX e na suposta superioridade
16º SHCU intelectual do arquiteto. Arquitetura e Urbanismo
30 anos . Atualização Crítica
latino-americanos tomam como referência, de
104 maneira completamente descontextualizada, o
exercício profissional baseado nos paradigmas Finalmente, como sintetiza o conceito de práxis
dos países do Norte global. em Paulo Freire, é preciso pensar sobre o fazer,
fazer a partir do pensar. Sendo assim, o texto toma
A proposta alternativa é produzir novas narrativas como referência a reflexão precedente a partir de
de cidade a partir de novos procedimentos de pro- experiências pedagógicas no âmbito da prática
jeto que possam romper e fazer furos nas bordas projetual acadêmica de pesquisa sobre o fazer-
de um pensamento consensual ainda colonialista. -pensar-projeto e da extensão, fundamentalmente
casos de ocupações dos espaços da cidade pelos
Deseja-se colocar aqui o projeto como uma ante- oprimidos. Falar de avaliação ou interferência ar-
cipação de cenários a partir de narrativas outras quitetônica numa ocupação equivale a considerar
que, sobretudo, possam produzir pensamento o protagonismo de suas configurações éticas e
e participação política sobre a cidade. Espaço sociais, destas identidades que lhes dão feição,
para que cada um possa construir o seu mun- é falar da propagação de uma filosofia ativista
do, dizer sua palavra ou ainda como autonomia, e popular com uma história disseminada pelo
emancipação e descolonização do sujeito como mundo há mais de 60 anos. Tal doutrina abando-
referem Paulo Freire, Jacques Rancière e Aníbal na a estrita especulação teórica para privilegiar
Quijano. Sustenta-se uma premência do desvio praticamente a efetiva transformação da reali-
projetual, onde ele deixa de se preocupar com a dade, ativando no mínimo espaços notadamente
obra acabada e dá atenção ao processo possível; sem uso para instaurar direitos sociais apenas
que não se deixa fechar como resolução definitiva, escritos. Elas são estruturas vivas, ambíguas,
mas que acolhe as divergências e conflitos no dinâmicas, pulsantes, dificilmente controladas,
seu desenvolvimento. A exigência imprescindível para o desespero dos gestores.
de um projeto ético, estético e político que faça
crítica às seguintes questões: i) visão técnico- A proposição alternativa de projeto como narrativa
-científica como pressuposto de eficiência, ii) o do outro deve partir daí, da vigorosa diversidade
mito da posição do arquiteto como um técnico de práticas humanas nas cidades.
“neutro”, iii) a contestação dos conceitos de beleza
e eficiência associados a ética e estética higie-
nista colonizadora, iv) e, por fim, a suspensão de
imagens referenciais (ou das tipologias tomadas
da tradição) que representam a manutenção do
status quo do opressor. Imagens destrutivas de
traços de identidade.

Na sociedade capitalista contemporânea – a era


do capital improdutivo, do neoliberalismo e da
ascensão do neofascismo – o que se tem narrado
sobre a cidade é expressão da visão de todos os
opressores, não só dos letrados ou dos porta-
dores de títulos, mas de uma pequena elite que
detém o poder político-econômico. O exemplo
ideal do arquiteto recorrente no mundo é legítimo
hospedeiro das parasitárias maneiras de viver e
habitar das elites colonizadoras e opressoras. É
o projeto de cidade destes restritivos fragmentos
sociais que se impõe como “consenso possível”.

Assim, para um projeto comprometido com a rea-


lidade social latino-americana, o primeiro passo
seria o questionamento do papel do arquiteto en-
quanto parte do polo opressor. Constatar que o ar-
quiteto não deveria impor sua narrativa para o outro.
EIXO TEMÁTICO 1 Narrar pela trama de ideias, profIssionais
e instituições
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO

Este trabalho apresenta um dos eixos das pes-


quisas que vêm sendo desenvolvidas pelo Núcleo
Cronologia da UFMG o qual tem se debruçado
na compreensão e na produção historiográfica
sobre a institucionalização do planejamento me-
tropolitano em Minas Gerais e sua relação com os
processos de urbanização e metropolizaçao no
período compreendido entre os anos 1950 e 1970.

A problematização da urbanização de Belo Hori-


zonte numa perspectiva metropolitana emerge nos
anos 1950, ainda no período democrático - período
em que cidade duplica em termos populacionais e
apresenta os primeiros traços de conurbação - a
partir da atuação da SAGMACS que pioneiramen-
te aborda a urbanização para além dos limites
municipais propondo métodos, abordagens e es-
tratégias para se pensar e propor o planejamento
metropolitano. Mas é ao longo do regime militar
que o pensar e o fazer em termos metropolitanos
se institucionalizam no âmbito da administra-
ção pública com a criação em 1971 do Grupo de
Planejamento (GP) da Fundação João Pinheiro
posteriormente transformado em Superintendên-
cia de Planejamento Metropolitano (PLAMBEL).

As indagações que orientam as pesquisas do gru-


po se referem às especificidades na concepção
e organização institucional para o planejamento
metropolitano em Minas Gerais e da formação de
planejadores; os diferentes ideais de planejamen-
to mobilizados e as práticas adotadas; a relação
entre as trajetórias individuais e a construção do
espaço institucional na ditadura militar; a pers-
pectiva de construção da participação social em
planejamento no contexto autoritário. A partir
destas questões, os trabalhos do grupo de pes-
quisa vem demonstrando que o planejamento
metropolitano mineiro praticado pelo PLAMBEL
por uma equipe multidisciplinar de sociólogos,
arquitetos, economistas, geógrafos, mesmo du-
rante o regime militar, contava com uma certa
liberdade para pensar e propor o planejamento
metropolitano para além dos termos de referen-
cias e manuais produzidos na escala federal pelos
16º SHCU órgãos centrais. É no cerne dessa liberdade rela-
30 anos . Atualização Crítica
tiva que o PLAMBEL pode experimentar concep-
106 ções, métodos e praticas que seriam importantes
e amplamente utilizados pelas próximas décadas de Habitação Popular, do Conselho Estadual de
até os dias atuais. Desenvolvimento, da Fundação Joao Pinheiro
e seu Grupo de Planejamento Integrado, até a
Ao mesmo tempo que as instituições públicas criação da Superintendência de Planejamento
são compreendidas como uma representação de Metropolitano em 1975, buscando evidenciar seus
poder e, portanto, um patrimônio a ser explorado e embates, conflitos e convergências no processo
objeto de disputa social, também podemos enten- de criação de um órgão de planejamento metropo-
dê-las como representação da própria sociedade litano na administração publica de Minas Gerais.
e materialização das disputas e convergências
entre ideias e práticas, grupos sociais e indivíduos
que atuariam no sentido de favorecer seus ideais
e interesses, públicos ou privados, nos diferentes
contextos. Nesse sentido, não se permite dis-
sociar a dimensão da experiência individual ou
coletiva e suas formas institucionais. Para além
de compreender o planejamento e os processos
urbanos a partir de suas grandes categorias - o
estado, o mercado, a sociedade - busca-se a in-
clusão de circuitos individuais na analise dos es-
paços institucionais através do novelo de relações
sociais que se tecem em torno desses indivíduos
e que se institucionalizam dando-lhe significado.

Pensar e narrar o planejamento metropolitano mi-


neiro pelas tramas passa pelo esforço de desfiar
o manto institucional composto pelo entrelaça-
mento entre ideias, práticas, circuitos pessoais
e profissionais, e os processos políticos e con-
junturais mais amplos, iluminando os embates,
ao dissenso, às divergências e consonâncias que
configuram um espaço comum. A construção
da narrativa se desenvolve a partir de duas di-
mensões - a dimensão dos vestígios, nesse caso,
os documentos produzidos pela instituição, as
leis, relatórios, planos, atas, etc. e a dimensão da
memória, isto é, os relatos orais que permitem a
construção de uma compreensão e perceber as
entrelinhas dos documentos e que dão sentido à
narrativa e a alinhavam. É a partir do encontro, da
conectividade e das colisões dessas dimensões
que se desenha a narrativa.

Este trabalho, em especifico, visa apresentar um


dos resultados da pesquisa que se refere à ins-
titucionalização do planejamento metropolitano
a partir da tecitura entre os indivíduos, as ideias
e as instituições desde a primeira menção ao
planejamento metropolitano em 1958 no âmbito
da administração municipal de Belo Horizonte,
passando pela atuação dos técnicos do governo
do Estado no âmbito dos órgãos como Secretaria
de Trabalho e Cultura Popular, do Departamento
EIXO TEMÁTICO 1 Narrar por vestígio - o urbanismo
dos congressos
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO

O que os vestígios dos Congressos Pan-Ame-


ricanos de Arquitetos (CPAs) permitem indagar
acerca da formação do campo profissional do
urbanismo? O que esses vestígios, lacunares e
seletivos, informam nas narrativas sobre o pen-
samento urbanístico na América e além?

Congressos profissionais reúnem debates de


diferentes teses, posicionamentos e questões
encaradas como comuns e compartilhadas por
um mesmo campo – profissional ou disciplinar.
No caso da arquitetura e do urbanismo, podemos
identificar o aumento significativo da realização
desses eventos nas primeiras décadas do século
XX, quando arquitetos de diferentes países come-
çavam a pautar questões ligadas a legitimidade
de sua atuação e a promulgar normativas para
regulamentar a profissão. De maneira geral, os
congressos eram destacados pelo intercâmbio,
circulação e debate de ideias e soluções para
problemas e questões compartilhadas, mas, so-
bretudo, por serem momentos de consolidação
de um sistema efetivo de colaboração em torno
de uma pauta comum. A presente comunicação
objetiva refletir sobre os modos de narrar por meio
dos vestígios elaborados a partir desse tipo de
encontro, com ênfase nas nebulosas formadas
a partir da realização dos CPAs.

Tradicionalmente entendidos como uma iniciativa


da Sociedade Central de Arquitectos do Uruguai,
os CPAs tiveram sua primeira edição em 1920 e
continuam a ser realizados em diferentes cida-
des da América, como afirmam, pela “renovação
do pensamento em todas as ordens” e “solução
de múltiplos problemas”. Mais do que fóruns de
debate, sua programação contava com eventos
sociais e excursões, de maneira a esboçar per-
cursos em que a cidade-sede se tornava síntese
de qualidades do urbanismo naquela nação. Co-
mitês Executivos publicavam atas, ao final de
cada evento, para registrar e sobretudo difundir
as conclusões gerais sobre cada tema debatido,
além dos discursos proferidos por autoridades
políticas e profissionais e figuras de destaque.
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
Apesar do importante papel dos CPAs na elabo-
108 ração e difusão dessa agenda, busca-se mapear
como, a partir deles, foram realizados eventos nal. Ou seja, um debate que desconhece fronteiras
nacionais que se articulavam aos temas dispu- em seus diálogos, referências e dissensos.
tados no campo disciplinar e profissional do ur-
banismo até meados do século XX. Esse mapea- A elaboração de narrativas que extrapolem essa
mento aponta para dois aspectos significativos: dimensão redutora dos congressos só é possível
um possível compartilhamento de temas, estra- com a análise de outros vestígios articulados à
tégias, pressupostos e objetivos; e o empenho documentação oficial: registros publicados nas
de determinados agentes continentais – sejam páginas de periódicos técnicos, fotografias e ar-
eles profissionais, instituições ou empresas – na tigos publicados na imprensa não especializada,
difusão das numerosas e mesmo divergentes silêncios e ênfases da historiografia. Pretende-
soluções elaboradas para os problemas urbanos. -se revisitar possíveis compartilhamentos de
Essas articulações transnacionais nos permitem temas, estratégias, objetivos e pautas entre os
ultrapassar o binômio nacional versus interna- CPAs e a outros eventos – como o I Congresso de
cional, para discutir em outras bases a noção de Habitação, 1931; I Congresso Panamericano de la
circulação de ideias nos meios profissionais do Vivienda Popular, 1939; I Congresso Brasileiro de
período, tomada como explicação cada vez mais Urbanismo, 1941 – e apontar aproximações entre
recorrente no campo da história urbana, apesar os debates, sem enfatizar preocupações apenas
de pouco precisa. locais. Busca-se, portanto, situar tais diagnósti-
cos locais articulados além das fronteiras em meio
A pluralidade de eventos, temas e experiências a essa rede profissional identificada no campo da
se dilui nas narrativas elaboradas sobre esses arquitetura e do urbanismo no início do século XX.
eventos, quando apoiadas apenas nos vestígios
documentais oficialmente produzidos a partir de Ao analisar os vestígios nas esferas locais e pan-a-
cada edição, reduzem os debates a um arrazoa- mericanas nos debates sobre o urbanismo nesse
do de conclusões dispostas em uma sequência período busca-se ultrapassar narrativas pautadas
na linearidade, valorizando movimentos sincrô-
cronológica. Além disso, a persistência de de-
nicos com múltiplos efeitos. Problematiza-se,
terminados “problemas” identificados por esses
assim, hierarquias e fronteira. A abrangência do
arquitetos é mobilizada em prol de argumentos
debate sobre dimensões do urbano assinala a
que interpretam a América pela chave da ausência
amplitude da circulação de ideias e, sobretudo, do
– seja ela de profissionais habilitados para solu-
debate constitutivo do próprio campo, em meio
cionar tais problemas, seja de condições políticas
a pautas compartilhadas, posições plurais e po-
para a implementação dessas conclusões. Menos
lêmicas colocadas em embate nessas ocasiões.
do que promotores do consenso, esses congres-
sos eram marcados pelas disputas e embates
entre diferentes posições e concepções acerca
da arquitetura, do urbanismo e suas práticas. En-
fatizar a dimensão plural e heterogênea do campo
profissional nesse período significa ir além das
teleologias que pretendem imputar uma lineari-
dade que converge nos cânones modernistas e
elegem um perfil profissional como modelo. Ou
seja, a preocupação, a partir do estudo dos Con-
gressos Pan-Americanos de Arquitetos, está em
indagar ao mesmo tempo sobre como os vestígios
deixam entrever as dinâmicas do próprio debate,
sobre como se construíram em resposta ou re-
ação a ele, bem como o quanto interferiam nas
próprias narrativas sobre essa história. Analisar
a configuração do campo do urbanismo a partir
dos debates possibilita a apreensão de um campo
dinâmico, arquitetado internacionalmente e, em
certas questões, de caráter também transnacio-
EIXO TEMÁTICO 1 Narrar POR EMBATES - PARADIGMAS DE
FORMAÇÃO PROFISSIONAL EM URBANISMO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
NO BRASIL

Este texto procura investigar possíveis conexões


entre instituições, normas e iniciativas de ensi-
no para “revelar” quais paradigmas moldaram,
em diferentes períodos, “a formação profissional
em urbanismo no Brasil”, e o percurso histórico
que ganhou corpo e consistência, em especial, a
partir de 1935, e que está conectado às ideias e
discursos que antecederam e alimentaram a sua
institucionalização.

Identifica-se quatro diferentes modelos de for-


mação profissional em urbanismo existentes em
Instituições de Ensino Superior (IES) brasileiras,
a partir de 1935, são explorados e interpretados
como “paradigmas”: i) cursos de urbanismo para
graduados (arquitetos e engenheiros); ii) cursos
de pós-graduação em planejamento urbano e
regional; iii) cursos de graduação em arquitetura
e urbanismo; iv) curso de bacharelado em Urba-
nismo da Universidade do Estado da Bahia uma
instituição pública.

Duas características permeiam as estruturas


epistemológicas desses modelos e são ressalta-
das como ponto de convergência ou divergência
entre eles: uma é a concepção do urbanismo como
disciplina construída com a transferência dos
objetos de conhecimento e métodos de outras
disciplinas (primeiro arquitetura e/ou engenharia;
depois direito; economia; geografia; sociologia;
etc.; e por fim, arquitetura); outra o anuncio (sem
a enunciação) da concepção do urbanismo como
disciplina autônoma com um objeto de conheci-
mento e um método próprios.

O emprego do conceito de paradigma como cate-


goria de análise das formações profissionais em
Urbanismo no Brasil, permite observar a existên-
cia de unidades históricas e pedagógicas gerado-
ras de diferentes concepções epistemológicas do
urbanismo e, consequentemente, de diferentes
formas de agir sobre a cidade, que mantém re-
lações de convergência, continuidade, ruptura
16º SHCU e oposição entre si e compõem uma estrutura
30 anos . Atualização Crítica
social instável e heterogênea que denominamos
110 de campo intelectual do urbanismo no Brasil.
A narração da história do campo intelectual do ur- REFERÊNCIAS
banismo no Brasil ressaltando esses paradigmas
de formação profissional evidencia construções ATIQUE, F. Congresso Pan-Americano de Arqui-
que certamente moldaram e/ou influenciaram as
tetos: ethos continental e herança europeia na
práticas de agentes técnicos e/ou acadêmicos
formulação do campo do planejamento (1920-
do campo sem que nem eles mesmos tivessem
1960).Urbana - Revista Eletrônica do Centro
total conhecimento dos pressupostos e regras
Interdisciplinar de Estudos da Cidade, v. 6, p.
que os guiavam. A emergência dos paradigmas,
1-19, 2014.
separada por frações de tempo relativamente
curtas em termos históricos, bem como sua co-
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de
existência, faz com que não seja raro encontrar
Janeiro: Paz e Terra, 1987.
profissionais que concluíram diferentes etapas
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16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

112
113
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
EIXO TEMÁTICO 1 RESUMO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
A narrativa, como modo de organização discursi-
va, tem ocupado o conhecimento histórico e tem
mesa temática mobilizado debates que multiplicam perguntas
sobre as próprias formas de narrar. Uma das pri-
meiras ponderações sobre o tema, por exemplo,
NEBULOSAS DO Heródoto, apresenta três motivos para justificar
a narrativa: “para que os feitos dos homens se
PENSAMENTO URBANÍSTICO: não desvaneçam com o tempo, nem fiquem sem
renome as grandes e maravilhosas empresas, re-
NARRAR POR RELAÇÕES, alizadas quer pelos Helenos quer pelos Bárbaros;
e sobretudo a razão por que entraram em guerra
TRANSVERSALIDADES, uns com os outros [...].” (Heródoto, Histórias).

PAISAGENS E DISCURSOS Apesar de explicitar para que e porque narrava,


seu texto nada tem do sentido apaziguador suge-
rido em sua resposta. Nele, entrecruza numero-
NEBULAE OF URBAN THINKING: WAYS OF NARRATING
sas questões acerca do lugar dos testemunhos,
das memórias, da alteridade, das razões das nar-
NEBULOSAS DEL PENSAMIENTO URBANO: MODOS DE rativas, de modo a se justificar o título da obra
NARRAR mantido no plural: são histórias.

Não apenas o que se narra, a relatividade de pon-


CERASOLI, Josianne F. tos de vistas e o estatuto da verdade são tidos
Coord. como importantes quando se escreve. Ainda na
Doutora; CIEC/Unicamp Antiguidade, Aristóteles amplia essas questões:
cerasoli@unicamp.br
como se narra? Como as palavras ganham sentido
quando articuladas? A partir daí distingue catego-
IZELI, Rafaela; VIEIRA, Leonardo rias de palavras e de gêneros de discurso, e acres-
Doutoranda; PPGAU-UFBA; Iniciação Científica; FAUFBA centa à pluralidade a alteridade, pensada nas re-
rafaela.izeli@hotmail.com; l.ilustracoes@gmail.com flexões dedicadas à retórica, à poética e à política.

CRUZ, Luciana Saboia Fonseca; TREVISAN, Ricardo Longe de propor uma genealogia das reflexões
Doutora; FAU-UnB; Doutor; FAU-UnB
sobre narrativa, essas observações parecem
lucianasaboiacruz@gmail.com; prof.trevisan@gmail.com oportunas por serem mobilizadas, contrastadas,
e intensamente criticadas tanto por historiado-
COURI, Aline; ORTIZ, Daniela res quanto por filósofos, sobretudo aqueles en-
volvidos nas nebulosas intelectuais dedicadas
Doutora; leU-PROURB/UFRJ; Doutora leU/PROURB-UFRJ
– CCSA/Universidade de Frankfurt
às análises de discurso desde os anos 1960-70 e
mario.mag1978@gmail.com; adriana_caula@id.uff.br suas imbricações com o agir e o pensar. A des-
naturalização da narrativa, a reflexão do campo
CASTRO, Ana Claudia Veiga de; SILVA, Joana Mello de de conhecimento sobre suas próprias práticas,
Carvalho e LIRA, José Tavares Correia de a desconstrução de fronteiras entre os campos,
os deslocamentos teóricos no campo do conhe-
Doutora; FAU-USP, anacvcastro@usp.br; Doutora;
cimento e da historiografia são heranças que
FAU-USP; Titular; FAU-USP
anacvcastro@usp.br; joselira@usp.br continuam a indagar o narrar.

Relações entre linguagem e poder; considera-


16º SHCU ções sobre sujeito e subjetividade; condições de
30 anos . Atualização Crítica
enunciação e possibilidade da verdade histórica;
114 são temas que têm atravessado vários campos
disciplinares. Cada vez mais, o ofício do historia- campo do urbanismo requer que, ao lado do texto,
dor – e inclusive do historiador da arquitetura e do se interpele também as imagens e os dispositivos
urbanismo – tem sido colocado diante de pergun- materiais e imateriais, entendendo-os como nar-
tas que atualizam antigas questões sobre práti- rativas e perguntando a quem e a que servem?
cas e regimes de memória e de temporalização: O que perpetuam? Quando/como transgridem?
quem narra? Para que(m)? Sobre o que se narra?
Na atualidade, as formas de narrar têm passado Nesta sessão os modos de narrar se cruzam in-
contornavelmente com uma metáfora, expressa
pelo crivo de embates sobre diferentes práticas
ainda na coletânea: a ideia de nebulosa. Ela evoca
– corporais, discursivas, visuais, políticas. Notam-
as configurações possíveis, embora sempre mo-
-se deslocamentos epistemológicos provocados
ventes, que pressupõe cada nuvem e conjunto de
por esses embates no interior das discussões
nuvens nas suas formações, no seu ir-e-vir, nos
decoloniais, graças a uma historicização e crítica
seus choques, em sua estabilidade relativa, em
rigorosas acerca de quem narra e pode falar. Esse
sua capacidade de se transmutar ora nas tempes-
estado de coisas sinaliza o quanto a questão mo-
tades que varrem os céus das ideias feitas, ora len-
biliza a sensibilidade contemporânea e quão per-
tamente na chuva fina que irriga o solo e o fertiliza.
tinente é o tema quando se aproxima questões de
narrativa daquelas do conhecimento científico, Experiências, tempos e sistemas abertos e con-
histórico, antropológico e político. Trazida ao cam- flituais de interações, de relações, de nexos, de
po do urbanismo, essa discussão não se resume sentidos, conduzem as aproximações sobre mo-
ao debate sobre qual história do urbanismo narrar. dos de narrar reunidos em torno das ideias de in-
Ao tomar como foco a cidade, locus privilegiado da triga, vestígios que insuflam a formação das ne-
vida social e política, o urbanismo carrega para a bulosas. É por meio da intriga – ou o modo como
narrativa seu aspecto múltiplo e transdisciplinar. miramos e construímos ou montamos o objeto a
partir de questões – que se alinhava o narrado,
Além aproximar mais uma vez essas indagações com todas as instabilidades que as questões e
de pesquisas sobre história e historiografia do intuições podem provocar. É também com o tra-
urbanismo, esta sessão temática é motivada balho com os vestígios da experiência – com os
pelo propósito de trazer ao debate público alguns documentos em suas distintas formas – que se
temas e aspectos desenvolvidos a partir de um compõe a narrativa. É no entrelaçamento dessas
trabalho reunido no terceiro tomo da coletânea duas dimensões contempladas na coletânea – a da
Nebulosas do pensamento urbanístico: modos de intriga e do trabalho com os vestígios – que o modo
narrar. Depois dos tomos sobre Modos de pensar de narrar aproxima nebulosas, ao mesmo tem-
e Modos de fazer, buscamos discutir a diversidade po que outras permanecem soltas, desviantes.
de entendimentos sobre as intrigas que emergem
na trama e na tessitura histórica. São indagações O esforço de montagem das intrigas é uma sín-
advindas de experiências de pesquisa e escrita tese, e é ela que sustenta toda narração, como
dos diferentes grupos que constroem essa inves- lembra Ricoeur. Objetivos, causas, acasos são
tigação coletiva sobre a formação do pensamento reunidos, graças aos vestígios acumulados da
urbanístico. Busca-se considerar a multiplicidade experiência, sob a unidade temporal de uma
de visadas sobre o urbanismo, indagar sobre as ação que assim parece ser total e completa. “É
formas de vestígios que sustentam narrativas e esta síntese do heterogêneo que aproxima a nar-
interrogar sobre o que permanece e desaparece, rativa da metáfora.” (Ricoeur, Tempo de narrativa
ou seja, as sedimentações de saberes comuns e a 1). Contudo, parece ser desejável, como se tenta
parte de fragmentos e eventuais desvios. aqui, não esquecer que são as nebulosas desvian-
tes que, abrindo espaço, mantêm o imprevisível.
A atenção à linguagem, no ato de interpretar,
compreender e, sobretudo, trazer à tona a con-
figuração do pensamento urbanístico, coloca, NEBULOSAS DO PENSAMENTO URBANÍSTICO NARRAÇÃO
como se vê, as narrativas em um campo de inda- HISTÓRIA DO URBANISMO HISTORIOGRAFIA
gações que é específico, não por ser especializa-
do, mas, por sua irredutível pluralidade. Múltiplo,
plural, citadino e urbano, concreto e abstrato, o
EIXO TEMÁTICO 1 ABSTRACT
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
The narrative, as a mode of discursive organiza-
tion, has occupied historical knowledge and has
mobilized debates that multiply questions about
the very ways of narrating. One of the first consi-
derations on the subject, for example, Herodotus,
presents three reasons to justify the narrative: “so
that the deeds of men do not fade over time, nor do
the great and marvelous companies, carried out ei-
ther by Helen or by the Barbarians, become without
renown; and above all the reason why they went
to war with each other [...]. (Herodotus, Stories).

(Herodotus, Stories). Although he explained why and


for what reason he narrated, his text has nothing of
the soothing meaning suggested in his reply. In it,
he interpolates numerous questions about the pla-
ce of testimonies, of memories, of otherness, of the
reasons for the narratives, in order to justify the ti-
tle of the work kept in the plural: they are stories.

Not only what is narrated, the relativity of points


of view and the status of truth are considered im-
portant when writing. Still in antiquity, Aristotle
expands on these questions: how do you narrate?
How do words make sense when articulated? From
there he distinguishes categories of words and
genres of discourse, and adds to the plurality the
otherness, thought of in the reflections dedicated
to rhetoric, poetics and politics.

Not only what is narrated, the relativity of points


of view, and the status of truth are considered im-
portant when writing. Still in antiquity, Aristotle
expands on these questions: how do you narrate?
How do words gain meaning when articulated?
From there he distinguishes categories of words
and genres of discourse, and adds to the plurality
the otherness, thought of in the reflections dedica-
ted to rhetoric, poetics and politics.

Far from proposing a genealogy of reflections on


narrative, these observations seem timely because
they are mobilized, contrasted, and intensely cri-
ticized by both historians and philosophers, espe-
cially those involved in the intellectual nebulae de-
dicated to discourse analysis since the 1960s-70s
and their imbrications with acting and thinking. The
denaturing of narrative, the reflection of the field of
16º SHCU knowledge on its own practices, the deconstruc-
30 anos . Atualização Crítica
tion of boundaries between fields, the theoretical
116 shifts in the field of knowledge and historiography
are heritages that continue to question narration. figuration of urban thought, places the narratives
in a field of inquiry that is specific, not because it is
Relations between language and power; conside- specialized, but because of its irreducible plurality.
rations about subject and subjectivity; conditions Multiple, plural, urban and urban, concrete and abs-
of enunciation and possibility of historical truth; tract, the field of urbanism requires that, alongside
are themes that have crossed several disciplinary the text, images and material and immaterial devi-
fields. More and more, the office of the historian ces are also intertwined, understanding them as nar-
- and even the historian of architecture and urba- ratives and asking who and what they serve? What
nism - has been placed before questions that up- do they perpetuate? When/how do they transgress?
date old questions about practices and regimes of
memory and temporalization: who narrates? For In this session, the ways of narrating are inevita-
whom? What is the narrative about? bly crossed with a metaphor, expressed still in the
collection: the idea of nebula. It evokes the possi-
Nowadays, the ways of narrating have passed ble configurations, although always moving, that
through the sieve of clashes about different prac- presuppose each cloud and set of clouds in their
tices - corporal, discursive, visual, political. Epis- formations, in their coming and going, in their sho-
temological dislocations caused by these clashes cks, in their relative stability, in their capacity to
within the decolonial discussions are noted, thanks transmute themselves sometimes in the storms
to a rigorous historicization and critique of who that sweep the skies of the ideas made, sometimes
narrates and can speak. This state of affairs sig- slowly in the fine rain that irrigates the soil and fer-
nals how much the issue mobilizes contemporary tilizes it.
sensitivity and how pertinent the subject is when it
approaches narrative issues from those of scienti- Experiences, times and open and conflictual sys-
fic, historical, anthropological and political knowle- tems of interactions, relationships, nexus, senses,
dge. Brought to the field of urbanism, this discus- lead the approaches on ways of narrating gathered
sion is not limited to the debate about which history around the ideas of intrigue, vestiges that inflate the
of urbanism to narrate. By focusing on the city, the formation of the nebulae. It is through intrigue - or
privileged locus of social and political life, urbanism the way we look at and build or assemble the object
carries to the narrative its multiple and transdisci- from questions - that the narration is aligned, with
plinary aspect. all the instabilities that questions and intuitions can
provoke. It is also with the work with the traces of
In addition to bringing together once again these experience - with the documents in their different
research questions about history and historiogra- forms - that the narrative is composed. It is in the
phy of urbanism, this thematic session is motiva- interweaving of these two dimensions contempla-
ted by the purpose of bringing to the public debate ted in the collection - that of intrigue and the work
some themes and aspects developed from a work with the traces - that the way of narrating approxi-
gathered in the third volume of the collection Nebu- mates nebulae, while others remain loose, deviant.
losas do pensamento urbanístico: modos de narrar.
After the volumes on Ways of Thinking and Ways of The effort to assemble the intrigues is a synthesis,
Doing, we seek to discuss the diversity of unders- and it is it that sustains all the narration, as Ricoeur
tanding about the intrigues that emerge in the plot reminds us. Objectives, causes, hazards are gathe-
and the historical tessitura. These are questions red, thanks to the accumulated traces of experien-
arising from the research and writing experiences ce, under the temporal unity of an action that thus
of the different groups that build this collective in- seems to be total and complete. “It is this synthesis
vestigation on the formation of urbanistic thought. of the heterogeneous that brings the narrative clo-
The aim is to consider the multiplicity of visions ser to the metaphor. (Ricoeur, Time of Narrative 1).
about urbanism, to inquire about the forms of tra- However, it seems desirable, as one tries here, not
ces that sustain narratives, and to question what to forget that it is the deviant nebulae that, by ope-
remains and disappears, that is, the sedimentation ning space, keep the unpredictable.
of common knowledge and the part of fragments
and eventual deviations.
NEBULAE OF URBAN THOUGHT NARRATION
The attention to language, in the act of interpreting, HISTORY OF URBANISM HISTORIOGRAPHY
understanding and, above all, bringing out the con-
EIXO TEMÁTICO 1 RESUMEN
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
La narración, como modo de organización discur-
siva, ha ocupado el conocimiento histórico y ha
movilizado debates que multiplican las preguntas
sobre las formas mismas de narrar. Una de las pri-
meras consideraciones sobre el tema, por ejemplo,
Herodoto, presenta tres razones para justificar la
narración: “para que las acciones de los hombres
no se desvanezcan con el tiempo, ni las grandes y
maravillosas compañías, llevadas a cabo por He-
lena o por los bárbaros, se vuelvan sin renombre;
y sobre todo la razón por la que fueron a la guerra
unos con otros [...]. (Herodoto, Historias).
Aunque explicó por qué y para qué narró, su texto
no tiene nada del significado tranquilizador suge-
rido en su respuesta. En ella interpola numerosas
preguntas sobre el lugar de los testimonios, los
recuerdos, la alteridad, los motivos de los relatos,
para justificar el título de la obra que se mantiene
en plural: son historias.
No sólo lo que se narra, la relatividad de los pun-
tos de vista y el estado de la verdad se consideran
importantes al escribir. Aún en la antigüedad, Aris-
tóteles amplía estas preguntas: ¿cómo se narra?
¿Cómo tienen sentido las palabras cuando se arti-
culan? A partir de ahí distingue categorías de pala-
bras y géneros de discurso, y añade a la pluralidad
la alteridad, pensada en las reflexiones dedicadas a
la retórica, la poesía y la política.
Lejos de proponer una genealogía de reflexiones
sobre la narrativa, estas observaciones parecen
oportunas porque son movilizadas, contrastadas
e intensamente criticadas tanto por historiadores
como por filósofos, especialmente los que se ocu-
pan de las nebulosas intelectuales dedicadas al
análisis del discurso desde los años 60 y 70 y sus
imbricaciones con la acción y el pensamiento. La
desnaturalización de la narración, la reflexión del
campo del conocimiento sobre sus propias prác-
ticas, la deconstrucción de las fronteras entre los
campos, los cambios teóricos en el campo del co-
nocimiento y la historiografía son herencias que
siguen cuestionando la narración.
Las relaciones entre el lenguaje y el poder; las con-
sideraciones sobre el sujeto y la subjetividad; las
condiciones de enunciación y la posibilidad de la
verdad histórica; son temas que han atravesado
varios campos disciplinarios. Cada vez más, el ofi-
16º SHCU
cio de historiador - e incluso el de historiador de la
30 anos . Atualização Crítica
arquitectura y el urbanismo - se ha colocado ante
118 preguntas que actualizan las viejas cuestiones
sobre las prácticas y los regímenes de memoria y En esta sesión, las formas de narrar se cruzan ine-
temporalización: ¿quién narra? ¿Para qué? ¿De qué vitablemente con una metáfora, expresada aún
trata la narración? en la colección: la idea de una nebulosa. Evoca las
posibles configuraciones, aunque siempre en mo-
Hoy en día, las formas de narrar han pasado por el vimiento, que presuponen cada nube y grupo de nu-
tamiz de los choques sobre las diferentes prácticas bes en sus formaciones, en su ir y venir, en sus cho-
- corporales, discursivas, visuales, políticas. Las ques, en su relativa estabilidad, en su capacidad de
dislocaciones epistemológicas causadas por estos transmutarse a veces en las tormentas que barren
choques en el seno de las discusiones descolonia- los cielos de las ideas hechas, a veces lentamente
les son notorias, gracias a una rigurosa historiza- en la fina lluvia que riega el suelo y lo fertiliza.
ción y crítica de quien narra y puede hablar. Esta
situación indica hasta qué punto el tema moviliza la En esta sesión, las formas de narrar se cruzan ine-
sensibilidad contemporánea y cuán pertinente es vitablemente con una metáfora, expresada aún en
el tema cuando se abordan las cuestiones narra- la colección: la idea de nebulosa. Evoca las configu-
tivas con las del conocimiento científico, histórico, raciones posibles, aunque siempre en movimiento,
antropológico y político. Llevado al campo del urba- lo que presupone a cada nube y conjunto de nubes
nismo, esta discusión no se limita al debate sobre en sus formaciones, en su ir y venir, en sus cho-
qué historia del urbanismo narrar. Al centrarse en ques, en su relativa estabilidad, en su capacidad de
la ciudad, lugar privilegiado de la vida social y po- transmutarse a veces en las tormentas que barren
lítica, el urbanismo lleva a la narración su aspecto los cielos de las ideas hechas, a veces lentamente
en la fina lluvia que riega el suelo y lo fertiliza.
múltiple y transdisciplinario.
Experiencias, tiempos y sistemas abiertos y con-
Además de reunir una vez más estas cuestiones de
flictivos de interacciones, relaciones, conexiones,
investigación sobre la historia y la historiografía del
sentidos, conducen los planteamientos sobre for-
urbanismo, esta sesión temática está motivada por
mas de narrar reunidos en torno a las ideas de intri-
el propósito de llevar al debate público algunos te-
ga, vestigios que inflan la formación de las nebulo-
mas y aspectos desarrollados a partir de una obra
sas. Es a través de la intriga - o de la forma en que
recogida en el tercer volumen de la colección Nebu- miramos y construimos o ensamblamos el objeto a
losas do pensamento urbanístico: modos de narrar. partir de las preguntas - que la narración se alinea,
Después de los volúmenes sobre Formas de pensar con todas las inestabilidades que las preguntas y las
y Formas de hacer, buscamos discutir la diversidad intuiciones pueden provocar. Es también con el tra-
de comprensión sobre las intrigas que surgen en la bajo con las huellas de la experiencia - con los docu-
trama y la tesitura histórica. Estas son preguntas mentos en sus diferentes formas - que se compone
que surgen de las experiencias de investigación y la narración. Es en el entrelazamiento de estas dos
escritura de los diferentes grupos que construyen dimensiones contempladas en la colección - la de la
esta investigación colectiva sobre la formación del intriga y la del trabajo con los vestigios - que la for-
pensamiento urbanístico. Se trata de considerar ma de narrar se aproxima a las nebulosas, al mismo
la multiplicidad de visiones sobre el urbanismo, de tiempo que otras permanecen sueltas, desviadas.
indagar sobre las formas de rastros que sustentan
las narraciones y de cuestionar lo que permanece El esfuerzo por ensamblar las intrigas es una sín-
y desaparece, es decir, la sedimentación del cono- tesis, y es lo que sostiene toda la narración, como
cimiento común y la parte de fragmentos y eventu- nos recuerda Ricoeur. Los objetivos, las causas,
ales desviaciones. los peligros se reúnen, gracias a las huellas acu-
muladas de la experiencia, bajo la unidad temporal
La atención al lenguaje, en el acto de interpretar, de una acción que así parece ser total y completa.
comprender y, sobre todo, sacar a la luz la confi- “Es esta síntesis de lo heterogéneo lo que acerca la
guración del pensamiento urbano, sitúa las narra- narración a la metáfora. (Ricoeur, Time of Narrative
ciones en un campo de investigación específico, no 1). Sin embargo, parece deseable, como se intenta
por su especialización, sino por su pluralidad irre- aquí, no olvidar que son las nebulosas desviadas las
ductible. Múltiple, plural, urbano y urbano, concreto que, al abrir el espacio, mantienen lo impredecible.
y abstracto, el campo del urbanismo requiere que,
junto al texto, se interpolen también las imágenes
y los dispositivos materiales e inmateriales, en- NEBULOSAS DEL PENSAMIENTO URBANO NARRACIÓN
tendiéndolos como narraciones y preguntándose HISTORIA DEL URBANISMO HISTORIOGRAFÍA
a quién y a qué sirven? ¿Qué es lo que perpetúan?
¿Cuándo y cómo transgreden?
EIXO TEMÁTICO 1 narrar por relações
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Diante dos 17 anos de existência da plataforma
online Cronologia do Pensamento Urbanístico –
mesa temática http://www.cronologiadourbanismo.ufba.br/ –,
a equipe da UFBA resolveu debruçar-se sobre a
construção coletiva e desviante do próprio site.
NEBULOSAS DO Ao chamar a atenção para a circulação sistêmica
e, muitas vezes, sincrônica ou anacrônica, de
PENSAMENTO URBANÍSTICO: ideias entre determinados círculos urbanísticos,
formando vastas redes de intercâmbio intelectual,
NARRAR POR RELAÇÕES, acadêmico, científico e artístico que atuam de

TRANSVERSALIDADES, maneira complexa, buscamos entrever a platafor-


ma, portanto, como um possível modo relacional

PAISAGENS E DISCURSOS de narrar uma História do Urbanismo. Dentro de


uma reflexão historiográfica, entendemos ser
necessária a compreensão do site enquanto um
NEBULAE OF URBAN THINKING: WAYS OF NARRATING aparato técnico que, de maneira distinta dos mo-
dos convencionais de publicação, faz circular e
NEBULOSAS DEL PENSAMIENTO URBANO: MODOS DE comunicar parte dos esforços teóricos e meto-
NARRAR dológicos do grupo.

Seja a partir das diversas possibilidades de lei-


turas acumuladas, dos verbetes, painéis crono-
lógicos e geográficos ou da tentativa de sinte-
tizar a metáfora das nebulosas, o site convida
o leitor a exercitar um “pensamento nebuloso”
sobre o urbanismo. Decerto, podemos apontar
que a construção de “nebulosas” (PEREIRA, 2018)
– compreendendo-as como um modo relacional
de conhecimento, como um processo que nos
permite articular discursos, narrativas e sentidos,
além de evidenciar convergências e conflitos no
pensamento urbanístico – permeia muito o nos-
so modo de narrar, pensar e fazer a pesquisa. A
própria configuração do site, no qual nuvens se
adensam e se espalham, conformando distintas
constelações a cada “acontecimento” manipulado
ou acionado, já nos permite notar uma confluência
entre este pensamento e a nossa ferramenta.
Trata-se, exatamente, de um processo relacional,
em que nebulosas se aproximam e se distanciam
à medida que ideias circulam e enquanto bio-
grafias, projetos, eventos, fatos relevantes ou
publicações são inseridos.

Ao entendermos o próprio exercício e prática de


escrita da história como ação intelectual que se
16º SHCU desenrola no campo da política, das escolhas e
30 anos . Atualização Crítica
dos jogos de visibilidade, concentramo-nos em
120 pensar narração e história de modo a nos furtar
de uma tradição historicista calcada na escrita e observa que a alteridade apesar de recalcada “[...]
vigorosamente ecoada pela perspectiva hegelia- fica marcada, inclusive no trabalho que a reabsor-
na. Tradição que nos conta a história a transcorrer ve” (2016, p. 183). Se por um lado a História mantém
linearmente com um único sentido racional de certa distância pela encenação de variantes – e
emancipação humana, a forjar uma narrativa com não mais diferenças –, mantidas marginais com
a pretensa reconstrução totalizante do passado e a condição de serem assimiláveis; e por outro
da fixação dos momentos históricos em quadros é capaz de multiplicar as marcas da alteridade
fechados, estáveis, resolvidos em correntes, pelos seus próprios sistemas de códigos e proce-
estilos e escolas que se superam umas às outras dimentos históricos – datação, nomes próprios,
de maneira consecutiva. Dentro do contexto de citações, detalhes secundários, etc. –, a escrita
revisão historiográfica moderna, quais os debates da História, estaria elaborando continuamente
teóricos, práticos, técnico-metodológicos que uma espécie de teatro da diferença, apesar dos
os modos relacionais de escrita da História a cortes, triagens e deslocamentos.
partir da Plataforma Cronologia do Pensamento
Urbanístico provocariam? Tais gestos e procedimentos inerentes à escrita
da História não são neutros, e, portanto, respon-
Para o historiador francês Michel de Certeau dem a uma atitude voluntarista frente ao passado
(2017), a História moderna, assim como as ci- do qual se distingue. Nesta triagem entre o que
ências ditas “humanas” – etnologia, psiquiatria, pode ser compreendido e aquilo que deve ser
pedagogia, medicina, e ousaríamos incluir tam- esquecido, o que é considerado como não perti-
bém o urbanismo – emergem simultaneamente e nente permanece desprezado como dejeto que,
desdobram-se a partir de relações heterológicas entretanto, retorna nas franjas do discurso ou
ao transformar o espaço do outro – o selvagem, nas suas falhas. Estes dejetos, como lapsos na
o louco, o infante, o enfermo, o passado – num própria sintaxe construída pela lei de um lugar
campo de expansão para um sistema de produção seriam, de acordo com Certeau (2017), sobrevi-
de saber. Diante da cisão de um sujeito e de um vências ou resistências que perturbam, mesmo
objeto de operação, de um saber que contem que discretamente, os sistemas de interpretação
um discurso e o corpo que o sustenta, ou ainda e ordenação do “progresso”. Como o retorno de
de um presente separado de um antigo e de um um recalcado, estaríamos diante deste lugar de
passado a ser compreendido, a História moderna falha, ou seja, nos defrontaríamos, desta maneira
ocidental não cessa de produzir cortes a partir e com os vestígios e marcas daquilo que foi consi-
no interior da escrita. derado impensável em determinado momento da
História para que uma nova identidade pudesse
A cabo de levar o outro – o passado – a uma com- ser forjada.
preensão presente, reduzindo-o a significante
inteligível e assimilável para suprimir seu perigo, Se relacionar não é reconstituir a totalidade de um
a História moderna ocidental, por consequência, acontecimento, questionamo-nos: como as rela-
acaba por paradoxalmente eliminar a alteridade ções poderiam desvelar as falhas dos processos
que parecia ser o postulado de seu próprio empre- homogeneizantes e fazer ver suas resistências e
endimento. Nas vias destes paradigmas, Michel sobrevivências? Sem receios de assumir os des-
de Certeau (2016) aponta-nos como problemas vios como método, tal como nos sugere Walter
historiográficos os processos de homogeneiza- Benjamin (2013), compreendemos a Plataforma
ção e de transformação da própria diferença em como uma biblioteca de intensa medialidade,
objeto neutralizado como um dado, um passado que demanda do espectador participação para
verificável e deslocado como fato que conduzido a exploração e compreensão imaginativa de suas
uma razão, por uma série de operações, torna-se lógicas possíveis de organização fragmentária e
compreensível. intervalar. Quando apresentamos sob o mesmo
fato relevante, evento, projeto, publicação, ou
Certeau (2016), entretanto, alerta-nos sobre como biografia, distintas interpretações históricas ao
estes processos homogeneizantes e totalizado- longo do tempo e enxertamos, no interior das
res sempre falham. Apesar do impulso paradoxal narrativas mais cristalizadas, os dejetos, restos,
de eliminação da diferença, o historiador francês marcas, vestígios e fragmentos por elas recal-
EIXO TEMÁTICO 1 cadas, estaria a Plataforma a encenar um teatro
da diferença nebuloso? Um modo relacional de
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO conhecimento e de narração sugere apropriarmo-
-nos do risco do anacronismo (LORAUX, 1992), da
imaginação como cilada (RICOUER, 2007), já que
certa tradição filosófica sempre a colocou como
um modo de conhecimento produtor do equívoco,
e também de uma certa equivocidade controlada
(DE CASTRO, 2015) para fazer ver as relações de
forças, de disputas e sobrevivências, que por
vezes são apagadas e recalcadas das narrativas
teleológicas e do discurso histórico edificante
e apologético que confirmam a continuidade da
dominação como bem nos lembra Jeanne Marie
Gagnebin (2014). De que modo tais esforços teó-
ricos-práticos-técnicos e sobretudo relacionais
poderiam nos abrir frestas para desencobrir os
momentos revolucionários do curso da história,
escrevendo-a a contrapelo (BENJAMIN, 2012)?

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

122
Narrar por Transversalidades causal ou evolutiva levou a que se esquecesse e
se silenciasse esse desvio indeterminado e im-
previsível, considerando-o, em termos científicos
Narrar por transversalidades é um modo de agir e durante séculos, igual a zero, o que significou
e pensar atravessado, transverso. Talvez seja até ignorá-lo. Por outro lado, eidôlon permitiu-lhe
mesmo um modo de insistir em dizer que a posi- evocar um pensamento a partir de como os sen-
ção de lateralidade e de desvio é o que move o tra- tidos se pensam com o mundo e que, ao mesmo
balho do historiador em sua constante busca de tempo, configura imagens, aparências, reflexos,
pensar outras formas de presente. De todo modo, memórias.
é um agir que também o define, isto é, constrói sua
identidade, entendida não como algo dado, ou um Entre clinâmen e eidôlon o pensamento atenta-
fundamento de si, mas como o norte de suas pró- ria não só para o extremamente pequeno, mas
prias buscas e que lhe constituem passo a passo. se abriria para a ideia de fluxo, de fragilidade,
de instabilidade, de turbulência, de água. Para
Pensar, Agir, Narrar por Transversalidades, signifi- aquele que se volta para uma reflexão sobre prá-
ca, assim, reconhecer e advogar outras formas de ticas e gestos de grande incidência na vida social
conhecimento e buscar transgredir e historicizar e coletiva - como a arquitetura e o urbanismo
os limites de sistemas de pensamento que se – e que já não se perguntam sobre estruturas
imiscuíram de tal forma nas experiências mais temporariamente instáveis-estáveis e que se
banais que estão presentes não só nas práticas autoregulam, mas dentre as quais se inserem os
correntes da arquitetura e do urbanismo, mas próprios gestos urbanos em sua intencionalidade
até mesmo se reproduzem nos dicionários, ainda e escolhas, apontar a pregnância de uma visão
que com ambiguidades. de mundo que silencia as incertezas continua a
ser urgente e necessário.
Transversal -
Choay (1980), frequentando Alberti, apostou no
a. Cujo caminho é obliquo tendo algo como referen-
lugar do desejo de um edificar contínuo - o ins-
te: avenida transversal. Que atravessa algo tendo
taurar e re-instaurar permanente da vida coletiva,
alguma coisa como referente, não obrigatoriamen-
mas que com uma prática funcionalista que se
te, na oblíqua. Diz-se de uma rua que atravessa
delineia bem antes do século XX, quando se tor-
uma via principal ou nesta termina.
na hegemônica, parece ter sido ora deixado em
s. Reta que atravessa dois pontos de uma curva segundo plano ora absolutizado e hipertrofiado,
pelas narrativas historiográficas que lhe deram
Michel Serres (1977), já há décadas, foi buscar em sustentação. Nada disso teria valor de atualidade
Lucrécio e em palavras arcaicas gregas e latinas se tanto uma certa de visão de ciência pouco
- como as noções de clinâmen e de eidôlon – e no complexa de par com essa tradição discursiva
cálculo infinitesimal argumentos, não para tomar não continuasse desencarnando o habitar e o
partido entre definições hesitantes - oblíquas, não construir ao privilegiar a aplicabilidade de teorias
necessariamente oblíquas, reta que atravessa - prontas, a autonomia da forma, os inventários
ou defender movimentos sem referentes. Esses estilísticos e tipo-morfológicos sem que se per-
conceitos antigos lhe serviram para apontar os gunte culturalmente quando, como, para quem,
apagamentos de certos fenômenos físicos - como esvaziando, em suma, os próprios arquitetos e
a ideia de desvio, mostrando as operações de urbanistas de um “trabalho de si como um outro”.
silenciamento matemáticas sobre ele - e para,
a partir daí, sustentar outras hipóteses para os Ora, onde estaria a pulsão desejante, construtiva
modos de conhecer e de narrar. e propositiva da arquitetura e do urbanismo? Se
autorregularia também, de tempos em tempos,
De fato, clinâmen, para Lucrécio e ainda Epicuro, frente as pulsões de morte, as convulsões co-
retomados por Serres, é um ângulo mínimo no letivas, as guerras, as barbáries que atraves-
percurso de um corpo, um desvio mínimo que sam as experiências da vida social? Mas, a atual
causa as turbulências e as espirais. A rigidez de conjuntura que vivemos na qual a polarização,
uma forma de pensar sequencial, unidirecional, fragmentação e transacionalidade política se
EIXO TEMÁTICO 1 impõem globalmente, é um fato isolado na pe-
quena história do urbanismo desses dois últimos
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO séculos?

Nesse jogo, como as intrigas das práticas histó-


ricas da arquitetura e do urbanismo se projetam
transversalmente para reencantar o mundo e para
compor um comum, entre a posição narcísica do
arquiteto conceptor isolado, do historiador que
realiza sua operação crítica entre a experiência
e exigência e uma cidade da qual não se advinha
o rosto? Há lugar para o potencial desviante da
utopia sem suas armadilhas?

Narrar por intrigas visuais, discursivas, constru-


ídas, pensadas transversalmente podem pelo
menos, se não instaurar, propor uma partilha
do sensível e do político: propor, repor, compor
sistemas de valores. Tensionando e buscando
escapar dos encerramentos e limites dos sujeitos
conhecedores, a comunicação insiste em subli-
nhar a dimensão política e plural da arquitetura
e do urbanismo, para experimentar, nas fissuras,
derivações e espaçamentos, jogar com as lógicas,
com os sistemas, com as narrativas, contrariando
os tempos unidirecionais e a estabilidade dos
espaços topográficos.

Um pensar, agir, narrar por transversalidades é ele


próprio um pensar por aproximações e metáforas
- um pensar por nebulosas - (Berenstein e Pereira
2018 e 2019) mas o que conjuntos de nuvens po-
dem nos informar sobre os pactos transversais
que se afirmaram, e se afirmam, como incon-
tornáveis, ontem e hoje? Quais aqueles que se
colocam como embates pelos quais é preciso
construir mediações?

Narrar por Transversalidades: com, entre, através,


rumo a, para além….

Transversalidades - ‘Ver através’ (‘ein Durch-


sehung’), assim Dürer já definia a perspectiva.
Panofsky (1927) o recupera para explicitar a pers-
pectiva como recurso da imaginação, uma forma
do pensamento, que atravessando o espaço-tem-
po, reúne e compõe o heterogêneo em um Raum-
ganze, uma totalização. O “ver através” revela,
portanto, a artificialidade e por consequência,
16º SHCU a possibilidade de desconstrução da unidade
30 anos . Atualização Crítica
frente ao múltiplo, ou ao menos tensionar, jogar
124 entre ambos, e talvez mais que prever, entre-ver.
Seja no entre-linhas da escrita ou no entre-ver Narrar por paisagens
das imagens que este trabalho propõe, a trans-
gressão das interpretações primeiras adota um
olhar expectante, não para revelar a verdade de Estaria a discussão da paisagem somente arraiga-
uma natureza desvestida, dada, carregada de da à noção de ecologia, tendo o “meio-ambiente”
pressupostos, mas o processo, o saber aberto. como palavra-chave? Ou poderíamos ampliar esta
Propõe-se no lançar-se em bloco na errância apreensão para um plural possível? Em seu livro,
de uma escrita coletiva, nas inversões e recom- A invenção da Paisagem (2007), Anne Cauquelin
binações dos fragmentos, trans-vestir-se para expõe a problemática na qual a paisagem parece
experimentar os outros que nos habitam e com o estar sempre representada pela ideia de um exis-
interlocutor que nos permeia, construir e destruir tencialismo pré-existente, que a transforma em
as narrativas, em benefício do presente e do que um dado natural. Ela afirma que na Grécia Antiga
carece não ser esquecido. a natureza era uma potência atuante, a metáfora
de ordem antropomórfica, uma natureza ecôno-
ma. Em suas palavras: “Com efeito, Aristóteles a
apresenta [a natureza] como uma boa dona de
casa. Uma ecônoma cuidando das reservas cuja
guarda lhe foi dada, distribuindo-as com medida
e bom senso” (CAUQUELIN, 2007, p. 45).

Assim, a noção de natureza se entrelaça com a


teoria dos jardins, de lugares de repouso e de
recolhimento na cidade romana. Cauquelin des-
creve em Investigações (História) de Heródoto o
lugar isolado, o campo, a partir da ruptura com
a cidade, Horácio, o amigo dos campos, saúda,
Fustus, o amigo da cidade (CAUQUELIN, 2007, p.
62). Retrata o amante do campo (ruris amatores)
que habita e cria seu próprio espaço longe da cida-
de, aquele capaz de oferecer tudo o que a cidade
nos afasta: a calmaria, o frescor e o ócio criati-
vo. Considera-se o rural – o campo – tudo aquilo
que antagoniza com o urbano – a cidade. Mas as
“paisagens urbanas” contradiz a noção natural
de paisagem? Para Cauquelin, não obstante os
terrenos vagos, a poluição, a sujeira nos edifícios
e todas as descontinuidades do tecido urbano,
vê-se o espetáculo urbano como paisagem.

O fenômeno da paisagem foi retratado pelas ar-


tes, desde os primórdios antigos na pintura, mas
também em quase todas as artes plásticas, e mais
recentemente na fotografia e cinema. James
Corner na introdução de seu livro The Landscape
Imagination (2014) descreve a noção de paisagem
como música que molda nossos pensamentos
e estimula nossa imaginação. Por outro lado, a
paisagem como meio, como possibilidade de um
“devir”, como espaço do agir e de ação coletiva
muitas vezes não é considerado. Há uma naturali-
zação de paisagens naturais e paisagens culturais
como um invólucro, um cenário passivo.
EIXO TEMÁTICO 1 A construção de paisagens abre lacunas entre os
fatos históricos da comunidade e as promessas
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO e ficções da crítica “liberal” (KAPLAN, 2003, p.
8). Se a memória retida em nossas paisagens
é retrospectiva, a promessa será prospectiva
contra o sentimento de desabrigo que moderni-
dade revela. Nestes dois polos temporais, se faz
presente a condição da paisagem: a memória
ligada ao desejo de habitar e a promessa de algo
“permanente” frente à ansiedade e sentimento
de “desabrigo” que o mundo moderno nos impõe.
Parte-se da premissa que o reconhecimento da
narrativa humana pode revelar mudanças e conti-
nuidades nas paisagens em conformação, sejam
elas rurais ou urbanas.

Segundo Paul Ricœur (1990; 1998) a função narra-


tiva como um ato configurativo assume um papel
dominante, uma vez que estrutura a compreensão
dialética entre o habitar e o construir, compon-
do um enredo edificante. Já a historicidade da
função narrativa assume a responsabilidade de
quem assume novas configurações abertas a
novas experiências. Por essas razões, o estudo
do paralelo entre a narratividade de Ricœur e
a invenção da paisagem de Cauquelin e Corner
discute um ponto-chave para entender a ação
configuradora de “estar no mundo” sem perder de
vista as ambiguidades e contradições presentes
na experiência da modernidade.

Em uma fenomenologia do homem capaz – o agen-


te da ação –, tem-se este homem como aquele
apto de agir, de cometer determinado ato, como
também de refletir sobre a união entre a atesta-
ção e o reconhecimento de si mesmo. Pode-se,
então, resumir que o reconhecimento da res-
ponsabilidade (ação aristotélica) implica em um
reconhecimento da consciência reflexiva de si
mesmo (pensamento dos modernos). Este cará-
ter reflexivo de si mesmo é que irá caracterizar a
abordagem hermenêutica do si, constituída pela
dialética entre identidade e alteridade.

Este trabalho, portanto, ao ter a(s) paisagem(ns)


como escopo, introduz a trama narrativa entre o
desejo de “estar em casa” e a promessa de “cons-
truir o próprio espaço” na configuração da cena
cotidiana. Longe de resolver conflitos e apagar
16º SHCU complexidades dos lugares da experiência, o ato
30 anos . Atualização Crítica
construtivo é a busca de sentido na ação opera-
126 tiva, ou seja, a ação conveniente. Para Ricœur
(2006, p. 232), a ação conveniente não é a solução Narrar por discursos
das perplexidades provocadas pelos conflitos,
muito menos a solução dos problemas sociais
em questão. Trata-se de tréguas, ou “clareiras no A história da cidade é campo de intrigas. Histórias
nevoeiro da dúvida”, ou seja, ação conveniente é que se enovelam umas nas outras, emaranhado
a ação operacional em busca de sentido. de experiências, olhares, enredos, tramas de coi-
sas às vezes registradas por escrito, modelando
Assim, a noção de representação vem à tona. visões de mundo ou imagens influentes, às vezes
Esse reconhecimento de objetos ou lugares im- ditas reservadamente, em escritos íntimos, ou
plica a apropriação cognitiva dessa experiência. se espalhando boca a boca com a sonoridade do
A representação da paisagem como um fenôme- burburinho, a rapidez do diz-que-me-diz. Intriga
no não é permanente no tempo. Pelo contrário, vem do Latim intricare, “entrelaçar, emaranhar,
também depende de percepções intuitivas. A embaraçar”, formado por in-, “em”, mais trica,
representação de objetos, lugares ou qualquer “brinquedo, perplexidade, truque”. ... Do Latim
outro elemento material não é uma categoria “a também veio maledicência, formada por male,
priori” e está enraizada em sua universalidade. “mal” e dicere, “dizer, falar”. Na edição de 1913 do
Numa visão hermenêutica, a representação da Candido de Figueiredo lê-se: “Intriga, f. Enredo
paisagem é uma noção mimética fluida constan- secreto. Cilada. Traição. Bisbilhotice. Enredo de
temente reconfigurada no tempo pelo ato de reco- uma peça literária (De intrigar)”; e “Intrigar, v.t.
nhecimento. A forma ativa do verbo “reconheço” Enredar ocultamente. Envolver em mexericos.
assegura o fato e a percepção dele: reconheço Indispor. Inimizar. Excitar a curiosidade de. V.i.
algo, alguém e algum lugar em um determinado Armar enredos ou mexericos. (Do lat. intricare).”
momento. Caldas Aulete (1881): intrigar é “Enlear, por em
confusão, tornar perplexo, excitar fortemente a
Além disso, quando alguém diz: “Fui reconhecido”,
curiosidade de.” Houaiss (2001) sugere ainda que
há outra pessoa envolvida. Portanto, uma relação
seu primeiro uso em português veio das Cartas
mútua de reconhecimento surge quando alguém
de José da Cunha Brochado de 1696, detalhan-
é reconhecido por um “outro” ou pela “alteridade”
do entre seus significados: “Aquilo que é falado
do eu. Tal ato implica ainda que este “outro” seja
ou comentado reservadamente, ou espalhado
identificado. A noção de reconhecimento mútuo
como boato ou suposição” e também “Conjunto
deixa de ser somente uma ação recíproca e passa
de peripécias imaginadas pelo autor de uma peça
a ter uma correlação com o sentido de justiça e de
dramática, de um romance, de um filme etc.” O
luta por afeto e estima social. Em outras palavras,
quanto mais justo, mais teremos reconhecidos termo possui, portanto, essa dupla acepção, mas
nossos direitos. O “ser reconhecido” deixa de ser seja como maledicência, seja como enredo, sua
um princípio de mutualidade, para ser um obje- dimensão discursiva se impõe, e supõe efeitos
tivo a ser alcançado. Para Ricœur, a exigência que nos interessam investigar.
por reconhecimento passa ser uma questão de
No texto que escreveu sobre o estranho memo-
direito, de cidadania (2006, p. 233). A profunda
rial redigido por Pierre Rivière, um relato auto-
ambiguidade da experiência da modernidade
biográfico sobre a vida em família, as maldades,
implica na condição de reconfigurar paisagens
artimanhas e mexericos de sua madrasta e, es-
continuamente. O reconhecimento mútuo implica
pecialmente, sobre o parricídio que ele cometeu
na capacidade de narrar o seu próprio espaço: o
nos anos 1830, Michel Foucault observou o ema-
homem constrói-se e constrói o mundo a sua volta
ranhado de narrativas que o manuscrito provocou
através do reconhecimento do habitar presente
entre os magistrados, psiquiatras e jornalistas
nas paisagens de vida e ação.
que escreveram sobre o caso. Filiando-se a toda
uma família de narrativas populares de crimes
inesquecíveis, sua função era sempre “mudar de
escala, aumentar proporções, fazer aparecer o
grão minúsculo da história, abrir ao cotidiano o
acesso da narração”, fazendo entrar na narrativa
“elementos, personagens, nomes, gestos, diálo-
EIXO TEMÁTICO 1 gos, objetos que na maioria das vezes aí não têm
lugar por carência de dignidade ou importância
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO social (...). É preciso, por outro lado, que todos
esses pequenos acontecimentos, apesar de sua
frequência e sua monotonia, surjam como sin-
gulares, curiosos, extraordinários, únicos, ou
quase, na memória dos homens” (FOUCAULT, 1977,
p. 215-216). 

Mas se qualquer evento fosse digno da história,


ela não correria o risco de se tornar um caos, uma
mera disseminação indiferente de particularida-
des? Foi essa a questão levantada por Paul Veyne
(1995) acerca do que deveria ou não interessar à
história ao afirmar que, mais importante do que
os fatos em si – que não existem isoladamente
– era sua organização, suas ligações objetivas,
seu enredo, sua intriga. E essa “trama” ou intriga
não deveria se ordenar necessariamente em uma
sequência cronológica, até porque o mundo dos
eventos históricos não coincide com a história
enquanto gênero narrativo. Sua incessante am-
pliação jamais conduziria a uma história total, ela
mesma uma falácia, mas a romper com a exclusi-
vidade dos grandes eventos, tidos como únicos
fatos históricos legítimos, de modo a “desbravar
uma imensa extensão do não-factual”, isto é,
daqueles eventos ainda não consagrados como
factuais, de cuja historicidade ainda não teríamos
consciência. 

Operando, pois, sem as hierarquias tradicionais


entre o factual e o não-factual, entre o macro e
o micro, eram os próprios critérios eleitos pelo
historiador o antídoto ao caos de toda pretensão
de totalidade. Se não se tratava de aderir à ideia
de uma história factual, tampouco era o caso de
apenas alargá-la para abarcar a história de tudo
o que compunha a vida de todos os homens. A
ideia de uma história total, nesses termos, era tão
fugidia quanto a “agitação de uma grande cidade
vista de um avião”. Dito de outra forma, nem aquilo
que “de fato” aconteceu poderia ser confundido
com sua “série”, como cada acontecimento só
faria sentido no interior de uma série eleita, o
número de séries possíveis permanecendo tão
indefinido quanto aquilo que poderia vir a ser a
história no futuro (VEYNE, 1977, p. 21-24).

16º SHCU A ideia desse artigo é repensar a história urba-


30 anos . Atualização Crítica
na como intriga, isto é, ultrapassar a pretensão
128 de totalidade por meio deste duplo jogo entre o
histórico e o trivial, o factual e o não-factual na REFERÊNCIAS
concepção e produção material das cidades,
nas maneiras de experimentá-las, percebê-las, AULETE, C. Dicionário Contemporaneo da
representá-las. Partindo de um conjunto de nar- Língua Portugueza. Vol. 2. Lisboa: Imprensa
rativas não especializadas, ou não especifica- Nacional, 1881.
mente voltadas à sua explicação ou descrição
histórica, análise, planejamento ou edificação BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico
material, nosso intuito é discutir alguns de seus alemão. Trad. João Barrento. 8. ed. Belo Hori-
rendimentos historiográficos, de seus procedi- zonte: Autêntica Editora, 2013.
mentos e alvos, de suas premissas e sugestões
para a escrita histórica da cidade. Tal recorte BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e
foi orientado pela vontade de incorporar vozes, política: ensaios sobre literatura e história da
pontos de vista, práticas  e circunstâncias que cultura. Trad. Sergio Paulo Rouanet. 8. ed. São
falem não somente de fatos, nomes e documentos Paulo: Brasiliense, 2012.
históricos consagrados, mas de microescalas da
cidade, de facetas, episódios e mesmo de indi- BERENSTEIN -JACQUES, Paola e PEREIRA,
víduos a princípio destituídos de interesse por si Margareth da Silva (org.). Nebulosas do Pensa-
mesmos - “e justamente por isso representativos”, mento Urbanístico. Modos de Pensar, Salvador
aproximando, assim, a historiografia urbana dos EDUFBA, 2018
distintos planos de experiência da cidade. Nesta
BERENSTEIN -JACQUES, Paola e PEREIRA,
espécie paradoxal de totalidade fragmentária,
Margareth da Silva (org.). Nebulosas do Pensa-
evanescente, estratificada e saturada de ten-
mento Urbanístico. Modos de Fazer, Salvador
sões, propõe-se atravessar fronteiras entre as
EDUFBA, 2019
esferas - da economia, da sociedade, da política,
da moral, da família, da religião, da arte, da cul- BOSI, E. Memória e Sociedade: Lembranças
tura - tanto quanto entre as disciplinas que da de velhos. 2a. ed. São Paulo: T.A. Queiroz/
cidade se ocupam. Edusp, 1987.
Para tanto, tomamos diferentes formas literárias CERTEAU, Michel de. A escrita da História.
como guia. Os diários de Carolina Maria de Jesus, Trad. Maria de Lourdes Menezes. 3. ed. Rio de
editados no livro Quarto de Despejo: diário de uma Janeiro: Forense, 2017.
favelada (1960); as memórias de Brites transcri-
tas por Eclea Bosi no livro Memória e sociedade: CERTEAU, Michel de. História e psicanálise:
lembranças de velhos (1979) e o conto “Ôlho de entre ciência e ficção. Trad. Guilherme João de
vidro” de Lygia Fagundes Telles, publicado no livro Freitas Teixeira. 2. ed. Belo Horizonte: Autênti-
O cacto vermelho (1949). Por meio deles, procu- ca Editora, 2016.
ramos apontar como o emaranhado de intrigas
se adensa com essas três mulheres que não só CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidia-
observam a cidade desde seus lugares sociais de no: As artes de fazer. Petrópolis: Vozes, (1980)
classe, raça, gênero, profissão e geração, mas 2009, p. 35-55.
elaboram tramas próprias, partindo de urdiduras
literárias distintas que aparecem como matéria CHARTIER, Roger. O Mundo como Representa-
preciosa para a reflexão historiográfica em torno ção. Estudos Avançados, v.5, n.11.  São Paulo:
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EIXO TEMÁTICO 1 canibais: elementos para uma antropologia
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lances, Paris, Ed du Minuit, 1977.
EIXO TEMÁTICO 1 RESUMO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Esta mesa temática, intitulada “o universo tran-
sescalar dos congressos de urbanismo: dinâmi-
mesa temática cas e debates em perspectiva internacional”,
pretende discutir os congressos de urbanismo
em diversas escalas temporais e espaciais. Uma
O UNIVERSO TRANSESCALAR das questões centrais que se coloca em discus-
são diz respeito aos ideários que se propunha
DOS CONGRESSOS DE debater e difundir nacional e internacionalmen-
te em cada um desses eventos. Seria possível
URBANISMO: DINÂMICAS E identificar matrizes predominantes, conver-
gências significativas ou embates em disputa a
DEBATES EM PERSPECTIVA partir de cada um deles? Assumiria certo prota-

INTERNACIONAL gonismo o ideário reformista inglês, através da


Town Planning Conference de Londres em 1910?
Os ideários em discussão na seção de higiene
THE INTERTWINED SCALES UNIVERSE OF CITY do Musée Social aplicado às colônias através
PLANNING CONGRESSES: DYNAMICS AND DEBATES IN do congresso intertropical de 1931? O ideário
AN INTERNATIONAL PERSPECTIVE tecnicista a ser enfatizado no urbanismo bra-
sileiro do período militar através do Congresso
Brasileiro de Arquitetos em Salvador em 1966?
TRANSESCALAR DE LOS CONGRESOS DE URBANISMO:
O ideário da IFHP- International Federation for
DIN MICAS Y DEBATES EN PERSPECTIVA
Housing and Planning e/ou da UCLG- United Ci-
INTERNACIONAL
ties and Local Governments (ou CUGL- Ciudades
unidas gobiernos locales, posto que a institui-
SIMÕES JR., José Geraldo ção parece estar sob hegemonia da Espanha e
Doutor; Universidade Presbiteriana Mackenzie
dos países com predomínio da língua espanhola
jgsj@mackenzie.com.br desde cerca de 2001) aplicado à América Latina
ou ao mundo atual? Ao colocar em pauta essas
CERASOLI, Josianne Francia questões, a mesa pretende aprofundar algumas
indagações relativas à formação do campo dis-
Doutora; Unicamp- Universidade Estadual de Campinas
cerasoli@unicamp.br
ciplinar do urbanismo, seja a partir de suas di-
nâmicas locais, seja considerando a vigência de
suas dinâmicas internacionais de debate e difu-
FERNANDES, Ana
são. A partir disso, são discutidas as seguintes
Docteur (Doutora); UFBA- Universidade Federal da Bahia questões: de que maneira certas experiências
anaf@ufba.br
nacionais, regionais e locais em desenvolvi-
mento regional, habitação, planejamento e ges-
OUTTES, Joel tão urbanos foram adotadas em determinados
DPhil (PhD/Doutor); UFRGS- Universidade Federal do Rio períodos por essas instituições e nesses con-
Grande do Sul gressos? Quais as ressonâncias de certas ideias
joel.outtes@ufrgs.br
e políticas desses congressos e instituições nas
j.outtes-wanderley@oriel.oxon.org
experiências nacionais, regionais ou locais em
desenvolvimento regional, habitação, planeja-
mento urbano e áreas correlatas? Qual o perfil
(ou os perfis) da audiência destes congressos?
Quem freqüentou estes congressos? De onde
16º SHCU provinham? Qual suas profissões? Pode-se dis-
30 anos . Atualização Crítica
tinguir grupos, associações ou organizações
132 constituídas e/ou articuladas para intervir nas
pautas e decisões? Esses grupos fizeram parte gressos científicos, analisada a partir da espe-
da estrutura de poder dos congressos e insti- cificidade de cada congresso. Temas como o
tuições? O que decidiram se e quando estive- papel dos manuais técnicos e práticos de urba-
ram no poder? Estes grupos participavam de nismo, os referenciais teóricos, os ideários em
vários congressos da mesma ou de diferentes discussão, a pauta acerca de questões urbanas
instituições? Migravam de uma instituição ou (infraestrutura, estética, circulação e traçados
congresso para outro quando suas propostas viários, moradia, zoneamento, desenho urbano,
eram ou não aceitas? Qual o impacto ou efeito urbanização, higiene urbana, questões sociais),
destas migrações? Qual a produção intelectual bem como as vinculações com projetos políti-
destas instituições e congressos em termos de cos vigentes nas distintas temporalidades con-
livros, artigos, teses nos próprios congressos; sideradas. Espera-se que a mesa viabilize, des-
publicação de periódicos, folhetos, working se modo, problematizar os significados e papeis
papers, etc.? Quem publicava nestes veículos? de congressos e encontros profissionais como
Quais suas trajetórias pessoais, intelectuais e esses nas relações com a própria formação do
profissionais? Qual a relação de gênero nestas campo do conhecimento e atuação e, ainda,
instituições, congressos, pautas e também na com as narrativas historiográficas acerca de
presença e participação nos eventos? É possí- tais temas.
vel definir em que proporções? Seria diferente
de acordo com os perfis dos eventos? Haveria
diferenças em relação ao conteúdo produzido CONGRESSOS URBANISMO DIFUSÃO DE INOVAÇÃO
intelectualmente a partir da variável de gêne-
ro? Em que medida desigualdades de gênero
afetaram as pautas, a produção intelectual e
os perfis profissionais? Estas perguntas ten-
tarão ser respondidas através de um trabalho
sobre a Town Planning Conference de Londres
de 1910 e a difusão internacional do movimento
das cidades-jardim, um trabalho sobre o debate
internacional e o urbanismo universal analisan-
do o congresso internacional de urbanismo nas
colônias e nos países de latitude intertropical de
Paris de 1931, um trabalho sobre o VI Congres-
so Brasileiro de Arquitetos como expressão de
captura de uma conjuntura crítica; e finalmente
uma investigação sobre a Internacional Urbana:
um estudo comparativo da IFHP – International
Federation for Housing and Planning (Federa-
ção Internacional de Habitação e Urbanismo) e
da UCLG - United Cities and Local Governments
(União de Cidades e Governos Locais) (1913-nos-
sos dias). Mais do que escalas espaciais e tem-
porais múltiplas, esta mesa problematiza pos-
síveis imbricamentos e inter-relações entre os
agentes, os eventos, as pautas e projetos em
debate, em perspectiva internacional e transes-
calar. A partir dos quatro estudos apresentados,
espera-se aprofundar o entendimento acerca
de ambas as perspectivas, analisando-se his-
toricamente também um conjunto de temáti-
cas relacionadas à formação e às dinâmicas do
campo disciplinar do urbanismo. Em primeiro
plano, investiga-se a própria dinâmica dos con-
EIXO TEMÁTICO 1 ABSTRACT
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
This thematic table, entitled “the intertwined sca-
les universe of city planning congresses: dyna-
mics and debates in international perspective”,
intends to discuss city planning congresses in
several time and spatial scales. One of the main
questions to be discussed deals with the ideas
that were to be debated and diffused nationally
and internationally in each of these events. Would
it be possible to identify dominant matrixes, sig-
nificative convergences or disputes in each of
them? Would there be a protagonism of the En-
glish reforming ideal through the Town Planning
Conference held in London in 1910? The ideas in
discussion at the seção de higiene (hygiene sec-
tion) of the Musée Social (Social Museum) applied
to the colonies through the intertropical congress
of 1931? The technical ideal to be emphasized in
city planning during the Brazilian Congress of Ar-
chitects held in Salvador in 1966? The ideal of the
IFHP- International Federation for Housing and
Planning and/or of UCLG- United Cities and Local
Governments (or CUGL- Ciudades unidas gobier-
nos locales, given that the institution seems to be
under the hegemony of Spain and countries with
predominance of the Spanish language since
around 2001) applied to Latin America or the con-
temporary world? Discussing these questions the
table intends to excavate some thoughts related
to the formation of city planning as a disciplinary
field, either departing from its local dynamics as
well as considering the existence of international
dynamics of debates and diffusion. We want to
discuss the following wuestions: How far certain
local, regional and national experiences in re-
gional development, housing, urban plannng and
management were adopted in certain periods by
these institutions and congresses? What were
the ressonances of certain ideas and policies
of these congresses and institutions in local, re-
gional and national experiences of regional de-
velopment, housing, urban planning and related
fields: What was the profile (or profiles) of the
audience of these congresses? Who frequented
these congresses? Where were they from? What
was their profession? Can one identify constitu-
ted and/or articulated groups, associations or
16º SHCU organizations to intervene in the subjects and de-
30 anos . Atualização Crítica
cisions? Do these groups were part of the struc-
134 ture of power of the congresses and institutions?
What did they decide if and when they were in zation, urban hygiene, social questions), as well
power? Do these groups participated of several as the relationship with various extant political
congresses of the same and/or different insti- projects in the several time spans considered.
tutions? Did they migrate from one institution or We hope that the table will help to grasp the me-
congress to another when their proposals were anings and roles of congresses and Professional
or not accepted? What was the impact or effect meetings in the relationship with the formation of
of these migrations? What was the intellectual the field of knowledge and practice and, indeed,
output of these institutions and congresses in with the historiographical narrative around these
terms of books, articles, “teses” (papers) in the subjects.
congresses themselves, publication of journals,
leaflets, working papers, etc.? Who published in
these outlets? What were their personal, intellec- CONGRESSES CITY PLANNING
tual and professional trajectories? What was the DIFFUSION OF INNOVATION
gender relation in these institutions, congresses,
debates and also presence and participation in
the events? Is it possible to define in what propor-
tion? Was that different according to the charac-
teristics and/or profile of the event? Were they
differences in the content of the intellectual ou-
tput per gender? How far gender inequalities af-
fected the subjects discussed, intellectual output
and professional profiles? We will try to answer
these questions through an investigation of the
Town Planning Conference of London in 1910 and
the international diffusion of the garden-cities
movement, a research about the international
debate and universal city planning analizing the
international congresso f urbanism in the colo-
nies and countries of intertropical latitude of Pa-
ris in 1931, a work about the VI Brazilian Congress
of Architects as na expression of the capture of
a critical situation; and finally a paper about the
Urban International: a comparative study of the
IFHP – International Federation for Housing and
Planning and UCLG - United Cities and Local Go-
vernments (1913-nowadays). More than multiple
time and spatial scales, this table interrogates
possible crossings and relationships bewteen
the agents, the events, subjects and projects in
debate in an intertwined and international pers-
pective. We depart from these four studies to
understand both perspectives, historically anali-
zing a set of themes related to the formation and
dynamics of the disciplinary field of city planning.
First, we will investigate the dynamic of the scien-
tific congresses, analizing the specificity of each
of them. Themes such as the role of technical
and practical manuals/handbooks of planning,
the theoretical framework, the ideals in discus-
sion, the subjects related to the urban question
(infrastructure, aesthetics, circulation and Road
layouts, housing, zoning, urban design, urbani-
EIXO TEMÁTICO 1 RESUMEN
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Esta mesa temática, intitulada “el universo tran-
sescalar de los congressos de urbanismo: dinâ-
micas y debates en perspectiva internacional”,
intenciona discutir los congressos de urbanismo
en diversas escalas temporales y espaciales.
Una de las questiones centrales que se pone en
discussión tiene que ver con los ideários que se
propongan debater y difundir nacional y interna-
cionalmente en cada uno de esos eventos. Se-
ria possible identificar matrices predominantes,
convergências significativas o embates en dis-
puta a partir de cada uno de ellos? Asumiria cierto
protagonismo el ideário reformista inglês, a tra-
vés de la Town Planning Conference de Londres
en 1910? Los ideários en discussión en la sección
de higiene del Musée Social (Museo Social) aplica-
do à las colônias a través del congreso intertropi-
cal de 1931? El ideário tecnicista a ser enfatisado
en el urbanismo brasileño del período militar a
través del Congreso Brasileño de Arquitectos en
Salvador en 1966? El ideário de la IFHP Interna-
tional Federation for Housing and Planning y/o de
la UCLG- United Cities and Local Governments (o
CUGL- Ciudades unidas gobiernos locales, puesto
que la institución parece estar sob hegemonia
de Espanha y de los países con predomínio de lín-
gua española desde cerca de 2001) aplicado à la
América Latina o al mundo actual? Colocando en
pauta esas cuestiones la mesa intenta profundi-
sar algunas indagaciones à la formación del cam-
po disciplinar del urbanismo, sea a partir de sus
dinâmicas locales, sea considerando la vigência
de sus dinâmicas internacionales de debate y di-
fusión. A partir de eso intentaremos discutir sas
cuestiones siguientes: de que manera ciertas ex-
periências nacionales, regionales y locales en de-
sarrollo regional, vivienda, planificación y e ges-
tión urbanos fueran adotadas en determinados
períodos por esas instituciones y en eses congre-
sos? Cuales són las resonâncias de ciertas ideas
y políticas de esos congresos e instituciones en
las experiências nacionales, regionales o loca-
les en desarrollo regional, vivienda, planificaci-
ón urbana y áreas correlatas? Cual és el perfil (o
los perfiles) de la audiência de estos congresos?
Quien freqüentó estos congresos? De donde ve-
16º SHCU nían? Cual sus professiones? Se puede distinguir
30 anos . Atualização Crítica
grupos, associaciones o organizaciones cons-
136 tituydas y/o articuladas para intervenir en las
pautas y decisiones? Esos grupos hicieran parte analisada a partir de la especificidad de cada
de la estructura de poder de los congresos y ins- congreso. Temas como la importância de los ma-
tituciones? Que decidieran sí y cuando estuviera nuales técnicos y prácticos del urbanismo, los
en el poder? Estos grupos participavan de vários referenciales teóricos, los ideários en discussión,
congresos de la misma o de diferentes institucio- los temas relacionados a las cuestiones urbanas
nes? Migraban de una institución o congreso para (infraestructura, estética, circulación y trazados
otro cuando sus propuestas eran o no aceptas? viários, vivienda, zonificación, diseño urbano, ur-
Cual el impacto o efecto de estas migraciones? banización, higiene urbana, cuestiones sociales),
Cual la producción intelectual de estas institu- así como las vinculaciones con proyetos políticos
ciones y congresos en terminos de libros, artícu- vigentes en las distintas temporalidades conside-
los, tesis en los próprios congresos; publicación radas. Espera-se que la mesa viabilize, de este
de revistas, folhetos, working papers, etc.? Quien modo, problematizar los significados y papeles de
publicaba en estos vehículos? Cuales sus trajec- los congresos y encuentros professionales como
tórias personales, intelectuales y profesionales? estos en las relaciones con la própria formación
Cual la relación de gênero en estas instituciones, del campo de coñocimiento, saber y actuación y,
congresos, pautas y también en la presencia y todavia, con las narrativas historiográficas alre-
participación en los eventos? És possíble definir dedor de estos temas.
en que proporciones? Seria diferente de acuerdo
con los perfiles de los eventos? Haberia diferen-
ças en relación al contenido producido intelec- CONGRESOS URBANISMO DIFUSIÓN DE INOVACIÓN
tualmente a partir de la variáble de gênero? En
que medida desigualdades de gênero afectaram
las pautas, la producción intelectual y los perfiles
professionales? Intentaremos responder a estas
preguntas a través de una investigación sobre la
Town Planning Conference de Londres de 1910 y la
difusión internacional del movimiento de las ciu-
dades-jardin, um artículo sobre el debate interna-
cional y el urbanismo universal analisando el con-
greso internacional de urbanismo en las colônias
y en los países de latitud intertropical de Paris de
1931, un trabajo sobre el VI Congresso Brasileño
de Arquitectos como expressión de captura de
una conjunctura crítica; y finalmente una investi-
gación sobre la Internacional Urbana: un estudio
comparativo de la IFHP – International Federation
for Housing and Planning (Federación Internacio-
nal de Vivienda y Urbanismo) y de la UCLG - United
Cities and Local Governments (CUGL- Ciudades
unidas gobiernos locales) (1913-nossos dias). Mas
allá de que escalas espaciales y temporales múl-
tiplas, esta mesa problematisa intersecciones y
inter-relaciones posibles entre los agentes, los
eventos, las pautas y proyectos en debate, en
perspectiva internacional y transescalar. A par-
tir de los quatro estudios presentados, espera-
-se profundizar la comprehensión sobre ambas
las perspectivas, analisando-se historicamente
también un conjunto de temáticas relacionadas à
la formación y a las dinâmicas del campo discipli-
nar del urbanismo. En primer plano, investiga-se
la própria dinâmica de los congresos científicos,
EIXO TEMÁTICO 1 Desde 1870, nos primórdios da constituição do
urbanismo moderno, o debate e a difusão do ide-
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO ário internacional deste novo campo de conhe-
cimento, que então já se tornava fundamentado
em bases científicas, passa a ocorrer a partir de
mesa temática manuais, revistas especializadas e congressos.
Diversas foram as referências que serviram para
fundamentar o campo: os manuais práticos de
O UNIVERSO TRANSESCALAR urbanismo dos alemães (Stübben e Baumesister),
a abordagem pelo viés da estética urbana (Buls,
DOS CONGRESSOS DE Sitte, Henrici, Robinson), a ênfase nas infraes-
truturas modernas (Hénart), na gestão urbana e
URBANISMO: DINÂMICAS E na circulação (Lewis, Nolen) e na visão reformista

DEBATES EM PERSPECTIVA aliada à propostas de qualidade de vida, moradia e


trabalho. Nesta última vertente situam-se sobre-

INTERNACIONAL tudo os urbanistas ingleses, com o movimento das


garden-cities e garden suburbs. O debate inglês
onde nasce esse ideário advém da necessidade
THE INTERTWINED SCALES UNIVERSE OF CITY de resposta que os ingleses procuravam para a
PLANNING CONGRESSES: DYNAMICS AND DEBATES IN questão da moradia social, que desde meados
AN INTERNATIONAL PERSPECTIVE do século XIX vinha sendo objeto de propostas,
sobretudo através do Dwelling Improvement Act
TRANSESCALAR DE LOS CONGRESOS DE URBANISMO: de 1875, que ensejou a formação de grandes áreas
DIN MICAS Y DEBATES EN PERSPECTIVA loteadas nos arredores londrinos , planejados por
INTERNACIONAL empresas privadas que priorizaram um parcela-
mento de forma a otimizar o uso do solo, dando
origem a bairros operários compostos por exten-
sas quadras retangulares que eram ocupadas por
conjuntos contíguos de sobrados, geminados,
sem recuo frontal e com pequena área livre nos
fundos do lote (como o que subsiste até hoje no
bairro de Fulham). Este padrão - bem melhor do
que a situação anterior, onde o adensamento na
ocupação e a ausência de saneamento geravam
condições de vida críticas – precisava ainda ser
aperfeiçoado. O ideário reformista, presente na
experiência inglesa, sobretudo com o ideário Fa-
biano, ensejou, dentre outros fatores, ao advento
do ideário das Garden Cities, por Howard, e depois
desenvolvidos por Raymond Unwin e Barry Parker,
quando da concepção e implantação da cidade-
-jardim de Letchworth e do subúrbio-jardim de
Hampstead, na primeira década dos novecentos.
Este debate foi consolidado através de um novo
instrumento normativo, aplicado a todas as áre-
as de expansão urbana das cidades inglesas - o
Town Planning Act, de 1909, que definia um novo
padrão de ocupação, com maior organicidade no
traçado viário, maior presença de áreas verdes e
16º SHCU diversidade na implantação e na arquitetura das
30 anos . Atualização Crítica
construções. Neste mesmo ano de 1909, Unwin
138 publica sua obra referencial, o manual Town Plan-
ning in Practice, onde apresenta e detalha proje- importante registro desta experiência de difusão
tualmente as diversas soluções urbanísticas para de um ideário internacional que assumiu grande
novos bairros a serem planejados nos subúrbios. relevância ao longo do século 20. No mundo todo
E neste momento também se engaja na organi- registram-se hoje mais de quinhentos bairros
zação do mais importante evento internacional projetados e implementados segundo este ideário
de urbanismo realizado neste período nascente urbanístico inglês.
do urbanismo moderno - a Town Planning Confe-
rence. Este evento de grandes dimensões para
a época, teve a duração de seis dias e contou
com a presença de 1250 participantes , dentre
eles os mais eminentes arquitetos e urbanistas
da época, como os ingleses Ebenezer Howard,
Patrick Geddes, A. D. Adshead, Thomas Mawson,
Thomas Adams e Thomas Coglan Horsfall; os ale-
mães Joseph Stübben, Rudolf Eberstadt, Werner
Hegemann e A. E.Brinckmann, e os franceses
Eugene Hénart, Augustin Rey e Louis Bonnier. E
dos Estados Unidos estiveram presentes as mais
notáveis figuras do cenário urbanístico: Daniel H.
Burnham e Charles Mulford Robinson. A intenção
principal deste grande congresso foi a de divul-
gação da então recente e inovadora experiência
urbanística inglesa. Organizado pelo RIBA- Royal
Institute of British Architects, o congresso contou
com mesas de debates cujas temáticas (Cida-
des do Passado – Cidades do Presente – Áreas
de Expansão Urbana e Cidade do Futuro) con-
vergiam claramente para um novo paradigma
para o projeto urbano – associado às áreas de
expansão das cidades – onde privilegiava-se o
ideário das garden-cities e dos garden suburbs.
Algumas dezenas de papers foram apresentados
pelos participantes e, ao final do evento, foram
organizadas visitas às cidades onde esses novos
princípios tinham sido recentemente aplicados –
Hampstead, Port Sunlight, Bournville e Letchwor-
th. Mais de duzentos congressistas participaram
desses roteiros de difusão da experiência inglesa
e isto efetivamente contribuiu para a difusão do
ideário das garden cities para o restante da Europa
(sobretudo na França, com Henri Sellier e Benoit
Levy), assim como também nos Estados Unidos,
América do Sul e Brasil. No Brasil, a partir de 1911,
ou seja, no ano seguinte ao congresso londrino,
já se registra uma marcante experiência, quando
a City of Sao Paulo Improvements and Freehold
Co Ltd – (conhecida como Cia City), se instala na
capital paulista e passa a projetar e implementar
diversos novos bairros dentro da concepção das
garden-suburbs inglesas - projetados por Barry
Parker – e que até hoje subsistem (Pacaembu, Jar-
dim América, Alto da Lapa, Bela Aliança) como um
EIXO TEMÁTICO 1 Seria possível identificar no debate internacional
a respeito do urbanismo no Entreguerras uma
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO pauta de pretensões universais para esse campo
disciplinar em formação? Ao analisar as publica-
ções e os registros acerca do Congrès internatio-
nal de l’urbanisme aux colonies et dans les pays
tropicaux, busca-se problematizar justamente
a provável vigência de elementos universais no
debate internacional sobre o urbanismo. O Con-
gresso, ocorrido durante a Exposition coloniale
internationale, no bosque des Vincennes nos ar-
redores de Paris, em 1931, reuniu profissionais,
especialistas e gestores públicos e privados de di-
versos países, sobretudo aqueles de algum modo
engajados na empreitada colonial. Apresentou
uma série de relatórios relativos à remodelação
e/ou ao planejamento de cidades em áreas en-
tão sob o domínio colonial de países europeus,
e também de cidades em áreas intertropicais,
fartamente documentado com numerosos dados,
fotografias aéreas, planos etc. Não exibiu apenas
os instrumentos de domínio dos territórios e as
perspectivas de expansão de formas de apreen-
são dos mesmos, mas sobretudo colocou em
debate um conjunto de questões – sobre higiene
e saneamento, estética, habitação, organização
administrativa, execução de planos das cidades
e referenciais – que demonstravam concepções
sobre o urbano e o próprio urbanismo. O objetivo
declarado do congresso era a definição, a partir
da análise desses numerosos casos concretos,
“das melhores disposições para as cidades onde
coabitam raças de modos e costumes diferentes”,
conforme afirma o presidente do congresso, ar-
quiteto Henry Prost (Royer, 1931, 21), bem como de-
finir concepções de habitação em função do clima
e usos locais, estudos de ventilação e higiene da
habitação e da cidade, estética urbana, turismo
e conservação das cidades antigas, colaboração
entre construtores modernos e artesãos locais,
proteção da paisagem e monumentos históricos
e, por fim, encontrar os melhores meios admi-
nistrativos e legislação apropriados para aplicar
as conclusões técnicas dos debates. Como era
usual na forma dos congressos de urbanismo,
de arquitetura, de higiene e afins no período,
são votadas ao final as propostas apresentadas
e debatidas para item desse temário técnico.
Segundo os registros do Congresso de urbanis-
16º SHCU mo colonial, foram vinte e um temas votados e
30 anos . Atualização Crítica
aprovados por unanimidade na seção de encer-
140 ramento. O temário e a dinâmica do congresso
não levantam dúvida sobre a natureza técnica da de supostos “modelos” “transplantados” de um
discussão pretendida, ao mesmo tempo em que espaço a outro não parece suficiente para discutir
a abrangência da participação assevera o caráter o referencial complexo presente na experiência
internacional do debate. Além de membros das e nos registros do Congresso de urbanismo colo-
sociedades técnicas francesas –Fédération des nial. Por isso busca-se nesta discussão colocar
Sociétés Françaises des Architectes, Société lado a lado a dimensão internacional e universal/
des diplômés de l’Institut d’Urbanisme, Institut moderna do urbanismo e do projeto colonial, com
d’Urbanisme, Société Française des Urbanistes, vistas a compreender processos históricos mais
entre outras, o congresso contou com contribui- intricados e dinâmicos que sugerem uma aná-
ções de profissionais provenientes da Bélgica, da lise histórica minuciosa das imbricações entre
Holanda, de Portugal, do Reino Unido, Estados ordenar a cidade e a sociedade, ou seja, entre a
Unidos e Japão. Abordou, além de cidades das questão urbana e a questão social na formação
colônias francesas, como Casablanca, outras desses campos disciplinares.
como Madagascar, Havana, Buenos Aires, Rio
de Janeiro, México, Danger, Alexandria, Alepo e
Beirute. Tal abrangência deixou registros de um
legado que ultrapassa as interações entre a me-
trópole francesa e seu domínio colonial no início
do século XX e mesmo os propósitos de aperfei-
çoamento dos conhecimentos técnicos sobre o
urbano no período. Parece apontar a necessidade
de questionar o papel dos cruzamentos incômo-
dos entre a perspectiva da colonização e projetos
universalistas contidos no debate internacional
do urbanismo. Ambos os projetos – colonial e
urbanístico/de urbanização – participam inextri-
cavelmente da modernidade em seus impulsos
universalizantes. Ao analisar o urbanismo e o
planejamento ao longo do século XX, Ward (2002)
sublinha a importância da conciliação entre di-
namismo econômico e outros aspectos, como o
social, cultural e político no aperfeiçoamento das
cidades, identificando esforços de certo modo
similares em diferentes países, embora nomea-
dos de modo específico, como Städtebau, town
planning, urbanisme, stedebouw, toshikeikatu ou
urbanismo. Para ele, a despeito da proliferação
de nomenclaturas, sob a genérica denominação
de urban planning estaria um indício do cresci-
mento internacional de um corpo de pensamento
e prática sobre a cidade, baseado em vigoroso
intercâmbio transnacional. Paquot (2011), por
sua vez, chama atenção tanto para a ausência de
homogeneidade na própria morfologia das cida-
des quanto para a importância do que denomina
“culturas locais”. Desataca também o papel das
relações intensas com questões sociais pontuais,
reconhecendo as relações entre aspectos locais
e gerais, para buscar assinalar essa dimensão
internacional. Reconhecer a pluralidade ao lado
das tensões entre local e geral, arriscando-se a
deslizar para explicações que simplificam a ideia
EIXO TEMÁTICO 1 Existem conjunturas particularmente estimu-
lantes para se questionar sobre o significado e o
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO papel de congressos e encontros profissionais
em sua relação com o próprio campo de conheci-
mento e atuação, mas também com a sociedade
e a política, segundo modulações e mediações
que os condicionam. Pensemos a partir de uma
analogia com a construção de uma agenda de
política pública. Ou seja, para que uma questão
adentre a agenda governamental (Kingdon, 2002),
são necessárias três condições: a constituição de
um problema considerado importante pela opinião
pública; a construção de alternativas (aqui estão
diretamente ativadas as competências profis-
sionais); e a questão política propriamente dita.
São consideradas conjunturas críticas aquelas
nas quais os três movimentos, de temporalida-
des distintas, aparecem em conjunto. Mas como
entender a situação oposta, ou a subtração de
questões da agenda pública? Como isso poderia
e deveria ser pensado? Buscamos aqui explorar
a hipótese de uma conjuntura também crítica,
mas capturada, na qual, a partir da dissolução de
uma das condições, as outras ou perdem força
relativamente ou submetem-se a outros regimes
de construção de alternativas. A ideia é a de pro-
blematizar a questão política propriamente dita
como a principal força que opera em conjunturas
de captura ou inversão de pautas públicas. É a
partir desse tensionamento que buscaremos ana-
lisar o VI Congresso Brasileiro de Arquitetos (CBA),
que teve lugar em Salvador, em setembro de 1966,
nos perguntando sobre as lógicas que presidiram
o seu reposicionamente em relação à conjuntura
imediatamente anterior, em termos de temática,
de audiência e de posicionamento político. Lem-
bremos que o referencial s.HRu – Seminário de
Habitação e Reforma Urbana, promovido pelo
IAB e pelo IPASE, havia sido realizado três anos
antes, em julho de 1963, no Rio de Janeiro e em São
Paulo. Naquele momento, em situação bastante
turbulenta, estavam em pauta as reformas de
base, dentre elas a reforma urbana e medidas a ela
correlatas, como, entre outras, a função social da
propriedade, o combate à especulação, a luta pelo
controle social e contra o imperialismo (XXXX,
omitido para avaliação, 2019). O temário discutido
16º SHCU centrava-se, basicamente e de forma afinada com
30 anos . Atualização Crítica parte da agenda governamental,na questão da
142 habitação e da reforma urbana, conforme temário
dos grupos de trabalho constituídos.1 Apesar de apolítico e independente” do IAB (CONGRESSO
mirar no VII Congresso da União Internacional de BRASILEIRO DE ARQUITETOS, 1966), indica bem as
Arquitetos (UIA), que seria realizado em Cuba no dificuldades através das quais se movia o campo
mesmo ano, com a temática Arquitetura e Sub- naquele momento. A captura da condição política
desenvolvimento, houve uma conjunção estreita pela nova correlação de forças constituintes do
entre o seminário e as grandes questões nacionais golpe militar é a hipótese com a qual trabalha-
então debatidas. Não por acaso, o s.HRu atraiu mos para compreender a subtração da reforma
audiência bastante diversificada, pois, além dos urbana da agenda pública brasileira no campo do
arquitetos, ali se faziam presentes lideranças urbanismo durante a ruptura marcada por 1964 e
profissionais, políticas, sindicais e estudantis anos subseqüentes. Para tanto, circunscrevendo
de diversos pontos do país. Três anos depois, no o presente objeto, trata-se de elucidar quais os
entanto, após o golpe civil-militar de 1964, essa principais elementos – repressivos, institucionais
pauta praticamente desaparece das discussões e profissionais – através dos quais essa captura
do VI Congresso, embora diversos de seus perso- se efetivou.
nagens tivessem estado presentes no seminário
de 1963. Também mirando no Congresso da UIA,
cuja nona versão aconteceria em Praga, em 1967,
os temas para discussões do VI CBA se revelam
bastante tímidos e genéricos, frente à riqueza
social daqueles trabalhados no s.HRu. Assim,
já o título do Congresso elude ao fator humano,
ao nomear-se Arquitetura e o Meio Ambiente,
enquanto o de Praga se intitulava Arquitetura e
o Meio Humano. Os grupos de trabalho tiveram
uma definição anódina, na qual a intensidade do
tema da habitação é apenas resvalada, tratando-o
como ambiente residencial,2 embora pontuações
relativas à natureza e à estrutura da ocupação da
terra e à especulação possam ser pinçadas no
relatório final do Congresso. O tema da Reforma
Urbana sequer é mencionado na documentação
relativa ao Congresso. Essa formulação sugere,
ao mesmo tempo, uma tecnificação nos modos
de abordagem das questões nacionais, um cui-
dado político com a linguagem a ser utilizada e
uma restrição da discussão ao campo mais es-
tritamente profissional, com a presença quase
exclusiva de arquitetos e urbanistas, formados
ou ainda estudantes. A formulação final do Con-
gresso, que afirma o caráter “técnico e cultural,

1. I- A situação Habitacional do País; II- A Habitação e o


Aglomerado Urbano; III- Reforma Urbana. Medidas para o
Estabelecimento de uma Política de Planejamento Urbano
e de Habitação; IV- A Execução dos Programas de Planeja-
mento Urbano e de Habitação. (s.HRu, 1963, sistematização
de DOURADO, 2020)

2. Sete foram os grupos de trabalho definidos: I- Estrutura


do Povoamento; II- Patrimônio Histórico e o Mundo Moder-
no; III- Ambiente Residencial; IV- Indústria e o Ambiente de
Trabalho; V- Homem e Paisagem; VI- Exercício da Profissão;
VII- Ensino de Arquitetura.
EIXO TEMÁTICO 1 A pesquisa consiste no estudo de duas institui-
ções, a IFHP (International Federation for Housing
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO and Planning – Federação Internacional de Habi-
tação e Urbanismo) e a UCLG (United Cities and
Local Governments – União de Cidades e Governos
Locais), suas características, rede de participan-
tes, mudanças em sua agenda e políticas, assim
como o papel dos países, instituições, grupos e
indivíduos nas decisões, políticas e na produção
intelectual das mesmas. A IFHP iniciou com a
denominação de International Garden-Cities As-
sociation (Associação Internacional das Cidades-
-Jardim) e a UCLG como IULA - International Union
of Local Authorities (União Internacional de Auto-
ridades Locais). Ambas instituições foram criadas
em 1913 e continuam existindo até os dias atuais. A
pesquisa tenta investigar o papel dessas institui-
ções no fluxo internacional de pensamento, ideias
e práticas do desenvolvimento regional, planeja-
mento e gestão urbanos, assim como seu papel na
constituição de uma comunidade transnacional de
pensadores da questão regional e planejadores/
urbanistas. Uma das questões que se pretende
discutir é de que maneira certas experiências
nacionais, regionais e locais em desenvolvimento
regional, habitação, planejamento e gestão foram
adotadas em determinados períodos por essas
instituições. Pretende-se também explorar as
influências de certas idéias e políticas, da IFHP e
UCLG especificamente, nas experiências nacio-
nais ou regionais em desenvolvimento regional,
habitação, planejamento e áreas correlatas. O
trabalho é composto por um estudo comparativo
de várias (no momento 27) instituições urbanas
internacionais, ou seja, instituições internacio-
nais ligadas a problemas urbanos e regionais,
concentrando-se no estudo de duas delas, a IFHP
e a UCLG de sua fundação aos nossos dias e sua
relação com a gênese e evolução das políticas
urbanas. O tema se justifica pelo fato de que um
conhecimento da história da formação e desen-
volvimento das políticas públicas permite uma
melhor formulação futura das mesmas, contri-
buindo para uma melhor planificação das cidades
e regiões (incluindo suas áreas para as atividades
produtivas de inovação e desenvolvimento tec-
nológico) e planejamento das políticas urbanas
e habitacionais, melhorando a qualidade de vida
dos cidadãos através de melhores sistemas de
16º SHCU transportes, abastecimento d´água, localização
30 anos . Atualização Crítica
de espaços abertos, verdes e de lazer; coleta de
144 lixo, esgotos, etc. O grande diferencial do nosso
estudo é que pretendemos construir a big picture, bitações baratas ou sociais ou casas populares
a macro-visão, ou seja, mapear toda a rede-mãe como denominamos no Brasil, 1889-1912-6?), de la
da internacional urbana, começando com o en- proprieté foncière (propriedade fundiária, 1900),
tendimento comparativo de duas das mais im- proprieté batie (propriedade construída, 1900),
portantes instituições da rede, a IFHP e a UCLG, valeurs mobilières (valores imobiliários, 1900),
suas relações com os países Latino-Americanos assainissement et salubrité de l’habitation (sa-
e destes entre si em termos de desenvolvimento neamento e salubridade da habitação, 1904-1911),
regional, das políticas urbanas e habitacionais. engenharia (1904-1929), tuberculose (1916?-1950),
No projeto maior a ser desenvolvido em vários medicine tropicale et d’hygiene (medicina tropi-
anos e do qual a apresentação será apenas uma cal e higiene, 1928), medicine legale et sociale
minúscula parte, pretende-se comparar e ver a (medicina legal e social, ?-1947), settlements (as-
relação com a América Latina de instituições tais sentamentos, 1926), building officials (agentes de
como (ano da fundação entre parênteses quando construção, um deles foi em 2000), international
conhecido) a IFHP – International Federation for congress of human settlements in developing
Housing and Planning (1913), a UCLG - United Ci- countries (congresso internacional de assenta-
ties and Local Governments (União de Cidades e mentos humanos em países em desenvolvimento,
Governos Locais, 2001, antiga IULA-International 7o congresso em Calcutá em Outubro de 1993, e
Union of Local Authorities, União Internacional de 8o em Maio de 1995 também em Calcutá na India),
Municipalidades, 1913), a UTO-FMCU (United Towns e (cidades) capitais (1948-1950).
Organization- Federação Mundial de Cidades Uni-
das, 1957, que ao juntar-se com a IULA em 2001
após aproximações desde 1996 formou a UCLG),
a Associação Metropolis (1985), a International
Housing Association (que se fundiu com a IFHP
nos anos 30 e cujo congresso em 1937 foi junto
com o da mesma), a IUA- International Union of
Architects, a IsoCarp – International Society of
City and Regional Planners (1968, tendo firmado
recentemente um protocolo de cooperacao com a
IFHP), o Global Planners Network, a International
City Managers Association (1919), Habitat Interna-
tional Coalition (2002?), a World Association of
Major Metropolis (seu 3o congresso foi em Outubro
de 1990 em Melbourne, Australia), a International
Union of Building Societies and Savings Asso-
ciation (11o congresso em 1968), e a International
Federation of Building Trade Employers and Civil
Engineering (antes International Federation of
Building and Public Works, 1905, seu 4o congresso
foi na Polonia em 1925). O estudo pretende ainda
incluir neste estudo as trocas com a América La-
tina e outras regiões do mundo e as instituições
internacionais responsáveis pelos congressos
seguintes, todos eles internacionais e de temas
que de alguma forma vieram a constituir algu-
ma sub-área do planejamento urbano (deixarei
o titulo nas línguas originais como indicação da
hegemonia lingüística nos mesmos na medida do
possível, um de nossos interesses de pesquisa):
sanitary (sanitário, 1851), higiene e demografia
(1852-1912), medicina (1867), art publique (arte pú-
blica, 1898-1910), habitations à bon marché (ha-
EIXO TEMÁTICO 1 REFERÊNCIAS
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16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

146
147
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
EIXO TEMÁTICO 1 RESUMO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Ao longo da 2a metade do século XX, a trajetó-
ria da questão metropolitana como problema
mesa temática de planejamento no Brasil passa por distintos
regimes políticos, democráticos e ditatoriais.
Os processos de conurbação já percebidos nas
PLANEJAMENTO principais cidades brasileiras nos anos 1950, o
incremento da infraestrutura regional, os avan-
METROPOLITANO EM ços da industrialização e a circulação internacio-
nal de novas teorias e métodos de planejamento
BELO HORIZONTE: IDEIAS, regional para a compreensão dos processos de
urbanização contribuíram para a emergência da
MÉTODOS, PRÁTICAS E SEUS metropolização como problema a ser enfrenta-

DESDOBRAMENTOS do pelo planejamento. O declínio do urbanismo


em sua dimensão físico-territorial como campo
exclusivo de arquitetos e engenheiros, a con-
METROPOLITAN PLANNING IN BELO HORIZONTE: IDEAS, gregação da multiplicidade de saberes - econo-
METHODS, PRACTICES AND THEIR UNFOLDINGS mia, sociologia, geografia, urbanismo, etc. - na
compreensão dos processos sociais, a introdu-
ção da dimensão regional no planejamento e a
PLANIFICACIÓN METROPOLITANA EN BELO HORIZONTE:
politização da prática urbanística (Monte-Mor,
IDEAS, MÉTODOS, PRÁCTICAS Y SUS DESPLIEGUES
2008; Feldman, 2009; Leme, 1999; 2019) ou mes-
mo, como afirma Taylor (2009), o deslocamen-
CHIQUITO, Elisângela de Almeida
to da abordagem morfológica para uma visão
Doutora de Arquitetura e Urbanismo; Professora do sistêmica e racional-processual, ampliam em
NPGAU/UFMG complexidade e também em escala a prática do
lisalmeida@ufmg.br
planejamento evidenciando, portanto, a insufi-
ciência da cidade e do município como território
COSTA, Geraldo Magela
para se pensar e orientar os processos multies-
Doutor em Geografia pela LSE/London; Professor do IGC/
calares e multidimensionais de urbanização.
UFMG e Pesquisador do CNPq.
gemcosta1@gmail.com
As experiências de planejamento metropolitano
COSTA, Heloisa Soares de Moura em Minas Gerais é, evidentemente, parte desse
processo. O processo de institucionalização do
Doutora em Demografia pela UFMG; Professora do IGC/
UFMG e Pesquisadora do CNPq. planejamento, como atividade complexa, mul-
hsmcosta@ufmg.br tidisciplinar e multiescalar em Belo Horizonte,
tem início nos anos 1950, quando o município
MENDONÇA, Jupira Gomes de praticamente duplica sua população (352.724
Doutora em Planejamento Urbano e Regional pela UFRJ; hab. em 1950 para 693.328 hab. em 1960) e sua
Professora do NPGAU/UFMG. Pesquisadora do CNPq. área urbanizada se amplia consideravelmente,
hsmcosta@ufmg.br conurbando-se a oeste com a Cidade Industrial
de Contagem e desenvolvendo-se à norte a par-
TONUCCI FILHO, João Bosco Moura tir da implantação do Complexo da Pampulha e
Doutor em Geografia pela UFMG; Professor do Cedeplar/ os investimentos em infraestrutura decorren-
FACE/UFMG e do NPGAU/EA/UFMG. tes, expansão essa marcada sobretudo pela
hsmcosta@ufmg.br informalidade e pela produção de periferias
precárias (Chiquito, 2020). Nesta década a di-
16º SHCU mensão regional do planejamento já é pauta dos
30 anos . Atualização Crítica
debates no âmbito municipal através da criação
148 do Serviço do Plano Diretor em 1951 e a contra-
tação da SAGMACS em 1958 para a elaboração litano da RMBH tem sido ressaltado por suas
de estudos para pautar o planejamento munici- especificidades no que se refere à concepções,
pal. Assim, o estudo “Estrutura urbana de Belo abordagens e métodos inovadores, tanto no pe-
Horizonte” pela primeira vez traz a dimensão ríodo (e apesar do) regime militar, como na ex-
regional ao planejamento municipal a partir de periência recente. Estas inovações se referem,
seus vínculos com os efeitos perversos da urba- sobretudo à construção de uma sólida estrutura
nização - pobreza, marginalidade, ausência de institucional pública de reflexão e de prática de
saneamento, etc. - e com a dimensão do sub- planejamento metropolitano no estado apesar
desenvolvimento latinoamericano (SAGMACS, da política federal incentivadora de contratação
1958). de planos externos à administração elaborados
por empresas de consultoria, à incorporação da
É no contexto de rápido crescimento demográ- dimensão social e da vida cotidiana nos métodos
fico e econômico dos anos 1960 e 1970 que têm de leitura e nos instrumentos de planejamento
início os esforços públicos voltados ao planeja- e os desdobramentos em importantes instru-
mento e desenvolvimento da região metropoli- mentos de controle e regulação e em políticas,
tana. A Região Metropolitana de Belo Horizonte a perspectiva de controle social e, mais recen-
(RMBH) foi oficialmente estabelecida em 1973 temente, a relação entre universidade e estado
pela Lei Complementar Federal n° 14. Em 1974, na construção dos processos de planejamento.
foi criada, sob a forma de uma autarquia estadu- Nesse sentido, essa mesa procura trazer para a
al, a Superintendência de Desenvolvimento da reflexão coletiva o planejamento metropolitano
Região Metropolitana de Belo Horizonte (PLAM- de Belo Horizonte em sua perspectiva históri-
BEL), a partir de um grupo técnico da Fundação ca, buscando contribuir para a historiografia
João Pinheiro (FJP), que desde 1971 vinha ela- do planejamento no Brasil, a partir da tessitura
borando o Plano Metropolitano de Belo Horizon- entre os trabalhos que trazem reflexões sobre
te. O período de maior atuação e dinamismo do instituições criadas, teorias, práticas, atores,
PLAMBEL deu-se entre 1975 e 1985, principal- redes profissionais e a formação de planejado-
mente no planejamento do sistema viário e de res. As comunicações dessa mesa em seu con-
transportes, na regulação do parcelamento, uso junto trazem à luz, sob diversas perspectivas e a
e ocupação do solo metropolitano, e na elabo- partir dos olhares suas diversas áreas de forma-
ração de amplos diagnósticos e estudos sobre ção - economia, engenharia, arquitetura e urba-
a RMBH. A partir de meados da década de 1980, nismo -, a institucionalização do planejamento
o órgão sofreu significativo enfraquecimento, metropolitano em Minas Gerais nos anos 1970,
notadamente em função da crise econômica e os atores envolvidos e seus embates, as ideias,
fiscal e do processo de redemocratização po- concepções, métodos e seus desdobramentos
lítica, tendo sido oficialmente extinto em 1996 em experiências recentes de planejamento.
(Tonucci Filho, 2012).

Assim, a emergência da problemática regional


planejamento metropolitano Belo Horizonte
e metropolitana de Belo Horizonte trazida pela PLAMBEL
SAGMACS em 1958, a montagem de um aparato
para o planejamento no âmbito do estado nos
anos 1960 alinhado à institucionalização do pla-
nejamento urbano e regional em nível federal
e que culmina na criação do PLAMBEL, assim
como a experiência recente do Plano Diretor de
Desenvolvimento Integrado (PDDI-RMBH) não
está dissociada dos processos que ocorrem em
outras regiões do país e da América Latina. No
entanto, desde sua emergência como questão
nos anos 1950 passando pela institucionaliza-
ção através do PLAMBEL nos anos 1970 até sua
retomada pelo PDDI, o planejamento metropo-
EIXO TEMÁTICO 1 ABSTRACT
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
The trajectory of the metropolitan question as a
planning problem in Brazil went through different
political, democratic and dictatorial regimes in
the 2nd half of the 20th century. The conurba-
tion processes in the main Brazilian cities in the
1950s, the expansion of the regional infrastruc-
ture, the industrialization and international cir-
culation of new theories and methods of regional
planning for the understanding of the urbaniza-
tion processes contributed to the emergence of
metropolization as a problem to planning. The
decline of urbanism as physical-territorial dimen-
sion and exclusive work field for architects and
engineers, the congregation of the multiplicity
of knowledge - economics, sociology, geography,
urbanism, etc. - for the understanding of social
processes, the introduction of the regional di-
mension in planning and the politicization of ur-
ban practice (Monte-Mor, 2008; Feldman, 2009;
Leme, 1999; 2019) or even, as stated Taylor (2009),
displacement from the morphological approa-
ch to a systemic and rational-procedural vision,
expands the planning practice in complexity and
also in scale, thus evidencing the insufficiency of
the city and the municipality as a territory to think
and guide the multi-scale and multidimensional
urbanization processes.

Metropolitan planning experiences in Minas Ge-


rais are, of course, part of that process. The insti-
tutionalization process of planning, as a complex,
multidisciplinary and multiscale activity in the
capital Belo Horizonte began in the 1950s, when
the municipality practically doubled its popula-
tion (352,724 inhabitants in 1950 to 693,328 inha-
bitants in 1960) and its urbanized area expanded
towards to the west with the Industrial City of
Contagem and to the north due to the implan-
tation of the Pampulha Complex and the resul-
ting investments in infrastructure, an expansion
marked mainly by informality and the production
of precarious peripheries (Chiquito, 2020). In this
decade, the regional dimension of planning is
already on the agenda of debates at the munici-
pal level through the creation of the Master Plan
Service in 1951 and the hiring of SAGMACS in 1958
16º SHCU to prepare studies to guide municipal planning.
30 anos . Atualização Crítica
Thus, the study “Belo Horizonte’s urban structure”
150 for the first time brings the regional dimension to
municipal planning from its links with the perver- elaborated by consulting companies -, the incor-
se effects of urbanization - poverty, marginality, poration of the social and everyday life dimension
lack of sanitation, etc. - and with the dimension into reading methods and planning instruments,
of Latin American underdevelopment (SAGMACS, developments in important instruments of control
1958). and regulation and in policies, the perspective of
social control and, more recently, the relationship
In the context of accelerated demographic and between university and state in the construction
economic growth in the 1960s and 1970s, public of planning processes.
efforts to plan and develop the metropolitan re-
gion began. The Metropolitan Region of Belo Hori- In this sense, this group seeks to bring the metro-
zonte (RMBH) was officially established in 1973 by politan planning of Belo Horizonte to its collective
the Federal Law No. 14, and the Superintendence reflection in its historical perspective, seeking
of Development of the Metropolitan Region of Belo to contribute to the historiography of planning in
Horizonte (PLAMBEL) was created as a state au- Brazil, starting from the fabric between the works
thority from a technical group of the João Pinhei- that bring reflections on created institutions, the-
ro Foundation (FJP), which had been preparing ories, practices, actors, professional networks
the Belo Horizonte Metropolitan Plan since 1971. and the training of planners. The communica-
The period of greatest activity and dynamism tions of this table as a whole bring to light, from
of PLAMBEL took place between 1975 and 1985, different perspectives and from the perspective
mainly in the planning of the road and transport of its different areas of formation - economics,
system, in the regulation of the parceling, use and engineering, architecture and urbanism -, the
occupation of metropolitan land, and in the ela- institutionalization of metropolitan planning in
boration of broad diagnoses and studies on the Minas Gerais in the 1970s, the actors involved and
RMBH. As of the mid-1980s, the agency suffered a their clashes, ideas, concepts, methods and their
significant weakening, notably due to the econo- unfoldings in recent planning experiences.
mic and fiscal crisis and to the process of political
re-democratization, having been officially extin-
guished in 1996 (Tonucci Filho, 2012). metropolitan planning Belo Horizonte PLAMBEL

The emergence of the Belo Horizonte regional


and metropolitan problem brought by SAGMACS
in 1958, the setting up of the apparatus for state
planning in the 1960s aligned with the institutio-
nalization of urban and regional planning at the
federal level which culminated in the creation of
the PLAMBEL, as well as the recent experience
of the Integrated Development Master Plan (PD-
DI-RMBH) area not dissociated from the proces-
ses that occur in other regions of the country and
Latin America. However, from its emergence as
a question in the 1950s through institutionaliza-
tion through PLAMBEL in the 1970s until its re-
sumption by the PDDI, the metropolitan planning
of RMBH has been highlighted by its specificities
with regard to innovative concepts, approaches
and methods, both during (and despite) the mi-
litary regime, as in recent experience. These in-
novations refer, above all, to the construction of
a solid public institutional structure for reflection
and practice of metropolitan planning in the sta-
te - despite the federal policy that encourages
the hiring of plans external to the administration
EIXO TEMÁTICO 1 RESUMEN
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
A lo largo de la segunda mitad del siglo XX, la
trayectoria de la cuestión metropolitana como
problema de planificación en Brasil pasa por di-
ferentes regímenes políticos, democráticos y
dictatoriales. Los procesos de conurbación ya
percibidos en las principales ciudades brasileñas
en la década de 1950, el aumento de la infraes-
tructura regional, los avances en la industriali-
zación, además de la circulación internacional
de nuevas teorías y métodos de planificación
regional y la comprensión de los procesos de ur-
banización, contribuyeron al surgimiento de la
metrópolis. como un problema que debe afrontar
la planificación. El declive del urbanismo en su di-
mensión físico-territorial como campo exclusivo
de arquitectos e ingenieros, la congregación de
la multiplicidad de conocimientos involucrados
(economía, sociología, geografía, urbanismo,
etc.) en la comprensión de los procesos sociales,
la introducción de la dimensión regional en la pla-
nificación y la politización de la práctica urbana
(Monte-Mor, 2008; Feldman, 2009; Leme, 1999;
2019) o incluso, como afirma Taylor (2009), el des-
plazamiento desde el enfoque morfológico a una
mirada sistémica y racional-procedimental, la
práctica urbanística se expande en complejidad y
también en escala, mostrando así la insuficiencia
de la ciudad y el municipio como territorio para
pensar y orientar los procesos de urbanización
multiescalar y multidimensional.

Las experiencias de planificación metropolitana


en Minas Gerais son, por supuesto, parte de ese
proceso. El proceso de institucionalización de la
planificación, como actividad compleja, multi-
disciplinaria y multiescalar en Belo Horizonte, se
inició en la década de 1950, cuando el municipio
prácticamente duplicó su población (352.724 ha-
bitantes en 1950 a 693.328 habitantes en 1960). Su
área urbanizada fué considerablemente expan-
dida, asentándose al oeste con la Ciudad Indus-
trial de Contagem y desarrollándose en el norte a
partir de la implantación del Complejo Pampulha
y las consiguientes inversiones en infraestruc-
tura, una expansión marcada principalmente
por la informalidad y la producción de periferias
16º SHCU precarias (Chiquito, 2020 ). En esa década, la di-
30 anos . Atualização Crítica
mensión regional de la planificación ya estaba en
152 la agenda de debates a nivel municipal, a través
de la creación del Servicio Plan Maestro en 1951 y por sus especificidades con respecto a concep-
la contratación de la SAGMACS en 1958 para ela- tos, enfoques y métodos innovadores, durante (y
borar estudios que pudiesen orientar la planifica- a pesar) del régimen militar, como también en la
ción municipal. Así, el estudio “Estructura urbana experiencia reciente. Estas innovaciones hacen
de Belo Horizonte” trae por primera vez la dimen- referencia, sobre todo, a la construcción de una
sión regional al planeamiento municipal desde su sólida institucionalidad pública para la reflexión y
vinculación con los efectos perversos de la urba- la práctica de la planificación metropolitana en el
nización - pobreza, marginalidad, ausencia de sa- estado, a pesar de la política federal que incenti-
neamiento, etc.- y con la dimensión del subdesar- va la contratación de planes externos a la admi-
rollo latinoamericano (SAGMACS, 1958). nistración, elaborados por empresas consulto-
ras. Aún, hacen referencia a la incorporación de
Es en el contexto del rápido crecimiento demo- la dimensión social y cotidiana en los métodos de
gráfico y económico de las décadas de 1960 y lectura e en los instrumentos de planificación,
1970 que empiezan los esfuerzos públicos para además del despliegue en importantes instru-
planificar y desarrollar la región metropolita- mentos de control y regulación en la perspectiva
na. La Región Metropolitana de Belo Horizonte del control social y, más recientemente, la relaci-
(RMBH) fue establecida oficialmente en 1973 por ón universidad-estado en la construcción de pro-
la Ley Federal Complementaria No. 14. En 1974, cesos de planificación.
se creó la Superintendencia de Desarrollo de la En este sentido, esta mesa busca acercar la pla-
Región Metropolitana de Belo Horizonte (PLAM- nificación metropolitana de Belo Horizonte en
BEL), en forma de autoridad estatal, con un grupo una reflexión colectiva y en perspectiva históri-
técnico que venía de la Fundación João Pinheiro ca, buscando contribuir a la historiografía de la
(FJP), y que ya estaba elaborando el Plan Metro- planificación en Brasil, a partir del tejido entre
politano de Belo Horizonte desde 1971. El período las obras que traen reflexiones sobre las institu-
de mayor actividad y dinamismo de PLAMBEL ciones creadas, teorías, prácticas, actores, redes
tuvo lugar entre 1975 y 1985, principalmente en la profesionales y formación de planificadores. Las
planificación del sistema vial y de transporte, en comunicaciones de esta mesa en su conjunto po-
la regulación de la parcelación, uso y ocupación nen de manifiesto, desde diferentes perspectivas
del suelo metropolitano, y en la elaboración de y desde la perspectiva de sus distintas áreas de
amplios diagnósticos y estudios sobre la RMBH. A formación - economía, ingeniería, arquitectura
mediados de la década de 1980, la agencia sufrió y urbanismo -, la institucionalización de la pla-
un debilitamiento significativo, principalmente nificación metropolitana en Minas Gerais en la
debido a la crisis económica y fiscal y al proceso década de 1970, los actores involucrados y sus
de redemocratización política, y fue extinto ofi- choques, ideas, conceptos, métodos y sus des-
cialmente en 1996 (Tonucci, 2012). pliegues en experiencias de planificación recien-
tes.
Así, el surgimiento del problema regional y me-
tropolitano de Belo Horizonte traído por la SAG-
MACS en 1958, la puesta en marcha de un apa-
PLANIFICACIÓN METROPOLITANA BELO HORIZONTE
rato de planificación a nivel estatal en la década PLAMBEL
de 1960, alineado con la institucionalización de
la planificación urbana y regional a nivel federal
y que culmina con la creación del PLAMBEL, a
que se sumaría la experiencia reciente del Plan
Maestro de Desarrollo Integrado (PDDI-RMBH) no
están disociados de los procesos que ocurren en
otras regiones del país y América Latina. Sin em-
bargo, la planificación metropolitana de RMBH,
desde su surgimiento como un tema en la década
de 1950 y su institucionalización por medio de la
creación de PLAMBEL en la década de 1970, has-
ta su reanudación por el PDDI, se ha destacado
EIXO TEMÁTICO 1 EMERGÊNCIA E INSTITUCIONALIZAÇÃO DO
PLANEJAMENTO METROPOLITANO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
DE BELO HORIZONTE 1

mesa temática
Podemos entender o período de emergência e
institucionalização do planejamento metropo-

PLANEJAMENTO litano em Belo Horizonte entre os anos de 1958


e 1974. O primeiro se refere à data do primeiro
METROPOLITANO EM estudo contratado pela Prefeitura de Belo Hori-
zonte intitulado “A Aglomeração Urbana de Belo
BELO HORIZONTE: IDEIAS, Horizonte” elaborado pela equipe da SAGMACS,
quando se introduz a perspectiva regional e a
MÉTODOS, PRÁTICAS E SEUS dimensão do planejamento metropolitano na ad-
ministração municipal de Belo Horizonte. O se-
DESDOBRAMENTOS gundo fixa a data de criação da Superintendência
de Desenvolvimento da Região Metropolitana de
Belo Horizonte (PLAMBEL), primeiro órgão da ad-
METROPOLITAN PLANNING IN BELO HORIZONTE: IDEAS, ministração pública estadual para o planejamento
METHODS, PRACTICES AND THEIR UNFOLDINGS metropolitano. Em diálogo com os processos
de urbanização em curso e suas questões pre-
PLANIFICACIÓN METROPOLITANA EN BELO HORIZONTE: mentes, cuja escala de complexidade se acentua
IDEAS, MÉTODOS, PRÁCTICAS Y SUS DESPLIEGUES nesse período - pobreza, marginalidade, mora-
dias precárias, expansão urbana desenfreada,
infraestrutra insuficiente, etc. - a configuração
de um complexo de ideias, agentes e instituições
que progressivamente vão assumindo o caráter
e a dimensão metropolitanos fizeram desse o
período de maior aposta nas possibilidades do
estado como promotor do desenvolvimento e da
superação dos problemas urbanos.

Essa construção se relaciona aos processos mais


amplos deflagrados no 2o pós guerra, quando um
novo repertório e novas questões e referências
se fazem circular entre Europa, Estados Unidos e
América Latica propulsionados pelos programas
de cooperação internacional e de financiamento
aos países subdesenvolvidos promovidos pe-
los organismos internacionais. Paralelamente,
o processo de urbanização no Brasil traz novas
questões. Ao longo da década de 1950, a popu-
lação urbana brasileira cresce 60%, sendo que
1/3 deste incremento populacional se instala em
áreas metropolitanas e se direcionam, nos princi-
pais centros urbanos para as periferias. Em Belo

1. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coorde-


16º SHCU
nação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
30 anos . Atualização Crítica
– Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001 e com o
154 apoio do CNPQ.
Horizonte entre os anos 1950 e 1970 um grande FORMULANDO LEITURAS E CONSTRUINDO
aumento populacional acompanhando sua trans- METODOLOGIAS - CONCEPÇÕES, IDEIAS E INOVAÇÕES
formação em metrópole industrial configura a
NO PLANEJAMENTO METROPOLITANO DO PLAMBEL
explosão da cidade sobre seu entorno.
NAS DÉCADAS DE 1970 E 1980 EM BELO HORIZONTE 2
Na perspectiva de compreender o espaço insti-
tucional como lugar de enfrentamento e embates
entre ideias e agentes e entre o que se pensa e o No processo de criação das primeiras regiões
que se executa (Feldman, 2002), e como catego- metropolitanas do país, em meados da década de
rias do espaço social, ou seja, como espaço co- 1970, foram instituídos também seus respectivos
mum importante para o estudo do “novelo das re- órgão de planejamento, alguns existentes até o
lações entretecidas entre os agentes individuais, momento atual, outros foram sendo formalmente
entre esses agentes e o grupo” (Revel, 2010:125) extintos pelo caminho, embora alguns tenham
e as dissonâncias e assincronias entre teoria e deixado uma importante trajetória de ideias,
prática (Lepetit, 1993), desvendar a construção ações práticas, estudos e pesquisas que vieram
institucional do planejamento metropolitano de a se transformar em políticas e regulação local e
Belo Horizonte a partir do “estudo das trajetórias metropolitana. Tal foi o caso do Plambel, o órgão
dos membros do grupo, das relações que empre- de planejamento instituído juntamente com a Re-
endem, de suas aproximações e de suas divisões gião Metropolitana de Belo Horizonte, que durou
no seio do conjunto institucional e das redefini- aproximadamente duas décadas, deixando uma
ções permanentes que eles induzem” (REVEL, contribuição significativa que vem influenciando
2010:128) pode nos ajudar a explicar a dinâmica o planejamento metropolitano até os dias atuais.
das ideias e de suas formas institucionais. Destacamos o papel da instituição, em particular
em dois aspectos: primeiramente, na formação
Através da ampla documentação disponível e de um amplo e diversificado corpo de profissio-
as entrevistas realizadas no âmbito da pesquisa nais capacitados e motivados, atuantes em vá-
financiada pela FAPEMIG e pelo CNPq podemos rias áreas do planejamento e da implementação
detectar algumas singularidades do planejamento de políticas de âmbito metropolitano, os quais,
da RMBH as quais serão desenvolvidas na comu- posteriormente, também tiveram papel de des-
nicação. A primeira se refere à forte presença de taque na atuação em outras escalas espaciais,
perspectiva social, marcada sobretudo pela incor- tanto nacionais como locais/municipais. Pode-se
poração de métodos e concepções da sociologia dizer que o Plambel foi uma escola com relati-
desde o trabalho da SAGMACS até a presença vo grau de liberdade de pensamento, ainda que
de sociólogos na equipe técnica do PLAMBEL. com autonomia de ação bastante restrita face ao
A segunda se refere à disputa, no processo de momento de grande fechamento político em que
construção institucional, entre a formação de foi criado. O segundo aspecto diz respeito à sua
quadros técnicos para o planejamento e a contra- produção técnica, profissional e (em parte) aca-
tação de empresas de consultoria, cujo resultado dêmica, evidenciada aqui pelo desenvolvimento
pode-se dizer que desembocou num ama ́lgama de estudos, pesquisas e leituras socioterritoriais,
te ć nico com alto grau de reflexão e de capacidade mobilizando concepções e métodos de plane-
de ação teçnica e politica com desdobramentos jamento inovadores, contribuindo para firmar
importantes na politica urbana, citando como o planejamento metropolitano como prática e
exemplo a participação ativa no processo cons- função de governo em Minas Gerais. Tais visões
tituinte a na retomada do debate sobre a reforma influenciaram as concepções de várias políticas,
urbana em nível nacional. apesar dos limitados poderes de decisão sobre a
implementação das mesmas. 

O contexto político e socioeconômico do Brasil


nos anos de 1970, no qual o planejamento surge,

2. O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPQ e


FAPEMIG.
EIXO TEMÁTICO 1 institucionalmente centralizado, convivia com
elevadas taxas de crescimento industrial, intensa
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO migração e crescimento demográfico, severa
repressão política, concentração de poder e parti-
cipação popular praticamente inexistente. Apesar
deste quadro, argumenta-se que no campo do
planejamento parecia haver algum espaço para
pensamentos alternativos, materializados em
propostas com alguma dose de reforma social. 

A contribuição busca dar visibilidade a algumas


concepções teóricas subjacentes aos trabalhos
do Plambel, algumas ancoradas na economia po-
lítica da urbanização, como um estudo pioneiro
sobre mercado fundiário, que iria influenciar o
controle sobre a expansão urbana simultanea-
mente à criação da Lei Federal 6766/79, assim
como concepções inovadoras para a época rela-
cionadas aos territórios informais da cidade, as
vilas e favelas, que dariam origem a uma política
pioneira de urbanização de favelas, o PROFAVE-
LA, similar e contemporânea das primeiras ZEIS
surgidas no Recife. Outros estudos relevantes
exploraram ideias de inspiração lefebvriana como
a dimensão da vida cotidiana e do espaço social
inerentes a uma leitura humanista do território
que veio a resultar na adoção do conceito de cam-
po como uma unidade espacial de vida urbana,
identificada pelo alcance espacial da resolução
das necessidades cotidianas das pessoas em
seus espaços de vida. Os estudos trafegavam
por diferentes escalas espaciais, que resultaram
em propostas regionalizadas de intervenção na
metrópole. O estudo do uso do solo metropolitano
e a ênfase nas macroestruturas e na percepção
abrangente da dinâmica imobiliária foram impor-
tantes elementos para as chamadas diretrizes
metropolitanas a serem implementadas nos níveis
locais/municipais. A leitura e reconhecimento da
natureza no espaço metropolitano, com utilização
de metodologias de análise espacial com ajuda
da cartografia de então, motivaram propostas
estruturantes no campo ambiental, muitas ain-
da relevantes nos dias atuais, conforme entre-
vistas feitas com ex-integrantes da equipe da
instituição. Naturalmente, toda esta diversidade
de formulações não se deu sem conflitos, seja no
campo das ideias ou nas ações políticas, porém
consideramos que recuperar a trajetória do plane-
16º SHCU jamento metropolitano a partir da experiência do
30 anos . Atualização Crítica
Plambel, além de ser uma experiência educativa,
156 formativa e de resgate da memória institucional,
pode abrir novas perspectivas para a experiência PLANEJAMENTO URBANO/METROPOLITANO
de planejamento metropolitano vivida na última EM MINAS GERAIS: A QUESTÃO DA (DES)CONTINUIDADE
década na RMBH e na nossa universidade, onde
NO PLANEJAMENTO 3
vem sendo articuladas ações de extensão, ensino
e pesquisa. 
O planejamento da Região Metropolitana de Belo
Horizonte (RMBH) se institucionaliza, em um pri-
meiro momento, nos anos 1970, em continuidade
ao processo de construção de um aparato institu-
cional para o planejamento e desenvolvimento do
estado de Minas Gerais iniciado nos anos 1960. Em
1971 foi criado o Grupo de Planejamento da RMBH
na Fundação João Pinheiro (FJP), uma das insti-
tuições desse aparato, da qual posteriormente se
desvincula transformando-se em autarquia com a
constituição da Superintendência do Plano Metro-
politano de Belo Horizonte (PLAMBEL). Também
na FJP foi criado no início dos anos 1970 o Centro
de Desenvolvimento Urbano (CDU), voltado para
o planejamento local integrado, no momento em
que o Serviço Federal de Habitação e Urbanismo
(SERFHAU) atuava como órgão coordenador e
financiador da elaboração de planos urbanos -
Plano de Desenvolvimento Local Integrado (PDLIs),
Plano de Ação Imediata (PAI) e Relatório Preliminar
(RP) – para cidades de diferentes tamanhos popu-
lacionais. A história integrada deste aparato e de
sua experiência ainda está por ser escrita. Mas, a
retomada do planejamento metropolitano de Belo
Horizonte neste século, despertou o interesse
por reflexões sobre questões do planejamento
que têm permeado minhas atividades de pes-
quisador e professor no campo do planejamento
urbano e regional. Uma dessas questões refere-se
à continuidade do planejamento, enquanto pro-
cesso, sempre colocada como uma dificuldade
não resolvida.

Minha proposta é refletir sobre esta questão tendo


como referências, por um lado, minha experiência
enquanto planejador urbano no CDU/UFMG, espe-
cialmente como coordenador, na segunda meta-
de dos anos 1970, do Plano de Desenvolvimento
Integrado (PDI) Vale do Aço que durou quase três
anos (1976 – 1978) e significou, além da elaboração
do plano, o início de um processo de planejamen-
to continuado. Ali estava se formando desde os
anos 1950, uma aglomeração urbana (Aglomerado

3. O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPQ e


FAPEMIG.
EIXO TEMÁTICO 1 Urbano do Vale do Aço - AUVA) constituída de
três municípios – Ipatinga, Coronel Fabriciano e
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO Timóteo - que vinham passando por intenso pro-
cesso de crescimento urbano principalmente por
abrigarem duas grandes siderúrgicas: Usiminas e
a então Acesita. Por outro lado, como pesquisador
da experiência do planejamento metropolitano
de Belo Horizonte.  

O PLAMBEL atuou, especialmente nas décadas


de 1970 e 1980, no planejamento metropolitano,
desenvolvendo estudos, planos, projetos e orien-
tando o planejamento e a gestão em municípios
da RMBH. Nos anos 1980, paralelamente ao pro-
cesso de redemocratização do país, o PLAMBEL,
identificado com a centralização e o autoritarismo
do regime militar, tem sua atuação questionada e
reduzida até sua extinção em 1996, num contexto
de crise do planejamento e da força do movimento
municipalista no processo constituinte de 1988.
Nos anos 2000, outra fase é inaugurada em re-
lação ao planejamento da RMBH, por meio de um
novo arranjo institucional, da inserção de novos
agentes e novos métodos de planejamento, com
destaque para a atuação, no planejamento metro-
politano, de professores e alunos da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG) e a criação em
2009 da Agência RMBH.

Ambas as experiências – RMBH e Aglomerado


Urbano do Vale do Aço – apresentam elementos
importantes para discutir e refletir sobre a ques-
tão do planejamento enquanto processo contínuo.
Minha proposta nesta exposição é explorar alguns
desses elementos. Um primeiro diz respeito à
natureza das entidades responsáveis pelo pla-
nejamento. Tanto o PLAMBEL quanto a FJP eram
autarquias estaduais, o que significava certo grau
de liberdade em termos de tempo, recursos e
disponibilidade de equipes, no processo de plane-
jamento. Tal situação é diferente daquela em que
a elaboração de planos se dá meio de empresas
de consultoria, especialmente quanto à possibili-
dade de enraizamento do planejamento enquanto
atividade contínua. Um segundo elemento, para
além da liberdade acima mencionada, refere-se
a certo grau de autonomia no estabelecimento de
princípios e metodologias para a abordagem da
problemática urbana/metropolitana, contribuin-
16º SHCU do para avançar na construção teórica e prática
30 anos . Atualização Crítica
desse vasto e complexo campo do conhecimento
158 que é o planejamento urbano e regional.
Pretendo refletir sobre tais questões explo- “O MERCADO DA TERRA NA REGIÃO METROPOLITANA
rando semelhanças e diferenças das situações DE BELO HORIZONTE” E O PAPEL DO PLAMBEL
apresentadas para chegar à experiência mais
NA REGULAÇÃO DO USO DO SOLO METROPOLITANO 4
recente sobre o planejamento metropolitano de
Belo Horizonte, acima mencionada, na qual estive
envolvido nos últimos dez anos, junto com outros Na segunda metade da década de 1970, a Diretoria
professores e alunos da UFMG. Abandonado por de Planejamento do Plambel, por meio da sua sub-
quase 20 anos, o planejamento metropolitano seção de Economia Urbana, realizou uma pesquisa
foi retomado por iniciativa do governo do estado inédita e inovadora intitulada O mercado da terra na
de Minas Gerais. As ações da equipe da UFMG RMBH. Esta publicação – cuja primeira edição é de
se constituíram inicialmente na elaboração do 1978, tendo sido revista e reeditada em 1987 – aborda
plano e do macro-zoneamento metropolitanos e a formação histórica, a evolução e a estrutura do
posteriormente na elaboração de planos diretores mercado de terrenos, assim como a distribuição
participativos para 11 municípios da RMBH, o que
espacial dos preços da terra e a formação do valor do
permitiu avançar no processo de enraizamento
solo urbano na RMBH entre 1950 e 1975. Partindo de
da atividade de planejamento urbano/metropo-
fundamentos teóricos da economia urbana de matriz
litano. A metodologia construída, por meio de
neoclássica, o estudo evoluiu incorporando concei-
trabalho coletivo e participativo ao longo dos 10
tos e ideias da então chamada “economia política
anos da experiência foi, sem dúvida, o elemento
da urbanização”, uma abordagem ainda emergen-
central para tal enraizamento e a possibilidade
te em todo o mundo àquele momento. Lançando
de continuidade do planejamento enquanto ati-
mão de inovadores métodos de pesquisa (como o
vidade contínua. Foi uma experiência inovadora
recurso a anúncios de imóveis em classificados de
de planejamento territorial que joga mais luzes
jornais) e do estudo dos agentes sociais envolvidos
para a reflexão proposta para essa exposição. 
no mercado da terra (em detrimento de leituras mais
abstratas e esquemáticas), este trabalho pode ser
considerado um estudo pioneiro no Brasil, ainda
que pouco conhecido até hoje.

A aprovação da Lei Lehmann em 1979 – Lei Federal


6.766 que dispõe sobre os processos de parcela-
mento do solo urbano – determinou que caberia à
autoridade metropolitana o exame e anuência prévia
dos projetos de parcelamento em RMs. Ao longo da
década de 1980, em decorrência desta mudança na
legislação nacional e da intensificação do processo
de metropolização, o Plambel veio a assumir pro-
gressivamente maiores responsabilidades e desta-
cado protagonismo no que toca à regulação urbana
na RMBH e no recém-instituído Colar Metropolitano,
via ações e programas variados, tais quais o controle
do parcelamento do solo urbano, a regularização de
loteamentos, a redefinição de perímetros urbanos,
a elaboração de propostas para leis de parcelamen-
to, uso e ocupação do solo municipais etc. Dentre
algumas dos projetos deste período, destacam-se
a reformulação do POS (Plano de Ocupação do Solo
da Aglomeração Metropolitana) e a construção do
cadastro de parcelamento da RMBH.

4. O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPQ e


FAPEMIG.
EIXO TEMÁTICO 1 O Mercado da terra teve influência interna sobre o
desenho destas ações, além de haver contribuído
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO para a crítica de uma abordagem de planejamento
físico-territorial que desconsiderava os processos
sócio-espaciais, notadamente as dinâmicas econô-
micas e o funcionamento dos mercados de terra e
de imóveis na RMBH. Assim, esta comunicação tem
como objetivo ajudar a lançar alguma luz sobre as se-
guintes questões: a) quais as concepções e metodo-
logias que inspiraram o estudo sobre o mercado da
terra, e por quais caminhos estas ideias circularam
passando pelo Plambel?; b) quais foram as principais
descobertas e conclusões do estudo, particular-
mente quanto aos impactos do mercado de terra
sobre o processo de desenvolvimento da RMBH?;
c)  qual foi a importância deste estudo para reorien-
tação do planejamento e da regulação do solo me-
tropolitanos? d) quais foram os impactos das ações
de regulação adotadas à época sobre a dinâmica e
estrutura do mercado da terra na RMBH, a partir
da avaliação do próprio órgão e de seus técnicos?

Serão apresentados resultados parciais de pesquisa


em curso a partir da leitura de documentos digitali-
zados, revisão bibliográfica, leitura crítica do estudo
em questão na sua versão original e na versão revi-
sada, consulta a dados de regulação metropolitana
do período e entrevistas com ex-funcionários e
dirigentes do órgão, particularmente com aqueles
envolvidos nas questões referentes ao mercado da
terra e à regulação do uso do solo metropolitano.
A reflexão tem como fio condutor o contexto de
pronunciadas transformações sócio-espaciais,
demográficas e econômicas experimentadas pela
RMBH e pelo país nas décadas de 1970 e 1980, as-
sim como as mudanças e constrangimentos no
panorama intelectual e de formação dos técnicos
de planejamento, tendo em vista situar historica-
mente o estudo sobre o Mercado da terra e as suas
repercussões sobre o planejamento metropolitano
naquele momento.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

160
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16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

162
163
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
EIXO TEMÁTICO 1 RESUMO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
O tema da Reforma Urbana arrebatou debates,
ações e corações em países da América Latina
mesa temática nos anos de 1960, tema que, na presente mesa,
estará circunscrito pelas experiências desen-
volvidas no Peru, na Argentina, no Brasil e em
REFORMA URBANA EM Cuba.

PAÍSES DA AMÉRICA LATINA: Cuba constituiu, sem dúvida, a principal refe-


rência de formulação, a partir da qual diversos
MOVIMENTOS PARTILHADOS, e contraditórios movimentos foram ensaiados
em direção a possibilidades de transformação
TEMPOS IMBRICADOS, das cidades, consideradas como problema so-

EXPERIÊNCIAS INSTIGANTES cial a ser equacionado.

De fato, a experiência cubana da Reforma Urba-


URBAN REFORM IN LATIN AMERICAN COUNTRIES: na pode ser considerada como a mais revelado-
SHARED MOVEMENTS, INTERWOVEN TIMES, ra e a mais próxima da realidade latino-america-
THOUGHT-PROVOKING EXPERIENCES na, configurando uma tripla transição. Primeiro,
porque ela integra o que Fidel Castro chama de
passagem do período de reformas para o perí-
REFORMA URBANA EN PAÍSES DE AMÉRICA
odo propriamente revolucionário, reafirmando
LATINA: MOVIMIENTOS COMPARTIDOS, TIEMPOS
princípios e estratégias delineados por movi-
ENTRELAZADOS, EXPERIENCIAS ESTIMULANTES
mentos socialistas e comunistas desde a vira-
da do século XIX para o XX. Segundo porque, ao
HUAPAYA ESPINOZA, José Carlos inovar, nomeando essa reforma como urbana,
Doutor; Faculdade de Arquitetura/PPGAU/Universidade
inaugura-se uma nova modalidade de designa-
Federal da Bahia ção do processo reformista, no qual a cidade
joseespinoza@ufba.br enquanto tal passa a ter papel protagonista. Por
fim, ela se torna lugar de referência para inicia-
MONTI, Alejandra tivas e ações em curso em diversas cidades lati-
Doutora; CONICET/CURDIUR/Universidad Nacional
no-americanas, como acima indicado.
de Rosario
montialejandra@gmail.com Mas outros processos importam também para
demarcar essa conjuntura. Destacaremos três:
FERNANDES, Ana a tensão geopolítica que marca a guerra fria e
seus mecanismos de governança internacional;
Doutora; Faculdade de Arquitetura/PPGAU/Universidade
Federal da Bahia a urbanização acelerada e concentrada; e as
anaf@ufba.br condições políticas e institucionais específicas
a cada país, que regem a construção situada da
TREFFTZ, Erich pauta da reforma urbana.

Doutor; Investigador y cientifico autônomo Ciudad
Universitaria José Antonio Echeverría A guerra de posições que marca o pós-II Guerra
erich@trefftz.de Mundial, concretizada militarmente na constru-
ção da OTAN- Organização do Tratado do Atlân-
tico Norte (1949) e do Pacto de Varsóvia (1955),
se apoia também sobre a criação de organismos
16º SHCU internacionais entendidos como possíveis me-
30 anos . Atualização Crítica
diadores dos conflitos e disputas instaurados
164 em regimes desiguais de soberania e desenvol-
vimento. Nesse contexto, é a própria ideia de do a questão urbana, em íntima associação com
América Latina que se afirma, em processos va- militâncias várias, das quais ressaltam aquelas
riados. Concernindo-a diretamente, vale ressal- vinculadas à Igreja e ao Partido Comunista, an-
tar a criação da OEA- Organização dos Estados coradas numa espécie de internacional cristã,
Americanos e da CEPAL- Comissão Econômica em crescendo desde o XVI e na própria interna-
para a América Latina e o Caribe, ambas em cional comunista, a partir de fins do XIX. É in-
1948, a do BID- Banco Interamericano de Desen- teressante verificar a expansão do partido co-
volvimento, em 1959 e a da ALALC- Associação munista nos países aqui em pauta: ele foi criado
Latino Americana de Livre Comércio, em 1960. em 1918 na Argentina, em 1922 no Brasil, em 1925
Por sua vez, a ativação dessas instituições e es- em Cuba, em 1928 no Peru. Com eles, a própria
calas, embora bastante hierárquica, pode tam- configuração política dos países é modificada,
bém ser multidirecional, partindo de governos claro que em distintas conjunturas de maior ou
nacionais, diferentemente posicionados. Nesse menor possibilidade de ação, através de tensio-
sentido, é exemplar a proposição da OPA- Ope- namentos de várias ordens, concernindo, entre
ração Latino Americana (1958), formulada por outras, a produção conceitual e intelectual, a
Juscelino Kubitschek, em contexto delicado organização social e a construção de perspec-
das relações Estados Unidos-Venezuela, como tivas societárias.
caminho para o combate à miséria em vários
países do continente e que resulta na constitui- Esses processos gerais se especificam nas re-
ção do próprio BID, no ano seguinte. Mas dessa alidades nacionais, que aqui serão abordadas a
mesma iniciativa, agora como contraposição partir de diferentes e instigantes perspectivas
direta à Revolução Cubana e num período de que tensionam, em temporalidades diversas, a
intenso ativismo estadunidense, resultará tam- reforma urbana em seus desdobramentos con-
bém a formatação do programa Aliança para o cretos e interligados.
Progresso, firmado em 1961, através da Carta de
Punta del Este. Assinada por 22 países membros A experiência peruana nos coloca frente a um
da OEA, parte de seus recursos visava ao finan- processo de mais longa temporalidade, que an-
ciamento de habitação e infraestrutura urbana. tecede a reforma urbana tal como foi nomeada
Em termos dos processos de urbanização que em 1960, problematizando, desde os anos 1950,
marcavam os países do continente, há de se possibilidades para o enfrentamento da ques-
ressaltar sua intensidade, resultado de amplos tão habitacional em sintonia com o enfrenta-
movimentos populacionais entre campo e ci- mento dos processos fundiários especulativos.
dade e entre cidades e também de diminuição Ali se constitui, inclusive, uma experiência refe-
de taxas de mortalidade. O crescimento urba- rencial para o tratamento da questão dos “bar-
no resultante é marcado por intensa pobreza, rios marginales” e todo o aparato administrativo
incapacidade pública de provimento dos bens e institucional que isso requer, mostrando, que
básicos para a reprodução nas cidades e, por- ao invés de criação ex-nihilo, vem à tona o cará-
tanto, acesso inviabilizado à terra urbanizada ter processual da construção.
para grande parte da população. Decorre daí a
constituição de uma das principais lógicas da Na Argentina, nos anos 60, a constatação de
produção e reprodução urbana do pós- segunda uma instabilidade política se faz acompanhar
guerra nos países pobres: crescimento desigual por uma certa inoperância institucional. Entre
e espoliativo, ação pública hierarquizada por outras derivações e compartilhando processos
escolhas sociais e econômicas hegemônicas de outros países latino-americanos, a cidade
e acentuada valorização especulativa da terra. é ali investida intelectual e academicamente
Ou seja, barriadas, invasões e ocupações, villas enquanto objeto de reflexão e investigação em
miséria, tugurios são parte integrante desse seus processos desiguais e particulares, aban-
processo, constituindo um elemento comum donando mimetismos com realidades distantes
das cidades latino-americanas. Essa concretu- ou expectativas impróprias. Mas isso significa
de voraz da realidade urbana e urbanística gera também a elaboração de estratégias para o en-
uma infinidade de estratégias de inserção, de frentamento dessas questões, através de inter-
confrontos, de desobediências civis, politizan- câmbios de experiências e reflexões coletivas,
EIXO TEMÁTICO 1 a reforma urbana sendo então explorada como
problema e como instrumento de ação.
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
O Brasil, por sua vez, também num período po-
liticamente bastante instável, se vê mobilizado
por ampla campanha de reformas, particular-
mente entre 1960 e 1964. Sobre um acúmulo de
experiências e iniciativas construídas desde os
anos 1930, a problematização da cidade, seus
processos conflitivos e alternativas almejadas
são incorporados por forças políticas as mais
diversas, em conjuntura inquieta e reformista.
A questão da reforma urbana vai ganhar tal am-
plitude que será acirradamente disputada em
diferentes frentes e organizações, explicitando
interesses e horizontes para sua concretização.
E, por fim, que caminhos seguiu a reforma ur-
bana cubana de 1960? Com que questões se de-
frontou, que resultados alcançou? A lei sofreu
modificações importantes em alguns de seus
princípios, em 2011, como os relativos à compra
e venda de habitações e a licenças para cons-
trução, bem como seguem as discussões sobre
os aluguéis e as hipotecas. 60 anos depois da
construção de uma marco histórico na política
urbana internacional, importa analisar os de-
safios atualmente colocados à reforma urbana
cubana, refletindo sobre as questões relativas à
propriedade, ao acesso ao solo e à produção e
ao financiamento da habitação.

A mesa “Reforma Urbana em Países da Amé-


rica Latina (Peru, Argentina, Brasil e Cuba):
movimentos partilhados, tempos imbricados,
experiências instigantes” contribui, portan-
to, para uma reflexão multidirecional sobre os
processos de reforma urbana dos anos 60 em
países latino-americanos. E nos leva também
a pensar sobre as configurações atuais da pró-
pria bandeira da reforma urbana, tão atual ainda
em nossos países, bem como sobre os desafios
com os quais ela nos confronta, na busca de so-
ciedades justas e democráticas.

Reforma Urbana América Latina anos 1960

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

166
ABSTRACT mission for Latin America and the Caribbean,
both in 1948, that of the IDB - Inter-American De-
velopment Bank, in 1959 and that of LAFTA- Latin
The theme of Urban Reform captured debates, American Free Trade Association in 1960.
actions and hearts in Latin American countries in
the 1960s. In this table, we will circumscribe the In turn, the activation of these institutions and
theme by experiences developed in Peru, Argenti- scales, although quite hierarchical, can also be
na, Brazil and Cuba. multidirectional, starting from national govern-
ments, differently positioned. In this sense, the
Cuba was undoubtedly the main reference, from proposal of the LAO - Latin American Operation
which diverse and contradictory movements (1958), formulated by Juscelino Kubitschek, in a
were tested towards the possibilities of transfor- delicate context of the United States-Venezuela
ming cities, considered as a social problem to be relations, as a way to combat extreme poverty in
addressed. several countries of the continent, which results
in the constitution of the IDB itself the following
In fact, the Cuban experience of Urban Reform year. But from this same initiative, now as a direct
can be considered as the most revealing and the opposition to the Cuban Revolution and in a pe-
closest to the Latin American reality, configuring riod of intense American activism, will also result
a triple transition. First, because it integrates the Alliance for Progress program, established in
what Fidel Castro calls a transition from the pe- 1961, in the Charter of Punta del Este. Signed by 22
riod of reform to the period of revolution, reaffir- OAS member countries, part of its resources were
ming principles and strategies outlined by socia- used to finance housing and urban infrastructure.
list and communist movements from the turn of In terms of the urbanization processes that
the 19th to the 20th century. Secondly because, by marked the countries of the continent, its inten-
naming it as a urban reform, it inaugurates a new sity must be emphasized as a result of wide po-
designation of the reformist process in which the pulation movements between countryside and
city as such has a leading role. Finally, it becomes city and between cities and also from a decrease
a reference point for ongoing initiatives and ac- in mortality rates. The resulting urban growth is
tions in several Latin American cities, as indica- marked by intense poverty, public inability to pro-
ted above. vide basic goods for reproduction in cities and,
therefore, unviable access to urbanized land for
But other processes also matter to establish this a large part of the population. Hence the cons-
situation. We will highlight three: the geopolitical titution of one of the main logics of post-second
tension that marks the cold war and its mechanis- war urban production and reproduction in poor
ms of international governance; the accelerated countries: unequal and spoliative growth, pu-
and concentrated urbanization; and the political blic action hierarchized by hegemonic social and
and institutional conditions specific to each cou- economic choices and accentuated speculative
ntry, which govern the construction of the urban appreciation of the land. In other words, barria-
reform agenda. das, invasions and occupations, villas miseria
and tugurios are an integral part of this process,
The war of positions that marks the post-World constituting a common element of Latin Ame-
War II, concretized militarily in the construction of rican cities. This voracious concreteness of the
NATO - North Atlantic Treaty Organization (1949) urban and urbanistic reality generates an infinity
and the Warsaw Pact (1955), is also supported by of insertion strategies, of confrontations, of civil
the creation of international organizations un- disobediences, politicizing the urban question,
derstood as possible mediators of conflicts and in close association with various militancies, of
disputes established in unequal sovereignty and which stand out those linked to the Church and
development regimes. In this context, it is the very the Communist Party, anchored in a kind of Chris-
idea of Latin
​​ America that asserts itself, in diffe- tian international, growing since the XVI and in
rent processes. Concerning it directly, it is worth the communist international itself, from the end
mentioning the creation of the OAS - Organization of the XIX. It is interesting to see the expansion of
of American States and ECLAC - Economic Com- the communist party in the countries we mention
EIXO TEMÁTICO 1 here: it was created in 1918 in Argentina, in 1922 in
Brazil, in 1925 in Cuba, in 1928 in Peru. With them,
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO the political configuration of the countries is mo-
dified, of course, in different situations of greater
or lesser possibility of action, through tensioning
of various orders, concerning, among others,
conceptual and intellectual production, social
organization and the construction of social pers-
pectives.

These general processes take different forms in


each national reality. We will approach them from
different and thought-provoking perspectives
that tension urban reform in its concrete and in-
terlinked developments at different times.

The Peruvian experience places us in front of a


longer process, which precedes the urban reform
as it was named in 1960, problematizing, since the
1950s, possibilities for facing the housing issue in
line with facing the speculative land processes.
There, it constitutes, even, a referential experien-
ce to deal with the issue of “barrios marginales”
and all the administrative and institutional appa-
ratus that this requires, showing that, instead of
ex-nihilo creation, the procedural character of
the construction comes to the surface.

In Argentina, in the 1960s, the finding of political


instability was accompanied by a certain institu-
tional ineffectiveness. Among other derivations
and sharing processes from other Latin American
countries, the city is invested there intellectually
and academically as an object of reflection and
investigation in its unequal and particular proces-
ses, abandoning mimicry with distant realities or
inappropriate expectations. But this also means
the elaboration of strategies to face these issues,
through exchanges of experiences and collective
reflections, urban reform being then explored as
a problem and as an instrument of action.

Brazil, in turn, also in a politically unstable period,


finds itself mobilized by a wide campaign of re-
forms, particularly between 1960 and 1964. On an
accumulation of experiences and initiatives built
since the 1930s, the problematization of the city,
its conflictive processes and desired alternati-
ves are incorporated by the most diverse political
16º SHCU forces, in a restless and reformist situation. The
30 anos . Atualização Crítica
issue of urban reform will gain such breadth that
168 it will be fiercely disputed on different fronts and
organizations, explaining interests and horizons RESUMEN
for its implementation.

And, finally, what paths did the Cuban urban re- El tema de la Reforma Urbana captó debates, ac-
form of 1960 follow? What questions were faced, ciones y corazones en los países de América Lati-
what results were achieved? The law underwent na en la década de 1960, tema que, en esta mesa,
important changes in some of its principles in estará circunscrito a las experiencias desarrolla-
2011, such as those relating to the purchase and das en Perú, Argentina, Brasil y Cuba.
sale of housing and building permits, as well as
following discussions on rents and mortgages. 60 Cuba fue sin duda el principal referente de formu-
years after the construction of a landmark in in- lación, a partir de la cual se probaron diversos y
ternational urban policy, it is important to analy- contradictorios movimientos hacia las posibilida-
ze the challenges currently facing Cuban urban des de transformar las ciudades, consideradas
reform, reflecting on issues related to property, como un problema social a abordar.
access to land and production and housing finan-
cing. De hecho, la experiencia cubana de Reforma Ur-
bana se puede considerar como la más revelado-
The round table “Urban Reform in Latin Ameri- ra y la más cercana a la realidad latinoamericana,
can Countries: shared movements, interwoven configurando una triple transición. Primero, por-
times, thought-provoking experiences” contribu- que integra lo que Fidel Castro llama una transici-
tes, therefore, to a multidirectional reflection on ón del período de reforma al período de revoluci-
the urban reform processes of the 1960s in Latin ón, reafirmando principios y estrategias trazadas
American countries. And it also leads us to think por los movimientos socialistas y comunistas de
about the current configurations of the urban re- finales del siglo XIX al XX. En segundo lugar, al in-
form banner itself, which is still so current in our novar, nombrando esta reforma como urbana, se
countries, as well as about the challenges it faces inaugura una nueva modalidad de denominación
us in the search for just and democratic societies. del proceso reformista, en el que la ciudad como
tal tiene un papel protagónico. Finalmente, se
convierte en un punto de referencia para inicia-
Urban Reform Latin America 1960’s tivas y acciones en curso en varias ciudades de
América Latina, como se indicó anteriormente.

Pero también son importantes otros procesos


para demarcar esta situación. Destacaremos
tres: la tensión geopolítica que marca la guerra
fría y sus mecanismos de gobernanza interna-
cional; la urbanización acelerada y concentrada;
y las condiciones políticas e institucionales pro-
pias de cada país, que rigen la construcción de la
agenda de reforma urbana.

La guerra de posiciones que marca la posguer-


ra, concretada militarmente en la construcción
de la OTAN - Organización del Tratado del Atlán-
tico Norte (1949) y del Pacto de Varsovia (1955),
también se apoya en la creación de organismos
internacionales entendidos como posibles me-
diadores de conflictos y disputas establecidos en
regímenes de desarrollo y soberanía desiguales.
En este contexto, es la propia idea de América La-
tina la que se afirma, en diferentes procesos. En
lo que la respecta directamente, cabe mencionar
EIXO TEMÁTICO 1 la creación de la OEA - Organización de los Esta-
dos Americanos y CEPAL - Comisión Económica
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO para América Latina y el Caribe, ambas en 1948, la
del BID - Banco Interamericano de Desarrollo, en
1959 y la de ALALC- Asociación Latinoamericana
de Libre Comercio en 1960.

A su vez, la activación de estas instituciones y es-


calas, aunque bastante jerárquica, también pue-
de ser multidireccional, partiendo de gobiernos
nacionales, posicionados de manera diferente.
En este sentido, ejemplar es la propuesta de la
OPA - Operación Latinoamericana (1958), formu-
lada por Juscelino Kubitschek, en un contexto
delicado de las relaciones Estados Unidos-Vene-
zuela, como una forma de combatir la miseria en
varios países del continente, que da como resul-
tado la constitución del propio BID al año siguien-
te. Pero de esta misma iniciativa, ahora como
oposición directa a la Revolución Cubana y en un
período de intenso activismo norteamericano,
resultará el programa Alianza para el Progreso,
firmado en 1961, como se acordó en la Carta de
Punta del Este. Firmado por 22 países miembros
de la OEA, parte de sus recursos se destinaron al
financiamiento de vivienda e infraestructura ur-
bana.

En cuanto a los procesos de urbanización que


marcaron a los países del continente, hay que
destacar su intensidad, resultado de amplios mo-
vimientos poblacionales entre campo y ciudad y
entre ciudades y también una disminución de las
tasas de mortalidad. El crecimiento urbano resul-
tante está marcado por una pobreza intensa, la
incapacidad pública para proveer bienes básicos
para la reproducción urbana y, por lo tanto, el ac-
ceso inviable al suelo urbanizado para una gran
parte de la población. De ahí la constitución de
una de las principales lógicas de la producción y
reproducción urbanas de la posguerra en los paí-
ses pobres: crecimiento desigual y expoliado, ac-
ción pública jerarquizada por opciones sociales
y económicas hegemónicas y acentuada valora-
ción especulativa de la tierra. En otras palabras,
barriadas, invasiones y ocupaciones, villas mise-
ria, tugurios son parte integral de este proceso,
constituyendo un elemento común de las ciuda-
des latinoamericanas. Esta voraz concreción de
16º SHCU la realidad urbana y urbanística genera multitud
30 anos . Atualização Crítica
de estrategias de inserción, de enfrentamientos,
170 de desobediencias civiles, politizando la cuesti-
ón urbana, en estrecha asociación con diversas larmente entre 1960 y 1964. Sobre un cúmulo de
militancias, de las que destacan las vinculadas experiencias e iniciativas construidas desde la
a la Iglesia y al Partido Comunista, ancladas en década de 1930, la problematización de la ciu-
una especie de internacional cristiana, creciendo dad, sus procesos conflictivos y las alternativas
desde el XVI y en la propia internacional comunis- deseadas son incorporadas por las más diversas
ta, desde finales del XIX. Es interesante ver la ex- fuerzas políticas, en una situación inquieta y re-
pansión del partido comunista en los países aquí formista. El tema de la reforma urbana cobrará
en foco: fue creado en 1918 en Argentina, en 1922 tanta amplitud que será ferozmente disputado en
en Brasil, en 1925 en Cuba, en 1928 en Perú. Con diferentes frentes y organizaciones, explicando
ellos, la configuración política de los países se intereses y horizontes para su implementación.
modifica, por supuesto, en diferentes situaciones
de mayor o menor posibilidad de acción, a través Y, finalmente, ¿qué caminos siguió la reforma ur-
de tensiones de varios órdenes, concernientes, bana cubana de 1960? ¿Qué preguntas enfrentó,
entre otros, a la producción conceptual e intelec- qué resultados logró? La ley sufrió cambios im-
tual, la organización social y la construcción de portantes en algunos de sus principios en 2011,
perspectivas societarias. como los relacionados con la compra y venta de
viviendas y permisos de construcción, así como
Estos procesos generales se concretan en reali- el seguimiento de discusiones sobre alquileres e
dades nacionales, que aquí se abordarán desde hipotecas. A 60 años de la construcción de un hito
perspectivas diferentes y sugerentes que tensan, en la política urbana internacional, es importante
en temporalidades diversas, la reforma urbana analizar los desafíos que enfrenta actualmente
en sus desarrollos concretos e interrelacionados. la reforma urbana cubana, reflexionando sobre
La experiencia peruana nos sitúa ante un proce- temas relacionados con la propiedad, el acceso
so de mayor duración, que antecede a la reforma a la tierra y el financiamiento productivo y habi-
urbana como se denominó en 1960, problemati- tacional.
zando, desde la década de 1950, las posibilidades
de afrontar el tema habitacional en consonancia La mesa “Reforma urbana en países latinoameri-
con el afrontamiento de los procesos especulati- canos: movimientos compartidos, tiempos entre-
vos del suelo. Allí se constituye, incluso, una ex- lazados, experiencias estimulantes” contribuye,
periencia referencial para abordar el tema de los por tanto, a una reflexión multidireccional sobre
“barrios marginales” y todo el aparato administra- los procesos de reforma urbana de los años se-
tivo e institucional que esto requiere, mostrando senta en los países latinoamericanos. Y también
que, en lugar de la creación ex-nihilo, aflora el ca- nos lleva a pensar en las configuraciones actu-
rácter procesual de la construcción. ales de la propia bandera de la reforma urbana,
que aún está tan vigente en nuestros países, así
En Argentina, en la década de 1960, el hallazgo como en los desafíos que nos presentan en la
de inestabilidad política estuvo acompañado de búsqueda de sociedades justas y democráticas.
cierta ineficacia institucional. Entre otras deriva-
ciones y procesos de compartir con otros países
latinoamericanos, la ciudad se invierte allí inte-
Reforma Urbana América Latina años 1960
lectual y académicamente como objeto de refle-
xión e investigación en sus procesos desiguales
y particulares, abandonando el mimetismo con
realidades lejanas o expectativas inapropiadas.
Pero esto también significa la elaboración de es-
trategias para enfrentar estos temas, a través del
intercambio de experiencias y reflexiones colec-
tivas, siendo luego explorada la reforma urbana
como problema y como instrumento de acción.
Brasil, a su vez, también en un período política-
mente muy inestable, se encuentra movilizado
por una amplia campaña de reformas, particu-
EIXO TEMÁTICO 1 LOs dIez aÑos (1958-1968) que CAMBIARON EL
reconOCIMIENTO dE Los Barrios marginales en
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
el perú: elementos para uma reforma urbana?

mesa temática
El surgimiento de las barriadas o de los llamados
barrios marginales en el Perú, hasta mediados de

REFORMA URBANA EM la década de 1940, se constituye en un fenóme-


no que marcaría definitivamente las principales

PAÍSES DA AMÉRICA LATINA: ciudades del país, en especial, la capital peruana.


Ya en las primeras décadas del siglo XX, el Ing.
MOVIMENTOS PARTILHADOS, Alberto Alexander, en su conocido Estudio so-
bre la crisis de la habitación en Lima identificaba
TEMPOS IMBRICADOS, una serie de problemas surgidos alrededor de
dos aspectos: “la desproporción entre el incre-
EXPERIÊNCIAS INSTIGANTES mento del área fabricada y el de la población” y
“el aumento del valor de la propiedad y el costo
de la construcción” (1922, p. 5). El contexto en el
URBAN REFORM IN LATIN AMERICAN COUNTRIES: cual Alexander desarrolla su investigación estaba
SHARED MOVEMENTS, INTERWOVEN TIMES, marcado por las conmemoraciones del centenario
THOUGHT-PROVOKING EXPERIENCES de independencia del país, y, por lo tanto, por una
serie de intervenciones urbanas que sirvieron
REFORMA URBANA EN PAÍSES DE AMÉRICA como imán para un grupo significativo de mi-
LATINA: MOVIMIENTOS COMPARTIDOS, TIEMPOS grantes que llegaron a la capital en busca de una
ENTRELAZADOS, EXPERIENCIAS ESTIMULANTES mejor calidad de vida. Lo interesante es que ese
estudio se limita a discutir la situación en el área
“formal” de la capital, no incluyendo eventuales
áreas constituidas por ocupaciones “informales”.

De hecho, esta posición en relación a esos asen-


tamientos e inclusive a sus habitantes fue, de
forma amplia, común en las diferentes escalas del
poder público y su enfrentamiento no fue pauta
central ni tangencial en las políticas urbanas de
aquel momento. Para Romero (2001, p. 334), esa
población migrante (la que constituía las bar-
riadas) que llegaba a las principales capitales
habían pasado casi desapercibidas, se sabía de
su existencia, pero eran ignoradas. Esa indiferen-
cia también puede ser advertida en el principal
medio especializado en arquitectura y urbanismo
del país, la revista El Arquitecto Peruano (1937-
1977), en la cual las menciones a las barriadas se
vinculaban siempre a aspectos negativos, siendo
inclusive consideradas como el “cáncer del cual no
se tenía control” (XXXX, 2014, p.331) o como una
“vergüenza para la nación” (FAVRE, 1969, p. 123).

El giro sobre esa mirada de las barriadas se dio


16º SHCU con otra investigación, el Estudio de las barria-
30 anos . Atualização Crítica
das limeñas, elaborado en 1955 por el sociólogo
172 José Matos Mar. Ese trabajo se constituye en una
primera aproximación a las barriadas intentan- lución del problema habitacional del sector más
do conocerla desde dentro y desvendando sus vulnerable. Este escenario de reconocimiento e
pobladores, señalando problemas, pero, también, incorporación de las barriadas - y de sus habi-
evidenciando sus posibilidades y potencialidades. tantes - se dio a partir de tres hitos importantes:
Ese momento coincide con una fuerte agitación 1. El Decreto Supremo de 26 jun. 1958, Normas
política provocada por las elecciones presiden- para la solución de los problemas de las barriadas
ciales de 1956 que resultó en la creación de nue- marginales, mediante el cual se crearon organis-
vos partidos políticos de izquierda y centro que mos especializados encargados de dar asistencia
sirvieron como aglutinadores y de plataforma de técnica a los habitantes de las barriadas; 2. La Ley
la clase profesional y liberal en ascensión; entre nº 13517 de 14 feb. 1961, que creó la Ley Orgánica
ellos podemos citar Acción Popular y el Movimiento de Barrios Marginales que guiará las políticas pú-
Social Progresista. blicas de las barriadas y; 3. La organización del
concurso internacional del Proyecto Experimental
El gobierno conservador de Manuel Prado Ugarte- de Vivienda (PREVI) idealizado en 1966, convocado
che (1956-1962) tuvo que enfrentar las presiones en 1968 y realizado durante el Gobierno Militar
no solo del nuevo sector político sino también de (1968-1980) que derrocó al presidente Fernando
los mismos pobladores de las barriadas que exi- Belaunde Terry (1963-1968).
gían un Estado promotor. En ese contexto fue cre-
ada, en agosto de 1956, la Comisión para la Refor- La presente ponencia se propone un duplo obje-
ma Agraria y la Vivienda. Para ella era necesario: tivo: de un lado, entender los contextos en el cual
se gestaron y propusieron esas legislaciones y;
señalar ciertos aspectos delicados con re- por el otro, analizar y discutir sobre sus conteni-
lación al problema de las barriadas margi- dos identificando puntos claves e identificando
nales. Como resultado de su contacto con aspectos que llevaron al reconocimiento de los
ellas y muy especialmente de la investiga- barrios marginales por parte del poder público y
ción y censo que la Comisión ha encargado de la propia sociedad peruana.
[…] se desprende la convicción de que los
habitantes de las barriadas, en general, son
gentes bien intencionadas que sufren de
una desorientación fundamental en cuanto
a los medios escogidos para resolver su
problema (COMISIÓN, 1958, p. 63).

Es importante resaltar que ese giro en relación a


las barriadas se dio, de forma significativa pero
contundente, con el Decreto Supremo nº 178 de
12 ene. 1957, mediante el cual se creó la Oficina
Nacional de Barriadas. A partir de ese momento
se considera que:

es deber del Estado contribuir a aliviar los


problemas derivados de la formación de
poblaciones marginales en la ciudad Capital
y en diferentes ciudades de la República,
cuyo bajo nivel de vida y condiciones de
insalubridad, seguridad y sociabilidad son
materia de constante preocupación de las
autoridades (DONGO DENEGRI, 1962, p. 94).

Así, entendemos que, en el caso peruano, ele-


mentos hacia una reforma urbana aparecen en
ese momento como una pauta que se aproximaba
a elementos reformistas direccionados a la so-
EIXO TEMÁTICO 1 REFERêNCIAS
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO ALEXANDER, Alberto. Estudio sobre la crisis
de la habitación en Lima. Lima: Torres Aguirre,
1922.

COMISIÓN para la Reforma Agraria y la Vivien-


da. Informe sobre la vivienda en el Perú. Lima:
Imprenta Casa Nacional de la Moneda, 1958.

DONGO DENEGRI, Luis. Vivienda y urbanismo.


Arequipa: El Deber, 1962.

XXX, 2014 (Retirado para evaluación ciega).

FAVRE, Henri. El desarrollo y las formas del


poder oligárquico en el Perú. In: MATOS MAR,
José (Org.). La oligarquía en el Perú: 3 ensayos
y una polémica. Lima: Instituto de Estudios
Peruanos/Moncloa, 1969, p. 90-148.

MATOS MAR, José. Estudio de las barriadas


limeñas. Lima: Departamento de Antropología,
Facultad de Letras y Ciencias Humanas, Uni-
versidad Nacional Mayor de San Marcos, 1966.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

174
ENTRE EL REFORMISMO Y LA REVOLUCIÓN. des “primadas” en los términos de Richard Morse,
Los aportes de Jorge Enrique Hardoy producía territorios desequilibrados, no sólo en
términos metropolitanos, sino principalmente a
a la reforma urbana como tema
escala regional/nacional.

En este contexto en el que se compartía la idea de


Entre 1966 y 1974, el arquitecto Jorge Enrique
que “la urbanización es una inevitable consecuen-
Hardoy, junto con parte del equipo del Centro de
cia del desarrollo económico… especialmente
Estudios Urbanos y Regionales (CEUR) del Insti-
tuto Torcuato Di Tella (ITDT), Argentina, abordan en países apenas desarrollados, siendo nece-
como tema de investigación la reforma urbana. sario canalizar el proceso para que los efectos
Las condiciones políticas cambiantes del país, negativos puedan minimizarse” (Hauser, 1962),
marcadas por la alternancia entre gobiernos de Hardoy y su equipo plantean que la urbanización
facto y democracias1, produjeron pocas inno- se presenta anterior a la industrialización y al
vaciones en términos de la burocracia estatal desarrollo, y por lo tanto las ciudades pierden su
planificadora. Esta incapacidad organizativa y de potencial como “marco para las transformaciones
gestión, sumado al proceso de sobreurbanización, políticas y socio-económicas de los países de
hiperurbanización o explosión urbana que había América Latina” (Hardoy et al., 1967). En esta línea,
iniciado en la década del cincuenta, convierten a la la reforma urbana se expone como un instrumento
ciudad en un foco de reflexión de los académicos político capaz de contrarrestar los desequilibrios
locales con el fin de intentar delinear estrategias frente a un esquema de desarrollo territorial sin
de acción que posibiliten revertir las condiciones modernización, advirtiendo que el Estado debe
negativas de estos procesos. jugar un rol central en el control de la especulación
del suelo urbano. Esta condición requiere la trans-
La transformación radical de las grandes urbes, formación del aparato jurídico-administrativo y de
traspasa las fronteras nacionales, constituyén- la definición de planes de desarrollo orientados
dose en un denominador común de las realidades a un esquema nacional equilibrado, no sólo en
latinoamericanas. Hauser define a la urbanización términos físicos, sino principalmente en función
como “la concentración geográfica de la población a la dimensión social, económica y política.
y de la actividad económica” (Hauser, 1962), defini-
ción que asume a este proceso en el contexto de A inicios de la década del setenta, Hardoy visita
la modernización y el desarrollo de los países, pero Cuba a través del programa del “Centro de Vivien-
que advierte que la contracara de este fenómeno da, Construcción y Planeamiento” de Naciones
de crecimiento ha sido la configuración de esce- Unidas y el “Programa de Investigaciones de las
narios desiguales tanto en términos territoriales, Antillas” de la Universidad de Yale, Estados Unidos.
sociales y económicos que son característicos Cuba se presenta como “el” modelo de verificación
del crecimiento dependiente.2 Desde esta pers- de sus ideas sobre la reforma urbana, conforman-
pectiva, entendida la ciudad como catalizador do un conjunto de transformaciones estructurales
social, el crecimiento exponencial de las ciuda- a todos los niveles y en estrecha relación con un
proyecto de transformación revolucionaria de
la sociedad: la Revolución de 1959. Dos grandes
1. Entre 1966 y 1974 se sucedieron en Argentina 7 presi-
dentes. J. C. Onganía (De facto, 1966/70); R. Levingston (De
temas abordan la investigación: la estructura
facto, 1970/71); A. Lanusse (De facto, 1971/73); H. Cámpora histórica territorial del esquema urbano de la isla
(1973); R. Lastiri (1973); J. D. Perón (1973/74); M. E. Martinez (pre y post revolucionaria) y las acciones e inicia-
de Perón (1974/1976) tivas del Gobierno Revolucionario tendientes a
modificar dicha estructura.
2. Este modelo dependiente se basa en la producción pri-
mario-exportadora en la que luego se injerta el tipo de
Si la centralidad de la regulación de la tierra urbana
industrialización sustitutiva de importaciones. Esta trans-
formación tiene como consecuencia la alta tasa de creci-
se constituye como uno de los debates centrales
miento demográfico, migraciones, la acción expelente de en los primeros textos de J. E. Hardoy, para el
las atrasadas estructuras rurales, la universalización de la caso de Cuba la aplicación de las Leyes de Re-
cultura urbana, el consumo de bienes y el intervencionismo forma Agraria (1959 y 1963), anteriores a la Ley de
estatal. Reforma Urbana, introduce una visión centrada
EIXO TEMÁTICO 1 en la redistribución de la estructura socioeco-
nómica agraria por sobre la industrialización,
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO con el objetivo básico de justicia social. Así, la
reforma agraria cubana es entendida como “una
importante experiencia de la transformación de
una sociedad agraria, aislada y postergada, en
una sociedad crecientemente integrada a la vida
política e institucional del país” (Hardoy & Acosta,
1972), situación que permite advertir la importan-
cia otorgada a las estructuras institucionales y el
rol de la política estatal que se verifican a través de
la creación del Instituto Nacional de Planificación
Física3, y de una transformación jurídica a partir
de la formulación de las leyes.

Tomando como punto de partida las investiga-


ciones de J. E. Hardoy, proponemos avanzar en
la reconstrucción de las variaciones de las inter-
pretaciones de la reforma urbana para América
Latina entre 1966 y 1974, entendiendo que estas
aproximaciones colaboraron en la discusión del
rol del Estado, las técnicas y las estructuras ins-
titucionales necesarias para contrarrestar los
desequilibrios y las desigualdades de los territo-
rios latinoamericanos. En este sentido, interesa
indagar sobre los aciertos y las contradicciones
del planteo de Hardoy que propone conciliar una
reforma urbana a la cubana, pero realizada des-
de el marco de gobiernos democráticos bajo los
estándares parámetros norteamericanos.

3. El Instituto Nacional de Planificación Física fue crea-


do a partir del Departamento de Planificación Física del
16º SHCU
Ministerio de Obras Públicas. El mismo propone un nuevo
30 anos . Atualização Crítica
esquema territorial para el país que comprendía cuatro
176 niveles: Nación, Provincia, Distrito y Célula.
REFERÊNCIAS TEMPO BREVE E FORMULAÇÕES INTENSAS:
as disputas políticas acerca da Reforma
HARDOY, J. E., & Acosta, M. La urbanización en Urbana no Brasil 1960-1964
Cuba. Revista de Demografía y Economía, 6(1),
1972, p. 41-47.
“Toda família tiene derecho a una vivenda
HARDOY, J. E., Basaldúa, R., & Moreno, Me-
decorosa”. Ley de Reforma Urbana, art. 1°,
canismos de regulación de la tierra urbana y
suburbana en América del Sur. Revista SIAP, outubro 1960, Havana
1(3), 1967. “A reforma urbana consiste, para nós, de-
HAUSER, Philip M. (ORG.). La urbanización en mocratas, em tornar realizável o anseio de
América Latina. Buenos Aires: Solar/Hachete, ter casa própria por parte daqueles que não
1962. compram casa porque não têm crédito para
comprá-la. [...] A reforma urbana consiste,
para nós, em não aceitar a estagnação, a
inercia, diante de um problema que atinge
milhões de criaturas. Mas, por igual, em não
espoliar ninguém a pretexto de resolver um
problema social que exige, precisamente, a
participação de todos”. Carlos Lacerda, A
Reforma Urbana, junho 1962, Rio de Janeiro.
A reforma urbana “é o conjunto de medidas
estatais, visando à justa utilização do solo
urbano, à ordenação e equipamento das
aglomerações urbanas e ao fornecimento de
habitação condigna a todas as famílias”. IAB –
Instituto de Arquitetos do Brasil, Documento
final do s.HRu – seminário de Habitação e Refor-
ma Urbana, julho 1963, Rio de Janeiro e São Paulo.

A noção braudeliana de tempo breve refere-se ao


tempo do indivíduo e do acontecimento, da histó-
ria política, em “relato precipitado, dramático, de
fôlego curto” (BRAUDEL, 1965, p. 263). Incapaz de
dar conta da complexidade dos processos his-
tóricos, multitemporais por excelência, o tempo
breve, de modo simultâneo, requer que as outras
temporalidades, conjunturais e estruturais sejam
pressupostas e interpeladas. Ou seja, o estar em
meio a buliçoso regime de tempo significa poder
adentrar as suas diversas configurações e confor-
mações de campos de força e de luta. E, também,
necessariamente, se combinar a mergulhos mais
profundos, perspectivos e prospectivos, em recu-
os e avanços de seus encadeamentos e sentidos,
dadas as múltiplas e complexas dimensões e du-
rações da vida social, das quais o próprio tempo
breve é tributário.

A Reforma Urbana, tal como formulada e disputada


no Brasil na primeira metade dos anos 1960, nos
permite explorar com riqueza a problematização
EIXO TEMÁTICO 1 da cidade nessa condição de temporalidade breve.
Três de suas dimensões constitutivas serão aqui
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO privilegiadas.

A primeira é da ordem das relações geopolíticas in-


ternacionais. Em plena guerra fria, num cenário de
disputa acirrada pelo controle da ordem mundial,
a Revolução Cubana, de 1959, desestabiliza essa
ordem e anuncia a possibilidade de vigência de
um novo regime político no continente americano.
A atuação do Partido Comunista nos diferentes
países, através de seu trabalho de base, suas ar-
ticulações e alianças, é reposicionada e constitui
um dos principais elementos da mobilização por
mudanças estruturais nas sociedades latino-ame-
ricanas. Apenas dois anos depois, em 1961, como
resposta direta ao que era então considerado como
a ameaça do comunismo, é formalizada a Alian-
ça para o Progresso, através da Carta de Punta
del Este. Em gestação desde 1958, tratava-se de
desenvolver a assistência ao desenvolvimento
econômico dos países Latino-Americanos, com
ajuda financeira dos Estados Unidos através da
USAID (United States Agency for International De-
velopment) (CPDOC, 2020). O programa operava
através do financiamento aos países, sobretudo
no âmbito dos estados, e da aliança com setores
políticos conservadores avessos à ideia de trans-
formações políticas mais radicais.

Enfrentar o problema da habitação e da cidade,


formulado como Reforma Urbana e um dos centros
nervosos das ações empreendidas na ilha, cons-
titui a segunda dimensão a ser aqui investigada.
Inventado então enquanto conceito, através da lei
de Reforma Urbana, de 1960, várias medidas são
propostas em seus 45 artigos, para buscar equa-
cionar o problema, enfrentando a especulação e
exploração imobiliária e fundiária, transformando
locatários em proprietários, bem como estabele-
cendo caminhos para a produção de habitações.
A Lei não apenas marca a passagem do processo
reformista para o caráter socialista da revolução
cubana (SUÁREZ PÉREZ, 2010), como rapidamente
se espraia internacionalmente enquanto palavra
de ordem a guiar as intervenções nas cidades,
ampliando o seu protagonismo na pauta política.
Não por acaso, a questão da habitação e da infra-
estrutura das cidades será também abordada nos
programas que comporão o quadro de ações da
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica Aliança para o Progresso.

178 A terceira é a especificação do processo da re-


forma urbana para o Brasil, através da compre- REFERÊNCIAS
ensão da grande mobilização feita pela socieda-
de brasileira em torno dela, especificando seus BRAUDEL, Fernand. História e Ciências Sociais.
agentes e modos de organização. Estreitamente A Longa Duração. In: Revista de História, v.
vinculada à turbulenta conjuntura das reformas XXX, n. 62, abr./jun. 1965.
de base, a reforma urbana é ainda trabalhada, em
termos nacionais, sobretudo a partir da perspec- CPDOC. Aliança para o Progresso. Verbete. Rio
tiva profissional dos arquitetos e urbanistas. Mas de Janeiro, FGV, 2020. Disponível em: <http://
é impressionante constatar, para além deles, a www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbe-
riqueza com que essa bandeira instigou diversos te-tematico/alianca-para-o-progresso-1>.
segmentos políticos, sociais, sindicais, empresa-
riais, estudantis, a formular para ela perspectivas IAB. s.HRu. Seminário de Habitação e Reforma
próprias ou associadas, explicitando interesses e Urbana. In: Arquitetura. Rio de Janeiro, n° 15,
estabelecendo horizontes para sua compreensão4. jul. 1963.
Reuniões de governadores a trotes estudantis,
associações de inquilinos a associações de pro- LACERDA, Carlos. A Reforma Urbana. In: O
prietários, agrupamentos políticos conservadores Poder das Ideias. Rio de Janeiro: Distribuidora
a partidos progressistas, igrejas católica e evangé- Record, 1962.
lica a organizações e sindicatos de trabalhadores,
SUÁREZ PÉREZ, Eugenio. Hace 50 años, la Pri-
passando por urbanização de favelas e produção
mera Declaración de La Habana: Una asamblea
de unidades habitacionais, limitação do direito de
general del Pueblo. La Habana: Cubadebate,
propriedade e ampliação de gabaritos, além de
2010.
todos os movimentos entre esses conjuntos, ca-
racterizam bem a estruturação agitada, cambiante
e contraditória dessa pauta da reforma urbana,
própria de tempos políticos intensos.

Infelizmente, o golpe civil-militar de 1964 vai inter-


romper violentamente esse processo, desarticu-
lando e fazendo submergir várias das experimen-
tações propositivas então em curso, processo que
só será retomado, em outras bases, duas décadas
depois. Se o tempo breve pode ser fecundo para o
encontro com essas proposições e mobilizações,
tornando mais complexa a sua compreensão, é a
duração das questões sociais e políticas e a busca
por soluções que possibilitam escavar o tempo
em diversas direções, dando sentidos plurais ao
processo de construção ainda frágil da democra-
cia, da república e da justiça, das quais a cidade
brasileira buscava ser parte e expressão.

4. O nosso empírico se baseia na análise das matérias relativas


à questão da reforma urbana publicadas nos jornais Última
Hora, Jornal do Brasil e Tribuna da Imprensa, entre 1960 e 1964.
EIXO TEMÁTICO 1 EL SECTOR HABITACIONAL CUBANO:
60 AÑOS DESPUÉS DE LA REFORMA URBANA
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO

El trabajo científico del autor se ve inspirada


por el hecho que su ciudad natal Múnich, gober-
nado hace décadas por un gobierno municipal
socialdemócrata, se ha convertido lentamente
(desde 1972, año de la olimpiada) en una de las
ciudades con los más altos valores inmobiliarios
del mundo. Mientras tanto La Habana, ciudad
donde vivo desde 24 años, se ve afectada por la
más profunda crisis económica después de la
crisis de las noventa, causada por el derrumbe
del campo socialista (período especial en tiempos
de paz). Esta más reciente crisis no fue causada
solamente por el recrudecimiento de un brutal
bloqueo económico y financiero por parte de los
EE.UU., y las consecuencias de la emergencia ep-
idemiológica covid19 (disrupción total del turismo,
del negocio de las mulas y una reducción notable
de las remesas), sino también por la demora y las
dificultades en la aplicación de los lineamientos
para la actualización del modelo socio-económico
de Cuba, aprobados ya en el abril 2011.

El sector habitacional cubano esta hasta el día


de hoy fuertemente determinado por estas de-
cisiones de principio, tomadas inmediatamente
después de la revolución a través de leyes contra
la especulación con el suelo urbano pero princi-
palmente de la Ley de Reforma Urbana5. Estas

5. El 4 de octubre de 1960 fue promulgada la Ley de la Refor-


ma Urbana, declarada como parte de la Ley Fundamental,
otorgándose de este modo el rango de constitución, por
su relevancia y trascendencia también en el contexto in-
ternacional. Así el Gobierno Revolucionario había tomado
trascendentales decisiones en materia de derecho de la
propiedad y de la política de la vivienda: Se traspasó el fondo
completo de viviendas de alquiler a propiedad de sus cor-
respondientes habitantes; los antiguos propietarios fueron
indemnizados por el Estado según año de construcción y
monto de alquiler de la vivienda perdida. Se decretó la elimi-
nación y prohibición de todos los gravámenes hipotecarios
sobre inmuebles urbanos; se eliminó la institución legal del
alquiler de viviendas y se prohibió toda forma de alquiler
entre particulares. En 1984 y 1988 se decretaron con poca
separación de tiempo dos sucesivas Leyes Generales de
16º SHCU
la Vivienda (LGV, Ley No.48 del 31.12.1984 y Ley No.65 del
30 anos . Atualização Crítica
23.12.1988, manteniendo las decisiones de principio de la
180 LRU, pero autorizando ciertas formas de alquileres.
decisiones de principio se mantuvieron casi inal-
teradas hasta noviembre de 2011 fecha en la que
se autorizó la compraventa de viviendas entre
particulares, manteniendo la limitación a una sola
vivienda por persona (owner –occupier). Al igual
se alejó del principio de entregar licencias de con-
strucción únicamente a familias previamente
seleccionadas por comisiones municipales, re-
quiriendo a los interesados de construir compro-
bar no solamente la necesidad habitacional sino
también méritos sociales y laborales. También
son discutidos principios (¿limitaciones?), como
la prohibición de gravámenes sobre inmuebles
(hipotecas), y la marginalización de alquiler de
viviendas. En el 2019 existían entre 6 a 10mil li-
cencias para el alquiler de viviendas, pero en su
gran mayoría para el sector turístico, parecida
al funcionamiento de AirBnB, y sin ninguna pro-
tección legal para el inquilino, son vigentes hasta
hoy en día.

Ante la mega crisis económica, se hace necesario


discutir las alternativas colocadas para vencerla.
Entre ellas, se presume un fortalecimiento de un
sector de micro, pequeñas y medias empresas, así
como la necesidad de pensar sobre las decisiones
de principio que hoy en día son obstáculos para
poder seguir adelante.

Sera oportunidad para una mesa temática, a partir


de un análisis económico e histórico del modelo
cubano con sus logros y fallos, debatir soluciones
y/o recomendaciones progresistas para el sector
habitacional. Para tanto, el análisis del compor-
tamiento del sector habitacional y sus políticas
debe considerar cuatro elementos estrictamente
relacionados: aspectos legales de la propiedad de
la vivienda y otras formas de tenencia, incluyendo
sus diferentes atributos; el suelo urbano; la pro-
moción, producción y distribución de viviendas;
y el financiamiento y los subsidios.
EIXO TEMÁTICO 1

HISTORIOGRAFIA
E PENSAMENTO URBANÍSTICO

sessões temáticas
EIXO TEMÁTICO 1 RESUMO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Este artigo, fruto das reflexões feitas pela auto-
ra em sua tese de doutorado, discute o desen-
SESSÃO temática volvimento do pensamento urbanístico para o
meio rural, partindo-se dos pressupostos das
cidades jardim e do processo de evolução das
A CONSTRUÇÃO DO fazendas em forma de pavilhão, chegando-se
a realidade brasileira e as perspectivas atuais.
PENSAMENTO URBANÍSTICO Como metodologia, utiliza-se o levantamento
bibliográfico sobre o tema, articulando o pen-
PARA O RURAL E SEUS ECOS samento urbanístico a cada momento social
que foi proposto. Um dos aspectos mais evi-
NO BRASIL dentes é que o que vem sendo elaborado para o
espaço rural é oriundo, predominantemente, de
adaptações do que surge como proposta para
THE CONSTRUCTION OF URBANISTIC THOUGHT TO THE
o urbano, sendo, por isso, não satisfatório para
RURAL AND ITS REPERCUSSIONS IN BRAZIL
atender as demandas de todos os grupos que
ocupam os espaço rural.
LA CONSTRUCCIÓN DEL PENSAMIENTO URBANÍSTICO
AL RURAL Y SUS REPERCUSIONES EN BRASIL
pensamento urbanístico urbanismo rural
MOREIRA, Paula Adelaide Mattos Santos campo brasileiro
Doutora em Arquitetura e Urbanismo; Professora
Colaboradora da Residência em Assistência Técnica,
Habitação e Direito à Cidade (RAU-E/PPGAU /UFBA)
paulagemeos@hotmail.com

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

184
ABSTRACT RESUMEN

This paper, the result of reflections made by the Este artículo, fruto de las reflexiones de la autora
author in her doctoral thesis, discusses the de- en su tesis doctoral, analiza el desarrollo del pen-
velopment of urban thinking for rural areas, star- samiento urbano para las zonas rurales, a partir
ting from the origin of the term rural urbanism del origen del término urbanismo rural en el mun-
in the world, arriving at the Brazilian reality and do, llegando a la realidad brasileña y perspectivas
current perspectives. As a methodology, the bi- actuales. . Como metodología se utiliza el releva-
bliographic survey on the theme is used, articu- miento bibliográfico sobre el tema, articulando
lating urban thinking at each social moment that el pensamiento urbano en cada momento social
was proposed. One of the most evident aspects is propuesto. Uno de los aspectos más evidentes es
that what has been elaborated for the rural space que lo elaborado para el espacio rural proviene,
comes, predominantly, from adaptations of what predominantemente, de adaptaciones de lo que
appears as a proposal for the urban, being, there- aparece como una propuesta para lo urbano, no
fore, not satisfactory to meet the demands of all siendo, por tanto, satisfactorio para atender las
the groups that occupy the rural space. demandas de todos los colectivos que ocupan el
territorio. espacio rural.

urbanistic thinking rural urbanism


Brazilian countryside pensamiento urbanístico urbanismo rural
campo brasileño
EIXO TEMÁTICO 1 1. INTRODUÇÃO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Este artigo, elaborado a partir das reflexões feitas
por esta autora no processo da escrita de sua
SESSÃO temática tese de doutorado, defendida no ano de 2017 no
Programa de Pós Graduação em Arquitetura e Ur-
banismo da UFBA (PPGAU/UFBA), busca assimilar
A CONSTRUÇÃO DO sobre a gênese e desenvolvimento do pensamento
urbanístico para o meio rural brasileiro.
PENSAMENTO URBANÍSTICO Visto a escassez de estudos específicos sobre
PARA O RURAL E SEUS ECOS a temática proposta, como referencial teórico,
utiliza-se inicialmente o caminho proposto por
NO BRASIL Monclús & Oyón (1987), para estudar o caso euro-
peu, em especial, a Espanha, buscando traze-lo
como pressuposto para compreender seus ecos
THE CONSTRUCTION OF URBANISTIC THOUGHT TO THE no Brasil. A partir daí, numa perspectiva mais
RURAL AND ITS REPERCUSSIONS IN BRAZIL abrangente de se entender o pensamento urba-
nístico, segundo Wan-Dall Junior (2013), busca-
LA CONSTRUCCIÓN DEL PENSAMIENTO URBANÍSTICO -se cruzar ideias de distintas naturezas trazidas
AL RURAL Y SUS REPERCUSIONES EN BRASIL para o meio rural brasileiro. Assim sendo, como
metodologia, utiliza-se o levantamento biblio-
gráfico e documental sobre o tema, articulando
o pensamento urbanístico a cada momento social
que foi proposto.

Nesta perspectiva, associa-se o contexto e pro-


posição das cidades jardim e o desenvolvimento
gradual das fazendas em pavilhão para, poste-
riormente, se chegar a estudos específicos do
campo do urbanismo para o meio rural, aonde
concebe-se o termo urbanismo rural. Enfocan-
do-se o caso brasileiro, destaca-se dois períodos
importantes: o das ideias vinculadas ao urbanismo
rural, elaborado pelo arquiteto Camargo, para
aplicação no processo de colonização proposto
pelo INCRA e, as ideias trazidas, posteriormente,
para projetos de irrigação e desenvolvimento do
espaço rural.

2. A RELAÇÃO CIDADE-CAMPO E A GÊNESE DO


PENSAMENTO URBANISTICO NA ESCALA DO RURAL

Reflexões a partir do Surgimento das Cidades


Jardim e das Fazendas Pavimento

16º SHCU Importante iniciar este tópico tratando-se da


30 anos . Atualização Crítica
relação cidade-campo, visto que esta se dá pelo
186 fato de que as ideias para o campo aparecem
a partir de demandas urbanas. Isto porque, um campo e, o conforto característico das cidades.
dos fatores mais importantes que interferiram A planta mostra um cinturão verde ao redor da
na forma de se pensar a organização do espaço malha urbana, o centro comercial no núcleo e
rural foi o conjunto de repercussões oriundas do área destinada à indústria implantada em área
processo de revolução industrial. Segundo Mon- mais isolada.
clús & Oyón (1988), na Espanha, por exemplo, as
reflexões sobre as formas de se pensar o campo No caso de Welwyn, a Figura 1-B traz um cartaz
vieram após este processo já ter sido deflagrado que divulga a ideia de que futuramente poderia
na França e, principalmente na Inglaterra. Por esta se viver e trabalhar em locais com características
razão, muitas das soluções adotadas nestes dois saudáveis, sem a necessidade do deslocamen-
países foram utilizadas em outros países, sendo, to, aumentando-se assim as vantagens da vida
as principais delas, a concepção das cidades jar- numa cidade jardim. Welwin, segundo Panerai et
dim e a forma dos pavilhões para se organizar o al (1980), formaria parte de um conjunto de cidades
espaço industrial. jardim que deviam rodear Londres, desfrutando
de certa autonomia produtiva. Era a junção do
Em relação às cidades jardim, de acordo com ideal de cidade jardim com o de cidades satélites,
Panerai (1986), entre 1840 e 1901 a população de onde a autogestão e a relação com o mundo rural
Londres se duplicou e a da grande Londres se estariam em evidência.
triplicou. Na medida em que as atividades econô-
micas progrediam a população ia se deslocando
para a periferia e, os avanços na organização dos
transportes viabilizaram a moradia nos subúrbios.
Além disso, segundo Panzini (2013), William Morris
e John Ruskin, personagens importantes daquele
momento, traziam o pensamento de repulsa à
sociedade industrial e o sentimento nostálgico
que valorizava as virtudes do universo rural. Neste
contexto, abre-se um grande debate sobre Lon-
dres e sua relação com seu entorno e, acende-se
o enaltecimento e admiração pelo campo.

Nesta linha, Howard publica em 1898 o livro “Gar-


den Cities of Tomorrow” que, propõe um tipo de
crescimento urbano baseado nas cidades jardim.
Segundo Panzini (2013), Howard propõe uma cida-
de de baixa densidade e com a presença planejada
de espaços verdes.1

O modelo de Howard se materializa com a con-


tribuição dos arquitetos Raymond Unwin e Barry
Parker e, em 1904 surge Letchworth, a primeira
cidade jardim, seguida de outras experiências
que seguiam esta base conceitual, tais como
Hampstead (1909) e Welwyn (1919). A Figura 1-A
mostra a planta de Letchworth e o cartaz publi-
citário referente a este empreendimento. Neste
cartaz, é propagandeada a possibilidade de se
ter, no âmbito da moradia, a saúde exequível no

1. Ferrari (1991) traz que ele propunha, para se concreti-


zar a cidade jardim, a compra de 2.400ha, onde 400ha se
destinaria ao espaço urbano e 2.000ha seriam agrícolas.
EIXO TEMÁTICO 1
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO

A) Implantação e Cartaz Publicitário da Primeira Cidade


Jardim: Letchworth.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

188
forma de se pensar os espaços rurais. Esta afir-
mação é justificada pelo fato de que as cidades
jardim subsidiaram e enalteceram a ideia de se
morar e trabalhar no campo, não mais como um
camponês “atrasado” e sim numa perspectiva de
adaptação do campo para uma nova forma de se
viver. Com este apelo, essa visão deu suporte para
possíveis formas de se planejar o campo a partir
de novas perspectivas e necessidades. O modelo
inglês foi amplamente difundido justamente por
dar conta de transportar conceitos de urbanidade
(higiene, trabalho, moralidade, etc.) a vida rural.

Tratando-se, agora, da ideia dos pavilhões, estas


seguiam a linha das inovações tecnológicas des-
tinadas a potencializar a produtividade industrial.
Segundo Ferrari (1991), Tony Garnier, arquiteto
francês, se tornou referência neste contexto,
quando, projetou no início do século XX, uma cida-
de linear industrial para 35.000 habitantes, onde
duas grandes áreas eram bem delimitadas: uma
residencial e outra industrial. Ideias alinhadas a
Garnier começaram a surgir para o campo, tra-
zendo novas perspectivas de apropriação espacial
B) Esquema Conceitual das Cidades Jardins e Cartaz Pu- das fazendas, visando-se um processo produtivo
blicitário da Cidade Jardim Welwyn.
mais dinâmico e otimizado.
Figura 1 –Cidade Jardim. Fonte: Panerai et al, 1980, Cornell,
Segundo Monclús & Oyón (1987), agrônomos e
1998, Panzini, 2013 e Ferrari, 1991.
agraristas iniciaram estudos sistemáticos sobre
o tema da habitação rural com vistas à adequação
do território as necessidades produtivas, pois, as
Segundo Panzini (2013), o diagrama da cidade mudanças nas relações de trabalho na agricultura
jardim propõe um casamento entre funções ur- estavam acontecendo e a figura do camponês
banas e rurais, articulado por sucessivos setores tradicional não mais se adequava a esta realidade.
concêntricos, como mostra a Figura 1-B. Assim, os Como exemplo, a casa unifamiliar e agrupada pró-
edifícios administrativos, de lazer e uma biblioteca xima ao local de trabalho eram fundamentais para
se localizariam na parte central, inseridos em um garantir o desempenho das fazendas baseadas no
trabalho assalariado, mostrando diferenciações
parque. Em torno desta estariam as funções de
nas formas de trabalho e, repercutindo no morar
moradia, atravessadas por uma faixa de jardins.
dos camponeses.
Por fim, viriam os setores de serviço, com as in-
dústrias, os depósitos e o comércio. Um anel fer- Para tratar das fazendas em forma de pavilhão, é
roviário circundaria esta última zona, juntamente necessário se compreender que sua efetivação
com uma faixa de hortas e fazendas que mediriam se deu através de um processo. Assim, discorrer
cinco vezes a área urbanizada. Estas relações sobre a incorporação da proposta da arquitetura
poderiam ser multiplicadas em cidades jardins em pavilhão para o campo, passa pelo transcurso
satélites, sempre servidas de infraestrutura de de dissolução do pátio central das fazendas. Isto
mobilidade urbana. porque, as antigas fazendas familiares tinham no
pátio central o local de controle e ajuste de seus
A codificação formal das cidades jardim se aplicou processos, dinâmica completamente diferente
com constância em conjuntos residenciais de bai- das propostas nas fazendas em forma de pavilhão.
xa densidade levantados nos arredores de cidades
e, influenciou, mesmo que não imediatamente, a Num primeiro momento, cumprindo um papel
EIXO TEMÁTICO 1 de transição funcional das fazendas para que se
adaptassem as demandas da época, surgem as
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO fazendas experimentais que, se constituíam em
laboratórios de como se aperfeiçoar, sistemati-
zar e ordenar a produção agrícola. A Figura 2-A
mostra o exemplo de Almudevár/ Espanha, onde a
organização espacial desvela a preocupação com
o controle dos processos, expressado a partir dos
pátios e da concentração otimizada dos serviços.
Neste caso, é perceptível que aparecem edifi-
cações avantajadas, projetadas para acomodar
vários trabalhadores, fato que vai aproximando
esta fazenda a ideia da arquitetura em pavilhão,
porém sem abrir mão do controle central.

A) Granja Agrícola Experimental de Almudevár/ Espanha.

B) Sede de Fazenda Agrícola em Marrocos com Pátio Central.

Figura 2 – Modelos de Organização Rural antecessores


das Fazendas em Pavilhão. Fonte: Monclús e Oyón, 1988.

A ideia do pátio central, notadamente perceptí-


vel na Figura 2-B, era o do controle do trabalho,
da produção e das pessoas, fato que a remetia
à arquitetura panóptica, trazida Focault (1987),
16º SHCU onde se induziria um estado consciente e per-
30 anos . Atualização Crítica
manente de visibilidade, fato que asseguraria o
190 funcionamento automático do poder, instrumento
típico da sociedade disciplinar. Neste sentido, a
disciplina fabricaria indivíduos úteis, tais como
os trabalhadores rurais, os presidiários e os me-
nores infratores, por exemplo. Ao mesmo tempo
que surgiam espaços rurais para se “retirar” das
cidades pessoas não interessantes ao convívio ur-
bano, também surgiram várias colônias agrícolas
dirigidas à educação interna e ao tratamento de
saúde, destinadas a uma demanda da elite urbana.

O processo de dissolução do pátio central foi,


B) Poblado Projetado para o Concurso da OPER.
gradativamente, trazendo para o campo carac-
terísticas urbanas fabris, numa perspectiva de Figura 3 - Modelos de Organização Rural baseados em
otimização dos espaços da fazendas em função da Pavilhão. Fonte: Monclús e Oyón, 1988.
produção agrícola. Cada vez mais se setorizavam
as funções dos edifícios, trazendo para eles pro-
cessos de transformação e agroindustrialização
mais complexos e, demandando-se organizar os O debate em torno do espaço rural (nas primeiras
mecanismos funcionais destes espaços através décadas do século XX) era objeto de controvérsias,
de pavilhões. muitas delas girando em torno das duas propostas
aqui trazidas: a das cidades jardins e dos pavi-
A Figura 3-A traz um exemplo de uma fazenda lhões. Nesta época, afirmam Monclús & Oyón
na Espanha onde os pavilhões se encontram de (1987), muitos urbanistas compreenderam que
forma bem clara, aproximando-a de um esquema aquele era um momento propício para a aplica-
industrial de produção. Neste caso, ligados a um ção dos princípios de sua disciplina ao território
sindicato agrícola, os trabalhadores moravam ao rural. Na verdade, tratava-se da expansão terri-
redor da estrutura produtiva da fazenda consti- torial de um ideário em pleno desenvolvimento:
tuindo um bairro com aspecto de núcleo urbano o urbanismo.
industrial a este conjunto. Outro exemplo, impor-
tante de ser destacado, é o poblado projetado
para o Concurso da OPER (Figura 3-B) que, traz
com força a setorização e os edifícios em forma O Desenvolvımento de Modelos Teórıcos do
de pavilhão. Pensamento Urbanístıco que Envolvem o
Rural

Segundo Bardet (1990), em 1934, no 1º Congreso de


Urbanismo de Bordeaux começaram as primeiras
discussões públicas sobre o urbanismo rural.
Monclús & Oyón (1987) afirmam que as tendências
urbanísticas só foram incorporar formalmente
o campo em meados as década de 1930, com a
intenção de dar um tratamento específico aos
problemas do meio rural. Como referência des-
te momento, tem-se a incorporação do termo
“urbanismo rural” no 1º Congresso Nacional de
Urbanística (Roma) e no Congresso Internacional
A) Exemplo de Fazenda na Espanha formada por Pavilhões.
de Arquitetura Moderna - CIAM de Paris (ambos
ocorridos em 1937).

Como referência desta incorporação, do ponto


de vista da disciplina do urbanismo, tem-se Gas-
ton Bardet que dedica um capítulo, tanto do livro
Pierre sur Pierre: Construction Du Novel Urbanisme
EIXO TEMÁTICO 1 (1942), como do L’Urbanisme (1945) para o que ele
chama de planejamento dos campos, ou, “ruralis-
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO mo”. Nestas publicações o autor inverte o debate
vigente em torno das medidas de proteção para
delimitação da área agricultável ou da produti-
vidade agrícola, abordando o campo de forma a
exaltar os diversos modos de civilização que se
encontram e se equilibram no território rural. É
interessante perceber que Bardet se debruça
na vertente do território, não compreendendo o
urbanismo como disciplina exclusiva das cidades.

Outro arquiteto que, na década de 1930, articulou


a temática do rural a sua formulação de planeja-
mento territorial foi Frank Loyde Wright, a partir
do livro “The Disappearing City e Broadacres”, onde,
segundo Franco (2001), propõe o desenvolvimen-
to familiar sobre um acre de terra. Além disso,
Wright, através de uma maquete representan-
do Broadacres City, reproduz um modelo ideal
de cidade horizontal e de baixa densidade. Se-
gundo Cavaco (1998), Broadacres não seria nem
campo, nem cidade e, sim, uma nova realidade
que revelaria, segundo a mesma autora, sua
forma particular de estabelecimento no território.
Mais especificamente, não se procurava, por
conseguinte, se estabelecer um casamento
entre a cidade e o campo, mas, se encontrar
uma forma viável de ocupação do território em
que cada cidadão seria simultaneamente um
citadino e um camponês. Seu estudo foi nomeado
como urbanismo naturalista, ou, também de
antiurbanismo americano.

Para o criador de Broadacres, devem-se ter outros


parâmetros na vida, diferentes dos que foram
construídos no âmbito das cidades. Para ele, uma
nova realidade deveria ser provida de equilíbrio,
de humanidade naturalmente criadora, cada vez
mais sensível à natureza. A Figura 4-B traz uma
interpretação conceitual deste estudo, feita por
Franco (2001), nela se pode perceber dois elemen-
tos fundamentais trazidos por Cavaco (1998), em
relação à estrutura da proposta: a primeira seria
a centralidade da casa familiar como local de
permanência, a segunda, a complexa grelha de
fluxos (canais, vias, redes de transmissão, etc.)
que, traz a sensação de possibilidade de movi-
mento. A casa familiar garantiria ao ser momentos
16º SHCU de enraizamento, de encontro consigo mesmo e,
30 anos . Atualização Crítica
também, com a natureza, já a grelha de fluxos, as
192 possibilidades técnicas da modernidade.
Retomando-se Gaston Bardet em meio a este das zonas residenciais teriam uma uniformidade
debate, percebe-se que este autor intencional- dos preços. Além disso, as comunicações entre
mente contempla o campo, também de forma mais os diversos pontos das cidades seriam fáceis.
complexa, por tentar abordar o sujeito que ali vive.
A Figura 4-A mostra seu esquema conceitual do Os urbanistas da Rússia pós-revolução socialis-
planejamento dos campos. Nele, Bardet (1990) tra- ta partiram desta ideia para propor a teoria da
balha com as variações das aldeias e das unidades desurbanização linear (ver o esquema conceitu-
rurais (por classes) no sentido de buscar conexões al na Figura 4-C). Segundo Ferrari (1991), a ideia
entre estas, objetivando caracterizar a estrutura seria acabar com o antagonismo entre a cidade
rural e, assim, propor para as mesmas no sentido e o campo, através da redução da cidade a uma
de se criar um conjunto autônomo. Geometrica- faixa estreita ao longo de estradas e rios. Miliutin
mente ele trabalha com linhas, pontos, círculos foi o idealizador desta (considerada polêmica)
proposta que, seguindo os pressupostos de Le-
e polígonos dispostos de forma não regular, fato
nin, se propunha a salvar a figura do camponês
que evidencia sua proposta de aproximar mais
aproximando, para isso, a indústria e as aldeias
das realidades para se propor posteriormente.
dos locais de produção agrícola.
Bardet mescla elementos trazidos por Wright, tais
como a necessidade de articulação, de conexão,
tratando-se da problemática do isolamento de
localidades rurais. Das cidades jardim ele consi-
dera a incorporação de estruturas semelhantes
aos das cidades satélites, visando a autonomia
das unidades rurais em relação as cidades.

Como destaque, trata-se de um estudo que coloca


a figura do camponês em evidência, reconhecen-
do sua presença na sociedade de forma contex-
tualizada na escala da região. Neste sentido, as
Figuras 4B trabalha no plano das faixas circulares
de influência de aglomerações, considerando
uma hierarquia de porte, porém, visualizando
esquemas de articulação não somente vinculados
a aspectos econômicos. Assim, o autor trabalha
com todos os aglomerados, independentemente
de sua importância econômica, ou, influência
regional. Sua ideia seria a de consolidar relações
já existentes, a partir de investimentos em de-
terminadas aglomerações, de acordo com sua
potencialidade conectiva na região.

Partindo de outra lógica, Arturo Soria y Mata for-


mulou a ideia da cidade linear onde uma grande
rua de 500 metros de largura e de comprimento
o quanto fosse necessário (podendo atravessar
países), conteria ferrovias, rodovias, tubulações,
jardins, edifícios de serviços, etc. Segundo Ferrari
(1991), Soria y Mata combatia a cidade circular afir-
mando que seus terrenos centrais seriam muito
caros e, haveria congestionamentos, além da
marginalização da população periférica. Quanto
às cidades lineares, as avenidas centrais pode-
riam se alongar indefinidamente e os terrenos
EIXO TEMÁTICO 1
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO

B) Esquema Conceitual de Broadascres, Frank Loyde White.

A) Esquemas Espaciais de Gaston Bardet.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

194
é que sua aderência à sociedade industrial foi
bastante significativa, ele acabou contribuindo na
modelagem de um sujeito aprisionado aos valores
hegemônicos, racional, pasteurizado e apático.
Além disso, sua aplicabilidade, não princípios, via-
bilizou o fortalecimento de esquemas de mercado
ligados à produção habitacional, a urbanização de
cidades, a especulação imobiliária, dentre outros,
fato que, progressivamente foi empobrecendo-o,
desvirtuando-o e anulando-o.

No que concerne ao planejamento do campo,


segundo Monclús & Oyón (1987), a partir da as-
censão de governos totalitários (no pós-guerra)
foram sendo criadas estratégias que, cada vez
menos foram se articulando com as formulações
urbanísticas de vanguarda, fato que foi esvaziando
B) Diagrama de Hilberseiner (Desurbanização Linear).
o debate e, localizando-o somente em torno dos
técnicos inseridos nos órgão governamentais
Figura 4 – Alguns Modelos Teóricos do Pensamento Ur- responsáveis pelo espaço agrário.
banístico para o Meio Rural. Fonte: Bardet, 1990 e Bardet,
1943; Franco, 2001; Ferrari, 1991 e; Monclús e Oyón, 1988. Não se pode deixar de considerar que o modernismo
se configurou como um importante instrumento
estatal nesta conjuntura política. Ele viabilizou
a implantação de formas espaciais adaptadas
O modelo espacial linear considerara o campo de ao interesse produtivista no campo, tanto pela
forma mais ampla em relação ao planejamento característica totalitária dos governos, quanto
espacial. Porém, nota-se uma visão de subordi- por seus princípios, tais como, o da simplificação
nação do campo em relação à cidade, visto que e repetição de funções urbanas destinadas a
trabalha com os pressupostos de que o camponês interesses específicos e da busca por resultados
comporia uma classe em processo de extinção na economia de escala (ASHER, 2010). Paredes &
e, por isso, esta solução traria uma sobrevida a Maldonado (1990), exemplificam este processo ao
eles, fato que necessitaria da ação do Estado mostrar o contínuo empobrecimento das propostas
para se viabilizar. urbanísticas e arquitetônicas em torno dos pue-
blos de colonización espanhóis durante os quase
Nota-se, a partir dos estudos realizados, uma
quarenta anos de governo ditatorial franquista.
construção contínua das formas de se pensar e
se propor para o campo, onde as referências vão
se articulando e construindo novas propostas.
Segundo Monclús & Oyón (1987) o ápice deste 3. o desenvolvimento do pensamento
processo se deu, na Europa, em meados da dé-
urbanístico para o campo brasileiro
cada de 1940, quando o urbanismo modernista
se colocava como principal influência.
O Urbanismo Rural no Brasil
De modo geral, o modernismo também trouxe
elementos de seu predecessores, formando um No meio rural, a ocupação do espaço brasileiro
arcabouço técnico de se pensar as cidades bas- sempre esteve vinculada a interesses produtivos
tante vasto. Porém, apesar de ter influenciado de elevado porte e a grandes propriedades. No
diretamente alguns arquitetos e urbanistas que se início do processo de colonização instalaram-se
voltaram para pensar o campo, ele não traz este as fazendas de engenho, localizadas na região
meio como prioridade, inclusive, segundo Ferrari costeira do país (principalmente na Bahia e em
(1991), propondo soluções de adensamento nos Pernambuco), que, destinavam-se a suprir os
centros urbanos. O que se coloca, em realidade, interesses da metrópole portuguesa.
EIXO TEMÁTICO 1 No processo de interiorização do país, afirma
Luccas (1997), próximo a grandes rios, surgiram
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO as fazendas de gado. Neste caso, aparecem os
vaqueiros que, construíam suas casas na área
da fazenda e criavam seu gado, além do gado do
fazendeiro, formando, muitas vezes pequenos
vilarejos em torno da casa grande. As fazendas
de gado estavam presentes em grande parte do
território brasileiro desde o sul, ao norte, o nor-
deste, abrangendo, ainda a região sudeste, com
destaque para Minas Gerais.

Posteriormente, houve a ascensão política oligar-


quia cafeeira, já que o café exerceu uma grande
importância para a economia do país, porque
era praticamente o único produto brasileiro de
exportação. Seu cultivo era desenvolvido espe-
cialmente em São Paulo, Rio de Janeiro, Espí-
rito Santo e algumas áreas de Minas Gerais. As
fazendas de café chegaram a ter edifícios bas-
tante sofisticados e imponentes, possuidoras
de arquiteturas ecléticas com grande influência
neoclássica, segundo Cruz (2010). Normalmente
as casas grandes eram inseridas em pontos mais
altos, porém com toda a estrutura produtiva em
seu entorno, mostrando a priorização do setor
produtivo em relação a estética da paisagem,
seguindo, neste aspecto, o mesmo conceito das
fazendas de engenho, de gado, de cacau e de
borracha. O fator controle era o principal aspecto
para justificar a implantação das casas grandes
junto das áreas de beneficiamento, alojamento e
produção em todos os casos citados.

Afastando-se destas fazendas fortemente contro-


ladas a partir de um pátio central, foi se evoluindo
um outro tipo de ocupação do campo brasileiro,
decorrente, principalmente do processo de co-
lonização por imigrantes e, depois, por brasi-
leiros. Este processo ocorreu entre 1930 a 19. A
organização espacial foi variada, não partindo de
princípios de planejamento baseado em ideias
vinculadas ao pensamento urbanístico para o
meio rural. Segundo

Os projetos de colonização evoluíram na década


de 1970 para uma proposta de estratégia de con-
trole do território nacional, dirigida pela ditadura
militar. Uma publicação de 1973 do Instituto Na-
16º SHCU cional de Colonização e Reforma – INCRA, intitu-
30 anos . Atualização Crítica
lada Urbanismo Rural e, redigida pelo arquiteto
196 José Geraldo da Cunha Camargo se constitui no
documento básico para se entender todo o pro- O planejamento era o grande norteador deste
cesso de concepção inicial das formas espaciais processo assumindo o protagonismo das ações
produzidas nos projetos de colonização. governamentais. Sugerindo-se uma relação com
Arantes (2000), percebe-se nitidamente que o
O autor explicita em seu texto sua grande expe- planejador passa a se confundir com um empre-
riência na implantação de colônias agrícolas na endedor, assim sendo, o Estado empreende os
fase inicial de colonização rural brasileira. Ele, projetos de colonização, embora de forma con-
no início do texto sinaliza a opinião de que tais traditória em relação a seus objetivos.
colônias sofriam evasão não dos que não con-
seguiam se desenvolver nelas, mas, justamente Neste contexto, pensava-se na construção de
dos que conseguiam acumular recursos para se comunidades onde o coletivo prevalecesse sobre
mudar para as cidades. Esta, segundo o autor, se o individual. Elementos culturais característicos,
constituía no lócus de múltiplas possibilidades e tais como religião e hábitos, deveriam ser diluídos
de desenvolvimento. O campo, ao contrário, era para a formação de um novo grupo social que
o local da ignorância e do atraso tecnológico. Era desse conta da proposta elaborada. Além disso,
necessário, então, levar os elementos da estrutura ao mesmo tempo em que se propunha a ocupação
urbana para os projetos de colonização, permi- da Amazônia com funções agrícolas, negava-se
tindo, assim, possibilidades de desenvolvimento o modo de vida rural. O modo de vida urbano no
para os mesmos. campo era o que se perseguia. O arquiteto, nes-
te ponto, mostrava desconhecer os processos
Este arquiteto notadamente foi responsável pela
territorialização inerentes ao ser humano. Ele
transposição das ideias de planejamento e de ar-
acreditava poder moldar seu público a partir de
quitetura para o campo, elaboradas em outras
uma proposta espacial bem delimitada.
partes do mundo, para o Brasil. Em seu texto sobre
urbanismo celular, elaborado em 1977, Camargo Em torno do discurso do planejamento integrado,
traz uma lista de autores que influenciaram sua Camargo trouxe em sua publicação de 1973 mode-
forma de planejar. Dentre eles se encontram Arturo los teóricos espaciais (Figuras 5), pensados para
Soria y Mata, que elaborou a cidade linear, além de se criar uma rede urbano-rural hierárquica, onde
Ebenezer Howard, Raymond Unwin e Barry Parker, elementos da urbanidade fossem recriados em
precursores das cidades jardim. Porém, apesar de áreas rurais. A Figura 5-A mostra o Zoneamento
não ser citado, é evidente a semelhança entre o Esquemático do Urbanismo Rural da Região Limí-
discurso de Bardet e Camargo e, até mesmo algu- trofe a uma Cidade. Este esquema tem o mesmo
mas formas conceituais formuladas pelo brasileiro. conteúdo dos das cidades jardim. Além disso,
se assemelha bastante com a lógica de Bardet,
O conceito adotado por Camargo é o de Urbanismo
em seu esquema conceitual de cidade como um
Rural que, segundo ele, baseava-se no planeja-
cluster. Fica evidente que Camargo não criou
mento integrado, considerando-se elementos
seus esquemas, ele adaptou o que já havia sido
da área social, econômica e física do meio rural.
elaborado para subsidiar teoricamente a proposta
Neste processo de planejamento espacial, de-
de colonização na Amazônia. Sua adaptação, en-
terminavam-se zoneamentos, destinavam-se
tretanto, não contemplou a realidade brasileira e
usos, dimensionavam-se áreas, tendo em vista
nem o conteúdo das propostas que trouxe como
os recursos necessários para criar e promover
o desenvolvimento. As áreas deveriam ganhar referência. Além disso, não apresenta uma refle-
autonomia econômica gerando uma espécie de xão em torno das experiências já existentes dos
rede urbano-rural autossustentável socioecono- modelos que utiliza. Cita-se isto porque Camargo
micamente. Segundo Rego (2016), o urbanismo trabalha traz propostas elaboradas desde o início
rural alinhava-se com a ideia de descentralização do século XX até meados de 1950 e, seu livro foi
urbana trazida pelas cidades jardim, principal- publicado em 1973, isto é, depois de vinte anos.2
mente no que concerne as cidades satélites, a
integração cidade-campo e a organização ba- 2. Como pôde ser visto nos tópicos anteriores, a ideia de
seada na conexão, proximidade, dependência e urbanismo rural nasce em meados de 1930, muito antes
hierarquia entre os núcleos urbanos. das proposições de Camargo.
EIXO TEMÁTICO 1 As unidades urbanas de Camargo seguiam uma
hierarquia onde o elemento central era a rurópolis
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO que, se constituía como um polo regional de de-
senvolvimento, onde orbitavam as agrópolis e as
agrovilas num raio de 70 a 140 km. Na Figura 5-A, a
rurópolis é representada pelo círculo escuro indica-
do como cidade, as agrópolis indicadas em círculos
menores claros e as agrovilas, em pontos pretos.
Segundo Camargo (1973), uma agrópolis deveria
se constituir num pequeno centro agroindustrial,
cultural e administrativo destinado a dar apoio
à integração social no meio rural. Sua influência
deveria abranger um raio de 10 km, onde estariam
localizadas as agrovilas. Estas, teoricamente fun-
cionariam como bairros satélites das agrópolis,
com características mistas entre o rural e o urba-
no, objetivando acomodar os que estavam direta-
mente se dedicando as atividades agropecuárias.

Segundo Rego (2016), o esquema de Camargo ini-


cialmente foi apresentado de forma mais abstrata
para ser usado como referência geral no processo
de fixação em áreas rurais. Moreira (2017) afirma
que, com a demanda dos projetos de colonização
ao redor de rodovias, principalmente da Transa-
mazônica, ele adaptou o esquema para uma es-
trutura menos centralizada e mais linear (aí, já sob
influência de Soria y Mata), através de repetições
do conjunto agrópolis/ agrovilas, indicando, tam-
bém, as rurópolis a distância de cerca de 70km.

A Figura 5-B mostra esquemas de planos físicos


de agrovilas. Segundo Camargo (1973), as agrovilas
objetivavam a integração social dos habitantes do
meio rural, para os quais ofereceria “condições de
vida em moldes civilizados”. Nelas deveria conter
um parque central, onde se localizariam a escola,
pequena sede administrativa, centro social, posto
de saúde, templo ecumênico, play-grounds, praça
de esportes, coreto, comércio e local para coope-
rativa. Os lotes das agrovilas poderiam variar entre
3000m² e 500m², devendo ter área o suficiente
para formação de pomares, hortas e criação de
pequenos animais.

O cálculo da população inicial da agrovila deveria


se referenciar pelo número de crianças neces-
sário para se justificar a abertura de uma escola
rural. Camargo tinha uma grande preocupação
16º SHCU com as escolas e, também, com os tempos de
30 anos . Atualização Crítica
deslocamento das pessoas entre suas ativida-
198 des diárias. Por isso, todos os seus cálculos são
referenciados nestas duas perspectivas, pois, de
acordo com o autor, ele deveria necessariamente
atender tanto as demandas econômicas quanto
as pedagógicas.

Ainda em relação às agrovilas, o autor propunha


que elas abrigassem tantos os proprietários dos
lotes rurais, como seus trabalhadores. Neste for-
mato, Camargo cria uma estrutura de classes
numa escala local no meio rural, desprezando os
anseios e as características dos camponeses ali
assentados e, criando formas de viabilizar a ex-
ploração do trabalho. Isso se acentua mais pelo
fato de propor diferenciações de padrões de lotes
quanto a sua dimensão e localização.

Em relação as agrópolis, como público, ela abran-


geria tanto os já indicados para as agrovilas, como
aqueles que trabalham com funções específicas
do meio urbano. Isto porque ela teria elementos
mais complexos no que concerne à infraestrutura
e serviço, justamente para atender os moradores
das agrovilas orbitantes. Sua população deveria
ter entre 1.500 a 3.000 habitantes, contando com
área de expansão.

A) Zoneamento Esquemático do Urbanismo Rural da Região


Limítrofe a uma Cidade
EIXO TEMÁTICO 1
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO

B) Esquemas de Planos Físicos de Agrovilas

Figura 5 – Modelos Espaciais do Urbanismo Rural no Brasil.


Fonte: Camargo, 1973.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
No caso das Rurópolis, a população deveria ser
200 calculada para mais de 20.000 habitantes. Isto
porque ela teria funções mais complexas e diversi- pelo Estado, que, segundo Coelho Neto (2004)
ficadas que uma agrópolis, tal as desempenhadas se constituem em espaços construídos a partir
pelos hospitais, serviços de segurança pública, das relações entre sociedade e natureza onde
centros administrativo, escolas técnicas e es- o componente técnico se destaca, assumindo
pecializadas, agroindústrias, dentre outras. As papel determinante. Para esta texto, eles trazem
rurópolis, na prática, se constituíram em cidades outro componente técnico importante, além da
preexistentes, tal como Marabá, pois, os investi- infraestrutura de irrigação, que é o exercício do
mentos e a mobilização para se criar uma estru- pensamento urbanístico para as áreas irrigadas,
tura neste porte em áreas ainda não povoadas considerando o local de moradia dos irrigantes.
seriam enormes, incompatíveis com a realidade
do país, fato que foi considerado por Camargo. Nos primeiros projetos de irrigação houveram
arquitetos envolvidos que, pensavam nas possi-
A experiência e conhecimento teórico do arqui- bilidades mais viáveis de implantar as moradias
teto não foram suficientes para viabilizar suas dos colonos. O DNOCS, por exemplo, chegou a
propostas de forma plena. Isto porque não se implantar agrovilas tanto em Jacurici, quanto em
conhece exemplos de projetos de colonização Vaza Barris, sendo que no primeiro, os projetos
deste período que tenham tido êxito. Isto se deu tiveram maior protagonismo. Porém, os exemplos
tanto pela forma como o projeto foi concebido, de maior importância a serem citados, no que
desprezando aspectos sociais, antropológicos concerne ao desenvolvimento de projetos, estão
e territoriais, quanto pelo fato do Estado não ter vinculados a ação de capacitação, financiada pelo
investido no empreendimento de forma adequada. estado brasileiro em parceria com Israel.
Isto é, os elementos projetados pelo arquiteto
não foram implantados de forma a contemplar De meados da década de 1970 até o início da dé-
sua proposta em seu conteúdo. Assim, as formas cada de 1980 (pouco mesmo de 10 anos), alguns
espaciais elaboradas por Camargo foram implan- técnicos, vinculados a setores públicos (Banco
tadas e ainda podem ser visualizadas, porém, do Nordeste, CODEVASF, DNOCS, universidades,
suas funções atuais, nem de perto, contemplam dentre outros), foram designados a fazer uma
a proposta do arquiteto. Grande parte agrópolis formação específica em Planejamento Rural
projetadas neste período se transformou em sede Integrado. O I Curso de Planejamento Físico e
municipal, mas, com alto grau de carência econô- Arquitetura Rural3 ocorreu no Ceará, a partir de
mica, social e de infraestrutura. A prosperidade um convênio entre o Banco do Nordeste (BNB), o
advinda da produção agrícola não se concretizou Banco Central (BACEN), a Universidade Federal
e, a degradação ambiental desenfreada é uma do Ceará (UFC) e o Settlement Study Centre, de
triste consequência deste processo. Israel. Na verdade, tratava-se do estabelecimento
de transferência de tecnologia4 entre Israel e os
Apesar do fracasso do urbanismo rural em sua
países da América do Sul, visto a experiência do
aplicação nos projetos de colonização da Ama-
primeiro com irrigação nas estruturas de Kibutz5
zônia, suas ideias foram propagadas no âmbito
e de Moshav6.
estatal e, implantadas, em outros contextos, em
vários estados brasileiros.
3. O curso ocorreu entre 14 de abril a 15 de junho de 1975.

4. O que poderia repercutiria em relações comerciais: na


compra de equipamentos israelenses para irrigação.
Projetos de Irrigação e os Estudos Avançados
para o Desenvolvimento do Campo Brasileiro 5. Criado em 1910 na sociedade israelense, a concepção
entre 1970 e 1980 de kibutz se constitui em agrupamentos onde funcionam
comunidades que exercem atividades agrícolas em proprie-
Na Bahia, projetos de Irrigação foram implan- dades coletivas. A igualdade social, os meios de produção
tados no espaço rural pelo Departamento Na- próprios, a distribuição da produção para a comunidade e
cional de Obras Contra as Secas (DNOCS) e pela a prioridade à educação das crianças são características
Companhia de Desenvolvimento do Vale do São destas estruturas.
Francisco (CODEVASF). Eles se constituem em 6. Um moshav tem similaridade a um kibutz no que no que
empreendimentos prioritariamente financiados se refere ao trabalho comunitário. Porém, no kibutz existe
EIXO TEMÁTICO 1 Posteriormente ao primeiro curso, alguns outros
foram realizados, sendo que houveram casos onde
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO os técnicos designados foram enviados para Israel
com a finalidade de aprofundamento no processo
de formação. A última versão do curso ocorreu no
ano de 1983, quando o Brasil deixou de se interessar
pela parceria e, abandonou a ideia de formar qua-
dros para atuar nesta área. É importante destacar
que este momento coincide com uma grave crise
econômica no país e, também, no processo de de-
clínio do “Regime Militar”. A questão é que o desen-
volvimento de ideias para a implantação de famílias
no campo, de forma articulada a produção agrícola
foi cada vez mais se enfraquecendo, se perdendo,
e, assim, pouco se desenvolvendo do ponto de vista
teórico. A modernização da agricultura baseada
nas forças de grandes corporações em conjun-
to com as oligarquias rurais havia prevalecido.

Para este artigo, entretanto, é importante trazer


a contribuição destes estudos, destacando um
caso que chegou a ser implantado7 e outro que se
constituiu somente como um exercício de forma-
ção dos quadros técnicos8.

No primeiro caso, o Projeto Vale do Banabuiu/


Montante de Morada Nova, foram feitos vários
estudos os quais tinham como critério inicial, não
ultrapassar mais que 3km a distância da casa do
colono ao seu lote de irrigação. Além disso, foram
observados aspectos relativos a condição do solo,
revelo, além da disponibilidade de área.

A Figura 6 mostra algumas das propostas, onde se


apresentam alternativas de uma ocupação semi
concentrada. Elas trazem uma preocupação com
as distancias e com a integração de cada um dos
lotes, assim, as áreas de produção e pastagem
ficaram contiguas, dando praticidade a ação do
colono. As distancias entre casa e área irrigada é de

o coletivismo e no moshav o trabalho e os recursos naturais


nas propriedades agrícolas podiam ser individualizados ou
compartilhados e, os trabalhadores usavam para si próprios
os lucros e os alimentos produzidos.

7. O projeto implantado foi exposto na Exposição de Arqui-


tetura em São Paulo, promovida pelo IAB/SP, além de ter
sido premiado. Projeto Morada Nova é considerado como
um piloto pelo DNOCS.
16º SHCU
8. No I Curso de Planejamento Físico e Arquitetura Rural
30 anos . Atualização Crítica
tiveram como área a ser estudada a montante de Morada
202 Nova e o Alto Turi.
270m; casa e área de sequeiro, 1600m; casa e área
de pastagem, de 1000 a 4200m e; casa e serviços,
1000m. As áreas propostas foram: 0,4ha para o
quintal, 1ha para área irrigada, 10ha para área de se-
queiro e 21 a 34ha para área de pasto. A Figura 6-A
revela algumas articulações propostas: as casas fi-
cam agrupadas, a cada quatro, formando pequenos
grupos e, os quintais, em branco, fazem limite com
as áreas irrigadas (cinza). Na área central propu-
nha-se centros de serviços que, foram propostos
na quantidade necessária para atender ao colono
que morar até 1000m de distância. Nele, foram pro-
gramados o setor de galpões, a área educacional,
a de entretenimento, a religiosa e institucional.

Os estudos realizados no Curso foram encaminha-


dos para o DNOCS que, disponibilizou um conjunto
de três arquitetos para viabilizar sua implantação.
Assim, foram materializados, após ajustes, 9 núcle-
os habitacionais, sendo 2 lineares, 5 compactos,
2 binucleados. A mesma vai trazer, também, os
centros comunais e os de serviços implantados
separadamente, ou, juntos. Segundo Neves (1977),
foram feitas adaptações, ao que foi proposto no
Curso, relacionadas com as especificidades da
população nordestina.

A Figura 6-B mostra duas das três variações de


modelos de plano físico do Projeto Alto do Turi,
Maranhão. Do ponto de vista funcional estes dois
modelos diferem entre si, principalmente, pela
presença ou não da área de parcela comum9. A
Figura 6-B traz o esquema da implantação de 11
aldeias do modelo T1 que, se constituem nos cír-
culos. Em cada aldeia, teria um núcleo, indicado
na mesma Figura, com um detalhe, cujo quintal é Plano Físico da Aldeia
o foco. O Modelo T1, que tem área de uso comum,
propõe um quintal dividido em três partes: a mais
próxima seria destinada a atividades com neces-
sidade de trato cotidiano, a segunda, de culturas
permanentes e a terceira, uma capoeira. As casas
ficariam na parte central do círculo, cujo núcleo é
um triangulo. Assim, garantira-se a proximidade
tanto das famílias, quanto do trabalho e dos servi-
ços10. Cada aldeia teria a capacidade de acomodar
76 famílias.

9. Local que todos podem utilizar, principalmente para


pastagem.

10. No centro, teria posto de saúde, escola, centro comu-


nitário, comércio, cooperativa, armazém, oficina, quadra
de esportes e moradia para técnico.
EIXO TEMÁTICO 1
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO

Padrões de Núcleos Residenciais

A) Variações dos Modelos de Plano Físico do Projeto Vale


do Banabuiu/ Montante de Morada Nova, Ceará

Esquema Físico-Rural

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

204
ideia, assim como ocorreu com os propostos por
Camargo para a Amazônia.

4. CONSIDERAÇÕES, TENDÊNCIAS E perspectivas

Como consideração central, pode-se afirmar a par-


tir deste estudo, que as referências externas que
influenciaram diretamente o pensamento urbanís-
tico na escala do rural brasileiro têm como aspecto
mais evidente o fato de que a elaboração para o es-
Plano Núcleo da Aldeia paço rural é oriundo, predominantemente, de adap-
tações do que surge como proposta para o urbano.
Outro aspecto a ser considerado é que os estudos
feitos para este, normalmente estão ligados priori-
tária e meramente ao desenvolvimento produtivo.

No caso do Brasil, o pensamento urbanístico des-


tinado ao campo foi perdendo força à medida que
a proposta predominante e hegemônica para o de-
senvolvimento de áreas rurais foi se concentrando
em ações voltadas a grandes propriedades, base-
Detalhe de Quintal adas na estrutura do agronegócio, com forte in-
vestimentos em maquinário e, consequentemen-
B) Variações dos Modelos de Plano Físico do Projeto Alto
te, não mais no povoamento. Importante destacar,
do Turi, Maranhão
neste contexto, é que o Estado brasileiro deixa de
Figura 6 - Modelos Espaciais Desenvolvidos na Perspec- se interessar por estes estudos e, eles passam
tivas de Projetos de Irrigação no Meio Rural Nordestino. a se realizar, de forma predominante, a partir de
Fonte: UFC et al, 1975 e (Figuras 15-D e 15-E) Neves, 1977
interesses empresariais. Assim, os estudos se
e UFC et al, 1975.
afastam do campo do urbanismo, se aproximan-
do da engenharia agrícola e da agronomia. Este
processo vem acompanhado de investimentos na
Foram, também projetados modelos que não área de tecnologia da informação, destacando-se,
trabalhavam com a parcela comum. Neste caso, neste cenário, o desenvolvimento de sistemas de
cada círculo grande seria uma aldeia que, acomo-
informação geográfica, de geoprocessamento
daria 96 famílias distribuídas ao redor de quatro
e de processamento digital de imagens. Assim,
centros, os chamados núcleos, cada um com 24
o que se objetiva é a potencialização produtiva,
lotes. Assim, existiriam quatro centros de núcleo,
baseada em tomadas de decisão apoiadas por
com algumas funções e, um centro principal com
sistemas informacionais.
serventias mais amplas.

Esse tipo de modelo, chamado por alguns de raio Contraditoriamente, ao mesmo tempo em que
de sol, ou, e, de roda de carroça tem na centrali- políticas agrárias de cunho social direcionadas ao
dade das relações sociais, a otimização dos per- desenvolvimento, baseado no povoamento, vem
cursos, a articulação e a praticidade na disponi- perdendo espaço; numa perspectiva antropológi-
bilização de serviços como fundamentais. Alguns ca, caminhando no sentido da construção de um
projetos de assentamento do governo federal pensamento descolonizado, crescem estudos que
adotaram este modelo físico espacial, porém, a articulam e valorizam os conhecimentos de co-
falta de disponibilização de infraestrutura, fre- munidades tradicionais, tais como, quilombolas,
quente na política de assentamentos rurais, acaba povos originários de diversas etnias, ribeirinhos,
por tirar a força e a potência de qualquer tipo de fundo de pasto, etc. Neste caso, a luta pela posse
EIXO TEMÁTICO 1 dos territórios11 acaba por prejudicar este pro-
cesso, porém, mesmo assim, os grupos sociais
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO estão se fortalecendo no meio acadêmico e entre
as próprias comunidades que, na última década
vem conseguindo se inserir nas universidades,
através das cotas, e, desenvolver pesquisas a
partir dos pressupostos de suas próprias culturas
e territórios. Desta forma, reflexões quanto a for-
mas de planejamento do espaço rural vem sendo
pensadas, fora do escopo do pensamento urbanís-
tico, adentrando outras fontes de conhecimento.

Uma outra tendência, que vem crescendo nos


últimos anos é a do pensamento da ocupação do
meio rural a partir de princípios de sustentabilida-
de ambiental. Nesta perspectiva, a permacultura
e a agroecologia vão aglutinar grupos em comu-
nidades específicas que, elaboram metodologias
de planejamento espacial no espectro de ecovilas
e de condomínios agroecológicos. Estes grupos
trabalham na perspectiva do pouco consumo,
do trabalho coletivo, do aproveitamento de re-
síduos, da energia renovável, da bioconstrução,
do conhecimento tradicional e da preservação
ambiental. Nesta perspectiva, existem redes ar-
ticuladas em escala global que formam grupos
de troca de informação, além de organizarem
cursos de capacitação que incluem o design e o
planejamento espacial de páreas rurais.

O campo brasileiro é um espaço desigual e de


disputa entre os pequenos produtores rurais e as
grandes empresas e, o Estado, se coloca como
um mediador que tende a beneficiar este segundo
grupo12. É com este cenário que estas três ten-
dências vem se desenvolvendo de forma indepen-
dente umas das outras, por isso, sem compor um
campo de pensamento articulado. Concomitante-
mente, ainda é possível se observar fragmentos
de algumas ideias do urbanismo rural de Camargo
e dos modelos espaciais desenvolvidos no âmbito
dos projetos de irrigação, principalmente nas
políticas públicas de assentamento rural.

11. A regularização fundiária ainda está longe de beneficiar as co-


munidades tradicionais do Brasil, visto que estas disputam ter-
ritório com o agronegócio e a mineração, ambos em expansão.

12. Tais disputas vêm se tornando cada vez mais acentu-


adas e, a própria legislação que trata sobre regularização
fundiária, função social da terra e conceito de propriedade
16º SHCU
privada vêm trazendo elementos que reforçam este aspecto.
30 anos . Atualização Crítica
Além disso, os créditos produtivos vão sempre beneficiar
206 e facilitar para os grandes produtores rurais.
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EIXO TEMÁTICO 1 RESUMO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Este texto utiliza as metáforas das espumas
(SLOTERDIJK, 2004) e das nuvens (PEREIRA,
SESSÃO temática 2018-2019) para interpretar a ideia de centro
urbano a partir dos desenhos deixados por
três artistas-viajantes sobre o Rio de Janeiro:
A IMAGEM PLURAL DO Franz Joseph Frühbeck (1817-1818), Johann Mo-
ritz Rugendas (1822-1825) e Eduard Hildebrandt
CENTRO NA METRÓPOLE (1844). Busca-se construir uma reflexão sobre
o urbanismo através de um olhar transversal e
DO RIO DE JANEIRO interativo sobre diversas práticas de descrição
da cidade – textos, mapas e desenhos- para
(1810-1850): FRÜHBECK, interpretar as múltiplas relações e dimensões
sociais e culturais da disciplina. Apresentar sig-
RUGENDAS E HILDEBRANDT nificados e ações, heterogêneas e multiformes,

SOBREVIVENTES de uma ideia complexa, vibrante e vital de cida-


de, poderia nos ajudar a interpretar como foi a
formação da ideia de centro urbano? Observar
experiências e representações, permitiria sin-
THE PLURAL IMAGE OF THE CENTER IN THE
gularizar, diferenciar e localizar uma ideia que
METROPOLIS OF RIO DE JANEIRO (1810-1850):
tem significados divergentes? Quais foram as
FRÜHBECK, RUGENDAS AND HILDEBRANDT SURVIVORS
interações, transposições e tensões na compo-
sição cultural para adotar a palavra centro como
LA IMAGEN PLURAL DEL CENTRO EN LA METRÓPOLIS
um local singular na cidade do Rio de Janeiro?
DE RIO DE JANEIRO (1810-1850): FRÜHBECK,
Afastada das visões econômicas, funcionalis-
RUGENDAS Y HILDEBRANDT SOBREVIVIENTES
tas e estruturalistas, esta reflexão percorre
variadas forças que passam a definir a ideia de
TEJERO BAEZA, Pilar “centralidade” no Rio: dos momentos de efer-
vescência cultural na capital do Reino Unido de
Doutoranda; PROURB/UFRJ
pilartejerobaeza@gmail.com Portugal, Brasil e Algarve (1815) até a introdu-
ção do uso centro por Henrique de Beaurepaire
Rohan (1843) para se referir à parte consolidada
da cidade, passando pela demarcação do Muni-
cípio Neutro (1834) e de sua separação do resto
da Província do Rio de Janeiro com o início da
construção do Império (1822).

centro urbano metrópole imagem


sobrevivências Rio de Janeiro

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

208
ABSTRACT RESUMEN

This text uses the metaphors of foams (SLO- Este texto utiliza las metáforas de las espumas
TERDIJK, 2004) and clouds (PEREIRA, 2018-2019) (SLOTERDIJK, 2004) y de las nubes (PEREIRA,
to interpret the idea of urban
​​ center from the 2018-2019) para interpretar la idea de centro ur-
drawings left by three artist-travelers about Rio bano a partir de los dibujos dejados por 3 artis-
de Janeiro: Franz Joseph Frühbeck (1817 -1818), tas-viajeros sobre Rio de Janeiro: Franz Joseph
Johann Moritz Rugendas (1822-1825) and Eduard Frühbeck (1817-1818), Johann Moritz Rugendas
Hildebrandt (1844). It seeks to build a reflection in (1822-1825) y Eduard Hildebrandt (1844). Se busca
urbanism through a transversal and interactive construir una reflexión sobre urbanismo a tra-
look at different practices of description of the vés de una perspectiva transversal e interactiva
city - texts, maps and drawings - to interpret the sobre las diversas prácticas de descripción de la
multiple relations, social and cultural dimensions ciudad - textos, mapas y dibujos- para interpre-
of the discipline. Presenting heterogeneous and tar las múltiples relaciones y dimensiones so-
multiform meanings and actions of a complex, ciales y culturales de la disciplina. Presentar los
vibrant and vital idea of ​​the city, could it help us diversos significados y acciones, heterogéneas
to interpret how the idea of the​​ urban center was y multiformes, de una idea compleja, vibrante y
formed? Would observing experiences and repre- vital de ciudad ¿podría ayudarnos a interpretar
sentations allow you to singularize, differentiate cómo se formó la idea de centro urbano? Obser-
and locate an idea that has divergent meanings? var experiencias y representaciones ¿permitiría
Which were the interactions, transpositions and singularizar, diferenciar y localizar una idea que
tensions in the cultural composition to adopt the tiene significados divergentes? ¿Cuáles fueron
word center as a singular place in the city of Rio de las interacciones, transposiciones y tensiones en
Janeiro? Away from economic, functionalist and la composición cultural para adoptar la palabra
structuralist views, this reflection goes through centro como un lugar singular en la ciudad de Río
several forces to define the idea of ​​“centrality” in de Janeiro? Alejada de la visiones económicas,
Rio: from the cultural effervescence in the capital funcionalistas y estructuralistas, esta reflexión
of United Kingdom of Portugal, Brazil and Algar- recorre varias fuerzas que definieron la idea de
ve (1815) until the introduction of word center by “centralidad” no Rio: desde los momentos de efer-
Henrique de Beaurepaire Rohan (1843) to refer to vescencia cultural en la capital del Reino Unido de
the consolidated part of the city. Passing through Portugal, Brasil y Algarve (1815) hasta la introduc-
the demarcation of the Neutral Municipality (1834) ción del uso del vocablo centro por Henrique de
and its separation from the rest of the Province of Beaurepaire Rohan (1843) al referirse a la parte
Rio de Janeiro with the beginning of the Empire’s consolidada de la ciudad, pasando por la demar-
construction (1822). cación del Municipio Neutro (1834) y de su sepa-
ración de resto de la Provincia con el inicio de la
construcción del Imperio (1822).
urban center metropolis image
survivals Rio de Janeiro
centro urbano metrópolis imagen
sobrevivencias Rio de Janeiro
EIXO TEMÁTICO 1 Introdução: A imagem da espuma nos
centros sobreviventes
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO

Desde seu livro Globo (1999), o filósofo alemão


SESSÃO temática Peter Sloterdijk vem analisando as expansões
das ocupações do espaço vivido e habitado que
transcorreram dos povoados às cidade, metró-
A IMAGEM PLURAL DO poles e impérios até os sistemas urbanos e os

CENTRO NA METRÓPOLE infinitos espaços ilimitados e inabitados. A ideia


de globo e de totalidade única e fechada vem sen-

DO RIO DE JANEIRO do descontruída por ele em diferentes textos.


Apesar do alto risco da metáfora circular parecer
(1810-1850): FRÜHBECK, hermética, Sloterdijk sublinha que a fragilidade e
potencialidade dessa substancia espacial habitá-
RUGENDAS E HILDEBRANDT vel – a esfera - possuí suas raízes sustentadas em
uma cultura e essa é uma ferramenta imagética
SOBREVIVENTES que pode levar-nos a uma recuperação física,
mental e anímica desejável para uma outra teoria
dos lugares, das situações e das imersões - uma
THE PLURAL IMAGE OF THE CENTER IN THE biosofia - que põe-se em marcha lentamente na
METROPOLIS OF RIO DE JANEIRO (1810-1850): atualidade.
FRÜHBECK, RUGENDAS AND HILDEBRANDT SURVIVORS
Neste texto adotamos suas premissas sobre a
LA IMAGEN PLURAL DEL CENTRO EN LA METRÓPOLIS ideia de microesfera (1994) e a imagem das es-
DE RIO DE JANEIRO (1810-1850): FRÜHBECK, pumas (2004) para pensar um lugar - o chamado
RUGENDAS Y HILDEBRANDT SOBREVIVIENTES “centro” do Rio de Janeiro -, ampliando, a partir
de suas reflexões, o próprio significado também
da palavra centro como metáfora urbana que de-
signaria o “que está no meio do mundo” (BLUTEAU,
1712, p. 241).

Pensa-se o centro do Rio, enfocando-o como


agrupamento de inumeráveis bolhas, que por
vezes incluem e excluem, crescem e encolhem,
recompõem-se e descompõem-se em diferen-
tes e múltiplos formatos de frágeis e vulneráveis
organizações de vida humana. Trata-se de uma
espaço hibrido e elástico que responde à defor-
mação e à a expansão, explosão, desaparecimento
e renascimento de ideias de organização social,
com uma grande capacidade de recomposição.

Nele, cada microesfera seria, portanto, um local


plural e um espaço de aprendizagem da diferen-
ça e dos diferentes que possui a capacidade de
crescer pela assimilação do fluxo maior da vida.

Por sua vez, a imagem metafórica das espumas,


16º SHCU exposta em seu livro de mesmo título (SLOTERDI-
30 anos . Atualização Crítica
JK, 2004), oferece uma teoria da época atual sob
210 o ponto de vista de que a vida se desenvolve de
modo multifocal, multiperspectivista e heterár- Portanto, a espuma reconhece esse próprio es-
quicamente. Para ele: paço do centro, apenas como um local onde se
movimentar e percorrer entre os outros centros,
Se a «vida» atua ilimitadamente, ignorando o peso de uma composição urbana
conformando espaços de diversas consolidada. Essa percepção permite qualificar
maneiras, não é só porque cada uma das uma visão interativa entre tendências opostas e
mônadas tenha o seu próprio entorno, mas diversas que se misturam delicadamente com a
porque todas estão ligadas a outras vidas tática do ar, apropriando as relações coexistentes,
e se compõem de inumeráveis unidades. evitando os encontros particulares em simplifi-
A vida, [como em uma fábrica comple- cação fácil, ingênua e de curto prazo para um
xa], se articula em cenários simultâneos, desafio paciente das tensões antagônicas da vida.
imbrincados uns nos outros em oficinas
interconectadas onde produz-se e conso- Também um certo pensar por nuvem, definido pela
me-se. (Ibid., p.24) 1 historiadora Margareth da Silva Pereira (2018),
que utiliza a palavra metafórica nebuloso(a), em
Assim, a festiva imagem da espuma - “esfera uma substantivo ou adjetivo, para designar os céus,
implodiu, portanto agora as espumas vivem” 2 tempos e atmosferas, considerando tanto um
- nos serve para pensar o diverso sem descon- falar sobre algo sombrio e escuro, quanto refe-
certar-se dos afetos do passado. Agora de forma rindo-se também ao que está um sobre o outro,
mais experimental, fluida, sutil, assim como a vida pode auxiliar-nos a pensar tanto o lugar como
cotidiana que se traspassa entre o espaço e as a palavra centro. Nesse caso, é a formação de
pesadas estruturas consolidadas para associar-se conjuntos em situações de adensamento e mo-
com eles. vimentação que acha-se sublinhado, algo como
um efeito de sobreposições de possibilidades de
Por suplemento do ar, um liquido, um sólido multiplicações de sentidos. (PEREIRA, 2018, p. 250)
perde a sua compacidade; o que parecia
autônomo, homogêneo, consistente se Tomando o dicionário de Bluteau (1716) como fonte
transforma em estrutura esponjosas. O para pensar os uso da palavra nebuloso(a), para
que acontece ai? É a mistura das matéria Pereira (2018) , a conformação do céu e as névoas
mais oposta o que a espuma converte o tornaram-se objeto de estudo cientifico nos con-
fenômeno. O elemento ligeiro corresponde, flitos entre “religiosos” e “naturalistas”, associadas
evidentemente, a perversa capacidade de aos debates sobre a vida e morte das estrelas
se infiltrar nos mais pesados e associar-se ou a existência de galáxias e universos. Assim,
com eles, a maioria das vezes fugazmente, essa imagem espacial - as nuvens e a formação
em alguns casos por mais tempos.3 de nebulosas - remete a um campo relacional e
ilimitado, que tanto reage a uma ideia compar-
timentada de conhecimento quanto permitiria
1. Wenn „Leben“ grenzenlos vielfältig räumbildend wirkt, so ressignificá-lo, nas interações no campo da arte,
nicht nur, weil jede Monade ihre je eigene Umwelt hat, sondern da arquitetura ou do urbanismo.
mehr noch, weil alle mit anderen Leben verschränkt und aus
zahllosen Einheiten zusammengesetzt sind. Leben artikuliert Isto é, pensar por nebulosas reage a uma
sich auf ineinander verschachtelten sumultanen Bühnen, es ideia de ciência que se mostra preponde-
produziert und sich in vernetzten Werkstätten. rantemente compartimentada em “áreas” de
2. Die Eine Kugel ist implodiert, nun gut – die Schäume leben. saber e associa o conhecimento a um ideal
(id., p. 26) de transparência e de claridade – quando
3. Durch Zuschlag von Luft verliert ein Flüssige, ein Festes sein não de uma revelação, distante, contudo,
Dichte, was eigenständig, homogen, solide schein, verwandelt daquela benjaminiana, que não apascenta
sich in aufgelockerte Strukturen. Was geschieht da? Es ist die ao iluminar, com perplexidade, o absurdo.
Mischbarkeit der gegensätzlichesten Stoffe, die im Schaum (PEREIRA, 2018, p. 246)
zum Phänomen wird. Dem leichten Element kommt offenbar
die tückische Fähigkeit zu, in die schwereren einzudringen Neste exercício utiliza-se também a expressão
und sich mit ihnen zu verbinden, meistens flüchtig, in einigen sobrevivência ou Nachleben, utilizada pelo his-
Fällen sogar auf längere Zeit. (id, p. 27) toriador de arte Aby Warburg (1866-1929) para de-
EIXO TEMÁTICO 1 signar algo que permanece ativo aos sentidos,
mesmo temporalmente distante, isto é, depois
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO de seu tempo de concepção, de formulação, de
vida. Para a arquiteta Paola Berenstein Jacques
(2018) , trata de algo que ressurge de outra época,
outra civilização e de uma cultura pagã, assom-
brando à memoria de gerações posteriores como
um atravessamento de um campo especifico, no
caso de Warburg da arte, para outros campos. O
termo, foi interpretado também pelo o sociólogo
Leopoldo Waizbort (2010), como “vida póstuma” ou
uma morte-viva e para historiador da arte Geor-
ges Didi-Huberman (2002) como um “pós-viver”.
Segundo ele:

A sobrevivência segundo Warburg não nos


oferece nenhuma possibilidade de simpli-
ficar a história; impõe uma desorientação
temível para qualquer veleidade de perio-
dização. É uma ideia transversal a qualquer
recorte cronológico. Descreve um outro
tempo. Assim, desorienta, abre, torna mais
complexa a história. Numa palavra, ela a
anacroniza. Impõe o paradoxo de que as
coisas mais antigas às vezes vem depois
das coisas menos antigas... mostra como
a sobrevivência desnorteia a história, como
cada período é tecido por seu próprio nó de
antiguidades, anacronismos, presentes e
propensos para o futuro. (DIDI-HUBERMAN,
2002, p. 69)

Warburg destaca que essa “restituição da Anti-


guidade” refere-se a uma ação consciente dos
fatos históricos e da liberdade do artistas para
representar o mundo como um “eco de entrega
passional” que plasmam nas obras. Como “como-
ções promovida pelos mistérios” da Antiguidade,
elas revelam que uma herança dada as pessoas
livres e com atitude para o mundo, sendo um esti-
mulo para articular o inaudito nas obras artísticas.

A tarefa de caracterizar a restituição da


Antiguidade como um resultado da inci-
piente consciência historizadora dos fatos
e também da empatia artística dotada de
liberdade de consciência não passaria de
uma teoria da evolução descritiva e insufi-
ciente, caso ao mesmo tempo não se ousas-
16º SHCU se tentar descer às profundezas do emara-
30 anos . Atualização Crítica
nhado das pulsões do espírito humano com
212 a matéria sedimentada. (WARBURG, 1929)
Waizbort (2010) assinala que esses pressenti- concluído: “Bilderatlas Mnemosyne”.
mentos estão imbricados na memória e trans-
formados para uma criação de sentidos ao que Essa composição da “boa vizinhança” através de
denominamos como múltiplo e heterogêneo. Essa montagens permitiu ao pesquisador enfatizar a
inovação conceitual permitiu a Warburg oferecer sua atitude ao identificar no transcurso, na inver-
uma explicação sobre a reaparição do passado, são ou na transformação o valor surpreendente
de algo que ficou perdido ou morto, mas que “não de que as imagens “jamais estão fechadas em si
se perderá jamais”. mesmas, como mônadas: elas se abrem para pro-
cessos de constelação” a cada momento que são
É algo ou alguém que volta sempre, sobrevi- movidas, deslocadas e reposicionadas surgem
ve a tudo, reaparece de tempo em tempos, novos diálogos. (WAIZBORT, 2010). Aqui Pereira
enuncia uma verdade quanto à origem. É (2018) propõe um deslocamento da própria ideia
algo ou alguém que não conseguimos es-
de constelação, uma vez que esta relaciona-se
quecer. Mas que não podemos reconhecer
a estrelas, isto é, a pontos fixos, em benefício
com clareza. (DIDI-HUBERMAN, 2002, p. 27)
do pensar movente das nuvens em permanente
A Nachleben, é portanto, aqui também algo formação, configuração, movimento, reconfi-
nebuloso, que circunscreve essa metamorfose, guração.
que implica plasticidade, maleabilidade, mudan-
Jacques (2018) ressalta que o foco de Warburg
ça das formas” (WAIZBORT, 2010). Essas forças
variadas antigas são reativadas e transformadas estaria menos em cada imagem em si e mais no
no tempo e no espaço, alterando a relação do próprio intervalos entre elas, no vazio entre as
sujeito com a formas físicas e dando significado imagens, nas suas possíveis relações, não es-
à tensão e polarização na busca de soluções ou tabelecida a priori, as que emergem no próprio
compromissos. exercício da montagem.

Como se sabe, para iniciar os estudos da sobrevi- O Atlas Mnemosine pretende, com seu ma-
vência, Warburg criou a sua biblioteca, como um terial de imagens, ilustrar esse processo,
”laboratório das história das imagens” culturais. que se poderia designar como uma tentativa
A partir de variados paneis de imagens móveis e de introjeção na alma dos valores expressi-
textos, arranjava diálogos, relações e nexos entre vos pré-formados na representação da vida
elas, dando sentido ao seu planejado e jamais em movimento. (WARBURG, 1929)

Figura 1. Montagem cronológica dos centros na metrópole do Rio de Janeiro. Elaborada pela autora.
EIXO TEMÁTICO 1 A transversalidade dos centros
e os seus atores
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Diversos atores interagiram com os debates so-
bre a formação, configuração e reconfiguração
da ideia de centro, deixando, como espumas,
rastros plurais de suas visões da cidade do Rio de
Janeiro, transpassando as noções de cidade-se-
de, cidade-capital, município e centro na primeira
metade do século XIX.

Conseguiríamos revelar algumas formas de ves-


tígios ou sobrevivências desta cultura singular do
Rio de Janeiro?

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

214
Figura 2. Cronologia dos atores na Cidade do Rio de Janeiro (1750-1850). Elaborada pela autora.
EIXO TEMÁTICO 1 A capital do Reino (1815-1822) de
Franz Joseph Frühbeck (1817-1818)
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
O conturbado arranjo geopolítico europeu de
início do século XIX, seguido das ameaças de
Napoleão Bonaparte e das pressões do rei Grã
Bretanha, George III, obrigaram ao príncipe re-
gente João VI abandonar Portugal e trasladar-se
à capital do Vice-Reino do Brasil (1808). Como se
sabe, uma das primeiras medidas adotadas no Rio
de Janeiro foi a Abertura dos Portos às Nações
Amigas, garantindo o restabelecimento do livre
comercio e da navegação com o Brasil, através
de tributações alfandegárias e da promoção da
exportação agrícola local.

Segundo Pereira (2010), a Cidade do Rio de Janeiro


era vista em uma nova ordem liberal a partir de
sucessivas mudanças sociopolíticas. O Rio de
Janeiro já era conhecido como um local econo-
micamente estratégico tanto para a exportação
e redistribuição de importações, quanto no plano
político-administrativo desde a transferência da
sede da capital do Vice-Reino (1763).

Pereira (2010) ressalta, que no fim do século XVIII


e início do XIX, as reflexões sobre as noções entre
cidade-capital e capitalidade se multiplicariam,
questionando o lugar ocupado pela cidade na ge-
ometria do mapa do país e a sua comunicabilidade
e conexão em relação à totalidade do território.
A partir de uma perspectiva vitalista e biológica,
os debates acabavam por fazer convergir o foco
das ciências exatas com o das ciências naturais
discutindo sobre um “ponto” ideal, o lugar da ca-
pital do país.

Assim, no início do século XIX, vemos afir-


mar-se uma nova posição administrativa
do território colonial, tendo o Rio de Ja-
neiro como o mais importante ponto de
articulação de vastas áreas do país. Mas
no plano interno, geometricamente, a po-
sição da cidade é “excêntrica”, isto é, ela
não coincide com a centralidade física do
território nacional. Ademais, os analistas
econômicos ponderam que sua vitalidade
econômica é excessiva. A cidade concentra
mais do que distribui e, seja por sua posição
16º SHCU ou pela ausência de vias de comunicação,
30 anos . Atualização Crítica
essa articulação é imperfeita e refreia o
216 próprio fluxo de trocas desse liberalismo
nascente. Para uma segunda geração de Para Costa (1813) a localização da capital no cen-
observadores, a instalação da família real tro do pais contribuiria para o desenvolvimento
no pais até teria podido “corrigir” essas regional para a segurança contra ataques exter-
tendências, mas ao se instalar a corte no nos, como também permitiria criar uma rede de
Rio, ao contrário, ela acabara ratificando o navegação fluvial, articulando a capital aos por-
papel economicamente forte ao lhe atribuir tos. Para ele o Rio de Janeiro não tinha nenhuma
também uma posição politicamente privi- dessa qualidades para ser a capital do sonhado
legiada. (PEREIRA, 2010, p. 131) império luso-espanhol (p. 375). Aos argumentos
sobre a deficiência populacional do interior, ele
Neste sentido, Pereira (2010) ressalta que as re- ressaltava que esta poderia ser sanada com facili-
flexões sobre os contrastes das formas arcaicas, dade, desde que “se lhes assegurasse a liberdade
tanto construída, quanto social, do que “deveria de suas pessoas e o gozo imperturbável de suas
ser” um império e as ideias de representação da propriedades”, questionando “o espirito das intole-
capital, circulavam impregnando os debates entre râncias” que dificultariam as diferenças religiosa,
intelectuais e políticos sobre a melhoria das ca- as perseguições e tiranias do sistema. (p. 376)
pitanias. Ela apresenta, por exemplo, os escritos
do Antônio Rodrigues Veloso de Oliveira envia- Apesar dessas críticas, Pereira (2010) lembra que
dos para D. João VI, em 1810, no qual analisava não só o território brasileiro passaria a ser con-
comparativamente a cidade do Rio com Paris e siderado como um corpo – social, político- eco-
Londres, criticando à capital pelo adensamento nômico- inserido numa “rede” de conexões que
e pela posição geográfica que deixava às outras ultrapassam fronteiras, como o Rio de Janeiro
cidade como “simples satélites da capital”, sendo resistiria como um “centro”, se articulando a ou-
que esta deveria desenvolver apenas atividades tras centralidades do mundo.
administrativas. (p. 132)
Assim, em 1815, o príncipe regente João VI eleva o
Em Londres, o brasileiro Hipólito José da Costa, Brasil ao status de reino e o Rio de Janeiro passa
exilado por defender ideias liberais e de autonomia a ocupar a posição de sede do Reino Unido de Por-
política, escreve no Correio Braziliense (1813), uma tugal, Brasil e Algarve. Por outro lado, aceitando
crítica sobre a posição conservadora do corte acordos estratégicos de centralização estabe-
portuguesa ao instalar-se apenas por comodidade lecidos no Congresso de Viena4 para aproximar
no Rio de Janeiro, manifestando a “má escolha da os sistemas da aliança absolutista dos impérios
Sede do Governo” e a “falta de população” em todo recém formados da Áustria (1804-1867) e, agora, de
resto do Brasil, retardando o “progresso da civili- Portugal, Brasil e Algarve (1815-1822) , é negociado
zação, da agricultura e comercio interno.” (p.374). o casamento da arquiduquesa Maria Leopoldina
e do príncipe Pedro I.
Ele clamaria por seguir-se o exemplo de Washin-
gton, que o marcaria a pensar na localização da Segundo a museóloga Maria de Lourdes Parreiras
nova capital, louvando a facilidade de criar novas Horta (2017, p. 14), a princesa reconhecia o seu
cidades, onde não havia nada só território. papel de “peão” no grande tabuleiro de xadrez
político, jogado consciente e estrategicamente
Quanto às dificuldades da criação de uma pelo seu pai o imperador Francisco I da Áustria
nova capital estamos convencidos, que to- e o “maquiavélico” diplomata Metternich. Para
das elas não são mais do que meros subter- Leopoldina o casamento representaria não só
fúgios. A facilidade com que nos Estados obediência a sua família, mas também um desafio
Unidos da América Setentrional se edificam intelectual ao aproximar-se da cultura lusitana,
novas cidades; o plano que os americanos instalada no Rio. O casamento foi por procuração,
executaram de fundar a sua nova capital, realizado no mês de maio em Viena, para partir
Washington, aonde não havia uma só casa,
mas no centro de seu território, é um ar- 4. Conferência de embaixadores realizada na capital austría-
gumento tirado da experiência de nossos ca, entre 1814 e 1815, pretendia garantir a reconfiguração do
tempos que nada pode contradizer. (COSTA, continente europeu a partir de acordos entre Áustria, Rússia,
1813, p. 375) Prússia, Reino Unido, França, Portugal, Espanha e Suécia.
EIXO TEMÁTICO 1 de viagem um mês depois e chegando o dia 4 de
novembro no Rio de Janeiro.
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
A organização da viagem da arquiduquesa previu uma
importante comissão cientifica, artística e de tra-
balhadores para inventariar as riquezas da posse do
novo território. Segundo a historiadora Maria Isabel
Lenzi a comissão da Áustria estaria composta por:

Johann Christian Mikan, botânico e etnólogo


de Praga, era o chefe da comitiva austríaca,
composta pelo médico, botânico e mine-
ralogista João Emmanuel Pohl, o zoólogo
João Natterer, o pintor paisagista Thomas
Ender, o pintor de plantas e flores João Bu-
chberger, o jardineiro Henrique Guilherme
Schott e o caçador Domingos Sochor. Vie-
ram também os naturalista bávaros João
Batista von Spix e Filipe von Martius, além
do cientista toscano Giuseppe Raddi. Eles
viajaram na embarcação da marinha do
Império Austríaco: Áustria e no Augusta.

No veleiro português D. Joao VI, além da


Leopoldina vieram o médico Dr. João Kam-
merlacher, o professor de pintura e pintor
de flores e plantas Frick, o bibliotecário e
naturalista Roque Schüch, e finalmente, o
ajudante do bibliotecário, Franz Frühbeck.
Também viajaram as damas de companhia,
o mordomo-mor, o capelão e quatro pajens
da princesa. Segundo Alberto Rangel, o pin-
tor francês Armand Julien Palliére embar-
cou nesse navio. (LENZI, 2017, p. 20)

Franz Joseph Frühbeck (1795-1830?) à época era


um jovem comerciante de 22 anos que decidiu
aventurar-se na experiência de conhecer o Novo
Mundo, conseguindo um lugar na comitiva prin-
cipal graças à Condessa Nanny von Künsburg,
responsável por sua inserção como assistente
do bibliotecário. Horta ressalta uma anotação a
lápis ao pé de uma prancha a guache desenhada
pelo jovem Frühbeck: “a nau D. João VI, na qual
viajamos, eu e minha tia-avó a Condessa Von
Künsburg”. (FRÜHBECK, 1817 apud HORTA, 2017, p.15)

Sem ter experiência nem formação de bibliotecá-


rio e sem haver frequentado as academias de be-
las artes, o “caixeiro-viajante” declarava-se como
16º SHCU conhecedor de idiomas e da literatura, com avido
30 anos . Atualização Crítica
desejo de aproveitar a oportunidade de tomar par-
218 te na viagem ao Brasil. (FRÜHBECK, [1817] 2017, p. 26)
No entanto, durante 7 meses de estadia no Rio Entre os acervos da Brasiliana Iconográfica, do
de Janeiro, Frühbeck supervisionou a instalação Instituto Moreira Salles e Wikimedia Commons,
dos livros em locais apropriados (p.46) e regis- conseguimos observar 38 iconografias – de-
trou as únicas imagens da viagem da primeira senhos, aquarelas e pinturas - produzida por
imperatriz do Brasil em “ingênuos” desenho e Frühbeck, sendo aproximadamente 17 imagens
guaches (LENZI, 2017, p. 20). O seu traço ilustra- relacionadas ao Rio de Janeiro. Ressaltamos que
tivo e com um bom senso de humor vai fixar apesar das imagens serem desenhos amadores,
uma verdadeira crônica desta histórica viagem com perspectivas distorcidas, com cores fortes
(HORTA, 2017, p. 15), embora o historiador Paulo e planas, e muitas dela serem feitas ou copiadas
Knauss, chame a atenção para o fato de que depois da viagem (FRUHBECK, 2017, p. 22 e 47) a
Frühbeck não valoriza em sua narrativa o casa- variedade de detalhes e os diferente pontos de
mento da princesa como o centro de sua descri- observação nos permitem entrar nos principais
ção, focando mais o ambiente social cotidiano. espaços urbanos da época.

Figura 3. Montagem dos registros de Frühbeck (1817-1818) sobre as Cartas topográficas da capitania do Rio de Janeiro de
Manoel Vieira Leão (1767) e o Plano da cidade do Rio de Janeiro de José Correia Rangel de Bulhões (1796). Destacamos,
no superior, as imagens da área central e as periféricas, no inferior. Fontes: FRUHBECK, (1830) 2017; IMS, Brasiliana Ico-
nográfica, BN Digital e Wikimedia Commons 2020. Elaborada pela autora.

Destacamos, também, o discurso textual de enfatiza: o Largo do Paço, o Convento de São Ben-
Frühbeck, recentemente traduzido para o por- to, o Cais da Imperatriz e o Campo de Santana e
tuguês, o qual permite complementar os seus nos arredores da cidade são registrados o Palácio
principais percursos na cidade naquela época. e os Mosteiro de São Cristóvão5 e desde a Baía de
O artista utiliza ambos discursos - textual e ico-
nográfico - para ressaltar os principais locais 5. Segundo as notas do tradutor do livro de Frühbeck (2017),
visitados da cidade. Por exemplo, na área central o desenho do Mosteiro de São Cristóvão corresponde ao
EIXO TEMÁTICO 1 Guanabara as fortalezas de Santa Cruz, São João
e o Pão de Açúcar. Portanto, esse destaque nos
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO levaria a atribuir esses locais como o centro da
vida urbana da capital do Reino Unido de Portugal,
Brasil e Algarve.

Curiosamente, ao cumprir o seu sonho de co-


nhecer o Novo Mundo, o viajante, enlevado no
seu pensamento observando as ondas coalhadas
de “espumas”, é atingido violentamente por uma
delas, molhando-se completamente e levando a
imagem do movimento do mar como sua despe-
dida do Rio.

Durante um bom tempo vimos à distância o


Pão de Açúcar e a saída do porto e, perdido
em meus pensamento, deixei-me ficar no
convés do navio, olhando fixamente para
as ondas coalhadas de espumas. Em dado
momento uma onda furiosa arrebentou con-
tra a proa do navio, despertando-me do
meu devaneio ao me deixar completamente
molhado. Apressei-me a descer até meu
camarote para vestir uma roupa seca e não
pude deixar de esboçar um desenho, como
uma despedida do Rio de Janeiro. (p.47)

Johann Moritz Rugendas (1822-1825)


e a capital do Império (1822)

Após a expedição austríaca, o médico prussiano


Georg Heinrich von Langsdorff, entusiasmado
pelo sucessos de suas expedições anteriores6 e
do ambiente de abertura cultural e científica do
Brasil, pensou também em organizar uma outra
expedição ao Brasil. Langsdorff havia se naturali-
zado russo e desde 1813 vivia no Rio de Janeiro, no-

Lazareto que abrigava as vítimas de hanseníase (p. 54). No


entanto, ao observar o desenho do Convent St Cristoph,
(IMS, 2020) percebemos que as janelas da edificação tem
maior semelhança à existente Igreja Matriz de São Cristóvão,
apesar da descaracterização da edificação colonial pelas
diversas intervenções arquitetônicas.

6. Langsdorff, além de admirar as expedições de Alexandre


Rodrigues Ferreira (1783-1792) e Alexandre von Humboldt
(1799-1804), teve a experiência da circunavegação russa,
16º SHCU
capitaneada por Von Kusenstern e Von Resanoff (1803-
30 anos . Atualização Crítica
1807) para explorar o Pacifico, Japão e Sibéria. (FREITAG,
220 2013, p. 67)
meado pelo czar representante oficial de negócios Freitag (2013) assinala que Langsdorff, enquanto
e, posteriormente, como cônsul-geral da Rússia. “súdito” do czar da Rússia, abriu mão da liberdade
que Humboldt se vangloriaria de ter preservado
Em 1816, Langsdorff compraria a Fazenda Man- em sua expedição realizada entre 1799-1804 em
dioca7, no fundo da baía de Guanabara no terri- grande parte América Latina (Venezuela, Equador,
tório do município de Magé. A socióloga Barbara Colômbia, Peru) indo até o sul dos Estados Unidos.
Freitag (2013) ressalta que esse local passou a ser Ao aceitar funções de representação diplomá-
um ponto de encontro dos habitantes da cidade e tica e social, ele não conseguia movimentar-se
de viajantes estrangeiros que chegavam ao Brasil livremente para atender às expectativas de seus
interessados pela fauna e flora local ou em seus futuros companheiros de viagem, que reclama-
recurso minerais. riam, frequentemente, dos atrasos das datas de
partida da Expedição. (p. 55)
O local passou a ter duas funções importan-
tes: ser uma espécie de “salão” para trocar Freitag argumenta, contudo, que a pressão “auto-
ideias literárias, cientificas e artísticas, de ritário-burocrática” na qual o chefe da expedição
um lado; e de outro ser uma fazenda expe- estava envolvido levaria a ter criado inúmeros
rimental para levas de colonos alemães, conflitos.
força de trabalho livre, capaz de substituir a
mão de obra escrava. (FREITAG, 2013, p. 55) Apesar de lhe terem sido garantidas as
liberdades de decisão do roteiro, das da-
Além disso, Freitag assinala que esse lugar no tas de viagem, dos objetivo das mesmas.
norte da província seria um centro internacional Langsdorff sentia-se na obrigação quase
amplamente reconhecido pela aristocracia: burocrática de enviar cartas, relatórios,
solicitar verbas, negociar salários com seus
Esse local transformou-se rapidamente colaboradores, entre outras medidas. O es-
em um centro de pesquisas conhecido dos tado russo queria ver serviço e rendimento,
europeus que visitavam o Brasil, graças algo que Langsdorff passava a cobrar dos
à sua excelente biblioteca, seu herbário seus subordinados e de si proprio, fonte
e suas coleções mineralógicas e zoológi- de muitos dos conflitos que aconteceriam
cas, sendo até mesmo visitado pelo jovem no decorrer da viagem em todos os seus
d. Pedro I e sua esposa, d. Leopoldina de roteiros. (FREITAG, 2013, p. 55).
Habsburgo. (p. 83)
Foi nesse contexto que um hábil desenhista, jovem
À partir da confiança e do financiamento direto de 19 anos, Johann Moritz Rugendas (1802-1858),
do czar da russo, Alexandre I, Langsdorff reuniu passará a integrar a expedição russo-prussiana
um grupo de cerca de 39 pessoas em uma comi- ao Brasil. Rugendas era descendente de uma re-
tiva que percorreu quase 5000 quilômetros do conhecida família de artistas de Augsburg, havia
interior - do Rio de Janeiro até Manaus, passan- se formado junto ao pintor de batalhas Albrecht
do por Minas Gerais e Mato Grosso. A principal Adam (1786-1862) e na Academia de Belas Artes
diferença desta expedição era que não servia de Munique foi convidado para integrar o grupo
apenas ao “progresso das ciências naturais”, mas que Langsdorff reunia em Munique, graças a Spix
também a múltiplas atividades que Langsdor- e Martius que, como vimos, haviam integrado a
ff queria implementar. Para os historiadores de expedição austríaca de 1816 e realizado mais de
arte Pablo Diener e Maria de Fátima Costa (2012), três anos de investigações no Brasil. (DIENER,
“múltiplos afazeres” marcariam desde o início os COSTA, 2012, p.14-15)
ambiciosos projetos do chefe da expedição, que
Segundo Diener e Costa (2012), Rugendas impres-
além de exercer atividades políticas, diplomáti-
sionou o cientista pela sua perícia como dese-
cas, agrícolas e empresariais, se voltava para o
nhista. Contudo, a preocupação do seu pai com
campo das ciências naturais, enfrentando, assim,
o envolvimento do filho nesse arriscado projeto,
problemas diversos. (p. 13)
levaria à redação de um contrato de trabalho ga-
rantindo seu retorno, remuneração para o artista
7. Vendida em 1826 (FREITAG, 2013, p. 55) e, em especial, um trato pessoal respeitoso. Em
EIXO TEMÁTICO 1 contrapartida, Rugendas deveria ter um com-
portamento moral, um exercício serviçal da sua
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO arte, assim como a entrega de todos os esboços,
desenhos e pinturas que realizasse, podendo,
efetuar cópias, com a condição de não dá-las a
conhecer antes da publicação oficial da descrição
da viagem (DIENER; COSTA, 1995, p. 56-61).

Com apoio do governo e da Academia da Ciencias


de São Petersburgo na organização da grande
expedição dos “reinos mineral, vegetal e animal”
Langsdorff deveria também “ detectar potenciais
para o comércio e assentamento de europeus no
interior brasileiro” (FREITAG, 2013, p. 83). Em 1821,
Langsdorff publicaria, por exemplo, um manual8
para colonos alemães interessados em migrar
para as províncias brasileiras.

Oferecendo o generoso financiamento do governo


russo, Langsdorff extenderia, assim, um convite
a cientistas e artistas de alto nivel e de variadas
nacionalidade para integrar a expedição. Entre
os integrantes figuravam Christian Hasse, Moritz
Rugendas, Ludwig Riedel, Nester Rubstov, entre
outros, aos quais se associaram já aqui no Bra-
sil, os jovens desenhistas Aimé-Adrian Taunay e
Hercules Florence (FREITAG, 2013, p. 83).

Rugendas parte o 5 de janeiro de 1822, das imedia-


ções de Gessendorf, na atual Alemanha, chegando
no dia 3 de março, diretamente na Fazenda da
Mandioca, propriedade de Langsdorff (DIENER,
COSTA, 2012, p. 15). Nessa aventura começaria uma
forte amizade com o zoólogo francês Edouard
P. Ménétriès, embarcando em uma viagem in-
telectual em torno de leituras e debates sobre a
geografia e cultura americana.

Durante esse período, a sede da Corte estava em


um momento mais tensos da agitação política, que
levaria à ruptura do sistema governamental. Em ja-
neiro de 1822, “representando” o povo da Cidade do
Rio de Janeiro, o presidente do Senado da Câmara,
José Clemente Pereira, havia exigido do regente
D. Pedro a liberdade do Brasil, temendo perder “o
centro da sua unidade política” e desconfiando da
reedificação do império português para impor no-
vamente a dependência à “Mãe Pátria” (Portugal).

16º SHCU
8. Bemerkungen über Brasilien: mit gewissenhafter Be-
30 anos . Atualização Crítica
lehrung für auswanderne Deutsche, 1821. (FREITAG,
222 2013, p. 55)
O político ressaltava que um novo levante pro- um rei ou do imperador da Rússia; mesmo assim
vinciano - Pernambucano, Mineiro, Paulista, do lhe digo: o senhor é um cachorro! (LANGSDORFF,
Rio Grande do Sul ou de todas províncias - se não pasta I, p. 233 apud DIENER, 2012, p.13).
existir “um centro próximo de união política”, ex-
clamando o perigo da pátria e sugerindo: Entretanto, de março de 1822 e maio de 1824,
Rugendas já havia iniciado um registro frenético
Dê-se ao Brasil um centro próximo de união, de paisagens e dos hábitos sociais e a cidade
e atividade; desse-lhe uma parte do Corpo construída do Rio de Janeiro, a partir de peque-
Legislativo, e um ramo do Poder Executivo, nas expedições dentro da província, procurando
com poderes competentes, amplos, fortes, motivos pitorescos e confrontando experiências
e liberais, tão bem ordenados, que forman- com seu colegas, em especial com Jean Baptiste
do um só Corpo legislativo, e um só Poder Debret e a família Taunay. Diener e Costa relatam
Executivo, só umas Cortes, e só um Rei, a paixão do artista e o envolvimento direto na vida
possa Portugal, e o Brasil fazer sempre uma cotidiana da recente capital do Império do Brasil.
família irmã, um só Povo, uma só Nação, e
um só Império. E não oferecem os Governos Sem dúvida, o Rio de Janeiro encanta-o.
liberais da Europa exemplos semelhantes? A bela topografia que se oferece como
(BRASIL, 1822, p.4) paisagem entrecortada de montanhas e
mar, passa a ser motivo que o artista vai
A declaração da independência do Brasil e o de- traçando em diferentes perspectivas. Ru-
corrente processo de mudança político-adminis- gendas chegou à capital brasileira num dos
trativa, trariam problemas econômicos a Langs- momentos cruciais da vida política: pode
dorff, retardando o empreendimento cientifico. ser testemunha das transformações que a
Segundo Diener e Costa (2012), Ménétriès como cidade vivia, (...) foi um dos pedestres que
Rugendas estavam insatisfeitos e pressionavam a observaram o cortejo e a coroação de d.
seu chefe para melhorar as relações de trabalho, Pedro como primeiro imperador do Brasil.
e o segundo conseguiu modificar as condições Além disso, deixou-se fascinar pela mistu-
contratuais. Em uma das correspondências ao ra de cores e tipos que animavam as ruas
pai, ele afirmaria que os novos termos do contrato, cariocas, registrando, algumas vezes de
permitiam-lhe, a partir de 1824, colaborações mais forma romântica, as agruras de um porto
livres e enviar desenhos para Prússia, bem como negreiro. (DIENER, COSTA, 2012, p. 17)
fazer com os próprios recursos o replanejamento
do seu custo de vida (p.16-17). Neste estudo observamos mais de 140 imagens –
desenhos, aquarelas, gravuras e óleos – criadas
A experiência do pintor na expedição brasileira por Rugendas sobre o Rio de Janeiro e percebe-
esteve focada principalmente na região do Rio de mos que os deslocamentos do artista pela cida-
Janeiro e um trecho inicial no interior da província de e seus arredores é muito maior do que os de
de Minas Gerais. O grupo saiu do Rio no sentido Frühbeck. Na procura das diversas possibilidade
norte, em direção a Barbacena e a São João del de habitar que oferece o Rio, Rugendas amplia o
Rei, continuaram até Ouro Preto e, passaram por seu olhar para os arredores da cidade, misturan-
Sabará, alcançando o distrito de Diamantina. Foi do paisagens, costumes e atividades nos seus
na Barra de Jequitibá, no dia 1º de novembro de retratos do Rio de Janeiro. Só um terço das ima-
1824, que Rugendas desvincular-se-ia da expedi- gens que deixou são registros do que passamos a
ção a partir de discussão com o chefe da expe- chamar “centro da cidade”. Os outros dois terços
dição sobre pagamento e entregas de materiais registram o que passamos a chamar “subúrbios”
do amigo Ménétriès (DIENER, COSTA, 2012, p. 17). e o interior da província, de modo mais geral.

Rugendas interveio em favor do colega ao ser Ao retratar o Porto da Estrela, Rugendas reconhe-
reprendido por Langsdorff, reclamando da atitude ceria aí um local social, ainda que secundário, pe-
do naturalista, nada “experimental”, e dirigindo-se las múltiplas e heterogêneas condições de vidas.
a ele violentamente: “Onde o senhor está, não
existe convivência civilizada. Para mim pouco “É o lugar de reunião para os homens de to-
importa se o senhor é cavaleiro de uma Ordem de das as províncias do interior; aí se encontra
EIXO TEMÁTICO 1 gente de todas as condições sociais e po-
dem-se observar suas vestimentas originais
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO e sua atividade barulhenta. Aí se organizam
as caravanas que partem para o interior e
somente aí o europeu depara-se com os ver-
dadeiros costumes do Brasil (RUGENDAS,
1835, apud DIENER, COSTA, 2012, p.402)

Figura 4. Montagem dos registros de Rugendas (1822-


1825) sobre as Cartas topográficas da capitania do Rio
de Janeiro do Manoel Vieira Leão (1767) e o Plan de la ville
de S. Sebastião de Rio de Janeiro (1820). Destacamos as
litografias (1835) da área central, no superior, e, no inferior,
os locais periféricos e do interior da província. Fontes:
RUGENDAS, 1835; DIENER, COSTA, 2012; BN Digital, 2020.
Elaborada pela autora.

O Município Neutro (1834) para Eduard


Hildebrandt (1844)

Com a Independência, a reconfiguração de um sis-


tema político e social torna-se o principal debate
16º SHCU público da época, destacando-se o ministro do
30 anos . Atualização Crítica
Reino e dos Negócios Estrangeiro, José Bonifá-
224 cio. Conselheiro de d. Pedro I e um dos principais
pensadores do período, Bonifácio, ao lado de seu quanto possível, equidistante dos limites
irmão Martim Francisco, inspirará os esboços da do Império, tanto em latitude como em lon-
primeira Assembleia Constituinte do Brasil (1823) , gitude, vai-se abrir deste modo por meio
suspensa pela brigas partidárias que levariam das estradas que devem sair deste centro
ao exilio os irmãos Andradas, sendo outorgada como raios, para as diversas províncias e
pelo próprio imperador uma Constituição (1824), suas cidades interiores e marítimas, um co-
paradoxalmente liberal em muitos aspectos. municação e de certo criará em breve giro
de comércio interno da maior magnitude,
Bonifácio, quando volta ao Brasil em 1819, não vistos a extensão do Império seus diversos
só possuía vasta experiência em administração climas e produções. (SILVA, 1823, p.118)
portuguesa, como gozava da confiança e impor-
tantes homens públicos da Corte, além de ser A Constituição de 1824 não deu respostas às de-
mineralogista e filósofo naturalista - formado na mandas de autonomia das províncias, previa-
Bergakademie em Freiberg na Saxônia. Foi um co- mente discutidas, levando a tensões e conflitos
nhecedor empírico de diferentes territórios e um sócio-político nas regiões. Essa situação teria
viajante por terras europeias, segundo o urbanista contribuído na decisão do Imperador de abdicar,
Mário Magalhães (2018), observando culturas e as em 1831, em favor de seu filho de 5 anos, embar-
agitações políticas que varreram a Europa entre cando para Portugal.
1790 e 1800, quando se estabelece em Lisboa,
transita por Paris, Freiberg, Pádua, Estocolmo, O Ato Adicional de 1834 modificaria de forma,
Copenhague, Berlim, entre outras cidades (p.177). mais uma vez paradoxal, a Constituição: por um
lado, descentralizaria os poderes legislativos de
O pensamento livre que Bonifácio defendia uma um governo administrativo central, passando
lógica que se pautava nas noções de centro-pe- parte deles às províncias, por outro lado, conte-
riferia, herança do iluminismo português, isto ria o poder das Câmaras de cidades e vilas que
é voltava-se para um processo “redistributivo haviam ganho, entre 1824 e 1834, maior poder e
com uma centralidade, mas não concentração” autonomia. Pereira (2014) ressalta:
(MAGALHÃES, 2018, p. 231) . Também possuía um
espirito renovador e imaginava o redesenho de O que favorecerá o uso precoce do vocábulo
um império reconhecendo a independência e a município na língua portuguesa falada no
especificidade de diferentes combinações hie- Brasil foi sua capacidade de evocar não
rárquicas dos poderes – legislativo, executivo, apenas o conceito de autonomia (e talvez
judiciário e moderador, - e dos territórios a partir de um direito natural) mas também o de
da hierarquia de diversos núcleos de povoações unidade, isto é, a noção de um território e
– vilas, cidade e outros tipos de assentamentos de um corpo social cuja forma de governo
populacionais - a serem criados. (BRASIL, 1824). manifestava ao mesmo tempo a ideia de
autogoverno e de adesão ou submissão a
Assim, Bonifácio propõe, como se sabe, a constru- uma ordem comum. (PEREIRA, 2014, p. 442)
ção de uma “nova capital” no interior do pais, cha-
mada “Brasília ou Petrópolis”, mas também uma sé- Como expõe a autora o Ato Adicional foi um gol-
rie de capitais de província e cidades novas, todas pe contra a autonomia municipal proclamada
ligadas por estradas internas, baseada em razões em 1824 e regulada pelo Regimento das Câmara
políticas e mercantis. Ele escreve sobre a capital: Municipais de 1828: a ideia de descentralização
passaria a ser “gradual e progressiva”, uma vez
Disse que esta cidade era não só útil, mas que a autonomia que se acha implícita em seu
necessária, e vou desenvolver as razões em significado e o próprio uso da palavra munícipio,
que me fundo. Sendo ela central e interior, passavam a ser empregados apenas no caso de
fica o assento do governo e da legislatura um território específico do país que passou a
livre de qualquer assalto ou surpresa feito chamar-se Município Neutro. Note-se que o ad-
por inimigos externos. Chama-se para as jetivo “municipais” passa a ser empregado para
províncias do sertão o excesso da povoa- fazer distinção da Câmaras ou Assembleias pro-
ção sem emprego das cidades marítimas vinciais mas não o substantivo “ município”. Isto
e mercantis. Como esta cidade deve ficar, é, o termo é empregado para designar uma área
EIXO TEMÁTICO 1 específica que seria considerada sede da Corte e
centralizaria as decisões político-administrativas.
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO É nesse contexto que a cidade do Rio de Janeiro
e seus arredores torna-se capital do Império do
Brasil, separando-se territorialmente, inclusive,
da Província do Rio de Janeiro, que subordinada
ao Ministério do Império entre 1824 e 1834, ganha,
assim, poderes específicos.

Como consequência deste rearranjo político,


administrativo e territorial, em 1835, a pequena
Vila Real da Praia Grande, recém criada durante
a estadia de d. João VI, torna-se a sua capital,
passando a se chamar Niterói.

A primeira fala do presidente Joaquim José


Rodrigues Torres, Visconde de Itaboraí, (1835) à
Assembleia da Província, tratava dos primeiros
trabalhos que a administração teria que fazer
sobre os negócios públicos, as providências e
os melhoramentos no território, ressaltando
“a falta quase absoluta de documentos”, a ser
complementada pelo conhecimento prático dos
administradores.

Os primeiros passos para organizar a instalação do


governo, significava enfrentar inúmeros desafios,
mostrando “dificuldade de encontrar indivíduos
habilitados para desempenhar empregos nas
Câmaras Municipais”, como também as precá-
rias condições físicas das mesmas, ou da saúde
pública e da instrução pública, entre outras, que
desde 1828 ficaram a cargo do poder local. No
entanto, o discurso se deteria nas “estradas, ponte
e canais”, ressaltando a urgência de se melhorar
os meios de comunicações graças ao “espirito
de associação para empresas” interessadas em
assuntos agrícolas e industrias (RIO DE JANEIRO,
1835, p. 6-34) .

A estreita ligação da província com o Município


Neutro passou a se revelar, primeiramente quanto
ao seu orçamento, considerado “inexato” ou im-
preciso em relação ao que, seria arrecadado nos
impostos de consumo.

Verdade é, que não me parece mesmo possí-


vel poder bem extremar o que do produto ali
cobrado é da província, e o que é do Município
Neutro; mas atendendo-se ao mui limitado
16º SHCU número de fábricas de açúcar, que no Termo
30 anos . Atualização Crítica
da Corte existe, e quanto deve ser mais con-
226 siderável no da Província do que no Município
o número de compras de escravos ladinos, Ferrez (c.1989) considera o pintor inglês Joseph
conhecer-se-á que a quase totalidade do William Turner como “visível inspirador” de Hil-
produto, do primeiro imposto e de grande debrandt pela sua extraordinária virtuosidade
parte do segundo deve pertencer à Receita manual de resolver os intrincados problemas com
Provincial. (RIO DE JANEIRO, 1835, p. 32) admirável ligeireza de toque de luz. O artista con-
seguiria captar a maravilhosa atmosfera e o movi-
A divisão do sistema de governança territorial, mento banhado com intensa luz tropical, através
o enfraquecimento do poder central no período de diversas aquarelas, desenhos e esboços com
regencial, e a continuidade da crise social e eco- notável rigor nos detalhes, boas perspectivas e
nômica, levaria a Assembleia Geral a antecipar a ângulos originais.
maioridade do d. Pedro II (1841), garantindo uma
estabilização social focada no jovem imperador. Hildebrandt esteve no Rio de Janeiro desde finais
de março até julho de 1844 na Fazenda Quitite,
Em 1843, o Diretor de Obras Públicas do Município em Jacarepaguá. Até o momento conseguimos
Neutro, Henrique de Beaurepaire-Rohan, falando observar mais de 40 imagens produzidas nessa
sobre o relatório de atividades dirigido à Câmara, curta estadia, ressaltamos as coloridas e dra-
lamentava o seu abandono estatístico e a falta de máticas imagens retratadas da área central, que
conhecimento “corográficos”, solicitando assim por um lado, mostram a intensidade vivida pelos
um levantamento territorial para o serviço público. habitantes e, por outro, a condição de uma cidade
Com Beaurepaire-Rohan utiliza-se pela primeira que passava por uma forte crise social, econô-
vez o termo centro num documento urbanístico, mica e política.
para denominar ao setor consolidado da Cidade
do Rio de Janeiro. Ferrez descreve as pinturas:

Para ele, as vias públicas de comunicação e as Mas, o que dizer das duas extraordinárias
praças seriam os principais desafios da adminis- Platz in Rio de Janeiro e A Carioca - Rio de
tração, e foram previstas obras de nivelamento e Janeiro, com os chafarizes, respectivamen-
aterro da extensa praça da Aclamação, ou Campo te da Carioca e da Santa Rita, e o Mercado da
de Santana, e também, melhoria das estradas, que rua d’Ouvidor, de um realismo incrível, onde
atravessavam a freguesia de Guaratiba, “princi- sentimos palpitar a vida, o barulho, a desor-
palmente as que se comunicam do centro com as dem, a sujeira, onde quase que podemos
povoações de Guaratiba e Praia da Pedra.” (BEUA- sentir o mau cheiro; entretanto, o conjunto
REPAIRE-ROHAN, 1843, p. 26). é de uma extraordinária beleza romântica
pelas cenas movimentadas, pelo alegre
Em 1844, um outro artista-viajante, Eduard Hilde- colorido e, em especial, pela luz intensa
brandt (1818-1869) 9 chega ao Rio de Janeiro desta que bate de chofre sobre os monumentos,
vez incentivado pelo rei da Prússia, Frederico Gui- onde aparecem os mínimos detalhes que
lherme IV, e por Alexander Von Humboldt, proteto- as sombras realçam sobremodo. (FERREZ,
res das artes em Berlim. O artista foi discípulo do c.1989, p. 16)
Eugene Isabey e sua arte se destacava, segundo o
historiador Gilberto Ferrez (c.1989), pela introdução
de cores vibrantes nas aquarelas, capturando, por
uma lado, a “magia dos crepúsculos tropicais” e,
por outro, a decadência urbana a partir de pers-
pectiva difusas e contornos diluídos, devido aos
efeitos de luzes.

9. Hildebrandt viajou, entre 1844 e 1863, por Brasil, Estados


Unidos, Escócia, Ilhas Canarias, Espanha, Portugal, Ilha da
Madeira, Itália, Egito, Grécia, Escandinávia, Alexandria,
Suez, Índia, China, Japão, Antilhas, Inglaterra, entre outros.
(FERREZ, 1989)
EIXO TEMÁTICO 1
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO

Figura 5. Montagem dos registros de Hildebrandt (1844)


sobre as Plantas do Rio de Janeiro de 1828 e 1831 e a Carta
geográfica de uma parte da província do Rio de Janeiro
de Manoel Vieira Leão (c.1840). Fontes: FERREZ, 1989,
SMB-Digital e BN Digital, 2020. Elaborada pela autora.

O interessante da obra de Hildebrandt é que não


só foca no centro da capital imperial, mas também
em outras áreas, como fizera Rugendas, como
por exemplo, o entorno da Fazenda de Quitite,
Jacarepeguá, e na recém estabelecida capital da
provincia do Rio de Janeiro, Niterói, apresentando
as condições naturais e da vida na cidade.

Considerações fInAis

Para finalizar, pode-se dizer que utilização de


ferramentas metafóricas, como a imagem da
16º SHCU espuma de Sloterdijk (2004) e o procedimento de
30 anos . Atualização Crítica
pensar por nuvens de Pereira (2018), para interpre-
228 tar os centros urbanos em um período histórico
delimitado, permitiu não só ampliar o conheci- REFERÊNCIAS
mento, como também aprofundar nas ligações da
complexidade de práticas e saberes da disciplina [livros]
transdisciplinar do urbanismo.
BEAUREPAIRE ROHAN, H. Relatório apre-
Por um lado, pensar por espuma, como modo de sentado à Ilma. Câmara municipal do Rio de
aproximação ao que é multifocal, multiperspecti- Janeiro. Rio de Janeiro: Typ.do Diário do Rio de
vista e heterárquicamente, ajudou na observação Janeiro, 1843.
do território de forma mais abrangente, dinâmica
e singular nos processos de criação da cidade e BRASIL. Termo de Vereação do Dia 9 de Janei-
do urbano ao dar atenção as forças, movimen- ro de 1822. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
tos e tensões entre a multiplicidades de nós de 1822.
interações, funções e usos que se adensam em
______. Constituição Política do Império do
áreas que chamam-se “centros”.
Brasil. Rio de Janeiro: Secretaria de Estado
dos Negócios do Império -SENI, 1824.
Por outro lado, pensar por nuvens permitiu, em
um primeiro momento, sistematizar cronologica- ______. Lei Nº16 (Ato Adicional) de 1834. Rio
mente as informações dos diferentes discursos de Janeiro: 1834.
textuais e iconográficos para logo, criar ligações
livres, associando a ideia de transversalidade a DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobre-
um pensar complexo entre as diversas épocas, vivente: a história da arte e tempo dos fan-
mas com um ponto em comum. tasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2013 (2002).
Enfim, as experiências e reflexões de Warburg
(1891-1929) sobre as sobrevivências, entendida DIENER, Pablo; COSTA, Maria de Fátima. Ru-
como o que vem do passado e nos movimenta, gendas e o Brasil. Rio de Janeiro: Capivara,
permitiu construir, descontruir e reconstruir a 2012
ideia de centro, associadas a fragmentos que per-
mitiriam restituir algo da antiguidade que ressurge FRÜHBECK, Franz Joseph. Viagem ao Brasil:
e desorienta o presente abrindo possibilidades Esboço da minha viagem ao Brasil na América
do Sul, no ano 1817, no navio da linha real por-
para futuros.
tuguês João VI. Rio de Janeiro: Câmera Books
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FERREZ. O Brasil de Eduard Hildebrandt. Rio


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José Bonifácio: arqueologia de um saber sem
nome (1819-1823) (Tese de Doutorado). Rio de
Janeiro: PROURB/UFRJ, 2018.
EIXO TEMÁTICO 1 RESUMO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
O objetivo deste artigo é apreciar criticamente
as ideias que Bernard Lepetit associou a uma
SESSÃO temática análise hermenêutica da cidade, ao passo que
tento dar relevo também às ideias de Paul Rico-
eur sobre o campo da teoria do texto, que nutri-
APONTAMENTOS TEÓRICOS ram as elucubrações do historiador. Argumen-
tarei que a nossa compreensão sobre o papel da
PARA UMA ANÁLISE herança materical das cidades na vida urbana
está profundamente imbricada com as noções
HERMENÊUTICA DAS CIDADES que temos sobre o espaço-tempo e com o re-
gime de historicidade que adotamos para ana-
lisá-la. Mais precisamente, percebo um vínculo
THEORETICAL NOTES FOR A HERMENEUTICAL entre os atributos temporais que concedemos
ANALYSIS OF CITIES às coisas e o nosso julgamento sobre o que elas
são capazes de fazer ou nos levar a fazer.
APUNTES TEÓRICOS PARA UN ANÁLISES
HERMENÉUTICO DE LAS CIUDADES
hermenêutica temporalidade presente
SALES JR., Dário R. materialidade história
Mestre em Ciências Sociais; Universidade Estadual de
Feira de Santana
drsjunior@uefs.br

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

232
ABSTRACT RESUMEN

This article main aim is to critically appreciate El propósito de este artículo es apreciar crítica-
the ideas that Bernard Lepetit associated with a mente las ideas que Bernard Lepetit asoció con
hermeneutical analysis of the city. I will also try to un análisis hermenéutico de la ciudad, mientras
highlight the ideas of Paul Ricoeur and Reinhart que también trato de resaltar las ideas de Paul
Koselleck on the field of text theory and history Ricoeur y Reinhart Koselleck en el campo de la te-
theory, respectively, which nurtured the histo- oría del texto y la teoría de la historia, respectiva-
rian’s thoughts. I will argue that our understan- mente, que nutrió el pensamiento del historiador.
ding of the role of the cities’ material heritage in Argumentaré que nuestra comprensión del papel
urban life is deeply intertwined with the notions del patrimonio material de las ciudades en la vida
we have about space-time and the “regimé d’his- urbana está profundamente entrelazada con las
toricité” we have adopted to analyze it. More pre- nociones que tenemos sobre el espacio-tiempo y
cisely, I perceive a link between the temporal at- con el régimen de historicidad que hemos adop-
tributes that we give to things and our judgment tado para analizarlo. Más precisamente, percibo
about what they are capable of or cause us to do. un vínculo entre los atributos temporales que da-
mos a las cosas y nuestro juicio sobre lo que son
capaces de hacer o nos hacen hacer.
hermeneutic temporality present
materiality history
hermenéutica temporalidad presente
materialidad historia
EIXO TEMÁTICO 1 INTRODUÇÃO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
No início da década de 90 do século passado, o
historiador Bernard Lepetit colocava para si e
SESSÃO temática para os demais interessados em história urbana,
a seguinte questão: é possível uma hermenêuti-
ca urbana? Dada a vasta produção do campo da
APONTAMENTOS TEÓRICOS história urbana, quase trinta anos depois, é bem
provável que essa questão já tenha encontrado
PARA UMA ANÁLISE algumas respostas. Neste artigo, tensiono cotejar
o pensamento de Lepetit com o do geógrafo Milton
HERMENÊUTICA DAS CIDADES Santos no que diz respeito ao tempo, bem como
dar relevo às ideias do campo da teoria do texto e
da teoria da história que nutriram as elucubrações
THEORETICAL NOTES FOR A HERMENEUTICAL
de Lepetit. A fim de tornar minha reflexão menos
ANALYSIS OF CITIES
abstrata, eventualmente, farei referências à Rua
da Mouraria, localizada no bairro de Nazaré, em
APUNTES TEÓRICOS PARA UN ANÁLISES
Salvador, Bahia, objeto de meu interesse e pes-
HERMENÉUTICO DE LAS CIUDADES
quisa. Podemos afirmar que a hermenêutica tex-
tual e a da cidade compartilham o interesse pela
recepção de uma obra por seus leitores. Assim,
para o historiador urbano dedicado a uma análise
hermenêutica da cidade, uma questão central é o
modo pelo qual os citadinos se apropriam de sua
herança material.

Ao falar de uma herança material da cidade, estou


me referindo aos elementos da paisagem urbana
que nos foram legados pelas gerações que nos
antecederam, cujo acúmulo faz da paisagem uma
miríade de tempos. Argumentarei que a nossa
compreensão sobre o papel desta herança na
vida urbana está profundamente imbricada com
as noções que temos sobre o espaço-tempo e
com o “regime de historicidade” 1 (cf. Hartog, 2013)
que adotamos para analisá-la. Mais precisamente,
percebo um vínculo entre os atributos temporais
que concedemos às coisas e o nosso julgamento
sobre o que elas são capazes de fazer ou nos
levar a fazer.

Provavelmente, uma das metáforas mais recor-


rentes para se referir às múltiplas temporalidades
da paisagem é a que associa a cidade a um pa-

1. De acordo com Hartog (2013), o regime de historicidade


é um tipo-ideal weberiano e, em linhas gerais, diz respeito
ao modo como articulamos passado, presente e futuro.
16º SHCU
Na perspectiva do historiador, trata-se de uma categoria
30 anos . Atualização Crítica
útil, entre outras coisas, para se questionar a “arquitetura
234 de uma cidade, ontem e hoje” (p. 13).
limpsesto. Sendo assim, quero tematizar, em um idades distintas. Por exemplo: o casario que, se-
primeiro momento, a forma como essa metáfora gundo o IPAC (1975), não possuía “maior expressão
condiciona a nossa concepção sobre o passado. arquitetônica”, em sua maioria data do final do
Tomemos como exemplo inicial a descrição da século XIX e início do século XX; o quartel e o largo
Rua da Mouraria, publicada em 1938 pelo Jornal A à sua frente foram construídos também no início
Tarde, sob o título “Os aspectos feios da cidade”: do último século; e a Igreja de Santo Antônio da
Mouraria existia há pouco mais de duzentos anos.
O calçamento desta via está longe de ser
bom, mas já foi peor. Antigamente, parecia A constatação de que diversos elementos que
uma exposição de espécimes de pavimenta- compõem uma cidade possuem trajetórias tem-
ção. Viam-se ali asphalto, parallelepípedo, porais descompassadas conduziu o historiador
pedra de ponta e... terra batida... Hoje, a Bernard Lepetit a uma reflexão acerca do pre-
variedade não é tão grande assim. O pedaço sente histórico. Interessava a Lepetit compreen-
de asphalto foi arrancado e, como o de terra der “[...] as modalidades de presentificação dos
batida, substituído por parallelepípedos. passados” (2016 [1993], p. 183), especificamente
Mas ainda continua largo trecho de pedra de através das relações entre os grupos citadinos
ponta, desafiando os sapatos dos pedestres e seus territórios. Lepetit, assim como Milton
e os pneumáticos dos automóveis.... [OS Santos, deu-se conta que:
ASPECTOS..., 1938, grifo nosso]
Na escala das grandes intervenções do ur-
A presença dos diversos calçamentos que faziam banismo, mas também na das mil peque-
a Rua da Mouraria parecer uma “exposição de nas mutações repetidas que modificam
espécimes de pavimentação”, a prejudicar “os o tecido urbano, os tempos da cidade são
pneumáticos dos automóveis”, aponta tanto para fortemente demarcados. Nada indica que
os descompassos entre os tempos da infraes- eles se ajustam continuamente à conjuntura
trutura urbana e os das transformações sociais econômica, às variações de população, às
quanto para o caráter cumulativo das diversas mudanças de hábitos dos citadinos [2016
intervenções urbanas. Não são incomuns as in- [1993], p. 175, grifo nosso]
terpretações acerca do espaço que o associam
à estratificação e ao acúmulo decorrentes da Contudo, apesar das aparentes convergências
materialização de tempos heterogêneos. É o caso, entre os pensadores sobre a ação do tempo no
por exemplo, do geógrafo Milton Santos que, ao se espaço urbano, Lepetit (2016 [1993]) rejeitava a
referir ao centro da Cidade do Salvador, afirmava: concepção de que a cidade seria um palimpsesto,
uma vez que subjacente a essa ideia haveria o
A variedade dos traçados, as gerações de pressuposto de que o que encontramos no pre-
construções, esses pedaços do tempo cris- sente são os vestígios ou traços de um passado
talizados na paisagem urbana, significam dado como encerrado. Lepetit denominava de
muito mais que as preferências urbanísticas traços o conjunto dos “[...] fragmentos herda-
ou arquitetônicas de uma ou outra época: dos dissonantes, de que as cidades são feitas
são o mosaico dos séculos, mas repre- [...] (2016 [1995], p. 215). Segundo ele, só haveria
sentam também a sucessão das técnicas, traços quando não houvesse a possibilidade de
toda a evolução da vida urbana, a soma do adequação entre a forma e alguma atividade a
passado e dos modernos modos de ser, ser ali desenvolvida.
cuja incorporação à vida urbana não se faz
sempre segundo o mesmo ritmo. (SANTOS, Lepetit afirmava que mesmo que o construído
2012 [1959], grifos nossos). fosse antigo, nele não haveria passado, “mas um
presente continuado de formas e usos.” (2016
O grande Milton Santos (2002 [1989], 1994) valeu- [1995], p. 216). Para ele, uma construção antiga,
-se algumas vezes em suas análises da analogia mesmo destituída de seu valor social, pode ser
entre a paisagem urbana e o palimpsesto. Sem sempre encarada como “uma reserva de sentido
dúvida, no caso da Rua da Mouraria, não apenas o e de ação para o futuro.” (2016 [1995], p. 217). Por
calçamento, mas diversos outros elementos que influência do pensamento de Marcel Roncayolo,
compunham a paisagem àquela época possuíam Lepetit defendia que a cidade era uma “categoria
EIXO TEMÁTICO 1 da prática social” (2016 [1993], p. 181). Por esta
razão, para compreender as relações complexas
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO entre os atores sociais e a herança material de
seus territórios, parecia-lhe “mais pertinente e
proveitoso” empreender uma análise hermenêuti-
ca da cidade. Creio eu que, tal análise, no mínimo,
permitir-nos-ia enxergar o passado associado ao
novo e ao inesperado e as implicações políticas
disso (cf. Massey, 2012) não podem ser menos-
prezadas.

Para mim, a raiz da divergência de interpretação


entre Santos e Lepetit reside não apenas, mas
principalmente, na forma como eles compreen-
dem o tempo2. Ambos mobilizam pensamentos
bastante sofisticados sobre a questão, que não
são sequer radicalmente opostos, dado que apre-
sentam alguns pontos de confluência. Entretanto,
creio ser perceptível na abordagem de Santos
(2002 [1989], 1994), ao tratar da cidade, a ênfase
em uma noção especializada do tempo, na qual
tempo e espaço se entrelaçam e se confundem,
e a especificidade de cada um dos termos é posta
de lado3.

O geógrafo afirmava que “[...] o tempo, à imagem


de Einstein, se confunde com o espaço, é espaço.”

2. A meu ver, é impossível enquadrar esses pensadores


em esquemas simplificadores. Seria muito mais fácil para
a argumentação que quero construir aqui, se eu pudesse
dizer que o pensamento de Milton Santos corresponde a
uma “contemporaneidade estática”, enquanto o de Bernard
Lepetit aponta para uma “multiplicidade dinâmica”, para
utilizar duas categorias propostas por Massey (2012). No
entanto, embora Santos seja, por vezes, ambíguo em suas
definições do espaço-tempo, não encontrei qualquer suges-
tão de que o espaço seria atemporal, muito pelo contrário.
Lepetit, por sua vez, atribui o dinamismo do espaço não às
próprias coisas, mas aos “atores sociais”. Esta não seria
também uma forma de estase? Assim, penso que a distinção
mais pertinente entre eles, pode ser encontrada dentro do
esquema analítico proposto pelo antropólogo Alfred Gell
(1992) para classificar os pontos de vista acerca da meta-
física do tempo. Então, podemos dizer que Santos estaria
mais próximo da visão compartilhada entre os teóricos da
série B, enquanto Lepetit comungaria das concepções da
série A. Pois, não se trata de afirmar que há temporalidade
em um e não em outro, mas de duas formas distintas de
conceber o tempo.
16º SHCU
3. Santos (1994, p. 39) defendia que as ciências sociais não
30 anos . Atualização Crítica
poderiam tratar tempo e espaço separadamente, “sob risco
236 de tautologia”, “já que as definições se tornaram recíprocas.”
(SANTOS, 2002 [1989], p. 22). Em geral, os teóricos tido ao passado exatamente através das formas
que lidam com esta concepção do tempo atribuem [...]” (SANTOS, 1990, p. 244). Lepetit, por outro
características temporais não coincidentes e lado, contrapôs-se ao determinismo subjacente
permanentes aos objetos (GELL, 1992). Trata-se a concepções como estas que, segundo ele, não
de uma temporalidade que se organiza em termos se sustentavam diante de um exame empírico.
de antes e depois, que são atributos temporais Ele dizia:
imutáveis. É apenas diante de uma tal concepção
que a metáfora que associa a paisagem urbana Considerem-se os bairros de Nova York:
a um palimpsesto pode soar adequada. Bernard as mudanças sociais de uso determinam
Lepetit (2016 [1995]), por sua vez, permitiu-se as modalidades de resistência e a duração
pensar o tempo de forma mais dinâmica. Para de vida do construído, muito mais do que o
ele, os atributos temporais dos objetos são cir- inverso. Ao contrário, em Paris, no Marais, a
cunstanciais e, portanto, plenamente revogáveis. arquitetura antiga acomoda-se a usos su-
É no presente que se julga, provisoriamente, se cessivos contraditórios, e as velhas mora-
algo pertence ao passado ou não, sendo o prin- das podem tornar-se consecutivamente, por
cipal parâmetro de avaliação a possibilidade de meio de simples bricolagens internas, resi-
adequação entre as formas e os usos. dências aristocráticas, ateliês, habitações
burguesas. [LEPETIT, 2016 (1993), p. 176]
Igualmente importante aqui é a concepção de
Milton Santos (1990, 2002 [1989]) de que o espaço O historiador descreve situações semelhantes às
se impõe aos homens. Segundo ele, que observei na Rua da Mouraria. A casa de núme-
ro 51, por exemplo, já foi utilizada, em momentos
A partir do momento que eu crio objetos, distintos, como residência e bar. A título de curio-
os deposito num lugar e eles passam a se sidade: a decoração do interior do referido bar era
conformar a esse lugar, a dar, digamos as- inspirada tanto nos antigos cabarés franceses
sim, a cara do lugar, esses objetos impõem quanto na estética das pin-ups norte-americanas,
à sociedade ritmos, formas temporais de em total sintonia com o seu nome: “Burlesque”. De
seu uso, das quais os homens não podem se acordo com o “Guia Gay Salvador”, site dedicado à
furtar e que terminam, de alguma maneira, promoção do “turismo gay” na cidade, o Burlesque
por dominá-los [2002 (1989), p. 22]. foi eleito o melhor “bar LGBT” de Salvador em 2015
e 2016. Com o fechamento do bar, em 2019, a casa
Assim, temos que a cidade — um produto, em
passou por reformas e, atualmente, abriga uma
larga medida, das gerações que nos antecederam
escola de educação infantil.
— nos impõe ritmos e modos de uso. Se quiser-
mos, mais uma vez, pensar através de metáforas,
Creio que tanto Milton Santos quanto Bernard
na descrição acima, a materialidade da cidade
Lepetit concordariam com o argumento de que
corresponderia às conchas que os crustáceos
a paisagem de outrora da Rua da Mouraria — ou
encontram ao acaso e adotam como morada.
mesmo a atual — não está sobreposta às que lhe
Nesse sentido, a relação dos grupos citadinos
antecederam, visto que os elementos que lhe
com a herança material de seus territórios seria
constitui, independentemente de suas idades,
muito mais de submissão que de apropriação e
são todos coetâneos, sem prejuízo da capacidade
adaptação aos seus projetos contemporâneos.
que possuem de aludir a outros tempos. Ambos os
Em uma outra ocasião, Milton Santos (1990) de- pensadores tomaram de empréstimo das análises
nominou de “revanche das formas” ao processo estruturais ou semiológicas do urbano a ideia de
no qual as “formas criadas” se transformam em que os elementos da cidade são espacialmente
“formas criadoras”, impondo-se não apenas aos sincrônicos4.
seus criadores, mas também aos sucessores
destes. Trata-se de mais uma metáfora para se 4. Para a geógrafa Doreen Massey (2012), os “espaços do
pensar a relação dos grupos citadinos com a ma- estruturalismo” foram concebidos de duas maneiras. De
terialidade das cidades, concebida por ele como forma negativa, em contraposição ao tempo; assim, seus
“[...] aquilo que o passado nos herda e que implica elementos constituintes seriam atemporais e não neces-
uma submissão do presente; um presente subme- sariamente contemporâneos. E, de forma positiva, neste
EIXO TEMÁTICO 1 Santos (1994, p. 33, grifo nosso) afirmava que,
“da mesma forma que o sistema linguístico, cada
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO sistema geográfico é sucedido por um outro, o
qual recria sua coerência interna, ainda que cada
variável isolada experimente um processo de mu-
dança com ritmo próprio.” Lepetit (2016 [1993]), por
sua vez, sem negar a existência de uma coerência
interna5, entendia que, frente às nossas expec-
tativas, era importante olhar para aquilo que as
relações espaciais suscitam, para o que há de po-
tencial e não apenas para o que está manifesto no
sistema, pois só assim poderíamos efetivamente
compreendê-lo. Na seção seguinte, irei apresen-
tar os pressupostos de uma análise hermenêutica
da cidade, penso que assim a posição de Lepetit
se tornará mais evidente.

Bernard Lepetit construiu sua visão acerca do


presente histórico a partir da leitura das obras de
Paul Ricoeur e Reinhart Koselleck. O resultado,
como veremos, não é uma visão mais subjetivista
do tempo, mas uma na qual passado e futuro,
como experiência e horizonte, podem ser com-
preendidos no presente como fonte perpétua
para novos começos e retomadas, ou seja, como
potência e indeterminação.

Os múltiplos sentidos das ruas

O meu objetivo nesta seção é apreciar criticamen-


te as ideias que Bernard Lepetit associou a uma
análise hermenêutica da cidade, ao passo que
tento dar relevo também às ideias de Paul Ricoeur
sobre o campo da teoria do texto, que nutriram
as elucubrações do historiador. De antemão, é
importante notar que a analogia a ser persegui-

caso, a definição do espaço dá ênfase às relações entre


entidades coexistentes. Milton Santos e Bernard Lepetit se
valeram de algumas destas ideias quando elas já haviam se
beneficiado do debate pós-estrutural. Assim, ambos, ao se
referirem à linguística, associam explicitamente a sincronia
à ideia de entidades coetâneas e não atemporais. Ainda,
Lepetit supôs que o espaço, assim como um texto, não
constitui um sistema fechado, ao contrário, ele nos “abre
um caminho de pensamento” (2016 [1993], p. 186).
16º SHCU
5. Para mim, a coerência se refere exclusivamente ao tempo,
30 anos . Atualização Crítica
no sentido de que são todos contemporâneos, apesar da
238 diversidade de idades.
da entre texto e cidade não é fortuita. Inclusive, questão central, para Ricoeur, no ensaio intitu-
outros pensadores já o fizeram, sobretudo de um lado “Explicação e Compreensão” é: “[...] o que é
ponto de vista semiológico (AGREST e GANDEL- compreender um discurso quando tal discurso é
SONAS, 1973, BROADBENT, 1997, BARTHES, 2001). um texto ou uma obra literária?” (RICOEUR, 1976,
O próprio Ricoeur (2002) escreveu sobre arquite- p. 83). Para respondê-la, o filósofo contrastou,
tura — em um sentido lato, que incluía o espaço nos mais diversos aspectos, a sua própria teoria,
urbano — e narrativa, sob a chave interpretativa da o modelo estrutural de análise (especialmente
tríplice mimese. Todavia, o resultado pareceu-me em Lévi-Strauss) e a hermenêutica romântica
menos interessante que a proposta de Lepetit. (notadamente em Dilthey) 7.

Os argumentos que pretendo mobilizar aqui explo- Uma diferença fulcral entre estas abordagens é
ram a correspondência estabelecida por Ricoeur que, enquanto no modelo estrutural a explicação
entre o discurso escrito e as ações humanas. Uma do sentido da narrativa prescinde do conheci-
vez que, de acordo com este filósofo, a ação huma- mento das motivações iniciais de seu autor ou de
na e o texto se assemelham em muitos aspectos. sua audiência; para a hermenêutica romântica,
compreender o sentido de um texto implicava
[a ação humana] é externalizada de um capturar as intenções semânticas de quem o pro-
modo comparável à fixação característica duziu. Ricoeur (1976, 1991), por sua vez, defendia
da escrita. Ao se separar de seu agente, a que a interpretação de um discurso deveria ser
ação adquire uma autonomia semelhante entendida como um processo dialético que en-
à autonomia semântica do texto; ela dei- volve tanto a explicação quanto a compreensão.
xa um rastro, uma marca, ela é inscrita no Como veremos, para ele, estes não são termos
curso das coisas e se torna um arquivo, um mutuamente exclusivos, mas sim etapas ou fases
documento. Como um texto, cujo sentido de um mesmo processo.
é dissociado das condições iniciais de sua
produção, a ação humana possui um peso De forma didática, Ricoeur descreve o processo
que não está restrito à importância da si- dialético em questão como sendo composto por
tuação inicial em que aparece, posto que dois momentos: um primeiro movimento que vai
permite a reinscrição de seu sentido em no- da compreensão à explicação e um segundo que
vos contextos. Finalmente, uma ação, como se desenvolve no sentido inverso. Segundo Rico-
um texto, é uma obra aberta, direcionada a eur (1976, 1991), a compreensão, em um primeiro
uma serie indefinida de possíveis ‘leitores’. momento, assume a forma de uma conjectura ou
Seus juízes não são seus contemporâneos, de uma “interpretação ingênua”. Isso se deve à
mas a história subsequente. [RICOEUR, 1991, “autonomia semântica” do texto, isto é, o discurso,
p. 137-138, tradução nossa] ao ser inscrito, adquire autonomia em relação às
intenções semânticas de seu autor. Por ter sido
Parece-me conveniente abordar algumas ideias dissociado de quem o produziu e, portanto, não
de Ricoeur, ao menos em seus aspectos gerais, estar direcionado a nenhum interlocutor especí-
para melhor entendermos tanto a analogia entre fico, o texto pode ser lido por “[...] quem quer que
texto e ação quanto a apropriação realizada por saiba ler.” (RICOEUR, 1976, p. 42). Assim, o sentido
Lepetit. Em um primeiro momento, exploraremos de um texto pode ser construído de diversas ma-
a hermenêutica associada ao texto, em seguida neiras por seus leitores.
a analogia com o espaço urbano. Tomarei como
ponto de partida a obra “Teoria da Interpretação”, Contudo, o filósofo também afirmava que nem
que é composta por quatro ensaios, nos quais todas as conjecturas seriam igualmente válidas,
são abordadas diversas questões referentes ao
discurso escrito, porém todas de algum modo
sário substituir o dualismo metodológico entre explicação
relacionadas ao que Ricoeur denominou de pro- e compreensão, fruto de um velho debate epistemológico
cesso dialético de explicação e compreensão6. A entre as ciências da natureza e as ciências humanas, por
esse processo dialético que considerava muito mais sútil.

6. Ricoeur (1991), face a determinadas aporias nos campos do 7. Não é meu propósito recuperar esse debate em toda sua
texto, da ação e da história, convenceu-se de que era neces- profundidade e inteireza.
EIXO TEMÁTICO 1 posto que à luz do que sabemos, algumas interpre-
tações do texto podem ser consideradas não mais
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO verdadeiras, mas mais prováveis do que outras
(RICOEUR, 1976). Ricoeur defendia que as con-
jecturas pudessem ser validadas de acordo com
os métodos próprios das ciências ideográficas.
Este momento de validação corresponderia à
explicação; seria o fim, portanto, da primeira fase
do processo dialético e, ao mesmo tempo, o início
da fase seguinte. Para Ricoeur (1976), no âmbito
da teoria do texto, a explicação semiológica do
sentido da narrativa possibilita uma outra forma
de compreensão, relacionada à função referencial
do discurso8.

Na obra de Lepetit (2016 [1993]), a referência a


este primeiro movimento do processo dialético
de explicação e compreensão está associada
a uma crítica à análise semiológica do urbano
realizada pela historiadora Françoise Choay. Ele
afirmava que,

Na tentativa de transpor para o urbanismo


os métodos da linguística, Françoise Choay
havia ressaltado de maneira convincente o
sistema de correspondências que se pode
estabelecer entre a forma da cidade a do
discurso. Mas, atendo-se ao que não passa
de um primeiro momento da análise herme-
nêutica, sua tentativa não escapa à ilusão
da existência de uma objetividade textual
fechada em si. [LEPETIT, 2016 (1993), p. 186,
grifo nosso]

Para mim, aqui reside a razão do débito que Lepe-


tit assumiu com o pensamento estrutural. Aceitar
ou constatar a sincronicidade das temporalidades
heterogêneas presentes no espaço urbano seria
o momento dentro da análise que nos conduziria
a uma outra forma de compreensão. Todavia,

8. Para Ricoeur (1976), a análise estrutural, por exemplo,


não faria o menor sentido se fosse capaz de neutralizar ou
suprimir a função referencial do discurso. À afirmação do
antropólogo Claude Lévi-Strauss de que “[os] mitos não
dizem nada capaz de nos instruir sobre a ordem do mundo,
a natureza do real, a origem do homem ou o seu destino”
(1971, p. 571 apud VIVEIROS DE CASTRO, 2002), Ricoeur
(1976, p. 98) respondeu: “Eliminar a referência às aporias da
existência [...] seria reduzir o mito à necrologia dos discur-
16º SHCU
sos sem significado da humanidade.” Sem as referências,
30 anos . Atualização Crítica
os mitos sequer funcionariam como operadores lógicos,
240 pensava Ricoeur.
parece-me ser possível alcançar outra forma de afirmava — a meu ver, de modo bastante elegante
compreensão tendo um ponto de partida distinto, — que “é este alargamento do nosso horizonte de
que não a análise semiológica. existência que nos permite falar das referências
descortinadas pelo texto ou do mundo aberto
Conforme argumentaram Alves et al. (2014, p. 192), pelas exigências referenciais da maior parte dos
refletindo a partir das obras de Heidegger e Gada- textos.” (1976, p. 49, grifo nosso). Compreender um
mer, “as ciências humanas constituem uma elabo- texto, em última instância, é se apropriar desses
ração especial do que constitui a própria estrutura mundos tornados possíveis pela ausência das
da experiência humana no mundo.” Com isso, os referências ostensivas. Logo, podemos dizer que
autores chamam a atenção para o fato de que a a compreensão nos permite ampliar nosso “hori-
nossa compreensão está vinculada a tradições zonte de existência”, nos conduz a “um novo modo
e preconceitos, isto é, a uma “pré-compreensão de olhar as coisas” e nos possibilita “pensar de
historicamente transmitida, que ampara e prepara uma certa maneira” (RICOEUR, 1976, p.99).
o caminho para outras formas de compreensão.”
(ALVES et al., 2014, p. 195). Bom, a compreensão Ricoeur (1976) nos dizia que “o problema da escrita
de que a paisagem urbana é constituída por múl- torna-se um problema hermenêutico quando se
tiplas temporalidades não é algo de que posso me refere ao seu polo complementar, que é a lei-
dar conta ao caminhar na rua? Não diz respeito a tura” (p. 54). Não é por acaso que para a análise
uma experiência possível a quem deambula pela hermenêutica da cidade a questão central é a
cidade como o icônico flâneur? Tal compreensão apropriação ou reinterpretação de uma herança
não poderia ensejar os diálogos e reflexões que material. Como vimos, a autonomia semântica
deram origem a este texto? Penso que a respos- se refere à alienação do texto em relação ao seu
ta para essas questões é sim. Por esta razão, autor. Para Ricoeur, a apropriação do texto pelo
aqui, creio ser possível renunciar à referência leitor é a contrapartida dessa separação inicial. A
(ou deferência) ao estruturalismo, posto que uma distância existente entre a obra e o leitor é muito
compreensão mais profunda das temporalidades mais figurativa que denotativa e a possibilidade
da cidade podem perfeitamente ter como ponto de superá-la nos é dada, em alguma medida, pela
de partida a nossa própria experiência cotidiana. leitura. É através da compreensão que o texto
deixa de ser um estranho e se torna algo próxi-
Em um outro ensaio, intitulado “Fala e Escrita”, mo, desvela um mundo e alarga, deste modo, a
Ricoeur (1976) discute, dentre outras coisas, a compreensão que temos de nós mesmos. Rico-
função referencial do discurso escrito. O filósofo eur nos fala de uma “proximidade que suprime e
explora as consequências do fato de que, neste preserva a distância cultural e inclui a alteridade
tipo de discurso, nós, os autores, não estamos li- na ipseidade.” (1976, p. 55).
mitados a uma referência ostensiva. Isto é, devido
à distância entre o escritor e o leitor, é-nos dada Em síntese: Ricoeur afirmava que, a compreen-
apenas, enquanto escritores, a possibilidade de são não visa resgatar a intenção do autor, posto
identificar, mas não de apontar, por assim dizer, que o que deve ser apropriado é “[...] o sentido do
para as coisas às quais estamos nos referindo. próprio texto, concebido de um modo dinâmico
Com isso, “[...] torna-se possível uma total abs- como a direção do pensamento aberta pelo texto.”
tração da realidade envolvente.” (RICOEUR, 1976, (1976, p. 104, grifo nosso). Além disso, todo texto
p. 92). Cabendo aos leitores atualizarmos as refe- é plurívoco, afinal não se dirige a um leitor espe-
rências em nossa própria situação. No discurso cífico, mas “a quem quer que possa ler” e cons-
falado, por sua vez, todas as referências são si- truir um sentido. Ainda, a apropriação não está
tuacionais, isto é, se referem ao aqui e agora da limitada pelas capacidades de compreensão do
situação interlocutória. Deste modo, o alcance leitor, uma vez que “a interpretação é o processo
referencial do discurso oral, em comparação, pelo qual o desvelamento de novos modos de ser
torna-se muito mais limitado. [...] proporciona ao sujeito uma nova capacidade
de a si mesmo se conhecer.” (RICOEUR, 1976, p.
Assim, na visão de Ricoeur, “graças à escrita, o 106). Com isso, Ricoeur recusa qualquer prece-
homem e só o homem tem um mundo e não apenas dência do “sujeito já senhor do seu próprio modo
uma situação.” (1976, p. 47, grifo nosso). Ricoeur de estar-no-mundo” (1976, p. 106) sobre o texto e
EIXO TEMÁTICO 1 enfatiza a relação dialética, na qual a construção
do sentido do texto é também uma forma de au-
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO tocompreensão. Ou, como eu entendo essa ideia:
se a apropriação do texto não serviu para que eu
me transformasse, não posso dizer, de fato, que
o compreendi.

Para que não percamos de vista a questão urbana,


podemos pensar que, de modo análogo, a herança
material que nos foi legada pelas gerações que nos
antecederam também possui uma “autonomia se-
mântica” em relação a seus criadores. Compete a
cada geração superar a distância que a autonomia
engendra, interpretando sua herança em busca de
novos sentidos ou caminhos possíveis. Bernard
Lepetit afirmava que, ao reconhecermos que boa
parte da infraestrutura material da qual usufruí-
mos em nossa vida cotidiana nos foi legada pelas
gerações anteriores, não deveríamos ser levados
a concluir que “[...] como um bernardo-eremita, a
sociedade citadina move-se num construído que
não é o seu.” (2016 [1993], p. 176).

Embora crítico da análise semiológica do urbano,


Lepetit via com bons olhos, no estudo realizado
por Françoise Choay, o lugar reservado “aos fe-
nômenos compensatórios de ressemantização”
(LEPETIT, 2016 [1993], p. 180). A ressemantização
urbana se daria através da reapropriação pelos
atores sociais, no presente, das formas herdadas
do passado. Assim,

os sintagmas ultrapassados encontram-se


englobados em novos sintagmas: as portas
monumentais, que antes eram entradas
de cidade, tornam-se sinais intra muros;
nos bairros comerciais, as fachadas de an-
dar térreo estão num processo constante
de transformação; as antigas estações
tornam-se museus, e as igrejas, salas de
concerto. [LEPETIT, 2016 [1993], p. 180-181,
grifo no original]

Lepetit defendia que o que há de específico nos


estudos sobre a cidade é a associação entre as
pesquisas sobre o modo de vida urbano e as inves-
tigações sobre as formas urbanas. Para o histo-
riador, tais estudos não poderiam ser dissociados,
posto que a própria “[...] cidade não dissocia: ao
contrário, faz convergirem, num mesmo tempo,
16º SHCU os fragmentos de espaço e os hábitos vindos
30 anos . Atualização Crítica
de diversos momentos do passado.” (LEPETIT,
242 2016 [1993], p. 177). Segundo Lepetit, um modo de
abordar a morfologia urbana e os usos sociais em cação fatalista9 (LEPETIT, 2016 [1993]). Assim,
conjunto seria considerando os atores sociais e as diante da discussão anterior, penso que o caminho
suas modalidades de apropriação da cidade, uma para escaparmos da tautologia é conceber que os
vez que são os grupos citadinos que presentificam sentidos das formas urbanas podem ser constru-
as múltiplas temporalidades do urbano, ao se ídos de múltiplas formas, bem como renovados
apropriar das formas passadas em vista de seus permanentemente. Deste modo, a atualização
interesses contemporâneos. Eu acrescentaria, operada no presente pode responder aos mais
pensando a partir da noção de “existência relativa” diversos projetos, sem com isso esgotar suas
(cf. Latour, 2001) e da própria concepção herme- possibilidades. Em outras palavras, creio que o
nêutica do efeito transformador do texto sobre que subsiste no material é menos uma injunção
nós, que se trata de uma processo de inscrição que a indicação de possíveis caminhos a seguir.
temporal mútuo. Assim, não apenas as cidades, Algumas considerações acerca do tempo, espe-
mas os próprios grupos seriam “presentificados” cialmente da relação entre passado, presente e
através da relação. futuro, podem ser úteis neste ponto.
Lepetit dizia que “as sociedades urbanas não se
alojam em conchas vazias encontradas por acaso:
procedem continuamente a uma reatualização Algumas considerações acerca do
e a uma mudança de sentido de formas antigas.
Elas as reinterpretam.” (2016 [1993], p.183). Ao
presente histórico
comentar a obra “A memória coletiva” de Maurice
Halbwachs, Lepetit observa que, para o sociólogo, Outros trechos da mesma reportagem do A Tar-
a crença de que é possível “reencontrar o ontem de, mencionada anteriormente, podem ser ilus-
no momento presente” (LEPETIT, 2016 [1993], p.
trativos para o que iremos discutir nesta seção.
185) é meramente ilusória. As memórias coletivas
Vejamos:
não são imutáveis, ao contrário:
[...]
A cada etapa de seu desenvolvimento, a
sociedade remaneja suas lembranças de A Prefeitura querendo dar jeito de cidade
forma a adequá-las às condições de seu moderna à nossa velha e desgraciosa capi-
funcionamento. Assim, num processo de tal podia folhear as coleções de ‘A TARDE’,
reelaboração permanente, de reconstrução porque não há semana em que não advogue-
perpétua, a memória exprime as verdades mos melhoramentos, sempre necessários
do passado com base nas do presente.” e inadiáveis, para este ou aquele bairro. Te-
[LEPETIT, 2016 [1993], p. 185] mos notado, para nosso consolo e estímulo,
que não raro somos atendidos, a tal respei-
O mesmo raciocínio é válido para o espaço, posto
que, na visão de Halbwachs, o espaço e a memória to. A maioria das vezes, porém, a edilidade
compartilham as características descritas acima. faz ouvidos de mercador, e a população fica
Logo, o espaço é também produto de uma reela- insatisfeita nas suas pretensões. Contudo,
boração permanente. Há, portanto, uma trabalho atendidos ou desatendidos, continuamos a
ativo de seleção e reelaboração das formas do pleitear o cumprimento das obrigações dos
passado afim de adequá-las aos usos contem- administradores para com o povo, de cuja
porâneos. bolsa saem impostos e taxas.

Lepetit reconhece que uma análise nesses ter- [...]


mos redundaria em uma explicação tautológica,
Santo Antônio da Mouraria precisa, portan-
segundo a qual “[...] só subsiste do passado, pro-
to, de calçamento decente. Mas necessita
visoriamente, aquilo de que o presente se reapro-
pria.” (2016, p. 186) Para o historiador, uma análise
hermenêutica das cidades seria capaz de oferecer 9. No primeiro caso, as reapropriações do espaço se su-
uma solução satisfatória a tal dilema, sem recair cederiam infinitamente, toda apropriação procede uma
nos riscos da regressão ao infinito ou da expli- anterior. No segundo, assumem um caráter teleológico.
EIXO TEMÁTICO 1 também de ser alinhado o quarteirão à di-
reita de quem entra.
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
[...]

A Engenharia Municipal anda ocupada com


as demolições nas adjacências da Faculda-
de de Direito. Executa, assim, um antigo
projeto, que remonta ao tempo da constru-
ção daquele estabelecimento de ensino su-
perior. Merece aplausos, por isso. Mas pre-
cisa ir adiante, na remodelação da cidade.
Deve ocupar-se, logo depois da obra atual,
dos outros aspectos urbanos que também
estão a sugerir concerto. Entre eles, Santo
Antônio da Mouraria e seu horrível aleijão.
[OS ASPECTOS..., 1938, grifos nossos]

Nos trechos da reportagem acima, duas coisas


chamaram a minha atenção. Em primeiro lugar,
o papel de porta voz da população que o jornal
atribui a si. Deste modo, coube-lhe expressar
as pretensões, as vontades, os projetos, enfim,
as expectativas daqueles cujas vozes, de outro
modo, suponho, seriam inaudíveis. Assim, fica-
mos sabendo através do jornal que, em 1938, os
que queriam viver em uma cidade moderna, viam
seus planos frustrados pelos ouvidos de mercador
da edilidade, diante das queixas feitas sobre os
aspectos feios da “velha e desgraciosa” capital.

Sem aceitar, de antemão, a autoimportância que


o jornal se atribui em relação às transformações
na cidade, a meu ver, essa reportagem ilustra o
modo como o passado, enquanto experiência,
expressa aqui nos aplausos de que julga ser a
prefeitura merecedora pelas remodelações já re-
alizadas na cidade, mas também na afirmação do
jornal de que realiza um trabalho necessário e que
precisa ser continuado, independentemente de
sua eficácia; e o futuro, em termos de expectativa,
representado pelos melhoramentos “inadiáveis”,
relacionam-se no presente e produzem a história.

Em segundo lugar, pareceu-me claro que o jornal


foi (ou estava sendo) porta voz, se não de toda a
população, ao menos das expectativas associadas
a um determinado projeto de modernidade — que
iremos discutir em um momento oportuno. O que
me interessa ponderar neste momento é quais
16º SHCU as relações entre nossas experiências e nossas
30 anos . Atualização Crítica
expectativas e de que modo as nossas expecta-
244 tivas são capazes de produzir transformações no
mundo. Nesta seção, quero apresentar os con- guais de ser, e da tensão que daí resulta pode ser
ceitos de espaço de experiência e horizonte de deduzido algo como o tempo histórico.” (p. 312). Na
expectativa (cf. Koselleck, 2006), a fim de refletir concepção de tempo mobilizada pelo historiador,
acerca do presente histórico. passado e futuro possuem estruturas temporais
distintas, mas que se condicionam mutuamen-
Para Ricoeur, “é impossível falar [do presente te. O passado, assim como o espaço, é fruto do
histórico] sem situá-lo no ponto de interseção acúmulo de experiências. Novas experiências,
do que Reinhart Koselleck chama de o horizonte bem como novas expectativas conduzem a uma
de expectativa e o espaço de experiência.” (1991, reorganização das experiências anteriores. O
p. 218, tradução nossa, grifo nosso). Na visão de futuro, por sua vez, é concebido como um espaço
Koselleck (2006), a força motriz da história advém de experiência possível. Um espaço que se alarga
da tensão existente entre o passado e o futuro, a cada nova experiência. Porém, na condição de
entre nossas experiências e nossas expectativas. horizonte, estabelece um limite intransponível à
De acordo com o historiador, experiência10.
[...] experiência e expectativa são duas ca- A assimetria entre espaço de experiência e o
tegorias adequadas para nos ocuparmos horizonte de expectativa, para Ricoeur (1991), tem
com o tempo histórico, pois elas entrelaçam a ver com as características da ação humana. Ele
passado e futuro. São adequadas também nos dizia que a ação, seja ela individual ou coletiva,
para se tentar descobrir o tempo histórico, além de não ser responsável pelas circunstâncias
pois, enriquecidas em seu conteúdo, elas em que se desenvolve, sempre produz resultados
dirigem as ações concretas no movimento inesperados. Nas palavras de Koselleck (2006),
social e político. [KOSELLECK, 2006, p. 308] “[...] o futuro histórico nunca é o resultado puro e
simples de passado histórico.” (p. 312). O passado
Ou seja, são categorias que — vistas pelo historia-
não é mero enquadre para a ação, mas a sua pró-
dor como um “dado antropológico prévio” (p.308)
pria fonte de recursos. Neste sentido, Ricoeur e
— fundamentam a possibilidade da história e de
Koselleck afirmavam que o espaço de experiência
seu conhecimento.
é fundamental para o rompimento do horizonte de
Ricoeur (1991) explica que a opção de Koselleck expectativa, mas não é suficiente. Porque o hori-
pela expressão espaço de experiência pode ser zonte de expectativa só pode ser rompido diante
atribuída ao sentido que o termo experiência [Er- de uma surpresa. A imprevisibilidade do resultado
fahrung] possui em alemão, posto que significa da ação humana pode engendrar a frustração de
“[...] adquirir algo que se torna um habitus.” (p. 218, expectativas anteriores, tornar possível que as
tradução nossa). Ou seja, uma experiência não é experiências passadas possam ser revisitadas à
algo apenas a ser rememorado; é, na verdade, luz de novas expectativas, bem como modificar
constituinte daquilo que somos. O termo espaço, as experiências anteriores ao se associar a elas.
por sua vez, além de aludir a uma multiplicidade
de itinerários potenciais, também faz referência a Koselleck (2006) defendia que só é possível haver
uma “estrutura de camadas, composta de aglome- história se a tensão entre as experiências e as
rações e estratificações” (p. 218, tradução nossa). expectativas forem mantidas. Deste modo, para
O uso da expressão horizonte de expectativa, na Ricoeur (1991, p. 221, tradução nossa), é fundamen-
visão de Ricoeur, não poderia ser mais apropriado, tal que o passado possa, sempre que necessário,
uma vez que o termo expectativa é “amplo o sufi- ser “reaberto e as potencialidades inacabadas,
ciente para incluir [...] todas as manifestações [...] frustradas e até mesmo massacradas” possam
relacionadas ao futuro.” (p.218, tradução nossa).
Enquanto o termo horizonte nos remete às noções 10. Há uma canção recente de Gilberto Gil, na qual ele decla-
de desdobramento e de superação comumente ma: “Não tenho medo da morte, mas sim medo de morrer.
associadas à expectativa. Qual seria a diferença? Você há de perguntar. É que a morte
já é depois que eu deixar de respirar. Morrer ainda é aqui.
Para Koselleck (2006), o espaço de experiência e Na vida, no sol, no ar. Ainda pode haver dor ou vontade de
o horizonte de expectativa não são meramente mijar [...]”. Parece-me bastante ilustrativa para conceber as
polos opostos, “[...] eles indicam maneiras desi- estruturas temporais das experiências e das expectativas.
EIXO TEMÁTICO 1 ser reacesas. Nas palavras de Bernard Lepetit
(2016 [1995], p.225), “é necessário [...] ‘resistir ao
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO retraimento do espaço de experiência’, cessando
de considerar o passado como encerrado para,
ao contrário, reavivar suas potencialidades não
realizadas.” Assim, temos mais algumas razões
para rejeitar a metáfora que encerra o passado
da cidade associando-a a um palimpsesto.

Penso que, a esta altura, a afirmação de Lepetit


(2016 [1995], p. 222) de que “o tempo histórico re-
aliza-se no presente” ou que “o passado [...] é um
presente em movimento” não devem ser entendi-
das como adesão a um “presentismo” 11 (cf. Hartog,
2013). Tampouco caberia aqui a crítica que Doreen
Massey (2012) faz aos chamados “pós-modernos”
que, segundo ela, supõem que o espaço é uma
“instantaneidade sem profundidade” 12. O presente
histórico, de fato, adquire centralidade no pensa-
mento de Lepetit. Não o faz, porém, obliterando
os outros tempos. É possível conceber o presente
tanto como um instante quanto como origem e
passagem para o passado e o futuro. O presente,
para Lepetit (2016 [1995], p. 222, grifo nosso),
“define-se como uma modalidade particular de
agenciamento entre um ‘espaço de experiência’ e
um ‘horizonte de expectativa’, entre um passado
e um futuro que [os agentes] atualizam sob as
formas da reconfiguração e do projeto.”

Retomando o exemplo com o qual iniciei esta


seção, na reportagem do A Tarde, vimos que o
jornal se empenha em tornar possível que à ci-
dade seja concedido o estatuto de moderna. De
acordo com Fernandes e Gomes (1990), desde
o início do século XIX podem ser identificados
surtos modernizadores na cidade da Bahia. Ainda
assim, tornar-se moderna, em meados do sécu-
lo XX, continuava a significar a superação dos
problemas relacionados à salubridade, fluidez e
estética que vinculavam a cidade ao seu passado

11. Para Hartog, o presentismo se refere a uma das experi-


ências contemporâneas do tempo, na qual “tudo se passa
como se não houvesse nada mais do que o presente” (2013,
p. 39). O historiador associa o presentismo, por exemplo,
às “cidades genéricas” e ao “espaço-lixo”, descritos pelo
arquiteto Rem Koolhaas (2015) como espaços que ignoram
a história e o envelhecimento.
16º SHCU
12. Instantâneo porque supostamente viveríamos em um
30 anos . Atualização Crítica
presente único, produto da globalização. E, sem profun-
246 didade porque descarta o passado e a história.
colonial. Com isso, evidencia-se, entre outras pectativas determinadas, veem o passado como
coisas, a incapacidade dos surtos modernizadores fonte inesgotável de recursos e possibilidades;
anteriores de atender à cidade como um todo, estas ações, pelo caráter imprevisível de seus
conforme observaram Fernandes e Gomes (1990). resultados, tornam possível um reajuste tanto
Tendo em vista o que significava ser moderno, das expectativas futuras quanto das experiên-
podemos dizer que as expectativas associadas cias passadas. Aqui, o diálogo com os historia-
ao futuro na Salvador de 1938 implicavam em dores nos levou à conclusão de que o resultado
transformações profundas, orientadas por ideais da espacialização do tempo não é um espaço
de progresso e evolução. Por esta razão, a cidade atemporal ou sem história. As temporalidades
é descrita pelo jornal como “velha e desgraciosa”. da paisagem se caracterizam por sua abertura
Não se trata apenas de uma constatação fática, e indeterminação.
mas também de uma inversão especular do futuro
almejado. Assim, deprecia-se parte daquilo que
compõe o espaço de experiência que, no caso da
cidade, deve ser “remodelado” ou mesmo posto
abaixo para que ela pudesse, enfim, civilizar-se.

Interessante notar também que, em uma outra


ocasião, o jornal A Tarde se opôs à mudança de
nomes das ruas da capital, inclusive ao da Rua da
Mouraria (NOMENCLATURA..., 1936). Considerou a
nova nomenclatura “extravagante” e “inexpressi-
va”, também chamou de “mudanças incoherentes
e baptismos que são sacrilégios históricos”. Dentre
os argumentos mobilizados, um chamou a minha
atenção: “Quem possue o mínimo senso do valor
histórico do aspecto secular da cidade, em face
desses attentados, tem a impressão de que qual-
quer relíquia artística vae sendo coberta, pouco
a pouco, de profana decoração.” (NOMENCLATU-
RA..., 1936). Percebe-se aqui uma total inversão
na valorização do espaço de experiência. A meu
ver, o que é interessante notar não é a aparente
contradição entre as posições do jornal, mas o ca-
ráter temporal das próprias categorias analíticas e
o vínculo delas com o lugar, que apontam também
para mudanças no regime de historicidade.

Provavelmente, os diversos processos de moder-


nização, ao longo dos séculos XIX e XX, produzi-
ram uma reacomodação tanto da percepção que
se tinha do existente quanto do que era possível
ser feito na cidade. Por ora, tais constatações
genéricas nos dizem muito pouco sobre a história
concreta e seus agentes. Contudo, é importante
reter que essa tensão entre o passado e o futuro
pode contribuir para iluminar os sentidos que al-
guns agentes sociais atribuíam à herança material
de seus territórios.

Em síntese, podemos dizer que as ações que se


desenrolam no presente histórico, frente a ex-
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EIXO TEMÁTICO 1 RESUMO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
A crise de 1929 foi catalisadora de uma recom-
posição da hegemonia burguesa em Porto Ale-
SESSÃO temática gre. Uma coalizão constituiu-se para a moderni-
zação da cidade, com ênfase nas categorias do
embelezamento e, especialmente, da circula-
CRISE, COALIZÃO, ção. Neste trabalho, examinamos o Rotary Club
de Porto Alegre enquanto um componente do
URBANISMO: O PÓS-1929 “Estado ampliado”. De modo semelhante ao que
já ocorrera nas maiores cidades do país, o clube
EM PORTO ALEGRE amalgamou frações da elite que buscaram um
consenso em relação aos “problemas urbanos”
de seu interesse para, a seguir, deflagrarem
CRISIS, COALITION, URBANISM: PORTO ALEGRE IN THE campanhas em prol de um consentimento mais
POST-1929 amplo. O Rotary deu atenção à “vida moral” da
cidade, juntando seus esforços aos do poder
CRISIS, COALICIÓN, URBANISMO: EL POST-1929 EN público para classificar públicos-alvo e atender
PORTO ALEGRE apenas aqueles julgados merecedores. Um ob-
jetivo de melhoria da circulação já era evidente
em uma primeira ação voltada aos “verdadeiros
Krause, Cleandro
mendigos”, à qual se seguiu o tratamento do trá-
Doutor em Planejamento Urbano e Regional; Instituto de
fego de pedestres em geral, momento em que
Pesquisa Econômica Aplicada
cleandrokrause@uol.com.br
uma “Comissão de Urbanismo” foi renomeada
de “Policiamento e Tráfego Urbano”. Dessa vez, a
alegada “imprudência dos pedestres” represen-
FRIDMAN, Fania
taria uma “ameaça”, motivando uma resposta do
Doutora em Economia Política; Instituto de Pesquisa e clube na forma de um projeto de regulamento
Planejamento Urbano e Regional
para racionalizar práticas no espaço público. A
fania@ippur.ufrj.br
ação do clube, assim, contribuiu para uma psi-
coesfera da modernização, coadjuvante das in-
tervenções físicas dos melhoramentos urbanos
e do urbanismo. Representados no clube desde
seu início, com o tempo, os próprios urbanistas
locais viriam a assumir tarefas de classificação
de públicos-alvo em suas propostas de remode-
lação e extensão urbana, justificando-as, tam-
bém, com o apelo a imagens contrastantes de
“progresso” e “atraso”.

problemas urbanos hegemonia psicoesfera


Rotary Club Porto Alegre

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

250
ABSTRACT RESUMEN

The 1929 crisis was a catalyst for the restoration La crisis de 1929 fue catalizadora para la recom-
of bourgeois hegemony in Porto Alegre. A coali- posición de la hegemonía burguesa en Porto Ale-
tion supported the city’s modernization, with an gre. Se formó una coalición para la modernizaci-
emphasis on the categories of beautification and, ón de la ciudad, con énfasis en las categorías de
especially, circulation. In this paper, we examine embellecimiento y, especialmente, circulación.
the Rotary Club of Porto Alegre as a component En este trabajo, examinamos el Rotary Club de
of the “expanded state”. Similar to what had al- Porto Alegre como un componente del “estado
ready occurred in the largest cities of Brazil, the expandido”. Como había ocurrido en las ciudades
club amalgamated fractions of the elite who sou- más grandes del país, el club amalgamó fraccio-
ght consensus on the “urban problems” of their nes de la élite por el consenso sobre los “proble-
interest and then launched campaigns in favor of mas urbanos” de su interés y, luego, campañas a
a broader consent. Rotary Club paid attention to favor de un consentimiento más amplio. El Rotary
the “moral life” of the city, joining its efforts with prestó atención a la “vida moral”, uniendo esfuer-
those of the state to classify beneficiaries, and zos con los del poder público para clasificar a los
serve only those deemed deserving. An objective beneficiarios y servir solo a aquellos que se con-
of improving circulation was already evident in a sideraran merecedores. El objetivo de mejorar la
first campaign aimed at “true beggars”, followed circulación ya era evidente en una acción dirigida
by the treatment of pedestrian traffic in general, a los “verdaderos mendigos”, que fue seguida por
when the club’s “Urbanism Commission” was re- el tratamiento del tráfico de peatones en general,
named “Policing and Urban Traffic”. This time, the cuando la “Comisión de Urbanismo” del club pasó
alleged “pedestrian imprudence” would represent a llamarse de “Policía y Tráfico Urbano”. Esta vez,
a “threat”, motivating a response from the club in la supuesta “imprudencia peatonal” representa-
the form of a regulation proposal to rationalize ría una “amenaza”, motivando una respuesta en
practices in the public space. The club’s action forma de un proyecto de reglamento para racio-
thus contributed to a modernization psychosphe- nalizar las prácticas en el espacio público. La ac-
re that would support the physical interventions ción del club contribuyó así a una psicosfera de
of urban improvements and urbanism. Repre- la modernización, apoyando las intervenciones
sented in the club since its foundation, local ur- físicas de mejoramientos urbanos y urbanismo.
ban planners would soon come to assume tasks Representados en el club desde su creación, los
of classifying beneficiaries in their proposals for urbanistas locales llegarían a asumir tareas de
urban remodeling and extension, justifying them, clasificar a los beneficiarios en sus propuestas
too, by calling for contrasting images of the “pro- de remodelación y extensión urbana, justificán-
gressive” and the “bygone”. dolas también con imágenes contrastantes de
“progreso”. y “retraso”.

urban problems hegemony psychosphere


Rotary Club Porto Alegre [Brazil] problemas urbanos HEGEMONÍA psicosfera
Rotary Club Porto Alegre [Brasil]
EIXO TEMÁTICO 1 INTRODUÇÃO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
A crise econômica e social de 1929 teve impacto
mundial, atingindo a cidade e a administração
SESSÃO temática pública de Porto Alegre. As contas municipais
tornaram-se deficitárias e a dívida do município
cresceu 52% entre 1929 e 1932, estabilizando-se
CRISE, COALIZÃO, no ano seguinte (PORTO ALEGRE, 1934, p.149). Se
a crise trouxe estagnação momentânea ao an-
URBANISMO: O PÓS-1929 damento das obras de saneamento, ao exigirem

EM PORTO ALEGRE a tomada de empréstimos externos, a munici-


palidade patrocinou, com recursos próprios, a
realização de frentes de trabalho temporário para
CRISIS, COALITION, URBANISM: PORTO ALEGRE IN THE a execução de obras viárias.
POST-1929
Trata-se de uma das ações da chamada “Bolsa do
Trabalho”, criada por decreto do prefeito Alberto
CRISIS, COALICIÓN, URBANISMO: EL POST-1929 EN
PORTO ALEGRE Bins em 31 de dezembro de 1930, que contribui-
ria para facilitar o acesso a setores afluentes da
cidade1. A Bolsa do Trabalho juntou-se a outras
iniciativas, como a doação de alimentos e o ofere-
cimento de transporte de retorno de pessoas para
localidades do interior, compondo “soluções ao
problema social que evitem o auxílio em dinheiro”
(BAKOS, 2013, p.157-158).

Em outros termos, a municipalidade optou por


“criar gastos” para o enfrentamento da crise. A
opção pela execução direta das obras viárias e,
também, pela municipalização da maioria dos ser-
viços urbanos de Porto Alegre, reflete a influência
local da noção de “gastos produtivos do Estado”,
originada na doutrina sansimonista (HARVEY,
2015, p.193). Eis aí uma justificativa ideológica,
cara àqueles administradores de orientação
positivista, para classificarem os melhoramen-
tos urbanos. Assim, a pavimentação viária seria
“parcialmente reprodutiva”, uma vez que a contri-
buição de melhoria, paga pelos proprietários de
imóveis confrontantes, cobriria uma parte dos
gastos. Por sua vez, a categoria do embeleza-
mento, englobando equipamentos como praças
e parques, de acesso gratuito para a população,
seria classificada como “não-reprodutiva”.

1. Foi o caso das obras de acesso aos balneários ao sul do mu-


nicípio e à expansão urbana no setor leste, o mais rico da cida-
16º SHCU
de. A Bolsa do Trabalho contribuiu com a terraplenagem nas
30 anos . Atualização Crítica
chamadas “faixas de concreto ”entre Tristeza e Pedra Redon-
252 da e na avenida Carlos Gomes (PORTO ALEGRE, 1931, p. 88).
Tal divisão é fundamental para examinar os me- associação de uma elite ao Estado, buscando-se
lhoramentos, serviços e atividades que poderiam aferir indícios de seu funcionamento no contexto
contar com a atuação articulada de agentes do estudado. Na terceira seção, examinaremos as
poder público e da sociedade civil. Ainda que per- bases em que se constituiu o Rotary Club de Porto
sistindo em uma continuidade administrativa que Alegre. A seguir, descreveremos campanhas do
duraria quarenta anos, ao longo da qual Porto Rotary para o tratamento dos “problemas urba-
Alegre teve apenas três chefes do poder executivo nos” que atraíam mais atenção no pós-1929. Por
(Alberto Bins, o último deles, foi intendente muni- fim, nas considerações finais, incluiremos alguns
cipal de 1927 até 1930, quando foi nomeado prefei- rebatimentos sobre o campo do urbanismo que,
to, permanecendo no cargo até 1937), a vigência então, se constituía em Porto Alegre.
da crise de 1929 viria a trazer transformações
aos arranjos do poder local. Ou seja, a crise exigiria
esforços do Partido Republicano Rio-grandense
(PRR), que, além de Porto Alegre, governava o Rio TEMAS DE CONSENSO EM PROL DE UMA HEGEMONIA
Grande do Sul, no sentido da recomposição de
sua hegemonia. Mesmo que a capacidade de arcar com o paga-
mento (ou solvabilidade) de certos melhoramen-
Outra chave de análise importante para a com- tos urbanos fosse invocada como um critério de
preensão da implementação dos melhoramen- atendimento pelos gestores positivistas de Porto
tos urbanos e do urbanismo nos é oferecida pela Alegre, há que cogitar que ela poderia ocultar o
noção de tecnoesfera, que vincula regulação da funcionamento de mecanismos político-ideo-
economia e regulação do território. Embora o lógicos, também responsáveis por clivagens da
termo tenha sido atribuído por Milton Santos a um população, conforme seu acesso a esses serviços.
período mais recente, marcado pela constituição Por sua vez, o triunfo de um individualismo bur-
de um meio técnico-científico, cuja operação tem guês, em que destacados membros da burguesia
mais necessidades de informação, entendemos gaúcha insistiam numa autoimagem de self-made
que os rudimentos dessa noção já estariam pre- men, que sobrevalorizava o mérito e o trabalho
sentes no meio técnico do período anterior, uma próprios, coloca outra questão: como evitar a
vez que a modernização da indústria e de seus competição predatória entre indivíduos e entre
suportes traduziriam os interesses das frações frações da burguesia? Em outras palavras, quais
imperialistas às quais estava subordinada, desde temas poderiam coordenar os interesses das
sua constituição, a burguesia gaúcha. frações burguesas na cidade? Uma proposta de
Molotch busca associar o poder local à definição
A utilização dessa noção também nos interessa de uma cidade enquanto economia política:
pela possibilidade de associar às transformações
do espaço material as mudanças das mentalida- o desejo de crescimento [desire for growth]
des, ou seja, uma psicoesfera, cuja criação se provê a motivação operativa mais importan-
daria em paralelo e “fortemente dominada pelo te em torno do consenso para os membros
discurso dos objetos, das relações que os movem de elites locais politicamente mobilizadas,
e das motivações que os presidem”. Assim como não importando o quanto estejam divididas
a tecnoesfera, a psicoesfera “também faz parte relativamente a outras questões, e um inte-
desse meio ambiente, desse entorno da vida, resse comum no crescimento é o principal
fornecendo regras objetivas da racionalidade ou atributo em comum entre as pessoas im-
do imaginário, palavras de ordem cuja construção portantes em uma dada localidade (MOLO-
frequentemente é longínqua” (SANTOS, 2018, p.50). TCH, 1982, p.310; tradução livre).

Poderia o poder público, sozinho, emitir tais “pa- A essência de uma localidade seria, assim, a sua
lavras de ordem” em prol de uma modernização operação como uma máquina de crescimento
que lhe interessasse? Ou precisaria do apoio de [growth machine]. É fácil constatar que os atribu-
outros agentes? E quais deles estariam prepara- tos de um indicador de “sucesso” do crescimento
dos para essa tarefa? Na próxima seção será apre- manifestaram-se em Porto Alegre previamente
sentada uma proposta teórico-metodológica de à crise de 1929: aumento da população urbana,
EIXO TEMÁTICO 1 expansão das manufaturas e da força de trabalho
operária, escala crescente do comércio ataca-
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO dista e varejista, expansão de loteamentos re-
sidenciais, aumento da densidade populacional
e níveis crescentes de atividades financeiras. É
esta “síndrome inteira de eventos associados” que
o autor citado entende pelo termo geral “cresci-
mento” (ibid., p.310).

Um pré-requisito para o crescimento é a


consciência de interesses de um coletivo em
torno do uso do solo, em que emerge a noção de
que a valorização futura de uma certa porção de
terra depende das demais em uma área maior, ou
seja, de externalidades positivas de vizinhança.
Essas condições estavam certamente presentes
em Porto Alegre, pois, já no período imperial,
proprietários de imóveis de um dos logradouros
mais afluentes da cidade conseguiram atrair
melhoramentos, explicitando o interesse em
valorizá-lo e justificando o pedido à Câmara
por ser lucrativo ao “bem público” e aos “cofres
municipais” 2. E, nas duas primeiras décadas do
século XX, várias menções nos relatórios anuais
apresentados pelo intendente ao Conselho Munici-
pal, relativas à localização da “melhor construção”
e à cooperação de seus proprietários mediante
a doação de materiais para obras viárias, tendo
o objetivo de valorizar seus imóveis, reforçavam
a emergência de um sentido de interesses em
comum em Porto Alegre.

Conforme Molotch, quando essas coalizões são


duráveis, elas passam a constituir comunidades
identificáveis, em que cada membro é membro,
também, de outros grupos que podem, até mes-
mo, competir em relação a outros interesses. O
que importa é que haja consenso em relação ao
incremento do valor do lugar de seus interesses,
independente da escala espacial alcançada, com
ênfase no valor de troca. Busca-se criar condições
que favoreçam o “clima de negócios”, com tribu-
tação favorável, treinamento da mão-de-obra e
“boas” relações com os trabalhadores, assim como

2. Conforme o requerimento de proprietários da rua Inde-


pendência, representados por João de Deos Siqueira, de
16 de janeiro de 1883 (Porto Alegre, 1996, p.122), conservado
no Arquivo Histórico de Porto Alegre, fundo “Construção e
16º SHCU
melhoramentos do município”. A Independência está na raiz
30 anos . Atualização Crítica
do setor leste, dispondo-se sobre um espigão que concentra
254 os bairros de mais alta renda da cidade.
a proteção da propriedade privada e a minimização álibis suas reivindicações e propostas, se não
de conflitos entre capital e trabalho (ibid., p.312). se substituíssem os objetivos vitais por objetos”
(ibid., p.110). A razão para esse silêncio estaria
O funcionamento dessas coalizões pode se ma- na tomada de iniciativa por parte da burguesia
nifestar em uma grande variedade de formas, “na luta pelo espaço e no espaço” (ibid., p.114) e,
buscando a promoção local e a aceitação geral portanto, em sua hegemonia.
do crescimento (ibid., p.315). O jornal local seria a
instituição com a maior responsabilidade de sus- Para Gramsci, o conceito de hegemonia significa
tentar esses “recursos cívicos”, tornando-se uma o predomínio ideológico das classes dominantes
influência reformista, uma “voz da comunidade” sobre as classes subalternas, predomínio que está
(ibid., p.316) em defesa de interesses hegemôni- assentado na aceitação, por parte dos domina-
cos3. Se isto é válido para um contexto liberal como dos, de uma concepção de mundo que pertence
o que motiva a proposição de Molotch, entende- aos seus dominadores (CARNOY, 1988). O exame
mos que o seja, ainda mais, para a atuação de um da hegemonia pede que o foco da análise seja
jornal como A Federação, do PRR, “um exemplo movido da estrutura econômica para o complexo
impressionante de imprensa doutrinária que se de relações ideológicas e culturais, para a vida
reproduziu durante a República Velha” (BOSI, 2007, espiritual e intelectual, e para a expressão política
p. 216). Além de ter servido como órgão de propa- dessas relações. Suas instituições de educação,
ganda do partido, os temas de interesse local esti- cultura e informação não devem ser vistas apenas
veram presentes em suas edições, abertas a seus como administrativas ou técnicas, uma vez que
apoiadores, inclusive de fora da esfera estatal4. estão “imbuídas de um conteúdo político”, que é a
“tentativa das classes dominantes de expandir sua
O funcionamento de máquinas de crescimento capacidade para reproduzir seu controle sobre o
pode explicar, em parte, o viés (e a iniquidade desenvolvimento da sociedade” (CARNOY, op. cit.,
decorrente) da distribuição dos melhoramentos p.96). Podemos, assim, investigar se um “aparelho”
urbanos. Mas essa noção não é suficiente para da hegemonia burguesa se constituiu no contexto
explicar o que Lefebvre (2013, p.109; tradução livre) estudado, unificando-se com a expansão daquela
chama de passividade ou “silêncio dos usuários”, classe e tendo a crise de 1929 como catalisadora.
perguntando-se “por que sofrem, sem rebelar-se,
as manipulações que terminam danificando seus Conforme Carnoy, o conceito gramsciano de he-
espaços e suas vidas cotidianas?”. Lefebvre supõe gemonia abrange tanto (i) o processo pelo qual
que seja “difícil que uma indiferença tão estranha uma parte da classe dominante, dotada de lide-
pudesse manter-se, se não fosse porque a aten- rança moral e intelectual, exerce o controle sobre
ção e o interesse dos usuários se desviassem outras frações aliadas, quanto (ii) a relação entre
para outras coisas, se não se esquivassem com as classes dominantes e as dominadas, em que
as primeiras usam sua liderança “para impor sua
visão de mundo como inteiramente abrangente
3. Cabe notar que os primeiros pesquisadores da Escola de e universal, e para moldar os interesses e as ne-
Chicago, à qual Molotch se filia, atribuíam à imprensa um
cessidades dos grupos subordinados” (ibid., p.95).
papel citadino: para Park, as “páginas impressas” imporiam
uma nova mediação que “vêm tão amplamente tomando
Entretanto, a obtenção de consentimento exige
o lugar do púlpito na interpretação da vida” (PARK, 1973,
uma atuação institucional. Das definições elabo-
p.47-48). Delas, o jornal “é o grande meio de comunicação
dentro da cidade, e é na base da informação fornecida por
radas por Gramsci para o lugar que a hegemonia
ele que se baseia a opinião pública” (ibid., p.61). Já a con- ocupa no Estado, consideramos mais aplicável
cepção de Wirth é mais aplicável a um contexto autoritário, aquela do “Estado ampliado”, abrangendo a socie-
ao reconhecer que “as massas de homens na cidade estão dade civil, e na qual “a hegemonia não é um polo
sujeitas à manipulação por símbolos e estereótipos coman- de consentimento em contraste com outro polo
dados por indivíduos operando de longe, ou invisivelmente de coerção, mas é a síntese de consentimento e
por trás dos bastidores, através do controle dos meios de repressão” (ibid., p.99). Para Gramsci, a incorpora-
comunicação” (WIRTH, 1973, p.111). ção do Estado na hegemonia burguesa advém “da
4. As buscas por palavras em A Federação foram realizadas por natureza da própria classe burguesa”, que “tinha
meio da Hemeroteca Digital Brasileira da Biblioteca Nacional. se constituído como um organismo de movimento
EIXO TEMÁTICO 1 contínuo, capaz de absorver e transformar cultu-
ralmente a sociedade inteira” (ibid., p.100).
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Esse potencial de absorção se dirigiria também
à classe trabalhadora – de modo análogo, o posi-
tivismo comtiano prometera a incorporação do
proletariado às “classes produtoras”. Para Carnoy,
é a abordagem da hegemonia e da ideologia em
Gramsci que pode explicar a falta de desenvolvi-
mento da consciência da classe trabalhadora. Tra-
va-se mesmo uma luta pela consciência, em que o
“controle da consciência é uma área de luta política
da mesma forma, ou até mais, que o controle das
forças de produção” (ibid., p.102), o que faz com
que o desenvolvimento burguês busque estender
sua hegemonia à arena da consciência. Para agir
nela, o Estado “deve ser concebido como um ‘edu-
cador’, no sentido de que ele tende precisamente
a criar um novo tipo ou nível de civilização” (ibid.,
p.103). A alusão ao “progresso moral” buscado pela
doutrina positivista e a sua ênfase na educação
para o proletariado devem ser aqui lembradas.

Dito isso, como vinha sendo buscado efetivamente


o consentimento? Com a proclamação da Repú-
blica, os positivistas brasileiros já se mostravam
preocupados com uma luta pela consciência.
Tanto que, para José Murilo de Carvalho (1990,
p.55), “a falta de envolvimento real do povo na
implantação do regime [republicano] leva[ria] à
tentativa de compensação, por meio da mobili-
zação simbólica”. Contudo, “a pequena densidade
histórica do 15 de novembro (uma passeata militar)
não fornecia terreno adequado para a germinação
de mitos” (CARVALHO, op. cit., p.57), o que pode
explicar por que a escolha de um herói para a
República tenha recaído sobre Tiradentes.

Para que o homem fosse transformado em mito,


Carvalho enumera as “condições de aceitação do
herói republicano como herói nacional: a elimina-
ção da imagem jacobina, radical” (ibid., p.69) de
um Tiradentes que deveria ser visto como “herói
cívico-religioso, como mártir, integrador, portador
da imagem do povo inteiro” (ibid., p.70). Com sua
figura despojada, aproximada à de Cristo, “todos
podiam identificar-se [...] Era o totem cívico. Não
antagonizava ninguém, não dividia as pessoas e as
classes sociais, não dividia o país, não separava o
16º SHCU presente do passado nem do futuro” (ibid., p.68).
30 anos . Atualização Crítica
Entendemos que Tiradentes deveria se transfor-
256 mar, assim, em um homem pobre.
No Rio Grande do Sul, uma visão burguesa da po- sentação de seus interesses. Antes de 1930 ha-
breza seria associada à virtude de figuras “patrió- via uma convivência das burguesias industrial e
ticas”, como Borges de Medeiros, que governou o comercial na Associação Comercial e no Rotary
Estado durante a maior parte da República Velha. Club (PESAVENTO, 1988). Com forte presença de
Afastado em 1928, ele seria “glorificado pela sua industriais e do “alto comércio”, o Rotary, no en-
dignificante pobreza” e lembrado pelo partido por tanto, não se restringia ao empresariado. Também
sua “modéstia” e “desambição”, conforme os ter- era grande a adesão de profissionais (engenheiros,
mos empregados em vários artigos publicados em médicos e advogados), vinculados ao poder pú-
A Federação, a partir de 1929. Buscava-se assim blico e/ou dedicados à prática privada. Assim, a
mitificar a existência do ex-presidente do Estado, composição do clube em Porto Alegre não diferiu
em uma suposta frugalidade de sua propriedade substancialmente daqueles fundados poucos
rural onde, conforme seus correligionários, so- anos antes no Rio de Janeiro e em São Paulo.
brevivia do suor de seu trabalho e sem usufruir de Conforme Margareth Pereira (2007, p.16), o Rotary
riquezas acumuladas em sua longa vida pública. Club do Rio de Janeiro reuniu representantes
de empresas estrangeiras, a elite cosmopoli-
Na vigência da crise de 1929, mesmo “a confissão ta local e o “meio já altamente profissionalizado
de pobreza” mostrada pelas contas nacionais, dos quadros administrativos já envolvidos com a
“longe de ser humilhante, constitui[ria] um ato de temática urbana do ponto de vista técnico”. Em
heroísmo do povo brasileiro”, conforme a “notável São Paulo, compunham o clube “representantes
entrevista concedida pelo ministro Oswaldo Ara- da vida econômica da cidade e das organizações
nha” (ARANHA, 1931, p.3). O político utilizava habil- civis de ação filantrópica” (PEREIRA, op. cit., p.18).
mente a palavra “crise” para conotar o que Edel- E, em Porto Alegre, é notável que, quando da fun-
man (1977, p.45; tradução livre) lembra ser “uma dação do clube, o próprio diretor de A Federação,
ameaça ou emergência que as pessoas precisam Othelo Rosa, que também era deputado estadual,
encarar juntas”, sugerindo “uma necessidade de integrasse sua diretoria (ROTARY..., 1928a, p.5).
unidade e sacrifício comum”. Na verdade, a “união”
no enfrentamento da crise serviria como pretexto Com base nos registros publicados em A Fede-
para barrar eventuais conflitos que adviriam da ração, constatamos que o Rotary Club de Porto
tomada de consciência de grupos que, sofrendo Alegre foi fundado no mesmo mês em que a cidade
passivamente há anos, poderiam passar a definir recebeu a visita de Alfred Agache, com vistas à
sua situação como crítica. possível elaboração de um plano para sua remo-
delação – a reunião de instalação ocorreu doze
Em várias matérias, o jornal do partido no poder dias antes de sua chegada5. Benno Hofmann, en-
também mitificaria a pobreza ao associá-la a figu- genheiro responsável pelo primeiro uso local do
ras tão distintas entre si quanto intelectuais, pro- neologismo urbanisme em 1925 (ROVATI, 2001),
fessores, desembargadores aposentados e imi- viria a ingressar no Rotary em 1932. Marcava-se
grantes europeus recém-chegados. A divulgação assim a presença dos urbanistas da “primeira
de uma ideia de pobreza enquanto virtude seria, as- linhagem”, formada na engenharia, e que se propu-
sim, integradora, perpassando as classes sociais. nha a reformar e regulamentar a cidade existente
Contudo, a simples carência de meios de subsis- (LEME, 2001, p.77-78). Ela estava representada
tência não autorizaria a nomear qualquer indivíduo no clube em São Paulo, cuja primeira diretoria
como pobre. Para isso, a elite local também teria “já sinalizava claramente a importância que foi
um papel a cumprir, conforme veremos a seguir.

5. De modo análogo ao Rio de Janeiro, portanto, onde a


discussão sobre a vinda de um urbanista para a elaboração
O ROTARY CLUB DE PORTO ALEGRE ENQUANTO de um plano de remodelação obteve o apoio do Rotary Club
e influiu na vinda de Agache em 1927 (REZENDE, 2012, p.77).
“APARELHO” DE HEGEMONIA
Consideramos provável que o urbanista ainda estivesse
em Porto Alegre em 21 de novembro de 1928, dia em que
Não obstante seu crescimento, o empresariado teria ocorrido reunião do Rotary, mas não encontramos
industrial de Porto Alegre apenas tardiamente registro – e, infelizmente, não localizamos o livro de atas
organizou-se de forma autônoma para a repre- das reuniões daquele período inicial do clube.
EIXO TEMÁTICO 1 dada às questões urbanas ao colocar na sua pre-
sidência um dos três mais importantes nomes
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO do urbanismo no Brasil: Victor da Silva Freire”
(PEREIRA, op. cit., p.18).

Entretanto, três engenheiros e membros do Ro-


tary desde seu início – João Lüderitz, Frederico
Dahne e Fernando Azevedo Moura – tinham inte-
resses mais claros relacionados ao desenvolvi-
mento urbano de Porto Alegre. Respectivamente,
vinculavam-se à Escola de Engenharia de Porto
Alegre, à empresa que realizou a maior extensão
de pavimentação viária na cidade, entre 1925 e
1936, incluindo as “faixas de concreto”, e à empresa
Azevedo Moura & Gertum, que viria a ser uma das
mais importantes construtoras, tendo entre seus
clientes preferenciais os próprios sócios do clube.
Outros engenheiros viriam a associar-se, também
com atuações no serviço público e na docência,
combinando-as com interesses no mercado de
terras e de construções.

Assim como Azevedo Moura, os demais sócios,


experientes e líderes em seus respectivos campos
de atuação, eram protagonistas das transfor-
mações pelas quais a cidade passava, seja em
decisões sobre investimentos públicos, seja na
aplicação de capitais privados. A adesão ao Rotary
Club envolveria o recrutamento de apenas um
membro de cada atividade socialmente identifica-
da e classificada, de modo a evitar a competição
ou concorrência interna ao grupo (PEREIRA, op.
cit.). Se o objetivo estatutário do clube era compor
uma amostra dos diversos ramos de atividade na
cidade, verifica-se logo que o resultado não foi
uma amostra aleatória de homens brancos e ricos,
mas uma congregação de “líderes da sociedade”,
tanto que o próprio Alberto Bins era membro do
Rotary. A propósito, chama atenção, nos relatos
das reuniões, que sua função pública e atuação
político-partidária não fossem lembradas e, na
lista dos setores representados, Bins ocupas-
se a classificação correspondente a “cofres de
aço – fabricação”, enquanto proprietário de uma
metalúrgica.

A Tabela 1 apresenta os agrupamentos que reali-


zamos das classificações dos sócios do Rotary.
Vários agentes públicos eram membros, parte
16º SHCU deles ingressando depois de 1933, enquanto os
30 anos . Atualização Crítica
demais tiveram sua classificação alterada para
258 “governo”. A diminuição do número de sócios na
maior parte das demais classificações acom- morador da Estrada da Pedreira, atual avenida
panhou a queda do número total de sócios. Mas 24 de Outubro, via que foi dotada, em 1929, de
alguns setores de serviços, que podemos definir uma “faixa de concreto”, conforme o prefeito, “por
como modernos, caso dos transportes e comu- solicitação” dos proprietários.
nicações e das finanças e seguros, mantiveram
seu número ou ganharam membros. A propósito, As demandas dos proprietários podiam, assim,
ressaltamos que a associação entre profissionais ser feitas diretamente, nas reuniões do clube.
e o capital financeiro era evidente, tanto que os O mesmo valia para seus interesses enquanto
dois sócios advogados (no ramo de “direito”) em empresários: as reivindicações pela melhoria
1936 informaram como seu endereço comercial do transporte de seus funcionários eram ende-
instituições bancárias estabelecidas na cidade. reçadas ao diretor da empresa concessionária
dos bondes, que também era sócio do clube.
Portanto, o registro da atuação do Rotary Club,
no período observado, bem como sua associa-
Grupos de classificações 1933 1936 variação ção à prefeitura, leva-nos a qualificá-lo como
comércio 9 7 -2 um fenômeno de coalizão de elites compatível
indústria 7 5 -2 com a que Molotch conceitua em sua “máquina
de crescimento”, talvez com um funcionamento
transporte/comunicações 5 5 0
ainda mais integrado ao Estado do que seria de
direito 4 2 -2
supor da atuação daquela instituição em um re-
engenharia/arquitetura 4 2 -2 gime mais próximo de uma democracia liberal,
finanças-seguros 4 5 1 como a norte-americana6.
medicina 4 3 -1
O papel que o clube poderia assumir em Porto
agropecuária 3 1 -2
Alegre foi sugerido no discurso de James Roth,
imprensa 3 1 -2 comissário especial do Rotary Internacional, en-
associações 2 1 -1 viado para sua inauguração, e publicado em A
governo 0 6 6 Federação (ROTARY..., 1928b, p.3). Defendendo o
total 45 38 -7 “bem da sociedade em que [se] vive, começando
por trabalhar em seu próprio benefício”, um pri-
Tabela 1: Número de sócios conforme grupos de “classi- meiro consenso deveria ser obtido entre os sócios
ficações” do Rotary Club. Fonte: listas com os nomes dos do clube, para depois, lograr um consenso mais
sócios, suas “classificações” e seus endereços comerciais
amplo na sociedade e no Estado. Um objetivo
e residenciais, conservadas pelo Rotary Club de Porto
Alegre; elaboração dos autores.
ideológico – dito “espiritual” – estava claro: compor
a opinião “harmônica” de uma elite e disseminá-la
por “caminhos misteriosos”, ou nem tanto, já que
a sua propagação, por meio de campanhas, viria
Na atuação do Rotary, não havia mostras de a ser bem conhecida. Por sua vez, essas “ondas
conflitos entre o público e o privado, e sim uma invisíveis”, estando a braços com a ação do poder
conjugação de interesses. Ainda que o prefeito público, seriam, na verdade, bem concretas.
Bins não tenha mencionado em seus relatórios
anuais os nomes dos proprietários de imóveis Chama atenção que uma divisão semelhante à
que solicitaram a pavimentação das “faixas de proposta gramsciana de hegemonia se eviden-
concreto”, inferimos que uma demanda do Rotary
relativa ao policiamento dos balneários ao sul da
6. As vantagens dessa associação seriam muitas: conforme
cidade associava-se à execução contemporâ-
Logan e Molotch (2007), o Estado pode ajudar a coordenar
nea da pavimentação da via que lhes deu acesso, os papeis dos membros das máquinas de crescimento; a
refletindo os interesses da burguesia que tinha atuação junto ao governo municipal pode influenciar os
propriedades naquelas localizações. Por sua vez, níveis mais altos de decisão sobre investimentos públicos;
ao examinar os endereços residenciais dos sócios e a ação em conjunto com a prefeitura ainda permite contar
do Rotary, não nos passou despercebido que um com recursos humanos e materiais da máquina pública, e
empresário poderoso como A. J. Renner fosse reforçar a aparência de civismo em suas campanhas.
EIXO TEMÁTICO 1 ciasse na microescala do Rotary Club, cujo modus
operandi buscaria, primeiro, a criação de uma
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO opinião consensual interna à elite, para depois ir-
radiá-la visando um consenso (ou consentimento)
mais amplo. O primeiro seria relativamente fácil
de obter, em um contexto no qual a “união dos
rebanhos” (a expressão era utilizada por Oswaldo
Aranha) das distintas frações burguesas seguisse
um interesse comum na valorização e na promo-
ção de seus interesses na cidade, mesmo que
competissem em outros campos7.

Contudo, o segundo momento da hegemonia pede


o consentimento dos dominados, ou seja, sua
aquiescência a uma visão de mundo que não é
sua. Para tanto, caberia atenção à “vida moral”,
citada pelo representante do Rotary presente
à inauguração do clube em Porto Alegre, como
uma das categorias dos “fenômenos” que teriam
o exemplo a seguir do primeiro clube, fundado
nos Estados Unidos em 1905. Sua experiência
pessoal era de mudança do modo de vida, uma
vez que os fundadores do clube haviam nascido
em pequenas cidades do interior e, tendo migrado
para Chicago, buscariam formar uma pequena
“comunidade” dentro da “grande cidade” para se
auxiliarem mutuamente (PEREIRA, op. cit.). Um
desejo de “reforma social” estaria presente, ins-
pirado pela própria situação da cidade, em crise
econômica e social quando da fundação do clube:
conforme escreveu seu mentor, Paul Harris,

havia milhares de mendigos e a miséria é


castigo incitante [...] Os famintos precisa-
vam comer, mas era necessário lembrar que
trabalhassem pois a ociosidade gerava ví-
cios. Chicago não poderá jamais esquecer
os dias posteriores à sua primeira Exposi-
ção Mundial [de 1893] – o auge da miséria
patenteou-se em todos os pontos de vista.
Foi sentido violentamente um pânico finan-
ceiro que varreu todo o país... Nos distritos
e bairros pobres a evidência da necessidade

7. O termo é contemporâneo à criação da Aliança Liberal,


com vistas a conduzir Getúlio Vargas à presidência da Re-
pública. Aranha, como secretário de Estado de Vargas, foi
responsável pelo Primeiro Congresso das Municipalidades
do Rio Grande do Sul, realizado em julho de 1929. O evento,
16º SHCU
portanto, foi uma busca de conciliação de partidários do
30 anos . Atualização Crítica
governo e da oposição, daí o objetivo de “unir os rebanhos”
260 (ABREU, 1996, p.87).
e do sofrimento despertavam compaixão... prestação de serviços de higiene, policiamento e
(HARRIS, 1939, apud PEREIRA, op. cit., p.5). instrução. E o Rotary, em reunião, considerou que

Para entender o papel que o Rotary Club viria a as- ninguém mais apto a informar sobre a con-
sumir no contexto estudado, é conveniente seguir dição de indigência dos moradores das di-
a definição que faz Edelman (1964, apud MOLOTCH, versas zonas da cidade do que a autoridade
1976) de uma “política ‘simbólica’, compreendendo policial, que, dadas as suas funções, vive
as ‘grandes questões’ da moralidade pública e das em contato constante com a população [...]
reformas simbólicas” (MOLOTCH, op. cit., p.313). A sociedade [SPAAN], somente auxiliará,
É essa “política simbólica” que se destaca nas pois, quem dela se quiser valer e a autorida-
manchetes e nos editoriais dos jornais, enquanto de policial somente concederá carteira de
as questões distributivas dos melhoramentos identidade e atestado de indigência a quem
urbanos, que mais interessariam ao nível local lhos pedir. Assim, nem constrangimento à
da política, ficam de fora do debate público. Tal liberdade de mendigar, nem imposições da
“política simbólica”, que já tinha visibilidade em A autoridade pública, nem reclusões forçadas
Federação, incluiria os temas dos quais o Rotary [...] (ROTARY..., 1929b, p.4).
Club iria se ocupar – e sua opinião seria difundida
Pode parecer que a menção à “liberdade de men-
pelo mesmo jornal.
digar” ainda fosse um reflexo da orientação posi-
tivista “liberal” quanto à atividade laboral. Mas isso
não quer dizer que a repressão não fosse exercida,
AS CAMPANHAS DO ROTARY CLUB NO PÓS-1929 tanto que a polícia passaria a mirar a chamada
“falsa mendicância”. Em reunião com a presença
do desembargador Florêncio de Abreu, chefe de
Cabe aqui examinar a aderência das campanhas
polícia do Estado (e concunhado de Vargas),
que o clube viria a desenvolver às ações do poder
público em Porto Alegre. Desde logo, dois temas ficou resolvido que o Rotary, por intermédio
passaram a ter desenvolvimentos paralelos: a de sua diretoria, combinasse a sua ação
“solução do problema da mendicância” e a re- com a da chefia de polícia [...] A propósito,
modelação do Campo da Redenção, de modo a o desembargador [...] disse que a polícia
torná-lo um parque urbano (ROTARY..., 1929a, p.4). não pode reprimir a mendicidade. A par-
Alberto Bins anunciaria o interesse do Rotary no tir do século XX, as legislações dos povos
parque, cuja implantação deveria seguir o proje- cultos deixaram de puni-la em si mesma,
to de Agache (PORTO ALEGRE, 1929). Como era para encará-la somente sob o aspecto de
obra “suntuária” e “não-reprodutiva”, não deveria sua nocividade, no que concerne às suas
consumir os escassos recursos públicos, que relações com o crime – nocividade que se
seriam mais adequadamente empregados em restringe aos que, aptos para o trabalho, são
outros melhoramentos urbanos. Neste sentido, refratários à lei do trabalho. A atribuição da
caberia ao Rotary realizar ações de captação de polícia, assim, neste particular, cinge-se
recursos para a implantação do parque. a reprimir os falsos mendigos [...] em cujo
meio germina, em sua maior parte, a vege-
Quanto ao “problema da mendicância”, esse tema tação daninha da criminalidade dos grandes
estaria, a princípio, fora da alçada do poder públi- centros urbanos [...] (AUXÍLIOS..., 1931, p.3).
co, cuja orientação, em sintonia com o “verdadeiro
programa social dos proletários” (COMTE, 1973, Passados dois anos do início da crise, a presença
p.92), centrava-se em seu “progresso moral”, por de mendigos teria crescido, especialmente no
meio da educação positiva, e no “progresso mate- centro da cidade. É de se imaginar que a mendi-
rial”, pelo trabalho regular. Entretanto, a atuação cância fosse então o principal “problema urbano”
da Sociedade Porto-Alegrense de Auxílio aos Ne- na área central de Porto Alegre, uma vez que a
cessitados (SPAAN), criada em 1929 por iniciativa moradia de pobres no centro já decrescera pela
do Rotary, viria a combinar-se à ação do Estado. longa repressão aos cortiços e pelo desalojamen-
Cabe lembrar que no mesmo ano o município ce- to provocado pela abertura de novas avenidas. Em
lebrou convênio com o governo estadual para a todo caso, permanecia vigente um pensamento
EIXO TEMÁTICO 1 que associava a pobreza à criminalidade. Assim,
nos termos do que foi discutido em reuniões do
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO Rotary, a tarefa classificatória da polícia viria a se
sofisticar, discriminando: (i) os “falsos mendigos” (a
serem reprimidos); (ii) os “pedintes ‘acidentais’” ou
os “sem trabalho”; e (iii) os “verdadeiros mendigos”.

O chefe de polícia já manifestara sua expecta-


tiva de que o principal apoio à SPAAN viesse do
comércio. Assim, uma lista de empresas que se
associaram a ela (A SPAAN..., 1931, p.5), reunindo
bancos nacionais e estrangeiros, companhias
imobiliárias e, especialmente, o “alto comércio”
de Porto Alegre, é reveladora do desejo de criar
um “bom clima de negócios” pela retirada dos
mendigos do espaço público. Apesar da ação da
SPAAN, ou por causa dela, foi constatado novo
aumento na mendicância. Passou-se a solicitar
aos seus associados “que essas casas [comer-
ciais] sejam assinaladas, a fim de evitar a fre-
guesia dos mendigos” (A REUNIÃO..., 1933, p.4).
Acreditava-se, assim, que os mendigos poderiam
ser convencidos a não pedir esmolas diretamente
nos estabelecimentos; e, se classificados pela
polícia como “verdadeiros mendigos”, recorreriam
disciplinadamente à instituição criada para be-
neficiá-los. Afinal, a SPAAN havia sido concebida
como uma medida julgada positiva para eles.

A abordagem de “problemas urbanos” por um viés


de “política simbólica” complementava-se nas
reuniões do Rotary com discussões sobre ativi-
dades que traziam algum incômodo à vizinhança.
O trânsito de automóveis, contudo, não era visto
propriamente como um “incômodo”. Havia pou-
ca contestação quanto ao comportamento dos
condutores, um sinal de que os sócios, até por
sua alta posição social e grande poder aquisitivo,
colocavam-se do lado dos automobilistas. O tema,
que era tratado no âmbito de uma “Comissão de
Urbanismo”, ganhou destaque, a partir de 13 de
julho de 1932, com a sua renomeação como “Sub-
comissão de Policiamento e Tráfego Urbano”8. A
partir daí, cresceria a atenção do clube para os

8. Conforme ata com a mesma data, conservada no Rotary


Club de Porto Alegre. A classificação do presidente da co-
missão era “equipamento ferroviário – carros e locomotivas”
e as dos demais membros, “construções – arquitetura”,
16º SHCU
“acessórios para autos”, “jornalista” e “indústria de automó-
30 anos . Atualização Crítica
veis – varejo”. A ênfase estava no transporte motorizado,
262 portanto.
pedestres, sendo frequente apontá-los como Não encontramos indícios de que tenham sido
responsáveis pelos acidentes de trânsito. Esta levantados esses motivos pela prefeitura. Eles
mensagem fica clara na fala de A. J. Renner, que, poderiam incluir a precariedade ou inexistência
na reunião de 3 de agosto de 1932, de passeios (que levariam os pedestres a cami-
nharem no leito das ruas, para fugir das poças
comunicou à Casa observações que fez a d’água e da lama), a frequência insuficiente ou
respeito das causas que dificultam o tráfe- irregular dos bondes (o que repercutiria em um
go de veículos pela rua São Pedro, no bairro comportamento “imprevisível” dos usuários, ao
de São João [sic], e chamou, também, a correr sobre a via de modo a embarcar nos ve-
atenção para a FALTA [sic] de cuidado dos ículos em movimento), a inexistência de áreas
colegiais quando transitam pela referida via suficientes para dispersão dos estudantes ao
pública, falta de cuidado essa que constitui saírem das escolas (e a consequente “invasão”
constante ameaça de desastres9. da via pública) etc.

A atenção justificava-se, pois, como as burguesias


industrial e comercial estavam bem representa-
das entre os membros do Rotary, nele convergiam
os interesses pela facilidade de circulação, que
certamente incluíam os seus próprios desloca-
mentos cotidianos entre casa e trabalho. Em
uma representação desses deslocamentos na
Figura 1, sob a forma das “linhas de desejo” de
cada sócio, evidencia-se a sobreposição com as
localizações dos maiores investimentos em pavi-
mentação realizados pela municipalidade entre
1928 e 1936, ou seja, entre a área mais dinâmica
do centro da cidade e o bairro Moinhos de Vento
e suas cercanias, onde a maioria trabalhava e
residia, respectivamente.

Entretanto, a “imprudência dos pedestres” repre-


sentava uma “ameaça”. Para combatê-la, repre-
sentantes do Rotary colaboraram com a prefeitura
na elaboração de um regulamento do tráfego de
pedestres. O projeto do regulamento foi apresen-
tado em reunião do clube, em 15 de agosto de 1933,
sendo um exemplo eloquente de uma tentativa de
racionalizar as práticas dos pedestres no espaço
público, disciplinar seu comportamento e torná-lo
previsível aos condutores de veículos.

Contudo, não há nesse projeto de regulamento


nenhum dispositivo sobre a construção ou con-
servação de vias para os pedestres. Tampouco
conseguimos encontrar, nas atas das reuniões
do clube, considerações sobre as causas que
poderiam motivar o comportamento “imprudente”
de pedestres e escolares, que não culpassem sua
“índole” (ou outra categoria tão imprecisa quanto).

9. Transcrição de ata com a mesma data, conservada no


Rotary Club.
EIXO TEMÁTICO 1
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO

Figura 1: À esquerda, localização dos endereços comer-


ciais e residenciais dos sócios do Rotary Club de Porto Ale-
gre em 1936 (círculo vermelho=comercial; círculo azul=re-
sidencial); à direita, representação da área pavimentada
por seções da área urbana e suburbana entre 1928 e 1936
(vermelho escuro=máximo; azul escuro=mínimo). Fonte:
lista de sócios conservada pelo Rotary Club e relatórios
anuais do intendente/prefeito; elaboração dos autores.

Assim, o regulamento miraria apenas causas “mo-


rais” dos comportamentos desaprovados. Eles
poderiam ser mudados, mas pensamos que difi-
cilmente as ações educativas ou mesmo punitivas
levariam a um resultado em curto prazo na arena
da consciência. A própria semântica de campanha
denota que se esperaria uma longa duração des-
sas ações, de modo que a assertividade e a reite-
ração de informações levasse à transformação
dos indivíduos – no sentido de que os pedestres
passariam a circular conforme “regras” e os men-
digos deixariam “voluntariamente” os passeios do
centro, por exemplo. Estava manifesto o desejo
de tornar racionais, ou melhor, de automatizar as
práticas dos usuários do espaço público.
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
Não buscando algum “progresso material”, na for-
264 ma de infraestrutura adequada para os pedestres,
o Rotary se manteria fiel à orientação positivista acentuavam-se as diferenças sociais, e poucos
do “progresso moral”, realizando a partir de 1935 poderiam beneficiar-se do aumento da velocidade
uma “campanha pró-segurança do trânsito de proporcionado pela posse de um automóvel. Se a
pedestres”, que se estendeu, pelo menos, até maioria não tiraria proveito, deveria, ao menos,
1937. Não apenas mediante “conscientização”, mas aceitar as mudanças. Como os instrumentos de
incluindo coerção. A Federação considerou “uma intervenção do Estado na economia poderiam
acertada providência da Diretoria de Tráfego” da não ser suficientes para obter um consenso, o
prefeitura o início de um “serviço de fiscalização Rotary Club se engajou em campanhas que pre-
do trânsito de pedestres”, alinhado à campanha; tenderiam “ferir a consciência coletiva”, conforme
novamente, prenunciava-se a positividade de foi afirmado desde sua fundação.
uma medida de fiscalização, antevendo-se que
“será, certamente, recebida com simpatia pela
população” (UMA ACERTADA..., 1935, p. 1). Para tal
“simpatia” deveria contribuir, certamente, a difu- CONSIDERAÇÕES FINAIS
são da campanha por meio dos estudantes, públi-
co-alvo prioritário das ações do Rotary. Por meio Os desdobramentos da crise de 1929 contribuíram
deles, não apenas uma campanha de trânsito, mas para que, em Porto Alegre, uma coalizão entre elite
opiniões mais abrangentes compreendidas em e poder público tomasse para si o tratamento de
uma ideologia que propunha “defender o bem da “problemas urbanos” que, grosso modo, poderiam
sociedade em que vive, começando por trabalhar ser cobertos pelo rótulo de urbanismo. Dentro
em seu próprio benefício” poderiam se dissemi- dele, a categoria da circulação designa as ati-
nar, não mais se restringindo à elite do clube10. vidades urbanas que mais necessitariam dessa
coalizão, conforme protagonizada pelo Rotary
Mesmo que não fosse suficiente, a fiscalização Club e pela prefeitura.
do trânsito de pedestres era considerada uma
medida que se fazia necessária, conforme A Fe- Havia a preexistência de uma comunidade de
deração, “principalmente em alguns pontos de interesses em torno da valorização da terra ur-
grande aglomeração do centro da cidade. Evitar bana, e o crescimento da cidade, em um sentido
aglomerações, que dificultam o trânsito nos pas- abrangente de valorização do âmbito local, seria
seios das ruas principais, já será um benefício um tema agregador das distintas frações burgue-
importante [...]” (UMA ACERTADA..., 1935, p. 1). O sas para a construção de uma hegemonia. Para
combate às aglomerações também era uma me- além das campanhas do Rotary Club de Porto
dida que se alinhava a um desejo de “bom clima de Alegre, o consentimento das demais frações de
negócios”, por dois motivos. Deveria, obviamente, classe seria buscado, por exemplo, por ações e
buscar dar fluidez ao trânsito de pedestres, mas discursos de valorização da propriedade da mo-
também evitar a concentração de pessoas no radia – Bins e Renner, a propósito, estavam entre
espaço público, coibindo manifestações em um os principais propagandistas da casa própria para
momento politicamente sensível, que antecedeu os trabalhadores.
a decretação do Estado Novo.
A propaganda incluiu a ação na psicoesfera, de
O crescimento dos fluxos de circulação e o au- modo que atributos de racionalidade, como o
mento da velocidade no trânsito eram, portanto, pensamento prospectivo, a disciplina e o auto-
inexoráveis, atingindo a todos e impondo uma nova controle, materializados em uma poupança para
racionalização ao espaço urbano. Entretanto, a aquisição da casa própria, seriam responsáveis
por converter os trabalhadores em pequenos
“capitalistas”, dignos da proteção do Estado e,
10. Como exemplo da preocupação do Rotary Club com a for-
também, da consideração dos primeiros urbanis-
mação de lideranças, no ano anterior, o clube criara um prê-
mio “a ser conferido, nos últimos anos das escolas públicas
tas. É o que se depreende da representação que
de Porto Alegre, àquele aluno que os seus próprios colegas E. Pereira Paiva e L. Ubatuba de Faria fizeram, em
escolhessem, por meio de eleição, como o seu ‘melhor com- uma proposta contemporânea de um novo bairro
panheiro’, isto é, possuidor dos melhores sentimentos, por- operário, para “massas homogêneas, relativamen-
tador de melhores qualidades morais” (O PRÊMIO..., 1934, p.4). te estáveis dentro dos limites restritos de suas
EIXO TEMÁTICO 1 aspirações”, com seus “meios de vida assegura-
dos, garantidos pelas leis sociais” e capazes de
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO contribuir para o financiamento público, pois “são
os pequenos contribuintes das municipalidades
que pagam no total quantias avultadas e certas”
(FARIA; PAIVA, 1938, p.114).

Por outro lado, nessa mesma obra, ao descre-


ver uma proposta de remodelação de uma área
inundável e habitada por trabalhadores pobres,
em que caberia, portanto, eliminar uma exter-
nalidade negativa de vizinhança, os urbanistas
nomearam uma “população doente e miserável” e
a associaram à “insalubridade dessa zona [que] é
um perigo para o resto da cidade” (FARIA; PAIVA,
op. cit., p.158).

O contraste é notável: um projeto de moderni-


zação seria acompanhado e reforçado por uma
ansiedade que emanaria dos “problemas urbanos”.
O trabalho destes urbanistas viria a juntar-se a
outras descrições contemporâneas que destaca-
vam as oposições da estrutura espacial de Porto
Alegre: a salubridade dos bairros em sítios ele-
vados (mesmo que ainda carentes de melhora-
mentos) versus os “miasmas” das áreas precárias
e inundáveis; a estabilidade de um sentido de
comunidade dos bairros industriais (não obstante
a frugalidade da vida cotidiana) versus a desordem
das áreas ocupadas por uma população “doente
e miserável”; as atitudes e os comportamentos
dóceis e previsíveis dos trabalhadores nas fábri-
cas (conforme idealizados) versus as “ameaças”
da imprevisibilidade das “classes perigosas”. Em
suma, e para o senso comum, o contraste entre
o “progresso” e o “atraso”.

Assim, mesmo as famílias humildes seriam ditas


prósperas se conseguissem poupar uma parte de
seus (parcos) salários para adquirir terrenos tidos
como salubres e lá construir suas casas. Não im-
portaria que elas fossem modestas e faltassem à
sua localização diversos melhoramentos urbanos
presentes nas áreas mais centrais. Os atributos
de racionalidade necessários para essa conquista
seriam sobrevalorizados por um projeto político
de modernização que mirava os operários. E,
uma vez “integrados” às “classes conservadoras”,
dificilmente contestariam a própria hegemonia
16º SHCU segundo a qual seu ingresso havia sido aceito,
30 anos . Atualização Crítica
ainda enquanto operários ou, talvez, na nascente
266 classe média.
Na crise econômica e social do pós-1929, os dois REFERÊNCIAS
momentos da noção gramsciana de hegemonia –
obtenção de consenso entre frações burguesas ABREU, L.A. Getúlio Vargas: a construção de
e consentimento de frações dominadas – viriam um mito (1928-30). Porto Alegre: PUCRS, 1996.
a refletir-se no funcionamento de coalizões de
ARANHA, O. “A notável entrevista concedida
elites e do Estado, como aquela que examinamos.
pelo ministro Oswaldo Aranha ao ‘Correio do
A promoção de uma modernização não caberia,
Povo’”. A Federação. Porto Alegre: A Federa-
assim, apenas ao Estado, mas seu papel na lide- ção, 17jun.1931, p.3.
rança das diversas frações que compunham uma
hegemonia poderia evitar eventuais disputas em “A REUNIÃO de ontem no Rotary Clube [sic]”.
outros terrenos, condensando um interesse co- A Federação. Porto Alegre: A Federação,
mum em um tema sobre o qual o Estado estaria 23mar.1933, p.4.
cada vez mais capacitado para agir: a produção
“A SPAAN - Continuam ativamente os trabalhos
do espaço urbano.
para a sua definitiva organização”. A Federa-
ção. Porto Alegre: A Federação, 05set.1931, p.5.

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PORTO ALEGRE. Relatório apresentado ao Exmo.


Sr. General José Antônio Flores da Cunha, D. D.
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16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
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EIXO TEMÁTICO 1 RESUMO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Este artigo explora questões metodológicas,
buscando avançar nos estudos de reconstru-
SESSÃO temática ção de fragmentos espaciais da cidade de Cam-
pinas-SP, na segunda metade do século XIX. O
recurso da reconstrução espacial é abordado
HISTORICIDADE IN LOCO : como uma possibilidade para se enxergar a his-
toricidade urbana. Nesse sentido, parte-se da
UMA ANÁLISE DOS IMÓVEIS análise do patrimônio imobiliário de um membro
da aristocracia local, Joaquim Policarpo Ara-
URBANOS DO BARÃO DE nha, o Barão de Itapura, entendido na pesquisa
como um agente modelador do espaço urbano.
ITAPURA - UM AGENTE Utiliza-se do estudo de caso a fim de explorar
como esse agente se apresenta como fazen-
MODELADOR DA CIDADE DE deiro, acionista de capitais privados e empresá-

CAMPINAS (1875-1902) rio e como sua atuação no mercado imobiliário


se apresenta espacialmente. Identifica-se, por-
tanto, suas propriedades urbanas, a partir de
análise e cruzamento das seguintes fontes pri-
HISTORICITY IN LOCO: AN ANALYSIS OF URBAN
márias: análise de autos de Inventários, Livros
PROPERTIES IN BARÃO DE ITAPURA- A SHAPER OF
de Lançamentos de Impostos Prediais, Almana-
URBAN FORM IN THE CITY OF CAMPINAS (1875-1902)
ques locais, Livros de Emplacamentos para a ci-
dade de Campinas e cartográficas históricas. A
HISTORICIDAD EN EL LOCO: UN ANÁLISIS DE LAS
espacialização foi elaborada a partir do cruza-
PROPIEDADES URBANAS EN BARÍO DE ITAPURA- UN
mento de dados textuais contendo informações
AGENTE MODELADOR EN LA CIUDAD DE CAMPINAS
de endereço com uma base cartográfica. A es-
(1875-1902)
pacialização dos dados permite a compreensão
de como um agente modelador e suas condutas
MENEGALDO, Ana Beatris Fernandes se refletem no desenvolvimento do espaço ur-
bano.
Doutoranda em Arquitetura e Urbanismo; PUC- Campinas
anabeatrisfmenegaldo@hotmail.com

ESPACIALIZAÇÃO PRÉDIOS URBANOS CAMPINAS-SP


PEREIRA, Renata Baesso
BARÃO DE ITAPURA
Doutora em Arquitetura e Urbanismo e professora;
PUC-Campinas
renata.baesso44@gmail.com

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

270
ABSTRACT RESUMEN

This article explores methodological issues that Este artículo explora cuestiones metodológicas
seek to advance in the reconstruction studies of que buscan avanzar en los estudios de recons-
space fragments in the city of Campinas-SP, in trucción de fragmentos espaciales en la ciudad
the second half of the 19th century. The resour- de Campinas-SP, en la segunda mitad del siglo
ce of spatial reconstruction is approached as a XIX. El recurso de reconstrucción espacial se
possibility to see urban historicity. In this sense, it aborda como una posibilidad para ver la histori-
starts from the analysis of the real estate herita- cidad urbana. En este sentido, partimos del análi-
ge of a member of the local aristocracy, Joaquim sis del patrimonio inmobiliario de un miembro de
Policarpo Aranha, the Baron of Itapura, unders- la aristocracia local, Joaquim Policarpo Aranha,
tood in the research as a modeling agent of the el barón de Itapura, entendido en la investigaci-
urban space. It uses the case study in order to ex- ón como un agente modelador del espacio urba-
plore how this agent presents himself as a farmer, no. Utiliza el estudio de caso para explorar cómo
private equity shareholder and entrepreneur and este agente se presenta a sí mismo como agricul-
how his performance in the real estate market is tor, accionista de capital privado y empresario y
presented spatially. Therefore, its urban proper- cómo se presenta espacialmente su desempeño
ties are surveyed, from the analysis and crossing en el mercado inmobiliario. Por lo tanto, sus pro-
of the following primary sources: analysis of In- piedades urbanas son encuestadas, con base
ventory records, Land Tax Release Books, local en el análisis y el cruce de las siguientes fuentes
Almanacs, License plates for the city of Campi- primarias: análisis de registros de inventario, li-
nas and historical cartographic. Spatialization bros de liberación de impuestos sobre la tierra,
was elaborated from the crossing of textual data almanaques locales, placas de matrícula para la
containing address information with a cartogra- ciudad de Campinas y cartográfica histórica. La
phic base. The spatialization of data allows the espacialización se elaboró a ​​ partir del cruce de
understanding of how a modeling agent and its datos textuales que contienen información de di-
conduct are reflected in the development of ur- rección con una base cartográfica. La espaciali-
ban space. zación de los datos permite comprender cómo un
agente de modelado y su conducta se reflejan en
el desarrollo del espacio urbano.
SPATIALIZATION URBAN BUILDINGS CAMPINAS-SP
BARON OF ITAPURA
ESPACIALIZACIÓN EDIFICIOS URBANOS CAMPINAS-SP
Barón de Itapura
EIXO TEMÁTICO 1 INTRODUÇÃO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
O presente trabalho explora questões metodológi-
cas, buscando reconstruir fragmentos do espaço
SESSÃO temática da cidade de Campinas-SP, na segunda metade
do século XIX. Entendemos essa reconstrução
espacial como uma possibilidade real de se en-
HISTORICIDADE IN LOCO : xergar a historicidade in loco através do recurso
da espacialização de dados.
UMA ANÁLISE DOS IMÓVEIS Corrêa (2019, p.51) aponta que a possibilidade de
URBANOS DO BARÃO DE se acompanhar o processo de ocupação de um
território, depende da informação contida nos
ITAPURA - UM AGENTE documentos analisados, que devem ser avaliados
quanto à potencialidade de serem espacializados,
MODELADOR DA CIDADE DE ou seja, a possibilidade de se extrair informações
de textos escritos, e situá-los geograficamente,
CAMPINAS (1875-1902) resultando em análises visuais e gráficas, per-
mitindo enxergar a historicidade do documento,
podendo ser interpretado além das palavras.
HISTORICITY IN LOCO: AN ANALYSIS OF URBAN
PROPERTIES IN BARÃO DE ITAPURA- A SHAPER OF Parte-se da identificação de um agente modela-
URBAN FORM IN THE CITY OF CAMPINAS (1875-1902) dor do espaço urbano da Campinas, SP: Joaquim
Policarpo Aranha, o Barão de Itapura. Membro da
HISTORICIDAD EN EL LOCO: UN ANÁLISIS DE LAS aristocracia local, representante da elite, possui-
PROPIEDADES URBANAS EN BARÍO DE ITAPURA- UN dor de título e patente nobiliárquica, construiu sua
AGENTE MODELADOR EN LA CIUDAD DE CAMPINAS fortuna a partir do acúmulo de capital proveniente
(1875-1902) das culturas açucareira e cafeeira, se apresen-
tando como fazendeiro, empresário e acionista
de capitais privados.

A metodologia parte do levantamento de suas


propriedades urbanas, e da análise de autos de
inventários, e dos Livros de Lançamentos de Im-
postos Prediais (sobre o pagamento da Décima
Urbana) junto a Coletoria de Rendas da Cidade
de Campinas. A espacialização foi construída
a partir do cruzamento de dados textuais, que
contém informações de endereços como uma
base cartográfica histórica.

A espacialização como recurso de estudo


histórico: possibilidades e perspectivas -
METODOLOGIA PARA ANÁLISE DE PROPRIEDADES
uRBANAS DO BARÃO DE ITAPURA EM CAMPINAS

O trabalho articula os universos do Historiador,


16º SHCU dispondo das fontes documentais primárias como
30 anos . Atualização Crítica
recurso, e do Arquiteto e Urbanista, que domina
272 a manipulação cartográfica e a visão espacial,
complementando as análises históricas. Tanto como Quantificação e Equalização dos imóveis
a cidade como a arquitetura devem ser enten- urbanos e contempla a análise das fontes pri-
didas como construções sócio-históricas que márias nas quais as propriedades urbanas são
envolvem relações diversas e assumem sentidos listadas. Ainda durante esta etapa, para que não
culturais complexos, exigindo para a sua análise haja repetição dos imóveis, é realizada a equaliza-
uma multiplicidade de escalas de observação, sem ção dos mesmos, de acordo com as mudanças de
se definir previamente hierarquias entre macro e emplacamentos ocorridas na cidade de Campinas.
microfenômenos (REVEL, 1996, p. 191). As fontes que norteiam o desenvolvimento desta
etapa são: Livros de Lançamentos de Impostos
Entende-se que a percepção espacial atribuída
Prediais, Autos de Avaliação de Inventários e a
ao arquiteto/urbanista deve ser conduzida e di-
coleção de Livros de Emplacamentos para a cida-
recionada como complementar às pesquisas his-
de de Campinas. Devido à especificidade de cada
tóricas, abrindo perspectivas que o dado textual
imóvel aqui tratado, em alguns casos é necessário
bruto muitas vezes não se encarrega de fazer. A
recorrer a documentos complementares, como
possibilidade de visualizar o dado espacialmente
ações de divórcio, por exemplo.
permite que processos sociais, camadas históri-
cas e fenômenos econômicos sejam expostos e A segunda etapa contempla a Espacialização dos
assimilados a partir de novas perspectivas: Imóveis urbanos. Com os imóveis devidamente
listados, quantificados e equalizados procede-se
Espacializar dados na escala do edifício não
à espacialização dos mesmos, ou seja, lança-se
é uma tarefa fácil, implica riscos de impre-
os dados de endereços e dimensões dos imóveis
cisão, mas permite entrever aspectos invi-
em uma cartografia, possibilitando compreender
síveis do processo, seus ritmos, dinâmicas
e lógicas. Permite entrever os proprietários sua localização em relação a outros elementos
dos imóveis, a socio-topografia urbana e as do espaço urbano. Nessa etapa o cruzamento
hierarquias entre espaços mais e menos se dá entre os dados extraídos dos documen-
valorizados. (BUENO, 2016 , p.13) tos primários e a Planta Cadastral do município
de Campinas, de 1929. Nesta cartografia estão
Alinhado às pesquisas que trabalham com a elabo- indicadas as testadas dos lotes existentes.
ração de um SIG histórico, como a de Bueno (2016),
o presente artigo procura elucidar como o levan- Com relação a espacialização dos imóveis, utiliza-
tamento de dados compilados de documentação mos um processo regressivo afim de comprovar
primária, podem ser cruzados e espacializados, a localização dos mesmos. A base utilizada para
auxiliando na análise do espaço urbano. Este arti- equalização foi a planta de Campinas de 1929, pois
go, faz parte de estudos, desenvolvidos no nosso nela aparece a numeração referente ao emplaca-
grupo de pesquisa, que objetivam compreender mento de 1922, e estão demarcadas as testada dos
a história da urbanização de Campinas-SP, no lotes. Através dessa comprovação foi realizada
século XIX, como um processo de produção social uma sobreposição cartográfica para a planta do
da cidade. Amplia-se, dessa maneira, a perspec- município de 1900, ou seja uma regressão cro-
tiva de análise das intervenções de determinados nológica da cartografia. Esse processo se fez
agentes modeladores da forma urbana1. necessário, porque ainda que a planta de 1900
não apresente a divisão das quadras em lotes,
A metodologia construída para analisar das pro- ela concentra a representação de todo o espaço
priedades urbanas do Barão de Itapura se estrutu- urbano em uma única folha, permitindo enxergar
ra em três etapas: A primeira etapa denomina-se o conjunto completo do imóveis.

A terceira etapa é a de Identificação visual dos


1. Vasconcelos (2009, p.11) esclarece que o agente modela-
imóveis urbanos. A etapa anterior permite que se
dor conduz suas ações, atuando diretamente no processo
de construção urbana. Na presente pesquisa, o conceito
aponte com precisão a localização dos imóveis
de agente modelador da forma urbana define e esclarece dentro do tecido urbano da cidade de Campinas,
o papel do Barão de Itapura, como membro de uma elite e a produção desse material permite que se cruze
que intervém de maneira significativa na formação e no com acervos fotográficos revelando caracterís-
agenciamento do espaço urbano de Campinas. ticas desses imóveis.
EIXO TEMÁTICO 1 A CIDADE DE Campinas-SP na segunda metade do
século XIX: um breve balanço historiográfIco
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO

O enriquecimento exponencial da cidade de


Campinas, no século XIX, se inicia com a cultura
açucareira, e se amplia com plantio do café, vol-
tados para o mercado externo. A partir de 1852 o
número de fazendas produtoras de café supera
o de engenhos de açúcar 2. Campinas ocupou
posição privilegiada no movimento de expansão
da produção cafeeira no Oeste Paulista, o que
viabilizou o progresso material de seu espaço ur-
bano: a crescente ocupação da cidade demandou
investimentos para a melhoria das condições de
vida, bem como incentivou o desenvolvimento
de diversas atividades (BIANCONI, 2002, p.1). O
crescimento referente a produção agrária tem um
impacto na reorganização espacial de Campinas,
sedimentando um estrato social elitista que deixa
de atuar apenas como a aristocracia rural, pre-
sente desde a formação embrionária da cidade.

Esse perfil da elite local é traduzido através de


condecorações Imperiais oferecidas aos senhores
possuidores de grandes propriedades. Eram eles
os detentores de grandes fortunas, os maiores
proprietários rurais, os que se preocupavam em
ocupar cargos que afirmassem prestígio e re-
conhecimento político, arbitravam decisões, se
engajavam em ações sociais, em festividades
religiosas e detinham o principal número de ações
de companhias privadas.

A reorganização espacial do município de Cam-


pinas, na segunda metade do século XIX, é uma
resultante de projetos individuais de membros
dessa elite, Nesse grupo, destaca-se, o Barão de
Itapura3, como figura que agencia o espaço ur-
bano de Campinas. Foi proprietário das fazendas
Atibaia, Jaguari, Chapadão, Bom Retiro, Recreio
e Santa Thereza. De acordo com Bianconi:

2. Bianconi, 2002, p.7. Segundo Petrone (1968,p.46) em


1854, Campinas conta com 44 engenhos de açúcar e 177
fazendas de café.

3. Nascido em 1809, contraí matrimônio em 1843, com Libâ-


nia de Souza Aranha, sua prima de segundo grau. A opção
16º SHCU
pelo matrimônio consanguíneo reforça uma nítida estratégia
30 anos . Atualização Crítica
de fortalecimento, manutenção e multiplicação do patrimô-
274 nio herdado (BACELLAR, 1997, p. 143. Ver Menegaldo, 2019.
Era um dos lavradores com maior volume Os dados extraídos dos Almanaques (quadro 01)
de produção de Campinas (entre 25 e 30 mil demonstram a sua atuação em diversas atividades
arrobas), em 1872. Há registros na Coletoria na cidade de Campinas que revelam transições
de Rendas de Campinas sobre compras de de investimentos de seu capital como alternativa
escravos efetuadas por Joaquim Policar- para ampliação do montante patrimonial, refleti-
po Aranha, sendo 57 escravos ao longo do das espacialmente em melhoramentos urbanos
ano financeiro de 1874-1875, e 14 escravos para o município. O alto excedente do capital
ao longo de 1877-1878. Recebeu o título de gerado pela lavoura cafeeira e a diversificação
Barão de Itapura em 1883. (BIANCONI, 2002, dos investimentos de fazendeiros financiam a
p.64) urbanização de Campinas e sua infraestrutura.

QUADRO 1- ATUAÇÃO DO BARÃO DE ITAPURA EM CAMPINAS SEGUNDO ALMANAQUES (1872-1886)


Joaquim Policarpo Aranha- Barão de Itapura

1872 Provedor da Irmandade do Sacramento do Rosário


Proprietário de prédios
Fazendeiro
Lavrador de Açúcar
Acionista da Companhia Paulista de Estradas de Ferro
1873 Proprietário de prédios
Lavrador
1878 Eleitor especial da Paróquia de Santa Cruz
1879 Lavrador, Capitalista, Proprietário.
Proprietário de prédios.
1886 Acionista da Companhia Campineira de Carris de Ferro
Acionista em Empréstimos Municipais

O processo de industrialização da cidade é viabi- exigidas pelas construcções modernas4.


lizado por agentes, que dirigem o excedente do
capital cafeeiro para outras atividades. O espaço Acompanhando as grandes mudanças econô-
urbano é o campo de atuação e de produção des- micas, sociais e políticas que ocorrem em nível
ses agentes. A propriedade de imóveis urbanos, nacional, Campinas, na segunda metade do século
tendo por finalidade a locação, era uma atividade XIX, imprime, um ritmo próprio no desenvolvimen-
exercida por diversos agentes econômicos de to urbano. A acumulação dos capitais advindos do
Campinas, cuja atuação se estendia a vários ou- café acelera, amplia e reestrutura a ocupação do
tros setores (BIANCONI, 2002, p.63). O Almanaque solo urbano, modernizando seus equipamentos e
de 1879, em um breve artigo sobre a municipali- serviços e, em consequência, mudando o estilo
dade de Campinas, traz que: de vida da maioria dos seus moradores, atraindo
novos habitantes (LAPA, 1996, p.20). Assim, o in-
Seus edifícios mais notáveis pela vastidão
vestimento imobiliário é uma atividade crescente,
e bellezas de architectura, são a Matriz
em que a aquisição de imóveis urbanos passa a
Nova, a casa do collegio Culto à Sciência,
ser mais uma alternativa rentável. Até meados
a Santa Casa de Misericordia, o hospital
do século XIX, as construções particulares não
da Sociedade Portugueza de Beneficen-
chegariam a ocupar uma posição de destaque
cia, a estação da Companhia Paulista e o
Theatro S. Carlos, quasi todos constru- no meio urbano. A escassez de infraestrutura, a
ídos por iniciativas partículares, e mui-
tos prédios pertencentes em sua maio- 4. Almanach Popular para o ano de 1879. Carlos Ferreira e
ria à lavradores e capitalistas que os Hypólito da Silva (org.) Campinas: Typ. da Gazeta de Cam-
fizeram levantar com todas as bellezas pinas, 1878, p.06.(grifo das autoras)
EIXO TEMÁTICO 1 pobreza do centro urbano e o interesse em apli-
car recursos no mundo rural, não favoreciam o
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO aparecimento de construções mais importantes.
(BATTISTONI FILHO, 1996, p.35)

Mercado Imobiliário enquanto recurso


de articulação dos agentes modeladores -
QUANTIFICAÇÃO E EQUALIZAÇÃO DOS
IMÓVEIS URBANOS

De acordo com Botelho (2007, p.98) a produção ha-


bitacional, nos últimos anos do século XIX, poderia
ser caracterizada por atender consumidores de
alta renda ou proprietários imobiliários rentistas
que encomendavam moradias para aluguel. Essas
atividades imobiliárias, resultavam das orienta-
ções dos excedentes de capital, advindos do setor
de exportação da produção de café.

Acredita-se que a atuação de fazendeiros no


ramo imobiliário esteja ligada à diversificação
de investimentos e geração de rendas, além das
edificações destinadas à habitação própria, pois
nesse espaço urbano em expansão, a locação
de imóveis poderia se tornar mais uma atividade
lucrativa (BIANCONI, 2002, p.67).

Para o conjunto de imóveis do Barão de Itapura,


analisou-se os dados levantados nas seguintes
fontes: Os livros da Coletoria de Rendas de Cam-
pinas5 , considerando os anos de 1875, 1883 e 1885;
os Autos de Avaliação de Inventários (compre-
endendo a descrição de bens de raiz ou prédios
urbanos), contemplando o inventário amigável
do Barão de Baronesa de Itapura de 1889 e seu
Inventário post mortem de 19026 . Nesse sentido
delimita-se o recorte temporal do trabalho (de
1875 a 1902). A análise e o cruzamento desses da-
dos culminou em uma relação extensa de imóveis.

Durante a análise desses documentos três situa-

5. Localizados no Centro de Memória da Unicamp-CMU,


série anual com informações do recolhimento de impostos
de propriedades urbanas, proprietários, logradouro, e o
16º SHCU valor do imposto cobrado.
30 anos . Atualização Crítica
6. Documentos pertencentes ao Tribunal de Justiça de São
276 Paulo, Comarca de Campinas, arquivados junto ao CMU.
ções foram encontradas: a repetição de imóveis Sales de Oliveira Junior, entre os anos de 1891
em diferentes fontes (repetição essa do nome e 1892. De acordo com Lapa (1995, p. 34), esse
da rua e do número do mesmo); o aparecimen- emplacamento estava sendo realizado como um
to do imóvel em uma única fonte; e a repetição “ordenamento identificador das moradas bem
de imóveis situados em uma mesma rua, porém como dos espaços públicos”.
com numeração distinta. Essas situações levam
à hipótese de que como os documentos são de O Emplacamento vigente na cidade de Campinas,
datas diferentes e como a cidade de Campinas atualmente, corresponde ao adotado na elabo-
sofreu mudanças nos emplacamentos de seus ração do Plano de Avenidas de Prestes Maia, em
imóveis urbanos, seria necessário compatibili- 1929. Dessa maneira, o terceiro emplacamento,
zar as informações . A fim de evitar a repetição correspondente ao ano de 1922, é àquele que está
na contagem total dos imóveis, recorreu-se a representado na elaboração da primeira Planta
série de Livros de Emplacamento para a cidade Cadastral de 1929, elaborada pelo Engenheiro
de Campinas7. Explicando sobre a natureza dos Jorge de Macedo Vieira. Trata-se de um levan-
livros de Emplacamento Salgado e Guazzelli (2014), tamento que precede a implantação do Plano de
explanam que na cidade de Campinas houve: Prestes Maia para Campinas. (KROGH, 2012, p.20).

[...] quatro emplacamentos que a cidade Em função da crise de 1929, associada aos dé-
havia recebido [...], o ‘inicial’, o de 1893, o de ficits da produção do café, as oportunidades de
1922 e o de 1929. Presume-se que o empla- investimentos imobiliários na cidade de Campinas
camento de 1893 tenha sido realizado para crescem, acelerando o processo de urbaniza-
organizar a cobrança de taxas relativas aos ção. Nesse momento, a atividade imobiliária já
serviços da primeira rede de abastecimento está consolidada como alternativa mais rentável
de água e de canalização de esgoto que a se comparada à agrária, levando a contratação
cidade de Campinas recebeu, entre 1891 e do Engenheiro Francisco Prestes Maia para a
1892. (SALGADO, 2014 p.05) execução do Plano de Melhoramentos Urbanos
de Campinas.
Segundo as autoras, os quatro emplacamentos,
correspondem a momentos no qual, a organização
e controle dos prédios urbanos implantados em
Campinas são relevantes para a municipalidade. As propriedades urbanas de Joaquim
O Emplacamento inicial, trazido nos livros como
Policarpo Aranha: O Barão de Itapura
“Anterior”, dialoga com a numeração levantada em
outra fonte documental consultada: os Livros de
Lançamento de Impostos Prediais. Dessa forma, Ainda segundo Bianconi (2002, p.64) em 1874, o
ao que tudo indica, o primeiro emplacamento da Barão de Itapura, possuía oito imóveis, é um dos
cidade é realizado como um controle da tributa- maiores lavradores de Campinas, com um volume
ção e recolhimento de impostos pela Intendência de produção de café entre 25 e 30 mil arrobas.
Municipal. Através da análise de cinco fontes primárias ela-
boramos um quadro apresentando o montante de
O segundo emplacamento, realizado a partir de
imóveis do Barão de Itapura:
1893, é feito após a implantação dos primeiros
serviços de coleta de Esgoto e Abastecimento
domiciliar de água na cidade de Campinas, a cargo
da Companhia Campineira de Águas e Esgotos,
efetuado sob a direção do Engenheiro Francisco

7.Série, composta por 07 livros, que cataloga as ruas da


cidade de Campinas em ordem alfabética trazendo em
forma de tabela uma equivalência para as quatro mudanças
ocorridas nos números cadastrados para os lotes e imóveis.
Arquivada no Arquivo Municipal de Campinas.
EIXO TEMÁTICO 1
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO

QUADRO 02- PRÉDIOS URBANOS DO BARÃO DE ITAPURA EM CAMPINAS (1875-1902)


FONTES CONSULTADAS EQUALIZAÇÃO DE IMÓVEIS

LOGRADOURO 1875 1883 1885 1889 1902 1922 1929


(Imposto (Imposto (Imposto (Inventário) (Inventário) (Emplacamento
Predial) Predial) Predial) (Levantamento que atual)
consta na Planta
Cadastral)

Rua Alecrim 01 -- -- -- -- 09 44
(atual Rua Quatorze de
Dezembro) -- 02 02 02 -- 02 141

Rua do Caracol -- -- -- Descrição Descrição +- 1820


(atual Rua Benjamin Cons- sem número sem
tant) número

Rua do Comércio -- 37 37 -- 47 47 1656


(atual Rua Doutor Quirino)
-- 39 39 39 49 49 1644

Rua Direita 27 -- -- -- -- 37 1184


(atual Rua Barão de Ja-
guara)

-- 49 49 49 61 95 624

-- 51 51 51 63 97 614
Rua Regente Feijó ou Rua
da Matriz Nova -- 53 53 53 65 99 612
(atual Rua Regente Feijó) -- 55 55 55 69 103 596

-- 57 57 57 67 101 602

-- 59 59 59 71 105 592

Rua do Góes 15 15 15 11 11 29 106


(atual Rua César Bier-
renbach)

Rua do Imperador -- 12 12 12 12 28 1099


(atual Rua Marechal Deo-
doro) -- -- -- -- 14 14 1189

-- -- -- -- 16 16 1179

-- -- -- -- 18 18 1173

22 -- -- -- -- 38 1705
Rua General Carneiro
(atual Rua Luzitana) -- 26 26 -- -- 78 1427

-- -- -- 37 -- 69 1456

-- 84 84 -- -- 158 947

115 123 123 -- -- 149 1132

-- -- -- Descrição 70 144 1047


sem número

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

278
30 -- -- -- -- 32 1739
Rua Osório
(atual Rua General Osório) 32 -- -- -- -- 34 1747

-- 44 44 44 -- 46 1649

-- 46 46 46 46 48 1643

-- -- -- -- 48 50 1637

-- -- -- -- 110 130 1260

Rua da Ponte -- 40 40 Descrição -- 144 463


(atual Rua Major Sólon) sem número

-- 42 42 Descrição -- 146 453


sem número

Rua do Rosário -- 106 -- Descrição -- 132 655


(atual Av. Francisco Gli- sem número
cério)

Rua Santa Cruz -- 19 19 19 -- 135 171

Rua São João -- 90 90 -- -- 118 177


(atual Rua Visconde do Rio
Branco) -- 92 92 -- -- 122 159

A partir da construção do quadro 02, nota-se um que sendo senhores e possuidores de um


crescimento na aquisição de imóveis do Barão de Ita- prédio dito a Rua de Santa Cruz, freguesia
pura entre os anos de 1875 e 1902. No ano de 1875, ele deste nome nesta Comarca, tendo actu-
paga impostos referentes a 7 imóveis. Em 1883 esse almente numero 19, o qual divide-se tanto
número aumenta para 22 imóveis, se mantendo na pelo lado direito como esquerdo com pro-
tributação realizada em 1885. Em seu inventário ami- priedades de Domingos Balthazar Gomes
gável, de 1889, são avaliados 23 imóveis. No Inven- e pelos fundos com terrenos que foram de
tário de 1902 são listados 20 imóveis em Campinas. Jose Raggio da Cunha Lobo, prédio este que
entre outros bens reservam valorizado em
Alguns fatores devem ser considerados para a dimi- quinhentos mil reis [...]passará dito pré-
nuição de imóveis entre os anos de 1889 e 1902 . Há dio a menor Argentina Aranha, orphã que
a possibilidade desses imóveis terem sido doados foi exposta e tem sido tratada na casa dos
em vida aos herdeiros do Barão de Itapura, não doadores, e no caso de proceder a morte
constando em seu inventário post mortem. É o caso desta, a donataria poderá dispor do prédio
do imóvel localizado na Rua Santa Cruz, número doado10. (CMU, 1900, p. 11 v)
dezenove. Esse imóvel é tributado nos anos de 1883,
1885, e em 1889 sendo avaliado como “Uma casinha Outro possível fator para a diminuição da quanti-
sita a rua da santa cruz avaliada por quinhentos mil dade de imóveis de 1889 para 1902 é a venda dos
reis com terreno sito entre as ruas de Santa Cruz, mesmos pelo Barão de Itapura, haja visto que o
largo deste nome e Dona Libânia [...] 8 ”. Em 1902 não investimento no mercado imobiliário é apenas
há menção do mesmo. Uma busca mais detalhada um dos setores rentáveis de investimento do
em outros documentos do Barão de Itapura, eviden- capitalista.
cia que esse imóvel foi doado pelo proprietário, em
1900, para Argentina Aranha9: Destaca-se que a natureza dos Livros de Impos-
tos Prediais é distinta daquela observada nos
E pelos outorgantes doadores Barão e Ba- inventários consultados. Esses livros trazem uma
roneza de Itapura me foi dito e declarado listagem simples a partir do nome do proprietário,
constando, apenas, o logradouro com a numera-
ção do imóvel e o valor de sua tributação anual.
8. CMU. Sessão Tribunal de Justiça de SP, Comarca de Cam-
pinas. Inventário Amigável de 1889 Ofício 02, Caixa 236
Processo 5623 p.04.
10. CMU. Sessão Tribunal de Justiça de SP, Comarca de Cam-
9. Argentina Aranha é tutorada e suposta filha de Joaquim pinas. Ação de divórcio de Argentina Aranha e Manoel Lopes
Policarpo Aranha, o Barão de Itapura. Fortuna 1909 Ofício 01, Caixa 555 Processo 10335, p.11v.
EIXO TEMÁTICO 1 Já os autos dos inventários apresentam um maior
nível de detalhes, com relação a esses imóveis,
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO trazendo dados que auxiliam na localização dos
mesmos (como, por exemplo, se está localizado
em uma esquina ou não), o nome de confrontan-
tes, informações sobre o imóvel (se é uma casa
ou apenas um terreno), o logradouro dos mesmos
e o valor do bem avaliado no inventário.

Durante o levantamento dos imóveis observou-


-se certas especificidades, com relação a cada
imóvel, pois ocorre a seguinte situação: A fonte
consultada traz a descrição do imóvel, o valor de
sua avaliação ou do imposto tributado sobre o
mesmo, porém não há indicação da numeração do
imóvel. Nesse caso, fez-se necessário proceder
ao cruzamento com outras fontes, buscando simi-
laridades de valores de avaliação, e de indicações
de localização. Um exemplo prático para essa si-
tuação é o imóvel localizado junto à Rua Luzitana,
número 70. Em 1902, no inventário, a descrição
de avaliação desse imóvel corresponde a:

A caza e terreno da rua General Carneiro


numero 70 divizando pelo lado de baixo
com prédios de herança e [...] De Joaquim
Moreira de Rocha Brito, fundo das cazas de
herança de Constantino Lopes Rodrigues
e pelo lado cima com Francisco de Paula,
doze contos de reis11. (CMU, 1902, p.15v)

No inventário de 1889, não existe uma descrição


que apresente esse imóvel com a sua localização
precisa. Porém, há uma descrição de um imóvel
que, apesar de não indicar a numeração, informa
que está localizado à Rua Luzitana avaliado em
mesmo valor: “Comprenhendendo o prédio em
que tem um portão que corresponde a rua Lu-
zitana, avaliado por doze contos de reis” (CMU,
1889, p.08). Dessa forma, relaciona-se as duas
descrições, aferindo se tratar do mesmo imóvel.
O Quadro 03, apresenta informações complemen-
tares referentes aos prédios urbanos do Barão de
Itapura no município de Campinas:

16º SHCU
11. CMU. Sessão Tribunal de Justiça de SP, Comarca de
30 anos . Atualização Crítica
Campinas. Inventário do Barão de Itapura de 1902 Ofício
280 04, Caixa 244 Processo 5899, p.15v.
QUADRO 03- INFORMAÇÕES COMPLEMENTARES DOS PRÉDIOS URBANOS DO BARÃO DE ITAPURA EM CAMPINAS
(1875-1902)
LOGRADOURO NÚMERO TIPO DE CONFRONTANTES OBSERVAÇÃO EXTRAÍDO
IMÓVEL DE
Rua Alecrim 01 Casa -- -- Imposto
(atual Rua Qua- Predial de
torze de Dezem- 1875
bro)
02 -- A casa situada a rua do Alecrim e respecti- Inventário
vo terreno, sobre numero dois, avaliada por de 1889
Casa e oito contos de reis
Terreno de
esquina Antonio Carlos de Almeida Casa na rua Quatorze de Dezembro, 02, Inventário
Bicudo (lado de cima) e nos esquina com a rua Doutor Quirino, divisan- de 1902
fundos com a rua General do pelo lado de cima com Antonio Carlos
Carneiro de Almeida Bicudo e nos fundos com a rua
General Carneiro;

Rua do Caracol -- Terreno Imóveis da rua General Osório Um terreno sito a rua do caracol ate en- Inventário
(atual Rua Benja- contrar em parte com o terreno das casas de 1889
min Constant) anteriores avaliado por quatro contos de
reis

Manoel Jacinto de Faria (lado Terreno a rua Benjamin Constant, divisan- Inventário
de cima) Barão de Ibitinga do pelo lado de cima com Manoel Jacinto de 1902
(lado de baixo), Marcio Pes- de Faria, pelo lado de baixo com o Barão de
soa, Francisco Lapa, Artur Ibitinga e fundos com Marcio Pessoa, Fran-
de Rocha Brito, João G. e cisco Lapa, Artur de Rocha Brito, João G. e
Bernardo Francisco Ferreira Bernardo Francisco Ferreira
(fundos)

Rua do Comércio 47 Casa Antônio Alvaro de Souza A caza a mesma rua, numero 47 divizando Inventário
(atual Rua Doutor Camargo (lados e fundos) aos lados com a herança e com Antonio de 1902
Quirino) Alvaro de Souza Camargo e fundos com
o mesmo, a quantia de seis contos e qui-
nhentos mil reis

-- Uma casa situada a rua Doutor Quirino, Inventário


39 Casa sobre numero trinte e nove de 1889

Orosimbo Maia (lado de cima), A caza da rua Doutor Quirino, numero 49 Inventário
Jacinto Carneiro (fundo) divizando pelo lado de cima com Orosimbo de 1902
Maia , por outro lado com a herança e fun-
dos com Jacinto Carneiro, vinte e quatro
contos de reis

Rua Direita 27 Casa -- -- Imposto


(atual Rua Barão Predial de
de Jaguara) 1875
EIXO TEMÁTICO 1
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO

49 -- A casa situada a rua do Regente Feijo sob Inventário


Casa e numero quarenta e nove avaliada por dois de 1889
Terreno contos de reis

Herança (cima e fundos) e A caza e o terreno na mesma rua de nume- Inventário


Belluomini & Irmãos (lado de ro 61 divizando pelos lados de cima e dos de 1902
baixo) fundos com terrenos de herança e lado de
baixo com A. Belluomini & Irmãos a quantia
de quatro contos e quinhentos mil reis

51 -- Outra dita na mesma rua sob numero cin- Inventário


Casa e coenta e um avaliada por dois contos de de 1889
Terreno reis

Herança (pelos lados e fun- A caza e o terreno na mesma rua numero Inventário
dos) 63 divizando com prédios da herança pelos de 1902
lados e fundos a quantia de quatro contos e
Rua Feijó ou rua quinhentos mil reis com que sae.
da Matriz Nova
(atual Rua Regen- 53 Casa e -- Outra dita na mesma rua sob numero cin- Inventário
te Feijó) Terreno coenta e tres avaliada por dois contos de de 1889
reis
Herança (pelos lados e fun- A caza e o terreno na mesma rua numero Inventário
dos) 65, divizando pelos lados e fundos com de 1902
prédios da herança a quantia de quatro
contos e quinhentos mil reis, com que a
margem se sae.

55 Casa e -- Por outra dita situada na mesma rua sob Inventário


Terreno numero cincoenta e cinco, avaliada por de 1889
dois contos de reis.

Herança (pelos lados e fun- A caza e terreno a rua Regente Feijó nume- Inventário
dos) ro 69 divizando pelos lados e fundos com de 1902
predios da herança , a quantia de quatro
contos de reis.

57 Casa e -- Por duas ditas na mesma rua com terrenos Inventário


Terreno comum sob números cincoenta e sete e de 1889
cincoenta e nove avaliadas por dois contos
de reis

Herança (pelos lados e fun- A caza e o terreno da mesma rua numero 67 Inventário
dos) divizando pelos lados e fundos com predios de 1902
da herança a quantia de quatro contos e
quinhentos mil reis.

59 Casa e -- Por duas ditas na mesma rua com terrenos Inventário


Terreno comum sob números cincoenta e sete e de 1889
cincoenta e nove avaliadas por dois contos
de reis

Thomaz Pereira da Fonseca A caza e terreno a rua Regente Feijó , nu- Inventário
(lado de cima), Herança (lado mero 71, divizando pelo lado de cima com de 1902
de baixo e fundo) Thomaz Pereira da Fonseca, pelo lado de
baixo e fundos em predios de herança a
quantia de dois contos e quinhentos mil
reis

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

282
Rua do Góes 15 Casa de -- A casa situada na rua do goes esquina da Inventário
(atual Rua César esquina lusitana avaliada por dez contos de reis. de 1889
Bierrenbach)
Joaquim Moreira de Rocha A caza da rua do Goes numero 11, esquina Inventário
Bruto (lado) herança (fundos) da rua General Carneiro, divizando pelo de 1902
lado com Joaquim Moreira de Rocha Brito,
que em herança em fundos com prédios
de herança a quantia de desoito contos de
reis.
12 Palacete -- O Palacete dito a rua do Imperador, hoje Inventário
Rua do Impe- (casa) e rua Marechal Deodoro com o respectivo de 1889
rador Chácara terreno até o córrego, compreendendo de
(atual Rua Mare- todos os moveis e utencilios existentes
chal Deodoro) dentro daquele, com exclusão somente dos
especialmente avaliados, avaliado por cem
contos de reis.

Divisando com rua Dona Libâ- Da chácara verba abaixo da avenida Itapura Inventário
nia, Antônio Almeida Valente, com todas as benfeitorias existentes, divi- de 1902
Orosimbo Maia, Barão de zando com rua dona Libania que a herança
Ibitinga, Francisco de Paula de Antonio de Almeida Valente, Orosimbo
Camargo e a Companhia de Maia, Barão de Ibitinga, Francisco de Paula
Gás Camargo e a Companhia Gas, a quantia de
sessenta contos de reis e sae.

14 Casa (so- Herança (por um lado), Dou- Casa (sobrado) à rua Marechal Deodoro, Inventário
brado) tor Ricardo Daunt (outro lado) 14 – por um lado faz divisa com outra casa de 1902
viela do Sacramento (fundos) do mesmo e a outra divisa com a esposa
do Dr. Ricardo Daunt e faz fundos a viela do
sacramento

16 Casa -- -- Inventário
de 1889

Herança (lados e fundos) A caza a rua Marechal Deodoro numero 16, Inventário
divizando pelos lados e fundos com prédios de 1902
da herança, doze contos de reis, se sae

18 Casa -- A casa velha situada a rua Marechal Deo- Inventário


doro, esquina da rua do Rosario, hoje Fran- de 1889
cisco Glicerio, compreendendo os terrenos
que ficão a quem e além desta até o córre-
go, avaliada por tres contos de reis

Herança (lados e fundos) e A caza na mesma rua Marechal Deodoro, Inventário


por outro lado está desapro- numero 18, divizando pelo lado e fundos de 1902
priado para abertura da Av. com prédios de herança e por outro lado
Francisco Glicério em terreno que esta desapropriado para
passagem da rua Francisco Glicerio, dois
contos de reis, se sae.

22 Casa -- -- Imposto
Predial de
Rua Luzitana 1875
(antiga Rua Gene-
ral Carneiro) 26 Casa -- -- Imposto
Predial de
1883

37 Casa -- A casa situada na mesma rua sobre nume- Inventário


ro trinta e sete que serve de escriptorio, de 1889
avaliada por dois contos de reis

84 Casa -- -- Imposto
Predial de
1883

115 Casa -- -- Imposto


Predial de
1875

70 Casa e Herança (lado de baixo), Joa- A caza e terreno da rua General Carneiro Inventário
Terreno quim Moreira de Rocha Brito numero 70 divizando pelo lado de baixo de 1902
(lado de baixo), Constantino com prédios de herança e de Joaquim
Lopes Rodrigues (fundo) e Moreira de Rocha Brito, fundo das cazas de
Francisco de Paula (lado de herança de Constantino Lopes Rodrigues
cima) e pelo lado cima com Francisco de Paula,
doze contos de reis se sae.
EIXO TEMÁTICO 1
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO

30 Casa --- --- Imposto


Predial de
1875

32 Casa --- --- Imposto


Predial de
Rua Osório 1875
(atual Rua Gene-
ral Osório) 44 Casa ---- --- Imposto
Predial de
1883

46 Casa Maria do Carmo Pereira (lado Casa na rua General Osório, 46, divisando Inventário
de baixo) e herança (fundo) pelo lado de cima com Maria do Carmo de 1902
Pereira e pelo lado de baixo e fundo com
outro prédio parte dessa herança;

48 Casa e Herança (lado de cima e fun- Casa (com terreno) na rua General Osório, Inventário
terreno dos) e com Francisco Lapa 48, divisando pelo lado de cima e fundos de 1902
(lado de baixo) com prédio parte dessa herança e pelo lado
de baixo com Francisco Lapa;

110 Terreno José Cardozo (lado de cima), Terreno na rua General Osório,110 fazendo Inventário
A. Belluomini & Irmãos (fun- divisa (pelo lado de cima) com Jozé Cardo- de 1902
do) zo, pelo lado de baixo com A. Belluomini &
Irmãos e pelo fundo com outro prédio parte
dessa herança

Rua da Ponte 40 Casa e No largo Santa Cruz terreno sito entre as ruas de santa cruz, Inventário
(atual Rua Major terreno largo deste nome e dona libania, com- de 1889
Sólon) preendendo duas casas em ruina, sitas no
largo referido de santa cruz, salvas as pro-
priedades encravadas avaliadas por quatro
contos de reis que a margem sahe.
42 Casa e No largo Santa Cruz terreno sito entre as ruas de santa cruz, Inventário
terreno largo deste nome e dona libania, com- de 1889
preendendo duas casas em ruina, sitas no
largo referido de santa cruz, salvas as pro-
priedades encravadas avaliadas por quatro
contos de reis que a margem sahe.

Rua do Rosário 106 Terreno e --- --- Imposto


(atual Av. Fran- Cocheira Predial de
cisco Glicério) 1883

Divisando com casas da rua Um terreno e cocheira sito a rua do Rosario Inventário
Regente Feijó (fundos) hoje Dr. Francisco Glicerio, nos fundos da de 1889
cazas da rua do Regente Feijó avaliado por
quatro contos e quinhentos mil reis

Rua Santa Cruz 19 Casa --- Uma casinha sita a rua da santa cruz avalia- Inventário
da por quinhentos mil reis de 1889

Rua São João 90 Casa --- --- Imposto


(atual Rua Vis- Predial de
conde do Rio 1883
Branco)
92 Casa --- --- Imposto
Predial de
1883

Terreno na Linha -- Terreno Divisando com a Companhia Terreno da Linha Mogiana com vinte al- Inventário
Mogiana Mogiana e Estrada dos Ama- queires mais ou menos, divisando com a de 1902
rais Companhia Mogiana e com a Estrada dos
Amarais;

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

284
Outra situação foi a do imóvel mencionado em
uma fonte com numeração e logradouro indicados
(situado a antiga Rua do Rosário, atual Av. Fran-
cisco Glicério, sob número 106, no ano de 1883),
e em outra fonte há indicação e descrição de um
imóvel nessa mesma rua, porém sem número.

Para proceder à equivalência e constatar se tra-


ta-se do mesmo imóvel recorreu-se a descrição
existente em 1889: “[...] o terreno e cocheira sito
a rua do Rosário hoje Dr. Francisco Glicério, nos
fundos da cazas da rua do Regente Feijó avaliado
por quatro contos e quinhentos mil reis12 ”. Essa
descrição aponta que o imóvel se trata de um
terreno com cocheira e que, o mesmo confronta
nos fundos com casas da Rua Regente Feijó, pro-
priedades conjuntas do Barão de Itapura. Nesse
sentido, procedemos a verificação cartográfica
constatando-se que o imóvel identificado, em
1883, como número 103, equivale, em 1922, ao
número 132. Assim, os imóveis pertencentes ao Figura 1: Espacialização de imóveis do Barão de Itapura:
ruas Regente Feijó e do Rosário, atual Av. Francisco Gli-
Barão de Itapura, localizados na Rua Regente
cério. Fonte: AMC (Planta Cadastral de Campinas, 1929,
Feijó correspondem, em 1922, aos números: fl.15. Editado pelas Autoras).
95,97,99,101,103 e 105. Ao lançar espacialmente
essas informações na cartografia histórica, ob-
serva-se que esses imóveis, de fato, confrontam
ao fundo com o imóvel de número 132 situado na Dessa maneira, identificou-se estes imóveis, em
rua Francisco Glicério (ver Figura 1): uma fotografia da década de 1930, feita a partir
de um ângulo fotográfico do cruzamento entre
as ruas Regente Feijó e Ferreira Penteado. Esta
fotografia permitiu o reconhecimento da tipolo-
gia dos imóveis destacados. Considera-se, por-
tanto, os imóveis voltados para a rua Regente
Feijó, como casas térreas que, de acordo com
a implantação e com a fotografia, apresentam
uma certa regularidade no tamanho do lote e no
formato das coberturas (em duas águas, confor-
me observa-se na Figura 2). Na listagem desses
imóveis, listados no Imposto Predial de 1883, são
descritos como “prédios de locação13”, inserindo
o Barão de Itapura no grupo de proprietários de
imóveis para aluguel.

12. CMU, Centro de Memória da Unicamp. Sessão Tribunal de 13. CMU, Centro de Memória da Unicamp. Sessão da Co-
Justiça de SP, Comarca de Campinas. Inventário Amigável lectoria da Cidade de Campinas. Lançamento de Imposto
de 1889 Ofício 02, Caixa 236 Processo 5623 p.09-09v. sobre Prédios, 1883-1884. p.44v-45.
EIXO TEMÁTICO 1
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO

Figura 2: Identificação de imóveis do Barão de Itapura: fo-


tografia a partir do cruzamento entre as ruas Regente Feijó
e Ferreira Penteado. Fonte: https://www.facebook.com/
campinasdeantigamente. Acesso em 03 de abril de 2020.

Uma questão que chama a atenção é a presença


de uma cocheira nesse terreno junto a antiga
Rua do Rosário (atual Av. Francisco Glicério). A
cidade de Campinas, mostra-se carente até a
última década do século XIX, de sistemas efeti-
vos de coleta de esgoto, abastecimento de água
canalizada e com qualidade, de recolhimento de
lixo, de iluminação pública e manutenção dos
leitos carroçáveis (MENEGALDO, 2019, p.122). O
que se observa é a conduta da municipalidade em
função de disciplinar o espaço urbano, traduzida
através da vigência das Posturas Municipais e
das medidas sanitárias. Dada a sua importância
como instrumentos reguladores da vida urbana,
produzidos em momentos em que supostamente
a mudança e a evolução da sociedade exigiam
respostas, alterações, correções e novas normas
do viver na cidade (LAPA,1955, p.55).

Institui-se a partir do Código de Posturas de 1880


que “os que tiverem cocheiras ou estrebarias na
cidade são obrigados a conservá-las no melhor es-
tado de asseio possível, fazendo remover o lixo de
doze em doze horas. Os infratores recorrerão na
multa de 30 reis e o duplo nas reincidências14.”As-
sim, era permitido ainda possuir cocheiras ou
estrebarias em meio a cidade de Campinas.

O terreno e cocheira do Barão de Itapura são


avaliados nos anos de 1889 e 1890, e, uma resolução

16º SHCU
14. Artigo 49 do Código de Posturas de 1880. Disponível
30 anos . Atualização Crítica
em: arqcamp.campinas.sp.gov.br/index.php/p3 . Acesso
286 em 07 de abril de 2020.
efetiva em forma de lei estabelece um quadro Considerações Finais: ANÁLISE DO CONJUNTO
urbano15 que proíbe efetivamente a existência e de imóveis urbanos DO BARÃO DE ITAPURA
conservação de cocheiras e estrebarias: “As ruas
que funcionavam como limite eram: a rua da Es- A partir da espacialização do conjunto de imóveis
tação, rua Nova, rua Coronel Quirino, Santa Cruz, do Barão de Itapura constata-se que a maioria
Marechal Deodoro, Culto à Sciência e Andrade deles se inscreve dentro do quadro urbano deli-
Neves, alcançando praticamente todo o centro mitado em 1890, com exceção de seis imóveis. Um
urbano de então16.” A partir dessa descrição es- deles, localizado à rua Marechal Deodoro (antiga
pacializa-se todos os imóveis do Barão de Itapura, rua do Imperador) número 12 (atual número 1099),
bem como o quadro que proibia a construção de é a sede da Chácara Itapura. A maioria dos imó-
cocheiras e estrebarias, em 1890 (Figura 03): veis urbanos do Barão de Itapura se localiza no
quadrante nordeste da cidade, próximos da sua
Chácara, do Largo da Matriz Velha17, e do Largo de
Santa Cruz, sendo que os dois largos em questão
coincidem com as primeiras áreas urbanas ocu-
padas no município.

Essa pesquisa avança no esclarecimento, do pro-


cesso de transição do acúmulo de capital agrário
dos grandes fazendeiros, para o agenciamento
do mercado imobiliário emergente na cidade de
Campinas, no final do século XIX. O aumento do
número de imóveis e de negócios vinculados ao
meio urbano, dialogam diretamente com estraté-
gias desses agentes em manter o posicionamento
social e se destacarem cada vez mais, alargando
seus patrimônios.

Corrêa, em seu trabalho explora a ocupação cen-


tral de Campinas, na primeira metade do século
XIX, através de uma rigorosa análise das Cartas
de Datas.O autor, analisa as formas de orientação
e identificação dos bairros, ou seja, observa que
o uso de determinadas referências indicam o
modo de apropriação dos habitantes em relação
Figura 3: Espacialização dos imóveis do Barão de Itapura e a cidade. Essas expressões davam o sentido de
localização da Chácara Itapura e dos largos da Matriz Nova
direção, localização e permitem a interpretação
e Matriz Velha sobre Planta do Município de Campinas em
1900. Fonte: Arquivo Municipal de Campinas, 1900. Editado das regiões ocupadas na cidade.
pelas Autoras.
Um exemplo dessa relação da toponímia da cidade
de Campinas, constatada por Corrêa, é por exem-
plo, como se mencionavam a localização junto
ao largo da Matriz Velha. A região imediatamente
no entorno da então matriz velha, é referenciada
como “vila” ou “nesta vila”. (Corrêa, 2019, p. 110).
Isso evidencia que o núcleo fundacional era um
15. Verificamos a existência de uma preocupação na delimi- referencial para se situar em relação as demais
tação de “perímetros urbanos” e “quadros” que funcionavam, ruas e bairros da cidade.
geralmente como limites dentro dos quais se estabelecia
algum tipo de restrição ou no qual se baseava, as cobranças À medida que a cidade de Campinas foi se
de impostos. Fonte: Salgado, 1992, p.01.

16. Salgado (1992, p.17) 17. atual Praça da Matriz de Nossa Senhora do Carmo.
EIXO TEMÁTICO 1 desenvolvendo começaram a figurar outros
pontos de referência, indo além do largo da Matriz
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO Velha, do bairro das Campinas Velhas, e de Santa
Cruz, despontando a região do Rosário e seu en-
torno (onde se edificou a Igreja de Nossa Senhora
da Conceição- Matriz Nova) (CORRÊA, 2019, p.
111-112).

A presente investigação trata especificamente


da segunda metade do século XIX. As relações
da cidade da primeira metade do século para a
segunda metade são distintas, o processo de
industrialização acelerado modifica aspectos da
cidade, incluindo uma série de melhoramentos
(BIANCONI, 2002, p.51).

A cidade cresce, se expande, e o que se observa


através da espacialização do conjunto de imóveis
do Barão de Itapura é que há uma concentração
de imóveis em determinadas ruas. Destaca-se
a rua Luzitana, rua Regente Feijó, rua General
Osório e rua Marechal Deodoro.

Nesse sentido, o estudo de caso dos prédios ur-


banos do Barão de Itapura, além de reforçar a
atuação desse grupo social em exercícios que
vão além das práticas agrárias - a produção de
açúcar e principalmente de café - apontam que
a urbanização e o crescimento do mercado imo-
biliário em Campinas contam com a expressiva
participação do capital privado.

Apresenta-se, portanto, uma contribuição para


o entendimento do processo de urbanização da
cidade de Campinas, como um processo rentável
para determinados agentes que através de seus
projetos e estratégias interferem diretamente na
modelagem da forma urbana.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

288
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MENEGALDO, Ana Beatris Fernandes. Entre


o Rural e o Urbano: O Barão de Itapura como
EIXO TEMÁTICO 1 RESUMO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
O objetivo deste trabalho é refletir sobre como
o escravismo tornou-se estrutural para os mo-
SESSÃO temática dos de fazer o urbano no Brasil, bem como de-
limitar as práticas e categorias que configuram
a noção de “cidade escravista”. Essa discussão
NOTAS SOBRE A NOÇÃO DE é fundamentada a partir da noção de sociedade
escravista na modernidade, formulada pelo his-
CIDADE ESCRAVISTA: UM toriador estadunidense Ira Berlin. Derivada dos
estudos da escravidão na antiguidade, este con-
ESTUDO SOBRE OS MODOS DE ceito define a exploração do regime de trabalho
escravo como centro da produção econômica e
FAZER CIDADE NO BRASIL modelo de todas as relações sociais. Entenden-
do o espaço como elemento fixador das rela-
ções, muito mais do que um elemento estático e
NOTES ON THE SLAVERY CITY NOTION: A STUDY ABOUT
simples produto social, é nele que podemos en-
BRAZILIAN URBANIZATION PROCESS
contrar as marcas impressas e constantemen-
te reelaboradas da experiência da escravidão.
APUNTAMENTOS SOBRE LAS CIUDADES ESCLAVISTAS: Por isso, destaca-se a necessidade de entender
UN ESTUDIO ACERCA DE LAS MANERAS DE HACER quais as consequências da construção de pai-
CIUDAD EN BRASIL sagens baseadas nas relações de dominação
estabelecidas pelo regime escravocrata, uma
FARINA, Eduarda vez que muitas das estruturas, sociais e mate-
riais, construídas para suportá-lo, são elemen-
Arquiteta e Urbanista; Universidade Federal da Fronteira Sul
tos sobreviventes no tempo presente. Esfor-
eduardafarina@gmail.com
ço que se justifica, pois, embora recorrente, o
termo “cidade escravista” não encontra formu-
lações específicas que deem conta de avaliar
como se constituem os centros urbanos em so-
ciedades do tipo, geralmente restritos a dados
quantitativos e demográficos. Desta forma, a
partir de um exemplo brasileiro de urbanização,
a cidade do Rio de Janeiro, serão observados os
processos de consolidação dos modos de fazer
urbanos próprios do escravismo como um exer-
cício de retorno ao passado para ressignificar o
presente e o futuro de nossas cidades.

CIDADE ESCRAVISTA SOCIEDADE ESCRAVISTA


ESCRAVIDÃO URBANIZAÇÃO BRASILEIRA

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

290
ABSTRACT RESUMEN

This study aims to reflect on how slavery became El objetivo de este trabajo es reflexionar como
structural to the way cities are planed in Brazil, el esclavismo se he transformado en estructural
as well as to delimit the practices and categories en las maneras de hacer el urbano en Brasil, bien
that configure the notion of “slavery city”. This como delimitar las prácticas y categorías que di-
discussion is based on the notion of the modern rigen la noción de “ciudad esclavista”. Esta discu-
slavery society, created by the historian Ira Ber- sión es fundamentada en la noción de sociedad
lin. Derived from the studies of ancient slavery, esclavista en la modernidad, formulada por el his-
this concept defines the exploitation of the slave toriador estadunidense Ira Berlin. Venida de los
labor regime as the center of economic produc- estudios de la esclavitud en la antigüedad, esta
tion and the model for all the social relations. noción es definida por la exploración del trabajo
Understanding space as a fixative element for esclavo como el centro de la producción econó-
relationships, more than a static element and a mica y modelo de todas las relaciones sociales.
simple social product, we can find on it the im- Si el espacio es comprendido como un elemento
printed and constantly reworked marks of the fijador de las relaciones, mucho más del que un
slavery experience. Therefore, the need to un- elemento paralizado y un simples productor so-
derstand the consequences of the construction cial, es en él que podemos encontrar las marcas
of landscapes based on the domination relations impresas y rehechas de la experiencia de la es-
established by the slavery regime is highlighted, clavitud. Por tanto, es importante comprender
since many of the social and material structures, cuales son las consecuencias de la construcción
built to support it, are surviving elements in our de paisajes que fueron establecidas en las rela-
present. Even though the term “slavery city” is ciones de dominación en la esclavitud, sabiendo
frequently used, it requires specific formulations que muchas de las estructuras sociales y mate-
so that it became possible to check how urban riales construidas para suportarla, son elemen-
centers were made in slavery societies. This way, tos que sobreviven en el tiempo presente. De esta
using a Brazilian example of urbanization, the city manera, utilizando el ejemplo brasileño de urba-
of Rio de Janeiro, the processes that lead to the nización, la ciudad de Rio de Janeiro, será obser-
consolidation of planning models typical of sla- vado los procesos de consolidación de los modos
very will be observed as an exercise of returning de hacer el urbano propios del esclavismo, retro-
to the past to resignify the present and the future cediendo al pasado para que se pueda resignifi-
of our cities. car el presente y el futuro de nuestras ciudades.

SLAVERY CITY SLAVERY SOCIETY SLAVERY CIUDAD ESCLAVISTA SOCIEDAD ESCLAVISTA


BRAZILIAN URBANIZATION ESCLAVITUD URBANIZACIÓN BRASILEÑA
EIXO TEMÁTICO 1 INTRODUÇÃO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO “Os eventos são, todos, presente” (SANTOS,
2006, pp. 94), sobretudo aqueles que nos
assombram, que não nos deixam impunes. Assim
SESSÃO temática é a escravidão mercantil africana no período
moderno para a história do Brasil. Nenhuma
experiência enraizou-se tão profundamente na
NOTAS SOBRE A NOÇÃO DE história e no tecido social do país como esta, que

CIDADE ESCRAVISTA: UM
tirou compulsoriamente milhares de pessoas de
seu continente para serem transformadas em

ESTUDO SOBRE OS MODOS DE mercadorias, despojadas de suas qualidades


humanas e submetidas a péssimas condições

FAZER CIDADE NO BRASIL de trabalho e de vida no Novo Mundo. Muito mais


do que um sistema econômico, a escravidão
constituiu um sistema de linguagens e práticas
NOTES ON THE SLAVERY CITY NOTION: A STUDY ABOUT próprias do imaginário, que fixaram-se tanto no
BRAZILIAN URBANIZATION PROCESS tecido social quanto na configuração espacial
dos lugares. Neste sentido, para atingir o objetivo
APUNTAMENTOS SOBRE LAS CIUDADES ESCLAVISTAS: deste trabalho, que é compreender quais as
UN ESTUDIO ACERCA DE LAS MANERAS DE HACER relações entre escravidão e cidade nos modelos
CIUDAD EN BRASIL urbanizadores brasileiros, pensaremos aqui a
escravidão como uma experiência1 histórica. Uma
experiência constitui um “instante no tempo e
um ponto no espaço” (SANTOS, 2006, pp.89) e
nos serve para compreender as temporalidades
implícitas nos momentos históricos e suas formas
de espacialização. Neste estudo, nosso instante
no tempo abrange os três séculos de duração da
experiência escravista no Brasil2, do século XVI
até o XIX; nosso ponto no espaço: a cidade do
Rio de Janeiro.

Para Ynaê Lopes dos Santos, “escravidão e cidade


foram duas das instituições que os europeus rein-
ventaram no Novo Mundo” (SANTOS, 2012, pp.1).
Portanto, ao articula-las é necessário discutir
tanto os projetos coloniais levados a cabo pelas
metrópoles, quanto a composição das popula-

1. O que Milton Santos chama de eventos em seu livro A


natureza do espaço (2006).

2. Apesar do aparente contraste entre o “instante” e uma


duração de três séculos, adota-se essa denominação para
dar corpo a uma globalidade da experiência escravista
na cidade do Rio de Janeiro desde sua fundação até sua
consolidação como maior cidade escravista das Américas.
Assim, os três séculos não serão aqui detalhadamente ex-
plorados, mas sim, inseridos em um pensamento analítico
16º SHCU
que permita vislumbrar a formação física da cidade em
30 anos . Atualização Crítica
consonância com seu desenvolvimento socioeconômico
292 possibilitado pelo sistema escravista.
ções urbanas e o papel que as cidades portuá- que tipo de urbanismo se está falando ao tratar
rias representavam no comércio Ultramarino no das cidades escravistas brasileiras.
qual estavam inseridas. Deu-se em função disso
a escolha da cidade do Rio de Janeiro para ser Com a formação de uma sociedade de moldes
analisada neste estudo. Feita capital colonial no escravistas, na qual espacializaram-se os contor-
ano de 1763 e sede de todo o império português nos próprios de uma geografia da escravidão, o
a partir de 1808, a cidade aparece como um dos tráfico de cativos representou a consolidação do
maiores portos do tráfico Atlântico de escraviza- Brasil como o maior agregado político escravista
dos africanos do mundo, ostentando o desonroso americano. Sabe-se que o lucrativo comércio de
título de maior cidade escravista das Américas. gente representou uma rápida africanização e
Estima-se que na época da independência do desenvolvimento das cidades-desembarque na
Brasil, da população de 110 mil habitantes do Rio costa atlântica da América portuguesa. Foram as
de Janeiro, praticamente a metade, 55 mil, era cidades, portanto, que representaram o principal
composta por escravos (CARVALHO, 2018, pp.156), fio de ligação com a África e encontraram no
uma proporção que se mantem quando a popula- comércio de gente escravizada o seu negócio
ção do Rio de Janeiro duplica, ainda no século XIX, mais rentável (CARVALHO, 2018, pp. 156). Nestas
uma vez que “em 1850, o Rio de Janeiro contava cidades e, sobretudo no Rio de Janeiro, a popu-
com 110.000 escravos entre seus 260.000 habi- lação escrava era constantemente renovada e
tantes, reunindo a maior concentração urbana crescia praticamente na mesma proporção que
de escravos da época moderna” (ALENCASTRO, crescia sua população livre. Assim, nas palavras
2010, pp. 3). Apesar dos números impressionan- de Alencastro (2018) “a escravidão marcava as
tes, para além das estimativas demográficas, cidades”, em contraste com a escravidão rural da
a massiva presença de africanos e as intensas plantation3, que povoa o imaginário da experiência
relações comerciais estabelecidas pelo comércio escravista nacional.
transatlântico de gente representaram o alvore-
cer de novas formas de se pensar, fazer e habitar Para entrelaçar os aspectos sociais da experiên-
cidades, sobretudo naquelas inseridas no circuito cia escravista com aqueles próprios da concep-
atlântico. O resultado é justamente a face urbana ção espacial das cidades, este estudo mobiliza as
da escravidão no Brasil em uma escala que não noções desenvolvidas pelo historiador estaduni-
aconteceu nas Américas. dense Ira Berlin (2008, pp. 21) de sociedade com
escravos e sociedade escravista. A partir destes
O esforço volta-se, neste trabalho, para a análise conceitos, utilizados por Berlin para delimitar
da experiência escrava de uma das grandes cida- os diferentes papéis que o uso da mão de obra
des portuárias brasileiras, uma vez que, muitas escrava desempenhava nas diferentes socieda-
vezes categorizadas a partir da nomenclatura des, busca-se compreender como o processo de
de cidades escravistas, estas cidades foram as montagem da sociedade brasileira impactou e
portas de entradas dos milhares de cativos de- foi amparada pelos modelos de desenvolvimen-
sembarcados na América entre os séculos XIV e to urbano adotados durante os três séculos da
XIX e serviram como lócus de montagem de socie- experiência no Brasil.
dades profundamente assimétricas. As chamadas
cidades escravistas ainda encontram-se pouco Ao mesmo tempo, importa discutir quais as im-
exploradas pela historiografia do urbanismo, no plicações sociais no uso de um espaço urbano
sentido de compreender quais foram as implica-
ções para os modelos urbanizadores brasileiros de
3. “Plantation” foi o termo utilizado originalmente para desig-
um tipo de construção espacial voltado para uma
nar os domínios ingleses no ultramar e que foi, mais tarde,
experiência tão violenta e traumática como a da
generalizado pela historiografia para se referir as demais
escravidão. Apesar da disponibilidade de dados
colônias. Sua definição em todos os lugares é basicamen-
quantitativos e demográficos sobre as cidades te a mesma: propriedades rurais de grandes extensões
do período colonial e suas populações escravas, de terras, cultivadas a partir de técnicas rudimentares e
ou mesmo de material cartográfico e pictórico geralmente de monocultura. Para ver mais: BLACKBURN,
que possibilita reconstruções visuais sobre as R. A construção do escravismo no Novo Mundo, 1492-1800.
espacialidades da época, questiona-se sobre Editora Record: Rio de Janeiro, 2003.
EIXO TEMÁTICO 1 povoado por uma quantidade tão expressiva de
africanos. E ainda, quais as possibilidades ofe-
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO recidas pela categoria de cidade escravista para
compreender os processos de urbanização no
país a partir dos mecanismos instaurados den-
tro de uma lógica escravista. Busca-se neste
trabalho retirar a experiência escravista de seu
enjaulamento no passado e posicionar o que ainda
dela sobrevive no tempo presente, em nossos
espaços comuns. Partindo disso, o texto está
estruturado em três partes que se articulam em
uma abordagem metodológica multiescalar e
multidisciplinar que busca dar conta tanto de
análises históricas quanto espaciais da experi-
ência escravista da cidade do Rio de Janeiro, de
modo a compreender quais os significados de tal
experiência para a contemporaneidade.

A metodologia de trabalho dessa pesquisa parte


do entendimento dos conceitos de sociedade com
escravos e sociedade escravista, mobilizando-
-os como mecanismo de análise da formação da
sociedade brasileira e das formas de urbanizar
que acompanharam e se desenvolveram conco-
mitantemente. Neste sentido, deu-se não só o
processo de construção morfologico do espaço
urbano, mas também de modos de pensar a práti-
ca urbana e o pensamento urbanistico. Questões
atreladas ao modo de representação das cidades
em imagens e narrativas, por exemplo. A partir
deste conjunto de práticas, que frequentemente
ganha o nome de cidade escravista, pensaremos
aqui como é possível caracterizá-las.

Assim, na primeira parte do texto, aborda-se as


diferenças entre as noções de sociedade com
escravos e sociedade escravista, de acordo com
o proposto por Ira Berlin. Com uma breve análise
de suas características e a luz do exemplo da
montagem da sociedade da América portugue-
sa, será possível vislumbrar o papel das cidades
portuárias na configuração escravista e assim,
construir os fios iniciais da tessitura da noção de
cidade escravista.

Na segunda parte discute-se o desenvolvimento


urbano da cidade do Rio de Janeiro, analisando
seus processos de urbanização por uma perspec-
tiva dos eventos históricos e da montagem de sua
16º SHCU sociedade pela lógica escravocrata. A partir de
30 anos . Atualização Crítica
materiais cartográficos, relatos (representações/
294 gravuras) de viajantes e referências bibliográficas,
articulam-se algumas compreensões prelimina- ciedades escravistas e sociedades com escravos.
res sobre o papel do escravismo na produção do
espaço urbano dessa importante cidade atlântica O exercício analítico destes conceitos permite
durante os mais de três séculos de escravidão categorizar os elementos que os compõe, e o mais
no Brasil. importante, compreender o impacto do escra-
vismo na montagem das diferentes sociedades,
Já nas considerações finais, terceira e última permitindo a identificação das práticas que deram
parte, são apontados os aspectos e elementos corpo as espacialidades e temporalidades vividas
que possibilitam o entendimento do termo cidade e experienciadas em cada lugar. Ambas as noções
escravista como uma noção. A partir do estu- designam as diferenças do papel do escravismo
do de caso e das discussões teóricas propostas em processos sociais, para Berlin (2008, pp. 20),
no artigo, pretende-se avaliar a possibilidade as distintas práticas estabelecidas fornecem
e a potência do termo cidade escravista, como elementos de sustentação para as mutações da
uma porta de acesso para pensar as diferentes história e da geografia da escravidão. Salienta-se
temporalidades impressas no espaço urbano do que, tal como destacado por Berlin, nenhuma his-
presente e qual a sua capacidade de sobrevivência tória da escravidão pode ser contada sem tratar
nas práticas urbanas contemporâneas. da violência, do trabalho e do poder, e, sobretudo
da formação e reformulação de raças e classes
(2008, pp. 14). Atreladas às relações de trabalho,
as noções permitem avaliar as distinções de um
sociedades e experiências escravistas uso mais ou menos extensivo do trabalho escravo
no sistema amplo de relações de cada sociedade,
Pensando o tempo e o espaço através das lentes como figuras centras de análise temos, portanto,
de Milton Santos (2006, pp. 90), onde em cada as figuras do senhor e do escravo.
lugar o tempo presente se defronta com o tempo
Quanto as suas definições: as sociedades com
passado, materializado em formas, temos para
escravos eram aquelas onde a escravidão, e os
cada experiência histórica um novo modo de re-
próprios escravos, eram marginais aos processos
lação com tempo, sempre diferente do tempo
produtivos centrais. Existiam, em meio à explora-
anterior, que encontra sua vida ativa, sobretudo
ção da mão de obra escrava, outras relações de
diante das práticas dos agentes sociais que são
trabalho e, sobretudo, numa sociedade desse tipo
os responsáveis pela materialização das tempora-
a relação senhor-escravo não era compreendida
lidades no espaço. A prática do escravismo não é
como um modelo base para a totalidade das rela-
recente na história da humanidade, ocorre desde
ções sociais. Os limites entre indivíduo escravo
a antiguidade4, nunca branda e, portanto, sempre
e indivíduo livre poderiam até mesmo ser muito
atrelada aos temas da violência e do trabalho. Para
fluidos, com alforrias frequentemente possíveis.
compreender os mecanismos da escravidão no Entretanto, fluidez não é aqui um sinônimo de
período moderno, o historiador estadunidense Ira brandura, sendo os senhores das sociedades
Berlin, em sua obra Gerações de Cativeiro: uma com escravos geralmente brutais no trato com
história da escravidão nos Estados Unidos (2008) os cativos, como um modo de distinguir-se em
apresenta-nos os conceitos que mobilizaremos relação a eles (BERLIN, 2008, pp. 21).
para pensar os aspectos sociais que configuraram
as práticas espaciais do escravismo no Brasil. Já nas sociedades escravistas, a escravidão re-
Tratam-se de duas noções derivadas dos estudos presentava o centro da produção econômica e
da escravidão na antiguidade5, denominadas so- também os moldes sociais para toda a socieda-
de a partir da relação senhor-escravo. “Marido
e mulher, pai e filho, empregador e empregado”
4. Ver: The Cambridge World History of Slavery. Volume 1.
New York: Cambridge University Press, 2011.
(BERLIN, 2008, pp. 21), desde as relações públi-
cas entre os governantes e governados, até as
5. Sobre escravidão nas sociedades antigas ver: JOLY, F. D.
Libertate opus est. Escravidão, Manumissão e Cidadania à
época de Nero (54-68 DC). Tese (Doutorado) - Universidade (orgs). The Cambridge World History of Slavery. Volume 2.
de São Paulo: São Paulo, 2006. ELTIS, D. ENGERMAN, S. L. New York: Cambridge University Press, 2011.
EIXO TEMÁTICO 1 relações internas à esfera privada mimetizavam
aquelas da escravidão. Precisamente, uma das
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO diferenças fundamentais entre as sociedades
com escravos e sociedades escravistas aparece
na esfera governamental: enquanto na primeira
os proprietários de escravos eram apenas uma
parcela da elite abastada, na segunda eles eram
a classe governante. Assim, nas sociedades es-
cravistas, estabelecia-se uma dinâmica de su-
bordinação nas quais os escravizados contavam
com uma autonomia muito reduzida, uma vez que
a sociedade em si imbuía-se de hierarquias muito
definidas e rígidas.

A passagem de um tipo de sociedade para o outro


não ocorria necessariamente numa direção estri-
ta, podendo apresentar processos mais circulares
do que lineares, ou mesmo recuos. Ambas as
noções contradizem as concentrações proces-
suais rígidas, podendo por vezes se intercalar.
Algumas sociedades com escravos passaram
com velocidade a serem sociedades escravis-
tas, outras passavam lenta e imperfeitamente
por essa transição, apresentando vários recuos.
Diversas sociedades com escravos nem mesmo
chegaram a completar a transição, do mesmo
modo que as sociedades escravistas nem sempre
se mantiveram como tal (BERLIN, 2008, pp.23).
Cabe ressaltar que apesar de os elementos do
processo pelo qual as sociedades com escravos
se transformavam em sociedades escravistas se-
rem por toda parte os mesmos, seus meios eram
sempre distintos, exceto pela sua brutalidade e
violência inerentes.

Ao analisar o processo pelo qual as sociedades


com escravos tornavam-se escravistas nas Amé-
ricas6, encontramos como elemento central a
descoberta de algum produto capaz de dominar
um mercado internacional, por exemplo, o açúcar,
o ouro e posteriormente o café. Utilizando seu
controle do Estado, os proprietários em socie-
dades escravistas, estabeleceram uma legali-

6. Destaca-se neste recorte das Américas a diferença na


experiência escravista da América espanhola daquela da
América portuguesa. Segundo Maria Verônica Secreto, a
experiência escrava no Império espanhol foi definida como
sendo de uma sociedade com escravos, esta denominação
16º SHCU
também revela um modelo diferente da plantation, uma vez
30 anos . Atualização Crítica
que até o final do século XVIII a Espanha não teve acesso
296 direto à África (SECRETO, 2018, pp. 244).
dade de codificação da escravidão ao mesmo senhor sobre seus escravos (LARA, 1988, pp. 32),
tempo em que os impérios atlânticos definiam sendo esta última o meio de produção de rique-
os limites jurídicos entre uma escravidão legí- zas acumuladas pela Metrópole. Nesse sentido,
tima e ilegítima. Os proprietários promulgavam à Metrópole a exploração escravista interessava
abranges códigos escravistas que os investiam num nível geral, de administração e de geração
de poder quase absoluto sobre os escravizados7, de riquezas provenientes das Colônias; para os
podendo inclusive obter o direito sobre suas vidas. senhores de escravos locais, o sistema escravista
Cabe ressaltar, que apesar do caráter global de era fundamental na manutenção de seu empre-
influência social do escravismo na vida cotidiana endimento particular.
da América portuguesa, ao tomarmos as suas
experiências locais, encontraremos distintas Ainda, para além dos interesses propriamente
escravidões experimentadas nas vilas e cidades políticos e mercantis, a intenção de propagar a
construídas em torno das minas de ouro, daquelas fé cristã e a promoção da conversão dos infiéis
das importantes cidades portuárias e do cativeiro se fazia também motivo para justificar a existên-
das fazendas da plantation. cia do sistema (LARA, 1988, pp.42). Por sua vez,
as ideologias raciais8, geralmente amparadas
por justificativas de ordem religiosa ou alguma
regra natural pertinente para a legitimação da
Escravismo na sociedade brasileira exploração do trabalho escravo (BERLIN, 2008,
pp. 23), passaram a ser identificadas no momento
O estabelecimento dos núcleos portugueses nas em que a escravidão no Novo Mundo tornou-se
margens do Atlântico deu-se, sobretudo, para exclusivamente associada às pessoas de origem
apoiar a navegação e marcar posse sobre as novas africana, sendo a raça mobilizada pelos proprie-
terras conquistadas. Esses assentamentos, ao tários para identificar a sua dominação. O viés
longo do tempo, ganharam outras características religioso, apesar de “desculpar” as consequências
de modo a superar sua função primeira de defesa, senhoriais, justificava tão somente a escraviza-
e passaram a servir como instrumentos de domi- ção, uma vez que a escravidão nunca encontrou
nação colonial (LARA, 2007, pp. 30-31). Apesar de justificativas do ponto de vista do escravizado
a defesa ser um importante fator nas recomen- (LARA, 1988, pp. 42).
dações governamentais para o assentamento
dos núcleos urbanos, a presença de uma jurisdi- Na América portuguesa temos dois níveis distintos
ção portuguesa nas terras ultramarinas marca- de construção das relações no cotidiano colonial
va o domínio do monarca sobre os homens que que ampararam a formulação da sociedade escra-
passavam a governar o território em seu nome. vista, sendo o primeiro deles a estrutura pública,
Segundo MATTOS E GRINBERG (2018, pp. 163), que através do controle social e da violência era
na formação da sociedade brasileira não houve responsável pela reprodução da ordem escravista;
uma única lei que estabelecesse a escravidão, e o segundo era a estrutura privada, através da
mas sim um conjunto de práticas jurídicas que a construção cotidiana da relação senhor escravo,
legitimaram. Assim, a legalidade que amparou o mimetizada também nos mais diversos tipos de
regime escravista quando tratamos da América relações privadas. Ao mobilizar a esfera familiar
portuguesa passa sempre pelos dois polos da e sua representação como exemplo, podemos
relação produtiva estabelecida entre Colônia e compreender os mecanismos que forjaram as
Metrópole e entre senhor e escravo (LARA, 1988, dimensões públicas e privadas do Brasil escra-
pp.44). Isso nos mostra o caráter duplo de explo- vista, uma vez que a família do senhor funcionava
ração no qual nosso sistema social foi erigido: a como um anteparo real e simbólico para toda a
exploração da Colônia pela Metrópole e aquela do

8. No caso do regime escravista brasileiro, sua legalidade


7. Em sua tese de doutoramento, Silvia Hunold Lara discute foi pautada, sobretudo, a partir de princípios religiosos e
a violência e os códigos legais estabelecidos para regula- belicosos em detrimento das bases explicitamente raciais.
mentar a vida na colônia e os escravizados. Ver: LARA, S. H. Contudo, muitos estigmas e distinções jurídicas foram eri-
Campos de violência: escravos e senhores na capitania do gidos com base nos critérios raciais (MATTOS E GRINBERG,
Rio de Janeiro (1750-1808). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. 2018, pp. 166).
EIXO TEMÁTICO 1 organização social, na qual se construiu a figura
do senhor como “pai”, ao mesmo tempo bondoso
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO e severo, numa hierarquia jamais questionada.

A sociedade brasileira como conhecemos hoje,


é fruto, portanto, de um sistema autoritário, de
exploração patriarcal, erigido sob hierarquias
muito definidas e mantidas através da violência
e do controle. O modelo colonial brasileiro combi-
nava, sobretudo, o uso extensivo de mão de obra
escrava, as grandes propriedades de monocul-
tura, o personalismo do mandonismo privado e
a quase ausência da esfera pública e do Estado
(SCHWARCZ, 2018, pp. 42) uma vez que os próprios
senhores de escravos constituíam boa parte da
esfera governamental e faziam uso do Estado
para fins pessoais.

Espaço urbano e cidades escravistas

As grandes cidades atlânticas brasileiras viram-


-se africanizadas desde muito cedo, pois nelas
desembarcaram a imensa maioria dos navios ne-
greiros até a proibição do comércio atlântico, em
18319. Nas diferentes capitais brasileiras, distintas
quanto as suas realidades econômicas e sociais,
e até mesmo escrava, as cidades escravistas aju-
daram a criar cenários urbanos muito singulares e
diversos, nos quais “as línguas, vestimentas, chei-
ros, odores e sabores foram sendo importados,
criados e recriados” (CARVALHO, 2018, pp. 158).
Assim, as cidades escravistas e a própria escra-
vidão urbana foram elementos fundamentais na
construção de nossa sociedade e são, talvez, as
formações mais originais de nosso país.

9. Em 1831 é votado o fim do tráfico no Brasil, entretanto, no


Rio de Janeiro, Salvador e no Recife, organizaram-se redes
de comércio semiclandestinas de escravizados africanos,
assim, apenas por volta do ano de 1956 é que o comércio tem
de fato um fim. Estima-se que 710.000 indivíduos são tra-
zidos de todas as partes da África, entre 1831 e 1856. A lei de
1831 assegurava, portanto, liberdade aos africanos trazidos
ao país após a proibição, isso significa que os “proprietários”
desses indivíduos livres eram considerados sequestradores.
Na década de 1850, o governo imperial anistiou os senhores
culpados de crime de sequestro, porém, manteve em livre
curso o crime de escravização de pessoas livres, isso sig-
16º SHCU
nifica que os cerca de 700.000 africanos desembarcados
30 anos . Atualização Crítica
até 1856 e seus descendentes, continuaram escravizados
298 até 1888 (ALENCASTRO, 2001, pp. 2).
Salvador, Recife, São Luís, Belém, Porto Alegre expande-se o tanto o espaço geográfico quanto
e Rio de Janeiro vivenciaram de perto o impacto a importância política do Rio de Janeiro, e apesar
urbano da escravidão entre os séculos XVIII e a da pouca atenção recebida da Coroa, os colonos
primeira metade do XIX. Portanto, se a dimensão trataram de estabelecer vínculos comerciais que
privada funcionava como um anteparo simbóli- inseriram a vila nas dinâmicas comerciais, em
co, a dimensão pública da sociedade escravista muito facilitadas pela União Ibérica, com a região
brasileira desempenhava o importante papel de da Prata e com Angola.
fornecer espaço para as representações poder
que embasavam as vivências cotidianas. Seja A escolha do local de implantação da cidade, as-
para os senhores desfilarem com sua escravaria, sim como a ocupação física de todos os espaços
seja para as festas e celebrações da Coroa ou das coloniais e o aparecimento dos núcleos urbanos,
irmandades negras. O espaço urbano aparece não se fez sem distribuição de poderes. Por isso,
deste modo, para além da distribuição de edifícios ao analisarmos a cidade do Rio de Janeiro, que foi
e pessoas, como palco de exibição de poder. o grande centro urbano da América portuguesa
a partir da segunda metade do século XVIII, ob-
Frequentemente tratada como uma extensão da servamos que o uso políticos das cidades além
escravidão rural, a escravidão urbana é entendida mar estava estritamente ligado ao modo como
hoje como uma face indissociável da urbaniza- o poder real se fazia presente em todas as suas
ção brasileira. No século XIV tínhamos Salvador colônias. Assim, a ocupação da cidade obedeceu
e Olinda como maiores cidades escravistas da as determinações reais e estratégicas que visa-
colônia, sendo nos portos de Salvador e do Recife ram a defesa e a ocupação do território entre a
que desembarcaram as primeiras levas de cativos Bahia e São Vicente (LARA, 2007, pp. 37), resul-
trazidos para a América portuguesa. Ainda nesse tando em um modelo urbanístico profundamente
século, os africanos tornaram-se as engrenagens militarizado.
e os braços da vida colonial. A partir da década de
1640, com a descoberta das minas e, posterior- Em 1567, a Vila de São Sebastião do Rio de Ja-
mente, a vinda da corte, em 1808, além ainda da neiro instalou-se sobre o morro do Castelo, onde
ascensão do café, o Rio de Janeiro tornou-se o estavam o Colégio dos Jesuítas, a catedral e o
maior porto do tráfico atlântico e a maior cidade forte de São Sebastião. Com o passar do tempo,
escravista das Américas. Atravessada por dinâ- sobretudo a partir da metade do século XVI, a vila
micas locais e inserida numa rede global, a cidade foi se alargando, descendo na direção do mar,
do Rio de Janeiro viu-se uma como cidade que até ocupar a várzea aos pés dos morros de São
consumia escravos e, portanto era ressignificada Bento e Nossa Senhora da Conceição. Apesar
por eles (SANTOS, 2012, pp. 83). da aparente naturalidade desta expansão, seu
significado teve impactos locais e globais para
o núcleo urbano e para a vida política da futura
capital do Império português. Localmente, repre-
o rio de janeiro escravista sentou o deslocamento dos símbolos de poder,
tendo em vista que a demarcação dos poderes
Tendo recebido pouca atenção da Coroa em seus que estavam autorizados a legislar sobre o uso
primeiros anos de existência, São Sebastião do Rio dos terrenos urbanos, especialmente as praias
de Janeiro teve sua fundação atrelada ao contexto e marinhas assegurava uma posição estratégi-
de conquista e colonização da primeira metade ca, política e economicamente. Segundo Silvia
do século XIV. Época em que as preocupações Hunold Lara (2007, pp. 38), a jurisdição sobre as
das autoridades portuguesas estavam voltadas terras e edifícios convertia-se em rendimentos
para a porção nordeste da colônia, que já neste de forros e outras taxas municipais, com especial
século era uma importante produtora de açúcar. atenção aos espaços da costa, que permitiam
Invadida pelos franceses em 1555, a vila de São controlar o comércio – legal ou ilegal- na Colônia.
Sebastião era ainda uma porção de terras alaga- Já globalmente, representou uma inserção mais
diças habitadas por indígenas, em sua maioria significativa do Rio de Janeiro como um entre-
tamoios, arredios ao controle português (SAN- posto do Atlântico Sul, uma vez que entre o final
TOS, 2012, pp. 71). A partir da metade do século, do Quinhentos e a metade do Seiscentos, foi o
EIXO TEMÁTICO 1 porto por onde passaram boa parte dos africanos
escravizados que seriam trocados pela prata em
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO Potosí e Buenos Aires (SANTOS, 2012, pp. 70).

Assim, já no final do século XVI, o comércio de gen-


te tornou os milhares de africanos escravizados
importantes peças para o mundo colonial, uma
vez que o comércio transatlântico mostrou-se
enormemente lucrativo para os portugueses e
colonos que capitaneavam as travessias. Mais
tarde, no século XVII, com a descoberta das minas
de ouro no Sudeste e Centro-Oeste, as atividades
portuárias e agrícolas do Rio de Janeiro ganham
novas dinâmicas, com a saída nos portos de ouro
e diamantes para a Europa e a entrada de africa-
nos escravizados. Neste período, o percentual de
escravizados aumentou significativamente na
composição populacional da cidade, emprestando
novos sentidos para o espaço urbano.

Ainda que a maioria dos escravizados desembar-


cados no Rio fosse destinada às atividades aurífe-
ras, o crescente desenvolvimento das atividades
portuárias e das redes de serviços necessárias
para manutenção de uma cidade do tipo, contou
com forte presença de cativos e de libertos. A
enorme presença de escravizados no Rio apon-
tava para a intensa atividade mercantil na cidade,
com escravizados de ganho registrados pelos
proprietários na Câmara Municipal ainda no ano
de 1638 (SANTOS, 2012, pp. 71). Além disso, indicou
também uma intricada rede comercial com as
diversas localidades da África. Nesse sentido, o
incremento do tráfico Atlântico no século seguin-
te – século XVIII - fez com que o Rio de Janeiro
tivesse suas práticas econômicas, sociais e cul-
turais cada vez mais atreladas à entrada massiva
de africanos em seus mercados de escravos.
Ao mesmo tempo, o período marca um número
significativo de obras urbanas: o aterramento
de lagoas, a drenagem de mangues e de ruas,
as alterações no uso dos edifícios, etc., sob o
governo do Conde de Bobadela (1733-1763). No
ano de 1763, o Rio torna-se a capital do Estado
do Brasil, período no qual um corpo de engenhei-
ros e administradores da cidade dedicam-se em
produzir um novo cenário urbano.

Muito além de construtores, foram os escraviza-


16º SHCU dos os responsáveis pela manutenção das novas
30 anos . Atualização Crítica
estruturas urbanas. Tais obras e suas manuten-
300 ções não teriam sido possíveis sem a conservação
do trabalho escravo, que era também o responsá- determinar qual deles era demandante e qual era
vel por intenso aquecimento da economia interna demandado, assim, “se a cidade do Rio de Janeiro
do Rio de Janeiro. Com um percentual populacio- ampliou seu território por meio do aterro de brejos
nal composto em 40% de escravizados, muitos e da abertura de ruas, era porque havia cada vez
deles, presentes nas atividades comerciais e de mais escravos que realizassem tais atividades”
ofícios diversos: sapateiros, alfaiates, barbeiros, (SANTOS, 2020, pp.7).
carpinteiros, ferreiros10. Muitos mestres de ofícios
viam na compra e no treinamento de africanos Deste modo, o espaço urbano era então, emi-
escravizados uma maneira de diversificação de nentemente político e a expansão da cidade não
seus lucros futuros, lucrando tanto com o que os ocorria somente em função de seu crescimento
escravizados viriam a produzir como artífices, econômico, mas também por que surgiam espa-
ou mesmo com o aluguel pago por terceiros por ços munidos de atribuições específicas, como o
cativos treinados. Assim, os escravizados eram comércio de escravizados recém desembarcados
a mercadoria preferida para investimentos (SAN- na cidade. Nesse contexto aparecem as preo-
TOS, 2020, pp. 31). Do mesmo modo, muitos deles cupações com o controle da população urbana,
serviam as casas cariocas ou ganhavam suas já em 1758, os membros da Câmara Municipal
vidas nas ruas, trocando sua força de trabalho manifestavam suas inquietações com o os ditos
nas praças e mercados do Rio de Janeiro. prejuízos causados pelos escravos que estavam
a venda nas principais vias do Rio de Janeiro. As
Observa-se que os cenários urbanos eram mo- preocupações partiam tanto dos espetáculos do
dificados de acordo com as necessidades polí- desembarque13 dos recém chegados quanto do
ticas, e, portanto, foram mobilizados em função medo da formação de pequenos grupos revoltosos
do poder. As obras de infraestrutura urbana e os com a escravização.
investimentos realizados na capital estavam dire-
A rua era um espaço transitório e por isso mesmo,
tamente associados ao fortalecimento do domínio
da escravidão. Apinhadas de escravos e muitas
colonial (LARA, 2007, pp. 50). Entre os anos de 1791
vezes palcos de rituais políticos bastante co-
e 1815, a cidade passou por mudanças políticas
dificados, foram as ruas do Rio de Janeiro que
e urbanísticas sem precedentes nas Américas,
revelaram as dinâmicas entre o sistema escra-
graças ao incremento de sua população escrava,
vista e o espaço público. Os desfiles dos juízes
que foi utilizada como principal mão-de-obra para
ou dos oficiais das Câmaras eram um modo de
as melhorias de infraestrutura da capital colonial.
exibição que não poderia prescindir do espaço
No período que vai de 1791 até 1807, quase 160 urbano. Assim também eram as procissões e as
mil africanos escravizados desembarcaram nos entradas régias, momentos nos quais a monar-
portos da cidade do Rio de Janeiro11, represen- quia mostrava-se ao povo, reforçando seu poder.
tando quase um terço do volume do tráfico para Todos os diversos rituais políticos encenavam
a América portuguesa nesse mesmo período. igualmente um controle sobre a memória, não
Logo, os africanos tornaram-se “os braços de eram apenas festas e manifestações religiosas,
que todas as famílias se servem” 12 , incluindo o mas sim, eventos políticos. Ao ocupar e percorrer
próprio estado colonial que serviu-se deles para a cidade reforçavam os lugares de poder e con-
implementar as obras urbanas. Entende-se que a vocavam todos os seus habitantes para as festas
expansão urbana do Rio de Janeiro e o escravis- e desfiles. Para Lara (2007, pp. 76), os espaços
mo, no final do século XVIII, constituíam-se como urbanos da América portuguesa eram o lugar de
aspectos mutuamente dependentes, sendo difícil exercício de uma dominação que necessitava
mostrar-se publicamente para ser eficaz, refor-
çando nestes cenários, mais uma vez, os poderes
10. Para ver mais: LIMA, C. A. Artífices do Rio de Janeiro metropolitanos e os coloniais.
(1790-1818). Rio de Janeiro: Apicuri, 2008, pp. 79-98.

11. Slave Trade Database. http://www.slavevoyages.org/


13. Anos mais tarde essa seria uma das principais justifica-
tast/assessment/estimates.faces.
tivas utilizadas pelo Marques de Lavradio para a transferên-
12. BN. Documento II-33,24,29 – Oficio do Marquês de Aguiar, cia do Mercado do Valongo, o mercado que mais recebeu
ao Conde dos Arcos, 1814. escravizados africanos no mundo.
EIXO TEMÁTICO 1 Em termos de estrutura e localização urbana,
nas décadas finais do século XVIII, destacavam-
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO -se dois espaços socialmente distintos no Rio de
Janeiro: os terrenos de ocupação mais antiga,
mais próximos ao mar e as área recentemente
incorporadas ao núcleo urbano com o aterramento
dos brejos e alagados. No primeiro, aparecem
as construções mais antigas que abrigavam os
órgãos administrativos e fiscais, as lojas e esta-
belecimentos mais importantes. Nessa região,
precisamente entre a Rua Direita e a dos Ourives,
ficavam as vias mais importantes da cidade por
onde passavam tanto os senhores e senhoras em
suas cadeirinhas como os escravizados e livres
que vendiam suas quitandas ou transportavam
mercadorias. Na segunda, estavam localizadas
as populações mais pobres, os ciganos e as ir-
mandades negras, ali se realizavam as festas
mais populares e a partir da metade do século,
os enforcamentos.

As mudanças empreendidas no final do XVIII re-


forçam, em termos políticos e sociais um claro
juízo de valores sobre os habitantes da cidade
e visavam ordenar o espaço público. Ao mesmo
tempo, a vida urbana era um contraponto ao pode
senhorial do espaço doméstico, como lugar polí-
tico por excelência, as ruas e praças apareciam
com seus diversos sujeitos como partes atuantes
do corpo social.

Figura 1: “Rua Direita – Rio de Janeiro”, Félix-Émile Taunay,


1823. Fonte: https://www.brasilianaiconografica.art.br/
obras/19942/rua-direita-rio-de-janeiro-atribuido.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

302
As mudanças empreendidas no final do XVIII refor- de 1808 e 1815 o tráfico de gente escravizada teve
çam, em termos políticos e sociais um claro juízo um aumento significativo de desembarques nos
de valores sobre os habitantes da cidade e visavam portos do Rio de Janeiro. Esse aumento esteve
ordenar o espaço público. Ao mesmo tempo, a vida diretamente atrelado a nova função da cidade no
urbana era um contraponto ao pode senhorial do quadro de poderes do Império lusitano. Ainda,
espaço doméstico, como lugar político por exce- além da necessidade de mão de obra escravizada
lência, as ruas e praças apareciam com seus diver- pra levar a cabo as obras urbanas, a presença afri-
sos sujeitos como partes atuantes do corpo social. cana nas principais vias da cidade era sentida com
intensidade. Carregando objetos, mercadorias,
No ano de 1808, com o reordenamento das forças pessoas, objetos ou dejetos, a escravidão urbana
do hemisfério norte do mundo Atlântico, D. João no Rio de Janeiro era marcante e assombrosa.
decide transferir a capital do Império Português
para a cidade colonial do Rio de Janeiro. Fato Portanto, a escravidão no Rio de Janeiro repre-
inédito que fez com o Rio se tornasse a primei- sentou não somente o pilar no qual a economia ur-
ra cidade do Novo Mundo a sediar a capital de bana estava assentada, mas também um conjunto
um Império ultramarino (SANTOS, 2020, pp. 13). de relações e lugares sendo definidos. A intricada
Novamente, uma série de medidas são tomadas hierarquia social erigida no período relacionava-se
para que a cidade pudesse comportar simbóli- muito bem com a teatralização da vida na Corte
ca e estruturalmente seu novo título e pudesse (SANTOS, 2020, pp.18). Ao mesmo tempo, com a
cumprir sua função de irradiadora do poder e presença de milhares de africanos e africanas
do controle do Império. A chegada da Corte nos vindos de distintas partes, a ressignificação do
trópicos implicou em mudanças de enorme en- espaço citadino era inevitável. Os escravos e li-
vergadura na cidade do Rio, mudanças essas, bertos, africanos ou crioulos concretizaram no
baseadas na necessidade de “civilizar a cidade do espaço urbano suas histórias, tendo essa ma-
Rio de Janeiro, para que ela estivesse a altura de terialização grande influência tanto na vivência
sua importância” (SANTOS, 2020, pp. 14). cotidiana como na própria expansão da cidade,
de tal modo que no inicio do século XIX, o Rio de
Para tal, transformou-se radicalmente a forma Janeiro era uma capital colonial que tinha sua
como esse espaço era ocupado, uma cidade que sede episcopal em uma Igreja construída para e
antes era descrita como insalubre, imunda e mal por escravizados. Entende-se, por fim, que foi
ventilada tinha como objetivo transformar-se na justamente o incremento do tráfico transatlân-
Versalhes dos Trópicos, ou seja, o gigantesco tico que permitiu a viabilização do devir Corte da
processo de reforma urbana pelo qual a cidade primeira capital imperial do Novo Mundo e maior
passou para receber a Corte, tinha com fim trans- cidade escravista das Américas.
formar cidade a partir dos modelos civilizatórios
das capitais europeias. Desta feita, os primeiros
anos da instalação da Corte passaram com cons-
tantes obras e mudanças no perímetro urbano, e consideraçõs fInais: as possibilidades
isso implica um uso cada vez mais extensivo de da noção de cidade escravista
mão de obra escravizada. Se desde os tempos
dos vice-reis os escravos urbanos eram os res- Para pensar as possibilidades de categorização
ponsáveis pelas obras de infraestrutura e suas da noção de cidade escravista, tendo como base
manutenções, com a vinda da Corte e as imensas as relações apresentadas anteriormente entre
reformas empreendidas a partir de 1808, a ma- espaço urbano e escravismo, passaremos pela
nutenção do trabalho escravo foi fator decisivo elaboração de três questões principais: como
na viabilidade de tais mudanças14. Entre os anos definir uma cidade escravista, quais as sobrevi-
vências no presente da cidade escravista e qual
14. Assim como o imposto da Décima Urbana, criado em 1808, a importância da definição deste conceito. As-
para custear as obras da nova Corte e a administração da sim, espera-se que a noção possa contribuir e
cidade pela Intendência de Polícia, uma espécie de braço ganhar corpo analítico como um instrumento
direito de D. João durante o período colonial (SANTOS, para o estudo dos modos urbanizadores e das
2020, pp. 14). políticas de memória praticados no Brasil ao lon-
EIXO TEMÁTICO 1 go dos séculos, até a contemporaneidade. Os
elementos aqui apresentados constituem um
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO primeiro movimento no sentido da definição e da
compreensão da cidade escravista, que pode, ao
longo do tempo, incorporar novos significados e
elementos de análise.

Portanto, para definir uma cidade escravista al-


guns aspectos, tanto sociais como materiais,
mostraram-se determinantes e emblemáticos. O
primeiro deles passa pela concepção das esferas
públicas e privadas da sociedade e da vida citadi-
na. Conforme demonstrado, nas sociedades es-
cravistas, as relações de dominação entre senho-
res e escravos estavam também mimetizadas no
núcleo familiar e nas esferas de governo. Assim, a
vida pública e política estava repleta de símbolos
e representações de poder que eram transporta-
dos para as relações pessoais nas mais diversas
escalas. O espaço público apresentava-se como o
lugar da escravidão e do teatro do poder, a rua era
o espaço da ressignificação das vivências de uma
sociedade tão diversa e hierárquica. Apinhada de
africanos, crioulos, ex-escravos, portugueses
e viajantes, o espaço público era o cenário do
trabalho e do sincretismo cultural. A esfera da
casa, por sua vez, representava o resguarde da
família e do senhor, que me sua figura paternal,
era o protetor e o regente, bondoso e severo.

Encontramos na figura feminina, da senhora bran-


ca e das escravizadas, um exemplo das dimensões
públicas e privadas, desta vez, na escala do corpo.
Enquanto às primeiras cabia o espaço doméstico,
em uma posição ao mesmo tempo invisível, pois
recatada por obrigação, e simbolicamente visível
no espaço público, frequentemente carregadas
em cadeiras de aluguel utilizadas apenas por
pessoas socialmente distintas. Já as segundas,
apareciam com frequência como amas de leite, ou
em representações sensualizadas, retratadas e
presentes no espaço público como em seu espaço
de trabalho e de vivência.

No que diz respeito à infraestrutura urbana,


pudemos notar a importância e a total depen-
dência da mão de obra dos escravizados para a
implementação e manutenção dos mais diversos
tipos de obras de melhorias urbanas. Para além
16º SHCU do sentido físico, a cidade escravista era também
30 anos . Atualização Crítica
modificada pela presença escrava no momento
304 em que a definição das localizações estava in-
trinsecamente ligada ao crescente número de deixar de abrigar também as marcas da cidade
africanos e africanas desembarcados no portos escravista, que são talvez, a suas cicatrizes fun-
brasileiros. Assim, característica fundamental dadoras. A urbanização brasileira esta, portanto,
da cidade escravista é a sua dependência de mão indissociavelmente atrelada ao escravismo, seja
de obra escrava para se desenvolver e expandir, num sentido de infraestrutura ou no sentido social
mas sempre de acordo com os modelos civiliza-
a que nossas práticas urbanas foram erigidas. É
tórios oriundos das capitais europeias, modelos
nesse sentido, onde o passado não para de se
geralmente não aderentes as características ge-
desdobrar em novos presentes, que a noção de
ográficas encontradas nas Américas.
cidade escravista abre-nos categorias de análise
Assim, entre algumas das sobrevivências da cida- que nos permitem ressignificar nossos lugares e
de escravista, temos como principais o racismo nossas políticas de memória urbana, bem como
fundiário, a violência pública, o apagamento de as políticas públicas de enfrentamento das desi-
memórias e uma sociedade brutalmente desigual. gualdades sociais e espaciais.
Apesar de abolida há mais de 130 anos, a escra-
vidão sobrevive na medida em que a dívida com
a população negra jamais foi reparada. Omissão
que se faz presente aos olhos de todos, nos mor-
ros, nas periferias, prisões e dentro de nossas
casas, estampados nos mais diversos indicado-
res sociais, de renda, escolaridade, mortes, etc.
O impacto da experiência que nos fundou como
nação, em termos espaciais, aparece tanto nas
configurações urbanas e nas políticas de segu-
rança do período colonial, quanto na própria legis-
lação territorial, tendo na Lei de Terras, de 1850,
o exemplo mais marcante de uma nação que já
nasce excludente. Quanto as políticas de memória,
ao observarmos o exemplo da cidade do Rio de
Janeiro, estudada neste trabalho, encontramos
em toda sua estrutura urbana as sobrevivências
e o apagamento da experiência da escravidão: a
primeira cidade a ter seu conjunto paisagístico
considerado patrimônio cultural constrói seus
símbolos sem dar os créditos aos verdadeiros
artífices de seus monumentos.

Ainda que muitas outras análises pudessem ser


empreendidas para caracterizar a cidade escra-
vista, entre elas observações relativas à morfo-
logia urbana, história da implantação do núcleo
urbano e da evolução da arquitetura, este estudo
busca contribuir como uma abertura para com-
preender a dimensão da experiência escravista
tanto para nossa sociedade quanto para o modo
como construímos nossas cidades e nossa me-
mória. A inscrição da experiência escravista no
passado em um lugar de imobilidade é destoan-
te com sua presença tão ativa nas vivências do
presente, seja em termos políticos, culturais ou
espaciais. A cidade do presente, composta por
suas diversas camadas temporalidade, não pode
EIXO TEMÁTICO 1 REFERÊNCIAS
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EIXO TEMÁTICO 1 RESUMO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Entre o final do século XIX e as primeiras déca-
das do século XX, no Brasil, tem-se o surgimen-
SESSÃO temática to dos primeiros planos urbanísticos de caráter
moderno. A intenção desses primeiros planos
era garantir os fluxos de mercadorias, particu-
O URBANISMO SANITARISTA larmente os das cidades portuárias-exporta-
doras. Nesse momento o urbanismo sanitarista
COMO INDUTOR DE torna-se a prática do saber e do fazer urbanos,
não somente nas cidades portuárias como em
MUDANÇAS E DE muitas outras realidades urbanas nacionais.
Sob o ideário das obras de saneamento e de
PLANEJAMENTO DE CIDADES melhoramentos urbanos no Brasil, o presente
artigo tem o objetivo de desenvolver e com-
preender o argumento de que o urbanismo sa-
SANITARY URBANISM AS AN INDUCTOR OF CHANGES
nitarista foi o principal indutor de mudanças e
AND PLANNING FOR CITIES
de planejamento de muitas cidades brasileiras.
Na construção desse trabalho foram tomados
SANITARIO COMO INDUCTOR DE CAMBIOS Y como parâmetros analíticos o ideário do en-
PLANIFICACIÓN PARA CIUDADES genheiro sanitarista Saturnino de Brito e seu
projeto para a cidade de Rosário/RS. Este texto
PICCINATO JUNIOR, Dirceu tem como fonte primária o documento “Projetos
e Relatórios”, publicado em 1943 pelo Ministério
Doutor em Urbanismo; Faculdade Meridional - IMED
da Educação e Saúde, Obras Completas de Sa-
dirceu.piccinato@imed.edu.br
turnino de Brito, volume XI, e se configura como
de natureza descritivo-interpretativa do refe-
rido documento. Nas proposições de seus pro-
jetos de melhoramentos e obras, Brito acabou
desenvolvendo um modus operandi respaldado
em conhecimentos das engenharias acerca da
ciência urbana, que contextualizava a cidade de
maneira holística. Os diferentes aspectos con-
siderados por ele em seus projetos, tais como
os recursos hídricos, a expansão das cidades,
as áreas verdes, o saneamento, a política e ou-
tros denotam que seus trabalhos eram muito
mais do que obras e melhoramentos, eram pro-
posituras para o planejamento de cidades.

URBANISMO SANITARISTA PLANEJAMENTO URBANO


SATURNINO DE BRITO ROSÁRIO-RS

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

308
ABSTRACT RESUMEN

Between the end of the 19th century and the first Entre finales del siglo XIX y las primeras décadas
decades of the 20th century, the first urban plans del siglo XX, en Brasil, surgieron los primeros pla-
of a modern character emerged in Brazil. The in- nes urbanos de carácter moderno. La intención
tention of these first plans was to guarantee the de estos primeros planes era garantizar el flujo
flow of goods, particularly from port-exporting de mercancías, particularmente desde las ciuda-
cities. At that time, sanitary urbanism becomes des exportadoras de puertos. En ese momento, el
the practice of urban planning and knowledge, urbanismo sanitario se convierte en la práctica
not only in port cities but in many other national de la planificación y el conocimiento urbanos, no
urban realities. Under the idea of ​​major sanita- solo en las ciudades portuarias sino en muchas
tion and urban improvement works in Brazil, this otras realidades urbanas nacionales. Bajo la idea
article aims to develop and clarify the argument de importantes obras de saneamiento y mejora
that sanitary urbanism was the main driver of urbana en Brasil, este artículo tiene como objeti-
change and planning in many Brazilian cities. In vo desarrollar y comprender el argumento de que
the construction of this analysis, the sanitary en- el urbanismo sanitario fue el principal impulsor
gineer Saturnino de Brito’s project for the city of del cambio y la planificación en muchas ciudades
Rosário/RS was taken as an analytical parameter. brasileñas. En la construcción de este trabajo, se
The primary source of this article is “Projects and tomó como parámetro analítico la idea del inge-
Reports”, published in 1943 by the Ministry of Edu- niero sanitario Saturnino de Brito y su proyecto
cation and Health, Complete Works of Saturnino para la ciudad de Rosário/RS. Este texto tiene
de Brito, volume XI. The study employed a des- como fuente principal el documento “Proyectos e
criptive–interpretative analysis of the document. informes”, publicado en 1943 por el Ministerio de
In the proposals of his improvement projects and Educación y Salud, Obras completas de Saturnino
works, Brito ended up developing a modus ope- de Brito, volumen XI, y es la esencia descriptiva
randi supported by engineering knowledge about e interpretativa de ese documento. En las pro-
urban science, which contextualized the city in a puestas de sus proyectos y trabajos de mejora,
holistic way. The different aspects that he consi- Brito terminó desarrollando un modus operandi
dered in his works, such as water resources, the respaldado por el conocimiento de ingeniería so-
expansion of cities, green areas, sanitation, poli- bre ciencias urbanas, que contextualizó la ciudad
tics and others, show that his projects were much de una manera holística. Los diferentes aspectos
more than works and improvements, they were que consideró en sus proyectos, como los recur-
propositions for city planning. sos hídricos, la expansión de ciudades, áreas ver-
des, saneamiento, política y otros, muestran que
su trabajo fue mucho más que obras y mejoras,
SANITARY URBANISM URBAN PLANNING pero Sí, en la planificación de la ciudad.
SATURNINO DE BRITO ROSÁRIO-RS

URBANISMO SANITARIO PLANIFICACIÓN URBANA


SATURNINO DE BRITO ROSÁRIO-RS
EIXO TEMÁTICO 1 INTRODUÇÃO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
O surgimento urbanismo como ciência e os con-
flitos da cidade no Brasil acontecem com o apa-
recimento dos primeiros planos urbanísticos de
SESSÃO temática
caráter modernizante, que acontecem em função
da crise do funcionamento das cidades portuá-

O URBANISMO SANITARISTA rias-exportadoras e do complexo agroexportador


no final do século XIX. Esses planos tinham como
COMO INDUTOR DE objetivo central garantir que os fluxos de merca-
dorias se realizassem. Essa face do funciona-
MUDANÇAS E DE mento das cidades e as mudanças em curso não
se restringiram apenas a cidades importantes
PLANEJAMENTO DE CIDADES para a exportação nacional; diferentes realidades
urbanas também passaram por esse processo e
a busca pela modernização de seus espaços foi
SANITARY URBANISM AS AN INDUCTOR OF CHANGES uma realidade a ser conquistada.
AND PLANNING FOR CITIES
Segundo Quinto Jr. (2013), os primeiros planos
SANITARIO COMO INDUCTOR DE CAMBIOS Y diretores e urbanísticos, em seu sentido moder-
PLANIFICACIÓN PARA CIUDADES no, no Brasil, visavam a garantir a reprodução do
complexo agroexportador, isto é, garantir que o
fluxo das mercadorias para os mercados externos
não fosse interrompido em razão dos problemas e
dificuldades criados pelas epidemias e pela falta
de saneamento, que paralisavam a exportação
de produtos como café, açúcar e algodão, entre
outros.

Os produtos agrícolas careciam de um escoa-


mento rápido e mais seguro, que na época era
fornecido pelo transporte mais popular: a fer-
rovia. O saneamento não era menos importante
perante essa realidade. A falta de salubridade das
cidades era um tema recorrente nos periódicos
de circulação nacional e também internacional.
Cidades vitais para a economia agroexportadora,
como Campinas, Santos e São Paulo, eram com
frequência acometidas por doenças que amea-
çavam, por exemplo, a introdução e a reprodução
da força de trabalho imigrante que naquele mo-
mento transitava por essas (e outras) localidades
(CAMPOS, 2013).

Trajano Filho (2013), ao analisar o urbanismo sani-


tarista e o plano de Saturnino de Brito para a cida-
de da Parahyba, atual João Pessoa/PB, revela que
esse termo (urbanismo sanitarista) representava
as possibilidades de soluções para os problemas
16º SHCU sanitários e de saúde pública, necessariamente
30 anos . Atualização Crítica
mediada pela consideração dos atributos do meio
310 natural, do sítio urbano e arredores com suas ca-
racterísticas climáticas e topográficas. A realida- melhoramento urbano, urbanismo e planejamen-
de da maior parte das cidades nessa época era de to urbano. No próximo item o estudo examina o
condições precárias na área urbana, convivia-se ideário sanitarista de Saturnino de Brito por fim,
com o temor constante de contaminações das na última dimensão, destaca-se o projeto de Brito
águas pelos dejetos e resíduos e da proliferação para Rosário. Após essas etapas, tem-se a con-
de doenças. Caberia ao urbanismo sanitarista a clusão do trabalho assinalando que a prática de
regulação dos diferentes aspectos das cidades. atuação do engenheiro representou o escopo do
planejamento urbano para a cidade e expressão
É mediante essa conjuntura das condições sa- de mudanças.
nitárias das cidades que, no final do século XIX e
nas primeiras décadas do século XX, as grandes
obras de saneamento das cidades portuárias pro-
duziram no Brasil o urbanismo sanitarista. Quinto URBANISMO E A FORMAÇÃO DE SEU CONHECIMENTO
Jr. (2013) ressalta que o urbanismo sanitarista foi
o principal indutor das transformações urbanas e Desde a sua ocorrência, o planejamento urbano
de planejamento das cidades litorâneas. sofre constantes reinterpretações. Ele surgiu
como um instrumento de política urbana que ti-
Tomando como referência as colocações ante-
nha como intuito enfrentar as transformações
riores, revela-se que o objetivo deste trabalho é
sociais, políticas e econômicas decorrentes da
compreender e desenvolver o argumento de que o
emergência da sociedade urbano-industrial. O
urbanismo sanitário foi uma forma de planejamen-
crescente processo de urbanização e o signi-
to de cidades. Para tanto, são necessários alguns
ficativo crescimento demográfico de algumas
esclarecimentos conceituais, particularmente os
cidades tornaram necessários políticas públicas
de melhoramentos urbanos e planejamento urba-
de controle do uso do solo urbano, programas
no. Para a construção dessa análise, elegeu-se
habitacionais e demais infraestruturas urbanas.
o ideário sanitarista do engenheiro Saturnino de
Brito, referência nesse urbanismo, e a cidade de
No Brasil, o planejamento urbano surgiu como uma
Rosário, situada ao sul do estado do Rio Grande do
necessidade emanada das políticas de saúde cole-
Sul. A escolha dessa cidade aconteceu em razão
tiva que buscavam justificativas para a demolição
de se lançar luz sobre como cidades de pequeno
das construções decadentes e urbanisticamente
porte responderam a esses problemas sanitários
desordenadas, que favoreciam a disseminação de
à época, e também por sua particular história.
doenças infectocontagiosas. Nesse contexto, as
A cidade de Rosário não tinha uma localização
moradias degradadas e densamente ocupadas
estratégica no território brasileiro, mas foi re-
deveriam ser demolidas para que fossem cons-
presentativa da prática de planejamento urbano.
truídos novos espaços. Deve-se destacar que
O trabalho considera como hipótese o contexto esses novos espaços na cidade levaram ao enca-
de que o urbanismo sanitarista se caracterizou recimento da terra urbana e ao enobrecimento de
como uma prática de planejamento de cidades. determinadas áreas, resultando na expulsão dos
Para dar suporte a esse debate, os procedimen- residentes que não pudessem suportar a valori-
tos metodológicos fundamentam-se no caráter zação fundiária urbana (SANTOS, 2006).
descritivo-interpretativo do projeto e relatório de
Rosário/RS. Esse documento se encontra compi- A rápida industrialização que ocorreu entre os
lado nas Obras Completas de Saturnino de Brito, anos de 1920 e 1930 no Brasil provocou grandes
volume XI, Projetos e Relatórios. Saneamento de mudanças nas estruturas intraurbanas das aglo-
Santa Maria, Cachoeira, Passo Fundo, Rosário e merações brasileiras; também foi nesse período
Cruz Alta, todas elas cidades sul rio-grandenses. final da década de 1940 que surgiram os primeiros
cursos especializados na ciência do urbanismo.
Para melhor compreensão dos fatos, o trabalho De certo modo, os enfoques dados aos planos
está dividido em três dimensões, mais a introdu- propostos nesse período estavam voltados para
ção e as considerações finais. Na introdução é o sistema viário; um exemplo é o plano da avenida
exposta a problemática, os materiais e métodos. Prestes Maia para a cidade de São Paulo, cujo
No primeiro item são examinados os conceitos de enfoque era voltado somente para as questões de
EIXO TEMÁTICO 1 circulação e dos transportes (QUINTO Jr., 2013).

HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO Todavia, há uma relação que precisa ser disser-
tada, que é a relação entre urbanismo e planeja-
mento urbano. Ultramari (2009) expõe que, a partir
da consolidação do processo de urbanização,
tonava-se imperiosa a busca de soluções para
problemas criados por um novo uso sobre um
espaço antigo. Num primeiro momento, a cidade
era vista como um objeto de interesse pontual e
marginal em relação às outras ciências. Depois,
a cidade se torna o lócus central das relações
econômicas, de fluxos, de interesses, riqueza e
pobreza. Assim, a ciência do urbanismo configu-
rou-se formalmente a partir de um problema: o de
um espaço com fatos e transformações sentidas
como negativas, até então desconhecidos, suce-
dendo-se a uma velocidade nunca vista.

Para Leme (2001), o termo urbanismo pode ser


analisado como a formulação de um conheci-
mento e a formação de uma prática profissional
de intervenção sobre o espaço urbano. A mesma
palavra pode apresentar diferenças de significado
de acordo com o contexto em que ela é apresen-
tada. Em cada ambiente profissional modifica-se
o enfoque, ganhando diferentes conotações.

Na tentativa de demonstrar que os projetos ur-


banos desenvolvidos entre o final do século XIX e
início do século XX configuravam-se como plane-
jamento urbano e não como urbanismo, Ultramari
(2009), ao debater o projeto de ampliação da cida-
de de Barcelona, Espanha, e o projeto de Alfred
Agache para o Rio de Janeiro, Brasil, ressalta
que os trabalhos desses autores representati-
vos de uma época apresentaram preocupações
com fatos que vão além do simples desejo de
intervenção, avançando para uma compreensão
mais abrangente da cidade, ou melhor, da vida
urbana.

O plano de remodelação, extensão e embeleza-


mento do Rio de Janeiro foi elaborado entre os
anos de 1927 e 1930 e teve como responsável o
urbanista francês Hubert Donnat Alfred Agache.
Segundo Sosa e Segre (2013), o plano Agache para
a cidade do Rio de Janeiro foi um laboratório de
ideias que evidenciou a validade da circulação
desses conhecimentos. Representou a possibili-
16º SHCU dade de abrir as perspectivas da cidade moderna
30 anos . Atualização Crítica
carioca e brasileira por meio da experimentação
312 dos estudos que circulavam na Europa. Agache
criou uma metodologia própria que se alimentou áreas urbanas, o progresso, o desenvolvimento
da observação do urbanismo estrangeiro, bem das cidades. Os seus instrumentos obedecem a
como dos debates e trocas com o meio profis- normas e diretrizes de propriedade fundiária, aos
sional brasileiro. A intenção do urbanista não era interesses, às ideias de padrão de vida moderna,
apenas apresentar uma proposta de reordenação simplificando as possibilidades de compreensão.
urbana, mas também expor pretensões teóricas. Em síntese, tem como meta o desenvolvimento
Nela, expressou sua visão, propondo um méto- e o progresso (RODRIGUES, 2013).
do para a realização de planejamento urbano de
grandes cidades. O planejamento urbano é um processo dinâmico,
contínuo, não se restringindo apenas à ordenação
Antes da emergência dos termos urbanismo e pla- do espaço urbano. Envolve, também, aspectos
nejamento urbano, a expressão que os precedia físico-territoriais, do meio ambiente, econômi-
era melhoramento urbano. No Brasil, desde o final cos e administrativos, almejando a melhoria da
do século XIX, a palavra melhoramento urbano qualidade de vida nas cidades, assim como a con-
designava desde a formação de comissões para servação dos recursos ambientais.
uma determinada ação planejada, como toda e
qualquer intervenção em obras de saneamento, Melhoramentos urbanos como metáfora, urba-
abertura de praças e alargamento e extensão de nismo como ciência e planejamento urbano como
vias. É importante ressaltar que a relação entre instrumento e prática constituíram a realidade
a ação planejada e a prática de intervenção se de muitas cidades durante parte do século XX
fazia regulamentada pela Câmara das cidades no Brasil. Esses três termos correlacionados
(LEME, 2001). permitem compreender como as cidades eram
idealizadas, já que não há necessariamente mar-
Ao analisar a palavra melhoramentos (urbanos) cos específicos que determinem o fim e o início
dentro do contexto da cidade de São Paulo, Bres- dessas dimensões. Para o presente trabalho, o
ciani (2001) argumenta que, além de representar
planejamento das cidades se conforma como
um lugar, também atuou como uma metáfora,
estrutura para a constituição de um arcabouço
isto é, ela possibilitou construir uma imagem de
teórico que respaldava a prática do saber fazer
cidade, uma noção de progresso. Esse termo
urbano.
revela um sentido de elenco de obras pontuais,
inseridas num plano urbanístico. No final da dé-
cada de 1920, a palavra melhoramentos deixa de
ser empregada e a cidade projetada como obra O IDEÁRIO SANITARISTA DE SATURNINO DE BRITO
de cooperação coletiva assume a cena, estimu-
lando a formação e adesão de especialistas e da
O progresso científico na área das ciências da
população na formulação do planejamento das
saúde contribuiu, dentro da realidade nacional a
cidades.
partir da segunda metade do século XIX, para a
Ao se observar a trajetória desses conceitos po- adoção de princípios do sanitarismo nas práticas
de-se verificar que a década de 1920, quando é urbanas. Naquele momento, o enfrentamento das
dominante a palavra urbanismo, foi o momento epidemias exigia que as áreas centrais fossem
em que se propôs formar o conhecimento e o de- remodeladas, de forma a implantar serviços de
senvolvimento da atividade profissional. Tal fato infraestrutura de água e esgotos, assim como
não acontecia ainda com a palavra que a precedeu sanear áreas pantanosas e inundáveis, prover
– melhoramentos –, que designava práticas de espaços públicos abertos para facilitar a aeração
intervenção na cidade. Planejamento urbano, que e a insolação, eliminar focos de concentração de
a substitui a partir dos anos 1950 em São Paulo, moradias não salubres, os cortiços, e estabelecer
foi novamente a defesa de um campo profissional regulações para as construções no espaço urbano
que se concentrou na elaboração do produto desta (SIMÕES JUNIOR, 2013).
atividade: o plano urbano (LEME, 2001).
As cidades eram consideradas insalubres, com
O planejamento urbano tem como objetivo a cida- sujeira pelas vias, ruas esburacadas e alagadiças
de ideal, a ocupação harmônica e integrada das em dias chuvosos. As doenças geradas pela falta
EIXO TEMÁTICO 1 de higiene e saneamento causaram a morte de
muitos cidadãos. O esgoto in natura circulava
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO pelos logradouros juntamente com o passante. O
mau cheiro fazia parte das cidades. A água para
consumo ficava distante das moradias. A ilumi-
nação à noite era precária ou ausente em muitas
realidades urbanas da época. O traçado urbano
desenvolvido na maioria das cidades dificultava o
dia a dia de seus moradores. Foi em meio a essa
realidade que o engenheiro sanitarista Saturni-
no de Brito atuou com seus planos de melhora-
mentos, como um erudito a resolver os principais
problemas das cidades.

No ano de 1881, Saturnino de Brito ingressou na


Escola Politécnica do Rio de Janeiro, onde se
formou em Engenharia Civil em 1886. De 1887 a
1892, exerceu seu primeiro emprego como en-
genheiro civil na estrada de ferro Leopoldina.
Em 1893, interrompeu sua carreira por um ano
para servir ao governo legal como voluntário na
Revolta da Armada. No ano de 1894, restabeleceu
sua vida profissional como engenheiro da Carta
Cadastral do Rio de Janeiro e, no ano seguinte,
fez o levantamento das plantas e a organização
dos projetos de saneamento da cidade de Vitória,
no estado do Espírito Santo. Em 1896, trabalhou
como engenheiro da Comissão de Saneamento
do Estado de São Paulo. A partir de 1898, passou a
realizar inúmeros trabalhos para as mais diferen-
tes cidades brasileiras. Sua atuação profissional
percorreu ao todo 53 cidades, onde pôde expor
suas ideias e, particularmente, aplicá-las nas
áreas de saneamento e planejamento das cidades
(LEME (coord.), 1999).

Com o processo de modernização nacional, fir-


maram-se algumas influências do saber urbano
que nortearam as operações de melhoramentos
urbanos. Sobre Saturnino de Brito identifica-se
a influência da escola francesa de urbanismo.

Bertoni (2015) destaca que o trabalho de Camillo


Sitte foi particularmente útil para Brito. As fer-
ramentas de análise desenvolvidas por Sitte na
sua obra “Construção das Cidades Segundo seus
Princípios Artísticos” foram de certo modo apro-
priadas por Brito para orientá-lo em suas propo-
sições. O estabelecimento de um plano geral foi
16º SHCU essencial para nortear o crescimento ordenado
30 anos . Atualização Crítica
das cidades, isto é, o primeiro elemento a se con-
314 siderar foi a definição das redes técnicas, que
deveriam tirar proveito de encostas naturais para novas sociabilidades no espaço intraurbano das
reduzir os custos de implementação, ou seja, a cidades (DANTAS, 2003).
definição de uma topografia sanitária.
Saturnino de Brito procurou intervir o mínimo
Dentro da obra de Camillo Sitte identifica-se possível no traçado existente das cidades em
que o sentimento artístico estava presente na que atuou. Suas intervenções, resumidamente,
formação ao acaso das cidades antigas, no en- pautavam-se na abertura de vielas sanitárias,
tanto não se apresentava mais na formação da avenidas canal implantadas ao longo dos cursos
cidade moderna. Assim, para Brito, segundo os de água, a constituição de espaços públicos e a
estudos de Tochetto (2013), deixar a construção valorização das paisagens pitorescas das cidades.
da cidade ao acaso provocaria a desordem; sem O traçado da cidade moderna, saneada, deveria
planos e sem normas, cada um poderia construir ser realizado conforme suas necessidades, não
de maneira diferente de seu vizinho e conforme copiando o traçado das cidades antigas, mas to-
lhe aprouvesse. Tanto Sitte como Brito possuíam mando-as como fonte de inspiração.
preocupações em comum; a principal delas era
Para Tochetto (2013), Saturnino de Brito definiu
a construção desordenada da cidade pela falta
em seu ideário urbanístico que a necessidade era
de regras. Sitte preocupava-se com o que se
a circulação, abrir ruas, criar avenidas, elementos
poderia aprender com o passado; Brito, embora
incompatíveis com o desenho irregular das cida-
considerasse o passado também importante,
des antigas. As necessidades da vida moderna
defendia a necessidade de estabelecer princípios
não poderiam mais se adaptar aos traçados ir-
reguladores para o crescimento, preocupando-se
regulares da maioria das cidades antigas, pelo
com o futuro. Sitte se preocupou com a preserva-
menos nos novos bairros que projetou. Algumas
ção da cidade. Saturnino de Brito se preocupou,
mudanças foram importantes, como promover
especialmente, em planejá-la, pensar o seu futuro,
a abertura de espaços e o alargamento de ruas
embora não desconsiderasse a importância de
e avenidas. Mas, para suprir as necessidades da
preservá-la.
vida moderna, era preciso um plano de melhora-
mentos urbanos.
Ao analisar o estudo de Saturnino de Brito, o livro
Notes sur le tracé sanitaire des villes (Notas sobre Todavia, o plano que regularizasse a construção
o traçado sanitário das cidades), escrito em fran- da cidade, para ser efetivado, careceria de uma
cês, Bertoni (2015) elucida que a compreensão do lei que o legitimasse, como acontece na atuali-
urbanismo sanitário de Brito tinha como desígnio dade, para, assim, sanear e modernizar o espaço
dois temas: os problemas de salubridade na trans- urbano. Sob essa perspectiva “Brito implantou o
formação dos espaços urbanos e na construção planejamento urbano na administração de inú-
das cidades, e as competências profissionais e o meras cidades brasileiras” (ANDRADE, 1992, p. 4).
diálogo entre as ciências. A abordagem defendida
por Saturnino de Brito fundamentava-se na Enge- Além de planejar, embelezar e sanear as cidades
nharia Sanitária, sua ciência de referência, mas tomadas ou sob ameaça de epidemias, o urba-
ele ampliou o ideário para além do saneamento nismo sanitarista de Brito conferiu às cidades
urbano ao pensar intervenções em áreas urbanas brasileiras um novo padrão estético, moderno e
existentes e a criar. progressista, além de formas urbanas próprias de
uma tecnologia de saneamento cuja implantação
Outra conjuntura a ser ressaltada foi a preocupa- se tornou, durante toda a Primeira República, um
ção de Saturnino de Brito com a salubridade das dos pilares do Estado Novo. Lopes (2013) com-
cidades, que fez com que introduzisse em seus plementa ao considerar que, a partir da consoli-
projetos novos espaços arborizados e livres na dação da nova ordem republicana, as principais
configuração física, considerados importantes cidades brasileiras passaram por um processo
para a saúde da população. Com essa preocupa- de modernização e urbanização relacionados
ção, acabaram emergindo diferentes programas ao novo projeto político das elites no poder. Esse
de conservação dos parques existentes e obras rearranjo espacial e social estava baseado nos
de reforma viária das áreas centrais urbanas que novos paradigmas de higienização e embeleza-
pudessem imprimir novos cenários, novos usos e mento franceses.
EIXO TEMÁTICO 1 Na Engenharia Sanitária pode-se considerar que
a configuração topográfica, as áreas verdes e
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO os recursos hídricos foram (e são) os elementos
que comumente modelaram a paisagem. Mas
esses fatores, associados às articulações sociais
e econômicas, formaram o quadro adequado para
o desenvolvimento de um planejamento urbano
e sanitário das cidades.

Saturnino de Brito defendeu como tarefa funda-


mental de qualquer cidade a obrigação de prever
a expansão da rede sanitária e dos arruamentos.
Para Andrade (1992), Brito afirmava que a neces-
sidade de se elaborar planos gerais de expansão
se dava por três fatores: evitar que o crescimento
da cidade acontecesse ao acaso, extinguir os
conflitos entre interesses privados e públicos e
conceder maior longevidade às obras de sanea-
mento, para que elas não fossem comprometidas
futuramente.

Para Saturnino de Brito, o planejamento das ci-


dades deveria assumir a perspectiva de um plano
geral, determinando a expansão da cidade, bem
como regulando os arruamentos que existissem.
É importante ressaltar que preocupação com
água, esgoto, habitação, traçado, áreas verdes
e topografia foram pautas de análises e projetos.

Dentro desse contexto de planejamento das ci-


dades desenvolvido por Brito, era fundamental
realizar um levantamento prévio da cidade exis-
tente. Brito então desenvolveu uma metodologia
ampla para levantamentos e diagnósticos da área
a ser estudada, importantes para a organização
dos projetos: levantamento topográfico preciso,
ruas e becos a serem alargados, locais pitorescos
a serem preservados, áreas para jardins e par-
ques, áreas para uma futura expansão da cidade,
levantamentos cadastrais, características eco-
nômicas, planos e posturas municipais elabora-
dos anteriormente, população, vegetação, clima,
salubridade, bem como causas de insalubridade,
situação atual dos serviços urbanos, condições
sanitárias, mananciais a serem preservados, na-
tureza das águas, mensuração do volume de água
requisitado, indicações precisas das condições
de descarga dos despejos, atitudes da popula-
ção do ponto de vista higiênico, condições das
moradias, tipos de instalações nas residências
16º SHCU
e condicionantes topográficas (LOPES, 2013).
30 anos . Atualização Crítica

316 Para Dieb (2015), as intervenções propostas por


Brito tinham marcas incomuns para a época, par- melhoramentos e extensão que Saturnino de Brito
ticularmente quanto à hidrologia. Demonstravam elabora e implanta na cidade de Santos, mesmo
a sua preocupação com as questões ambientais, não tendo sido implantado em todos os seus as-
sensibilidade na percepção de elementos da pai- pectos, não representou apenas a construção de
sagem que poderiam ou deveriam ser preservados uma cidade moderna, mas também a aplicação
e apropriados no processo de urbanização e sane- de princípios urbanísticos revolucionários para o
amento de cada cidade, além da preocupação em momento, em que o passado colonial desapareceu
informar e educar a população para as questões em nome de um futuro marcado pela higiene e
ambientais relativas ao meio urbano. Havia, ainda, pelo progresso, que influenciou depois decisi-
o cuidado de nortear o adequado processo de vamente o desenvolvimento e o planejamento
expansão de cada localidade, por meio da ela- urbano no Brasil.
boração de planos ou projetos urbanos, visando
O projeto elaborado por Saturnino de Brito para
a otimizar os investimentos feitos e evitar que
Santos buscou orientar e regular tanto a cidade
todo o esforço dedicado ao saneamento e à qua-
construída como o processo de expansão. Empre-
lidade urbana fosse comprometido depois, pela
gou novas tecnologias sanitárias para solucionar
expansão sem planejamento. Com essa postura
a insalubridade do meio físico. A sua atuação na
Saturnino de Brito aliou ao saneamento a proteção
cidade, contemplando o planejamento urbano
(ao menos parcial) do patrimônio natural presente
e social, configurou-se como uma importante
em cada uma das cidades em que trabalhou.
contribuição ao planejamento urbano brasileiro
Foram muitos os projetos que Brito elaborou, mas realizado até então.
a maior referência é o projeto de Santos, cidade
litorânea paulista.

Na virada do século XX, Santos tinha se tornado


o principal porto de exportação de café, com a
presença de muitos postos de trabalho formados
pelas obras e serviços de infraestrutura. Para
Carriço (2013), os cortiços, barracos construí-
dos nos quintais dos casarões ou subdivisões em
seus porões, eram as moradias que figuravam
na paisagem da cidade. Doenças como a febre
amarela, a tuberculose, a varíola e o impaludismo
(malária) acometiam a população de tempos em
tempos. O agravamento das epidemias, que pas-
saram a obstaculizar o comércio cafeeiro, tornou
necessário controlar a produção do espaço e a
vida cotidiana urbana, por meio da legislação e de Figura 1: Planta e projeto de Saturnino de Brito para a
intervenções no ambiente construído. Em 1905, cidade de Santos, 1910. Fonte: Arquivo Público do Estado
de São Paulo.
Saturnino de Brito assumiu a Chefia da Comissão
de Saneamento da cidade e, nesse mesmo ano,
apresentou seu plano para o saneamento de San-
tos. Tinha como proposta adotar dois sistemas de
SATURNINO DE BRITO E O PLANEJAMENTO URBANO
separação absoluta e execução de uma extensa
rede de canais de drenagem e galerias de esgo- DE ROSÁRIO/RS
tos, ao mesmo tempo em que o abastecimento
de água era expandido. A Santos moderna nascia A formação urbana de Rosário inicia-se por volta
estruturada em uma rede de infraestrutura sufi- do ano de 1800. Com a doação de uma extensão
ciente para suportar o adensamento populacional de terra em louvor a Nossa Senhora do Rosário,
da primeira metade do século XX (Figura 1). foi instituída a dimensão urbana Capela Curada.
Passados alguns anos, a localidade foi elevada à
Segundo Andrade (1991), o plano de saneamento, condição urbana de Freguesia. Somente no ano
EIXO TEMÁTICO 1 de 1876 a freguesia foi elevada ao status de Vila e
a primeira câmara de vereadores foi instalada no
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO ano seguinte, em 1877. No ano de 1944, por meio
de um decreto estadual, o município passou a se
chamar Rosário do Sul, para diferenciar-se da
Rosario argentina.

No ano de 1914, a população do município era de


15.455 habitantes e a da Vila, contando seu perí-
metro e áreas próximas a ela, como os ranchos
e subúrbios, era de 4.879. O número de casas
existente no perímetro da Vila de Nossa Senhora
do Rosário era um pouco superior a 500, sendo o
número de moradores do perímetro urbano da Vila
de apenas 3.500 (BRASIL, 1943). Esse número de
habitantes denota a importância do caráter rural,
não somente dessa região, era uma característica
do Brasil naquela época.

Havia-se traçado nesse período uma estimativa


de que a cidade logo alcançaria o número de 8.000
habitantes (BRASIL, 1943). Essa ideia baseava-se
na presença da Companhia Swift do Brasil na
cidade de Rosário. Essa empresa frigorífica e de
enlatados foi fundada na cidade no ano de 1917.
A Companhia Swift formou ali uma aglomeração
fabril, com a construção de habitações, sede
administrativa, fábrica e demais estruturas para
uma “cidade-companhia”.

Nesse cenário de início do século XX, foi implan-


tada na cidade a estrada de ferro da Cie Auxiliaire
des Chemins de Fer au Brésil que unia as cidades
de Santa Maria e Sant’Ana do Livramento, esta
última na fronteira com a República do Uruguai.
Essa linha ferroviária passando pelo município
de Rosário foi inaugurada em 1909 (Figura 2). Por
ela também passou, entre as décadas de 1940 e
1950, o Trem Internacional, que unia São Paulo a
Montevidéu.

É importante destacar que havia nesse momento,


no ano de 1919, quando da elaboração do planeja-
mento urbano da cidade de Rosário por Saturnino
de Brito, a disseminação de um ideário político
no estado. Lopes (2013) argumenta que o Partido
Republicano Rio-Grandense (PRR), para se manter
hegemônico no poder, trabalhou para a cons-
trução de um projeto territorial e urbano no Rio
Grande do Sul. O partido propôs um plano de de-
16º SHCU senvolvimento regional do sistema de transporte,
30 anos . Atualização Crítica
o Plano Geral de Viação, que funcionaria como um
318 importante instrumento político. Conjuntamente,
o partido identificou em Brito o responsável ca- cujas consequências são observadas quando da
paz de promover a modernização de importantes elaboração de planos de saneamento e outros
cidades que iriam compor esse plano. melhoramentos urbanos (BRASIL, 1943).

Com intuito de se servirem das ideias do urba- Sobre essa configuração urbana de Rosário, o
nismo sanitarista de Brito para a orientação à engenheiro destaca que, embora houvesse um
formação de um novo projeto urbano para o esta- método na composição de seu traçado e na di-
do, nesse mesmo ano de 1919 Saturnino elaborou visão dos quarteirões em lotes, ele não foi sufi-
planos urbanos para quatro cidades, num único ciente para evitar os erros ou os inconvenientes,
período de trabalho, sendo elas: Santa Maria, Ca- que teriam sido eliminados ou minimizados caso
choeira, Passo Fundo, Cruz Alta e Rosário. houvessem sido “atendidos outros princípios que
a experiência e a reflexão estabeleceram para a
arte moderna de edificar cidades” (BRASIL, 1943,
p. 210).

Essa postura em relação à arte moderna de


construir cidades expressa que o engenheiro
não considerava oportuno que nessa arte se le-
vasse em conta apenas os ideais e pensamentos
do profissional erudito, mas particularmente a
utilidade de se construir cidades considerando
todas as dimensões da vida dentro dela.

Saturnino de Brito observa que adotaram para


Rosário os arruamentos seguindo uma malha
Figura 2: Fotografia aérea de Rosário, 1959. Em destaque ortogonal. Nesse sentido, ele tece uma crítica
(linha na cor amarela) o trecho da ferrovia. Fonte: esta- ponderando que os modernos urbanistas, com
coesferroviarias.com.br. almas de artistas, condenaram as longas ruas
em linhas retas, cortando-se em ângulos retos.
Os traçados em xadrez são impróprios para os
O relatório e projeto elaborado por Saturnino de terrenos acidentados. A configuração do espaço
Brito para a cidade de Rosário é dividido em quatro urbano deve respeitar a “topografia do terreno, de
partes. Na primeira parte, o documento explica os modo a facilitarem-se as construções sanitárias
aspectos topográfico-sanitários, a salubridade e e o trânsito de veículos em certas ruas destinadas
os melhoramentos municipais; na segunda parte a um movimento intenso” (BRASIL, 1943, p. 212).
é caracterizado o processo de abastecimento de
água para a cidade; na terceira parte, o relatório Para a cidade, Saturnino de Brito propôs que as
versa sobre os esgotos; e, por fim, na última parte, quadras e quarteirões tivessem 600 x 600 palmos,
são apresentados os custos dos serviços. ou 132 x 132 metros. As ruas deveriam ser todas
largas, com 100 palmos, ou 22 metros. Cada qua-
Acerca da conjuntura de formação urbana da ci- dra ficaria dividida em 20 lotes, conforme aponta
dade, Brito explica que houve uma preocupação o relatório. Os lotes voltados para o norte e para o
com sua configuração e expõe a sua compreensão sul deveriam possuir 22 metros de frente por cer-
acerca das realidades urbanas no Brasil. Para ele, ca de 40 metros de fundo; os lotes voltados para
muitos arruamentos surgiram ao acaso ou foram leste e oeste deveriam ter 13,20 metros de frente
adotados segundo os caprichos e interesses dos por 66 metros de fundo (Brasil, 1943) (Figura 3).
proprietários e das administrações municipais,
sem expressar os princípios racionais de um plano Pode-se notar nesse projeto que Saturnino de
geral composto de elementos harmônicos. Bri- Brito pensou na qualidade dos espaços públicos
to revela que, a partir da falta de um método no da cidade. Estabeleceu a requalificação dos jar-
traçado urbano, podem-se encontrar resultados dins e praças existentes, assim como projetou
interessantes, mas geralmente predominam erros novos jardins e parques para Rosário.
EIXO TEMÁTICO 1 Observa-se que o principal inconveniente identi-
ficado nos traçados regulares e irregulares con-
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO sistia em serem os fundos de muitos desses lotes
mais baixos que as frentes para as ruas, de forma
que o esgotamento das águas das chuvas e dos
despejos não se faziam em condições normais.
Para se fazer um serviço regular seria necessário
estabelecer as “vielas sanitárias”. As vielas são
seções de 3 a 6 metros de largura abertas nesses
lotes para facilitar o estabelecimento dos esgotos,
a saída do lixo, a entrada de combustível etc. Em
síntese, elas são pequenas ruas traçadas nesses
tipos de lotes.

Figura 3: “Projecto de Extenção da Villa”, 1919. Fonte:


BRASIL, 1943, p. 211.

Em 1919, Rosário era iluminada por luz elétrica, to-


davia, foi observado pelo engenheiro que o motor
a diesel não seria suficiente para gerar energia.
Tal fato fez com que se buscasse uma alternativa,
ou seja, uma queda d’água que pudesse produzir
energia para a cidade. Outro dado revelado pelo
documento é que, com a recente instalação da
Companhia Swift, novas necessidades aparece-
riam e os melhoramentos municipais deveriam
satisfazer a essas necessidades.

Ainda em relação à Companhia Swift, o uso dos


poços para água e das fossas absorventes para
o esgoto influenciavam naturalmente a condição
de salubridade, embora naquele momento não te-
nham sido identificados casos preocupantes, em
razão de Rosário ser pequena e a sua população
16º SHCU estar disseminada pelo território do município.
30 anos . Atualização Crítica
Mas, com o estabelecimento dessa empresa, “a
320 municipalidade resolveu evitar, o mais cedo possí-
vel, o aparecimento dos males que a higiene prevê para a purificação e distribuição. O canal de dre-
nesses casos” (BRASIL, 1943, p. 213). nagem, caso fosse construído, seria um equipa-
mento que facilitaria essa tomada (BRASIL, 1943).
Quanto ao abastecimento de água, o relatório
revela que a água era em sua maioria tomada dos A Companhia Swift era uma preocupação cons-
poços abertos nos quintais e era considerada de tante nesse planejamento. Ela se abastecia com
boa qualidade. Todavia, o engenheiro expressa as águas do rio Ibicuí, tomadas na entrada da cida-
que deveriam ser tomadas as devidas providên- de. As águas de lavagem e as impurezas por elas
cias, pois havia o perigo de essas águas serem acarretadas eram despejadas, sem tratamento,
contaminadas. em um banhado, na várzea em frente à cidade.
Quando as águas impuras desse banhado extra-
Estimou-se que para 1.000 casas bastariam 1.000 vasavam, em razão das chuvas, seguiam o fluxo
m³ de água por dia, a serem distribuídos em 12 do rio, contaminando as águas destinadas ao con-
horas. “Mas, com o projeto de expansão da cida- sumo dos moradores. Caberia à municipalidade
de, o número total de casas se elevará a 2.300 e medidas normativas junto à Companhia, pois tal
então serão precisos 2.300 m³ por dia, ou quase situação poderia resultar em sérios problemas
o triplo do consumo atual” (BRASIL, 1943, p. 215). futuros para a cidade.
Um fato que chama a atenção no plano que seria Para que as despesas com o abastecimento de
proposto para o abastecimento de água da cidade água fossem pagas e depois gerassem fonte de
era a Companhia Swift. Naquele momento, não rendimento para Rosário, foi estabelecida a obriga-
se sabia se ela seria ou não consumidora da água toriedade do uso do hidrômetro em todas as cons-
da cidade. Segundo Brito (BRASIL, 1943), o volu- truções da cidade, sendo esse equipamento “indis-
me que ela viria a consumir poderia variar entre pensável em todos os serviços organizados de um
1.900 a 2.600 m³ por dia, o que significava quase modo racional e econômico” (BRASIL, 1943, p. 227).
duas a três vezes o volume necessário para uma
cidade de 1.000 moradias. Foi também pensado pelo engenheiro que o canal
de drenagem deveria interceptar uma parte das
Quando da elaboração do relatório para a cidade de águas pluviais da cidade. Os pequenos cursos
Rosário, Brito não tinha em mãos o resultado das d’água existentes no perímetro urbano poderiam
análises das águas; elas haviam sido mandadas ser canalizados por canaletas, sarjetas ou con-
fazer em Porto Alegre pelo poder público local. As dutores subterrâneos. O objetivo desse proce-
amostras foram retiradas do rio Ibicuí e de um poço dimento era o escoamento das águas pluviais.
aberto na margem, nas proximidades desse mesmo
rio. Se se tivesse de tomar a água desse rio ou de ou- Sendo a topografia da cidade acidentada, era
tro, seria necessária a sua purificação, adotando um favorável idealizar o escoamento dos esgotos
processo de filtração rápida, como o que foi adota- sanitários nas ruas e desfavorável o seu escoa-
do para a cidade do Recife, estado de Pernambuco. mento nas casas, uma vez que muitas possuíam
os terrenos mais baixos nos fundos do que nas
O documento propunha três soluções para o frentes. Para solucionar essa situação, foi pen-
abastecimento de água. A primeira era o poço sado um interceptor geral que pudesse promover
filtrante defronte à confluência dos rios Ibicuí o escoamento adequado.
e Santa Maria; a segunda solução era de poço
filtrante na margem do rio Ibicuí; e a última era o Esse interceptor foi projetado de modo a receber
poço de tomada e filtração na confluência dos rios a contribuição de esgotos da Companhia Swift,
Ibicuí e Santa Maria. É interessante revelar que, na limitando o desenvolvimento da cidade do lado
primeira solução, o engenheiro também pensou na onde o nível das terras era baixo. Essa localização
possibilidade de abrir um canal de drenagem, que foi proposta em razão de que seria indispensável
seria o interceptor das águas impuras vindas da ci- nessa área estabelecer bombas para a elevação
dade e as conduziria para o lado oposto, proposta dos despejos.
similar à da cidade de Santos. A terceira solução
utilizaria uma parte da primeira, isto é, seria to- Na elaboração do relatório de esgotos sanitários,
mada a água do rio da forma como se encontrava Brito dividiu Rosário em seis distritos, mas seriam
EIXO TEMÁTICO 1 esgotados de pronto apenas os distritos de 1 a 3.
O engenheiro criou uma espécie de zoneamento
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO urbano para seu projeto de saneamento. Na planta
do projeto é possível identificar a abertura de
algumas vielas sanitárias para o esgotamento
dos fundos dos prédios localizados em condições
desfavoráveis.

Nesse relatório de Rosário, o engenheiro sanita-


rista destacava que as instalações dos esgotos
nas casas deveriam ser realizadas pela adminis-
tração municipal, e não pelos proprietários ou
empreiteiros. No planejamento da cidade, Brito já
definiu algumas atribuições que seriam exclusiva-
mente de responsabilidade do poder público local.

Quando apresentou os custos da obra para a ad-


ministração municipal, fez algumas ressalvas im-
portantes. Na formação do capital, seria preciso
resolver primeiro como a administração faria para
que os proprietários pagassem as instalações
domiciliares, não incluídas no orçamento. Para
Brito, era possível baixar o valor do orçamento,
desde que se limitasse o serviço a uma área me-
nor. Poder-se-ia, também, para baratear a obra,
substituir os tanques de ferro por tanques de ma-
deira para os reservatórios de água (BRASIL, 1943).

Saturnino de Brito apresentou quatro orçamentos.


Há uma variação de valor entre eles, pois o enge-
nheiro especificou o tipo de poço, a localização
desse poço d’água, a captação dessa água e o
tipo de filtração. Brito ainda chamou a atenção do
poder público municipal revelando que, talvez, as
obras poderiam ficar mais baratas se os materiais
fossem trazidos do Uruguai (BRASIL, 1943).

O relatório e projeto que o engenheiro elaborou


para a cidade de Rosário buscou analisar e pro-
por soluções tendo como dimensão o espaço
urbano dessa localidade. As proposições desse
documento revelam uma percepção particular
em relação à realidade local, conformando esse
trabalho num esforço de planejamento da cidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

16º SHCU A realidade urbana das cidades brasileiras que


30 anos . Atualização Crítica
passavam por transformações em seus espaços
322 intraurbanos refletia uma nova ordem social. Essa
sociedade urbano-industrial caracterizava-se mais: que esse saber e fazer urbanos constituíram
pela modernização e progresso de sua vida e dos o escopo para o planejamento urbano de cidades
espaços urbanos. A nova dimensão da produtivi- que não figuravam no cenário nacional, e também
dade econômica tornava necessárias interven- ponderar as particularidades urbanas, das quais
ções urbanas. Rosário é um exemplo.
Tem-se como exemplo do desenvolvimento dessa
nova ordem econômica a Companhia Swift, na
cidade de Rosário, que fez emergir uma estru-
tura de transporte que atendesse à demanda de
exportação e importação de produtos. Nesse
sentido, a presença de uma companhia ferroviária
em muitas localidades foi uma constante. Tal fato
alterou a realidade das localidades, revelando a
necessidade de se pensar em planejamento.

O planejamento urbano surgiu com o intuito de


enfrentar as mudanças geradas por essa socie-
dade. Ele representou, num primeiro momento,
um instrumento de higiene pública, ou seja, ele
significou a autorização para as mudanças nas
cidades. O tecido urbano antigo era substituído
paulatinamente por uma outra realidade, mais mo-
derna e de aspectos europeus em seus traçados.

Para responder a essa sistemática que ganhava


cada vez mais representatividade, Brito desenvol-
veu como prática de seu trabalho um plano geral
para as cidades em que trabalhou. O engenheiro
partia de uma compreensão da topografia sani-
tária, passando pela evolução urbana, abasteci-
mento de água, esgotos sanitários, alcançando a
importância de se pensar o futuro para as cidades.
Os problemas de salubridade, a construção de
uma nova realidade urbana e a interlocução com
outras ciências eram os pilares do seu ideário
sanitarista.

Rosário se insere nessa dimensão por demonstrar


que o urbanismo sanitarista de Brito, pensado e
projetado para a cidade, foi o primeiro movimento
para o seu planejamento urbano. Ele analisou a
cidade em diferentes aspectos e idealizou inúme-
ras mudanças que pudessem transformar Rosá-
rio em uma cidade moderna e representativa do
progresso, contextos idealizados também pelo
Partido Republicano Rio-Grandense.

Retomando a hipótese de que o urbanismo sa-


nitarista se caracterizou como uma prática de
planejamento de cidades, pode-se atestar essa
afirmação mediante a relação entre mudanças e
urbanismo sanitário. O trabalho permite concluir
EIXO TEMÁTICO 1 REFERÊNCIAS
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EIXO TEMÁTICO 1 RESUMO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Este trabalho insere-se em uma pesquisa de
doutorado cujo objeto de estudo é o pensamento
SESSÃO temática urbanístico expresso em ARQUITETURA, revista
institucional do Instituto de Arquitetos do Brasil
– IAB nos anos 1960. Editada entre 1961 e 1968,
REVISTA ARQUITETURA _ IAB o periódico se destacou por seu engajamento
pela consolidação da profissão de arquitetos no
1961-1968: PRINCIPAIS Brasil. Este artigo tem como objetivo apresen-
tar e contextualizar o conteúdo das 78 edições
TEMAS E REDES da revista no período. A metodologia utilizada
consistiu na prévia catalogação e classificação
do conteúdo das revistas, a partir da qual iden-
ARQUITETURA MAGAZINE _ IAB 1961-1968: KEY tificamos e apresentamos os seus principais
TOPICS AND NETWORKS autores, redes de diálogos e temas abordados e
assim formar visões de conjunto do material. Os
REVISTA ARQUITETURA _ IAB 1961-1968: REDES Y resultados indicam que ARQUITETURA se cons-
TEMAS PRINCIPALES tituiu como veículo de divulgação de inúmeros
autores - brasileiros e estrangeiros -, importan-
tes, revelando uma intensa troca intelectual en-
LAGE DA GAMA LIMA, Marina
tre os arquitetos do IAB e outros estudiosos do
Doutoranda em urbanismo; PROURB / FAU / UFRJ
urbanismo. Além disso, ARQUITETURA também
marinalagelima@gmail.com
configurou-se como uma publicação transdis-
ciplinar e interligada com os acontecimentos
políticos e culturais do período, representando
uma classe profissional compromissada com a
justiça social e com a função social da arquite-
tura.

INSTITUTO DE ARQUITETOS DO BRASIL PERIÓDICOS DE


ARQUITETURA ANOS 1960

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

326
ABSTRACT RESUMEN

This work is part of a doctoral research whose Este trabajo es parte de una investigación doc-
study´s object is the urban thinking expressed toral cuyo objeto de estudio es el pensamiento
in ARQUITETURA, institutional magazine of the urbano expresado en ARQUITETURA, revista ins-
Institute of Architects of Brazil - IAB in the 1960s. titucional del Instituto de Arquitectos de Brasil
Edited between 1961 and 1968, the journal stood - IAB en la década de 1960. Editado entre 1961 y
out for its commitment to consolidation of the 1968, la revista destacó por su compromiso con
profession of architects in Brazil. This article Consolidación de la profesión de arquitectos en
aims to present and contextualize the content of Brasil. Este artículo tiene como objetivo presen-
the 78 editions of the magazine in the period. The tar y contextualizar el contenido de las 78 edicio-
methodology used consisted of prior cataloging nes de la revista en el período. La metodología
and classification of the content of the journals, utilizada consistió en la catalogación previa y la
from which we identified and presented their clasificación del contenido de las revistas, a par-
main authors, networks of dialogues and topics tir de las cuales identificamos y presentamos a
covered and thus form views of the material as sus principales autores, redes de diálogos y te-
a whole. The results indicate that ARQUITETURA mas cubiertos y, por lo tanto, formamos vistas
has become a vehicle for the dissemination of nu- del material en su conjunto. Los resultados indi-
merous important authors - Brazilian and foreign can que la ARQUITETURA se ha convertido en un
-, revealing an intense intellectual exchange be- vehículo para la difusión de numerosos autores,
tween the architects of the IAB and other scho- brasileños y extranjeros, que son importantes,
lars of urbanism. In addition, ARQUITETURA was revelando un intenso intercambio intelectual en-
also configured as a transdisciplinary publication tre los arquitectos del IAB y otros estudiosos del
interconnected with the political and cultural urbanismo. Además, ARQUITETURA también se
events of the period, representing a professional configuró como una publicación transdisciplina-
class committed to social justice and the social rio e interconectada con los eventos políticos y
function of architecture. culturales de la época, representando una clase
profesional comprometida con la justicia social y
la función social de la arquitectura.
INSTITUTO DE ARQUITETOS DO BRASIL
ARCHITECTURE MAGAZINE 1960’S
INSTITUTO DE ARQUITETOS DO BRASIL REVISTAS DE
ARQUITECTURA AÑOS 1960
EIXO TEMÁTICO 1 INTRODUÇÃO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO ARQUITETURA foi o título escolhido para nomear
o periódico especializado em arquitetura e ur-
banismo editado pelo Instituto de Arquitetos do
SESSÃO temática Brasil - IAB nos anos 1960. O periódico em formato
de revista, era uma ampliação e uma extensão
dos Boletins Mensais publicados pelo IAB do Rio
REVISTA ARQUITETURA _ IAB de Janeiro desde 1958, e nasceu com a manifesta

1961-1968: PRINCIPAIS intenção ser a expressão oficial do IAB frente à so-


ciedade. Sua publicação se deu de forma irregular:

TEMAS E REDES entre agosto de 1961 e novembro de 1962, e com o


nome GUANABARA1, foram publicados 5 números.
A partir de dezembro de 1962, com o nome de AR-
ARQUITETURA MAGAZINE _ IAB 1961-1968: KEY QUITETURA, sua publicação passa a ser pratica-
TOPICS AND NETWORKS mente ininterrupta até o número 78 - dezembro de
1968 -, quando deixa de ser editada, no contexto da
REVISTA ARQUITETURA _ IAB 1961-1968: REDES Y repressão política do AI-5. A edição de ARQUITE-
TEMAS PRINCIPALES TURA foi retomada quase dez anos mais tarde, em
1977, e estende-se até 1998. Em nossa pesquisa,
abordaremos somente a primeira fase da revista.

Beatriz Colomina (2010), identifica e analisa a


“explosão de pequenas revistas de arquitetura”,
fenômeno global de surgimento de uma série de
publicações especializadas em arquitetura a partir
dos anos 1960 - possibilitado pelo desenvolvimen-
to de novas tecnologias que tornaram o processo
de impressão mais acessível e democrático - que
foram responsáveis pela reorganização do mo-
vimento moderno da arquitetura no pós-Guerra.
A despeito das características exploradas por
Colomina – experimentação, colagens e provoca-
ções – acreditamos que a ARQUITETURA estava
inserida em uma rede de diálogos que buscavam
ampliar os limites do fazer e do pensar sobre ar-
quitetura e urbanismo no período.

O historiador chileno Horácio Torrent (2018), afir-


ma que, na América Latina, as publicações es-
pecializadas em arquitetura na década de 1960
assumiram a “dupla condição” de ser, em parte
uma representação profissional e, em parte, uma

1. Com a transferência da capital do Brasil para Brasília,


em 1960, o território que correspondia à cidade do Rio de
Janeiro passou a constituir uma cidade-estado, com o
nome de Estado da Guanabara. Essa condição durou até
1975, quando se decidiu realizar a fusão dos Estados da
16º SHCU
Guanabara e do Rio de Janeiro, voltando o território do
30 anos . Atualização Crítica
estado da Guanabara a constituir a cidade do Rio de Janeiro,
328 que passou a ser capital do estado.
voz crítica em relação aos temas de desenvolvi- APRESENTAÇÃO
mento socioespacial. Elas se concretizaram como
veículos privilegiados para a discussão teórica, A revista nasceu fruto de um “arroubo enlouque-
através da abordagem de temas que se aproxi- cido e juvenil” dos arquitetos Maurício Nogueira
mavam dos campos econômico, social e político, Batista e Alfredo Britto que, juntos, propuseram
fazendo uso de marcos interpretativos próprios ao então presidente do IAB-GB, Maurício Rober-
da sociologia, do estruturalismo e do marxismo. A to, a criação de uma revista. Em “uma aventura
“particular orientação profissional” ao urbanismo fantástica, completamente louca” eles foram os
fez expandir o campo de atuação do arquiteto em principais responsáveis pelos primeiros números
um quadro predominantemente interdisciplinar, da revista (BRITTO, 2007). No editorial do primeiro
estimulada pela crescente urbanização e através número, escrito em tom de manifesto, a revista
da elaboração de planos, programas e projetos apresentava-se como órgão de divulgação enga-
voltados para orientar o crescimento econômico jado “na linha de frente, ao lado do Departamento
no território. (TORRENT, 2018: 4734). e de todo o Instituto, na luta pela consolidação
da profissão de arquitetos no Brasil.” (IAB, 1961.
Esse artigo tem como objetivo apresentar e con-
GUANABARA n°1, p. 08), e não apenas um órgão
textualizar o conteúdo de ARQUITETURA, desta-
que tivesse como finalidade principal a mera di-
cando seus principais autores, temas abordados
vulgação de obras de arquitetura. Se afirmavam
e redes de trocas de conhecimento, e insere-se
como objetivos a serem alcançados:
na pesquisa de doutorado em desenvolvimento no
PROURB/FAU/UFRJ. Nosso recorte irá concen- Uma consciência da necessidade de pla-
trar-se nos textos sobre urbanismo e política urba- nejamento. Uma política nacional de habi-
na, em detrimento da apresentação dos projetos. tação. A reforma da legislação profissio-
nal. A ampliação do mercado de trabalho.
A metodologia utilizada consiste na prévia indexa-
Maior divulgação dos princípios básicos da
ção de todo conteúdo das 78 edições das revistas,
arquitetura. Defesa do nosso patrimônio
a partir da leitura dos sumários, totalizando 1.139
estético natural e edificado. (GUANABARA,
itens. Cada item foi classificado em relação ao
n°1, agosto de 1961, p. 8)
número, ano, mês, nome da seção, título, autor
e tipo. Em seguida, procedemos a indexação do A revista era distribuída gratuitamente e pretendia
conteúdo dos documentos, classificando-os em alcançar “todos os arquitetos do Brasil, institui-
relação ao tema geral, tema específico, etiquetas ções de ensino superior, associações de classe
e síntese. Esta indexação está organizada em uma nacionais e estrangeiras, firmas construtoras,
única planilha eletrônica que nos permitiu formar indústrias, órgãos federais e estaduais.” (IAB,
visões de conjunto do conteúdo das publicações. 1961. GUANABARA n°1, p. 09).

Em nossa pesquisa procuramos responder a uma Maurício Nogueira Batista, considerado a “alma” da
série de perguntas, previamente formuladas: revista (KONDER NETTO, 2019), era o responsável
Quais eram os principais temas de urbanismo pelos editoriais, e também era ele, principalmente,
abordados nas revistas e porquê? Quais relações quem escolhia, coordenava e produzia o material
dos temas abordados com o contexto sociopolí- que seria publicado, assinando também diversos
tico do período? Quais eram as redes de saberes artigos e traduções. É ele quem assina, como re-
às quais estavam interligados? Quais seus in- dator-chefe, todos os números de ARQUITETURA
terlocutores? Qual a opinião desses arquitetos/ até o número 68.
autores / redatores em relação aos aconteci-
mentos políticos e econômicos em curso? Qual O Conselho de Redação era composto pelos ar-
o seu posicionamento crítico diante a realidade quitetos Maurício Roberto (presidente do IAB-GB
urbana vivenciada? Que papel que eles atribuíam a até 1965), Eduardo Reidy, Edgard Graeff (IAB-DF),
si mesmos, enquanto profissionais, diante dessa Ernani Vasconcellos (IAB-GB), Henrique Mindlin
realidade? Quais respostas propunham, no campo (IAB-GB), Ícaro de Castro (presidente do IAB Na-
do urbanismo, para os problemas sociopolíticos cional), Marcelo Roberto (IAB-GB, Marcos Konder
que identificavam? Neto (presidente do IAB-DG entre 1966 e 1967),
EIXO TEMÁTICO 1 Oscar Niemeyer (IAB-GB), Paulo Antunes Ribeiro
(presidente do IAB entre 1953 e 1956), Paulo Santos
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO (IAB-GB e Sylvio de Vasconcellos (IAB-MG). Esse
corpo permanece praticamente2 inalterado até
o número 68, de janeiro de 1968.

Em termos editoriais, a revista atravessou 3 fases


distintas: a primeira, com o nome de GUANABA-
RA, a foi composta por 5 edições, distribuídas ao
longo de 09 meses, entre agosto de 1961 e abril de
1962. Nessa fase, destaca-se a seção Inquérito
nacional de arquitetura, uma série de entrevistas
com arquitetos de destaque no cenário nacional,
que havia sido objeto do suplemento dominical
do Jornal do Brasil, sob orientação do arquiteto
Alfredo Brito com o apoio do IAB-DG. Também
foi, nessa fase, publicada pela primeira vez uma
seção intitulada Obras tombadas pelo patrimônio,
na qual era divulgada a lista de obras tombadas
pelo então Departamento Histórico e Artístico
Nacional – DPHAN, atual IPHAN. Também nesse
período, publicou-se pela primeira vez a seção
chamada O problema da habitação e os arquitetos,
que procurava marcar “de maneira decisiva a po-
sição do arquiteto ante o problema habitacional
brasileiro”, através da publicação de manifestos,
relatórios, projetos de conjuntos residenciais,
entre outros documentos. Essa seção se repeti-
ria de maneira intermitente até o número 18, em
dezembro de 1963.

Figura 1: Fases da revista. Ilustração da autora (2020).

A segunda fase da revista começa a partir do nú-


mero 06, publicada em dezembro de 1962, quando
o jornalista Álvaro Pacheco3 assume a edição

2. À exceção de Eduardo Reidy e Marcelo Roberto, que


16º SHCU falecem em 1964.
30 anos . Atualização Crítica
3. Álvaro Pacheco havia sido editor do Anuário de Arquitetu-
330 ra, publicação da FNA. Em 1962 fundou a Editora Artenova
profissional da revista, e torna-se o responsá- Em suas 78 edições, ARQUITETURA foi respon-
vel pela diagramação e pela comercialização do sável pela publicação de mais de três mil páginas
espaço publicitário. Essa nova fase vem acom- de documentos, compostas por ensaios, repor-
panhada pela mudança de nome da revista, que tagens, artigos, transcrição de conferências,
passa a chamar-se ARQUITETURA: “para crescer traduções, divulgação de projetos, depoimentos,
mais, significar mais, precisava de um novo nome entrevistas, notícias, etc. O gráfico a seguir mos-
traduzindo maior amplitude e que fosse mais ca- tra a distribuição desses documentos ao longo dos
racterístico.” (1962. n°6, p.03). Nesse período, AR- anos, no qual o eixo “y” contabiliza a quantidade
QUITETURA passa a fazer algumas reportagens de documentos publicados na revista. Notamos
com temas especiais em troca de financiamento4, que o pico do volume de matérias nas revistas se
como o número especial sobre arquitetura hospi- deu em 1965: neste ano ARQUITETURA editou 239
talar em maio de 1965, e um especial sobre prisões documentos. Em 1967 e 1968 nota-se uma redução
em julho de 1967. A editora Artenova permanece no visível do número de documentos publicados,
corpo editorial de ARQUITETURA até dezembro de totalizando 132 e 124 itens respectivamente.
1967, n°66, quando a revista volta a ser editada “sob
exclusiva responsabilidade e inteiro controle do
Instituto de Arquitetos do Brasil – Departamento
da Guanabara.” (ARQUITETURA n° 66, 1967, p.10),
finalizando a segunda fase editorial da revista.

A partir do número 69, em março de 1968, ARQUI-


TETURA passa a ser uma publicação oficial do
IAB nacional e se unem ao Conselho de Redação
Augusto Silva Teles (IAB-GB), Henrique Mindlin
(IAB-GB), Jorge Machado Moreira (IAB-GB), Jorge
Wilhem (IAB-SP), Vilanova Artigas (IAB-SP) e o jor-
nalista Zuenir Ventura. A redação, administração e Figura 2: Gráfico de distribuição do conteúdo por ano.
impressão da revista permanecem concentradas Fonte: ilustração da autora (2020).
no Rio de Janeiro, e a publicidade passa a ser
dividida entre Rio de Janeiro e São Paulo. Nessa
nova fase, Maurício Nogueira Batista passa para
o , cargo de Diretor Responsável (e presidente do Ao analisarmos o número de páginas das revistas,
IAB-GB) e o crítico Ferreira Gullar, antigo colabo- o resultado é um pouco diferente: com um número
rador da revista, passa a assinar como Chefe de médio de 40 páginas por revista, as revistas com
Redação. Nesse período, Maurício Nogueira Ba- maior número de páginas estão mais concentra-
tista assumia o cargo de presidência do IAB-GB. das no ano de 1963. A revista com maior número de
páginas é o número 42, de dezembro de 1965, com
O conteúdo de ARQUITETURA era ocasionalmente 72 páginas. Nesta, há uma grande seção sobre a
divulgado no jornal Correio da Manhã, um dos maio- vida e a obra de Rino Levi, que havia morrido em
res e mais tradicionais do Rio de Janeiro à ´poca, 29 de setembro daquele ano, com 18 páginas, e
com grande tiragem e bastante influente. Na edição uma seção intitulada Arquitetura e Urbanismo
de 14 de maio de 1963 (p.2.), foi transcrito um artigo no Amazonas com 20 páginas. Na outra ponta,
do designer Joaquim Tenreiro - Equipamento de in- o número com o menor número de páginas é o
teriores: ensino e industrialização -, publicado origi- 64, de outubro de 1967, com 24 páginas no total.
nalmente em ARQUITETURA em abril do mesmo ano.

Ltda., dedicada, inicialmente, somente a publicações de


revistas especializadas, como ARQUITETURA, Revista Bra-
sileira de Energia Elétrica, Economia e Desenvolvimento,
Medicina, entre outras.

4. IAB, 1991. P08.


EIXO TEMÁTICO 1
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO

Figura 3: Gráfico de distribuição de páginas por ano. Fonte:


ilustração da autora (2020).

TEMAS E SEÇÕES

Os temas contemplados reuniam projetos de ar-


quitetura e urbanismo, legislação, patrimônio, de-
sign, políticas urbanas, materiais de construção,
além de cinema, artes visuais, teatro e música,
entre outros. Entretanto, eram as seções que
tratavam do papel dos arquitetos nas políticas
de habitação e na urbanização das cidades que
tinham maior regularidade e ênfase na publicação,
bem como nos editoriais. Geralmente os editoriais
apresentavam o tema do principal conteúdo da
edição, e eram escritos como uma declaração pú-
blica, na qual os arquitetos do IAB expunham seu
ponto de vista a respeito de um tema determinado.

O tema da habitação também se sobressai na


seção intitulada O problema da habitação e os
arquitetos, publicada entre 1962 e 1963. A seção
tinha como objetivo marcar “de maneira decisiva
a posição do arquiteto ante o grave problema
habitacional brasileiro” (n°6, 1962, p.4). Nela eram
publicados documentos de naturezas diversas.
Destacamos aqui a publicação dos resultados
da I Jornada Nacional de Habitação, promovida
pelo IAB em São Paulo em 1961 (n°6, 1962, p.4); um
debate sobre as consequências na saúde física
e mental dos ocupantes de grandes conjuntos
16º SHCU residenciais (n°12, 1963, p.6); assim como a ma-
30 anos . Atualização Crítica
nifestação dos arquitetos do IAB às questões
332 relativas às legislações que afetavam a política
habitacional brasileira, como a Lei do Inquilinato discutida e aprofundada em congressos, rela-
(n°17, 1963, p.10) e o Decreto 1.281, que transforma- tórios, comissões de estudos (FRANÇA E LEITE,
va a Comissão Nacional da Habitação em Conselho 2017). Defendia-se a necessidade de criação de
Federal da Habitação, ao mesmo tempo em que mecanismo legais que permitissem maior capa-
retirava aquele órgão da esfera do Ministério do cidade de intervenção dos municípios quanto ao
Trabalho e Previdência Social e colocava-o na uso e à distribuição do solo urbano em função
subordinação direta do Presidente do Conselho do interesse social, uma vez que havia o enten-
de Ministros (ARQUITETURA n°6, 1962, p.6). dimento que as questões relativas à urbanização
não poderiam ficar restritas aos limites físicos, e
Ainda no campo da habitação, ARQUITETURA foi sim abraçar fatores econômicos e sociais. Nes-
a principal fonte de divulgação do famoso Semi- se contexto, foram publicados diversos artigos,
nário de Habitação e Reforma Urbana O Homem, editoriais, traduções e demais documentos que
sua Casa, sua Cidade, que depois ficou conhe- abordam o tema. “Planejamento” foi, inclusive,
cido como Seminário Quitandinha5. O número título de uma seção especial nas revistas, em 16
da ARQUITETURA n° 15, de setembro de 1963, edições entre os números 22 (1964) e 58 (1967).
publicou na íntegra os resultados do Seminário.
Outro assunto relevante sobre planejamento en-
Desde o início da década de 1950 que “plane- contrado nas revistas foi a reação dos arquitetos
jamento” e “desenvolvimento” eram conceitos cariocas ao Plano Doxiadis - o plano diretor elabo-
associados e presentes na difusão do ideário rado para o Estado da Guanabara nos anos 1960,
em que o Estado, enquanto principal agente da com vistas em orientar o crescimento da cidade
modernização, implantaria políticas planejadas para o ano 2000, e executado pelo escritório do
como estratégia de desenvolvimento nacional. arquiteto grego Constantino Doxiadis, convidado
Havia a crença em que um corpo de técnicas, com pelo então governador Carlos Lacerda6 (1960-65).
validade universal e independente das estruturas A despeito de suas qualidades e/ou defeitos, o
políticas locais, se aplicado corretamente teria o Plano Doxiadis jamais foi aceito pelos arquitetos
poder de atender ao interesse público (FRIDMAN, e urbanistas brasileiros. A reação dos arquitetos
2014). E dentro deste paradigma do planejamento à contratação de Doxiadis pode ser resgatada
estavam inseridos os conceitos sobre urbanismo através de artigos nos números 20 e 21 - feve-
defendidos na ARQUITETURA: a cidade deveria ser reiro e março de 1964 -, nos quais é apresentada
planejada com subordinação a diretrizes regionais a posição do IAB – Guanabara e explicadas as
e nacionais, e os aspectos físicos deveriam ser razões de se oporem à essa contratação.
integrados a um planejamento no qual figuravam,
Além dos temas centrais de habitação e de plane-
obrigatoriamente, aspectos econômicos e sociais.
jamento urbano, ARQUITETURA também abordou
Para tanto, os arquitetos defendiam a criação de diversos outros, relevantes ao universo dos arqui-
tetos e urbanistas brasileiros, como aconteceu na
órgãos específicos para o tratamento das ques-
o número especial sobre o uso de computadores
tões de planejamento urbano, tanto em nível re-
em arquitetura e planejamento, no n°57 de março
gional quanto federal. Esta pauta era reivindicada
de 1967. Outro assunto de destaque, destaca-
pelos arquitetos do IAB desde 1953, e vinha sendo
mos uma parceria com a Secretaria de Justiça
do Estado da Guanabara, para a promoção do
5. O Seminário Quitandinha concretizava a união da proposta Concurso Público Nacional de Anteprojeto da Nova
do departamento do IAB de São Paulo – de realização de Penitenciária do Estado da Guanabara, que entre
um seminário sobre reforma urbana –, com a proposta do 1967 e 1968 promoveu uma série de reportagens
IAB da Guanabara de definição de uma política nacional de sobre arquitetura de presídios.
habitação, com o apoio do Instituto de Pensões e Assistência
aos Servidores do Estado – IPASE, que buscava uma forma ARQUITETURA foi o veículo oficial de divulgação
de investimento do seu capital. O seminário contou com a
participação de elementos da previdência social, dos órgãos
governamentais interessados, de arquitetos, sociólogos, 6. Lacerda havia procurava afirmar sua imagem de adminis-
engenheiros e demais profissionais e entidades ligadas ao trador eficiente, através da utilização de um instrumental
problema. (ARQUITETURA n° 12, junho de 1963, p.24). técnico e neutro. (REZENDE, 2014)
EIXO TEMÁTICO 1 dos resultados das premiações anuais do IAB,
que tiveram início em 1963, durante a gestão de
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO Maurício Roberto na presidência do IAB-GB. A
premiação foi criada com o intuito de divulgar a
produção contemporânea de arquitetura brasi-
leira, como reação à falta de representatividade
da arquitetura na política oficial de incentivos às
atividades culturais – os salões oficiais – que “sem-
pre desprezou a arquitetura” (1964, n°19, p.4). Os
arquitetos do IAB-GB, visando o reconhecimento
no meio social ao tornar a população ”consciente
de suas necessidades em matéria de arquitetura
e de planejamento” (idem) criou a premiação para
“levar ao grande público o trabalho do arquiteto
e dar medida de seu valor social.” A premiação
viraria uma tradição, que perdura até os dias de
hoje, adotada posteriormente em todos os núcleos
estaduais do IAB.

A revista também foi ferramenta de diálogo dos


arquitetos do IAB com os temas propostos pelos
congressos e encontros profissionais nacionais e
internacionais, destacando-se os Congressos da
União Internacional de Arquitetos – UIA, e o Con-
gresso Brasileiro de Arquitetos - CBA. Verificamos
uma afinidade de temas, como o destaque dado
ao planejamento urbano em diversas matérias da
revista, assunto também vastamente discutido
nesses eventos no período.

Outra seção digna de nota foi a chamada Legis-


lação, presente em quase todos os números da
revista, e na qual foram publicadas transcrições
de legislações edilícia e urbanística do período,
assim como críticas, proposições. E destacamos,
finalmente, a seção intitulada Agenda, presente
em ARQUITETURA a partir do número 75, já em
sua fase final. Nela havia a divulgação de con-
cursos, premiações, colóquios e exposições, a
nível mundial, que diziam respeito ao universo
da arquitetura e do urbanismo.

PRINCIPAIS AUTORES E REDES DE DIÁLOGOS

ARQUITETURA teve o privilégio de reunir uma


geração de jovens talentos, depois consagrados
16º SHCU na vida cultural do país, como o já mencionado
30 anos . Atualização Crítica
jornalista Zuenir Ventura, inicialmente contratado
334 para dar aulas de técnicas de redação para os ar-
quitetos7. Também escreviam com frequência em tra proferida pela urbanista argentino-brasileira
suas páginas, o cineasta Cacá Diegues, o poeta e Adina Mera, ministrada na Faculdade Nacional de
crítico de arte Ferreira Gullar 8, o crítico literário e Arquitetura - FNA, em abril de 1961, que discorreu
ensaísta José Guilherme Merquior, o autor teatral sobre as definições dos termos “planejamento
Cléber Ribeiro Fernandes e o compositor Nelson urbano” e “urbanismo”, e publicada no nº 1, em
Lins de Barros, que mantinham um seção fixa– agosto de 1961.
chamada Galeria – dedicada às artes em geral.
Cabe destacar que, naquele período, todos na Ressaltamos também a publicação de um artigo
do arquiteto e urbanista Hélio Modesto, intitula-
faixa etária entre 20 e 40 anos, com exceção de
do Problema do Planejamento Urbano, na edição
Nelson Lins de Barros, que era mais velho.
dupla dos números 72 e 73 (1968). Hélio Modesto
Entre os mais de 240 autores que escreveram foi um importante urbanista carioca, entretanto
artigos, reportagens, traduções, transcrições e a recuperação do seu trabalho no campo do pla-
demais textos para a revista, destacamos, pelo nejamento urbano ainda é “muito tímida” (Oliveira,
número de contribuições, os arquitetos Maurício 2018) e este artigo publicado em ARQUITETURA
Nogueira Batista (que assina 20 textos), Alberto ajuda a preencher essa lacuna historiográfica.
Vieira de Azevedo (com 12 artigos sobre acústica),
ARQUITETURA constituiu um importante espaço
Jorge Wilhein e Maurício Roberto (ambos com 8 para trocas entre arquitetos e outros profissionais
contribuições). Devemos destacar também o tra- de áreas afins, sobretudo no que diz respeito ao
balho do arquiteto Cláudio Ceccon - o cartunista problema da habitação brasileira. Nesse cam-
Claudius –, responsável por uma série histórica de po, foi importante a contribuição dos sociólogos
charges elaboradas especialmente para a revista9. brasileiros José Arthur Rios e Maurício Vinha de
Ele era também responsável pela edição de uma Queiroz no n° 8 (1963). O artigo de José Arthur Rios,
página semanal – às quartas-feiras - dedicada intitulado Favelas havia sido publicado original-
à arquitetura na seção Caderno B, no Jornal do mente na revista Aspectos da Geografia Carioca
Brasil. (IAB, 1961. GUANABARA, n° 3, 1961, p. 23.) e apresenta a situação e as características das
favelas do Rio de Janeiro. O artigo de Maurício
A revista também deu espaço para trabalhos de Vinha de Queiroz, Arquitetura e Desenvolvimento,
jovens mulheres, como a arquiteta a paisagista havia sido publicado originalmente na Revista
Rosa Grena Kliass, autora do artigo intitulado do Instituto de Ciências Sociais. O que motivava
Joinville e Curitiba: Dois estudos paisagísticos, no estas publicações era a criação de uma consci-
nº 55 ( janeiro de 1967), e a arquiteta Philomena ência social do problema habitacional brasileiro,
Chagas Ferreira10, que escreveu Dados sobre o como um primeiro passo em direção à busca de
clima da região de Brasília, no nº 30, (dezembro de soluções, que deveriam ser concretizadas em
1964) Destacamos também a transcrição da pales- ações propositivas.

Ressaltamos também os debates promovidos pelo


7. (IAB, 1991, p.9)
arquiteto e urbanista brasileiro Harry James Cole
8. Que, como já mencionado, se tornaria Chefe de Redação sobre urbanização e desenvolvimento. A trajetória
a partir do n° 69. deste arquiteto ainda é pouco conhecida pelos
9. Sobre as charges elaborada por Claudius em ARQUITE- pesquisadores brasileiros (LUCCHESE, 2009), a
TURA, ver o trabalho de José Carlos Huapaya Espinoza e despeito do seu trabalho no campo do planeja-
Eder Luís Villarpando em “Charges e cultura visual: Um olhar mento urbano, como a implementação dos planos
sobre a problemática da cidade brasileira através da revista de desenvolvimento integrado da SERFHAU.
ARQUITETURA 1961-1968” Urbana: Rev. Eletrônica Cent.
Interdiscip. Estud. Cid. Campinas, V.11, n.2, maio-agosto Da mesma forma, são dignos de nota os artigos
2019, p. 335-363. do arquiteto brasileiro Francisco Whitaker Fer-
10. Philomena, na época, era professora da Faculdade de reira Um roteiro de pesquisas para o planejamento
Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (UnB), urbano (n°41, 1965, p.27), Um roteiro de pesquisas
e demitiu-se em outubro de 1965 em solidariedade aos para o planejamento urbano II (n°42, 1965, p.30),
colegas afastados e em função do clima de perseguição e Pesquisa e Planejamento do Desenvolvimento
política na Universidade. (n°70, 1968, p. 31). Francisco Whitaker Ferreira
EIXO TEMÁTICO 1 havia sido colaborador direto de Joseph-Lou-
is Lebret11 no Brasil, diretor de planejamento da
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO Superintendência da Reforma Agrária no governo
do Presidente João Goulart (1961 – 1964) e esteve
exilado na França desde 1966, fugindo da repres-
são política no país.

Redes internacionais

ARQUITETURA foi veículo de divulgação de textos


de inúmeros autores estrangeiros importantes,
revelando uma intensa troca intelectual entre
várias nacionalidades, cristalizada em traduções
de artigos, resenhas de livros, reportagens espe-
ciais, entrevistas com arquitetos estrangeiros e
traduções de matérias de revistas especializas,
e estimulada através da publicação de tradu-
ção, para inglês e francês, de um resumo do seu
conteúdo por dois anos ininterruptos - entre os
números 36 (junho de 1965) e 59 (maio de 1967). Ao
longo de toda sua edição, ARQUITETURA publicou
mais de 70 documentos de textos, distribuídos
em 44 números, sobre assuntos relacionados à
arquitetura e ao urbanismo internacionais. O ano
que destaca-se nesse quesito é 1967. Em relação
ao número da revista, destacam-se as edições
número 3 (1961) e número 65 (1967), esta última,
de suas 11 seções, 4 são traduções.

Figura 4: Gráfico de distribuição de documentos inter-


nacionais de ARQUITETURA por ano e número. Fonte:
ilustração da autora (2020).

11. Conhecido como Padre Lebret,  foi um economista e re-


ligioso católico dominicano francês, criador do centro de
pesquisas e ação econômica “Economia e Humanismo”.
16º SHCU
Convidado para vir ao Brasil em 1947, apresentou a base
30 anos . Atualização Crítica
teórico-metodológica do Desenvolvimento Harmônico no
336 curso “Economia Humana e Planejamento Econômico”.
Entre os países envolvidos (21), destacam-se os cam-se também os de língua inglesa: Progressive
intercâmbios com autores e veículos de língua Architecture (EUA / 4 traduções), American Insti-
inglesa, notadamente EUA (19 documentos) e In- tute of Architect AIA Journal (EUA / 2 traduções)
glaterra (9 documentos). Entre as 50 traduções e Royal Institute of Britsh Architects RIBA Journal
publicadas, nos periódicos mais traduzidos desta- (Inglaterra / 2 traduções).

Figura 5: Gráfico de países envolvidos em textos publicados em ARQUITETURA. Fonte: ilustração da autora.

Entre as contribuições de autores internacionais, Habitação e Urbanismo – SERFHAU12, para uma


destacamos a do historiador norte americano série de palestras sobre “aglomerados subnor-
Lewis Munford, cujos trabalhos foram publicados mais de moradia” (n°68, 1968: 17) no qual discutiu
em três ocasiões: a tradução do artigo Planeja- aspectos do desenvolvimento urbano e da mo-
radia com técnicos brasileiros. O primeiro texto
mento regional, retirada do livro A Cultura das
traduzido é um depoimento de Turner sobre a sua
Cidades (1956), publicada no número 2 (1961, p. 17);
experiência brasileira. O segundo, é um artigo
a resenha de conferência proferida em Roma, e intitulado Barreiras e Canais para o desenvolvi-
transcrita pelo Boletín de la Sociedad Central de mento habitacional nos países em vias de desen-
Arquitectos (Argentina) em setembro de 1962, volvimento, publicado anteriormente no Journal
publicada no número 7 (1963, p.49); e a tradução of the American Institute of Planners, em maio de
do artigo A promessa do novo mundo, publicado 1967, e traduzido pelo arquiteto Claudio Ceccon.
originalmente no AIA Journal, no nº 45 (1966, p.10).
Importante ainda é a tradução de artigo da urba-
A revista número 16, de outubro de 1963, publicou nista norte-americana Catherine Bauer Wurster
O Desenvolvimento Econômico e Urbano, Implica-
uma crítica à obra Arquitetura da Grã-Bretanha,
ções sociais (n°10, 1963: 26) no qual ela aborda e
a famosa série de guias da arquitetura britânica
discute problemas relacionados com desenvol-
elaborada pelo historiador de arte inglês Niko- vimento econômico, crescimento urbano e as
laus Pevsner. Já o trabalho do arquiteto inglês implicações sociais deles decorrentes.
Christopher Alexander, foi divulgado através da
tradução do artigo O padrão das ruas e sua geo- Destacamos também a divulgação do trabalho do
metria, na edição nº 65 (1967, p.14), apenas dois arquiteto alemão Otto Koenigsberger, responsável
pelo conceito de Planejamento de Ação, através
anos após a publicação do ensaio A city is not a
tree (1965) e dez anos antes do lançamento do seu
livro seminal A Pattern Language, em 1977. 12. O SERFHAU foi o órgão criado para atuar no planejamento
urbano e dar as diretrizes que deveriam ser seguidas por
ARQUITETURA número 68 traduziu dois textos todos os municípios, além de ter atribuições mais ligadas à
habitação. A criação SERFHAU é considerada um momento
do arquiteto e planejador inglês Jonh C. Turner,
de inflexão dentro da prática de urbanismo no Brasil, por ter
integrante do Centro de Estudos Urbanos do MIT sido criado com o objetivo de definir uma política urbana
e da Universidade de Harvard. Turner esteve na para ser adotada por todas as cidades brasileiras (LEME,
época no Brasil, a convite do Serviço Federal de 1999, p.16).
EIXO TEMÁTICO 1 do qual procurava rever os conceitos clássicos de
planejamento urbano concebidos na Grã-Bretanha
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO nos anos 1930, em vista de sua aplicabilidade em
sociedades de crescimento explosivo, como os
países asiáticos e africanos. Suas conclusões
iam ao encontro das experiências dos arquitetos
brasileiros em ações de planejamento no país e,
por isso, ARQUITETURA, no nº 39 (setembro de
1965) traduziu a transcrição de sua conferência,
proferida na Architectural Association em Londres
em 1964, e publicada no Architectural Associa-
tion Journal volume 79, nº 882. O mesmo tema
foi abordado em tradução de artigo do mesmo
autor na revista nº 55 (1967).

ARQUITETURA divulgou ainda o trabalho da his-


toriadora francesa Françoise Choay, um artigo
originalmente publicado pela revista l´Architec-
ture d´Aujourd´hui , em junho/julho de 1967, foi
traduzido no número 78, em dezembro de 1968,
apenas três anos depois da publicação do livro
L’Urbanisme, utopies et réalités (1965), que apre-
senta uma análise da evolução do pensamento
urbanístico e uma antologia sobre urbanismo. No
artigo traduzido, a autora discute a possibilidade
de uma semiologia da cidade e a validade de um
estudo dessa natureza no campo do urbanismo.

ARQUITETURA estabeleceu um forte diálogo com


a arquitetura holandesa, expresso na publica-
ção de diversos trabalhos do arquiteto holandês
Jaap Bakema, notável pelos projetos de moradias
públicas e pelo envolvimento na reconstrução
de Roterdã após a Segunda Guerra Mundial. O
número 33, de março de 1965 (p. 3-20), publicou
uma seção espacial especial composta por tra-
dução de artigo de autoria de Bakema - relativo
a missão do arquiteto em face da sociedade e da
solução dos problemas gerados pela crescente
urbanização -, acompanhada da publicação de
cinco projetos de arquitetura e curriculum vitae
de seu escritório junto com o arquiteto Van den
Broeck. O número 48, junho de 1966 (p. 15),em
artigo intitulado O pensamento de Bakema, re-
úne os principais tópicos do trabalho teórico do
arquiteto. O número 69, de março de 1968 (p.16
– 23) publicou uma reportagem especial sobre o
Plano Pampus, o plano urbanístico de expansão
da cidade de Amsterdã, através da tradução da
16º SHCU reportagem da revista holandesa de arquitetura
30 anos . Atualização Crítica
FORUM, composta por publicação do projeto, edi-
338 torial e artigo de autoria de Bakema.
ARQUITETURA também manteve laços com alguns (n° 48, junho de 1966, p. 9 – 11) com a representa-
países escandinavos, como expresso no número ção gráfica de métodos nativos de construção,
03 (1961, p.15 - 22), em seção dedicada à arquite- utilizadas na Índia e adequadas ao clima tropical.
tura finlandesa e “seu mestre” Alvar Aalto (1961, O documento tinha como objetivo orientar a pré-
n°03, p.4), e em reportagem sobre a arquitetura -fabricação de elementos de construção para
dinamarquesa (n° 09, março de 1963, p.4). conjuntos residenciais. Já a arquitetura japonesa
foi objeto de 4 matérias, duas delas motivadas pela
Em relação ao continente africano, destacamos visita do arquiteto japonês Ryuichi Hamaguchi ao
a tentativa de ampliar os debates entre os cha-
Brasil, em 1964.
mados ”países do terceiro mundo” 13, através da
tradução de dois artigos do arquiteto Pierre Mas Em relação aos países da América Latina, desta-
sobre urbanismo e urbanização em Marrocos. No camos a matéria de Maurício Nogueira Batista, um
primeiro artigo Urbanismo, Arquitetura e Desen- resumo de reportagem publicada originalmente
volvimento, o autor faz referência à experiência no Suplemento Informativos do CINVA15 sobre o
de desenvolvimento das aglomerações rurais no trabalho do arquitetos chileno Luís Bravo Heit-
Marrocos (n°34, 1965, p.4 - 10). O segundo artigo mann acerca dos problemas sócioeconomicos
intitulado como Urbanismo e organização do terri-
provocados pela urbanização na America Latina
tório nos países subdesenvolvidos (n° 47, 1966, p.12–
(n°13,1963, p.40); assim como a tradução de artigo
4) é tradução da revista marroquina A+U, Revista
do arquiteto colombiano Rafael Mora-Rubio, in-
Africana de Arquitetura e Urbanismo, número 3,
titulado Uma estranha definição de Habitação de
de 1965. Já ARQUITETURA número 52 (1966, p.17),
Interesse Social (n°63,1967, p.27), publicado origi-
publicou artigo traduzido de outra revista mar-
nalmente na Revista da Sociedad Interamericana
roquina, ATU - Revista Africana de Arquitetura e
de Planificación16. O periódico latino americano
Urbanismo, de autoria do paisagista francês Jean
mais referenciado é a revista da Sociedad Central
Mallet, intitulado Urbanismo e Paisagem.
de Arquitectos da Argentina - órgão semelhante
Ainda sobre países africanos, destacamos a ao IAB - , em duas ocasiões.
tradução de artigo escrito pelo arquiteto fran-
cês Henri Chomette sobre habitação na África
intitulado Reflexão sôbre a habitação na África
(n° 63, 1967, p.3). Chomette foi responsável por
grande parte da arquitetura de filiação moderna
da África Subsaariana, desenvolvida nos anos
1960. Vale observar que, a despeito do espaço
dado por ARQUITETURA ao continente africano, a
maioria dos artigos transcritos pela revista sobre
aquele território foram escritos por europeus, sido preso dentro do Campus da Universidade de Brasília,
onde elaborava uma tese sobre a arquitetura da capital
com exceção do artigo escrito pelo arquiteto
brasileira, no contexto da repressão militar aos movimen-
egípcio Samir Youssef Arquitetura Egípcia: de
tos universitários. Fonte: Comissão Nacional da Verdade
religiosa a funcional publicado na revista número
- Relatório - volume II - textos temáticos – p. 272, dezembro
25 (1964, p.3). de 2014, disponível em https://www.pucsp.br/comissaoda-
verdade/downloads/movimento-estudantil/documentos/
No que se refere à Ásia, foi publicado a tradução volume2-texto6.pdf, acessado em 23/04/2020.
de artigo do arquiteto indiano Shyman Janveja14
15. Centro Interamericano de Vivienda y Planeamiento -
CINVA, órgão vinculado à Organização dos Estados Ame-
13. Embora este tenha sido o termo utilizado no artigo (n°34, ricanos - OEA, que funcionou entre 1951 e 1972, em Bogotá
1965, p.5), desde os anos 1950 que a Comissão Econômica na Colômbia.
para a América Latina (CEPAL) propunha a categoria “sub-
16. Assim como o CINVA, a Sociedad Interamericana de Pla-
desenvolvimento” para entender as especificidades pro-
nificación, criada em 1965 em Porto Rico, foi uma instituição
dutivas, sociais, institucionais e de inserção internacional
do campo do planejamento urbano, vinculada à OEA, criada
dos países latino-americanos (FRIDMAN, 2018).
para atuar em prol do desenvolvimento dos municípios. (de
14. Em outubro de 1965, o premiado arquiteto indiano havia FARIA, Rodrigo; LANER, Izadora, 2015).
EIXO TEMÁTICO 1
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO

Figura 6: Mapa com a sinalização dos países envolvidos


em textos publicados em ARQUITETURA. Fonte: ilustração
da autora (2020).

Brasil

No Brasil, curiosamente, ARQUITETURA deu


bastante espaço para a arquitetura, paisagem e
patrimônio da região norte, com destaque para o
estado do Amazonas, objeto de uma reportagem
especial, intitulada Arquitetura e Urbanismo no
Amazonas, composta por 10 artigos (n°42, 1965, p.
34 - 54 ). Sobre Brasília, destaca-se o número 76
(1968), cuja capa é uma foto em preto e branco
do edifício do Itamaraty, com artigos de Oscar
Niemeyer e Lúcio Costa sobre a cidade.

ARQUITETURA chegou a publicar, em algumas


ocasiões, clippings de outras revistas especiali-
zadas brasileiras, como Módulo e Acrópole (n° 08,
1963, p.44). A revista Acrópole, célebre publicação
paulista especializada em arquitetura publicada
entre 1938 e 1971, foi objeto de artigo escrito por
Maurício Nogueira Batista intitulado Os 25 anos
16º SHCU de Acrópole e uma mentalidade publicitária (n°
30 anos . Atualização Crítica 16, 1963, p.35) no ocasião do 25° aniversário da
340 revista.
A edição n° 41 (1965, p.40) traz uma nota “lamentan- constitui-se em significativa fonte para futuros
do profundamente” a suspensão da revista Módulo aprofundamentos, nesta e em outras pesquisas,
por decisão imposta pelo Ministério das Relações sobre o pensamento urbanístico dos arquitetos
Exteriores em não renovar o convênio de expedi- do IAB no período.
ção da revista para as repartições consulares e,
dessa maneira, inviabilizando a manutenção do
“padrão gráfico-artístico de MÓDULO”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesse trabalho buscamos apresentar e siste-


matizar o conteúdo dos documentos publicados
pela revista ARQUITETURA na década de 1960,
em especial os textos sobre urbanismo. Busca-
mos destacar quem foram seus idealizadores,
editores, autores, principais temas abordados e
redes de diálogos estabelecidos.

A revista ARQUITETURA se engajou na luta pela


afirmação e consolidação da profissão no Brasil,
através do cumprimento do seu dever social como
órgão profissional e cultural. Ela se configurou
como uma publicação de caráter multidisciplinar
e estabeleceu um diálogo com publicações inter-
nacionais, não apenas como mera divulgação, mas
como participante ativo dos debates, e procurava
responder às motivações do contexto histórico
brasileiro da época. ARQUITETURA representava
uma classe profissional compromissada com a
justiça social e com a função social da arquitetura,
reunida no Instituto dos Arquitetos do Brasil – IAB,
do qual era porta-voz.

Nesse artigo, mostramos que esses arquitetos


apresentavam uma maior proximidade com os
autores e veículos de arquitetura e urbanismo de
língua inglesa, como EUA e Inglaterra, transpa-
recendo uma maior afinidade com os princípios
do urban planning sobre planejamento urbano. Da
mesma maneira, verificamos um forte interesse
nas políticas urbanas de habitação dos países
europeus, notadamente a Holanda. Na América
Latina, apontamos uma conexão com as entidades
vinculadas à Organização dos Estados America-
nos – OEA, como a CINVA e Sociedad Interame-
ricana de Planificación. E no Brasil, apontamos
que, curiosamente, a região norte foi a região
mais abordada em artigos e reportagens.

Dessa maneira, acreditamos que nosso trabalho


EIXO TEMÁTICO 1 REFERÊNCIAS
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO ATIQUE, Fernando. “Congresso pan-america-
no de arquitetos: ethos continental e herança
européia na formulação do campo do plane-
jamento (1920-1960).” Urbana: Rev. Eletrôni-
ca Cent. Interdiscip. Estud. Cid. Campinas,
Vol.6,N 8, jun.2014.

BRITTO, 2007. Entrevista disponível em https://


www.arcoweb.com.br/projetodesign/entre-
vista/alfredo-brito-me-envolvi-12-07-2007 e
acessado em 09/04/2020.

COLOMINA, Beatriz.; BUCKLEY, Craig. Clip,


Stamp, Fold: The Radical Architecture of Lit-
tle Magazines, 196X to 197X. Nova York: Actar
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de FARIA, R. S.; LANER, I. C., “Planejamento


Urbano e desenvolvimento municipal na Amé-
rica Latina: Ideiais e realizações da Sociedad
Interamericana de Planificación (1965-1980)”.
Anais do XVI Enampur, Belo Horizonte, 2015.

FRIDMAN, F. “Notas sobre o planejamento no


período João Goulart”. Urbana: Rev. Eletrônica
Cent. Interdiscip. Estud. Cid. Campinas, V.6,
n.8, junho 2014.

HUAPAYA ESPINOZA, J.C. e VILLARPANDO, E.


L. “Charges e cultura visual: Um olhar sobre a
problemática da cidade brasileira através da
revista ARQUITETURA 1961-1968” Urbana: Rev.
Eletrônica Cent. Interdiscip. Estud. Cid. Cam-
pinas, V.11, n.2, maio-agosto 2019, p. 335-363.

IAB, Memória. Revista ARQUITETURA. ARQUI-


TETURA IAB 70 anos, 1921 – 1991. Rio de Janei-
ro, 1991.

KONDER NETTO, M.. Entrevista a autora. Rio de


Janeiro, abril de 2019.

REZENDE, V. F. “O planejamento de cidades


nos anos 60: uma reflexão a partir do Plano
Doxiadis para o Estado da Guanabara.” Anais III
ENANPARQ 2014, São Paulo: 2014.

16º SHCU TORRENT, H. “Disciplina y profesión frente al


30 anos . Atualização Crítica
problema del desarrollo, ideas publicadas: 60-
342 70, el desencanto de la arquitectura.” Anais V
ENANPARQ 2018, Salvador. 2018, p. 4734- 4735.

Comissão Nacional da Verdade - Relatório -


volume II - textos temáticos – p. 272, dezembro
de 2014, disponível em https://www.pucsp.br/
comissaodaverdade/downloads/movimento-
-estudantil/documentos/volume2-texto6.pdf,
acessado em 23/04/2020.

Coleção de revistas GUANABARA e ARQUITE-


TURA. Números 01 (1961) ao 78 (1968).
EIXO TEMÁTICO 1 RESUMO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
A pandemia do coronavírus que nos assola joga
o mundo em uma crise sanitária, econômica e
SESSÃO temática política sem precedentes, ao mesmo tempo que
nos chama a reflexão urgente. É tempo de pen-
sar a produção do espaço urbano e sua relação
SAÚDE, O URBANO E A com a saúde e a doença. Ao longo dos anos es-
ses dois campos se afastaram, em um longo pro-
HISTÓRIA: APONTAMENTOS cesso que não cabe analisarmos aqui. Entretan-
to, não podemos compreender a pandemia atual
EM TEMPOS PANDEMICOS sem compreendermos as raízes urbanas de sua
formação na província industrial de Wuhan na
China, mas também compreender os processos
HEALTH, THE URBAN AND HISTORY: NOTES IN urbanos de sua disseminação pelo mundo. Dito
PANDEMIC TIMES isto, o nosso objetivo com esse texto é pensar os
fundamentos históricos da relação entre saúde,
SALUD, URBANIDAD E HISTORIA: NOTAS EN TIEMPOS doença e espaço. Para pensar como o conceito
DE PANDEMIA de saúde e doença estão diretamente ligados a
forma urbana moderna. Esperamos que esses
apontamentos possam ser uma constelação
CHALO, Guilherme
importante para pensarmos uma crítica radical
Doutorando em Planejamento Urbano e Regional, Instituto
da urbanização capitalista, tendo a saúde públi-
de Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ)
guilhermechalo@gmail.com
ca como ferramenta de análise. E, de agora em
diante, é imperativo observar que, se a cidade é
pátria, empresa e mercadoria, ela é também um
hospital.

SAÚDE CIDADE URBANISMO

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

344
ABSTRACT RESUMEN

The coronavirus pandemic that plagues us is La pandemia de coronavirus que nos azota está
throwing the world into an unprecedented heal- arrojando al mundo a una crisis sanitaria, econó-
th, economic and political crisis, while calling us mica y política sin precedentes, al tiempo que nos
to urgent reflection. It is time to think about the llama a una reflexión urgente. Es hora de pensar
production of urban space and its relationship en la producción del espacio urbano y su relación
with health and disease. Over the years these con la salud y la enfermedad. Con los años estos
two fields have moved away, in a long process dos campos se han ido alejando, en un largo pro-
that we cannot analyze here. However, we can- ceso que no podemos analizar aquí. Sin embargo,
not understand the current pandemic without no podemos comprender la pandemia actual sin
understanding the urban roots of its formation comprender las raíces urbanas de su formación
in China’s industrial province of Wuhan, but also en la provincia industrial china de Wuhan, pero
understanding the urban processes of its spread también comprender los procesos urbanos de su
throughout the world. That said, our aim with this propagación por todo el mundo. Dicho esto, nues-
text is to think about the historical foundations tro objetivo con este texto es reflexionar sobre los
of the relationship between health, disease and fundamentos históricos de la relación entre salud,
space. To think about how the concept of health enfermedad y espacio. Pensar cómo el concepto
and disease is directly linked to the modern urban de salud y enfermedad está directamente ligado a
form. We hope that these notes can be an impor- la forma urbana moderna. Esperamos que estas
tant constellation for us to think about a radical notas puedan ser una constelación importante
critique of capitalist urbanization, with public para que pensemos en una crítica radical de la ur-
health as an analysis tool. And, from now on, it is banización capitalista, con la salud pública como
imperative to note that if the city is a homeland, herramienta de análisis. Y, a partir de ahora, es
company and commodity, it is also a hospital. imperativo señalar que si la ciudad es patria, em-
presa y mercancía, también es un hospital.

HEALTH CITY URBANISM


SALUD CIUDAD URBANISMO
EIXO TEMÁTICO 1 INTRODUÇÃO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO A pandemia do coronavírus que nos assola joga
o mundo em uma crise sanitária, econômica e
política sem precedentes, ao mesmo tempo que
SESSÃO temática nos chama a reflexão urgente. É tempo de pensar
a produção do espaço urbano e sua relação com

SAÚDE, O URBANO E A
a saúde e a doença.

Um processo desigual que se traduz em múlti-


HISTÓRIA: APONTAMENTOS plas escalas, com contextos culturais e políticos

EM TEMPOS PANDEMICOS distintos; mas que acompanha a modernização


capitalista desde o século XIX. Ao longo do tempo,
nossas cidades sofreram com diferentes epide-
HEALTH, THE URBAN AND HISTORY: NOTES IN mias e as “trataram” de diferentes formas, engen-
PANDEMIC TIMES drando segregação, controle e todo um inventário
de práticas urbanas sobre as doenças e a higiene.
SALUD, URBANIDAD E HISTORIA: NOTAS EN TIEMPOS
Assim, novos modelos de compreensão do mundo
DE PANDEMIA
foram surgindo. Os discursos e práticas sobre
a saúde fizeram parte da formação do que hoje
entendemos por urbanismo, as questões sani-
tárias por muito tempo estiveram relacionadas
com a forma e o conteúdo das cidades e foram a
questão urbana em si. 

Ao longo dos anos esses dois campos se afasta-


ram, em um longo processo que não cabe analisar-
mos aqui. Entretanto, não podemos compreender
a pandemia atual sem compreendermos as raízes
urbanas de sua formação na província industrial
de Wuhan na China, mas também compreender
os processos urbanos de sua disseminação pelo
mundo.  

Certa vez o filósofo Michel Foucault (2006, p.87)


em uma conferência sobre a história do hospital,
realizada no Instituto de Medicina Social da Uni-
versidade do Estado do Rio de Janeiro em 1974,
observou o papel da cura no hospital; segundo
Foucault “a cura era um jogo entre a natureza, a
doença e o médico”. O filósofo na ocasião anali-
sava a escala do hospital e da cura dos indivídu-
os, entretanto, se pudermos refletir sobre esse
“jogo” a partir de outras escalas? Se pensarmos
na localização desse “jogo”? Se pensarmos na
organização social que produz esse “jogo”? Re-
fletiremos sobre o conceito de espaço e como
ele se relaciona com a história do ato de curar,
16º SHCU ou em outras palavras sobre o conceito de saúde
30 anos . Atualização Crítica
e doença. E como ambos se relacionam com a
346 forma que a sociedade se organiza espacialmente.
Dito isto, o nosso objetivo com esse texto é pen- Quem quiser investigar corretamente a
sar as raízes históricas da relação entre saúde, medicina deve fazer o seguinte: primei-
doença e espaço. Para pensar como o conceito ramente deve levar em consideração as
de saúde e doença estão diretamente ligados estações do ano e o que cada uma delas
a forma urbana moderna. Esperamos que es- pode produzir. Pois essas não se parecem
ses apontamentos possam ser uma constelação nada entre si, mas diferem muito delas mes-
importante para pensarmos uma crítica radical mas, inclusive quanto às suas mudanças.
da urbanização capitalista, tendo a saúde públi- 2. Em seguida, os ventos quentes e frios,
ca como ferramenta de análise. E, de agora em sobretudo os que são comuns a todos os
diante, é imperativo observar que, se a cidade é homens. Depois, os de cada região, os que
pátria, empresa e mercadoria, ela é também um são autóctones. Deve-se, então, levar em
hospital (VAINER,200).  consideração as propriedades das águas,
pois, assim como diferem na boca e em
peso, também a propriedade difere muito
em cada água. 3. Assim que alguém chega
SAÚDE E DOENÇA: DA TEORIA MIASMÁTICA a uma cidade, é inexperiente sobre ela. É
AO HIGIENISMO preciso estar atento à posição dela, a como
está assentada, e aos ventos e às nascentes
A primeira sistematização sobre saúde e doen- do sol; pois não podem ter a mesma pro-
ça da história ocidental foi feita na Antiguidade priedade a (cidade) que está voltada para o
pelo grego Hipócrates de Cós (460-377 a. C) 1. O bóreas e a que se volta para o noto, nem a
clássico texto Ares, Águas e Lugares é uma das que se volta para o sol que se ergue e a que
primeiras leituras sobre saúde e doença da socie- se volta para o sol se pondo. 4. Acerca das
dade ocidental, um dos princípios de oposição ao águas, é preciso considerar da melhor ma-
pensamento mítico da medicina sacerdotal que neira possível como elas são, e se as usam
vigorava até então a partir de sua leitura sobre pantanosas e moles, ou duras, provenientes
os miasmas. dos lugares altos e rochosos, ou ainda se
as usam salgadas e cruas 5. E a terra, se é
Com as imprecisões históricas sobre a vida de Hi-
descampada e sem água, ou temorosa e
pócrates de Cós, considerado pai da medicina, sua
abundante em água, ou ainda se é uma de-
obra está condensada em 72 textos que formam
pressão e é sufocante, ou se é elevada e fria.
o Corpus Hippocratium, manuscritos que foram
E a dieta dos homens, o que lhes dá prazer;
sendo traduzidos ao longo da história e são a base
se são amantes da bebida, comem durante
para os ensinamentos médicos da Ilha de Cós, e
o dia e são inativos, ou se são amantes do
versam – a partir racionalidade da época - sobre
exercício e do esforço e são vorazes e pouco
ética, o sentido moral da medicina, sobre o papel
bebem. (CAIRUS; RIBEIRO JR 2005, p.94)
do médico, sobre a transmissão das doenças.
Os textos de Hipócrates sobrevivem ao processo
Os miasmas seriam os agentes transmissores das
doenças, que circulavam pelas águas e pelos ares, de crise da sociedade Helênica e passam por trans-
os estudiosos da obra de Hipócrates traduzem formações na Idade Média, mas o que nós quere-
esse pensamento: mos salientar aqui é que o pensamento de Hipócra-
tes é a base para todo o conhecimento em saúde
sistematizado ao longo dos últimos 400 anos, nele
podemos observar uma preocupação com o qua-
1. A obra de Hipócrates ou Corpus Hippocratium é marcada
por algumas controvérsias que os historiadores da medicina
dro físico e a relação com os modos de adoecer.
ainda não solucionaram, essas controversas estão muito
São os escritos de Hipócrates a base para a teoria
ligadas à sua biografia, que é imprecisa e a autoria dos seus
textos. Utilizamos o Cospus Hippocratium como este com-
miasmática que versava que a doença estava
pendio de textos que fazem referência ao médico/filosofo diretamente relacionada com as características
Hipócrates de Cós. Para informações mais completas e ambientais dos lugares. As condições de solo,
traduções para o português dos textos de Hipócrates ver água, clima e topografia eram determinantes para
Cairus e Ribeiro Jr. (2005) entender as doenças segundo o pensamento do-
EIXO TEMÁTICO 1 minante dos séculos XVIII e XIX, que são a base
para os primeiros estudos em Geografia Médica
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO (MAZETTO,2008), como por exemplo,

crenças numa etiologia ambiental podem


facilmente ser verificados através da inves-
tigação de designações atribuídas a muitas
doenças, tais como a malária. Cientistas e
médicos do século XIX, em harmonia com o
pensamento vigente há aproximadamente
dois mil anos, acreditavam que as pessoas
contrariam esta doença inalando o ar impu-
ro dos pântanos e dos charcos, derivando
daí a designação malária, do italiano mala
(mau), aria (ar) (NOSSA, 2001, p.12).

Essa teoria parte da observação direta como


método para a compreensão das doenças. Em um
momento histórico onde determinismo empirista
ganha força para a explicação médica e o quadro
físico dos lugares passa ser um importante elo
na explicação dos agravos. É nessa sociedade já
com o capitalismo mercantil estabelecido, com
processos de colonização em várias partes do
globo e com um quadro de urbanização crescente
que a geografia médica nasce.

Trata-se de uma sociedade em que as cidades


passam a ter cada vez mais importância político-
-econômica, em que a paisagem vai se tornando
“um continuum, um forte e vivo tecido humano”
(GOITIA, 2014, p.77), e as cidades começam a so-
frer com os fantasmas das grandes epidemias.

Nesse contexto europeu dos séculos XVIII e XIX


é que nasce a geografia médica, ainda não de-
nominada como tal, fortemente marcada pela
ideia de higiene, com uma produção de relatos
monográficos publicados, sobre a localização e
descrição de doenças, principalmente infeccio-
sas. Procurando relações entre “as enfermidades
e o clima, a hidrologia, os ventos, o reino animal”
(NOSSA, 2001, p.6), mostrando a ligação desses
relatos com os miasmas de Hipócrates.

Segundo Nossa (2001), o primeiro estudo que


utilizou a nomenclatura geografia médica foi de
Jean-Christian-Marc Boudin (1806-1867) publicado
em 1843 intitulado “Essai de geographie medicale,
ou étude des lois que presidente à la distribuition
16º SHCU geographique des maladies ainsi qu´a leurs ra-
30 anos . Atualização Crítica
pports topographies entre les lois de coincidence
348 et d´antagonisme”.
Entretanto, os estudos que visavam relacionar bres” del lugar, y el “temperamento” de sus
o meio e as doenças nem sempre tiveram esse habitantes, posibilitando así una acción
nome e uma configuração disciplinar específica terapéutica eficaz (URTEAGA, 1980, p.4)
- os primeiros estudos foram denominados de
“topografias médicas”. Tratando da geografia mé- Se olharmos para o método de observação de
dica na Espanha, Luis Urteaga, (1980, p.3) escreve alguns casos específicos, nós temos momentos
como a produção sobre medicina nos séculos XVIII importantes. Em 1798, temos o trabalho do médico
e XIX são fundamentais para compreender esse americano Valentine Seaman que é o primeiro
momento de nascimento da chamada geografia estudo cartográfico envolvendo a febre amarela
médica, segundo o autor, se trata em Nova York. O trabalho consistiu em técnicas
simples de cartografia, localizando os óbitos por
de establecer la génesis del tipo de litera- febre amarela em New York que vivia uma epide-
tura científica que conocemos como Topo- mia da doença, o resultado de seu estudo foi dois
grafías Médicas. Para ello, consideramos de mapas de uma zona específica da região portuária
interés detener nuestra atención en el estu- de Manhattam.
dio de algunas características científicas y
sociales del siglo XVIII. No tan sólo, porque É no século XIX que o pensamento médico começa
las monografias médicas redactadas en a se institucionalizar, dando início a formação de
España son herederas de las realizadas en médicos em toda a Europa, a partir das academias
Inglaterra, y sobre todo en Francia, en la de medicina, que são os centros difusores do
segunda mitad del setecientos, sino porque saber médico vigente, que contribuíram para
y esto es lo principal, el tipo de creencias o nascimento da higiene pública marcada
científicas, de prácticas institucionales y fundamentalmente pela tradição miasmática, que
de necesidades sociales, que dan sopor- tinha dois aspectos fundamentais. O primeiro, o
te en el siglo XIX a las encuestas médicas controle do ambiente e dos miasmas, e o segundo
sobre el espacio tienen su punto de partida ponto, o controle das causas sociais das doenças
inmediato en la medicina de la Ilustración. que foram associadas com a pobreza urbana
já estabelecida como uma marca das grandes
O século XVIII é marcado pelo empirismo na ob- cidades.
servação das doenças e os primeiros trabalhos
explicativos sobre grandes epidemias tem no Este é um momento de profunda racionalização
da vida cotidiana para a normatização do trabalho
trabalho de Hipócrates grande referência. Não
abstrato e o saber médico tem um lugar especial
há uma grande evolução sobre a relação entre o
nesse processo, porque funcionou como grande
meio e os agravos, mas esse é um momento de
justificador de grandes intervenções sobre as
forte determinismo no pensamento2.
classes trabalhadoras e os bairros pobres das
Las topografías médicas surgen como exi- grandes cidades.
gencia lógica de la doctrina de las consti-
A insalubridade foi um dos grandes inimigos do
tuciones. Mediante ellas pueden indicarse
pensamento higienista vigente, não atacando a
los lugares sanos y enfermos, las zonas en
pobreza de maneira estrutural, mas sim gerindo-a
que es posible habitar y aquéllas que deben
para espaços de exclusão e/ou de normatiza-
evitarse. Más aún, se espera que una vez
ção circunscrita pelas políticas públicas para o
determinadas las variables meteorológicas
mercado em um processo de avanço da forma
(temperatura, humedad, presión atmos-
assalariada de trabalho.
férica, orientación del viento) y climáticas
de un área, podrá establecerse un relativo A cidade industrial que é produto de uma evolu-
acoplamiento entre estos datos, las “fie- ção técnica, social e política, a divisão social do
trabalho que já vinha sendo gestada a longos anos
2. Para uma apresentação das teorias que circulavam pela Eu- na transição da sociedade feudal e o liberalismo
ropa nos séculos XVII, XVIII e XIX, ver o texto de Urteaga (1980), como pensamento hegemônico; são o contexto
que conseguiu condensar os trabalhos seminais que utiliza- dessa sociedade com grande concentração de
ram a teoria miasmática como referência direta ou indireta. pessoas que se desenvolveu em um ritmo nun-
EIXO TEMÁTICO 1 ca antes visto e que produziu grandes zonas de
pobreza como consequência.
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Os relatos desse momento são desoladores e
demostram a precariedade da cidade e das con-
dições de vida da classe trabalhadora, talvez os
mais referenciados relatos sejam os de Engels
compilados em dois livros A situação da classe
trabalhadora na Inglaterra e Sobre a questão da
habitação, estudos monográficos sobre as con-
sequências sociais no berço do capitalismo.

É esta a cidade que produz uma grande epidemia


de cólera em 1854, cidade de uma economia já
mundializada pela centralidade da cidade nas
rotas do comércio asiático, onde naquela época
a cólera era endêmica. Um dos trabalhos mais
aclamados, considerado um marco por histo-
riadores da epidemiologia e por pesquisadores
preocupados com o conceito de espaço nos de-
bates e políticas em saúde pública, é a pesquisa
do médico inglês John Snow (1813-1858). Utilizando
também a cartografia descritiva, Snow observou
a epidemia de cólera que assolava a cidade de
Londres em 1848-1849, que causou 52.293 mortes
(NOSSA, 2001, p.15).

A cólera é uma doença infectocontagiosa agu-


da que pode matar, seu quadro clínico gira em
torno de uma grave infecção intestinal, causada
pela toxina liberada pela bactéria Víbrio cholerae.
Trata-se de uma doença de transmissão fecal
oral, que se transmite pela água e por alimentos
contaminados. Essa doença está associada a
lugares de alta concentração populacional, com
baixo nível de saneamento ou a inexistência dele,
o que é uma descrição de Londres da metade
do século XIX, o contexto social do trabalho de
John Snow.

Londres e Paris, na metade do século XIX, são


cidades que rompem a modernidade e são berços
do capitalismo industrial e as suas consequências:
o liberalismo, o aumento vertiginoso da população
urbana, o proletariado, a miséria, a multidão, são
temas para esse momento3. E esse é um pon-

3. A arte pode ser uma importante fonte para podermos


apreender esse momento histórico para a cidade de Lon-
16º SHCU
dres, as gravuras de Gustave Doré são um assombroso
30 anos . Atualização Crítica
retrato daquela Londres; na literatura podemos recorrer
350 a Charles Dickens, a Edgard Alan Poe, ou ao poeta Percy
to crítico da produção da cidade, que engendra culação e do poder dessa sociedade industrial
novos padrões sanitários, daí a urgência por um foram os agentes iniciais de transmissão da do-
pensamento que compreendesse esse momento ença em solo inglês - é fundamental pensar que a
(LEFEBVRE, 2006). Inglaterra neste momento exercia poder mundial
com o comércio de mercadorias manufaturadas
É nesse contexto urbano que John Snow produz e industrializadas para o mundo inteiro. Em seu
seu trabalho, a partir da observação da frequência texto, Snow (1967, p.12) aponta sobre o compor-
da doença na cidade, onde pode observar que ela tamento da doença: “ao se propagar a uma ilha
era muito elevada na região do Soho no poço de ou continente ainda não atingidos, sempre surge
água de Broad Street, sendo assim, ao proibir primeiramente num porto marítimo”.
o uso de água daquele posso pôde controlar o
número de óbitos por cólera naquela região da Snow, pondo em cheque a teoria miasmática,
cidade. observa que a higiene pessoal é fundamental para
a transmissão da doença e consegue identificar
O texto de Snow inicia a refutação da teoria mias- grupos de risco, como mineiros. É interessante
mática e do paradigma higienista vigentes até notar como o texto do médico inglês identifica a
então. Seu trabalho é um pontapé inicial para a classe trabalhadora como grupo de risco e sua
teoria bacteriana que se tornaria a explicação escrita não apresenta comentários aristocráticos
hegemônica na virada do século. O seu trabalho e irônicos em relação aos trabalhadores da época
é o prelúdio do que viria a ser a moderna epide- como é possível notar em outros relatos.
miologia do século seguinte com a descoberta
dos microrganismos.

Entretanto, o trabalho do médico inglês ainda traz


consigo várias passagens de aplicação direta do
pensamento higienista. Em algumas delas pode-
mos identificar o caráter sui generis de transição
de modelos explicativos em que a cidade e o mo-
delo industrial inglês são o contexto principal da
epidemia de cólera de 1849.

Snow já era um médico aclamado quando se


deparou com a cólera e iniciou suas pesquisas
que estão compiladas em vários artigos e em
um estudo reconhecido até os dias de hoje pela
sua importância na história do pensamento e
epidemiológico. Ele consegue fazer um raciocínio
epidemiológico nunca visto até então. Relata um
histórico de transmissão da doença na Inglaterra, Figura 1 - Mapa de John Snow - A cólera no Soho
buscando a primeira referência sobre a cólera em
1814, quando um batalhão inglês na então colônia
da Índia foi contaminado com a doença - e o pri-
meiro caso em território inglês, em 1848, foi em Esse simples fato, observado e verificado através
um marinheiro. de uma cartografia da região com os poços de
água, com os casos de cólera e com os óbitos,
Ai já podemos observar que as estruturas de cir- como observamos na imagem acima. Assim, um
raciocínio ímpar na história do pensamento epi-
demiológico até então nasce. Isso significou mais
Shelley que escreveu “O inferno é uma cidade semelhante
à Londres, uma cidade esfumaçada e populosa. Existem
um passo ao entendimento e controle dos agra-
aí todo tipo de pessoas arruinadas e pouca diversão, ou vos, mais um passo para poder explicar como se
melhor, nenhuma, e muito pouca justiça e menos ainda comportavam as doenças infeciosas, um grande
compaixão” ver Breciani (2004). problema para as grandes cidades no século XIX.
EIXO TEMÁTICO 1 A cartografia descritiva feita por Snow significou
uma grande contribuição ao pensamento médico
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO produzido até então e abriu uma porta de reflexão
entre a teoria miasmática e teoria bacteriológica
que iria romper no século XX. Podemos dizer que
o trabalho de Snow inaugurou o que viríamos a
reconhecer como a geografia médica. Com o
trabalho de John Snow há um prelúdio para o que
viria a ser a epidemiologia, aglutinando cartogra-
fia e estatística descritivas em conjunto com as
descobertas dos microrganismos.

Isto significou uma mudança e ao mesmo tempo


complexidade do modelo explicativo para as do-
enças até então. Passamos da teoria miasmática
com forte característica higienista, onde a pobre-
za era vista como vetor; para a escala da microbio-
logia. Avançamos em um modelo explicativo com
forte referência positivista a partir dos trabalhos
de Pasteur e Koch4, que significou a ampliação
do processo de cura, mas não indagou sobre o
nexo causal profundamente ligado ao modelo
de capitalismo e a um modelo de urbanização
europeu cada vez mais exportado por meio de
ideias como desenvolvimento, progresso e civili-
zação. A revolução biomédica que inaugura a Era
do Germe “transforma drasticamente a medicina
de ‘uma profissão orientada para as pessoas para
orientada para a doença’” (TWADDLE E HESSLER
apud NUNES, 1998).

O início do século XX é um período de ascensão


do paradigma biomédico, colocando em cheque

4. “No final do século XIX, com o auxílio do microscópio,


o químico francês Louis Pasteur, estudando as falhas na
fermentação de vinhos e cervejas, observou que microor-
ganismos tinham um papel fundamental neste processo.
Descobriu ainda que as falhas eram devidas à participação
indevida de outros microrganismos na fermentação, e que
era possível corrigi-las a partir da supressão destes organis-
mos estranhos através de um aquecimento por um período
curto, a uma certa temperatura, preservando aqueles fer-
mentos desejados. Embora Pasteur manifestasse o desejo
de comprovar a participação de bactérias específicas para
cada doença, os meios de cultura utilizados – líquidos – não
permitiam o isolamento [...] A comprovação de um microrga-
nismo específico como causa de uma determinada doença
só foi cientificamente aceita em 1876, quando Robert Koch,
um médico alemão, obedecendo os postulados de Henle,
16º SHCU
demostrou, durante três dias, diante de outros cientistas, a
30 anos . Atualização Crítica
transmissão do antraz por um bacilo, usando camundongos
352 como animais experimentais” (BATISTELLA, 2007, p.42).
o pensamento determinista posto até então pela 1962), com o conceito de complexo patogênico.
teoria miasmática e pela saúde pública higienista. Esses autores foram importantes para estabe-
É a partir da década de 30 do século XX que va- lecer uma relação entre doenças infecciosas e o
mos ter um ambiente de discussão aberto sobre espaço. “A semelhança entre ambos os esquemas
os paradigmas explicativos do processo saúde conceituais é evidente, especialmente porque
doença, colocando em suspensão o determinismo ambos partem de uma interpretação ecológica
ambiental e propondo novas formas de explicação. das relações entre o homem e o meio. (FERREIRA,
1991, p.305) ”.5
Esse momento inicia um debate que de manei-
ra nenhuma está dado como encerrado, ele é O conceito de foco natural das doenças trans-
fundamental para a construção do pensamento missíveis do parasitologista soviético, lança as
que busca relacionar teoria espacial e saúde. bases para uma visão ecológica da saúde que foi
Czeresnia e Ribeiro (2000, p. 597) apresentam desdobrada em muitos trabalhos, principalmente
o problema, que nasce nas discussões do início a partir das doenças transmissíveis.
do século XX,
Segundo Pavlovsky (apud CZERESNIA E RIBEIRO
em epidemiologia, o uso do conceito de es- 2000, p.598)
paço acompanhou o desenvolvimento teóri-
co da geografia, especialmente da vertente um foco natural de doença existe quando
chamada geografia médica. Pensando a há um clima, vegetação, solo específicos
especificidade desses estudos, destaca-se, e micro-clima favorável nos lugares onde
mais uma vez, a importância da teoria de vivem vetores, doadores e recipientes de
transmissão de germes como estrutura nu- infecção. Em outras palavras, um foco na-
clear da apreensão da relação entre espaço tural de doenças é relacionado a uma pai-
e corpo, constituindo-se também em limite sagem geográfica específica, tais como a
epistemológico à intenção de compreender taiga com uma certa composição botânica,
o espaço como uma totalidade integrada. um quente deserto de areia, uma estepe,
As tentativas de redefinir o conceito de es- etc., isto é, uma biogeocoenosis. O homem
paço em epidemiologia, acompanhando o torna-se vítima de uma doença animal com
desenvolvimento teórico-conceitual da ge- foco natural somente quando permanece no
ografia, buscaram incluir na compreensão território destes focos naturais em uma es-
do processo da doença, dimensões sociais, tação do ano definida e é atacado como uma
culturais e simbólicas. Porém, todas essas presa por vetores que lhe sugam o sangue.
redefinições esbarraram no limite imposto
Este conceito já incorpora o debate ecológico as
pela teoria da doença. Pensar o homem
referências a parasitologia. Como aponta Cze-
como uma integração biopsicossocial ma-
resnia e Riberesentam condições favoráveis à
nifesta-se através da tentativa de superpor
conceitos que não dialogam com facilidade.
Mesmo tentando pensar o espaço como 5. A geografia médica deste período estava inserida em
totalidade integrada, esta é expressa atra- um contexto político amplo e o pensamento produzido
vés de conceitos estruturados a partir de até o momento ligado aos mais amplos anseios do poder
lógicas distintas e fragmentadas entre si. imperialista nascente na Europa. Nossa (2001 p.21) aponta
para essa razão imperialista (BOURDIEU; WACQUANT 1998)
inerente à geografia produzida neste período: “Não devemos
esquecer que a esta data, novos e persistentes desafios
são colocados ao nível da saúde a muitos países europeus,
DO COMPLEXO PATOGÉNICO A MEDICALIZAÇÃO
enquanto potências colonizadoras. Nas possessões colo-
DA VIDA niais por si administradas são muitas as enfermidades de
caráter infeccioso, endémicas de zonas tropicais, alheias
à realidade europeia, que merecem atenção. A sua investi-
A década de 1930 revela os trabalhos de Evgeny gação é estimulada pelo interesse científico que daí advém,
Pavlovsky (1884-1965), com o conceito de foco mas sobretudo indica uma forma de atuação conveniente
natural das doenças, e Maximilen Sorre (1880- e necessária a relação colonizador/colonizado”
EIXO TEMÁTICO 1 circulação de agentes, independentemente da
presença e da ação humanas”.
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
O conceito de foco natural das doenças dá um
passo importante para a compreensão da ocu-
pação do espaço, porém outros autores avançam
neste debate trazendo novas interpretações para
a relação entre espaço geográfico e a saúde.

Com referência ao debate vidalino do gênero


de vida, o geógrafo francês Max Sorre, em 1928,
introduz em uma comunicação em Cambridge
intitulada “Complexes pathogénes et geographie
medical” a noção de complexo patogênico, “figu-
rando como a associação de seres com diversos
graus de organização cujo centro é o homem”
(NOSSA, 2001, p. 19). Desta forma, Sorre amplia a
visão posta até então, propondo uma nova forma
de compreender a relação entre espaço e saúde.
Segundo Ferreira (1991, p.306),

O papel do homem na gênese e desinte-


gração dos complexos não se restringe à
sua atuação como hospedeiro ou vetor das
doenças (ou seja, ao plano biológico); Sorre
ocupa-se com a ação humana de trans-
formação do ambiente e com seu possível
impacto epidemiológico, mas subordina a
análise da atividade humana de transfor-
mação do espaço à sua noção ecológica
de gênero de vida

Apesar do trabalho de Sorre significar uma am-


pliação importante nos trabalhos em geografia
médica, e o complexo patogênico figurar em um
ponto central de sua geografia humana, seu tra-
balho sofreu críticas, por estar ainda ligado a um
conceito de espaço estruturado a partir da ideia
de causa, relacionado a estrutura ecológica em
seu trabalho a partir de três aspectos: ambiente,
hospedeiro e agente (NOSSA, 2001).

A era dos germes, como denominamos o mo-


mento histórico posterior ao trabalho de Pasteur
e Koch, foi um momento que delimitou as bases
do conhecimento epidemiológico que viria a ser
produzido até então, isto produziu um fenômeno
de medicalização da vida até o final do século XX.
Este contexto também engendrou um conceito de
saúde marcado por uma visão biologicista da vida
16º SHCU e da sociedade, com um nexo causal entre saúde
30 anos . Atualização Crítica
e doença, onde saúde se coloca como ausência
354 de doença.
Czeresnia e Ribeiro interpretam esse contexto e fia médica, Nossa (2001, p.31) aponta que,
lançam uma crítica ao pensamento de Sorre ao
mesmo tempo que podemos ler a produção dos através da observação de registros de
anos seguintes ao pós-guerra como a ampliação enfermidades em relação à sua eclosão,
desta visão sobre a produção da saúde. “A estrutu- incidência, prevalência e interação espa-
ra nuclear do conhecimento da doença mediante cial, verifica-se a existência de tendências
a ideia de causa, que se impôs através da teoria mais ou menos regulares no modo como se
dos germes, como foi afirmado anteriormente, manifesta no tempo e no espaço, alternan-
tornou-se um limite epistemológico à intenção do muitas vezes com fenômenos inversos
sintética de todos os autores posteriores à ela- que merecem a melhor atenção. Com base
boração da teoria dos germes” (2000, p. 590). nestes dados, e sobretudo recorrendo a
observações de patologias infecciosas e
A geografia nos anos pós II Grande Guerra - prin- parasitárias, desenvolve-se um conjunto
cipalmente nas décadas de 1950 e 1960 -, avança de modelos que procuram descrever e/
para o paradigma neopositivista, inspirando re- ou prever o comportamento espacial das
flexões em vários campos do saber acadêmico. patologias.
A linguagem matemática e a proposição de leis
gerais são agora o horizonte de pensamento que Czeresnia e Ribeiro (2000, p.597) apontam o para-
se coloca para a reflexão geográfica, o que em digma científico posto nesse momento significou
determinado momento se convencionou chamar uma abstração completa das múltiplas determi-
de New Geography. nações que envolvem o processo saúde/doença.
Como observa as autoras,
Milton Santos (2008, p.65) faz um balanço da lin-
guagem desse momento, foi possível construir modelos matemáticos
que representam relações entre o indivíduo
A procura por uma linguagem matemática e o que é externo a ele – agentes microbio-
em geografia era o resultado de uma procu- lógicos e o meio. Conceitos como susceti-
ra de cientificismo que a geografia já havia bilidade, resistência do hospedeiro, assim
tentado, sob outras roupagens e em outros como o de virulência do germe e sua infec-
momentos. Os métodos matemáticos são ciosidade integram-se numericamente no
considerados como os mais precisos, os modelo, construindo uma representação
mais gerais e os mais dotados de um valor matemática que expressa o resultado de
de previsão. Tudo isso seria obtido por uma relações entre corpo e espaço. O conceito
combinação onde as análises de sistema e de imunidade de grupo expressa o resultado
os modelos e o uso de estatísticas seriam de tais relações. O conceito epidemiológico
uma peça fundamental. de risco tornou essa relação ainda mais abs-
trata. O cálculo do risco traduz uma relação
A geografia médica não escapou desse contexto,
probabilista entre eventos. Não se integram
ela foi profundamente influenciada por esse pe-
no modelo do risco variáveis que represen-
ríodo com marcas até os dias de hoje, os estudos
tam conceitos capazes de expressar um
de difusão de doenças dos mais variados tipos e
processo que ocorre entre corpo e meio.
da difusão e hierarquia da tecnologia médica são
Se o conceito de transmissão representa
marcas desse momento.
a interface do corpo como interação entre
Dois procedimentos metodológicos são funda- orgânico e extra-orgânico, o de risco pres-
mentais na geografia médica produzida nesse cinde dessa relação, aprofundando o nível
momento: a criação de modelos para compreen- de fragmentação e rarefação do objeto da
der a incidência, a prevalência, o comportamen- epidemiologia. A concepção expressa pelo
to geral das doenças, e a cartografia – que já se conceito de risco é a de um corpo virtual. O
colocava como uma importante ferramenta do homem é representado como receptor vigi-
conhecimento espacial. lante de causas que podem lhe trazer danos
ou proteção. O espaço torna-se percebido
Sobre esta conjuntura do pensamento na geogra- como complexo de estímulos irradiados e
EIXO TEMÁTICO 1 exteriores ao corpo, que se impõe central-
mente a todos. O contato entre os homens
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO e a natureza tendeu a ser progressivamente
representado como vínculo indireto, media-
do por imagens cada vez mais abstratas,
tanto do corpo, como do espaço, deixando
de ser simbolizado como vínculo direto e
concreto.

Um grande conjunto de estudos que viriam nas


décadas seguintes em oposição a essa geografia
quantitativa e pragmática, que transformou os
métodos de pesquisa em métodos de interpreta-
ção. A geografia da saúde também passaria por
uma importante reavaliação e crítica, seguindo
o espírito da época.

A DETERMINAÇÃO SOCIAL DA SAÚDE E DA DOENÇA,


ESPAÇO E O CONCEITO AMPLIADO DE SAÚDE

Os anos de 1970 em diante significaram uma mu-


dança estrutural na sociedade tal como conhece-
mos. A geografia produzida nessa sociedade em
mutação e fratura, foi um pensamento sensível
a este momento de transformações. Que lança
as bases para a geografia da saúde que conhe-
cemos hoje.

A geografia da saúde contemporânea é uma con-


junção de diversos fatores, um diálogo intenso e
nem sempre pacífico, entre diversas correntes
de pensamento geográfico e epidemiológico. Ao
mesmo tempo em que é um pensamento recente
no Brasil, apesar das raízes históricas apontadas
até o momento, ela se renova e se aprofunda na
realidade brasileira a partir de dois momentos.

O primeiro é a própria renovação da geografia a


partir da conjuntura de crítica à New Geography
(SANTOS, 2008) e da crítica pós-moderna (GOMES,
1996). E um segundo momento é a efetivação, a
partir da constituição de 1988, de um sistema de
seguridade social no Brasil que garantiu a saúde
como um direito de todos e dever do Estado, fruto
do movimento de reforma sanitária.

Esse movimento duplo gera um contexto profícuo


16º SHCU para a renovação de um pensamento pautado
30 anos . Atualização Crítica
em novas formas de compreender a produção
356 do espaço e de novas práticas para a efetivação
do direto à saúde garantido pelo movimento de Saúde, de práticas de vigilância em saúde que
reforma sanitária brasileira. Essa conjuntura tem utilizam o conceito de território como definição
dois aspectos teóricos que são fundamentais. de políticas públicas. Monken e Barcellos (2005,
p. 899) traduzem as possibilidades desse novo
O projeto disciplinar que Milton Santos apresenta conceitual que se coloca
a partir de diversos textos, mas principalmente
de maneira sistematizada na obra Natureza do A territorialização consiste em um dos pres-
Espaço (2009), publicada originalmente em 1996, supostos da organização dos processos
tem um impacto grande nas ciências sociais brasi- de trabalho e das práticas de saúde, con-
leiras e principalmente no pensamento geográfico siderando-se uma atuação em uma delimi-
produzido até o momento. tação espacial previamente determinada.
A territorialização de atividades de saúde
O pensamento de Milton Santos representou uma vem sendo preconizada por diversas inicia-
grande contribuição para o pensamento em ge- tivas no interior do Sistema Único de Saúde
ografia da saúde, pois o trabalho do geógrafo (SUS), como o Programa Saúde da Família,
baiano fundamenta a concepção de território que a Vigilância Ambiental em Saúde, Cidades
passa a ser tida como referência para os estudos Saudáveis e a própria descentralização das
sobre território e saúde. Apesar de Milton Santos atividades de assistência e vigilância. No
não produzir nenhuma reflexão sobre o processo entanto, essa estratégia, muitas vezes, re-
saúde/doença propriamente dito6, vários traba- duz o conceito de espaço, utilizado de uma
lhos têm em seu pensamento a gênese teórica, por forma meramente administrativa, para a
compreender diversos fenômenos que formam o gestão física dos serviços de saúde, negli-
leque de objetos de estudo da geografia da saúde genciando-se o potencial deste conceito
hoje (FARIA; BORTOLOZZI, 2009). para a identificação de problemas de saúde
e de propostas de intervenção. Muito além
Uma das aplicações mais importantes dos últi- de ser meramente o espaço político-ope-
mos anos da relação entre o espaço e a saúde rativo do sistema de saúde, o território do
foi a estruturação, dentro do Sistema Único de distrito sanitário ou do município, onde se
verifica a interação população-serviços
no nível local, caracteriza-se por uma po-
6. O trabalho de Milton Santos que mais tem diálogo direto
pulação específica, vivendo em tempo e
com o pensamento sobre saúde coletiva brasileira foi a
espaço determinados, com problemas de
Conferência magna proferida no I Seminário Nacional Saúde
e Ambiente no Processo de Desenvolvimento, em 12 de
saúde definidos e que interage com os ges-
julho de 2000; transcrita e publicada em 2003 na revista tores das distintas unidades prestadoras de
Ciência e Saúde Coletiva. Já neste momento ele indaga serviços de saúde. Esse espaço apresenta,
sobre uma outra forma de pensar a relação entre espaço e portanto, além de uma extensão geométri-
saúde: “Ora, a questão da saúde, como a da alimentação e ca, um perfil demográfico, epidemiológico,
a do bem-estar, foi no primeiro momento tratada segundo administrativo, tecnológico, político, social
critérios deterministas. Essa é uma das razões pelas quais e cultural, que o caracteriza como um ter-
a palavra ambiente me choca, me aborrece. Com frequência ritório em permanente construção.
ela conduz a uma deriva determinista e por isso creio ser
preciso retomar o debate na sua raiz. Foi essa questão do Um aspecto de grande importância para esse
determinismo que levou, por exemplo, à conceituação das
contexto de renovação foi a crítica ao conceito
chamadas doenças tropicais. Tive há alguns anos um privi-
de saúde posto até a década de 70, que lançou as
légio, digamos assim, de haver ensinado na Universidade de
bases para uma concepção crítica do processo
Bordeaux, cujo Instituto de Geografia se chamava ou se cha-
ma Instituto de Geografia Tropical, como se houvesse uma
saúde doença. Atualmente três modos de en-
ciência social tropical e uma ciência social temperada. São tender saúde coexistem: saúde como ausência
formas de raciocínio próprias ao racismo, mais ou menos de doença, como bem-estar e como direito: o
velado, dos europeus e que estão presentes também na vida conceito ampliado.
acadêmica e na produção intelectual. É como se houvesse
uma vontade de dizer: ‘as culpas das suas dores são suas. A saúde como ausência da doença é uma visão
Nós pretendemos aliviá-las, mas vocês são como são’” difundida atualmente por um modelo de pensa-
EIXO TEMÁTICO 1 mento pautado na biomedicina. Sob esta ótica,
os métodos de análises das doenças se constru-
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO íram a partir de uma visão biológica do indivíduo,
concepção que se vincula historicamente com
as práticas em saúde como apontamos acima.
Assim,

os fenômenos são explicados pela nova


racionalidade a partir do estudo, baseado na
observação e na experiência, das mudanças
morfológicas, orgânicas e estruturais. Por
conseguinte, a saúde passa a ser entendi-
da como seu oposto lógico: a inexistência
de patologia, ou seja, a própria fisiologia.
Essa profunda transformação na forma de
conceber a doença irá assentar as bases do
sistema teórico do modelo biomédico, cuja
força explicativa é responsável pela sua
presença até os dias de hoje (BATISTELLA,
2007, p. 53).

A saúde como bem-estar é um conceito de saú-


de proposto pela Organização Mundial de Saúde
(OMS) que entende a saúde como um estado de
bem-estar físico, mental e social, e não apenas
a ausência de doença. Esse modelo foi uma ten-
tativa de quebrar com o paradigma biomédico
e olhar a saúde com uma visão integral. Apesar
deste conceito já trazer à tona uma visão mais
completa do processo saúde/doença, esta acep-
ção carrega uma grande subjetividade, ao cargo
de que não poderia se materializar em formas de
enfrentamento e operacionalização por políticas
públicas.

Esta subjetividade pode dar margem a medidas


arbitrárias,

O conceito da OMS reside no fato de que sua


adoção pode servir para justificar práticas
arbitrárias de controle e exclusão de tudo
aquilo que for considerado indesejável ou
perigoso. A simples tentativa de definir o
estado de bem-estar mental e social po-
derá supor uma existência sem angústias
ou conflitos, sabidamente inerentes à pró-
pria história de cada ser humano e de cada
sociedade. Assim, o discurso médico pode
converter-se em discurso jurídico, e tudo
16º SHCU aquilo que é considerado perigoso ou des-
30 anos . Atualização Crítica
viante se torna objeto de uma intervenção
358 – medicalização. (BATISTELLA, 2007, p. 58)
E a saúde como um direito surge na América Lati- Esse debate sobre os DSS colocaram uma grande
na como crítica ao paradigma biomédico colocado complexidade para a compreensão do processo
a partir da “era dos germes” e avança para um saúde doença, derrubando fronteira do pensa-
modelo multicausal de explicação do proces- mento e aglutinando correntes críticas em relação
so saúde/doença pautado nos determinantes ao modelo biomédico. Sabroza (2001) sintetiza as
sociais, colocados desde a década de 70 pelos múltiplas escalas que envolvem todo o processo
departamentos de medicina preventiva e social. saúde/doença, entre o individual e o coletivo,
entre o patológico e o psicológico, entre o es-
No Brasil, e no contexto da VIII Conferência Nacio- tado/mercado e a sociedade civil, entre o local
nal de Saúde, quando ocorria a democratização do e o global.
país, que acabara de sair de um regime ditatorial,
“a velha saúde pública era posta em cheque e a
medicina social latino-americana passava a ser
uma corrente de pensamento de contestação crí-
tica ao pensamento de saúde pública dominante”
(PAIM, 2008, p. 165), como o texto da conferência
apresenta,

Em sentido amplo, a saúde é a resultante das


condições de alimentação, habitação, educa-
ção, renda, meio ambiente, trabalho, transpor-
te, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da
terra e acesso aos serviços de saúde. Sendo as-
sim, é principalmente resultado das formas de
organização social, de produção, as quais podem Figura 3- Níveis de Organização e processos saúde doença
gerar grandes desigualdades nos níveis de vida
(CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE, 1986, p.8). É esta a conjuntura que faz emergir a geografia
da saúde como conhecemos hoje, com a sua
Como determinantes sociais em saúde, com- multiplicidade de olhares e metodologias, que de
preendemos as condições socioeconômicas e alguma maneira podemos traduzir essa corrente
ambientais mais gerais que determinam porque de pensamento a partir de duas importantes
determinadas populações são mais suscetíveis publicações que de certa forma traduzem esse
a algumas doenças do que outros, ou seja, como corpus teórico desse campo de pensamento pro-
habitação, trabalho, educação, alimentação ser- fundamente marcado pela interdisciplinaridade,
viços de saúde etc. O modelo abaixo sintetiza todo “Geografia e o Contexto dos problemas de saúde”
o debate realizado neste contexto reflexão sobre (BARCELLOS, 2008) e “Território, Ambiente e Saú-
o processo saúde/doença no Brasil. de” (MIRANDA et al 2008).

Todo este contexto, marca uma ruptura meto-


dológica e conceitual, entre o pensamento entre
geografia médica e geografia da saúde, e abre
portas para refletirmos sobre a produção do es-
paço urbano e a determinação do processo saúde/
doença a partir do debate sobre o desenvolvimen-
to desigual do capitalismo, tendo o urbano como
contexto principal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Figura 2- Modelo de Dalhgren e Whitehead
Em tempos que as ficções de José Saramago,
George Orwell, Kafka, Margareth Atwood estão in-
EIXO TEMÁTICO 1 felizmente atuais, a frase do livro Cidades invisíveis
do Italo Calvino, traduz certa agenda de pesquisa
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO para a história urbana, “a cidade não revela o seu
passado, mas ele está ali, como as linhas da mão;
escrito nas esquinas das ruas, nas grades das
janelas, nos balaústres das escadas, nos mas-
tros das bandeiras, cada segmento, por sua vez
marcado com arranhões, entalhes , ornamentos”.

Portanto, quando estamos fazendo pesquisa em


saúde pública temos que observar múltiplas es-
calas desde a escala do corpo ou até mesmo uma
escala menor da biologia dos micro organismos.
Até as escalas do urbano que hoje estão cada
vez mais conectadas há um ritmo global do ca-
pitalismo.

A atual pandemia nos obriga pensar os desafios


em múltiplas escalas e observar uma geografia
desigual que se materializa, em discursos que
estão nos jornais, nas instituições científicas e
em práticas e planos dos agentes do Estado e das
instituições multinacionais.

A relação entre saúde e cidade tem uma longa


duração, os estudos sobre história urbana nos
ajudam a compreender as contradições do pre-
sente a partir dos erros e dos acertos do passado.
Quando pensamos a relação entre o urbano e a
saúde, uma das primeiras coisas que vem em
nossa memória são os higienistas do século XIX,
que transformaram profundamente as cidades e
inventaram com um conjunto de outros saberes, a
própria temática urbana, ou seja, o urbano como
conhecemos é fruto de reflexões sobre saúde
pública do passado. A saúde da cidade estava
naquele momento no centro das reflexões sobre
as sociedades industriais nascentes e os seus
problemas recorrentes.

Portanto, as práticas, discursos e ideias sobre


saúde e doença – visto que saúde e doença com-
põe um par dialético - estão no centro da questão
urbana nascente. E um importante parêntese
aqui, quanto estamos falando de higienismo não
estamos tratando de um bloco uníssono de ideias,
mas sim de debate contraditório que envolveu
diferentes setores das sociedade, grupos políti-
cos , agentes do Estado, detentores do capital e
grupos filantrópicos.
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
Mas que tem como raiz um discurso sobre a de-
360 sordem urbana e todos esses grupos vão propor
soluções, em vários campos (habitação, embele- REFERÊNCIAS
zamento, saneamento, localização e zoneamento
de pontos estratégicos para a vida urbana e o ABREU, Maurício. Da habitação ao habitat: A
comércio etc) e que vão afetar diferentes grupos questão da habitação popular no Rio de Janeiro
sociais. e sua evolução. Revista Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, n.10, p. 161-177, 2004.
Assim, a atual pandemia de coronavírus coloca
a nossa frente e nos chama a reflexão, e que as ABREU, Maurício. Evolução urbana do Rio de
ideias, práticas e discursos sobre saúde públi- Janeiro. Rio de Janeiro: Instituto Pereira Pas-
ca continuam fazendo parte da questão urbana sos, 2013.
hoje, não mais com a centralidade de outrora mas
continua sendo uma reflexão fundamental para ABREU, Maurício; MARTINS, Luciana L. Para-
pensarmos o desenvolvimento urbano. Não só doxos da modernidade. O Rio de Janeiro do
período joanino 1808-1821 in: FRIDMAN, Fania;
do ponto de vista das “terapêuticas” urbanas que
HAESBAERT, Rogério. (Org.). Mauricio Abreu.
vão surgir a partir de agora, visto que um evento
Escritos sobre espaço e história. 1. ed. Rio de
traumático como esse produz as mais diversas
Janeiro: Garamond, 2014. 117 .
reflexões de diferentes classes sociais. Mas pen-
sando em uma escala mais ampla, o conjunto de ABREU, Maurício. Pensando a cidade no Bra-
modernizações que - como em outros momentos sil no passado. In: CASTRO, Iná Elias; GOMES,
históricos aparecerem no horizonte - como por Paulo Cesar da Costa; CORRÊA, Roberto Lobato
exemplo no atual momento a pandemia acelera (orgs). Brasil: questões atuais da reorganização
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16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

364
365
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
EIXO TEMÁTICO 1 RESUMO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Em meados do século XX, dispersão urbana,
ocupação do território e criação de novas cida-
SESSÃO temática des eram tópicos contemplados no modelo de
planejamento físico apregoado pelo ideário ci-
dade jardim. Tal ideário transbordou fronteiras
TRANSNACIONAL, político-geográficas mas, também, fundiu-se
em todo o globo com agendas de desenvolvi-
INTERNACIONAL: SOBRE mento especificamente nacionais. Interessado
neste fato, este trabalho delineia um estudo de
A CIRCULAÇÃO DE IDEIAS caso de difusão transnacional de ideias urba-
nísticas no qual esforços modernizadores lo-
E A HISTORIOGRAFIA DO cais conseguiram interpretar a identidade cul-
tural em formação e, ao mesmo tempo, ecoar
URBANISMO soluções globais, modernas. Com isso, o texto
pondera sobre a articulação entre a perspectiva
transnacional – o entendimento de processos
TRANSNATIONAL, INTERNATIONAL: ON THE
que transbordam fronteiras geográficas, polí-
CIRCULATION OF IDEAS AND THE TOWN PLANNING
ticas e culturais – e o papel local do urbanismo
HISTORIOGRAPHY
e do planejamento na construção de ‘imagens
identitárias’ e do ‘discurso de nação’. Analisan-
TRANSNACIONAL, INTERNACIONAL: SOBRE LA
do o Planejamento Físico em Israel, responsável
CIRCULACIÓN DE IDEAS Y LA HISTORIOGRAFÍA DEL
pela criação de trinta novas cidades no interior
URBANISMO
do país entre 1948 e 1963 e referenciado no Gre-
ater London Plan, de 1944, este trabalho trata
REGO, Renato Leão da disseminação das práticas de descentrali-
zação, hierarquização urbana, planejamento
Doutor; Universidade Estadual de Maringá - UEM
rlrego@uem.br
regional, conformação urbana e construção de
identidades, revelando a interação entre varia-
ções distintivas locais e similaridades globais
no processo transnacional de difusão do urba-
nismo e, com isso, reconhecendo um duplo foco
de interesse da historiografia.

MODERNIZAÇÃO CIDADES NOVAS CIDADE JARDIM


COLONIZAÇÃO TRANSNACIONALISMO

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

366
ABSTRACT RESUMEN

In mid-twentieth century, urban dispersion, ter- En mediados del sigo XX, dispersión urbana, ocu-
ritory occupation, and the creation of new towns pación del territorio y creación de nuevas ciuda-
were part of town planning model diffused by the des eran tópicos contemplados en el modelo de
garden city movement. These ideas transcended planificación física difundido por el ideario ciu-
politico-geographical borders but they were also dad jardín. Este ideario cruzó fronteras político
worldwide infilled with specific national develo- geográficas pero también se mezcló por todo el
pment demands. Interested in this aspect, this globo con ideas de desarrollo específicamente
paper focuses on a case study of transnational nacionales. Interesado en este hecho, este traba-
diffusion of planning ideas in which local moder- jo enfoca un estudio de caso de difusión transna-
nization efforts interpreted the cultural identity cional de ideas urbanísticas en el cual esfuerzos
under formation and, at the same time, echoed modernizadores locales interpretaron la identi-
global, modern solutions. Thus, the paper consi- dad cultural en formación y, a la vez, resonaran
ders the articulation between the transnational soluciones globales, modernas. Con eso, el texto
perspective – the understanding of processes pondera sobre la articulación entre la perspectiva
that overflow geographic, political and cultural transnacional – el entendimiento de procesos que
frontiers – and the role of town planning in the trasbordan límites geográficos, políticos y cultu-
nation-building and construction of identities. rales – y el rol del urbanismo en la construcción
By analyzing the Physical Plan in Israel, which de imágenes identitarias y en el discurso de la
was based on the Greater London Plan 1944 and nación. Al analizar el Plano Físico en Israel, basa-
created thirty new towns between 1948 and 1963, do en el Greater London Plan 1944 y responsable
this paper deals with the dissemination of notions por la creación de treinta nuevas ciudades entre
such as decentralization, urban hierarchy, regio- 1948 y 1963, este trabajo trata de la diseminación
nal planning, urban form and identities, revealing de prácticas de descentralización, jerarquizaci-
the interplay between local distinctive variations ón urbana, planificación regional, conformación
and global similarity in the transnational process urbana y construcción de identidades, revelando
of planning diffusion and, therefore, recognizing el juego entre las variaciones locales distintivas y
historiography’s double interest. las similitudes globales en el proceso transnacio-
nal de difusión del urbanismo y, con eso, recono-
ciendo el doble interés de la historiografía.
MODERNIZATION NEW TOWNS GARDEN CITY
COLONIZATION TRANSNATIONALISM
MODERNIZACIÓN CIUDADES NUEVAS CIUDAD JARDÍN
COLONIZACIÓN TRANSNACIONALISMO
EIXO TEMÁTICO 1 INTRODUÇÃO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Nas últimas décadas, temos pensado globalmente
em termos de economia, política e sociedade.
‘Globalização’ é um conceito que diz respeito à in-
SESSÃO temática
tegração de sistemas (econômicos, políticos e so-
ciais) e à mobilidade de pessoas, ideias, produtos

TRANSNACIONAL, e capital, transbordando fronteiras geográficas e


culturais e barreiras linguísticas, delineando um
INTERNACIONAL: SOBRE único sistema que cobre todo o globo. Em termos
culturais, a globalização tem sido encarada como
A CIRCULAÇÃO DE IDEIAS uma força intimidadora a serviço dos interesses
políticos de nações poderosas. A imagem dese-
E A HISTORIOGRAFIA DO nhada por seus críticos é a do capitalismo global
como força determinante no mundo atual, que
URBANISMO destrói comunidades locais, fomenta o consumo
global e penetra a vida mais íntima das pesso-
as comuns (SMITH, 2005). Seus efeitos – reais e
TRANSNATIONAL, INTERNATIONAL: ON THE imaginados – têm sido associados a um mundo
CIRCULATION OF IDEAS AND THE TOWN PLANNING mais homogeneizado em que a coexistência de
HISTORIOGRAPHY múltiplas e equivalentes identidades culturais é
desfavorecida (DeVEREAUX e GRIFFIN, 2006).
TRANSNACIONAL, INTERNACIONAL: SOBRE LA Pareceu ser a transformação de todo o globo
CIRCULACIÓN DE IDEAS Y LA HISTORIOGRAFÍA DEL segundo a modernidade ocidental.
URBANISMO
Na medida em que a globalização tem sido enten-
dida como ameaça a identidades culturais, enfa-
tizando as semelhanças por sobre as diferenças,
a perspectiva ‘transnacional’ tem sido adotada
como um esforço para corrigir as consequências
desta ameaça e superar seus desafios. Com isso,
há alguns anos ‘transnacional’ vem substituindo
o emprego do adjetivo ‘global’, que, na evolução
dos termos, em parte substituíra ‘internacional’.
O conceito de transnacionalismo sugere o enfra-
quecimento do controle de uma nação-estado
sobre os seus limites, habitantes e território. Pois
a crescente imigração para os países desenvolvi-
dos em reposta ao desenvolvimento econômico
global tem produzido sociedades multiculturais
nas quais os imigrantes têm mais chance de man-
ter contato com sua cultura de origem do que
assimilar. ‘Transnacional’ se refere, portanto, ao
entendimento da complexa e multidimensional in-
terconectividade de redes sociais além-fronteiras
e de seus efeitos nas práticas sociais (DeVEREAUX
e GRIFFIN, 2006; SMITH, 2005; cf. PLATT, 2019).

Entretanto, processos transnacionais transcen-


16º SHCU dem nações-estado mas estão ancorados nelas,
30 anos . Atualização Crítica
e seus impactos, ainda que diferentes, devem ser
368 entendidos no contexto da globalização (HUFF,
2020). Nesse sentido, a abordagem transnacional recendo sugestões para resolver os problemas
não deve ser nem uma ameaça ao legado da era ou melhorar condições de um lugar com base em
internacional nem um disfarce da sua tenacidade, suas experiências de outros lugares. A bagagem
mas sim uma análise mais nuançada das persis- de autores acadêmicos, escritores de manuais e
tentes assimetrias da dominação, da desigualdade experts viajantes refletem os seus próprios inte-
e do desenvolvimento desequilibrado nas quais resses e as culturas das quais provêm. Aqueles
as práticas transnacionais estão assentadas e que adotam ideias viajantes tiveram antes que
as quais muitas vezes perpetuam (SMITH, 2005; explorá-las e certamente fizeram suas escolhas.
DeVEREAUX e GRIFFIN, 2006, p. 6). Ela deve con- Ou seja, estes processos envolvem tradução, in-
templar o “entendimento das consequências e dos terpretação, seleção e recusa, e re-imaginação,
atos de sujeitos situados social e espacialmente” e em geral são menos lineares do que as frases
(SMITH, 2005, p. 4. Grifo meu). Principalmente anteriores podem sugerir. Na verdade, experts e
porque sujeitos de conexões transnacionais, ao profissionais são indivíduos situados em redes e
usar avançados meios de comunicação e de trans- comunidades nas quais suas ideias foram desen-
porte, se veem em uma órbita de ideias, imagens volvidas (HEALEY, 2010, p. 5; FERNANDES, 2019).
e tecnologias cosmopolitas, e de práticas socio-
Uma análise interconectada, contemplando a
culturais que têm sido historicamente associadas
travessia de limites (geográficos, culturais, lin-
com a cultura das cidades (SMITH, 2005, p. 6).
guísticos), observando cidadãos, planejadores,
Mas como o emprego do termo ‘transnacional’, governos e instituições, percebendo contribui-
próprio da virada para o século XXI, implica na ções multidisciplinares e conjugando as escalas
história do urbanismo, em particular na narrativa do local e do global, absolutamente enriquecerá
das realizações do século XX? Ou, para colocar as narrativas da história do urbanismo.
de outro modo, como este novo olhar pode
despertar novas questões sobre o passado?
Por um lado, a formação do urbanismo como
campo do saber foi, desde cedo, internacional
– quiçá global (SUTCLIFFE, 1981; CALABI, 2012).
Por outro, mobilidade global e tecnologias de
comunicação mundial instantânea passaram a
desconhecer fronteiras e limites e facilitaram
deslocamentos, intercâmbios e inovações ao
longo de todo o século passado. A difusão do
urbanismo no século XX tem sido tratada por
historiadores que exploram a circulação das ideias
urbanísticas em regiões remotas, por empréstimo
e por imposição, e muitos deles têm atentado
para processos de adaptação e transformação
destas ideias em circulação (RODGERS, 1988;
WARD, 2000; NASR e VOLAIT, 2003; LEME, 2005;
ALMANDOZ, 2010; HEALEY e UPTON, 2010; WARD,
2010; WAKEMAN, 2016; FREESTONE e JAMES,
2018). Mas nem sempre os historiadores do
urbanismo têm percebido as “estruturas maiores”
nas quais ideias e planos urbanísticos circulam,
e os estudos do urbanismo transnacional em
geral têm negligenciado o papel dos profissionais
planejadores, focando quase exclusivamente nas Fig. 1. Planejamento Físico em Israel, Arieh Sharon, capa.
imigrações e nas mudanças não planejadas que Fonte: https://www.ariehsharon.org/Archive/Physical-
elas produzem na forma urbana (HEIN, 2017, p. 114). -Planning-in-Israel/Introduction/i-63W7T43.

Urbanistas têm viajado de um local a outro ofe-


EIXO TEMÁTICO 1 Com tal interesse, este trabalho explora a res-
sonância de ideias formuladas no plano de 1944
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO para a grande Londres, coordenado por Patrick
Abercrombie (ABERCROMBIE, 1945), e sua re-
-imaginação no Planejamento Físico em Israel
1948-1963, encabeçado por Arieh Sharon (SHA-
RON, 1951; 1952; e 1976. Figura 1). Desenvolvendo
esse estudo de caso por meio da argumentação
lógica, este texto trata de noções e práticas de
descentralização, hierarquização urbana, plane-
jamento regional, conformação urbana e cons-
trução de identidades, conjugando o local e o
global e revelando a interação entre similaridades
e particularidades no processo transnacional de
difusão do urbanismo.

DISPERSÃO POPULACIONAL E DESCENTRALIZAÇÃO


URBANA

Com a recomendação da ONU para a criação do


Estado de Israel em 1947 e a independência do
país no ano seguinte, o governo local se viu en-
tão diante de áreas ‘vazias’ sob sua soberania e
da necessidade de dar solução de habitação e
assentamento à imigração em massa que passou
a chegar (ALLWEIL, 2017).1 A decisão de construir
novas cidades atendeu sobretudo à imigração em
massa, mas tratou também de mudar a polariza-
da hierarquia urbana – definida por três cidades
principais (Tel Aviv, Haifa e Jerusalém), cinco ou-
tras cidades médias e trezentos assentamentos
agrícolas-, com a adição de centros urbanos de
tamanho médio e a criação de um contínuo de
assentamentos entre a cidade e a vila. Estrategi-
camente espalhou a população pelo país e preen-
cheu os vazios no mapa do território nacional com
a criação de novos núcleos de serviços (SHARON,
1952; SPIEGEL, 1967; EFRAT, 1994a; COHEN, 1970,

1. Antes da criação do Estado de Israel a população judaica


na região era de 650.000 habitantes, dos quais 82% viviam
na costa e 43% se concentravam em Tel Aviv. Três anos de-
pois da criação do Estado, este número duplicou. (SHARON,
1952, p. 67; SPIEGEL, 1967, p. 26). Em 1950, o presidente Ben
Gurion decretou a Lei do Retorno, estabelecendo que não é
o Estado que concede aos judeus habitantes no estrangeiro
16º SHCU
o direito de instalar-se em Israel, mas sim que esse direito
30 anos . Atualização Crítica
é natural e inerente na medida em que, sendo judeus, eles
370 desejem instalar-se no país.
p. 33). Estas medidas fizeram parte do Planeja- A repercussão global do Greater London Plan ape-
mento Físico em Israel, publicado em 1951. nas aumentara o prestígio de Abercrombie entre
os planejadores e políticos da comunidade judaica
Como uma solução para questões análogas en- da Terra de Israel, já que ele e outros profissio-
frentadas pelo planejamento físico do Estado de nais britânicos – como Patrick Geddes – tinham
Israel, o plano desenvolvido pela equipe de Aber- tido experiências prévias na Palestina durante o
crombie para a região metropolitana de Londres Mandato Britânico (1918-1948). Por certo, o colo-
também tratava do planejamento regional abran- nialismo foi um veículo eficiente para difundir e
gente, incluindo habitação, indústria, transporte, por em prática ideias urbanísticas (KING, 1980;
espaços verdes livres e o uso do solo agrícola. KING, 1990). Pois durante o Mandato, Geddes fora
Fortemente embasado nas ideias de Ebenezer contratado em 1919 e 1920 pelo escritório pales-
Howard (HOWARD, 1965), o plano adotou a des- tino da Comissão Sionista para elaborar projetos
centralização da indústria com um consequente e em áreas próximas a Haifa, Jerusalém e Jaffa,
complementar movimento populacional como me- e retornou em 1925 para desenvolver o plano de
dida racional para o desenvolvimento equilibrado expansão de Tel Aviv (ZAIDMAN e KARK, 2016, pp.
da Londres metropolitana (ABERCROMBIE, 1945, 66-68); e Abercrombie havia sido encarregado
p. 30 e 50). De acordo com o ideário garden city, o pela organização sionista pela elaborar o projeto
plano entendia que a melhoria das condições de de uma cidade satélite para Haifa (1930) depois
vida na cidade seria alcançada com a interrupção que o governo colonial vetou o plano inicial da
da expansão urbana (e a restrição de densida- organização. Mais tarde Abercrombie acabou
de populacional nas áreas já ocupadas), e com sendo convidado para atuar como consultor do
a construção de novas cidades, com tamanhos Planejamento Físico em Israel desenvolvido pelo
controlados. A população por unidade de área era arquiteto Arieh Sharon em 1948 (Figura 2).
o parâmetro de descentralização adotado, e ele
era inversamente proporcional à distância da me-
trópole, embora nenhuma hierarquia aparecesse
entre as cidades satélites propostas.

De fato, o plano para a região metropolitana da


capital inglesa em reconstrução, apresentado
ao Ministério do Planejamento Urbano e Rural,
delineou medidas para a dispersão populacio-
nal e a descentralização urbana que atenderam
exemplarmente o problema do planejamento físico
da nova nação israelense (WAKEMAN, 2016, p. 58
e 110). Àquela altura, nos anos do pós-guerra, a
reputação internacional do planejamento urbano
britânico atingiu seu zênite e o Greater London Fig. 2. Arieh Sharon (ao centro) e Patrick Abercrombie (à
Plan 1944 encabeçado por Patrick Abercrombie direita), em 1950. Fonte: https://www.ariehsharon.org/
Archive/Physical-Planning-in-Israel/Photos-and-Pres-
era uma referência frequente, dentro e fora dos
limites do domínio britânico, contribuindo para au- s/i-6KqHM38.

mentar a influência cultural da sua cidade capital.


A trajetória de Arieh Sharon (1900-1984), nas pa-
Pronto ele se tornou o “modelo mais imitado mun-
do afora, adotado e adaptado por um estonteante lavras de Bruno Zevi, envolve ingredientes in-
número de descendentes” (WAKEMAN, 2016, p. 80), comuns: sionismo, kibbutz, Bauhaus, atividade
materializando uma abordagem racional, abran- profissional local e internacional e planejamento
gente no escopo e de larga escala, distribuindo territorial (SHARON, 1976, p. 6). Sharon nascera
mais logicamente a população e a indústria, me- na Polônia e imigrou para a Palestina em 1920,
lhorando radicalmente o transporte, e determi- certo em se transformar, de membro da burgue-
nando o uso apropriado do solo, de modo a guiar sia judaica polonesa dedicada ao comércio e aos
a doutrina do planejamento por todo pós-guerra serviços, em trabalhador rural na terra de Sião.
(WAKEMAN, 2016, p. 55; ABERCROMBIE, 1945, p. I). Trabalhando com projeto e construção no kibbutz,
EIXO TEMÁTICO 1 decidiu se aperfeiçoar nesta área e viajou para a
Alemanha – que “naqueles dias era o que a América
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO [i.e. Estados Unidos] é hoje” (SHARON, 1976, p. 17).
A República de Weimar então experimentava um
período de prosperidade crescente, recuperação
econômica e melhores condições de vida, pro-
porcionadas pelo rápido crescimento industrial,
investimento de capital e restauração do comér-
cio exterior. Já na Alemanha, Sharon conheceu
a Bauhaus através de uma revista dedicada à
escola de Dessau, e lá estudou entre 1926 e 1928,
vinculado ao departamento de construção, de
Hannes Meyer.2 Sharon passou alguns anos em
Berlim, onde foi encarregado do escritório do
comunista Hannes Meyer (1929-1931) e atuou como
arquiteto independente. Em resumo, religião e
ideologia, portanto, o mobilizaram inicialmente e,
mais tarde, o interesse profissional associado ao
prestígio alemão o levaram a novo deslocamento
internacional.

Com a iminência da guerra, Sharon voltou à Terra


de Israel para atuar como profissional liberal e
como professor no Technion, o Instituto de Tec-
nologia de Israel em Haifa, entre 1937 e 1941. Hoje
é lembrado como um dos arquitetos responsá-
veis pela ‘cidade branca’ de Tel Aviv – o conjunto
arquitetônico tombado pela UNESCO em 2003.3
A arquitetura modernista promovida por Sharon –
membro do CIAM – e seus colegas do ‘círculo de Tel
Aviv’, conhecida como ‘Bauhaus vernacular’, valia-
-se da ruptura com o passado – própria do movi-
mento moderno – e simbolizava a transição de uma
minoria estereotipada na Europa para a promessa
de construção de um self autônomo na Terra de
Israel (NITZAN-SHIFTAN, 1996, p. 154; MUMFORD,
2018) 4 – em uma interação entre o global e o local.

2. Sharon frequentou o curso preliminar de Josef Albers e


Lászlo Moholy-Nagy e assistiu aulas de Wassily Kandinsky
e Paul Klee; recebeu o diploma número 6. Cf. https://www.
bauhaus100.com/the-bauhaus/people/students/arieh-
-sharon/.

3. A ‘cidade branca’ foi construída entre 1930 e 1950, a partir


do traçado de Patrick Geddes. Seus edifícios foram projeta-
dos por arquitetos formados na Europa, onde exerceram a
profissão antes de imigrar. Criaram um conjunto modernista
extraordinário em um novo contexto cultural. Cf. https://
whc.unesco.org/en/list/1096/.
16º SHCU
4. De acordo com Nitzan-Shiftan (1996, p. 155), “the request
30 anos . Atualização Crítica
that the house of the Jew ‘be the house of the [wishfully
372 familiar] country in which he is settling’ did not merely
Entre 1948 e 1953 Sharon ocupou os cargos de
diretor e de arquiteto chefe do Departamento de
Planejamento Nacional do gabinete do primeiro-
-ministro (SHARON, 1976). Neste departamento,
comandou uma equipe de dezenas de arquitetos
e engenheiros (no início eram 80, a certa altura
foram 170) para preparar um programa de trabalho
em planejamento urbano e regional, planos regio-
nais, além do traçado de várias cidades novas e
um plano diretor para Jerusalém.

Fig. 3. Planejamento Físico em Israel, rede de comuni-


cações (Cidades principais: círculo vermelho; cidades
médias: círculo marrom; cidades pequenas: círculo ocre).
Fonte: https://www.ariehsharon.org/Archive/Physical-
-Planning-in-Israel/National-Planning/i-KWtbJhs.

express the ambition to shelter member of the emerging


Zionist entity, but also expressed the aspiration to instil a
new national consciousness in the inhabitants by means of
modern dwelling”. Para Julius Posener, “in the context of
the Yishuv, the stark white house was the proper traceless
home for the uprooted Jew, ‘an apartment free from past
memories.’” (NITZAN-SHIFTAN, 1996, p. 158).
EIXO TEMÁTICO 1 Tendo tomado como referência ideias, noções e
práticas britânicas de planejamento e de urba-
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO nismo compiladas no plano elaborado pela equi-
pe de Abercrombie, o plano de Sharon almejava
igualmente construir novas cidades, criar áreas
rurais e assentamentos agrícolas, determinar
uma distribuição saudável e racional de centros
urbanos, dispor indústria nas várias regiões do
país, indicar uma rede viária e centros de comuni-
cação, e prover uma cadeia de parques nacionais
(SHARON, 1952, p. 66. Figura 3). O Planejamento
Físico em Israel propôs e criou trinta novas ci-
dades entre 1948 e 1963, mas, de movo inovador,
o princípio de organização desta nova estrutura
urbana contemplava cinco níveis: vilas com 500
habitantes, constituindo uma unidade de pro-
dução agrícola; centros rurais, com menos de
2.000 habitantes, contendo serviços agrícolas
regionais para atender entre quatro e seis vilas;
centro urbanos com 6.000 a 12.000 habitantes,
abrangendo uma área maior; cidades médias,
com população entre 40.000 e 60.000 habitan-
tes, servindo como centros regionais; e, por fim,
cidades grandes, centros nacionais com mais de
100.000 habitantes.5 A implementação do plano
ficou concentrada na criação de centros rurais,
centros urbanos e cidades médias, embora apa-
rentemente a ênfase foi nos dois últimos casos
(EFRAT, 1994b, p. 239; COHEN, 1970, p. 37).

Contudo, diferentemente da Grã-Bretanha e de


outros países capitalistas, onde a descentralização
se deu em torno de metrópoles industriais, a cria-
ção das cidades novas de Israel privilegiou regiões
periféricas do país. Com isso, as pequenas cida-
des novas de Israel não estavam conectadas com
áreas metropolitanas, mas adaptaram o princípio
hierárquico das cidades satélites a um esquema
similar. O plano subdividiu o país em regiões de
planejamento a partir de entidades geográficas
distintas, delimitadas por elementos topográficos e
físicos, e para cada região foram designados um ou
dois centros urbanos para “servir o interior agrícola
como núcleos de comércio, indústria, educação
e atividade social e sedes administrativas (SHA-
RON, 1951, p. 4). Neste sistema hierárquico, quanto
maior o tamanho, menor era o número de cidades

5. Estes números divergem ligeiramente de um autor para


16º SHCU
outro, embora a proporção entre eles permaneça. Cf. SPIE-
30 anos . Atualização Crítica
GEL, 1967, p. 19; EFRAT, 2017, p. 141; EFRAT, 1994a, p. 243;
374 EFRAT, 1994b, p. 239; COHEN, 1970, p. 37.
daquele tipo, o que significava uma quantidade de questões a respeito do plano de Sharon. Kauffman
centros urbanos de pequeno e médio porte com ainda deu voz às “apreensões de um expert estran-
intensa e equilibrada relação com o entorno rural, geiro” que, depois de sua partida de Israel, escre-
rompendo com a estrutura polar então existente.6 veu a ele sobre o Planejamento – aparentemente,
o expert estrangeiro era o próprio Abercrombie
Esta ideia de vários níveis em uma hierarquia ur- (KAUFFMANN, 1952). Isto permite notar embates,
bana foi relacionada à tese do geógrafo alemão discordâncias e suscetibilidades, assim como as
Walter Christaller, Teoria do lugar central (COHEN forças que fazem certas ideias prevalecerem – e,
1970, p. 36; SHADAR e OXMAN, 2003). Publicada neste caso, prevaleceu a postura progressista e
como livro em 1933, a tese de Christaller demons- internacionalista de Sharon.
trava que na base de qualquer sistema econômico
estava um padrão de assentamento que racio- De volta ao argumento deste texto, em um Oriente
nalizava a exploração dos recursos e que estes Médio ‘decolonizado’, um Estado nascente buscou
padrões de assentamento não eram acidentais, construir-se de acordo com uma racionalidade
mas adotavam uma estrutura territorial específica modernista (cf. KALLUS, 2014). O ideário cidade
e uma hierarquia ordenada de centros urbanos. jardim, até então propagado pelo empreendimen-
Consciente ou inconscientemente, parece ter to colonial britânico, foi adotado por iniciativa
vindo de Christaller a base científica para uma local, rebatendo a ação imperialista mas, em certa
rede policêntrica de pequenos e médios centros medida, ainda decorrendo dela. As trajetórias
urbanos (WAKEMAN, 2016, p. 36). de Sharon e Abercrombie se tocaram por razões
políticas, mas também por força de convergência
Mas, na narrativa de processos de circulação de do pensamento técnico. Os planos chefiados por
ideias como esta, é fundamental considerar atri- ambos coincidiam na noção contemporânea de
tos e resistências que normalmente acompanham dispersão e descentralização. De acordo com ela,
as ideias viajantes (Cf. SAID, 1983 e 2007; FRIED- a dispersão seria concentrada ao redor de nós ou
MANN, 2010) e aqui cabe mencionar, como exem- cidades específicas que reproduziriam a urbani-
plo, o caso de Richard Kauffmann (1887-1958), dade de grandes cidades em uma escala menor,
crítico do plano de Sharon.7 Kauffmann foi um mais humana. As cidades seriam interconectadas
arquiteto judeu alemão que também imigrou em em uma rede de comunicação e transporte como
1920 para a Palestina e lá trabalhou com projetos um sistema (WAKEMAN, 2016, p. 11).
arquitetônicos e urbanos. Kauffmann, assim como
Hannes Meyer – o ex-chefe de Sharon – havia sido Na estrutura maior em que as pessoas e as ideias
colaborador de George Metzendorf no projeto da viajam (HEIN, 2017, p. 114), pode-se perceber que,
cidade jardim de Margaretenhöhe, na Alemanha, enquanto a similaridade entre o plano para a Lon-
em 1909 (MUMFORD, 2018, p. 94) – e, portanto, co- dres metropolitana e o plano de Israel residia na
nhecia há muito o ideário garden city. Em Israel, racionalidade técnica e no pensamento geopolítico,
atuou como membro do comitê de planejamento as particularidades do segundo se encontravam na
do British Mandate e, como arquiteto da compa- re-imaginação da ideia adotada, então conjugada
nhia de desenvolvimento agrário do movimento com uma circunstância específica. Por conveni-
sinonista, levantou publicamente uma série de ência ideológica Sharon adotou também a ideia de
cidade pouco densa e ‘pouco urbana’ do ideário gar-
6. Curiosamente, uma estrutura hierárquica semelhante ao den city e, como examinaremos a seguir, aí também
do Planejamento Físico em Israel pode ser encontrada na vamos perceber a interação entre similaridade e
colonização do norte do Paraná, a partir da nova direção do particularidades, entre o global e o transnacional.
empreendimento, em 1944 (cf. REGO e MENEGUETTI, 2010).

7. Outras críticas ao plano de Sharon estão apontadas em


Cohen, 1970, pp. 43-44. Nitzan-Shiftan, Epstein-Pliouchtch
e Alon-Mozes (2006, p. 49) se referem à trajetória de Sharon
NOVAS CIDADES
como a “história dos vencedores”. Sharon pertencia ao ‘círcu-
lo de Tel Aviv’, um grupo socialista que relacionava sionismo A cidade jardim foi talhada pela mentalidade
e arquitetura modernista – em oposição a correntes menos britânica e sua essência foi formada a partir da
internacionalistas (cf. NITZAN-SHIFTAN, 1996). noção do campo idílico e das tradições arqui-
EIXO TEMÁTICO 1 tetônicas do passado inglês. Assim, uma certa
nostalgia pastoral e um conceito de Englishness
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO substituíram a realidade sombria pós revolução
industrial por vilas acolhedoras, jardins cultiva-
dos e vidas saudáveis (AALEN, 1992; MEACHAM,
1998; SPIEGEL, 1967). Entretanto, o ideário gar-
den city e sua implementação na Inglaterra (e
na Alemanha) atraíram a atenção do movimento
sionista, seus líderes e assentados, tanto na Pa-
lestina Otomana (antes de 1918) quanto durante o
Mandato Britânico (entre 1918 e 1948), e os levou
a adotar a cidade jardim como referência para
o novo planejamento urbano judeu na Palestina
(ZAIDMAN e KARK, 2016; WILKOF, 2019).

Na verdade, o movimento sionista abraçou o


conceito de cidades jardim com entusiasmo e
a retórica da cidade jardim foi assim introduzi-
da na Palestina através de imigrantes ativistas
sionistas alemães bem antes de ser diretamente
transportada da Grã-Bretanha para o território do
Mandato Britânico pelo governo de sua majestade.
Bairros jardim construíram o modelo sionista de
assentamento urbano (ou seja, um tanto rural)
ainda sob o regime turco, servindo às aspira-
ções culturais e nacionalistas do grupo judeu,
construindo o “paradigma nacional” (ZAIDMAN e
KARK, 2016, p. 55 e 63).

O padrão universal da cidade e do bairro jardim,


levado com imigrantes europeus para a Palestina,
se tornou um instrumento para a identidade dos
assentamentos judeus, rurais ou urbanos. Pois
o sionismo pioneiro guardava indiferença e até
uma certa hostilidade com relação à cidade, já
que ele se caracterizou por um viés fortemente
pastoral e agrícola. O espírito judeu devia estar,
literalmente, enraizado na terra (COHEN, 1970,
p. 3; SONDER, 2014; KATZ, 1994; NITZAN-SHIF-
TAN, 1996, p. 155) e o conceito de Howard que
combinava as vantagens do campo e da cidade
foi percebido como a fórmula apropriada para o
assentamento na Terra de Israel e a fundação de
uma sociedade judaica. Portanto, a incorporação
do ideário cidade jardim se deu sobretudo por
razão ideológica, e não meramente formal ou
sanitária (BIGON, 2019; SONDER, 2014; SHADAR
e OXMAN, 2003).

16º SHCU Nesse sentido, a “tradução ideológica” (BIGON,


30 anos . Atualização Crítica
2019, s.p.) da cidade jardim para sua versão sionis-
376 ta deveu mais à imagem pastoral, verde, informal,
criada por Raymond Unwin e Richard Barry Parker Alemanha para aquela que seria sua assistente
em Letchworth Garden City e Hampstead Gar- depois de imigrar, pedindo: “Please bring a few
den Suburb do que aos diagramas apresentados examples of explicit German building regulations
idealizados por Ebenezer Howard (ZAIDMAN e for Cities and Garden Cities...”8
KARK, 2016, p. 71-72), os quais, mais tarde, foram
indiretamente a base para o plano de Sharon.
Em geral, um olhar negativo para a cidade e a
urbanização em geral foi um aspecto comum
dos movimentos mais utópicos e socialistas. A
cidade era considerada fonte de males sociais e
fator de desintegração das comunidades rurais
‘saudáveis’ da era pré-industrial (COHEN, 1970, p.
5). No caso específico da nova morada na terra
de Israel, o estabelecimento de comunidades
agrícolas – kibbutzim (assentamentos agrícolas
coletivos) e moshavim (assentamentos agrícolas Fig. 4. Planta de Talpiot Garden Suburb, 1921. Fonte: http://
cooperativos) confirmaram este menosprezo pelo richardkauffmann.com/wordpress/publications/plannin-
urbano. g-the-jewish-settlements-in-palestine/.

Além disso, a ordem planejada, o verde e a ampli- A predisposição sionista para cidade jardim pas-
tude da cidade jardim contrastavam com a cidade sou a ser impulsionada pelo governo colonial bri-
compacta tradicional do oriente médio. Eram tânico e, durante o Mandato, quando a população
também uma antítese às precárias condições de judaica era predominantemente de origem eu-
vida e de moradia no gueto europeu e nas cidades ropeia e a imagem do futuro era ainda plasma-
otomanas. Privilegiando a casa isolada, diferente- da pelo mundo agrícola, não propriamente pelo
mente das versões inglesa e europeia, os traçados universo urbano, a ideia da cidade e do subúrbio
do tipo cidade jardim na Palestina simbolizavam jardim ganhou força (COHEN, 1970; BRUTZKUS,
um ‘novo começo’, diferente do tecido urbano 1975, p. 303).9
árabe, denso e irregular, e das casas em série dos
velhos bairros dos judeus ortodoxos (ZAIDMAN e Com a criação do Estado de Israel, a adoção se-
KARK, 2016, p. 58; KAUFFMANN, 1926; WILKOF, letiva do ideário cidade jardim e sua adaptação
2016). A casa isolada no lote (zamud – literalmente, formataram um resultado singular – um sistema
‘ligada à terra’) era vista como ‘a boa moradia’ e urbano cobrindo todo um país a partir das ideias
se tornou o tijolo da construção das cidades e da revolucionárias do movimento cidade jardim (SON-
nação de Israel (ALLWEIL, 2017). DER, 2014; KATZ e BIGON, 2014). O planejamento
físico do novo Estado, como vimos, envolvia so-
É interessante notar aqui que Kauffmann, o crí- berania territorial e a ocupação do interior do país
tico do plano de Sharon, convergia com ele no com novas cidades era também a oportunidade
ideário cidade jardim. Tendo visitado a Inglaterra para se estabelecer modernos assentamentos ur-
em 1922, ele se tornou membro da International banos judaicos (COHEN, 1970; EFRAT, 1994a; ARA-
Garden Cities Association e projetou subúrbios VOT e MILITANU, 2010; WAKEMAN, 2016, p. 109).
jardim como o de Talpiot, em Jerusalém (Figura
4) – um projeto em que a conformação natural 8. Cf. https://richardkauffmann.wordpress.com/biography/
do terreno determinou a conformação do bair- lotte-cohns-biography-of-richard-kauffmann/.
ro (KAUFFMANN, 1926). Kauffmann, trabalhan-
9. Entre 1905 e 1945, 127 projetos foram chamados de, ou se
do para varias agências sionistas, realizou 644
proclamaram, cidade jardim ou bairro jardim. Dentre eles,
projetos, dos quais 282 foram parcial ou total-
13 ainda existem como entidades municipais autônomas
mente executados e quase a metade deles (135) (Migdal, Afula, Tivon, Kiriat Bialik, Kiriat Motzkin, Kiriat
era de assentamentos rurais (NITZAN-SHIFTAN, Yam, Herzlia, Tel HaShomer, Ramat Gan, Givataim, Bat-Yam,
EPSTEIN-PLIOUCHTCH e ALON-MOZES, 2006, Holon, e Kiriat Yearim); outros foram incorporados às ci-
p. 51). Seu interesse no ideário garden city não dades próximas como bairros, por exemplo em Haifa, em
era recente, já que em 1921 enviara uma carta à Jerusalém e em Tiberias (Cf. ZAIDMAN e KARK, 2016, p. 56).
EIXO TEMÁTICO 1
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO

Fig. 5. Centro da primeira unidade de vizinhança de Be’er


Sheba. (1. Escola; 2. Centro Cultural; 3. Comércio; 4. Servi-
ços; 5. Cinema; 6. Sinagoga; 7. Jardim de Infância). Fonte:
https://www.ariehsharon.org/Archive/Physical-Plannin-
g-in-Israel/The-New-Towns/i-xCBJ7bT.

Dentro do esquema que re-imaginou o digrama


howardiano através do plano de Abercrombie, o
traçado das novas cidades apresentado no Pla-
no de Sharon propunha replicar a ambiência e a
tipologia garden city antes experimentadas no
kibbutz: layout curvilíneo como resposta à confi-
guração topográfica, área central livre designada
para edifícios públicos, cinturão verde, pequenas
casas simples em lotes grandes. O próprio Sharon,
o arquiteto racionalista educado na Bauhaus,
elaborou o plano geral de uma destas cidades
(Be’er Sheva ou Beersheba – uma cidade chave no
desenvolvimento do deserto do Neguev) a partir
dos aspectos físicos do ideário cidade jardim,
e detalhou uma de suas unidades de vizinhan-
ças – outro conceito importado (SHARON, 1951;
MEIR, 1992; AVNI, ALFASI E BORNSTEIN, 2016;
DUMPER e STANLEY, 2007, 77-81; WARD, 2000;
NASR e VOLAIT, 2003. Figura 5). Outras unidades
vizinhanças foram construídas em sequência,
todas remontando à ideia original do sociólogo
norte-americano Clarence Perry. Estas unidades
vizinhanças preservavam o aspecto meio-urbano
meio-rural, com densidade residencial muito baixa
e isolamento por cinturões verdes.

De fato, como percebeu Wakeman (2016, p. 33), “a


unidade de vizinhança de Perry foi um dos concei-
tos mais poderosos no urbanismo do século XX,
e foi adotado como fundamento da ideologia das
cidades novas. Foi um ideal universal, aplicado
em esquemas de planejamento na Europa, nos
16º SHCU Estados Unidos, e mais além. Integrado ao tra-
30 anos . Atualização Crítica
çado das superquadras de Radburn, tornou-se
378 uma visão sedutora de comunidades orientadas
para a família e um mecanismo para a constru- também da autoridade britânica, encontrou
ção social”. E, para além da glorificação da vida aspirações locais – e esse encontro promoveu
rural, a aspiração de criar uma sociedade unida similaridades e distinções. Enquanto práticas
e integrada com imigrantes de origens diversas cotidianas (não planejadas) de comunidades imi-
era uma necessidade nacional aos olhos da elite grantes parecem reproduzir em novos contextos
intelectual de Israel. A unidade social era vital para ideias carregadas consigo, mantendo o sentido
o Estado recém-criado e acreditava-se que ela delas, planejadores que re-imaginam ideias via-
se efetivaria em organizações espaciais daquela jantes tendem a lhes dar novos sentidos – como
natureza, com o desejado melting-pot (SHADAR aqui foi o caso – um tanto problemático – da ar-
e OXMAN, 2003, p. 250). quitetura modernista e, mais harmoniosamente,
da conformação da cidade jardim e da unidade
As trinta novas cidades propostas pelo plano de de vizinhança.
Sharon insistiram na baixa densidade, no traçado
orgânico e na abundância de jardins. No caso de Destacou-se aqui neste texto a estrutura maior
Be’er Sheba, a construção de uma cidade verde na qual as ideias viajam e as forças globais per-
em pleno deserto não divergia do ideal dos pri- suasivas que impulsionam sua viagem universal
meiros bairros jardim da Palestina. Assim como a – um impulso mais ou menos homogêneo e similar
tipologia da moradia árabe havia sido rechaçada através das nações; neste caso, colonialismo/
pelo movimento sionista, os blocos modernistas imperialismo, capitalismo e a aspiração por de-
de apartamento – shikun–, igualmente considera- senvolvimento foram fatores da dimensão global
dos impróprios, foram desprezados nas cidades da circulação das ideias e a sua adoção mais ou
novas. A ideia da ‘cidade funcional’ defendida pelo menos semelhante. Mas aqui apontou-se também
CIAM sequer participou do Plano de Sharon e do para o aspecto complementar desta dimensão: as
projeto das novas cidades. Recentemente, as questões que respondem pelas especificidades
construções Bauhaus em Tel Aviv foram canoniza- dos casos de re-imaginação das ideias, quais fo-
das e declaradas como patrimônio cultural: parte
ram: a nova identidade cultural em construção, a
de um processo de reabilitação e valorização
tradição (árabe) – contestada – e o aspecto físico
que incluía o próprio projeto urbano moderno de
e geográfico do novo território onde aportaram.
Tel Aviv e seus blocos de apartamento – ambos
Com isso, este trabalho reconheceu que a aborda-
antes considerados como contrários à moradia
gem transnacional não é indiferente à dimensão
zamud – a fim de combater seu aspecto marginal
global e, pelo contrário, promove uma análise
no universo sionista.
mais nuançada das suas assimetrias, nas quais
as práticas transnacionais estão assentadas e as
quais muitas vezes perpetuam: transcendem na-
conclusão ções mas estão ancoradas nelas. Assim pode-se
perceber similaridades e particularidades. Nesse
sentido, a historiografia deve escutar duplamente:
Como bem disse John Friedmann (2010, p. 313), a o discurso global, por vezes generalizante, e as
modernização é uma aspiração global, desejada vozes locais com sua narrativa específica, a fim
por muitos, mas ela tem que ser localmente re- de compreender o embate de forças externas e
-imaginada. O plano de Abercrombie para uma internas.
sociedade industrializada, percebido desde o
Oriente Médio, foi tomado como modelo para po- Nas palavras do sionista S. Y. Agnon (1995, p. 333),
der atender a demanda de uma região em ‘proces- Nobel de Literatura de 1966,
so de desenvolvimento’ e, no seu deslocamento
desde uma nação desenvolvida para o contexto “O bom Senhor criou um mundo vasto, com
da colonização pioneira e da ocupação de uma muitas pessoas nele, as quais Ele espalhou
jovem nação onde novas áreas urbanas foram bem, dando a cada lugar sua qualidade única
criadas, foi re-imaginado em Israel. e dotando cada homem com sua sabedo-
ria singular. Você sai de casa e encontra
A persuasão global do ideário garden city, certa- pessoas de outros lugares, e sua mente se
mente decorrente do seu atributo técnico mas expande com o que você escuta”.
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EIXO TEMÁTICO 1

HISTORIOGRAFIA
E PENSAMENTO URBANÍSTICO

vídeo-pôsteres
EIXO TEMÁTICO 1 RESUMO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
O presente artigo busca apresentar a dinâmica
do planejamento urbano brasileiro, consideran-
vídeo-pôster do sobretudo seus contextos histórico, político
e econômico sob a influência dos agentes na
produção da paisagem urbana, e, como esta
A FORMULAÇÃO DO dinâmica é reproduzida em cidades de peque-
no porte, para ilustrar este contexto iremos
PLANEJAMENTO URBANO analisar o município de Conceição das Alagoas,
em Minas Gerais. Ressalta-se a importância do
SOB INFLUÊNCIA DOS estudo de cidades que estão fora dos grandes
centros urbanos, no sentido de ampliar o debate
AGENTES NA PRODUÇÃO DA sobre a produção urbana e possibilitar compa-
rações, verificações e reproduções de fenôme-
PAISAGEM URBANA: O CASO nos e estratégias de gestão e desenvolvimento

DO MUNICÍPIO DE CONCEIÇÃO urbano. A análise ocorre a partir da compreen-


são de como as práticas administrativas desde

DAS ALAGOAS – MG o período colonial até os dias atuais, influen-


ciam diretamente no atual parâmetro urbano, e,
como as relações político-econômicas são de-
THE FORMULATION OF URBAN PLANNING UNDER THE terminantes na produção de cidades de peque-
INFLUENCE OF AGENTS ON THE PRODUCTION OF URBAN no porte, justamente por ser subordinada à hie-
LANDSCAPE: THE CASE OF THE MUNICIPALITY OF rarquização da rede urbana. O estudo avança na
CONCEIÇÃO DAS ALAGOAS – MG medida em que propõe alguns questionamentos
em relação às práticas urbanísticas consolida-
das ao longo da história. Assim, propomos um
LA FORMULACIÓN DEL URBANISMO BAJO LA
olhar mais sensível à complexa rede de escalas
INFLUENCIA DE AGENTES EN LA PRODUCCIÓN DEL
que compõem as redes de cidades brasileiras.
PAISAJE URBANO: EL CASO DEL MUNICIPIO DE
CONCEIÇÃO DAS ALAGOAS - MG
PLANEJAMENTO URBANO AGENTES POLÍTICA
CARVALHO, Bruna REDE URBANA
Graduanda em Arquitetura e Urbanismo; LET-Uniube
donizetti_bruna@hotmail.com

GUIMARÃES, Camila
Mestre em Arquitetura e Urbanismo; LET-Uniube
camilafguimaraes@hotmail.com

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

386
ABSTRACT RESUMEN

This article seeks to present the dynamics of Bra- Este artículo busca presentar la dinámica del ur-
zilian urban planning, considering mainly its his- banismo brasileño, considerando principalmente
torical, political and economic contexts under the sus contextos históricos, políticos y económicos
influence of agents in the production of the urban bajo la influencia de agentes en la producción del
landscape, and, as this dynamic is reproduced in paisaje urbano y, como esta dinámica se reprodu-
small cities, and to illustrate this context we will ce en las pequeñas ciudades, e ilustrar este con-
analyze the municipality of Conceição das Ala- texto. analizaremos el municipio de Conceição
goas, in Minas Gerais. We emphasize the impor- das Alagoas, en MG. Destacamos la importancia
tance of studying cities that are outside the large de estudiar las ciudades que se encuentran fue-
urban centers, to broaden the debate on urban ra de los grandes núcleos urbanos, con el fin de
production and enable comparisons, checks and ampliar el debate sobre la producción urbana y
reproductions of phenomena and strategies for permitir comparaciones, controles y reproduc-
urban management and development. The analy- ciones de fenómenos y estrategias de gestión y
sis occurs from the understanding of how admi- desarrollo urbano. El análisis se da a partir de la
nistrative practices from the colonial period to comprensión de cómo las prácticas administrati-
the present day, directly influence the current ur- vas desde el período colonial hasta la actualidad
ban parameter, and, as the political-economic re- influyen directamente en el parámetro urbano
lations are determinant in the production of small actual, y, como las relaciones político-económi-
cities, precisely because they are subordinate cas son determinantes en la producción de las
the hierarchy of the urban network. The study pequeñas ciudades, precisamente porque están
advances insofar as it proposes some questions subordinadas. la jerarquía de la red urbana. El
regarding urban planning practices consolidated estudio avanza en la medida en que plantea al-
throughout history. Thus, we propose a more sen- gunas cuestiones sobre prácticas urbanísticas
sitive look at the complex network of scales that consolidadas a lo largo de la historia. Así, propo-
make up the networks of Brazilian cities. nemos una mirada más sensible a la compleja red
de escalas que conforman las redes de ciudades
brasileñas.
URBAN PLANNING AGENTS POLICY
URBAN NETWORK
PLANIFICACIÓN URBANA AGENTES POLÍTICA
RED URBANA
EIXO TEMÁTICO 1 INTRODUÇÃO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Nas últimas décadas, as discussões sobre pla-
nejamento urbano e políticas públicas no Brasil
alcançaram maior espaço e consequente rele-
vídeo-pôster
vância, a princípio por meio do capítulo da Polí-
tica Urbana da Constituição Brasileira de 1988 e

A FORMULAÇÃO DO posteriormente, pela aprovação da Lei Federal


que o regulamentou: o Estatuto da Cidade, criado

PLANEJAMENTO URBANO no ano de 2001, definindo, a partir daí, o Plano


Diretor como o instrumento básico da política
SOB INFLUÊNCIA DOS de desenvolvimento e planejamento municipal,
tornando-se instrumento obrigatório para todas
AGENTES NA PRODUÇÃO DA as cidades brasileiras com mais de 20.000 habi-
tantes. Porém, antes de atingir a discussão frente
PAISAGEM URBANA: O CASO a tal conjuntura, é essencial, refletir sobre as
premissas históricas, as motivações político-eco-
DO MUNICÍPIO DE CONCEIÇÃO nômicas e organizacionais do contexto brasileiro
que antecederam a ideia de um plano para reger
DAS ALAGOAS – MG cada município. Portanto, dominar a discussão
do planejamento urbano em sua fase atual requer
compreender seu processo de desenvolvimento
THE FORMULATION OF URBAN PLANNING UNDER THE ao longo dos anos, considerando a dialética en-
INFLUENCE OF AGENTS ON THE PRODUCTION OF URBAN tre as diferentes temporalidades, reconhecen-
LANDSCAPE: THE CASE OF THE MUNICIPALITY OF do seu lugar como espaço social composto por
CONCEIÇÃO DAS ALAGOAS – MG momentos históricos distintos. Considerando
as interrelações existentes que compõe a gêne-
LA FORMULACIÓN DEL URBANISMO BAJO LA se do desenvolvimento e de seu atual contexto.
INFLUENCIA DE AGENTES EN LA PRODUCCIÓN DEL
PAISAJE URBANO: EL CASO DEL MUNICIPIO DE No Brasil, o início do processo de colonização
CONCEIÇÃO DAS ALAGOAS - MG e planejamento dos territórios de exploração
voltados a economia mercantilista definiu uma
dinâmica rural, e posteriormente urbana, gerida
de acordo com interesses econômicos que se
sobressaíram em detrimento a manutenção da
igualdade social e econômica. A reprodução da
lógica política dominante, e, sobretudo, econô-
mica teve um efeito devastador nas dinâmicas
socioespaciais produzidas nos núcleos urbanos.
Neste sentido, Rossi (1995) ressalta que os planos
são geralmente presididos por forças, principal-
mente as de natureza econômica. Ou seja, antes
mesmo do desenvolvimento de um pensamento
urbanístico e a proposição de um plano necessário
para a regulamentação das atividades no ambiente
urbano, percebe-se uma forte influência das
administrações governamentais a serviço dos
interesses das forças econômicas e políticas de
determinados segmentos da sociedade. Fato
16º SHCU este, que se tornou um reflexo contínuo na pro-
30 anos . Atualização Crítica
dução urbana do país ao longo da sua história.
388 Tal situação, foi intensificada nos últimos anos,
frente ao avanço das políticas neoliberais volta- urbana e nas dinâmicas pontuadas ao longo do
das a produção das cidades. Se por um lado os texto, sejam elas de caráter legislativo, econô-
Planos Diretores regulamentados pelo Estatuto mico, político ou urbanístico, e como a legislação
da Cidades constituem um grande avanço legal atua na cidade frente ao pouco investimento no
no reconhecimento dos problemas urbanos e da território por parte do governo.
necessidade de um planejamento participativo,
por outro lado, os vestígios da mentalidade colo-
nial que ainda permanece nas relações políticas
limitam a potência deste instrumento de gestão CONTEXTO NACIONAL DO PLANEJAMENTO URBANO
urbana. Logo, considerando a situação das ci- NO BRASIL
dades brasileiras no contexto contemporâneo,
é possível analisar como estas representam o O processo de planejamento urbano no Brasil, a
semblante de uma sociedade que foi impedida de partir de uma perspectiva historiográfica, nos
superar sua herança colonial, tendo, ao longo do permite traçar perfis de diferentes períodos de
tempo, sobreposto à essa origem arcaica apenas ocupação e estratégias de desenvolvimento, bem
uma nova roupagem, vista como modernidade como relacionar com as transformações técnicas
“global”, porém que apenas reforça e intensifica que influenciaram o modo de habitar o espaço
os problemas já vistos anteriormente. urbano. Para tanto, faz-se necessário abordar
de forma crítica o contexto das alterações ur-
Contudo, as discussões que envolvem o planeja- banas, considerando o cerne inicial de todo esse
mento e as dinâmicas urbanas no Brasil estão, em processo: o período da colonização brasileira.
sua grande maioria, voltadas para as capitais e Como afirma Azevedo (1957, p. 151): “os caminhos
principalmente as grandes metrópoles, estabele- coloniais constituíram a espinha dorsal da rede
cidas como principais representantes e símbolos urbana brasileira.”
do intenso desenvolvimento urbano. De modo
que as cidades de menor porte, geralmente são Anteriormente, foi citado que os planos são geri-
reduzidas a números e dados estatísticos, sem dos por forças externas, principalmente econô-
um devido aprofundamento no entendimento de micas, contudo, para compreender tais forças, é
suas dinâmicas. Posto isso, o presente trabalho crucial identificar seus agentes e a base de suas
visa identificar a [re]significação e a [re]estru- motivações. No Brasil, um dos contextos que ilus-
turação da paisagem urbana e das dinâmicas tra essa afirmação diz respeito ao abastecimento
socioespaciais do município de Conceição das do mercado europeu nos primórdios da ocupação
Alagoas, localizado na região do Triângulo Mineiro, portuguesa do território nacional, motivo pelo
dentro da Microrregião de Uberaba. Propomos a qual seu solo passou a ser explorado (SOUSA,
análise dos impactos das políticas públicas e de 2008). Ou seja, à medida que os países europeus,
seus principais agentes, em consonância com os sobretudo Portugal, conseguiram descobrir e
reflexos históricos ainda presentes e marcantes explorar novas terras com significativo potencial
do desenvolvimento do pensamento e planeja- comercial, ampliaram sua hegemonia política e
mento urbanos no Brasil, desde sua colonização, econômica perante o contexto mundial.
passando pelo ciclo do ouro e até o contexto atual
após a aprovação do Estatuto da Cidade. Assim Portanto, neste momento, o principal agente
como, sua relação na hierarquia de gestão re- produtor da nova configuração que seria dada
gional, desde a escala Federal até a Municipal, ao país, foi a Corte Portuguesa, cujo objetivo era
evidenciando sua relação como município inte- administrar a terra encontrada como uma forma
grante da microrregião de Uberaba. de ampliar seu poder econômico. Somado a isso,
conforme destacado e severamente criticado
Essa análise decorre a partir de duas questões por Krenak (2019), a paisagem natural que de-
norteadoras desta pesquisa: a relação entre a veria ser parte da vida humana, torna-se uma
instalação da indústria versus a legislação urbana imagem de natureza funcional – a serviço das
do município de Conceição das Alagoas. Assim necessidades humanas - e dualista em relação
buscamos entender como a ligação entre ambas a área explorada. Assim, a paisagem natural do
interfere nas decisões tomadas sobre a produção Brasil se transformou em um recurso econômico
EIXO TEMÁTICO 1 e vital disponível para exploração. Neste sentido,
os núcleos urbanos do século XVII eram definidos
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO como territórios a serviço de algo de alguma coisa,
ou seja, o país então, serviria para o comércio e
principalmente à Portugal.

Compreendida a lógica e a motivação do início


da exploração das terras brasileiras, é possível
avançar a análise para o início da urbanização
do país, que aconteceu a partir de 1549, com a
fundação de São Salvador da Bahia de Todos os
Santos, como sede administrativa do território
sob posse portuguesa, quinze anos após o início
da colonização, que ocorreu durante o reinado de
D. João III. A partir deste momento, a Coroa de-
cidiu adotar o sistema de capitanias hereditárias
como a primeira política responsável por definir
a ocupação do solo no país, consolidando a vinda
e a fixação de europeus ao longo do território, o
que tornou mais eficaz o processo de colonização
e garantiu a posse do país perante Portugal. Por
conseguinte, a Coroa delegava aos donatários
de cada capitania a incumbência urbanizadora,
concedendo-lhes a permissão para criação de
vilas, desenvolvendo assim a ocupação do terri-
tório (HOLANDA, 2000).

A partir da observação de como ocorreu a orga-


nização do território brasileiro, podemos avançar
na análise proposta neste trabalho, buscando
compreender como as ações urbanas construídas
no país durante o período da colonização ainda
refletem na organização urbana e nas dinâmicas
atuais. O sistema de capitanias hereditárias, sua
subdivisão em sesmarias e as sequentes ferra-
mentas de organização espacial do território e de
seu uso foram reflexos do caráter centralizador da
Coroa, sob fortes influências política e econômi-
ca, isto é, desde o início as políticas adotas pelas
esferas governamentais foram influenciadas e
dirigidas por interesses externos aos planos de-
cretados. Ou seja, o traçado e as ocupações que
começaram a se espalhar no Brasil, não foram
movidos por motivos urbanísticos que visariam
assegurar uma ocupação justa da terra, com a
intensão de desenvolvê-la a partir de suas quali-
dades e características para garantir qualidade de
vida a população que ali se formasse, ao contrário,
o traçado a todo momento se deu puro e exclusi-
16º SHCU vamente sob premissas que fossem impulsionar
30 anos . Atualização Crítica
cada vez mais a hegemonia e o domínio político,
390 militar e religioso na colônia (HOLANDA, 2000).
A ação urbanizadora do sistema colonial portu- que o povoamento concentrado no litoral do país
guês conferiu ao que seria mais tarde no Brasil, o perdeu força no momento em que se iniciou a
caráter urbano antes mesmo do rural (REIS FILHO, fase da mineração, provocando um intenso fluxo
1968; OLIVEIRA, 1982). Neste caso, a ideia de urbe migratório para Minas Gerais e Goiás, novamente
estava relacionada exclusivamente ao fluxo de confirmando o argumento de que os principais
mercadoria, à necessidade das relações comer- processos urbanos no país se deram a partir de
ciais e à concentração de excedentes, que garanti- interesses particulares, excluindo a tomada de
ram o comércio interno. Esta rede desempenhava decisões por determinantes demográficos e ur-
uma função exclusiva de suporte às necessidades banísticos (HOLANDA, 2000).
da produção para exportação, de modo que sua
configuração espacial se deu de forma a favorecer À medida que as cidades se desenvolvem é
esta dinâmica. Holanda (1963, p. 62) caracteriza a possível perceber, que mesmo com o passar dos
configuração das cidades, como espaços desor- séculos, a configuração se remodela de acordo
ganizados e irracionais, “não é produto mental, com as carências de cada período, e, carregam a
não chega a contradizer o quadro da natureza, e herança da hegemonia portuguesa sobre o país,
sua silhueta se enlaça na linha da paisagem”. Por favorecendo a manutenção de hierarquias so-
conseguinte, era posto de lado a preocupação ciais historicamente consolidadas. O traçado,
com o pensamento urbanístico, o que transfor- seguindo a tendência renascentista da Europa,
mava a expansão do território numa realização se torna mais geometrizado, a Igreja se mantém
espontânea, seguindo apenas premissas exter- como edifício central e principal das cidades, e,
nas ditadas por interesses próprios do Estado. torna-se ainda mais nítida a imposição de uma
hierarquia social em relação a população. Junto
Vale salientar que além dos pontos mencionados, da Igreja agora existe uma praça, e em seu entor-
as vilas eram criadas obedecendo a legislação cri- no imediato, encontram-se os edifícios públicos
teriosa imposta pelo Estado e pela Igreja, de modo e as casas mais abastadas da região, à medida
que, caso as exigências não fossem cumpridas, que o conjunto se afasta do centro, encontra-se
não haveria a possibilidade de iniciar uma nova a população mais pobre. Tal população tinha na
vila. A primeira edificação a ser construída, era a área rural a base de seu sustento, dedicava-se
igreja, que deveria ser localizada num ponto alto, a fabricação artesanal e a criação de pequenos
de destaque, uma área limpa, aberta e longe de comércios, abastecendo principalmente os via-
umidade. Para Holanda (1963), os núcleos urbanos jantes que passavam pelo local (MENEZES, 2013).
se estruturaram a partir da pequena concentração
de casas em torno da igreja, geralmente localiza- Tal situação de controle das classes sociais pe-
da no alto de um espigão. Logo, verifica-se que las atividades desempenhadas e localizações de
a Igreja, foi a força que, além do próprio Estado, suas moradias é agravada a partir do século XIX.
tornou-se determinante como diretriz para o pla- Quando após a libertação das pessoas que foram
no das cidades. Neste sentido, a disposição das escravizadas, foi criada uma lei para organizar a
paróquias ao longo do litoral foi uma consequ- questão da propriedade de terra, reforçando o fato
ência dos interesses econômicos e geopolíticos de que a terra é um privilégio das famílias mais
da Coroa, uma vez que as localizações citadas abastadas, pois apenas estas tiveram acesso às
facilitariam o escoamento de mercadorias para terras. Ou seja, uma vez que para ser proprietá-
o exterior e a exploração dos recursos naturais rio não bastava ocupar uma determinada terra,
do país. Além da Coroa e da Igreja, outra for- foi a forma de expulsar os escravos libertos e as
ça proeminente no planejamento urbano deste pessoas pobres de suas propriedades, exercendo
período, foi a ação dos engenheiros militares, assim, seu poder e controlando a produção no nú-
que regidos pelas premissas governamentais, cleo urbano (AMORIM; TÁRREGA, 2019). Como cita
garantiram a proteção do território de ataques Maricato (2004), a massa trabalhadora pobre e em
externos, o controle fiscal sobre o escoamento de especial os negros desempregados foram “varri-
mercadorias, além de controlar e deter o próprio dos para baixo do tapete”. Tal realidade evidencia a
crescimento urbano, pois se acontecesse de for- forma como o território urbano no Brasil se desen-
ma acelerada, poderia enfraquecer e prejudicar o volveu sob o domínio de planos regidos sobre forte
domínio da Coroa sobre a Colônia. Vale destacar influência de classes dominantes. Fica claro, por-
EIXO TEMÁTICO 1 tanto, até este momento, que toda a organização
urbana, a definição de leis e planos urbanísticos
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO foram administrados sob influência de forças
externas, de modo que, na configuração brasileira
atual, esse tipo de dinâmica é recorrente mesmo
em pequenos municípios, que semelhantes ao
contexto histórico, ainda exercem a função de
abastecimento da economia e do mercado na-
cional.

DINÂMICA URBANA NA/DA CIDADE DE


PEQUENO PORTE DENTRO DO CONTEXTO NACIONAL:
CONCEIÇÃO DAS ALAGOAS-MG

Contemplando o contexto histórico-social e


político-econômico no desenvolvimento do pla-
nejamento urbano no Brasil e as dinâmicas re-
sultantes deste processo, podemos avançar a
análise na direção dos territórios das cidades de
pequeno porte, especificamente, o município de
Conceição das Alagoas, localizado no Estado de
Minas Gerais. Salienta-se aqui, a necessidade
do aprofundamento de estudos sobre as cida-
des de pequeno porte no Brasil, uma vez que, em
sua grande maioria, os estudos estendem-se as
grandes e médias cidades, e, principalmente,
as metrópoles. Percebe-se, a partir desta rea-
lidade, que há uma lacuna nas pesquisas sobre
as cidades de pequeno porte, reflexo da própria
estrutura governamental do país, cuja prioridade
é criteriosamente hierárquica. Ou seja, nas diver-
sas esferas que compõem a gestão do território
nacional, os munícipios com áreas urbanas me-
nores, como Conceição das Alagoas, tornam-se
apenas fontes de produtos agrícolas ou áreas de
pecuária extensiva, o que interfere na visibilidade
das narrativas sobre a dinâmica cotidiana e a
produção de sua paisagem urbana.

Entretanto, um aspecto positivo, é que gradual-


mente, os estudos acadêmicos têm avançado e
ampliado os debates sobre as cidades pequenas,
na medida em que se torna claro a necessidade de
demonstrar que estas cidades não estão isoladas
da rede urbana no país, e sim partes interligadas.
Mesmo que suas dimensões demográficas e popu-
16º SHCU lacionais sejam baixas, elas estão completamente
30 anos . Atualização Crítica
articuladas às dinâmicas urbanas, inclusive em
392 escalas internacionais, pois mesmo as cidades
pequenas são indissociáveis do modo de produção desenvolvimento: agricultura e pecuária. Com
capitalista vigente no país no mundo. Fato que destaque para a agricultura, devido a implantação
está relacionado ao fenômeno da globalização, da Usina Volta Grande em 1996, uma das unidades
submetendo sua organização, desenvolvimento da empresa Delta Sucroenergia, sendo atualmen-
e a própria população aos propósitos do capital. te, o maior parque industrial em capacidade de
moagem do estado mineiro, responsável pela
Conceição das Alagoas é um município perten- produção de etanol, energia, levedura animal e
cente a Microrregião de Uberaba, no Triângulo açúcar. No mapa a seguir (Figura 2) é possível
Mineiro, em Minas Gerais. Com área de 1.352,2 km² ver a localização das três unidades da empresa
e com população de 27.425 habitantes, de acordo implantadas na região. Da esquerda para a direita:
com a estimativa de 2018 do IBGE, a cidade vem Unidade Volta Grande, em Conceição das Alagoas,
passando por um processo de crescimento popu- Unidade Delta (Matriz) no município de Delta e a
lacional contínuo desde o final do século passado, Unidade Conquista de Minas, na Zona Rural de
devido à diversificação de sua base econômica. Jubaí, Distrito do Município de Conquista.
O mapa a seguir (Figura 1) apresenta o município
inserido na Microrregião de Uberaba e a rodovia
que o conecta à cidade polo.

Figura 2: Mapa da Microrregião de Uberaba – em destaque:


Unidades da Usina Delta Sucroenergia. Fonte: GOOGLE
EARTH (2020) (Adaptado).
Figura 1: Mapa da Microrregião de Uberaba – em destaque:
Conceição das Alagoas. Fonte: GOOGLE EARTH (2020) Para Milton Santos (1979), a cidade local - ou pe-
(Adaptado) quena - distingue- se de uma cidade média pela
sua influência estritamente local, assim, a escala
A região onde atualmente encontra-se Conceição
de influência determina a classificação da cidade.
das Alagoas, teve o início de sua exploração por
Apesar de possuir um nível urbano elementar, é
bandeirantes em busca de ouro e pedras precio-
fundamental para seu entorno imediato, como
sas, sendo marcado principalmente pela chegada
por exemplo a zona rural e os distritos pertencen-
de João Batista Siqueira em 1811, que criou então
a Fazenda Alagoas. Já em 1851, o coproprietá- tes ao município. Considerando o município de
rio da fazenda, José de Souza Lima, encontrou Conceição das Alagoas, percebe-se uma ruptura
um diamante próximo a uma cachoeira perten- desta caracterização enquanto cidade local, pois
cente ao Rio Uberaba, motivando junto com o ao passo que para sua população a cidade oferece
Padre Francisco Rocha o início do garimpo na condições básicas de infraestrutura e equipa-
região, e impulsionando a partir daí o êxodo de mentos públicos, ela também exerce influência
pessoas para o local. Sete anos depois, Antônio sobre inúmeras cidades, devido a produção em
Correia de Morais deu início a fundação da capela larga escala da usina não só para a microrregião.
“Garimpo das Alagoas”, nomeação dada também Ou seja, existe a possibilidade de que uma cidade
a vila criada. Devido à alta do garimpo, o núcleo se possa ser local, apenas em alguns aspectos? E
desenvolveu rapidamente no entorno da capela, de que modo este caráter não local influencia em
garantindo um crescimento político-econômico, suas dinâmicas? Podemos também nos questio-
porém de curta duração (CONCEIÇÃO, 1958). À me- nar em que medida a instalação de uma rede de
dida que ocorreu o declínio da mineração, outras usinas, como no caso de Conceição das Alagoas,
atividades emergiram como principais focos de influencia na produção do espaço urbano deste
EIXO TEMÁTICO 1 município? Somado à estas indagações, pode-
mos refletir sobre o fato de como esta cidade é
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO influenciada por outras de escalas maiores - neste
caso de estudo específico, Uberaba como cidade
polo da microrregião. Esta situação diz respeito
ao reflexo do panorama nacional: a medida que a
população aumenta no interior do país, e portanto
altera o fluxo de crescimento no litoral, ocorre a
ampliação de cidades médias e pequenas, fato
este que colabora justamente para a expansão
industrial dentro dessa nova conformidade urba-
na, reforçando a consolidação da rede urbana no
país e garantindo o controle hierárquico de umas
cidades sobre outras.

Ou seja, a industrialização, que ao longo do pro-


cesso de consolidação urbana no Brasil foi vista
como sinônimo de desenvolvimento, permite que
as cidades de pequeno porte apareçam no cená-
rio nacional, e, que façam parte da rede urbana
instalada, mas mantende a relação de controle e
dependência das médias e grandes cidades. Isto
se exemplifica claramente em Conceição das Ala-
goas, quando a Unidade Volta Grande pertencente
a usina Delta Sucroenergia, instalou-se ne região,
após sua criação em 1950 no município de Delta.
É importante ressaltar que na época Delta era
um distrito de Uberaba. E desde então, este é o
empreendimento dominante na microrregião. Ao
passo que esta rede se fortalece com a presença
da Usina, não há espaço para que a cidade cresça
em outros aspectos ou se desenvolva a partir
de novos empreendimentos, o que a caracteriza
como uma cidade local.

A INFLUÊNGIA LEGISLATIVA SOBRE A PRODUÇÃO


DO ESPAÇO URBANO NA CIDADE DE CONCEIÇÃO
DAS ALAGOAS

Retomando a análise sobre o município de


Conceição das Alagoas e conduzindo-o para a
análise da consolidação urbana, foi necessário
adicionar a reflexão sobre os aspectos legais de
desenvolvimento urbano.

Esclarecendo que, justamente por ser uma cidade


de pequeno porte, várias informações são de difí-
16º SHCU cil acesso para maior ampliação e averiguação dos
30 anos . Atualização Crítica
pontos colocados, em resumo, por não existirem
394 ou por não serem devidamente regulamentados.
Esse ponto, por si só é passível de maiores aná- setor da cidade foi aplicado um dos instrumentos
lises, pois, ainda que o Estatuto da Cidade, em de política urbana: as ZEIS (Zona Especial de
2001, defina a obrigatoriedade da elaboração Interesse Social) de Conceição das Alagoas. Esta
de Plano Diretor para os municípios com mais expansão periférica por meio de ZEIS ocorre como
de 20 mil habitantes, mesmo com as campanhas facilitador inclusive para que os trabalhadores
de formação e auxílio do Governo Federal para a temporários da usina se instalem na cidade. Essa
elaboração da lei, ainda percebemos que a sua forma de ocupação do território é comum a vários
elaboração consiste em um desafio para muitas outros municípios brasileiros, o que reafirma o
cidades que estão em processo de crescimento modelo de expansão periférico e precário adotado
e desenvolvimento. no país, como forma de garantir o processo de
valorização dos espaços centrais das cidades,
Portanto, mesmo possuindo mais que 20.000 mesmo que no caso estudado, as distâncias entre
habitantes atualmente, o município de Conceição centro e periferia sejam menores. Ressaltamos
das Alagoas tem sido regido sob a Lei Orgânica que neste caso a distância entre centro e periferia
Municipal, criada em 1990, responsável por ditar as não constitui uma questão, mas sim as diferenças
normas do desenvolvimento da cidade, de modo relacionadas à qualidade dos serviços públicos e
que com o passar dos anos foram incluídas algu- da infraestrutura ofertada nestes espaços. No
mas emendas a esta lei, e, outras leis criadas de mapa a seguir (Figura 3) é possível observar em
acordo com as necessidades da urbe. Tais como destaque as duas manchas que caracterizam as
leis de definição e demarcação de ZEIS, ou por ZEIS criadas no município, conforme os aspectos
exemplo leis voltadas para ampliação do território citados, além de ser possível observar fora do
urbano, permuta de imóveis, entre outras. A Lei núcleo urbano as grandes extensões de terras
Orgânica Municipal mencionada, ocorre de uma de agriculturas exclusivas da usina, ou seja, o
forma relativamente generalizada, uma vez que bloqueio do crescimento da cidade, além de le-
ela não oferece detalhes acerca de temas es- gislativo, uma vez que é previsto o crescimento
pecíficos, o que justifica a necessidade de criar apenas em direção a rodovia, é também físico,
outras leis complementares para a organização uma barreira gerada pelo próprio cultivo agrícola
municipal. do local.

Em suma, a Lei define pontos gerais retirados


diretamente da lei federal do país sem considerar
as especificidades do território, enfatizando a
influência Estado sob o município. A legislação
aponta quais aspectos devem ser seguidos, mas
não os define, se apoiando como já citado, nas es-
feras governamentais mais altas, tanto em relação
ao cumprimento de leis nos quesitos econômico,
político e sobretudo na organização urbanística.
Considerando essa atuação, que parece, nesse
primeiro momento, dotada de certa fragilidade
Figura 3: Mapa da Microrregião de Uberaba – em destaque:
pela esfera municipal, podemos colocar como
Mancha urbana (mancha branca), ZEIS (manchas amarelas)
primeira questão, a relação entre a instalação e rodovia. Fonte: GOOGLE EARTH. 2020 (Adaptado)
da indústria x legislação.

O perímetro da cidade vai de encontro a terras


que hoje são - em sua maioria - exploradas so- Santos (1982), argumenta que nas pequenas cida-
mente pela monocultura da cana de açúcar, fato des a exclusão e marginalização são camufladas
que induz o espraiamento da cidade em outras devido à proximidade das relações socioculturais,
direções, principalmente a sudeste da cidade, econômicas e territoriais. Neste sentido, a cidade
mais próximo a conexão da rodovia, de modo que perde força e voz frente as demandas regionais,
o desenvolvimento da ocupação do território não subtraindo as narrativas de seus habitantes. Logo,
interfira nas terras utilizadas pela indústria. Neste em relação ao planejamento urbano, as soluções
EIXO TEMÁTICO 1 criadas acontecem pontualmente, de acordo com
as necessidades imediatas em geral para em-
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO preendimentos na cidade. Em análise sobre a
legislação municipal, percebe-se a existência de
inúmeras leis criadas sobre um mesmo aspecto,
apenas para uma situação específica, como por
exemplo, leis criadas para alienação de bens, per-
muta de imóvel urbano, ampliação do perímetro
urbano e reconhecimento e criação de ZEIS.

As leis criadas sob estes tópicos foram extre-


mamente pontuais, esclarecendo as medidas a
serem tomadas quando fossem aprovadas, mas
em nenhuma, havia justificativas ou previsão de
outras medidas necessárias para a ação conjunta,
que possa reforçar a cidade enquanto uma uni-
dade. Percebemos a fragilidade na compreensão
do planejamento integrado do município. Vale
salientar ainda que, a medida em que a pesquisa
se aprofundou, foi identificado em várias leis os
nomes de responsáveis ou empreendimento en-
volvidos na elaboração das mesmas, de forma a
contemplar pequenos grupos da sociedade. Como
por exemplo, a alienação e permuta de bens e
territórios para instalação de novos empreendi-
mentos no município de Conceição das Alagoas,
ou da definição de ampliação da área urbana so-
mente sob terras que não são dedicadas ao plantio
de cana ou a pecuária, ou ainda de proprietários
que encontravam-se em algum aspecto judicial
irregular na cidade.

Mesmo diante das limitações da pesquisa, per-


cebeu-se que algumas das decisões tomadas na
cidade não foram pautadas em estudos técnicos,
ao contrário, elas ocorrem a partir das necessi-
dades momentâneas do local.

Outra questão aqui colocada, volta-se para as


ações legislativas definidas por parte da prefei-
tura, a fim de incentivar parcerias com empresas
nacionais e garantir o investimento delas no muni-
cípio. Além dos interesses já citados, é uma forma
de viabilizar o desenvolvimento do território, uma
vez que os repasses de verbas para municípios de
pequeno porte pelos governos Estadual e Federal
é relativamente menor em relação as médias e
grandes cidades. O que inviabiliza um bom de-
senvolvimento de cidades pequenas perante as
16º SHCU demais, uma vez que este repasse financeiro por
30 anos . Atualização Crítica
parte das esferas governamentais superiores,
396 geralmente suprem apenas o básico necessário
para o município, colaborando para que a ad- e insuficientes por exemplo para atender a tecno-
ministração municipal incentive investimentos logia agrária implantada, forçando grande parte
externos no território. da população a se manter em subempregos ou
saírem da cidade em busca de novas e melhores
Aliado a forma como o município articula estra- oportunidades. Na tabela abaixo, (Figura 4), é
tégias de desenvolvimento econômico, torna-se possível ver um ranking, comparando a situação
clara a negligência do poder público na garantia do município em relação aos demais do país, e
do direito à cidade a todos os habitantes, o que inclusive em relação especificamente aos do Es-
compromete nitidamente o desenvolvimento da tado e da microrregião:
sociedade e principalmente a sua qualidade de
vida. Os índices de saúde e educação são baixos,

NO ESTADO (DE NA MICRORREGIÃO


COMPARAÇÃO COM OUTROS MUNICÍPIOS NO PAÍS (DE 5770)
853) (DE 7)
SALÁRIO MÉDIO MENSAL DOS TRABA-
602° 54° 5°
LHADORES FORMAIS
TAXA DE ESCOLARIZAÇÃO DE 6 A 14 ANOS
4802° 762° 4°
DE IDADE
PIB PER CAPITA 1060° 92° 7°
SAÚDE 3471° 508° 5°

Figura 4: Tabela comparativa de índices do IBGE entre o município de Conceição das Alagoas e os demais. Fonte: IBGE
(2017), [s.p] acessado em: 17 set. 2020 (Adaptado)

Mesmo diante de um município que possui diver- Em contraponto com o exposto anteriormente,
sas empresas de grande porte, como o caso da os agentes públicos se aproximam de setores
maior usina de cana do estado de Minas Gerais, privados de grande poder econômico, que por sua
percebe-se também pela tabela, como a popu- vez, “possuem uma grande influência na gestão
lação ainda sofre com questões econômicas e municipal, direcionando investimentos e subordi-
sociais, devido a desigual distribuição de renda nando os territórios aos seus interesses particu-
existente e a carência de infraestruturas básicas lares”. (COSTA, ROCHA, 2013, p.52). Estes aspectos
realmente adequadas. influenciam negativamente no desenvolvimento
urbano e distanciam ainda mais a possibilidade
Tentando mitigar essa situação, a prefeitura mu- de a cidade alcançar um planejamento urbano
nicipal usa de algumas ferramentas para tentar que possibilite uma cidade com iguais oportu-
atender as necessidades da população ao passo nidades para todos. Ou seja, o aprofundamento
que também garante parte dos recursos neces- de pesquisas e estudos em cidades pequenas
sários para a cidade. Um exemplo disso, foi a re- torna-se essencial para fortalecer debates e dis-
alização do Programa A Casa é Sua, em 2014 pela cussões acerca da realidade e da dinâmica destes
prefeitura em parceria com a Caixa Econômica territórios, que podem ser ressignificadas para
Federal, de modo que a população que se encontra possibilitar um desenvolvimento efetivo dessas
em estado de moradia irregular, pudesse perante cidades. Apesar de todos os obstáculos impostos
o pagamento de taxas e encargos regularizar a intencionalmente ou não por agentes externos
posse de propriedades ou imóveis irregulares, frente ao desenvolvimento de uma cidade como
dentro das exigências do programa. Ação que Conceição das Alagoas, essas discussões tem
gerou uma movimentação forte e acelerada na como objetivo justamente incentivar um pen-
economia do município, sendo que antes de re- samento crítico em relação a paisagem urbana
gularizar estes imóveis, a prefeitura se isenta longe dos grandes centros. Além de possibilitar
de quaisquer investimentos ou responsabilida- uma mudança de foco no olhar sobre como o pla-
des sob áreas irregulares, apenas penalizando nejamento urbano acontece, por quê acontece
os moradores caso essa irregularidade atinja e como pode ser alterado em prol da cidadania,
áreas ambientais. de direitos reais e sobretudo em relação a par-
EIXO TEMÁTICO 1 ticipação efetiva da população nas tomadas de
decisões em relação a forma como a paisagem
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO se desenvolve. Ou seja, a medida em que houver
a participação social efetiva na produção urbana
será possível avançar sobre os problemas e en-
traves relacionados ao desenvolvimento regional,
construindo assim territórios democráticos.

Por fim, podemos observar quão relevante é


o estudo de cidades de pequeno porte, com a
análise realizada sobre Conceição das Alagoas,
percebemos que mesmo as pequenas cidades
estão inseridas em uma rede de interação com
as cidades médias e grandes. O planejamento
urbano por meio de leis urbanísticas, os inte-
resses econômicos e políticos refletem direta-
mente na produção da própria paisagem urbana.
Em Conceição das Alagoas podemos observar
uma expansão periférica, que reflete modelos
já consolidados, mesmo que insustentáveis, do
planejamento urbano brasileiro, como ocorre em
cidades médias como Uberaba ou em metrópoles
como São Paulo. A própria dinâmica econômica,
tão ligada a indústria, insere a cidade diretamen-
te numa grande rede de investimentos, mas se
ela e outras cidades, fazem parte desta rede, de
forma tão direta, por que não se desenvolve? A
relação econômica e política com a indústria se
tornou tão densa que todo o desenvolvimento e
investimentos se voltam única e exclusivamente
para este setor. Há muito tempo superamos o
imaginário de que a industrialização era sinônimo
de desenvolvimento. Ou seja, a própria relação
existente entre as cidades de distintas escalas,
também interfere diretamente na reestruturação
da paisagem, pois uma vez que existe investimen-
to em apenas um setor, supervalorizando-o, reduz
a possiblidade de desenvolvimento em outros
aspectos e setores no território. Frente a estes
argumentos, colocamos alguns questionamentos,
frente as dinâmicas relacionadas às cidades de
pequeno porte: De que modo o próprio cenário
econômico, político e urbanístico nacional e inclu-
sive global pode contribuir positivamente para o
desenvolvimento de municípios como Conceição
das Alagoas? Em que medida a articulação esca-
lar entre as cidades podem contribuir para am-
pliação do desenvolvimento social e econômico?
Responder tais questões nos parece um grande
desafio, mas com estas reflexões direcionamos
16º SHCU o olhar para a questão da produção da paisagem
30 anos . Atualização Crítica
urbana nas cidades menores, inseridas fora dos
398 circuitos das grandes capitais.
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16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

400
401
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
EIXO TEMÁTICO 1 RESUMO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
A invisibilidade da mulher arquiteta na história
da arquitetura e urbanismo não faz justiça à
vídeo-pôster grande produção de obras realizadas por mu-
lheres e que sua autoria não é reconhecida.
Seus trabalhos, obras e produções devem ser
A HISTORIOGRAFIA DE apresentados e reconhecidos, bem como a nar-
rativa de suas autoras, a fim de que as atuais
GÊNERO NA ARQUITETURA gerações de homens e mulheres possam ter um
vislumbre de suas realizações e contribuições.
Neste trabalho é feito um paralelo das três on-
GENDER HISTORIOGRAPHY IN ARCHITECTURE das feministas, durante mais de um século, as
reivindicações e demandas de cada onda com
LA HISTORIOGRAFÍA DEL GÉNERO EN LA os mesmos períodos da historiografia da mulher
ARQUITECTURA arquiteta e suas conquistas e influências. O re-
sultado mostra que o ocultamento da produção
feminina atrasa a implementação de soluções
EGHRARI, Susan
para a qualidade do espaço urbano.
Doutora em Planejamento Urbano -Universidade de
Brasília; professora no Curso de Arquitetura e Urbanismo-
Universidade de Uberaba
HISTORIOGRAFIA FEMINISMO ARQUITETAS
susaneghrari@gmail.com

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

402
ABSTRACT RESUMEN

The invisibility of women architect in history of La invisibilidad de la mujer arquitecta en la his-


architecture and urbanism does not do justice to toria de la arquitectura y el urbanismo no hace
the great production of work made by women and justicia a la gran producción de obras realizadas
her authorship is not recognized. Their work and por mujeres y que no se reconoce su autoría. Se
production must be presented and recognized, as deben presentar y reconocer sus obras, traba-
well as their narrative, so that current generations jos y producciones, así como la narrativa de sus
of men and women can have a glimpse of their autoras, para que las actuales generaciones de
achievements and contributions. In this work a hombres y mujeres puedan vislumbrar sus logros
parallel is made of the three feminist waves, for y aportes. En esta obra se hace un paralelo de las
more than a century, the demands of each wave tres olas feministas, desde hace más de un siglo,
within the same periods of the historiography of las demandas de cada ola con los mismos perí-
woman architect and her conquests and influen- odos de la historiografía de la mujer arquitecta y
ces. The result shows that the concealment of sus conquistas e influencias. El resultado mues-
female production delays the implementation of tra que el encubrimiento de la producción feme-
solutions for the quality of urban space. nina retrasa la implementación de soluciones
para la calidad del espacio urbano.

HISTORIOGRAPHY FEMINISM WOMEN ARCHITECTS


HISTORIOGRAFÍA FEMINISMO MUJERES ARQUITECTAS
EIXO TEMÁTICO 1 INTRODUÇÃO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
A luta das mulheres quanto a seus direitos por edu-
cação e participação nos assuntos da sociedade
vídeo-pôster teve como um de seus episódios em meados do
século XIX, no Oriente – a poetisa persa Tahirih1,
mártir em 1851, por defender o direito das mulhe-
A HISTORIOGRAFIA DE res em seu contexto de fanatismo religioso, o
qual a mulher era considerada inferior ao homem
GÊNERO NA ARQUITETURA e não tinha o direito de expressar sua opinião e
pensamentos. Frente a barreiras impostas e pre-
conceitos quanto à visibilidade e reconhecimento
GENDER HISTORIOGRAPHY IN ARCHITECTURE de mulheres em cada época, seja qual fosse o seu
campo de atuação – e geralmente responsáveis
LA HISTORIOGRAFÍA DEL GÉNERO EN LA pelo fluxo reprodutivo, a história registrou mui-
ARQUITECTURA tos acontecimentos como fatos isolados e até
mesmo curiosos.

A situação da invisibilidade da mulher, como das


mulheres que atuaram no campo da arquitetura,
design, paisagismo e urbanismo , desde fins do
século XIX , quando as escolas de arquitetura
aceitaram o seu ingresso, muitas dessas profis-
sionais continuaram no anonimato e, décadas
posteriores, a partir dos anos 1970, iniciaram-se
estudos de resgate de suas realizações e tra-
balhos desenvolvidos. Na verdade, a autoria de
muitas obras realizadas por mulheres (não so-
mente obras arquitetônicas), se deu muito antes
de ingressarem formalmente nas escolas de ar-
quitetura, engenharia, artes, literatura, filosofia
e ciências.

A história da arquitetura, urbanismo e design até


meados do século XX foi escrita e representada
por homens e para homens. As poucas mulheres
que fizeram parte desta história são anônimas
para muitos. Lutaram contra preconceitos e en-
frentaram desafios e dificuldades devido à sua
condição feminina, seja nas Américas, Europa,
Ásia, África e Oceania. As autoras Charlotte e Cle-
mentine Fiell, do livro “Women in Design” publicado
em 2019, relatam que “O papel das mulheres no
design sempre foi lamentavelmente sub-repre-
sentado nas coleções de museus e exposições,
bem como na literatura existente” (DEZEEN,2019).
Assim, a história “oculta” das mulheres que en-
frentaram obstáculos para a sua formação e pro-
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
1. Conhecida também como Quratul’ain, foi a primeira mu-
404 lher na história do Irã a lutar pela emancipação feminina.
duziram obras nos diversos continentes devem samentos arranjados e à leis de propriedade de
ser apresentadas e reconhecidas a fim de que as mulheres casadas aos seus maridos(CONSOLIM,
atuais gerações de homens e mulheres possam 2017b). A crítica das feministas materialistas des-
ter um vislumbre das produções e contribuições sa primeira onda – o trabalho doméstico como
das primeiras pioneiras na arquitetura, design e opressão e base da desigualdade, sucedia a duas
produção de espaços cujas influências são nítidas das ideias básicas do capitalismo industrial: a
após um século. Dar voz às arquitetas, que fizeram separação física ( espaço da casa e do trabalho)
parte da história e expressar suas contribuições e separação econômica (entre a economia do-
é uma justiça devida. méstica e a política)( MOLINA PETIT, 1995 apud
NOVAS, 2014).

Organizações militantes foram pioneiras na luta


A historiografIa feminista - paralelos pelo sufrágio feminino nos Estados Unidos e Reino
à historiografIa de gênero na arquitetura Unido. Nos Estados Unidos algumas iniciativas
pelo direito ao voto feminino iniciaram em meados
do século XIX e mulheres brancas e negras pro-
moveram essa bandeira, por meio de fotografias
As ondas do feminismo
pessoais, cartazes, folhetos, notícias em jornais,
A autora Consolim (2017a) traça as conquistas marchas e manifestações (NYT, 2020). O sufrágio
de direitos pelas mulheres ao longo da história e feminino foi uma das demandas que marcaram a
apresenta o surgimento e a evolução do feminismo primeira onda feminista sendo que este direito foi
por meio de três ondas, periodizações, que são concedido nos EUA em 1919, no Reino Unido em
explanadas no próximo parágrafo. De acordo com 1928, na Itália em 1945, no Brasil parcialmente em
a autora, algumas sociedades – como as mulheres 1932 e finalmente foi estendido a todas as brasi-
célticas e nórdicas, foram exceção ao considerar leiras em 1965 (CONSOLIM, 2017b). No Japão, logo
essas mulheres com o direito de certas escolhas após a 2ª Guerra Mundial, em 1945, as mulheres
que iam além das tarefas domésticas. E aponta exercitaram esse direito, e na Arábia Saudita em
que: “Com exceção dessas sociedades, as mulhe- 2011, mas efetivamente, nesse país o voto feminino
res assumiram, ao longo de toda a história, o papel se deu em 2015. Quanto a oportunidades iguais
de subordinadas, sem voz ativa e fadadas ao ano- de trabalho e estudo, em muitos países periféri-
nimato de suas residências” (CONSOLIM, 2017a). cos atualmente, a mulher é negada o direito de
estudar a fim de escolher uma profissão. Até os
As chamadas ondas feministas têm diferentes dias atuais a mulher, segundo estatísticas, ganha
abordagens, de diversas autoras (BUDGEON, 2011; menos que o homem, apesar que a Organização
CONSOLIM, 2017; NOVAS, 2014), mas apresen- Internacional do Trabalho (OIT) aprovou em 1951,
tam valores, ideias, a condição de cada período, uma recomendação sobre a igualdade de remu-
reivindicações e objetivos a serem alcançados. neração entre o trabalho masculino e feminino.
Para Budgeon (2011) o termo “ondas” sugere uma
correlação tanto de continuidade como de des- As décadas de 1960 e 1970 definem a segunda onda
continuidade na visão de um todo. Assim, deter- mais intensamente, estendendo-se até a década
minar a natureza de quando uma onda termina e de 1980 – cuja bandeira era a discriminação de
outra se inicia, torna-se imperceptível enquanto gênero. Buscava-se uma política de respeito às
a onda é vivenciada, ficando mais claro, talvez, diferenças e de igualdade de direitos, fundada no
por meio de realizar uma retrospectiva com o reconhecimento de equivalência entre os sexos,
passar do tempo. não de superioridade (CONSOLIM, 2017c). Leal
(2017) aponta que “as estruturas de poder que
A primeira onda feminista se dá a partir do último tornaram a mulher o segundo sexo, subordinado e
quartel do século XIX, capitaneada por mulheres confinado no espaço privado” foram denunciadas.
nos Estados Unidos e Reino Unido, e suas prin- Os direitos reprodutivos, sexismo e patriarcado,
cipais reivindicações contemplavam a igualdade a questão de gênero baseado na violência, abuso
jurídica, o direito ao voto e o acesso à instrução doméstico e estupro marital foram temas exten-
e às profissões liberais, além da oposição a ca- samente discutidos, com inúmeras publicações,
EIXO TEMÁTICO 1 entrevistas, documentários, manifestações pú-
blicas e passeatas realizadas por centenas de
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO milhares de mulheres.

O Ocidente principalmente, vivenciou a criação


de grupos feministas, conselhos para os direitos
das mulheres no nível governamental, a inserção
das mulheres em movimentos civis no período
da segunda onda. Há controvérsias de que os
movimentos feministas neste período, princi-
palmente nos EUA foram liderados por mulheres
brancas da classe média. Houve exceções como
a ativista negra Angela Davis e sua atuação no
feminismo negro a partir da década de 1970. Em
uma reportagem do jornal The New York Times em
1975(NYT, 1975), com nove mulheres (todas bran-
cas) conhecidas na época em diversos campos
de atuação, na política, artes, mídia, associações
feministas, literatura, e cada uma respondeu em
um parágrafo à pergunta “O que é feminista?”. As
respostas dadas identificam tópicos em comum
como: a verdadeira igualdade entre os sexos, o
desenvolvimento das mulheres ao seu máximo
potencial, participação em todos os campos da
sociedade, a liberdade de escolha, a quebra dos
estereótipos tradicionais, o reconhecimento das
muitas necessidades, habilidades e responsabi-
lidades das mulheres, e que feminista pode ser
homem ou mulher mas requer ação.

A terceira onda feminista é discutida quanto aos


seus reais objetivos pois não há uma fronteira
clara como a que houve entre a primeira e se-
gunda ondas. De acordo com Budgeon (2011) há
uma coexistência de diferentes gerações em me-
ados da década de 1980, e de gerações políticas,
em que as interpretações do feminismo e suas
reflexões são mais complexas. Os movimentos
feministas de lésbicas e negras tomam para si a
expressão de suas identidades e suas experiên-
cias singulares, diferindo dos discursos feministas
dominantes da época e criando suas próprias
narrativas. Para Passos (2020), as definições de
feminilidade da onda anterior são contestadas,
pois foram pautadas pelas experiências de mu-
lheres brancas intelectualizadas. Desta forma o
feminismo interseccional ganha força, e diversi-
fica nas diferenças de raça, sexualidade e classe
social. A mulher oprimida dos países periféricos
16º SHCU se pergunta, como indica McRobbie (2006 apud
30 anos . Atualização Crítica
LEAL, 2017), se o feminismo preconizado na onda
406 anterior teria sido “um movimento europeu-ame-
ricano de jovens brancas de classe média que, ao tituições e villas, em todo o país, de 1898 a 1945.
buscarem a libertação das mulheres como uma Ela supervisionava as obras e fazia os cálculos
categoria única, encararam as próprias demandas estruturais. Seus projetos de escolas foram con-
como universais?”. siderados inovadores. Em 1905, seu colega na
época do Instituto Politécnico de Helsinki, Ar-
A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir mas Lindgren, termina a firma em sociedade com
e Erradicar a Violência contra a Mulher, criada em seus sócios e solicita a Lönn uma sociedade. As
1994, conforme aponta Consolim (2017d) foi uma conquistas conjuntas da sociedade de Lindgren
resposta à situação de violência contra mulheres e Lönn foram geralmente atribuídas apenas ao
existentes na América. A interseccionalidade re- arquiteto Lindgren. Porém, antes de sua morte,
presentando um dos fatores de vulnerabilidade, Wivi Lönn, recebeu um reconhecimento parcial
a autora enfatiza que esse “tratado internacional pelo trabalho de décadas quando, em 1959, foi
prevê que os Estados deverão levar especialmente nomeada professora honorária (NBF, 2003).
em conta a situação da mulher vulnerável à vio-
lência por sua raça, origem étnica ou condição É interessante observar que que em toda a Europa
de migrante, de refugiada ou de deslocada, entre era habitual para as mulheres, mais do que os
outros motivos” (CONSOLIM, 2017d). homens, adotar um apelido usado tanto em sua
vida profissional como privada. Assim, Olivia Ma-
thilda Lönn registrada oficialmente, se torna Wivi
Paralelos na historiografia de gênero na arquitetura Lönn (MOMOWO,2018).

Essa seção pretende relacionar as demandas Na continuidade desse primeiro período, quando
e acontecimentos em cada período ou onda do as mulheres passavam pela opressão do trabalho
movimento feminista com a historiografia na ar- doméstico, e almejavam direitos jurídicos, a pai-
quitetura, design, urbanismo e paisagismo apon- sagista Gertrude Jekyll (1843-1932) rompeu com
tando mulheres dessas áreas profissionais, no os rigores do paisagismo formal da Era Vitoriana,
mesmo período, que projetaram, construíram “e abdicou por completo da topiaria, optando por
e influenciaram outras gerações de homens e valorizar as texturas e cromatismos das herbá-
mulheres. Por se tratar de um trabalho resumido, ceas cultivadas com forma livre”(BARRA, 2019).
vamos destacar a trajetória de mulheres, teorias e Foi influenciada pelo paisagista William Robinson,
desdobramentos nas três periodizações a seguir: editor de revista de paisagismo inglês The Garden.
Ao conhecer Robinson em 1875, percebeu que o
A primeira periodização –quanto às demandas paisagismo seria seu futuro (BARRA,2019). In-
do movimento feminista de acesso à instrução e fluenciada também pelo movimento Arts & Crafts,
profissão liberal – a partir do final do século XIX, além de projetar mais de 400 jardins, sendo 100
testemunhou a entrada de mulheres pioneiras ao deles em parceria com o arquiteto Edwin Lutyens,
exercer sua profissão em projetos e construções, foi designer de muitos artefatos para a casa e
quando as universidades abriram acesso para jardim (THE OFFICIAL WEBSITE). Seus jardins
que as mulheres pudessem fazer testes para seu estão no Reino Unido, Europa e Estados Unidos,
ingresso. Estas primeiras universidades, no Reino influenciou vários paisagistas entre elas Edna
Unido, Estados Unidos e na Europa não concediam Walling, e é considerada como uma das precur-
o diploma de graduação para as mulheres e sim soras do paisagismo moderno.
um certificado de proficiência. Na Finlândia , um
grande repertório de mulheres arquitetas obtive- A primeira arquiteta na Áustria, Grete (Margarete)
ram sua “qualificação” pelo Instituto Politécnico Lihotzky Schütte (1897-2000), exerceu sua profis-
de Helsinki e Helsinki Industrial School (NOVAS, são como arquiteta e urbanista continuamente,
2014).Nestes primeiros grupos, a arquiteta Wivi até sua velhice, demonstrando um marcado com-
Lönn (1872-1966) se forma em 1896, pelo Institu- promisso social, por exemplo, ao colaborar com
to Politécnico de Helsinki e se torna a primeira Ernst May no desenvolvimento do Plano Geral da
arquiteta independente na Finlândia. Participou Cidade de Frankfurt (NOVAS, 2014), um programa
de competições de arquitetura e projetou vários ambicioso conhecido como New Frankfurt. Esta
prédios públicos, escolas (em número de 30), ins- iniciativa abrangeu a construção de moradias
EIXO TEMÁTICO 1 públicas populares e amenidades modernas em
toda a cidade. No centro dessa transformação
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO estavam cerca de 10.000 cozinhas projetadas por
Grete Schütte – como ficou conhecida a “cozinha
de Frankfurt” na década de 1920 – e construídas
como um elemento integrante das novas unidades
habitacionais (MOMA, 2010). Em Moscou teve di-
versas experiências em projetar “as novas cidades
socialistas” Sostgorods na União Soviética ao se
juntar a “Brigada” Ernst May, trabalhando em um
período junto à arquiteta Lotte Beese (1903-1988),
que frequentou a Escola Bauhaus em Dessau,
na Alemanha. Foi uma fase de pôr em prática as
ideias socialistas sobre a importância do trabalho
feminino fora de casa (MOMOWO, 2018).

Muitas mulheres arquitetas e designers foram


coautoras com seus maridos, companheiros e/ou
sócios, mas poucas foram reconhecidas na época.
não foram mencionadas como coautoras nem
mesmo como colaboradoras. Seus trabalhos fo-
ram reconhecidos tardiamente ou postumamente
por meio de pesquisas publicadas, documentários
e premiações em nome delas. Alguns exemplos
neste período :a arquiteta Lilly Reich (1885–1947) e
Mies van der Rohe na Alemanha, a arquiteta Aino
Marsio Aalto(1894–1949) e Alvar Aalto na Finlândia,
a arquiteta Charlotte Perriand (1903–1999) e Le
Corbusier na França, a artista plástica Ray Eames
(1912-1988) e Charles Eames nos E.U.A.

Beatriz Colomina, teórica e historiadora em ar-


quitetura, que traz o debate sobre questões como
arquitetura, arte, tecnologia, mídia e sexualidade,
discorre em uma de suas palestras (HARVARD,
2018) sobre a designer Lily Reich, como um exem-
plo da natureza colaborativa da arquitetura, no
qual as mulheres, muitas vezes desempenham um
papel tácito. Durante a palestra, Colomina mostra
uma fotografia interna do Pavilhão de Barcelona,
ainda em obras, com uma mulher em pé. no canto
de um tapete, olhando para o interior. Trata-se
nessa fotografia de Lily Reich, associada a Mies
van der Rohe desde 1927, e era a pessoa que estava
lá, acompanhando a obra, enquanto van der Rohe
ia e voltava de Berlim. Colomina enfatiza então
que “as mulheres são os fantasmas da arquitetura
moderna... em todos os lugares, crucialmente
pressionando, mas estranhamente invisíveis”
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
Dessa forma, continua Colomina, o “como” foi feita
408 a produção arquitetônica é o que interessa, não
somente a técnica, mas as relações interpessoais. cada feminista responderia ao seu próprio contex-
Reich além de designer de moda, instalações, to e sua própria realidade. Surgem então a partir
interiores e móveis, foi a primeira mulher a fazer da década de 1970 várias vertentes: o feminismo
parte do Conselho de Curadores do Deutscher cultural, o feminismo lésbico, o feminismo das
Werkbound (NOVAS, 2014). mulheres negras, o feminismo latino-americano
e árabe, o feminismo institucional, o feminismo
A segunda edição da bolsa Lily Reich foi lançada acadêmico, o ciberfeminismo, o ecofeminismo
pela Fundació Mies van der Rohe no ano de 2020 (LAURINO, 2018). Dessa forma, fazendo um pa-
e nesse ano o edital amplia a participação para ralelo ao campo da arquitetura, urbanismo e de-
alunos do último ano do ensino médio, que visa sign são quando surgem os primeiros coletivos
incentivá-los a realizar projetos de pesquisa cur- feministas de arquitetas, em fins da década de
ricular voltados para reverter as invisibilidades 1970 e criaram mais força para novos coletivos
na arquitetura, tanto do ponto de vista histórico nas décadas posteriores entrando na terceira
quanto contemporâneo( FUNDACIÓ , 2020). periodização /onda feminista.

No Brasil, Carmen Portinho (1903-2001), foi a As revistas especializadas de arquitetura Domus


terceira mulher a graduar em Engenharia Civil em 1972, número 512, teve 24 mulheres citadas.
pela Escola Politécnica da Universidade do Bra- A revista Architectural Design em 1975, teve um
sil. Ainda jovem, participou da organização do número dedicado inteiramente para mulheres ar-
movimento sufragista junto a Bertha Lutz em quitetas produzida por uma redação especial com-
1919 e depois de formada, da fundação da Asso- posta inteiramente de mulheres (LAURINO, 2018).
ciação Brasileira de Engenheiras e Arquitetas.
Considerada uma militante feminista apoiou o Entre 1970-1972 Susana Torre, arquiteta argen-
movimento, incentivando mulheres que quando tina-americana projetou o House of Meanings,
casassem mantivessem o nome de solteira, o em que organiza o espaço em uma matriz que
que ela mesmo fez ao se casar com o arquiteto possa ser alterado no processo de habitar, como
Affonso Eduardo Reidy. Convidada pelo Conselho descreve em seu ensaio de 1981- Space for Ma-
Nacional dos Direitos da Mulher (CDNM) entregou a trix (NOVAS, 2014). Torre afirma que a habitação
Carta das Mulheres aos constituintes, na Câmara e a criação de uma comunidade são processos
dos Deputados, com propostas para a Consti- em aberto, mas os edifícios “têm como objetivo
tuição que seria promulgada no outro ano em alcançar uma forma completa e definitiva, não
1988.No campo profissional Ingressou no quadro para serem deixados em um estado de indeter-
de engenheiros da Diretoria de Obras e Viação minação”. Dessa forma, Torre argumenta que
da prefeitura do Distrito Federal, então o Rio de pode-se manter a tensão entre objeto e processo,
Janeiro e depois assumiu o cargo de diretora edifícios residenciais projetados “como matrizes
do Departamento de Habitação Popular a partir espaciais em vez de sistemas formais fechados”
de 1948 e deu às habitações coletivas prioridade ( SUSANA TORRE, 1981).“Space as Matrix” pro-
absoluta, acompanhando a construção dos con- põe quebrar as convenções de público e privado
juntos habitacionais, alguns projetados por seu em favor da continuidade espacial, hierarquia,
marido. Foi diretora do Museu de Arte Moderna e multifuncionalidade para acomodar padrões
(MAM), sendo responsável pelas primeiras expo- mutáveis e temporários, e para isso os espaços
sições de vanguarda no Rio de Janeiro. Dirigiu a devem ser repensados.
Escola de Desenho Industrial (ESDI) também no
Rio (CPDOC, 2001). A arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo Bardi (1914-
1992) estudou arquitetura na Universidade de
A segunda periodização relacionada a segunda Roma e se formou em 1940. Laurino (2018) afirma
onda feminista expande a reflexão sobre a des- que embora também tenham sido omitidos pela
construção da dicotomia público/ privado, onde a historiografia, muitas mulheres arquitetas ocu-
mulher não se apropria do espaço privado, apesar pavam cargos de gestão para revistas renomadas
de habitá-lo, pois não o representa e está sempre dedicado à arquitetura e design. Por exemplo, Lina
ao serviço dos demais (NOVAS, 2014).O feminismo Bo Bardi foi editora da revista Quaderni di Domus,
radical deu lugar a pluralidade feminina, o qual e fundadora em 1945 da publicação semanal A
EIXO TEMÁTICO 1 Attualita, Architettura, Abitazione, Arte-Cultu-
ra dela Vita com seu professor Bruno Zevi e seu
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO parceiro Carlo Pagani. Em 1950, juntamente com
Pietro Maria Bardi, seu marido, fundou a revista
Habitat, no Brasil.

Em seus projetos e obras realizados no Brasil,


como a Casa de Vidro (1951), o Museu de Arte de
São Paulo(1968) e o Sesc-Pompeia(1986) demons-
tram essa integração interior /exterior, público/
privado. Na Casa de Vidro as aberturas para a
vista da cidade de São Paulo (hoje temos a visão
das copas das árvores). No MASP os cavaletes
de vidro sob uma base de concreto e as obras de
arte dispostas em ordem cronológica, quebram
a hierarquia entre as obras, repensando o espaço
tradicional de museus. E o grande vão, belvedere
e espaço cívico, onde há a livre circulação das
pessoas no nível da Av. Paulista – uma continui-
dade com o entorno que pode acomodar usos
mutáveis e temporários. O Sesc-Pompeia quan-
do se entra no primeiro galpão da antiga fábrica
mantida, o visitante é recebido em uma praça
interna convidativa com mobiliário acolhedor.
E ainda as três torres de concreto construídas
abrigam as quadras esportivas, subvertendo a
ordem dos espaços.

A terceira periodização da historiografia da ar-


quitetura feminista e a terceira onda feminista
mostram forças que competem entre si e são
contraditórias: o neoliberalismo e o individualis-
mo (BUDGEON, 2011). A década de 1990 teve um
aumento de coletivos femininos que reivindicam
vária iniciativas desde a revisão da metodologia
pedagógica da teoria da arquitetura, bem como
a incorporação e pesquisa de percepções de
planejamento urbano e arquitetura e igualdade
efetiva em o exercício profissional das mulheres
arquitetas (NOVAS, 2014).

Conclusões

A periodização da historiografia da mulher arqui-


teta amplia a compreensão do que já foi realizado
e o que pode ser realizado. Influencia em como
enfrentamos os desafios urbanos. As contribui-
16º SHCU ções de várias profissionais, na primeira onda
30 anos . Atualização Crítica
do feminismo, propuseram inovações para fa-
410 cilitar o trabalho doméstico e assim permitiram
que homens e mulheres pudessem participar do REFERÊNCIAS
mercado de trabalho ou ter mais tempo para suas
famílias. Equipamentos coletivos e creches em BARRA, Eduardo. STUDIO TEXTOS - Escritos
conjuntos habitacionais, escolas que promoves- sobre paisagem e arquitetura paisagística.
sem espaços de bem-estar, espaços públicos de Série: Paisagistas.GERTRUDE JEKYLL, 25
qualidade distribuídos justamente, foram concei- de novembro de 2019. Disponível: https://
tos abordados na segunda onda. A segurança das www.facebook.com/1789065634741814/post-
mulheres nos espaços públicos, no transporte s/2381552858826419/?extid=fv1Ge3vj1zNUv-
público depende de políticas públicas e plane- 8T0&d=n . Acesso: 15 set.2020
jamento efetivo das cidades, são preocupações
que se revelam na terceira onda. Todos devem BUDGEON, S. Third-Wave Feminism and the
ter o direito à cidade. A participação de homens e Politics of Gender in Late Modernity. Palgrave
mulheres nestas questões traz uma visão menos Macmillan, 2011.
segmentada e mais sistêmica., contribuindo com
Centro de Pesquisa e Documentação de Histó-
soluções para cidades que promovam acessibi-
ria Contemporânea do Brasil (CPDOC), Carmem
lidade, diversidade, participação, e que sejam
Portinho, 2001. Disponível: https://cpdoc.fgv.
inclusivas e seguras. Portanto enquanto houver
br/producao/dossies/JK/biografias/carmen_
o ocultamento da produção feminina, mais tar-
portinho . Acesso: 7 set 2020.
diamente as soluções para o bem estar no meio
urbano serão implementadas. CONSOLIM, Veronica Homsi. Um pouco da
história de conquistas dos direitos das mu-
As vozes das arquitetas africanas e da Ásia
lheres e do feminismo.13 de setembro de 2017.
Central ainda não se firmaram.na historiografia
Justificando. 2017ª. Disponível: http://www.
da mulher arquiteta. Talvez devido a tradições
justificando.com/2017/09/13/um-pouco-da-
e preconceitos em países destas regiões que
-historia-de-conquistas-dos-direitos-das-mu-
veem a mulher sem potencial e capacidades. In-
lheres-e-do-feminismo/ .Acesso: 4 set 2020.
centivos devem ser dados quanto a pesquisas,
premiações, bolsas de estudo, participação nas CONSOLIM, Veronica Homsi .A história da pri-
questões comunitárias, e serem registradas as meira onda feminista. 14 de setembro de 2017.
ações para que inspirem mais e mais pessoas à Justificando.  2017b. Disponível: http://www.
ação. O acesso da mulher ao ensino superior e justificando.com/2017/09/14/historia-da-pri-
ao mercado de trabalho apoiadas por políticas meira-onda-feminista/ . Acesso: 4 set 2020.
públicas tem como consequência a melhoria de
vida para todo um país. CONSOLIM, Veronica Homsi Segunda onda femi-
nista: desigualdade, discriminação e política das
Ao final de uma de suas palestras em Harvard, a mulheres 14 de setembro de 2017. Justificando.
historiadora Beatriz Colomina afirma que corrigir 2017 c. Disponível: http://www.justificando.
o registro não é apenas uma questão de adicionar com/2017/09/14/segunda-onda-feminista-de-
alguns nomes ou mesmo centenas à história da ar- sigualdades-culturais-discriminacao-e-politi-
quitetura, e que não se trata apenas de justiça hu- cas-das-mulheres/ . Acesso: 4 set 2020
mana ou precisão histórica, mas de entender mais
completamente a arquitetura e as formas comple- CONSOLIM, Veronica Homsi O que pede a ter-
xas, como é produzida., como é realizada em cola- ceira onda feminista? 15 de setembro de 2017 .
boração e não somente para o privilégio de alguns. Justificando. 2017d. Disponível: http://www.
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set 2020.
EIXO TEMÁTICO 1 RESUMO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Durante a Ditadura Civil-Militar a noção de Pla-
nejamento alcançou enorme relevância. Os
vídeo-pôster anos 1970 são um exemplo da efetividade deste
que se mostrou um mecanismo de controle do
Governo Federal sobre Estados e Municípios.
A MISSÃO DA CNPU NA Este artigo pretende analisar esse fenômeno
do ponto de vista do desenvolvimento urbano,
FORMAÇÃO DA REGIÃO intrínseco à criação, em 1974, da CNPU - Comis-
são Nacional de Regiões Metropolitanas e Políti-
METROPOLITANA DO RIO DE ca Urbana e a sua relação com a fusão do Esta-
do do Rio de Janeiro com a Guanabara.
JANEIRO
DESENVOLVIMENTO URBANO PLANEJAMENTO URBANO
CNPU’S MISSION IN FORMING THE METROPOLITAN
CNPU FUSÃO REGIÕES METROPOLITANAS
REGION OF RIO DE JANEIRO

LA MISIÓN DE LA CNPU EN LA FORMACIÓN DE LA


REGIÓN METROPOLITANA DE RÍO DE JANEIRO

FERREIRA, Luiza de Cavalcanti A.


Doutoranda; PPGH-UFF
luizacaf@gmail.com

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

414
ABSTRACT RESUMEN

During the Civil-Military Dictatorship, the notion of Durante la Dictadura Civil-Militar, la noción de
Planning reached enormous relevance. The 1970s Planificación alcanzó una grande relevancia. Los
are an example of the effectiveness of this Fede- años 1970 son un ejemplo de la efectividad de
ral Government control mechanism over States este que resultó ser un mecanismo de control del
and Municipalities. This article intends to analyze Gobierno Federal sobre los Estados y Municipios.
this phenomenon from the point of view of urban Este artículo pretende analizar este fenómeno
development, intrinsic to the creation, in 1974, of desde el punto de vista del desarrollo urbano, in-
CNPU - National Commission of Metropolitan Re- trínseco a la creación, en 1974, de la CNPU - Comi-
gions and Urban Policy and its relation with the sión Nacional de Regiones Metropolitanas y Polí-
merger of Rio de Janeiro State with Guanabara. tica Urbana y su relación con la fusión del Estado
de Río de Janeiro con Guanabara.

URBAN DEVELOPMENT URBAN PLANNING CNPU


MERGER METROPOLITAN REGIONS DESARROLLO URBANO PLANIFICACIÓN URBANA CNPU
FUSIÓN REGIONES METROPOLITANAS
EIXO TEMÁTICO 1 INTRODUÇÃO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Em 1964, após anos de uma instabilidade demo-
crática que se intensificou com a renúncia do
Presidente Jânio Quadros em 1961, o Brasil foi
vídeo-pôster
assolado por um Golpe de Estado. As forças arma-
das, apoiadas por grupos empresariais, políticos

A MISSÃO DA CNPU NA e setores conservadores da sociedade descon-


tentes com as políticas implementadas pelo vice

FORMAÇÃO DA REGIÃO presidente João Goulart, tomaram o poder em 1°


de abril de 1964, no momento denominado por par-
METROPOLITANA DO RIO DE te da historiografia como Ditadura Civil-Militar1.

JANEIRO O comando dos militares no país se deu por 21


anos2, com influência direta na vida cotidiana e na
imprensa. A dura repressão e a censura política
CNPU’S MISSION IN FORMING THE METROPOLITAN foram inegáveis estigmas dessa fase, sobretudo
REGION OF RIO DE JANEIRO após 1968, com a promulgação do AI-5. O período
entre 1964-1985 foi marcado pela presença militar
maciça em altos cargos do governo federal, esta-
LA MISIÓN DE LA CNPU EN LA FORMACIÓN DE LA
dual e municipal, e não apenas na presidência da
REGIÓN METROPOLITANA DE RÍO DE JANEIRO
república. Estes setores do governo utilizaram-
-se, muita das vezes, de decisões técnicas como
uma estratégia de legitimação de ideias poucos
democráticas. Esta era também uma forma de
contradizer aqueles que intitulavam o governo de
autoritário, insinuando que nem só de militares
era formado o corpo político em atuação.

Em função do crescimento das cidades propicia-


do pelo acentuado processo de industrialização,
movimento que se intensificou entre 1950-1970,
o mundo passou a se voltar com maior ímpeto às
questões relativas à urbanização. No Brasil não
foi diferente, e também os governos autoritá-
rios tiveram que refletir sobre a explosão urbana.
Assim, diversos foram os órgãos instituídos nos
primeiros anos da Ditadura Civil-Militar tendo
como enfoque organizar a vida na cidade, tais
como o Serviço Federal de Habitação e Urbanismo
(SERFHAU), o Banco Nacional de Habitação (BNH)

1. Daniel Aarão Reis desenvolve o termo ao longo de sua


produção historiográfica, considerando que parte da socie-
dade apoiou a ação dos militares, que tomaram o poder sem
grandes resistências. Sobre as diferentes visões historio-
gráficas ver Daniel Aarão (2000), Carlos Fico (2004), Renato
Lemos (2002), Maria Celina D’Araújo e Celso Castro (1994).

2. Somente em 1985, quando o civil José Sarney assumiu


16º SHCU
a presidência da república, ainda que de forma indireta,
30 anos . Atualização Crítica
podemos dizer que houve um rompimento com esta fase,
416 efetivada pela promulgação da constituição cidadã de 1988.
e a Coordenação de Habitação de Interesse Social planejamento e desenvolvimento eram, portanto,
da Área Metropolitana (CHISAM) 3. conceitos associados. Neste período de efer-
vescência intelectual e política, o planejamento
Este trabalho busca analisar historicamente a passou a ser debatido em livros, na imprensa e
criação de órgãos voltados ao desenvolvimento nos partidos políticos”. (FRIDMAN, 2014, p. 102).
urbano no decorrer dos anos 1960 e refletir sobre
as bases estabelecidas para uma Política Urbana Segundo Fernanda Jahn-Verri, o tema do planeja-
na década seguinte. Para tal, o artigo analisa a mento vem à tona a partir da década de 1950, exa-
criação da Comissão Nacional de Regiões Me- tamente por ser uma forma do Estado consolidar
tropolitanas e Política Urbana (CNPU) em 1974, o seu espaço junto à sociedade e de despolitizar
durante a gestão do presidente Ernesto Geisel o corpo burocrático estatal. (JAHN-VERRI, 2014,
(1974-1979), e a sua correlação com as decisões p. 83). Nesse sentido, Octávio Ianni entende que o
que pautaram a fusão dos Estados do Rio de Ja- fim da 2ª Guerra Mundial e a redemocratização do
neiro e da Guanabara. país incluíram novos grupos sociais e problemas
nas discussões sobre as estratégias de desen-
volvimento. Essas seriam, portanto, as origens
da ideologia e prática do Planejamento no país.
origens e disputas em torno da noção (IANNI, 1977, p. 57).
de planejamento
As gestões de Juscelino Kubitschek (1955-1960),
com o seu Plano de Metas, e de Jânio Quadros
Os anos 1960 no Brasil são o marco das primeiras
(1960-1961), com o Plano Quinquenal, já vinham
ações do governo federal quanto aos problemas
pautando-se nessa nova perspectiva da plani-
aportados propriamente pela urbanização. Embo-
ficação. Mas, foi somente no governo de João
ra esse fosse um processo que já desse indícios
Goulart (1961-1964), que houve a criação de fato
de sua complexidade desde a década anterior, foi
de um órgão de primeiro escalão com essa fi-
somente após a criação de um órgão específico nalidade. Criado pela Lei Delegada nº 1 de 25 de
dedicado às questões do Planejamento que o setembro de 1962, o Ministério Extraordinário do
tema começou a ser tratado de forma consistente. Planejamento foi comandado pelo economista
Celso Furtado (1962-1964). O órgão propôs o Plano
De acordo com os estudos da urbanista Fania
Trienal, que se concentrou na questão econômica,
Fridman, parte desse interesse político centrado
onde o urbano aparecia como plano de fundo. Vale
na questão do desenvolvimento urbano nos anos
registrar que é neste projeto que pela primeira
1960 tem origem nas ideias desenvolvimentistas
vez fala-se em desenvolvimento das diversas
que circularam na década anterior. Instituições
regiões e diminuição das disparidades entre elas,
brasileiras e internacionais de caráter econômi-
tema que seria apropriado anos mais tarde pelos
co, como o Banco Nacional de Desenvolvimento
discursos de Política Urbana. (STEINBERGER &
Econômico (BNDE), o Instituto Superior de Es-
BRUNA, 2001, p. 38).
tudos Brasileiros (ISEB) e a Comissão Econômica
para a América Latina (CEPAL), tiveram enorme Parte das ideologias que nos anos 1950 eram sus-
relevância para a disseminação destas, pois tentadas pelo ISEB, CEPAL e BNDE, foram o alicer-
consideravam ser papel do Estado combater o ce necessário para a consolidação das Reformas
subdesenvolvimento por meio de estratégias pla- de Base propostas por João Goulart em seu curto
nificadas. Para a urbanista, “na década de 1950, governo. Fridman lembra que apesar do novo Mi-
nistério não ter apresentado a eficácia desejada
3. Meses após o golpe, em 21 de agosto de 1964, foi criado o devido à crise política que logo se instaurou no
Serviço Federal de Habitação e Urbanismo (SERFHAU). Pela país, a sua concepção foi pioneira. (FRIDMAN,
mesma legislação era instituído também o Banco Nacional 2014, p. 112).
de Habitação (BNH). Em 1966, consolidou-se a proposta
da Coordenação de Habitação de Interesse Social da Área Paradoxalmente, esse processo de valorização de
Metropolitana (CHISAM). O órgão seria extinto em 1973, planos ganhou importância na década de 1950 e
pouco antes do governo lançar mão de uma nova lei, esta passou a permear propostas de governos diver-
que criaria 8 regiões metropolitanas no país. gentes entre si a partir de então. De acordo com
EIXO TEMÁTICO 1 o sociólogo Octávio Ianni “os próprios militares
foram levados a reelaborar as suas concepções
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO sobre a defesa e a segurança nacionais, em rela-
ção com o estado de desenvolvimento das forças
produtivas do País”. (IANNI, 1977, p. 59). Apesar do
contexto político que se vivia em escala mundial
ter sido essencial para a consolidação de uma
visão que relacionava a prática do planejamento
aos governos socialistas, os setores militares
também se aproximaram da proposta. Assim,
procuraram estabelecer um “planejamento como
oposição ao planejamento central socialista”,
seguindo a ideologia de Doutrina de Segurança
Nacional, gestada nos Estados Unidos durante a
Guerra Fria e logo apropriada pela Escola Superior
de Guerra. (FRIDMAN, 2014, p. 102).

Não por acaso a gestão do Marechal Humberto


Castello Branco, primeira liderança da Ditadura
Civil-Militar brasileira, lançou mão do Programa de
Ação Econômica do Governo (PAEG). Concebido
por Roberto Campos, titular do Ministério Extra-
ordinário para o Planejamento e Coordenação
Econômica, e criado em maio de 1964, o plano
abordou apenas indiretamente a questão urbana,
tratando do problema da habitação, oferecendo
assistência a estados e municípios para a elabo-
ração de planos urbanísticos, e chegando a citar
uma política de planejamento urbanístico, porém
sem desenvolvê-la. (STEINBERGER & BRUNA,
2001, p. 38).

Os projetos urbanoS instituídos nos


anos 1960

Poucos meses após a publicação do PAEG, foi


criado o Serviço Federal de Habitação e Urbanis-
mo (SERFHAU). Instituído pela Lei nº 4.380, de 21
de agosto de 19644, na estrutura do Ministério do
Planejamento5 e regulamentado pelo decreto nº
59.917, de 30 de Dezembro de 1966, o SERFHAU era

4. BRASIL. Lei nº 4.380, de 21 de agosto de 1964. Disponível


em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4380.htm.

5. Teve suas atribuições transferidas para o Ministério do


Interior em 16 de julho de 1970, pelo Decreto nº 66.882.
16º SHCU
Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/
30 anos . Atualização Crítica
decret/1970-1979/decreto-66882-16-julho-1970-408321-pu-
418 blicacaooriginal-1-pe.html.
a entidade elaboradora e coordenadora da tanto, dessa vez, o enfoque era nas favelas. A
política nacional no campo de planejamento Coordenação de Habitação de Interesse Social
local integrado, estabelecida dentro das da Área Metropolitana (CHISAM) foi criada em 03
diretrizes da política de desenvolvimento de maio de 1968, pelo Decreto Federal nº 62.654.
regional, em articulação com o Ministério De acordo com Mário Brum, a CHISAM assumiu
do Planejamento e o Ministério de Coorde- o controle direto de diversos órgãos do Estado
nação dos Organismos Regionais6. da Guanabara, no que foi tratado pela legislação
como “programa de desfavelamento”, que pre-
De acordo com a dissertação de mestrado de tendia com a remoção, mudar a condição dos
Fernanda Jahn-Verri, o órgão, que funcionou entre moradores de uma situação irregular e ilegal para
1964 e 1975, foi concebido com o intuito de prover a de proprietário. (BRUM, 2012, p. 363).
estados e municípios brasileiros de assistência
técnica em temas correlatos ao planejamento Brum ressalta, no entanto, que longe de realmente
urbano. (JAHN-VERRI, 2014). beneficiar famílias inteiras, o programa investiu
nas remoções destas para áreas longínquas, in-
Pelo mesmo dispositivo que instituiu o SERFHAU, sistindo numa visão que serviu para marginalizar
foi também criado o Banco Nacional de Habitação cada vez mais as favelas e seus moradores. Sobre
(BNH). A habitação já era uma preocupação anti- esse tipo de processo, o geógrafo David Harvey
ga do Estado, antes mesmo que o planejamento assinala que
urbano de forma ampla se tornasse uma questão.
Desse modo, Jahn-Verri afirma que ainda que por trás da máscara de muitos projetos
inicialmente o SERFHAU e o BNH atuassem de bem-sucedidos, residem graves proble-
maneira complementar, outros desafios passa- mas sociais e econômicos e que em muitas
ram a se impor e logo o quadro mudou de figura: cidades esses problemas se manifestam
geograficamente na forma de uma cidade
A autarquia passaria a deixar, gradualmen- dupla, em que regiões deterioradas passam
te, seu papel de realizadora de estudos so- por processos de regeneração e as regiões
bre o déficit habitacional e promotora [de] periféricas configuram um crescente mar
programas regionais e locais de habitação de empobrecimento. (HARVEY, 2020, p. 177).
de interesse social, para prestar assessoria
Essas ações evidenciam que longe de serem pre-
aos municípios referente à política urbana
ocupações efetivas do poder público, as remo-
num sentido amplo, auxiliando as adminis-
ções corroboravam interesses particulares do
trações tanto na elaboração de seus planos
governo. Nesse sentido, Harvey destaca ainda
diretores, quanto no estabelecimento de
que a busca por uma “renovação urbana” é muitas
suas respectivas normas técnicas. (JAHN-
vezes sustentada por um ideal de valorização de
-VERRI, 2018, p. 6).
terras visando empreendimentos imobiliários.
No entanto, Jahn-Verri ressalta que parte das Assim, setores da classe média são prestigiados
críticas feitas ao SERFHAU recaem exatamente pelas transformações na área, em detrimento
daqueles grupos que já ali habitavam. Sobre o
sobre o fato do Serviço ter se concentrado em
assunto, Harvey afirma de forma elucidativa que
ações isoladas de caráter local, que não se conec-
tavam com a política centralizadora pleiteada pela “gestão” urbana significa muito mais que
Ditadura. Essa perda de vigor político teria levado “governo” urbano. (...) o verdadeiro poder
a sua extinção em 1975. (JAN-VERRI, 2014, p. 126). de reorganizar a vida urbana tão frequente-
mente repousa em outro lugar, ou ao menos
Mais tarde, outra iniciativa tomou forma, ainda
em uma coalizão mais ampla de forças nas
tendo como base a questão habitacional. No en-
quais o governo e a administração urbanos
desempenham papel apenas facilitador e
6. BRASIL. Decreto n° 59.917, de 30 de dezembro de coordenador. (HARVEY, 2020, p. 158).
1966. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/
fed/decret/1960-1969/decreto-59917-30-dezembro- Ademais, a situação política brasileira permitiu que
-1966-400520-publicacaooriginal-1-pe.html o programa fosse instalado sem que houvesse re-
EIXO TEMÁTICO 1 sistência por parte da Federação das Associações
de Moradores de Favelas do Estado da Guanabara
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO (FAFEG), já que levou inclusive à prisão dos seus
dirigentes, que se posicionavam a favor da urbani-
zação das favelas, e contra as remoções. (OAKIN,
2014, p. 117). Assim, completa Mário Sérgio Brum,
“’Verdades’ sobre a favela apresentadas pelas au-
toridades à frente do programa de remoção não
tinham como ser rebatidas”. (BRUM, 2012, p. 361).

Baseando-se num sistema que mais se concen-


trou nas terras valorosas da Zona Sul da Guana-
bara – como aquelas pertencentes à orla da Lagoa
e do Leblon, onde foram removidas as favelas da
Catacumba, Jóquei Clube, Ilha das Dragas e Praia
do Pinto –, a CHISAM não teve fôlego para conti-
nuar o seu feito após realizar as remoções nas
áreas mais estratégicas. Muitos foram os fatores
que levaram à derrocada da autarquia, como por
exemplo o alto custo das casas construídas para
as finanças de moradores que, muitas das vezes,
tirados de sua vizinhança, haviam perdido a sua
fonte de renda. Brum destaca que:

As dificuldades do Sistema Financeiro de


Habitação em manter a solvência foi um dos
fatores que fez o programa de remoções ser
interrompido antes do previsto. Nos planos
originais da autarquia, seriam removidas to-
das as favelas do Rio de Janeiro até 1976. Antes
de a meta ser cumprida, a CHISAM foi extinta,
em setembro de 1973. (BRUM, 2010, p. 106).

O enfraquecimento e a extinção de órgãos como


este nos últimos dias da gestão do general Emílio
Garrastazu Médici (1969-1973), abririam espaço
para novas possibilidades que atuariam de forma
mais integrada com as políticas econômicas do
governo federal. A implementação da Lei Com-
plementar nº 14, de 08 de junho de 1973, que de-
finia as 8 Regiões Metropolitanas do país, daria
margem para a construção de outras políticas
públicas para o setor urbano, mais centradas nos
aspectos regionais.

Assim, a intensificação e consolidação da ques-


tão urbana na gestão do general Ernesto Geisel
(1974-1979) culminaria numa política urbana mais
complexa. A nova situação econômica do país e
do mundo seria o passaporte para atuações mais
16º SHCU centralizadas por parte do governo federal, que
30 anos . Atualização Crítica
tendo como justificativa o desenvolvimento nacio-
420 nal, investiria mais fortemente no planejamento.
A criação da CNPU e o seu contexto Embora ambos os órgãos tenham coexistido por
um breve período de um ano, Fernanda Jahn-Verri
entende que a CNPU deu continuidade ao traba-
O primeiro órgão criado pelo governo do presi- lho desempenhado pelo SERFHAU, dado que a
dente Ernesto Geisel para fazer frente à temática regionalização já era um tema que vinha sendo
urbana foi a Comissão Nacional de Regiões Metro- debatido pelo órgão há algum tempo. No entanto,
politanas e Política Urbana (CNPU). Instituída pelo a pesquisa revela que a Comissão sobressaiu
Decreto Federal nº 74.156, de 06 de junho de 1974, exatamente por ter sido capaz de consolidar os
a Comissão teria como função básica acompa- novos interesses do governo federal, contando
nhar a implantação das Regiões Metropolitanas, com maior autonomia e apoio institucional, so-
bem como propor diretrizes para uma Política de bretudo, do setor de Planejamento Federal, que
Desenvolvimento Urbano. O órgão agiria neste passava a interferir por meio dela nas Regiões
momento como regulador das Regiões Metropoli- Metropolitanas. (JAHN-VERRI, 2014, p. 123).
tanas de São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre,
Recife, Salvador, Curitiba, Belém e Fortaleza, Assim, para Jahn-Verri, a maior contribuição
estabelecidas no ano anterior pela Lei Comple- da autarquia liquidada em 1973 foi no sentido
mentar nº 14, e do Rio de Janeiro, que teria a sua da “consolidação do planejamento urbano como
área determinada pela Lei Complementar nº 207. atividade governamental e prática da administra-
ção pública, auxiliando a institucionalizar, como
A definição das Regiões Metropolitanas em 1973 atestam numerosos pesquisadores, o planeja-
solidificou a nova diretriz dada pelo poder público mento urbano integrado no Brasil”. (JAHN-VERRI,
à temática urbana, antecipando as razões que 2014, p. 133-134). Não à toa, meses após a criação
levariam ao fim do SERFHAU. Dedicando-se a da CNPU, seria publicado o II Plano Nacional de
auxiliar tecnicamente, metodologicamente ou Desenvolvimento (1975-1979), onde finalmente a
financeiramente os pequenos, médios e grandes questão urbana figuraria ao lado de outros setores
núcleos urbanos, o Serviço teve uma inserção como determinantes para melhores indicativos
bastante grande sobre os municípios, para onde econômicos para o país.
se destinou o maior volume do seu trabalho.
Com o respaldo do II PND, devemos frisar que a
Durante os anos em que vigorou, o SERPHAU au- política instituída pela CNPU avançou bastante.
xiliou e financiou Planos Diretores Municipais, Essa condição permitiu que no caso específico
Planos de Ação Imediata, Relatórios Prelimina- do novo Estado do Rio de Janeiro, que resultou
res e, inclusive, 3 Planos Metropolitanos de De- da fusão do antigo Estado do Rio de Janeiro e da
senvolvimento Integrado. Utilizando como base Guanabara, a Comissão pudesse ter um trânsito
uma bibliografia consolidada sobre o papel do maior sobre a Região Metropolitana e, dessa for-
SERFHAU, Jahn-Verri defende que o comporta- ma, no próprio Estado unificado.
mento da autarquia estava contrariando o mode-
lo centralizador que vinha sendo adotado pelos
governos autoritários e que se intensificaram no
panorama de crise dos anos 19708. (JAHN-VERRI, A relação entre a CNPU e a formação da RMRJ
2014, p. 126).

A Comissão Nacional de Regiões Metropolitanas e


7. A nona Região Metropolitana seria composta, segun-
do a Lei, pelas cidades de Rio de Janeiro, Niterói, Duque
Política Urbana foi instituída em meio aos debates
de Caxias, Itaboraí, Itaguaí, Magé, Maricá, Nilópolis, Nova em torno da fusão dos Estados do Rio de Janeiro e
Iguaçu, Paracambi, Petrópolis, São Gonçalo, São João do da Guanabara em 1974 e estes não parecem terem
Meriti e Mangaratiba. sido acontecimentos isolados. A reconstrução
8. Em 1973 ocorreria a Crise Internacional do Petróleo, im-
histórica desses eventos nos permite compre-
pactando de forma definitiva o período de crescimento ender interesses comuns que possivelmente
econômico interno que ficou conhecido como “Milagre aproximaram as propostas e contribuíram para
Brasileiro”. a dinamização de ambos os projetos.
EIXO TEMÁTICO 1 Embora debatida em outras circunstâncias, es-
pecialmente no período que antecedeu a trans-
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO ferência da capital federal do Rio de Janeiro para
Brasília9, a fusão viria definitivamente à tona a
partir de uma fala do então Ministro da Justiça,
Armando Falcão, divulgada pelos jornais em 11 de
abril de 1974. Essa declaração não estava des-
colada de seu contexto, já que semanas antes
era enfim inaugurada a Ponte Presidente Costa
e Silva, popularmente conhecida por Ponte Rio-
-Niterói, realizando uma integração física entre
os Estados da Guanabara e do Rio de Janeiro.

A mensagem nº 46/1974, encaminhada pelo presi-


dente Ernesto Geisel ao Congresso Nacional, foi
recebida pela casa no dia 3 de junho de 1974. Neste
clima, a fusão foi debatida e votada em sessão
conjunta realizada nos dias 26 e 27 de junho de
1974. Assim, em pouco mais de 20 dias, o governo
federal encaminhou a mensagem com o projeto
e ela foi discutida nas comissões de Justiça e da
Amazônia. Todo este processo transcorreu em
tempo recorde, e a Lei Complementar nº 20 foi
publicada já no dia 1º de julho de 197410.

Taxada de antidemocrática por nem ao menos


ter sido posta em debate nas Assembleias da
Guanabara e do Rio de Janeiro, a fusão é um fe-
nômeno ainda pouco explorado. Grande parte
dos trabalhos sobre o tema foram publicados por
pesquisadores do Centro de Pesquisa e Docu-
mentação de História Contemporânea do Brasil
(CPDOC/FGV). Imbuídos por questões políticas,
dedicaram-se a entender a relação entre a fusão
e uma possível tentativa de enfraquecimento do
Movimento Democrático Brasileiro nos Estados.
A mudança impactaria também no futuro das

9. Segundo afirmam Grynszpan e Ferreira, a autonomia da


cidade do Rio de Janeiro foi evocada, sobretudo, durante as
Constituintes de 1891, 1934 e 1946, mas sempre como voto
vencido. Entretanto, com a conjuntura da transferência
da capital federal para Brasília, a questão voltou à baila,
rondando a vida dos cariocas nos últimos dias da cidade-
-capital. (FERREIRA, 2015, p. 135-138).

10. No primeiro capítulo da tese, a ser defendida em 2021,


analiso as discussões no Congresso Nacional em torno do
processo de fusão desde o momento em que ela é anunciada
pela mídia, até o fim da sua tramitação e votação. Verifi-
16º SHCU
quei uma infinidade de posicionamentos de deputados e
30 anos . Atualização Crítica
senadores da ARENA e do MDB e suas colocações quanto
422 ao assunto.
lideranças políticas do Estado do Rio de Janeiro, Federal nº 6.151, daria algumas dicas sobre as
de tradição amaralista e, do Estado da Guanabara, intenções do governo federal. Conforme desta-
predominantemente chaguista11. cou Steinberger e Bruna, o II PND preocupou-se
amplamente com a questão das cidades, dada
Paralelamente, no dia 06 de junho de 1975 o go- a sua condição industrial e catalisadora de mão
verno federal decretava a criação da Comissão de obra. (STEINBERGER & BRUNA, 2001, p. 43).
Nacional de Regiões Metropolitanas e Política
Urbana (CNPU). A Comissão seria integrada por Contudo, a união dos Estados tinha data e hora
membros dos mais importantes escalões do poder certa para acontecer, sendo prevista para 15 de
executivo, tendo como seu presidente o Secre- março de 1975. A legislação que instituiu a fusão,
tário-Geral da Secretaria de Planejamento da definiu que o seu primeiro governador deveria
Presidência da República (SEPLAN). Além deste, ser nomeado pelo presidente da república. Essa
fariam parte da empreitada o Secretário-Geral já seria a primeira das intervenções federais no
do Ministério Interior (MINTER), na qualidade de caso específico do novo Estado. Não obstante, o
vice-presidente; o Presidente do Banco Nacional almirante Faria Lima14 assumiria o posto e indica-
de Habitação; e representantes do Ministério dos ria o engenheiro Marcos Tamoyo15 para a prefeitura
Transportes, Ministério da Fazenda e Ministério da
Indústria e do Comércio. Caberia ainda à SEPLAN
14. Carioca, Floriano Peixoto Faria Lima nasceu no dia 15 de
e ao MINTER a definição de quatro representantes novembro de 1917, no então Distrito Federal. Membro de fa-
que seriam escolhidos de forma conjunta12. mília de renome nos meios militares, era irmão do brigadeiro
Roberto Faria Lima, inspetor-geral da Aeronáutica em 1974,
Uma de suas mais determinantes competências e do brigadeiro José Vicente de Faria Lima, prefeito eleito de
estava prevista no Artigo 3º, item d, evidenciando São Paulo entre 1965 e 1969. Ingressou na carreira militar em
o alcance e força política do órgão. Segundo esse 1933, atuando na Marinha. Ascendeu à subchefia da Marinha
ponto, a CNPU deveria no Gabinete Militar da Presidência da República no governo
Jânio Quadros, travando seu primeiro contato com Geisel
articular-se com Ministérios, Superinten- no Gabinete Militar em 1961. Após o golpe de 1964, assumiu
dências de Desenvolvimento Regional e funções internacionais no Canadá. Retornou ao Brasil, foi
demais órgãos governamentais envolvidos promovido a vice-almirante em 1969, alçando a subchefia de
com a execução da política nacional de de- organização do Estado-Maior da Armada (EMA). Convidado
senvolvimento urbano, de modo a assegurar por Geisel, foi diretor de transportes da Petrobras durante
a implementação compatibilizada dos pro- a sua gestão. Permaneceu na função até novembro de 1971,
quando pediu transferência para a reserva remunerada,
gramas e projetos estabelecidos13.
com patente de vice-almirante. Em meados de 1973, por
indicação de Ernesto Geisel, que deixava o comando da
No entanto, o dispositivo que criou a CNPU era
Petrobras para se candidatar à presidência da República,
pouco informativo sobre como deveria se dar essa
foi convidado a assumir a empresa. Permaneceu à frente da
relação e qual seria a forma dessas Superinten-
Petrobras por pouco mais de um ano. Com a determinação
dências voltadas ao Desenvolvimento Regional. da Fusão dos Estados do Rio de Janeiro e da Guanabara
A publicação do II Plano Nacional de Desenvol- em julho de 1974, seu nome foi apresentado em setembro
vimento, em 04 de dezembro de 1974, pela Lei como primeiro governador. Tendo a sua indicação aprovada
para o novo cargo pelo Senado, Faria Lima deixou assim a
direção da Petrobras em outubro de 1974.
11. Sobre a temática, ver trabalhos de Américo Freire, Carlos
Eduardo Sarmento, Marieta Moraes Ferreira, Mário Gryn- 15. Carioca, Marcos Tito Tamoyo da Silva nasceu no então
zspan e Marly Motta. O termo amaralista se relaciona com Distrito Federal, em 7 de setembro de 1926. Engenheiro Civil
a figura política de Ernani do Amaral Peixoto, assim como graduado pela Escola Nacional de Engenharia, ingressou
o chaguismo designa os apoiadores de Antônio de Pádua na Prefeitura do Distrito Federal ainda durante o curso, em
Chagas Freitas. Ambos os políticos pertenciam ao MDB, 1947, através de concurso público para o cargo de topógrafo.
porém faziam parte de correntes distintas dentro do partido. Especializou-se em engenharia rodoviária, tornando-se
em 1950 engenheiro da Prefeitura. Nos anos 1960, integrou
12. BRASIL. Decreto Federal nº 74.156, de 06 de junho de
grupo de técnicos que assessorou o Secretário Geral de
1974. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
Viação e Obras Públicas da gestão Carlos Lacerda (1960-
decreto/1970-1979/D74156.htm.
1965), tendo idealizado o túnel Rebouças. Em 1961, passou a
13. Idem. dirigir a Segunda Divisão de Túneis da Superintendência de
EIXO TEMÁTICO 1 do Rio de Janeiro, uma das principais cidades do
país. Outrora capital federal, ainda no dia 14 de
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO março de 1975 seu território se confundia com o
Estado da Guanabara.

Portanto, a nova configuração geopolítica do Es-


tado e a criação da Região Metropolitana do Rio
de Janeiro, atrelada às funções delegadas por lei
à CNPU, apresentar-se-iam como uma forma pra-
ticamente oficial de intervenção federal. Assim,
a exclusão do Rio de Janeiro da Lei que institui
as Regiões Metropolitanas ainda em 1973 é um
primeiro indício a ser considerado sobre o papel
atribuído à Comissão pelo governo.

Não por acaso, após aprovada a fusão, um grupo


de técnicos da CNPU passou a assessorar tec-
nicamente o Grupo de Trabalho que instituiria a
Secretaria de Planejamento e Coordenação Geral
do novo Estado. Ademais, o indicado pelo gover-
nador Faria Lima para comandar o GT e assumir
em seguida a pasta seria Ronaldo Costa Couto,
irmão de Élcio Costa Couto, Secretário-Geral da
SEPLAN e, portanto, Presidente da CNPU16.

Na qualidade de Secretário-Executivo da CNPU


estava o arquiteto Jorge Guilherme Francisconi.
De acordo com os documentos pertencentes ao
fundo SEPLAN-PR (Arquivo Nacional), era ele o
responsável por elaborar e encaminhar ao Presi-
dente do órgão, Élcio da Costa Couto, as diretrizes
e planos que seriam propostos pelo órgão.

Francisconi havia prestado serviços ao IPEA,


realizando pesquisas para o Setor de Desenvol-
vimento Urbano a partir de 1973. As análises rea-
lizadas fundamentaram a elaboração do capítulo
IX do II PND, “Desenvolvimento Urbano, Controle

Urbanização e Saneamento (SURSAN), onde a partir deste


momento desempenhou diversas funções, como a de Dire-
tor do Departamento de Urbanização em 1963, Assistente
Técnico do Presidente do órgão no mesmo ano e, em 1965,
a presidência da SURSAN. Foi também em 1965, último
ano do governo Carlos Lacerda, nomeado por um breve
período de tempo Secretário de Estado e Obras Públicas
da Guanabara, no lugar de Enaldo Cravo Peixoto, que havia
sofrido um enfarte. Depois de anos atuando na iniciativa
privada como sócio de Carlos Lacerda, retornou às funções
16º SHCU públicas como Prefeito da Cidade do Rio de Janeiro em 1975.
30 anos . Atualização Crítica
16. Os documentos relativos à CNPU encontram-se deposi-
424 tados no Arquivo Nacional de Brasília, no Fundo SEPLAN-PR.
da Poluição e Preservação do Meio Ambiente”, Esse assessoramento ocorreu de fato, dado que
divulgado em dezembro de 1974. Como parte deste o GT de Planejamento, comandado por aquele que
trabalho, publicou em 1976, junto de Maria Adélia seria o Secretário de Planejamento do Estado,
Aparecida de Souza, o livro “Política Nacional de Ronaldo Costa Couto, apresentou à CNPU todas
Desenvolvimento Urbano: estudos e proposições as decisões quanto à implantação do órgão me-
alternativas”. tropolitano antes mesmo de serem executadas.
Segundo exposto por Militão de Morais Ricar-
Entre janeiro e março de 1975, o Secretário-Exe- do, Secretário Executivo Adjunto da CNPU, em
cutivo coordenou uma série de ações que previam Memorando encaminhado a Francisconi, o GT
uma maior interlocução com os Estados, sobre- era formado por duas equipes criadas ainda em
tudo com os da Região Sudeste, que tratariam
janeiro de 197519. O Subgrupo Região Metropolita-
diretamente com a CNPU. Em janeiro daquele
na, voltado aos aspectos práticos da Fusão e da
ano Francisconi escreveu para o presidente da
criação da Região Metropolitana do Grande Rio;
CNPU, Élcio Costa Couto, propondo a criação de
e o Subgrupo de Política Urbana, de caráter mais
um Programa Nacional de Assistência Técnica
técnico e abrangente, pautando-se nas questões
aos Programas Estaduais de Desenvolvimento
do desenvolvimento regional.
Metropolitano e Urbano. Entendendo haver uma
dificuldade dos Estados em lidar com a questão O Relatório enviado por Francisconi ao Presidente
metropolitana, Francisconi propôs uma maior da CNPU meses mais tarde, em 23 de julho de 1975,
interlocução do governo federal com os novos go- elucidava a continuidade da atuação da Comissão
vernadores que assumiriam os postos em março.
junto às RM’s. Nessa ocasião era apresentada
“A importância e urgência que apresentam uma pequena reflexão sobre a situação de cada
as regiões metropolitanas está a exigir uma uma das diversas Regiões. Sobre o Rio de Janeiro
ação de natureza especial para seu solu- se dizia:
cionamento. Devemos constatar, com bas-
“Esta Região Metropolitana está sob a li-
tante auto-crítica (sic) e franqueza, que os
derança administrativa do Secretário de
mecanismos até agora existentes não tem
Planejamento Ronaldo Costa Couto. O apoio
(sic) sido capazes de sensibilizar ou orien-
técnico aos Conselhos Deliberativo e Con-
tar as administrações estaduais, mesmo
sultivo é dado pela FUNDREM que dispõe
aquelas mais vinculadas à própria esfera
de um quadro de profissionais capazes,
federal como foi o caso de São Paulo e é
o caso do novo Estado do Rio de Janeiro. coordenados pelo Economista Fernando
Se tal ocorre quanto a estes estados, fácil Talma Sampaio. Com relação ao Convênio,
é prever o que ocorrerá quanto a outros a parte técnica já foi bastante avançada
Estados da Federação” 17. pelo trabalho de Dra. Ana Maria Brasileiro
(IBAM contratado pelo IPEA/CNPU). Julga-
Outra ação defendida por Francisconi foi a criação -se possível que a FUNDREM conseguirá
de um Grupo de Trabalho para Regiões Metropoli- definir os serviços comuns que são me-
tanas (GERTRAME). Dentre as diversas finalidade tropolitanos, bem como o modelo de uso
previstas, estava a realização de reuniões con- do solo e ainda quais os efeitos que estas
juntas da CNPU com os organismos metropolita- definições exercerão sobre o planejamento
nos e a proposição de mecanismos por parte do metropolitano” 20.
governo federal que possibilitassem o cumpri-
mento das determinações do II PND e da CNPU. Em setembro de 1976 foi realizado o Seminário de
Por fim, Francisconi ainda sugeriu assessorar Belo Horizonte sobre a Implantação das Regiões
“de forma especial” a RM do Rio de Janeiro em Metropolitanas. O anexo que acompanhou a pro-
sua fase inicial18. gramação do Seminário tratou da necessidade
de uma flexibilização da lei federal quanto à rea-

17. BRASIL. CNPU/IPLAN - 015/75, 06 de janeiro de 1975, p. 2. 19. BRASIL. CNPU/IPLAN - 057/75, 07 de fevereiro de 1975.

18. Idem, p. 2-3 20. BRASIL. CNPU - 359/1975, 23 de julho de 1975, p. 2


EIXO TEMÁTICO 1 lidade de cada RM e lembrou que nesta ocasião
não caberia se ater a “discussões sobre níveis de
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO competências e possibilidades constitucionais
de municípios, Estados e União” 21.

Sobre a falta de uma diretriz precisa sobre o fun-


cionamento dos órgãos metropolitanos, Francis-
coni elucidava que ainda que houvesse um “vazio”
nas leis complementares (14 e 20), “este vazio
tem de ser preenchido pela legislação estadual
sobre o assunto, uma vez que a maioria dos es-
tados não assumiram de maneira mais efetiva, as
responsabilidades metropolitanas”. O documento
reiterou que

“as disparidades entre as regiões metro-


politanas são tão marcantes (...) mesmo
entre aqueles [Estados] de maior dimensão
e adiantado processo de conurbação (Rio e
São Paulo), que tentativas de detalhamento
da legislação a nível federal tenderá a gerar
mais entraves do que benefícios” 22.

Apesar da retórica, é possível constatar que ain-


da que não tivesse havido um detalhamento da
legislação pelo órgão federal, o Rio não obteve
essa liberdade para escolha de um modelo. O
organismo metropolitano, em sua concepção,
contou com o acompanhamento direto da CNPU,
antes mesmo de instituído o novo Estado.

Isso explica porque ainda em julho de 1976 as me-


tas estabelecidas pela CNPU às regiões metropo-
litanas girassem em torno da implantação “de fato”
dos organismos metropolitanos, como conselhos
e órgãos técnicos de apoio a este projeto, Regiões
estas que haviam sido criadas em junho de 1973,
pela Lei Complementar n° 1423. Enquanto isso, a
RMRJ, criada um ano depois, já havia contado com
a “assessoria especial” da Comissão nos primeiros
meses de 1975, antes mesmo de efetivada a fusão,
apresentando a essa altura uma gestão metro-
politana mais consolidada.

Esse mecanismo solidifica o novo Estado do Rio


de Janeiro como um laboratório dos anseios cen-
tralizadores que foram explicitados pelo governo

21. BRASIL, Programação...,15 de setembro de 1976,


Anexo, p. 1.
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica 22. Idem – Grifos nossos

426 23. BRASIL. Relatório..., 15 de setembro de 1976, p. 1.


Geisel por meio do II PND. Embora a tônica do sidência da República sobre os órgãos Estaduais.
Plano quanto à questão urbana fosse investir num O II Plano Nacional de Desenvolvimento, publicado
caráter descentralizador das Regiões Metropoli- em dezembro de 1974, portanto meses após a sua
tanas do país no sentido de favorecer outras cida- criação, consagrou, nesse caso, a relevância da
des do sistema, a forma como se deu o processo noção de planejamento integrado entre os entes
de fusão é bastante elucidativo de um interesse federais e estaduais.
específico do governo Geisel por essa Região.
Com a implantação das Regiões Metropolitanas
A historiografia sobre o tema entende que com em 1973, o governo federal obteve o álibi que pre-
a fusão houve uma tentativa de mudança do es- cisava para realizar, enfim, a fusão dos Estados
pectro político e quebra de antigas oligarquias do do Rio de Janeiro e da Guanabara, executada em
MDB24, que comandavam o Estado da Guanabara tempo recorde. Somente num governo autoritário
desde que fora implantado o bipartidarismo.25
todas essas ações seriam possíveis e passíveis de
Complemento essa visão afirmando que a estraté-
serem executadas em tão curto período de tempo.
gia utilizada para tal foi exatamente a de obter um
controle maior sobre o território, tendo como jus- Nesse contexto, a Comissão Nacional de Regiões
tificativa a criação da Região Metropolitana do Rio Metropolitana e Política Urbana foi a ferramenta
de Janeiro. Nesse sentido, embora a instituição imprescindível para esta incursão. A partir das
das Regiões Metropolitanas tenha se mostrado diretrizes estabelecidas pelo órgão, a União teve
relevante do ponto de vista do Desenvolvimento
participação ativa nas transformações econômi-
Urbano, o papel exercido pela CNPU se mostrou
cas que o II PND buscava implementar no novo
essencial para a execução da fusão.
Estado. Ademais, esse processo alimentou ainda
um segundo circuito, viabilizado pelo planeja-
mento integrado, que buscou no corpo técnico
Considerações fInais a solução para impasses políticos.

O SERFHAU foi o primeiro órgão criado pelo go-


verno autoritário para pensar a questão urbana
após 1964, demonstrando que o planejamento era
também um conceito caro ao comando militar. A
extinção do Serviço, em 1975, é um importante
indício da efetividade da CNPU como novo espaço
para se debater a Política Urbana nacional.

O panorama mundial e os interesses próprios do


governo federal convergiram para a efetividade do
órgão. Assim, a Comissão foi capaz de consolidar
a questão metropolitana, reiterando a força cada
vez maior da Secretaria de Planejamento da Pre-

24. O novo Estado continuou a ter na Assembleia Legislativa


uma maioria de emedebistas e, sobretudo, de chaguistas.
Chagas Freitas retornou como o primeiro governador eleito
em 1979 para comandar o novo Estado (ainda que indire-
tamente), voltando a possuir o poder, mesmo com a fusão
consolidada. A FUNDREM teve seu fim decretado em 27 de
junho de 1989, pelo Decreto Estadual 13.110.

25. Para mais, ver trabalhos de Américo Freire, Carlos Edu-


ardo Sarmento, Marieta Moraes Ferreira, Mário Grynzspan
e Marly Motta.
EIXO TEMÁTICO 1 REFERÊNCIAS
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
BRASIL. CNPU/IPLAN - 015/75, 06 de janeiro
de 1975. (Fundo SEPLAN-PR – Arquivo Nacio-
nal).

BRASIL. CNPU - 359/1975, 23 de julho de 1975.


(Fundo SEPLAN-PR – Arquivo Nacional).

BRASIL. Decreto n° 59.917, de 30 de dezembro


de 1966.

BRASIL. Decreto nº 74.156, de 06 de junho de


1974.

BRASIL. Lei Complementar nº 14, de 08 de


junho de 1973.

BRASIL. Lei Complementar nº 20, de 1º julho de


1974.

BRASIL. Programação do Seminário sobre a


Implantação das Regiões Metropolitanas, 15 de
setembro de 1976. (Fundo SEPLAN-PR – Arquivo
Nacional).

BRASIL. Relatório de Acompanhamento CNPU-I-


PEA / SEPLAN-PR, 15 de setembro de 1976. (Fundo
SEPLAN-PR – Arquivo Nacional).

BRUM, Mário Sérgio. “‘Irregular, ilegal e anormais’:


o estigma como política de Estado e a remoção das
favelas no Rio de Janeiro pelo CHISAM (1968 -1973)”.
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EIXO TEMÁTICO 1 RESUMO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
O arquiteto Mallet-Stevens é ainda pouco estu-
dado no Brasil, e a sociedade UAM (União dos
vídeo-pôster Artistas Modernos), fundada na França, coe-
taneamente ao CIAM (Congresso Internacional
de Arquitetura Moderna) é menos conhecida
A PARTICIPAÇÃO DE por nós, ainda. No entanto, essa associação,
fundada para divulgar o trabalho de arquitetos,
LE CORBUSIER E DE decoradores e demais profissionais ligados ao
desenvolvimento de móveis, objetos, tecidos,
MALLET-STEVENS NA luminárias etc, teve um importante papel na
disseminação de um modo de viver moderno.
FUNDAÇÃO DO CIAM E DA Pode-se dizer que dela participaram os mais
importantes nomes da modernidade na França.
UAM, DUAS ENTIDADES Le Corbusier e Mallet-Stevens, dois renomados

COMPLEMENTARES arquitetos franceses precursores do moderno


na arquitetura, foram também os principais ide-
alizadores respectivamente do CIAM e da UAM. O
artigo aborda a rivalidade presente entre esses
THE PARTICIPATION OF LE CORBUSIER AND MALLET-
dois grandes arquitetos no momento na funda-
STEVENS IN THE FOUNDATION OF CIAM AND UAM,
ção das duas associações que de certa maneira
TWO COMPLEMENTARY ORGANIZATIONS
se complementam no cenário de propagação
da modernidade. Para melhor compreensão do
LA PARTICIPACIÓN DE LE CORBUSIER AND MALLET-
tema abordado, - o atrito inane entre os dois
STEVENS EM LA FUNDACIÓN CIAM Y UAM, DOS
arquitetos no tocante à fundação das entida-
ENTIDADES COMPLEMENTARIAS
des-, é pertinente uma explanação do papel da
UAM na promoção da modernidade. Apesar de
ZAKIA, Silvia Amaral Palazzi ser uma sociedade de caráter nacional, a reper-
cussão dos trabalhos divulgados pela UAM teve
Arquiteta e Urbanista, FAU-PUCCampinas; Mestre em
História do Urbanismo, CEATEC-PUC-Campinas; Doutora significância internacional, dado que Paris era a
em Arquitetura e Urbanismo, FAU-USP; Pós-doutorado capital cultural mundial. A UAM foi fundada em
FAU-USP 1929, em Paris, por um grupo de profissionais
zakia@uol.com.br que também participou da fundação do CIAM,
um ano antes, 1928, na Suíça. O engajamento
desses arquitetos modernos nas duas entida-
des demonstra a necessidade premente de mo-
bilização frente aos conservadores.

UNIÃO DOS ARTISTAS MODERNOS MALLET-STEVENS


LE CORBUSIER CIAM

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

430
ABSTRACT RESUMEN

The architect Mallet-Stevens still is not well-stu- El arquitecto Mallet-Stevens es poco estudiado
died in Brazil, and the UAM, founded in France, en Brasil, y la sociedad UAM, fundada en Francia,
concomitantly to the CIAM is even less known to junto con el CIAM nos es menos conocida. Esta
Brazilians. Nevertheless, this association, crea- asociación, fundada para promover el trabajo de
ted to disseminate the work of architects, deco- arquitectos, decoradores y otros profesionales
rators and other professionals linked to the crea- relacionados con el desarrollo de muebles, ob-
tion of furniture, objects, fabric, light fixture etc, jetos, telas, luminarias, etc., desempeñó papel
had an important role in spreading a modernist importante en la difusión de una forma de vida
way of living. One can say that the most impor- moderna. Se puede decir que participaron en él
tant figures of the modern movement of France los nombres más importantes de la modernidad
participated in this association. Le Corbusier and en Francia. Le Corbusier y Mallet-Stevens, dos ar-
Mallet-Stevens, two renowned French architects quitectos franceses de renombre que fueron los
forerunners of the modern movement in archi- precursores de la arquitectura moderna, también
tecture, were also the main idealizers of the CIAM fueron los principales creadores de CIAM y UAM,
and UAM, respectively. The paper addresses the respectivamente. El artículo discute la rivalidad
competition between these two great architects entre estos dos grandes arquitectos en el mo-
in the moment of constitution of the two associa- mento de la fundación de las dos asociaciones
tions which, in a certain way, complemented each que de alguna manera se complementan en el es-
other in the field of disseminating the modernity cenario de la propagación de la modernidad. Para
movement. To better understand the subject of una mejor comprensión del tema abordado, el
this paper, - the inane conflict between the two desgaste entre los dos arquitectos con respecto
architect regarding the creation of both organi- a la fundación de las entidades es pertinente una
zations -, it is worth explaining the role of UAM in explicación del papel de la UAM en la promoción
promoting modernity movement. Although being de la modernidad. A pesar de ser una sociedad
an organization of national character, the reper- de carácter nacional, la repercusión de las obras
cussion of the works publicized by the UAM had publicadas por la UAM tuvo importancia interna-
an international effect, given that Paris was the cional, dado que París era la capital cultural del
world cultural capital. The UAM was founded in mundo. La UAM fue fundada en 1929, en París,
1929, in Paris, by a group of professionals that por un grupo de profesionales que también par-
also participated in the creation of the CIAM, in ticiparon en la fundación de CIAM, un año antes,
1928, in Switzerland. The participation of these en 1928, en Suiza. El compromiso de estos arqui-
modernist architects in these two organizations tectos modernos en ambas entidades demuestra
reveals the need for an urgent mobilization before la urgente necesidad de movilización frente a los
the conservatives. conservadores.

UNION OF MODERN ARTISTS MALLET-STEVENS CIAM UNIÓN DE ARTISTAS MODERNOS ARTISTAS


LE CORBUSIER MALLET-STEVENS CIAM LE CORBUSIER
EIXO TEMÁTICO 1 A UNIÃO DOS ARTISTAS MODERNOS
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
UMA QUERELA NA GÊNESE DE SUA FUNDAÇÃO

vídeo-pôster
A União dos Artistas Modernos foi criada a partir
do conflito instaurado entre artistas, arquite-

A PARTICIPAÇÃO DE tos e decoradores modernos e a organização


do Sociedade dos Artistas Decoradores1 (SAD)
LE CORBUSIER E DE por ocasião da exposição anual que a entidade
organizava em 1929.
MALLET-STEVENS NA No ano de 1928, um grupo de criadores modernos
FUNDAÇÃO DO CIAM E DA - Charlotte Perriand, René Herbst e Djo-Bougeois,
solicitam à organização do evento promovido
UAM, DUAS ENTIDADES anualmente pela SAD, o Salão de artistas deco-
radores2, um espaço comum para a apresentação
COMPLEMENTARES de trabalhos vinculados ao viver moderno. O es-
paço de caráter modernizador idealizado por eles
apresentava Perriand no desenvolvimento de uma
THE PARTICIPATION OF LE CORBUSIER AND MALLET- sala de jantar, Herbst, com o fumoir, Djo-Bour-
STEVENS IN THE FOUNDATION OF CIAM AND UAM, geois com a sala de estar e a cozinha, e, ainda
TWO COMPLEMENTARY ORGANIZATIONS Jean Fouquet e Gérard Sandoz com acessórios
e jóias, Jean Puiforcat com peças de ourivesa-
LA PARTICIPACIÓN DE LE CORBUSIER AND MALLET- ria e Jean Luce com um conjunto de louças. O
STEVENS EM LA FUNDACIÓN CIAM Y UAM, DOS grupo, que segundo Perriand, se auto intitulou
ENTIDADES COMPLEMENTARIAS “a união de choque”, era, de fato, um movimento
de vanguarda formado por jovens criadores que
se uniam para divulgar trabalhos consagrados à
produção industrial, transmitindo o valor e a im-
portância da ligação arte-indústria3. Defendiam
uma nova concepção espacial interior, mais aberta
e integrada, despojada e luminosa. O mobiliário
era produzido com tubos metálicos, experiência,
iniciada por Perriand desde 19274, sinônimo de

1. Sociedade fundada em 1901 por grupo de profissionais


franceses vinculados à decoração com o objetivo de pro-
mover no cenário nacional e internacional o fruto de seus
trabalhos. A partir de 1904 a sociedade começou a promover
um evento anual, o Salão dos artistas decoradores.

2. O número de espaços apresentados no Salão aumentava


ano a ano e respectivamente o público também. Em 1927
eram trinta espaços, em 1928, quarenta e cinco e em 1929
cinquenta e cinco.

3. “ On ne parle pas encore d’ésthetique industrielle, mais la


production de masse d’objets usuels et de mobilier est l’un
des objetifs des créateurs modernes.” (BARRÉ-DESPOND,
16º SHCU 2018, p.40).
30 anos . Atualização Crítica
4. Perriand apresentou no Salão de Outono de 1927, “Bar sous
432 le toit”, conjunto de mobiliário metálico que desenvolvera
simplicidade e funcionalidade.5 O grupo, “união como de cisão entre os “antigos” - os tradiciona-
de choque”, logrou grande êxito na exposição, listas e conformistas da SAD -, e os “modernos”
tanto com o público quanto em relação à crítica. e revolucionários da UAM. No entanto, existem
Entusiasmados com o sucesso, para a exposição nuanças no debate, que o presente artigo não
de 1929, solicitaram um espaço ampliado e nova- pretende aprofundar.
mente em conjunto. No entanto, a organização
da SAD recusou-se a aceitar a demanda de um A primeira lista de membros da UAM era composta,
espaço único para o grupo. Como consequência na maioria, por dissidentes da SAD: Pierre Barbe
da intransigência da SAD, vários dos colegas expo- (arquiteto), Louis Barillet (mestre vidraceiro), Jean
sitores dessa vertente modernizadora resolveram Burkhalter (decorador), Joseph Csaky (escultor),
deixar a sociedade expressando ruidosamente Sonia Delaunay (tecelagem), Jean Fouquet (jóias),
sua insatisfação. Foram eles: Perriand, Herbst, Eillen Gray (decoradora), Robert Lallemant (ce-
Djo-Bougeois, Fouquet, Sandoz, Puiforcat e uma ramista), Jacques Le Chevallier (decorador), Le
leva de adeptos: Louis Barillet, Jean Burkhalter, Corbusier (arquiteto), Pierre Jeanneret (arqui-
Pierre Chareau, Hélène Henry, Francis Jourdain, teto), Pierre Legrain (decorador), Pablo Manes
Robert Lallemant, Hélène de Mandrot, Jan e Joel (escultor), Gustave Miklos (escultor), Charlotte
Martel, Jean Prouvé, Sonia Delaunay, Margherite Perriand (decoradora), Jean Prouvé (serralheiro),
Steinlen, Raymond Templier, Jacques Chevallier Jean Puiforcat (ourivesaria), André Salomon (lu-
e Robert Mallet-Stevens. Esse acontecimento minotécnica), Gérad Sandoz (jóias). Completaram
causou um esvaziamento significativo para a SAD. essa lista, logo em seguida, os irmãos escultores
Nesse ínterim, após algumas reuniões, o grupo Jan e Joel Martel e Étienne Cournault, decorador.
insatisfeito decide, sob a batuta de Mallet-Ste-
vens, fundar uma nova sociedade de artistas, de Uma nota manuscrita precisava os objetivos da
arquitetos, de decoradores e demais profissio- nova associação: agrupar artistas de afinidades
nais, engajada na disseminação de um modo de de tendência e espírito, a fim de reunir esforços
habitar e viver moderno, apropriado ao tempo e assegurar a manifestação do grupo mediante
presente. Fundaram, assim, a UAM, em 15 de maio uma exposição internacional anual em Paris e de
de 1929, a partir de uma assembleia constitutiva, um boletim de propaganda. Para o grupo dissi-
cuja sede social era o próprio endereço residencial dente tratava-se de afirmar uma nova proposta.
de Hélène Henry. Eles entendiam que o SAD estava vinculado aos
trabalhos decorativos luxuosos direcionados ex-
Deve-se, no entanto, salientar que nesse inters- clusivamente à elite e, que estes eram indiferen-
tício ocorria também a exposição anual do Salão tes às novas necessidades do homem do tempo
de Outono de 1929, no qual, Perriand ao lado de presente. O grupo se propunha revolucionário,
Le Corbusier e Jeanneret expõem, pela primeira pretendia atuar para homens de seu próprio tem-
vez, o mobiliário desenvolvido como Equipamento po, afirmando o papel dos criadores em defesa
de uma casa. de uma produção em massa. A UAM era, no dizer
de Barré-Despond6, uma plêiade de inventores do
O primeiro comitê diretor da UAM era composto cotidiano que procuravam expressar uma arte de
por Hélène Henry, René Herbst, Francis Jourdain, viver em conformidade à época.
Robert Mallet-Stevens e Raymond Templier, se-
cretário da associação. Os dissidentes da SAD Na realidade, a maioria dos arquitetos modernos
denunciavam seu conservadorismo e anunciavam da época, necessariamente, exercia um papel po-
como justificativa pela ruptura que a arte moderna lítico em defesa da causa moderna, com variações
era efetivamente uma arte social. gradativas de envolvimento. Muitos deles crédulos
na revolução social pela arquitetura, outros em
O evento, grosso modo, pode ter sido considerado busca de conciliar expressões plásticas modernas
aos novos padrões de vivência urbana.
para seu próprio apartamento parisiense. Obteve com a
exposição um grande sucesso. A UAM assemelhava-se a uma cooperativa que

5. Sobre a querela entre grupo de Perriand e o SAD vide:


TAJAN, 2018, p.21. 6. BARRÉ-DESPOND, 2018, p.120.
EIXO TEMÁTICO 1 reunia variada gama de profissionais a serviço
de uma estética moderna. A par da defesa de
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO uma estética moderna, a associação promovia
comercialmente o trabalho de seus membros:
arquitetos, decoradores, criadores de mobiliá-
rio, de jóias, de luminárias, de tecidos, artistas
gráficos, escultores, ceramistas e inclusive um
engenheiro em luminotécnica, André Salomon.7

Mallet-Stevens, conhecido homem de ação e de


relações, encabeça o comando da sociedade8,
como presidente (Figura 1).

Figura 1: Cartão de apresentação da União dos Artistas


Modernos, Clube Mallet-Stevens. Fonte: BARRÉ-DESPOND
(2018, p.120).

Na realidade, o núcleo principal da UAM era com-


posto essencialmente por profissionais que já
haviam trabalhado em parcerias com Mallet-S-
tevens, desde o início da década de 1920.

Em 1923, no desenvolvimento do projeto da Vila


Noailles, Mallet-Stevens convidou inúmeros pro-
fissionais, que atuando numa síntese das artes,
realizaram diversos trabalhos para a residência,
entre eles Gabriel Guévrékian (jardim cubista),
Jacques Lipchitz (escultura), Pierre Chareau
(mobiliário), Louis Barrilet (vitrais), Van Doesburg
(decoração de interiores da sala de flores- policro-
mia), Djo-Bourgeois (mobliliário), Francis Jourdain

7. André Salomon engenheiro que se dedicava a nova disci-


plina de luminotécnica. Salomon realizou inúmeros traba-
lhos em conjunto com Mallet-Stevens, a salientar os projetos
16º SHCU de iluminação para as lojas Cafés du Brésil. (1929-1930).
30 anos . Atualização Crítica
8. O “grupo de Mallet-Stevens” era como os membros da
434 UAM foram denominados nos seus primórdios.
(mobiliário), Henri Laurens (vestíbulo), Eillen Gray em tendência e espírito. Nada mais aprofundado
(tapeçaria), Raul Dufy (tecelagem), Perriand (mo- foi mencionado nessa ocasião.
biliário). Pode-se dizer que o canteiro de obras
da Villa Noailles foi o ponto inicial de colabora- O ingresso à UAM era rigoroso: os admitidos, via
ções que se estenderam por toda a década. Aliás, de regra, eram escolhidos pelos próprios mem-
Mallet-Stevens tem como marca a colaboração bros mediante convite. A recusa de apenas dois
reincidente de colegas que compartilhavam uma membros era suficiente para rejeitar o postulante
concepção de modernidade. ao ingresso à UAM. Dessa forma, buscava-se o
predomínio de uma unidade de ideias: artistas
A partir de 1926, quando Mallet-Stevens inicia sensíveis à beleza de seu próprio tempo presen-
as obras das residências situadas na rua de seu te, ao despojamento ornamental, em repúdio ao
próprio nome, em Paris, essas colaborações se ornamento pelo ornamento e dispostos utilizar
intensificam. Um grupo de profissionais amigos novas tecnologias e novas práticas – industriais,
vai atuar de maneira contínua nas obras do ar- neste caso.
quiteto, entre eles: Guévrekian, Jourdain, Cha-
Num primeiro momento era intenção dos mem-
reau, Perriand, Prouvé, os irmãos Martel, André
bros afirmar suas posições em defesa de uma
Salomon, Barillet, Fernand Léger, Hélène Henry,
modernidade e alavancar suas carreiras indivi-
Le Chevallier, por exemplo. A maioria deles in-
duais por meio da realização de exposições e de
gressariam na UAM.
publicações. A UAM atuava como uma vitrine para
Importante salientar que a fundação da UAM coin- seus membros.
cide com a crise econômica de 1929, quando todos
Em 1934, depois de alguns anos de existência, é
esses profissionais são afetados pela falta de publicado o manifesto intitulado “Pela arte mo-
clientela. E, portanto, a associação teria um im- derna, o contexto da vida contemporânea”, escrito
portante papel de divulgação dos seus membros, por Louis Chéronnet9, jornalista atuante na defesa
com intuito de atrair novos clientes. Nesse curto de tendências modernas, expressando o ideário
período de tempo, Le Corbusier conclui a Vila da entidade.
Savoye, Mallet-Stevens, conclui a Vila Cavrois e
Chareau, a Maison de verre. Três obras emblemáti- Esse documento, cuja apresentação foi realizada
cas da arquitetura moderna que encerravam para na casa de Mallet-Stevens, em cerimônia10, que
seus respectivos arquitetos um período profícuo reuniu os membros da UAM com preleção de Jean
de obras. Carlu11, explicitava de maneira clara os objetivos
da associação: defender e propagar valores da
O contexto sócio-econômico e político do período modernidade. Ser do seu próprio tempo impunha
entre-guerras também deve ser mencionado, pos- novos princípios estéticos incentivando possi-
to que o engajamento político de vários artistas bilidades de fabricação industrial. Uma arte de
e arquitetos na formação de associações, quer caráter social, para as massas. Para tanto, era
seja como a UAM ou o CIAM tem grande relevância também necessário educar o público para o gosto
no que diz respeito aos objetivos das instituições pela arte moderna12.
fundadas.
Na alocução, Carlu comenta:

9. Crítico e redator chefe do periódico Art et décoration.


OBJETIVOS PROPOSTOS PELA UAM
10. Cerimônia realizada em de julho de 1934.
Em 1929, como já mencionado, a primeira decla- 11. Importante artista gráfico precursor em sua área de
ração pública da UAM é uma nota endereçada à atuação.
imprensa esclarecendo ao público, aos críticos 12.Le Corbusier também entendia que cabia aos arquitetos a
e jornalistas a ruptura com a SAD e as intenções missão de educar o público. Nesse sentido seu texto “O leite
desse novo grupo de artistas modernos. Uma de cal”, publicado em A Arte decorativa (1925), apregoa que
ideia vaga e inconsistente é apresentada na con- caberia aos artistas e arquitetos a atribuição de conduzir
cepção da entidade: agrupar artistas simpáticos o debate sobre o gosto pelo moderno.
EIXO TEMÁTICO 1 Depuis quelque temps sous des formes di-
verses une campagne de presse est me-
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO née contre l’architecture et l’art décoratifs
modernes. Ces attaques semblent tantôt
dirigées au nom des principes esthétiques
traditionalistes, tantôt inspirées par de lou-
ables soucis, en apparence, d’économie
politique et sociale.

Au moment où les jeunes artistes croient


pouvoir récolter les fruits de leurs efforts
et de leurs constantes recherches, il a
paru à l’UAM, seul groupement constitué
d’artistes d’avant-garde, qu’il était de son
devoir d’entrer effectivement dans la lut-
te et de prendre la parole au nom de tous
les créateurs d’art vraiment moderne pour
refuser certaines allégations qui tendent à
égarer l’esprit du public, enfin pour affirmer
d’une façon precise, une fois dans certaines
idées, une confiance dans certains princi-
pes. (DESPOND, 2018, P.388)

Fica, pois, evidenciado nas palavras introdutórias


de Carlu e no próprio conteúdo do manifesto, a
necessidade da atuação implacável em defesa
da modernidade e, essa era a maneira como os
artistas e arquitetos encaravam o embate.

Sinteticamente, o Manifesto de 1934 principia


com ênfase na crença: “Nós achamos que a arte
deve estar em revolução permanente”. Em se-
guida emprega algumas citações de Descartes13
e Hippolyte Taine sobre o tempo presente, sobre
o espirito da época, corroborando a mesma ideia.
A partir desse prólogo, Cheronnet enumera as
recentes e virulentas críticas direcionadas à arte
moderna para, uma a uma, desconstruir a narra-
tiva negativa. Refuta todos pontos assinalados
pela crítica, a saber, de que a arte modera era:
uma representação vã de estrangeirismo; que
era escrava da máquina sendo responsável pela
morte do artesanato; que a arte moderna causa-
ria um aumento do desemprego, e que, por fim,
determinaria o fim do gosto francês.

Ao rebater cada item, o manifesto vai ao mes-


mo tempo postulando os preceitos que regem a

16º SHCU
13. “Quando se é demasiado curioso de coisas praticadas
30 anos . Atualização Crítica
nos séculos passados, é comum ficar-se ignorante das que
436 se praticam no presente.” (René Descartes)
UAM. A vida moderna impunha novos princípios No seio da diversidade de posturas sobre o moder-
estéticos adaptáveis à produção industrial para no é possível identificarmos atritos marcantes. O
atender às demandas do homem moderno. Nesse caso Le Corbusier / Mallet-Stevens parece emble-
sentido, a beleza residiria na pureza de formas. mático. Acima de divergências teóricas o peso da
Arrematando o discurso salienta: “entre o passado vaidade de Le Corbusier influiu em descaminhos.
e o futuro, nós nos esforçamos para perseguir um
programa adaptado às condições do tempo em Em 1937, Mallet-Stevens, desde sempre protago-
que vivemos. Nós amamos o equilíbrio, a lógica nista da UAM, redige como presidente da asso-
e a pureza.” ciação o texto introdutório do número especial
da revista L’Architecture d’aujourd’hui dedicada
Ainda que o discurso fosse uníssono e claro, exclusivamente à UAM. Desse texto vale retirar
imperava, de fato, uma polifonia. As tendências trechos específicos que demonstram como a
diversificadas e individualidades dos membros sociedade desempenhava seu intento, sob a dire-
eram significativas. ção de um personagem que primava pelo convívio
harmônico: ser a expressão de seu próprio tempo
No rever a fundação da UAM, percebemos com com rigor e de forma construtiva.
clareza a heterogeneidade moderna, atores múl-
tiplos de visões por vezes conflitantes. De um Lorsqu’il a peu d’années fut crée L’Union
lado, a pregação por uma arte de massas coe- des Artistes Modernes, quelque mauvai-
xistindo paradoxalmente ao fazer exclusivo para se humeur se manisfesta dans les public,
uma clientela elitizada. A contradição estava en- dans le public s’intéressant aux questions
d’art et parmi certains milieux d’artistes.
tranhada nas próprias sociedades de defesa da
(...) dès sa création, l’UAM connut une haine
modernidade.
farouche: revue, conférences s’éleverent
Era, de fato, uma modernidade multifacetada. Por contre l’art moderne avec une véhémence
um lado, encontravam-se artistas engajados po- étonnante. Car le crime consistait à vouloir
liticamente, que de forma mais radical defendiam être de son époque! Son but est de créer et
uma arte social que alcançaria uma produção em non de critiquer. Construire et non flétrir.
massa para responder às necessidades que se (...) L’UAM enfin, “marchant” toujours tout
impunham no momento de crise do entre-guerras droit, remporta une enorme victoire. (...)
(Francis Jourdain, René Herbst, André Lurçat, Per- Peut-on nié l’influence d’un Le Corbusier en
architecture, d’un Cassandre en affiches,
riand). Por outro lado, encontravam-se artistas e
d’un Legrain en relieures, d’un Chareau en
arquitetos que evocavam uma arte de seu tempo,
ameublement, d’un Barillet en vitraux,d’une
não necessariamente entusiastas da concepção
Hélène Henry en tissus d’un Francis Jour-
de produção em série, da noção de modelo ou da
dain en décoration, d’un Puiforcat en orfè-
de tipo. Estariam assim trabalhando em obras
vrerie? Et l’UAM est composé de soixante
concebidas para um indivíduo único com uma
membres, tous animés d’un même ideal.
estética de formas puras, despojadas, utilizando
Tout créateurs, chercheurs unis, une équipe
novos materiais e técnicas para satisfazer de-
de jeunes, sinon par l’âge, du mois par la
mandas próprias de um viver moderno. (Étienne
pensée. (MALLET-STEVENS, 1937,P.7)
Cournault, Jean Fouquet, Raymond Templier, Jean
Puiforcat, Hélène Henry, Sandoz, Chareau e o
próprio Mallet-Stevens).
Como explicita Mallet-Stevens, todos unidos por
O que se depreende da constelação diversificada um mesmo ideal. Também é relevante o cuidado
de artistas ligados pela UAM é que uma só moder- com o qual citou cada expoente individual entre
nidade não dá conta de explicar a complexidade os membros da UAM, apresentado o espectro
do contexto no qual viviam. Era preciso, antes diversificado de modernidades ali contidas. Em
de mais nada, lutar contra a visão tradicional e primeiro lugar cita Le Corbusier, em reverência
passadista. Não havia homogeneidade por que, de especial. No entanto, como veremos a seguir,
fato, ela seria irreal. Havia, sim, melhor dizendo, não há reciprocidade neste quesito de respeito
uma multiplicidade de tendências. ao colega.
EIXO TEMÁTICO 1 LE CORBUSIER, RIVALIDADE EXPLÍCITA
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
O mais importante personagem promotor da
vanguarda internacional, Le Corbusier, defendia
ativamente um ideal de vida coletiva com estan-
dartização do mobiliário, de concepção de equipa-
mentos mínimos, de modelos de soluções para um
homem tipo. Como enfatiza Tajan14, o radicalismo
de suas concepções e o tom moralizador, por ve-
zes profético, de seus escritos não se enquadrava
com facilidade no seio da corrente racionalista
dos membros da UAM, ainda que fosse desde o
princípio um dos membros fundadores. Le Cor-
busier colecionou atritos com vários arquitetos
modernos, e entre eles, Mallet-Stevens.

A rivalidade entre Le Corbusier e Mallet-Stevens


transparece publicamente por ocasião da expo-
sição L’architecture et les arts qui s’y rattachent15,
organizada por Mallet-Stevens, em 1924, encer-
rando o ano acadêmico do curso de graduação na
École Spéciale d’Architecture de Paris, instituição
para qual Mallet-Stevens, ex-aluno da turma de
1906, retornava como docente em uma curta in-
cursão acadêmica, de 1923 a 1924.

Neste período, Mallet-Stevens decide organizar


uma mostra com trabalhos de seus alunos e de
colegas das artes e da arquitetura contemporâ-
neas, sob forte influência do grupo De Stijl, cujo
trabalho tivera oportunidade de apreciar em Paris
quando visitou a exposição “Os arquitetos do grupo
De Stijl”, em 1923, na galeria L’Effort Moderne de
Léonce Rosenberg, evento-chave da história da
arquitetura moderna que, no entanto, teve pouca
repercussão imediata à época.

Mallet-Stevens esteve presente à inauguração


da mostra do grupo de Stijl e empolgado com os
trabalhos apresentados encontrou Van Doesburg
várias vezes durante este mesmo ano16. Nessa
época lecionava na Escola Especial de Arquitetura
e interessado pelas questões suscitadas pelos
holandeses, decide reunir numa só exposição

14. TAJAN, 2018, p.62.

15. “A arquitetura e as artes a ela relacionadas” aconteceu


entre 1º de março e 30 de abril de 1924.
16º SHCU
16. A influência das teorias do grupo De Stijl sob Mallet-S-
30 anos . Atualização Crítica
tevens emerge em sua primeira grande encomenda – Villa
438 Noailles em Hyères.
os trabalhos exibidos na galeria l’Effort Moder- alunos indignado com os trabalhos de fim de ano
ne com os de seus alunos e de outros colegas apresentados na exposição interpela o diretor
de profissão. A exposição recebeu uma atenção Trélat, que sucumbe às críticas do irado inquiri-
considerável do público e da imprensa – trazendo dor. E, desta forma, termina temporariamente a
ao conhecimento público as novas tendências da carreira de docente de Mallet-Stevens.
arquitetura.
A escola conservadora que por um breve suspiro
O público pôde compreender com clareza os pro- pôde respirar os ares da modernidade retornou
jetos, já que praticamente todos eles estavam ao caminho acadêmico do ensino à la Vignole.
expostos sob a forma de maquete. Além dos ar- “Les jeunes gens enthusiates finiront leurs études
quitetos do grupo De Stijl também foram convi- dans Vignole et le Grand Palais.” (LE CORBUSIER,
dados a participar da exposição os irmãos Perret 1924, s/p)
(Auguste e Gustave), Henri Sauvage, Tony Garnier,
Le Corbusier, Gabriel Guévrékian, pela arquitetu-
ra. Na seção de pintura e escultura participaram
Jacques Lipchitz, os irmãos Martel (Jan e Joel),
Fernand Léger e Piet Mondrian. Na seção de mo-
biliário, Georges Djo-Bourgeois, Pierre Charreau
e Francis Jourdain. Vários desses profissionais
iriam posteriormente se juntar à UAM, como já
mencionado.

A exposição acabou causando um debate entre


apoiadores e simpatizantes da nova arquitetura
e os conservadores da academia. Os projetos
expostos dos alunos eram em sua totalidade de
edificações em concreto armado, o que causou
a revolta do pai de um aluno, também arquiteto.
Formou-se o escândalo, o pai enraivecido recla-
mou junto à direção conservadora da escola que
Mallet-Stevens corrompia a juventude com suas
propostas descabidas.

Foi de Le Corbusier a defesa mais veemente deste


caso, com sua contumaz verve relatou no artigo
intitulado l’Exposition de l‘École Spéciale d’Archi-
tecture17, em L’Esprit Nouveau, todo o episódio
que culminou com a demissão de Mallet-Stevens
pelo diretor da escola impelido pela insatisfação
Figura 2: Artigo de Le Corbusier publicado na revista L‘Es-
de conservadores18. (Figura 2) O pai de um dos
prit Nouveau. Fonte: L’Esprit Nouveau n º23 (1924, p.233).

17. Cet établissement obscur et inaperçu en ces dernières


années, s’est attaché depuis peu M. Robert Mallet-Stevens
qui y répand auprès de jeunes gens pleins de vitalité, la foi
Vous l’empoisonnez, vous l’encanaillez ! Il n’aura jamais
qu’il a en un art moderne et les enseigments qu’il comprend
de commandes, voyons, avec ces histoires-là ! etc...M. Le
et qu’il aime. Donc dans cette établissement jusqu’ici obs-
Directeur de l’École qui n’était déjà pas très fixé et tremblait
cure, l’exposition fait un éclat. (LE CORBUSIER, 1924, s/p) 
par anticipation (...) a atrappé Mallet-Stevens, lui a dit que
18. “PS- Voilà ce qui est arrivé! ce qui devait arriver ! Un ça ne pouvait plus durer, qu’il fallait changer ça, revenir
monsieur qui est architecte et père de l’un des élèves de aux traditions de son honorable école. Cré Dieu! M. Trélat,
Mallet-Stevens, a surgi devant M.Trélat, le Directeur de lui, il y a avait une carrière (et de modestie encore). Malle-
l’École jusqu’ici obscure. L’architecte a brandi son parapluie, t-Stevens qui est propre et un peu fier s’en est alleé. » (LE
il a hurlé : Vous vous f... de moi ; vous voulez tuer mon fils. CORBUSIER, 1924, s/p) 
EIXO TEMÁTICO 1 Entretanto, ainda que Le Corbusier fizesse pu-
blicamente a defesa de Mallet-Stevens, nas en-
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO trelinhas, ele faz comentários pejorativos sobre
a qualidade das obras do colega, aludindo-o a um
excesso de formalismo.

C’est donc ici une manfestation d’esthétique


architecturale et il faut être heureux que
ce soit M. Mallet-Stevens qui en conduise
les destinées, cas son style est net, clair,
dépouillé et il n’a pas de ces façons de faire
du moderne en faisant naître de belles pe-
tites moulures croiseées sur des corbeilles
de fruits et de fleurs ; il est vraiment archi-
tecte ne comptant que sur les ressourves
et le moynes de l’architecture : lumière sur
prismes. Les aînés chagrins l’accuseront
d’être un ‘faiseur de formes’. On peut certes,
affirmer qu’il a l’amour des formes, et, si
l’on voulait quelque peu chicaner, on dirait
même qu’il les aime tant qu’il en met trop. 
(grifo nosso)

Esse fato demonstra um ressentimento pela já


projeção profissional de quem ele considerava
como rival. Afinal, Le Corbusier já havia sido pre-
terido por dois grandes clientes, Poiret e Noailles,
num curto espaço de tempo.

Se de um lado Le Corbusier saiu em defesa de


Mallet-Stevens, no episódio de 1924, no ano se-
guinte, foi Mallet-Stevens que o ajudou por ocasião
da Exposição Internacional de artes decorativas.
Mallet-Stevens intervém, a pedido de Léger19,
junto ao seu primo, Paul Léon, comissário geral
da exposição, para que permita a inauguração
do Pavilhão L’Esprit Nouveau, três meses após a
abertura da exposição, que acontecera em abril.
O pleito de Mallet-Stevens é atendido e o Pavilhão
é inaugurado, apesar do atraso de três meses.

Mas, dado o perfil competitivo de Le Corbusier,


a querela já estava instituída20. O artigo sobre a
exposição dos alunos de Mallet-Stevens sinaliza os
caminhos que Le Corbusier trilhará com Giedion
para afastar Mallet-Stevens da associação de

19. Fernand Léger era amigo de ambos arquitetos e, na oca-


sião, tinha colaborado com obras para os dois arquitetos,
16º SHCU tanto para o projeto da Embaixada francesa de Mallet-Ste-
30 anos . Atualização Crítica vens, como para o Pavilhão L’Esprit Nouveau de Le Corbusier.

440 20. Sobre o tema vide: LYONNET, 2005, p.80-95.


arquitetos modernos, CIAM, por ele organizada. PARTICIPAÇÃO DE LE CORBUSIER NA UAM
O caso dos clientes Poiret e Noailles, vale um breve
Apesar de seu nome constar na lista de membros
aparte. O estilista Paul Poiret, contrata Mallet-Ste-
fundadores, Le Corbusier durante os cinco primei-
vens em 1921, após consultar Perret que o indica.
ros anos da sociedade teve pouco contato com o
Le Corbusier já havia sido contratado por Poiret,
grupo, sua participação se dava, sobretudo, por
entre 1916 e 1917, para elaborar um projeto de vila
destinado à sua família, em terreno situado em intermédio de Perriand.
Bormes-les Mimosas21, mas que não foi a termo,
Até 1935, ele se valeu da sociedade exclusivamen-
permaneceu nos esboços22. Le Corbusier também
te aproveitando as exposições anuais para pro-
foi preterido em favor de Mallet-Stevens no caso
mover seus projetos recentes. E, em 1937, quando
da Vila Noailles e da nossa Vila Dias23.
se aproxima mais da entidade é para estrategica-
Conflitos entre os dois arquitetos vão se suceden- mente tirar proveito particular. Durante um ano,
do, por vezes, de maneira aleatória. No caso da Vila Le Corbusier tentou autorização para participar
Noailles24 e da Vila Poiret eles surgem por conta da Exposição internacional de artes e técnicas de
dos próprios clientes. Charles e Marie-Laure, em 1937, sendo hostilizado pelos organizadores. Sem
1923, recém-casados, solicitam a Le Corbusier, êxito nessa empreita, busca a aproximação com
mais conhecido pelos artigos na revista L’Esprit UAM para conseguir seu intento. Propôs que as
Nouveau que por sua arquitetura, um projeto de associações UAM, CIAM e PSN (Pintores e Esculto-
vila para o terreno que receberam de presente de res Modernos) participassem num mesmo espaço.
casamento, em Hyères. Anteriormente, pensaram Sua solicitação não foi atendida. Mas, tanto a UAM
em chamar Mies van der Rohe, mas decidem pelo como ele próprio conseguiram expor em pavilhões
franco-suiço. próprios. Além de seu pavilhão Temps Nouveaux,
apresentou, no pavilhão da UAM, algumas fotos da
No entanto, Le Corbusier parece não ter agradado Cité radieuse e alguns protótipos de cabines sa-
aos clientes que desejando uma obra moderna nitárias desenvolvidas para hotelaria, concebidas
resolvem, então, por uma terceira opção, pro- por Perriand e Jeanneret. Sua ligação com a UAM
curam Mallet-Stevens, que à época também não se torna cada vez mais distante, limitando-se a
contava com repertório extenso de obras - alguns uma única e pequena incursão em 1944, no salão
cenários para o cinema e algumas decorações de anual da entidade
interiores. Apesar disso, o arquiteto causa boa
impressão e é contratado para realizar a obra. Por essas e outras, Chareau, em reunião da UAM,
Ao término da obra, Vila Noailles era uma vitrine já questionava, em 1931, sobre qual seria a função
de síntese das artes, servindo como cenário para da UAM: “A UAM é um agrupamento de ideias ou
um documentário que os proprietários, amantes de interesses?
da sétima arte, encomendaram a Marcel L’Herbier
(1924) e, posteriormente, para o filme de Man Ray, Le Corbusier nunca mostrou grande interesse pela
Le Mystère du Château du dé, de 1928. associação liderara por Mallet-Stevens, que ao
contrário de Le Corbusier, deu mostras, ao longo
da vida, de respeito ao colega. Duas missivas25 de
Mallet-Stevens endereçadas à Le Corbusier têm
como conteúdo o convite para que participasse
de exposições que estavam sob seu comando.
21. Vilarejo na costa mediterrânea, local onde, nos dias Ambas demonstram o apreço que tinha pelo
atuais, os presidentes da república costumam passar as colega. Em fevereiro de 1935, Mallet-Stevens
férias de verão.
então, encarregado pela organização da Sala de
22. Sobre o tema vide: CINQUALBRE, 2005, p.83. Urbanismo na Exposição Universal 1935, em Bru-
23. Sobre tema, vide: ZAKIA, 2017.

24. Sobre Villa Noailles vide: (1) BRIOLLE. FUZIBET.MON- 25. Documentos do arquivo: Fondation Le Corbusier/ Cor-
NIER.1999. (2) BOUDIN-LESTIENNE. CULOT. MARE. 2016. respondance (E2 14 95 e E2 14 97).
EIXO TEMÁTICO 1 xelas, solicita a Le Corbusier sua participação26
(Figura 3). Em 1937, outra vez mais, Mallet-Stevens
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO convida o colega para enviar qualquer trabalho
que desejasse para ser exposto na exposição da
Sociedade de Artistas Decoradores, no jardim
do Grand Palais, cuja mostra estava a cargo do
próprio Mallet-Stevens.

Fatos que indicam, por parte de Mallet-Stevens,


uma relação profissional calcada no respeito e
admiração pelo trabalho de Le Corbusier. E, que
não parece ter reciprocidade, como pode-se ve-
rificar no momento de fundação do CIAM.

CIAM E LE CORBUSIER

Em 1928, foi instituído o Congresso Internacional


de Arquitetura Moderna27 (CIAM – Congrès Inter-
nationaux d’Architecture Moderne), em La Sarraz,
Suiça. Entre os vinte quatro fundadores que assi-
naram a Declaração de La Sarraz28, André Lurçat,
Gabriel Guévrékian, Le Corbusier, Pierre Chareau e
Pierre Jeanneret, figuravam como representantes
da França. Le Corbusier, como organizador na
França, e Giedion, na Suíça.

26. Precisamente em 1935, na exposição Internacional de


Bruxelas Jeanneret, Le Corbusier, Perriand, Léger, Herbst e
Sognot colaboram com a desenvolvimento de projeto de in-
terior de um apartamento destinado a um jovem homem mo-
derno. (La Maison du jeune homme), de 63 m², composto de
sala de estudos, sala de esportes, exemplificando suas ideias
de racionalização na organização espacial de interiores.

27. Aconteceu entre os dias 25 e 29 de junho de 1928 no


Castelo La Sarraz, propriedade de Hélène de Mandrot, o
Congresso Preparatório Internacional de Arquitetura Mo-
derna, como foi designado à época.

28. A declaração de La Sarraz foi assinada em 28 de ju-


nho de 1928 por vinte e quatro arquitetos de oito países
europeus: H. P. Berlage (Holanda), Victor Bourgeois (Bél-
gica), Pierre Chareau (França), Josef Frank (Áustria), Ga-
briel Guévrékian (França), Max Ernst Haefeli (Suíça), Hugo
Häring (Alemanha), Arnold Hoechel (Suíça), Huibrecht
Hoste (Bélgica), Pierre Jeanneret (França), Le Corbusier
(França), André Lurçat (França), Ernst May (Alemanha),
Fernando Garcia Mercadal (Espanha), Gerrit Rietveld (Ho-
landa), Alberto Sartoris (Itália), que também assinou por
Carlo Rava (ausente), Hans Schmidt (Suíça), Mart Stam
16º SHCU
(Holanda), Rudolf Steiger (Suíça), Henri Robert von der
30 anos . Atualização Crítica
Mühll (Suíça), Juan de Zavala (Espanha), Hannes Meyer
442 (Suíça) e Sigfried Giedion (Suíça). (Munford, 2000, p.282)
Figura 3: carta de Mallet-Stevens endereçada a Le Corbusier. Fonte: Fondation Le Corbusier.
EIXO TEMÁTICO 1 Ainda que fora do escopo do presente artigo, cabe
ressaltar a importância da presença feminina no
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO contexto da difusão da modernidade, neste caso
a participação de Hélène de Mandrot29 (1861-1948),
amiga de Le Corbusier, que não se restringiu a ser
apenas mecenas do congresso. Na realidade, ela
participou ativamente das tratativas de organiza-
ção e escolha dos convidados para o evento. Um
evento que reuniu somente arquitetos homens foi
curiosamente patrocinado por uma mulher, que
não figurou como mera coadjuvante. O caráter
da nova mulher do século XX como formadora de
opinião parece ter contribuído significativamente
para a difusão das premissas artísticas modernas.
Pode-se dizer que a arte e a arquitetura modernas
estavam em sintonia com valores que a mulher
do século XX defendia: de maior participação
na sociedade, quer atuando profissionalmente
ou não. Uma mulher de novos gostos e hábitos,
que tem opiniões próprias. As relações de Hélène
com os modernos vão além do CIAM, ela também
participou da UAM.

Hélène, como promotora do evento, que aconte-


ceu em sua propriedade, o castelo de La Sarraz,
compartilhava as mesmas ideias do grupo fun-
dador do CIAM: a arquitetura promoveria uma
reforma social.

Vale citar que Hélène foi também cliente de Le


Corbusier, a quem encomendou uma residência,
Villa de Mme H. de Mandrot, Le Pradet30, em 1929.
Essa obra gerou o estremecimento da relação
entre eles por conta de problemas construtivos
que só foram resolvidos posteriormente. Apesar
disto, Hélène permaneceu uma entusiasta da
arquitetura moderna.

Curiosamente, ela também foi cliente de Chareau,

29. Sobre a relação entre Hélène de Mandrot e Le Corbusier


vide: Baudin, Antoine. Le corbusier et Hélène de Mandrot,
une relation problématique. (www.infoscience.epfl.ch/
record/114354/files) acessado em 24/04/2014.

30. A construção apresentou diversos problemas técnicos,


que estremeceram as relações entre Hélène e Le Corbusier.
Depois de concluída a obra, em 1931, a casa foi inundada
pela água das chuvas. Diante das reclamações da cliente e
amiga, Le Corbusier tergiversou, mas os inúmeros proble-
16º SHCU
mas funcionais da obra foram resolvidos posteriormente.
30 anos . Atualização Crítica
Essa querela ficou documentada pela correspondência
444 trocada entre eles.
contratando-o em 1925, quando em Paris, para um reunidos em La Sarraz, seguidores do filósofo
trabalho31 de decoração de interiores. Ele teria francês Claude Henri de Saint-Simon, tinham
sido seu primeiro mentor em relação às artes convicção da relevância de seus atos como per-
modernas. O apoio de Hélène à causa moderna sonagens de vanguarda.
também foi materializado com uma inserção práti-
ca esporádica na concepção de móveis e tecidos. O CIAM é fundado sob organização de Le Cor-
busier, que estabeleceu o programa afixado à
Esse exercício prático lhe rendeu o convite para entrada com os seguintes dizeres: “Il faudra in-
participar da primeira exposição da UAM, em 1930. sister sur le fait de demeurer dans le domaine
Vale lembrar que, em 1929, como relatado ante- technique, social et économique. Le domaine
riormente, Hélène fez parte do grupo dissiden- esthétique est exclu!”
te32 da SAD que fundou a UAM, no entanto, ela só
participou da primeira exposição da UAM que foi E, o intratável Giedion, voz de Le Corbusier, se
realizada em 1930, no Pavilhão de Marsan, entre 11 encarrega de excluir Mallet-Stevens do CIAM, uma
de junho e 14 de julho. Apresentou tecidos de sua vez que Le Corbusier o considerava um forma-
concepção produzidos artesanalmente. lista. No entanto, entre os membros da sessão
francesa do CIAM, constituída em setembro de
Para encerrar o episódio, pode-se dizer que Hélè- 1929, encontram-se os seguintes associados da
ne desempenhou publicamente papel proeminen- UAM: Barbe, Chareau, Le Corbusier, Jeanneret,
te de difusão do ideário moderno da arquitetura, Guevrekian, Lurçat e Moreux.
ainda que, no âmbito privado, seu modo de viver
não correspondesse às proposições espaciais Uma ilustração do artista Pierre Zénobel que
modernas, atestadas pela receptividade negativa consta do Livro de Hóspedes do castelo La Sarraz,
em relação à encomenda de Chareau, primeira- de 1927, traz os nomes dos arquitetos da moder-
mente, e à de Le Corbusier, a posteriori. Essa dico- nidade: Le Corbusier, Jeanneret, Mallet-Stevens,
tomia parece ser uma constante neste momento Rietveld, Chareau, Lurçat, Gropius, Dudok. À ex-
histórico: uma empolgação com a modernidade e, ceção de Mallet-Stevens e Willem Dudok, todos
ao mesmo tempo, uma dificuldade em vivenciar eles seriam representantes do CIAM (Figura 4).
as novas proposições espaciais oferecidas pelos
arquitetos modernos. O conforto propiciado por O artigo sobre a exposição dos alunos de Malle-
novos aparelhos domésticos é facilmente aco- t-Stevens, de 1924, sinaliza os caminhos que Le
lhido, no entanto a aceitação da praticidade e da Corbusier trilhará com Giedion para afastar Malle-
assepsia dos ambientes modernos demandava t-Stevens da associação de arquitetos modernos,
uma mudança comportamental de longo prazo. CIAM, por ele organizada.
Desfazer-se de “bibelots” não é tarefa simples.

Ainda em relação à fundação do CIAM, em La


Sarraz, sabe-se que a nata da arquitetura fun-
cionalista europeia estava ali presente. Segundo
o historiador Munford33, os modernos arquitetos

31. A obra de Chareau teria ocasionado o primeiro conflito


entre sua adesão a um modelo arquitetural inovador e di-
ficuldade de adaptação a ele. society in the early nineteenth century. Saint-Simon believed
that developments in industry and in the scientific unders-
32. Vide lista dos dissidentes apresentada nas páginas 1 e 2.
tanding of human history and society were making possible
33.“CIAM was deliberately intended to create an avant-garde a new social system based on universal human association.
within the new, anti-traditionalist architecture that began to A former soldier, Saint-Simon argued that artists, whom he
develop in the early twentieth century. Its innovations had his- defined broadly as ‘men of imagination’, would serve society
torical links to many earlier efforts to reform society through as its ‘avant-garde’, the forward part of an advancing army.
architecture. Its overall inspiration can best be understood in Saint-Simon’s influential combining of scientific analysis with
relation to the ideas first put forward by Count Claude Henri political and artistic radicalism inspired many later ‘avant-
Saint-Simon (1760-1825), a French philosopher and student of -gardes’, including CIAM”.(MUNFORD, 2000, p.2)
EIXO TEMÁTICO 1
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO

Figura 4: Ilustração do artista Pierre Zénobel, Livro de


hóspedes La Sarraz, 1927. Fonte: Baudin (2005, p.151)

Em 1928, na monografia Bauen in Frankreich,


Giedion analisa a recente inaugurada rua Mallet-
-Stevens, sobre a qual tece severas críticas en-
fatizando o formalismo e a monumentalidade que
segundo ele não se enquadravam nas premissas
do que se buscava como moderno.

O historiador Becherer analisa em minúcias a


colérica crítica de Giedion acerca da obra de Mal-
let-Stevens. “Sigfried Giedion was Mallet-Stevens’
most noteworthy critic. In Bauen in Frankreich
(1928), he attacked the Rue Mallet-Stevens assert-
ing, ‘No building conceived with an emphasis on
luxury and limitlessness can today maintain any
meaning whatsoever in the history of architecture’.
(BECHERER,1981, p.44)

No mesmo ensaio, Becherer compara as declara-


ções de Giedion sobre a rua Mallet-Stevens com
os preceitos do manifesto do CIAM, La Sarraz. Os
conceitos de espaço mínimo, de racionalização
e estandardização da construção e de obsoles-
cência do ensino nas Academias são claramente
16º SHCU expostos no manifesto do 1º CIAM e Giedion acusa
30 anos . Atualização Crítica
Mallet-Stevens de formalista tipificando a arqui-
446 tetura que pratica como acadêmica.
Da declaração de La Sarraz34 retiramos os se- tou a historiadora Roulleau-Simonnot, a escolha
guintes trechos que abordam os pontos acima intencional da fotografia resulta de uma campa-
elencados: nha direcionada contra o arquiteto. O sucesso de
Mallet-Stevens incomodava.
Item I. Economie général:
Mallet-Stevens acquiert une position incon-
4. La production la plus efficace découle de testable. Ce succès est double tranchant:
la rationalisation et de la standardisation. Mallet-Stevens devient la bête noire de Sig-
fried Giedion qui rejette sa participation aux
6. L’effondrement de l’artisanat à la suite CIAM en 1929 en argumentant du caractère
de la dissolution des corporations est un ‘trop décoratif de son oeuvre’. En 1928, Gie-
fait accompli. (...)La conception architec- dion ne laisse planer aucune équivoque en
turale jusqu’en ces derniers temps, grâce choisissant de publier une photographie du
à l’enseigmnet des académies, était inspi- chantier inachevé de la villa Poiret. Pour le
rée plus particulièrement des méthodes de critique, c’est la signature d’un échec et ce
l’artisanat et non des nouvelles méthodes choix n’est pas innocent : elle transforme la
industrielles. réalité d’un chantier stopée par la faillite du
maître d’ouvrage en laissant supposer, sans
Item IV. L’architecture et ses rapports
le dire, que Mallet-Stevens et son comman-
avec l’Etat:
ditaire fortuné étaient incapables de mener
1.Les Architectes modernes ayant la ferme un projet à terme.  (ROULLEAU-SIMONNOT,
volonté de travailler selon les principes nou- 2005, p.271) (grifo nosso)
veaux ne peuvent considérer les Academies
O intento de Giedion de impedir a participação de
officelles et leurs méthodes à tendances
Mallet-Stevens no CIAM, em 1929, é bem-sucedido.
esthétiques et fornalistes que commes des As suas justificativas para a recusa são, num olhar
institutions entravant le progrès.  presente, inconsistentes e ensejam especulações
sobre uma possível influência de Le Corbusier no
Giedion rejeita a arquitetura praticada por Mal-
caso em tela. A grande amizade entre Giedion e
let-Stevens que considera sujeita a modismos
Le Corbusier, cujas ideias dominaram os CIAMs,
transitórios.
é notória e sinaliza que Giedion teria tomado essa
In short, Giedion’s understanding of the Rue atitude surpreendente para desprestigiar o colega
Mallet-Stevens is shaded by an aversion to que Le Corbusier tomava como rival.
explicit formalism and fashion, described
Mallet-Stevens de forma diversa ao fundar a UAM,
as academic or monumental. Thus reject-
em 1929, convida Le Corbusier a participar. E, ele
ed by this influential apologist for modern
prontamente aceita e ingressa na sociedade. É
architecture, the Rue Mallet-Stevens and
fato que sua participação na sociedade durante
its architect fell increasingly from reigning
os primeiros cinco anos só existiu por intermédio
public and professional opinion. (BECHE-
de Charlotte Perriand. Um engajamento mais ativo
RER, 1981, p.45-46)
por parte dele só foi acontecer por ocasião dos
A campanha de Giedion contra Mallet-Stevens preparativos para a Exposição internacional de
envolve também a construção da Vila Poiret, so- 1937, em Paris. Mas, interessa registrar a manei-
bre a qual no mesmo ensaio de 1928, ele, Giedion, ra diametralmente oposta que Mallet-Stevens
utiliza uma fotografia da edificação inacabada tem para com Le Corbusier, a quem respeitava
para depreciar o trabalho do arquiteto explorando e admirava.
a imagem como símbolo do fracasso do autor
Na realidade, assim como o CIAM foi dominado
incapaz de levar a termo uma obra. Como salien-
por Le Corbusier, a UAM era composta por um
núcleo de criadores que trabalhavam, desde o
34. Congrès Preparatoire International d’Architecture princípio dos anos 1920, em conjunto a Mallet-S-
Moderne au Château de La Sarraz, du 25 au 29 juin 1928. tevens, compartilhando uma mesma concepção
Fondation Le Corbusier, document D-2-1-1. de modernidade. Muitos deles formaram uma
EIXO TEMÁTICO 1 equipe que repetidas vezes atuaram conjunta-
mente. O caso da Vila Noailles é uma expressão
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO evidente da maneira de trabalhar em conjunto
que Mallet-Stevens tanto estimava. Muitos desses
colaboradores tornaram-se seus amigos, como
exemplo, citamos os irmãos Martel. Como sa-
lienta Tajan: “Celui-ci avait en effet su s’entourer
d’arhcitectes, de décorateurs, d’artisans d’art et
d’artiste, qui partageaient sa conception de la
modernité et qui furent à la fois ses amis et ses
fidèles collaborateurs. » (TAJAN,2018, p.89)

É possível perceber que postura de Mallet-Stevens


diante dos colegas de profissão é antagônica a de
Le Corbusier, enquanto o primeiro parece estar
sempre buscando agregar colegas em torno de
um mesmo objetivo, e aí concluímos que o próprio
nome da sociedade por ele co-fundada ganha
relevo – União de Artistas Modernos -, o segundo
parece demonstrar em sua conduta, uma perma-
nente competição, que a depender da projeção
do seu colega, ganha ares de rivalidade.

O estrelismo de Le Corbusier o impeliu em uma


investida contra àqueles que considerava grandes
rivais, no caso de Mallet-Stevens, foi pela voz de
Giedion que se consubstanciou a desqualificação,
no caso de André Lurçat35, ele mesmo se encar-
regou de fazê-lo. O caráter prepotente e altivo de
Le Corbusier se apresenta em variados momentos
de sua carreira, ao sabor dos confrontos nos quais
se envolveu.

Em suma, todo esforço de construção de uma


narrativa depreciativa da obra de Mallet-Stevens,
realizada a quatro mãos, tendo Giedion como voz
oculta de Le Corbusier, se esfacela quando da
mera comparação com a indicação de Warchav-
chik como representante do Brasil no CIAM, tema
que será à frente abordado.

Sucesso, notoriedade, carteira de clientes dispo-


níveis num período de crise econômica, acirraram
uma concorrência, cuja gênese foi revelada a
partir da leitura depreciativa da obra de Malle-
t-Stevens por Le Corbusier. Essa mesma visão
endossada por Giedion culminou com a exclusão

35. A rivalidade entre ambos se inicia com uma disputa por


16º SHCU
uma clientela de mesmo perfil e se exacerba na fundação do
30 anos . Atualização Crítica
CIAM, tal qual aconteceu com Mallet-Stevens. Sobre a que-
448 rela entre Lurçat e Le Corbusier vide: (JOLY, 1995, p.79-90).
de Mallet-Stevens dos debates promovidos nos vchik para o CIAM.
CIAMs. Ademais, os principais historiadores in-
ternacionais vincularam a obra de Mallet-Stevens O convite de Le Corbusier à Warchavchik foi tam-
a um formalismo excessivo que atendia prepon- bém registrado pelo jornalista Ferraz em matéria
derantemente a uma clientela mundana. sobre a reunião na residência do casal Warchav-
chik oferecida ao visitante:
É relevante o resgate do episódio de indicação de
Warchavchik para o CIAM. Le Corbusier, quando de Na casa do sr. Gregorio Warchavchik,
sua visita ao Brasil, em 1929, é recebido com en- o iniciador da arquitetura nova em São
tusiasmo por uma corte de modernos tupiniquins, Paulo, reuniram-se Le Corbusier, as pin-
conhece Warchavchik, arquiteto comprometido toras Tarsila do Amaral e Anita Malfatti, o
com uma arquitetura apropriada à sua época. escultor Celso Antonio ... e outras figuras
Visita suas poucas obras na capital paulista e representativas da arte moderna paulista
quando da última obra inspecionada, residência e da nossa sociedade. (...) (Le Corbusier)
da rua Avanhadava36, identifica que o conjunto considerou que a casa da rua Santa Cruz
visto guarda similaridade com as obras de Mal- é a melhor adaptação, que até agora teve
let-Stevens. Seu comentário foi registrado pelo oportunidade de encontrar, das diretrizes
jornalista Geraldo Ferraz que acompanhava a da arte moderna de construir, na paisagem
delegação rumo às obras de Warchavchik tropical de nossa terra. (...) Le Corbusier,
compreendendo que existe um forte mo-
Daí os automóveis rodam para o alto do Pa- vimento renovador, justificado por quanto
caembu, logo atrás da avenida Angélica, viu nos poucos dias que aqui está, sugeriu
onde Gregorio Warchavchik tem uma casa uma ligação dos arquitetos de S. Paulo com
quase terminada, experiência de policromia a grande Associação Internacional de Ar-
numa habitação Standard. Le Corbusier quitetos Modernos que tem sua sede em
considera o conjunto e gosta. ” A viagem Zurich, e que realizou em La Sarraz, perto
continua pela casa da rua Mello Alves e por de Lausanne, o primeiro Congresso da Ar-
fim, chega à da rua Avanhadava: “Na rua quitetura Moderna, em 1928, o qual marcou
Avanhandava, vendo outra construção, o uma época na história da arte. O arquiteto
ilustre visitante compara os trabalhos de Gregorio Warchavchik ficou encarregado,
Warchavchik aos de Mallet-Stevens, gran- por Le Corbusier, de estudar as possibili-
de arquiteto moderno francês”. (Diário da dades dessa representação, que tornará
Noite, São Paulo, 22 nov. 1929) (grifo nosso) efetiva uma íntima ligação com as correntes
modernas na Europa, já vitoriosas em sua
Ora, em primeiro lugar, cabe enfatizar que o pró- reação contar a arquitetura do passado.
prio jornalista revela conhecer o arquiteto Mallet- (Diário da Noite, São Paulo, 30 nov. 1929).
-Stevens, que era no Brasil, daqueles tempos, um (grifo nosso)
arquiteto de reconhecida notoriedade37.
Indicação de Le Corbusier a Giedion, significava
Mas, o curioso da visita de Le Corbusier às obras, ingresso garantido. E, assim se fez. Seguiu-se
está nas entrelinhas: ao declarar similaridade os trâmites, envio de solicitação, currículo, fo-
entre as obras de Warchavchik e Mallet-Stevens, tos das obras etc. E, em 1930, Warchavchik já
Le Corbusier empresta à Warchavchik, o mesmo era membro do CIAM, representando o Brasil, na
diagnóstico crítico que apontou ao colega fran- terceira reunião que ocorreria, em Bruxelas, no
cês - formalismo desvinculado de preocupações ano seguinte. (Figura 4)
sociais, ao sabor da última tendência. E, ainda
assim, o ilustre visitante retribui sua proveitosa
estadia brasileira com uma indicação de Warcha-

36. Na leitura da obra de Warchavchik, Lira aponta outras


influências a par de Mallet-Stevens. (LIRA, 2011, p. 229-232).

37. Vide ZAKIA,2017.


EIXO TEMÁTICO 1
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO

Figura 5: Carta de Le Corbusier a Giedion, recomendando


ingresso de Warchavchik ao CIAM, 27 nov. 1929. Fonte:
16º SHCU Acervo da Biblioteca da FAU-USP.
30 anos . Atualização Crítica

450
Por outro lado, a recusa de Giedion ao ingresso REFERÊNCIAS
de um dos maiores representantes da jovem ar-
quitetura moderna, Mallet-Stevens, ocultava sob BAUDIN, Antoine. “Le Corbusier et Hélène de
injustificáveis alegações interesses particula- Mandrot, une relation problématique”. Le Cor-
res. “Ce refus d’accepter un architecte, reconnu busier. La Suisse, les suisses. Paris: Éditions
comme l’un des représentants les plus significatifs de la Villette, 2005.pp149-165.
de la jeune architecture moderne française, a
rejeté, pour un temps, Mallet-Stevens dans les BARRE-DESPOND, A. UAM Union des Artistes
Modernes. Paris: Éditions du Regard, 1986.
oubliettes du Mouvement Moderne. » (BARRÉ-
(2ªed) 2018.
-DESPOND,1986, p.461-462)
BECHERER, R. “Monumentality and the Rue
Na abordagem apresentada sobre fundação das
Mallet-Stevens” in: Journal of the Society of
duas associações tentou-se revelar que para além Architectural Historians, vol. 40, nº1, mar., 1981.
da rivalidade entre colegas representantes de (www.jstor.org/stable/989613 acesso em 19-
uma modernidade multifacetada, a construção 03-2018)
historiográfica operativa desenvolvida neste caso,
sobretudo, por Giedion, contribuiu para o eclipsar BOUDIN-LESTIENNE, S. CULOT, M MARE,
de Mallet-Stevens, enquanto arquiteto moderno. A. Rob Mallet-Stevens, itinéraires Paris-
Burxelles- Hyéres. Bruxelles: AAM éditions,
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2017.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

452
453
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
EIXO TEMÁTICO 1 RESUMO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Este artigo apresenta os primeiros resultados
da pesquisa que aborda a recepção das obras
vídeo-pôster de Françoise Choay no Brasil. Será priorizado
o livro A alegoria do patrimônio (publicado no
Brasil em 2001), o primeiro em que Choay se de-
APROXIMAÇÕES AO bruça sobre a questão da salvaguarda de bens
culturais. A estrutura do texto e a sua narrati-
PENSAMENTO URBANÍSTICO va bastante didática e encadeada no tempo, os
conceitos que traz e as suas explicações, bem
E DA CONSERVAÇÃO DE como a síntese do pensamento dos conserva-
dores mais notáveis do século XIX e início do
FRANÇOISE CHOAY XX, tornaram o livro uma referência no campo
da conservação e constitui uma obra de gran-
de interesse para a investigação dos seus sen-
APPROACHES TO FRANÇOISE CHOAY’S THINKING ON
tidos, enunciados e modos de apropriação nos
CONSERVATION AND URBAN PLANNING
trabalhos acadêmicos. Toma-se como refe-
rência Botelho e Schwarcz (2009, p. 13) para se
PENSAMIENTO URBANÍSTICO Y DE LA CONSERVACIÓN estabelecer o foco teórico para o pensamento
DE FRANÇOISE CHOAY urbanístico em circulação no Brasil, ou seja:
entende-se que existe uma “articulação tensa
RIBEIRO, Cecilia entre autor, obra e recepção”, é com essa tría-
de interpretativa que o argumento está desen-
Doutora; Bolsista PNPD-MDU/UFPE
volvido. No estudo de A alegoria do patrimônio,
ceciliaribeiropereira@gmail.com
busca-se entender a construção de suas ideias
e como essas foram recebidas e apropriadas no
PONTUAL, Virgínia
Brasil. Busca-se também verificar diferenças,
Doutora; MDU/UFPE debates e conflitos múltiplos e polissêmicos
virginiapontual@gmail.com
quando se trata do estudo das ideias, de modo a
responder: qual o entendimento de Choay sobre
a constituição do campo da salvaguarda do pa-
trimônio? Como a sua obra é enunciada na pro-
dução acadêmica?

FRANÇOISE CHOAY CONSERVAÇÃO URBANISMO


A ALEGORIA DO PATRIMÔNIO

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

454
ABSTRACT RESUMEN

The present study provides preliminary results of Este artículo presenta los primeros resultados de
research into the reception of the work of Fran- la investigación que aborda la recepción de las
çoise Choay in Brazil. It focuses on L’allégorie du obras de Françoise Choay en Brasil. Se dará prio-
patrimoine [The invention of the historic monu- ridad al libro A alegoría del patrimonio (publicado
ment] (published in Brazil in 2001), the first book en Brasilen 2001), el primero en el que Choay se
in which Choay examines the issue of preserving centra en el tema de la protección de los bienes
cultural heritage. The structure of the text and culturales. La estructura del texto y su narrati-
easy-to-follow temporal narrative, concepts and ve muy didáctica y temporal, los conceptos que
explanations present an overview of the thinking aporta y sus explicaciones, así como la síntesis
of the most important conservators of the 19th del pensamiento de los conservadores más nota-
and early 20th centuries and have guaranteed bles del siglo XIX y principios del XX, hicieron del
this book’s status as a landmark publication in libro una referencia en el campo de conservación
the field of conservation and a text of great in- y constituye una obra de gran interés para la in-
terest for the investigation of the meanings, dis- vestigación de sus significados, declaraciones y
course, and modes of appropriation of academic modos de apropiación en trabajos académicos.
works. Botelho and Schwarcz (2009, p. 13) is used Botelho y Schwarcz (2009, p. 13) se utilizan como
as a point of reference to establish the theoreti- referencia para establecer el enfoque teórico del
cal focus of urban planning theory in Brazil, ba- pensamiento urbano en circulación en Brasil, es
sed on the understanding that there is a “tense decir: se entiende que existe una “articulación
relationship between author, work and reception,” tensa entre autor, trabajo y recepción”, Es con
and to develop an argument based on these three esta tríada interpretativa que se desarrolla el ar-
interpretative perspectives. The present study gumento. En el estudio de La alegoría del patri-
examines how the ideas contained in L’allégorie monio, buscamos comprender la construcción de
du patrimoine were developed by the author and sus ideas y cómo fueron recibidas y apropiadas
how they were received and appropriated in Bra- en Brasil. También busca verificar multiples dife-
zil. It also attempts to identify the various multi- rencias polisémicas, debates y conflictos cuando
faceted differences, debates and controversies se trata del estudio de ideas, con el fin de respon-
involved in the study of these ideas, as a way of der: ¿qué entiende Choay sobre la constitución
ascertaining how Choay understands the field of del campo de salvaguarda del patrimonio? ¿Cómo
preservation of cultural heritage to be constitu- se explica su trabajo en la producción académi-
ted and the role her work plays in academic dis- ca?
course.

FRANÇOISE CHOAY CONSERVACIÓN URBANISMO


FRANÇOISE CHOAY CONSERVATION URBAN PLANNING LA ALEGORÍA DEL PATRIMONIO
THE INVENTION OF THE HISTORIC MONUMENT
EIXO TEMÁTICO 1 INTRODUÇÃO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
O presente artigo está focado na recepção da
obra de Françoise Choay no Brasil. Nesse sentido
vídeo-pôster está tomado de empréstimo o entendimento de
Botelho e Schwarcz (2009) sobre o pensamento
social brasileiro e seus intérpretes. Isto é, toma-se
APROXIMAÇÕES AO esses autores como referência, deslocando o
foco teórico para o pensamento urbanístico em
PENSAMENTO URBANÍSTICO circulação no Brasil. Entende-se que existe uma
“articulação tensa entre autor, obra e recepção”,
E DA CONSERVAÇÃO DE é com essa tríade interpretativa que o argumento

FRANÇOISE CHOAY desenvolvido está suportado (Botelho e Schwarcz,


2009, p. 13).

Françoise Choay nasceu na França em 1925, es-


APPROACHES TO FRANÇOISE CHOAY’S THINKING ON
tudou filosofia e história da arte. Iniciou sua vida
CONSERVATION AND URBAN PLANNING
profissional nos anos de 1950, como articulista e
crítica de arte, escrevendo artigos em diversos
PENSAMIENTO URBANÍSTICO Y DE LA CONSERVACIÓN
periódicos franceses. Tornou-se historiadora
DE FRANÇOISE CHOAY
das teorias das artes plásticas, da arquitetura
e do urbanismo e Professora na Université Paris
Nanterre (Paris X) e posteriormente no Centre Uni-
versitaire Expérimental de Vincennes (Paris VIII).
Atuou como professora visitante, fora da França,
em Cornell, MIT, Princeton, Politécnico de Milão,
Bruxelles, Louvain, Louvain-la-Neuve e Leuven.
Entre os prêmios recebidos, cabe destacar o de
doutora honoris causa nas universidades de Bu-
careste e Gênova, assim como o de professora
emérita da Universidade Paris VIII. Foi diretora
do Instituto Francês de Urbanismo e membro de
várias comissões de salvaguarda do patrimônio
na Europa. Nos anos de 1960, dirigiu a secção
parisiense da revista Art international, e nos anos
de 1970, a coleção Espacements na Éditions du
Seuil. Desde os anos de 1960 até hoje, publicou
diversos estudos sobre arquitetura e urbanismo,
porém não se sabe como eles foram recepciona-
dos, principalmente no Brasil.

A consulta ao levantamento da produção biblio-


gráfica de Choay, realizado por Ouahés (1999),
que consta como anexo na tese de Peixoto (2018),
permite ter uma visão melhor da sua atuação nos
diversos periódicos, quais sejam: France Obser-
vateur (1956-1961, 124 publicações), L’Oeil (1958-
1959, 15 publicações), Jardin des Arts (1960-1961, 7
16º SHCU publicações), Connaissance des Arts (1960-1962, 5
30 anos . Atualização Crítica
publicações), Art International (1960-1963, 15 publi-
456 cações), Arts de France (1963-1964, 3 publicações),
Revue d’Esthétique (1962-1969, 5 publicações), La FRANÇOISE CHOAY: REGISTROS DE SUA TRAJETÓRIA
Quinzaine Littéraire (1966-1977, 49 publicações),
L’Architecture d’Aujourd’hui (1967-1970, 3 publica- Em março de 2018, como parte da Journée inter-
ções), Urbanisme (1994-1996, 5 publicações), e em nationale du droit dês femmes (#JournéeDesDroit-
outras revistas (1958-1996, 29 publicações), tota- deFemme), foi inaugurada em Paris a Médiathèque
lizando 260 artigos escritos entre 1956 e 1996. Tal de l’Institut d’aménagement et d’urbanisme de La
exuberância de produção de artigos em periódicos région Île-de-France (IAU), nomeada de Françoise
mostra momentos distintos de sua atuação como Choay. O então diretor geral do IAU, Fauad Awada,
intelectual e que está respondendo às questões em seu discurso de inauguração dessa bibliote-
postas no ambiente intelectual francês, e mesmo ca multimídia e para render homenagem a essa
internacional. historiadora a designou como “la grande dame de
la critique historique de l’architecture et de l’urba-
Embora os artigos publicados no período desta- nisme en France”.1 Como parte desse evento, foi
cado por Ouahés praticamente não tratem das realizada ainda uma mesa redonda, cujo tema foi
questões urbanas e do urbanismo, nas demais a obra de Choay, momento no qual os expositores
modalidades de produção bibliográfica como li- interpretaram a obra em seu conjunto, ou desta-
vros, prefácios, posfácios, introduções, verbetes caram algumas delas, de modo acentuadamente
de dicionários e enciclopédias, atas de congres- elogioso e conferindo a essa intelectual as seguin-
sos, colóquios e conferências, predominam as tes atuações: “historiadora, urbanista, crítica de
contribuições sobre o campo do urbanismo. Dada arte, editora, tradutora, [sua obra] é exemplar por
a importância para o conhecimento das cons- sua riqueza e sua diversidade”.2
truções teóricas de Choay, cabe citar os livros
por ela escritos: Le Corbusier (1960), Mark Tobey Outras buscas mostram serem poucos os autores
(1962), L’Urbanisme, utopies et réalités. Une an- que até o momento se posicionaram sobre as
thologie (1980), Dictionnaire de L’Urbanisme et de contribuições constantes nas obras de Choay. Na
L’Amenagement (com Pierre Merlin, 1988), Espa- França, cabe referência aos seguintes autores:
cements – Essai sur l’évolution de l’espaceurbain Ouahès (1999), Claude (2006), Dosse (2007), Frey
(1969), The moderncity. Planning in the 19th Century (1999, 1999a, 2001); no Brasil, tem-se uma con-
(1970), Connexions (1971), La régle et le modele tribuição recente de Peixoto (2015, 2017 e 2018).
(1980), L’allégorie du patrimoine (1992), Pour une
anthropologie de l’espace (2006), Le patrimoine 1.Disponível em https://www.institutparisregion.fr/ame-
em questions: anthologiepour um combat (2009), nagement-et-territoires/francoise-choay-historienne-
Patrimonio et globalizzazione (2012), Haussmann, -de-larchitecture-et-de-lurbanisme.html. Acessado em
conservateur de Paris (com Vicent Sainte Marie 29 abr 2020.
Guathier, 2013). 2. A Journée internationale du droit des femmes, promo-
vida pelo IAU ocorreu em oito de março de 2018. Nesse
Dentre este vasto conjunto de livros será prio- momento “Françoise Choay dont le parcours d’historienne
rizado no presente artigo o livro A alegoria do de l’urbanisme, de critique d’art, d’éditrice, de traductrice
patrimônio (publicado no Brasil em 2001), o pri- est exemplaire par as richesse et as diversité”. O mediador
meiro em que Choay se debruça sobre a questão foi o filósofo do urbano Thierry Paquot, e os expositores
da salvaguarda de bens culturais. A estrutura do convidados foram: Chris Younès -filósofo, professor da
texto e a sua narrativa bastante didática e enca- École nationale supérieure d’architecture de Paris-LaVilette
deada no tempo, os conceitos que traz e as suas e da École spéciale d’architecture -, Margareth da Silva
explicações, bem como a síntese do pensamento Pereira, professora da Faculdade de Arquitetura e Urba-
nismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
dos conservadores mais notáveis do século XIX e
Laurent Coudroy de Lille -urbanista e historiador, mestre
início do XX, tornaram o livro uma referência no
de conferências da École d’urbanisme de Paris -, e Bernard
campo da conservação e constitui uma obra de
Landau – arquiteto-urbanista. Disponível em: https://www.
grande interesse para a investigação dos seus institutparisregion.fr/amenagement-et-territoires/fran-
sentidos, enunciados e modos de apropriação coise-choay-historienne-de-larchitecture-et-de-lurba-
nos trabalhos acadêmicos no Brasil. nisme.html e https://soundcloud.com/institutparisregion/
rencontre-autour-de-luvre-de-francoise-choay. Acessado
em 29 abr 2020.
EIXO TEMÁTICO 1 Cada um traz uma abordagem distinta: ora insere
as contribuições de Choay no contexto do campo
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO do urbanismo francês, ora trata de sua trajetória,
ora de sua adesão ao pensamento estruturalista
francês.

Destaca-se a contribuição de Frey por proble-


matizar a taxonomia do urbanismo proposta por
Choay em L’Urbanisme, utopies et réalités. Une
anthologie. No artigo Généalogie du mot ‘urbanis-
me’, Frey (1999) confere a Choay o mérito de ter
disseminado para um largo público o vocábulo
urbanismo, assim como por ter enunciado que
foram os arquitetos que conferiram conteúdo
programático ao campo disciplinar.

A tese de Peixoto (2018) trata de um estudo da


produção intelectual da crítica de arte, da arquite-
tura e do urbanismo Françoise Choay. O início das
suas atividades se deu mediante a atuação como
articulista e polemista nesses campos disciplina-
res, tendo se mantido até 1996. Tal atuação é, sem
dúvida, uma permanência na trajetória intelectual
dessa intelectual. A sua suposição é de que os
escritos realizados por Choay “são fragmentos
de um percurso pessoal, mas também sintomas
de mudanças no próprio campo epistemológico,
assim como, ator de sua própria reformulação”
(Peixoto, 2018, p. 43). Ao longo do texto está mos-
trada a construção da figura pública da articulista
Françoise Choay, focando temas tratados nas
páginas de jornais e revistas seja relacionado à
escrita acadêmica, seja ao ensino e às viagens
realizadas entre 1950 e 1960. Por fim, traz uma
abordagem sobre o livro L’Urbanisme, utopies et
réalités. Une anthologie, mostrando associações
que conduziram a construção de uma teoria do
urbanismo.3

Para tecer a trama de sua tese, Peixoto articu-


la os artigos que selecionou, nem sempre com
as mesmas temáticas, para compor o seu ar-
gumento de que Choay buscava encontrar um
“horizonte comum” às práticas arquitetônicas e
as “necessidades da coletividade”, principalmente
considerando sua interlocução com Paul-Henry
Chombart de Lauwe, Guy Houist e Robert-Henri

3. As duas primeiras publicações de Peixoto (2015, 2017)


16º SHCU
são artigos: o primeiro nos anais de um evento acadêmico
30 anos . Atualização Crítica
e o segundo num periódico de circulação nacional, ambos
458 contendo resultados parciais de sua tese.
Hazemann (Peixoto, 2018, p. 86). Lévi-Strauss. Além de estabelecer uma associa-
ção com a semiologia de Ferdinand de Saussure
A ocorrência de uma inflexão no modo de criticar e Roland Barthes para dar conta de um conceito
de Choay é posta a partir das viagens, em especial, de urbanismo e dos diálogos com historiadores
à realizada a Brasília para participar do Congresso Michel de Certeau e Paul Ricœur. Como diz Peixo-
Internacional Extraordinário, em 1959, e, outra, ao to (2018, p. 213) essas contaminações, diálogos,
Japão no âmbito do Congresso Mundial de Design adoções possibilitaram uma “virada crítica e epis-
de Tóquio, em 1960. Ambas viagens resultaram temológica” no pensamento de Choay em direção
em artigos. Os escritos sobre Brasília dão conta à hermenêutica. Tais aproximações constituem
do deleite visual que a arquitetura dos palácios uma miríade de campos disciplinares como se
de Niemeyer proporcionou a Choay ao lado da o pensamento de Choay atravessasse a todos,
sua posição crítica à proposição urbanística, em ficando essa inferência como uma lacuna, a ser
especial às superquadras. melhor precisada a partir do estudo dos outros
seus livros publicados.
No Japão, Choay entra em contato com práticas
profissionais muito semelhantes, mas a possibili- Portanto, reconhecendo as significativas contri-
dade de “comparação com situações análogas” se buições à prática historiográfica de Choay alcan-
apresenta como “saídas diante da crise” (Peixoto, çadas por Peixoto verifica-se que existem lacunas
2018, p. 122). Porém essas saídas não estariam relativas não só ao pensamento urbanístico como,
nem no campo da sociologia, nem no marxismo, principalmente, às práticas preservacionistas
apropriados na França, voltando sua atenção à que essa historiadora abraçou com tanto afinco.
psicologia para pensar formas de morar que aten- Ficam em aberto tais lacunas a serem problema-
tem para as questões locais. tizadas e interpretadas, segundo outros nortes
na construção do conhecimento no campo da
A sua participação na Revue d’Esthétique propicia
história.
a aproximação com um dos diretores, o filósofo
Mikel Dufrenne, especialista em fenomenologia,
É exatamente a partir desse conhecimento que
orientador de sua tese de doutorado, defendida
Choay mostra a importância do campo da his-
em 1978. Essa aproximação teria ainda propiciado
tória para o do urbanismo, especialmente com
sua introdução ao pensamento de Heidegger.
a publicação do artigo L’histoire et la méthode
A publicação do livro L’urbanisme. Utopies et réa- em urbanisme, em 1970, na revista dos Annales.
litès. Une Anthologie, em 1965, foi considerado Cabe observar que essa publicação é posterior
pela autora da tese como um esforço intelectual à do livro L’Urbanisme, utopies et réalites. Une
na identificação de modelos. Além disso, cons- anthologie, em 1965, e adveio a partir da relação
tituiu-se, essa obra de Choay, uma opção à Carta de Choay com Michel de Certeau, então integrante
de Atenas por conter uma perspectiva socioló- dos Annales. Segundo Dosse (2004), eles manti-
gica. Cabe notar que Peixoto (2018) não elabora nham não apenas uma relação de amizade, mas
uma leitura e interpretação textual dos modelos de profunda troca intelectual. Num dos livros
constantes do livro L’Urbanisme, mas relaciona mais importantes da historiografia de Certeau, A
artigos publicados após 1965, para depreender as Escrita da História (1975, edição francesa e 1982,
bases epistemológicas constituintes dessa obra. edição brasileira), esse historiador faz referência
a Choay como especialista do espaço urbano,
Ademais, a partir de 1966, Choay aproxima-se exatamente com esse artigo que ela publicou
dos escritos dos historiadores da arte Heinrich nos Annales. Constata ainda Dosse (2004), que
Wölfflin e Erwin Panofsky, de modo a construir Certeau em diversos trabalhos escritos apoiou-se
uma abordagem que transponha os fundamentos nos trabalhos de Choay. Essa amizade e troca
das artes plásticas para o urbanismo, passando a intelectual se mantiveram profícuas para os dois
adotar mais e mais as abordagens da linguística, ao longo da vida intelectual de ambos.
da filologia, da semiótica e da antropologia.
No artigo está clara a contribuição de um campo
Não há como deixar de tratar da aproximação de ao outro, ou seja, da história aos estudos urbanís-
Choay com o estruturalismo e a antropologia de ticos. Ademais não restam dúvidas de que ela se
EIXO TEMÁTICO 1 inspirou na noção de história presente na revista
dos Annales. Como também, apresenta uma jus-
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO tificativa ao caminho adotado na construção das
concepções constantes em L’Urbanisme, à medida
que tece considerações à teoria dos modelos.

Ao focar nos modelos culturalistas e progressistas


Choay mostra que ambos têm uma atitude dife-
rente em relação à história. Ambos objetivam o
urbano. Um, o conhece por meio da informação,
do levantamento de dados sobre o passado e o
presente, mas esse passado está dissociado da
sociedade industrial. O outro advoga a “irredu-
tibilidade do presente”, liberando a imaginação
dos urbanistas (Choay, 1970, p. 1147).4 Ao mesmo
tempo em que o presentifica e libera a imaginação,
procede a uma crítica a esse modelo afirmando
que: “priva os urbanistas progressistas de uma
perspectiva crítica sobre seus próprios conceitos
[...]” (Choay, 1970, p. 1147).5 Desse modo, mas do
que revisar concepções estabelecidas, Choay
busca atualizar os fundamentos da sua teoria
dos modelos com a adoção do campo da história.
Essa apropriação pode ser bem aquilatada nas
suas próprias palavras:

“[...] a história sabe como desempenhar um papel


fundamental na pesquisa urbanística, onde teoria
e prática não podem ser separadas. De fato, se a
antropologia estrutural e a lingüística estrutural
permitem uma renovação da teoria e uma nova
visão do campo do urbanismo, é a história que
sozinha pode sustentar essa teoria” (Choay, 1970,
p. 1151).6

Com tal asserção, Choay passa a seguir uma linha

4. O texto original é o seguinte: “[...] l’attitude progressiste


s’estposéecommeruptureaveclepassé et reconnaissance
de l’irréductibilité du presente” (Choay, 1970, p. 1147). (Tra-
dução livre das autoras)

5.O texto original é o seguinte: “Mais atitude qui prive lês


urbanistes progressistes d’une perspective critique sur leurs
propres concepts [...] ”. (Choay, 1970, p. 1147). (Tradução livre
das autoras)

6. O texto original é o seguinte: “[...] l’histoire sait appelée à


jouer un rôlo fondamental dans la recherche urbanistique, où
théorie et pratique ne sont pás dissociables. Em effet, si l’an-
thropologie et La linguistique structurales permettentunre
16º SHCU
nouvellement de La théorie et une vision nouvelle du champ
30 anos . Atualização Crítica
de l’urbanisme, c’est l’histoire qui seule peut étayer cette
460 théorie”(Choay, 1970, p. 1151). (Tradução livre das autoras)
de investigação e interpretação que está presente dos quais pode-se destacar: authenticité, cen-
em artigos e livros, associando com outros cam- tre historique, Charte d’Athènes, classement (com
pos do conhecimento que serão a seguir vistos Nancy Bouché), conservation (com Jacques Hou-
para o caso do livro A alegoria do Patrimônio. let), conservation intégrée, ensemble historique
ou traditionnel, inscription (com Nancy Bouché),
inventaire, monument, monument historique, pa-
trimoine, preservation, restauration, sauvegard,
A RECEPÇÃO DE A ALEGORIA DO PATRIMÔNIO ville historique.
NO BRASIL
Outro trabalho importante para situar A alegoria
Em 2001, quando A alegoria do Patrimônio foi dentro da sua produção ou, sendo mais especí-
traduzido e lançado no Brasil, Choay já era fica, junto ao conjunto de textos em que aborda
conhecida no país pelos seus livros Urbanis- a conservação e o patrimônio, está o seu livro
mo (1979), original de 1965 e A regra e o modelo Pour une anthropologie de l’espace, de 2006, sem
(1985), original de 1980. Também já tinham sido tradução no país, em que faz uma compilação de
publicados pelo menos três artigos seus (tra- textos publicados entre 1985 e 2005, e que será
duções de artigos já publicados), em revistas abordado adiante.
nacionais: Semiologia e urbanismo, na revista
No livro A alegoria é apresentado um percusso dos
Arquitetura, do IAB (1968); Destinos da cidade
objetos de culto no tempo e no espaço, por meio
européia: séculos XIX e XX, na Revista RUA – Re-
de uma análise histórica. Nele, foram abordadas
vista de Arquitetura e Urbanismo, editada pelo
as antiguidades, os monumentos históricos
Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e
e o patrimônio histórico, diferenciando o
Urbanismo da UFBA (1996) e O reino do urbano e
entendimento de cada um dos termos, as práticas
a morte da cidade, publicado na revista Projeto
e os encontros e desencontros de intelectuais
História, do Programa de Pós-Graduação em
e Estado em torno deles. Vale destacar que o
História da PUC-SP (1999).
contexto que trata é o europeu, principalmente
O interesse e as motivações da autora pelo pa-
o francês. Também apresenta um panorama do
trimônio e pela conservação nas suas pesquisas pensamento de conservadores como Eugène
e escritos ainda precisam ser deslindados. No Viollet-le-Duc, John Ruskin, Camilo Boito, Alois
entanto, é possivel perceber que as questões Riegl e Gustavo Giovannoni, que assume um papel
relacionadas a essas temáticas aparecem na importante no livro, por trazer ao debate acadê-
sua produção só a partir de meados dos anos de mico e técnico sínteses das ideias das principais
1980. Da lista elabora por Ouahès (apud Peixoto, obras desses autores, que só foram publicadas
2018) com os trabalhos de Choay realizados entre no Brasil anos depois.
1956 e 1996, é possível destacar artigos como:
Mémoire de la ville et monumentalité (1987); Riegl, O livro está dividido em seis capítulos, que seguem
Freud et les monuments historiques (1989); Des uma ordem cronológica e são antecedidos por
divers usages du patrimoine (1992); Invention du uma introdução e finalizados com um capítulo não
patrimoine urbain: histoire et problèmes actuels numerado chamado A competência de edificar. Na
(1992); Du temple de l’art au supermarché de la introdução são definidos: monumento (construção
culture (1994); Création et patrimoine: um enjeu de que remete à memória viva, realizada com o fim
société (1996). Além dos artigos, Choay publicou de trazer algo à lembrança), monumento histórico
verbetes, prefácios, pósfácios e introduções de (resultado de uma atribuição à posteriori de sua
livros de autores importantes para as discussões construção) e patrimônio histórico (aquilo que faz
no campo da conservação, como Gustavo Giovan- reviver algo, atribuição a um bem como herança,
noni, Camilo Sitte e Alois Riegl. sujeito de uma alegoria). Essas noções já haviam
sido trabalhadas por Choay nos verbetes do Dic-
No Dictionnaire de L’urbanisme et L’Aménagement tionnaire de L’urbanisme et L’Aménagement (1988).
(1988), organizado juntamente com Pierre Merlin,
Choay foi responsável por supervisionar os ver- Dos três primeiros capítulos, o primeiro aborda o
betes relacionados às temáticas do patrimônio interesse, o estudo e a reutilização dos monumen-
(entre outras). Também elaborou 61 verbetes, tos antigos em Roma, a partir de 1420; o segundo
EIXO TEMÁTICO 1 aborda as antiguidades descobertas ou explo-
radas, conceituadas e inventariadas em outros
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO países, além do surgimento dos primeiros espe-
cialistas, os antiquários, em Londres e na França.
Já o terceiro, aborda o contexto específico da
Revolução Francesa, em que mostra destruição
e proteção como faces do mesmo processo. Com
os bens do clero e da coroa transferidos para o
Estado para se tornarem patrimônio da nação,
divididos em bens móveis e imóveis, as discussões
teóricas suscitadas estavam relacionadas ao valor
dos bens, ou o primeiro deles, o valor nacional.

Choay confere a Riegl a primazia de teorizar so-


bre os valores dos monumentos e a sua obra, O
culto dos monumentos dos modernos (1903), como
fundadora, apesar de não ter abordado o valor
nacional. A justificativa dada reforça o argumen-
to de A alegoria, pois se dá na diferença entre o
patrimônio (associado ao Estado, bem e herança,
na França) e o monumento (objeto de estudo de
Riegl), ou seja, para os franceses, no contexto da
revolução, já havia um entendimento de patrimô-
nio em uso, que após um período perdido, seria
recuperado após 1960.

O quarto capítulo, A consagração do monumento,


refere-se ao período iniciado pela publicação de
Voyages pittoresques et romantiques dans l’an-
cienne France, em 1820, em que a não renovação
dos monumentos é associada à necessidade da
sua conservação (Choay, 2001, p. 125). Surgem
também o cargo de Inspetor geral dos monumen-
tos históricos da França e as primeiras legislações
de proteção. O período é finalizado na década de
1960, pela, entre outras coisas, publicação da
Carta de Veneza (1964), quando o patrimônio as-
sume o protagonismo da conservação no campo
técnico e teórico. Nele, ganham destaque também
o contexto da industrialização como um processo
que desencadeia a percepção de ruptura com o
passado, de finitude, de transformação iminente
e de degradação urbana também.

Mesmo considerando que os processos de in-


dustrialização e o modo de interpretar e valorar
os monumentos foram distintos na França e na
Inglaterra, a autora confronta as duas experiên-
cias. As ideias de John Ruskin (o monumento é
16º SHCU o que faz lembrar, é insubstituível, não pode ser
30 anos . Atualização Crítica
reconstruído, é passível à ação do tempo e res-
462 taurar é um ato destruidor), antiintervencionista,
e Viollet-le-Duc, intervencionista (a restauração cumentos e práticas de instituições nacionais e
visa restituir o estado que talvez nunca tenha tido internacionais, principalmente a partir dos anos
o monumento) são, por vezes abordados como de 1960, quando o valor econômico ganha expres-
“tipos ideais e tendências” (Choay, 2001, p.162). são nos debates, aliado ao lazer, ao turismo e ao
consumo cultural. Como um ativo econômico, o
A autora ainda destaca que na obra de Riegl, “a patrimônio também passou a ter o seu público
análise axiológica do historiador vienense funda expandido, o aumento dos tipos contemplados
uma concepção não dogmática e relativista do (chamado de inflação patrimonial) e ser associado
monumento histórico, em harmonia com o rela- à indústria cultural. Com isso, a autora faz uma
tivismo que ele introduziu nos estudos de história crítica à alegoria que se antecipa ao objeto e dis-
das artes” (Choay, 2001, p.170). Choay traz a refle- tancia esse objeto do homem e da vida cotidiana
xão do seu artigo Riegl, Freud et les monuments e à conservação que substitui a competência de
historiques, publicado em 1989, como o cerne para edificar que, perdida, sugere que seja recuperada.
a elaboração do livro. Nele, associa as ideias de
No entanto, a competência de edificar é abordada
Riegl às do livro O mal-estar da civilização, escrito
de modo pouco claro, e a autora retoma a discus-
pelo seu conterrâneo Freud.
são sobre o termo em outras publicações como
No quinto capítulo, A invenção do patrimônio ur- no livro O patrimônio em questão: antologia para
bano, o foco é dado a Haussmann, Camilo Sitte um combate e no artigo Le concept d’authenticité
e Gustavo Giovannoni, quando as discussões a en question, curiosamente colocando “em ques-
respeito da conservação são transpostas para tão” os conceitos norteadores das práticas das
o urbano. O recorte de tempo em que essas dis- instituições internacionais.
cussões ocorrem não é o mesmo que foi dado
A autora não aprofunda o papel dos Estados e das
ao monumento. Só foi iniciado no século XIX,
suas instituições, nem das organizações interna-
tendo em vista as transformações ocorridas
cionais, como a Unesco, OEA, ICOMOS e ICCROM,
após a revolução industrial. A autora justifica
para a associação do patrimônio à indústria cul-
esse descompasso pela complexidade do tema,
que deveria contemplar a leitura do espaço e a tural, pós-1960. Embora, destaque a criação do
longa duração, além da falta dos cadastros de Ministério da Cultura na França e a Convenção
informação. Ela discorre sobre o que apresentou do Patrimônio Mundial como eventos marcantes
como três figuras da cidade antiga, que seriam para essa associação.
modos de ver, ler e interpretar essas cidades: a
Depois de A alegoria, Choay publicou outros li-
figura memorial, a histórica e a historial, sendo,
vros com a mesma temática, O patrimônio em
esta última a síntese e superação das outras e
questão: antologia para um combate, em 2009
que tem por referência as ideias de Giovannoni.
e traduzido e publicado no Brasil em 2011, além
No sexto e último capítulo, O patrimônio histórico de Pour une anthropologie de l’espace. Os três
na era da indústria cultural, Choay traz a transfor- livros têm formatos diferentes. Em A alegoria a
mação do “objeto, as formas e a natureza do culto” autora constrói a sua crítica a partir da história,
pela indústria cultural (Choay, 2001, p.206-207). destacando conceitos, práticas e ideias. Em seu
Embora não tenha mencionado, essa transfor- segundo livro, apresenta uma introdução, seguida
mação foi abertamente difundida da França para por uma antologia de textos exemplares, e no ter-
o meio técnico internacional, por instituições e ceiro, uma compilação de textos agrupados por
intelectuais como René Mahé, diretor-geral da temas, sendo um deles dedicado ao patrimônio.
Unesco, além da política cultural promovida pelo
Estado, na França. A valorização, então, é apre- A estrutura de O patrimônio em questão é
sentada sob diversos formatos: a conservação e semelhante à que Choay usou em O Urbanismo.
a restauração, a mise-en-scène, a animação cul- Essa estrutura conta com uma introdução, que
tural, a modernização, a conversão em dinheiro, se constitui numa síntese das ideias postas em A
a facilitação do acesso e a reutilização. alegoria, seguida por uma coletânea de passagens
de textos notáveis produzidos num espaço de
Ao fim, o termo patrimônio histórico ou cultural, tempo que vai do Renascimento até a Conven-
simplificado por patrimônio, é firmado em do- ção do Patrimônio Mundial, de 1972. Assim, tal
EIXO TEMÁTICO 1 como explica em nota introdutória, esse mode-
lo se assemelha aos seus programas de aula na
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO École de Chaillot, em que: “depois da exposição
teórica e das dificuldades levantadas pelo seu
caráter abstrato, os estudantes confrontaram-se
diretamente com as vozes dos testemunhos e
protagonistas dos períodos mais ou menos lon-
gínquos e com as mentalidades que não são mais
as nossas” (Choay, 2011, p.10).

Em O patrimônio em questão há um chamamento,


de caráter político, desde o sub-título “antologia
para um combate”, ao destaque dado a uma “ne-
cessária militância” e a uma “tomada de consci-
ência” (Choay, 200, p.10). Esse chamamento se
refere ao papel do especialista, do arquiteto e do
urbanista em aproximar o patrimônio (entendido
como o ambiente construído) dos habitantes,
dos que vivenciam os seus espaços, afastando
a sua ação da museificação e do cenário para o
consumo da cultura e do turismo. Nele, são mar-
cadas três revoluções: a que acontece a partir do
renascimento, e do interesse pelas antiguidades; a
revolução industrial e o surgimeno do monumento
histórico e a revolução tele-midiática, marcada
pelos anos de 1960, em que a noção patrimônio
substitui a de monumento histórico e se expande
internacionalmente, marcada pela Convenção do
Patrimônio Mundial, de 1972. A crítica à internacio-
nalização, que coincide com o patrimônio como
objeto da conservação, e à atuação da Unesco,
contemplam o patrimônio mundial e o seu valor
excepcional, embora também não se aprofunde
na crítica a este conceito, e a apresente também
somente como ponto de chegada.

Posteriormente, a autora faria outras críticas


como no texto Le concept d’authenticité en ques-
tion, bem como em Structuresidentitaires et uni-
versalité, que tratam dos critérios de avaliação
de um bem para a sua inscrição na Lista do Pa-
trimônio, a autenticidade e o valor excepcional
universal. Desses textos, o primeiro foi origi-
nalmente apresentado na Conferência de Nara,
em 1994 e publicado pelo Centro do Patrimônio
Mundial, como Sept propositions sur le concept
d’authenticité et son usage dans les pratiques du
patrimoine historique, em 1995. Já o segundo, foi
16º SHCU publicado no Cahiers de la ligue urbaine et rurale,
30 anos . Atualização Crítica
2001. Os dois estão também publicados em Pour
464 une anthropologie de l’espace.
Os textos reunidos no livro têm em comum a abor- apropriadas no Brasil. Busca-se também verificar
dagem das práticas profissionais nos espaços diferenças, debates e conflitos múltiplos e polis-
construídos e seus desdobramentos, mesmo con- sêmicos quando se trata do estudo das ideias, de
siderando que têm pontos de vista ou pontos de modo a responder: qual o entendimento de Choay
partida distintos. Outra característica que per- sobre a constituição do campo da salvaguarda
meia os textos é a sua interpretação indissociável do patrimônio? Como a sua obra é enunciada na
do presente, do que Michel de Certeau nomeou produção acadêmica?
de operação historiográfica, inclusive citado pela
autora na introdução do livro e já destacado por O levantamento de dados da pesquisa foi inicia-
autores como Peixoto (2018) como um traço mui- do pela produção acadêmica do Programa de
to marcante na produção de Choay. Os textos Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano
do livro perpassam a temática urbana, museal, da Universidade Federal de Pernambuco (MDU/
de padronização de modelos e instrumentos de UFPE), vinculado ao seu curso de Arquitetura e
modo a atender critérios da indústrial cultural, Urbanismo e dos dois programas da Universidade
do entretenimento e turismo. Federal de Minas Gerais também vinculados ao
curso de Arquitetura e urbanismo, o Programa
A crítica às instituições internacionais da conser- de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo
vação e às suas práticas e noções, à padronização (PPGAU/UFMG) e o Programa Programa de Pós-
de instrumentos, aos usos da cultura como lazer -graduação em Ambiente Construído e Patrimônio
e consumo, bem como à distância entre o homem Sustentável (PPGACPS/UFMG). O ponto de partida
que vivencia o ambiente construído e o patrimô- foram as listas das dissertações e teses forneci-
nio, são comuns nas três publicações de Choay. das pelos programas ou disponíveis nos seus sites.
Afasta a submissão a critérios padronizantes e Com as listas, foram iniciadas as pesquisas, por
da indústria cultural, e exauta o patrimonio como programa, trabalho a trabalho (o volume ou arquivo
tesouro vivo, integrado à vida. digital), e depois conferidos e complementados
os dados nos repositórios institucionais das res-
Choay não cita conservadores como Cesari Brandi
pectivas universidades.
e Muñoz Viñas, não considera questões relacio-
nadas ao patrimônio intangível, mas intercede Com essa pesquisa, foram elaboradas duas ta-
pela criatividade e capacidade de projetar para belas, uma para dissertação e outra para tese,
a vida e as pessoas e ao uso comunitário. A sua em que foram levantados: programa, ano, autor,
crítica chega com uma leitura do que os teóricos orientador, título e se há na bibliografia do trabalho
como Riegl, Sitte e Giovannoni poderiam oferecer alguma obra de Choay. Além de verificar se havia
de pistas para que essa relação se estabeleça. alguma publicação da autora na bibliografia, foi
É importante destacar que A alegoria dialoga, registrado o título da publicação e a edição (ano,
ou melhor, adota conceitos da obra de Riegl em idioma, por exemplo). Foram elencados os traba-
toda a construção do seu argumento, e a asso- lhos: O Urbanismo, A regra e o modelo e A alegoria
ciação que faz dos conceitos que trabalha com os do Patrimônio, sem deixar, no entanto, de apontar
valores, serve para diferenciá-los. O livro é uma suas outras publicações, mais raras. Assim, esses
síntese de ideias trabalhadas desde meados dos apontamentos poderiam ser usados em outros
anos de 1980 e que teveram desdobramentos em desdobramentos da pesquisa. Em seguida, foi
outros trabalhos críticos como os que abordam registrada em cada tabela se havia ou não citação
os conceitos difundidos pela Unesco. a Choay no corpo do texto.

Depois de reunidos os trabalhos que citavam Cho-


ay no corpo do texto, questões mais subjetivas
Primeiras aproximações a obra e a recepção guiaram a pesquisa, sem, no entanto, deixar de
de Fraçoise Choay atender à busca relacionada ao cerne da pesquisa:
como A alegoria foi apropriada, relacionada, ana-
Na pesquisa sobre a recepção de A alegoria do lisada, interpretada no trabalho. Com essas infor-
patrimônio, busca-se entender a construção mações, pode-se inclusive selecionar alguns pro-
de suas ideias e como essas foram recebidas e fessores, os que orientaram mais trabalhos que
EIXO TEMÁTICO 1 citam Choay, para consultas às ementas das suas
disciplinas, conversas informais e entrevistas.
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
O MDU/UFPE possui três linhas de pesquisa:
Conservação ambiental, Ambiente construído e
Gestão urbana, e dele foram elencadas 407 dis-
sertações, publicadas entre de 1978 e 2019, e
86 teses, publicadas entre 2002 e 2019. Dessas,
foram consultadas 388 dissertações e 83 teses.
No PPGAU/UFMG, foram elencadas 317 disser-
tações, defendidas entre 1997 e 2019 e 78 teses,
defendidas entre 2012 e 2019. Dessas, estavam
disponíveis para consulta 233 dissertações e 64
teses. O PPGACPS/UFMG teve a sua primeira de-
fesa de dissertação em 2007 e, desde então, já
contou com o total de 193 defesas de dissertação
e uma de tese (o doutorado é recente). Do que foi
possível acessar, foram consultadas 139 disser-
tações e uma tese. Assim, foram consultadas 148
teses e 760 dissertações, o total de 908 trabalhos.7

O livro A alegoria consta na bibliografia de 11 teses


do MDU/UFPE (cinco publicadas entre 2002 e
2010 e seis publicadas entre 2011 e 2019) e de 50
dissertações, que começam a aparecer em 1999
e também estão bem distribuídas no tempo. As
edições brasileiras de 2001 e 2006 e a edição fran-
cesa de 1992 (a primeira), são as mais citadas, mas
também constam edições italiana e espanhola.

Entre as teses que fazem citação a A alegoria


em seu texto, destacam-se duas, que prolongam
a sua análise relacionando a obra de Choay às
fontes da pesquisa, para além de uma citação
ou uma informação: Sete Cidades: um estudo de
representações sociais das cidades brasileiras
patrimônio mundial da WEB (2008), de Eliane Bevi-
lacqua Lordello dos Santos Souza (orientado pela
professora Norma Lacerda) e O turismo cultural
e as missões UNESCO no Brasil (2012), de Cecilia
Ribeiro (orientado pela professora Virgínia Pon-
tual). Também foram duas, as dissertações que
se enquadraram nesse perfil: Renovar preser-
vando: os Imóveis Especiais de Preservação no
Recife (2009), de José Nilson Pereira (orientado
pelo professor Luiz Amorim) e Monumentalidade
e tradição clássica: a obra pública de Acácio Gil
Borsoi (2013), de Amanda Rafaelly Casé Monteiro
(orientado pelo professor Fernando Diniz Moreira).
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
7. A última consulta nos sites do Repositório institucional
466 das universidades foi em março de 2020.
Do PPGAU/UFMG, foram elencadas 10 teses e 24 REFERÊNCIAS
dissertações em que A alegoria consta na biblio-
grafia. Destaca-se, dos trabalhos de tese, Olhares BOTELHO, A. e SCHWARCZ, L. (orgs.). Um enig-
sobre o patrimônio: a busca de significados da ma chamado Brasil: 29 intérpretes e um país.
paisagem (2017), de Marina Salgado (orientado pelo São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
professor Flavio Carsalade). Já entre as disserta-
ções, destacam-se: A pedra e a lei (2005) de Oscar CERTEAU, M. A Escrita da História. Rio de Ja-
de Vianna Vaz (orientado pelo professor Carlos neiro: Forense Universitária, 1982.
Antônio Leite Brandão); Repensando o patrimônio:
novos dilemas e potencialidades nas políticas de CLAUDE, V. Faire la ville: Les métiers de l’ur-
preservação (2006), de Carolina Pereira Soares banisme au XXe siècle. Marseille: Parenthèses,
(orientado pelo professor Leonardo Barci Cas- 2006.
triota); A festa e a cidade (2010) de Marcos Felipe
Sudré Souza (orientado pelo professor Roberto CHOAY, F. A regra e o modelo: sobre a teoria da
Monte-Mór); O espaço construído na produção arquitetura e do urbanismo. São Paulo: Editora
de lugares de memória: reflexões sobre museus Perspectiva, 1985.
e lugares de memória do trauma (2015), de Felipe
CHOAY, F. A regra e o modelo: sobre a teoria da
Eleutério Hoffman (orientado pela professora
arquitectura e do urbanismo. Coimbra: Calei-
Celina Borges Lemos).
doscópio, 2007.
Do PPGACPS/UFMG, foram 49 dissertações que
CHOAY, F. A alegoria do patrimônio. São Paulo:
fizeram referência ao livro A alegoria em sua bi-
Estação Liberdade: Editora Unesp, 2001.
bliografia. Esse número corresponde a 35.25% das
dissertações consultadas. Entre os trabalhos que CHOAY, F. Pour une anthropologie de l’espace.
merecem destaque está Conservação e valores Paris:Seuil,2006.
sob a perspectiva do patrimônio na Alemanha: a
prática da reconstrução (2013), de Roberto Flávio CHOAY, F. Le patrimoine en questions: antho-
Sant’ana de Almeida (orientado pelo professor logie pour um combat. Paris: Seuil, 2009.
Leonardo Castriota).
CHOAY, F.O patrimônio em questão: antologia
Com os primeiros resultados da pesquisa, é pos- para um combate. Belo Horizonte: Fino Traço,
sivel inferir que os trabalhos consultados podem 2011.
ser separados em três grupos. No primeiro, em
que o livro A alegoria do patrimônio consta apenas CHOAY, F. Urbanismo, utopias e realidades:
como referência na bibliografia do trabalhos de uma antologia. São Paulo: Editora Perspectiva,
dissertação e tese; no segundo, em que o livro é 2003.
usado como fonte de informação em citações,
CHOAY, F. “L’histoire et la méthode em urba-
em sínteses das obras dos teóricos da conserva-
nisme”. Annales, Économies, Société, Civisa-
ção ou das noções trabalhadas pela autora, bem
como os que apresentam de modo panorâmico a tions. Paris, v. 4, p 1143-1154, 1970.
abordagem da conservação no tempo. E, por fim,
DOSSE, F. Michel de Certeau: le marcheur bles-
o terceiro grupo de trabalhos, que nos interessa
sé. Paris: La Découverte, 2007.
no seguimento da pesquisa, que são os trabalhos
que se apropriaram do livro de modo mais ana- DOSSE, F. “O espaço habitado segundo Michel
lítico, que trabalharam a obra como ferramenta de Certeau”. Art Cultura, Uberlândia-MG, n. 9,
para a interpretação das fontes, ou seja, analisa, jul-dez, 2004, p. 81-92. Disponível em: http://
interpreta A alegoria. A pesquisa apresentada, em www.seer.ufu.br/index.php/artcultura/article/
andamento, tem em seu cronograma a previsão view/1373/1243. Acessado em 22 jun 2020.
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16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
EIXO TEMÁTICO 1 RESUMO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
O artigo busca evidenciar as relações existentes
entre o Plano de Avenidas (1930), cujos preceitos
vídeo-pôster foram propostos por Francisco Prestes Maia e
João Florence de Ulhôa Cintra, para São Paulo,
e o Plano Techint (1959), desenvolvido por Philipp
AS CIDADES DOS ANÉIS. Lohbauer para a cidade de Santa Cruz de la Sier-
ra. Parte-se da constatação de que o esquema
CRUZAMENTOS DO PLANO DE viário radial-perimetral que caracteriza o plano
para a capital paulista é um importante referen-
AVENIDAS PARA SÃO PAULO cial conceitual para o boliviano, configuração,
no entanto, que é apenas a mais visível de uma
COM O PLANO TECHINT PARA gama de referências que marcam esse período
de consolidação do urbanismo moderno. A par-
SANTA CRUZ DE LA SIERRA tir desse argumento inicial, procura identificar
uma série de cruzamentos entre teorias e expe-
riências urbanísticas na América do Sul, ainda
THE CITIES OF THE RINGS. CROSSINGS WITHIN THE
pouco estudados pela historiografia da arquite-
AVENUES PLAN FOR SÃO PAULO AND THE TECHINT
tura e do urbanismo. É no cruzamento das ideias
PLAN FOR SANTA CRUZ DE LA SIERRA
que fundamentam os planos em questão que
reside o interesse do artigo. Ao analisar o plano
LAS CIUDADES DE LOS ANILLOS. CRUCES DEL PLAN
de Santa Cruz de la Sierra, além de revelar um
DE AVENIDAS PARA SÃO PAULO CON EL PLAN TECHINT
intercâmbio singular entre ideias e profissionais
PARA SANTA CRUZ DE LA SIERRA
da região, pretende evidenciar uma experiência
urbanística moderna de grande transcendência
GIROTO, Ivo continental e ainda pouco conhecida fora da
Bolívia. No mesmo sentido, procura iluminar um
Doutor; Universidade de São Paulo
ivogiroto@usp.br
pouco mais a extensa e escassamente estudada
produção brasileira do alemão Lohbauer, arqui-
teto cuja atuação como urbanista é ainda mais
incógnita. Metodologicamente, procura definir
uma visada transnacional, atenta às circulações
e conexões que definem os eventos históricos
para além dos limites dos países, através do es-
tabelecimento de conexões múltiplas que ultra-
passam o mero exercício comparativo.

SÃO PAULO SANTA CRUZ DE LA SIERRA


PLANO DE AVENIDAS PLAN TECHINT PRESTES MAIA
PHILIPP LOHBAUER

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

470
ABSTRACT RESUMEN

The article seeks to highlight the relationships El artículo busca resaltar las relaciones exis-
between the Avenues Plan (1930), whose precepts tentes entre el Plan de Avenidas (1930) para São
were proposed by Francisco Prestes Maia and Paulo, cuyos preceptos fueron propuestos por
João Florence de Ulhôa Cintra, for São Paulo, Francisco Prestes Maia y João Florence de Ulhôa
and the Techint Plan (1959), developed by Philipp Cintra, y el Plan Techint (1959) para la ciudad de
Lohbauer for the city of Santa Cruz de la Sierra. Santa Cruz de la Sierra, desarrollado por Philipp
It is based on the observation that the radial-pe- Lohbauer. Se basa en la observación de que el
rimeter scheme that characterizes the plan for esquema vial perimetral-radial que caracteriza el
São Paulo is an important conceptual reference plan para la capital de São Paulo es una referen-
for the Bolivian, a configuration, however, which cia conceptual importante para el boliviano, una
is only the most visible of a range of references configuración, sin embargo, que es solo la más
in this period of consolidation of modern urba- visible de una gama de referencias que marcan
nism. Based on this initial argument, it seeks to este período. Basado en este argumento, busca
identify the intersections between theories and identificar una serie de intersecciones entre te-
urbanistic experiences in South America, still orías y experiencias urbanísticas en Sudamérica,
little studied by the historiography of architectu- aún poco estudiadas por la historiografía de la
re and urbanism. It is at the intersection of ideas arquitectura. Es en la intersección de las ideas
that underlie these plans that the article’s inte- que subyacen a los planes en cuestión donde ra-
rest lies. In analyzing the Santa Cruz de la Sierra dica el interés del artículo. Al analizar el plan de
plan, in addition to revealing a unique exchange Santa Cruz de la Sierra, además de revelar un in-
between ideas and professionals from the region, tercambio único entre ideas y profesionales de la
it intends to highlight a modern urban experience región, se pretende resaltar una experiencia ur-
of great continental transcendence and still little bana moderna de gran trascendencia continental
known outside Bolivia. In the same sense, it se- y aún poco conocida fuera de Bolivia. En el mismo
eks to shed light on the extensive and barely stu- sentido, busca arrojar un poco de luz sobre la ex-
died production of Lohbauer, an architect whose tensa producción brasileña y poco estudiada de
performance as an urban planner is even more Lohbauer, un arquitecto cuya actuación como
unknown. Methodologically, it seeks to define a planificador urbano es aún más desconocida. Me-
transnational view, attentive to the circulations todológicamente, busca definir una visión trans-
and connections that define historical events nacional, atenta a las circulaciones y conexiones
beyond the limits of countries, through the esta- que definen eventos históricos más allá de los lí-
blishment of multiple connections that go beyond mites de los países, mediante el establecimiento
the mere comparative exercise. de conexiones múltiples que desbordan el mero
ejercicio comparativo.

SÃO PAULO SANTA CRUZ DE LA SIERRA


PLANO DE AVENIDAS PLAN TECHINT PRESTES MAIA SÃO PAULO SANTA CRUZ DE LA SIERRA
PHILIPP LOHBAUER PLANO DE AVENIDAS PLAN TECHINT PRESTES MAIA
PHILIPP LOHBAUER
EIXO TEMÁTICO 1 INTRODUÇÃO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO Separados por aproximadamente três décadas,
os planos urbanísticos propostos por Francisco
Prestes Maia (1895-1965) e João Florence de Ulhôa
vídeo-pôster Cintra (1887-1944) para São Paulo, apresentado
em 1930, e por Philipp Lohbauer (1906-1978) para a
cidade boliviana de Santa Cruz de la Sierra, entre
AS CIDADES DOS ANÉIS. 1959 e 1960, revelam uma série de cruzamentos

CRUZAMENTOS DO PLANO DE entre teorias e experiências urbanísticas na Amé-


rica do Sul, ainda pouco estudados pela historio-

AVENIDAS PARA SÃO PAULO grafia da arquitetura e do urbanismo.

COM O PLANO TECHINT PARA O artigo parte da constatação de que o esquema


viário radial-perimetral que caracteriza o Plano
SANTA CRUZ DE LA SIERRA de Avenidas idealizado para a capital paulista
é um importante referencial conceitual para o
Plano Techint, nome da empresa de consultoria
THE CITIES OF THE RINGS. CROSSINGS WITHIN THE fundada por italianos na Argentina em 1945 e com
AVENUES PLAN FOR SÃO PAULO AND THE TECHINT forte atuação na América Latina, pelo qual o plano
PLAN FOR SANTA CRUZ DE LA SIERRA boliviano ficou conhecido.

LAS CIUDADES DE LOS ANILLOS. CRUCES DEL PLAN A configuração radiocêntrica de ambos, no en-
DE AVENIDAS PARA SÃO PAULO CON EL PLAN TECHINT tanto, é apenas a mais visível de uma gama de
PARA SANTA CRUZ DE LA SIERRA referências que marcam esse período de con-
solidação do urbanismo moderno. Entre um e
outro, por exemplo, produziu-se a ampliação dos
âmbitos epistemológicos disciplinares, refletidos
na centralidade que o conceito de “planejamento
urbano” assumiu frente ao “urbanismo” no pós
segunda-guerra (ALMANDOZ, 2009, p. 244-253).

Situando o período entre as décadas de 1920 e


1960 como cruciais para a urbanização e o urba-
nismo sul-americanos, Marco Aurélio de Filgueiras
Gomes chama a atenção para a lacuna historio-
gráfica existente sobre as trocas intelectuais e a
circulação de ideias no âmbito latino-americano,
a despeito da existência de muitos pontos em
comum entre as experiências urbanísticas de
diversos países do continente (GOMES, 2009, p. 7).

Em livro publicado em 1944, o planejador estadu-


nidense Francis Violich, que atuou como consultor
do governo venezuelano, observa que por esses
anos os arquitetos e planejadores latino-ameri-
canos tendem a substituir o “movimento moderno
Beaux Arts” vindo da Europa pelo enfoque funcio-
nal gerado nas técnicas norte-americanas (VIO-
16º SHCU LICH, 1944, p. 169-173). Também neste intervalo
30 anos . Atualização Crítica
de tempo, muitas cidades da região começam a
472 sentir os efeitos das altas taxas de crescimen-
to demográfico, e os problemas específicos do “Nesse contexto, primeiro o processo de
processo de urbanização latino-americano indi- definição do desenho original do plano Te-
cam a necessidade de formulações próprias ao chint, e a execução depois, por suas carac-
enfrentamento do problema. terísticas únicas, constitui-se em uma das
experiências urbanísticas mais relevantes
Diversas experiências prévias regionais foram do continente, e por sua escala, no maior
constituindo um acervo teórico-prático que pas- empreendimento urbanístico da Bolívia.”
sa a ser utilizado como base para o projeto e o (LIMPIAS ORTIZ, 2010, p. 73)
planejamento de cidades, como uma espécie de
filtro de adequação entre o pensamento urbanís- O pouco conhecimento sobre o Plano Techint
tico norte-atlântico e as realidades locais. Estas reflete a ausência boliviana na bibliografia sobre
décadas refletem não apenas a assimilação, o urbanismo latino-americano (ALMANDOZ, 2009;
mas um processo de transposição de experiên- CASTELLS, 1973; GOMES, 2009; HARDOY,1969;
cias e ideias surgidas em outros contextos, que ROMERO, 2010), algo também extensível à produ-
Lamparelli (1994) descreve inicialmente como a ção arquitetônica do país - ressalva feita a Ramón
importação direta de métodos, práticas e profis- Gutiérrez, que em um parágrafo de seu livro Ar-
sionais de outros países; depois por uma trans- quitectura y Urbanismo en Iberoamérica cita o
posição difusa que se processa pela absorção de plano de Santa Cruz de la Sierra, associando-o à
ideias, teorias, métodos e soluções captadas por ideia de cidade-jardim e ressaltando ser uma das
pessoas e instituições que exercem influência poucas cidades americanas onde se respeita o
dispersa e incremental; e finalmente, pelo sur- plano regulador (GUTIÉRREZ, 1983, p. 666).
gimento de problemáticas inéditas que exigem
soluções a partir do confronto de paradigmas Em parte, tal falta pode ser creditada ao relativo
concorrentes. descompasso que marca a peculiar trajetória his-
tórica da Bolívia em relação aos países vizinhos.
É no cruzamento das ideias que fundamentam o No caso específico da urbanização, a aceleração
Plano de Avenidas, de Prestes Maia e Ulhôa Cin- do processo que transformou muitas cidades sul-
tra, e o Plano Techint, de Philipp Lohbauer, que -americanas a partir das políticas de industriali-
está o interesse deste artigo. A referência que zação e das intensas migrações campo-cidade no
o plano boliviano faz ao paulistano foi declara- pós-crise de 1930, só ganhou verdadeiro impulso
da por Lohbauer ao então secretário do Centro no país depois da década de1960, com Santa Cruz
de Arquitectos de Santa Cruz de la Sierra, Sergio de la Sierra à frente (MAZONI, 2005, 153-155).
Leigue Suárez.1 Sobre ambos, individualmente, já
existem aprofundados trabalhos de análise, tarefa Da mesma forma, a falta de um sistema universitá-
que este estudo se exime de realizar. rio robusto e coordenado, com poucos cursos de
pós-graduação e escassa produção de pesquisa
Enquanto a proposta de Prestes Maia e seus des- científica (WEISE; LAGUNA, 2008) constituiu,
dobramentos para a capital paulista há tempos e segue constituindo, um obstáculo adicional à
tem sido objeto de diversos trabalhos (TOLEDO, troca de informações e experiências acadêmicas.
1996; LEME, 1990/1999; SOMEKH, 1997), a de
Lohbauer e sua implementação ainda é majori- Assim, os cruzamentos entre países e persona-
tariamente ignorada por grande parte da comu- gens que definem a história dos planos se deu em
um contexto de pouco intercâmbio acadêmico
nidade acadêmica brasileira e sul-americana.
entre o Brasil e seus vizinhos, a despeito da in-
Em que pesem criteriosos estudos feitos por
tensa circulação de ideias e profissionais entre
pesquisadores bolivianos, especialmente os de
as décadas de 1920 e 1960. Neste período, poucos
Victor Hugo Limpias Ortiz (2010), o plano e sua
trabalhos de conjunto sobre urbanismo e história
implementação ainda são pouco analisados, a
urbana na América do Sul foram publicados, e me-
despeito de sua importância nacional e regional.
nos ainda rompiam a barreira cultural entre os bra-
sileiros e sua vizinhança (MEDRANO, 2009, p. 261).
1. Informação de Victor Hugo Limpias Ortiz, Decano da Fa-
cultad de Arquitectura, Diseño y Urbanismo da Universidad Para a historiografia brasileira, especificamente,
Privada de Santa Cruz de la Sierra em 12/02/2020, via e-mail. além de dar a ver um intercâmbio singular entre
EIXO TEMÁTICO 1 ideias e profissionais da região, o artigo contribui
a iluminar a extensa e pouco estudada produção
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO de um arquiteto igualmente pouco conhecido, cuja
atuação como urbanista é ainda mais incógnita: o
alemão Philipp Lohbauer, que os registros indicam
ter tido prolífica produção projetual no Brasil,
figurando como autor de mais de 200 projetos
entre 1950 e 1970. Entre os raros estudos sobre
sua obra, destacam-se os trabalhos que tratam de
sua atuação no norte paranaense, onde projetou
mais de 50 edificações entre 1942 e 1953 (SUZUKI,
2007; OLIVO, 2014; REGO, 2012). Neles, o plano
para Santa Cruz de la Sierra é apenas citado.

Metodologicamente, não se trata de um mero


exercício comparativo entre condições, lugares
e tempos incomparáveis, mas da tentativa de
estabelecer uma visada transnacional, atenta
às circulações que definem os eventos históri-
cos para além dos limites de um país, propondo
que se estabeleçam conexões múltiplas e inter-
relacionadas.

cidades dos anÉis

Ponto de partida: os lugares, os tempos


e os personagens
Formulado a partir de pressupostos elaborados por
Prestes Maia e Ulhôa Cintra entre as décadas de
1920 e 1930, o Plano de Avenidas norteou o cres-
cimento de São Paulo nas décadas subsequentes.
Suas primeiras diretrizes começaram a ser publi-
cadas a partir de 1924, no Boletim do Instituto de
Engenharia com o nome “Um problema atual: os
grandes melhoramentos de São Paulo”, e teve sua
versão final assinada em 1930 por Prestes Maia,
então engenheiro da Secretaria de Obras e Viação
da prefeitura de São Paulo, na gestão do prefeito
José Pires do Rio (1926-1930). O plano foi parcial-
mente implantado nas duas gestões de Prestes
Maia como chefe do executivo da capital, primeiro
como prefeito interventor entre 1938 a 1945, por no-
meação de Ademar de Barros, e depois entre 1961 e
1965, eleito pela União Democrática Nacional (UDN).

Reconhecível desde a década de 1920, a transfor-


16º SHCU mação de São Paulo no principal centro industrial
30 anos . Atualização Crítica
do país ganhou impulso nas décadas seguintes,
474 acompanhada de um aumento explosivo de sua
população urbana. Com efeito, nos textos de me- urbano em quadrícula regular, com a presença
ados dos anos 1920, Prestes Maia e Ulhôa Cintra central da praça maior como centro simbólico ao
destacavam a necessidade de uma profunda redor da qual estavam situadas o cabildo e o tem-
remodelação urbana, por meio da implantação plo religioso, representando a unidade das duas
de um “plano de conjunto”, para uma cidade que forças fundamentais da dominação espanhola: a
entrava “em uma fase decisiva de sua existência: Coroa e a Igreja. Ao longo do século XVIII, constituí-
a da sua passagem para o rol das grandes metró- ram-se as típicas galerias periféricas em madeira
poles” (TOLEDO, 1996, p. 119). que caracterizam e unificam morfologicamente
as quadras centrais, consolidando uma primei-
Nos textos de Prestes Maia, não faltavam refe- ra imagem urbana (LIMPIAS ORTIZ, 2010, p. 16).
rências ufanistas ao desbravador bandeirante,
e ao papel do imigrante e da indústria que pavi- Hoje a cidade mais populosa e sede do departa-
mentavam o caminho de progresso traçado pela mento economicamente mais importante do país,
metrópole nascente, ainda acanhada e provincia- em 1932 contava apenas 23.841 habitantes; em
na. Em consequência, as diretrizes privilegiavam 1960, quando Lohbauer formulou seu plano, aproxi-
a remodelação do sistema de estruturação viária mava-se a 70.000 habitantes, um número que ain-
e a expansão da área central, cuja infraestrutura da não permitia antever o forte crescimento popu-
já apresentava sinais de insuficiência frente ao lacional que conheceria principalmente a partir da
sustentado crescimento econômico e urbano. década seguinte. De meados dos anos 1950 a 1970,
a população cresceu em média 6,6% ao ano, che-
Em 1920, no contexto inicial de elaboração do gando a 115.000 pessoas (MAZONI, op. cit., p. 144).
plano, a capital paulista possuía 579.033 habi-
tantes; duas décadas depois, quando Prestes Entre outras coisas, a tração ao crescimento eco-
Maia assumiu a prefeitura pela primeira vez, já nômico e populacional de Santa Cruz de la Sierra
somava 1.326.261 habitantes; em 1960, quando de teve início no reconhecimento de sua posição
sua segunda passagem pelo executivo municipal, continental estratégica após a Guerra do Chaco
já contava 3.781.446 habitantes, apresentando (1932-1935), apontada pelo denominado Plano
taxas de crescimento geométrico anual médio Bohan (1941-1942), um documento estratégico
superiores a 5% ao ano (SÃO PAULO, 2020). elaborado e entregue ao país por iniciativa de
um grupo do governo estadunidense liderado
A capital paulista refletia então o início de um pelo oficial de assuntos internacionais Bohan Lee
processo de massificação urbana, tendência iden- Merwin, como parte da política de boa vizinhança
tificada em diversas cidades latino-americanas a instituída pelo presidente Franklin Delano Roose-
partir do pós-crise de 1929, quando o processo de velt, entre 1933 e 1945.
industrialização catalisou uma explosão social que
consistiu, sobretudo, em uma ofensiva do campo A partir de então, começou a se definir os con-
sobre a cidade na forma de uma explosão urbana tornos da base econômica agroindustrial da ci-
que transformaria as perspectivas da América dade, amparada no rompimento do isolamento
Latina (ROMERO, 2020, p. 320-321). em relação ao altiplano boliviano e aos países
vizinhos, com a construção de uma rede rodofer-
No entanto, como reconhece José Luis Romero, roviária a partir de meados dos anos 1950, e pelo
este era um movimento socioeconômico desi- incremento da produção de hidrocarbonetos na
gual entre os diversos países e cidades do sub- década seguinte.
continente. Enquanto cidades como São Paulo
se transformavam rapidamente em metrópoles, O Plano Bohan, o Plano Techint e seu antecessor
outras cresciam a ritmo lento, baseadas em uma direto no campo urbanístico, o Plano Ivanissevich,
economia agrária e com posição secundária no elaborado por um grupo de técnicos argentinos em
panorama econômico de seus próprios países, 1947, refletia a constante presença estrangeira na
como pode ser o caso de Santa Cruz de la Sierra. Bolívia, carente de quadros técnicos especializa-
dos nas mais diversas áreas. A atuação da Techint,
A cidade boliviana, estabelecida em 1595 às mar- empresa argentina fundada por italianos em 1945
gens do rio Piraí, tal como a maior parte das fun- e com forte presença na América Latina, agrega
dações espanholas coloniais adotou um traçado ainda mais complexidade a esses cruzamentos.
EIXO TEMÁTICO 1 A Techint foi vencedora da convocatória interna-
cional aberta pelo governo do Departamento de
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO Santa Cruz de la Sierra em 1958, da qual participa-
ram três empresas estadunidenses e apenas uma
boliviana. A seleção foi pautada pela capacidade
técnico-econômica da empresa em realizar e fi-
nanciar as obras, e pelo custo da proposta, e não
por qualidades inerentes ao plano, que à época
do certame sequer havia sido elaborado.

Contratado pela empresa após a conclusão da


concorrência, Lohbauer visitou a cidade boliviana
apenas duas vezes antes de entregar a primeira
de suas duas propostas, sendo responsável pela
direção das obras e contratação de pessoal local
o engenheiro brasileiro Silvio Gobbo (LIMPIAS
ORTIZ, op. cit., p. 87).

Quando aprovado, em 17 de março de 1960, na


cidade não havia nenhuma rua pavimentada, a
rede de energia elétrica funcionava apenas 6 horas
por dia, a distribuição de água era mínima e sem
tratamento, e não havia rede de esgotamento
sanitário (idem, p. 6). Assim, enquanto as ideias
de Prestes Maia e Ulhôa Cintra enfatizavam a re-
definição do sistema viário, o plano de Lohbauer
representava de forma tão importante quanto o
desenho da nova estrutura urbana, um plano de
dotação infra estrutural básica.

Em 1930, ano em que a versão finalizada do Pla-


no de Avenidas foi apresentada, o jovem Philipp
Lohbauer se graduava na Technische Hochschule
Muenchen, onde também deu aulas entre 1932
e 1934. Instalado em São Paulo desde 1939, fez
parte do grande contingente de estrangeiros que
vieram ao Brasil em busca de oportunidades após
a Segunda Guerra Mundial. Trabalhou em conhe-
cidas construtoras paulistanas, como a Constru-
tora Nacional, a Construtora Dácio de Moraes, e
a Empresa de Construções Brasil, até conseguir
seu registro profissional no Conselho Regional de
Engenharia e Arquitetura (CREA), em 1948, quando
passou a atuar de forma independente, e também
como professor na Universidade Presbiteriana
Mackenzie (OLIVO, 2014, p. 24).

O desenho dos anéis: o sistema circulatório


16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
O tema central do Plano de Avenidas é a remo-
476 delação e extensão do sistema viário de forma a
configurar uma premissa de circulação radial-pe- perímetro de irradiação”, propunha um anel viário
rimetral. Apoiando-se principalmente nas teorias ao redor do centro, uma espécie de círculo fecha-
de Joseph Stübben, publicadas originalmente na do ou coletor que receberia as correntes afluentes
Alemanha em Der Städtbau (1890), Prestes Maia e em direção à zona central e as distribuiria, sem
Ulhôa Cintra defendiam que a função primordial que todas as vias de expansão ou penetração
de ruas e praças seria satisfazer às necessidades atingissem um único ponto.
do movimento em uma cidade. Desta forma, entre
as correntes de circulação urbana, as principais A presença desse perímetro de irradiação se des-
conformariam uma rede de artérias radiais que tacava nos esquemas teóricos feitos pelo fran-
conduziriam da periferia ao centro, e vice-versa, cês Eugène-Hénard sobre os planos de Moscou,
responsáveis também por dividir a cidade em di- Paris e Berlim, como parte de seus “Études sur
versos setores. Uma segunda categoria de linhas
les transformations de Paris” (1903). Na avaliação
de circulação conectaria os diversos setores,
de Prestes Maia e Ulhôa Cintra, a conformação
estabelecendo uma série de circunferências ao
urbana de São Paulo à época se prestava a uma
redor do centro da cidade, no formato de anéis,
organização análoga. Como prova dessa filiação,
ou rings (MAIA; CINTRA, 1926, p. 123-124).
justapuseram aos três modelos do urbanista fran-
A versão final do plano, apresentada em 1930, cês um quarto, feito para São Paulo, segundo os
subdividia-se em três capítulos. No primeiro, “O mesmos princípios (Figura 1).

Figura 1: Esquemas teóricos de São Paulo, Moscou, Paris e Berlim, de autoria de Ulhôa Cintra, 1924. Fonte: Toledo (1996, p. 168).
EIXO TEMÁTICO 1 O anel proposto na primeira versão do perímetro
de irradiação, que Ulhôa Cintra definiu ainda em
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO 1910, apresentava dimensões próximas aos rings
de Paris, Berlim e Moscou, algo valorizado pelos
próprios autores do plano. Para Toledo (1996, p.
128), mais que uma configuração espontânea,
isso poderia indicar que os urbanistas brasileiros
procuraram estabelecer um anel com dimensões
aproximadas a 1600 metros em seu eixo maior, to-
mando como referência as dimensões que Hénard
constatou nas três referidas cidades.

O segundo capítulo, “Radiaes”, definia um sistema


de vias traçadas a partir do perímetro de irradia-
ção em direção a todos os quadrantes da cidade,
estabelecendo ligações entre três perimetrais
concêntricas ao anel central.

No terceiro capítulo, “Perimetraes Tietê”, descre-


via o sistema da segunda e terceira perimetrais
principais, bulevares de circulação rápida com-
plementadas por outras que seriam com maior
frequência destinadas ao uso residencial e pas-
seios. A segunda avenida circular foi traçada na
área urbanizada intermediária, aproveitando-se
de vias já existentes, como as Avenidas Paulista
e Angélica, e de parte dos leitos das vias férreas,
que seriam deslocadas para as margens do rio
Tietê. O terceiro e último anel perimetral definia
um circuito de parkways. Aproveitando a presença
da água, essas “avenidas fluviais” se prestavam a
adotar a orientação americana por meio de am-
plas vias que “conservam alguns caracteres que
lembram os parques” (MAIA, 1930, p. 122).

Para além de obras de drenagem e canalização


dos rios, Prestes Maia levava em conta o potencial
estético e utilitário de suas margens, em um tra-
çado que se aproximava do idealizado por Barry
Parker, que durante sua estadia em São Paulo,
em 1919, propôs a criação de um cinturão aberto
de parques que fechariam um círculo completo
ao redor da cidade, e funcionaria como barreira
de contenção ao seu espraiamento (TOLEDO, op.
cit., p. 218). No entanto, o circuito de parkways
definido pelo Plano de Avenidas não teria a função
16º SHCU de conter o crescimento da cidade, algo admitido
30 anos . Atualização Crítica e previsto para além das margens dos rios Tietê
478 e Pinheiros (Figura 2).
A característica paulistana de não ter sido estru-
turada em quadrícula significava que as antigas
ruas, os cursos d’água e os fundos de vale podiam
ser aproveitadas na concepção geral do Plano
de Avenidas. Ao esquema proposto pelas radiais
agregou-se uma diametral, que por sua configu-
ração ficou conhecido como sistema Y, a partir do
encontro, no Vale do Anhangabaú, das avenidas
23 de Maio (Itororó) e Nove de Julho (Anhangabaú).

No entanto, a indefectível malha quadricular his-


pano-americana não representou “falta de sorte”
à Santa Cruz de la Sierra, ao menos não no que
tange à implantação do modelo radial-perimetral.
As dimensões ainda reduzidas do núcleo urbano
ao final da década de 1950, pouco superior aos
limites do casco colonial, não dificultaram a im-
Figura 2: Esquemas teórico do Plano de Avenidas para plantação de um perímetro de irradiação ao redor
São Paulo. Fonte: Toledo (1996, p. 206). de seu centro. Ademais, se as características do
traçado de São Paulo em princípio facilitavam a
implantação do esquema, sua acidentada topo-
A referência a uma “orientação americana” de- grafia exigia a construção de túneis e viadutos,
monstra a atenção aos movimentos dos urba- encarecendo a execução do plano, complicação
nistas estadunidenses, cujos planos vinculavam que a planura da cidade boliviana não apresentava.
embelezamento urbano a melhorias da infraestru-
tura viária, como o de Daniel Burnham e Edward Como citado, Philipp Lohbauer recorreu ao exem-
H. Bennet para Chicago (1906-1909), que não plo paulistano para definir a estruturação viá-
coincidentemente também propunha um siste- ria geral de Santa Cruz de la Sierra. No entanto,
ma regional circunferencial e radial de highways. outras referências e condições preexistentes
condicionaram fortemente a opção pelo modelo
Se o referencial teórico de Prestes Maia e Ulhôa que caracteriza a cidade, hoje conhecida pela
Cintra transitava entre as duas margens do atlân- alcunha de “Cidade dos Anéis”.
tico norte, encontravam na morfologia paulistana
uma relação direta com as cidades europeias. Ti- Já em 1915, a Ordenação Urbana do munícipio
nham profunda convicção de que a capital paulista previa ao redor da cidade, à guisa de marco, uma
nascera com predisposição para crescer de acor- grande avenida de circunvalação de 20 metros
do com o modelo de Stübben, adaptado com o es- de largura que, apesar de não ter sido implan-
quema teórico de Henárd para as circunvalações tada, constituiu a primeira tentativa de alterar a
ao redor da área central (TOLEDO, 1996, p. 120). lógica do desenho urbano colonial. Esta avenida
periférica coincidia com algumas manifestações
“É que S. Paulo, ao contrário da maioria das do urbanismo formalista pré-moderno europeu,
suas irmãs americanas, teve a sorte de não incluindo de maneira simplificada a visão howar-
ser presenteada, ao nascer, com o clássi- diana da circunvalação, parte do conceito de ci-
co plano em xadrez. Assim, ela nasceu e dade-jardim (LIMPIAS ORTÍZ, op. cit., p. 29-34).
cresceu à maneira das velhas cidades eu-
ropeias. (...) Daí destacar-se na planta atual Posteriormente, em outro interessante cruza-
um centro perfeitamente caracterizado, e, mento entre técnicos dos países da região, em
irradiando-se para todos os setores, um 1947 o governo departamental contratou uma
bom número de grandes vias de comunica- equipe de técnicos provenientes da argentina para
ção (...) Não nos aparecem, já aqui, vigoro- desenhar o primeiro plano urbanístico integral da
samente esboçadas as primeiras grandes cidade. Liderada pelo engenheiro sanitário croata
linhas mestras do programa Stübben?” Ludovico Ivanissevich, e com projeto urbanístico a
(MAIA; CINTRA, 1926, p. 124) cargo Daniel Ramos Correa, o traçado viário tam-
EIXO TEMÁTICO 1 bém estabelecia uma avenida de circunvalação,
cujo trecho sul chegou a ser aberto, e também
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO sugeria um segundo anel viário (Figura 3).

Como observa Limpias Ortíz, Lohbauer conheceu


esse plano e, sendo sensível à situação existente,
aprimorou o desenho ajustando-o à realidade
e às perspectivas da cidade de finais dos anos
1950. De fato, a zona central coincide com a pro-
posta anterior de Ivanissevich, mas sua princi-
pal contribuição foi a proposição de um sistema
estruturador de radiais e perimetrais, propondo
um terceiro e um quarto anéis aos dois virtual ou
parcialmente existentes (idem, p.99).

Figura 3: Plano Ivanissevich para Santa Cruz de la Sierra,


1947. Fonte: Limpias Ortiz (2010, p. 62).

À configuração definitiva do Plano Techint su-


cedeu uma primeira proposta, frustrada devido
ao caráter “inviável” e “demasiado fantástico”,
conforme indicado no relatório da comissão go-
vernamental encarregada de avaliá-lo. Em suma,
previa-se a demolição integral do centro históri-
16º SHCU co, fazendo desaparecer a trama enxadrezada,
30 anos . Atualização Crítica
substituída por um moderno centro cívico. Nem
480 mesmo a praça fundacional seria preservada, e
em seu lugar estaria uma praça circular com um centro, coincidindo com a função do perímetro de
edifício cilíndrico de 20 pavimentos, novo marco irradiação de Hénard, adotado por Prestes Maia.
focal e simbólico da cidade, destinado a abrigar os
órgãos administrativos de Santa Cruz de la Sierra. Se a configuração final do Plano Techint esta-
Na prática, sua adoção representaria a constru- beleceu uma clara relação de continuidade com
ção de uma nova cidade, sem a necessidade de as propostas colocadas uma década antes pelo
fazer concessões às preexistências, projetada Plano Ivanissevich, é bastante provável que sua
integralmente de acordo com os preceitos do referência mais próxima no plano teórico-prático
urbanismo moderno. estivesse no ideário definido por Prestes Maia.
Entre o final dos anos 1930 e meados dos anos
A revisão solicitada mudou substancialmente o 1940, Lohbauer foi testemunha ocular das gran-
plano original, preservando a trama urbana his- des transformações urbanas empreendidas na
tórica e colocando ênfase no novo sistema viá- primeira gestão de Prestes Maia como prefeito da
rio. Segundo Lohbauer, “A operação fundamental capital que, de volta à prefeitura nos anos 1960,
nesta cirurgia urbana é sempre o alargamento conseguiu se manter influente do debate urbanís-
de suas ruas e a abertura de novas avenidas...” tico da cidade durante um longo período de tempo.
(TECHINT, 1959, p. 10-11).
De toda forma, os planos originais de Prestes Maia
A segunda proposta considerava que a cidade e Lohbauer – e também o de Ivanissevich -, ambos
já possuía os fatores elementares e estruturais implantados de forma parcial ou com modifica-
para o desenvolvimento de um sistema circular- ções consideráveis, ilustram a trajetória de um
-radial (Figura 4). O centro seria delimitado por modelo urbano muito influente na América do Sul.
uma avenida de circunvalação interna, que logo
ficaria conhecido como primeiro anel; entre o No Brasil, por exemplo, em meados do século XIX
primeiro e o segundo anéis, respeitava-se o tra- há registros da ideia de uma perimetral ao redor
çado da maioria das ruas já existentes. E entre o do centro de Porto Alegre, retomada no Plano de
segundo, o terceiro e quarto anéis, um desenho Melhoramentos de Moreira Maciel, de 1914. Mais
novo baseado na implantação de modernas uni- tarde, em 1938, o engenheiro Edvaldo P. Paiva e
dades de vizinhança, configurava um esquema de Ubatuba de Faria, também elaboraram seu Plano
densidade decrescente do centro em direção às de Avenidas para a cidade, seguindo o modelo de
periferias (LIMPIAS ORTÍZ, op. cit. p. 102). perímetros de irradiação de Hénard e Prestes
Maia (LEME, 1999, p. 34).

Na capital pernambucana, o sistema viário radial-


-perimetral também foi o escolhido pelo Plano de
Remodelação do Recife, de 1936, de Attílio Corrêa
Lima, e novamente reabilitado nas sugestões que
Ulhôa Cintra, convidado em 1943 pela Comissão do
Plano da Cidade, formulou para orientar o estudo
do plano geral de remodelação e expansão urbana.
A partir de sua experiência paulistana com Pres-
tes Maia, Cintra procurou adaptar o perímetro de
irradiação à cidade, e propôs um esquema viário
baseado em três perimetrais e radiais, que foi
implementado e constitui basicamente a estru-
Figura 4: Plano Regulador de Santa Cruz de la Sierra, por turação atual. (idem, p. 404-410).
Techint. Fonte: Cortesia Victor Hugo Limpias Ortiz.
O sistema também aparece de forma inequívoca
no plano elaborado pelo EPUCS (Escritório do
Plano de Urbanismo da Cidade de Salvador), sob
Nesta versão, a maioria das avenidas radiais, no- coordenação de Mario Leal Ferreira, entre 1943
vas ou existentes, terminavam ao encontrar o pri- e 1947, cujo centro de irradiação parte da Bahia
meiro anel, evitando o acesso de fluxo intenso ao de Todos os Santos (idem, p. 412).
EIXO TEMÁTICO 1 Na Bolívia, especificamente, a repercussão do
plano Techint marcou o urbanismo de outras ci-
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO dades do oriente do país, onde muitas executaram
seu próprio anel de circunvalação, como Trinidad,
Montero e Warnes (LIMPIAS ORTÍZ, op. cit., p. 182).

O anel central: cidade histórica, cidade nova


À ênfase no sistema circulatório que define o
Plano de Avenidas, somava-se uma apurada
preocupação com a estética urbana. Segundo
Prestes Maia e Ulhôa Cintra, o traçado viário
procurava criar e valorizar perspectivas monu-
mentais:

(...) fazendo ressaltar edifícios como a Cate-


dral, a Faculdade de Direito, Escola Normal,
Estação da Luz, Novo Mercado e Palácio
das Indústrias, além de outros como Con-
gresso, Biblioteca, etc., para a implantação
dos quais oferece pontos apropriados, sem
contar o encanto que esse conjunto tirará
dos parques Pedro II e Anhangabaú. (MAIA;
CINTRA, 1926, p. 128-132)

Além de Stübben e Hénard, foram de grande in-


fluência os planos de Burnham para Chicago e o
Bartholomew para Saint Louis, visível até mesmo
no tratamento formal dado aos edifícios e centros
cívicos. O que revelava, segundo Benedito Lima
de Toledo (1996, p. 268), uma linha de intervenção
que se assemelhava ao urbanismo praticado nos
Estados Unidos nas duas primeiras décadas do
século passado, fundamentado na busca de maior
funcionalidade e embelezamento das cidades.

Para Nádia Somekh (1997, p. 113):

Os desenhos do Plano de Avenidas, de 1930,


de Prestes Maia, também não fugiam à esté-
tica haussmanniana, embora sua aplicação
tenha se aproximado muito mais do zoning
americano. A concepção de Prestes Maia
apresentava uma diferença básica em rela-
ção a Haussmann na possibilidade de verti-
calizar e, nesse sentido, foram modelos explí-
citos do urbanista os arranha-céus de Nova
York e o urbanismo da Escola de Chicago.
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
Enquanto as grandes incisões propostas para o
482 centro de São Paulo buscavam iluminar pontos
de interesse estrategicamente selecionados, as Quanto ao centro, uma curiosa mudança de dis-
duas propostas de Lohbauer não parecem ter curso passava a reconhecer a substância “históri-
reconhecido grande valor na arquitetura tradicio- co-tradicional” existente nos pórticos das galerias
nal do centro histórico de Santa Cruz de la Sierra. em madeira, que agora deveriam merecer um
tratamento respeitoso. O xadrez original perma-
Como citado anteriormente, a primeira versão neceu com a proposta de ampliação de todas as
propunha a demolição integral do centro, elimi- ruas, nas quais as edificações poderiam isolar-se
nando a memória urbana e, na prática, criando ou incluir galerias ou marquises, “atendendo ao
uma nova cidade. O traçado em xadrez seria costume tradicional das edificações de Santa
substituído por um tecido urbano constituído Cruz” (TECHINT, 1959, p. 10-11).
de edificações de 4 a 5 pavimentos, no qual a
única evocação histórica seriam novas galerias No entanto, a idealização de um novo Centro
de concreto armado em referência às originais, Comercial e Administrativo pretendia erigir, jus-
construídas em madeira. (LIMPIAS ORTÍZ, op. tamente no centro histórico, um novo centro
cit., p. 95) simbólico para a cidade, alterando a percepção
histórica, morfológica e simbólica do quadrilátero
Esta proposta previa um sistema viário principal da Plaza Mayor, em favor da definição de um eixo
baseado em duas avenidas monumentais, uma linear que a conectaria a um novo ponto focal, o
norte-sul e outra Leste-Oeste, em cujo encontro edifício do novo Palácio Administrativo. Mais mo-
se conformaria uma grande praça circular, desti- desta, a nova proposta pretendia demolir quatro
nada a substituir a praça fundacional da cidade. No quadras, de forma a criar um boulevard comercial
setor norte haveria um centro cívico, marcado por para pedestres, à maneira do que Jacob Bakema
uma fileira de edifícios similares que abrigariam y J. H. van der Broek haviam desenhado para o
as instituições públicas, que Limpias Ortíz (idem, então recém-inaugurado Centro Comercial de
p. 99) associa aos que Oscar Niemeyer desenhou Lijnbaan (1949-1955), em Rotterdam (Figura 5).
para a Esplanada dos Ministérios de Brasília.

Figura 5: As duas versões para o centro de Santa Cruz de la Sierra. A remodelação total da primeira versão (esquerda), e
a criação do Centro Cívico na segunda proposta (direita). Fonte: Cortesia Victor Hugo Limpias Ortiz.

Ao final deste eixo, um novo ponto focal apontaria concretização previa a demolição da então sede
para o moderno prédio administrativo, inevita- do governo departamental (atual Brigada Par-
velmente enfraquecendo a presença da Catedral lamentar e Museu da Independência), edifício
de San Lorenzo, igreja neoclássica inaugurada também neoclássico inaugurado em 1892, estilo
em 1915 e maior ícone arquitetônico da cidade, que nunca despertou grande apreço por parte
situada na lateral do novo eixo. Além disso, sua dos arquitetos modernistas.
EIXO TEMÁTICO 1 Há que se recordar que Santa Cruz de la Sierra
e São Paulo apresentavam, à época da elabora-
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO ção dos planos, condições históricas e urbanas
radicalmente diferentes. O centro de São Paulo,
já consolidado e denso entre os anos 1920 e 1930,
não permitiria um projeto minimamente viável
que propusesse sua demolição integral, opção
sequer insinuada como ideal por Prestes Maia e
Ulhôa Cintra. Enquanto o Plano de Avenidas se
concentrava nos limites consolidados da cidade,
limitados pelas margens dos rios, o Plano Techint
atuava sobre uma ocupação rarefeita ao redor do
centro histórico, e principalmente no desenho da
expansão da cidade.

No caso do centro de Santa Cruz de La Sierra,


com extensão e densidade muito menores que
os da capital paulista, sua demolição total não
pareceria totalmente descabida a um arquiteto
moderno cuja atuação coincidia com a gradual
disseminação das premissas urbanísticas dos
CIAM.2 No final dos anos 1950 já se reconhecia a
necessidade de transcender a esterilidade abs-
trata da cidade funcional, a partir da defesa de
uma “nova monumentalidade” por Sigfried Giedion,
Josep Lluís Sert e Fernand Léger, em 1943, ques-
tão retomada em 1951 no VIII CIAM, cujo tema foi
“O coração da cidade”, representado justamente
pelo programa do Centro Cívico (FRAMPTON, 1997,
p. 329).

Seu plano também refletia um tempo em que


planejar e construir cidades ex nuovo não era
algo utópico, ou mesmo incomum, no Brasil. Ca-
pitais como Belo Horizonte (1897), de Aarão Reis, e
Goiânia (1930), de Atílio Correia Lima, compunham
um acervo de experiências que, para além de
demonstrar a consolidação e as transformações
do pensamento urbanístico moderno, pareciam
comprovar a viabilidade de empreendimentos
desse porte.

Neste aparte, cabe ressaltar o possível impacto que


o contexto paranaense teve sobre Lohbauer, onde
trabalhou intensamente durante as décadas de 1940
e 1950. No centro ocidental e noroeste do estado,

2. É importante lembrar que os pressupostos urbanísticos


modernos levaram certo tempo em ser divulgados. A Carta
16º SHCU
de Atenas, por exemplo, que continha as conclusões do
30 anos . Atualização Crítica
congresso de 1933, só foi publicada na versão de Le Cor-
484 busier em 1943.
entre 1930 e 1960 foram planejadas mais de 70 no- A noção moderna definitiva de Unidade de Vizi-
vas cidades (REGO, 2012), entre as quais cidades im- nhança deriva também da sobreposição de con-
portantes como Londrina (1929), com projeto inicial teúdos sociais e espaciais que embasaram teorias
do agrimensor russo Alexandre Rusgulaeff, e Ma- interpretativas como a de Ernest W. Burgess, que
ringá (1947), do engenheiro Jorge de Macedo Vieira. considerava a existência de zonas sociológicas
concêntricas um “princípio metabólico” da cidade
Outra informação que pode ajudar a compreender estadunidense, aproximando-se de uma análise
a decisão de Lohbauer é dada por Victor Hugo orgânica da cidade que Robert E. Park, um dos
Limpias Ortiz (op. cit., p. 99): pais da Ecologia Urbana, difundiu a partir de 1935
(CHUECA GOITIA, 2011, p. 257).
Para não ser injustos, é necessário recordar que
muitos cruzenhos de então consideravam a arqui-
Em seu plano, Lohbauer estruturou espacial-
tetura tradicional madeireira como um anacronis-
mente as faixas posteriores ao segundo anel em
mo a eliminar e, salvo a Catedral, considerava-se
unidades de vizinhança, considerando a cidade
que não havia nenhum edifício patrimonial digno
como base para uma boa qualidade de vida e fator
de preservar. O arquiteto deve ter percebido essa
de integração moral e social dos seres humanos.
atitude e atuou em consequência.
Referenciou o livro de Eliel Saarinen “The city:
its growth its decay its future”, no qual o autor
finlandês procurava explicar “a ordem física da
Os anéis periféricos: as unidades de vizinhança comunidade urbana da mesma maneira que se
entende a ordem orgânica em qualquer organis-
Mais de uma década após o Plano de Avenidas, em mo vivo” (SAARINEN, 1943, p. X), revelando uma
“Os melhoramentos de São Paulo”, publicado em compreensão alinhada aos princípios ecológicos
1945 para divulgar as realizações de sua primeira sobre a cidade como “problema biométrico, não
gestão, Prestes Maia apresenta a teoria de Cla- geométrico” (TECHINT, op. cit., p. 2).
rence Arthur Perry sobre a Neighbourhood Unit,
publicada em 1923. A adoção do zoning, inspirado Antes do Techint, o Plano Ivanissevich já indicava
na legislação nova-iorquina de 1916, caracterizaria a implantação de unidades de vizinhança,
as células urbanas situadas entre as vias estrutu- delimitadas por radiais e anéis que distinguiam a
radoras do sistema radial-perimetral, definindo área histórica da parte nova da cidade. O conceito
unidades de vizinhança que poderiam acolher geral permaneceu como elemento estruturador
de 3.000 a 10.000 habitantes. Em cada unidade, do Plano Techint, mesmo após a revisão do plano
as indústrias ou comércio deveriam estar na pe- e as subsequentes modificações feitas sem a
riferia, junto a edifícios habitacionais de maior participação de Lohbauer.
densidade, enquanto o centro estaria ocupado
por instituições comunitárias e habitações de O relatório final do plano justificava a implantação
baixa densidade, como casas isoladas ou de baixa das unidades de vizinhança com base na perti-
altura (MAIA, 1945, p. 296). nência de prover unidades de habitação, preco-
nizada pela Carta de Atenas. Cada unidade seria
A ideia de uma cidade de tamanho limitado, com um núcleo autônomo de 5.000 a 7.000 habitantes,
um centro urbano principal circundado por vários que teria uma área central de equipamentos pú-
núcleos urbanos autossuficientes, encontra ori- blicos como escola, quadras esportivas, centro
gem na cidade jardim (1898) de Ebenezer Howard. comunitário, igreja, centro de saúde e centro
Neste modelo, a construção de uma vida social em comercial (idem p. 19).
núcleos urbanos autônomos reforçaria os vínculos
comunitários e minimizariam a necessidade de O conceito do setor residencial visava evitar a
deslocamentos diários entre os núcleos e o centro segregação da cidade por classes, e seria estrutu-
principal. Após a I Guerra Mundial, engenheiros rada por tipologias unifamiliares e multifamiliares,
urbanistas norte-americanos adaptaram o construídas de forma escalonada para garantir
conceito à era do automóvel, convertendo o melhor ventilação e insolação. De forma análoga
modelo “cidade jardim” em “subúrbio jardim” e ao modelo de Brasília, o fundo dos lotes encon-
unidade de vizinhança (FELDMAN, 2005). traria uma zona comum de uso público (Figura 6).
EIXO TEMÁTICO 1
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO

Figura 6: Plano Techint, Unidade de Vizinhança. Fonte:


Limpias Ortiz (2010, p. 98).

No plano de Lohbauer, as unidades de vizinhança


seriam complementadas por setores destina-
dos à zona industrial e à Cidade Universitária,
devidamente envolvidas por um cinturão verde
que funcionaria como contenção ao crescimento
indiscriminado da mancha urbana. Ao contrário
do previsto, a área destinada à zona verde pe-
riurbana foi justamente a que absorveu a maior
parte do crescimento urbano a partir de meados
dos anos 1960.

Conclusão

Nem o Plano de Avenidas, nem o Plano Techint,


foram executados integralmente e totalmente de
acordo com o desenho original. Foge ao escopo
deste artigo relatar o que efetivamente foi exe-
cutado de cada plano, ou realizar análise apro-
fundada acerca de suas consequências. Cabe,
no entanto, à maneira de conclusão, algumas
considerações sobre sua transcendência na con-
figuração atual das cidades de São Paulo e Santa
Cruz de la Sierra.

Prestes Maia, como prefeito por duas vezes, im-


plantou as partes do plano que considerava mais
relevantes e que em seu momento eram possíveis,
e outros administradores seguiram muitas de suas
diretrizes. Suas propostas refletem o pensamento
16º SHCU urbanístico ainda predominante entre os anos
30 anos . Atualização Crítica
1930 e 1940, cujos planos de renovação adotavam
486 alguns princípios do modernismo funcionalista,
porém ainda presos a uma aproximação parcial necessárias. Lohbauer, ao contrário, afastou-
do tráfego ou do embelezamento, sem considerar -se completamente do processo de adaptação
dimensões econômicas, sociais e ambientais e implementação de seu plano após a série de
próprias do planejamento técnico (HARDOY, 1991, revisões acordadas com a administração de San-
p. 143). ta Cruz de la Sierra, quando foram cortadas as
relações entre a empresa Techint e o governo
Para Benedito Lima de Toledo, as propostas de departamental, devido à falta de pagamento e de
Prestes Maia partem da ponderação e análise de fundos para implementação imediata do plano.
várias experiências urbanísticas internacionais A partir de então, modificações e adequações
adaptadas à sua concepção, às circunstâncias passaram a ser feitas diretamente pelo Comitê
e à realidade local, não se limitando à adoção de Departamental de Obras Públicas e pela Oficina
um modelo único preestabelecido (1996, p. 267). Técnica do Conselho do Plano Regulador, em um
processo que se estendeu da aprovação do plano,
Importante destacar que o Plano de Aveni- em 1960, e ao longo de sua implementação inicial
das tem uma concepção de cidade implícita até 1972, quando se encerra o ciclo de alterações.
no projeto de sistema radial-perimetral, na
preferência por um sistema de transporte O esquema geral do Plano Techint, no entanto,
em superfície e na proposta de expansão do não sofreu transformações de ordem estrutural
centro histórico (...) A execução das obras após o afastamento de Lohbauer. Pode ser que
viárias transformam a estrutura urbana da a manutenção da coerência do plano se deva,
cidade e consolidam o padrão periférico em grande medida, pelo fato de haver contado
de expansão apoiado no tripé: loteamento ao longo de sua trajetória com a contribuição de
clandestino, autoconstrução e transporte diversos técnicos locais e estrangeiros, o que para
por ônibus.” (LEME, 1999, p. 393-394) Victor Hugo Limpias Ortiz configura um processo
intelectualmente compartilhado (op. cit., p. 73).
O sistema, também adotado no plano Techint,
deixava claro o privilégio dado ao trânsito mo- Dez anos depois de sua aprovação, o plano ori-
torizado, configurando uma nova escala urbana ginalmente proposto por Lohbauer já dava sinais
que contrastava fortemente com o traçado, a claros de que não seria capaz de acompanhar o
escala e os hábitos de uso existentes em Santa intenso ritmo de crescimento que Santa Cruz de
Cruz de la Sierra. la Sierra passou a experimentar. A Oficina Técnica
do Plano Regulador fez adaptações profundas,
Diferentemente do plano de Prestes Maia, o de porém sem alterar o espírito central da proposta:
Lohbauer considerava não somente a remodela- idealizou a execução de outros anéis concêntri-
ção da cidade existente, mas principalmente sua cos, para além dos quatro previstos, e preservou
extensão futura. De fato, a efetivação do plano as unidades de vizinhança como células urbanas
Techint definiu uma nova cidade, muito maior em básicas, consolidando o modelo radiocêntrico
extensão do que a existente. Ao contrário de São e a expansão periférica da cidade (MAZONI, op.
Paulo, onde ao adaptar-se aos caminhos existen- cit., p. 144).
tes a estruturação circular se funde e confunde
com muitas vias consolidadas, na cidade boli- Ademais de moldar as feições modernas da cida-
viana o relativo desimpedimento para o traçado de, o Plano Techint, cuja escala não encontrava
das novas avenidas possibilitou a definição de precedentes na Bolívia, converteu-se em modelo
uma estrutura imagética facilmente reconhecível de urbanismo para o país e serviu como escola
como desenho em planta; gerou-se, assim, uma de formação para engenheiros, arquitetos e ou-
imagem urbana potente, rapidamente assimilada tros profissionais, além de estimular a criação de
pelos habitantes: a cidade dos anéis. novas instituições vinculadas ao urbanismo e à
construção civil (LIMPIAS ORTIZ, op. cit., p. 181).
Ainda que a magnitude do plano e as vicissitudes
políticas e econômicas da época não tenham per- O Plano de Avenidas e o Plano Techint refletem as
mitido a execução integral do Plano de Avenidas, premissas do ideário urbanístico moderno e suas
ao menos Prestes Maia teve ascendência direta transformações, em sintonia com um tempo em
sobre sua implantação parcial e as adequações que grandes intervenções urbanas e a constru-
EIXO TEMÁTICO 1 ção de novas cidades faziam parte não apenas
do imaginário, mas do cotidiano profissional de
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO muitos arquitetos e urbanistas. Ambos ecoam,
cada um à sua maneira, as palavras atribuídas
a Daniel Burnham, que no alvorecer do século
XX conclamava os arquitetos a “não fazer planos
pequenos”, e os lembrava que “um diagrama nobre
e lógico, uma vez gravado, nunca morrerá”.

agradecimentos

Ao professor Victor Hugo Limpias Ortiz, Decano


da Universidad Privada de Santa Cruz de la Sier-
ra, pela troca de informações, materiais e pela
generosa revisão do texto.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

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30 anos . Atualização Crítica

490
491
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
EIXO TEMÁTICO 1 RESUMO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Esse artigo aborda o tema das origens e tradu-
ções em termos de arquitetura e plano urbano
vídeo-pôster da cidade de ouro preto, tendo em vista a grande
influência que teve a cultura barroca na região.
Abordando desde uma explicação inicial sobre o
BARROCO MINEIRO: ORIGENS movimento, que surgiu na europa, até sua che-
gada no brasil, o presente artigo traz duas ver-
E TRADUÇÕES EM TERMOS tentes sobre a influência do barroco na cidade
analisada: a vertente arquitetônica e a vertente
DE ARQUITETURA E PLANO urbana. Além disso, a análise foi baseada nas
diretrizes de ocupação das colônias portuguesa
URBANO e espanhola. Ao contrário do que aconteceu na
europa e nas colônias espanholas, onde o bar-
roco teve grande intervenção no plano urbano,
BARROQUE ARCHITECTURE AND URBAN PLANNING OF
a expressão barroca em ouro preto teve maior
MINAS GERAIS
relevância na arquitetura. Isso aconteceu tam-
bém pelo fato da colonização portuguesa se ca-
BARROCO MINERO: ORÍGENES Y TRADUCCIONES EN racterizar pelo traçado orgânico e natural. Sen-
TÉRMINOS DE ARQUITECTURA Y PLAN URBANO do assim, o movimento que se deu na região das
minas foi denominado barroco mineiro, um es-
STEINBACH, Ana Carolina tilo tipicamente brasileiro. Tendo como objetivo
analisar as temáticas, essa pesquisa relacionou
Graduanda em Arquitetura e Urbanismo; Universidade do
a influência da cultura barroca à forma como
Estado de Santa Catarina
anacarolinasteinbach@outlook.com a cidade foi colonizada pelos portugueses em
ouro preto e destacou a diferença com a forma
com que foram ocupadas as colônias espanho-
FLORENTINO, Maria Caroliny Camargo
las. Sendo assim, este ensaio utiliza ouro preto
Graduanda em Arquitetura e Urbanismo; Universidade do
como exemplar para diferenciar como a cultura
Estado de Santa Catarina
m.camargoflorentino@gmail.com
barroca se desenvolveu de forma diversa nas
colônias da américa.

BARROCO MINEIRO CIDADE COLONIAL BRASILEIRA


ARQUITETURA BARROCA

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

492
ABSTRACT RESUMEN

This article addresses the theme of the origins Este artículo aborda el tema de los orígenes y
and translations in terms of architecture and ur- traducciones en términos de arquitectura y plan
ban plan of the city of Ouro Preto, given the gre- urbano de la ciudad de Ouro Preto, teniendo en
at influence that the baroque culture had in the cuenta la gran influencia que tuvo la cultura bar-
region. Addressing from an initial explanation of roca en la región. Abordando desde una explica-
the movement, which emerged in Europe, until ción inicial sobre el movimiento, que surgió en
its arrival in Brazil, this article brings two strands Europa, hasta su llegada en Brasil, el presente
on the influence of the baroque in the city analy- artículo trae dos vertientes sobre la influencia
zed: the architectural aspect and the urban as- del barroco en la ciudad analizada: la vertiente
pect. In addition, the analysis was based on the arquitectónica y la vertiente urbana. Además, el
guidelines for the occupation of the Portuguese análisis se basó en las directrices de ocupación
and Spanish colonies. Unlike what happened in de las colonias portuguesa y española. A diferen-
Europe and in the Spanish colonies, where the cia de lo que sucedió en Europa y en las colonias
baroque had great intervention in the urban plan, españolas, donde el barroco tuvo gran interven-
the Baroque expression in Ouro Preto had greater ción en el plano urbano, la expresión barroca en
relevance in the architecture. This was also due Ouro Preto tuvo mayor relevancia en la arquitec-
to the fact that Portuguese colonization is cha- tura. Esto sucedió también por el hecho de que
racterized by organic and natural tracing. Thus, la colonización portuguesa se caracteriza por el
the movement that took place in the region of the trazado orgánico y natural. Así, el movimiento que
mines was called barroco mineiro, a typically Bra- se dio en la región minera fue denominado barro-
zilian style. Aiming to analyze the themes, this re- co minero, un estilo típicamente brasileño. Con el
search related the influence of Baroque culture to objetivo de analizar los temas, esta investigación
the way the city was colonized by the Portuguese relacionó la influencia de la cultura barroca con
in Ouro Preto and highlighted the difference with la forma en que la ciudad fue colonizada por los
the way they were occupied the Spanish colonies. portugueses en Ouro Preto y destacó la diferen-
Thus, this essay uses Ouro Preto as an example to cia con la forma en que fueron ocupadas las co-
differentiate how the Baroque culture developed lonias españolas. Siendo así, este ensayo utiliza
differently in the colonies of America. Ouro Preto como ejemplar para diferenciar cómo
la cultura barroca se desarrolló de forma diversa
en las colonias de América.
BAROQUE MINER BRAZILIAN COLONIAL CITY
BAROQUE ARCHITECTURE
BARROCO MINERO CIUDAD COLONIAL BRASILEÑA
ARQUITECTURA BARROCA
EIXO TEMÁTICO 1 INTRODUÇÃO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO O movimento barroco se desenvolveu especial-
mente na Itália e na França entre os séculos XV e
XVIII, alterando radicalmente tanto a forma quanto
vídeo-pôster o estilo de vida urbano (práticas, culturas...). Ex-
pressão urbana e arquitetônica do absolutismo,

BARROCO MINEIRO: ORIGENS


o barroco direciona os indivíduos à igreja e ao
controle do rei, e está vinculado ao concilio de

E TRADUÇÕES EM TERMOS Trento, derivado da Contrarreforma. Esse estilo


arquitetônico teve seu apogeu no século XVII. Nos
DE ARQUITETURA E PLANO dois séculos anteriores, teve sua fase chamada
de “renascença” - embora Mumford (2008) tenha
URBANO explicado que chamar de renascimento é com-
preender mal tanto o impulso quanto o resultado,
já que essa fase serviu para modificar peque-
BARROQUE ARCHITECTURE AND URBAN PLANNING OF nas partes da cidade histórica com o objetivo de
MINAS GERAIS voltar ao ponto de partida. Por isso, os estilos
renascentista e barroco se misturaram nessa
BARROCO MINERO: ORÍGENES Y TRADUCCIONES EN fase, criando, como disse Lúcio Costa (2006),
TÉRMINOS DE ARQUITECTURA Y PLAN URBANO uma “terra-de-ninguém”.

No século XVII, o barroco teve seu auge e a vida


urbana afastou-se dos princípios medievais e
passou a seguir os princípios do príncipe. Esse
período foi marcado por rigorosas regras de com-
posição, avenidas longas e regulamentação legal
com relação às construções. Suas principais ca-
racterísticas são a rua reta, o gabarito harmo-
nioso dos tetos, o arco perfeito e a repetição de
elementos uniformes, cornijas, lintéis, janelas e
colunas na fachada. As fachadas bidimensionais
e a abordagem frontal, característica das casas
“coladas” umas nas outras e sem grandes adições
nas fachadas que prejudicassem a circulação da
rua à frente, trazem clareza e simplicidade.

Já no fim do século, as colunas se afastam para


dar lugar às imagens e multiplicam-se os anjos. O
movimento barroco do século XVII foi importante,
pois, segundo Mumford (2008), abrangeu dois
elementos contraditórios da época. O primeiro é
o aspecto matemático e abstrato encontrado nos
seus traçados geométricos, nos seus rigorosos
planos de ruas e nos desenhos dos jardins. O se-
gundo aspecto está nas pinturas e esculturas, pois
abrange o lado sensual, rebelde e extravagante
da época encontrado nas vestes, na vida sexual
e no fanatismo religioso.
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
A cidade barroca era construída levando em conta
494 a forma da corte, os modos e os gostos do palá-
cio. O plano urbano distinguia-se da formalida- tros, como Maria Lúcia Bezerra (2011), abordam
de medieval, pois usava linhas retas formando as diferentes formas como as nações portuguesa
quarteirões regulares, a presença de uma praça e espanhola ocuparam suas colônias minerado-
aberta com avenidas irradiantes que levam até o ras. Já Lúcio Costa (2006), analisa a arquitetura
horizonte, gerando uma planta em asterisco. A colonial brasileira, relacionando com os fatos
cidade medieval era pensada para ser caminhada históricos marcantes para o país. Procura-se, a
a pé, observando lentamente seus traçados; já na partir deste ensaio, analisar ambas temáticas,
cidade barroca é possível observá-la com um olhar relacionando a influência da cultura barroca à
só, e como disse Mumford (2008), “mesmo aquilo forma como a cidade foi colonizada pelos por-
que não se vê pode-se facilmente traduzir na tugueses em Ouro Preto e destacar a diferença
imaginação, uma vez que se achem estabelecidas com a forma com que foram ocupadas as colônias
as linhas de orientações.” Ele explica que as ruas espanholas. Sendo assim, este ensaio utiliza Ouro
horizontais se tornaram um símbolo importante, Preto como exemplar para diferenciar como o
pois a ágil movimentação de pessoas na cidade, movimento barroco se desenvolveu de forma
sendo de carruagem ou a cavalo era essencial diversa nas colônias da América.
para que a estética monótona das avenidas e dos
edifícios uniformes não seja tão notada. O plano
barroco expressa a conquista militar do espaço A CIDADE COMO INSTRUMENTO DE CONQUISTA
e mostra o paradoxo, o dilema vivido pelo homem DO TERRITÓRIO COLONIAL
da época. Como expressa Costa (2011, p.65), “a
apreensão universal do sentido do barroco leva- A cidade construída pelos portugueses é um con-
-nos ao dilema material existencial do homem e, junto de várias influências, como por exemplo
especialmente, do artista do período.” a mulçumana. O urbanismo colonial português
expressa duas vertentes: por um lado uma ar-
O movimento barroco se expandiu para além da quitetura vernacular e mediterrânea e por outro,
Europa chegando à América Latina por intermédio uma concepção intelectual e abstrata. Tradicio-
dos conquistadores, portugueses e espanhóis. nalmente as cidades no Brasil possuem peculia-
Sua manifestação no Brasil tinha características riadades decorrentes da urbanização portugue-
distintas as que deram origem ao estilo, mas ser- sa, como a escolha para posicionar construções
viram como base para a criação de uma expressão importantes, especificidades do relevo, linhas
genuinamente brasileira, o barroco mineiro. estruturantes e na arquitetura vernacular e eru-
dita. De acordo com Mylène Goudet (2010):
A historiografia do barroco mineiro é investigada
neste artigo através da cidade de Ouro Preto. Tem- Tornou-se usual dizer que a colonização
-se como objetivo geral a análise da influência do portuguesa no Brasil produziu espaços
barroco mineiro nessa cidade e suas relações com urbanos qualitativamente inferiores aos
a colonização portuguesa, apontando diferenças espaços de colonização hispânica. Segundo
com as demais colônias na América, ou seja, com Giovanna Rosso Del Brenna (1982/1983, p.
relação às diretrizes da colonização espanhola, 140-146) essa afirmação pautou-se na ideia
abordando os aspectos arquitetônicos e do plano de que o traçado xadrez hispânico fora mais
urbano. Evidencia-se que o barroco tem mais for- desenvolvido, com mais intenção urbana,
ça no traçado urbano das cidades fundadas pelos do que o traçado orgânico, quase casual
conquistadores espanhóis na América Latina, das cidades brasileiras na época colonial.
enquanto em termos de expressão arquitetônica A colonização hispânica demonstrava seu
tem destaque em território brasileiro, especial- poder excluindo qualquer vestígio das civili-
mente na região das minas. zações vencidas, intervindo em dimensões
urbanas através da tabula rasa, construindo
No quadro de referências, promoveu-se o diá- a partir do zero suas cidades planejadas.
logo entre alguns autores, como Rodrigo Baeta
(2003), que analisaram a influência da ocupação A conquista portuguesa do território brasileiro
espontânea em Ouro preto na alta dramaticidade iniciou-se no século XVI pelo litoral, denominada
do cenário barroco encontrado pela cidade. Ou- por alguns autores como uma urbanização de
EIXO TEMÁTICO 1 fachada. No livro “Raízes do Brasil”, Sérgio Bu-
arque de Holanda analisa o aspecto urbano da
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO colonização portuguesa, e aponta que esta acom-
panhava o relevo natural e não tinha um conjunto
de regras definidas. De acordo com Marx (1980)
“A gênese das vilas coloniais brasileiras tem sido
caracterizada como essencialmente “espontânea”
e orgânica”. Se Sérgio Buarque chegou a definir
o urbanismo português como desleixado, outro
autor, Paulo Ferreira Santos avalia de outra forma
a cidade colonial brasileira:

É que, naquela aparente desordem que leva


a admitir, como o fez o eminente historia-
dor patrício, a inexistência de um traçado
prévio ou de uma ideia diretriz, existem
uma coerência orgânica, uma correlação
formal e uma unidade de espírito que lhe
dão genuidade. Genuidade como expressão
espontânea e sincera de todo um sistema
de vida, e que tanta falta faz à cidade regu-
lar, traçada em rígido tabuleiro de xadrez.
Esta, dado o «processus» mesmo de sua
criação, há de ser, necessariamente, pro-
duto de uma ideia preconcebida com que
o projetista pretende, não raro artificiosa-
mente, ordenar, disciplinar, modelar a vida
que nela vai ter lugar. (SANTOS, 1968 apud
FONSECA, 2012).

O plano barroco é o avesso dessa flexibilidade,


sendo caracterizado pela rigidez, pela formalida-
de, pela presença de grandes avenidas marcando
o traçado. É importante mencionar que este mo-
delo urbanístico não teve grande influência em
Portugal. Por outro lado, os espanhóis fizeram
do plano urbano um instrumento de conquista
e controle militar do território na américa colo-
nial. Assim, seu plano urbano é mais fiel ao plano
barroco na Europa, com sua malha em xadrez,
praças e avenidas.

As diferenças entre o modo de colonizar cidades


dos espanhóis e dos portugueses começam na
legislação. Dotados de um código legislativo de
âmbito geral, os espanhóis exigiam determina-
ções específicas para cada caso de cada cidade,
mas em geral, essas exigências em relação à
fundação das cidades se espalhavam entre elas
em forma de doutrina.
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
Os portugueses tentaram trazer, em Salvador,
496 modelos de planos de cidades, mas o que se reali-
zou seria informal, à moda medieval, priorizando a perfeita e seus alinhamentos não eram seguidos
defesa pela altura. No Rio de Janeiro – Morro Cara à risca. Paulo Santos comenta sobre uma praça
de Cão para o de São Januário – teve esses mesmo de Ouro Preto:
ideais de plano, nos princípios do século XVII, já
era aproximadamente regular ao seu traçado. Em Na Praça dos Governadores, em Ouro Preto,
São Luís do Maranhão, é mais expressivo, sendo possui dois edifícios principais que defron-
perfeitamente ortogonal e compreendida como tam um em cada extremidade da praça: a
um todo. Nessas cidades a regularidade é rela- casa dos Governadores (no alto) e a casa de
tiva, mas sem a repetição de quadrículas que se Câmara e cadeia. Mas a forma da praça é
vê nas cidades de colonização hispânica. Muitas irregular; não há eixo retilíneo; as ruas de
cidades se formaram conforme as necessidades cada lado e nas extremidades são assimé-
locais, sem planejamento antecipado. Enquanto tricas e as casas que fazem frente para a
algumas, fundadas por determinação expressa praça, são mais baixas [...]. (SANTOS, 2008,
do Reino, tiveram plantas prévias e enviadas para pg.76).
aprovação na Metrópole.

No fim do século XVIII, acentua-se a preferên- O BARROCO BRASILEIRO EM SUA EXPRESSÃO


cia pelos traçados ortogonais nos projetos das ARQUITETÔNICA
povoações. No século XIV torna-se comum em
várias vilas o uso do xadrez perfeito sem perso-
No Brasil, as referências arquitetônicas trazi-
nalização ou adaptação. Essa orientação veio
das pela igreja chegam com os Franciscanos no
de influência hispânica, devido à aproximação
Nordeste, que constroem em 1585 e 1590 dois
dos povos para o preparo do Tratado de Madri e
conventos que não se conservaram no tempo.
como solução dos problemas de fronteira que
Porém, a partir da segunda metade do século XVII,
se seguiam.
após a saída dos holandeses do país, a região de
As praças do Brasil colônia eram o centro da vida maior influência dos franciscanos no Nordeste
urbana social, onde se realizava cerimonias cí- sofre um avanço religioso com a reconstrução
vicas, festividades religiosas e recreativas, e de vários conventos. Chaga (2014) cita que essas
serviam de mercado e feiras. Eram consideradas reconstruções foram feitas com material resis-
um ponto importante no traçado barroco, sen- tente, basicamente o tijolo cozido, a pedra e a
cal, em virtude da abundância desse material.
do que na colonização espanhola a Plaza Mayor
era o marco de início para a fundação de uma
Devido aos hábitos de pobreza, pregados pela
cidade e a partir daí criar arruamentos para a
Ordem dos Franciscanos, as construções como
expansão. Assim, são definidos os locais para
um todo possuem uma arquitetura simples. Po-
fixação do poder junto da igreja e na Plaza Mayor
rém, algumas áreas, como as escadas e os fron-
ficam localizados o poder religioso, a justiça e a
tispícios, receberam maior atenção em relação
política. Sua estrutura era ortogonal e retilínea,
à arquitetura. Os princípios das composições,
pois seguia os padrões adotados no resto da ci-
como frontão com uma torre recuada e a galilé
dade. Os portugueses ao criarem cidade, tinham
(construída do lado de fora do templo, coberta
primeiramente a preocupação de defesa, assim
com telhado ou cobertura, protegendo a entra-
as praças de igrejas surgiram dos pátios, terrei-
da da igreja, como na figura 1), que formam os
ros que ficavam as redor dos edifícios religiosos
conventos e igrejas do Nordeste podem ser ve-
e que ao longo do tempo as famílias foram se
rificados em Portugal, principalmente na região
apropriando, denominadas então como praças
do Alentejo, o que demonstra certa conformidade
religiosas. Seu perímetro é irregular pois o lote
do barroco brasileiro com relação ao português.
acompanhava a topografia do terreno.

Nelas se localizavam os edifícios principais, como


a igreja matriz, a casa de Câmara e cadeia e a casa
dos Governadores. Mesmo sendo o centro das
atenções, as praças não tinham uma regularidade
EIXO TEMÁTICO 1
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO

Figura 1: Igreja de Nossa Senhora d’Aires, em Viana do


Alentejo, Portugal. Fonte: Alentejanos (2011)

A cidade do Rio de Janeiro, recém-nova capital


do Brasil, tida como fundamental para Portugal,
teve no século XVIII seu espaço urbano bastan-
te modificado, deixando clara a relação da sua
arquitetura com a europeia. Ela era primordial
como o intermediário econômico entre Minas
Gerais e os portos portugueses, destacando-se
a Estrada Real, oficializada pela Coroa Portu-
guesa como o caminho para o trânsito de ouro e
diamantes de Minas Gerais até os portos do Rio
de Janeiro. Consequentemente, em meados do
século, influenciou diretamente as cidades de
maior desenvolvimento de Minas Gerais, São João
del-Rei, Ouro Preto e Mariana, que desenvolveram
inovações relativas à planimetria ligadas ao Tar-
do-Barroco Internacional (movimento barroco que
chegou em algumas localidades de forma tardia).
Duas igrejas cariocas tiveram grande importância,
a Igreja de São Pedro dos Clérigos (1733-1738),
na figura 2, à esquerda, possivelmente projeta-
da por Dr. Antônio Pereira de Sousa Calheiros,
demolida em 1943 para ampliação da Avenida
Presidente Vargas, e a Igreja de Nossa Senhora
da Glória dos Outeiros (1730), também na figura 2,
à direita, projetada pelo engenheiro militar Joa-
quim Cardoso Ramalho, onde podemos encontrar
uma referência de Portugal em sua planta. Após
isso, Dr. Calheiros ainda projetou igrejas em Minas
Gerais (Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos
Pretos, em Ouro Preto e a Igreja de São Pedro dos
Clérigos, em Mariana) com a mesma concepção
e suas planimetrias são as mesmas adotadas na
16º SHCU
igreja do Rio de Janeiro.
30 anos . Atualização Crítica

498
Figura 2: Fachada da Igreja de São Pedro dos Clérigos Rio de Janeiro e Fachada da Igreja Nossa Senhora da Glória do
Outeiro Rio de Janeiro. Fonte: Wikipédia (2017 e 2009, respectivamente)

O imigrante português Doutor Antônio Pereira tugal que projetaram igrejas no Rio e em Minas,
de Souza Calheiros foi um dos pioneiros e mais como o Doutor Antônio Pereira de Souza Calheiros.
importantes influentes na arquitetura Tardo-Bar-
roca desenvolvida em Minas Gerais, apesar de ter
começado sua carreira no Rio de Janeiro, contri-
buindo também para a transmissão de culturas EXPRESSÕES DO BARROCO EM OURO PRETO
entre Portugal e o Brasil.
O avanço da ocupação colonial do litoral para a
Acredita-se que ele tenha estudado no Colégio região das minas foi um processo que durou mais
das Artes em Portugal pelo longo período de for- de três séculos. Com a descoberta dos minérios,
mação, tendo assim, contato direto com a arqui- começam expedições para o interior do país e
tetura somado à prática de experimentação e de dos acampamentos de pouso dos bandeirantes
liberdade que até então não podia ser exercida no
surgem vilas, as quais repetem o modelo de cidade
país de origem justificou-se os seus traços nos
implantada pelos portugueses na costa brasilei-
projetos brasileiro. Deduzindo que é mais prová-
ra, linear e irregular. Inicialmente, os ranchos de
vel que quando imigravam para a região mineira
capim, distribuídos ao acaso pela vila eram ape-
traziam consigo os conhecimentos intelectuais
nas abrigos dos paulistas contra as intempéries,
do padrão estético que estavam habituados e,
sem a pretensão de qualquer assentamento que
possivelmente, objetos que atualizariam os novos
indicasse um arruamento. A ordenação urbana se
padrões incorporados em suas especialidades.
deu principalmente pelos emboabas, que tiveram
Contudo, nas obras barrocas de Minas Gerais é de impor traços para uma organização mínima,
possível perceber influências do barroco portu- como o desenvolvimento dos caminhos em arru-
guês na estrutura funcional e na organização do amentos e a organização dos edifícios religiosos,
plano geral com torres laterais à nave, capela-mor, civis, públicos e privados, já que a contribuição
corredores laterais e sacristia; e do italiano, na feita pelos paulistas foi somente a localização
implantação de plantas elípticas. das matrizes (inalterada), de postos de comércio,
de assentamentos e os traçados dos caminhos.
Devemos concluir, então, que o barroco, apesar Segundo Vasconcelos (1974), no início do século
de ter chegado ao Brasil através dos Francisca- XVIII os emboabas superavam os paulistas em
nos, no Nordeste, teve grande desenvolvimento a número e em poder econômico.
partir do avanço da mineração, no século XVIII, e
da transferência da capital para o Rio de Janeiro, A Figura 3(a), apresenta a formação da malha urba-
destacando a figura dos arquitetos vindos de Por- na do território no início do povoamento no período
EIXO TEMÁTICO 1 da descoberta do ouro. Diferente da ocupação do
litoral, na região das minas a preocupação com a
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO defesa e a escolha do terreno não foram levadas
em conta, e sim, as lavras de mineração próximas
a córregos ou nas encostas de morros. Isso tam-
bém se deve ao fato de que em razão dos fortes
declives e da camada do solo pouco profunda,
era inviável o estabelecimento de plantações. Em
1711, devido ao crescimento dos vários arraiais, a
região foi elevada à categoria de vila, denominada
Vila Rica do Albuquerque.

A Figura 3(b), apresenta o crescimento da popu-


lação de Vila Rica em torno das áreas mineradas.
Desse modo seu traçado é diferente do que estava
ocorrendo na colônia espanhola, pois ele seguiu
o relevo acidentado e se adequava aos níveis do
terreno, gerando assim, um caráter orgânico. A
regulamentação das vilas mineradoras vinha do
reino, porém não se enquadravam com a reali-
dade.

Em 1720, Vila Rica passa a ser a sede da capitania


de Minas Gerais e em 1730 ocorreu a fase áurea
da urbanização, consequência da expansão do
tecido urbano e da definição de um centro admi-
nistrativo. Além disso, com esse crescimento foi
necessário o melhoramento urbano através da
construção de edifícios e equipamentos públicos.
Nos centros urbanos, ao redor das praças ficavam
as casas da elite junto do comércio e na periferia,
se localizavam as comunidades carentes. A Figura
3(c), apresenta a formação da atual da região em
torno da Praça Tiradentes e o crescimento em
torno dela. Em 1747, é criado um “código de obras”,
regulamentando o limite dos atos nas edificações.

Em 1825, a vila foi elevada à condição de cida-


de, sendo então nomeada Ouro Preto. Em 1897, a
capital de Minas Gerais foi transferida para Belo
Horizonte, causando um período de declínio e
déficit populacional. A cidade foi tombada pelo
SPHAN (hoje IPHAN) em 1938 depois de ser decla-
rada monumento nacional em 1933. A Figura 3(d),
apresenta a expansão da malha urbana de Ouro
Preto na segunda metade do século XX.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

500
Figura 3 – Evolução da ocupação de Ouro Preto. Fonte: Jeanne Michelle Garcia Castro (2006, p. 8)

Em 1980, Ouro Preto foi declarada patrimônio da


humanidade pela UNESCO. A atual configuração
da cidade pode ser visualizada na Figura 4.

Figura 4 - Ocupação atual de Ouro Preto. Fonte: Jeanne Michelle Garcia Castro (2006, p. 9)
EIXO TEMÁTICO 1 Em termos de plano urbano, o barroco não influen-
cia a morfologia da cidade, como nota-se pela
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO análise urbana, ou quando analisa-se sua principal
praça. A Praça da Independência conhecida desde
1894 como Praça Tiradentes, se localiza no que foi
conhecido como morro da Quitéria e é composta
por um monumento em homenagem a Joaquim
José da Silva Xavier, o Tiradentes, o museu da
Inconfidência Mineira (antiga casa de câmara e
cadeia), Museu de Ciência e Técnica (antigo Palácio
dos Governadores) e casarios onde muitos foram
projetados por José Fernandes Pinto Alpoim,
engenheiro e arquiteto português, enviado ao
Brasil por D. João V, foi de suma importância para
o Estado. Veio ao país com o objetivo de ensinar a
artilharia mas além disso escreveu dois livros, foi
o primeiro professor de matemática contratado
por Portugal para o Brasil e teve seu destaque no
âmbito da arquitetura. Suas principais obras são
os Arcos da Lapa (aqueduto da carioca) Convento
de Santa Tereza, o Palácio dos Governadores e
o Conjunto Alpoim, ambos localizados na Praça
Tiradentes. Segue abaixo imagem da Praça de
Tiradentes com vista para o antigo Palácio dos
Governadores, atual museu de Ciência e técnica.

A estrutura da praça se deu primeiro com a cons-


trução do palácio dos governadores e no sentido
oposto posteriormente foi erguido a casa de câ-
mara e cadeia e assim se funda a área adminis-
trativa de Vila Rica. Trata-se de uma praça seca,
aberta e que tem como delimitação de seu espaço
as fachadas que a rodeiam, possuindo um monu-
mento central e ruas que saem do seu perímetro
e se expandem. Nesse sentido, se diferencia de
praças de colonização espanhola (onde as regi-
ões de planalto eram escolhidas para fundar as
cidades, ao contrário da malha portuguesa, que se
adequava à topografia, regular ou não, da região),
como o caso da Praça de Bolívar em Bogotá na
Colômbia onde as ruas que irradiam são em linhas
ortogonais e a forma do terreno tem origem de
uma malha quadrangular. Como podemos ver
melhor na Figura 5 a seguir.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

502
Figura 5 – Praça de Tiradentes e vista de satélite das praças de Tiradentes e Bogotá, respectivamente. Fonte: Portal
Brasiliana Fotográfica e Google Maps (2020).

O traçado das ruas irradiantes e a forma urbana do Brasil. A distância física do litoral para a região
como foi constituído os lotes mostram a grande das minas proporcionou uma “barreira” natural
diferença entre as colonizações portuguesas e entre os modelos que vinham da Europa e, assim,
espanholas. Além dessa diferença a praça de sem tanta influência lusitana criou-se uma arte
Tiradentes tem outra característica singular, tipicamente nacional.
que seria a ausência de um edifício religioso na
composição de suas fachadas, e isso mostra a Foi nesse meio oscilante de inconstâncias
importância desse lugar. [Minas Gerais] que se desenvolveu a mais
característica arte religiosa do Brasil. A
Everaldo Costa (2011) argumenta que não devemos Igreja pôde aí, mais liberta das influências
pensar o barroco como um movimento “isolado”, de Portugal, proteger um estilo mais unifor-
pois ele é influenciado por vários aspectos, como me, mais original, que os que abrolhavam
mudanças em sociedade, cultura entre outros. Ao podados, áulicos, sem opinião própria nos
pensarmos no barroco mineiro, o autor reafirma dois outros centros [Rio e Bahia]. Estes
essa ideia, pois na sua visão o estilo ocorrido no viviam de observar o jardim luso que a mi-
brasil retrata a sociedade da época. “ [...] falam de ragem do Atlântico lhes apresentava con-
uma sociedade e relações de classes fortemente tinuadamente aos olhos: em Minas, se me
resultantes de uma imbricada interação com a permitirdes o arrojo da expressão, o estilo
natureza, com particularidades próprias, ontem barroco estilizou-se. As igrejas constru-
e hoje” (COSTA, 2011, p.65). Outro fator pontuado ídas por portugueses mais aclimados ou
também é o fato de ser cidade mineradora, isso por autóctones algumas, provavelmente,
significa local onde havia muitos tributos, que como o Aleijadinho, desconhecendo até
estava em descoberta, em desenvolvimento e o Rio e a Bahia, tomaram um caráter mais
com crises ao longo do tempo. bem determinado e poderíamos dizer muito
mais nacional. (ANDRADE, 1993, p. 78).
Segundo Barbosa (2004), o século XVIII pode ser
entendido como um período em que foram pro- O barroco mineiro se diverge do europeu, pois se
duzidas artes tipicamente brasileiras, como a de caracteriza pelo traçado contido e harmonioso,
aleijadinho. Além dessa dinâmica, a distância do pelas linhas curvas. Com uma estética mais bela e
interior para o litoral (local onde as influências nobre, decorrente do elemento decorativo agora
portuguesas, impostas pela corte, vigoravam no plano arquitetônico, o estilo fica livre da grande
plenamente) proporcionou em solo mineiro um ornamentação como elemento externo o que é
estilo nacional, com a mão de obra dos emboabas, presente no modelo português. O barroco euro-
sem tanta interferência lusitana. peu serviu como base para a criação desse novo
modelo e mesmo havendo características que os
Na região das minas, após o auge da extração diferem ainda existe afinidades como, por exem-
do ouro, a igreja conseguiu mais força e a partir plo, as linhas curvas nas fachadas que no percor-
disso implantar um estilo arquitetônico original rer do caminho gera surpresa e arrebatamentos.
EIXO TEMÁTICO 1 Segundo Machado (1973, p. 107-109), o Brasil da
época, ao contrário da Europa, era quase que
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO unicamente paisagem, natureza. E nossas arqui-
teturas barrocas nunca precisaram concorrer em
grandiosidade com as recém-formadas cidades.
As igrejas eram construídas em espaços abertos,
geralmente no topo dos morros, em platôs cen-
tralizados cada vez mais altos e próximos do céu.
Como exemplares interessantes para análise,
temos a Igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar
e a Igreja de São Francisco de Assis.

Em torno de 1705, havia na Praça Monsenhor João


Castilho Barbosa uma capela, feita de madeira e
taipa, devota a Nossa Senhora do Pilar, que re-
metia a origem castelhana. Em 1710, foi elevada
à condição de matriz, e tornou-se a sede do povo
após a criação de Vila Rica.

A construção da atual Matriz de Nossa Senhora


do Pilar em Ouro Preto, começou por volta de
1730, a partir do projeto do engenheiro militar
Pedro Gomes Chaves. Essa reconstrução mudou
a orientação da igreja, cuja fachada ficou descen-
tralizada com relação ao tecido urbano definido,
mostrando uma das características mais marcan-
tes da colonização portuguesa, a irregularidade
da edificação com relação ao traçado urbano.

Assim, como algumas das igrejas construídas na


mesma época, sua planimetria é representada
pela justaposição de dois retângulos, sendo o
primeiro à nave, cuja sua imensa obra de carpin-
taria e marcenaria, feita entre 1735 e 1737, deu a
configuração de elipse, como pode ser visto na
figura 6, devido as suas pilastras de dupla altura,
que entre elas foram inseridas retábulos laterais, e
cobertura em teto plano, subdividindo em painéis
de contornos irregulares, que sustenta tanto os
retábulos e as tribunas, por onde há entrada de luz;
e o posterior à sacristia, corredores laterais, que
dá acesso ao segundo pavimento, onde se localiza
o consistório e as tribunas; e a capela-mor, que a
partir de 1746, começa a ornamentação composta
de entalhamento. No geral, devido ao material
utilizado, adobe e taipa, várias partes foram ne-
cessárias reformas, e, com isso, aproveitaram
para realizar melhoramentos de aspectos que
achavam necessário, como ampliar e atualizar.
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

504
Figura 6 – Parte interna da nave à esquerda e fachada à direita da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar. Fontes: Grupo
Abril (2011) e Wikipédia (2015).

As características da atual fachada, vista na Fi- responsável pelo projeto arquitetônico. Nesse
gura 6, são similares a outras igrejas mineiras momento, a figura de Doutor Antônio Pereira de
do século XVIII. Como a reforma das torres, com Souza Calheiros também foi importante, já que
os chanfros cortados que se assemelha a Igreja foi ele quem propôs os riscos para as igrejas da
Matriz de Nossa Senhora da Conceição de An- época. Mesmo sendo influenciada pelos modelos
tônio Dias e de modelos europeus passados; e do Barroco italiano, a Igreja de São Francisco de
o bombeamento do frontispício, característica Assis ainda é vinculada aos modelos portugueses,
muito marcante em modelos europeus, utilizada numa concepção da tradição clássica no trata-
também nas Igreja de Nossa Senhora do Rosário, mento das fachadas laterais, na planimetria e no
em Ouro Preto, e São Pedro dos Clérigos, em Ma- estilo italiano aplicado nas curvas e contracurvas
riana, em meados do século XVIII. da fachada principal. Já o interior ficou nas mãos
de Mestre Ataíde, trazendo pinturas da Assunção
O frontispício e frontão, também bombeado, dão de Nossa Senhora com anjinhos músicos tornando
mais movimento e leveza. O óculo colocado no essa Capela um exemplo forte do barroco mineiro,
eixo central, gerando a inflexão da cornija, são como é visto na Figura 7 a seguir.
características importantes introduzidas na épo-
ca. As volutas são mais presentes, e as curvas e
contracurvas mais evidentes. As colunas laterais
ao portão principal têm a mesma técnica de cons-
trução para o fuste e o capitel utilizado na Igreja de
São Francisco de Assis de Ouro Preto. Apresenta
pouca ornamentação na fachada, especialmente
no tratamento dado às aberturas.

Como já mencionado, podemos verificar que a


edificação apresenta vários aspectos presentes
em outros modelos europeus, que provavelmente
foi trago por imigrantes e/ou principalmente de
herança traga da colônia portuguesa.

A Igreja de São Francisco de Assis de Ouro Pre-


to, construída entre 1800 e 1809, é considerada
uma das obras primas de Aleijadinho, que ficou
EIXO TEMÁTICO 1
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO

Figura 7 – Pintura do interior da Igreja São Francisco de


Assis de Ouro Preto e fachadas da Igreja de São Francisco
de Assis de Ouro Preto e da Igreja de São Francisco de Assis
de São João del-Rei, respectivamente. Fontes: Pinterest,
Wikipédia (2007) e Guia Viagens Brasil.

De acordo com os estudos de Dangelo e Brasileiro


(2008), a Igreja representa dentro do barroco
mineiro um dos principais edifícios que foram
planejados inteiramente, pois as soluções foram
aplicadas em projeto, estruturadas e aplicadas.
Já outras grandes matrizes mineiras tiveram
suas fachadas modificadas com a chegada do
Rococó, mas permaneceram com sua forma do
início do século XVIII.

No exterior, os desenhos das portas e janelas


eram ora mais conservadores, retomando o
modelo da segunda metade do século XVIII, ora
mais elegantes e modernos, modelos já utiliza-
dos na Europa central, rompendo com o padrão
clássico que era comum. Essa criatividade seria
amplamente utilizada após o projeto de São Fran-
cisco, já que o movimento posterior, o Rococó,
tem como uma das características principais a
luminosidade.

Além das pinturas, a Igreja São Francisco de Assis


de Ouro Preto possui ornamentos característi-
cos, como sua torre cilíndrica locada atrás do
frontão (tal característica diferencia as igrejas
com origem na colonização portuguesa das com
16º SHCU origem na colonização espanhola, que em sua
30 anos . Atualização Crítica
maioria possuem torres em formato retangular),
506 seu formato especial da abóboda, os púlpitos nas
ilhargas do arco do cruzeiro (já utilizadas na Igreja mudanças que os difere. Uma de suas principais
de Santo Estevão de Alfama, de 1733) e a cornija características é a utilização dos ornamentos
utilizada para substituir o óculo, com a mesma no traçado da cidade e não mais nas fachadas,
solução da Igreja de São Francisco de Assis de como ocorria na Europa, assim o exterior dos
São João del-Rei: a inflexão da cornija, solução edifícios são menos ornamentados do que no
também utilizada na Igreja de San Sebastiano em barroco europeu. Ouro Preto se destaca pelas
Mântua e no barroco internacional. A comparação suas construções, que a compõem se configu-
entre a Igreja de São Francisco de Assis de Ouro rando num cenário.
Preto e de São João del-Rei está na Figura 7.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Concluímos que, através dos fatos, das teorias


e metodologias dos autores analisados, a co-
lonização hispânica se evidenciou no barroco
principalmente através do traçado urbano, com
linhas bem delimitadas, com planos ortogonais,
formando uma malha/xadrez. Já a colonização
portuguesa se evidenciou principalmente nas
fachadas, trazendo aspectos com algumas adap-
tações para a forma, construção e ornamentação.

Para compreendermos o barroco mineiro, foi


preciso buscar suas raízes, as questões teóri-
co-metodológicas aplicadas e entender o estilo
barroco que surgiu na Europa e que teve seu auge
no século XVII. Esse movimento tinha origens do
absolutismo e da igreja, já que é oriundo da Con-
trarreforma. O barroco se espalhou por muitos
países e para alguns suas influências foram fortes,
em Portugal o movimento não teve tanta persu-
asão e por isso no Brasil é encontrado mais na
arquitetura do que no plano urbano. O movimento
chegou em nossas terras através dos jesuítas que
tiveram maior atuação no nordeste, a coloniza-
ção que aqui ocorreu foi feita primeiramente no
litoral, como uma fachada e as cidades mineiras
por estarem afastadas geograficamente, pelo seu
relevo, e pela sua fundação, voltada a extração
de minérios o que gerou um fluxo da vida urbana
nesse local, fizeram com que nessa região exis-
tisse uma arte típica do Brasil, o barroco mineiro.

O movimento criado na região das minas é de suma


importância para o Brasil, pois além de ser um
estilo artístico genuíno do país, trouxe visibilidade
ao território nacional. O barroco mineiro teve em-
basamento no barroco europeu, porém, por conta
da localização geográfica onde ocorreu, houve
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30 anos . Atualização Crítica
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EIXO TEMÁTICO 1 RESUMO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
As reflexões desenvolvidas nesse trabalho par-
tem do contexto histórico de formação da cida-
vídeo-pôster de de Belo Horizonte, desde sua formação como
Curral Del Rey até os dias atuais. Abordaremos
os processos de segregação ocorridos a partir
BELO HORIZONTE, CIDADE da expulsão da população mais pobre das áre-
as centrais da cidade para a implementação do
PLANEJADA (PARA A ELITE Plano da Nova Capital e os processos desenvol-
vidos que influenciaram no contexto de forma-
BRANCA) ção da cidade. Posteriormente, discutiremos a
relação entre segregação racial e o planejamen-
to urbano de Belo Horizonte, bem como seus re-
BELO HORIZONTE, CITY PLANNED (FOR THE WHITE flexos no contexto municipal atual.
ELITE)

BELO HORIZONTE GENTRIFICAÇÃO SEGREGAÇÃO RACIAL


PASSOS, Rogério Lucas Gonçalves
Arquiteto Urbanista, Mestrando no IGC/UFMG
rogergpassos@gmail.com

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

510
ABSTRACT RESUMEN

The reflections developed in this work start from Las reflexiones desarrolladas en este trabajo
the historical context of the formation of the city parten del contexto histórico de la formación de
of Belo Horizonte, from its formation as Curral la ciudad de Belo Horizonte, desde su formación
Del Rey to the present day. We will address the como Curral Del Rey hasta la actualidad. Abor-
relationship between racial segregation and the daremos la relación entre la segregación racial y
planning of Nova Capital, listing the developed la planificación de Nova Capital, enumerando los
processes that influenced the context of the city. procesos desarrollados que influyeron en el con-
texto de la ciudad.

BELO HORIZONTE GENTRIFICATION


RACIAL SEGREGATION BELO HORIZONTE GENTRIFICACIÓN
SEGREGACIÓN RACIAL
EIXO TEMÁTICO 1 A formação do Arraial do Curral Del Rey
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Desde o início as terras da atual Minas Gerais têm
sua história perpassada por fortes relações co-
loniais, muitas das vezes atreladas às atividades
vídeo-pôster
minerárias. A história de ocupação da atual cidade
de Belo Horizonte teve início por volta do ano de

BELO HORIZONTE, CIDADE 1702, quando o bandeirante João Leite da Silva


Ortiz fundou a Fazenda do Cercado, onde cultivou

PLANEJADA (PARA A ELITE uma pequena plantação e criou gado, utilizando


numerosa mão de obra escrava (BARRETO, 1996).
BRANCA) Ao mesmo tempo, Ortiz aproveitava para explorar
os afloramentos auríferos do Taquaril e as fais-
queiras do Barro Preto (ÁVILA, 2011).1
BELO HORIZONTE, CITY PLANNED (FOR THE WHITE
É de se saber que os bandeirantes eram figuras
ELITE)
típicas do Brasil colonial, sendo diretamente
responsáveis pelas incursões do “homem
branco” pelas áreas até então denominadas
de “desconhecidas”, resultando em “múltiplos
ganhos”: conhecimento geográfico, escravização
de indígenas, estabelecimento de povoações
e pontos de apoio para futuras expedições,
exploração de minas de ouro e prata, domínio de
terras, dentre outros. Veiga (2020, n/p) descreve
essa figura da seguinte maneira: “eles eram rudes,
geralmente iletrados, passavam longos períodos
embrenhados em matas e campos desconhecidos,
comiam mal e perseguiam índios” (grifo nosso).

Desde o início da ocupação do então Cercado


é possível notar a matriz racista expressa pelo
contexto histórico existente. Ainda hoje, a figura
do bandeirante é muitas vezes relacionada ao
herói, que de acordo com relato do historiador
Luís Soares de Camargo, em São Paulo, a figura
do bandeirante foi vinculada a do herói, respon-
sável pela ampliação da colônia ou daquele que
descobre as riquezas minerais a partir da ascen-
são econômica da cidade, especialmente a partir
do fim do século XIX e início do século XX. Com
isso, é criada não apenas uma história, mas uma
imagem desse ser, com características físicas
e vestuário próprio. Souza (2007, p. 152) explica
que “nos textos escritos sobre o bandeirante nas
primeiras décadas do século XX, é constituída
uma mitologia que toma o personagem a partir de

1. Este artigo toma por base investigação em andamento no


16º SHCU
mestrado de Rogério Passos, no Programa de Pós-gradua-
30 anos . Atualização Crítica
ção em Geografia da Universidade Federal de Minas Gerais,
512 sob Orientação de Geraldo Magela Costa
sua [suposta] positividade”2. O autor explica ainda atual bairro Lagoinha. Anos mais tarde o bandei-
que a existência do bandeirismo já era reconhe- rante realizou o requerimento de sesmaria, rece-
cida pela Coroa Portuguesa no período colonial, bendo a carta de concessão no dia 19 de janeiro de
estando associada à captura de indígenas, tendo 1711, onde as terras concedidas abrangiam quase
em vista sua escravidão. toda a área da capital de Minas (BARRETO, 1996).

Figura 2: Panorama do local em que existiram as casas,


engenho e senzalas da fazenda do Cercado. Fonte: Bar-
reto (1996).

Figura 1: Retrato dos bandeirantes evidenciando muitas


das características que acabaram por se tornar uma con-
venção de representação dessa figura. Fonte: Veiga (2020). A colonização portuguesa, diferente da espanho-
la, era realizada a partir de uma ocupação mais
livre da terra, desde que os lucros do comércio
A sesmaria3 de Ortiz possuía grande extensão, real e a efetiva ocupação da colônia fossem ga-
abrangendo, além das terras do arraial, as terras rantidos (ROLNIK, 1997). Desse modo, com base
limítrofes à Serra do Curral4, a Lagoa Seca e por- em trabalho desenvolvido por Meirelles (1985),
ção adjacente à Serra da Onça ou Serra do Retiro Rolnik (1997) explica que não havia uma noção de
Velho, divisor de águas do Ribeirão Arrudas5 e legalidade urbana lusa, uma vez que os códigos
Ribeirão da Onça, na porção correspondente ao existentes à época6 não tratavam das questões
de ordenação das cidades e critérios para sua
fundação, restringindo-se a questões muito mais
2. Souza (2007) ressalta, contudo, que os estudos históricos de ordem judiciária e fiscal que propriamente
nas últimas décadas do século inverteram essa perspectiva, urbanística e política.
tomando a mitologia construída pelos textos como eixo
temático e objeto de críticas. O sistema sesmarial no Brasil foi introduzido em
3. A Carta de Sesmaria era um documento de legalização da 1530, onde eram feitas concessões de terras de
propriedade territorial concedido pela Coroa Portuguesa maneira gratuita, “sob a exigência de ocupação
aos sesmeiros, que deveriam ocupar e povoar a terra, desen- com cultivo e desbravamento de terra e a obri-
volvendo atividades agropastoris e afins num determinado gatoriedade de pagamento de apenas um dízimo
prazo (normalmente dois anos, no caso de Minas Gerais).
– décima parte da produção –, à Ordem de Cristo7 ”
Alguns sesmeiros mineiros ocupavam a terra sem preocupa-
(ROLNIK, 1997, p. 21). O estabelecimento desse
ção imediata de legaliza-la por meio da carta. Esta trazia o
nome do proprietário, a data de concessão, a localização da
sistema foi forma encontrada por Portugal para
terra, a extensão e algumas vezes informações sobre o tipo garantir o poder sobre as terras de modo a não
e a quantidade de mão-de-obra, as atividades desenvolvi-
das, bem como o prazo de demarcação, cultivo e ocupação
6. Ordenações Afonsinas, de 1446, e Manuelinas, de 1521.
(GUIMARÃES e REIS, 1986 apud BARRETO,1995, p. 95).
7. Ordem militar religiosa que tinha o rei português como
4. Naquela época, Serra das Congonhas.
grão-mestre e cujo patrimônio se confundia com o próprio
5. Naquela época, Ribeirão Grande. patrimônio da Coroa (ROLNIK, 1997).
EIXO TEMÁTICO 1 abrir mão da soberania do Estado na concessão do
domínio da propriedade privada. Desse modo, era
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO realizada uma concessão de domínio condiciona-
da ao uso produtivo da terra. Caso a obrigatorieda-
de do cultivo não fosse cumprida, em um primeiro
momento esse domínio seria suspenso proviso-
riamente. A partir de 1475, essa cassação passa
a ter caráter definitivo. O regime sesmarial foi
difundido pelo Brasil, de modo que as terras eram
consideradas propriedade da Coroa e consignadas
à Ordem de Cristo (ROLNIK, 1997; CASTILHO, 1989)

Desse modo, até 1822, o regime jurídico de pro-


priedade de terras brasileiras teve como funda-
mento a sesmaria. Fato que “dada a vasta extensão
do país e sua escassa população, a oferta de terra
era tão grande que limites precisos não eram
estabelecidos nem eram relevantes” (ROLNIK,
1997, p. 21), consequentemente, as demarcações
eram muito imprecisas. Além disso, o processo
de obtenção das sesmarias era excessivamente
moroso e burocrático. Esses fatores combinados
permitiam que a posse pura e simples do território
ocorresse nas brechas do sistema sesmarial, no
qual o fundamento de domínio era baseado na
efetiva ocupação da terra (ROLNIK, 1997).

Com a independência do Brasil, no ano de 1822,


o regime de sesmarias foi extinto, iniciando um
período de amplo apossamento de terras, vigo-
rando o que alguns juristas denominam de regime
de posse de terras devolutas, transformando em
“costume jurídico” oficial uma prática que era
amplamente utilizada (MEIRELLES, 1985). Rolnik
(1997, p. 22) explica que “de 1822 a 1850, data da
promulgação da Lei de Terras, a ocupação pura
e simples transformou-se em regra”. A partir da
nova legislação, há uma importante alteração na
forma de apropriação da terra no Brasil, onde a
única forma legal de posse dessa passa a ser a
compra devidamente registrada.

Aliado à nova forma de legalização da posse de


terra no país, a legislação definiu, em seu artigo
18, a autorização de importação de colonos euro-
peus livres para trabalhar no Brasil. Silva e Pereira
(2018) explicam que essa foi a experiência de um
esforço de branqueamento da população, por
meio do estímulo à imigração de trabalhadores
europeus.
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
Art. 18. O Governo fica autorizado a mandar
514 vir annualmente á custa do Thesouro certo
numero de colonos livres para serem em- no Brasil é livre quando o trabalho é escravo; no
pregados, pelo tempo que for marcado, em momento em que se implanta o trabalho livre, ela
estabelecimentos agricolas, ou nos traba- passa a ser cativa”.
lhos dirigidos pela Administração publica,
ou na formação de colonias nos logares em O arraial foi estabelecido e, em sequência, tiveram
que estas mais convierem; tomando anti- início as atividades minerária e os ganhos a partir
cipadamente as medidas necessarias para de sua exploração. As terras da sesmaria original
que taes colonos achem emprego logo que foram gradativamente ocupadas, formando as
desembarcarem (BRASIL, 1850) (grifo nosso) primitivas fazendas que se tem notícia a partir da
Lei de Terras do século seguinte. Naquele tempo,
No início do século XIX ocorre o fortalecimento o arraial contava com a povoação de cerca de 30
da ideologia do branqueamento na Europa que, a 40 cafuas8 cobertas de sapé e pindoba.
no Brasil, “reverbera na crença de que para a
construção de uma sociedade republicana livre
é preciso construir força de trabalho adequada
– entenda-se possível de controle e branca” (SIL-
VA e PEREIRA, 2018, p. 32). Aproveitando a crise
italiana, a partir de 1870, o governo passa a adotar
uma política ativa, subsidiando a importação de
imigrantes europeus em larga escala. Em 1881,
o governo começou a pagar metade dos custos
provenientes do transporte da Europa até as fa-
zendas. Em 1884 o reembolso dos fazendeiros
passou a ocorrer de maneira integral e no seguin-
te, 1885, três anos antes da abolição, o governo
assumiu os custos de transporte dos imigrantes
por meio de subsídio direto (ROLNIK, 1997).

A partir da Lei de Terras, a propriedade fundiária


passa a ter um estatuto jurídico, podendo ser
hipotecada e servindo de garantia para a contra-
tação de empréstimos bancários, apresentando, Figura 3: Típica casa (cafua) que existia em Belo Horizonte
a partir desse momento, tendência de valoriza- em seus primeiros anos. Essas eram casas de pessoas
que não tinham condições de morar em bairros como o
ção. Ao longo do século XIX, tendo como ponto
Centro e o Funcionários. Fonte: Borsagli (2012).
marcante a abolição da escravatura em 1888, a
terra passa gradualmente a substituir o escravo
na composição da riqueza componente do capital
do fazendeiro, uma vez que, durante a transição O surgimento da Nova Capital mineira
para o trabalho livre, o papel de lastro passa do
escravo para a terra. É possível perceber a exis-
Após a proclamação da República, em 1889, a te-
tência de uma fronteira que era delimitada pela
mática acerca da transferência da capital mineira
inumanindade do escravo, o qual era definido,
de Ouro Preto para outra localidade movimentou
pelo senhor, como uma máquina de produzir de
o estado de Minas Gerais, intensificando as lutas
sua propriedade. O espaço do escravo era restrito
políticas entre as elites9 em torno do assunto.
ao território do senhor, sob o domínio da força
Havia um consenso sobre a necessidade da mu-
e violências físicas, com evidente demarcação
de diferenças de cultura e cor de pele, além de
desumanização por meio de um discurso etno- 8. Nome pejorativo dado às habitações construídas na época
cêntrico (ROLNIK, 1997). Rolnik (1997, p. 23) aponta a partir de referenciais africanos de padrão de arquitetura.
que “a conexão entre o novo regime de terras e o 9. Setores ligados à decadente atividade mineradora da
projeto de importação de colonos europeus livres Região Centra, agropecuários da Região Sul e cafeicultora
foi elucidada por José de Souza Martins: a terra da Zona da Mata.
EIXO TEMÁTICO 1 dança, tanto pelas deficiências da então capital
Ouro Preto, quanto pelo significado de atraso
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO atribuído à setecentista cidade colonial mineira
no contexto de implantação da jovem República.

Ao final de 1892, nomeou-se a Comissão d’Estudo


das Localidades Indicadas para a Nova Capital,
presidida pelo engenheiro politécnico paraense
Aarão Reis (1853-1936). Barreto (1996) explica que,
para determinar a cidade que seria promovida à
Nova Capital, deveriam ser considerados alguns
requisitos, sendo três condições tidas como es-
senciais: 1) salubridade reconhecida do clima; 2)
abundância de água potável de boa qualidade, 3)
condições topográficas adequadas ao desenvol-
vimento de uma grande cidade em boas condi-
ções de alinhamento e nivelamento. A comissão
apresentou parecer com solicitação de estudo
para alguns municípios, sendo, ao final, Belo Ho-
rizonte a escolha vitoriosa (BARRETO, 1996), uma
vez que se considerou que a nova capital deveria
estabelecer-se em região mais central, trazendo
equilíbrio e unidade ao estado.

De acordo com Leme (1999), a ideia de construir


uma nova capital para o estado de Minas Gerais
remontava à Inconfidência Mineira. Para a autora,
“sua retomada nos primeiros anos da República re-
sultava não apenas das limitações oferecidas pela
velha capital Ouro Preto, mas respondia também
a demandas colocadas pelo rearranjo das forças
econômicas e políticas do Estado” (LEME, 1999,
p. 222). Assim, “Belo Horizonte viria consagrar a
obra da modernidade a que se referia o projeto
político republicano, rompendo com o Império
e, ao mesmo tempo, preservando a ordem e a
unidade nacional” (ARRAIS, 2005, p. 1).

Belo Horizonte tem ainda a originalidade


de ser uma cidade “criada” como símbolo
do desejo de modernidade. Ela pretende
romper com um passado e optar pelo art
noveau em sintonia com o mundo moderno.
Ao mesmo tempo, a Belo Horizonte-Curral
dei Rei, sucessora de Ouro Preto e a nova
capital de um Estado moderno. Ela pode
ter nascido da vontade das elites sociais e
políticas, mas, de fato, foi construída por
trabalhadores e artistas brasileiros e ita-
lianos, conservadores e anarquistas, pe-
16º SHCU dreiros e engenheiros, todos sonhadores de
30 anos . Atualização Crítica
um progresso cultural, agrícola, industrial e
516 comercial (LE VEN, 1995, p. 34) (grifo nosso)
Após escolha do novo centro administrativo da ordem e do progresso.
estadual, houve a formação de uma comissão
designada pelo Estado para estudar o local, de A dimensão simbólica no delineamento da
maneira detalhada. A Comissão Construtora da nova capital mineira foi muito importante:
Nova Capital (CCNC) foi criada em 1894, no qual além de se tratar de uma nova cidade-ca-
Aarão Reis foi nomeado engenheiro-chefe, sendo pital, sede portanto do poder político, ela
concedido a esse amplo poder para criar e orde- devia, ademais, expressar o novo Brasil que
nar as divisões de serviços responsáveis pelos se pretendia construir com a República. Nes-
levantamentos de campo e os outros diversos te sentido, a construção da nova cidade a
estudos (BORSAGLI, 2019). Aarão Reis deu início partir da tabula rasa propiciada pela des-
à elaboração da planta geral de Belo Horizonte truição do arraial sobre a qual ele assentou
nesse mesmo ano. pode ser entendida como uma metáfora da
ruptura que ela pretendia produzir (LEME,
Belo Horizonte surgiu sobre os escombros 1999, p. 223) (grifos nossos)
do arraial e das velhas fazendas curralen-
ses. Os novos republicanos, herdeiros da
velha sociedade rural do Império, eram o
espelho dos seus antecessores, definindo
os rumos da política da ex província, grande
parte nascidos em extensas propriedades
rurais erguidas e mantidas até 1888 com o
suor e o sangue africano (BORSAGLI, 2019,
p. 24 (grifo nosso).

A recém proclamada República herdou vários


problemas do fim do regime imperial: crescimento
populacional, acarretando em problemas de falta
de habitação; marginalidade; problemas econô-
micos; aumento do custo de vida decorrente das
migrações que ampliavam a oferta de mão-de-
-obra e a luta pelos escassos empregos disponí-
veis. Dentre os diversos problemas surgidos, um
de grande preocupação foi o de ordem sanitária
das cidades, devido à proliferação de epidemias
durante a maior parte do ano. Ressalta-se que,
em momento algum, foram pensadas políticas
voltadas à população negra pós-abolição.

O decreto criando o Plano da Nova Capital foi


assinado em 1895, tendo forte influência das re-
formas urbanas de Paris, idealizadas pelo Barão
Haussmann, estabelecendo diretrizes para garan-
tir a boa circulação, higiene, ventilação, beleza e
conforto. As obras tiveram início no mesmo ano,
por meio de desapropriações e demolições do
antigo Arraial de Belo Horizonte, e a nova capital
foi inaugurada, com muito ainda por fazer (LEME,
1999), em 1897. O Plano original formulado por Aa-
rão Reis foi concebido “segundo uma perspectiva
técnico-funcionalista, inspirado pela racionalida-
de do urbanismo progressista” (FREITAS, 2008, p.
209), o qual ignorou o traçado existente em prol
EIXO TEMÁTICO 1
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO

Figura 4: Superposição da planta do Curral Del Rey com a


de Belo Horizonte, com destaque para o traçado “irregu-
lar” do Curral Del Rey “seguindo as estradas” e o traçado
planejado da Nova Capital. Fonte: Borsagli (2010).

A formulação do Plano se deu a partir da organi-


16º SHCU zação e distribuição das funções em três zonas
30 anos . Atualização Crítica distintas: Zona Urbana, Suburbana e Rural. A Zona
518 Urbana estava localizada em área de topografia
privilegiada, ao sul do Ribeirão Arrudas, contorna- mais brandas ou inexistentes. Com a definição
da e delimitada pela Avenida do Contorno10, tendo de padrões específicos para a zona urbana, proi-
como princípio fundamental a compatibilização biu-se genericamente a presença da população
entre o terreno natural e a hierarquia das ativida- pobre no centro de Belo Horizonte, destinando a
des previstas e estruturas necessárias. A zona esses as periferias.
urbana foi planejada com o objetivo principal de
receber o aparato burocrático-administrativo do Ressalta-se aqui que “o traçado representativo
governo e os funcionários públicos vindos de Ouro da República não seria apropriado igualmente por
Preto. A superposição de diagonais elaborada todos os cidadãos, nem para isso fora concebido”
para o traçado viário era “vinculada à ‘lógica de (BAPTISTA, 2003, p. 100). Sendo pensado por uma
fluxos’, da aeração e da comunicação adotada em lógica simétrica e racional de planejamento das
Paris e que se difundiu para cidades americanas” cidades manifestou uma intenção de ordenar,
(COSTA e ARGUELHES, 2008, p. 119). dividir, separar e de estabelecer lugares e dispo-
sições aos seus usuários e habitantes, de modo
Como pontua Baptista (2003, p. 100), o projeto dominador e autoritário. Inicialmente as famílias
para a cidade de Belo Horizonte “buscava com seu mais pobres e os trabalhadores eram permitidos
desenho negar toda influência colonial portuguesa, nas regiões centrais da cidade, população essa
afirmando os princípios da República recém-ins- que residia em barracos e cafuas, originando as
taurada” (grifo nosso). A partir da implementação primeiras favelas da nova capital, além de ocupar
de um modelo racional e ordenado de cidade pre- os alojamentos dos empreiteiros e as casas ainda
tendia-se ressaltar a ordem e o planejamento não demolidas do antigo arraial11.
da nova capital, de modo a apagar a imagem de
cidade desenvolvida a partir de atividades mine- Todavia, ao longo das duas primeiras dé-
rárias, com ruas tortuosas e inclinadas, simbo- cadas do século, grande parte da popu-
lizando a monarquia, a desordem e a dominação lação pobre foi expulsa das áreas nobres
religiosa e, com isso, contrapondo a “velha or- que se consolidavam, passando a residir
dem representada pela decadente Ouro Preto” na nascente periferia da Zona Suburbana.
(HORTA, 1994, p. 74). Desse modo, “foi idealizada A preocupação com a “invasão” do centro
uma cidade rigidamente geométrica, funcional, pelas classes mais pobres levou à obstru-
limpa e saudável, constituída de parque e áreas ção da sua presença na Zona Urbana. Além
verdes, ventilada e iluminada” (HORTA, 1997, p. da política deliberada de expulsão dos po-
85), substituindo os valores do passado por um bres da área central, a Zona Urbana con-
modelo urbano moderno e racional e seus antigos vivia com um restrito aparato regulatório,
habitantes pela recém-chegada elite mineira. que, somada ao controle sobre a oferta de
lotes pelo Poder Público e pelos especu-
Além dos limites da Avenida do Contorno e circun- ladores imobiliários e à oferta privilegiada
dando a Zona Urbana, o plano estabelecia a Zona de infraestrutura, acabava inviabilizando
Suburbana, área com topografia mais acidentada a permanência da classe trabalhadora na
e com traçado viário adaptado a ela e com meno- área devido ao elevado preço dos terrenos.
res área de espaço públicos. O planejamento ali (TONUCCI FILHO, 2012, p. 65)
ocorreu de modo menos exigente, caracterizando
um padrão inferior de infraestrutura se compa- É possível perceber que não foram definidos
rado com a zona urbana. A Zona Rural previa a apenas os espaços destinados à riqueza, o
formação de Colônias Agrícolas e pequenos sítios, Plano definindo também, desde o início, onde a
no intuito de constituir um cinturão verde para pobreza deveria se instalar: longe do centro, em
abastecimento da capital. No entanto, essa foi espaços precários e carentes de infraestrutura
rapidamente incorporada pela expansão urbana. (quando não inexistente). Rolnik (1997, p. 47) afirma
Na zona urbana era necessário obedecer minu- serem os olhos higienistas “os responsáveis pelo
ciosamente às prescrições da lei, enquanto nas
zonas suburbana e rural essas definições eram
11. As primeiras favelas se localizaram ao longo da Avenida
Afonso Pena, na área acima da Estação Ferroviária e no
10. Originalmente chamada Avenida 17 de Dezembro. atual Barro Preto.
EIXO TEMÁTICO 1 desenho da geografia urbana que corresponde às
hierarquias sociais”.
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Vários foram os motivos que acarretaram na ocu-
pação desigual dos espaços da cidade ao longo
da implementação do Plano de Aarão Reis, dos
quais podemos citar: o determinismo pré-esta-
belecido sobre as zonas concebidas na cidade e
quais as classes a que essas seriam destinadas,
os processos de desapropriação dos moradores
do arraial, o significativo contingente popula-
cional atraído para a construção da capital sem
previsão para futura alocação de todos, a venda
dos lotes da área urbana e as negociações po-
líticas que influenciaram a ocupação da cidade
e quais foram os beneficiados dessa situação.
Salgueiro (1982, p. 112) ressalta que desde o iní-
cio foi possível perceber o “caráter preferencial”
atribuído a zona urbana, uma vez que os leilões,
doações e vendas concentravam os destinos das
propriedades a pessoas específicas: funcionários
públicos e ex-proprietários em Ouro Preto, além
de ganharem um lote, podiam ainda adquirir ou-
tro contíguo ao seu a preços baixos. Mais ainda,
essa ocupação desigual também é resultante do
fato de que Aarão Reis não tinha como objetivo
manter a antiga população na área destinada para
a implementação de seu Plano.

Padre Francisco Martins Dias, testemu-


nha dos primeiros tempos da cidade, disse:
“Mais de uma vez ouvimo-lo (Aarão Reis)
dizer, é verdade, que não queria nenhum dos
antigos habitantes de Belo Horizonte dentro
da área urbana ou suburbana traçada para a
nova cidade, que e que tratasse o povo de ir
se retirando...” (DIAS, 1897, p. 84 apud PAULA
e MONTE-MOR, 2000, p. 27) (grifo nosso)

Freitas (2008) aponta que, logo nas primeiras dé-


cadas de sua existência, as dinâmicas de produ-
ção do espaço previstas para o plano implantado
foram contrariadas, resultando em novas formas
de uso e ocupação do solo as quais não estavam
previstas. Mais ainda, “não se cogitou a hipótese
de a classe trabalhadora permanecer, juntamente
com suas famílias, na cidade planejada para e
pelo aparato administrativo do Estado” (COSTA e
ARGUELHES, 2008, p. 125), não sendo reservado
16º SHCU espaço no plano para os milhares de operários
30 anos . Atualização Crítica
reunidos para construir a cidade (FERNANDES,
520 1998). Com isso, é possível perceber que “a planta
da nova cidade é classista e nela existe a preocu- mais uma vez no contexto de exclusões sociais
pação de destinar a cada fração da população o na nova capital. Esses processos eram realizados
seu lugar” (COSTA e ARGUELHES, 2008, p. 132). vislumbrando o progresso, civilização, europei-
zação (justificados pela imigração europeia de
A parte central de Belo Horizonte, a zona urbana, operários) e branqueamento da população da
passou por momentos de estagnação quanto à capital mineira.
implantação de infraestrutura, decorrente dos
períodos de crise econômica, como o de 1898 A sujeira, a mendicância e a doença eram vistas
e de 1914-18, esse último decorrente da Grande como divergentes das promessas de bem-es-
Guerra, paralisando assim as obras da cidade. tar pela elite, acusando o poder público de ine-
Desse modo, “enquanto a zona urbana perma- ficiência e tornando-o assim alvo de vigilância
necia em construção e pouco ocupada, a zona e de avaliação. Desse modo, cabia ao Estado se
suburbana, desprovida de condições sanitárias, responsabilizar pela garantia da harmonização
viárias e habitacionais adequadas, sofreu a ocu- desses conflitos e distorções, uma vez que esse
pação do contingente populacional atraído pelas era apontado como o único elemento capaz de
promissoras expectativas da nova cidade” (COSTA resolver os problemas de ordem social. O “Diário
e ARGUELHES, 2008, p. 131). de Notícias” protestava contra a prefeitura de
Belo Horizonte, uma vez que essa não se mos-
Projetou-se uma cidade para abrigar, de imedia- trava eficaz em limpar a cidade da infestação
to, 30 mil habitantes, prevendo uma população de mendigos, considerados responsáveis pela
futura de 200 mil. Contudo, a projeção demo- descaracterização dos ares da modernidade atri-
gráfica inicial prevista para a cidade foi rapida- buídos à nova capital.
mente superada. Os dados referentes à evolução
demográfica da Nova Capital mostram “o quan- BH não pode continuar a exibir suas pom-
to a realidade costuma ignorar os planejadores” pas, ao lado da miséria. Cabe ao estado o
(PAULA e MONTE-MOR, 2000, p. 33). Além disso, a dever de assistir aos pobres, aos desvalidos,
ocupação prevista por Aarão Reis foi contrariada, aos velhos, aos enfermos [...]. Siga a Prefei-
uma vez que essa se desenvolveu da periferia em tura, auxiliada pelo Estado e pela população,
direção ao centro, não de modo inverso. Sendo o exemplo da municipalidade de São Paulo,
assim, nos primeiros anos da capital, o centro, [...] prohibindo terminantemente a mendi-
espaço dotado de infraestrutura, encontrava-se cidade das ruas (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 1907,
despovoado, enquanto a periferia se adensava, p. 1 apud COSTA e ARGUELHES, 2008, p.127)
mesmo não possuindo infraestrutura suficiente
para a demanda da população existente (COSTA A partir da promulgação do Decreto nº 1516/1902,
e ARGUELHES, 2008). houve a regulamentação da concessão de terre-
nos às indústrias, associações e a venda a parti-
Os fatos apresentados se deram em contraposi- culares, sendo estabelecido que:
ção à ordem e ao rigor estabelecidos no planeja-
mento da zona urbana, onde se tinha, desde sua Art 1º Tanto na zona urbana, como na su-
implantação, o desenvolvimento “espontâneo” da burbana de Bello Horizonte, poderá o Pre-
zona suburbana, ocupada pela população pobre feito ceder gratuitamente lotes de terreno
da cidade. A Nova Capital veio a se consolidar e força motriz, durante o dia, para esta-
apenas décadas após sua inauguração, em um belecimento industriaes, que tenham um
processo marcado pelo desenvolvimento dife- capital superior a 20 contos de réis [...];
renciado (presente e visível ainda hoje) entre as ficando egualmente auctorizado a isentar
zonas interna e externa à Avenida do Contorno de impostos, pelo prazo de cinco annos,
(LEME, 1999). os mesmos estabelecimentos (BELO HO-
RIZONTE, 1902).
O governo segui com o fornecimento de incentivos
para atrair pequenos agricultores e mão-de-obra Com isso, além das áreas próximas à Estação
mais qualificada, composta principalmente por Central, ocupadas pelas indústrias, outras se
imigrantes estrangeiros. O intuito era que esses estabeleceram no Barro Preto, uma vez que foram
indivíduos ocupassem a cidade, influenciando indicadas pelo Poder Público para exercer tal fun-
EIXO TEMÁTICO 1 ção. O decreto estabelecia ainda que os adquiren-
tes possuíssem uma renda mínima estabelecida,
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO explicitando que os terrenos a serem cedidos
eram específicos para parte bem específica da
população. Os adquirentes de terrenos nas condi-
ções citadas não poderiam destiná-los à moradia,
a menos que essa fosse utilizada por operários
com o intuito de guarda dos imóveis. Cabe res-
saltar ainda que, de acordo com o texto do decre-
to, essa era uma medida de caráter provisório.

O Decreto reservou a 8ª seção urbana para resi-


dência provisória da população de operários. Des-
se modo, nos anos iniciais do século XX, essa área
se transformou “em um populoso bairro habitado
por operários da capital, que se avolumavam em
cafuas, motivo de constantes preocupações das
autoridades governantes” (FARIA e GROSSI, 1920
apud BARRETO, 1996, p. 103). Conforme aponta
Guimarães (1991, p. 106), simultaneamente a esse
fato, a Prefeitura continuou ordenando a demo-
lição de cafuas na zona urbana, sendo essa uma
atitude bem-aceita pela imprensa, que apontava
“[...] para que haja hygiene em nossa Capital é
necessário que o Sr. Prefeito continue a enxergar
outras muitas imundas casas de João de Barro” (A
NOTÍCIA, 1909, p. 2 apud GUIMARÃES, 1991, p. 106).

Posteriormente, em 1909, o Decreto Estadual nº


2486/1909 estabeleceu definitivamente a desti-
nação da 8ª seção à classe operária, sendo que
a concessão deveria ocorrer de forma gratuita.
Contudo, o decreto estabeleceu uma série de
restrições relacionadas à nova propriedade como
a impossibilidade de transferência da benfeitoria
para outrem que não fosse operário, a necessi-
dade de comprovação de dedicação ao trabalho
e integração à sociedade, além da apresentação
de um aval de três pessoas idôneas e de atestado
policial para se ter acesso ao lote. Guimarães (1991)
aponta ainda o espírito segregativo proveniente
desse conjunto de exigências, vinculando o direi-
to de propriedade a certa imagem de operário.
Contudo, a autora explica que “a possibilidade
de obtenção do título definitivo de propriedade,
ainda que inalienável, era vista como uma medida
que assegurava a estabilidade do trabalhador na
cidade, evitando a sua emigração para outros
lugares” (GUIMARÃES, 1991, p. 111).
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
Apesar da destinação reservada à população ope-
522 rária, o local não possuía qualquer tipo de infraes-
trutura, sendo estabelecido que os terrenos não Após criada e estabelecida a área operária, a po-
poderiam ser alienados definitivamente enquanto pulação que, até então, ocupava o local precisou
não fossem implementados os serviços de abas- ser transferida para outros lugares. Contudo, vale
tecimento de água e esgotamento sanitário, deno-
ressaltar que nem todos estavam de acordo com
minados, na época, como “canalização de águas
a medida adotada pelo Poder Público, acarretan-
e serviço de exgottos”. Apenas em 1910 o Barro
Preto passou a ter iluminação elétrica, contribuin- do assim no surgimento da favela do Barroca a
do assim para a vida dos operários residentes no partir da ocupação de ex-moradores da 8ª seção
local (FARIA e GROSSI, 1920 apud BARRETO, 1996). (GUIMARÃES, 1991).

Figura 5: Demarcação da 8ª seção da zona urbana. Fonte: Adaptado de Proença (2020).

Vários dos engenheiros, arquitetos e projetistas que Belo Horizonte: reflexo da colonialidade
participaram da Comissão Construtora se estabe- e da segregação racial
leceram em definitivo na cidade como técnicos do
serviço público, autônomos ou professores, a partir
da fundação da Escola Livre de Engenharia (1911). A partir de dados do Anuário Estatístico de Minas
Fato esse que contribuiu para a vigência e perpe- Gerais, de 1911, Silva e Pereira (2018) demonstram
tuação dos padrões urbanísticos e arquitetônicos que a preponderância da população não branca
implantados pela Comissão e que só passaram a em Minas Gerais manteve-se mesmo após o de-
ser questionados na década de 30 (LEME, 1999). clínio da exploração aurífera, onde a comarca
EIXO TEMÁTICO 1 do Rio das Velhas12 apresentou 14.394 brancos
contra 85.182 mestiços e pretos ou apenas 14%
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO da população.

Ao final do século XIX, o Recenseamento de


1872 (BRASIL, [1874?]) apontava que a popu-
lação total computada em 2.039.735 habi-
tantes, para a província de Minas Gerais13,
apenas 40,7% destes eram reconhecidos
como brancos, sendo os demais 59,3% re-
gistrados da seguinte forma: 34,5% pardas/
os, 23,14% pretas/os e 1,58% caboclas/os
(SILVA e PEREIRA, 2018, p. 34)

Em seus estudos, Silva e Pereira (2018) demons-


tram que, durante todo o século XIX, a população do
Arraial do Curral Del Rey era predominantemente
constituída, nos termos da época, por pessoas par-
das ou mulatas, pretas e africanas de diversas na-
ções, onde, em sua maioria, as partas eram livres14.

Do pouco que se conhece sobre essa po-


pulação, a que na atualidade poderia ser
denominada de negra, segundo critérios
adotados pelo Instituto Brasileiro de Ge-
ografia e Estatística – IBGE, sabemos que
até o advento da decisão pela mudança da
Capital do Estado de Minais Gerais, vivia
fundamentalmente da produção agrícola
de subsistência, trabalhando possivelmente
como agregada – quando livre – ou como
escravizada, nas grandes propriedades da
região (SILVA e PEREIRA, 2018, p. 36)

Desde sua concepção, a Nova Capital foi pensada


para ser branca, uma vez que a maioria dos tra-
balhadores negros que já habitavam o território e
os que chegaram posteriormente para auxiliar em
sua construção não foram contemplados como
futuros moradores nos planos da nova cidade
(SILVA e PEREIRA, 2018).

A partir do contexto de formação da cidade


apresentado, os habitantes excluídos precisa-
ram encontrar formas de se integrarem à cidade.
Baptista (2003, p. 100) aponta que “a história de

12. O Arraial do Curral Del Rey integrou a Comarca do Rio


das Velhas.

16º SHCU 13. Na época, Minas Geraes.


30 anos . Atualização Crítica
14. Para acesso aos dados quantitativos referente à popu-
524 lação, cf. Silva e Pereira, 2018.
Belo Horizonte, já em seu desenho traçada para Horizonte, é possível perceber a predominância
a ordem e o progresso, mostra hoje uma cidade desse grupo nessas áreas, evidenciando os efei-
surpreendida pela desigualdade radical do modo tos dos processos históricos e sociais predomi-
de produção capitalista, agravado pela mundia- nantes ainda nos dias atuais.
lização de seus processos”.

O fato da elaboração do projeto da cidade


não ter considerado a existência e a dinâmi-
ca das camadas populares, caracterizando
um projeto destoante com a realidade, foi
condição para a referida segregação socio-
espacial que marcou o plano da nova cidade
mineira” (COSTA e ARGUELHES, 2008, p. 133)

As cafuas foram demolidas para à implantação do


Plano da Nova Capital, juntamente com outras ca-
sas do Arraial. Contudo, as cafuas foram simples-
mente eliminadas para darem lugar à instalação
de ruas e avenidas modernas, prédios públicos
imponentes ou mesmo às casas dos altos fun-
cionários da Administração Pública estadual. En-
quanto as demais desapropriações foram indeni-
zadas pelo Governo do Estado, para essas sequer
há registros de atenção desse mesmo Governo
com seus habitantes (SILVA e PEREIRA, 2018).

Com o crescimento da capital aliado aos processos


higienistas de remoções das populações de baixa
renda das partes centrais da cidade, as áreas que
não apresentavam interesse ao mercado, seja pela
declividade ou pela dificuldade ou inviabilidade na
implantação de projetos de urbanização passaram
a ser sistematicamente ocupadas, uma vez que os
moradores procuravam alternativas de moradia
mais próximas do centro e que não fossem visadas
pelo mercado imobiliário. Como cita Baptista,
essas áreas eram referentes “às encostas mais
íngremes, aos vales inundáveis e às periferias
mais distantes” (BAPTISTA, 2003, p. 100-101).

É importante ressaltar que, de acordo com os


dados mais recentes do IBGE, referente ao censo
de 2010, cerca de 52,35% da população de Belo
Horizonte autodeclaravam-se pretos e pardos,
enquanto 46,40% autodeclaravam-se brancos 15.
Contudo, é possível perceber que a distribuição
espacial da população negra não está concentra-
da nas áreas centrais da cidade. Mais que isso, a
partir da delimitação das vilas e favelas de Belo

15. Amarelos: 1,08%, brancos: 46,40%, indígenas: 0,17%, pardos:


42,12% e pretos: 10,23%.
EIXO TEMÁTICO 1
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO

Figura 6: Mapa de distribuição da população preta e parda


em Belo Horizonte por bairro. Fonte: Elaborado pelo autor
16º SHCU a partir de dados do IBGE (2010).
30 anos . Atualização Crítica

526
Considerações fInais rizonte estão presentes ainda hoje, o que pode
ser evidenciado pela análise da distribuição social
A partir do contexto histórico apresentado, é pos- espacial da população negra no município. Mais
sível perceber que, antes mesmo do Plano da ainda, é importante notar a prevalência dessa
Nova Capital, e repetidamente ao longo do século, população nas áreas periféricas e, quando cen-
ocorreram inúmeros processos de exclusão dos trais, principalmente vinculadas a espaços de
trabalhadores e da população negra e pobre das vilas e favelas.
áreas urbanas centrais, com os mais diversos
argumentos, sejam habitacionais, higienistas
ou de qualidade de vida. Desse modo, esses mo-
radores foram expulsos das partes tidas como
privilegiadas da cidade, sendo relegados às zonas
periféricas ou de desinteresse devido às suas
restrições físicas ou ambientais.

Como Rolnik (1997) bem pontua, a história dos usos


dos usos da terra urbana no Brasil é, em parte, a
história da apropriação do espaço através tanto
da ocupação real quanto da propriedade legal.
Durante parte do período colonial, as ocupações
de terra não eram vistas como um problema, as
quais eram ainda legalizadas pela Coroa Portu-
guesa. Desse modo, a autora nos apresenta duas
importantes questões:

[...] a raiz da noção de que o direito à ter-


ra está diretamente ligado à sua efetiva
utilização, que remonta à própria ordem
jurídica portuguesa, e a sua convivência
entre um sistema oficial de concessão e
um registro de terras virtual e acessível
a poucos com a realidade do apossamen-
to informal. Essa contradição, que, como
vimos, não representava um problema ou
uma fonte de conflito até 1850, passou a ser
o elemento fundamental de tensão urbana a
partir dessa data até nossos dias (ROLNIK,
1997, p. 22)

A partir da perspectiva e contexto apresentados,


é possível perceber que o conceito de espaço
formal e espaço informal sofreu alterações ao
longo dos séculos, estando ainda atrelado a con-
cepções raciais. Sendo assim, “se considerada a
presença negra predominante da população do
Curral Del Rey, acentuada, numericamente pelas
populações que chegavam e se fixavam à nova
cidade, a perspectiva de quem ‘invade’ o território
muda” (SILVA e PEREIRA, 2018, p. 46).

Ressalta-se ainda que os processos de segre-


gação racial dos espaços da cidade de Belo Ho-
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EIXO TEMÁTICO 1 RESUMO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Este artigo se propõe a discutir a ação do poder
público no centro de Salvador, a partir do “Pla-
vídeo-pôster no de Reabilitação Participativo do Centro An-
tigo de Salvador” e do “Programa Salvador 360”.
Analisando o conjunto recente de intervenções
CADÊNCIAS DA urbanas e a teia institucional que são operadas
neste âmbito, argumenta-se que há uma conti-
REVITALIZAÇÃO URBANA: UM nuidade entre ambos planos, e que esta conti-
nuidade é fruto do modelo de desenvolvimento
RETRATO ATUAL DO CENTRO econômico que as dinâmicas de revitalização
urbana tributam (e são tributárias). Como de-
DE SALVADOR corrência deste argumento, o artigo sugere
que há uma ação integrada do poder público no
centro, que transita entre diferentes governos,
CADENCIES OF URBAN REGENERATION: AN ACTUAL
sejam eles progressistas ou não. Nesse sentido,
PORTRAIT OF SALVADOR’S CENTRE
conclui-se ponderando sobre as implicações
desta condição no centro de Salvador e sobre o
CADENCIAS DE LA REVITALIZACIÓN URBANA: UN teor dos desafios que ela coloca para uma atua-
RETRATO ACTUAL DEL CENTRO DE SALVADOR DE BAHÍA lização crítica do pensamento urbanístico.

MARINHO, Caio Oliveira e


REVITALIZAÇÃO URBANA CENTRO DE SALVADOR
Mestrando em Arquitetura e Urbanismo; Instituto de
Arquitetura e Urbanismo (IAU) - USP
SALVADOR 360 PLANO DE REABILITAÇÃO PARTICIPATIVO
caio_om@hotmail.com DO CENTRO ANTIGO DE SALVADOR
DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

530
ABSTRACT RESUMEN

This article discusses the state’s action in the Este artículo discute la acción del poder público
centre of Salvador, in the realm of the “Plano en el centro de Salvador, partindo del “Plano de
de Reabilitação Participativo do Centro Antigo Reabilitação Participativo do Centro Antigo de
de Salvador” and the “Programa Salvador 360”. Salvador” y del “Programa Salvador 360”. Ana-
Analyzing the set of recent urban interventions lizando el conjunto reciente de intervenciones
and the institutional web which constitutes this urbanas y la red institucional que se operan en
context, it is argued that there is a continuity este ámbito, se sostiene que hay una continuidad
between these plans, and that this continuity entre ambos planes, y que esta continuidad es
comes from the economic development model fruto del modelo de desarrollo económico que las
that is dialectically influenced by the dynamics dinámicas de revitalización urbana tributan (y son
of urban regeneration. As a consequence of this tributarias). Como resultado de este argumento,
argument, the article suggests that the state el artículo sugiere que hay una acción integrada
acts on an integrated mode of action that per- del poder público en el centro que transita entre
vades different governments, independently on diferentes gobiernos, progressivos o no. En este
their political orientation. In this sense, the article sentido, se concluye considerando las implica-
conclusions ponder over the implications of this ciones de esta condición en el centro de Salva-
condition on the centre of Salvador and over the dor e considerando el contenido de los desafíos
challenges that it places towards a critic update que ella plantea para una actualización crítica del
of the urbanistic thinking. pensamiento urbano.

URBAN REGENERATION SALVADOR’S CENTRE REVITALIZACIÓN URBANA CENTRO DE SALVADOR


SALVADOR 360 “PLANO DE REABILITAÇÃO PARTICIPATIVO SALVADOR 360 “PLANO DE REABILITAÇÃO
DO CENTRO ANTIGO DE SALVADOR” PARTICIPATIVA DO CENTRO ANTIGO DE SALVADOR”
ECONOMIC DEVELOPMENT DESARROLLO ECONÓMICO
EIXO TEMÁTICO 1 Aqui tudo parece
Que era ainda construção
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO E já é ruína

(Caetano Veloso – Fora da ordem – 1991)


vídeo-pôster

INTRODUÇÃO
CADÊNCIAS DA
REVITALIZAÇÃO URBANA: UM O centro da cidade de Salvador tem sido objeto
de uma quantidade substantiva de pesquisas que
RETRATO ATUAL DO CENTRO discutem, na contemporaneidade, aspectos mais
abrangentes da produção e reprodução da cida-
DE SALVADOR de. São trabalhos que articulam um âmbito de
discussões sobre as decorrências da reestrutu-
ração produtiva da economia global, tensionando
CADENCIES OF URBAN REGENERATION: AN ACTUAL a tríade “planejamento das cidades – revitalização
PORTRAIT OF SALVADOR’S CENTRE urbana – economia do turismo”.

CADENCIAS DE LA REVITALIZACIÓN URBANA: UN As investigações dos planos e programas urba-


RETRATO ACTUAL DEL CENTRO DE SALVADOR DE BAHÍA nísticos elaborados pelas três instâncias do poder
executivo constituem parte significativa deste
debate. Suas análises trazem consigo normas,
agentes, políticas públicas e projetos de inter-
venção no espaço que, de maneira articulada,
expõem contornos da política urbana que incide
no centro de Salvador.

É o foco do presente artigo a realização deste


exercício pensando as intervenções urbanas em
execução no momento atual, definido aqui como o
período em que vigoram o “Plano de Reabilitação
Participativa do Centro Antigo de Salvador” (PR-
P-CAS) e o programa ”Salvador 360”. Buscamos
reunir elementos do modelo de gestão urbana
vigente para analisar as formas de inserção do
centro de Salvador nas dinâmicas de revitalização,
processo que já perdura por volta de meio século.1

Argumentamos, como tese central deste trabalho,


que há uma continuidade no conjunto diverso dos
planos urbanísticos pensados para a revitalização
deste centro; que ela se manifesta de maneira
bastante visível através de quadros técnicos,

1. No esteio de autoras como Arantes (1999), entendemos


a revitalização urbana (e suas variáveis: requalificação,
reabilitação, etc.) como a dinâmica de produção da cidade
em que o Estado conduz uma política urbana voltada para
16º SHCU
espaços intersticiais, vazios ou degradados, cujo cerne
30 anos . Atualização Crítica
está na gestão e no consumo destes mesmos espaços
532 como mercadorias.
propostas e expertises constituídas; e que ela é O conjunto das intervenções urbanas considera-
fruto do regime de tempo necessário ao modelo das, ao final, foi catalogada e, partindo desta cata-
de desenvolvimento econômico que estes planos logação, foi elaborado um diagrama de articulação
e programas alimentam. dos agentes públicos, políticas públicas e fontes
de financiamento das referidas intervenções. A
O intuito deste artigo é provocar reflexões sobre
busca destes elementos se centrou pelo trabalho
as perspectivas analíticas lançadas às práticas
de montar as redes de articulação institucional
e aos discursos de revitalização dos centros
desde o financiamento até a efetivação das inter-
urbanos. Ainda que posicionadas criticamente,
venções urbanas observadas, fazendo aparecer
atestando a dominação do capital na cidade, é
o conjunto de agentes que incidem na produção
comum que suas escalas estejam limitadas à uma
do centro de Salvador.
unidade projetual, tratando os planos e programas
urbanísticos entre “bem-sucedidos x fracassados”
Por fim, após identificar as redes institucionais
ou entre “completos x incompletos”. Pensar em
pelos recursos metodológicos referidos, a pesqui-
outro sentido emerge como necessidade para
sa documental foi retomada. Desta vez orientada
que possamos desviar de armadilhas da ideo-
pela contextualização dos planos e programas
logia urbanística e, assim, compreender melhor
as articulações entre a produção da cidade e os urbanísticos nestas redes institucionais, bus-
circuitos econômicos de acumulação capitalista. camos relacionar a implementação de cada um
deles, identificando e destrinchando alguns nós
centrais. Ao final, esses nós foram trazidos para
a constituição de um panorama mais geral, de
RECURSOS metodológicOs onde foram apreendidas as conclusões do pre-
sente texto.
Para alcançar o objetivo deste artigo, uma va-
riedade de recursos metodológicos foi utilizada.
Inicialmente, partimos da observação direta para
identificar o conjunto de intervenções urbanas em uma consideração preliminar
execução no centro de Salvador,2 elaborando uma
listagem como porta de entrada para as análises. Antes mesmo de trazer qualquer elemento sobre
os planos e programas pensados para o centro de
Em seguida, ampliamos esta entrada através de Salvador no momento atual, já somos provocados
uma pesquisa documental. Com ela, foram incor- por uma questão. De que centro estamos falando?
poradas à listagem inicial outras intervenções que
não estavam “em execução” no período observado, Esta é uma problematização que diz respeito à
mas que estavam igualmente ligadas pelas mes- existência de diferentes maneiras de enunciar a
mas políticas e linhas de financiamento ou, even- área central de Salvador. Chamá-la, por exemplo,
tualmente, até mesmo pelo lugar de intervenção, de Centro Histórico, Centro Revitalizado, Centro
que em um dos casos observados ocorre de ser Antigo ou Centro Tradicional, são formas que in-
o mesmo para dois projetos distintos. Também
vocam diferentes relações como o tempo e com o
se somaram nesta ampliação algumas interven-
espaço e que, por sua vez, constituem diferentes
ções que passaram despercebidas incialmente,
maneiras de se compreender essa centralidade.
em função da defasagem da observação direta.3

Salvador 360, mas sim elaborar uma das caracterizações


2. O intervalo de tempo de observação direta que este
possíveis dentro deste período analisado. Decorre desta
texto compreende é período de janeiro a setembro de 2019.
afirmação que são igualmente importantes as intervenções
3. Em consonância com o título do presente artigo, que ficam fora do nosso registro, uma vez que o maior
observamos que o propósito desta entrada metodológica se sentido desta abordagem é fazer uma sondagem das ações
refere à composição de um retrato possível das intervenções do poder público. Insistindo na potência do termo, temos
urbanas que se aproximam do período que dizemos atual. clareza que a caracterização do fenômeno em análise não
Assumimos, desta forma, que a pretensão não é registrar se dá pela exatidão das imagens obtidas, mas, sim, pelos
todas as intervenções promovidas pelo PRP-CAS e pelo traços marcantes que elas venham revelar.
EIXO TEMÁTICO 1 Este ponto de partida é importante para com-
preender que a definição dos recortes que cons-
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO tituem o centro, através de um nome e de um
perímetro, por exemplo, é também uma maneira
de definir o foco das reflexões a serem trabalha-
das. Neste sentido, antes mesmo de assumir esta
questão como uma informação dada, é necessário
enunciá-la.

Existem duas delimitações poligonais que foram


consolidadas como referência para os planos e
programas destinados ao centro de Salvador,
definindo os limites das suas respectivas áreas
de intervenção pública: a poligonal que foi vin-
culada à nomenclatura de Centro Histórico de
Salvador (CHS) e aquela outra que foi vinculada à
nomenclatura Centro Antigo de Salvador (CAS).
As delimitações geográficas dessas poligonais
se relacionam pelo fato de que a segunda contém
a primeira, acrescida daquilo que se denomina
como uma “área de entorno”. Ambas foram es-
tabelecidas a partir da Lei Municipal 3.289/1983
e do tombamento realizado pelo IPHAN em 1984,
em um contexto de institucionalização crescente
das políticas de patrimônio (SANT’ANNA, 2015).

A busca, na época de definição destes limites,


era instituir uma normativa oficial para adequar
aos parâmetros da UNESCO aquilo que já vinha
sendo nomeado como CHS desde o final dos anos
1950 - momento em que o IPHAN passa da prote-
ção patrimonial de imóveis isolados para conjun-
tos arquitetônicos como um todo (SANT’ANNA,
2001). A apreciação da UNESCO só aconteceria
mediante a delimitação da área de preservação
deste Centro Histórico e, necessariamente, da
sua área do entorno (SPHAN, 1983). Para tanto, a
lei municipal 3.289/1983 estabeleceria a delimita-
ção de uma Área de Proteção Rigorosa (APR) e de
uma Área Contígua à Proteção Rigorosa (ACPR).
O tombamento do IPHAN de 1984 e a inclusão na
lista de patrimônios da humanidade da UNESCO
de 1985, que consolidam a referência poligonal
para o Centro Histórico, são produzidos a partir
da redução dos limites desta APR.4

A relação estabelecida para estes limites geo-


gráficos pode ser ainda melhor compreendida
pelas palavras do Secretário de Cultura do então
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
4. Essas delimitações serão devidamente retratadas em um
534 mapa apresentado nas páginas a seguir (Figura 4).
Ministério da Educação e Cultura (MEC) ao co- que eles empregam, reclamam conjuntos de inten-
mentar, em 1983, sobre a legislação de proteção ções e intervenções na cidade que são distintos.
do “entorno do Centro Histórico”: Em outras palavras, é possível dizer que suas
nomeações são conformadas por processos de
“Essa legislação a UNESCO considera indis- produção do espaço específicos.
pensável, condição essencial para o proces-
so [de inclusão na lista de patrimônio] ser Nesse sentido, como estamos em busca de levan-
examinado. (...) a preservação do entorno tar os aspectos relativos às formas de produção
não significa tombamento. Existe uma zona do centro vigentes, se torna parte substantiva do
tombada, que é o Centro Histórico. A mol- nosso interesse a maneira como estas nomen-
dura desse sítio é que precisa ser protegida claturas e delimitações espaciais são instituí-
por uma lei de preservação” (idem, p.13, grifo das. Assim sendo, o emprego de cada um desses
do autor). elementos neste artigo busca permitir que seus
processos e agentes se revelem - e é por esse
A apreciação deste trecho deixa ainda mais claro mesmo motivo que sua análise em profundidade
que a delimitação da APR é instituída como uma é posterior a esse anúncio.
forma de elevar a condição de patrimonialização
daquilo que se concebia por CHS, aprofundando Para o avanço das análises, entretanto, algumas
as atenções já recebidas durante duas décadas opções são tomadas. Na identificação das in-
anteriores. Também fica claro que a delimitação tervenções urbanas em execução, optamos por
da ACPR, neste caso, é considerada pelos ges- utilizar como limite de investigação a poligonal
tores apenas como uma forma de cumprimento que é atribuída ao CAS, exatamente porque esta
dos trâmites necessários para a inclusão na lista se trata de um limite mais amplo, capaz de indicar
da UNESCO. as intervenções urbanas tanto na hipótese de elas
estarem restritas aos limites atribuídos ao CHS,
É somente pela instituição do Plano de Reabili- quanto se estiverem dispostas de forma mais
tação Participativo do Centro Antigo de Salvador próxima aos limites atribuídos ao CAS. Naquilo que
(PRP-CAS), lançado em 2010 pelo Governo do Es- tange a nomenclatura utilizada para se referir a
tado, que a “moldura” do CHS passar a integrar estes limites, manteremos apenas a terminologia
a área de revitalização de um programa estatal centro para colocar em tensão esta nomeação.
destinado ao centro. De acordo com o Plano, a jus-
tificativa para tal atitude decorre das normativas
anteriormente dirigidas ao CHS estarem focadas
apenas em “edificações de destaque” (BAHIA, UM RETRATO ATUAL
2010, p.63), sendo o conjunto do centro carente
de políticas urbanas integradoras. Como forma de Identificadas a partir da presença de elementos
construir uma abordagem coesa, considerando construtivos, letreiros informativos do poder pú-
a riqueza patrimonial e o potencial econômico blico ou pela presença de operários executando as
que a área “do entorno” também possui, a área obras, as intervenções urbanas identificadas pela
de atenção do PRP-CAS seria fruto da junção de observação direta foram arroladas de acordo com
ambas delimitações, a partir daí nomeadas como os nomes utilizados pelos órgãos responsáveis. A
Centro Antigo de Salvador (CAS). sua relação é disposta na lista a seguir (Figura 1):
De forma resumida, as distintas nomeações do
centro se encontram temporalmente deslocadas
da definição dos limites geográficos aos quais são
atribuídas. E mais importante ainda, nos permitem
verificar que essas nomeações são elaboradas
em meio à construção de narrativas sobre o de-
senvolvimento do centro.

Com estes fatos, notamos que os jeitos de nomear


o centro de Salvador, para além da justificativa
EIXO TEMÁTICO 1
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO

Figura 1: Intervenções urbanas identificadas pela observação


direta. Fonte: Elaboração do autor

A pesquisa documental, posterior a esta identifi-


cação, aprofundou as ramificações institucionais
através de publicações dos diários oficiais, notí-
cias de jornal, publicações oficiais e propagandas
institucionais. Adicionando ao conjunto anterior
os projetos que escapavam do ano de 2019, a re-
lação final se completou através da catalogação
destas intervenções (Figura 25).

Por fim, cabe apontar que o diagrama de articula-


ção dos agentes públicos, das políticas públicas
e das suas respectivas fontes de financiamento
(Figura 3) se apoiou também em publicações dos
diários oficiais, notícias de jornal, publicações
oficiais e propagandas institucionais.

A apresentação destes elementos é feita a seguir:

Figura 2: Catálogo das intervenções urbanas no centro


de Salvador. Fonte: Elaboração do autor

16º SHCU
5. Como será possível visualizar, os quadrantes identificados
30 anos . Atualização Crítica
com um traço (-) representam informações não encontradas
536 na pesquisa documental.
EIXO TEMÁTICO 1
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO

Figura 3: Diagrama de articulação institucional do centro


de Salvador. Fonte: Elaboração do autor

Em concordância com a observação que abriu


esta seção, a primeira pista que podemos ob-
servar dos elementos listados se relaciona aos
perímetros envolvidos nas intervenções rela-
cionadas. Das 21 intervenções identificadas, 11
estão inseridas na poligonal relativa ao entorno
do CHS, dentro do limite expandido vinculado ao
CAS. Apesar da existência em pontos difusos
deste perímetro, a concentração maior delas (8
das 11) está no bairro do Comércio. Na lógica con-
trapartida, 10 destas intervenções estão dentro
do limite atrelado ao CHS. Quando percebida a sua
distribuição, vemos que na metade dos casos há
uma tendência de concentração em regiões pró-
ximas às suas fronteiras. O mapa abaixo (Figura
4), nos permite visualizar isso melhor:

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

538
Figura 4: Mapa das intervenções urbanas e poligonais do centro de Salvador. Fonte: Elaboração do autor

Decorre disso, o entendimento dos limites do CAS programa que inaugura o uso da nomenclatura
como foco ativo de atenção dos investimentos pú- CAS atrelado à poligonal delimitada pela ACPR.
blicos. Corroborando com apontamentos anterio-
res que já indicavam esta tendência (SANT’ANNA, Conforme indicado anteriormente, o PRP-CAS
2015; MOURAD, 2011), o exame deste fenômeno foi lançado em 2010 sob o pretexto de integrar e
permite, não só indicar traços da geografia dos ampliar a área de atuação do Governo do Estado na
investimentos mobilizados, como apontar para a região central de Salvador, concatenando ações
engenharia institucional que o produziu. A questão para o conjunto integrado desta região que passa-
que nos parece mais contundente, nesse sentido, va a ser nomeada como Centro Antigo de Salvador.
é relativa ao contexto flagrado pelas observações A origem da formulação do referido Plano, entre-
feitas. Quais nexos podem ser articulados entre tanto, está no Programa Nacional de Recuperação
as intervenções identificadas e os processos de de Áreas Urbanas Centrais (PRAUC), um programa
instituição das poligonais do centro? Já que tam- vinculado ao Ministério das Cidades que, a partir
bém se inserem no limite expandido, é possível de 2003, traçava uma linha de atuação nacional em
dizer que os processos de intervenção urbana áreas urbanas centrais com vistas ao combate dos
aqui identificados dialogam com o momento de seus vazios especulativos; processo que se vin-
instituição da nomenclatura CAS, em 2010? culava ao enfrentamento do déficit habitacional e
ao cumprimento da função social da propriedade
Construímos o aprofundamento sobre essas ques- (MOURAD, 2011). O lançamento da versão baia-
tões através da identificação dos programas urba- na, que se gestou entre 2007 e 2010, parte deste
nos que orientam as intervenções listadas. Como a contexto e se ancora localmente na mudança na
Figura 3 nos mostra, são eles o Programa Salvador gestão do Governo do Estado da Bahia, quando o
360 e o Plano de Reabilitação Participativo do grupo político ligado ao Partido da Frente Liberal
Centro Antigo de Salvador (PRP-CAS) - o mesmo (PFL) deu lugar ao Partido dos Trabalhadores (PT).
EIXO TEMÁTICO 1 O PFL protagonizava, até 2007, os quinze anos
de execução de Plano de Recuperação do Cen-
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO tro Histórico de Salvador (PRCHS), um plano de
que expulsou 3.962 moradores6 da sua área de
intervenção, na sua maioria de baixa renda, e que
somou um conjunto substantivo de avaliações
negativas da sua implementação por diversos
motivos (REBOUÇAS, 2012). São avaliações que
contém desde críticas às intenções nucleares
que motivavam o plano, ao julgarem a sua atuação
orientada por interesses econômicos privados
(idem), até críticas menos estruturais, direciona-
das à forma como este plano foi implementado,
uma vez que ele não atingia a sustentabilidade
econômica que se propunha ao longo de sua exe-
cução (ZANCHETI; GABRIEL, 2010).

No interior deste processo, inclusive, parte das


críticas direcionadas à forma de implementação
do PRCHS foi incorporada durante o contexto
da sua 7ª etapa de execução. Em 2000, Salvador
sediara uma das edições do Seminário Interna-
cional para a Revitalização de Centros Históricos
na América Latina e Caribe (SIRCHAL), onde foi
diagnosticado pelos diversos agentes envolvidos
na sua realização (BID, CONDER, IPAC, IPHAN,
etc.) o esgotamento do modelo desenvolvido pelo
PRCHS até então. Constituindo aí um momen-
to de conformação das mudanças em direção
ao que Fernandes (2006 apud REBOUÇAS, 2012,
p.30) chamou de uma “complexificação do quadro
institucional, financeiro e social do PRCHS”, que
passava a alterar a estrutura do plano na sua 7ª
etapa.

Uma dimensão importante desta mudança, por


exemplo, é percebida pela introdução do uso ha-
bitacional no Programa. Horizonte que, após o
SIRCHAL, passou a conformar um dos requisitos
para o PRCHS alcançar a sua nova fonte de finan-
ciamento,7 que viria a ser o Banco Interamericano
de Desenvolvimento (BID).

Ainda que estivesse dispondo desta mudança na


sua estrutura de execução, a partir de um quadro

6. O referido número é relativo ao total de moradores


expulsos no período de 1992 a 2004 (MOURAD, 2011)

7. As primeiras 5 etapas do PRCHS foram inteiramente


16º SHCU
financiadas pelo Governo do Estado, sendo a 6ª e a 7ª
30 anos . Atualização Crítica
dotadas de mudanças progressivas nesta estrutura de
540 financiamento (REBOUÇAS, 2012).
institucional mais robusto, a execução da 7ª etapa ário (FII) para os imóveis vazios no Centro e uma
continuou sendo marcada por repercussões ne- “estrutura de governança” específica, conforma-
gativas. Decorrentes da permanência da política da pela Diretoria do Centro Antigo de Salvador
de remoção da população pobre residente e do (DIRCAS) (BAHIA, 2014). O FII seria o instrumento
enfrentamento político significativo empreendido que colocaria o conjunto dos 1.400 imóveis subu-
por setores da sociedade organizados, de onde tilizados no CAS à disposição do mercado imobi-
destacamos a Associação dos Moradores e Ami- liário, objetivando a construção de uma forma de
gos do Centro Histórico (AMACH), as ações desta captação de recursos privados para viabilizar os
fase do PRCHS não culminaram numa mudança investimentos mais substantivos na área. A DIR-
significativa dos balanços sobre o seu desempe- CAS, por sua vez, seria a instância do Governo do
nho (REBOUÇAS, 2012). Estado que disporia de “orçamento, autonomia,
patrimônio e recursos humanos” próprios para
Foi a predominância desta imagem negativa sobre operar a gestão do CAS e deste FII (idem).
o PRCHS que conformou um dos aspectos retó-
ricos importantes na conjuntura de lançamento Mesmo tendo realizado alguns dos projetos previs-
do PRP-CAS. Este último Plano, que originava das tos, os eixos estruturantes do PRP-CAS não pro-
formulações da agenda do Ministério das Cidades, grediram conforme o planejado. Após sucessivas
também se apropriava de um discurso em negati- tentativas malogradas de execução do FII, em 2018
vo do que havia permanecido como falhas do PR- sua gestão foi transferida à Empresa Baiana de
CHS, associando a alteração dos grupos políticos Ativos S.A (BahiaInveste), empresa de economia
no Governo do Estado à mudança da política para mista que viria a gerir todo o patrimônio imobili-
o centro. Nesse sentido, adotava discursivamente ário do Governo do Estado da Bahia. No momen-
como seus eixos estruturantes a participação to presente, entretanto, este projeto tanto não
social, a inclusão da função habitacional nas suas apresenta nenhuma evidência executiva, quanto
ações, e, finalmente, o combate à subutilização de não consta mais no escopo da referida empresa
imóveis fruto de uma ação meramente localizada
(BAHIAINVESTE, 2020), fato que corrobora com
em construções de destaque, que não atingisse a
o destino da DIRCAS, que teve seu quadro insti-
coesão do tecido urbano (BAHIA, 2010). Construía,
tucional abruptamente diminuído. Se antes ela
nessa direção, uma ação integrada, não apenas
aglutinava três superintendências do Governo na
para o CHS, mas para o todo do CAS.
sua estrutura, hoje, ela foi transformada em uma
Alguns desses aspectos mencionados se tornam dessas, a Superintendência do Centro Antigo de
claros no texto de apresentação assinado pelo Salvador (SCAS). A SCAS se subordina à Diretoria
Governador: de Habitação (DIHAB) da Companhia de Desenvol-
vimento Urbano do Estado da Bahia (CONDER) e
“A revitalização restrita ao Pelourinho, ocor- conta com um orçamento limitado às interven-
rida na década de 90, fez da região um dos ções de manutenção construtiva: reparação de
maiores destinos turísticos do país, gra- fachadas, telhado e pavimento (SCAS, 2019). Uma
ças à riqueza do seu patrimônio artístico parte ínfima do que se propunha inicialmente.
e cultural. Tal intervenção, no entanto, não
contemplou a sustentabilidade econômi- Estes fatos nos ligam ao levantamento das inter-
ca, social, urbanística e ambiental desse venções urbanas em curso no momento presente.
importante sítio. O PRP-CAS, ora lançado, Na relação apresentada aqui, o PRP-CAS aparece
pretende corrigir essa distorção e devolver vinculado apenas à execução da política intitulada
à cidade o seu berço, sendo um marco dos “Pelas Ruas do Centro Antigo”, que se trata de uma
novos tempos em que vive a Bahia” (BAHIA, elaboração decorrente do referido Plano. Iniciada
2010, p.6, grifo nosso) em 2015, ela dispõe de um orçamento de R$126
milhões e destina sua atenção à realização de
O PRP-CAS, ao longo do seu desenvolvimento, obras de pavimentação de vias e requalificação
foi implementado através de um acordo de coo- de calçadas do CAS, dentre as quais se insere o
peração técnica com a UNESCO e, a partir desse projeto de Requalificação da Rua Chile (idem).
acordo, centrou o seu modus operandi em 2 eixos:
a criação de um Fundo de Investimento Imobili- Caso adotássemos um tempo de análise do PRP-
EIXO TEMÁTICO 1 -CAS que se encerrasse no limite visível de suas
ações, seríamos levados a pensar que há uma
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO fratura do processo de planejamento lançado por
ele, por conta da inexistência dos seus ditos eixos
estruturantes nos dias de hoje. E que o plano,
por sua vez, teria sido insuficiente em promover
a reabilitação da área central. Daqui podería-
mos, inclusive, elencar um número importante
de medidas que o plano poderia ter utilizado para
seguir outros rumos. Teríamos como exemplo: a
adoção da diversidade de tipologias de uso nos
imóveis; a inclusão de projetos habitacionais que
misturassem a renda dos habitantes do centro; a
utilização de instrumentos do Estatuto da Cidade
como a ZEIS; e a integração entre as ações do
poder público e da iniciativa privada.8

Insistindo no viés da crítica, o quadro se adensaria


mais ainda se puséssemos em análise conjunta as
outras ações realizadas pelo Governo do Estado
listadas, mas que estão fora do referido Plano.
Estamos nos referindo aqui à execução das obras
do Terminal Marítimo de Passageiros do Porto de
Salvador e ao provimento das linhas de financia-
mento para o ente privado responsável pelo Hotel
Fera Palace e pelo estacionamento Premium Car
Park (Figura 2). Com elas, verificaríamos, ainda,
uma ausência de coordenação entre as referidas
intervenções e o PRP-CAS, reforçando uma leitura
que percebe a atuação do Governo do Estado
no centro de Salvador, de modo geral, incapaz
de romper com a lógica atuação fragmentária
no tecido urbano (MOURAD, 2011, p.97). E, nesse
sentido, indutora de uma ação com maior “sus-
cetibilidade aos interesses do capital” (MOURAD;
REBOUÇAS, 2012, p.16).

Estas suposições poderiam ser suficientes se as


intervenções correspondentes ao programa Sal-
vador 360 não trouxessem outros elementos para

8. Exploramos este conjunto de medidas pois elas


aparecem constantemente como sugestões críticas a
planos urbanísticos destinados à revitalização de centros.
Em geral, pela ligação que estabelecem com o Estatuto
da Cidade, suas recomendações são tidas como formas
de democratização das políticas urbanas analisadas. As
seguintes referências exemplificam, respectivamente,
cada uma das medidas citadas em diferentes contextos:
16º SHCU
GORDILHO-SOUZA (2009 apud MOURAD, 2011, p.92);
30 anos . Atualização Crítica
FERNANDES (2008, P. 33); FIGUEIREDO et al (2012, p.79) e
542 MOURAD (2011, p.95).
a nossa análise, nos mostrando alguns contrários. na rede de suas ações o deslocamento das sedes
Pois, a partir delas e do desenho institucional que de 80% dos órgãos municipais para o bairro do
o Salvador 360 assume, constatamos que o PR- Comércio, previstos para acontecer até o final
P-CAS se mantém como um processo irradiador de 2020 (SALVADOR, P. 2019). Já tendo boa parte
dos horizontes de planejamento para o centro, executada até o presente momento, esta ação é
e, principalmente, que o conjunto de suposições mediada pelo estabelecimento de um regime de
que levariam as ações deste plano a uma direção locação entre a prefeitura e o proprietário de cada
mais democrática são incorporadas, mas sem imóvel utilizado, em que a Prefeitura determina
fazer o combate presumido dos efeitos adversos. reformas necessárias nas edificações e o pro-
prietário dos imóveis alugados fica encarregado
O Salvador 360 é um programa de governo da de realizá-las. O custo desta operação é viabili-
Prefeitura Municipal de Salvador lançado em maio zado pelo próprio aluguel pago pela Prefeitura
de 2017. Construído de maneira sequenciada, ele em um contrato previsto para durar entre vinte
se divide em 8 eixos e, de acordo com o discurso e trinta anos. É o chamado regime de locação
institucional, se constitui como um programa por encomenda (built to suit), normatizada pela
de desenvolvimento econômico com foco em Lei 9.452, aprovada pela Câmara Municipal em
investimentos de infraestrutura, que também junho de 2019. A lei referida permite esta forma
prevê ações de fomento à investimentos de em- de aluguel pois arbitra que “imóveis estratégicos
presas, geração de empregos e fortalecimento da para o desenvolvimento da cidade” prescindem
economia informal, prevendo um diálogo com a de licitação para a formalização do seu aluguel
chamada economia criativa e o desenvolvimento (SALVADOR, C. 2019).
sustentável. Assim se denomina, pois calcula o
exercício de 360 ações que atendam à cidade na Caminha ao lado da transferência das sedes mu-
sua completude. nicipais, a construção de um projeto de habitação
para o Comércio. Ainda em fase de elaboração,10
Nas intervenções relacionadas na Figura 2, o este projeto calcula a utilização de 200.000m² de
Salvador 360 hegemoniza a execução da grande potencial construtivo presentes no referido bairro,
maioria delas, sendo responsável por 15, das 21 previstos para serem disponibilizados através
apontadas. Orquestra esse número significativo da reforma de imóveis que estão em diferentes
a partir de 2 eixos de execução, o “eixo 4 - Cen- estágios de arruinamento e/ou sob ocupação de
tro Histórico” 9 e o “eixo 5 – Cidade Inteligente”. O pessoas em situação de rua.
eixo 4 concentra o conjunto mais expressivo de
A Prefeitura afirma que o projeto se dividirá em
intervenções urbanas e se constitui como a prin-
três etapas e que, cada uma delas, contará com
cipal entrada da Prefeitura no centro da cidade, a
diferentes categorias de financiamento e públi-
partir da qual se verificam articuladas diferentes
co destinatário. A primeira etapa, que está mais
políticas públicas (Pidi, Prodetur e Proquali) que,
avançada projetualmente, engloba a região que
por sua vez, captam recursos de uma também
vai da igreja do Corpo Santo até o Plano Inclinado
variada fonte de financiamentos.
Gonçalves e prevê a construção das habitações
Além das intervenções urbanas destinadas àquilo destinadas aos funcionários municipais, com
que o eixo 4 denomina de requalificação, inclui-se renda média mensal de R$2.500,00. Intende-se
o fundo de previdência destes funcionários como
fonte de financiamento das obras. A segunda
9. Ainda que se utilize da nomenclatura Centro Histórico etapa, por sua vez, engloba a região que vai do re-
para título do seu programa urbano, a Prefeitura Municipal, ferido Plano Inclinado até a Associação Comercial
em outros documentos que detalham as ações do eixo 4,
nomeia sua área de intervenção ora como “Centro Histórico
e sua área de entorno”, ora como “Centro Antigo” (SALVADOR, 10. O conjunto das informações sobre o projeto de habitação
2020). Nesta mescla, reafirma tanto uma disputa desta para o Comércio foram obtidas em audiência pública
nomeação, ao intitular seu programa com o mesmo nome realizada pelo Ministério Público da Bahia, no dia 4/9/2019, a
dos programas anteriores ligados à sua mesma filiação partir dos documentos e falas apresentadas pelos membros
partidária, quanto a consolidação do CAS como referência da Secretaria Municipal de Desenvolvimento e Urbanismo
para o “CHS e o seu entorno”. (SEDUR).
EIXO TEMÁTICO 1 da Bahia e destina-se à incorporação imobiliária
privada, tendo pretensão de ter seu financiamento
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO viabilizado pelo livre mercado. A terceira e última
etapa está designada para cobrir a região que vai
da Associação Comercial até o túnel Américo Si-
mas. Destinada a habitações de interesse social,
esta região está prevista para ser regulamentada
como a ZEIS do Pilar, num processo de regulação
fundiária integrado a este projeto habitacional. A
fonte de financiamento destas unidades, entre-
tanto, a Prefeitura de Salvador diz estar vinculada
a “possíveis” financiamentos do Governo Federal.

O outro eixo de intervenção do Salvador 360, o


eixo 5, é responsável no centro apenas pela estru-
turação do Hub Salvador. Um espaço sob posse
da prefeitura, gerido por uma Parceria Público
Privada, que aluga escritórios para startups da
dita economia criativa. O Hub Salvador está exa-
tamente instalado nas estruturas do Terminal
Marítimo de Passageiros do Porto de Salvador, o
mesmo empreendimento já citado anteriormente,
que foi construído pelo Governo do Estado, com
recursos do PAC2 sob parte das antigas docas
do porto. Estas que, por sua vez, deram lugar ao
novo Terminal com o objetivo de ampliar a infra-
estrutura de recepção de turistas para a Copa do
Mundo de 2014 (BAPTISTA, 2014).

Analisando o Salvador 360 sob uma perspectiva


conjuntural, é possível, ainda, pontuar dois ele-
mentos. No interior da gestão municipal, que está
sob comando do Partido Democratas (antigo PFL)
desde 2013, é possível localizar o lançamento do
referido programa em um momento posterior a
outras sucessivas sinalizações de especial aten-
ção municipal ao centro, de onde destacamos: 1)
a regulamentação da Manifestação de Interesse
Privado (MIP) 11 e o subsequente acatamento da
MIP da Odebrecht, que, ainda em 2013, desenhou
um projeto de requalificação urbanística para o
centro - incorporado ao PDDU de 2016, sob a forma
de uma Operação Urbana Consorciada (OUC);12
2) O lançamento do Programa de Incentivo ao
Desenvolvimento Sustentável e Inovação (PIDI),

11. Instituída em 2013, a MIP é um instrumento jurídico


estabelecido pela Lei Municipal 23.935 que permite que
16º SHCU empresas privadas apresentem ao poder público municipal,
30 anos . Atualização Crítica por livre demanda, projetos de intervenção urbana.

544 12. Ver REBOUÇAS E MOURAD (2019)


em 2015, que estabeleceu abatimentos fiscais taria de Desenvolvimento e Urbanismo (SEDUR)
para projetos não-residenciais no centro a serem que desenvolve parte significativa dos projetos
implantados, reformados ou ampliados; 3) E, fi- executados dentro do Salvador 360. O destaque
nalmente, o Programa Revitalizar, aprovado em deste ente municipal se dá pelo fato da sua atu-
2017, que também estabeleceu reduções/isen- ação estar vinculada a um acordo de cooperação
ções fiscais (IPTU, perdão de dívidas, ISS, etc) a técnica com a UNESCO (SALVADOR, 2017, p.33).
imóveis a serem reformados, incluindo, desta vez,
aqueles de função habitacional. De maneira geral, Intitulado “Projeto Instrumentos e Estratégias
são propostas que vão sendo lançadas desde o para o Desenvolvimento Sustentável do CAS”, este
início da gestão municipal, que não evidenciam dispositivo, formalizado em 2017, acopla à FMLF
alcançar grandes escalas (o projeto de OUC nem uma estrutura de gestão especializada para o
se realiza), mas que ativam melhores condições centro que é a mesma adotada na elaboração do
para a ação dos agentes privados. PRP-CAS. A presença da UNESCO, compartilhada
entre o plano estadual e o programa municipal,
No âmbito nacional, por sua vez, o momento prévio implica na vinculação da agenda destes dois dis-
ao lançamento do Salvador 360 é marcado pelo positivos urbanos às estratégias e diretrizes da
deslocamento das forças políticas que davam referida agência internacional. São construídas,
sustentação às ações de nível federal no centro por assim dizer, “parcerias” cujo formato e orien-
de Salvador, decorrência do golpe jurídico-parla- tação das ações transitam igualmente entre o
mentar de 2016. A materialidade deste fato pode PRP-CAS e o Salvador 360, elaborando um ajus-
ser percebida pelo contingenciamento de 61% do tamento programático na ação empreendida por
orçamento do IPHAN e pelo consequente refluxo eles, em que faz parte da permanência, inclusive,
no PAC – Cidades Históricas, programa operado parte do corpo técnico utilizado.13
por este órgão federal que previa a execução de
23 projetos de intervenção urbana no centro de Esta relação se adensa ainda mais quando é per-
Salvador (PAC, 2019; CÂMARA, 2017). Além disso, cebida nos projetos de intervenção urbana que
pensando a irradiação desta mudança em outras são propostos. Aproximando novamente o olhar
instâncias que mantinham alinhamento ao Gover- ao quadro desenhado pela Figura 2, é possível
no Federal, ainda é cabível inferir um impacto nas identificar que 9, dos 15 projetos executados pelo
ações elaboradas pelo próprio Governo do Estado Salvador 360, são expressamente descritos no
destinadas ao centro, sendo este um elemento documento que analisa os avanços do PRP-CAS
que converge para o arrefecimento das ações como “Projetos que contribuirão para a valoriza-
estruturantes do próprio PRP-CAS. ção dos Equipamentos Culturais” (BAHIA, 2014). Ou
seja, são iniciativas que já tinham sido idealizadas
Analisados em conjunto, esses elementos des- desde o PRP-CAS e que foram trasladadas para
critos ilustram um movimento de progressiva o Salvador 360, executadas no mesmo formato
reconfiguração das forças políticas atuantes no e explicitando outras formas em que a seme-
centro de Salvador. Perfazem um momento em lhança estratégica de ambos planos também se
que o posicionamento das ações da Prefeitura manifesta.
de Salvador direcionadas ao centro, que já vi-
nham sendo pontualmente construídas, aparen- Um destes projetos, por exemplo, é o da Recons-
ta encontrar melhores condições de pujança. E trução do Mercado de São Miguel, cuja ordem de
daqui reunimos as condições para entender, em serviço foi assinada pela Prefeitura em março de
aspectos gerais, o contexto que desemboca na
predominância do programa Salvador 360 sob o
13. A permanência das mesmas pessoas atuando nos
PRP-CAS nos dias de hoje. referidos planos pode ser flagrada através de contratações
municipais de técnicos para a realização do “Projeto
Há, ainda, alguns nós que permitem identificar a Instrumentos e Estratégias para o Desenvolvimento
relação dessas redes institucionais numa esca- Sustentável do CAS” sob o signo de “serviço técnico
la pormenorizada. O primeiro deles é dado pela especializado” (BRASIL, 2018, p.157). Parte importante
forma de atuação que assume a Fundação Mário desta equipe consta no corpo de realização do PRP-CAS e
Leal Ferreira (FMLF), fundação vinculada à Secre- também na DIRCAS (BAHIA, 2013, p.2).
EIXO TEMÁTICO 1 2019. Acontece, entretanto, que este espaço tinha
sido diagnosticado pelo PRP-CAS como prioritário
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO de intervenção, aparecendo em 2 das 14 proposi-
ções principais que o Plano assumia. Consta que o
projeto já dispunha de orçamento destinado pelo
Governo do Estado (BAHIA, 2010, p.31) e que o ente
estadual, inclusive, já havia requerido um termo
de cessão da Prefeitura, uma vez que o imóvel
é de propriedade municipal, para que as obras
pudessem ser iniciadas. O executivo estadual,
entretanto, foi incapaz de seguir com a obra e de-
volveu a cessão do uso para a Prefeitura, que pas-
sou, posteriormente, a incluí-la no Salvador 360.

Outros três projetos também integram a mesma


lista. São os projetos de Requalificação dos Arcos
da Ladeira da Conceição da Praia, de Requalifica-
ção das Muralhas do Frontispício e de obras no Ele-
vador do Taboão. Nestes três casos, entretanto,
há uma outra camada de transição institucional.
Após o Governo do Estado indicar a centralidade
dos projetos para o seu plano de ação no centro, o
IPHAN assume como ente responsável pela con-
dução destas obras, através de uma vinculação ao
PAC – Cidades Históricas. Contudo, por conta da já
mencionada redução orçamentária, após assumir
a condução, o órgão federal de patrimônio perde
capacidade de incidência no prosseguimento
das obras e cede, posteriormente, os projetos
elaborados à Prefeitura Municipal, que as inclui
no escopo do Salvador 360.

As conexões apresentadas por estas situações


mostram um claro deslizamento dos projetos de
intervenção urbana, especialmente evidentes do
PRP-CAS para o Salvador 360. Além de apontar
para um acordo estratégico dos planos, aspecto
que já não é trivial, estes deslizamentos também
mostram a dinâmica de efetivação possível des-
tes projetos. Entendemos que esta continuidade
dos projetos em planos diversos revela a exis-
tência de um tempo necessário à ação estatal
para que ela atinja as condições de realização das
intervenções urbanas propostas. Um tempo que
enreda a sucessão de diferentes projetos, pois
têm, na execução pontual de cada um deles, a
intensificação de novos investimentos, cenários
e agentes que não eram possíveis mobilizar numa
etapa anterior. E que, dado este novo contexto
16º SHCU produzido, possibilitam à ação governamental
30 anos . Atualização Crítica
o acesso a outras condições de implementação
546 para projetos idealizados em momentos prévios.
Desta forma, é somente partindo de um determi- Vemos, através disso, que a integração entre
nado encadeamento temporal que os respectivos os planos apresentada pelo deslizamento dos
programas urbanísticos vão sendo realizados, quatro outros projetos citados anteriormente,
configurando, em grande medida, um regime ca- que demonstravam um alinhamento estratégico
racterístico do processo de produção e reprodu- muito mais evidente, é levada ao extremo. Um
ção do espaço que observamos aqui. O trânsito em extremo que serve como alegoria por eviden-
diferentes governos e políticas urbanas aparece ciar que o processo de revitalização do centro
como um traço fundamental deste regime e ex- de Salvador vai sendo produzido em camadas,
põe, em última instância, um acordo no modelo continuamente sobrepostas e aparentemente
de desenvolvimento econômico que os orienta. dispersas, que paulatinamente vão se integrando
pela produção unitária de espaços assentados
O exemplo do Hub Salvador nos permite apro- uns em cima dos outros. Tomando emprestada
fundar esta última dimensão, dadas as caracte- uma noção que MOURAD (2011, p.101) utiliza para
rísticas emblemáticas que seu projeto contém. comentar a formação dos circuitos econômicos
Pontuando novamente, o Hub tem sua estrutura do consumo e do lazer no centro de Salvador,
assentada nas instalações do Terminal Marítimo poderíamos dizer que o modelo de produção da
de Passageiros. Diferentemente dos exemplos cidade aqui caracterizado produz “microterri-
que indicamos acima, neste último caso não há, tórios” que, temporalmente, vão se articulando
em tese, nenhuma correlação na agenda estra- sucessivamente e criando uma cadência desta
tégica do plano e do programa pelos quais ele dita revitalização.
foi viabilizado; o Salvador 360 e o PAC-2, res-
pectivamente. O PAC-2 não concatena múltiplas Neste sentido, para além de perceber o PRP-CAS e
ações pautadas na região central de Salvador, o Salvador 360 dentro de uma continuidade, o que
nem tampouco é direcionado à revitalização de traçamos aqui mostra que é impossível perceber
centros propriamente dita (ARANTES, 2000). as atenções destinadas por este modelo de gestão
urbana dissociadas umas das outras. É impossível,
Apesar disso, é na materialidade do centro de
assim, analisar um plano em sua escala unitária,
Salvador onde está ancorado um nó estrutural
dentro da chave de fracasso/sucesso, uma vez
dos projetos de desenvolvimento aos quais as
que isso não comporta relações com os outros
referidas intervenções estão filiadas. Dito de outra
planos antecessores e sucessores. E, finalmente,
forma, as propriedades espaciais do centro de
é impossível também dizer que a ação do poder
Salvador conformam um cerne para o desenvolvi-
público através dos programas destinados ao
mento dos circuitos econômicos mobilizados por
centro de Salvador atua de modo fragmentário,
estes projetos. A saber, os circuitos das econo-
sem incorporar a perspectiva urbanística. Ao con-
mias criativa, do turismo e dos megaeventos. E,
trário. Os elementos analisados nos mostram que
por isso, as intervenções no espaço que derivam
os agentes do poder público edificam uma ação
da realização de cada um deles alicerçam as con-
integrada por projetos pontuais, construída de
dições de reprodução do outro.
modo não-linear, que necessita abarcar diferentes
É por este caminho que fica evidente uma gestão planos e programas urbanísticos para se efetivar e
dos projetos urbanos para o centro de Salvador que, em larga medida, operam os alicerces de um
compartilhada entre o Governo do Estado, a Pre- mesmo modelo de desenvolvimento econômico.
feitura Municipal e o Governo Federal; este últi-
mo numa proporção quantitativamente menos
expressiva, mas qualitativamente equivalente.
Formam uma dinâmica através da qual falam os
CONSIDERAÇÕES FINAIS: OUTROS REGISTROS
mesmos interesses privados, que, por sua vez, PARA UMA ATUALIZAÇÃO CRÍTICA
operam, na esfera econômica, a reorganização
das relações produtivas na capital baiana. Não é Perceber os planos e programas atuando em uma
à toa a implantação de projetos voltados à pres- continuidade, nos permite olhar para os fenôme-
tação de serviços, e, muito menos, o estímulo nos expressos no centro de Salvador atualmente
declarado da economia informal, que localiza os sob outros registros. A concentração das inter-
custos sociais desta transformação. venções urbanísticas no bairro do Comércio, por
EIXO TEMÁTICO 1 exemplo, se apresenta como um resultado em-
blemático da dinâmica de produção do espaço
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO que caracterizamos. Pois, ao reunir algumas das
transformações urbanas do momento presente,
muitas delas planejadas nos termos de elaboração
do PRP-CAS e posteriormente executadas através
do Salvador 360, o bairro se evidencia como um
espaço estratégico para a realização da política
urbana e econômica que eles contêm.

Sendo uma marca expressiva do momento em tela,


ainda é possível apontar para uma confluência do
papel do Comércio na revitalização do centro e
da nomeação de Centro Antigo, implantada pelo
PRP-CAS. Isto porque a justificativa construída
pelo Governo do Estado para o emprego da nova
nomenclatura, de que haveria uma suposta ruptu-
ra com seu plano antecessor (o PRCHS), por tudo
o que já argumentamos, se demonstra incoerente
para explicar uma ação estatal geograficamente
em expansão. Por isso, se há alguma diferença
motivada pela introdução do PRP-CAS, que venha
a substanciar uma outra nomeação do centro de
Salvador, ela nos parece melhor atrelada ao fenô-
meno observado no bairro do Comércio. Queremos
dizer com isso que a construção da narrativa sobre
o desenvolvimento do centro empregada pelo
PRP-CAS, através da nomenclatura de CAS, está
muito mais alinhada a um avanço das fronteiras
da revitalização como forma de produzir a cidade,
do que a uma suposta mudança de paradigma na
ação estatal.

O avanço da revitalização como horizonte de pro-


dução urbana é uma tendência também observada
pela inviabilidade do PRP-CAS (e dos planos, em
geral) desenvolver uma ação menos “suscetível
aos interesses do capital”. Recuperando esta
suposição e o conjunto de diretrizes urbanísti-
cas (mencionadas nas páginas anteriores) que
atenuariam a suscetibilidade dos planos à ação
do capital, vemos que elas são completamente
incorporadas no curso contínuo entre o PRP-CAS
e o Salvador 360. Contudo, sua introdução não
repercute em qualquer conquista efetiva para os
trabalhadores e as trabalhadoras que cotidiana-
mente habitam o centro.

Pensando um rebatimento individualizado de


16º SHCU cada uma destas diretrizes, notamos, no caso
30 anos . Atualização Crítica
da adoção de diversidade de tipologias, a sua
548 efetivação pela já mencionada transferência das
sedes das secretarias municipais, que introduzem social da propriedade, não deve ser subestima-
na ocupação dos espaços revitalizados o serviço do. Principalmente porque o compartilhamento
público. Quanto à integração entre as ações do na gestão do centro de Salvador entre governos
poder público e da iniciativa privada, observamos consideravelmente mais progressistas e governos
a sua adoção como princípio através das políticas alinhados a um projeto neofascista em franca
da MIP, do PIDI e do Revitalizar. Por último, nos ascensão aponta para o fato de que as valiosas
casos da incorporação da ZEIS e da inclusão de diferenças discursivas entre estes polos, no con-
projetos habitacionais que misturassem a renda texto de mundialização do capital, têm sido cada
dos habitantes, essas são diretrizes presentes no vez mais desproporcionais às diferenças nos seus
plano de habitação para o Comércio. Um projeto horizontes de desenvolvimento econômico e de
que opera o discurso do ambiente socialmente produção das cidades.
diverso e, quase que ironicamente, conduz o único
resquício da promoção dos direitos sociais, que Desta maneira, conforma um verdadeiro desafio
é a produção de habitação de interesse social, a para a atualização crítica da história das cidades
um inexequível financiamento da atual gestão do pensar nas articulações da acumulação capita-
Governo Federal, das as perspectivas conjunturais lista com os ideais democráticos de um passado
não muito e, ao mesmo tempo, tão distante. Talvez
atuais. Nesse sentido, a regulamentação da ZEIS
esta seja uma perspectiva em que a imagina-
do Pilar aparece mais como uma circunscrição
ção política de outrora nos traga novas (e velhas)
muito bem delimitada e restritiva do lugar dos
questões para reposicionarmos o horizonte da
pobres, do que uma medida de democratização
igualdade em nossa sociedade.
do acesso à terra urbana.

Concluímos, portanto, que o diagnóstico supra-


citado escancara a incapacidade das referidas
diretrizes urbanísticas atuarem em direção à
justiça social, apenas pelo fato de serem imple-
mentadas, por si só. Sem sombra de dúvidas, este
panorama nos remonta às ilusões que a ideologia
urbanística guarda e, por isso, nos aproxima das
críticas aos planos encontradas em autores como
Villaça (2005). Contudo, há uma sutil e importante
diferença: não é que a ilusão urbanística aqui per-
cebida seja fruto de uma inocuidade dos planos,
que atuam em detrimento de um apagamento no
conflito social (idem). As condições que observa-
mos atestam uma ação absolutamente precisa
da expertise técnica, que se dirige diretamente
à hegemonia do capital. E o fazem sem suprimir,
de modo algum, os rastros da luta de classes. Ao
contrário, a ação estatal aponta e delimita o lugar
exato de cada fração da sociedade, mas, ao agir
desta forma - e é esta a sua diferença - oblitera
o horizonte da igualdade social.

A importância de pensar esta configuração re-


side, sobretudo, nos caminhos que originam as
nossas ilusões. O fato da origem do PRP-CAS
estar vinculada um programa do Ministério das
Cidades, cuja orientação era desenhar planos
de combate aos vazios especulativos em áreas
urbanas centrais, bem como o enfrentamento do
déficit habitacional e o cumprimento da função
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Acesso em novembro 2019.

SALVADOR, Diário Oficial do Município. Resu-


mo de projeto de cooperação técnica entre
a Fundação Mário Leal Ferreira e UNESCO
EIXO TEMÁTICO 1 RESUMO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Esse artigo busca revisitar as contribuições
experimentais de Dolores Hayden sobre a or-
vídeo-pôster ganização do espaço urbano na perspectiva
de gênero, proposta por ela na década de 1980
denominada HOMES para entender, a partir das
CIDADES NÃO-SEXISTAS: desigualdades de gênero, que ainda persistem
na realidade contemporânea, o quanto essas
REVISITANDO A TEORIA possibilidades ainda podem ser entendidas
como necessárias para uma equalização das di-
DE DOLORES HAYDEN NA ferenças dentro do espaço urbano.

CONTEMPORANEIDADE
URBANISMO CIDADE DOLORES HAYDEN GÊNERO

NON-SEXIST CITIES: REVISITING THEORY OF DOLORES


HAYDEN IN CONTEMPORANEITY

CIUDADES NON SEXISTAS: REVISANDO LA TEORÍA DE


DOLORES HAYDEN EN LA CONTEMPORANEIDAD

CARMO, Carolina Guida Cardoso do


Doutoranda do PPGATC-FEC/UNICAMP
carolinagcdocarmo@gmail.com

BERNARDINI, Sidney Piochi


Doutor em Arquitetura e Urbanismo; Professor do
PPGATC-FEC/UNICAMP
sidpiochi@gmail.com

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

552
ABSTRACT RESUMEN

This article seeks to revisit the experimental con- Este artículo busca revisar los aportes experi-
tributions of Dolores Hayden regarding the orga- mentales de Dolores Hayden en cuanto a la orga-
nization of urban spaces proposed by the same in nización de los espacios urbanos propuestos por
the 1980s, called HOMES and to understand, from la misma en la década de los 80, denominados
the gender inequalities that still affect contem- HOMES, y comprender, a partir de las desigual-
porary reality, how much these possibilities can dades de género que aún afectan la realidad con-
still be understood as necessary for an equaliza- temporánea, hasta qué punto estas posibilidades
tion of differences within the urban space. pueden aún entenderse como necesario para una
igualación de diferencias dentro del espacio ur-
bano.
URBANISM CITY DOLORES HAYDEN GENDER

URBANISMO CIUDAD DOLORES HAYDEN GÉNERO


EIXO TEMÁTICO 1 INTRODUÇÃO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Nos últimos anos, observamos um interesse cres-
cente em pesquisas brasileiras1 que buscam rela-
cionar os estudos de gênero com o espaço urbano,
vídeo-pôster
demonstrando as barreiras existentes dentro da
lógica do espaço urbano construído, ampliadas a

CIDADES NÃO-SEXISTAS: partir das discussões a respeito da domesticida-


de, do espaço privado e como o mesmo tem sido,

REVISITANDO A TEORIA há muito, delegado à mulher como parte de seu


papel social (HEYNEN, 2005; HOLLOWS, 2007;
DE DOLORES HAYDEN NA NASCIMENTO et al., 2017).

CONTEMPORANEIDADE Neste contexto, as tradicionais formas de planejar


não enxergam diferenças nos papeis exercidos
pelo gênero feminino; uma suposta neutralidade
NON-SEXIST CITIES: REVISITING THEORY OF DOLORES tende a favorecer os agentes de controle vincu-
HAYDEN IN CONTEMPORANEITY lados, via de regra, ao heteropatriarcado. Como
as lógicas familiares se estruturaram a partir de
uma posição hegemônica da figura masculina,
CIUDADES NON SEXISTAS: REVISANDO LA TEORÍA DE
responsável pelo sustento e provento da famí-
DOLORES HAYDEN EN LA CONTEMPORANEIDAD
lia, delegou-se à mulher os cuidados internos
no ambiente doméstico. Essa atuação histórica
institucionalizada, entretanto, está baseada na
divisão sexual do trabalho. Para Scott (1995), o
conceito de gênero acentua e explica as desigual-
dades pautadas entre feminino e masculino, e a
autora rejeita o determinismo biológico do sexo,
considerando os sujeitos como resultados de
construções sociais. Ela parte do pressuposto
de que os gêneros (masculino e feminino) perce-
bem e vivenciam o mundo de maneira diferente,
resultando em atuações diferentes e, portanto, in-
fluenciando na construção das relações de poder.

A partir das relações de domesticidade, algumas


ativistas e autoras se propuseram a fazer uma ob-
servação de campo sobre o espaço urbano público
a partir da perspectiva do gênero, em consonância
aos seus objetos de pesquisa. Já na década de 1960,
Jane Jacobs 2 iniciou um debate potente a respeito

1. Como exemplo, foram encontradas, na Biblitoeca Digital


Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD), 47 pesquisas
científicas brasileiras, desenvolvidas entre 2010 até 2019,
com os termos “gênero” e “urbano” atrelados na busca,
sendo que 35 dessas pesquisas foram desenvolvidas nos
últimos 5 anos.

2. Jane Jacobs (Estados Unidos) foi uma escritora e ativista


16º SHCU
que, com sua obra mais conhecida, “The Death and Life
30 anos . Atualização Crítica
of Great Americian Cities”, publicada na década de 1960,
554 ganhou notoriedade nos estudos a respeito do espaço ur-
das transformações e permanências na escala do ção espacial, abordando-se todas as suas possi-
bairro dentro das cidades americanas, como forma de bilidades teóricas sem intersecciona-las com uma
estabelecer ambientes diversificados e seguros para espacialidade edificada ou representações esque-
um uso coletivo. Esses debates sobre a perspectiva da máticas. Dolores Hayden5, compartilha da com-
gentrificação e da expulsão de determinados sujeitos preensão de que é importante pensar a concepção
fizeram com que a autora e ativista estabelecesse um urbana sob a perspectiva de gênero, mas, como
olhar imbricado para a questão do gênero e o papel será discutido posteriormente, propõe um modelo
socialmente estabelecido para as mulheres, vincula- de organização territorial que visa equalizar as
dos ao cuidado e a manutenção da família – a partir do sobrecargas das mulheres americanas, cenário de
seu próprio olhar de cientista mas também de mãe e análise de seus estudos, de forma a potencializar
mulher que experimenta o urbano. Zaida Muxí 3 (2006; as possibilidades de emancipação da mulher.
2018) e Ana Falú4 (2007; 2009), duas arquitetas de ori-
gem latina, defendem que a questão da perspectiva de Neste contexto, o objetivo desse artigo é entender
gênero dialogada com o urbanismo não está somente as possibilidades de reinserir as concepções es-
na criação de territórios mais seguros, a partir da va- paciais de Dolores Hayden, publicada na década de
riação de usos do solo, iluminação pública, elementos 1980 – que propõe uma reestruturação dialógica
que garantam prioridade ao pedestre, mas também a entre os espaços privados e públicos, culminando
partir das vivências e apropriações do espaço urbano em uma mudança nas relações comunitárias a
originadas em uma sociedade de dominância mas- partir de uma perspectiva do gênero feminino,
culina, onde corpos serão condicionados a vivências com a realidade urbana e social contemporânea
diferentes a partir da perspectiva do gênero. Para pautada na discussão à respeito da violência de
ambas, é importante entender que, nessa discussão, gênero e do trabalho reprodutivo, assim como as
é preciso incorporar tal perspectiva no urbanismo, potencialidades dessa organização espacial como
entendendo os papeis socialmente construídos, para possível resposta a essas experiências (ainda)
ser possível o entendimento das desigualdades nas vivenciadas pelas mulheres.
oportunidades de vivência, como é o caso dos modelos
de mobilidade e deslocamento, vivenciados de maneira
diferente por homens e mulheres.
PLANEJAMENTO URBANO HEGEMÔNICO:
Essas discussões apresentadas são de extrema ASPECTOS RELEVANTES
relevância para compreendermos, de maneira
cada vez mais abrangente e detalhada, toda a A perspectiva do planejamento urbano moderno
diversidade, especificidade e complexidade dos surge como um ferramental para enfrentar pro-
agentes que conformam a cidade através de suas blemas das cidades que estão se intensificando
práticas diárias e cotidianas. Entretanto, ainda se de uma maneira crescente, diante das mudan-
estabelecem em um campo utopista de concep- ças econômicas e sociais pelas quais o planeta
vem passando, especialmente, desde o princípio
bano e sua relação direta com a forma em que as relações do século passado. Entretanto, a sua lógica não
sociais são estabelecidas. surge de uma maneira puramente orgânica, mas,
considerando o seu universalismo, das influências
3. Zaida Muxí Martínez (Argentina) é arquiteta e urbanis-
ta, graduada pela Universidade de Buenos Aires, doutora
dominantes no pensamento, que nem sempre se
pela Escola Técnica Superior de Arquitetura de Sevilha e relaciona com a realidade existente onde se aplica.
professora na Escola Técnica Superior de arquitetura de
Barcelona. Desenvolve pesquisas na área de habitação,
5. Dolores Hayden (Estados Unidos) é professora emérita
planejamento, espaço público e gênero.
de arquitetura, urbanismo e estudos americanos na Uni-
4. Ana Falú (Argentina) é arquitetura e urbanista, gradua- versidade de Yale. Alguns livros da autora que abordam
da pela Universidade Nacional de Tucumán, doutora pela a temática de gênero são: “The Grand Domestic Revolu-
Universidade Técnica de Delft. É fundadora da “Red Mujer tion: A History of Feminist Designs for American Homes,
y Hábitat de América Latina” e atualmente é professora Neighborhoods, and Cities”; “The Power of Place: Urban
em arquitetura e urbanismo na Universidade Nacional de Landscapes as Public History”; “Redesigning the American
Córdoba. Desenvolve pesquisas na área de planejamento, Dream: Gender, Housing, and Family Life”. Informações
gênero e política urbana. disponíveis em: http://www.doloreshayden.com/
EIXO TEMÁTICO 1 In many parts of the world, planning systems
are in place which have been imposed or
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO borrowed from elsewhere. In some cases,
these ‘foreign’ ideas have not changed sig-
nificantly since the time they were import-
ed. Planning systems and urban forms are
inevitably based on particular assumptions
about the time and place for which they
were designed, but these assumptions of-
ten do not hold in other parts of the world
and thus these systems and ideas are often
inappropriate (and now often dated) in the
context to which they have been transplant-
ed. Frequently, as well, these imported ideas
have been drawn on for reasons of political,
ethnic or racial domination and exclusion,
rather than in the interests of good planning.
(WATSON, 2009, pg. 1726)

A autora defende que, majoritariamente, no século XX,


o urbanismo modernista foi uma das grandes modali-
dades de se pensar o território nos países envolvidos
com a perspectiva capitalista, sendo que a lógica da
importação dos ideais e as formas originárias de con-
trole, manutenção de poder e, consequentemente, a
continuidade de uma lógica colonialista foi amplamen-
te mantida quando foram aplicadas as teorias vindas
dos países hegemônicos em outras localidades, espe-
cialmente quando essa lógica foi aplicada a partir dos
corpos técnicos internacionais, responsáveis pelas
organizações territoriais. Na lógica do planejamento
modernista, o mesmo é sinônimo de desenvolvimento
e crescimento econômico, cultural e social, fazendo
com que essa imagem seja extremamente atrativa
para torna-lo o principal ponto de referência para o
planejamento urbano, ignorando, muitas vezes,as

6. “Em muitas partes do mundo, existem sistemas de pla-


nejamento que foram impostos ou emprestados de ou-
tros lugares. Em alguns casos, essas ideias “estrangeiras”
não mudaram significativamente desde o momento em
que foram importadas. Os sistemas de planejamento e as
formas urbanas são inevitavelmente baseados em supo-
sições particulares sobre a hora e o lugar para os quais
foram projetados, mas essas suposições muitas vezes
não são válidas em outras partes do mundo e, portanto,
esses sistemas e ideias são frequentemente inadequados
(e agora muitas vezes datados) no contexto para o qual
foram transplantados. Frequentemente, também, essas
16º SHCU
ideias importadas foram utilizadas por razões de exclusão
30 anos . Atualização Crítica
e dominação política, étnica ou racial, e não no interesse
556 de um bom planejamento.” [tradução nossa]
perspectivas e desigualdades locais e peculiares de em si, mas também como uma questão central
cada sociedade, subalternalizando as peculiaridades no processo de desenvolvimento geral e cole-
locais existentes e controlando, cada vez mais, suas tivo, visto que o planejamento urbano pode ser
formas de vida e influência no espaço. “In these con- entendido como um ato de poder e que, portanto,
texts, planning of urban settlements was frequently pensar o planejamento urbano como uma forma
bound up with the ‘mod- ernising and civilising’ mission de contribuir para a construção das práticas igua-
of colonial authorities, but also with the control of ur- litárias é uma tarefa essencial e, principalmente,
banisation processes and of the urbanising populatio” evidenciando as mulheres como corpos políticos.
(WATSON, 2009, pg. 173).7As condicionantes abarcadas
nos desafios postulados no campo do planejamento
urbano modernista tornaram-se hegemônicas, co-
locando grande parte das problemáticas presentes VIOLÊNCIA DE GÊNERO
nas cidades sob uma perspectiva equalizada, do bem
comum, igualando diferenças importantes que tam- A violência contra a mulher não é um fato novo
bém passam pela questão do gênero. e pertencente exclusivamente à sociedade con-
temporânea, mas, de acordo com Julio Waiselfisz
Fanarak Miraftab (2016), quando aborda a dita esquizo- (2015), o que é novo e recente é uma preocupação
frenia do planejamento urbano hegemônico, como re- institucionalizada a respeito dela.
sultado exatamente dessas perspectivas que ignoram
as disparidades locais e as desigualdades intrínsecas à Em relação à esfera mundial, a violência atinge
formação de cada sociedade, exemplifica que a mesma todas as classes sociais e, diante disso, vários
é perceptível também na categoria do gênero quando países passaram a aplicar medidas de prevenção
aborda, por exemplo, situações de falta de saneamento e controle da mesma, passando a ser entendida,
vivenciadas na África do Sul e que levam a diversos por muitos desses países, como uma questão de
ataques e violências de gênero exatamente pela falta saúde pública e também como resultado dessa
de uma infraestrutura que assegure, minimamente, divisão sexual de poder. Em relação à perspectiva
que as mulheres possam usufruir de uma segurança da saúde e da violência doméstica, a Organização
territorial. Mundial da Saúde (OMS, 2013) coloca que esse tipo
de violência, em âmbito mundial, tem sido uma
Veja-se o caso das duas irmãs adolescentes condicionante direta e importante para o enten-
do estado de Bihar, na Índia, as quais, em der os desdobramentos relacionados à saúde da
uma tarde de maio de 2012, saíram de seu mulher e também de seu processo de desenvol-
barraco para defecar do lado de fora, longe vimento social e humano. A OMS também relata
de todos, onde não seriam vistas e teriam os resultados impactantes das demais violências
privacidade. Mas, elas nunca voltaram. Seus que as mulheres sofrem nas ruas, por pessoas que
corpos mortos e violentados foram encon- não são seus parceiros, e que, mesmo com dados
trados, mais tarde, dependurados em uma ainda relativamente escassos, comprovam uma
mangueira. Se as mulheres tivessem aces- repercussão negativa nas usas vidas.
so seguro a sanitários, apenas em Bihar,
cerca de 400 estupros teriam sido evita- overall, 35% of women worldwide have ex-
dos naquele mesmo ano, relata o chefe de perienced either physical and/or sexual inti-
polícia de Bihar. (MIRAFTAB, 2016, pg. 366) mate partner violence or non-partner sexual
violence. While there are many other forms
Diante desses apontamentos, Falú (2002) coloca of violence that women may be exposed to,
que é importante pensar o planejamento urbano this already represents a large proportion
não apenas como um desafio à questão urbana of the world’s women […]. women who have
been physically or sexually abused by their
7. “Nesses contextos, o planejamento de assentamentos
partners report higher rates of a number of
urbanos estava frequentemente vinculado à missão de important health problems. For example,
mondernização e civilização das autoridades coloniais, they are 16% more likely to have a low-birth-
mas também ao controle dos processos de urbanização e weight baby. […] Globally, 7% of women have
da população urbanizadora.” [tradução nossa] been sexually assaulted by someone other
EIXO TEMÁTICO 1 than a partner. There are fewer data avail-
able on the health effects of non-partner
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO sexual violence. However, the evidence that
does exist reveals that women who have
experienced this form of violence are 2.3
times more likely to have alcohol use disor-
ders and 2.6 times more likely to experience
depression or anxiety. (OMS, 2013, pg. 2-3) 8

No Brasil, a forma de buscar enfrentar e judi-


cializar o problema, criminalizando essas práti-
cas – em 2015, a Lei do Feminicídio (13.104/2015),
passou a classificar como crime hediondo e com
agravantes, as situações específicas conside-
radas de maior vulnerabilidade (gravidez, menor
de idade, presença de filhos, entre outros). Para
Helena Marques (2017), essa presença da violência
como fator constante na sociedade é um reflexo
das práticas normativas hegemônicas que cons-
tituem nossas relações sociais.

A violência contra a mulher é uma expressão


da sociedade machista em que vivemos e
que impede que as mulheres exerçam seus
direitos humanos mais básicos, como o di-
reito à vida e o direito de ir e vir. As cidades,
por sua vez, ao serem produtos históricos
da construção humana refletem o opres-
são pela qual a sociedade se estrutura e,
nesse sentido, é perceptível, no ambiente
urbano, diversos traços de machismo em
sua construção e vivência. (MARQUES, 2017)

8. No geral, 35% das mulheres em todo o mundo sofreram


violência física e/ou sexual por parceiro íntimo ou violência
sexual sem parceiro. Mesmo que existam muitas outras
formas de violência às quais as mulheres podem ser ex-
postas, isso já representa uma grande proporção das mu-
lheres do mundo [...]. Mulheres que sofreram abuso físico
e/ou sexual por seus parceiros relatam taxas mais altas
de vários problemas de saúde importantes. Por exemplo,
são 16% mais propensas a ter um bebê com baixo peso ao
nascer. [...] Globalmente, 7% das mulheres foram agredidas
sexualmente por alguém que não seja seu parceiro sexual.
Há menos dados disponíveis sobre os efeitos na saúde da
violência sexual nesse caso. No entanto, as evidências exis-
tentes revelam que as mulheres que sofreram essa forma
16º SHCU
de violência têm 2,3 vezes mais chances de ter problemas
30 anos . Atualização Crítica
por uso de álcool e 2,6 vezes mais chances de sofrer de
558 depressão ou ansiedade. [tradução nossa]
Gráfico 1 - Evolução da taxa de homicídios de mulheres (a cada 100mil) entre 1980 e 2013. Fonte: Waiselfisz, 2015

Nos estudos de Waiselfisz (2015), portanto, é pos- não como seres com os outros. Se amor,
sível obter dados que constroem uma cronologia abnegação, espírito de sacrifício, genero-
histórica a respeito da violência contra a mulher sidade são construídos como qualidades
e podemos observar que, mesmo estando em do “feminino”, se a dependência econômica
uma sociedade que é capaz de reconstruir con- e social, e a menoridade política e cultu-
tinuamente a compreensão da multiplicidade de ral são postas como condição “feminina”,
problemas que enfrentamos e a intersecção dos essas determinações, cremos, decorrem
mesmos, percebemos um crescimento considerá- da posição originária das mulheres como
vel nos casos de homicídio de mulheres, entre os seres para outrem. Sua condição de sujeito
anos de 1980 e 2013, conforme Gráfico 1, enfatizan- tem, pois, a peculiaridade de criá-las pela
do que essa realidade é cada vez mais marcante hetoronomia, pois o que são o são para ou-
e determinante das relações e papeis sociais. tros (que determinam os seus “atributos”)
e para os outros (aos quais os tributos são
enderaçados). (CHAUÍ, 1985, p. 47-48).
TRABALHO DOMÉSTICO Federici (2019) discute a perspectiva de que, após
a implicação do capitalismo como condicionante
Entendemos, de acordo com Chauí (1985), como de algumas sociedades9, a mulher passou a ter sua
a posição da mulher, perante a sociedade, é for- força de trabalho, anteriormente produtivo, para
jada dentro do espaço doméstico e privativo da servir ao capital com o trabalho reprodutivo – o
família, o que também acaba por condicioná-la às trabalho de manutenção da casa, da família e do
formas de viver e experimentar o espaço público homem, esse ainda com sua força de trabalho
e coletivo de maneira diferente, principalmente (produtivo) valorizada. Diante disso, no livro “O
por estarem fortemente ligadas, pelo seu papel
Ponto Zero da Revolução”, ela abordou, a partir de
social construído, ao trabalho doméstico.
diversos textos escritos, a importância do reco-
Definida como esposa, mãe e filha (ao con-
trário dos homens, para os quais ser mari- 9. Para mais sobre essa discussão, ver: FEDERICI, S. Calibã
do, pai e filho é algo que acontece apenas), e a bruxa: Mulheres, corpo e acumulação Primitiva. São
são definidas como seres para os outros e Paulo: Editora Elefante. 2017
EIXO TEMÁTICO 1 nhecimento do trabalho doméstico, assim como
essas possíveis transformações e relações entre
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO trabalho produtivo e reprodutivo, como forma de
alterar as sujeições e apropriações vivenciadas
pelas mulheres por parte do patriarcado.

Está claro que a recusa das mulheres em


ser trabalhadoras não remuneradas dentro
de casa [na perspectiva norte americana
da década de 1970] provocou mudanças
importantes na organização da reprodução
e nas condições do trabalho feminino. O
que estamos testemunhando é a crise da
tradicional divisão sexual do trabalho, que
confinava as mulheres ao trabalho reprodu-
tivo (não assalariado) e os homens à produ-
ção (assalariada) de mercadorias. Todas as
relações de poder entre homens e mulheres
foram construídas nessa “diferença”, ja ́ que
a maioria das mulheres não teve alternativa
a não ser depender de homens para sua
sobrevivência econômica e se submeter à
disciplina que vem com essa dependência.
(FEDERICI, 2019, pg. 109)

A luta pela formação e capacitação das mulhe-


res é uma estratégia extremamente relevante
como forma de estabelecer uma luta das mulhe-
res relacionada à uma independência financeira
e, consequentemente, a uma possibilidade de
se emancipar de situações que as sujeitam, por
conta da dependência financeira e/ou familiar que
cerceiam suas decisões. A afirmativa de Silvia
Federici corrobora com o ideal de que muitas
mulheres não saiam de casamentos tidos como
insatisfatórios exatamente pelo estabelecimen-
to de uma dependência organizacional e que,
por conta das várias limitações – incluindo a de
capacitação técnica para exercer um trabalho
externo ao doméstico, essas mulheres perma-
neciam nessas relações.

Dialogando com essa perspectiva do trabalho,


Kergoat (2009) afirma que a divisão sexual do
trabalho, baseada no capitalismo, estabelece fun-
ções destinadas às mulheres categorizadas como
inferiores e não entendidas como trabalho – sem
valor econômico, sendo que essa divisão seguia o
principio das atividades ditas como masculinas e
16º SHCU femininas, e, dentre essas atividades femininas,
30 anos . Atualização Crítica
se estabelece o trabalho do cuidado interno à
560 casa, invisibilizado e articulado como parte da
“essência feminina” e também sem remuneração. suficiente para estabelecer mudanças diretas na
Esse trabalho de cuidado também se apresenta relação do homem com o trabalho doméstico,
na perspectiva do espaço externo, uma vez que reconhecendo, essencialmente, a importância
ele passa a ser não só o de cozinhar, lavar, cuidar de uma mudança significativa na forma de se
das crianças, mas também do se deslocar pelo pensar essas relações.
espaço urbano como forma de subsídio para essas
tarefas. “A noção de gênero nos permite melhor Hayden (1980) estabelece, como ponto chave para
compreender que a divisão sexual do trabalho suas proposições, críticas a respeito do chamado
nada mais é que uma construção social desigual urban sprawl americano, que consiste na pers-
de valor e de poder que confirma a existência de pectiva da cidade planejada subdividida entre a
uma hierarquia entre os sexos”. (ROSA, 2007) residência e o trabalho que, consequentemente,
tem impacto direto nas possibilidades de mobili-
Assim, estas questões são indissociáveis na for- dade e da apropriação dos seus meios.
mação do capitalismo e, portanto, da sociedade
na qual nos inserimos. Partindo também do di- A autora (1980; 1985) destaca que, uma vez que o
álogo com a baixa remuneração das mulheres lema “o lugar da mulher é dentro de casa” foi um
em relação a dos homens, já bastante abordada dos mais importantes princípios da arquitetura
e constatada, seu trabalho produtivo é, muitas e planejamento urbano nos Estados Unidos, no
vezes, desvalorizado e, portanto, suas condições século XX, a única forma de repensar os para-
de permanência e desenvolvimento na carreira digmas físicos e sociais das mulheres dentro da
são impedidas também pelo trabalho reprodu- sociedade capitalista é desenvolvendo uma nova
tivo determinado a elas (HELENE, 2019). Essa lógica de casa, vizinhança e cidade criando, assim,
falta de remuneração, portanto, passa a ser uma uma proposta de mudanças nos Estados Unidos,
condicionante para as decisões de emancipação a partir de diretrizes específicas.
possíveis dessas mulheres.
A autora parte da lógica de que as casas ameri-
canas (comumente encontradas nos subúrbios)
servem mal a uma família e, principalmente, à
A CONCEPÇÃO ESPACIAL DE DOLORES HAYDEN: mulher – graças às práticas restritas ao zonea-
REFLEXÕES mento residencial, que não oferece facilidades
ligadas às atividades desenvolvidas diariamente
para o funcionamento da família. Além disso, trás
Dolores Hayden (1985) inicia sua discussão, antes
dados de que, na década de 1980, 70% dos adultos
de nos apresentar sua proposta organizacional
americanos sem automóveis particulares eram
do espaço, a partir da perspectiva da análise de
mulheres, representando uma diminuição na au-
alguns casos que desenvolvem alternativas para
tonomia delas dentro dos subúrbios americanos.
as mulheres com trabalho produtivo10 e suas re-
Assim, para a autora,
lações com o trabalho doméstico/reprodutivo,
mesmo que, originalmente, ainda não reflita essa The problem is paradoxal: women cannot
preocupação do cuidado e do trabalho na forma improve their status in the home unless
de conceber o espaço, como é o caso do Código their overall economic position in society is
Familiar Cubano, de 1974. Já no caso sueco das altered; women cannot improve their status
“casas coletivas”, propostas por Alva Myrdal, Sven in the paid labor force unless their domestic
Ivar Lind e Sven Markelius, no início do século XX, responsibilities are altered. Therefore, a
a ideia original seria prover alimentação e cuidado program to achieve economic and envi-
com as crianças no caso de mulheres com tra- ronmental justice for women requires, by
balho produtivo o que, segundo Hayden, não fora definition, a solution which overcomes the
traditional divisions between the household
10. De maneira geral, a diferença entre o trabalho produtivo and the market economy, the private dwell-
e o reprodutivo é que o primeiro é baseado na venda da mão ing and the workplace. […] If architects and
de obra e, consequentemente, no assalariamento e legiti- urban designers were to recognize all em-
mação social, enquanto o reprodutivo não é reconhecido ployed women and their families as a con-
economicamente e nem, muitas vezes, socialmente. stituency for new approaches to planning
EIXO TEMÁTICO 1 and design and were to reject all previous
assumptions about “woman`s place” in the
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO home, what could we do? Is it possible to
build non-sexist neighborhoods and design
non-sexist cities? What would they be like?11
(HAYDEN, 1985, pg 176)

Para isso, a autora propõe uma organização ur-


bana, incluindo donas de casa e outros agentes
dedicados a transformarem as maneiras como
os americanos lidavam como a relação do espa-
ço público versus privado, denominada HOMES
(Homemakers Organization for a More Egalitarian
Society), sendo que o programa buscaria:

(1) involve both men and women in the


unpaid labor associated with housekeep-
ing and child care on an equal basis; (2)
involve both men and women in the paid
labor force on an equal basis; (3) eliminate
residential segregation by class, race, and
age; (4) eliminate all federal, state, and local
programs and laws which offer implicit or
explicit reinforcement of the unpaid role
of the female homemaker; (5) minimize
unpaid domestic labor and wasteful ener-
gy consumption; (6) maximize real choic-
es for households concerning recreation
and sociability.12 (HAYDEN, 1980, pg. 181)

11. “O problema é paradoxal: mulheres não conseguem me-


lhorar seu status em casa a não ser que seu papel econômico
na sociedade seja alterado; mulheres não conseguem me-
lhorar seu status em relação ao mercado de trabalho remu-
nerado a não ser que suas responsabilidades domésticas
sejam alteradas. Assim, um programa que desenvolva justiça
econômica e social para mulheres requer, por definição, uma
solução que sobressaia a tradicional divisão entre o cuidado
doméstico e o mercado econômico; o espaço residencial
e o espaço de trabalho. [...] Se arquitetos e planejadores
reconhecessem todas as mulheres trabalhadoras e suas
famílias como parte constituinte de uma nova abordagem
para planejamento urbano e rejeitassem todas as con-
cepções anteriores sobre “o lugar das mulheres” dentro
de casa, o que conseguiríamos fazer? É possível construir
vizinhanças não-sexistas e planejar cidades não-sexistas?
Como elas seriam?” [tradução nossa]

12. “(1) envolver homens e mulheres no trabalho não remune-


rado associado a tarefas domésticas e creche, de maneira
igualitária; (2) envolver homens e mulheres na força de
16º SHCU
trabalho remunerada, de maneira igualitária; (3) eliminar a
30 anos . Atualização Crítica
segregação residencial por classe, raça e idade; (4) eliminar
562 todos os programas e leis federais, estaduais e locais que
De certa forma, esta proposta se assemelha a uma Outra pesquisa que contribui fortemente para a
cooperativa de habitação, que segundo Hayden discussão das cidades não-sexistas é a de Del
(1980), ofereceria uma melhor base para organiza- Valle (1997), quando busca olhar para as mulheres
ção econômica e controle do projeto físico, o que que utilizam e usufruem da cidade e do espaço
pode ser observado na imagem abaixo na proposta urbano com enfoque nas cidades bascas de Bilbao
para uma quadra. Na primeira imagem, a quadra se e San Sebastián, através de uma análise que se
apresenta conforme divisão dos lotes tradicionais inicia na relação do espaço privado, passando para
dos subúrbios americanos e, já na segunda, com
o desenho do espaço público e a interferência
a nova concepção, a autora propõe um arranjo
do mesmo no uso das mulheres: o valor simbó-
espacial comunitário a partir das demandas dos
lico destes espaços para elas, e o que resultou
grupos femininos: áreas que integram os espaços
privados e comuns, como por exemplo, áreas para na formação de grupos coletivos que promove-
crianças, cuidados médicos básicos, cozinha e ram ações visando construir novos modelos de
lavanderia coletivas, horta no jardim, escritório, vivência da cidade para elas. A autora aborda um
assim como mesas e depósitos para compras. conceito de “espaço-ponte”, entendido como um
espaço transitivo e de transformação entre os
espaços público e o doméstico, o espaço exte-
rior e o interior. Podem ser espaços delimitados
espacialmente, mas que carregam sua definição
na sua simbologia. Para a autora, o espaço não se
configura apenas por seu atributo de movimento,
transitório entre o entrar e sair, mas são espaços
circunstanciais e um de seus principais objetivos
é dar apoio para a mudança, para o novo, para a
transformação, que se dará principalmente nas
relações sociais.

Para que sean puente, tienen que partir de


unas experienciais diferenciadoras de lo
que son unos y otros espacios. Por ello se
presupone que las experiências em cada
uno de ellos aparecen de forma clara para
las personas que construyen y tienden es-
tos espacios. [...] Em la planificacion de
los espacios-puente importa la delimita-
cion de objetivos y la actualizacion de las
redes de mujeres. Precisam de objetivos
relacionados con formas de ocupacion y,
por lo tanto, de asuncion de responsabili-
dades así como de elaboracion de formas
nuevas de poder decisório. No son meras
abstracciones ya que el objetivo final sería el
ocupar espacios concretos al outro lado del
puente. Los espacios-puente, al ser vistos
como espacios transtiroios, tienen que ir
Figura 1 - Comparativo entre uma quadra tradicional (A) dirigidos a campos concretos y es así como
x proposta HOMES (B). Fonte: HAYDEN, 1980; adaptado pueden incluir una gran variedad de carac-
pelos autores terísticas 13. (DEL VALLE, 1997, pg. 165-166)

reforçam o papel não remunerado da dona de casa; (5) mini- 13. “Para ser uma ponte, eles precisam começar a partir
mizar o trabalho doméstico não remunerado e o desperdício de experiências diferenciadas do que são alguns e outros
de energia; (6) maximizar escolhas reais para as famílias espaços. Portanto, supõe-se que as experiências em cada
em relação à recreação e sociabilidade.” [tradução nossa] uma delas apareçam claramente para as pessoas que cons-
EIXO TEMÁTICO 1 Essa contribuição de Del Valle pode dialogar dire-
tamente com os espaços de transição que Hayden
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO propõe no seu conceito HOMES, mesmo que Del
Valle não coloque enfoque na definição espacial
de seus “espaços-ponte”, mas sim no valor sim-
bólico que o mesmo carrega. Estabelecendo-
-se um comparativo entre os valores simbólicos
presentes em cada uma das teorias, é possível
observar que, para Hayden, os espaços de transi-
ção podem ter uma simbologia vinculada à busca
pela emancipação feminina e pela reconstrução
dos valores do comum e da divisão do trabalho
doméstico, desonerando a mulher de sua totali-
dade, compartimentando-o no grupo envolvido.

Propondo essa nova concepção espacial e orga-


nizacional dos papeis e trabalhos comunitários,
Hayden entende que esta seria uma forma de
quebrar com os papeis socialmente construí-
dos. A autora defende que as mulheres devem
transformar a divisão do trabalho doméstico em
recurso coletivo, resultando em uma nova organi-
zação dos espaços comuns e da responsabilidade
comunitária para com o cuidado e, consequen-
temente, equalizando esforços que permitam
desonerá-las de atividades a que, historicamente,
estão submetidas. Assim, para a autora, des-
mistificar os papeis convencionais tidos como
femininos e masculinos está vinculado a quebrar
os padrões entre a divisão do espaço público e
privado e como/por quem as atividades devem
ser executadas, vinculando, assim, a discussão
sobre emancipação feminina diretamente a uma
organização espacial urbana diferenciada.

Hayden tem sido uma crítica importante na contri-


buição para rediscutir essa perspectiva do espaço
urbano edificado a partir de um viés de gênero,
uma vez que ainda é utilizada como referência
teórica para diversas pesquisas recentes que

troem e cuidam desses espaços. [...] No planejamento dos


espaços-ponte, a definição de objetivos e a atualização das
redes de mulheres são importantes. Objetivos precisos re-
lacionados a formas de ocupação e, portanto, assunção de
responsabilidades, bem como o desenvolvimento de novas
formas de poder de decisão. Eles não são meras abstrações,
pois o objetivo final seria ocupar espaços específicos do
outro lado da ponte. Os espaços de ponte, quando vistos
16º SHCU
como espaços transitórios, precisam ser direcionados
30 anos . Atualização Crítica
para campos específicos e é assim que podem incluir uma
564 grande variedade de recursos.” [tradução nossa]
se propõe a discutir, historicamente, os pensa- XXI, pensando-se estratégias diferenciadas de
mentos e contribuições tidas por pesquisadores organização espacial para a diminuição dos pro-
da área na relação espaço e gênero, como visto cessos de sujeição feminina.
nas pesquisas de Vieira e Costa (2014), Naslavsky
e Valença (2019) e nas próprias afirmativas de É preciso destacar que a aplicação direta das
Muxí (2007), reafirmando os valores trazidos pela ideias de Hayden, de uma maneira integral à rea-
teoria. Essa reconstrução defendida por Hayden lidade brasileira, acabaria reproduzindo a mesma
em relação a repensar as relações de espaço e gê- lógica da sobreposição de ideários apriorísticos
nero como forma de repensar as relações sociais alheios às realidades específicas. Assim, é impor-
e de poder também é corroborada, de maneira tante reforçar que as aplicações experimentais
indireta, pela discussão das teorias decoloniais14, propostas pela autora não são de fácil aplica-
que afirmam que nossas práticas de produção de bilidade e funcionam de maneira genérica em
cidade não são neutras, são uma estratégia de qualquer território urbano, pois são produtos de
reforçar relações de poder e que são embasadas influências e entendimentos jurídicos específicos
em perspectivas econômicas, políticas e culturais de cada esfera organizacional, como as questões
importadas, ignorando outras formas de pensar jurídicas brasileiras acerca da propriedade priva-
e produzir ciência e teoria – consequentemente, da, por exemplo, assim como das relações sociais
neutralizando as disputas de saberes e particula- estabelecidas. Mas é uma propositiva interessante
ridades locais, que são extremamente relevantes para (re)pensar as práticas de planejamento como
quando inserimos perspectivas territoriais, raciais um todo e de maneira imbricada – seus aspectos
e de gênero. “I also rely on postcolonial theory jurídicos, culturais e sociais – refletem-se direta-
because it engenders another type of relational mente nas desigualdades de gênero.
thinking––that of the relationship between place,
knowledge and power. (ROY, 2016, pg. 207) 15” A literatura discutida neste artigo observou que a
produção do espaço urbano, que também poderia
ser a brasileira, ainda guarda reminiscências nos
preceitos modernistas – separações de usos,
CONSIDERAÇÕES FINAIS deslocamentos rápidos e baseado no veículo au-
tomotor, demonstrando um tradicional poder de
Esse artigo buscou discutir, no âmbito das dinâ- influência masculina na organização do mesmo,
micas de planejamento urbano, possibilidades havendo, muitas vezes uma vantagem do gênero
de desenho que estão sendo exploradoras, há masculino em detrimento do feminino nas formas
algumas décadas, com o objetivo de equalizar o de acessar esses espaços, de se apropriar dos
poder e as influências de cada gênero nos papeis mesmos e equalizar as demandas pessoais, jun-
sociais e, consequentemente, nas organizações tamente com os papeis sociais normatizados. Isto
territoriais. Diante dos dados apresentados, pe- prejudica diretamente desenvolvimento do gênero
las pesquisas quantitativas, mas também pela feminino enquanto agente social e reforçando
literatura observada, considerando a realidade sua falta de poder e oportunidade em relação às
que Dolores Hayden compreende e experimenta possibilidades de reconstruir tais entendimentos,
para construir sua proposta, que inclui a divisão em especial, se tratarmos a questão de gênero
sexual do trabalho e seus desdobramentos em interseccionada com as questões de classe social
relação à vida da mulher, essa teoria ainda pode e raça. Portanto, pensar uma nova organização
ter grande valia na contemporaneidade, diante dos espaços, na escala do usuário, como faz Hay-
dos tensionamentos que já despontam no século den, é uma possibilidade experimental de tentar
equalizar essas distinções socialmente estabe-
lecidas que estão sendo produzidas e replicadas
14. Para mais sobre essa discussão, ver: SANTOS, B.; ME- na lógica do planejamento urbano hegemônico.
NESES, M. P. (orgs). Epistemologias do Sul. Portugal: Al-
medina. 2009. A organização territorial das cidades não é a
15. “Também confio na teoria pós-colonial porque ela en- solução exclusiva para os problemas de desi-
gendra outro tipo de pensamento relacional, o da relação gualdades abordados e exemplificados ao longo
entre lugar, conhecimento e poder”. [Tradução nossa] deste artigo, mas importa reforçar que repensar
EIXO TEMÁTICO 1 essas práticas é uma forma buscar cidades e
sociedades mais justas, inclusivas e igualitárias.
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO As perspectivas abordadas aqui sobre espaço
urbano, planejamento e gênero não devem ser
entendidas como questões compartimentadas
em temáticas específicas e desconexas entre
si, mas sobrepostas em camadas e justapostas,
para que se compreenda, da maneira mais rea-
lista possível, os reflexos e impactos advindos
da heteronormatividade na sociedade em que
vivemos, assim como os diversos outros fatores
se sobrepõem à essa discussão e a condicionam
de maneira legítima e vivida, em termos de raça
e classe social.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

566
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16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

568
569
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
EIXO TEMÁTICO 1 RESUMO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Diante do crescimento e da consolidação do
campo de pesquisas sobre a história das cidades
vídeo-pôster no Brasil, no âmbito da Arquitetura e do Urba-
nismo, o presente trabalho propõe uma reflexão
sobre as possibilidades teóricas e metodológi-
CIDADES, PRÁTICAS, cas para o aprofundamento crítico desses es-
tudos. Compreendemos a cidade como um es-
SABERES: REFLEXÃO paço produzido material e simbolicamente pelo
conjunto da sociedade urbana, a partir de uma
TEÓRICO-METODOLÓGICA complexa e plural rede de práticas e saberes.
Apesar disso, observamos que as fontes de pes-
PARA ESTUDOS HISTÓRICOS quisa e as perspectivas mobilizadas pelos sabe-
res técnicos e acadêmicos tendem a prevalecer
nas investigações urbanas de cunho histórico.
CITIES, PRACTICES, KNOWLEDGE: THEORETICAL-
Há, ainda hoje, o predomínio de uma percepção
METHODOLOGICAL CONSIDERATIONS FOR HISTORY
hierárquica sobre os distintos conhecimen-
STUDIES
tos, assim como um entendimento da história
como um percurso linear e unidirecional rumo
CIUDADES, PRÁCTICAS, SABERES: REFLEXIÓN ao progresso e ao desenvolvimento. Por essas
TEÓRICO-METODOLÓGICA PARA ESTUDIOS HISTÓRICOS razões, consideramos necessário explorar teo-
rias e métodos que possam contribuir para que
CRUZ, Giovana essas investigações abarquem as práticas e os
saberes populares dos múltiplos sujeitos ur-
Mestra em Arquitetura (PROARQ); PPGAU/UFF
banos que também criam e transformam coti-
giovanacruzalves@gmail.com
dianamente o espaço das cidades, assim como
as subjetividades, contradições e conflitos que
resultam desta complexa realidade urbana. O
comprometimento com a pluralidade de práti-
cas, saberes e sujeitos tem como perspectiva
o alargamento do nosso entendimento sobre as
cidades brasileiras e a ampliação das possibili-
dades para o seu presente e o seu futuro.

HISTÓRIA DA CIDADE PRÁTICAS COTIDIANAS


SABERES POPULARES

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

570
ABSTRACT RESUMEN

Considering the growth and consolidation of the En vista del crecimiento y consolidación del cam-
research field on the history of cities in Brazil, po de investigación sobre la historia de las ciuda-
in scope of Architecture and Urbanism, this pa- des en Brasil, en el ámbito de la Arquitectura y el
per proposes a reflection on the theoretical and Urbanismo, este artículo propone una reflexión
methodological possibilities for the critical dee- sobre las posibilidades teóricas y metodológicas
pening of these studies. We understand the city para la profundización crítica de estos estudios.
as a space produced materially and symbolically Entendemos la ciudad como un espacio produci-
by the entire urban society, from a complex and do material y simbólicamente por el conjunto de
plural network of knowledge. Despite this, we ob- la sociedad urbana, a partir de una red compleja
served that the sources of research and the pers- y plural de prácticas y saberes. A pesar de esto,
pectives mobilized by technical and academic observamos que las fuentes de investigación y
knowledge tend to prevail in historical urban in- las perspectivas movilizadas por el conocimien-
vestigations. Even today, there is a predominance to técnico y académico tienden a prevalecer en
of a hierarchical perception of different knowle- las investigaciones históricas urbanas. Incluso
dge, as well as an understanding of history as a hoy en día predomina una percepción jerárquica
linear and unidirectional path towards progress de los diferentes conocimientos, así como una
and development. For these reasons, it is neces- comprensión de la historia como un camino lineal
sary to explore theories and methods that can y unidireccional hacia el progreso y el desarrollo.
contribute for these investigations to embrace Por estas razones, consideramos necesario ex-
the practices and popular knowledge of multiple plorer teorías y métodos que puedan contribuir
urban subjects who also create and transform the para que estas investigaciones engloben las
space of cities in their everyday lives, as well as prácticas y los saberes populares de múltiples
subjectivities, contradictions and conflicts that sujetos urbanos que también crean y transfor-
result from this complex urban reality. The com- man el espacio de las ciudades en su vida coti-
mitment to the plurality of practices, knowledge diana, así como subjetividades, contradicciones
and subjects aims to broaden our understanding y conflictos derivados de esta compleja realidad
about Brazilian cities and expand the possibilities urbana. El compromiso con la pluralidad de prác-
for their present and their future. ticas, saberes y sujetos tiene como objetivo am-
pliar nuestra comprensión de las ciudades brasi-
leñas y ampliar las posibilidades para su presente
HISTORY OF CITIES EVERYDAY LIFE PRACTICES y su futuro.
POPULAR KNOWLEDGE

HISTORIA DE LA CIUDAD PRÁCTICAS COTIDIANAS


SABERES POPULARES
EIXO TEMÁTICO 1 A HISTÓRIA DAS CIDADES NO CAMPO
DA ARQUITETURA E DO URBANISMO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
A prática de estudar a história das cidades tem
vídeo-pôster sido algo comum a diversas áreas do conheci-
mento, especialmente a partir do século XIX,
quando os desdobramentos dos processos de
CIDADES, PRÁTICAS, industrialização ocorridos em diversos países
colocaram o fenômeno urbano no centro das re-
SABERES: REFLEXÃO flexões teóricas e práticas do homem. Hoje, no
campo da Arquitetura e do Urbanismo, o estudo
TEÓRICO-METODOLÓGICA da história das cidades e o acompanhamento
das suas transformações constituem uma base
PARA ESTUDOS HISTÓRICOS importante para o aprofundamento das refle-
xões sobre o tema e, consequentemente, para
o desenvolvimento de futuros projetos e planos
CITIES, PRACTICES, KNOWLEDGE: THEORETICAL- que visam solucionar problemas e possibilitar
METHODOLOGICAL CONSIDERATIONS FOR HISTORY melhores práticas de gestão do espaço urbano.
STUDIES Apesar do caráter essencialmente propositivo,
típico do ofício de arquitetos e urbanistas, e,
CIUDADES, PRÁCTICAS, SABERES: REFLEXIÓN portanto, do inerente predomínio, nesse fazer,
TEÓRICO-METODOLÓGICA PARA ESTUDIOS HISTÓRICOS de um pensamento dirigido ao futuro, é possível
dizer que, cada vez mais, o estudo da história das
cidades tem ocupado significativos espaços nas
investigações desse campo. O crescimento das
pesquisas históricas no âmbito da Arquitetura
e do Urbanismo ao longo das últimas décadas
aponta, assim, para a necessidade de refletirmos
sobre as teorias e métodos que têm permeado
essa esfera.

No âmbito brasileiro, a produção acadêmica de


arquitetos e urbanistas sobre a história das ci-
dades ganhou corpo no final da década de 1980.
Segundo A. Fernandes e M. A. Gomes (2004), ar-
quitetos e urbanistas brasileiros que realizaram
importante mapeamento e análise das pesquisas
realizadas por seu pares nesse campo histórico
entre 1989 e 2001, é possível observar que, naquele
período, descortinou-se um novo panorama em
relação aos focos de interesse, que passaram a
se deslocar da habitação para a cidade. De acordo
com eles,

De um lado, isto parece decorrer da própria


evolução do estudo da questão habitacional
e, de outro, parece estar associado ao de-
senvolvimento dos estudos de história so-
cial em um momento de distensão política,
16º SHCU com consequente aumento da problemati-
30 anos . Atualização Crítica
zação da história do movimento operário.
572 (FERNANDES; GOMES, 2004, p. 23)
Em meio àquele cenário político e a partir das com as lutas sociais urbanas, trazendo à tona a
importantes contribuições decorrentes do debate percepção dos tensionamentos entre diferentes
da história social, configurou-se um redireciona- setores da sociedade. Havia ainda os que propu-
mento de perspectiva por parte dos arquitetos e nham reflexões sobre a história das cidades e as
urbanistas pesquisadores da história das cidades, questões urbanas a partir de temáticas como a
deixando transparecer um menor interesse em modernização social e a chamada “ideia sanitária”,
abordar a sua forma e uma maior preocupação as quais estiveram presentes nos projetos urba-
com as questões sociais inerentes ao contexto ur- nísticos e arquitetônicos das cidades ao longo dos
bano. A análise realizada por Fernandes e Gomes séculos XIX e XX. E uma última parcela lançava
(2004) também apontou algumas tendências que uma perspectiva historiográfica sobre a trajetória
começaram a se apresentar de forma inovadora teórica e prática da formação e da atuação dos
naquele momento, dentre as quais vale destacar: próprios profissionais que operaram no planeja-
o distanciamento das investigações em relação às mento e na construção das cidades brasileiras
periodizações tradicionais da história, geralmente ao longo do século XX, tanto no âmbito privado
ancoradas nos aspectos políticos ou econômicos quanto na administração pública.
da história do país; a inclusão de outras categorias
sociais, que não as elites, como produtoras de O painel apresentado por Carpintéro e Ceraso-
história e de memória; a sensibilidade aos even- li revela pontos em comum com a pesquisa de
tos singulares como enriquecedores das proble- Fernandes e Gomes e indica, de forma ainda mais
máticas urbanas; a atenção às transformações clara, por contemplar estudos anteriores à década
no próprio campo disciplinar do urbanismo e às de 1980, que aquelas tendências observadas nas
atuações dos profissionais da área. pesquisas do fim do século eram, de fato, o iní-
cio de um redirecionamento no campo. As novas
Tendências semelhantes foram observadas em perspectivas estavam sendo ainda inauguradas
outra pesquisa, essa realizada por historiadoras, nos estudos históricos urbanos desenvolvidos
que empreendeu o esforço de mapear e analisar por arquitetos e urbanistas, assim como estava
alguns trabalhos sobre a cidade e sua história sendo inaugurado o que podemos entender como
desenvolvidos tanto por arquitetos e urbanistas uma bifurcação desse campo de pesquisa, que
quanto por historiadores, entre as décadas de passava a se dedicar também à história do urba-
1960 e 1990. No universo dos estudos desenvolvi- nismo enquanto disciplina. Tendo apresentado
dos pelos arquitetos e urbanistas, as historiado- uma abordagem mais detalhada acerca das fontes
ras brasileiras M. Carpintéro e J. Cerasoli (2009) utilizadas nos estudos analisados, a pesquisa de
observaram uma grande diversidade quanto às Carpintéro e Cerasoli ainda permitiu observar que,
concepções de história utilizadas como recur- apesar da abertura a abordagens mais críticas,
so, o que, segundo elas, conferiu característi- abrangentes e inovadoras, com exceção de um
cas distintas a esse conjunto de trabalhos. Uma ou outro estudo que levava em consideração a
parte deles ancorava a compreensão da cidade, memória de moradores para a construção do
sua morfologia e sua arquitetura em determina- discurso histórico, a grande maioria das pesqui-
das análises econômicas, políticas ou sociais da sas ainda favorecia a difusão dos pontos de vista
história, de modo que estas eram trazidas como de agentes dominantes na produção do espaço
responsáveis por explicar os fatos urbanísticos. urbano, ou seja, de sujeitos “notáveis”, dotados de
Essa perspectiva coincide com uma noção de um conhecimento técnico ou entendidos como
história entendida como uma sequência linear de intelectualmente privilegiados: políticos, adminis-
acontecimentos ou como uma evolução natural tradores públicos, viajantes estrangeiros, arqui-
deles, aparentemente sem conflitos. Outra parte tetos, urbanistas, engenheiros sanitaristas, médi-
transmitia uma leitura mais crítica dos pesquisa- cos higienistas. Isso porque essas investigações
dores, à qual as autoras se referem como sendo baseavam-se, quase sempre, em documentos
fruto de uma postura de suspeita, confronto e produzidos por tais agentes e sujeitos: relatórios
diálogo diante das fontes de pesquisa e dos dados de dirigentes públicos e/ou técnicos especializa-
encontrados. Nesse caso, os estudos revelavam dos, relatos de viajantes, leis e decretos, mapas,
uma interpretação da história mais dissociada planos e projetos, artigos e matérias de jornais e
das categorias dominantes e mais comprometida revistas, fotografias públicas e jornalísticas. Ou
EIXO TEMÁTICO 1 seja, em termos metodológicos, os estudos ainda
preservavam antigos procedimentos e práticas
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO naquele alvorecer do século XXI.

Vale destacar que, quanto às pesquisas de his-


tória urbana desenvolvidas pelos historiadores,
Carpintéro e Cerasoli manifestam uma inquie-
tação diante da constatação de que a presença
da cidade, nesses estudos, colocava-se quase
sempre de forma indireta e oblíqua, indicando um
desvio de abordagem em relação à materialidade
urbana e um predomínio do seu tratamento “[...]
apenas como palco das transformações políticas
e econômicas, ou então, como cenário para os
grandes acontecimentos sociais.” (2009, p. 64)
Nesse sentido, as autoras atentam para o risco de
continuar privando a cidade de sua materialidade
nesses estudos históricos e reivindicam as con-
tribuições entre os diversos campos conceituais
e disciplinares que envolvem a temática urbana
para uma “[...] abordagem histórica da cidade que
possa ansiar o alcance dessa complexa pluralida-
de de saberes e dimensões.” (2009, p. 101)

Em um sentido semelhante, o trabalho do arqui-


teto e urbanista brasileiro R. Faria (2015) também
conclui sobre a importância da interdisciplinari-
dade para a contínua construção do campo da
história urbana no âmbito da Arquitetura e do
Urbanismo, após realizar uma espécie de atuali-
zação do balanço feito por Fernandes e Gomes na
virada do século. O autor aponta uma consolidação
do campo, após constatar alguns avanços obtidos
no início do século XXI: a maior abrangência do
conjunto de cidades contempladas nas investi-
gações, assim como do conjunto de profissionais
e planos urbanísticos pesquisados; a ampliação
do escopo analítico das cidades brasileiras; a
abertura para análises comparadas e articuladas
com outros países e continentes. Segundo ele, no
entanto, ainda existe uma necessidade de empre-
endermos novos esforços para o fortalecimento
de uma perspectiva mais crítica da história da
cidade. Nesse sentido, o autor questiona como
poderíamos escapar de uma história urbana que
seja reduzida à história da urbanização, pautada
exclusivamente na materialidade, na técnica e
no ofício dos arquitetos e urbanistas, e alcançar
a densidade histórica da cidade, considerando,
16º SHCU também, o seu tecido social com suas intera-
30 anos . Atualização Crítica
ções no ambiente urbano, suas subjetividades e
574 contradições.
Vemos que, apesar dos grandes avanços no cam- espaços alternativos diante da impossibilidade
po, ainda estamos diante de um caminho a ser de acesso aos espaços ditos “formais”.
percorrido rumo ao aprofundamento crítico das
investigações sobre a história das cidades. Um Nesse sentido, nos propomos aqui a uma reflexão
aprofundamento que dê conta de associar a ma- acerca das aproximações teóricas e metodo-
terialidade do tecido urbano e a subjetividade do lógicas que possam sugerir novas práticas de
tecido social, assim como de contemplar com apreensão da cidade e da sua dinâmica histórica,
maior profundidade o caráter plural dos agen- orientando, desse modo, uma produção historio-
tes produtores do espaço urbano e os dissensos gráfica que preencha as lacunas existentes nesse
contidos na dinâmica da transformação urbana campo de pesquisa da Arquitetura e do Urba-
ao longo do tempo. nismo. É importante observar que as narrativas
históricas vão, ao longo do tempo, consolidando
Vale lembrar aqui que há, ainda hoje, o predomínio um determinado modo de ver e abordar a cidade,
de um entendimento segundo o qual a história é sedimentando, assim, conceitos que acabam por
compreendida como sendo linear, unidirecional influenciar as atuais práticas de planejamento e
e composta por estágios sucessivos rumo a um projeto urbanos e, consequentemente, o futuro
destino conhecido, delimitado pelo progresso e das cidades. Como nos lembra J. Fontana (1998, p.
pelo desenvolvimento. 279), citando G. Orwell, “[...] ‘quem controla o pas-
sado, controla o futuro e quem controla o presente
Isso significa que os lugares, as popula- controla o passado.’ Isso explica a necessidade de
ções, as comunidades são tratadas como dominar a história, ou seja, a memória coletiva.” A
se estivesse numa fila histórica que vai do observação do historiador espanhol nos alerta so-
estágio dos mais ‘selvagens’ até os mais bre a relevância dos estudos históricos da cidade
‘civilizados’, dos mais ‘atrasados’ aos mais e sobre a importância de uma postura acurada dos
‘avançados’, dos mais ‘subdesenvolvidos’ pesquisadores em relação à escolha das teorias
aos mais ‘desenvolvidos’. (CRUZ, 2017, p. 21) e dos métodos que orientam as investigações,
tendo em vista que os discursos estabelecidos a
Como consequência, alguns poucos saberes e partir destas, em um duplo movimento de visibili-
sujeitos, que correspondem às posições mais dade e ocultação, são responsáveis por constituir
“evoluídas”, são considerados agentes na cons- as memórias da cidade e as bases conceituais
trução das narrativas histórias, o que faz com que para o seu presente e o seu futuro.
eles praticamente determinem o rumo da própria
história. Trata-se, no entanto, de uma perspectiva
forjada no projeto moderno-colonial que, no con-
texto brasileiro, reflete a colonialidade do nosso UMA APROXIMAÇÃO DA CIDADE REAL
saber (LANDER, 2005), uma característica que
nos faz reproduzir, ainda hoje, o domínio cogni- A desconstrução de uma visão técnica,
tivo e epistemológico da racionalidade ocidental determinista e hegemônica da história das ci-
europeia sobre os nossos modos de produzir co- dades e o incentivo ao desenvolvimento de um
nhecimento. Isso nos leva à reincidência de um maior número de estudos que abranjam as múl-
duplo e complementar processo de apagamento e tiplas dimensões da produção do espaço urbano,
inculcação de conhecimentos, conceitos, valores considerando suas objetividades e subjetividades,
e visões de mundo. Sob essa ótica hierárquica, seus conflitos e tensões, assim como os seus di-
instituída pelo projeto europeu de modernidade versos atores, implicam uma mudança das lentes
e pela prática da colonização, ainda são criadas através das quais temos - arquitetos e urbanis-
nas histórias das nossas cidades as ausências tas brasileiros - observado nossas cidades. Mais
de uma série de saberes e sujeitos, os quais, em do que isso, implicam um reposicionamento do
uma complexa rede, também produzem cotidia- nosso ponto de vista, deslocando o olhar desde
namente a cidade, seja simbolicamente, por meio um lugar acima, distante e privilegiado, de onde
do uso e apropriação dos espaços planejados costumeiramente analisamos e planejamos as
pelos atores hegemônicos da disciplina urbana, cidades, a um lugar no “interior” delas, onde as
seja materialmente, pela construção efetiva de habitamos e onde se constitui o espaço vivido.
EIXO TEMÁTICO 1 Afinal, novos meios de observação geram novas
perspectivas e, por fim, novos conhecimentos.
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO (LAO-MONTES; VÁSQUEZ, 2018)

Como já citamos anteriormente, desde que foi


inserido no contexto brasileiro nos anos 1980, o
debate da história social tem trazido contribuições
importantes para as pesquisas em Arquitetura
e Urbanismo. A crítica que foi apresentada ini-
cialmente nesse campo de estudos sugeria não
somente uma nova amplitude em relação aos
temas que poderiam ser abordados nas pesquisas
históricas, mas também um novo enquadramento
das investigações, que deveria se deslocar para
uma perspectiva que priorizasse as práticas e
as experiências dos sujeitos e desse uma maior
atenção, ainda, à existência de uma multiplicidade
de sujeitos. Uma das maiores referências para a
incorporação da história social no Brasil, o histo-
riador inglês E. P. Thompson (1981), de orientação
marxista, defendia um fazer historiográfico que
trouxesse à baila as questões e os discursos da
classe operária. Além disso, ele sustentava a ideia
de que, por ser dotada de uma lógica própria dos
fenômenos que estão sempre em movimento, era
natural que a história evidenciasse manifestações
contraditórias. Em sua tese sobre a lógica histó-
rica, Thompson demonstra que essa particulari-
dade da ciência histórica a impede de furtar-se
da subjetividade e lhe solicita uma posição de
valorização da práxis, da ação humana e da ex-
periência dos sujeitos históricos, uma posição,
portanto, comprometida com o mundo real. Para o
autor, tal comprometimento faria com que a base
do trabalho do historiador fosse constituída por
uma coleção de fatos e acontecimentos, a qual
indicaria o caminho teórico-metodológico a ser
tomado. Nesse sentido, podemos dizer que as
formulações de Thompson e de outros pensa-
dores da história social contribuiu, e ainda têm
contribuído, com um processo de recomposi-
ção do nosso objeto de pesquisa - a cidade - no
interior do movimento social dinâmico no qual
ele se constitui, apontando para a compreensão
do conhecimento histórico da cidade como algo
passível de contradições.

Ora, a cidade real não é um organismo ordenado,


normatizado, racionalizado, como nos parece
16º SHCU enquanto a tratamos de modo distanciado, como
30 anos . Atualização Crítica
ocorre frequentemente na esfera do planejamento
576 e do projeto. A cidade real, vivida, é um espaço
rasurado, cheio de desordens, tensões, confli- Os chamados Subaltern Studies1, que tiveram ori-
tos, contradições e apropriações, próprias das gem no final dos anos 1970 a partir de debates de
dinâmicas sociais. Um espaço sempre em trans- um grupo de historiadores indianos mobilizados
formação, criado, vivido, afetado e modificado pelas teorias da história social inglesa, aprofun-
continuamente pelos distintos sujeitos que nele daram a reflexão sobre uma necessária revisão
vivem e que com ele compõem uma realidade historiográfica que pudesse, além de colocar os
social urbana. sujeitos subalternos2 no centro do processo histó-
rico, mobilizar outras teorias e outras categorias
A respeito dessa condição inconstante e contra- de análise mais compatíveis com a realidade e
ditória da cidade, o sociólogo francês H. Lefebvre a história indiana. O aprofundamento se dava,
(2011) também nos lembra que, uma vez modelado portanto, no sentido de introduzir a questão do
pelos processos globais, o espaço urbano admi- poder – econômico, político e intelectual - dentro
dos processos de análise. Segundo D. Chakrabarty
te que indivíduos e grupos ali se introduzam, se
(2009), um dos historiadores do grupo original,
apropriem e constituam, por meio de seus atos
havia entre eles o entendimento de que as hie-
e dos acontecimentos, o que ele chama de “[...]
rarquias e relações de poder existiam mesmo
relações de imediaticidade (ligadas a uma maneira
no interior das classes sociais, o que os fez optar
de viver, de habitar, de modular o cotidiano) [...]” pela categoria de subalterno ao invés da categoria
(2011, p. 65, 66), produzindo, portanto, a realidade de classe em seus estudos e o que os permitiu
urbana. Segundo ele, a totalidade da dimensão incorporar, posteriormente, outras categorias de
urbana só se dá a partir desse segundo processo, análise como a de gênero, por exemplo.
entendendo, assim, que “a cidade e a realidade
urbana dependem do valor de uso.” (2011, p. 14, Os Subaltern Studies estabeleceram o obje-
grifo nosso) tivo de produzir análises históricas dentro
das quais esses grupos subalternos eram
A cidade foi e continua a ser objeto; mas precisamente considerados como os su-
não à maneira de um objeto manejável, jeitos centrais da história. [...] preferíamos
instrumental [...]. Sua objetividade, ou ‘ob- esse termo [subalternos] ao de ‘classe’, por-
jetalidade’, poderia antes se aproximar da que em nossos textos falávamos de pessoas
objetividade da linguagem que os indivíduos que não somente eram parte das classes
ou grupos recebem antes de a modificar, economicamente inferiores, mas também
de pessoas que em sua vida cotidiana se
ou da língua [...]. Seria possível também
encontravam submetidas a relações diretas
comparar essa ‘objetalidade’ [...] à de uma
de dominação e subordinação. (CHAKRA-
realidade cultural, tal como o livro escrito
BARTY, 2009, p. 21 e 22, tradução nossa)
[...]. A totalidade não está presente ime-
diatamente neste texto escrito, a Cidade. Eles atentavam, ainda, para o fato de estarem eles
(LEFEBVRE, 2011, p. 53, 54, grifos do autor) mesmos, enquanto cientistas e historiadores in-
dianos, subordinados intelectualmente à soberania
Essa contribuição de Lefebvre corrobora o en- das construções historiográficas e das formulações
tendimento da cidade não apenas como “texto teóricas concebidas por europeus, o que era um
escrito”, mas como realidade urbana, uma vez reflexo da colonização britânica na Índia, um pas-
que o espaço da cidade é, a um só tempo, produto sado ainda recente para o país naquele momento.
e produtor das dinâmicas de vida dos diversos
sujeitos sociais que nela habitam e atuam e dela
1. Optamos pela utilização da expressão Subaltern Studies,
se apropriam, transformando-a continuamen- na língua original, em referência ao nome da publicação que
te. Tal perspectiva nos indica a necessidade de deu origem ao nome do grupo.
imaginarmos práticas historiográficas que ope-
2. Apesar de preferirmos o uso do termo “subalternizados”,
rem no plano da vivência urbana e com métodos
entendendo que tratar-se de uma condição construída
de apreensão capazes de capturar tanto o seu por relações de poder e não de uma condição intrínseca
tecido material quanto o seu tecido social e as ao sujeito, aqui utilizamos “subalternos” em referência ao
experiências que os constituem. termo utilizado pelos pesquisadores dos Subaltern Studies.
EIXO TEMÁTICO 1 Os historiadores do Terceiro Mundo sentem
a necessidade de se referir às obras de his-
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO tória europeia; historiadores da Europa não
sentem a necessidade de corresponder.
Seja um Edward Thompson, um Le Roy La-
durie, um George Duby, um Carlo Ginzburg,
um Lawrence Stone, um Robert Darnton ou
uma Natalie Davies – para citar só alguns
nomes ao acaso de nosso mundo contem-
porâneo –, os ‘grandes’ e os modelos do ofí-
cio do historiador são sempre, pelo menos,
culturalmente ‘europeus’. (CHAKRABARTY,
1992, p. 2, tradução nossa)

O desejo por uma historiografia que não repro-


duzisse a lógica das hierarquias - intelectuais,
políticas e econômicas – e suas interpretações
supersimplificadas, e que, assim, não deixasse de
fora da construção do discurso histórico o próprio
povo indiano, exigia a busca por evidências que
refletissem, efetivamente, a dinâmica de vida
cotidiana do povo, permitindo o reconhecimen-
to das tensões ali existentes e a exposição das
contradições da realidade social indiana. Essa
perspectiva dos Subaltern Studies, que teve ori-
gem no campo da história mas se estendeu para
outras áreas de conhecimento, teve eco no con-
texto mais amplo dos estudos pós-coloniais e dos
estudos decoloniais, estes últimos desenvolvidos
no contexto da América Latina.

O conjunto desses estudos e teorias críticas,


que foram ampliados e aprofundados desde a
década de 1980, tem contribuído para uma nova
forma de produção de conhecimento histórico,
social e urbano, uma vez que vem evidenciando
a crise das ideias de totalidade e progresso que
delimitaram, até então, o sentido e a direção da
história e a partir das quais foram produzidas, no
interior do projeto moderno-colonial europeu, o
apagamento de uma diversidade de sujeitos, ex-
periências e saberes que existem no mundo real,
mas que não são reconhecidos pela racionalidade
ocidental hegemônica.

A respeito disso, o sociólogo português Boa-


ventura de S. Santos (2002) afirma que alguns
dos aspectos mais marcantes da racionalidade
ocidental são a produção de não existências das
16º SHCU formas sociais que escapam às suas delimitações
30 anos . Atualização Crítica
e o consequente desperdício de uma pluralidade
578 de experiências compreendidas como residuais,
inferiores e, portanto, não existentes. Sobre isso, outras, próprias da nossa realidade brasileira.
é importante lembrar que o modelo de raciona- Significaria redirecionar a construção do nosso
lidade ocidental orientou a construção material conhecimento para, assim, ver as invisibilidades,
e simbólica de inúmeras cidades em territórios ouvir os silenciamentos, dar forma às informali-
dominados pelas relações coloniais, como é o dades e transformar, portanto, as ausências em
caso do Brasil. No entanto, ainda segundo Santos, presenças. Nesse sentido, a nossa atualização
as lógicas da razão hegemônica ocidental nunca crítica enquanto pesquisadores nos levaria a ope-
impediram a manifestação das outras formas so- rar no plano da vivência, no cotidiano da realida-
ciais, apenas as desqualificaram a fim de mantê- de urbana - trabalhar no território, aprofundar
-las na relação de subalternidade. Nesse sentido, o conhecimento acerca das práticas, apropria-
o autor nos lembra que é preciso reivindicar a ções e resistências que continuamente criam e
recuperação dessas experiências desperdiçadas modificam espaços e espacialidades e, é claro,
e a transformação do olhar sobre elas. dialogar com os múltiplos sujeitos e grupos sociais
comumente marginalizados e subalternizados,
Em sua crítica à racionalidade ocidental, Santos trazendo-os para o centro da construção do co-
ainda salienta que tal recuperação das experiên- nhecimento histórico com suas dinâmicas de vida,
cias só será possível a partir de um novo modelo seus saberes, suas práticas e lutas. Façamos,
de racionalidade que seja capaz de compreender então, a partir dessas ideias, alguns apontamen-
o mundo para além dos limites impostos pela tos acerca do cotidiano urbano e das dinâmicas
compreensão ocidental do mundo. Ele afirma plurais que o compõem.
que “[...] a característica mais fundamental da
concepção ocidental de racionalidade é o facto
de, por um lado, contrair o presente e, por ou-
tro, expandir o futuro.” (SANTOS, 2002, p. 239) PRÁTICAS COTIDIANAS E SABERES POPULARES
Ou seja, o presente é colocado como o instante URBANOS
fugidio; e o futuro, como algo indefinidamente
expandido pela concepção linear do tempo. Nesse Os estudos do cotidiano começaram a ganhar
sentido, Santos propõe uma racionalidade que evidência no último terço do século XX, quando
opere inversamente. Para expandir o presen- as grandes transformações globais daquele pe-
te, ele imagina uma sociologia das ausências, a ríodo deram origem a uma série de alterações
fim de “[...] revelar a diversidade e multiplicidade culturais e comportamentais, causando, assim,
das práticas sociais e credibilizar esse conjunto diversos questionamentos no âmbito das ciências
por contraposição à credibilidade exclusivista sociais. Estudiosos de várias áreas se debruçaram
das práticas hegemônicas.” (SANTOS, 2002, p. sobre o tema do cotidiano na expectativa de que,
253) Uma sociologia que supere as totalidades nesse âmbito, poderiam ser desvelados diferen-
homogêneas e excludentes, ampliando, assim, tes significados e dimensões da realidade, o que
o próprio mundo. E, para contrair o futuro, uma permitiria trazer respostas para o planejamento
sociologia das emergências, capaz de substituir o de ações transformadoras capazes de contrapor
futuro vazio linear por um futuro de possibilidades a tendência que então se apresentava – a de uma
plurais, constituídas no presente. homogeneização cultural e comportamental em-
pobrecedora e limitada.
Nos termos das reflexões aqui expostas, a par-
tir das contribuições de Thompson, Lefebvre, Segundo Lefebvre, a cotidianidade é um conjunto
Chakrabarty e Santos, atualizar criticamente as de fatos diretamente ligados à modernidade. São
lentes nos nossos estudos de história das nos- correlativos, como “[...] duas faces do espírito do
sas cidades significaria, então, estabelecer um tempo.” (1991, p. 30) Em sua avaliação, a chama-
reposicionamento epistemológico a partir do da sociedade burocrática de consumo dirigido
qual seja possível pensá-las e estudá-las não só daquela segunda metade do século XX continha
com base no saber técnico e na racionalidade mecanismos de captura das representações do
ocidental, aos quais o nosso conhecimento cotidiano que funcionavam para organizá-lo a
acadêmico está historicamente vinculado, mas partir de padrões e formas fechadas, as quais
com a incorporação de saberes e racionalidades buscavam delinear as necessidades e os desejos
EIXO TEMÁTICO 1 coletivos. Nesse sentido, a cotidianidade seria, a
um só tempo, o suporte e o principal produto da
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO sociedade dita organizada, a dimensão a partir da
qual era possível estabelecer os mecanismos de
controle e repressão. Apesar de identificar a coti-
dianidade como um reflexo de tais mecanismos, o
autor também afirma que o cotidiano é o lugar da
práxis criativa, pois entende que não há sistemas
absolutos ou formas totalmente fechadas capa-
zes de encerrar o seu conteúdo completamente.
“Apesar dos esforços para institucionalizá-lo, o
cotidiano foge; [...].” (p. 193) Nesse sentido, Lefe-
bvre reivindica a centralidade do cotidiano nos
estudos sociais, a fim de revelar as brechas e
rachaduras que impedem o fechamento com-
pleto das formas controladoras da modernidade,
evidenciando, assim, os conflitos e contradições
existentes na sociedade e revelando os aspectos
que sempre escaparam aos sistemas de análise
das ciências parcelares que, até então, vinham
colocando o cotidiano em um lugar de desinte-
resse para a ciência.

Com certo grau de convergência, as contribuições


do historiador francês M. de Certeau para a elabo-
ração do conceito de cotidiano apontaram para
a definição de uma dimensão dotada de grande
potencial inventivo e por meio da qual poderiam
ser resgatadas as ideias do possível, do plural e do
heterogêneo. Desse modo, o cotidiano, em Cer-
teau (1998), admite a ideia da potencialidade para
ações criativas, sendo a dimensão na qual, aos
indivíduos e grupos, é reservada a possibilidade
das práticas desviantes, aquelas que, apesar de
muitas vezes dispersas, silenciosas, anônimas
e opacas, expressam distintos modos de fazer,
mesmo a partir dos produtos estabelecidos e
oferecidos pelas ordens dominantes.

Nessa concepção do cotidiano desenvolvida por


Certeau, os produtos apresentados pelas ordens
reinantes serviriam de suporte para outras produ-
ções e criações, constituindo-se, assim, uma lógi-
ca semelhante àquela existente em torno da noção
de regra, a qual, concebida para impor limites,
pode, paradoxalmente, estimular transgressões,
improvisações e invenções. Há aqui, então, um en-
tendimento de que os sujeitos sociais operam uma
produção criativa autônoma e própria, por meio
16º SHCU de suas práticas cotidianas de apropriação e ma-
30 anos . Atualização Crítica
nipulação daquilo que foi fabricado previamente
580 na esfera tecnocrática. Assim sendo, as maneiras
de utilizar ou consumir os produtos ou espaços que se manifestam cotidianamente e, ainda que
em universos pequenos e cotidianos constituem não costumem ser lidos e decodificados pela
processos ativos e criativos daqueles a quem perspectiva técnica e acadêmica, atualizam con-
Certeau chama de praticantes ordinários. Trata-se tinuamente o espaço urbano e tecem as feições
de fazeres que escapam à disciplina, esboçando da vida social e cultural da cidade.
necessidades, interesses e desejos outros e reve-
lando inventividades táticas e astutas, associadas Estar atento à diversidade desses conhecimen-
a saberes de naturezas diversas. Ou, com base tos e saberes, segundo A. Escobar (2016), é uma
na filósofa A. Heller (2016), de fazeres que refle- postura que remete ao comprometimento do
tem um método de construção individualizada pensamento com a vida. Inserido no campo dos
e consciente da vida cotidiana e que têm como estudos decoloniais e interessado na constru-
horizonte principal a garantia da imprescindí- ção de possibilidades de transformação social, o
vel e simples continuação da cotidianidade. antropólogo colombiano sustenta a ideia de que
comprometer-se a retirar dos silenciamentos
“Habitar, circular, falar, ler, ir às compras ou co- e invisibilidades a diversidade de saberes e ex-
zinhar, todas essas atividades parecem corres- periências populares significa contribuir para a
ponder às características das astúcias e das afirmação da coexistência de muitos mundos. Ele
surpresas táticas.” (CERTEAU, 1998, p. 103 e 104) atenta, contudo, para o fato de que dentre esses
São ações múltiplas, de indivíduos marginais e muitos mundos, estão aqueles que só resistem
heterogêneos que se manifestam dia após dia nas e re-existem devido às lutas dos grupos sociais
frestas do sistema instituído, transformando-o de subalternizados que, submetidos a mecanismos
acordo com as possibilidades e os elementos dis- de controle e opressão, precisam inventar suas
poníveis em determinados instantes e condições. próprias práticas de sobrevivência e seus próprios
meios de perpetuação de memórias e saberes.
Mil maneiras de jogar/desfazer o jogo do ou-
tro, ou seja, o espaço instituído por outros, Escobar nos traz, ainda, a compreensão de que,
caracterizam a atividade, sutil, tenaz, resis- para apreender e compreender o pluriverso – o
tente, de grupos que […] devem desembara- mundo onde cabem muitos mundos – faz-se ne-
çar-se em uma rede de forças e de represen- cessária uma maior fusão entre a teoria e a prática
tações estabelecidas. (CERTEAU, 1998, p. 79) nos processos de construção do conhecimento.
Mais do que isso, faz-se necessário criar pontes
No bojo de sua discussão sobre esses processos
entre o conhecimento acadêmico – ainda muito
de invenção do cotidiano, Certeau (1998) trata di-
cúmplice das supersimplificações de leituras de-
retamente sobre a questão do espaço urbano e
rivadas de uma perspectiva exclusivamente euro-
estabelece um paralelo entre a cidade criada por
cêntrica e dominante - e o conhecimento popular
uma ordem dominante e a cidade habitada, recria-
da por meio das apropriações dos indivíduos, ou da sociedade. Para Escobar (2016), os saberes
seja, por meio da prática do espaço. A primeira se derivados das lutas em defesa dos territórios e da
manifesta na figura do voyeur, que “sai” do domínio diversidade cultural são fundamentais e, inclusive,
do espaço e se coloca à distância e acima, em uma oferecem maior profundidade em relação aos
posição totalizadora que remete a uma espécie de saberes acadêmicos nos processos de transfor-
ficção do saber, enquanto a segunda se revela na mação social. Nesse sentido, os conhecimentos
figura do praticante, que, no “interior” do espaço e as práticas de sujeitos subalternizados e dos
urbano, onde a visibilidade panorâmica cessa, ativistas urbanos que se mobilizam em defesa de
caminha e age a partir dos seus conhecimentos. seus mundos constituem importantes fontes para
construirmos uma perspectiva que seja capaz de
Seguindo a perspectiva de Certeau para observar revelar e emancipar os muitos mundos. Podemos
as nossas cidades brasileiras, poderíamos dizer dizer, ainda, que constituem importantes fontes
que enquanto a cidade criada pela ordem domi- para uma reinterpretação sobre os saberes que
nante reproduz o modelo de operação da racio- produzem o espaço urbano e, consequentemente,
nalidade ocidental, a cidade habitada é praticada, para a reconstrução da história das cidades e a
apropriada, modificada e criada com base em perpetuação da sua memória. “Para revitalizar o
conhecimentos plurais e racionalidades outras pensamento crítico, é necessário aproximá-lo
EIXO TEMÁTICO 1 das ideias e práticas daqueles que lutam em sua
defesa.” (ESCOBAR. 2016, p. 29 e 30)
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Acionando o conceito de história pública, as his-
toriadoras brasileiras J. Almeida e M. Rovai (2011)
convergem para esse mesmo entendimento sobre
a necessidade de construirmos pontes e abrirmos
portas que conectem a academia e o “mundo lá
fora”, fazendo dialogar uma série de múltiplos ques-
tionamentos, perspectivas e discursos. Democra-
tizar a história e torná-la elemento de apropriação
pública passa, portanto, pelo imprescindível mo-
vimento de traçar novos caminhos na sua própria
construção, caminhos que sejam atentos às di-
nâmicas e aos movimentos da própria sociedade.

Toda essa reflexão nos aponta o cotidiano en-


quanto âmbito dos conhecimentos plurais, das
múltiplas veracidades, dos muitos mundos, dos
dissensos e das resistências em relação às or-
dens dominantes e vem ao encontro, assim, da
afirmação de Santos (2002) quando diz que al-
gumas formas sociais e experiências, apesar de
invisibilizadas e marginalizadas, nunca deixam de
existir, são apenas mantidas sob a égide da des-
qualificação e do descrédito. Caberia à pesquisa
histórica, portanto, nos termos da sociologia da
ausência, revisitar essas experiências, práticas
e lutas cotidianas, assim como os saberes po-
pulares, criativos e tradicionais que têm lugar
em contextos considerados não existentes, e
libertá-los “do seu estatuto de resíduo, restituin-
do-lhes a sua temporalidade própria e, assim, a
possibilidade de desenvolvimento autônomo.”
(SANTOS, 2002, p. 251) Desobedecer às opera-
ções epistemológicas que produzem ausências
significa defender o pluriverso urbano, ou seja,
defender a existência de muitas cidades em uma.
Afinal, segundo Santos (2002, p. 259), “Quanto
mais ampla for a realidade credível, mais vasto
é o campo dos sinais ou pistas credíveis e dos
futuros possíveis e concretos.”

CONSIDERAÇÕES FINAIS PARA IMAGINAR


POSSIBILIDADES

Em uma perspectiva de atualização dos estudos


16º SHCU históricos sobre as cidades brasileiras no campo
30 anos . Atualização Crítica
da Arquitetura e do Urbanismo, buscamos aqui
582 refletir acerca de teorias que, dando continuidade
aos esforços dos últimos trinta anos, possam históricos como produtos das relações de poder,
contribuir na incorporação de novos debates e uma vez que eles são constituídos por um uni-
categorias de análise, no alargamento da perspec- verso delimitado e restrito daquilo que deve ser
tiva crítica, na inclusão de uma maior diversidade conservado. Como consequência, uma pesquisa
de sujeitos e na indicação de novas metodologias histórica que se apoie exclusivamente nos docu-
de pesquisa. Conforme apontado no início deste mentos mais tradicionais ou que não lance um
trabalho, temos hoje o desafio de conjugar con- olhar crítico sobre eles tende a criar discursos his-
tribuições interdisciplinares e multiconceituais tóricos apartados das visões de mundo populares.
para que esses estudos históricos alcancem a
complexidade e a densidade das múltiplas di- É importante frisar, seguindo a historiadora brasi-
mensões das cidades. leira S. Lara (2008), que, em geral, os documentos
são produzidos para uma finalidade outra, que não
Tomando os estudos pós-coloniais e decoloniais a de fornecer informações sobre o passado. Isso
como importantes contribuições teóricas para o significa dizer que é o pesquisador quem trans-
movimento de aproximação das nossas cidades forma tais documentos em fontes, o que reforça a
reais e dos seus múltiplos e distintos sujeitos - sua responsabilidade de realizar uma boa seleção
movimento iniciado pela incorporação do debate desse material. Para além disso, as afirmações
da história social -, entendemos a necessida- de Lara nos lembram que é necessário inventar
de de um reposicionamento de perspectiva que fontes, interrogá-las criticamente e compreendê-
nos permita desvelar epistemes emancipatórias -las no interior das circunstâncias e dos objetivos
(PORTO-GONÇALVES, 2017) e ler a nossa realidade que envolveram a sua produção, a fim de alcan-
urbana a partir de outras chaves de conhecimento çar as respostas pretendidas na investigação.
comumente desqualificadas e descreditadas no
âmbito acadêmico devido à histórica colonialidade Nesse sentido e diante das reflexões aqui pro-
constitutiva do nosso saber. Acreditamos que os postas, cabe-nos a atualização e a invenção das
apontamentos sobre as práticas cotidianas e os teorias, dos métodos e das fontes a partir dos
saberes populares urbanos nos dão pistas nessa quais lemos a cidade e construímos a sua história.
busca por novas leituras da cidade e novos mé- Precisamos interseccionar campos de conhe-
todos de pesquisa que deem conta de alcançar cimentos e imaginar que outros vestígios, para
e pôr em diálogo os distintos e contraditórios além dos documentos produzidos por técnicos e
processos, concretos e simbólicos, de produção administradores públicos, poderiam nos revelar
e transformação dos espaços urbanos. evidências e fragmentos dos múltiplos processos
e saberes que envolvem a produção material e
Cabe imaginarmos, a partir dessas pistas, que simbólica do espaço urbano. As aproximações
natureza de fontes poderia contribuir nesse pro- teóricas que propusemos aqui nos ajudam a pen-
cesso de leitura do cotidiano urbano e das práticas sar nos caminhos que podemos percorrer para
e dos saberes que o constituem, uma vez que isso e nos inspiram a imaginar possíveis fontes
muitos dos documentos que frequentemente para a construção de discursos alternativos aos
embasam as pesquisas históricas sobre as ci- hegemônicos. Uma construção que seja feita com
dades – em geral documentos textuais e icono- a cidade e a sociedade e não sobre elas. Desauto-
gráficos - são produzidos por atores que ocupam rizando a escrita como lugar de reconhecimento
posições técnica ou politicamente hegemônicas da memória por excelência, uma vez que dando a
no campo do urbano enquanto disciplina e que, ela esse lugar, como vimos, temos deixado de lado
portanto, os produzem, motivados por questões uma série de saberes e conhecimentos expressos
concernentes às suas posições. Vale lembrar por meio de outras textualidades e linguagens
aqui, uma contribuição de Chakrabarty (2009), ao sobre a cidade, podemos pensar, por exemplo,
afirmar que os grupos subalternizados, em geral, na voz e no corpo como ambientes de memória,
não costumam produzir e deixar os seus próprios conforme sugere L. Martins (2003). O que os rela-
documentos e, quando são representados nos tos orais, os cantos, as performances, os trajetos,
chamados documentos históricos tradicionais, o as práticas, os gestos, os hábitos poderiam nos
são pela perspectiva daqueles que os dominam. dizer sobre as cidades e sobre os processos In-
Além disso, o autor aponta os próprios arquivos terescalares e interculturais que os constituem?
EIXO TEMÁTICO 1 É fato que ainda precisamos avançar no sentido de
garantir que sujeitos, práticas e saberes tenham
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO voz e lugar em nossos estudos históricos sobre
as cidades e para que possamos consolidar, no
cerne destes, a compreensão da cidade como
expressão dos diversos modos de viver, das dis-
tintas formas de criação, apropriação e transfor-
mação do espaço e das múltiplas lutas travadas
por aqueles que são recorrentemente invisibili-
zados e silenciados. Nesse sentido, precisamos
estar vigilantes para que a nossa produção de
conhecimento não contribua para a perpetuação
da hierarquização dos sujeitos e dos saberes con-
tida no projeto moderno-colonial. Como aponta
o crítico literário palestino E. Said (2009, p. 30,
tradução nossa), trata-se de uma “[...] mudança
importante na nossa consciência de como nosso
compromisso acadêmico e intelectual pode muito
bem ser combinado de maneira responsável com
um sólido compromisso social.” Acumular uma
pluralidade de conhecimentos ao nosso conhe-
cimento acadêmico sobre as cidades e construir
novos discursos históricos comprometidos com
a diversidade das práticas e memórias urbanas
parece ser um caminho promissor no sentido de
preencher lacunas e corrigir falhas das escolhas
teórico-práticas pautadas, prioritariamente, em
visões totalitárias, tecnicistas, deterministas e
homogêneas das cidades. Parece ser um caminho
comprometido, portanto, não só com o passado
das cidades, mas também com as possibilidades
plurais para o seu futuro.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

584
BIBLIOGRAFIA FONTANA, J. Reflexões do fim da história, do além
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EIXO TEMÁTICO 1 RESUMO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
O presente artigo propõe-se a examinar o papel
protagonista do urbanista francês Alfred Aga-
vídeo-pôster che na consolidação das discussões urbanísti-
cas entre 1927, quando vem ministrar palestras
no Brasil, até 1930, quando entrega seu Plano
CONFERÊNCIAS E PLANOS: para o Rio de Janeiro, período em que na capital
não estava plenamente instituído o Urbanismo
O PAPEL CATALISADOR enquanto disciplina círculos acadêmicos. É usa-
do como fonte um repertório composto por 63
DE AGACHE NO CENÁRIO recortes de jornais através dos quais buscam-
-se evidências das repercussões das questões
URBANÍSTICO CARIOCA levantadas pelo urbanista francês, bem como
os motivos que levaram à sua contratação.
(1927-1930)
HISTÓRIA CIDADE URBANISMO AGACHE
CONFERENCES AND PLANS: THE CATALYST ROLE OF
AGACHE IN THE RIO URBANISTIC SCENARIO
PROJETO
(1927-1930)

CONFERENCIAS Y PLANES: EL PAPEL CATALIZADOR


DE AGACHE EN EL ESCENARIO URBANÍSTICO DE RÍO
(1927-1930)

FONSECA, Thiago
Graduado em Arquitetura e Urbanismo – Universidade
Federal Fluminense
thiagosmfonseca@gmail.com

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

586
ABSTRACT RESUMEN

This article aims to examine the leading role of Este artículo tiene como objetivo examinar el
the french urban planner Alfred Agache in the papel principal del planificador urbano francés
consolidation of the urban discussions between Alfred Agache en la consolidación de las discu-
1927, when he came to give lectures in Brazil, until siones urbanas entre 1927, cuando llegó para dar
1930, when he delivered his Plan to Rio de Janeiro, conferencia en Brasil, hasta 1930, cuando entre-
a period in which the Urbanism was not fully es- gó su Plan a Río de Janeiro, un período en que la
tablished as a discipline in the academic circles capital el Urbanismo no estaba completamente
of the capital. A repertoire consisting of 63 news- estabelecida como disciplina en los círculos aca-
paper clippings is used as a source of evidences démicos. Un repertorio que consta de 63 recortes
of the repercussions of the issues raised by the de periódicos es utilizado como fuente a través
French urban planner, as well as the reasons that de la cual se busca evidencias de las repercusio-
led to his hiring. nes de los problemas planteados por el urbanista
francés, así como las razones que llevaron a su
contratación.
HISTORY CITY URBANISM AGACHE PROJECT

HISTORIA CIUDAD URBANISMO AGACHE


PROJECTO
EIXO TEMÁTICO 1 INTRODUÇÃO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Em 1926, ano em que Prado Júnior assume a Pre-
feitura do Rio de Janeiro, estava consolidado na
vídeo-pôster cidade o reconhecimento da necessidade de um
plano para a cidade: “Era uma obra necessária
e inevitável” (Jornal do Brasil, 02/11/1926, apud

CONFERÊNCIAS E PLANOS: SILVA, L. 1996). O contexto econômico da capital


sofrera transformações (ver Tabela 1): a escassez
O PAPEL CATALISADOR de produtos gerada pela I Guerra Mundial fomen-
tou o desenvolvimento de indústrias leves, sur-
DE AGACHE NO CENÁRIO gindo estabelecimentos industriais de forma mais
consistente junto às linhas férreas. Nesse período,
URBANÍSTICO CARIOCA ainda que o Brasil fosse essencialmente agrário,
a política do Café com Leite vinha enfraquecen-
(1927-1930) do, de modo que a cada crise do café o capital
excedente das exportações era concentrado na
capital, onde se investia em indústrias (SANTANA;
CONFERENCES AND PLANS: THE CATALYST ROLE OF ALMEIDA, 2014). Tal organização trouxe suporte
AGACHE IN THE RIO URBANISTIC SCENARIO técnico de portos, ferrovias, eletricidade, etc (ibi-
(1927-1930) dem), tornando imprescindível a reconfiguração
do espaço, de forma a potencializar as capacida-
CONFERENCIAS Y PLANES: EL PAPEL CATALIZADOR des econômicas da metrópole. 
DE AGACHE EN EL ESCENARIO URBANÍSTICO DE RÍO
(1927-1930)
1906 1920 DIFERENÇA

POPULAÇÃO 805.335 1.147.599 42,5%

NÚMERO DE PRÉDIOS 84.375 129.632 54%

Nº DE LOGRADOUROS 1.943 3.534 81,9%

Tabela 1: mudanças no Rio entre 1906 e 1920. Dados ex-


traídos de PECHMAN (1996, p.337).

Outro fator foi decisivo para a contratação de


um plano urbano para a metrópole: a existência
de uma grande região vazia em pleno Centro Fi-
nanceiro. Tratava-se da área do antigo Morro do
Castelo, demolido de forma definitiva para os
preparativos do Centenário da Independência em
1922 (SILVA; L. 2003), e cujo material resultante do
desmonte formou um aterro de grandes propor-
ções na linha da costa. Para o local, entre 1920 e
1924 foram aprovados sucessivamente seis proje-
tos de alinhamento pela administração municipal,
cada um anulando o anterior; a eles, somavam-se
os projetos elaborados de forma independente
16º SHCU por escritórios e acadêmicos (FONSECA, 2019).
30 anos . Atualização Crítica
No entanto, apesar da quantidade de propostas,
588 nenhuma delas foi efetivada, evidenciando um
impasse entre os técnicos da Prefeitura (SILVA; 1922, tendo em mente a visibilidade do evento,
L. 2003). dispôs-se a coordenar as tratativas em Paris com
o intuito de negociar a vinda de um profissional
Também a favelização, que já se fazia presente em para o Rio; dentre as opções, estava Agache:
vários morros da cidade, mostrou-se importante
nessa conjuntura. Sobretudo no Rotary Club, o Mais tarde escrevi de Paris particularmen-
tema era discutido de forma ampla quando men- te ao meu illustre amigo Carlos Sampaio
cionada a remodelação da capital. O mais emble- [...] oferecendo-me até para obter o apoio
mático expoente contra a existência de favelas foi dos grandes urbanistas franceses, entre
o médico João Augusto de Mattos Pimenta, que os quais Greber, Tony Garnier e o mestre
expôs em conferência no Rotary em 1926 posicio- Agache, premiado em concurso internacio-
namento bastante agressivo e preconceituoso nal da Austrália pelo seu plano monumental
em relação à pauta: para a futura cidade Yass Camberra, Capital
desse Domínio.
Sem embargo porém do plano a delinear,
antes mesmo de sua adoção, é mister se Aqui chegando depois, em Agosto de 1922,
ponha um paradeiro imediato, se levante lamentei pelo “Jornal do Commercio” que o
uma barreira profilática contra a infestação Prefeito Sampaio não tivesse tido tempo
avassaladora das lindas montanhas do Rio para examinar a minha ideia, cuja utilidade
de Janeiro pelo flagelo das “favelas” - lepra ninguém poderia pôr em dúvida. (GUIMA-
da estética que surgiu no morro entre a Es- RÃES, 1926, p. 4)
trada de Ferro Central do Brasil e a Avenida
Como pode-se depreender a partir da fala de Gui-
Cais do Porto e foi se derramando por toda
marães, a ideia de trazer um profissional não era
a parte, enchendo de sujeira e de miséria
nova e, no entanto, ganha fôlego em 1926. Nesse
preferentemente os bairros mais novos e
contexto, Marianno Filho, diretor da Escola Nacio-
onde a natureza foi mais pródiga de bele- nal de Belas Artes, defendia a vinda de um enge-
zas: morros do Leme, de Copacabana e nheiro estrangeiro; já Nereu Sampaio, na época
de Ipanema, praia do Leblon, margens da presidente do Instituto Central de Arquitetos, e
Lagoa Rodrigo de Freitas, Gávea, etc., e Nestor de Figueiredo, na ocasião redator chefe
até nos novos terrenos do aterro da Gua- da revista Architectura no Brasil - Engenharia,
nabara, junto ao local da Exposição do Construcção, se posicionavam pela contratação
Centenário. (PIMENTA, 1926 - grifo meu) 1 de um brasileiro, já que para eles a “reforma da
cidade passava pela ratificação do caráter de
Como se percebe, até mesmo as áreas vazias exis-
brasilidade da capital” (SILVA, L. 1996, pág. 402).
tentes no Centro da cidade, oriundas do desmonte
De um modo geral, o Instituto Central de Arqui-
do Morro do Castelo em 1922, além de sofrerem
tetos defendia a elaboração do projeto por um
grande pressão da especulação imobiliária, tor- profissional brasileiro.
nam-se uma região de disputas ainda mais acir-
radas com a presença de habitações populares.  Já o corpo de engenharia e o Rotary Club apoia-
vam a vinda de um estrangeiro. Mattos Pimenta,
Também no âmbito do Rotary Club, a figura do além de indicar que um técnico nacional poderia
adido comercial brasileiro Francisco Guimarães ser influenciado por pressões políticas, expressa
articula a contratação de um urbanista na Fran- preocupação em relação à sua formação, já que a
ça. Ainda antes da Exposição do Centenário de seu ver a disciplina de Urbanismo ainda não havia
sido plenamente estabelecida na cidade:
1. Pimenta identifica no mesmo discurso as seguintes fave-
las no Rio: Favela Haddok Lobo; da Quinta da Boa Vista; do
[...] digo pseudo-urbanistas porque não
Morro de Copacabana; de Copacabana (atrás do Copacabana existe, na verdade, um único brasileiro que
Palace); do Morro do Leme; do morro da abilônia; da praia tenha feito o traçado de qualquer grande ci-
de Ipanema; da Praia do Leblon; do Jockey Club; da Gávea; dade, assim como não há um só engenheiro
de Botafogo; da Glória e do aterro do Guanabara (próximo ou arquiteto nosso que tenha sequer exame
aos locais da Exposição de 1922). de urbanismo, cadeira que não existe na
EIXO TEMÁTICO 1 Escola Politécnica ou na Escola Nacional
de Belas Artes.2
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Esse embate se situa em um contexto no qual
havia ambiguidades em relação à interpretação
da atuação de arquitetos e engenheiros: se estes
se formavam na Escola Politécnica, aqueles, além
de não terem a profissão regulamentada, faziam
parte na capital carioca da Escola Nacional de
Belas Artes3 em um curso muito mais voltado para
as questões estéticas e que apresentava carên-
cia em relação a exploração de novos materiais e
técnicas que vinham sendo utilizados em outros
países, tendo sido a Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da UFRJ fundada só em 1945 (SILVA, L.
2003). A leitura da sociedade carioca era de que os
arquitetos se mostravam capazes de materializar
territorialmente as demandas simbólicas da elite,
enquanto a engenharia era vista como instrumen-
to multidisciplinar do progresso que focava na
eficiência e produtividade (SILVA, L. 1996). Nesse
sentido, a remodelação do Rio de Janeiro era
também um espaço de disputas, tanto relativas
à atuação de engenheiros e arquitetos quanto à
vinda de um técnico conterrâneo ou estrangeiro.

O prefeito Prado Júnior chegou a participar de


reuniões no Rotary. Antes mesmo da sua eleição
de 1926, Mattos Pimenta, Mariano Filho, Francisco
de Oliveira Passos e Archimedes Memória forma-
ram uma comissão para pressionar o prefeito a
contratar um estrangeiro (ibidem). Godoy, técnico
da prefeitura, cotou quatro nomes de urbanistas
na seguinte ordem: Stubben, Bennet, Jaussely e
Agache (ibidem); desses, o escolhido foi Agache,
que em janeiro de 1927 foi convidado pela pre-
feitura do Distrito Federal a realizar uma série
de palestras na cidade. A princípio foi noticiado
pelos jornais que o professor francês teria sido
contratado em abril para elaborar um plano para a
cidade, mas Prado Júnior vai a público desmentir
o fato, retificando a informação e divulgando o
programa das conferências4. Na mesma repor-
tagem, acrescenta por fim que sua vinda tem a
objetivo de provocar o corpo técnico nacional:

2. MATTOS Pimenta, apud PECHMAN, 1996, p. 356.

3. Já em São Paulo o curso de Arquitetura surgiu dos cursos


16º SHCU de Engenharia (Ver WISNIK, 2004).
30 anos . Atualização Crítica
4. O Paiz. Rio de Janeiro, edição 15516, 14 de abril de 1927, p.
590 1 - “A Futura Physionomia da Metropole Brasileira”
[...] a vinda do urbanista Agache ao Rio vai, Deve-se destacar que, no seu entendimento, o
ao menos, abrir o debate sobre a necessi- técnico que estuda a cidade deveria ser o arqui-
dade de presidirem os poderes públicos, teto, afinal, ele mesmo era urbanista-arquiteto.
com sábias medidas de previdência, ao de-
senvolvimento da cidade. Eu espero que O francês claramente herdou de sua experiência
a imprensa, os técnicos que possuímos, enquanto professor a didática. O programa de
discutam e aclarem o assunto, projetando-o suas palestras demonstra o seu esforço defesa
na nossa mentalidade. de uma ciência especializada que estuda cidades
e a introdução de uma série de conceitos que a
ela dão suporte. As conferências contratadas
foram: “O Urbanismo e a Belleza das Cidades”;
AS CONFERÊNCIAS DE 1927 E SUAS REPERCUSSÕES
“Modelo para um plano de cidade - Varias phases
de uma realização urbanista”; “Cidades tentacu-
Alfred Donat Agache chega ao Brasil em 26 de
los e cidades satellites. Solução para as cidades
junho de 1927 a bordo do vapor Marselha. O evento
jardim”; “Paris à travers les âges’; “Como se ensina
foi um acontecimento amplamente noticiado pela
o urbanismo. os novos methodos de photo-to-
imprensa carioca. O jornal O Paiz, por exemplo,
fez entrevista no dia da chegada logo assim que o pographia, applicados ao estudo dos planos de
urbanista se instalou no Hotel Glória; nela, Agache cidades”. Outras conferências ele faria a convite
já indica a importância da disciplina de Urbanis- de sociedades civis.
mo, dizendo que “tão complexo é o urbanismo,
As palestras tiveram livre acesso de público, sen-
que só podem conhecer bem os que, além de
curso especializado sobre o assunto, tenham do necessário apenas chegar com antecedência
ainda viajado bastante” 5. Na mesma entrevista, para obter ingresso. Algumas foram transmitidas
além da importância da disciplina, ressalta-se o por rádio, e todas foram largamente divulgadas:
desejo de envolver a população: eram anunciadas previamente, sendo reiterados
seus convites não raro até mesmo duas vezes
O fim de tais conferências, ou melhor, o fim por dia nos jornais de mais de uma edição diária.
da viagem do conhecido profissional fran- Todas elas foram objeto de resenhas que com
cês ao Brasil, é interessar os habitantes do frequência ocuparam as primeiras páginas das
Rio de Janeiro na solução dos problemas gazetas. A partir da análise dos periódicos do
de urbanismo; explicar o problema tal qual período, sistematizei os eventos nos quais Agache
se apresenta aos técnicos e indicar, final-
foi protagonista na tabela 2 abaixo.
mente, às autoridades municipais, o modo
mais prático de estudar esse problema.

A primeira atividade oficial de sua agenda é uma


visita à Escola Nacional de Belas Artes, em 04 de
julho6. Nela, frisou mais uma vez a “conveniencia
de ser iniciado um curso de urbanismo, onde os
nossos architectos adquiram os conhecimentos
hoje indispensáveis dos embellezamentos urba-
nos, dos quaes decorrem todas as outras mani-
festações das bellas artes no scenario da cidade” 7.

5. O Paiz, Rio de Janeiro, edição 15589, 26 de junho de 1927,


p. 1 e 4 - “O Prof. Agache está no Rio e expõe ao “Paiz” suas
ideias sobre urbanismo”

6. O Paiz. Rio de Janeiro: edição 15594, 01 de julho de 1927,


p. 2 - “Visita do Prof. Agache”
p. 4 - “O professor Agache visitou hontem a Escola Nacional
7. O Paiz. Rio de Janeiro: edição 15595, 02 de julho de 1927, de Bellas Artes”
EIXO TEMÁTICO 1
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO

DIA/
EVENTO LOCAL TEOR FONTE
MÊS
“[...] frisou a conveniencia de ser ini-
O Paiz. Rio de
ciado um curso de urbanismo, onde
Janeiro: edição
os nossos architectos adquiram os co-
Visita à Escola Na- 15594, 1927, p. 2
01/07 ENBA  nhecimentos hoje indispensáveis dos
cional de Belas Artes O Paiz. Rio de
embellezamentos urbanos, dos quaes
Janeiro: edição
decorrem todas as outras manifestações
15595, 1927, p. 4
das bellas artes no scenario da cidade”.
Presença de engenheiros, arquitetos, pro-
fessores, artistas e políticos, incluindo o
presidente. Começa sua fala dizendo que
não iria mudar a essência e a natureza
das coisas e que conhecia os planos dos O Paiz. Rio de Ja-
profissionais brasileiros elaborados nas neiro: edição 15590,
Conferência: “O Ur-
Theatro Muni- décadas anteriores. 1927, p. 27
04/07 banismo e a belleza
cipal Entre metáforas relacionando a cidade O Paiz. Rio de Ja-
das cidades”
ao corpo humano, faz referência a Haus- neiro: edição 15597
smann, elogiando os jardins oriundos – 15598, 1927, p. 2
de suas reformas enquanto pulmões de
Paris. Por fim, defende a construção da
figura do urbanista através do acúmulo de
conhecimentos relativos às cidades.
Afirma que no Rio não se conhecia de-
vidamente o papel do arquiteto, e disso
resultava a “feição incaracterística da
O Paiz. Rio de Ja-
urbs” e defende que o plano geral deve
neiro: edição 15600,
ficar sob responsabilidade de arquitetos,
1927, p. 2
Conferência: ‘”Mode- cooperando com os engenheiros.
O Paiz. Rio de Ja-
lo para um plano de Discorre que durante a elaboração do pla-
Theatro Muni- neiro: edição 15604
11/07 cidade - Varias pha- no deve-se evitar a monotonia; apresenta
cipal - 15605, 1927, p. 4
ses de uma realização ainda a opinião de que deve-se fazer a
Correio da Manhã.
urbanista” definição categórica dos bairros, como,
Rio de Janeiro: edi-
por exemplo, o bairro dos ricos, dos re-
ção 09965, 1927,
mediados e dos pobres. No final, ressal-
p. 5
tou a importância da fotografia aérea para
cadastro e fez projeções luminosas que
ilustravam sua fala.
Correio da Manhã.
Palestra: “Minhas
Estúdio do Radio Rio de Janeiro: edi-
12/07 primeiras impressões Transmitida via rádio
Club Brasil ção 09960, 1927,
do Rio de Janeiro”
p. 11
A convite da Liga Esperantista Brasileira
O Paiz. Rio de Ja-
e proferida em Esperanto. Defendeu a
neiro: edição 15603,
importância do planejamento urbano para
Conferência: “Urba- Sociedade de 1927, p. 2
15/07 evitar transtornos gerados pela desordem
nismo e Urbanistas” Geographia O Paiz. Rio de Ja-
o futuro. Foram exibidas projeções lumi-
neiro: edição 15610,
nosas dos seus planos para Dunkerque e
1927, p. 4
Paris.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

592
Expõe a questão das favelas, partindo
do princípio de que seus moradores de-
O Paiz. Rio de Ja-
vem ser necessariamente desalojados,
neiro: edição 15611
atendendo, no entanto, o direito de pro-
– 15612, 1927, p. 2
priedade. Depois disso, traça um paralelo
O Paiz. Rio de Ja-
entre tipos de cidade: a tentáculo, que
neiro: edição 15614,
Conferência “Cidades cresce entorno do Centro sem atender a
1927, p. 7
tentaculos e cidades um traçado prévio, tal qual Paris e Rio; a
Theatro Muni- Correio da Manhã.
20/07 satellites. Solução satélite, que gira em torno de uma cidade
cipal Rio de Janeiro: edi-
para as cidades jar- maior, como Niterói, e que deve ter boa
ção 09972, 1927,
dim” conexão com a principal; e a jardim, ar-
p. 6
borizada, rica em espaços públicos. Em
Correio da Manhã.
relação à última, entra em vários porme-
Rio de Janeiro: edi-
nores de suas características. No final, foi
ção 09973, 1927,
feita a exibição do filme “As Favellas”,
p. 3
de Mattos Pimenta.
Foi transmitida pela Rádio Sociedade.
O Paiz. Rio de Ja-
Conferência: “Paris à
23/07 Lycée Français - neiro: edição 15615,
travers les âges”
1927, p. 2
Discorreu sobretudo sobre como estavam
sendo elaborados os planos na França,
Conferência: “Como
focando na parte de diagnóstico, de O Paiz. Rio de Ja-
se ensina o urbanis-
reconhecimento de organização social neiro: edição 15616,
mo. Os novos metho-
Automóvel Club e características espaciais do objeto de 1927, p. 4
25/07 dos de photo-topo-
do Brasil estudo. Salientou a importância da inter- O Paiz. Rio de Ja-
graphia, applicados
venção da própria prefeitura municipal na neiro: edição 15618
ao estudo dos planos
elaboração dos planos e defendeu mais – 15619, 1927, p. 6
de cidades”
uma vez a criação de um curso específico
de Urbanismo.
Palestra: “O papel do Palestra transmitida via rádio e mediada O Paiz. Rio de Ja-
Estúdio da Rádio
30/07 architecto na socie- por Nereu Sampaio, presidente do Insti- neiro: edição 15623,
Sociedade
dade” tuto Central dos Arquitetos 1927, p. 8
Correio da Manhã.
Rio de Janeiro: edi-
03 a 07/08 Visita a São Paulo - Elaboração de estudos de orientação
ção 09985, 1927,
p. 5
Departamento de O Paiz. Rio de Ja-
Conferência sobre
27/08 Saúde de Recife - neiro: edição 15652
urbanismo
- PE 1927, p. 7
Correio da Manhã.
Segunda da série de duas conferências
Agosto Rio de Janeiro: edi-
Conferência Recife em Recife. Nessa época, afirmou come-
(?) ção 10009, 1927,
çar estudos de um plano para Recife
p. 1

Tabela 2: Conferências de Agache no Brasil em 1927. Autoria própria.

A impressão causada pelas palestras foi de uma com o corpo, referindo-se a ela como “Mlle.” Ca-
forma geral bastante positiva nos meios de co- rioca, indicando que os problemas da urbe seriam
municação. Em resenha, por exemplo, O Paiz de- doenças num organismo que deveria funcionar de
fende que foi “perfeito serão de intellectualidade forma plena. Enfatizou ainda o papel do urbanista:
e bom gosto a primeira conferencia do illustre
Imaginemos uma cidade, onde se transi-
urbanista”8. Nessa primeira explanação, Agache
te folgadamente, onde se respira a livres
utiliza uma metáfora que seria ponto chave no
pulmões, onde se habite com segurança e
Plano de Remodelação: a comparação da cidade conforto. A esse conjunto de aprazimentos
falta, porém, o complemento de belleza: a
8. O Paiz. Rio de Janeiro: edição 15597 – 15598, 04 e 05 de esthetica da cidade. É neste passo que se
julho de 1927, p. 2 - “Urbanismo como Sciencia e como Arte” faz precisa a intervenção do urbanista, que
EIXO TEMÁTICO 1 deve ter o dom desse mester como têm os
poetas o de cantar. Nasce-se o urbanista
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO pela intenção dessa ordem dos problemas
e accrescenta-se a vocação, pelo conhe-
cimento das grandes cidades, das suas
agglomerações, que se apprehendem pelas
viagens.9 

Os jornais noticiam que, tendo a primeira confe-


rência causado alvoroço nas mídias, a segunda,
realizada em 04 de julho, estava ainda mais cheia.
Nela, o professor destacaria o papel do “architecto
como artista mais necessario aos programmas
urbanos que o proprio engenheiro” 10. Isso se dá
porque para ele o profissional apresentava forma-
ção mais ampla, o que favoreceria a articulação de
um plano cujo programa apresenta características
complexas. Sobre sua estrutura, ele também dá
pistas, afirmando a necessidade de um “plano ge-
ral” com a “collaboraçao de outros estudiosos, que
elucidem a geographia, a historia, as condições
do meio, o computo da população e outros ca-
racterísticos da cidade moderna” 11. Portanto, um
plano geral pressupõe para Agache uma profunda
análise de vários aspectos da cidade, a partir dos
quais chega-se a conclusões que norteariam o
partido do projeto. Continua atentando para a
necessidade de um método para a elaboração
de planos, posicionamento em alguma medida
inovador, considerando que no Rio não existia
curso para formação especializada na disciplina
de Urbanismo. Verifica-se ainda preocupação
com aspectos outros da cidade que não apenas
morfológicos e higiênicos, como eram os planos
de melhoramentos elaborados na década de 1920
(FONSECA, 2019).

Em sua quarta conferência oficial em 20 de ju-


lho de 1927, é apresentada uma visão bem ampla
de planejamento, alcançando nível regional: ao
discorrer sobre como as cidades se espraiam e
orbitam ao redor de uma principal, já prevê o que
viria a ser a formação de uma região metropoli-
tana, e chega a mencionar en passant algumas

9. Ibidem.

10. Correio da Manhã. Rio de Janeiro: edição 9965, 1927,


pp. 5 - “O Rio de Amanhã”
16º SHCU
11. O Paiz. Rio de Janeiro: edição 15604 – 15605, 11 e 12 de
30 anos . Atualização Crítica
julho de 1927, p. 4 - “Modelos para um plano de cidade. Varias
594 phases de uma realização urbanistica”
características da cidade de Niterói12. Outro as- Presidente - Sampaio Correia;
sunto abordado é a Favella, sobre a qual afirmou
ser inadmissível ter moradores vivendo em tais Vice-presidente - Nestor de Figueiredo;
condições; chama atenção, contudo, para ser
Secretário Geral - Ev. Backheuser;
impossível deixar as os habitantes sem moradia,
não por uma questão de direito de habitação, Secretário - Gelabert de Simas.
mas sim pelo direito de propriedade, seguindo o
pensamento elitista da época. Tesoureiro - Coronel Leite Ribeiro.

Na quinta conferência programada em 25 de julho Durante o ano de 1928, a Associação se reuniu no


de 1927, O Paiz sinaliza que “as palestras de hontem Salão Nobre da Escola Nacional de Belas Artes
deixaram de ser informativas e pitorescas, para para discutir assuntos variados que eram publica-
revestir um caracter pedagogico e doutrinario” 13, dos nos periódicos e tinham interface com outras
começando os assuntos a entrar em especifici- organizações da época, como o Clube de Engenha-
dades técnicas. Ressalta-se ainda o fato de que ria, o Automóvel Club, o Instituto Central de Arqui-
a legislação pode e deve ser um instrumento de tetos e a própria Escola Nacional de Belas Artes,
regulação do espaço à disposição do urbanista. que participaram da cerimônia solene de posse
dos seus integrantes17. No ano de 1929, porém, as
Tão bem sucedidas foram as conferências ocor- menções às atividades da Associação se tornam
ridas no Rio que eventualmente Agache foi convi- escassas e isoladas, e a partir de 1930 não encon-
dado a fazer palestras em São Paulo e em Recife, trei maiores informações sobre a organização.
cidade para a qual esboçaria um projeto14.
Não passou despercebido nem mesmo aos téc-
As ideias circuladas nesse período intenso promo- nicos contrários à contratação de um arquiteto
veram grande mobilização em torno do assunto. estrangeiro o interesse levantado pelas conferên-
Em 10 de agosto de 1927, por exemplo, foi con- cias de Agache. O ex-prefeito do Rio, Carlos Sam-
vocada uma reunião na escola politécnica com o paio, por exemplo, publicou artigo reconhecendo
intuito de discutir a fundação de uma Associação a contribuição do urbanista francês, ainda que de
Brasileira de Urbanismo, que teria como escopo, forma ácida, e posicionando-se pela valorização
dentre outras questões, “favorecer a aproximação do corpo técnico nacional: 
dos técnicos [...] que já se preocupam notadamen-
Arte que naturalmente nasceu com a cre-
te com os problemas essenciais do urbanismo” 15.
ação da primeira cidade, o Urbanismo só-
Segundo a mesma reportagem, tal ideia teria vin-
mente em época mais recente adquiriu os
do do próprio Agache em almoço oferecido pelos
fóros de sciência com a systematização de
integrantes da Escola Politécnica no mês anterior
diversas e variadas theorias de que depende
em restaurante a Urca. Mais tarde no mesmo ano,
seu conhecimento.
em 16 de novembro, foi feita uma eleição para a
organização dos cargos da Associação, que ficou Foi preciso que viesse ao Rio de Janeiro
configurada da seguinte forma16: um especialista nesse assumpto para que
nós vissemos surgir, como cogumelos, ur-
12. O Paiz. Rio de Janeiro: edição 15614, 21 de julho de 1927, p.
banistas de todas as formas e matizes, que
7 - “Cidades-tentáculos, cidades-satelites, cidades-jardins”. felizmente se agacharam perante o illustre
professor Agache para melhor comprehen-
13. O Paiz. Rio de Janeiro: edição 15618 – 15619, 25 e 26 de
der que a cidade do Rio de Janeiro não era
julho de 1927, p. 6 - “Creação da cultura urbanística”.
tão mal construída. (SAMPAIO, 1927, pág. 131)
14. Ver tabela 2.

15. Correio da Manhã. Rio de Janeiro: edição 9990, 10 de


Se a necessidade de um plano geral para cidade
agosto de 1927, p. 10 - “Trata-se da fundação de uma asso- já era consenso, após as palestras de Agache os
ciação de urbanismo”.

16. O Jornal. Rio de Janeiro: edição 2753, 24 de novembro 17. O Jornal. Rio de Janeiro: edição 2775, 20 de dezembro
de 1927, p. 3 - “Associação Brasileira de Urbanismo”. de 1927, p. 20 - “Associação Brasileira de Urbanismo”.
EIXO TEMÁTICO 1 técnicos entram em polvorosa. Em 05 de agosto
de 1927, é publicado no Correio da Manhã um abai-
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO xo assinado ao prefeito solicitando a constituição
de “comissão com o sr. Agache ou composta só
de profissionais brasileiros, destinada a elaborar
o plano geral da cidade do Rio de Janeiro” 18. Entre
os signatários, destacam-se Mattos Pimenta,
Nestor Figueiredo, Ângelo Bruhns, Cortez, Godoy,
Saboya, Marianno Filho e Henrique Vasconcelos.

Já em 20 de agosto de 1927, é publicado no Correio


da Manhã uma carta ao prefeito solicitando uma
comissão nos mesmos termos, mas dessa vez de
autoria do Rotary Club, visando “ser a capital do
Brasil de amanhã, do mais grandioso e nobre país
do futuro” 19. Mattos Pimenta reforçaria o pedido
posteriormente ao escrever artigo para mesmo
jornal em 25 de agosto de 1927, apontando para
a necessidade de um plano em vez de obras sem
ordem nem objetivo, sugerindo naturalmente o
nome de Agache para a confecção do plano, já
que fora contratado para dar palestras sobre o
assunto20.

Diante da comoção em que se encontrava tan-


to os círculos técnicos da prefeitura quanto as
associações e clubes, em 30 de agosto de 1927
Prado Júnior formaliza através de mensagem
ao Conselho Municipal a intenção de convidar
Agache para elaborar um projeto para a cidade,
solicitando dessa forma a liberação de verba para
a contratação do professor francês, tendo em
vista o “interesse que despertou a palavra [...]
do conferencista, que conseguiu chamar para
o assunto não só a atenção da opinião pública,
como também a de algumas administrações es-
taduais” 21. Também foi solicitada a atualização da
Planta Cadastral da capital através de fotografias
aéreas, um método até então inédito no Brasil
(PEREIRA; M, 1996). O pedido foi aprovado pela
Câmara em novembro de 1927, e a equipe formada
foi a seguinte (SILVA, L. 1996):

18. Edição 9986, p. 10: “O Plano de Remodelação do Rio de


Janeiro”.

19. Edição 9999, p. 2: “Rotary Club e a Remodelação do Rio


de Janeiro”.

20. Edição 10003, 25 de agosto de 1927, p. 2 -”O Plano de


16º SHCU Remodelação do Rio de Janeiro”.
30 anos . Atualização Crítica
21. Correio da Manhã. Rio de Janeiro: edição 10008, 31 de
596 agosto de 1927, p. 5 - “Depois da visita do Sr. Alfredo Agache”.
Agache - arquiteto e supervisor; Nesse ínterim no qual o plano era desenvolvi-
do, um evento que ocorria em paralelo seria um
E. Groer e W. Palanchon – questões e dur- ponto de desgaste entre o urbanista francês e o
banismo; corpo técnico nacional: a construção do Edifício
A Noite, de 22 andares, completada em 1929, que
A. Duffieux – problemas de saneamento;
suscitou uma série de discussões sobre a conve-
niência da edificação de arranha céus na cidade,
Arnaldo Gladosch – instalações industriais;
nas quais Agache, enquanto uma referência no
D. Albuquerque, Reidy, Santos Maia, M. meio acadêmico, teve sua opinião consultada. Se
Barroso, H. Pelagion e Atílio Correa Lima por um lado os técnicos da Associação Brasileira
– auxiliares. de Urbanismo, muitos dos quais eram também
membros do Instituto Central de Arquitetos, que
Finalmente, em 08 de fevereiro de 1928 foi as- foi contra a vinda de Agache, mostravam-se cau-
sinado em Paris o contrato para a execução do telosos em relação aos edifícios de maior porte,
plano, e Agache voltaria ao Brasil em abril para levantando uma série de questionamentos de
levar a cabo os estudos22. ordem estética - deveria-se construir de forma
a potencializar sua monumentalidade - e de or-
dem prática - sobrecarregamento do sistema
de esgoto, baixa salubridade25 -, Agache adota
DESENVOLVIMENTO, ENTREGA DO PLANO E O PÚBLICO discurso conciliador em relação ao assunto. Em
entrevista ao O Paiz, realizada especialmente para
Em 03 de maio de 1928, Agache retorna ao Rio de tratar sobre o tema26, o professor comenta que,
Janeiro, dessa vez para coordenar do plano de re- sendo um bom projeto de arquitetura e estando de
modelação da cidade. Ao chegar, foi recebido por acordo com os limites de infraestrutura impostos
uma comitiva formada pelo prefeito Prado Júnior, pelo entorno, havendo largas avenidas, não via
representantes da Escola Politécnica, da Escola problema algum. Afirma ainda ter reservado em
Nacional de Belas Artes, da Associação Brasileira seu plano uma área para eles, onde se encaixariam
de Urbanistas e do Clube de Esperanto do Brasil23. de forma harmoniosa27. É interessante notar ainda
Em entrevista ao Correio da Manhã24, explicou que que, ironicamente, a matéria de primeira página
já vinha elaborando um esboço de projeto no seu é ilustrada com uma caricatura do urbanista e
escritório em Paris junto com bolsistas da ENBA, um croqui do Plan Voisin, de Le Corbusier, que
dentre eles Attilio Correa Lima, e que de lá havia iniciaria no Rio uma campanha contra o próprio
trazido duas maquetes de apoio para os estudos. Agache, que eventualmente defendeu princípios
Porém, mesmo antes do retorno do urbanista ao diametralmente opostos aos de Agache durante
Brasil, já circulavam notícias sobre a confecção a consultoria para o projeto da sede do Ministério
do plano. Em coluna do Correio da Manhã em 08 da Saúde e da Educação (CAVALCANTI, 2006).
de dezembro de 1927, Benevenuto Berna expres-
sa sua indignação ao saber que Agache já havia Se durante o ciclo de palestras de 1927 Agache
começado a desenvolver suas propostas para mostrou-se disposto a discutir várias questões
a o Rio estando baseado na França, e apelava relacionadas a Urbanismo, o mesmo não acon-
para que a Associação Brasileira de Urbanismo teceu no início do desenvolvimento do Plano. Na
pressionasse pelo fortalecimento da atuação de metade final no ano de 1928, iniciaram-se as co-
profissionais brasileiros. branças oriundas da insatisfação do público, o
qual a essa altura ainda não conhecia o Plano, que

22. Correio da Manhã. Rio de Janeiro: edição 10146, 08 de


fevereiro de 1928, p. 1 - “Para embellezar do Rio e gastar 25. O Jornal. Rio de Janeiro: edição 2965, 28 de julho de
empréstimo”. 1928, p. 18 - “Uma zona central limitada para a construcção
de arranha-céos”.
23. Correio da Manhã. Rio de Janeiro: edição 10220, 06
de maio de 1928, p. 2 - “Voltou hontem ao Rio o professor 26. O Paiz. Rio de Janeiro: edições 16059 e 16060, 08 e 09
Agache”. de outubro de 1928, p. 1 - “O que o Sr. Agache disse ao ‘Paiz””.

24. Ibidem. 27. Trata-se da Praça do Castelo.


EIXO TEMÁTICO 1 não havia sido divulgado, e se queixava da falta de
transparência do processo. Tais queixas eram no
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO mínimo pertinentes, uma vez que em 26 de junho
de 1928 Prado Júnior homologou o Decreto 2.830,
que revogou o plano vigente até então e aprovou
um novo plano de arruamento para o Castelo sem
dar maiores informações sobre seus detalhes;
desenhos ilustrativos sobre o Decreto só seriam
disponibilizados ao grande público dois meses
depois28. Tratava-se do Projeto de Alinhamento
1.791, modificado em 2 de outubro do mesmo ano
pelo PAA nº 1.805, o qual estabeleceu o desenho
da ocupação da área de acordo com o que vinha
sendo elaborado no atelier de Agache, apresen-
tando configuração quase idêntica ao que consta
na versão final do Plano. O episódio demonstra
que entre o urbanista e a prefeitura vinham sido
realizadas tratativas longe dos holofotes.

Figura 1: Agache explicando o Plano ao presidente e sua


comitiva. O Paiz, 1928.

Outro agravante da situação foram os indícios


de que o urbanista já teria disponibilizado alguns
dados do seu projeto na França. Em 03 de outubro
de 1928, por exemplo, o jornal O Paiz (edição 16054,
pág. 8) divulgou uma nota informando que o pe-
riódico francês Gallois havia publicado um artigo
tecendo vários elogios ao plano em elaboração
pelo professor francês.

Diante da falta de informações, muitos o acusa-


vam de “não expor os seus projetos ao público
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
28. Correio da Manhã. Rio de Janeiro: edição 10307, 14 de
598 outubro de 1928, p. 1 - “O Rio de Janeiro Futuro”.
que, por esse motivo, fica a ver navios, na mais
completa ignorância sobre as suas intenções
em matéria de Urbanismo” 29, ao que ele retru-
ca ironicamente, desdenhando: “Que público?...
Será questão dos engraxates ou dos condutores
de auto - ônibus?”, demonstrando um espírito
colonizador e também desprezo de classe que
permanece até hoje em vários urbanistas. Em
compensação, possivelmente para amenizar a
má impressão que a declaração provavelmente
levantou, quatro dias após essa entrevista foi
publicado no Jornal O Paiz na edição 16093 a pri-
meira divulgação oficial do plano, com ênfase no
arruamento previsto para a região do Castelo e
sua entrada monumental. Na capa, percebe-se
o esforço de apresentar um Agache solícito, dis-
posto a explanar o projeto (figura 1).

Figuras 2 e 3: à esquerda, charge “Na Enxurrada”, relativa


às inundações na cidade30; à direita, ironia sobre o traçado
de uma das vias propostas pelo Plano31. O Malho, 1929.

Ainda assim, apenas em 1929 o projeto seria divul-


gado de forma intensiva pelos meios de comuni-
cação. Em 25 de janeiro, Agache, entre constantes
viagens entre a França e o Brasil, realizou palestra
em Paris na qual discorreu sobre a perspectiva
de desenvolvimento para a capital do Brasil para
um período de 20 anos a partir das diretrizes que
havia estabelecido32. Durante todo o ano, o Correio
da Manhã publica uma série de matérias acerca
das propostas de Agache, envolvendo não só a

30. “AGACHE - Il faut collocarrr après/Aux cotés dessa canôa/


que vae por ahi além,/ Dangereuse como é,/Plangeant por
ahi atôa/Dois para lama também”.

31. “PRADO JÚNIOR - O projecto da Prefeitura era uma linha


recta. Mas eu prefiro a linha curva de Agache. JECA -
Deus nosso Sinhor também é assim: faz o direto por linhas
tortas...”
29. O Jornal. Rio de Janeiro: edição 16089, 07 de novembro
de 1928, p. 1 - “As declarações do Sr. Agache sobre o Plano 32. O Paiz. Rio de Janeiro: edição16176, 2 de fevereiro de
Geral da Remodelação da Cidade”. 1929, p.3 – “Rio – Cidade de Turistas”.
EIXO TEMÁTICO 1 área central, mas também a Zona Sul, Zona Norte
e outros bairros. Nesse período, verificam-se
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO evidências de que o plano teve projeção interna-
cional, já que, além das explanações e publicações
em Paris, a remodelação foi “acompanhada, com
grande interesse, nos centros latinos” 33, sendo
divulgado na Argentina pelo jornal La Nación.
Sua proposta também apareceria na cadastral
da Cidade de 1929, encomendada pela Prefeitura.

Figura 4: Agache com o Plano do Castelo ao fundo e ma-


quete volumétrica em primeiro plano. L’Architecture d’Au-
jourd’hui, 1930.

De uma forma geral, a divulgação do plano gerou


grande mobilização. As matérias do Correio da
Manhã e do O Paiz inicialmente aclamaram as
soluções dadas pelo urbanista francês, destacan-
do-lhes seu caráter global, estético e funcional. No
entanto, também as críticas não foram poucas nos
círculos técnicos: em junho de 1929, foi organiza-
do um ciclo de palestras no Clube de Engenharia
no sentido de refutar algumas soluções técnicas
contidas na proposta34; já em 18 de julho foi publi-
cada na edição 10597 no Correio da Manhã crítica
à mediocridade das proposições para o Porto do
Rio, que recentemente havia passado por refor-
mas. Já a revista O Malho gerou algumas charges
envolvendo a figura do urbanista (figuras 2 e 3).

Dentre as críticas, duas se destacam de forma


mais específica: a demolição das favelas e a acu-
sação de plágio.

33. Correio da Manhã. Rio de Janeiro: edição 16170, 27 de


16º SHCU janeiro de 1929, p. 6 - “A Remodelação da Capital do Brasil”.
30 anos . Atualização Crítica
34. Correio da Manhã. Rio de Janeiro: edição 10568, 14 de
600 junho de 1929, p. 5 - “O Remodelamento da Cidade”.
Como já mencionado, a imagem de Agache estava a Baía de Guanabara [...] 38
associada a técnicos de viés higienista com dis-
cursos bastante violentos, como Mattos Pimenta. Já a acusação de plágio surge em 24 de novembro
Isso, aliado às notícias de que Agache havia se de 1928 na edição 49 da Revista da Semana. Na
posicionado pela demolição das favelas, propiciou matéria, destaca-se que um dos pontos chaves
já no final de 1927 o surgimento de sátiras, como da proposta de Agache, a Porta do Brasil, é extre-
a peça Pinta, Pinta, Melindrosa, “de uma mulata mamente parecida com um projeto do escritório
que se afrancesa, para não destoar dos planos Cortez e Bruhns. São levantadas ainda várias se-
urbanistas do professor Agache, que, como se melhanças entre os arruamentos pretendidos.
sabe, quer aparisianar a Favella…” 35. No mesmo Agache rebate a acusação em 02 de dezembro
ano, foram lançadas duas músicas que se popu- na edição 16114 do O Paiz, assinalando de forma
larizaram no carnaval do ano seguinte: A Favela irônica que o próprio plano de Cortez e Bruhns
Vai Abaixo, de Sinhô (J. B. Silva), e Seu Agache, apresentava soluções perigosamente próximas às
composta por Ari Kerner e interpretada por Sylvio propostas pelo Plano de Viret e Marmorat em 1919,
Salema36.  além de apontar divergências entre o desenho
publicado na matéria da Revista da Semana em
Em 1928, no carnaval houve até alegoria envol- 1928 e em 1921. As discussões continuaram nos
vendo as questões do Plano: periódicos, (Revista da Semana, 08 de dezembro,
ed. 51, pág. 33; O Paiz, 09 de dezembro, ed. 16121,
Monumental crítica feita em longarinas. Os
pág. 1; Revista da Semana, 15 de dezembro, ed. 52,
casebres que, por sua bizarria, fazem lem-
pág. 32-33; Revista da Semana, 22 de dezembro,
brar qualquer tela futurista, destacam-se
pág. 38) e chegou mesmo aos jornais de Lisboa39. 
ao fundo do carro. No primeiro plano, os ha-
bitantes desolados comentam a ingratidão Agache sempre sustentou que jamais plagiou o
dos homens. Oferecem uma suculenta fei- projeto de 1921. Na época, existia uma série de
joada ao urbanista Agache e em troca este elementos que eram comuns ao repertório das
aconselha a destruição de seus “palácios”37. intervenções urbanas na época tanto na França
quanto no Rio (FONSECA, 2019), havendo mesmo
Ao longo do mesmo ano, a revista O Malho criticou
soluções que aparecem tanto em Cortez e Bruhns
a iniciativa de colocar abaixo as favelas, publican-
quanto em planos anteriores, como aponta Aga-
do dessa forma uma série que discorria acerca
che em sua réplica. Houve um esforço explícito
da história dos locais em risco (ANDRÉ, 1928). A
no sentido de reunir material de referência para
mesma revista comenta em 1929:
o urbanista francês, que consultou “63 traba-
[...] o Sr. Agache [...] acha esta Sebastia- lhos, livros, relatórios e revistas sobre todos os
nópolis uma cidade irregular, defeituosa e assuntos da obra, além de [...] analisados cinco
indisciplinada, precisando, para endireitá- projetos, anteriores ao estudo do projeto” (ALBU-
-la, destruí-la inteiramente e reconstruí-la QUERQUE, 1959, p.39) e, portanto, é possível que
sob sua orientação, é claro… várias diretrizes que vinham sendo aplicadas em
outros projetos se repetissem em Agache, seja
Talvez seja necessário, até, derrubar o Pão por afinidade projetual, seja por conveniência.
de Açúcar e o Corcovado, os morros da Fa- Apesar disso, aparentemente o urbanista jamais
vela e de Santa Teresa, bem como aterrar deu crédito de forma autoral aos técnicos cujos
projetos foram consultados, de modo que, ape-
35. Correio da Manhã. Rio de Janeiro: edição 10013, 06 de
sar de seus argumentos, o projeto final carrega
setembro de 1927, p. 6. apenas seu nome.

36. Disponível em: <http://joselinogrunewald.com/musi-


ca.php?id=147> e em <https://jornalggn.com.br/musica/ 38. O Malho. Rio de Janeiro: edição 1376, 26 de janeiro de
seu-agache-marcha-de-ari-kerner-por-sylvio-salema/>, 1929 – “Os vagabundos da cidade”
ambos acessados em 22 de setembro de 2019.
39. Correio da Manhã. Rio de Janeiro: edição 10439, 15 de
37. O Paiz. Rio de Janeiro: edição 15828-15829, 20-21 de janeiro de 1929, p. 1 – “O professor Agache accusado de
fevereiro de 1928, p. 9. plagio!”.
EIXO TEMÁTICO 1 Nesse contexto de recepção mista, aconteceu
no Rio entre 19 e 30 de junho de 1930 o IV Con-
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO gresso Pan Americano de Arquitetos, no qual
Agache apresentou a exposição “A remodelação
da cidade”, contando com plantas, maquetes e
desenhos40; fez ainda conferência sobre o plano
em 27 de junho do mesmo ano no Theatro Muni-
cipal41. O Paiz teceu vários elogios ao plano, como
já vinha fazendo, sobretudo na edição 16683; já
os associados ao Instituto Central de Arquitetos
receberam as propostas de forma mais negativa,
especialmente Marianno Filho, que destacou o
fato de que Agache, o qual “trabalha para os jor-
nais”, jamais havia se manifestado no sentido de
tentar apoiar a frágil situação dos arquitetos no
Brasil42. Em outro artigo, chamado “Urbanismo
Scenographico”43, Marianno assume sua respon-
sabilidade ao apoiar a campanha de contratação
de Agache em 1927, condenando, no entanto, os
aspectos de sua remodelação, destacando os
“cubos de cimento armado” e o pouco caso que seu
desenho demonstra com os morros que compõem
a silhueta da cidade, para os quais propunham-se
arrasamentos.

O Congresso marcou a entrega oficial do Plano à


Prefeitura do Rio. Após o evento, já haviam sido
leiloados os terrenos vazios da área do Castelo44
e Agache retornou à França, onde foi publicada
a versão integral do projeto em Francês e em
Português no final do ano de 1930.

CONCLUSÃO

O ciclo de palestras é um dos impactos mais po-


tentes causados pela contratação de Agache, e
as discussões geradas em torno delas, que se
estendem por um período amplo e intenso, fazem

40. O Paiz. Rio de Janeiro: edição 16681 - 16682, p. 2 - “A


remodelação da cidade”.

41. O Paiz. Rio de Janeiro: edição 6682, 26 de junho de 1930,


p. 2 - “O plano de melhoramentos do Rio de Janeiro”.

42. O Jornal. Rio de Janeiro: edição 3527, 15 de maio de


1930, p. 4 - “O homem que Deus esqueceu”.

16º SHCU 43. O Jornal. Rio de Janeiro: edição 3533, 22 de maio de


30 anos . Atualização Crítica 1930, p. 2 - “Urbanismo Scenographico”.

602 44. O Paiz. Rio de Janeiro: ed. 16649, 22 de maio de 1930, p. 2.


parte das permanências da obra do urbanista REFERÊNCIAS
francês no Brasil. A historiografia habitualmente
menciona de forma vaga o Plano de Remodelação AGACHE, Alfred. Cidade do Rio de Janeiro:
de 1930 como uma grande influência e referencial, Extensão, Remodelação e Embellezamento. 1
mas diante do que vimos, acredito que um ponto ed. Paris: Foyer Brésilien, 1930. Disponível em:
fundamental da vinda do profissional ao país foi http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digi-
o trabalho pedagógico e didático em relação ao tal/div_ obrasraras/or1355316/or1355316.pdf;
Urbanismo. As circunstâncias se alinharam de tal acesso em 04/08/2018.
forma que Agache é colocado pela elite técnica
em papel protagonista na obtenção da atenção ALBUQUERQUE Filho, Luiz Rodolpho. “A obra do
do público e indica o método de elaboração de urbanista Agache: sua atuação no Brasil”. Revista
um projeto urbano, cujo formato não se diferen- do Clube de Engenharia. Rio de Janeiro: n. 276,
cia muito dos atuais planos diretores; mais que agosto, 1959, pp. 34-42.
isso, sublinha reiteradamente a importância da
formação de uma disciplina específica que aborde ALMEIDA, Daniel Valter de. Plano Agache: a cidade
a questão da regulação e desenvolvimento das do Rio de Janeiro como palco do 1º plano diretor
cidades. Suas explanações expandem o horizonte do país e a consolidação do Urbanismo no Brasil.
das intervenções, dando-lhes um viés generalista, In: Encontro de Geógrafos da América Latina, 10.,
e chamam a atenção para a legislação enquanto 2005, São Paulo. Anais... São Paulo: USP, Departa-
instrumento urbanístico. O plano propriamente mento de Geografia,2005. Disponível em: http://ob-
dito, naturalmente, foi paradigmático, mas seu servatoriogeograficoamericalatina.org.mx/egal10/
alcance foi potencializado pelas intensas discus- Geografiasocioeconomica/Geografiaurbana/02.
sões, frequentemente carregadas de preconceito, pdf ; acesso em 26/10/2019.
que ocorreram nesse período, as quais mudaram
ANDRÉ, Tito. “A Queda da Favela”. O Malho. Rio de
a forma de se pensar projeto urbano no Rio de
Janeiro: edição 1346, 30 de junho de 1928, pp. 54-
Janeiro.
55.
De forma semelhante, tal qual as Conferências de
CAVALCANTI, Lauro. Moderno e Brasileiro. Rio de
1927, a elaboração do Plano foi um acontecimento
Janeiro: Editora Zahar, 2006.
relevante não apenas nos círculos técnicos, mas
também para a sociedade civil. O projeto, mesmo FONSECA, Thiago. Permanências do Plano Aga-
antes de ser oficialmente revelado, já era dis- che: discussão, formação e prática da disciplina de
cutido, especulado e dissecado nas rádios, nas Urbanismo no Rio de Janeiro (1927-1945). Mono-
revistas, nos jornais, em palestras e em exposi- grafia (graduação em Arquitetura e Urbanismo) –
ções; por fim, antes mesmo de ser publicado, já Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2019.
era célebre. Como defendeu um periódico alguns
anos depois, GUIMARÃES, Francisco. “O Remodelamento do Rio
de Janeiro”. Notícias Rotárias. Rio de Janeiro: Ro-
Toda gente, sem excepção, depois que o urbanista tary Club, Número 49, novembro, 1926, pp. 4-5.
francez por aqui andou, passou a interessar-se
pelos problemas da cidade. MOREIRA, Fernando Diniz. Alfred Agache e a nas-
cente ciência do Urbanismo. In: ENANPARQ, 4.,
E não sei de nada que, nos últimos tempos, tenha 2016, Porto Alegre. Anais... Porto Alegre: PRO-
conseguido apaixonar tão vivamente os espiritos PAR/UFRGS, 2016. Disponível em: https://www.
no Rio, como os assumptos debatidos pelo sr. anparq.org.br/dvd-enanparq-4/SESSAO%2036/
Agache.45 S36-03-MOREIRA,%20F.pdf acesso em 26/10/2019.

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pole moderna: os planos de Agache e Le Corbusier
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2014. Disponível em: <http://docplayer.com.br/
14051394-I-plano-agache-um-projeto-de-orde-
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16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

604
605
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
EIXO TEMÁTICO 1 RESUMO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Este artigo discute perspectivas teóricas para
a crítica de projetos de infraestrutura de mobi-
vídeo-pôster lidade, dentro de uma cenário contemporâneo.
São destacados projetos de estações e termi-
nais do metrô, por serem espaços que com-
INFRAESTRUTURAS DE preendem um uso público, cotidiano, comum e
pedestre. Assim, propõe-se pensar critérios de
MOBILIDADE: REFLEXÕES análise que consideram sua dimensão urbana,
cultural e material. Em uma escala intermedi-
TEÓRICAS PARA UMA CRÍTICA ária entre o projeto arquitetônico e urbano, os
equipamentos de mobilidade podem constituir
DE PROJETO URBANO uma espacialidade pública mais além de sua
função de passagem e propiciar distintas for-
mas de integração ao espaço urbano entorno.
MOBILITY INFRASCTRUCTURES: CONSIDERATIONS ON
Além disso, são projetos que chamam a atenção
THEORY REGARDING AN URBAN DESIGN CRITIC
para a relação entre arquitetura e metrópole,
atravessando escalas de intervenção e planeja-
INFRAESTRUCTURAS DE MOVILIDAD: REFLEXIONES mento. Essas questões são discutidas a partir
TEORICAS PARA UNA CRÍTICA DE PROYECTO URBANO da perspectiva do arquitetos espanhóis Manoel
de Sola-Morales e Josep Maria Montaner, entre
GONÇALVES, Luísa outros, como forma de ampliar as chaves de in-
terpretação e análise da arquitetura e urbanis-
Doutora; FAUUSP
mo contemporâneos.
luisa.agtg@gmail.com

PROJETO URBANO INFRAESTRUTURA METRÔ


TEORIA DA ARQUITETURA TEORIA DO URBANISMO

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

606
ABSTRACT RESUMEN

This article discusses theoretical perspectives Este artículo analiza las perspectivas teóricas
for criticizing mobility infrastructure projects, para criticar los proyectos de infraestructura de
within a contemporary setting. Projects of metro movilidad, en un entorno contemporáneo. Se des-
stations and terminals are highlighted, as they tacan los proyectos de estaciones y terminales
are spaces that comprise a public, daily, common de metro, por ser espacios que comprenden un
and pedestrian use. Thus, it is proposed to think uso público, cotidiano, común y peatonal. Así, se
about analysis criteria that consider its urban, propone pensar en criterios de análisis que con-
cultural and material dimension. On an interme- sideren su dimensión urbana, cultural y material.
diate scale between architectural and urban de- En una escala intermedia entre el diseño arqui-
sign, mobility equipment can constitute a public tectónico y urbano, los equipos de movilidad pue-
space beyond its function of passage and provide den constituir un espacio público más allá de su
different forms of integration with the surroun- función de paso y proporcionar diferentes formas
ding urban space. In addition, they are projects de integración con el espacio urbano circundan-
that call attention to the relationship between te. Además, son proyectos que llaman la atención
architecture and metropolis, crossing scales of sobre la relación entre arquitectura y metrópoli,
intervention and planning. These issues are dis- cruzando escalas de intervención y planificación.
cussed from the perspective of Spanish archi- Estos temas se discuten desde la perspectiva de
tects Manoel de Sola-Morales and Josep Maria los arquitectos españoles Manoel de Sola-Mo-
Montaner, among others, as a way of expanding rales y Josep Maria Montaner, entre otros, como
the keys to the interpretation and analysis of con- una forma de ampliar las claves de interpretación
temporary architecture and urbanism. y análisis de la arquitectura y el urbanismo con-
temporáneos.

URBAN PROJECTS INFRASTRUCTURE SUBWAY


ARCHITECTURE THEORY THEORY OF URBANISM PROYECTO URBANO INFRAESTRUCTURA METRO
TEORÍA DE LA ARQUITECTURA TEORÍA DEL URBANISMO
EIXO TEMÁTICO 1 INTRODUÇÃO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Às vezes, reflete-se de forma simplista
quando se acredita que tudo é resolvido
dizendo, por exemplo, que pensar em
vídeo-pôster
infraestruturas já implica em levar em
consideração o entorno; às vezes se diz, por

INFRAESTRUTURAS DE exemplo, que as infraestruturas devem ter


em conta o entorno, quando talvez o entorno
MOBILIDADE: REFLEXÕES da infraestrutura seja muitas vezes mais
importante e mais difícil do que a própria
TEÓRICAS PARA UMA CRÍTICA infraestrutura (SOLÀ-MORALES, 2008, p.
156, tradução nossa)
DE PROJETO URBANO Aqui o projetista tem uma contradição difícil
de resolver: traçar infraestruturas que a
MOBILITY INFRASCTRUCTURES: CONSIDERATIONS ON princípio podem ser claramente extraur-
THEORY REGARDING AN URBAN DESIGN CRITIC banas, sem identidade, mas que muito rá-
pido, na provável expansão das cidades, se
INFRAESTRUCTURAS DE MOVILIDAD: REFLEXIONES converterão automaticamente em eixos ex-
TEORICAS PARA UNA CRÍTICA DE PROYECTO URBANO pressivos de um sistema urbano que ainda
não se prevê. Isso vimos em todas as nossas
cidades: a estrada se converte em avenida,
os trilhos em um passeio ajardinado, mas o
esquema do traçado segue sendo suburbial.
Poderíamos dizer que a realidade triste-
mente suburbana de muitos fragmentos
das áreas metropolitanas se deve ao mal
traçado das infraestruturas que deixaram
uma marca inaudível na paisagem e que,
sem responder a uma estrutura urbanística,
se reutilizaram com pretensões urbanas
(BOHIGAS, 2011, p. 14, tradução nossa).

O tema da arquitetura da infraestrutura articula


distintas disciplinas, o que se apresenta como
um desafio metodológico. Este artigo procura
mapear marcos teóricos que contribuem para
pensar o projeto no campo da infraestrutura de
mobilidade partindo de pesquisas a respeito das
redes e projetos do metrô, partindo do caso da
cidade de São Paulo. A mobilidade urbana é uma
área multidisciplinar e por isso, quando pensamos
na crítica arquitetônico-urbana desses projetos,
mobilizamos questões e conceito do campo da
história e teoria da arquitetura e do urbanismo e
também do planejamento urbano.

Nesse sentido, destacamos a lacuna presente


16º SHCU na bibliografia brasileira a respeito do tema das
30 anos . Atualização Crítica
infraestruturas de mobilidade urbana. A maioria
608 das publicações são de pesquisas de dissertações
de Mestrado e de teses de Doutorado, além de diário, ou seja, que participam do movimento co-
registros importantes do próprio Metrô no caso tidiano pela cidade, como as estações de metrô.
de São Paulo em publicações oficiais a respeito Nesses casos, os espaços reconfiguram-se de
do planejamento de linhas e projeto de estações. não lugares a lugares, criando uma tensão entre
Portanto, os artigos e livros aqui utilizados são de as condições de passagem e de permanência,
origem estrangeira, como os espanhóis Manoel e reconfiguram a conexão do habitante com o
de Solà-Morales e Josep Maria Montaner, dentre território. Os limites pouco claros de certos tipos
outros. Além disso, mobilizamos teorias e análises de construção, como o metrô, direcionam essa
de campos análogos na produção das cidades, interpretação para a criação de novas categorias
como a perspectiva de uma “arquitetura metro- de análise crítica.
politana” proposta pelos arquitetos de Lassance,
Varella e Capillé (2013) sobre o Rio de Janeiro. Na teoria arquitetônica contemporânea, alguns
trabalhos tentam mitigar essa distância simbólica
Inicialmente, tomamos aqui dois critérios básicos entre o objeto e seu entorno, oferecendo algumas
para análise: o aspecto desses projetos que os chaves interpretativas importantes. Em diversos
deslocam da categoria “objeto arquitetônico”, por países do mundo, interpretações da produção
serem muitas vezes subterrâneos ou interligados arquitetônica em relação contraposta ao objeto
de distintas formas ao seu entorno; e a questão isolado ganha novos termos, seja para reinterpre-
da escala, que passa pelas dimensões do projeto tar a história da arquitetura ou visando a atividade
mas também por sua área de abrangência e pos- projetual.
sibilidades de uso.
Alguns desses termos mais difundidos discutem o
espaço construído de duas formas: em um único
projeto, como conexão do edifício ao seu entorno,
PARA ALÉM DO OBJETO ARQUITETÔNICO ou em um conjunto de edifícios (que pode ser
parte de um mesmo projeto ou não), abrangendo
A análise de edificações construídas para aco- a noção de sistema e sem perder de vista a es-
modar o fluxo das estações e entorno carrega o cala humana. O conceito de “sistema” é discutido
desafio da leitura arquitetônica que ultrapassa o por Josep Maria Montaner como resposta à sua
caráter de “objeto”, por um lado, e que ultrapassa a própria produção crítica que focava no objeto
ideia de “não-lugar” atribuída aos espaços de pas- isolado. Também na Espanha, Manuel de Solà-Mo-
sagem por Marc Augé (1994). O autor, ao analisar rales propõe para seus projetos a denominação
estações de transporte e espaços que têm como de “coisas urbanas”, e, no Japão, Kengo Kuma
tema principal o fluxo de passageiros, cunhou o defende o “anti-objeto”. Esses são alguns dos
conceito de “não lugar” como “tanto instalações exemplos internacionais.
necessárias à circulação acelerada das pessoas
e bens (vias expressas, trevos rodoviários, aero- Em Anti-Object (anti-objeto), Kuma (2008) adota
portos) quanto os próprios meios de transporte esse termo para criticar determinada concepção
ou os grandes centros comerciais” (AUGÈ, 1994, moderna de edificações destacadas de seu en-
p. 36). Esse conceito é duplamente importante torno. O autor destaca a representação do projeto
aqui: por abranger a categoria de espaços de como uma questão central nessa análise, que
fluxos e trânsito, mas também por versar sobre recupera alguns trabalhos de Bruno Taut de quali-
os desdobramentos da noção de lugar no âmbito dades dificilmente representáveis nas fotografias
das relações humanas. da época (início do século XX) e nos desenhos
convencionais. Em um embate entre matéria e
Em sua definição Augè (1994, p. 54) explica que percepção, Kuma descreve projetos que, aves-
os não lugares abrigam a circulação de bens e sos à delimitação tradicional do “objeto”, criaram
pessoas e rompem a conexão do habitante com formas distintas de pensar arquitetura, desta-
o território (particular à categoria de “lugar”, a cando a casa Hyuga, em Atami, Japão (Figura
que o autor vai se referir como “lugar antropológi- 01), e a intervenção feita por Taut em um cômodo
co”). No entanto, esse conceito não é diretamente subterrâneo. O autor destaca a relação entre os
aplicável no caso de terminais e estações de uso elementos como a principal chave compositiva
EIXO TEMÁTICO 1 do que vai finalmente chamar de “anti-objeto”.
Essa relação permeia desde o âmbito do volume
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO exterior às edificações, sua “forma”, até o limite
entre interior e exterior, além dos dispositivos
de transposição de níveis. Cores, níveis, fluxos
e materialidades que são invisíveis às plantas,
cortes, fachadas e fotografias em preto e branco,
tornaram ainda mais difíceis a divulgação e análise
desse tipo de projeto.

Figura 01: Corte da casa Hyuga, mostrando a relação espa-


cial entre as estruturas superior e inferior. Fonte: Scrivano
e Capitanio (2018, p. 56).

Também as estações de metrô apresentam a


dificuldade da representação: sendo parte sub-
terrânea e parte sob o nível da rua (em alguns
casos), seu limite físico é invisibilizado. Os “braços”
que conectam os acessos, quando pontuais, aos
saguões de distribuição, são espaços de passa-
gem, mas muitas vezes com marcada presença
na paisagem urbana (GONÇALVES, 2015). As es-
tações, portanto, incorporam o espaço interior
e desenho urbano em um mesmo projeto. Para o
teórico franco-armeno Èdouard Utudjian, a disci-
plina do urbanismo não deve ser pensada em duas
dimensões, mas em três, considerando também
toda a potencialidade dos espaços subterrâne-
os (UTUDJIAN, 1952). Utudjian fundou em Paris,
em 1937, o Comitê Internacional Permanente de
Tecnologias e Planejamento Subterrâneo, para
estudar as possibilidades de ocupação do subter-
râneo das cidades. Em 1952, publicou um estudo
extenso em que cunhou a expressão “urbanismo
subterrâneo” (Figura 02), analisando uma série
16º SHCU de aspectos técnicos e sociais dos subsolos, in-
30 anos . Atualização Crítica
cluindo estruturas, estudo dos solos, aspectos
610 arquitetônicos e também questões jurídicas.
xidade e de redes. Significa, portanto, dar
prioridade a uma busca pela revelação das
estruturas complexas nas escalas urbanas
e territoriais; reescrever a história da arqui-
tetura contemporânea a partir da ênfase
sobre os sistemas que superam a crise do
objeto; desenvolver, para a arquitetura, ur-
banismo e paisagismo, a relação essencial
que Luhman estabelece entre sistema e
entorno, isto é, analisar as capacidades de
cada sistema de estruturar-se e, ao mesmo
tempo, interagir com seu contexto (MON-
TANER, 2008, p. 11).

INFRAESTRUTURA COMO ARQUITETURA


No caso das estações de metrô, trem e mesmo
terminais intermodais, interessa particularmente
a forma como interagem com o seu contexto, pois
o projeto da mobilidade urbana é uma resposta
às condições do entorno desde seu início. A “for-
ma” interessa no sentido literal, dos contornos e
Figura 02  Revista “Le Monde souterrain” : cobertura do
volumes dos espaços edificados, mas também
n°61-62, out.-dec. 1950. Fonte: Archiwebture, <https://
como tipo de intervenção, número de acessos
archiwebture.citedelarchitecture.fr/fonds/FRAPN02_
UTUED#selection>. Acesso em 28 dez. 2017.  e alcance no entorno urbano. Montaner entende
que os sistemas podem referir-se a vários dos
aspectos que concernem a arquitetura, como fun-
cional, espacial, construtivo, formal e simbólico.
Se a interpretação do subterrâneo vence um “des- Para defini-los, recorre a diversos exemplos na
nível vertical” de construção da cidade, a nível do história da arquitetura, como os mat-buildings,
plano horizontal da rua e dos espaços urbanos clusters e megaobjetos, que de forma sucinta
é necessário um pensamento que avance em pode-se dizer que o projeto adota caminhos para
relação à crítica do objeto; para tal compete o transformar o entorno, seja prevendo a expansão
conceito de sistema. Em “Sistemas arquitetônicos do conjunto projetado, modificando a topografia
contemporâneos”, Josep Maria Montaner (2008) do entorno ou distribuindo elementos de forma a
apresenta o trabalho como uma atualização de sua criar novos percursos e ambientes internos. Sobre
publicação “As formas do século XX”, que se fixou o projeto do arquiteto holandês Rem Koolhaas
nos objetos singulares e isolados do Movimento para a intervenção urbana em Euralille, na França
Moderno e seus sucessores. O autor utiliza então (figura 03), Montaner ressalta que
o conceito de sistema tanto para rever projetos
modernos quanto para analisar projetos mais não se tratava de construir edifícios, mas de
contemporâneos, em ambos casos destacando prever processos, de projetar estratégias
as formas de composição do espaço público e a urbanas e criar sistemas de objetos. (...) A
relação entre construções que criam espaços e ideia de tomar os fluxos como condicionan-
sistemas. Com isso, reavalia não os objetos ar- tes espaciais comporta a ruptura da relação
quitetônicos em si, mas, como Kuma, a relação tradicional entre o interior do edifício e o
entre eles. Assim, estabelece como objetivos: exterior urbano. Cada parte pode ser lida
como um interior em relação a um sistema
Opor-se a todo reducionismo e mecanicis- maior, e, ao mesmo tempo, como o exterior
mo, tentar aproximar-se da ideia de comple- de uma estrutura menor; a lógica de todo o
EIXO TEMÁTICO 1 conjunto, este novo nó górdio de infraes-
truturas e edifícios, esta grande colagem
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO urbana, acaba se reproduzindo em cada
edifício (MONTANER, 2008, p. 160).

Figura 03:  Desenho do projeto Euralille. Fonte: site oficial


do OMA-Office for Metropolitan Architecture, <https://
oma.eu/projects/euralille>. Acesso em 15 set. 2020. 

Tais termos se aplicam tanto à rede quanto às es-


tações, porque uma estação não existe enquanto
espaço senão com um vínculo direto às outras
estações (a que se liga diretamente, ou da mes-
ma linha). Nesse sentido, a estação ramificada
enquanto objeto conecta o entorno urbano a um
mesmo interior a partir de distintos “exteriores”,
ampliando seu raio de “alcance” para além do ter-
reno ocupado pelo subterrâneo da estação.

Nesse sentido, a escala é um aspecto primordial


a ser considerado em estações contemporâneas,
principalmente as de conexão e/ou intermodais,
em relação à organização dos fluxos de passa-
gem e permanência. O projeto de algumas esta-
ções transforma o conceito de túnel adotado nas
estações de metrô mais antigas das principais
capitais europeias e tira proveito do subterrâneo
para conferir e garantir conforto aos espaços e
criar amplas zonas de transição entre o acesso à
estação e o acesso ao trem. A questão da escala
é também fundamental nos espaços interiores,
quando a monumentalidade do subterrâneo que
se abre ao exterior e os espaços de transição
criados aproximam a estação ao espaço público.  

16º SHCU Esta é uma das chaves para pensar a estação e


30 anos . Atualização Crítica
o terminal como tipos arquitetônicos indutores
612 de urbanidade. Entende-se urbanidade como
qualidade de determinado lugar que converge urbana, suturam descontinuidades e reforçam
distintos aspectos da vida urbana: múltiplas ati- linhas de transporte”. Para o projeto Operaplei,
vidades convivendo lado-a-lado, espaço público, na Antuérpia, Manuel de Sóla-Morales estruturou
convívio e encontro coletivo, ao mesmo tempo uma área do centro vizinha à Opera, integrando
em que apresenta uma paisagem urbana coe- espaços públicos na superfície e o subterrâneo,
rente com a escala do pedestre no tamanho das com estação de metrô e estacionamento, seus
quadras, das edificações, das calçadas etc., e em fluxos e acessos. Apresenta o projeto em cinco
sua legibilidade. Diversos autores vão reivindicar episódios: 1- Continuidade dos boulevares; 2- Poço
qualidades urbanas no projeto de espaços públi- de iluminação; 3- Nova porta da cidade; 4- a Ope-
cos e de projetos de cidade, como Jane Jacobs, ra; e 5- O estacionamento, e explica que “será o
Kevin Lynch e Bill Hilliar (AGUIAR, 2012). contato entre o nível subterrâneo e a superfície o
que estabelecerá, desde o princípio, sua máxima
Assim, as redes de infraestrutura vão dialogar com ambição”.
o projeto urbano em diversos momentos, desde o
planejamento territorial à criação de pontos no-
dais como agregadores de atividades e na confor-
mação de espaços públicos. Dentro do companhia
pública Metrô de São Paulo, o projeto funcional é o
momento em que essas relações se tornam mais
claras: o estudo preliminar das estações é a etapa
final de um longo planejamento que se baseia nos
dados de fluxo e demanda, e de percurso por todo
o território. A topografia influencia no percurso,
as interferências subterrâneas influenciam na
localização, o volume de circulação influencia na
implantação, e o projeto da estação nasce dessa
Figura 04: Operaplein, projeto de reestruturação urbana
confluência de dados sobre o movimento da rede, de Manuel de Solà-Morales. Fonte: site oficial do arqui-
e, como explicou Montaner (2008, p. 160), pratica- teto, <http://manueldesola-morales.com/proys/Opera-
mente “nenhum elemento é independente; cada plein_eng.htm>. Acesso em 15 set. 2020.
um deve ser interpretado em função dos demais
e das relações com os fluxos”.

O projeto de estações é também, nesse sentido, Com essas reflexões, destacamos algumas ca-
um “efeito que emerge do próprio campo”, dentro racterísticas dos sistemas de infraestruturas: sua
dos termos do conceito de campo do arquiteto abrangência pelo território; a forma como se dis-
Stan Allen (2013, p. 98) quando reinterpreta a rela- tribuem a partir de polos (e a importância desses
ção entre figura e fundo na cidade: “Se pensamos polos na articulação do território); a agregação de
a figura não como um objeto demarcado, lido so- atividades nesses polos; e a forma como articulam
bre um fundo estável, e sim como um efeito que escalas distintas. Podemos pensar no sistema de
infraestrutura urbana de circulação que o metrô
emerge do próprio campo – como momentos de
constitui, e nos equipamentos urbanos como
intensidade, picos ou vales dentro de um campo
as estações, que fazem essa conexão entre as
contínuo -, então é possível imaginar uma relação
escalas da infraestrutura urbana e a do bairro e
mais íntima entre figura e campo”.
da rua. Esses espaços de fluxos, que poderiam
Montaner (2008, p. 127) inclui em sua análise pro- ser apresentados ao uso público apenas em sua
jetos de Manuel de Solà-Morales, ressaltando tra- condição de canal, ganham complexidade e pro-
balhos que envolvem “nós” de mobilidade e fluxos piciam novos tipos de apropriação. É nas escalas
complexos: “O link é um dos patterns urbanos intermediárias que os objetos arquitetônicos se
básicos, e são, portanto, nós de grande densi- integram ao ambiente urbano, criando relações
dade que servem para costurar tecidos urbanos de continuidade.
limítrofes e reforçar fluxos em distintos níveis,
cruzamentos que introduzem uma nova seção
EIXO TEMÁTICO 1 DO PROJETO URBANO À METRÓPOLE
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Todo esse vocabulário que repensa o projeto con-
temporâneo está também em paralelo à ideia de
projeto urbano, mesmo que o termo não apareça
com tanta frequência. Para Manoel de Solà-Mo-
rales (1987), os prejuízos à urbanidade causados
pelo projeto urbano moderno (cristalizado na
Carta de Atenas) acarretaram uma descrença
generalizada1 no projeto de cidades.

É esse também o foco da crítica de Rem Koolhaas


em “O que aconteceu com o urbanismo?” (“Wha-
tever happened to urbanism?”): o abandono da
disciplina do urbanismo como atuação na produ-
ção do espaço urbano, deixado então às mãos da
“arquitetura”, por sua vez alienada da escala urba-
na e territorial. Para Koolhaas, “através de nossa
relação hipócrita com o poder – desdenhoso, mas
cobiçado – desmantelamos toda uma disciplina,
nos afastamos do operacional e condenamos
populações inteiras à impossibilidade de codifi-
car civilizações em seu território –, o assunto do
urbanismo” (1995, p2).

Koolhaas vai defender uma atuação urbanística


mais aberta, que visa irrigar o território mais do
que se preocupar com o arranjo de “objetos mais
ou menos permanentes”, ligada à noção de campo
e de processo, com destaque para o papel da
infraestrutura de dotar o território de potencia-
lidades, “intensificações e diversificações, ata-
lhos e redistribuições”. Também nesse sentido,
Solà-Morales recupera a importância do “Projeto
Urbano” no sentido de intervenção projetual na
cidade, destacando a interpretação do contexto
urbano como base do projeto.

Com isso, Solà-Morales estabelece cinco pontos


para nortear o Projeto Urbano: 1. Efeitos territo-
riais para além de sua área de atuação; 2. Caráter

1. “A decomposição das cidades europeias produzidas nos


últimos 40 anos lançou uma séria margem de culpa sobre a
ideologia urbanística derivada da arquitetura funcional (...) e
assim se generalizou banalmente as broncas ao zoneamen-
to; às normativas urbanas e aos planos de ordenamento, até
pretender tachar de errôneo ou negativo qualquer elemento
da razão no planejamento das cidades. (...). Me interessa
16º SHCU
revisar as origens do vazio teórico atual, precisamente
30 anos . Atualização Crítica
para fundamentar novas práticas” (SOLÀ-MORALES, 1987,
614 p. 30, tradução nossa).
complexo e interdependente de seu conteúdo e a discussão dela mesma. É assim, filho da
superação da monofuncionalidade, mistura de complexidade e da superposição, que o
usos, usuários, ritmos temporais e orientações “Projeto Urbano” nasce e se configura como
visuais; 3. Escala intermediária, passível de ser o momento de projeto mais adequado, rico,
executada totalmente em prazo máximo de pou- variado e capaz para as projeções da cida-
cos anos; 4. Desejo voluntário de fazer arquite- de moderna (SOLÀ-MORALES, 1987, p. 31,
tura da cidade2, independente da arquitetura dos tradução nossa).
edifícios; 5. Componente público importante no
investimento e nos usos coletivos do programa. O trabalho apresentado no Rio Metropolitano
aponta diretrizes importantes nesse sentido,
O potencial da infraestrutura de incentivar a ur- destacando como “condições do desempenho
banidade, sua compreensão para fora dos limites metropolitano”: a construção de plantas baixas
intra-lote, do edifício (aqui discutida nos termos passíveis de modificação com uma boa “abertu-
de anti-objeto, sistema e campo) e também a ra estrutural”; a independência entre fachada e
compreensão da infraestrutura como uma in- interior por uma “autonomia da imagem” e ainda
tervenção de projeto urbano, são todos aspectos três temas prementes no projetos metropolitanos
pertinentes ao contexto da metrópole, que é um de mobilidade: a mistura de usos em um mesmo
dos pontos principais na caracterização de uma projeto, ou “hibridismo programático; a organiza-
rede de metrô, por seu papel importante na ocupa- ção das circulações por esses distintos ambientes
ção do território. Assim, entender os parâmetros através da “conectividade de fluxos”, que traz para
presentes na produção de arquitetura em uma dentro do edifício dinâmicas urbanas:
metrópole é fundamental para problematizar o
projeto da infraestrutura. Os grandes equipamentos e conjuntos edificados
com elevado desempenho em relação à articula-
Se a arquitetura urbana é um dos principais pon- ção de fluxos nos fizeram perceber o quanto de
tos na agenda da arquitetura contemporânea, a “espaço público” elas contém. No sentido inverso,
arquitetura metropolitana tem ainda um vasto a “infraestrutura habitada” da nova capital federal3
campo para ser explorado. Para Solà-Morales, nos instigou a considerar a existência de espa-
é nessa cultura que emerge o Projeto Urbano ços públicos que se comportam como “grandes
enquanto uma resposta à complexidade da ci- edifícios”, sendo percorridos e habitados por uma
dade-metrópole: intensa atividade. Assim, se a forte continuidade
urbana e intrínseca às condições de conexão dos
Muito ao contrário dos esquemas que de- diferentes modais de transporte aos quais esses
fenderão o funcionalismo, a cultura da gran- espaços metropolitanos geralmente se associam,
de cidade, nascida na revolução industrial eles acabam por agregar outras funções (LAS-
do século XIX, e exuberante nas grandes SANCE et al., 2012, p. 46).
capitais metropolitanas do século XX, nun-
ca se pretendeu assumir suas complicações A “artificialidade do sítio” é a estratégia que vai
simplificando seus problemas. A noção de então tratar da manipulação topográfica que cria
metrópole moderna nunca recorreria à re- relações de continuidade entre interior e exterior
dução esquemática como princípio de seu do projeto. Em projetos de infraestrutura, onde
desenho. Ao contrário, o poder urbanístico engenharia e arquitetura se encontram para re-
da ideia de metrópole tem sido a progressi- desenhar o solo de determinada área da cidade, a
va incorporação cultural de temas e aspec- artificialidade do sítio é uma característica central
tos novos da cidade, que progressivamente para a definição do projeto urbano. É nesse en-
vão tomando cara de natureza e enriquecem contro que avanços tecnológicos são mobilizados
junto à sensibilidade do tratamento à paisagem e
à natureza, mesmo sem sítios de topografia aci-
2. Solà-Morales (1987, p. 41) entende a “arquitetura da cidade” dentada. Quando pensamos o conceito de objetos
como oposto de uma arquitetura urbana de edifícios em si
mesmos, mas, ao invés disso, a define como uma ordem
arquitetônica do corpo físico da cidade (espaço, tecidos 3. Os autores aqui se referem ao projeto de Lucio Costa
e lugares). para o terminal rodoviário de Brasília.
EIXO TEMÁTICO 1 urbano, nos afastamos do projeto de edifícios
como dispostos por sobre a paisagem, em direção
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO à projetos que constroem a paisagem, ampliando
a continuidade com o espaço público e criando
transições entre o interior e o exterior.

Os sistemas de transporte tiveram papel impor-


tante na conceituação dos projetos de cidade rea-
lizados no Brasil, e, assim como a infraestrutura de
circulação, os equipamentos urbanos de acesso
aos sistemas foram também objeto de projetos
que repensavam a relação entre arquitetura, infra-
estrutura e cidade. Terminais ferroviários, rodo-
viários, intermodais e estações de metrô (Figura
05) por todo o país oferecem exemplos de projetos
arquitetônicos que exploraram a sobreposição de
fluxos dos sistemas de infraestruturas, tencio-
nando o caráter de passagem desses espaços.
Destacam-se os emblemáticos projetos para as
rodoviárias de Jaú, no interior de São Paulo, e
de Brasília, de Vilanova Artigas e Lucio Costa,
respectivamente. Ainda que não lidassem com
escalas metropolitanas de cidade, esses proje-
tos respondiam aos problemas de circulação e
programas, ao mesmo tempo em que propunham
novas questões, tanto à integração entre esses
edifícios e as cidades onde se implantaram quanto
ao projeto dos espaços urbanos coletivos.

Figura 05: Estação São Bento da linha 1-azul do metrô de


São Paulo. Foto do(a) autor(a), 2019.

Em São Paulo, a construção de grandes sistemas


de infraestrutura, mas também em diversas ou-
tras cidades brasileiras, fez emergir novas tipolo-
gias de equipamentos urbanos que exigiram dos
arquitetos e urbanistas o estudo de estratégias
16º SHCU projetuais que aproximassem a arquitetura ao
30 anos . Atualização Crítica
espírito de modernização. Em paralelo às especu-
616 lações em torno das megaestruturas difundidas
nos anos 1960, foi desenvolvida no Brasil uma série uma conotação de invisibilidade, a-programáti-
de intervenções e projetos de caráter estrutural, ca. No entanto, o sistema de infraestrutura, em
pois, como explica Hugo Segawa (1999, p. 160), contraposição à velocidade de transformação
“nesse ímpeto de modernização e integração na- do espaço da cidade, da destruição e renovação
cional, a arquitetura vai conhecer novos recantos que faz parte do processo econômico, oferece
geográficos, até então inexplorados. Arquitetos uma relação de contato cotidiano. O uso diário
vão se envolver em grandes projetos desenvol- e a escala de fluxo de circulação metropolitana
vimentistas, embutidos em equipes organizadas garantem ao terminal de ônibus, à estação de trem
por grandes empresas de engenharia”. A distância e à estação de metrô uma dimensão cultural que
entre as disciplinas da infraestrutura e da ar- ultrapassa a construção em si. A sistematização
quitetura vai aos poucos diminuindo; Guilherme dessa relação cidade (metrópole) e grandes equi-
Wisnik lembra que isso aconteceu não somente pamentos através da rede de infraestrutura, ao
em projetos de grande escala, mas também em passar por questões de processo de projeto e
programas mais simples: da dinâmica de sua implantação, contribui para
localizar o papel da arquitetura na complexa pro-
Em São Paulo, a ideia de se tratar indiscri-
dução das cidades.
minadamente qualquer construção com
atributos de uma obra de infraestrutura
foi a questão fundamental. Questão que
liga tanto a discussão mundial das mega-
estruturas, quanto sua compreensão fe-
nomenológica do território do país, e seu
embate problemático com a realidade da
cidade, a um projeto político. (WISNIK apud
MUNIZ, 2005, p. 175)

Em relação ao caso específico das estruturas de


suporte à mobilidade urbana e intermunicipal,
vale destacar que “ainda no início dos anos 1960,
uma cidade do porte de São Paulo não tinha um
edifício especialmente construído para servir
como terminal de ônibus intermunicipal e inte-
restadual de passageiros – a estação rodoviária”
(SEGAWA, 1999, p. 167), e que, com a formação do
Departamento Nacional de Estradas de Rodagem,
nos anos 1970, esses terminais passaram a cons-
tituir-se também de local de encontro, agregando
programas de lazer, convívio e comércio (SEGAWA,
1999, p. 168).

É através da metrópole contemporânea que


alcançamos a rede do metrô, um território
urbanizado de grandes dimensões que se
caracteriza, como vimos, pela maneira como
expressa as relações de produção no território.
Além disso, na metrópole contemporânea torna-
se acentuada a perda dos limites territoriais e
funcionais, ao passo que novos elementos vão
assumir a função de delimitação do espaço, não
através de perímetros, mas de “pontos nodais”.

A caracterização inicial da estação enquanto tipo


programático ligado ao fluxo de passagem sugere
EIXO TEMÁTICO 1 REFERÊNCIAS
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
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Paris: Presses Univérsitaires de France, 1952.
EIXO TEMÁTICO 1 RESUMO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Desde a nossa própria experiência, e historica-
mente também, a rua significa a vitalidade e a
vídeo-pôster qualidade da convivência de seus habitantes.
Lugar de lutas, revoltas, revoluções e, também,
de comemorações. Mas ela pode ser o último
O AVESSO DA RUA lugar onde humanos e seus corpos frágeis e
desamparados mal vivem. Uma população in-
visível aos poderes públicos e a grande parte
THE STREET’S REVERSE da sociedade, cuja condição de viver nas ruas
é vista como vidas descartáveis, refugos, ex-
EL LADO CONTRARIO DE LA CALLE postas a todo os riscos, como agora ao covid19.
Vidas consideradas sem valor vistas assim pe-
los olhos da crueldade que chega a perversão,
CORRÊA, Elyane Lins
no aumento atual dos despejos e reintegrações
Doutorado; Professora adjunta da Universidade Federal de posse, com violência, de propriedades onde
da Bahia
milhares a mais ficam sem ter para onde ir. Em
elyanelins@gmail.com
2017, em Salvador, já eram 20.000 pessoas em
situação de rua, parte delas famílias com crian-
ças, em plena intempérie ambiental e social
onde ficam expostos seus frágeis corpos. Os
órgãos públicos não cumprem suas responsabi-
lidades constitucionais, mostrando assim tam-
bém como parte do sistema de justiça mostra
sua covardia e vilania.

PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA SISTEMA DE JUSTIÇA


GOVERNO CRUELDADE

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

620
ABSTRACT RESUMEN

From our own experience, and also historically, Desde nuestra propia experiencia, e histórica-
the street signifies the vitality and quality of co- mente también, la calle significa la vitalidad y la
existence of its inhabitants. Place of struggles, calidad de la convivencia de sus habitantes. Lu-
revolts, revolutions and also celebrations. But it gar de luchas, rebeliones, revoluciones y, tam-
may be the last place where humans and their bién, de conmemoraciones. Pero ella puede ser
fragile, helpless bodies barely live. A population el último lugar donde humanos y sus cuerpos
invisible to public authorities and a large part of frágiles y desamparados viven mal. Una poblaci-
society, whose condition of living on the streets ón invisible a los poderes públicos y a gran par-
is seen as disposable lives, refuse, exposed to te de la sociedad, cuya condición de vivir en las
all risks, as now to the covid19. Lives considered calles es vista como vidas descartables, restos,
to be worthless seen like this by the eyes of the expuestos a toda clase de riesgo, como al Co-
cruelty that reaches perversion, in the current vid19. Vidas consideradas sin valor vistas así por
increase in evictions and violent repossessions los ojos de la crueldad que llega a la perversión,
of properties where thousands more are left with en el aumento actual de las expulsiones y reinte-
nowhere to go. In 2017 there were already 20,000 graciones de pose, con violencia, de propiedades
people living on the streets of Salvador, some of donde millares a más se quedan sin lugar a donde
which families with children, in the midst of en- ir. En 2017, em Salvador, ya eran 20.000 personas
vironmental and social conditions where their vivienda en las calles, parte de ellas com niño, en
fragile bodies are exposed. Public agencies that plena intemperie ambiental y social exponiendo
do not fulfill their constitutional responsibilities, sus cuerpos frágiles. Los órganos públicos no
thus also showing how part of the justice system cumplen sus responsabilidades constitucionales
shows their cowardice and villainy. mostrando, de esa forma, la cobardía y tiranía del
actual sistema de justicia.

HOMELESS PEOPLE JUSTICE SYSTEM GOVERNMENT


CRUELTY PERSONAS EN LAS CALLES SISTEMA DE JUSTICIA
CRUELDAD
EIXO TEMÁTICO 1 INTRODUÇÃO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
” É um mal terrível:
faz ver as coisas tais como são”.
vídeo-pôster Hipocondria melancólica (Gerard de Nerval)

O AVESSO DA RUA
A sobrecarga sobre o nosso sistema perceptivo e
nervoso parece não ter limites; as notícias sobre
THE STREET’S REVERSE fatos considerados chocantes, inaceitáveis e
injustos acontecem de modo acelerado. Falamos
EL LADO CONTRARIO DE LA CALLE de sobrecarga, cansaço, esgotamento, de não
aguentar mais, o burnout espreita a muitos de
nós. A sensação de vertigem no labirinto do real
não cessa, vai desde a avalanche de todo tipo de
pressão para nos convencer de que a suposta
ilegitimidade de alguns governantes se subs-
titui pela ilegitimidade de outros (não apenas
no Brasil e América Latina onde ainda ressoam
os tambores de guerra), até o incompreensível
“real” que nos propõem e quem a ela se somou.
A indistinção entre simulacro e realidade, muitas
vezes de modo intencional nos confunde sobre
qual atitude e ação tomar.

O desamparo e os problemas da vida prática - se


alimentar, ter um trabalho, saúde e educação -
de grande parte daqueles que vivem no Brasil de
hoje são respondidos com imagens de crueldade
e rompem todas as nossas defesas, individual ou
coletiva, ao produzir expressões imagéticas de
um ódio real e perverso, no seu sentido psicana-
lítico, ou seja, a satisfação diante do sofrimento
do outro.

Com toda a importância que tem a rua, como se


sabe, para a vida nas cidades e metrópoles, e suas
sociabilidades, nas artes urbanas e outras muitas
manifestações. A rua diz muito sobre a vitalida-
de de uma cidade ou metrópole: os encontros
casuais, as conversas despretensiosas sobre o
cotidiano e o clima, as circunstanciais relações
de vizinhança, as festas e comemorações reli-
giosas ou profanas, o anonimato ao perder-se
na multidão, os olhares furtivos e a privacidade
que não se pode ter nas pequenas cidades. De
suas paisagens urbanas, da diversidade de seus
16º SHCU habitantes, espaços e arquiteturas são testemu-
30 anos . Atualização Crítica
nhas de seus tempos e memórias, mas também,
622 de suas subserviências e submissões ao Poder
que se sucedeu. a diarista Erica Cavalcante da Silva, de 36
anos. No último 14 de abril, ela acordou
O avesso da rua se dá quando se é “jogado” nela, com o barulhão de uma retroescavadeira
famílias inteiras com crianças, quando só se tem da prefeitura destruindo as estruturas de
ela para viver. Quando os moradores perguntam: alvenaria e madeirite de seus vizinhos. Vinte
para onde vamos? Essa é a pergunta que mais famílias, das mais de 60, ficaram sem casa
se ouve, e a mais grave. Corpos frágeis e pere- na comunidade Fé em Deus, apelidada de
cíveis sem abrigo, sem teto, sem porta. Sujeitos Descalvado, na periferia de Ribeirão Preto2.
à violência de todo tipo, de qualquer um, mas,
mais especificamente e costumeiramente, dos Por isso se perguntam: e quem não tem casa?
chamados agentes da lei, com seus excludentes E quem foi e segue sendo despejado em plena
de ilicitudes para praticar ações brutais e cruéis. pandemia? Por meio de sentenças judiciais de
Mesmo para transeuntes ocasionais motoriza- reintegração de posse, com a conivência de
dos, pode sem se saber as razões, receber 5, 80, todos que deveriam protegê-los, sem dar-lhes
270 tiros. Frames da infâmia e a concretude da alternativas, que a crueldade e perversidade se
palavra crueldade. Desse modo a rua é perigo, é concretizam, quando a polícia quebra os poucos
medo, é morte. móveis e objetos, quando não podem salvar nada
porque a violência não permite, e o mainstream
media não notícia.

Para buscar garantir um direito básico vem sendo


realizada a Campanha Despejo Zero3, que reúne
várias lideranças relacionadas à proteção dos
moradores como Conam (Congresso Nacional de
Associações de Moradores), CMP, MST (Movimen-
tos dos Sem Teto), dentre outras.

Figura 1 – Morador em situação de rua. Fonte: foto sem


autoria retirada do site da Defensoria Pública do Estado
da Bahia1

É esse o avesso da rua, que já conhecemos


há bastante tempo e refere-se às pessoas
que vivem nessa situação e de suas extremas
vulnerabilidades. Porém, o que podemos ver
desde o início de 2019 é um aumento acelerado
dessa população, agravado ainda mais de março à
julho de 2020. Porque a rua é doença, diz a ciência,
e os poderes públicos repetem: fiquem em casa! Figura 2- Foto ilustrativa da web Fórum da Reforma Urbana
Qual casa? Segundo os movimentos por direito . Fonte: https://forumreformaurbana.org.br/2020/07/22/
à moradia digna, desde essa data o número de lancamento-campanha-despejo-zero
despejo acelerou-se em todo o país “jogando” na
rua e em plena pandemia milhares de pessoas,

“De que adianta falar para ficar em casa


2. https://mulherias.blogosfera.uol.com.br/2020/07/31/
nessa pandemia se o próprio governo está campanha-despejozero-e-guerra-entre-direito-a-vida-
demolindo nossos barracos?”, questiona -e-propriedade. Acesso em: 31 de julho de 2020.

3. Cf. “Despejo Zero. Pela defesa da vida no campo e na


1. Cf. artigo intitulado “Defensoria Pública da Bahia entra cidade.” https://www.youtube.com/watch?v=D4-in1ebF-
com ação contra prefeitura de Salvador para impedir vio- vA. Acesso em: 23 de julho de 2020. Foi criado também o
lência contra moradores de rua” Observatório das Remoções no Facebook.
EIXO TEMÁTICO 1 Assim, nessa cultura de sinal invertido de paidéia,
nesse prática economicista e financeira, da ide-
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO ologia da austeridade, nessa avalanche cotidia-
na de produtos audiovisuais em defesa da white
supremacy, da religião (de mensagens tão cristãs
que propagam a morte dos outros), da criação de
uma falsa ciência que recomenda medicamentos
inadequados e perigosos. Usada para fins e usos
político-eleitorais seus ideólogos usam todos
os recursos nesse ambiente onde a “guerra de
palavras” importam muito no centro das “guerras
híbridas” (KORYBCO, 2018). Cria-se continuamente
“inimigos” cujos “combates” se “resolvem” com
ameaças, intimidações e de incitações às ações
armadas que nascem do ressentimento e do ódio
com a desvalorização das instâncias jurídicas de
mediação de conflitos. Uma das possíveis causas
desse estado de coisas tem sua origem no declí-
nio do império americano, onde se localizou em
setembro de 2001, quando o império começou a
adotar de modo sistemático a “doutrina do stock”,
a saber, a manutenção de um estado de perma-
nente vigilância ao criar inimigos ameaçadores
e bodes expiatórios e tentando convencer sua
população, e além dela, de que ataques nos es-
preitam, são iminentes e pairam sobre o cotidiano.

O declínio do império americano acelerou-se,


internamente, desde a crise de 2008 quando o
Estado resgatou com cifras de trilhões de dólares
o sistema bancário e financeiro em seu conjunto,
e permitiu que os mesmos agentes seguissem
lucrando com ataques especulativos e ficando,
uma e outra vez, com os benefícios das operações.
Simultaneamente, os indicadores sociais e econô-
micos tais como: redução de milhares de postos
de trabalho, aumento exponencial da pobreza,
encarceramento em massa (com predomínio de
negros), morte de pessoas de etnia negra pela po-
lícia, tiroteios inesperados, predominantemente,
em escolas e universidades, epidemia de mortes
por overdose - mais de cem pessoas por dia da
classe média branca - de fentanil e oxicodona4,

4. Cf. “During 2018, there were 67,367 overdose deaths in


the United States and 46,802 of those overdose deaths
involved opioids. More than 130 people died every day from
opioid-related drug overdoses in 2016 and 2017, accor-
ding to the US Department of Health & Human Services”.
16º SHCU
In Opioid Crisis Fast Facts. CNN Editorial Research, june
30 anos . Atualização Crítica
2020. https://edition.cnn.com/2017/09/18/health/opioi-
624 d-crisis-fast-facts/index.html.
suicídios, e do ponto de vista da política externa, e ostentam hoje um poder que vem assustando
pelas sucessivas invasões e guerras, em nome da até os estudiosos que as acompanharam desde
democracia. Atacaram diversos países, deixando suas origens. Um economia que não gera trabalho
um saldo de destruição e genocídios (HEDGES, nem perspectivas à população, e ainda mais grave,
2019). E segundo este mesmo autor, esse panorama gera um sentimento de apreensão,
incertezas, estranheza e desconforto diante da
Os doutores destroem a saúde, juízes des- postura predominante de uma indiferença social.
troem a justiça, as universidades destroem É inquietante essas relações, mas começando,
o conhecimento, governantes destroem a justamente pela linguagem ofensiva no campo
liberdade, a imprensa destoe a informação, da política institucional na qual estamos tendo
a religião destrói a moral, e os bancos des- que viver atualmente no nosso pais, é evidente
troem a economia. (HEDGES, 2019) que apesar de não ser uma exclusividade, basta
vermos o atual governante dos EEUU, um país
Para nosso espanto é a este país que o Brasil se que enjaula crianças de cinco anos na fronteira,
submete, deliberadamente, na economia, na po- e cuja visão geopolítica atual de um de seus vizi-
lítica externa, e nas questões morais e de costu- nhos é construir um muro para que não passe os
mes. Alinha-se com estratégias de ascensão e pobres, e ameaça continuamente com sanções
manutenção do poder político e econômico de diversos países.
determinados grupos que assumem um arranjo
de poder didaticamente explicado por Richard A estranheza diante de palavras que circulam não
Wolff em Economic Update: Fascism: An Analysis apenas nas notícias transmitidas pela grande mí-
for Today5. As táticas de propagação são muitas, dia, mas, também nas conversas, aparentemente
e o uso das redes sociais vem ganhando relevân- inofensivas, escutadas no cotidiano, tendo como
cia, não apenas aqui, mas, em vários países com fiador o atual presidente brasileiro, associadas
acontecimentos (com maior ou menor repercus- com a extrema violência – pois não se trata ape-
são) 6, como o de Christchurch (New Zealand, 2019), nas de expulsar, mas, de exterminar o outro -, e
Suzano (Brasil, 2019). Em Nova Zelândia, segundo com mais animosidade em relação àqueles em
ampla divulgação na mídia, pela primeira vez se fez situação de vulnerabilidade social e psicológica:
uso de uma rede social para o assassino antecipar população em situação de rua, os dependentes
aos seus seguidores a publicação do que queria químicos que circulam nos centros das grandes
fazer e que acabou realmente por acontecer de- cidade, quilombolas, indígenas, até trabalhadores
pois, e transmitiu, através de uma câmera que prestadores de serviços, e os mais pobres onde
instalou no seu capacete, ao vivo, por cerca de a democracia não chega.
seis minutos, um registro visual de violência, de
Na figura de seu representante, o atual governo
quadros (frames) de ódio e injúrias, cujo vídeo a
nos empurra para um caminho que desemboca
rede social utilizada removeu 1.5 milhão de cópias
em dois abismos: de um lado um plano econômico
no Facebook7.
falido que não propõe à cidadania um horizonte de
direitos, por outro, a animosidade e beligerância
Assim, nos encontramos mergulhados no oceano
frente à parte da população, estilhaçando assim a
de uma estrutura econômica onde o governo se
convivência social de respeito e direitos sociais.
sustenta num capitalismo especulativo de mono-
Aliado e submetido a um sistema financeiro que
pólios, de empresas que dominam o meio digital
há pelo menos duas década vem dando sinais de
declínio, desnudando um mecanismo que ainda
5. Cf. https://www.youtube.com/watch?v=O05wS7w4aEw. funciona inflando bolhas especulativas para res-
Acesso em: 24 março 2019 gatar a banca, cujas operações são a de absorver
6. Aparentemente isolados, como Columbine (EEUU, 1999), recursos da economia e convertê-los em bene-
Realengo (Brasil, 2011), ilha de Utoya (Noruega, 2011). fícios privados.
7.Facebook initially missed video of attacks, In: https://
www.keyt.com/news/national-world/facebook-has-re-
moved-15-million-copies-of-new-zealand-attack-vi-
deo/1060251388). Acesso em: 18-03-2019.
EIXO TEMÁTICO 1
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO

Imagem 3 - Morador em situação de rua em São Paulo.


Foto: Maneco Magnésio. https://saopaulosao.com.br/
conteudos/colunistas/1335-moradores-de-rua-tao-pau-
listanos-quanto-voce.html

É algo tão obsceno que é difícil de acreditar, é a


esse sistema que o atual governo submete o país.
Impõe um plano de desvalorização dos salários
e aposentadorias, cortes brutais nos gastos pú-
blicos, uma reforma trabalhista e previdenciária
que retira direitos adquiridos em décadas de rei-
vindicações, uma dívida interna que só cresce, e
a desindustrialização continua; e a banca ganha
bilhões enquanto a população empobrece e são
premiados com os benefícios para fazê-los in-
tocáveis, “sequestram” a democracia e utilizam
as instituições que tem a seus serviços para so-
cializar suas perdas e privatizar seus lucros. O
Estado brasileiro garante primeiro os benefícios
dos investidores financeiros e, depois, com o que
sobra, os hospitais, as escolas e as aposentado-
rias, e esse é o resultado nos últimos dois anos:

Um brasileiro que ganha um salário mínimo


precisaria trabalhar 19 anos para ganhar o
mesmo que recebe em um mês uma pessoa
enquadrada entre o 0,1% mais rico. Cinco
bilionários brasileiros concentram o equi-
valente à metade da população mais pobre
do país. (...) O patrimônio dos bilionários
brasileiros alcançou R$ 549 bilhões no ano
passado, um crescimento de 13% em re-
lação a 2016. Por outro lado, os 50% mais
pobres tiveram a sua fatia na renda nacional
reduzida de 2,7% para 2% (...) Seis brasilei-
ros – todos homens brancos – concentram a
mesma riqueza que a metade mais pobre da
população, mais de 100 milhões de pessoas.
16º SHCU E os 5% mais ricos do país recebem por
30 anos . Atualização Crítica
mês o mesmo que os demais 95% juntos”.
626 OXFAM BRASIL. Os números da desigual-
dade no Brasil. https://www.oxfam.org.br/ Um dos problemas é que, muitas vezes, na de-
os-numeros-das-desigualdades-no-brasil. mocracia – que parece ser o melhor que temos
Acesso em: 20 de março, 2020. encontrado – há grupos, instituições, empresas,
partidos, meios de comunicação, e Faustos e seus
Este é o capitalismo na época da austeridade acordos com Mefistófeles, que tem a intenção de
exercido pelos grandes bancos, corporações, e nos empobrecer em todos os aspectos da vida,
especuladores - cujo dinheiro circula descolado individual e coletiva. Vemos e sentimos, primeiro
da base material produtiva -, e cujo único objetivo com espanto, como a crueldade, a vilania, e todo
é o desmantelamento contínuo e acelerado das um ecossistema de ódio se estender na sociedade
políticas de bem-estar do Estado brasileiro que brasileira que não o merece. Aqui há uma evidên-
se destinavam a diminuir essas desigualdades cia de que a defesa da ideia de um progresso na
econômico-sociais. O desmantelamento de um História se contradiz nessa realidade. Muito se
processo que almejava um estado de bem estar investiu na educação para que o maior número
social e uma política intencionada, que faz parte de pessoas pudesse ter uma vida melhor, pos-
de um corpo ideológico maior, que visa impedir sibilitar uma mobilidade social que a educação
o Estado de defender sua gente e proteger e ga- proporciona, porém, com o golpe e a mudança de
rantir os interesses do mercado (seja o que for
poder, essa foi uma drástica redução com todos
e se entenda por esse termo) que desmontaram
os prejuízos que isso significa, porém, e apesar
um modelo social ainda limitado e abandonaram
de tudo, articulou-se no campo social e político
a incipiente defesa e melhoria das condições de
uma sucessão de ações de resistências.
vida que parte das pessoas mais pobres havia
conquistado. E esse é o país dos patriotas. Frequentemente, insistimos na ideia de que a
democracia e a mentira são incompatíveis, mas é
Mas a filosofia nos ensina a duvidar, a perguntar
difícil sustentá-la neste momento no Brasil, pois a
uma e outra vez, e isso leva à um pensamento que
democracia pode ter mentiras assim como as tem
exige o estudo de vários campos do conhecimento
as ditaduras; há atualmente, como tristemente
que constroem ideias e visões críticas, que são
sabemos, mais de 132 mil mortos pelo corona ví-
como degraus, e passamos a refletir sobre os
rus8, em setembro de 2020, predominantemente,
modos de vida, modos de morar, valores, crenças
afrodescendentes, pobres que habitam as áreas
e religiões, a política e suas representações. São
mais precárias das grandes cidades, e os traba-
enormes construções conceituais, as vezes tão
lhadores dos chamados serviços essenciais. So-
ágeis como as pontes, mas também podem ser
me-se a isso o crime de condenação da população
sistemas de pensamentos tão pesados como as
indígena e quilombola à morte - quando o atual
antigas mastabas. Ultrapassar esses limites é
presidente negou à essas pessoas água potável,
tornar-se incômodos para os outros, mesmo sem
cestas básicas e assistência médica, explicitando
a intenção de sê-lo, porque as vezes não é fácil
acomodar-se a certas situações e as inquietações
e a necessidade de saber a verdade, de não ceder, 8. Esse é um número aproximado, dado que especialistas
e, na maioria das vezes nos escapa seu sentido, consideram que há uma subnotificação e a não identifi-
mas é o que temos no momento presente. cação da etnia, e, para que não esqueçamos jamais, que
foi noticiado pela mídia que a primeira pessoa a morrer de
Atualmente as situações nos exigem demasiado, corona vírus, foi uma trabalhadora doméstica. Na matéria
mas grande parte dos brasileiros travam suas “Ministério Público do Trabalho analisa morte de doméstica
lutas diárias, e, em especial, as mulheres, e a no RJ após patroa ter corona vírus”. Diz a matéria “Por duas
liberdade e os direitos que a sociedade havia con- décadas, uma empregada doméstica trabalhou na casa de
uma família no Leblon, no Rio de Janeiro. Para chegar a uma
quistado foi se perdendo até começarmos a vê-la
das áreas mais nobres da capital, saía do município de Miguel
progressivamente correr riscos em amplitude
Pereira, na região serrana do Estado, e percorria mais de
e profundidade desde janeiro de 2019. Porém, 100 quilômetros. De segunda a sexta-feira, ela passava os
mesmo estando imersos em meio às mentiras, dias no apartamento da família para a qual trabalhava. Aos
indecências, desrespeitos, intimidações, cruel- fins de semana, retornava para Miguel Pereira”. Cf. Vinícius
dades e infâmias como armas políticas, temos Lemos da BBC News Brasil em São Paulo, do dia 20 março
que atrever-nos a resistir e agir com decência. 2020. https://www.bbc.com/portuguese/brasil-51982465.
EIXO TEMÁTICO 1 a natureza, intrinsecamente, dolorosa e trágica
da nossa atual realidade.
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO

Imagem 4 - Foto: Elevado João Goulart. Juliano Vieira/


Brasil de Fato. Fonte: https://www.brasildefato.com.
br/2019/03/08/a-gente-ta-no-meio-da-rua-ja-nao-tem-
-nada-por-que-vao-levar-o-que-a-gente-tem. Acesso
em: 20 de julho d 2020.

Mas se entende também por - crueldade do real - o


caráter único e, consequentemente, irremediável
e inapelável desta realidade que impossibilita ao
mesmo tempo conservá-la à distância e atenuar
seu rigor pelo recurso a qualquer instância que
fosse exterior a ela. Cruor, de onde deriva cru-
delis (cruel) assim como crudus (cru, não digeri-
do, indigesto) que designa a carne escorchada e
ensanguentada: ou seja, a coisa mesma privada
de seus ornamentos ou acompanhamentos ordi-
nários. Parece que o mais cruel da realidade não
reside nesse seu caráter, mas em seu caráter
inelutável e que já ultrapassa a faculdade humana
de compreender, ultrapassa também – e isto é
mais prejudicial que aquilo – a faculdade humana
de ser afetado. (ROSSET, 2002, p.18)

É inegável que essa realidade, não podendo


ser explicada por ela mesma, é de certo modo
ininteligível: por que estamos vivendo tudo isso?
Como chegamos a este estado de coisas? Mas ser
ininteligível não equivale a ser irreal. A fraqueza
dos argumentos que tendem a fazer duvidar
da plena e inteira realidade do real é que estes
dissimulam a verdadeira dificuldade que existe
em levar em consideração o real e somente o
real: dificuldade que, reside secundariamente
16º SHCU no caráter incompreensível da realidade, reside
30 anos . Atualização Crítica antes de tudo e, principalmente, em seu caráter
628 doloroso.
Dizendo em outras palavras, a desavença com De onde vem a aquiescência com a dominação? Só
o real não tem por origem o fato de que a reali- é possível explicar a servidão entendendo como as
dade seja inexplicável, considerada apenas em pessoas a concedem e entender como os sujeitos
si mesma, mas sim o fato de que ela seja cruel e participam de sua própria servidão voluntaria (La
que, consequentemente, a realidade suficiente, Boetie, 1982). As primeiras vítimas da tirania e do
priva o homem de toda possibilidade de distância neofascismo são as vidas frágeis, a verdade, a
ou de recurso com relação a ela, isso constitui felicidade e a liberdade; os direitos e a soberania
um risco permanente de angústia e de angústia do país, porém, nos ensina a História, enquanto
intolerável. (ROSSET, p.38) houver sofrimento haverá resistência.

Deve-se observar, com efeito, que se a facul- O que é necessário e urgente? Trata-se de cons-
dade intelectual de compreender e a faculdade truir ao menos um horizonte de certeza e de se-
psicológica de aceitar, são no homem (como es- gurança que responda aos desafios práticos da
pécie), igualmente limitadas e definitivamente existência das pessoas, não aos fighting online
débeis, a falta da segunda pesa infinitamente hate, não as promessas vagas, uma promessa não
mais do que a falta da primeira. Enquanto incom- é o mesmo que uma garantia, sobretudo, quando
preensível, a realidade é apenas um embaraço falamos de direitos fundamentais, e não se trata
que irrita ocasionalmente a alma, mas não entra-
apenas de apontar culpabilidades e má-consci-
va o exercício ordinário da vida: assim cada um
ência. Tampouco se resume à uma questão de
se acomoda mesmo com dificuldade ao tempo,
imagem ou de tática eleitoral, é uma questão de
ao espaço, ao movimento que, embora sejam
Estado e requer outra forma de compromisso e de
noções que certamente tocam mais de perto o
responsabilidade constitucional, é grave que mi-
real, também são noções que ninguém jamais foi
lhões de pessoas não saibam o que vai acontecer
capaz de conceber nem de definir. Não acontece
com as suas vidas. A espoliação naturalizou-se.
o mesmo com a realidade quando é experimen-
É gravíssimo que morram milhares de pessoas
tada como intensamente dolorosa: opondo-se
de corona vírus no Brasil, porque assim decidiu
então a uma intolerância da parte daquele que é
o atual governo, abandonando-os, porque não
afetado por ela, quando, naquele que é impotente
para compreendê-la, suscita apenas um simples importam, porque não há, dizem, recursos para a
e passageiro estado de perplexidade. Em outras saúde e a educação. Podemos voltar as ruas dos
palavras, e repetindo: a realidade, se ultrapassar protestos e movimentos sociais, das insatisfações
a faculdade humana de compreensão, tem como como lugar específico da ira (diferente de ódio) e
outro e principal apanágio “exceder”, e isto em das revoluções.
todos os sentidos do termo, a faculdade humana
Não é apenas a sujeição do corpo, mas da sujei-
de tolerância.
ção da subjetividade e da dignidade e do modo
Quando se encontra incapacitada de afrontar a de morrer; o corona vírus mostrou isso, quem
realidade, a inteligência se contenta, na maioria pode ou não morrer, os que terão nome e lapide
das vezes, com um vago compromisso com o e quem não. Estrutura histórica, escravocrata,
real, com uma deliberação e uma postergação, que usa a lógica e uma força política para lidar
devendo estes serem deferidos para mais tarde. com essa população que pode desaparecer dado
Enquanto que, apanhada na mesma armadilha do o seu estatuto jurídico de “coisa”, sem direitos, e
real, a afetividade protesta e se retira; tal como que as submete ao medo mais elementar. O que
uma resistência, no sentido elétrico do termo, faz o desamparo diante da perversão, da infâmia
que vai pelos ares à passagem de uma corrente e da crueldade?
mais forte. Em caso de conflito grave com o real,
o homem que pressente, intuitivamente, que o
reconhecimento desse real ultrapassaria suas
forças e poria em perigo sua existência mesma,
vê-se obrigado a decidir-se, seja em favor do real,
seja em favor de si mesmo – pois nesse caso não
cabem mais evasivas.
EIXO TEMÁTICO 1 REFERÊNCIAS
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
HEDGES, Chris. The Collapse of the American
Empire. In: Centre for International Governance
Innovation. https://www.youtube.com/watch?v=-
csI8JLJ15Ak&list=LLQWGPrsSqC5tuk70ZW5T-
MIw&index=581. Acesso em: outubro de 2018.

----------“America: The Farewell Tour”. https://www.


youtube.com/watch?reload=9&v=GeE5WnTUsF8.
Acesso em: 30 de setembro de 2018.

LA BOETIE, Etienne. Discurso da servidão voluntá-


ria. São Paul, Brasiliense, 1982. Edicao bilíngue.

KORYBCO, Andrew. Guerras Híbridas: das revolu-


ções coloridas aos golpes. SP, Expressão Popular,
2018.

MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma políti-


ca. São Paulo, Boitempo, 2017.

OXFAM BRASIL. Os números da desigualdade no


Brasil. In: https://www.oxfam.org.br/os-numeros-
-das-desigualdades-no-brasil. Acesso em: 20 de
março 2019.

ROSSET, Clement. O princípio da crueldade. Rio de


Janeiro, Rocco, 2002.

WOLFF, Richard. Fascism is an economic that sus-


tains capitalism. In: economic update: an analysis
for today. https://www.youtube.com/watch?v=hp-
qwdo_2xck. Acesso em: março de 2019.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

630
631
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
EIXO TEMÁTICO 1 RESUMO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
A partir da noção geral de campo de Bourdieu
(1983), objetivamos discutir neste texto, a for-
vídeo-pôster mação de um campo da consultoria em políticas
do urbano no Brasil. As políticas do urbano se
referem ao conjunto de ações do Estado sobre
O CAMPO DA CONSULTORIA o tecido urbano e de seus habitantes. O cam-
po da consultoria em políticas do urbano é um
NAS POLÍTICAS DO URBANO: espaço social, constituído por indivíduos e em-
presas, locais e internacionais; e dependente do
UM ESPAÇO RESTRITO investimento público. Esse campo se configura
como um nicho de mercado onde o monopólio
DE DECISÕES SOBRE A e o lucro estão em disputa, mas onde também
estão em jogo as tomadas de decisão sobre a
PRODUÇÃO DAS CIDADES produção das cidades. Para retratar a forma-
ção, crescimento e consolidação desse campo,
buscamos: identificar os capitais que regulam
THE CONSULTING FIELD IN URBAN POLICIES:
as suas posições centrais e relações de força;
A RESTRICTED SPACE OF DECISIONS ON THE
e resgatar o percurso histórico da formação do
PRODUCTION OF CITIES
campo como um espaço de relações onde se
produz este saber técnico, que trata de um co-
EL ÁMBITO DE LA CONSULTORÍA EN POLÍTICAS
nhecimento dominante, institucionalizado, com
URBANAS: UN ESPACIO RESTRINGIDO DE DECISIONES
aparência de ciência.
SOBRE LA PRODUCCIÓN DE CIUDADES

POLÍTICA URBANA
BARBOSA, Bárbara Lopes
CONSULTORIA EM POLÍTICAS DO URBANO
doutoranda; IPPUR/UFRJ
blb.arq.urb@gmail.com TERCEIRIZAÇÃO PLANEJAMENTO URBANO

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

632
ABSTRACT RESUMEN

Based on the general notion of field by Bourdieu A partir de la noción general de campo de Bour-
(1983), the objective is to discuss in this text, the dieu (1983), el objetivo de este texto es discutir la
formation of a field of urban policy consultancy in formación del campo de la consultoría en políti-
Brazil. Urban policies are characterized by the set cas urbanas en Brasil. Las políticas de lo urbano
of State actions on the urban fabric and its inha- se caracterizan por el conjunto de acciones del
bitants. The field of urban policy consultancy is a Estado sobre el tejido urbano y sus habitantes.
social space, consisting of companies and com- El campo de la consultoría en políticas de lo ur-
panies, local and international; and dependent bano es un espacio social, constituído por indi-
on public investment. This field is configured as viduos y empresas, locales e internacionales; y
a market niche where monopoly and profit are in dependiente de la inversión pública. Ese campo
dispute, but where the decision on the production se configura como un nicho de mercado donde el
of cities is also at stake. To portray the formation, monopolio y el lucro están en disputa, pero donde
growth and consolidation of this field, we seek to: la toma de decisiones sobre la producción de las
identify the capitals that regulate their central ciudades también está en juego. Para retratar la
positions and relations of strength; and to rescue formación, el crecimiento y la consolidación de
the historical path of the formation of the field ese campo, buscamos: identificar las capitales
as a space of relationships where this technical que regulan sus posiciones centrales y sus rela-
knowledge is produced, which deals with domi- ciones de fuerza; y rescatar el camino histórico
nant, institutionalized knowledge, with the appe- de la histórico de la formación del campo como
arance of science. un espacio de relaciones donde se produce este
saber técnico, que se trata de un conocimiento
dominante, institucionalizado, con apariencia de
URBAN POLICY URBAN POLICY CONSULTING ciencia.
OUTSOURCING URBAN PLANNING

POLÍTICA URBANA
CONSULTORÍA EN POLÍTICAS URBANAS (O DE LO URBANO)
TERCERIZACIÓN DE LA PLANIFICACIÓN URBANA
EIXO TEMÁTICO 1 INTRODUÇÃO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
O planejamento das ações e políticas do urbano
no Brasil são práticas onde as concepções de
cidade estão em disputa. Nesse espaço social,
vídeo-pôster
indivíduos, coletivos e instituições buscam a cen-
tralidade nas decisões que orientam a produção

O CAMPO DA CONSULTORIA do espaço urbano. A terceirização das políticas do


urbano está entre os elementos que configuram
NAS POLÍTICAS DO URBANO: as disputas sobre tais decisões.

UM ESPAÇO RESTRITO A terceirização do planejamento sobre as polí-


ticas do urbano é feita através de consultorias,

DE DECISÕES SOBRE A nas quais atuam profissionais de variadas áreas,


como assistência social, geografia, direito, mas
PRODUÇÃO DAS CIDADES principalmente da arquitetura e engenharia. Ma-
joritariamente, são os arquitetos e engenheiros
que atuam na assessoria e produção de planos,
THE CONSULTING FIELD IN URBAN POLICIES: projetos e análises técnicas que visam balizar as
A RESTRICTED SPACE OF DECISIONS ON THE ações a serem executadas sobre o espaço urbano.
PRODUCTION OF CITIES Seus diagnósticos e propostas com respaldo
técnico, tem a pretensão de serem indubitáveis,
EL ÁMBITO DE LA CONSULTORÍA EN POLÍTICAS no sentido de prover o desenvolvimento urbano,
URBANAS: UN ESPACIO RESTRINGIDO DE DECISIONES social e econômico destas cidades.
SOBRE LA PRODUCCIÓN DE CIUDADES
A expansão desse mercado de trabalho e a con-
solidação de um campo de consultoria em PU, são
resultantes do processo de privatização da toma-
da de decisões acerca da produção do espaço
urbano. Ao longo das duas últimas décadas esse
processo foi potencializado pelo crescimento da
demanda estatal por serviços cada vez mais es-
pecializados e ampliação de recursos disponíveis
para o financiamento da política urbana.

Marques (2018), define as políticas do urbano


como: “o conjunto de ações do Estado que agem
prioritariamente sobre o tecido urbano (...)” (Mar-
ques, 2018, p.13). Assim, as políticas do urbano
envolvem todo o mercado de serviços que têm
seus processos de acumulação associados di-
retamente a produção da cidade e não apenas
“no” urbano, enquanto território suporte para o
desenvolvimento de atividades econômicas.

Nesse sentido, o campo da consultoria em políticas


do urbano1 está inserido em um nicho de mercado
onde se disputa o monopólio e o lucro sobre servi-
ços vinculados a demandas do Estado. Esse campo
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
1. A partir daqui será utilizada a sigla PU para tratar das
634 Políticas do Urbano.
é heterogêneo, possui regras objetivas e também Através desse texto, pretendemos retratar a forma-
atende também a setores privados que geram im- ção, crescimento e consolidação do mercado da con-
pactos na produção do espaço urbano, estando, as- sultoria voltada para as políticas do urbano no Brasil,
sim, sujeitos às políticas estatais para as cidades. assim como os capitais primordiais desse campo.

Os agentes que se destacam no campo da consul-


toria em PU têm servido a diferentes interesses
e são flexíveis a diferentes ideologias políticas, A VALORIZAÇÃO DA TERCEIRIZAÇÃO
ampliando sua participação nas tomadas de de- DO PLANEJAMENTO URBANO
cisão sobre as cidades e oferecendo serviços
de planejamento, regulação e gestão urbana
O papel da arquitetura e engenharia no
- tradicionalmente reconhecidos como de res-
surgimento de um mercado de consultoria
ponsabilidade do Estado. Apesar da ampliação e
em políticas do urbano
fortalecimento desse mercado nos últimos anos,
há ainda pouca diversidade entre aqueles que Pulhez (2014) recupera o percurso histórico do
disputam a centralidade do campo da consultoria surgimento da engenharia consultiva como um
em políticas do urbano e consequentemente nos campo profissional, no qual destaca que antes da
espaços de decisão sobre a produção urbana. década de 1930, aproximadamente, atividades de
projeto e execução de obras da construção civil,
Entendemos que as posições de poder no campo
estavam concentradas nas chamadas “firmas” ou
da consultoria em políticas do urbano, disputa-
“escritórios técnicos”.
das por indivíduos e empresas, locais e interna-
cionais são definidas pelo acúmulo de capitais De acordo com Pulhez (2014), a consolidação de
simbólicos, econômicos, culturais, políticos, escritórios voltados exclusivamente para projetos
sociais, etc. que são acionados nas diferentes aconteceu em paralelo a importantes mudanças
situações para defender seus interesses. Esses e inovações tecnológicas construtivas, vincu-
capitais se expressam no potencial financeiro, ladas, por exemplo, a consolidação da técnica
no domínio de regras burocráticas, na formação do concreto armado no Brasil. Segundo a auto-
e especialização acadêmica, na comprovação de ra, organizações como o Instituto de Pesquisas
experiências práticas no mercado, entre outros Tecnológicas em São Paulo e posteriormente a
recursos valorizados em processos seletivos, lici- Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT),
tatórios ou mesmo em contratos com indicações foram responsáveis pela execução de ensaios,
diretas. Além disso, capitais sociais e simbólicos pesquisas voltadas para atender à indústria e pela
se expressam em fatores mais subjetivos como determinação de regras para o emprego de novos
origem familiar, relações interpessoais pré-es- materiais. Essas mudanças trouxeram consigo
tabelecidas, cor de pele e gênero. demandas por maior capacitação e diversidade de
especializações dentro do campo da engenharia.
O racismo e o machismo são fatores sociais estru-
turantes na organização, criação e reprodução de
A formação e as competências da engenharia e
regras para manutenção das posições de poder.
arquitetura se distinguiam entre: engenheiros,
Desta maneira, o acionamento dos capitais não
responsáveis por grandes obras urbanas, de ae-
são uma escolha, mesmo que o agente não tenha
roportos, pontes, viadutos e estradas de trem ou
consciência do uso de seus atributos no campo,
de rodagem; e arquitetos (ou engenheiros-arqui-
as estratégias adotadas por ele são produtos de
tetos) – denominação dos profissionais formados
um senso prático, que constituem seu habitus2
nas escolas de arquitetura até o fim da década de
(Bourdieu, 1984) junto a outros capitais incorpo-
1930 aproximadamente – responsáveis pelo pro-
rados em sua trajetória pessoal e profissional.
jeto e construção de edificações de menor porte.

2. O conceito de Habitus de Bourdieu consiste em um siste- Foi a partir de 1945, com a fundação da Faculdade
ma de disposições, que busca mediar de maneira dialética a Nacional de Arquitetura no Rio de Janeiro, que
estrutura social e a agência que constituem historicamente os cursos de arquitetura, geralmente alocados
um agente. (Bourdieu, 1984). dentro da Faculdade de Engenharia ou nas Politéc-
EIXO TEMÁTICO 1 nicas, começaram a ser separados, contribuindo
para o fortalecimento da ideia de que o projeto
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO seria uma atribuição dos arquitetos e urbanistas.
Nesse interim, os campos profissionais da enge-
nharia e arquitetura se ampliaram e a engenharia
consultiva ganhou espaço.

O fortalecimento do planejamento urbano


como função do Estado

De acordo com Feldman (2010), em 1940 a concep-


ção do planejamento urbano como uma função
de governo chegou ao nível municipal em seus
diversos setores no Brasil. Com a inserção desta
concepção na administração pública, o termo
urbanismo foi sendo substituído por planejamento
urbano, como um conjunto de disciplinas que
deveriam ir além do desenho urbanístico e pro-
moveriam, a partir dos planos, o desenvolvimento
urbano. Ao longo do primeiro governo Vargas,
diferentes setores da administração pública in-
corporaram a ideia de planejamento a partir de
uma perspectiva técnica e científica, com objetivo
de estabelecer diagnósticos e respostas objetivas
às demandas econômicas, políticas e regionais.
A tecnocracia era vista como um caminho para o
progresso econômico e social do país.

Feldman (2005) explica ainda que, apesar do pla-


nejamento municipal ser considerado uma função
de governo, ou seja, feito através de ferramentas
institucionais e normativas, seu desenvolvimento
se dava fora da administração pública, se refe-
rindo ao crescente aparecimento de instituições
de urbanismo voltadas para assistência técnica
de administrações municipais.

No período militar, os órgãos de planejamento ga-


nharam um marco institucional em âmbito federal
com o surgimento do SERFHAU – Serviço Federal
de Habitação e Urbanismo, “com atribuição explí-
cita de elaboração e coordenação da política na-
cional de planejamento no campo de planejamento
local integrado”. (FELDMAN, 2005, p. 2). Apesar de
sua atribuição enfatizar a política e a prática do
planejamento urbano como papel do Estado, com
a criação do SERFHAU, a atividade de elaboração
de planos fora da administração públicas e tornou
16º SHCU prática corrente. Segundo Feldman (2005), a con-
30 anos . Atualização Crítica
solidação do papel das empresas de engenharia
636 consultiva - e de suas equipes multidisciplinares
- no planejamento se deu pelo interesse sobre os Neste contexto político e econômico, a terceiri-
recursos que o SERFHAU acessava através do zação do planejamento urbano se afastou ainda
BNH - Banco nacional de Habitação, represen- mais das práticas funcionalistas e regulatórias.
tando uma separação entre atividade técnica e A consultoria voltada para o modelo concorren-
ação política e cotidiana da administração. cial se aproximou consideravelmente do espaço
político, avançando cada vez mais sobre a cria-
De acordo com a análise de Feldman (2005) sobre ção de instrumentos, projetos e planos que, em
o cadastro da FINEP3 de 1976, apenas 20% das geral, estão mais vinculados ao financiamento
empresas de Engenharia Consultiva brasileiras da produção urbana e à legitimação de discursos
se formaram antes da regulamentação do SER- que embasam disputas de interesses sobre o
FHAU em 1966. Este, portanto, se “constitui um território urbano.
momento particular na organização do setor do
urbanismo no Brasil no ciclo de institucionalização
que se gesta na década de 30 e se completa nos
O planejamento urbano enquanto política pú-
anos 1970” (FELDMAN, 2005, p.01).
blica em evidência: um contrassenso à expan-
Posteriormente, entre o fim dos anos 1980 e início são do mercado da Consultoria em Políticas do
Urbano?
dos 1990, especialmente a partir do governo do
então presidente Fernando Henrique Cardoso, Conforme dito anteriormente, os governos das
houve um esforço para implantação da agenda décadas de 1980 e 1990 favoreceram a imple-
neoliberal e de suas ferramentas no Brasil. De mentação de políticas neoliberais no Brasil. Por
acordo com Harvey (2006), nesse período houve outro lado e de maneira paradoxal, o processo
um fortalecimento da lógica empresarial como de redemocratização ocorrido nessas décadas,
uma referência para todas as esferas da vida contribuiu para uma articulação nacional de um
social. As práticas ligadas a essa lógica se in- conjunto amplo de setores sociais, que contou
corporam ao modelo do planejamento estraté- com a participação dos movimentos reivindica-
gico urbano, como uma receita de sucesso para tórios e de luta pela reforma urbana (FERNAN-
o desenvolvimento das cidades. Nas propostas DES, 2012). Isso possibilitou que o processo de
do planejamento estratégico ou concorrencial, as redemocratização desse maior visibilidade às
cidades são vistas como produtos a serem mer- discussões acerca das políticas urbanas no país.
cantilizados e ao mesmo tempo como agentes que
concorrem entre si, transpondo os conceitos do Independente das disputas, sobre seus meios e
planejamento de empresas para o planejamento fins, nos anos 2000 ainda era dominante o en-
urbano (Vainer, 2000). tendimento de que o planejamento urbano era
necessário. As raízes desse entendimento encon-
Ressaltamos que, a importação e adaptação das travam-se ancoradas na Constituição Brasileira
práticas do planejamento concorrencial que cir- (1988) e foram melhor desenvolvidas no Estatuto
culavam internacionalmente, contribuíram para das Cidades em 2001. A aprovação do Estatuto
mudar o modo como se pensa o urbanismo, assim representou um esforço na mediação de conflitos
como a prática da consultoria em políticas do que envolvem interesses privados e coletivos
urbano. Os agentes da consultoria passaram a nas cidades, incentivando um processo de pla-
oferecer os planos estratégicos como um produto nejamento pautado na exigência da participação
definitivo, consensuado e detentor de respostas social e na função social da propriedade urbana.
que poderiam garantir o êxito do desenvolvimento
Desta forma, a Constituição Federal de 1988 in-
urbano e socioeconômico das cidades. O mercado
seriu novos instrumentos legais de planejamento
da consultoria em PU ganhou maior visibilidade
na política urbana, além de fortalecer as ideias
nesse cenário como algo indispensável para um
de poder local e autonomia municipal. Apesar do
planejamento urbano eficiente.
fortalecimento do federalismo brasileiro, o acesso
a recursos para muitos setores da política pública
3. Agência pública. FINEP - Fundo de Financiamento de ainda se mantinha concentrado na União ou nos
Estudos de Projetos e Programas. governos estaduais. O Estado - em suas diferentes
EIXO TEMÁTICO 1 escalas – continuou influenciando nas políticas
locais do urbano e por consequência, na criação
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO de demandas para o mercado da consultoria em
políticas do urbano.

Como será demonstrado adiante, é notável a am-


pliação do mercado da consultoria em políticas do
urbano durante o período de 2003 a 2011, enquan-
to Lula esteve à frente da presidência do Brasil.
Isso se deve a fatores variados, mas em especial
à posição que a política urbana ocupou em seu
plano de governo. Com a criação do Ministério
das Cidades em 2003, os recursos disponíveis
para o setor foram ampliados, impulsionando o
mercado da consultoria voltado para a elaboração
de planos e projetos urbanos.

Ao longo da década de 2000, diante da obrigato-


riedade de elaboração dos planos diretores por
grande parte dos municípios e do aumento dos re-
cursos disponíveis para projetos urbanos em nível
básico e executivo, estudos de viabilidade técnica
e econômica, gerenciamento e supervisão através
do PAC – Programa de Aceleração do Crescimento
do governo, muitas prefeituras que não possuíam
estrutura técnica para desenvolver os subsídios
necessários, buscavam soluções para efetivar
os marcos da política urbana em seus municípios
através da terceirização.

Somados a esses fatores, destacamos o aqueci-


mento do setor da habitação por meio do progra-
ma “Minha Casa, Minha Vida”; os grandes investi-
mentos em infraestrutura para realização da Copa
do Mundo de Futebol da FIFA e os Jogos Olímpicos,
além do investimento em projetos voltados para
o setor de energia, como a construção de usi-
nas hidrelétricas, entre outros grandes projetos
urbanos que movimentaram o mercado da con-
sultoria em PU. A concentração de investimentos
em políticas urbanas, envolveram profissionais
autônomos, empresas com diferentes posições
no mercado, organizações sem fins lucrativos e
fundações universitárias através de convênios.

Os dados do Cadastro Central de Empresas (CEM-


PRE – IBGE), evidenciam a aceleração de cres-
cimento do setor de Serviços de Arquitetura e
Engenharia e de Assessoramento Técnico Espe-
16º SHCU
cializado (tabela CNAE4) nesse período. Segundo
30 anos . Atualização Crítica

638 4. CNAE - Classificação Nacional de Atividades Econômicas


dados do CEMPRE, em 1996 haviam 16.792 empre- suas posições nesse espaço social simbólico.
sas cadastradas no setor. Em 2006, esse número Esses agentes agem no campo de acordo com
mais que dobrou e já haviam 36.748 empresas os capitais específicos que possuem de herança
no mercado. Em 2010 esse número subiu para ou que recebem ao longo da vida como cartas
50.898 empresas, apresentando uma elevação de de um jogo, com diferentes valores, atributos e
38,5% na abertura de novas empresas vinculadas capacidades. Assim, campo, agentes e capitais se
ao ramo da arquitetura e engenharia consultiva. relacionam em um movimento no qual os capitais
Comparado com o período entre 2011 e 2015, que que estruturam o campo, são ao mesmo tempo
foi marcado por uma crise econômica mundial, estruturados por ele. E é isso que acaba por dar
mudanças de governo e perfil de governança e dinâmica a esse jogo, no qual o campo é animado
pela consequente redução de investimento nas por esses capitais.
políticas do urbano, o crescimento no setor foi
de apenas 16,8%. (CEMPRE/IBGE5) Como já dito anteriormente, no campo da consul-
toria em Políticas do Urbano a disputa desse jogo
Na política urbana, assim como na política habi- acontece principalmente por interesses de merca-
tacional de interesse social, o Estado participa da do, ou seja, monopólio e lucro. Alguns dos capitais
construção da demanda e da atribuição dos recur- valorizados nessa disputa são acumulados ao lon-
sos necessários para disputa do mercado através go da trajetória pessoal e profissional dos agentes,
de mecanismos de seleção. Esses mecanismos outros são intrínsecos à estrutura social brasileira
estão implícitos nas licitações em suas várias e à origem social de seus agentes, como atribu-
modalidades, que incluem as contratações com tos ligados a gênero, raça ou herança familiar.
dispensa de concorrência e até mesmo na criação
de instrumentos legais que permitem uma maior De acordo com Almeida (2019), o racismo cons-
participação dos agentes privados na definição de titui padrões de normalidade que estruturam a
políticas e projetos para as cidades. Os instrumen- sociedade brasileira em três dimensões: econô-
tos de Manifestação de Interesse Privado (MIP) 6 mica, política e subjetiva. Soma-se a esse arranjo
e Procedimento de Manifestação de Interesse social o sexismo, que também coloca mulheres
(PMI) 7 são exemplos desses instrumentos que em situação de subalternidade, mantendo esses
permitem ao poder privado apresentar ideias, dois grupos distantes dos espaços de poder e de
planos e projetos para as cidades, interferindo tomadas de decisão. Compreender que o racismo
mais diretamente na produção urbana e forta- e o machismo são estruturais, interdependentes
lecendo a lógica das parcerias público privadas. e que estão ancorados na construção histórica
brasileira pós colonial é fundamental para sus-
AS ESTRATÉGIAS DE MANUTENÇÃO E REPRODUÇÃO tentar que o campo da Consultoria em Políticas
de um estado de relações de força no campo do Urbano é perpassado por esses componentes
fundantes que se somam a outros capitais que
da Consultoria em políticas do urbano
são específicos para a reprodução da dominação
nesse campo. Essas duas formas de opressão,
Em um campo (Bourdieu, 1983), acontecem dis- interconectadas, funcionam como determinantes
putas entre agentes que procuram manter ou na disputa pela centralidade no campo da consul-
transformar as relações de força que referenciam toria em políticas do urbano no Brasil.

5. Cadastro Central de Empresas – CEMPRE. Sistema IBGE


O monopólio cisheteropatriarcal (Akotirene, 2018) 8,
de Recuperação Automática – SIDRA. Acesso 20/07/2020. baseado na violência simbólica ficam evidentes ao
https://sidra.ibge.gov.br/pesquisa/cempre/tabelas nos confrontarmos com os dados que mostram a
formação universitária majoritariamente elitista
6. Trata-se de propostas de parcerias público privadas,
e branca - especialmente em áreas como enge-
de investimento ou prestação de serviço, que partem da
iniciativa privada (ou sociedade organizada) para o poder
nharia e arquitetura. Assim como a predominância
público - Decreto nº 36.554/2015. de homens brancos nos cargos mais altos das

7. Trata-se de demandas que o poder público expõe para


que a iniciativa privada apresente propostas e soluções. A 8. Cisheteropatriarcal de: cis[generidade], hetero[ssexu-
PMI pode ser derivada de uma MIP - Decreto nº 36.554/2015. alidade] e patriarcado.
EIXO TEMÁTICO 1 empresas e nos espaços de representação des-
sas áreas profissionais - como nas presidências
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO dos conselhos de classe, associações e sindi-
catos – que também nos revelam estratégias de
reprodução desse monopólio.

De acordo com o Censo do INEP (2016) os cursos


de engenharia civil e de arquitetura e urbanismo
possuem a maior parte dos seus alunos autode-
clarados brancos, mesmo após a política de cotas,
que diminuiu consideravelmente essa discre-
pância. Já nos dados referentes a gênero entre
estudantes e profissionais, a arquitetura possui
maior porcentagem feminina e a engenharia civil
masculina.

Mesmo com o aumento da porcentagem feminina


entre os formados, os espaços de representação
dessas profissões e especificamente do nicho
profissional da consultoria em PU, assim como os
prêmios por atuação profissional, continuam pre-
dominante ocupados e representados por homens
e, em geral, brancos. São exemplos dessa predo-
minância: a ocupação dos cargos de presidência,
vice presidência e de titulares em nível nacional e
regional das entidades: Conselho de Arquitetura
e Urbanismo (CAU) 9; Instituto de Arquitetos do
Brasil (IAB) 10; Conselho Federal de Engenharia e
Agronomia (ConFea) 11; e sindicatos do setor, como
por exemplo o Sindicato Nacional de Arquitetura
e Engenharia Consultiva (SINAENCO) 12.

Outro exemplo está na premiação de “Láurea ao


Mérito” 13 de 2019, realizada pelo sistema ConFea/
CREA, que ao escolher entre profissionais das
engenharias e agronomia de todo o Brasil, se res-
tringiu a homens e em sua maioria brancos para
homenagear. A predominância, ou exclusividade,
de homens premiados se repete nos anos anterio-
res da recomendação. O mesmo acontece entre os
profissionais que já receberam o “Colar de Ouro”,

9. Ver: https://transparencia.caubr.gov.br/presidencia/.
Acesso 15/07/2020.

10. Ver “lista completa ex-presidentes IAB”: https://iab.org.


br/historia e https://iab.org.br/diretoria. Acesso 15/07/2020.

11. Ver: https://www.confea.org.br/sistema-profissional/


historia/ex-presidentes

16º SHCU 12. Ver: http://sinaenco.com.br/direcao-e-conselho/


30 anos . Atualização Crítica
13. Ver em: https://www.confea.org.br/sites/default/fi-
640 les/2019-09/laurea_ao_merito_2019.pdf.
considerado pelo Instituto dos Arquitetos do Bra- lucro e monopólio em suas diferentes especialida-
sil como o maior símbolo de reconhecimento da des, enquanto participam das tomadas de decisão
instituição. A lista, que se iniciou em 1967, conta sobre o espaço urbano. Assim, uma empresa pode
com trinta e nove premiados, todos homens. possuir capitais que fazem dela uma referência
em serviços de saneamento, por exemplo e essa
Outras cartas desse jogo são convertidas como expertise14 nesse determinado nicho, é conver-
capitais simbólicos, como forma de sustentação tida em capital social e simbólico que a coloca
de posições de poder e centralidade dos agentes em uma posição central na disputa do campo.
no campo, como os capitais: financeiro, que pode
ser incorporado a partir de heranças familiares; Por outro lado, outras empresas de engenharia
cultural, proveniente de formação acadêmica ou consultiva de maior porte (com mais vínculos em-
de experiências anteriores na área de atuação; e pregatícios) e maior acúmulo de capital financei-
social, herdado ou reproduzido através das redes ro, ocupam posições centrais a partir de outros
de contato. (Bourdieu, 2005. P. 178). capitais, como preço competitivo, capacidade de
investimento prévio, domínio das regras burocrá-
Esses atributos são acionados de acordo com os
ticas e até mesmo o capital social manifestado
mecanismos de seleção estabelecidos para a dis-
pela rede de contatos mas, não necessariamen-
puta do campo como licitações, ou articulações
te, possuem a expertise ou notoriedade como
diretas balizadas pelo capital social incorporado.
um aparato de disputa. Por esse motivo, algu-
A centralidade (ou monopólio de mercado) tem se
mas estratégias de manutenção no campo são
mantido entre indivíduos e instituições que pos-
compartilhadas por esses diferentes agentes, já
suem, não apenas a capacidade de seguir regras
outras são específicas para o fortalecimento do
burocráticas que regem as disputas licitatórias,
capital que os diferencia dos demais.
mas também uma experiência de jogo que se
traduz na percepção dos momentos em que as
regras podem ser rompidas e que outros capitais
podem ser valorizados.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: AS PRESSÔES E
Destacamos que alguns capitais podem garantir TENSIONAMENTOS SOBRE AS LINHAS DE FORÇA DO
uma melhor colocação em um processo licitató- CAMPO DA CONSULTORIA EM POLÍTICAS DO URBANO
rio, como por exemplo: o capital financeiro que é
apresentado como garantia de existência de uma A consultoria em políticas do urbano aqui discu-
estrutura empresarial de qualidade; os capitais tida é compreendida como uma forma de orga-
culturais, como titulações acadêmicas na área de nização de agentes, que em suas várias escalas
interesse; e os capitais burocráticos, como ates- de atuação se identificam como competentes
tação de capacidade técnica em outros trabalhos para desenvolver ferramentas técnicas e meto-
semelhantes. No entanto, o capital social e político dológicas de intervenção e produção urbana. Do
traduzido em capital simbólico de um agente do mesmo modo que podem possuir capital social,
campo da consultoria em PU pode ser suficiente traduzido em credibilidade no campo, permitindo,
para uma contratação direta com dispensa de a esses agentes, legitimar decisões, acerca do
licitação. Tal dispensa pode ser justificada por
planejamento e produção urbana muitas vezes
exemplo por “notória especialização” (Art. 13 da
já tomadas no espaço político.
Lei de Licitações, 8.666 de 1993), como critério
subjetivo e excepcional do campo, que confere ao Em geral, os agentes da consultoria em políticas
agente uma competência em assuntos específi- do urbano estão em uma disputa de mercado, ou
cos medida pelo reconhecimento público. Essas seja, lucro e monopólio. No entanto, esta disputa
são práticas que, em geral, não fogem aos termos interfere nos processos de concepção e gestão
legais, mas criam condições para manutenção de das políticas do urbano. Entendemos portanto,
posições privilegiadas. que as cidades sofrem diretamente os efeitos das
Os agentes que se encontram em posições centrais
nesse campo não necessariamente concorrem a 14. Expertise se refere a uma experiência, prática ou habilida-
um mesmo tipo de nicho de mercado, disputam de reconhecida na área de conhecimento ao qual se vincula.
EIXO TEMÁTICO 1 disputas desse campo e, consequentemente, das
posturas defendidas por aqueles que tem ocupado
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO posições centrais e privilegiadas nessas disputas.

Cabe destacar que aqueles que se destacam no


campo da consultoria em políticas do urbano são
detentores de capitais simbólicos, que os per-
mitem acessar este espaço limitado de tomada
de decisão de grande impacto na produção do
espaço urbano, assim como na reprodução das
regras que os mantém nessas posições. Estes
capitais, como representação de outras formas
de poder, que não estão apenas na esfera econô-
mica, podem ser acumulados por investimentos,
transmitidos por herança e ou rentabilizados em
lucros e contribuem para manutenção e reprodu-
ção do poder de tomadas de decisão nas mãos da
camada hegemônica, branca e patriarcal.

Grande parte das regras postas nesse jogo atual-


mente favorecem a permanência de grupos privi-
legiados dentro do sistema sociopolítico definido
aqui pelo conceito de cisheteropatriarcado. A
manutenção de tais regras contribui para a re-
produção das violências simbólicas que ocorrem
no campo da consultoria em políticas do urbano.
No entanto, o campo é um espaço de disputa no
qual alguns agentes buscam a conservação das
regras do jogo para manutenção de suas posições,
enquanto outros, lutam pela superação do habitus
e por uma transformação social desse campo. No
campo da consultoria em políticas do urbano a
dominação do patriarcado hétero e branco sem-
pre sofreu contraposição e pressão para o rompi-
mento das estratégias de manutenção do poder.

O reflexo da ampliação das lutas que contrapõe o


habitus desse campo pode ser visto nas disputas
pelos postos de representação profissional e de
classe, já citados anteriormente. Nas últimas
eleições dos conselhos, associações e sindicatos
de classe, por exemplo, a paridade e equidade de
gênero e raça na composição das chapas e nos
espaços de poder, têm sido pautadas e deba-
tidas. Esses conselhos de classe também têm
criado comissões e espaços de discussão sobre
os temas, a fim de elaborar políticas de enfrenta-
mento à desigualdade de gênero e raça, como nos
casos: da Comissão Temporária para a Equidade
16º SHCU
de Gênero do CAU-BR15 e do Programa Mulher do
30 anos . Atualização Crítica

642 15. Ver mais em: https://caubr.gov.br/topicos/comissao-tem-


Sistema Confea/Crea16. REFERÊNCIAS
Outro exemplo do fortalecimento dessa disputa
ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo Estrutural.
aconteceu no último pleito pela presidência e
São Paulo: Sulei Carneiro; Pólen. 2019. (Femi-
diretoria do Instituto dos Arquitetos do Brasil do
nismos Plurais/coord. Djamila Ribeiro)
Rio de Janeiro, na qual a chapa “Oxigena IAB-RJ”
foi eleita. A chapa foi composta por 35 arquitetos, AZEVEDO, Sérgio de. Vinte e dois anos de polí-
entre esses 8 co-presidentes: cinco mulheres e tica habitacional (1964-86): criação, trajetória
três homens com representatividades diversas e extinção do BNH. Revista de Administração
de raça, origem social e orientação sexual. Estes Pública, vol. 22, no 4. Rio de Janeiro: Fundação
se organizaram com a proposta de construir um Getúlio Vargas, out. /dez. 1988, p. 107-120.
mandato coletivo e horizontal, que toma como
principal bandeira a renovação dos quadros do BASSUL, J. Estatuto da Cidade: Quem ga-
instituto. Entre as atividades divulgadas pelo nhou? Quem perdeu? Senado Federal: Secre-
órgão é possível notar mudanças relacionadas à taria Especial de Editoração e Publicações.
formação de bancas de seleção em concursos que Brasília, 2005.
ficaram mais diversas, assim como maior ênfase
nas questões de gênero, etnicidade, inclusão e BERNARDES, L. Política Urbana. Análise e Con-
visibilidade LGBTQI+, etc. entre as temáticas dos juntura, n° 1. Belo Horizonte: Fundação João
eventos promovidos. Pinheiro, 1986, p. 83-119.

Nesses exemplos, percebemos uma conversão de BORJA, J. As cidades e o planejamento estratégi-


capitais simbólicos acumulados por agentes (que co. Uma reflexão europeia e latinoamericana. In:
até então estavam nas periferias desse campo), FISCHER, T. (Org). Gestão contemporânea. Cidades
em ativos que possibilitaram uma mobilidade estratégicas e organizações locais. Rio de Janeiro:
destes para espaços de domínio e decisão sobre Editora da FGV, 1996.
as regras do jogo. Elementos simbólicos, como
paridade de gênero, representação étnica e racial, BOURDIEU, P. Questões de sociologia. Rio de Ja-
passam a ser reconhecidos como estratégias de neiro: Marco Zero; 1983.
tensionamentos das regras gerais de entrada e
_________. A Dominação Masculina. Rio de Janei-
mobilidade no campo.
ro: Editora Bertrand Brasil, 2003, p 64.
No entanto, as condições de acumulação de ca-
_________. O campo econômico. Política & Socie-
pitais valorizados no campo são proporcionais às
dade, 6: 15-58. 2005.
oportunidades de jogo que os agentes encontram
nos espaços sociais simbólicos. Por isso, ressal- _________. Sobre o Estado. São Paulo: Companhia
tamos que as transformações ainda são pequenas das Letras, 2014.
para pressupor a inserção de um novo habitus no
campo da consultoria em políticas do urbano em _______. Algumas propriedades dos campos. In:
um curto prazo. Ainda assim, tais transformações BOURDIEU, Pierre. Questões de Sociologia. Rio de
não podem ser vistas como circunstanciais ou Janeiro: Editora Marco Zero, 1983. p.89-94. (Cole-
aleatórias, pois são reflexo de disputas e acúmu- ção Trilhas)
los historicamente construídos por agentes que
se esforçam para acumular capitais que outros BRAGA, Sérgio Soares. Verbete Biográfico LER-
concentram por mecanismos de hereditariedade. NER, Jaime. In: ABREU, Alzira Alves de et al (co-
ords.). Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro
– Pós-1930. Rio de Janeiro: CPDOC, 2010.

BRASIL. LEI Nº 11.079, DE 30 DE DEZEMBRO DE


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EIXO TEMÁTICO 1 RESUMO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Neste artigo contribuímos com elementos para
uma atualização crítica sobre as abordagens
vídeo-pôster historiográficas dos conjuntos habitacionais
produzidos na vigência do complexo institu-
cional constituído pelo Sistema Financeiro da
O CONJUNTO HABITACIONAL Habitação/Banco Nacional da Habitação/Com-
panhias de Habitação (SFH/BNH/COHABs), de
PÓS-1964 NA 1964 a 1986. O objeto conjunto habitacional –
cuja forma urbana tem sua gênese no final do
HISTORIOGRAFIA DO século XIX – tem sido tratado diferentemente
na historiografia da arquitetura e do urbanismo
URBANISMO NO BRASIL: no Brasil, segundo os regimes políticos que dele
se serviram como dispositivo de alojamento co-
PERMANÊNCIAS E letivo para as classes populares. Exploramos

DESCONTINUIDADES ENTRE um contexto historiográfico em que o conjun-


to habitacional consta majoritariamente como

REGIMES POLÍTICOS elemento negativo na política urbana a partir de


1964. Em que pese tenham ocorrido duas dita-
duras (1937-1945, no primeiro governo Vargas, e
THE HOUSING SET POST-1964 IN THE 1964-1985, no regime militar) e, em que pese no
HISTORIOGRAPHY OF URBANISM IN BRAZIL: período democrático de 1946 a 1964 também te-
PERMANENCE AND DISCONTINUITIES BETWEEN nham ocorrido banimentos, exílios e prisões de
POLITICAL REGIMES militantes de esquerda, os conjuntos produzi-
dos entre 1930 e 1964 já tem sido objeto de uma
historiografia com um alto nível de isenção em
EL CONJUNTO HABITACIONAL POST 1964 EN LA
relação a juízos historiográficos. Os conjuntos
HISTORIOGRAFÍA DEL URBANISMO EN BRASIL:
“do BNH”, vetor de expansão das cidades promo-
PERMANENCIAS Y DISCONTINUIDADES ENTRE
vida a partir da política habitacional e urbana do
REGÍMENES POLÍTICOS
período militar, ainda estão a aguardar, inclusive
em função das demandas atuais de reabilitação,
NEGRELOS, Eulalia Portela um inventário de sua produção vinculada aos
Livre Docente; IAU-USP
objetivos expressos no planejamento integrado,
negrelos@sc.usp.br que vigeu oficialmente a partir de 1964, cujas
premissas, tanto de planos quanto de conjuntos,
ainda estão bastante presentes inercialmente
em setores da cultura técnica dos campos, do
planejamento urbano e da habitação social.

CONJUNTOS HABITACIONAIS SFH/BNH/COHABS


URBANISMO HISTORIOGRAFIA ESTADO DE SÃO PAULO

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

646
ABSTRACT RESUMEN

In this article, we contribute with elements for a En este artículo contribuimos con elementos
critical update on the historiographical appro- para una actualización crítica sobre los aborda-
aches of housing estates produced during the jes historiográficos de los conjuntos habitaciona-
institutional complex consisting of the Sistema les producidos en la vigencia del complejo insti-
Financeiro da Habitação/Banco Nacional da Ha- tucional del Sistema Financeiro da Habitação/
bitação/Companhias de Habitação (SFH/BNH/ Banco Nacional da Habitação/Companhias de
COHABs), from 1964 to 1986. The housing set ob- Habitação (SFH/BNH/COHABs), de 1964 a 1986. El
ject - whose urban form has its genesis at the end objeto conjunto habitacional – forma urbana con
of the 19th century - has been treated differently in génesis en finales del siglo XIX – ha sido tratado
the historiography of architecture and urbanism diferentemente en la historiografía de la arqui-
in Brazil, according to the political regimes that tectura y del urbanismo en Brasil, según los regí-
served as a device of collective accommodation menes políticos que de ello se han servido como
for the popular classes. We explored a historio- dispositivo de alojamiento colectivo para las
graphical context in which the housing complex clases populares. Exploramos un contexto histo-
is mostly a negative element in urban policy since riográfico donde el conjunto habitacional consta
1964. In spite of two dictatorships (1937-1945, in mayoritariamente como elemento negativo en
the first Vargas government, and 1964-1985, in the la política urbana a partir de 1964. Aunque hayan
military regime) and, whereas in the democratic ocurrido dos dictaduras (1937-1945, en el primero
period, from 1946 to 1964, there were also bans, gobierno Vargas, y 1964-1985, en el régimen mili-
proscriptions, exiles and arrests of left-wing mi- tar) y, aunque en el período democrático de 1946
litants also, the sets produced between 1930 and a 1964 también hayan ocurrido proscripciones,
1964 have already been the subject of a historio- exilios y prisiones de militantes de izquierda, los
graphy with a high level of exemption in relation conjuntos producidos entre 1930 y 1964 ya han
to historiographical judgments. The “BNH” sets, sido objeto de una historiografía con alto nivel de
vector of expansion of cities promoted from the exención en relación a los juicios historiográficos.
housing and urban policy of the military period, Los conjuntos “del BNH”, vector de expansión de
are still waiting, including due to the current de- las ciudades a partir de la política de vivienda y
mands for rehabilitation, an inventory of their urbana del período militar, aún están esperando,
production, linked to the objectives expressed in incluso en función de las demandas actuales de
the integrated planning, which officially occur- rehabilitación, un inventario de su producción
red from 1964, whose premises, both of plans and vinculada a los objetivos expresos en el planea-
sets, are still quite present in sectors of the tech- miento integrado, con vigencia oficial a partir de
nical culture of the fields of urban planning and 1964, cuyas premisas, de planos y de conjuntos,
social housing. aún están presentes inercialmente en sectores
de la cultura técnica de los campos del planea-
miento y de la vivienda social.
HOUSING SETS SFH/BNH/COHABS URBANISM
HISTORIOGRAPHY SÃO PAULO STATE
CONJUNTOS DE VIVIENDA SFH/BNH/COHABS
URBANISMO HISTORIOGRAFÍA ESTADO DE SÃO PAULO
EIXO TEMÁTICO 1 INTRODUÇÃO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Este artigo objetiva contribuir para a construção de
diálogos historiográficos, possibilidade aberta pela
proposta de debates no XVI SHCU, levantando ques-
vídeo-pôster
tões teórico-metodológicas para uma atualização
crítica sobre a produção de conjuntos habitacionais

O CONJUNTO HABITACIONAL promovidos pelo Estado, recortando o período do


regime militar, de 1964 a 1986, do golpe até a extin-

PÓS-1964 NA ção do BNH, em que vigeu o quadro institucional e


jurídico do SFH/BNH/COHABs.
HISTORIOGRAFIA DO O fio condutor da reflexão, baseada em pesqui-

URBANISMO NO BRASIL: sas realizadas em casos em todo o estado de São


Paulo (NEGRELOS, 2019), se constrói sobre o que
PERMANÊNCIAS E consideramos permanências e descontinuidades
na produção de conjuntos habitacionais, na pers-
DESCONTINUIDADES ENTRE pectiva de sua marcante presença na produção do
espaço urbano no Brasil, com centralidade para a
REGIMES POLÍTICOS compreensão do seu papel como vetor de expansão
urbana. Sua aplicação como espaço privilegiado de
alojamento coletivo destinado às classes populares
THE HOUSING SET POST-1964 IN THE se amplia neste trabalho para a avaliação entre
HISTORIOGRAPHY OF URBANISM IN BRAZIL: dois períodos, cuja abordagem permite a discussão
PERMANENCE AND DISCONTINUITIES BETWEEN vinculada a regimes políticos:
POLITICAL REGIMES
i) 1930 a 1964, englobando ditadura e democracia:
EL CONJUNTO HABITACIONAL POST 1964 EN LA no primeiro governo varguista, com a ditadura do
HISTORIOGRAFÍA DEL URBANISMO EN BRASIL: Estado Novo (1937-1945), quando, desde 1930, o
PERMANENCIAS Y DISCONTINUIDADES ENTRE Estado brasileiro assume a promoção da moradia
REGÍMENES POLÍTICOS popular através do sistema estatal constituído pe-
los Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPs) e
outros órgãos, fincando a forma urbana conjunto
- ainda “residencial” (Bonduki, 1998) - como o dis-
positivo para buscar atender à grande demanda
de habitação num quadro de intenso fomento ao
desenvolvimento com industrialização; 1930 é o
marco do início de um percurso público de atuação
em que a habitação se consolida como mercadoria
e a propriedade privada é o componente intrínseco
da atuação capitalista do Estado.

ii) a ditadura militar, a partir do golpe de 1964 im-


petrado com apoio de setores da sociedade civil,
quando se consolida a utilização da forma urbana
conjunto, avançando para a intensificação de seu
já praticado caráter massivo, com promoção local
e regional pelas companhias de habitação, orga-
nismos promotores públicos, previstos no mes-
16º SHCU mo quadro jurídico-institucional que cria o SFH, o
30 anos . Atualização Crítica
BNH e o SERFHAU (Serviço Federal de Habitação
648 e Urbanismo), prevendo a operação de organismos
promotores privados. 1986 é o ano da extinção do Antes de 1930, Bonduki (1998; 2014) indica como tais
banco, na vigência da presidência do país exercida componentes se organizam: com liberalismo econô-
por civil a partir de eleição indireta, fechando um mico, no modelo rentista de produção da habitação
período de ação institucional na política urbana e e o Estado normatizando condições sanitárias. A
habitacional orientada por militares e seu corpo demanda trabalhadora é dispersa ou empregada
técnico civil em todos os escalões de governo. nos setores emergentes da indústria e do comércio;
a terra é privada, mormente de industriais, mas
A descontinuidade entre esses dois períodos pode também de mútuas operárias (vilas, que já indicam
ser entendida por conta dos 18 anos do “período de- a reunião de habitação em conjunto coletivo), e de
mocrático” (FAUSTO, 2007), iniciado no fim de 1945 empreendedores imobiliários (cortiços); os recursos
e até 1964, em cuja extensão temporal se expande são privados ou já vinculados a mútuas de trabalha-
a produção habitacional a partir dos IAPs, No que dores; o projeto é bancado por capital privado ou
tange à política urbana, dá-se a conformação de de contribuições de mutuários; as tipologias são a
um quadro de promoção do planejamento que vinha habitação coletiva precária de aluguel (cortiços/
se ampliando e consolidando desde 1930, que per- horizontal) ou habitação unifamiliar de empresa ou
mitiu o aumento da atuação profissional e política mútuas (vilas operárias/horizontal); a urbanização
no setor baseado no ambiente democrático, com é coesa, no centro e no primeiro cinturão de lote-
uma série de eventos como congressos e seminá- amentos, para a cidade de São Paulo.
rios para a discussão de componentes de reforma
De 1930 a 1964, com desenvolvimentismo, na con-
urbana (LEME, 2019). Contudo, o período contém
junção entre industrialização, intervencionismo
profundas contradições, sem democracia plena,
pró-crescimento nacional e nacionalismo (BASTOS;
com elevado índice de exclusão social e de controle
FONSECA, 2012), com o “primeiro ciclo ideológico do
ideológico com a “guerra fria” instalada no segundo
desenvolvimentismo”, com origem em 1930, consoli-
pós-guerra, em que o anticomunismo orienta, no
dação e auge até 1960, marcado com a inauguração
campo da política, a perseguição, o banimento,
de Brasília, e decadência até o golpe militar (BIELS-
a prisão e o exílio de militantes da esquerda com
CHOWSKY; MUSSI, 2005), pode-se dividir, do ponto
partidos mantidos na ilegalidade.
de vista da habitação social em dois subperíodos:
Um conjunto de componentes das políticas habi-
a) de 1930 a 1945 – com organismos do sistema IAP,
tacionais estatais podem contribuir para a com-
reorganizado pelo Estado para a assistência pre-
preensão da habitação social a partir de 1930: a)
videnciária a partir de 1933, passando a atuar na
demanda habitacional; b) recursos fundiários – terra;
promoção de habitação, com suporte estatal legal,
c) recursos econômicos – fontes de financiamento;
de forma descentralizada. Constitui-se um longo pe-
d) autoria e propriedade dos projetos; e) tipologias ríodo de 34 anos, com produção de “conjuntos resi-
empregadas; f) forma da urbanização. Ocorre a denciais” para o alojamento de diferentes categorias
consolidação do conjunto habitacional, aqui enten- de trabalhadores. Os componentes dos conjuntos
dido como produção material e objeto de práticas aqui são: demanda corporativa e seletiva, formada
urbanísticas, com articulação variada aos instru- por associados dos institutos; terra de domínio
mentos de planejamento urbano, aplicados para dos IAPs ou privado (loteamentos); recursos dos
distanciar as classes sociais, relegando as mais IAPs produzidos com contribuição do trabalhador
pobres à periferia urbana geográfica e sociológica, associado; projetos de autoria dos IAPs em seus
na “fronteira de expansão do capital” (MAUTNER, departamentos técnicos, nem sempre com autoria
1999), desprovida da adequada densidade de infra- reconhecida, podendo-se identificar profissionais,
estrutura e de equipamentos sociais de consumo arquitetos e engenheiros, vinculados ao ideário
coletivo, como “espoliação urbana” (KOWARICK, moderno; habitação massiva contextualizada, nas
1979), conformado por conjunto de edifícios de ti- tipologias MV, em diversos tipos de blocos, e UH,
pos variados vinculados às principais tipologias com diversos tipos de casas; a urbanização já indica
(multifamiliar vertical (MV) e unifamiliar horizontal alguns terrenos periféricos, sobretudo em grandes
(UH), com maior ou menor atendimento ao princípio cidades com crescimento metropolitano de forma
moderno da instalação de equipamentos sociais em combinada com preenchimento de urbanização
unidades de vizinhança. consolidada (FERRARI, 2013).
EIXO TEMÁTICO 1 b) de 1946, desde a criação da Fundação da Casa
Popular (FCP), como intento de atuação pública di-
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO reta articulada às municipalidades, até 1964, quando
esta é englobada pelo SERFHAU. Os componentes
aqui são os mesmos para os IAPs, incorporando
as particularidades vinculadas ao perfil institucio-
nal público da FCP: demanda local; terra pública
municipal; recursos públicos; projetos de autoria
local; pequenos conjuntos; urbanização periférica
combinada com preenchimento da urbanização
consolidada.

De 1964, do golpe militar e criação do SFH/BNH/


COHABS/SERFHAU, até1980 está vigente o “segundo
ciclo ideológico de desenvolvimentismo” (BIELS-
CHOWSKY; MUSSI, 2005) com um novo quadro jurí-
dico institucional e financeiro, os componentes dos
conjuntos passam a ser: demanda dispersa e anô-
nima inscrita junto às COHABs (autarquias locais);
terra pública (com a criação dos “bancos de terras”);
recursos públicos (inicialmente do tesouro nacional
e a partir de 1967 do Fundo de Garantia do Tempo de
Serviço – FGTS); projetos de autoria e propriedade
das COHABs (em geral, sem autoria reconhecida,
mas com identificação em algumas companhias);
intensificação do caráter massivo e extensivo da
habitação – blocos e casas; urbanização periférica,
como vetor de expansão urbana, em geral, com
exceções a depender da configuração fundiária e
política de cada município (NEGRELOS, 2019) Até
1986, ano da extinção do BNH, os mesmos autores
identificam a “instabilidade macroeconômica ini-
bidora do pensamento desenvolvimentista” (p. 34)

De 1930 a 1986 ocorre uma descontinuidade interna


ao próprio objeto “conjunto”: se entre 1930-1964 o
conjunto é residencial, implementado de forma
descentralizada e vinculado à lógica da expansão
do ideário moderno no Brasil, com componentes
da produção da habitação como produção da ci-
dade moderna (FERRARI, 2013), no período mili-
tar o conjunto passa a ser “habitacional”, conceito
mais técnico, intensifica-se seu caráter massivo
(dado conceitualmente pelo próprio tema da habi-
tação no processo histórico da industrialização) e
se centraliza toda a política num sistema nacional
operado a partir da lógica financeira de um banco
público. Essa, segundo Santos (1989) é a marca do
grande problema dessa política, ao fomentar, para
16º SHCU as metrópoles, particularmente a de São Paulo, o
30 anos . Atualização Crítica
caráter corporativo da ação estatal; nesse sentido,
650 se não abandonando por completo aquele ideário
moderno buscado e estimulado no período anterior, indicar outra camada que poderá agregar-se aos
mantém-se por inércia e por redução (NEGRELOS, conjuntos habitacionais contribuindo para a crítica
2019) alguns de seus componentes, exatamente em Arquitetura e Urbanismo.
aqueles que são mais operativos para a racionali-
zação da atuação do agente privilegiado da política A indicação de Le Goff de que “cada época fabri-
habitacional, a cadeia da indústria da construção ca mentalmente a sua representação de passado
civil. (CAMPOS, 2015) histórico” (2003, p. 26) nos anima ao debate, uma
vez que o processo de construção historiográfica
Dada a variada conjunção dos componentes indi- não descarta a impregnação por ideologias, com
cados, uma atualização historiográfica incorpora consequências que envolvem, inclusive, a conde-
uma nova mirada crítica sobre a produção de con- nação ao esquecimento e ao banimento de alguns
juntos habitacionais no Brasil a partir da indica- objetos produzidos historicamente, neste caso, os
ção da relação entre os historiadores e o tempo, conjuntos habitacionais “do BNH”, apesar de sua
voltando a atenção para o que efetivamente muda enorme participação na produção do espaço urbano
no tempo, já que “o tempo para o historiador é um em todo o país.
objeto de trabalho, uma questão metodológica”
(OFFENSTADT. 2011, p. 9). Uma primeira operação Com base no estudo das especificidades no interior
de atualização passa por reconhecer tais disposi- de um processo geral, quais sejam as específicas
tivos de alojamento popular como registros de um condições de geração de conjuntos pelas inúmeras
tempo de atuação estatal (que poderia ser um tempo COHABs em todo o país, com respaldo de pesquisa
médio de Braudel, “um tempo social... dos ciclos nas sete que se criaram no estado de São Paulo
econômicos e da conjuntura” (OFFENSTADT, 2001, entre 1964 e 1979 (NEGRELOS, 2019), o título que
p. 22), em que vigoraram duas políticas habitacio- segue tem duas partes. Na primeira, amparados
nais com sua marca urbanística na transformação por uma seleção, não sem riscos de parcialidade,
urbana – de 1930 a 1986 – buscando rever a comum que reúne trabalhos consolidados sobre a habi-
e corrente consideração de que conjuntos mas- tação social no Brasil vinculados a vários campos
sivos produzidos para sua comercialização para disciplinares, analisamos as contradições internas
os pobres no regime de propriedade privada tem das políticas e entre si. Na segunda, ampliamos a
origem com o BNH. abordagem sobre as contradições metodológicas
entre regimes políticos, indicando elementos de
Na articulação da História aos campos discipli- continuidade e rupturas que não respondem de
nares da Arquitetura e do Urbanismo, buscando forma linear a democracias ou ditaduras, quando o
compreender a situação da crítica à forma urbana tema é a produção estatal de habitação. O Estado
conjunto habitacional a partir da ação do regime capitalista, desde as “origens da habitação social
militar ampliando seu caráter extensivo, amparados no Brasil“ (BONDUKI, 1998), independentemente de
por Argan (1998) e Le Goff (2003), estudamos na regime político, orienta sua ação no setor de forma
história os problemas colocados pela sociedade a aplicá-lo em políticas econômicas anticíclicas,
no presente. Podemos compreender, daí, que tudo sempre considerando a habitação como merca-
o que se disse sobre os conjuntos habitacionais se doria, indicando a importância de ampliarmos a
agregou a eles, como camadas de interpretação, na compreensão sobre o Estado e seus dispositivos de
“metáfora da ‘mudança de pele’, mobilizada tanto por poder e governamentalidade (FOUCAULT, 1979), na
Febvre quanto por Braudel para sugerir, aliás corre- história do urbanismo, disciplina com sua própria
tamente, que a historiografia, por ser também his- contradição interna, entre o serviço do capital e a
tórica, está sempre aberta a mudanças” (BARROS, busca pela qualidade urbana, bem estar dos indiví-
2013, p. 321, aspas no original). O presente indica duos e desfrute ecologicamente equilibrado.
questões que nos movem a reconstituir o passado
(aqui, um passado muito próximo com muitas feridas Este é o campo do presente que nos leva à compre-
políticas ainda abertas), que, segundo Febvre, não ensão das formas históricas de ação da socieda-
deixa de nos oferecer a possibilidade de sempre de na produção da moradia em um país com altos
reiniciar sua reconstrução (ANGOTTI-SALGUEIRO, níveis de desigualdade, exclusão social e que está
2016). Neste trabalho retornamos a algumas das a demandar ações tanto de reabilitação de assen-
interpretações até agora acumuladas para, assim, tamentos coletivos de habitação na forma urbana
EIXO TEMÁTICO 1 conjunto (MARTINS; OTERO, 2011) quanto de con-
cepção de espaços de habitar com mais elevado
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO grau de urbanidade ou de valorização da moradia
com o seu valor de uso.

UMA CONTRIBUIÇÃO aos DIÁLOGOS HISTORIOGRÁ-


FICOS sobre o complexo SFH/BNH/COHAB

Abrimos novas frentes de análise do objeto


conjunto habitacional “do BNH”, seus principais
agentes e contradições da política habitacional
do período, focalizando seu tratamento historio-
gráfico, para a história da cidade como campo de
conhecimento e para a área de história urbana,
identificando três grandes períodos de produção
científica, em vários campos disciplinares em que
pode-se observar as contradições em relação à
atuação do Estado, para o conjunto das políticas
e programas habitacionais desde 1930:

i) de 1964-1986 ao primeiro SHCU, em 1990, com


reflexões realizadas na vigência do BNH, pas-
sando pela redemocratização e a elaboração
da Constituição Federal em 1988, ampliação de
administrações municipais progressistas com
novas práticas de produção habitacional alter-
nativas às do BNH/COHABs, defendendo projetos
contextualizados, menores, melhor inseridos na
malha urbana, com participação social e com
autogestão ou cogestão;

ii) de 2000 a 2008, na consolidação da Reforma


Urbana e aplicação do Estatuto da Cidade (2001)
- é um período de vigência do Programa de Ar-
rendamento Residencial (PAR), de 1999, operado
pela CEF (Caixa Econômica Federal, “herdeira” do
BNH para o financiamento urbano e habitacio-
nal), após período sem programas federais. Os
componentes do PAR diferem das duas políticas
anteriores, apresentando: demanda habitacional
qualificada junto os municípios credenciados;
recursos públicos (a CEF avalia os projetos e libera
os recursos); projetos de autoria privada; mesmas
tipologias (blocos da MV e casas da UH); expansão
urbana com baixa densidade de infraestrutura;
em relação à terra, diferindo do período BNH pois
é privada, oferecida pelos incorporadores/pro-
16º SHCU prietários, mas ainda em franjas urbanas fora do
30 anos . Atualização Crítica
perímetro urbano, sem estoque de terras públicas
652 para o planejamento do setor habitacional.
iii) desde 2009, após o lançamento do Programa Trabalhos estruturais aprofundaram a compreen-
Minha Casa Minha Vida (PMCMV), reavivaram-se são e a explicação do sistema SFH/BNH/COHABs,
as críticas negativas ao período do “conjunto construindo uma crítica consolidada e ampla-
BNH”, considerando-o a “origem” de conjuntos mente reconhecida nas interfaces das políticas
repetitivos, mal localizados, seriados, massivos, urbana e habitacional com os seus componentes
tomando os conjuntos do PMCMV como retomada econômicos e sociais: Azevedo e Andrade (1982),
das características da produção habitacional da abordando desde a FCP; Azevedo (1988), com um
ditadura militar, avaliando que não se aprendera balanço mais completo após a extinção do BNH
com os “fracassos” do BNH. A relação direta entre em 1986; Bolaffi (1972; 1979); Maricato (1987); Bon-
o PMCMV e a política do BNH não contribui para a duki (1998). Para a relação com os instrumentos
compreensão das diferenças dos sistemas, uma de planejamento vigentes no período, Feldman
vez que, a pesar da introdução do componente da (2005) tem estudo essencial do processo de cons-
regularização fundiária na lei de criação do novo tituição e consolidação do zoneamento em São
programa, suas características se relacionam Paulo, abrangendo a atuação do SERFHAU e ou-
diretamente com o PAR/CEF. tros agentes de planejamento entre 1964 e 1975.

A escrita sobre as políticas habitacionais neste Algumas abordagens sobre a habitação social no
terceiro tempo reposicionou as já então conso- Brasil de 1930 a 1980 no quadro latino-america-
lidadas críticas ao período BNH a partir da con- no encontram-se em Aravecchia-Botas (2016);
sideração de que se estaria reeditando “erros” Koury (2016); Ferrari (2018); Huapaya Espinoza
do passado no novo programa, prática historio- (2014) e Morais (2016), este considerando vigente
gráfica em que “a ideia que a história ensina, que a função da “habitação em grande escala” para
os exemplos do passado informam o presente, e grandes metrópoles. A ampliação para o âmbito
também permitem governá-lo, percorre ainda ibero-americano se fortalece com a criação da
numerosos pensamentos ou escritos contempo- Associação Ibero-americana de História Urbana
râneos” (OFFENSTADT, 2001, p. 11). A passagem é (AIHU), em 2013, tendo realizado dois Congressos
da mesma forma indicativa do que Lucien Febvre Ibero-americanos de História Urbana (CIHU), em
considera como “’história contemporânea’, porque 2016 e 2019. Na Espanha, Moya González (1983)
é produzida na própria época do historiador, de é referência realizando inventário de conjuntos
acordo com as suas demandas e possibilidades” produzidos em Madri durante a ditadura (1939-
(BARROS, 2018, p. 203, aspas no original). 1975), como aporte para a construção da crítica
aos grandes conjuntos na articulação dos campos
Uma historiografia crítica à produção da habitação disciplinares das ciências sociais e da arquitetura
social pelo Estado a partir de 1930 foi construída e do urbanismo.1
por “pioneiros” como Azevedo e Andrade (1981); Fa-
rah (1983); Melo (1990); Bonduki (1998); Bruna (2010); Para as ditaduras na América Latina, Doerr (2017)
Vaz (2002), Correia (2004), que abordaram a Era realiza análise comparativa de políticas habita-
Vargas, entre 1930-1945 e entre 1946-1964, anali- cionais, ampliando os casos do Chile (1973-1990)
sando a produção habitacional na chave do ideário e do Brasil, repercutindo a historiografia brasi-
moderno em que se inseria essa produção e nos leira sobre o BNH nos seus aspectos negativos,
componentes sócio econômicos das políticas pra- sobretudo o limitado atendimento à demanda de
ticadas. Recentemente, em trabalho organizado mais baixa renda e a inserção urbana periférica e
por Rezende (2012) para o período 1930-1945, há desqualificada, avançando na construção de um
uma série de análises sobre os componentes de quadro mais amplo para a compreensão de seu
transformação urbana a partir da transformação desenvolvimento, de forma vinculada ao combate
do próprio Estado brasileiro. Desdobramentos
desse quadro são trabalhos como os de Aravec-
1. Nos anais do I CIHU, em várias mesas temáticas aprofun-
chia-Botas (2016); Bonduki e Koury (2014); Ferrari dam-se análises sobre políticas públicas durante ditaduras
(2013); outros têm expandido a análise da produ- e das condições específicas do desenvolvimento da Arqui-
ção do período 1964-1986: Melo (1991); Bonduki tetura e do Urbanismo sob esses regimes. Disponível em
e Koury (2010); Sanvitto (2010); Medeiros (2018); http://media.wix.com/ugd/ea4362_3fe99cb8c2cf45929fa-
Negrelos (2019; 2014); Ferrari e Negrelos (2013). 4da421b621b80.pdf
EIXO TEMÁTICO 1 ao comunismo e o papel dos EUA na ocorrência
dos golpes militares no continente.
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Na articulação entre políticas e econômico-finan-
ceira destacam-se as abordagens tecnológicas,
da construção e do trabalho, em geral as mais
exploradas na maior parte dos trabalhos mais
citados; dentre eles destacamos, com origem
nas ciências política, econômica e social: Singer
(1963); Azevedo e Andrade (1982), Azevedo (1988),
Bolaffi (1972; 1979; 1983); Arretche (1990); Farah
(1992, 1996).

No binômio tecnologia/industrialização na arqui-


tetura e no urbanismo, sempre relacionadas aos
campos econômico-político e social, destacamos:
Ferro (1972); Bruna (1976); Vargas (1981); Lamparelli
(1982); Maricato (1979; 1984; 1987); Taralli (1984);
Castro (1985); Tavares (1987). Ressaltamos a con-
tribuição do Instituto de Economia Industrial da
UFRJ (atual Instituto de Economia/UFRJ), com
análises minuciosas sobre os programas habi-
tacionais alternativos formulados no período do
SFH/BNH/COHABs (IEI/UFRJ, 1989).

Análises que vinculam a produção da habitação


pelo Estado à crise urbana, à necessidade de uma
reforma urbana, à produção da cidade e à dinâmi-
ca populacional estruturam os seguintes traba-
lhos: Valladares (1978; 1980); Taschner (1992; 1997);
Aquino (1989); Maricato (1997); Sampaio (1998).

São abundantes os trabalhos sobre a produção


no município de São Paulo, seja partindo de um
conjunto habitacional seja analisando generi-
camente toda a produção da COHAB-SP. Alguns
autores escrevem a partir de sua atuação profis-
sional na COHAB-SP: Kliass, Bronstein e Freitas
(1970); Cantero (2004); Milanesi (2001); outros
analisam a produção habitacional do período a
partir de determinados conjuntos: Motta (1975);
Castro (1985); Tavares (1987); Magnavita (1994);
Slomiansky (2002); Nakano (2002); Zandonade
(2005). Estes últimos trabalhos partem da rea-
lidade metropolitana de São Paulo, da produção
da COHAB-SP, contribuindo para a crítica sobre
os conjuntos produzidos no período. A revisão
crítica é necessária, uma vez que para o estado de
São Paulo há outras 6 companhias de habitação2,
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
2. O estado de São Paulo tem sete companhias de habitação,
654 criadas na vigência do SFH/BNH, atuando em suas sedes e
cuja produção indica importantes especificidades (2014) seja justamente após o golpe militar de
ainda que no mesmo quadro normativo, fundiário 1964, tanto pelo “afastamento literal de muitos
e financeiro do BNH (NEGRELOS, 2019). arquitetos das salas de aula” (p. 212), quanto pela
“própria tensão que pairava sobre a arquitetura, o
Para todo o Brasil (e outros continentes), o site urbanismo e seu devir nos anos 1980 e que tecem
Cronologia do urbanismo 3 vem montando um fios também herdados de outras temporalida-
quadro, cujos eventos relacionados com o perí- des e dinâmicas culturais” (p. 213, grifo nosso).
odo do BNH aparecem como “fatos relevantes”,
sendo indicados algumas fichas de conjuntos Nesse quadro historiográfico, envolvendo a ques-
que sugerem a necessidade da construção de um tão da formação profissional e da cultura técnica
inventário sobre eles, seus projetos e a cultura institucional, Sanvitto (2010); Ferrari e Negrelos
técnica envolvida. (2013; 2018) e Negrelos (2019; 2014) trabalham a
identificação de conjuntos habitacionais como
Valladares (1983), Sampaio (1990) e Maricato (2009) elementos de arquitetura e urbanismo a partir
oferecem inventários e análises sobre pesquisas de 1930. Sanvitto (2010; 2014) propõe uma revi-
no tema da habitação, indicando questões para são historiográfica recuperando a possibilidade
delimitar novos objetos de pesquisa. de compreender a produção do BNH a partir de
análise crítica tipológica arquitetônica, cuidando
Os conjuntos habitacionais como elementos cons- da compreensão do quadro institucional, político
titutivos da produção da cidade estão presentes e econômico do Estado brasileiro. Sua chave de
em Pignanelli (2003), relato pessoal como téc- abordagem se refere à historicidade do objeto
nico, lembrando de sua graduação na FAU-USP conjunto habitacional nas pesquisas sobre o perí-
e a ênfase em concepção de projetos em torno odo pós-1964, incorporando outros componentes
do ideário moderno, marcando seu quadro de que podem ser investigados sobre a produção do
referências ao ingressar no corpo técnico da BNH, buscando superar o tabu em relação a ela,
Companhia de Desenvolvimento Habitacional aos elementos da arquitetura moderna, à forma-
e Urbano (CDHU), “herdeira” da CECAP, de 1946, ção e atuação profissional e ao posicionamento
consolidando o conjunto habitacional no estado dos arquitetos e urbanistas em relação à política
de São Paulo a partir de 1967. do período, muitas vezes em oposição.

No tema da cultura técnica, observamos a cons- A complexidade de questões envolvidas na análise


trução de relatos historiográficos sobre tais da produção habitacional do período militar no
conjuntos por arquitetos e urbanistas do cam- Brasil pode ser confirmada pelo posicionamen-
po da história da cidade vinculados à prática do to do IAB em relação ao BNH, em documentos
planejamento urbano, indagando-nos sobre os do Instituto que demonstram a oposição à po-
níveis de envolvimento na construção da críti- lítica, mesmo com contradições internas. O IAB
ca, com visão alternativa em relação à política aprova, em janeiro de 1974, a realização de um
de habitação da ditadura. Para a tarefa do fazer relatório com documentos relativos à partici-
história pelo arquiteto, Pereira (2014) indica um pação da entidade em espaços de discussão e
percurso analítico, desvendando as razões que de decisão vinculados à política habitacional no
produziram “gerações de arquitetos-historiado- Brasil, desde 1954 (IAB, 1976) 4, dos quais desta-
res” (p. 212), realizando teses e dissertações em camos : a) conclusões do IV Congresso Brasileiro
teoria e história da arquitetura e do urbanismo. de Arquitetos (1954); b) proposta do IAB para uma
É notável que o período circunscrito por Pereira Lei da Casa Própria (1958); c) posição oficial dos
arquitetos ante o problema da habitação (1962);
d) conclusões do Seminário de Habitação e Re-
regiões: COHAB-Campinas (1964); COHAB-São Paulo (1965);
forma Urbana (1963). Após o golpe militar, o IAB
COHAB-Santista (1965); COHAB-Bauru (1966); COHAB-Ban-
deirante (1967), na região de Campinas; COHAB-Ribeirão
movimenta-se na tentativa de incidir na política
Preto (1969) e CRHIS (Companhia Regional de Habitações habitacional, segundo os anexos “Análise dos ve-
de Interesse Social, em Araçatuba, de 1979).

3. O site http://www.cronologiadourbanismo.ufba.br está 4. Documento organizado por João Ricardo Serran, quando
aberto publicamente para contribuições. dirigia a entidade o arquiteto Miguel Alves Pereira.
EIXO TEMÁTICO 1 tos da Presidência da República ao Projeto de Lei
2006/64”, “Conclusões da mesa redonda sobre
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO política habitacional” (1966) e “Resposta à Comis-
são Especial do Congresso Nacional” (1967). Pela
data do documento, pode-se inferir as inúmeras
tentativas de interferir no processo de produção
habitacional com propostas da cultura técnica
envolvida nas lutas do IAB, em que pese a sensível
perda da função social desse profissional a partir
do golpe militar. (NEGRELOS, 2019).

Permanências e descontinuidades do conjunto


habitacional entre regimes políticos:
memória e esquecimento

À luz da relação do historiador com o tempo e os


regimes de historicidade possíveis para o estudo
dos conjuntos habitacionais pós-1964, a partir de
Hartog e Revel (2001) destacamos o “presentismo”
do regime de historicidade atual, embebido na
própria crítica da modernidade, representada
em grande termo pelos grandes conjuntos habi-
tacionais foco da crítica historiográfica negativa,
principalmente entre os arquitetos e urbanistas.

A partir do declínio do modelo de capitalismo bra-


sileiro com a decadência da burguesia industrial
paulista, em 1981 iniciam-se as “décadas perdidas”,
1980 e 1990, consideradas por Bonduki (1992; 2014)
décadas de construção de utopias, constituindo-
-se um quadro de lutas sociais pela redemocratiza-
ção no país. A emergência de movimentos sociais
urbanos, com ênfase para os de moradia, introduz
a discussão sobre alternativas de produção habi-
tacional com participação social na elaboração do
projeto e na produção das obras, em oposição à
produção do período do BNH, gerando propostas
de projetos contextualizados (NEGRELOS, 2019).

A retomada das lutas pela reforma urbana e a


ausência de uma política nacional de habitação
resultam na formulação de programas municipais
e no capítulo da política urbana na CF de 1988, com
um protagonismo social que sustenta a grande
quantidade de projetos gerados em torno do ideá-
rio do “direito à cidade e à arquitetura” (ANDRADE;
BONDUKI; ROSSETTO, 1993), durante a década de
16º SHCU 1990, concomitante à discussão da regulamenta-
30 anos . Atualização Crítica
ção constitucional da política urbana, aprovada
656 em 2001 como Estatuto da Cidade.
Os trabalhos reunidos em Leme (2019) sugerem forças produtivas e de meios de produção
um diálogo historiográfico sobre a relação entre suficientes para satisfazer as necessida-
urbanismo e política, tratando de compreender des significativas de toda a população do
o regime ditatorial de 1964 a 1985 num processo globo”. (BOLAFFI, 1979, pp. 41-42).
complexo e articulado com o regime anterior.
Nesse sentido, Bolaffi (1972) contribui para a A luta social contra a ditadura construiu as alter-
compreensão dos regimes políticos em relação nativas de programas habitacionais municipais,
à “continuidade” e “rupturas”, esclarecendo que propondo conjuntos respondendo ao contexto
social e territorial vinculados ao lugar. A forma de
se o problema não é de natureza técnica, produção adquire papel relevante com a defesa do
também não é ideológico, mas puramente trabalho autogestionário entre projeto e canteiro,
político, tanto quanto foram mais políticos com o mutirão e a ajuda mútua destacados em
e menos ideológicos os obstáculos que, por seus aspectos de autonomia e controle social
exemplo, impediram Celso Furtado de com- sobre o espaço de morar. A produção científica
bater a inflação a partir das mesmas premis- sobre os bairros produzidos no marco temporal
sas e medidas econômicas que no Governo da redemocratização e da reforma urbana contém
Castelo Branco, o Ministro do Planejamento importantes referências na historiografia, tanto
imporia com sucesso. (BOLAFFI, 1972, p. 144) como alternativas ao grande conjunto, quanto
como referência para a própria formulação da
Ao estudar a produção material dos conjuntos, política pública, valorizando a habitação como
é possível articular duas operações analíticas. A bem de uso, como habitar, em aporia com a ha-
primeira, que comanda novas possibilidades de bitação como mercadoria, que marca majorita-
enfrentamento sobre as políticas públicas urba- riamente as políticas habitacionais estatais no
nas e habitacionais, é o vínculo com a discussão Brasil desde 1930.
do próprio Estado brasileiro republicano, não
cumprindo com seu papel de regulador de todas Com a redemocratização, duramente conquistada
as classes e interesses da sociedade. A segunda, socialmente, não foi concebida uma nova política
valendo-nos da tese de Bolaffi (1972, pp. 5-6), in- nacional de habitação. Em 1999, impactado pelas
dica “que as ineficiências, as deseconomias e as formulações neoliberais desde o final da década
distorções observadas na implantação do Plano de 1980, o governo federal lança o PAR/CEF, privile-
de Habitação Popular não decorrem de dificulda- giando o mercado imobiliário na definição e indica-
des de natureza técnica e administrativa, mas da ção de terras para a produção de novos conjuntos.
situação ambígua que lhe reserva a conjuntura
político-econômica...” Com perspectiva neodesenvolvimentista (MARI-
CATO, 2013; BRESSER-PEREIRA e THEUER, 2012),
Bolaffi (1979), ainda, explicitará a contradição, em 2003, o governo federal centraliza as questões
sempre vigente, em relação à política habitacio- urbanas e habitacionais no Ministério das Cidades,
nal praticada pelo Estado brasileiro em torno do promovendo a elaboração da Política Nacional
problema da demanda e do falso problema da de Habitação e do Plano Nacional de Habitação.
limitação de recursos: No entanto, em 2009, após a crise internacional,
lança o PMCMV, reforçando componentes progra-
Após dois séculos de revolução industrial – máticos do PAR/CEF, sobretudo a ação privada na
e do consequente controle, senão absoluto, definição das áreas de implantação dos conjuntos.
pelo menos suficiente, da natureza, para
que já seja tecnicamente possível resolver Reforçam-se os conjuntos, que, apesar de dé-
quase todos os problemas socialmente sig- cadas de debate em defesa de sua contextuali-
nificativos do homem contemporâneo -, a zação e diversidade arquitetônica e urbanística,
persistência da carência e da necessidade voltam a apresentar repetições tipológicas com
resulta exclusivamente da falta de deci- baixa diversidade, induzindo o extensivo padrão
sões adequadas, pela sociedade. Este é um de crescimento urbano, ocupando terras mais
truismo, mas um truismo que deve e precisa baratas nas periferias das cidades de todas as
ser repetido, dito e mais uma vez repetido dimensões. A comparação direta dos conjun-
ad nauseam. A humanidade dispõe hoje de tos do PMCMV com os do BNH ocorre em muitos
EIXO TEMÁTICO 1 trabalhos acadêmicos e artigos na área de pla-
nejamento - são exemplos os de Rolnik e Nakano
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO (2009) e Nascimento e Tostes (2011) -, acendendo
um alerta em perspectiva histórica, estimulan-
do o debate e a revisão historiográfica sobre a
produção habitacional durante o regime militar.
Do ponto de vista da história, a ideologia tem um
lugar que não deve ofuscar a avaliação sobre os
componentes de todo o processo de produção
capitalista da cidade, com propriedade privada,
segregação socioespacial e caráter massivo na
produção habitacional estatal que não se iniciou
com o golpe militar.

No processo de consolidação do conjunto habi-


tacional como principal alternativa de alojamento
das classes populares há estreita relação entre
sistema econômico e político, e até mesmo regime
político, com sua aplicação a partir de 1930, quan-
do os setores privados – burgueses industriais e
rentistas urbanos, até então “provedores” de mo-
radia em vilas operárias, em habitações de aluguel
ou cortiços mais salubres –, numa operação liberal
entregam a produção da moradia para o âmbito
do Estado, coincidindo com o desenvolvimento do
ideário moderno no Brasil. A habitação passa para
a promoção estatal em origem já como mercado-
ria, como produto comercializável a despeito de
seu valor de uso fundamental para a reprodução
da força de trabalho; o período de vigência do
SFH-BNH pode ser considerado uma das etapas
na produção habitacional pelo Estado no marco
do aprofundamento da inserção do Brasil no pro-
cesso de acumulação a partir de 1930.

A produção habitacional no ideário da moderni-


dade arquitetônica e urbanística, operada desde
1930, conta com visão historiográfica bastante
robusta, devendo seguir evidenciando as contra-
dições do sistema; por outro lado, a simplificação
dos elementos modernos dos conjuntos produ-
zidos na ditadura militar não os deveria acusar
solitariamente de implementar os interesses do
capital. Os estudos em detalhe mostram as con-
tradições muito mais clivadas, como inferimos
ao observar as Figuras 1 e 2, em que num mesmo
terreno “periférico” em Santos se produz, em 1957,
parte de um conjunto do IAPI e, 9 anos após, com
a nova política que dissolveu o sistema dos IAPs
16º SHCU e os integrou ao BNH, o mesmo terreno, ainda
30 anos . Atualização Crítica
incompleto, é ocupado com um novo projeto que
658 exprime tal simplificação da linguagem moderna.
Figura 1 - Primeiro plano: blocos do Conjunto Residencial de
Santos, Aparecida, IAPI/Setor de Engenharia, 1957 (BON-
DUKI; KOURY, 2014, vol. 2, p. 79). Segundo plano: blocos
do Conjunto Habitacional Humberto de Alencar Castelo
Branco, BNH-INOCOOP (Instituto Nacional de Orientação
às Cooperativas), 1967, com projeto atribuído a Oswaldo
Correa Gonçalves e Paulo Buccolo Ballario.

Figura 2 - Implantações dos conjuntos (BONDUKI; KOURY,


2014, vol. 2, p. 79).

Buscando enfrentar o banimento dos conjuntos


“do BNH” e da própria cultura técnica envolvidada
da historiografia da arquitetura e do urbanismo,
amparamo-nos em Hartog e Revel (2001), sobre os
“usos políticos do passado”, e em Jelin (2002), para
compreender que os conjuntos são desprezados
e desvalorizados como produção arquitetônica e
EIXO TEMÁTICO 1 urbanística para além de muitas inegáveis carac-
terísticas negativas na produção do espaço urba-
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO no. São desprezados e desvalorizados justamente
por serem desse período, o que não contribui
para ampliar o entendimento da conformação
das cidades brasileiras a partir desses conjuntos
no bojo de um projeto de acumulação do capital.

No tratamento político do passado (HARTOG;


REVEL, 2001), nosso argumento se volta para a
questão da memória – o conjunto como registro
de memória - como produto de trabalho (JELIN,
2002), como disputa política entre culturas té-
cnicas e como os discursos se convertem em
hegemônicos, neste caso os discursos sobre os
conjuntos habitacionais do BNH com a universa-
lização da ideia negativa sobre sua concepção,
construção, existência.

A reflexão se localiza em relação ao esqueci-


mento, ao banimento, à marginalização de ob-
jetos através de operações na memória coletiva
realizadas, por exemplo, na ocorrência desses
conjuntos habitacionais num regime político de
exceção, com tortura, prisões e, na cidade, com
imposição de objetos urbanísticos que não teriam
viabilizado a identificação social com o seu lugar.

Os momentos de mudança de regimes po-


líticos, os períodos de transição, criam um
cenário de confrontação entre atores com
experiências e expectativas políticas dife-
rentes, geralmente contrapostas. E cada
uma dessas posturas envolve uma visão
do passado e um programa (implícito em
muitos casos) de tratamento desse passado
na nova etapa que é definida como ruptura
e mudança em relação à anterior. (JELIN,
2002, p. 45, tradução nossa)

Para uma nova interpretação sobre a produção


dos grandes conjuntos habitacionais no regime
militar, entendidos como dispositivos da expansão
urbana do período, buscando o caminho da com-
plexidade, com Lepetit (2016) pode-se avançar nas
interpretações sobre o objeto urbano, sobre as
transformações das cidades, da leitura da cidade
como documento, no campo da “hermenêutica
urbana”, leitura socorrida da interpretação dos do-
cumentos sobre os processos que a conformam:
16º SHCU para os conjuntos, sua base técnico-científica e
30 anos . Atualização Crítica
administrativa junto aos acervos das companhias
660 de habitação (NEGRELOS, 2019).
O fazer histórico exige precisões contribuindo REFERÊNCIAS
para a sua reconstrução permanente, pois, se-
gundo uma das teses de Arendt (2010, p. 15), “o ANDRADE, C.R.M.; BONDUKI, N.G.; ROSSETTO,
compreender não tem fim e não pode, portanto, R. Arquitetura e Habitação Social em São
produzir resultados definitivos”. Paulo. 1989-1992. São Paulo: 2.ª Bienal Interna-
cional de Arquitetura, 1993.
não significa negar o que nos indigna, de-
duzir o que ainda não existiu a partir do que
ANGOTTI-SALGUEIRO, H.(ed.) Apresentação à
já existiu ou explicar fenômenos mediante
primeira edição. In LEPETIT, B. Por uma nova
analogias e generalizações... compreender
história urbana. São Paulo: EDUSP, 2016.
quer dizer, melhor, investigar e suportar
de maneira consciente a carga que nosso AQUINO, E.M.M.Z. A política urbana no Brasil
século colocou sobre nossos ombros.... pós-64. Dissertação (Mestrado) - FAU-USP.
olhar a realidade cara a cara e enfrentá-la São Paulo, 1989.
de forma despreconceituosa e atenta, seja
qual seja sua aparência. (ARENDT, 1950, p.12 ARAVECCHIA-BOTAS, N. Estado, arquitetura e
in ARENDT, 2010, p. 14) desenvolvimento: a ação habitacional do IAPI.
São Paulo: Editora da UNIFESP, 2016.
As teses de Arendt sobre a “necessidade de com-
preender” (2010, pp. 15-16) orientam precisões e ARENDT, H. Lo que quiero es comprender. So-
esclarecimentos no processo na abordagem dos bre mi vida y mi obra. Madrid: Editorial Trotta,
objetos de investigação, aqui os envolvidos na 2010.
história da habitação, superando a demonização
e o tabu sobre seus objetos. Analisar os fenôme- ARGAN, G.C. História da Arte como História da
nos, a par dos alinhamentos políticos, não pode Cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
prescindir da compreensão das determinações
do capitalismo às quais os regimes e os governos ARRETCHE, M. “Intervenção do Estado e o
se submetem, tanto em democracias como em Setor Privado: o modelo brasileiro de política
ditaduras. habitacional.” Anais Colóquio Sociétés et Politi-
ques d’Ajustement dans les Economies Semi-
-industrialisées, Amiens/França, dez/1990.

AZEVEDO, S. “Vinte e Dois Anos de Política de


Habitação Popular (1964-1986): criação, traje-
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Nacional da Habitação. Rio de Janeiro: Zahar,
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EIXO TEMÁTICO 1 RESUMO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Este trabalho apresenta o caminho histórico
da janela residencial, buscando compreender a
vídeo-pôster evolução de seus aspectos funcionais ao longo
do tempo. Parte-se do entendimento de que este
elemento faz parte de um complexo arquitetôni-
PANORAMA HISTÓRICO DA co com influência no espaço urbano, e que, por
isso, não pode ser estudado isoladamente des-
JANELA RESIDENCIAL tes dois contextos. A visão é panorâmica, com a
exibição de quatro fases importantes na história
da janela: única abertura, emancipação, a janela
HISTORICAL PANORAMA OF RESIDENTIAL WINDOW plena e, por fim, seu ocaso e dispensabilidade. O
PANORAMA estudo percorre a pré-história, da tenda paleo-
lítica às primeiras aldeias neolíticas; as cidades
HISTÓRICO DE LA VENTADA RESIDENCIAL antigas, das civilizações da Mesopotâmia, As-
síria e Babilônia às cidades gregas e romanas;
as cidades medievais; e, finalmente, as cidades
DAS NEVES, Mariana Fernandes
renascentistas, quando a janela passa a ser um
Graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade importante elemento na composição da facha-
de Brasília
da e na estética da rua. Em seguida, exibe-se o
mariana.ferneves@gmail.com
desaparecimento da janela residencial em algu-
mas moradias no início do período industrial em
GONDIM, Mônica Fiuza
cidades como Londres e Nova Iorque, que pare-
Doutora em Arquitetura e Urbanismo. Professora da cem antever seu declínio funcional nas cidades
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade
contemporâneas.
de Brasília
monica.gondim@gmail.com

HISTÓRIA CIDADE URBANISMO PAISAGEM


JANELA

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

668
ABSTRACT RESUMEN

This work presents the historical path of the resi- Este trabajo presenta el camino histórico de la
dential window, seeking to understand the evolu- ventana residencial, buscando comprender la
tion of its functional aspects over time. It starts evolución de sus aspectos funcionales a lo largo
from the understanding that this element is part del tiempo. Se parte de la comprensión de que
of an architectural complex with influence in the este elemento es parte de un complejo arquitec-
urban space, and that, therefore, it cannot be tónico con influencia e el espacio urbano, y que,
studied in isolation from these two contexts. The por lo tanto, no se puede estudiar de forma aisla-
view is panoramic, with the exhibition of four im- da de estos dos contextos. La vista es panorámi-
portant phases in the history of the window: sin- ca, con la exposición de cuatro fases importan-
gle opening, emancipation, the full window and, tes en la historia de la ventana: aperture única,
finally, its decline and dispensability. The study emancipación, ventana complete y, finalmente,
goes through prehistory, from the Paleolithic tent su declive y prescindibilidad. El studio pasa por la
to the first Neolithic villages; the ancient cities, prehistoria, desde la tieda del Paleolítico hasta las
from the civilizations of Mesopotamia, Assyria primeras aldeas neolíticas; las ciudades antiguas
and Babylon to the Greek and Roman cities; me- desde las civilizaciones de Mesopotamia, Asiria y
dieval cities; and, finally, the Renaissance cities, Babilonia hasta las ciudades griegas y romanas;
when the window becomes an important element ciudades medievales; y, finalmente, las ciudades
in the composition of the façade and the aes- renascentistas, cuando la ventana se convierte
thetics of the street. Then there is the disappe- en un elemento importante en la composición de
arance of the residential window in some houses la fachada y la estética de la calle. Luego está la
at the beginning of the industrial period in cities desaparición de la ventana residencial en algu-
like London and New York, which seem to foresee nas casas al comienzo del período industrial en
their functional decline in contemporary cities. ciudades como Londres y Nueva York, que pare-
cen prever su declive functional en las ciudades
contemporáneas.
HISTORY CITY URBANISM LANDSCAPE
WINDOW
HISTORIA CIUDAD URBANISMO PAISAGE
VENTANA
EIXO TEMÁTICO 1 INTRODUÇÃO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Ao imaginarmos uma casa, um edifício ou até
mesmo uma cidade, no cenário formado em nossa
mente, instantaneamente, desponta a janela, um
vídeo-pôster
elemento do cotidiano que dificilmente se desas-
socia do nosso imaginário arquitetônico e urbano.

PANORAMA HISTÓRICO DA Entretanto, este elemento considerado tão im-


portante para ventilação e iluminação nem sem-
JANELA RESIDENCIAL pre esteve presente na história da arquitetura e da
cidade. Enquanto podemos questionar a irrefuta-
bilidade da janela, não podemos fazer o mesmo da
HISTORICAL PANORAMA OF RESIDENTIAL WINDOW
porta, pois sem este vão é quase impossível um
PANORAMA
acesso ao interior das edificações. De acordo com
Távora (1991) “A porta era óbvia” e assim a janela
HISTÓRICO DE LA VENTADA RESIDENCIAL
tornou-se “primeira invenção da Arquitetura”.

As palavras - porta e janela - tiveram origem eti-


mológica em comum, mas, com o tempo, foram
adquirindo significados específicos de acordo
com suas funções. Pela janela entram luz e ar.
Pelas portas, gente. De acordo com o Dicionário
Onomástico e Etimológico da Língua Portuguesa,
a palavra “janela’ vem do latim januella, diminutivo
de janua, que designava porta, passagem, entra-
da, acesso. Alguns dicionários de Arquitetura e de
Língua Portuguesa definem este elemento como:

“Abertura de forma regular (retangular, qua-


drada, circular, oval, etc.) praticada numa
parede para iluminar e arejar e facilitar a
visibilidade para o exterior e o interior do
edifício (...)” (SILVA, 2005, p. 207)
“Abertura em paredes externas destinada
a iluminar e ventilar o interior do edifício,
possibilitando ao mesmo tempo visibilidade
externa (...)” (ALBERNAZ, 2000, p. 317)
“Abertura na parede de um edifício, acima
do pavimento, para deixar entrar o ar e a luz
(...) abertura por onde se faz uma ligação, se
estabelece uma comunicação ou que serve
para ver para o outro lado” (INFOPÉDIA)

As funções da janela

A janela surge quando a porta já não é capaz de


16º SHCU prover luz e ventilação suficientes, que são suas
30 anos . Atualização Crítica
funções primárias para suprir necessidades bá-
670 sicas de um ambiente interno. Com o tempo, a
janela assume também funções secundárias: EVOLUÇÃO HISTÓRICA
estética, simbólica e de acesso à visibilidade da
paisagem exterior. Fatores como conforto tér- Embora seja difícil dividir períodos exatos, é
mico e sonoro, limitações técnicas-construtivas
possível identificar quatro fases de desenvolvi-
e preocupação com a privacidade e segurança
mento da janela residencial, segundo o predomínio
também se apresentam como condicionantes
de um determinado padrão funcional. São elas:
para a abertura desses vãos em maior ou menor
fase 1: Abertura única, fase 2: Emancipação da
medida em cada contexto específico. O termo
“janela plena” é dado àquela que atende ambas janela, fase 3: Janela Plena e fase 4: Ocaso da
funções: primárias e secundárias. janela (Figura 1).

Durante o transcorrer da história da cidade e da A fase 1 abrange o período Paleolítico e o primeiro


arquitetura residencial é possível observar a evo- período do Neolítico acerâmico, quando é predo-
lução da janela de suas funções primárias para minante nas residências apenas uma abertura
secundárias até atingir a função plena para depois para acesso de pessoas, luz e ar. A fase 2 inicia
ir perdendo suas funções primeiras ganhando as com as aldeias do segundo período do Neolíti-
segundas maior destaque. Portanto, este trabalho co acerâmico e se prolonga até o 1º milênio a.C.
tem como objetivo, mostrar as transformações das abrangendo cidades de diferentes culturas como
funções da janela residencial desde seu surgimento a suméria, a egípcia, a dos assírios, dos babilônios
até praticamente o seu ocaso na cidade moderna. e dos hebreus quando há o predomínio de jane-
las altas com dimensões mínimas, apenas para
Como afirma Le Corbusier (1995, p. 103), “a história iluminar e ventilar. A fase 3 tem começo na Roma
da janela é também a história da arquitetura, ou
Antiga quando já é possível observar, em grande
pelo menos, de uma parte das mais característi-
escala, janelas construídas com funções estéti-
cas da História da Arquitetura” à medida em que
cas, simbólicas e para apreciação da paisagem,
este elemento é capaz de “cristalizar tendências
e prossegue peço Renascimento. Por fim, a fase
e revelar intenções no contexto da arquitetura”
4 corresponde ao ocaso da janela, tendo início
(SILVA, 2008, p. 3). Suas formas, vedações, di-
mensões, materiais, tratamentos estéticos e sim- no século XIX, quando questões econômicas, de
bolismos são consequência dos condicionantes precariedade do projeto, de segurança urbana e
técnicos, urbanos, econômicos, políticos e sociais até estéticas passam a se sobrepor às funções
de determinado tempo e espaço. As janelas são, primárias.
portanto, frequentemente capazes de, por si só,
revelar de qual período fazem parte. As janelas
em fita do modernismo e as janelas ogivais com
vitrais coloridos do gótico são claros exemplos.

Figura 1: Linha do tempo da evolução funcional das janelas. Fonte: Autoras (2019).
EIXO TEMÁTICO 1 Fase 1: Abertura única
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Durante o paleolítico, os grupos humanos eram
nômades com estadias temporárias em alguns
locais que permitissem a sobrevivência. Quando
necessário, se protegiam em grutas ou construí-
am abrigos com galhos e peles de animais. Viviam
da caça e da pesca, com poucas atividades preci-
sando de um teto, por este motivo tinham pouca
necessidade de ambientes fechados iluminados.
Na maioria das vezes, as tendas e cabanas que
construíam possuíam uma única abertura, com
dimensões mínimas para entrada das pessoas,
para evitar perda de calor nos períodos de frio e
dar alguma proteção contra a entrada de animais
indesejados. Em algumas tendas havia uma se-
gunda abertura localizada no topo para permitir a
saída da fumaça das fogueiras, quando localizadas
no interior dos abrigos.

Durante o Neolítico, a segurança torna-se ainda


mais importante, pois além da ameaça de animais
selvagens, intempéries e ataques de outras tribos,
com o desenvolvimento da atividade agrícola e
da domesticação, intensifica-se a necessidade
de proteção dos silos e dos animais domésticos.
Segundo Mumford (1965), as aldeias eram um ninho
coletivo de proteção e cuidado, que se refletia em
seus ambientes arquitetônicos fechados.

Grande parte dos assentamentos neolíticos com


maior permanência surge no período acerâmico,
entre 10000 a.C. e 6000 a.C. nas regiões do Oriente
Próximo e da Ásia Menor. As aldeias apresen-
tavam-se segundo dois modelos. No neolítico
acerâmico A predominavam as casas disper-
sas, de pequenas dimensões e um único cômo-
do com plantas redondas ou ovais. No neolítico
acerâmico B, as moradias são construídas com
múltiplos cômodos com plantas quadrangulares.
As edificações circulares eram geralmente
espalhadas em uma área protegida por um muro
de pedra e as quadrangulares aglomeradas entre
si sem muro circundante. “Na maioria das regiões,
a evolução foi de cabanas semienterradas de
pedra a casas absidais em adobe ou pedra e,
finalmente, a casas quadrangulares em adobe
ou tijolos de barro.” (FLETCHER, 1950).

16º SHCU As casas ovais da primeira fase possuíam, na


30 anos . Atualização Crítica
maioria das vezes, uma única abertura, a porta.
672 Algumas, porém, apresentavam um vão no topo
para a saída da fumaça dos fogões internos, uma Asikli Huyuk, no 9º milênio a.C., localizada também
espécie de “chaminé embrionária”. na Anatólia, é uma aldeia com configuração seme-
lhante a Çatalhöyük, com casas quadrangulares
Nesse período é possível observar também casas também aglomeradas, sem janelas e com acesso
ovais semienterradas com um pequeno espaço pelo teto. Entretanto, durante as escavações do
aberto à meia altura, entre a baixa cobertura e as sítio pertencente ao período entre o 7º e o 6º mi-
paredes. Tal configuração atendia à necessidade de lênio a.C. foram encontrados edifícios maiores
segurança e proteção, ao mesmo tempo permitindo com aberturas de portas no nível do chão e sem
a visão da paisagem externa. Com a abertura, era o indício de janelas.
possível observar e espreitar de longe sem ser nota-
do. As casas ovais foram encontradas em diferentes
comunidades neste período. Alguns exemplos são:
Jericó, na Palestina, Beidha, na Jordânia, Khirokitia,
no Chipre, Tell Aswad e Tell Abu Hureyra, na Síria.

Com a transição no padrão construtivo habita-


cional, de casas ovais para casas quadrangulares
com mais compartimentações e maiores dimen-
sões, surge uma maior necessidade de orifícios
que possibilitassem a ventilação e iluminação.
Estas aberturas nas fachadas externas são feitas
com dimensões reduzidas tanto por questões
de segurança quanto por dificuldades técnicas.
Figura 2: Recriação de uma casa circular em Jericó na
Janelas nem portas no nível do chão foram ne- primeira fase do neolítico acerâmico com abertura no
topo para a passagem de fumaça do fogão. Fonte: http://
cessárias para algumas comunidades. É o caso
www.historiadelascivilizaciones.com/2011/04/las-pri-
de Çatalhöyük, uma aldeia neolítica de 7400 - meras-ciudades-jerico-historia.html
6000 a.C, localizada na Anatólia, atual Turquia.
Com uma população de aproximadamente 8 mil
habitantes, possuía casas quadrangulares de
tijolos de barro aglomeradas, formando uma su- Fase 2: Emancipação da janela
perfície de circulação em suas coberturas, por
onde também se dava o acesso a seus interiores No período acerâmico B tornam-se mais comuns
através de um buraco localizado acima do fogão
as residências quadrangulares feitas em barro
(GONDIM, 2014). Não possuía ruas e nem jane-
com pequenas aberturas no topo das fachadas
las. Iluminação e ventilação aconteciam apenas
semelhantes às janelas, que sem prejudicar a es-
por essa única abertura. Segundo Dias (2015),
trutura da parede e sem comprometer a proteção
a configuração aglomerada de Çatalhöyük era
e a privacidade cumprem as funções básicas de
claramente defensiva. As paredes cegas unidas
iluminar e ventilar. Exemplos desta configuração
lado a lado funcionavam como muralhas.
arquitetônica são encontrados em fases posterio-
A configuração do assentamento, sem destaque res ao período de casas ovais em Jericó, Beidha,
de edificações por diferenças nos tamanhos ou Hacilar, Jarmo, Tell-es-Sawman e também em
alturas, demonstra que ali vivia uma sociedade Mohenjo-daro
igualitária. A aldeia era formada por conjuntos
de casas, cada grupo provavelmente pertencen- No 4º e 3º milênios a.C., com as civilizações su-
te a um clã, porém todas a unidades familiares méria e egípcia despontam imponentes templos e
possuíam uma única composição com apenas palácios na paisagem das grandes cidades. Esta
alguns ambientes maiores onde possivelmente característica comum nas cidades-estado da
eram realizados rituais e preparação dos corpos Mesopotâmia, como Lagash, Uruk e Ur, perdura no
dos mortos que eram enterrados neste mesmo milênio seguinte, como em Mari, Troia e Amarna,
local ou sob o piso do interior das casas de cada e no 1º milênio a.C, em Babilônia, Nínive e Assur.
família. (ÇATAL HOYUK RESEARCH PROJECT, 2017) Entretanto, todas estas sociedades apresentavam
EIXO TEMÁTICO 1 também uma característica arquitetônica resi-
dencial em comum que se reproduzia de maneira
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO generalizada em grande parte do mundo antigo:
a organização em torno de um pátio retangular
central e as fachadas externas com poucas ou
nenhuma janela. Estas habitações eram cons-
truções altas, que permitiam melhor exaustão e
conforto térmico.

No conjunto de casas aglomeradas, construídas


coladas umas às outras, poucas tinham fachadas.
Entretanto, diferentemente da configuração de
Çatalhöyük e Asikli, o acesso se dava ao nível do
chão por um beco estreito. As construções que
se avizinhavam das vias principais, por outro lado,
também não tinham janelas. O pátio interno era a
solução para a ventilação e iluminação dos am-
bientes internos.

Quanto aos palácios e templos, especialmente a


partir do 2º milênio a.C., passaram a contar com
aberturas e reentrâncias maiores em suas facha-
das e também colunas, dando maior plasticidade
e leveza a essas mega construções em seus vãos
de acesso.

Figura 3: Planta de uma casa na Babilônia na qual se ob-


serva apenas um vão de conexão com o exterior para
entrada e saída dos moradores. Fonte: http://www.aina.
org/books/eliba/eliba.htm

Nas cidades gregas, as colunas assumiram a com-


posição das fachadas dos templos e palácios
16º SHCU que assim ganharam maior leveza com os espa-
30 anos . Atualização Crítica
ços livres entre a colunata abrindo caminho em
674 direção ao interior dos edifícios. As habitações
feitas de tijolo seco ao sol e/ou pedra, por sua vo, mesmo nas construções mais humildes”. Era
vez, mantiveram padrões ainda semelhantes ao como um desafio encontrar maneiras de abri-las
milênio anterior com os cômodos também volta- sem prejudicar a estrutura. Várias soluções foram
dos para pátios e átrios internos, que cumpriam exploradas, com modelos retangulares, trapezoi-
função de iluminação e ventilação. Nas fachadas, dais, semicirculares, com formas diferentes de
voltadas para a via pública, janelas retangulares lintéis, ombreiras e peitoris, com arcos de volta
um pouco maiores atendiam às funções primárias perfeita etc.
sem comprometer a privacidade. Eram simples
vãos abertos sem nenhum preenchimento que As casas romanas eram, basicamente, de três
eram vedados durante o inverno com tábuas de categorias: domus, insulae e villa. A domus era a
madeira. Com poucos elementos construtivos casa da cidade, pertencente às famílias abasta-
como ombreiras, lintéis e peitoris, essas janelas das. Provavelmente derivada da casa grega, com
não apresentavam intenção estética ou simbólica. soluções de ventilação e iluminação semelhantes,
mas com o átrio e o peristilo no lugar do pátio.
As janelas eram também altas, escassas e de
pequenas dimensões, priorizando a privacidade.
Mesmo com as semelhanças com as casas gregas,
o interessante na domus foi o surgimento das
vedações nas janelas, inclusive o vidro.

“(...) nas pequenas janelas altas, protegidas


sob o beirado, encaixavam-se por vezes
umas folhas de vidro ou de cristal muito es-
Figura 4: Habitações gregas dos séculos V e IV a.C. com
pessas ou de um material conhecido como
pátio interno e com janelas altas nas fachadas para ga- lapis seculari, mas geralmente permane-
rantir a privacidade ciam fechadas com portadas de madeira
que protegiam do sol ou do ar frio, assim
como também da comunicação com as ruas
barulhentas” (KOSTOF, 1988, p. 345).
Fase 3: Janela plena
Porém, a casa que mais alterou o cenário urbano
O contato com uma diversidade de culturas per- da época foi a insulae. Era um tipo de habitação
mitiu a Roma um desenvolvimento significativo da coletiva que abrigava a população mais humil-
de e que, ao contrário da domus, se abria ao ex-
engenharia e da arquitetura com o uso de novas
terno, com muitas janelas nas fachadas. Essa
técnicas e materiais. Alguns exemplos são o arco
característica, porém, não estava associada ao
de volta perfeita, a alvenaria seca em blocos de
conforto e/ou à salubridade já que, geralmente,
pedra e o desenvolvimento do primeiro tipo de
eram superlotadas e sem condições de higiene
concreto. Acrescente-se o sistema de duplicação
e segurança. Mas, é fato que suas numerosas
estrutural, que fazia uso em conjunto dois siste-
aberturas e múltiplos pavimentos “transformaram
mas construtivos independentes para a edificação a dinâmica da cidade (...) e a relação entre homem,
de paredes robustas que contribuíam para formar janela e espaço urbano” (COUTO, 1983).
uma imagem romana de solidez. Como um grande
laboratório de experimentações arquitetônicas, Paralelamente, no campo, é possível observar o
diferentemente das sociedades anteriores, Roma surgimento de mais uma “função secundária” da
não se restringiu a explorar novos projetos e téc- janela nas villas, que eram casas rodeadas por
nicas nas edificações públicas, mas as estendeu amplos terrenos e jardins nas quais muitas janelas
também às moradias. se abriam para a paisagem indicando que um dos
limitantes da abertura das janelas na cidade pode
No que se refere às janelas, agora, pela primei- ter sido a privacidade. Estas aberturas revelam
ra vez nos templos, são construídas com uma também o interesse pela paisagem, pela aprecia-
intenção estética. De acordo com Silva (2008), ção da natureza, muito diferente das prioridades
a janela “era executada com esmero construti- urbanas. Roma é, portanto, um marco importante
EIXO TEMÁTICO 1 na história da arquitetura e especialmente da
janela que começa a ter múltiplas funções e for-
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO matos ganhando mais relevância na arquitetura.

No período medieval parece haver um retrocesso


na arquitetura residencial, pois apesar do desenvol-
vimento da construção de grandes vãos fechados
por vitrais nas catedrais, o mesmo não acontecia
nas habitações que mal possuíam ventilação e
iluminação suficientes para uma vida confortável e
saudável, e muito menos tinham uma preocupação
com a ordem compositiva. Entretanto o avanço
dos panos de vidros nas igrejas e mosteiros con-
tribuiu para a evolução estética das janelas e para
soluções estruturais com novos formatos e veda-
ções, com vidros, placas de pedra perfuradas etc.

No Renascimento, o papel estético da janela ga-


nhou relevância de tal forma que as “funções pri-
márias” de iluminação e ventilação foram deixadas
em segundo plano. Se nos tempos pré-históricos
a janela era um “buraco” feito na parede apenas
para funções estritamente necessárias, no Re-
nascimento a janela ganhou importância ao se
fundir com o “todo” arquitetônico. De fato, mais
do que a janela individual, o conjunto de panelas
de uma edificação passou a desempenhar papel
estruturante na sua composição arquitetônica.
Acrescente-se que a harmonia entre as diversas
edificações de uma mesma via pública era obtida
com o alinhamento das janelas de maneira rigo-
rosamente ordenada, conferindo uma identidade
estética muito típica desse período. Assim como
a insulae romana, a organização das fachadas
renascentistas influenciava a dinâmica urbana
e a relação interno/externo, criando enquadra-
mentos tanto de dentro pra fora, quanto de fora
pra dentro.

As habitações urbanas renascentistas geralmente


possuíam três pisos, com diferenciações hie-
rárquicas, e, em consequência, a janela passou
a transmitir também essa informação com or-
namentações de acordo com essas diferencia-
ções. Era comum que as colocadas no primeiro
pavimento fossem altas e simples, mantendo
a privacidade e que não fossem decoradas no
interior, como eram no exterior. Como explica
Silva (2008): “A base do desenho das aberturas
16º SHCU era sensivelmente a mesma, retangular ou com
30 anos . Atualização Crítica
arco de volta perfeita, mas o enquadramento e
676 afecções decorativas mudavam”.
Fase 4: Ocaso da Janela Em Nova Iorque, no final do século XIX, a imensa
imigração também levou à conversão de casas em
prédios habitacionais com a divisão de seus cômo-
Em meados do século XVIII, a revolução Industrial
dos para acomodar diversas famílias resultando
marca um período de transformações sociais e
em muitos compartimentos sem janelas. Outra
econômicas com profundas mudanças de men- solução foi a construção de edifícios residenciais
talidade e, consequentemente, de prioridades e para aluguel voltado às famílias de baixa renda,
características arquitetônicas. Com a racionali- sendo que também nesses apartamentos os quar-
dade do iluminismo, os edifícios religiosos perdem tos eram escuros, pois poucos ambientes tinham
importância e os edifícios públicos, industriais e janelas, quando muito ventilavam através de um
residenciais ganham mais enfoque. poço de ventilação. As condições de insalubridade
dessas moradias, com moradores vivendo em
Ao mesmo tempo, nas cidades mais industriali- condições sub-humanas, levaram às denúncias
zadas, como Londres, há uma grande afluência do Comitê de Saúde e adoção de seguidos atos
de pessoas do campo em busca de novas oportu- conhecidos como Tenement House Act a partir
nidades de trabalho, o que leva a um expressivo e 1867, que obrigava a abertura de janelas. Para se
rápido crescimento da população urbana, sem que ter uma ideia, o Comitê neste ano mandou abrir
a construção de moradias ocorresse na mesma mais de 46 mil janelas em ambientes internos
celeridade para atender esses novos habitantes para melhorar ao menos a ventilação. (RIIS, 2014).
da cidade. Como resultado, várias moradias foram
O The Tenement House Committee, formado em
subdivididas sem nenhum planejamento para abri- 1898, acabou por levar à aprovação do New York
gar um número máximo possível de famílias po- Tenement House Act de 1901, que foi uma das pri-
bres, fazendo com que muitos cômodos ficassem meiras leis a proibir a construção de prédios es-
inteiramente sem janelas, ignorando suas funções curos e mal ventilados no estado de Nova Iorque,
básicas e fundamentais. As condições de vida exigindo que os novos edifícios tivessem janelas
nessas habitações eram precárias e marcaram voltadas para fora, banheiros internos, ventilação
de forma negativa a imagem do período industrial. adequada e proteções contra incêndio.

Figura 5: Evolução da planta dos apartamentos de aluguel para famílias de baixa renda. A plantas mostram que nos projetos
iniciais as janelas existiam apenas nos cômodos da frente e dos fundos. Tenement House Commission Report of 1895. NYC
Municipal Library. https://www.archives.nyc/blog/2019/5/16/the-early-tenements-of-new-yorkdark-dank-and-dangerous
EIXO TEMÁTICO 1 Embora as questões insalubres de moradia, nesse
período houve um expressivo desenvolvimento
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO da tecnologia, com o ferro e o vidro sendo mais
explorados, abrindo novas possibilidades na ar-
quitetura das janelas. Segundo Couto (1983), nesse
período, “São oferecidos os meios materiais para
que o espírito iluminista construísse o território
autônomo da janela. Estavam presentes todas as
condições para um processo de experimentalismo
formal na arquitetura, ancorado na possibilidade
de redimensionamento dos vãos e das aberturas”.

É também no final do século XIX que teve início o uso


da luz elétrica, que depois da vela, da lamparina e do
lampião a gás começou a mostrar que a iluminação
natural podia não ser tão necessária. Pouco anos
depois, com a criação de microclimas artificiais,
particularmente com a invenção do ar condiciona-
do, a janela se libertou de suas funções básicas de
iluminação e ventilação e passou a ter um desen-
volvimento técnico como nunca antes, com suas
funções secundárias ganhando papel de destaque.
Isto se faz muito claro nos edifícios contemporâne-
os em pele de vidro, com janelas que, muitas vezes,
nem se abrem, servindo apenas como um reves-
timento estético e para a visibilidade do exterior.

O uso compositivo da janela já havia se apresenta-


do no modernismo, que mesmo tendo como fun-
damento o funcionalismo puro, demonstrava, nas
suas janelas em fita, uma preocupação estética não
declarada, além de um simbolismo e uma busca por
transmitir uma mensagem de progresso técnico
e construtivo, de racionalidade e funcionalidade.

Apesar da ausência de janelas ser facilmente


percebida como algo negativo e insalubre, em
diversos bairros no Brasil, encontram-se cons-
truções com poucas janelas ou até mesmo com
ausência delas em alguns cômodos por motivo de
segurança ou falha de projeto. Isto pode ser cons-
tatado nas habitações unifamiliares construídas
há poucas décadas em Ceilândia e Samambaia no
Distrito Federal, que ocupam todo o lote com ga-
ragens fechadas nas fachadas frontais permitindo
iluminar e ventilar apenas os primeiros cômodos
com a passagem de luz e ar pelas grades ou pe-
quenas aberturas existentes no portão de acesso
dos carros. Essas habitações são verdadeiros
16º SHCU caixotes fechados em que seus moradores vivem
30 anos . Atualização Crítica
as 24 horas do dia usando luz elétrica, ventiladores
678 e ar condicionado.
e altos orifícios nas paredes das fachadas. Com
estes pequenos vãos, estas primitivas janelas
pareciam temer a exposição da privacidade e
da segurança ao proporcionar modestas ilumi-
nação e ventilação. E com estas únicas funções
primeiras permaneceu por quase três milênios.
Na terceira fase, a janela se mostra plena em suas
funções primárias e secundárias, permitindo a
visibilidade da paisagem externa e assumindo
com destaque um importante papel na estética
das edificações e das ruas. É quando a janela
dialoga com suas vizinhas e com as pertencentes
a outros edifícios. Por fim, a partir da industrializa-
Figura 6: Rua Residencial em Ceilândia onde se observa a ção observa-se o ocaso da janela, a princípio por
ausência de janelas com a frente das casas vedadas pelas questões econômicas e de precariedade dos pro-
portas das garagens. Fonte: Street View, Google Maps jetos residenciais quando os exemplos de Londres
e Nova Iorque mostram de forma lamentável que
a sobrevivência humana dentro de uma moradia
As residências de maior poder aquisitivo, por sua não pode prescindir de aeração e iluminação.
vez, fazem uso de grandes panos de vidro tempe- Apesar disso, exemplos de moradias em cidades
rado que contribuem para o isolamento acústico inseguras brasileiras, no presente momento, ne-
e conforto térmico, amenizando ruído, frio e calor gam a importância da janela, com a sua ausência
nos ambientes. A privacidade ameaçada pelos ou com seu permanente fechamento, se valendo
panos de vidro ganha auxílio de recursos auxiliares de meios de ventilação e iluminação artificiais.
como as cortinas e as persianas. Entretanto, com
Simultaneamente, é neste período industrial que
as novas tecnologias foi também possível barrar a
se observa um vertiginoso desenvolvimento técni-
visibilidade interna através do uso de vidraças sem
co que permite a liberdade da expressão estética
prejudicar a visão de dentro para fora. Embora,
da janela com um amplo repertório de soluções
no presente momento, com a nova cultura dos
formais. Ventilação e iluminação naturais então
reality shows, em cidades, bairros e condomínios
passam a funções secundárias com uso de meios
com maiores requisitos de segurança, a exposi-
artificiais. Não apenas isso, com a utilização do
ção da vida íntima é objetivo de alguns projetos
vidro temperado a janela oferece mais conforto
de arquitetura e que é obtido com a construção
térmico e acústico. Quando por fim a janela assu-
de grandes paredes de vidro. Portanto, a janela
me o papel das paredes externas, deixa indelével a
vitrine chega à residência depois de expor ao
divisa entre o dentro e o fora, o privado e o público.
público nas ruas as atividades internas de lojas,
É quando a janela faz da casa uma vitrine e a vida
escritórios, academias de ginástica, restauran-
doméstica um palco.
tes e até fábricas. Se antes a janela se mostrou
tímida para garantir a privacidade, nos tempos Conclui-se que no mundo artificial em que se vive,
atuais, ela tomou o lugar da parede e assumiu o as funções básicas da janela talvez não sejam
protagonismo de projetos de arquitetura. mais tão indispensáveis, o mesmo, no entanto,
não se pode dizer de sua expressividade e poética
no espaço e na arquitetura.

conclusões

Resumidamente, pode-se dizer que na primei-


ra fase histórica da janela, ela se fundia à porta
permitindo a passagem de luz e ar, suas funções
primárias. Na segunda fase, ela se liberta da porta
de modo tímido, tomando a forma de pequenos
EIXO TEMÁTICO 1 REFERÊNCIAS
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ZEVI, Bruno, Saber ver a Arquitetura. Martins


Fontes, 1996.
EIXO TEMÁTICO 1 RESUMO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Este artigo tem por objetivo apresentar os pri-
meiros resultados de uma pesquisa ainda em
vídeo-pôster andamento sobre duas personalidades que fo-
ram pioneiras nas propostas de empresaria-
mento no ramo da construção de habitações
PIONEIROS DO para proletários, operários e classes pobres nas
últimas décadas do século XIX e virada para o
EMPRESARIAMENTO século XX: Américo de Castro, diretor da Com-
panhia Evoneas Fluminense, e Arthur Sauer,
HABITACIONAL: A COMPANHIA diretor da Companhia de Saneamento do Rio de
Janeiro. Ambas as atuações se pautaram na po-
EVONEAS FLUMINENSE E A lítica de concessões de favores do Estado para
construção de casas operárias no período, não
COMPANHIA DE SANEAMENTO apenas na cidade do Rio de Janeiro, onde esta-

DO RIO DE JANEIRO vam sediadas, mas também em outras cidades


brasileiras. Este trabalho pretende, ainda que
de forma preliminar, lançar luz às redes que en-
volviam esses sujeitos discutindo ainda as ba-
PIONEERS OF HOUSING BUSINESS: ‘COMPANHIA
ses legais nas quais suas ações se pautaram.
EVONEAS FLUMINENSE’ AND ‘COMPANHIA DE
SANEAMENTO DO RIO DE JANEIRO’
HABITAÇÃO SOCIAL HISTÓRIA
PIONEROS DE LOS EMPRENDIMIENTOS DE VIVIENDA:
LA COMPANHIA EVONEAS FLUMINENSE Y LA
RIO DE JANEIRO (CIDADE) LEGISLAÇÃO
COMPANHIA DE SANEAMENTO DO RIO DE JANEIRO

GENNARI, Luciana Alem


Doutora em Planejamento Urbano e Regional; Professora
Adjunta da FEN/UERJ
luciana.gennari@uerj.br

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

682
ABSTRACT RESUMEN

This paper aims to present the first results of an Este artículo tiene como objetivo presentar los
ongoing research on two personalities who were primeros resultados de una investigación en cur-
pioneers in entrepreneurship proposals in the so sobre dos personalidades que fueron pioneras
field of housing construction for proletarians, en propuestas de emprendimiento en el campo
workers and poor classes in the last decades of de la construcción de viviendas para proletarios,
the 19th century and the early 20th century: Amé- trabajadores y clases pobres en las últimas déca-
rico de Castro, director of Companhia Evoneas das del siglo XIX y primeras del siglo XX: Améri-
Fluminense, and Arthur Sauer, director of Com- co de Castro, director de la Companhia Evoneas
panhia de Saneamento do Rio de Janeiro. Both Fluminense, y Arthur Sauer, director de la Com-
actions were based on the public policy of gran- panhia de Saneamento do Rio de Janeiro. Ambas
ting favors for the construction of those houses acciones se basaron en la política del Estado de
in the period, not only in the city of Rio de Janeiro, otorgar favores para la construcción de casas de
where they were based, but also in other Brazilian trabajadores en el período, no solo en la ciudad de
cities. This paper intends, though in a preliminary Río de Janeiro, donde tenían su sede, sino tambi-
stage, to enlight the networks that involved the- én en otras ciudades brasileñas. Este trabajo tie-
se subjects and discussing the legal aspects, on ne la intención, incluso de manera preliminar, de
which their actions were based. arrojar luz sobre las redes que involucraron estos
temas, aún discutiendo los aspectos legales, en
las que se basaron sus acciones.
HOUSING RIO DE JANEIRO CITY LAW

HABITACIÓN SOCIAL RIO DE JANEIRO LEGISLACIÓN


EIXO TEMÁTICO 1 INTRODUÇÃO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
A década de 1870 foi no Brasil, tendo como epicen-
tro a capital imperial Rio de Janeiro, um momento
em que questões ligadas à moradia, sobretudo a
vídeo-pôster
dos pobres, ganharam maior vulto nas discussões
de propostas concretas para a cidade no âmbito

PIONEIROS DO social, político e administrativo. Esse período


coincide com a aceleração de um processo de
EMPRESARIAMENTO urbanização de base capitalista, que já vinha se
rascunhando havia algumas décadas e que foi
HABITACIONAL: A COMPANHIA implementado em cidades que experimentavam
um crescimento significativo de sua área e de sua
EVONEAS FLUMINENSE E A população. A localização das diferentes classes
de habitações, bem como de outros elementos de
COMPANHIA DE SANEAMENTO infraestrutura urbana, foi um dispositivo privile-
giado para se interferir de maneira significativa
DO RIO DE JANEIRO na ordenação territorial, cujo processo foi en-
cabeçado primordialmente por entes privados.
No caso da habitação, eles eram tanto empresas
PIONEERS OF HOUSING BUSINESS: ‘COMPANHIA formadas para esse fim (com significativa par-
EVONEAS FLUMINENSE’ AND ‘COMPANHIA DE ticipação de bancos) quanto particulares (com
SANEAMENTO DO RIO DE JANEIRO’ diferentes interesses e inserções sociais) que
procuravam dinamizar seus investimentos e que,
PIONEROS DE LOS EMPRENDIMIENTOS DE VIVIENDA: em maior ou menor escala, participaram da pro-
LA COMPANHIA EVONEAS FLUMINENSE Y LA dução do espaço urbano e serviram para lançar
COMPANHIA DE SANEAMENTO DO RIO DE JANEIRO as bases de formação de um mercado imobiliário,
que viria a se sofisticar nas décadas seguintes.

Alguns autores, entre eles Rolnik (1981), Blay


(1985), Lobo (1992) e Bonduki (1999), sagraram a
atuação desses particulares (entre proprietários,
capitalistas e industriais) no mercado habitacio-
nal através da construção de casas para operá-
rios, proletários e classes pobres, valendo-se
sobretudo da legislação e do oferecimento de
vantagens por parte do governo. Outros, como
Sampaio (1994), Reis Filho (1995), Ribeiro (1997) e
Vaz (2002), chamaram a atenção para o fato de
que essas casas eram destinadas a um grupo de
trabalhadores urbanos, que vinha ganhando corpo
desde meados do século XIX. Ele era constituído
de pessoas que não eram totalmente desprovidas
de recursos e poderiam arcar com os custos de
manutenção de uma moradia que possuísse de-
terminado padrão estabelecido por um programa
de construção mínimo previsto pela legislação
municipal e, em geral, em áreas que vinham sendo
ligadas à rede de infraestrutura urbana.
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
Faziam parte deste grupo de trabalhadores ur-
684 banos os operários das fábricas, que acabaram
cunhando no imaginário e na memória coletiva áreas mínimas para cada peça), em alguns casos
de alguns bairros suas características formais e a necessidade de elevação do solo (porão) e a
identidade cultural. Da mesma forma, também obrigatoriedade de ventilação e insolação diretas.
uma parcela significativa da população que atua-
va na atividade de prestação de serviços, sobre- Na cidade do Rio de Janeiro, o problema habita-
tudo o comércio e as profissões liberais (LOBO, cional, colocado tanto como carência de unidades
1978), mesmo ainda sob o regime escravocrata. como a maneira de trabalhadores morarem, foi
Para todos eles, seriam destinadas habitações de enfrentado pelo Estado através de incentivos
padrão operário e/ou proletário reconhecido por legais oferecidos a particulares que se interes-
lei e passível de aprovação nos órgãos competen- sassem pela construção de casas para venda ou
tes, cuja tipologia estava ligada mais a questões aluguel, respondendo às demandas de saúde,
políticas e econômicas do que formais, já que pro- especulação imobiliária e vazios urbanos. Esses
gramas parecidos implantados em locais distintos incentivos consistiam, entre outras coisas, na
poderiam junto às autoridades competentes ser isenção de impostos para importação de ma-
formalmente enquadrados de maneira diferente, teriais e na previsão de padrões construtivos
conforme o interesse do proprietário. Em meio reduzidos, o que, consequentemente, diminuiria o
ao combate aos cortiços, tendo como pano de preço da construção (BLAY, 1985; BONDUKI, 1999).
fundo questões sanitárias e sociais associadas
ao adensamento urbano e à valorização da terra, Apesar de muitos indivíduos terem construído
a legislação municipal imprimiu como obrigação casas para trabalhadores urbanos, aqueles incen-
novos parâmetros para o projeto residencial, tivos oferecidos a companhias operavam dentro
estabelecidos principalmente por médicos, en- de uma lógica empresarial de larga escala e es-
genheiros e administradores públicos, dos quais tavam vinculados a um projeto maior que visava
faziam parte muitos capitalistas e proprietários. tratar da questão habitacional a partir da expe-
riência anterior de implementação de infraes-
A partir da década de 1880, muitos códigos muni- trutura urbana, como linhas de trens e bondes,
cipais1 trariam sessões específicas para tratar ex- abastecimento de água e esgotamento sanitário,
clusivamente de “cortiços, estalagens e casinhas delegando as responsabilidades do suprimento
para operarios e classes menos favorecidas”. Eles desejado de unidades habitacionais higiênicas ao
passaram a estabelecer para os cortiços, que já capital privado organizado em companhias. Esse
eram combatidos desde meados do século XIX, modelo de empresariamento para a produção de
e as estalagens restrições cada vez mais severas habitações estava ligado à esfera federal, que era
e, para a última, parâmetros construtivos que quem promulgava os decretos de concessão e
enquadrassem nessas tipologias novas habita- com quem eram lavrados os contratos e termos.
ções. Esses parâmetros consistiam em número
de cômodos (no mínimo uma sala, um quarto, Neste contexto, a cidade do Rio de Janeiro as-
uma cozinha e quintal, onde seriam locados a sumiu um aspecto peculiar, uma vez que era a
latrina e o tanque, e no máximo duas salas, três capital federal e a relação entre as instâncias res-
quartos, uma cozinha e quintal, onde seriam lo- ponsáveis pela aprovação, concessão e controle
cados latrina, banheiro e tanque2), pé-direito3 e do direito de explorar certos nichos do mercado
cubação4 mínimos (que também determinavam as imobiliário era, nesse sentido, muitas vezes con-
flituosa. Ali também foi onde iniciativas pioneiras
no campo empresarial buscaram a implemen-
1. A responsabilidade de organizar o Código de Posturas,
tação desse modelo, numa espécie de “balão de
controlar os aspectos edilícios da cidade e fiscalizar suas
ensaio” para uma eventual ação de maior abran-
obras era do município.

2. Nos casos das cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo,


mas certamente essa referência era usada também na “quantidade de ar atmospherico” em um cômodo (PIMENTEL,
legislação de outras cidades brasileiras. 1890), que deveria contar com uma capacidade mínima
mensurável de ar renovável por pessoa para que o ambiente
3. Pé-direito é a distância entre o piso e o forro em um
permanecesse salubre. Esta disposição era defendida por
compartimento ou pavimento.
médicos especialistas como dado de projeto e utilizada nos
4. A cubação seria o volume de ar do compartimento, a pareceres como critério para sua aprovação.
EIXO TEMÁTICO 1 gência, sofrendo ao longo das décadas ajustes a
partir dos impactos advindos do cenário político
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO e econômico nacional.

Este artigo tem por objetivo apresentar os pri-


meiros resultados de uma pesquisa ainda em
andamento5 sobre duas personalidades que foram
pioneiras nas propostas de empresariamento
no ramo da construção de habitações para pro-
letários, operários e classes pobres nas últimas
décadas do século XIX e virada para o século XX:
Américo de Castro, diretor da Companhia Evoneas
Fluminense, e Arthur Sauer, diretor da Compa-
nhia de Saneamento do Rio de Janeiro. Ambas as
atuações se pautaram na política de concessões
de favores do Estado para construção de casas
operárias do período e que de fato ocorreram na
cidade do Rio de Janeiro, onde estavam sediadas.

Esses dois personagens já são conhecidos pela


literatura sobre habitação social na passagem do
regime imperial para o republicano, mas sempre
como metonímia da empresa que representavam.
Este trabalho pretende, ainda que de forma pre-
liminar, lançar luz às redes que envolviam esses
sujeitos, e não apenas à persona, que possibili-
taram suas incursões num campo tão pioneiro
quanto incerto no contexto nacional, discutindo
ainda as bases legais nas quais suas ações se
pautaram e constituíram jurisprudência.

HABITAÇÃO, EMPRESARIAMENTO e
INFRAESTRUTURA URBANA
A questão habitacional foi forjada a partir de ques-
tões concretas do cotidiano da cidade, sobretudo
da percepção do problema de suas condições
sanitárias e do desejo de modernização de seus
espaços. Ela não estava atrelada exclusivamente
à pobreza, mas à dinamização urbana, que incluía
tanto as indústrias como a prestação de serviços
e a formação de uma camada média diversificada.
Ela foi, contudo, identificada à carestia de habita-
ção para as classes mais pobres e foi formulada
associando essa moradia aos problemas urba-

5. Essa pesquisa é um desdobramento da tese de doutora-


do intitulada “O lugar da casa na cidade: Rio de Janeiro na
16º SHCU
Belle Époque”, defendida em 2013 no Instituto de Pesquisa
30 anos . Atualização Crítica
e Planejamento Urbano e Regional – UFRJ sob orientação
686 da profa. Fania Fridman.
nos mais iminentes, principalmente os ligados deral, a implementação dessa transformação
à higiene coletiva. Cortiços, casas de cômodo, assumiu ainda um caráter simbólico urgente,
estalagens e mocambos, entre outros, eram du- que repercutiu de maneira efetiva no enfrenta-
ramente combatidos como sendo a origem dos mento de questões sociais, econômicas e po-
males urbanos que deveriam ser sanados. líticas. Essa transformação, que era almejada
tanto por administradores públicos como pela
Essa associação entre pobreza e problemas população ilustrada, de alguma forma deveria
urbanos foi feita tanto em discursos de fundo ocorrer e o que esteve em pauta ao longo dos anos
conservador, justificando políticas urbanas de era como e com quais mecanismos ela se daria.
manutenção de algumas antigas estruturas so- As discussões transcritas em jornais, boletins
ciais, como em discursos sociais e reformado- técnicos e discursos parlamentares apontavam
res, que olhavam com preocupação as condições manifestações técnicas proferidas a partir de
gerais de vida dos pobres no meio urbano. Isso ideais positivistas, filantrópicos e liberais que
deslocou a discussão sobre a casa deste grupo giravam em torno de como os recursos poderiam
do âmbito privado e individual para um interesse ser dirigidos para essa renovação. Vale ressaltar
público maior a que deveria se submeter, uma vez que, neste momento, a ideia de o Estado investir
difundida a ideia de que a classe trabalhadora e os diretamente na construção de moradias,7 e não
pobres de uma forma geral não seriam capazes de incentivar sua produção privada, era bastante
empreender por si só as mudanças necessárias contestada e refutada por parte dos dirigentes
para que se efetivassem as melhorias sanitárias e pelos capitalistas.
e sociais almejadas para o coletivo. A casa do
pobre, enquanto questão habitacional, era, por- A solução desse problema coletivo viria então da
tanto, um assunto da esfera pública, porque seus experiência do empenho de empresas voltadas às
problemas atingiam a todos, e a configuração atividades urbanizadoras, que desde o segundo
de seus espaços privados estaria vinculada à quartel do século XIX atuavam no provimento
necessidade coletiva. material da cidade, na realização de obras de in-
fraestrutura e na prestação de serviços urbanos
A produção habitacional e a ingerência sobre os a partir da concessão de privilégios e do direto
espaços do morar seriam meios privilegiados para de explora-los dada a particulares que se organi-
a implementação de um projeto transformador do zassem em companhias ou sociedades formadas
meio urbano, servindo como importante instru- para esse fim (BRITO, 2007). Dentro dessa lógica
mento de planejamento, na medida em que a maior de infraestruturação da cidade, o governo dividiu
parte dos prédios tinha uso domiciliar, exclusivo a responsabilidade de prover a carência de vagas
ou não.6 A partir de parâmetros legalmente, tec- em habitações higiênicas que contemplassem o
nicamente e sanitariamente determinados, essa contingente populacional crescente se associan-
produção habitacional, assumida pelo capital do a empresas formadas com grande participação
privado e por ele explorada, foi estruturando e or- de capital advindo de bancos. Esta proposta foi
ganizando extensas áreas urbanas, contribuindo se tornando cada vez mais robusta a partir de
na formação dos mosaicos de loteamento com um aparato legal estabelecido desde meados
seus edifícios condizentes com os avanços téc- do século XIX e que foi se tornando específico
nicos e científicos que, além de ordenar o espaço, para esse fim.
induziriam o homem a um modo de vida que seria
mais apropriado para cidades que se pretendiam
modernas e civilizadas.
ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA DE CONCESSÕES
No caso da cidade do Rio de Janeiro, capital fe-
Entre 1875 e 1906 houve pelo menos cinquenta
requerimentos e quarenta e três concessões de
6. As cidades possuem em termos quantitativos mais casas
do que outro tipo de edificação, pois a questão do alojamento
é fundamental para sua existência. De acordo com o Recen- 7. Algumas ações pontuais ocorreram, mas isso viria acon-
seamento de 1920, em 1906, dos edifícios recenseados, mais tecer de forma sistemática a partir do segundo quartel do
de 80% era domiciliar, chegando a mais de 90% em 1920. século XX.
EIXO TEMÁTICO 1 privilégios a indivíduos e companhias que preten-
diam construir casas para operários, sendo que,
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO desses, apenas treze construíram casas com os
favores do governo (MATTOS, 2008; GENNARI,
2013). As fábricas têxteis Corcovado, Aliança,
São João e América Fabril, o Banco dos Ope-
rários, as companhias de construção civil em
associação com o capital financeiro, assim como
a Companhia Evoneas Fluminense e a Companhia
de Saneamento do Rio de Janeiro, construíram
juntas moradias para aproximadamente 8.420
pessoas, um número muito aquém em relação
às vagas em habitações consideradas insalubres
(ABREU, 1986; VAZ, 2002;). O objetivo da maioria
dessas requisições era especular e obter lucro
(PECHMAN & RIBEIRO, 1985).

A década de 1870, para Benchimol (1990), conteve


os anos mais prósperos e epidêmicos do Segundo
Reinado, com o auge do café do Vale do Paraíba.
Caio Prado Junior (1977) lembra que a crise finan-
ceira do início da República e a grande quantidade
de emissão de papeis inconversíveis (Encilha-
mento) ocasionou a incorporação de inúmeras
empresas abertas tão somente para fins especu-
lativos, com objetivos inexequíveis e que nunca
saíram do papel. Talvez algumas das inúmeras
empresas que tinham como objetivo a produção
habitacional, mas nunca chegaram a executar
obras, tenham feito parte deste processo. Ainda
assim, os favores para a construção de casas para
proletários, operários ou classes pobres que se
iniciaram ainda no Império foram reiteradamente
concedidos por lei a interessados até a década de
1920, coexistindo com outras iniciativas, principal-
mente de indivíduos que também tinham interesse
em investir no mercado imobiliário com capitais
de menor vulto. O sistema de concessões foi uma
prática defendida por um grupo que via nele a
possibilidade de ter acesso a terras valorizadas
e o direito de explorá-las garantido por lei.

A sistematização do subsídio dado pelo governo,


na forma de concessão de favores, a particula-
res que estivessem interessados em construir
casas para as classes pobres foi inaugurado pela
promulgação do Decreto nº 3.151, de 09/12/1882,
que “concede favores a Americo de Castro e
ás emprezas que se organizarem com o fim de
16º SHCU construir edificios para habitação de operarios
30 anos . Atualização Crítica
e classes pobres, na cidade do Rio de Janeiro e
688 seus arrabaldes”. O texto deste decreto serviu
tanto de base e modelo para outros posteriores8 ferro do Brasil, e a marcar as regras para a
quanto foi largamente citado e aludido em outras indemnisação dos proprietarios.
concessões de favores a empresas com objetivos
semelhantes. Com relação à Lei 719, de 1853, Pechman e Ribeiro
(1985) fazem referência a ela em seu artigo sobre
Eram indicadas neste decreto duas leis para obter a Companhia de Saneamento do Rio de Janeiro.
os benefícios de isenção de impostos e de desa- Este é um trabalho seminal sobre esta empresa
propriação de terrenos a que muitos requeren- e foi, portanto, muito mencionado em diversos
tes dos favores do governo para construção de estudos posteriores sobre habitação. Muitas des-
habitação para proletários, operários ou classes sas referências reiteram uma leitura enviesada e
pobres posteriormente se reportariam. A primeira descontextualizada daquele texto, afirmando que
era a Lei nº 719, de 21/09/1853, que, de modo geral, esta seria a primeira lei de caráter oficial sobre o
fazia menção à isenção do imposto predial para os incentivo à produção habitacional.9 Como o ex-
edifícios que seriam construídos, excluída a taxa certo acima esclarece, a relevância desta norma
adicional, de acordo com o § 3º, Parte 1ª, do Art. consiste no fato de que, duas décadas mais tarde,
11. Por aquele texto, o governo ficava autorizado assim como a Lei 816, de 1855, ela será aludida
a contratar como uma espécie de jurisdição em pedidos de
isenção do imposto predial na adoção desse mes-
[...] com João Frederico Russell, ou com ou-
tro qualquer, o serviço da limpeza das casas mo mecanismo por parte do governo no sistema
da cidade do Rio de Janeiro e do esgoto das de concessões relativo à construção de casas
aguas pluviaes, obrigando-se o emprezario para operários, proletários e classes pobres.
a fazer os trabalhos por districtos designa-
Ainda sobre a Lei 719, de 1853, outra questão que
dos. Naquelles districtos em que se forem
chama a atenção é o fato de que o tenente coronel
realizando os mesmos trabalhos, poderá o
João Frederico Russel se associou a Américo de
Governo elevar a decima urbana na propor-
Castro desde pelo menos o início da década de
ção necessaria para fazer face ás despezas
1870 para o estabelecimento de um ferro-carril
resultantes do contracto. Outrosim poderá
o Governo isentar de direitos de importação na cidade de Niterói e seus subúrbios, inclusive
e exportação os objectos concernentes á com pedido de isenção de direito de importação
empreza. de materiais para a obra. Esse “favor” concedido
pelo governo, assim como a isenção da décima
A segunda, que dizia respeito à desapropriação, urbana por período determinado, será largamente
era a Lei nº 816, de 10/07/1855, que reproduzido como vantagem para as empresas
formadas que serão responsáveis pela construção
[...] autorisa o Governo a estabelecer o pro- de habitação para as classes menos favorecidas
cesso para a desapropriação dos predios poucos anos depois, inclusive nas Evoneas de
e terrenos que forem necessarios para a Américo de Castro.
construcção das obras e mais serviços
pertencentes á Estrada de ferro de Dom
Pedro Segundo, e ás outras estradas de 9. É importante ressaltar que Pechman e Ribeiro escreveram
o texto dentro do âmbito do trabalho do Grupo de Estudos
Urbanos, do qual faziam parte diversos pesquisadores e
8. A exemplo do Decreto nº 9.859, de 08/02/1888, que “con- que lançou as bases para a consolidação dos estudos so-
cede a Arthur Sauer, ou á companhia que fôr por elle orga- bre História Urbana da cidade do Rio de Janeiro na década
nizada, diversos favores relativamente aos edificios que de 1980 que repercutem até os dias atuais. Parte desses
construir para habitação de operarios e classes pobres” e esforços resultaram na publicação da Revista do Rio de Ja-
do Decreto nº 10.386, de 05/10/1889, que “concede a Americo neiro, fonte primordial para os estudos históricos da cidade,
de Castro, ou á companhia que for por elle organisada, diver- onde em 1985 o texto sobre a Companhia de Saneamento
sos favores relativamente aos edificios que construir para foi publicado. Nesse contexto e antes da publicação do
habitação de operarios e classes pobres”, cujo teor é prati- artigo, o grupo de pesquisa vinculado a Ribeiro colaborou
camente idêntico, com uma pequena mudança no estabele- na realização de um extenso e completo levantamento
cimento do número mínimo de famílias para a necessidade sobre a legislação urbana relativa à produção habitacional
de haver lavanderia constante do item 7º da cláusula XX. na cidade do Rio de Janeiro (RIBEIRO, 1983).
EIXO TEMÁTICO 1 A produção habitacional da cidade do Rio de Ja-
neiro neste período foi concretizada em duas
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO bases essenciais. De um lado, através dessa pro-
dução empresarial, que era tratada, aprovada e
fiscalizada pelo Governo Federal, mas também
através da produção individual, aprovada e fis-
calizada pelo Governo Municipal. Ambos eram
regulados pelas leis e posturas municipais, no
que tangia aos parâmetros construtivos, mas as
exigências para a concessão da licença para cons-
trução eram, em alguns aspectos, diferenciadas.

As obras particulares pleiteavam sua licença para


construção ou reforma junto à Câmara Munici-
pal, que a concedia com base nos pareceres de
seu corpo técnico formado por médicos e enge-
nheiros. Este tipo de produção era negociado
exclusivamente neste âmbito, não importando
o tamanho da empreitada, se de um ou de vários
edifícios. O Governo Federal participava do pro-
cesso de concessão de benefícios legais, ainda
que muitos deles dissessem respeito à esfera
municipal, como a isenção de impostos prediais.

Para o governo Imperial (e depois o Republica-


no), as propostas poderiam ser feitas tanto com
descrições completas dos planos, com materiais
e tipos especificados, como com apenas breves
intenções e promessas de desenvolvimento dos
projetos tão logo fossem aprovados e os benefí-
cios concedidos. Os prospectos, quando vinham
anexados, eram muito genéricos e se preocupa-
vam em deixar clara a composição interna das
edificações, principalmente suas áreas, mesmo
porque os locais de construção não necessaria-
mente seriam previamente definidos. Já para a
esfera municipal, os locais de construção impor-
tavam. Em todos os casos a higiene, a economia e
a estética das propostas eram sempre reforçadas
nos textos como atributos antes coletivos do que
individuais.

As habitações eram geralmente oferecidas di-


ferentes em tipos para grupos que variavam de
uma ou duas pessoas até famílias numerosas
com previsão de cinco até doze pessoas. Quando
mencionada, a forma de implantação mais recor-
rente era a da vila ou avenida, com a ocupação
interna da quadra, reforçando a construção desta
16º SHCU tipologia urbana ligada ao trabalho. Muitos desses
30 anos . Atualização Crítica
conjuntos eram genericamente denominados por
690 evoneas, fazendo alusão à proposta de Américo de
Castro, villa, como as produzidas pela Companhia dos anos 1850 amanuense e intérprete do Tribunal
de Saneamento ou mesmo familistério, como na do Comércio e depois da Secretaria de Estado
proposta de Vieira Souto. dos Negócios do Império. Em 1857 foi nomeado
adido de 1ª classe para a legação de Berlim e, dois
anos mais tarde, em meio a polêmicas sobre sua
nomeação, foi delegado secretário da legação na
AS EVONEAS DE AMÉRICO DE CASTRO E AS VILAS Prússia pela Secretaria de Estado dos Negócios
DE ARTHUR SAUER Estrangeiros. Em 1863 deixa de ser o secretário
da legação imperial na Prússia, retornando para
Em suas publicações ainda na primeira década o Rio de Janeiro.
do século XX, o engenheiro Backheuser (1906) e
Sozinho ou em associação com outros sujeitos,
o construtor Jannuzzi (1909) lamentaram o fra-
Americo de Castro esteve envolvido desde pelo
casso dos esforços de Américo de Castro e Ar-
menos o início dos anos 1870 com atividades
thur Sauer, dois empresários que incorporaram
urbanizadoras na Província do Rio de Janeiro,
companhias nas últimas décadas do século XIX
buscando atuar na infraestruturação e no sane-
para a construção de casas higiênicas para os
amento urbano. Atendendo ao Decreto nº 1.535
trabalhadores a aluguéis módicos. Suas propostas
de 03/12/1870, ele, junto com o já citado tenente
foram pioneiras deste modelo na cidade do Rio de coronel João Frederico Russell, experiente nas
Janeiro e se tornaram paradigmáticas para outras práticas de empresariamento dos serviços ur-
semelhantes, tornando-se mesmo referências banos, entraram numa concorrência para obter
nas justificativas de requerimentos para novas o privilégio de executar e explorar um ferro-carril
construções do mesmo tipo, como argumento na cidade de Niterói e seus subúrbios, que foi
fundamentado para os pareceristas. aprovado, pedindo no ano seguinte isenção para
seu estabelecimento, o que foi deferido. O Decreto
Este modelo de concessões adotado pelo governo
nº 5.885, de 13/03/1875 concedia a Americo de
não foi uma unanimidade e os posicionamen-
Castro e ao Engenheiro Clemente Tisserand, ou
tos a esse respeito eram bastante controver-
companhia que organizassem, privilégio para a
sos. Apesar disso, houve algumas tentativas de
construção e serviço de trânsito de um túnel no
empresários, políticos e alguns intelectuais de
morro do Livramento, com autorização para o
afinar o discurso em favor desse sistema, fosse
estabelecimento de uma linha de carris.10 Este
pelo interesse nesses privilégios ou pela crença
projeto não chegou a ser executado, assim como
de que esta seria mesmo a melhor chance de alguns outros de seus pedidos também foram in-
se resolver a questão da habitação e da salu- deferidos, como o relacionado à E.F. Dom Pedro II.
bridade da cidade. Também houve uma série de
denúncias contra esse sistema de concessão de Ao que parece, Americo de Castro tinha uma visão
privilégios, na medida em que se acusava que a bastante arrojada com relação a propostas para
cidade seria vilmente negociada e “fatiada”, como a cidade do Rio de Janeiro e para o transporte
colocou Benchimol (1990), segundo interesses de em sua província. A partir da década de 1880 ele
um grupo restrito. apresentaria para a Ilustríssima Câmara Municipal
uma série de projetos de melhoramentos e de
saneamento para a capital, que continham muitas
ideias, a maior parte das quais também circulavam
Américo de Castro e as Evoneas Fluminense
entre ilustrados e que viriam a ser implementadas,
Sobre a biografia de Américo de Castro, há ainda não sem modificações, a partir da gestão de Perei-
muitas inconsistências e os fatos que seguem ain- ra Passos à frente da prefeitura do Rio de Janeiro.
Esses projetos envolviam linhas de transporte,
da passarão por uma revisão ao longo da pesquisa
drenagem de áreas alagadiças, arrasamento de
em andamento. Bacharel, foi um diplomata que
morros, como Santo Antônio, Senado e Castelo,
possuiu os títulos de “Official da Ordem da Corôa
de Ouro da Prussia” e de “Cavalleiro da Ordem
Hespanhola de Carlos III” (ALMANAK ADMINISTRA- 10. Em 1919, com traçado diferente, foi construído e inau-
TIVO..., 1878, p. 216). Foi nomeado ainda no início gurado o túnel João Ricardo, na Gamboa.
EIXO TEMÁTICO 1 aterramento de praias, retificação do litoral e
construção de um cais desde a Ponta do Caju até
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO a enseada de Botafogo, assim como na lagoa Ro-
drigo de Freitas, prolongamento e alargamento de
diversas ruas do centro da cidade facilitando sua
ligação com a região portuária e região norte da
cidade, construção de tuneis abrindo passagens
entre centro e zona sul, canalização de rios, entre
outros (GAZETA MEDICA DA BAHIA, 1897).

As Evoneas ou Evonias foram a primeira proposta


para habitação higiênica nos moldes capitalistas
julgada pela administração pública como uma
alternativa razoável aos cortiços. Elas foram apre-
sentadas ainda em 1872 e seu projeto largamente
discutido nas diferentes instâncias. Em pare-
cer debatido na sessão da Câmara Municipal de
31/10/1874, acerca da reclamação do presidente
da Junta Central de Higiene Pública sobre os cor-
tiços, o vereador Bezerra de Menezes defende:

[...] / Eu não quero que os poderes públicos


deixem ao sol e á chuva as classes pobres,
que não teem meios de pagarem casas de
alto aluguel. / Ao contrario, o que eu quero
é que, curando-se das necessidades mate-
riaes desta gente desfavorecida da sorte,
se cure ao mesmo tempo de suas necessi-
dades moraes, altas conveniencias de toda
a sociedade. / Aqui já passou um parecer
meu, um projecto do Sr. Americo de Castro
para construcção de habitações baratas,
em que se estabeleciam, a par de uma poli-
cia interna, escolas de instrucção, officinas
de trabalho e, o que era melhor, o encargo
de se arranjarem empregos honestos os
rapazes e raparigas habitantes das chama-
das evonias. / O que é feito dessa bella idéa?
desse meio de dar tudo barato ao pobre,
tudo são, tudo garantidor da moralidade e
até da subsistencia dos que se recolhessem
a elle? / Cahiu lá por cima o que a camara
tão desveladamente acolheu? Tanto peior
para as classes pobres, tanto peior para a
nossa sociedade! / Seja como fôr, aquella é
a idéa que deve substituir forçosamente a
dos cortiços immundos. / Ha quem queira
realisar em tão larga escala como é a destes
pequenos antros; pois auxiliem-se esses
16º SHCU especuladores, que ao menos teem o me-
30 anos . Atualização Crítica
recimento de conciliar seus interesses com
692 os mais vivos interesses da sociedade em
geral e das classes pobres em particular. / pontos parecem importantes para se entender
Venham as evonias e acabemos de uma vez a política de concessões dos anos seguintes. A
com os cortiços, que, além do mais afeiam primeira diz respeito à questão da cessão de pri-
a cidade, quando as evonias lhe servem de vilégios,11 que impediria a abertura de concorrên-
ornamento. / [...] (BOLETIM DA ILLUSTRIS- cia na matéria e, do ponto de vista do interesse
SIMA CAMARA MUNICIPAL DA CORTE, 1874, público, não seria interessante para resolução da
p. 14-5). questão da substituição de habitações insalubres
por higiênicas. A segunda diz respeito às desa-
Não se propunha acabar com a especulação pre- propriações de terrenos públicos e ao local das
sente na forma de morar das classes pobres, mas construções dessas habitações, que deveriam
se procuraria tirar proveito dela, buscando, pelo privilegiar áreas em que a parceria do Estado
menos em teoria, fazer pender o fiel da balança com o capital privado trouxesse ganhos materiais
liberal para a sociedade. Em 1875 foi promulgada a de urbanização, como as áreas alagadiças e os
primeira lei com caráter capitalista de concessão arrabaldes da cidade do Rio de Janeiro.
para a construção de moradia em larga escala,
o Decreto nº 2.686, de 30/10/1875, favorecen- O Decreto nº 3.151, de 09/12/1882, que “concede
do Americo de Castro com a isenção da Décima favores a Americo de Castro e ás emprezas que
Urbana por 10 anos e favores de desapropriação se organizarem com o fim de construir edificios
para a construção das Evoneas. Em maio de 1876 para habitação de operarios e classes pobres,
foi organizada uma empresa e apresentado um na cidade do Rio de Janeiro e seus arrabaldes”
requerimento ao Ministro do Império em nome ampliou a concessão dos benefícios a outros in-
de Américo de Castro, Antonio Ubelhart Lem- teressados, que seriam:
gruber (capitalista, presidente do Banco Rural e
Hypothecario e residente em Petrópolis), Manoel [...] / Isenção, por 20 annos, do imposto
Ubelhart Lemgruber (capitalista) e Joseph Hacox predial, excluindo a taxa destinada ai ser-
(engenheiro inglês “mui vantajosamente conhe- viço da limpeza das casas e esgoto da cida-
cido nesta Côrte”) propondo de, cessando o favor si os edificios fôrem
alienados pelas emprezas, salvo o caso de
[...] alem da execução de certas obras hy- cessão e transferencia das concessões; /
draulicas: / 1º adquirir todos os terrenos Dispensa, pelo mesmo prazo, do imposto
pantanosos existentes nesta Cidade para de transmissão de propriedade quanto á
aterral-os no mais curto prazo; / 2º cons- aquisição de imóveis necessarios ás cons-
truir nesses terrenos, depois de convenien- trucções, segundo os planos aprovados; /
temente aterrados, o numero de “Evone- Direito de desapropriação, conforme a lei
as”, que fôr determinado de acordo com nº 816 de 10 de junho de 1855, relativamente
o Governo Imperial e segundo os planos aos terrenos particulares compreendidos
aprovados pela Junta de Hygiene Publica nos ditos planos, comtanto que nos mes-
(AGCRJ, 40-4-45, p. 3). mos terrenos não haja edificios sujeitos
ao pagamento do imposto predial ou isen-
Este foi de fato o primeiro projeto desta natureza
to deste por lei; / Concessão gratuita, até
a ser discutido pelo governo como política de
20 annos, do dominio util dos terrenos do
habitação para operários e classes pobres e esta
Estado compreendidos nos planos e, findo
proposta seria exemplar, apesar de ainda levar
este prazo, preferencia para o aforamento
alguns anos para a realização das evoneas. Não
pelo preço e com as condições ordinarias,
apenas seu mecanismo, mas também, e mais im-
conforme a legislação em vigor (AGCRJ,
portante, a maneira de se projetar e planejar a ci-
40-4-47, p. 19-23).
dade seriam reproduzidos por outros particulares
que tivessem interesse em investir no mercado Ficariam ainda as companhias obrigadas ao pa-
imobiliário, em uma ou várias habitações. gamento das despesas com a demolição dos cor-
Em duas sessões no Senado Imperial no início de
março de 1882, há uma série de discussões sobre 11. Também discutida na mesma casa em sessão de
a proposta de Americo de Castro, das quais dois 02/06/1880 (SENADO IMPERIAL, [1880]).
EIXO TEMÁTICO 1 tiços condenados pela autoridade competente,
sendo os donos destes indenizados, segundo o
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO arbitramento na forma do direito comum. Houve
por parte dos interessados em obter os privilé-
gios do governo muita resistência com relação
a esta cláusula, usada como justificativa para a
inviabilidade de uma série de iniciativas, tendo
sido revogada em 1887.

A Companhia Evoneas Fluminense deu início em


1890 à construção de uma vila na praia de São
Cristóvão e em 1892 a três outras, em São Cristó-
vão, na Tijuca e em Botafogo. Dos ativos da com-
panhia em 31/03/1891 faziam parte os seguintes
imóveis: terrenos na ponte do Catete; prédios na
praia de Botafogo nº 202; terrenos na praia de
São Cristóvão nº 91-93, rua S. Francisco Xavier
nº 61, rua Barão de Mesquita nº 13, rua Uruguai
nº 11 e estação da Mangueira; terrenos e prédios
na rua Humaitá nº 31 e 38 (inclusive uma pedreira
em exploração), praia de Botafogo nº 198-200,
rua Comandante Tamborim nº 21, rua D. Carlota,
rua Farani nº 5 e ilha do Governador. Além disso,
a companhia possuía pedreiras, olaria, oficinas
diversas, fundição, marcenaria, serraria etc. (GA-
ZETA DE NOTICIAS, 29/04/1891, p. 2).

Em 1900 a empresa já estava em liquidação (DOU,


16/05/1900; 25/08/1900). Contudo, mesmo sem ter
sido construído um número significativo frente
à demanda, o termo evoneas foi reiteradamen-
te utilizado em requerimentos, e mesmo pela
imprensa, como sinônimo de casas proletárias,
tamanha a repercussão dessa iniciativa. Mais
do que quantitativamente, sua relevância este-
ve qualitativamente vinculada à frente de ação
aberta para o capital imobiliário no campo da
construção da cidade.

Arthur Sauer e as vilas da Companhia de


Saneamento

A biografia de Arthur Sauer aponta uma trajetó-


ria interessante dentro deste contexto político,
social e econômico e os resultados preliminares
da pesquisa serão expostos a seguir. Ele era um
engenheiro judeu de origem germânica, natural
da cidade de Trier, que em 1875 se casou com
16º SHCU a filha de Henrique Laemmert. Ele e seu irmão
30 anos . Atualização Crítica
Eduardo eram editores-proprietários do Almanak
694 Laemmert, como era conhecido o Almanack Admi-
nistrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro, DOCUMENTAÇÃO E INFORMAÇÃO DA CÂMARA
publicação que trazia anualmente informações DOS DEPUTADOS, 2009).
sobre a família real, os cidadãos da corte, as ca-
sas comerciais e indústrias da capital.12 Eduar- Em 1887, Sauer requereu para si ou empresa que
do deixou a empresa em 1880 e no ano seguinte organizasse uma concessão para construir casas
Henrique passou a propriedade da firma a Egon para as classes pobres e operários, na cidade do
Widmann Laemmert, Gustavo Massow e Arthur Rio de Janeiro ou em seus arrabaldes (BENCHI-
Sauer, todos alemães e, os dois últimos, seus MOL, 1990). Ainda no império, em 1889, incorporou
a Companhia de Saneamento do Rio de Janeiro
genros. Sauer ficou responsável pela direção da
com capitais nacionais e estrangeiros para exe-
oficina tipográfica e os outros dois pela livraria
cutar o Decreto nº 9.859, de 08/02/1888,14 que
(HALLEWELL, 2005).
“concede a Arthur Sauer ou a Cia que ele orga-
Em 1872, antes de seu casamento, iniciou junto nizar diversos favores para que edifique casas
com Gustav Theisen uma empresa importado- hygienicas para habitação de operarios e classes
ra de louças, porcelanas, cristais e mosaicos, a pobres (vilas operarias)”. Esta foi outra empresa
Sauer & Theisen, com sede no Rio de Janeiro e que virou referência na atividade de construção
em Paris (ALMANAK ADMINISTRATIVO..., 1878, p. de habitações higiênicas no modelo de conces-
sões estabelecido pelo governo central. Benchi-
755). Foi sócio desta companhia até 1880, o que
mol (1990) chama a atenção para o fato de que a
lhe conferiu experiência no comércio internacio-
composição da administração da Companhia de
nal de importação de materiais, quando se jun-
Saneamento revelava a predominância do capital
tou a Laemmert. À frente da tipografia, em 1883,
comercial e bancário em sua formação, notório
reorganizou o Almanak Laemmert, fato que lhe
também na Evoneas Fluminense.
conferiu notoriedade e prestígio. As notícias dão
conta de que frequentava a corte, tanto quanto Antes ainda da constituição da companhia, a pro-
manteve um bom relacionamento com o governo posta passou pela análise de algumas instituições
na mudança de regime em 1889. Foi Sauer quem de renome para dar a ela o respaldo técnico ne-
fez a composição heráldica das armas da Repú- cessário. A Sociedade Auxiliadora da Indústria
blica, com desenho de Luís Gruder,13 que prestava Nacional, a Inspetoria Geral de Higiene, a Imperial
serviço para a gráfica Laemmert (CENTRO DE Academia de Medicina e o Clube de Engenharia
deram pareceres favoráveis à proposta de Sauer
(PECHMAN & RIBEIRO, 1985). Os engenheiros deste
12. O Almanak Laemmert tinha enorme reconhecimento
nacional, trazendo tanto notícias da Corte (depois capital último terminavam assim seu parecer:
republicana), como também das Províncias (depois Esta-
dos). Os irmãos Eduardo e Henrique Laemmert eram judeus
Concluindo, julgamos este projecto accei-
alemães que se estabeleceram no Brasil como livreiros e tavel: / [...] 5º Por existir a imprescindível
editores desde 1833 com a Livraria Universal e, depois, necessidade publica de substituir quanto
também a Tipografia Universal. A casa Laemmert foi fun- antes, os cortiços e estalagens d’esta Côr-
dada no Rio de Janeiro em 1838 e começou a imprimir seu te, por outras habitações salubres e por
almanaque a partir de 1844. Em 1891 a firma foi reorganizada preencherem estas condições as edifica-
com o nome de Laemmert e Cia e sete anos mais tarde ções propostas. / 6º Por nos parecerem
passou a ter filiais em São Paulo e em Recife. O enorme justificados os favores solicitados, salvo
prestígio da publicação fez com que mesmo com mudanças a isenção de direitos de materiaes do paiz
de sua propriedade a partir de 1910 e o desaparecimento
e que mostrou a Commissão poderem ser
de Laemmert ela fosse publicada e distribuída até 1943 por
vantajosamente substituídos aos propos-
outras casas. Cf. Sodré (1999) e Hallewell (2005).
tos pelo Sñr. Sauer. (REVISTA DO CLUB DE
13. De acordo com Clovis Ribeiro (1933, p. 92-4), a confec- ENGENHARIA, vol. 9, 1887, p. 15).
ção das armas republicanas rompeu “violentamente com
todas as tradições da symbologia nacional”, classificando
a figura não como um brasão, mas como um carimbo ou 14. De acordo com Pechman e Ribeiro (1985), o advento da
uma marca. Esse fato certamente se deve à experiência República trouxe problemas com o cancelamento da con-
estética e de composição que Sauer adquiriu à frente da cessão da empresa, tendo que ser o novo projeto regulado
tipografia Laemmert. por este decreto.
EIXO TEMÁTICO 1 A Companhia de Saneamento iniciou em 1890 a
construção da Villa Ruy Barbosa no centro da
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO cidade, em 1891 a da Villa Arthur Sauer no Jardim
Botânico, a Villa Senador Soares e a Villa Maxwell
em Villa Isabel e a Vila Sampaio em frente à esta-
ção Sampaio no Méier (a localização dessas quatro
últimas era considerada subúrbio pela empresa
em sua documentação, ainda que fizessem parte
da zona considerada urbana). Seu contrato foi
rescindido com o governo em 1895 e uma série de
outras propostas não saíram do papel, inclusive
uma vila no morro de Santo Antonio, a Villa Fróes
da Cruz em Botafogo, Villa Mangueira na Man-
gueira, Villa Carvalho próxima à estação de São
Francisco Xavier, Villa Rocha próxima à estação de
Rocha, Villa Riachuelo, Villa Carolina e Villa Vieira
de Castro no Engenho Novo (AGCRJ, 40-4-46).

Ele ainda sugeriu ao Governo Imperial, depois


Republicano, uma série de glebas para que seu
domínio útil fosse entregue à Companhia de Sane-
amento, alegando ser urgentíssima a necessidade
de se construírem novas casas sanitárias. Pediu
apoio ao governo para cumprir o seu desideratum,
que seria “estinguir os cortiços e estalagens pes-
tilentas e insalubres” (AGCRJ, 40-4-55, p. 18-19).
Contudo, a maior parte dos pedidos de conces-
são de terrenos foi indeferida,15 tendo a empresa
que comprá-los (MATTOS, 2008). Além das cinco
vilas construídas, a companhia chegou a adquirir
os terrenos para a construção de outras vilas
operárias que nunca foram edificadas, sendo
uma em Botafogo (DOU, 05.06.1901). Em 1912 a
empresa, então denominada Companhia Predial
de Saneamento do Rio de Janeiro, erigiu em Vila
Isabel um conjunto com casas de três quartos
e duas salas destinado às classes médias (VAZ,
2002) e, vale notar, que esse programa estava de
acordo com o previsto por lei para construções
de casas para as classes pobres.

A passagem para a República veio acompanhada


de muita polêmica em torno da Companhia de
Saneamento. Por um lado, houve apoio por parte
de entes públicos e privados à iniciativa de Sauer

15. Houve ainda por parte da companhia solicitações que


não foram atendidas de outros terrenos, como na rua da
Relação, em Santa Tereza, no morro de Santo Antonio e na
16º SHCU
lagoa Rodrigo de Freitas, este último não concedido por
30 anos . Atualização Crítica
se localizar em área do projeto de saneamento da lagoa,
696 para onde o governo teria outros planos (AGCRJ, 40-4-55).
no ramo de produção de habitação para as clas- indústria da construção para prover a cidade de
ses pobres. Por outro lado, houve uma série de habitações. Em sua publicação, apoiava, além dos
denúncias de irregularidades nas transações de benefícios fiscais, a facilitação do capital barato,
materiais, chegando ao ponto de a administração o apoio às empresas e sociedades construtoras
pública recomendar a taxação dos produtos que com auxílio financeiro a juros baixos através das
aqui fossem produzidos pela empresa, apesar Caixas Econômicas ou Populares, citando os ca-
das reclamações por parte de Sauer de ir este sos da Bélgica, da Inglaterra e da Itália. Para ele foi
procedimento contra as cláusulas do contrato o Encilhamento16 o responsável pelo fechamento
(MATTOS, 2008). da Companhia Evoneas Fluminense.
A empresa foi acusada de utilizar os materiais Um outro ponto que chama a atenção é que, ain-
importados com o benefício da isenção de impos- da que a propriedade da habitação não fosse a
tos, não na construção de casas para operários, principal questão para a população frente à crise
mas clandestinamente em habitações luxuosas,
habitacional entre o final do século XIX e o início
atuando, segundo Benchimol (1990, p. 157) “como
do XX, a ideia de que o trabalhador adquirisse
importadora privilegiada e pirata”. Por sua vez, a
sua casa pagando no longo prazo fazia parte dos
companhia reclamava da dificuldade desde 1890
acordos entre governo e as concessões para em-
em cumprir as cláusulas estipuladas para sua con-
presas construírem moradias para operários e
cessão, uma vez que contava com o benefício da
classes pobres. Foi o caso dos contratos lavrados
importação de materiais para realizar as benfeito-
com a Evoneas Fluminense e com a Companhia
rias propostas, não vendo sentido em pagar mais
caro nos materiais aqui produzidos, se poderia de Saneamento do Rio de Janeiro. Essa ideia da
importar por preço menor (AGCRJ, 40-4-55). Por propriedade ao alcance de muitos recoloca a
conta disso, uma série de melhorias, como ilumi- questão da casa entre o meio de reprodução do
nação das áreas comuns ou a instalação de lavan- trabalhador e o meio de exploração de um nicho
deria a vapor, não foram executadas a contento. de mercado que ganhará força sobretudo a partir
da década de 1940. Para os trabalhadores urba-
As dificuldades enfrentadas pela empresa se nos, até a Primeira República, interessava antes
fizeram sentir, com redução de capital e pesa- o acesso à moradia.
das dívidas contraídas nos anos seguintes. Na
assembleia de dezembro de 1895 foi autorizada Com relação à habitação urbana para as classes
a venda da concessão e todo seu acervo, para, pobres, os argumentos usados tanto por quem
assim rescindir o contrato com o governo (PE- construía, quanto por quem criticava esse modelo,
CHMAN & RIBEIRO, 1985). se apropriavam dos discursos sobre a higiene, a
propriedade privada e a falta de alojamentos, ora
justificando a manutenção das estruturas, ora
propondo sua substituição. O fato é que esta que-
CONSIDERAÇÕES FINAIS rela não se estabeleceu na defesa dos interesses
da população moradora dessas casas condenadas
Jannuzzi (1927, p. 8), que foi diretor-técnico da pelo discurso científico, mas na disputa pelo con-
Evoneas Fluminense e presidente da Associa- trole de áreas da cidade e pelo seu ordenamento.
ção dos Constructores Civis, se queixava ainda
na década de 1920 de haver poucas empresas
construtoras no enfrentamento da questão habi-
tacional, mesmo com a possibilidade de se obter
incentivos legais, ao contrário do que ocorria em
outros países, uma vez que o próprio governo
não garantia seus favores. Ele defendia o sis-
tema de concessões nesses moldes e criticava 16. Benchimol (1990) afirma que durante o Encilhamento
as iniciativas estatais, que para ele eram “[...] a surgiram muitas empresas que pretendiam construir casas
mais flagrante negação dos objectivos daquelle para operários e classes pobres, beneficiando-se da política
acto legislativo...”, lei que oferecia vantagens à brasileira inflacionária.
EIXO TEMÁTICO 1 REFERÊNCIAS
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EIXO TEMÁTICO 1 RESUMO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
O presente artigo trata da articulação entre os
campos da conservação, planejamento urbano
vídeo-pôster e a noção de turismo cultural por meio da aná-
lise do Plano de Desenvolvimento Integrado
(PDLI) de Olinda, concluído em 1972. Esse docu-
PLANEJAMENTO, mento, concluído em 1972, teve sua elaboração
coordenada e financiada pelo Serviço Federal
CONSERVAÇÃO E TURISMO de Habitação e Urbanismo (Serfhau), através da
consultoria da Sociedade Civil de Planejamento
CULTURAL NO PDLI DE OLINDA (Sociplan), além do Departamento de Arquite-
tura da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e
outros consultores especialistas no assunto. A
PLANNING, CONSERVATION AND CULTURAL TOURISM investigação histórica permitiu contextualizar a
IN OLINDA PDLI circulação de ideias no âmbito nacional e inter-
nacional, além do contexto institucional da dé-
PLANIFICACIÓN, CONSERVACIÓN Y TURISMO CULTURAL cada de 1960, que se refletem no PDLI de Olinda.
EN OLINDA PDLI Para além de uma visão redutora centrada na
efetividade ou não do PDLI de Olinda, admite-se
a hipótese de que ele representa uma conver-
BACELAR, Aline
gência de noções e práticas em debate desde a
Mestre; MDU - UFPE
década de 1960 e se configura como importan-
galdino.aline@gmail.com
te instrumento de planejamento e conservação
que norteou a gestão municipal no trato do sítio
histórico. Neste sentido, apresenta-se o PDLI de
Olinda como pano de fundo para a narrativa que
se pretende construir, com vistas a compreen-
der como o campo da conservação se atrela ao
planejamento urbano, com vistas à exploração
turística e econômica do patrimônio cultural.

PLANEJAMENTO URBANO CONSERVAÇÃO


TURISMO CULTURAL PDLI DE OLINDA

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

700
ABSTRACT RESUMEN

This article deals with the articulation between Este artículo trata de la articulación entre los
the fields of conservation, urban planning and campos de la conservación, el urbanismo y el
the notion of cultural tourism through the analy- concepto de turismo cultural a través del análisis
sis of the Integrated Development Plan (PDLI) of del Plan de Desarrollo Integrado (PDLI) de Olinda,
Olinda, completed in 1972. This document, com- finalizado en 1972. Este documento, finalizado en
pleted in 1972, had its preparation coordinated 1972, tiene su elaboración y coordinación finan-
and financed by the Federal Housing and Urban ciada por el Departamento Federal de Vivienda y
Planning Service (Serfhau), through the consul- Urbanismo (Serfhau), a través de consultoría de la
tancy of the Civil Planning Society (Sociplan), in Sociedad de Planificación Civil (Sociplan), además
addition to the Department of Architecture at the del Departamento de Arquitectura de la Universi-
Federal University of Bahia (UFBA) and other con- dad Federal de Bahía (UFBA) y otros consultores
sultants specialized in the subject. The common especialistas no disciplinarios. La investigación
historical investigation contextualizes the circu- histórica ha permitido contextualizar la circula-
lation of ideas at the national and international ción de ideas no nacionales e internacionales,
levels, in addition to the institutional context of además del contexto institucional de los años se-
the 1960s, which are reflected in the PDLI of Olin- senta, que se refleja en el PDLI de Olinda. Además
da. In addition to a reducing vision centered on de una visión reductiva centrada en la eficiencia
the effectiveness or otherwise of the Olinda PDLI, o el PDLI de Olinda, se asume que representa una
the hypothesis that it represents a convergence convergencia de nociones y prácticas en debate
of notions and practices under debate since the desde la década de 1960 y se configura como un
1960s is accepted and is configured as an impor- importante instrumento de planificación y con-
tant planning and conservation instrument that servación que orientó la gestión municipal. no
guided municipal management in dealing with se ocupó del sitio histórico. En este sentido, el
the historic site. In this sense, the Olinda PDLI is PDLI de Olinda aparece como telón de fondo de
presented as a backdrop for a narrative that is in- la narrativa que se pretende construir, con el fin
tended to be built, with a view to understanding de comprender cómo se relaciona el campo de
how the field of conservation is linked to urban la conservación con el urbanismo, con miras a la
planning, with a view to the tourist and economic exploración turística y económica del patrimonio
exploration of cultural heritage. cultural.

URBAN PLANNING CONSERVATION CULTURAL TOURISM PLANIFICACIÓN URBANA CONSERVACIÓN


PDLI OF OLINDA TURISMO CULTURAL PDLI DE OLINDA
EIXO TEMÁTICO 1 INTRODUÇÃO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
O PDLI de Olinda é o ponto de partida para analisar
um período da história do urbanismo e da con-
vídeo-pôster servação extremamente rico, os anos de 1960.
O presente artigo busca compreender como se
configurou a articulação entre planejamento, con-

PLANEJAMENTO, servação e turismo cultural, por meio da análise


desse Plano.
CONSERVAÇÃO E TURISMO A década de 1960 foi também um período marcado

CULTURAL NO PDLI DE OLINDA por intensa institucionalização de políticas volta-


das para atividades como o planejamento urbano,
o turismo e a cultura. No campo do planejamento
PLANNING, CONSERVATION AND CULTURAL TOURISM urbano no Brasil, destaca-se a experiência do Ser-
IN OLINDA PDLI viço Federal de Habitação e Urbanismo (Serfhau)
como primeiro órgão federal com a atribuição de
PLANIFICACIÓN, CONSERVACIÓN Y TURISMO CULTURAL elaborar e coordenar a política nacional de plane-
EN OLINDA PDLI jamento local integrado. Diversos estudos já foram
realizados no sentido de avaliar a efetividade dos
planos elaborados pelo Serfhau e com ênfase em
seu caráter centralizador e autoritário, alinhado
ao regime político ditatorial, ou seja, a partir da
relação entre regime político e a produção do
campo do urbanismo.

A dissertação de Vizioli (1998) avalia muito bem


as falhas e benefícios da experiência do Serfhau
em seu período de existência no campo do pla-
nejamento no Brasil. Nesse sentido, teria sido
o Serfhau apenas uma ‘cortina de fumaça’ para
atender as pressões pela institucionalização no
âmbito federal de uma política de planejamento
urbano?

Na contramão das generalizações quanto à ine-


fetividade dos planos do período Serfhau, os es-
tudos empreendidos por Feldman (2019, 2010,
2005) ressaltam a importância do Serfhau na
institucionalização desse campo no Brasil, além
de viabilizar a contratação, pelos governos mu-
nicipais, de empresas de consultoria para ela-
boração de planos, o que “potencializa a prática
profissional fora das administrações” (FELDMAN,
2005, p. 2, 12).

O campo da conservação em meados da década


de 1960 foi marcado, por um lado, pela amplia-
ção da noção de patrimônio, que passa a incluir
16º SHCU conjuntos urbanos e até cidades históricas intei-
30 anos . Atualização Crítica
ras, cuja referência teórica é a Carta de Veneza
702 (1964). Por outro lado, os bens culturais passam
a ser vistos como ativos econômicos capazes mostrou uniforme, mas sofreu inflexões e adap-
de gerar recursos que poderiam ser revertidos tações ao contexto nacional, o que revela um
para sua própria conservação, além de promover amadurecimento das noções propaladas pelas
o desenvolvimento econômico da região. Para organizações internacionais e a consolidação,
tanto, o turismo cultural foi a opção adotada e no Brasil, dos discursos sobre o turismo cultural
difundida pelos organismo internacionais, como a em andamento desde a década de 1960.
Organização das Nações-Unidas para a Educação,
a Ciência e a Cultura (UNESCO) e a Organização Para a elaboração deste artigo foi privilegiado o
dos Estados Americanos (OEA). Nesse sentido, os uso de fontes primárias, entre as quais se destaca
encontros, as cartas patrimoniais e as missões o PDLI de Olinda, no acervo do Arquivo Público de
da UNESCO1 exerceram papel fundamental para Olinda Antonino Guimarães. Na pesquisa histórica,
a disseminação dessas ideias. por vezes recorreu-se às fontes secundárias para
elucidar o contexto em que as fontes primárias
Pereira (2012) remonta a trajetória do debate sobre foram produzidas. Não se pode deixar de citar
o turismo cultural no âmbito da UNESCO. Segundo também a relevância da entrevista realizada com
Pereira (2012), esse só foi registrado em textos o arquiteto Paulo Ormindo, especialista respon-
oficiais quando passou a ser contemplado pela sável pelos estudos referentes ao sítio histórico
UNESCO, em 1966. Embora o uso da expressão de Olinda no PDLI.
‘turismo cultural’ tenha levado mais tempo para se
naturalizar, a utilização dos bens culturais como Dessa forma, pretendemos demonstrar como o
atrativos turísticos capazes de gerar recursos PDLI de Olinda relaciona-se local e globalmen-
econômicos e a conservação do patrimônio cul- te com as ideias em circulação. Neste sentido,
tural dos países passou a incorporar os discursos apresenta-se uma contribuição para o campo da
das instituições internacionais de salvaguarda conservação, com vistas a apontar um caminho
desde 1965. para o desafio de conservar nosso patrimônio
cultural.
Por outro lado, o ambiente de debate e circulação
de ideias em torno do turismo cultural no âmbito
do continente americano mostrou-se igualmente
profícuo. No contexto americano, tomou-se como do tombamento ao PDLI de Olinda: O PLANO
principal referência as Norma de Quito, documen- COMO FERRAMENTA DO PLANEJAMENTO
to resultante da Reunião sobre Conservação e
Utilização de Monumentos e Lugares de Interesse De sede residencial da aristocracia rural a reduto
Histórico e Artístico, realizada em Quito, em 1967. de artistas e intelectuais, a colina histórica de
Esta reunião é considerada pela historiografia Olinda reuniu ao longo desse intervalo um vasto
a primeira iniciativa da OEA sob o viés da coo- acervo cultural, digno de proteção institucio-
peração cultural com vistas à conservação do nal. Os primeiros tombamentos federais datam
patrimônio cultural. de 1938, logo após a criação do órgão federal de
salvaguarda, o SPHAN. Na época de elaboração
No início da década de 1970, ocorreram dois even- do Plano, existiam 13 monumentos tombados,
tos no âmbito nacional, os Encontros de Governa- composto, majoritariamente, por exemplares
dores ocorridos em Brasília (1970) e em Salvador da arquitetura religiosa barroca, e apenas dois
(1971), onde essas ideias foram recepcionadas. edifícios da arquitetura civil.
Para Bacelar (2019), os debates ali ocorridos re-
velaram que a noção de turismo cultural não se Só na década de 1960, a preservação de monu-
mentos e sítios históricos passou a ser discutida,
nacional e internacionalmente, na perspectiva
1. Foram as missões do consultor da UNESCO Michel Parent,
em 1966 e 1967, as mais representativas para Olinda. Como
das ameaças à sua integridade, especialmente
produto dessas visitas ao Brasil, elaborou seu relatório advindas com a acelerada urbanização e indus-
intitulado “Proteção e valorização do patrimônio cultural trialização de determinados centros metropoli-
brasileiro no âmbito do desenvolvimento turístico e eco- tanos. No caso de Olinda, as áreas periféricas ao
nômico”, publicado em 1968 pela UNESCO. sítio, estavam sendo alvo de intensa urbanização,
EIXO TEMÁTICO 1 principalmente em virtude do processo de metro-
polização, favorecendo assim a integração viária
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO com a cidade histórica de Olinda, o que colocava
em risco a proteção do seu acervo cultural. Com
essa preocupação, e após recomendação do con-
sultor da UNESCO, Michel Parent, o SPHAN tomba
o conjunto urbano de Olinda em 1968. Por fim, o
acervo arquitetônico e urbanístico da cidade de
Olinda é inscrito nos Livros do Tombo do Patri-
mônio Histórico e Artístico Nacional, por meio da
Notificação nº 1004/68, de 21/03/1968.

Mesmo com a ampliação do objeto de salvaguarda


de Olinda, que passou de alguns monumentos
isolados, desde 1938, ao conjunto urbano, em
1968, as questões relativas à conservação dentro
do perímetro tombado ficavam sob a tutela do
órgão federal. Supõe-se que o PDLI foi pioneiro no
trato das questões preservacionistas integradas
ao planejamento urbano e, foi responsável pelo
desenvolvimento do aparato institucional e legal
de salvaguarda do SHO, marcando o início da atu-
ação da esfera local na preservação patrimonial.
Percebe-se tal configuração como ressonância
dos debates empreendidos naquele período no
campo da conservação.

Considerando a noção de Pontual (2019, p. 195), de


que o planejamento funciona como “instrumento
governamental produtor de ideias que preveem
um futuro idealizado”, o plano, enquanto ferra-
menta que materializa essas ideias, contribuiu
para a difusão da prática do planejamento nas
administrações públicas.

O Plano de Desenvolvimento Local Integrado


(PDLI), para o município de Olinda, de 1972 (Figura
1), teve sua elaboração coordenada e financiada
pelo Serfhau, através da contratação, pela Pre-
feitura Municipal de Olinda (PMO), da empresa
de consultoria Sociedade Civil de Planejamento
(Sociplan), sediada em São Paulo, além de outros
consultores especialistas e com o apoio do Insti-
tuto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(IPHAN). Os estudos referentes ao SHO foram
elaborados pelo arquiteto Paulo Ormindo David de
Azevedo, professor do Departamento de Arqui-
tetura da Universidade Federal da Bahia – UFBA.
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

704
foi explorado suficientemente” e é lembrado como
“matéria prima”, que poderá promover o desenvol-
vimento de uma atividade turística, “compatível
com o seu potencial e capaz de se transformar em
uma fonte de renda substancial para o município”.

É na gestão seguinte, de Ubyratan de Castro e


Silva (1971-1973), que os trabalhos do PDLI de
Olinda iniciam-se. A Sociplan, uma empresa de
engenharia consultiva criada em 1967, fazia parte
da relação de escritórios cadastrados no Serfhau,
e seu proprietário era o advogado José Amaro
Pinto Ramos, que contratou Sérgio Motta como
engenheiro-chefe. Como de costume, especialis-
tas foram agregados a equipe própria da empresa
para atender o desenvolvimento dos trabalhos. A
equipe técnica estava dividida em Equipe Técnica
Básica4, Equipe Técnica Auxiliar 5 e Consultores6.
Entre os técnicos do IPHAN que acompanharam o
Plano, podemos destacar os arquitetos Augusto
da Silva Telles (Área Central/RJ) e Geraldo Gomes
(1º DR/PE). Considerando apenas a equipe da So-
ciplan, cerca de 30 profissionais, cabe destacar
a multidisciplinariedade do seu quadro técnico,
Figura 1: Capa do PDLI de Olinda (1972). Fonte: Arquivo
que reunia arquitetos, engenheiros, geólogos, so-
Público Antonino Guimarães, Olinda.
ciólogos, advogados, economistas, entre outros.

Os trabalhos técnicos estão consubstanciados


O primeiro passo para o PDLI foi o Termo de Refe- nos oito volumes do Plano7, nos quais o sítio his-
rência, elaborado, em 1970, pelo arquiteto Heitor
Ferreira de Souza2 e continha uma “Documenta- 4. A Equipe Técnica Básica era integrada por: Sergio Roberto
ção para a concorrência para a elaboração de Vieira da Motta (engenheiro), João Teixeira de Almeida Jú-
Trabalhos Técnicos”. Tal instrumento trazia uma nior, José Expedito Prata (arquiteto), Paulo José Montezuma
caracterização do município, um pré-diagnóstico, de Andrade (arquiteto), Antônio Guido, Carlos Alberto Cedano
recomendações de ação imediata e um roteiro dos Cabrejos, Marcos Antônio de Freitas, Marcos Domingues da
Silva (arquiteto), Roberto Thompson de Carvalho (geólogo),
trabalhos a elaborar (PMO, 1970, [n.p.]). Logo após
Edson Vilela Martins, Rogério Belda (engenheiro de trans-
a entrega do Termo de Referência ao interventor porte) e Antônio Dray (PMO, 1972).
Eudes Costa, a matéria intitulada “Técnicos apon-
5. A Equipe Técnica Auxiliar era integrada por: Teiji Tomioka,
tam a Olinda caminho para seu desenvolvimento” 3
Virgínia Maria Collier de Mendonça (arquiteta), Flávio Dalton
afirma que o patrimônio histórico e paisagístico
Laino, Vania Ribeiro Carneiro (arquiteta) (PMO, 1972).
de Olinda é um “recurso cujo potencial ainda não
6. Os Consultores foram: Rodolfo Costa e Silva, Victor F. B.
de Mello (engenheiro geotécnico), José Milton Dallari Soares
2. O arquiteto e urbanista Heitor Ferreira de Souza era gaú- (engenheiro, advogado), Everaldo da Rocha Gadelha (arqui-
cho, formado na Faculdade de Arquitetura da USP – FAUUSP, teto), Geraldo Gomes (arquiteto), Erney Felicio Plessmann de
e atuou em diversos planos diretores do Serfhau, com des- Camargo (médico), Maria Regina Mendes Prata (socióloga),
taque para o Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado José Bonifácio Xavier de Andrade (sociólogo), João Macedo,
de Franca, elaborado pela empresa consultora GPI - Grupo Onaldo Pompílio de Mello, Paulo Ormindo David Azevedo
de Planejamento Integrado, da qual foi cofundador (Cf. (arquiteto), Francisco Assis do Couto Reis (arquiteto), Arilda
FERREIRA, 2007). Cardoso (arquiteta) e Raphael Camelo (PMO, 1972).

3. TÉCNICOS apontam a Olinda caminho para seu 7. Em sua forma final, o Plano foi apresentado em oito volu-
desenvolvimento. Diário de Pernambuco, Recife, 18 out. 1970. mes, contendo: Volume I (Tomos I e II): análise da situação e
EIXO TEMÁTICO 1 tórico apresenta-se de forma quase independen-
te do restante do município, dispensando a ele
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO estudos específicos. Por exemplo, no Volume I,
ao tratar do “Problema Habitacional” de Olinda, o
texto não inclui o sítio histórico, abordando apenas
o restante do município e a questão dos novos e
grandes conjuntos habitacionais do BNH cons-
truídos próximos ao limite com o Recife. Já no
Volume II, nas diretrizes para o setor histórico, há
um item específico sobre o sistema viário, sepa-
rado das diretrizes para o sistema viário de todo
o município. Dessa forma, fica claro o peso que
foi dado ao sítio histórico, dada sua importância
e capacidade de dinamizar o município.

Embora os estudos referentes ao SHO tenham


sido elaborados por Paulo Ormindo, concebemos
que estes contaram com a participação do IPHAN,
seja diretamente através de seus técnicos, seja
mediante as experiências que aquele arquiteto
acumulou em sua passagem naquele órgão. Tal
envolvimento justifica-se também pela presen-
ça de monumentos e o conjunto urbano serem
tombados pelo IPHAN. Essa colaboração havia
sido expressa recentemente no Compromisso
de Salvador (1971 In CURY, 2004)

Ao tratar das funções de Olinda no espaço metro-


politano, os estudos recomendam a estruturação
do município “para transformar-se em centro tu-
rístico e cultural, [...] que deverá constituir-se na
opção básica de desenvolvimento do Município,
tornando essas atividades geradoras de renda
para o Município” (PMO, 1972, p. 28, v. 1, grifo nosso).
O turismo cultural como alternativa prioritária
para o desenvolvimento de Olinda apareceu tam-
bém na matéria “Urgência para Olinda” do Jornal
do Commercio, em 06-09-1972, na qual reconhece
que “é precisamente o turismo a atividade pri-
mordial destinada a Olinda, nos anos vindouros,
capaz inclusive de autofinanciar a conservação
da cidade alta”.

O desenvolvimento de atividades turísticas como

tendências do desenvolvimento: diagnóstico e prognóstico;


Volume II: diretrizes para o desenvolvimento; programas
setoriais; Volume III: plano de ação do governo municipal
orçamento plurianual de investimentos; Volume IV: Le-
16º SHCU
gislação Básica Urbanística; Volume V: legislação básica
30 anos . Atualização Crítica
administrativa e financeira; Volume VI: manuais de serviços;
706 Volume VII: cartografia; e, Volume VIII: anexos.
elemento básico da promoção da dinâmica eco- A elaboração de um projeto integrado para a zona
nômica do município, principalmente o turismo de preservação rigorosa, que deveria ser deta-
ligado ao seu patrimônio histórico, o turismo lhado a partir das diretrizes propostas no PDLI, é
cultural, tem base nas conclusões dos estudos apresentada como principal saída para o desen-
econômicos realizados no PDLI, que indicaram volvimento turístico da área, e deveria “estimular
a atividade terciária a que apresenta maiores e facilitar a construção de hotéis; nesse sentido
possibilidade de expansão no município. A partir poderão ser aproveitados os prédios históricos
da definição dessa premissa, as diretrizes de desde que não haja incompatibilidades técnicas
intervenção e os programas setoriais estabele- e estéticas;” e a “organização de feiras semanais
cidos no Plano são delineados a fim de valorizar ou mensais e um festival anual”, entre outros as-
os recursos culturais existentes no município, pectos (PMO, 1972, p. 8-9, v. 2). A rentabilidade do
“tendo o Sítio Histórico de Olinda recebido um projeto também deveria ser estimada em função
tratamento especial buscando transformá-lo no do nível de renda agregada; incidência sobre o
polo de atração turística” (PMO, 1972, p. 2, v. 2). nível de emprego direto e indireto; nível dos recur-
sos a serem engajados; período de recuperação
dos investimentos.

As ESTRATÉGIAS DE PLANEJAMENTO E Estava presente a necessidade de articulação


CONSERVAÇÃO: O TURISMO COMO PRIORIDADE com outras instituições e instâncias governamen-
tais, através do contato com o governo do estado e
a Embratur, por exemplo. Nesse momento, o Plano
Como já exposto, o PDLI de Olinda está organizado
deteve-se a aspectos mais complementares do
em oito volumes, sendo o Volume II responsável
desenvolvimento do turismo, que poderiam ser
por apresentar as diretrizes de desenvolvimento,
atendidos com a cooperação também do Banco
que por sua vez são divididas em diretrizes para
do Nordeste, e menos a medidas de conservação
dinamização da atividade econômica e diretrizes
dos monumentos e sítios urbanos.
para a organização do espaço urbano, além das
diretrizes setoriais e institucionais. As diretrizes O desenvolvimento turístico foi considerado como
econômicas são pautadas na expansão do setor alternativa prioritária por “permitir maior fluxo de
terciário, através do incremento do turismo cul- renda externa para o Município, ao mesmo tempo
tural, dada a tendência ao desaparecimento do que, em se desenvolvendo, criará dentro de sua
setor primário e o lento crescimento do setor própria área outras atividades complementares
secundário. orientadas para satisfazer as necessidades dos
que virão usufruir daquela atividade” (PMO, 1972,
De forma ainda geral, pois só serão detalhadas p. 7, v. 2). Dessa inferência pode-se perceber uma
no item específico relativo ao sítio histórico, as visão mais ampla do potencial do turismo cultural,
diretrizes econômicas para o desenvolvimento tu- ao compreendê-lo não só como fomentador do de-
rístico foram fundamentadas no “caráter histórico senvolvimento do sítio histórico, mas da economia
e urbano de Olinda”. Todavia, o Plano reconhece de todo o município. A partir do reconhecimento
a insuficiência da infraestrutura existente para o da importância do sítio histórico de Olinda e do
turismo, que se limita a uma atividade de visitas seu papel funcional na região metropolitana do
de passagem, mas sem promover um ingresso Recife, o PDLI dedica parte considerável às dire-
de renda. O Plano defende que com a adoção de trizes e projetos, a um zoneamento detalhado e
medidas objetivas para seu desenvolvimento, o a mobilidade dessa área da cidade.
turismo seria capaz de promover uma mudança
quantitativa, maior afluência de pessoas, e quali- Primeiro, são definidas como funções básicas
tativa, ampliação e complementação da infraes- do centro histórico para o desenvolvimento de
trutura necessária para permitir maior tempo de Olinda a de centro comunal e parque de cultura
permanência no município, pois aponta a “inexis- e lazer em âmbito metropolitano e regional. Para
tência de serviços e atrativos complementares de alcançar esses objetivos, é indicada uma série de
turismo” como a causa principal da permanência ações de valorização, adaptação e restauração
limitada (PMO, 1972, p. 7-8, v. 2). da área, que no PDLI, se limitaram aos aspectos
EIXO TEMÁTICO 1 urbanísticos de valorização e revitalização do con-
junto, não chegando ao nível de cada monumento
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO e seu ambiente. Os meios para concretização
daqueles objetivos são organizados em meios
legais e administrativos que dizem respeito
a revisão da legislação municipal de proteção,
normas para restauração e novas edificações e
estruturação da Fundação para a Restauração
e Valorização de Olinda; meios físicos de inter-
venção que contemplam o sistema viário e os
projetos especiais de restauração e valorização;
e os meios financeiros através da concessão de
créditos e incentivos fiscais.

O município foi dividido em 12 setores, onde o


Setor 6 corresponde ao centro histórico, incluindo
o perímetro tombado pelo IPHAN, o qual é “objeto
de estudo destacado e pormenorizado, tratado
individualmente” (Figura 2). O Setor 6 foi subdi-
vidido em zonas e sub-zonas para a fixação de
distintas ações e parâmetros de conservação,
cujas nomenclaturas e objetivos são bastante
similares aos identificados nas Normas de Quito
e no anteprojeto de lei proposto por Paulo Ormin-
do de Azevedo no II Encontro de Governadores8
(NORMAS DE QUITO In CURY, 2004, p. 120).

16º SHCU
8. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA. Departamento
30 anos . Atualização Crítica
de Assuntos Culturais. Anais do II Encontro de Governadores.
708 Rio de Janeiro, 1973, p. 148.
Figura 2: Mapa do zoneamento definido pelo PDLI de Olinda anexo a Lei Municipal Nº 3826 – Legislação Básica Urbanística.
Fonte: PMO, 1973 (Acervo de André Pina).

O Setor 6 foi subdividido em três zonas. Na Zona de to paisagístico do conjunto” de modo a criar um
Preservação Rigorosa, que corresponde à área escalonamento das edificações cujo objetivo é
de maior densidade monumental e de elementos a conservação da visibilidade do sítio histórico
naturais, considerada non aedificandi9 , foram (PMO, 1972, p. 11-12, v. 2).
previstas ações de “restauração de edifícios e
logradouros, jardins e áreas verdes segundo as Além da referência às recomendações de Quito,
normas do IPHAN”, o que incluiria a “eliminação o zoneamento proposto indica uma preocupação
dos anexos sem mérito arquitetônico”. A Zona de em separar as áreas predominantemente urbanas
importância ambiental é aquela “que apresenta das áreas com maior presença de vegetação,
um arranjo volumétrico e florístico que importa tanto na Zona de Preservação Rigorosa, como na
preservar, ainda que admitida uma maior flexi- Zona de importância ambiental. Embora agrupe
bilidade nas adaptações de imóveis não repre- numa única lei, o tratamento para cada zona, ex-
presso na forma de diretrizes e parâmetros, é mais
sentativos de época histórica relevante e sujeita
específico a suas particularidades. A frequente
a vínculos especiais” (PMO, 1972, p.39-42, v.2). E
relação das proposições do PDLI de Olinda com a
a Zona de preservação da visibilidade urbana
legislação italiana pode ser justificada pelas expe-
e paisagem, que corresponde à “área na qual a
riências anteriores do arquiteto Paulo Ormindo de
ocupação, disposição e alturas das edificações
Azevedo naquele país, no final da década de 1960.
devem assegurar a visibilidade e molduramen-
As recomendações indicadas apresentam relação
9. Com exceção das novas construções ou ampliações com as medidas técnicas propostas por Grazia-
decorrentes do plano de restauração (PMO, 1972, p.40, v.2). no Gasparini nas Normas de Quito, que dedicou
EIXO TEMÁTICO 1 atenção especial às zonas adjacentes ao núcleo
histórico. Dessa forma, a proposta de zoneamento
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO do PDLI de Olinda e suas diretrizes aderem quase
integralmente às medidas legais recomendadas
nas Normas de Quito, bem como no anteprojeto
de lei proposto por Ormindo no II Encontro de
Governadores.

Através do PDLI de Olinda, a conservação do sítio


histórico foi inserida na legislação urbanística
municipal, mediante a Lei nº 3826 de 29 de janeiro
de 1973. A expansão do conceito de patrimônio
cultural acompanhou o enquadramento da tutela
de áreas urbanas históricas nas legislações urba-
nísticas, sobretudo a partir da década de 1960. Na
Lei nº 3826/1973 estão sintetizados os conceitos,
diretrizes, projetos, parâmetros e índices ante-
riormente esmiuçados nos volumes do Plano,
sobretudo no Volume 2. Composta por 5 Livros10,
sendo o Livro III – Do centro histórico e acervo
cultural do município, dedicado às medidas legais
de proteção e valorização do patrimônio de Olinda.
A iniciativa de vanguarda de Olinda, que em 1973
já contava com tal instrumento legal, alinha-se
com as experiências no campo legislativo na Itália,
França e Inglaterra que, num primeiro momento,
buscaram apenas ampliar a área tutelada e, num
segundo momento, efetivar a associação entre
proteção patrimonial e planejamento urbano.

Quanto aos meios financeiros, o PDLI de Olinda


propôs mecanismos para aumentar a participação
dos proprietários na conservação e valorização
dos imóveis de interesse cultural através da insti-
tuição de incentivos fiscais e financiamentos em
condições especiais para obras de restauração.
Contudo, percebe-se um descompasso entre as
proposições do Plano e o que efetivamente foi
incluído na Lei nº 3826/1973, que deixou de fora
os incentivos propostos aos proprietários das
áreas consideradas não edificáveis nas sub-zonas
verdes. Essa ausência, inevitavelmente acarretou
a ocupação dos vazios ainda existentes naquela
época, muitas vezes de forma desordenada e
descaracterizando o conjunto tombado.

Por outro lado, reconhecendo a limitação dos

10. A Lei nº 3826/1973 é composta pelos Livros: I – Das


16º SHCU
Definições, II – Do Plano Diretor Físico do Município, III – Do
30 anos . Atualização Crítica
Centro Histórico e Acervo Cultural do Município, IV – Das
710 Obras e V – Das Posturas do Município (PMO, 1973).
cofres municipais, o PDLI indica a importância Percebe-se no PDLI de Olinda uma significativa
dos poderes federal e estadual no financiamento integração entre o sítio histórico com os aspectos
de obras de restauração. Salienta que esforços já de tráfego viário. As considerações acerca do sis-
estão sendo feitos nesse sentido, como as pro- tema viário objetivavam a “a facilitação do acesso
postas apresentadas no I e II Encontro de Gover- àquela área sem, todavia permitir sua congestão”
nadores, entre elas a de canalização de recursos (PMO, 1972, p. 45, v. 2). De acordo com o PDLI, isso
do Sistema Financeiro da Habitação incluída no seria alcançado através da implantação de um
Compromisso de Salvador. anel perimetral que teria a função de facilitar a
circulação na periferia ao mesmo tempo em que
Do ponto de vista institucional, a principal propo- evitaria penetrações desnecessárias.
sição do PDLI de Olinda é a criação da Fundação
para a Preservação e Valorização de Olinda, Reconhece-se no tratamento dado pelo Plano ao
a qual deveria ser um órgão da administração sistema viário no SHO um diálogo com a estratégia
descentralizada do município, integrada à estru- que Gustavo Giovannoni sistematizou e defendeu
tura da Secretaria de Cultura e Turismo, o que lhe para intervir em áreas urbanas consideradas de valor
garantiria uma maior flexibilidade administrativa. histórico e artístico, que ele denominou de “desbas-
Deveria ter “autonomia para atuar diretamente na tamento urbano” (diradamento edilizio) (CABRAL,
realização de obras de restauração, na compra e 2013). A intenção de intervir minimamente no teci-
venda de imóveis de interesse cultural, inclusive do preexistente da colina histórica de Olinda é de-
daqueles que tenham sido desapropriados para monstrada ao propor melhorias nas antigas ruas que
a realização das obras necessárias à sua preser- cortam o sítio e conectá-las a um anel de contorno.
vação e valorização”. Ou seja, sua função seria
promover e coordenar os investimentos públicos Importante ainda mencionar que nas Recomen-
e privados na área (PMO, 1972, p. 57, v. 2). O PDLI dações Prioritárias para o período 1973-1975, que
pormenoriza a estrutura, finalidades e composi- compõem o volume 3 do PDLI de Olinda, as ações
ção da Fundação, que só se concretizará em 1979, relativas à infraestrutura urbanística, com ênfase
juntamente com a criação do Sistema Municipal nas melhorias do sistema viário, foram apontadas
de Preservação dos Sítios Históricos de Olinda. em primeiro lugar, indicando alinhamento com as
recomendações correntes nos eventos, planos
Possivelmente, a experiência baiana concorreu e cartas apresentados, onde foi recomendada
para tal proposição presente no PDLI de Olinda, prioridade à infraestrutura de apoio ao desenvol-
ao constatarmos similitudes com a Fundação do vimento do turismo. A recomendação prioritária
Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia. Criada para a Preservação do Acervo Cultural de Olinda
em 13-09-1967, através da Lei Nº 2464, e regula- foi de ordem administrativa: a criação da Funda-
mentada pelo Decreto Nº 20.530 de 30-01-1968, ção para a Preservação e Valorização de Olinda
o órgão estadual tornou-se protagonista na va- e a aprovação da legislação referente ao SHO; e
lorização do patrimônio cultural, especialmente os Projetos Prioritários de Valorização do Setor,
o Pelourinho, com vistas ao desenvolvimento do entre os quais deveriam ser privilegiados os três
turismo. primeiros: 1º) restauração da Sub-zona Monumen-
tal de Preservação Rigorosa; 2º) Horto Botânico;
Cabe ressaltar que não estava prevista a articu- e 3º) Centro de Convenções e de Hospedagem.
lação entre a Fundação para a Preservação e Va-
lorização de Olinda, ligada a Secretaria de Cultura As diretrizes e proposições apresentadas pelo
e Turismo, e a Assessoria de Planejamento, que PDLI de Olinda referentes ao sítio histórico, ela-
era ligada diretamente ao gabinete do prefeito boradas pelo arquiteto Paulo Ormindo de Azevedo,
e responsável por definir as diretrizes gerais e a revelam grande convergência com o contexto na-
estratégia de desenvolvimento municipal. Esse cional e internacional da conservação, consubs-
formato não permitia uma maior integração entre tanciado em encontros, cartas patrimoniais, rela-
conservação e planejamento, ficando em órgãos tórios técnicos, normas, planos, etc. Essas ideias,
distintos a responsabilidade do tratamento do por vezes, parecem transcritas literalmente, e por
setor histórico e do restante da cidade, bem como outras, são apropriadas e adaptadas à realidade
as decisões técnicas, das políticas. local. As prioridades indicadas revelam sintonia
EIXO TEMÁTICO 1 com o desenvolvimento do turismo cultural em
Olinda, ao ser dada prioridade a investimentos de
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO suporte à atividade. Esses investimentos prioritá-
rios dizem respeito a melhorias no sistema viário
existente ou a implantação de novas vias de modo
a facilitar o acesso de turistas, o estabelecimento
de infraestrutura hoteleira e ações de animação
cultural, além das obras de restauração arquite-
tônica e valorização dos espaços públicos.

Os Projetos especiais de valorização do setor

Os Projetos especiais representaram as inter-


venções do Plano sobre áreas específicas do sítio
histórico, visando incrementar atividades que
poderão vitalizar o setor ou corrigir o processo
de degradação de algumas áreas. O Plano reco-
menda que cada área seja tratada unitariamente
e com cuidados especiais, devido às suas especi-
ficidades. Sugere que, na medida do possível, os
Projetos especiais sejam submetidos a concursos
públicos submetidos à aprovação da DPHAN, “de
modo a revelar a melhor solução para o problema e
adequação à paisagem” (PMO, 1972, p. 47, v. 2). São
definidos 7 Projetos especiais de valorização do
setor, desses, 4 envolvem intervenções através de
novas construções e 3, apenas ações de restauro e
conservação. Quase todos os Projetos tencionam
a valorização das áreas com fins turísticos e não
pela melhoria de vida de seus habitantes, através
da criação de atrativos e de infraestrutura que
permitam o aumento do fluxo de visitantes. Toda-
via, dentre os sete projetos especiais, o PDLI reco-
menda a execução prioritária dos três primeiros.

A restauração da Zona Monumental

A restauração da zona monumental é o projeto


de maior destaque no Plano e, por conseguinte
o que demanda maior detalhamento de ações.
Pelo volume de obras demandadas e impacto
esperado, esse seria o de maior valorização da
área. O PDLI sugere a cooperação do poder públi-
co com o privado para realização das operações
necessárias sob a coordenação da Fundação para
a Preservação e Valorização de Olinda. Parte das
16º SHCU ações seria realizada diretamente pelo poder
30 anos . Atualização Crítica
público federal, estadual e municipal, tais como a
712 realização das obras de restauração arquitetônica
mais urgentes, a restauração dos logradouros, E o Polo B correspondia à quadra delimitada pelas
jardins e áreas verdes juntamente com a manu- ruas do Amparo, Misericórdia, Beco das Cortesias
tenção e enterramento das redes de serviços e a e Prudente de Morais (Figuras 4 e 5). Na pers-
implantação de órgãos públicos, especialmente pectiva do PDLI, essa quadra foi escolhida por
de função cultural, em monumentos. Enquanto figurar um dos melhores conjuntos arquitetônicos
outras seriam realizadas pelos proprietários com de Olinda e, portanto, “merece uma utilização
o incentivo do poder público que atuaria indireta- condigna” e por possuir relativa coincidência dos
mente promovendo a realização de restauração pisos, o que permite “uma interligação dos prédios
conjunta de quadras, ou séries de edifícios me- para uma utilização única do tipo pousada” (PMO,
diante a formação de condomínios de quadras e a 1972, p. 49, v. 2).
obtenção de financiamentos para a realização de
tais obras, a criação de estímulos fiscais para as
restaurações e prestando assessoramento téc-
nico aos proprietários para as obras de restauro
através da Fundação.

A partir da definição dos meios de atuação, seja do


poder público ou privado, e para evitar a dispersão
dos recursos, o Plano previu áreas menores para
iniciar o processo de valorização. São definidos
dois polos de desenvolvimento da área que de-
veriam exercer sua influência gradativamente a
todo o conjunto. Essa proposição evidencia clara
relação com as recomendações das Normas de
Quito quanto ao envolvimento do setor privado e a
formulação em etapas dos planos de valorização. Figura 4: Rua do Amparo [1967]. Fonte: Acervo do IPHAN-RJ.
O Polo A foi constituído pelo antigo pátio e área da
Igreja de São Pedro Apóstolo ou São Pedro Velho,
onde hoje é a Praça Laura Nigro, e edifícios peri-
metrais. Nessa escolha, pesou a importância que
já possuía esse espaço para reunião pública, bem
como a proximidade com o Mercado da Ribeira, que
já abrigava manifestações populares (Figura 3).

Figura 5: Esquina da Rua do Amparo com o Beco das Cor-


tesias [1967]. Fonte: Acervo do IPHAN-RJ.

O Plano sugere que a função a ser dada aos edifí-


cios que constituem os dois polos “deve propiciar
uma intensa utilização social capaz de promover a
valorização da área e provocar novas iniciativas”.
Também indica a previsão de um estacionamento
Figura 3: Mercado da Ribeira [1971]. Fonte: Arquivo Público em patamares e sombreado na encosta do reser-
Antonino Guimarães, Olinda. vatório para atender a demanda. Nota-se que o
EIXO TEMÁTICO 1 procedimento da intervenção em etapas tanto
permite a otimização de recursos financeiros,
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO como exerce uma ação reflexa sobre seu entor-
no, estimulando a valorização de uma área maior
que a inicialmente restaurada. Tudo isso parece
estar bastante alinhado com as recomendações
internacionais, especialmente com as Normas
de Quito, que preconizou:

a diversidade de monumentos e edificações


de marcado interesse histórico e artístico
situadas dentro do núcleo de valor ambiental
se relacionam entre si e exercem um efeito
multiplicador sobre o resto da área, que
ficaria revalorizada em conjunto como con-
sequência de um plano de valorização e de
saneamento de suas principais construções
(NORMAS DE QUITO In CURY, 2004, p. 112).

Para a efetivação da Restauração da Sub-Zona


Monumental de Preservação Rigorosa, o PDLI
incentiva a realização de convênios com a Facul-
dade de Arquitetura da UFPE para os trabalhos
de levantamento planialtimétrico dos imóveis
que integram os polos A e B, e apenas das fa-
chadas para o restante da sub-zona. Deveria ser
firmado também convênio com o IPHAN, com
concurso financeiro de órgãos internacionais
como a UNESCO e a OEA, para consolidação e
restauração dos principais monumentos civis e
religiosos ameaçados, dando especial atenção
às obras relativas aos problemas do solo. Para os
serviços de atualização e embutimento das redes
de serviços urbanos, deveria buscar convênios
com os órgãos responsáveis e com o BNH para o
financiamento de obras de conservação e restau-
ro dos imóveis situados na Sub-Zona Monumental
de Preservação Rigorosa.

Esforços nesse sentido vinham sendo realizados,


através da articulação entre o IPHAN e o BNH,
como a reunião realizada no dia 18-08-197211, na
sede do BNH, com a intenção de que o Banco
estudasse um “plano de financiamento para recu-
peração de núcleos urbanos de interesse histórico
e artístico para uso como núcleo habitacional”.

11. SILVA TELLES, Augusto da. Informação nº 195 sobre


Reunião na sede do BNH em 18 ago. 1972. 23 ago. 1972.
16º SHCU
Fonte: Arquivo Central do IPHAN no Rio de Janeiro/As-
30 anos . Atualização Crítica
suntos Internacionais/ UNESCO (II-B): AA01/M066/P05/
714 Cx.0060/P.0192.
Participaram dessa reunião o presidente e o as- ção do referido projeto e que não implicaria em
sessor do BNH, Rubens Costa e o arquiteto Mário investimentos financeiros. No Programa 5 – In-
Pinheiro, respectivamente, os consultores em dústria e Comércio, foi calculado um investimento
missão especial da UNESCO no Brasil, os urba- de 300.000,00 cruzeiros para a elaboração do
nistas Jean Bernard Perrin e Alain Peskine, e o projeto visando complementar a infraestrutura
arquiteto Augusto da Silva Telles, como assessor hoteleira, bem como os demais projetos decor-
do DAC, pelo IPHAN. Os consultores da UNESCO rentes e 450.000,00 cruzeiros para a remoção das
falaram dos entendimentos nesse sentido que edificações recentes na Sub-Zona de proteção
já mantiveram com representantes do BNH em rigorosa do setor histórico. Talvez pelas limita-
Minas Gerais e na Bahia. Como era de se esperar, ções de tempo e recursos, o PDLI não detalhou
os representantes do BNH demonstraram preocu-
os projetos especiais nem definiu os custos de
pação com os custos envolvidos para restauro e
execução, apenas os de elaboração dos projetos.
adaptações ao uso habitacional, apontando como
solução, a cooperação do Estado, município e do Na Tabela 1, a seguir, estão sintetizados os inves-
IPHAN com recursos a fundo perdido para possi- timentos propostos em minuta de projeto de lei,
bilitar o empreendimento. Como encaminhamento constante do Volume 3 do PDLI – Plano de Ação
da referida reunião, o senhor Rubens Costa iria
do governo municipal e orçamento plurianual de
levar o assunto ao conselho do BNH enquanto
investimentos, para o triênio de 1973 a 1975, re-
estudo concreto do caso deveria ser realizado.
ferentes às ações de conservação e valorização
Quantos aos recursos públicos previstos para do patrimônio. Percebe-se que os investimentos
a realização do Projeto especial 1, o Programa iniciam, em 1973, representando apenas 4% dos
- Governo e Administração Geral incluiu a reco- recursos orçamentários previstos e aumentam
mendação de elaboração de um decreto para para 15%, no ano seguinte, e para mais de 20%, em
criação de uma comissão visando a elaboração 1975. Embora o percentual aumente significativa-
dos termos de referência e edital para concepção mente, ainda representa um baixo investimento,
do projeto detalhado de desenvolvimento turístico menos de 13%, nas intervenções no setor, consi-
do município, como primeira ação para efetiva- derado o esteio do desenvolvimento do município.

Triênio
Especificação Geral Total
1973 1974 1975
Recursos alocados
Recursos orçamentários previstos* 5.495.000 4.350.000 5.950.000 15.795.000
Despesas programadas
Turismo
Elaboração do projeto para complementar a estrutura
100.000 - - 100.000
de acolhida aos visitantes
Elaboração de projetos e/ou infraestrutura 100.000 100.000 200.000
Patrimônio artístico e histórico
Fundação para Preservação e Valorização do Acervo
- 200.000 300.000 500.000
Cultural
Praças, parques e jardins
Restauração da Praça da Preguiça 120.000 120.000
Reimplantação do Jardim Botânico 100.000 100.000 200.000
Inversões Financeiras
Turismo
Remoção das edificações recentes na Sub-Zona de
- 150.000 300.000 450.000
Proteção Rigorosa do Setor Histórico
EIXO TEMÁTICO 1
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO

Praças, parques e jardins 200.000 200.000


Desapropriação da área do antigo Jardim Botânico - 100.000 200.000 300.000
Totais das despesas e inversões 220.000 650.000 1.200.000 2.070.000

* Volume global a ser aplicado pela Prefeitura Municipal para Despesas de Capital.

Tabela 1: Investimentos das recomendações prioritárias por função de governo (valores em cruzeiros, não atualizados).
Fonte: A autora adaptado de PMO, 1972, v. 3.

Se considerarmos a previsão de investimentos


para Olinda constante no Relatório de Parent (Ta-
bela 2), a diferença aumenta mais ainda. Contudo,
enquanto as previsões do PDLI se referiam ao
orçamento municipal que faria parte do Plano
Plurianual, para os próximos três anos, as indi-
cações fornecidas por Parent foram feitas de
forma puramente indicativa, para determinar a
ordem de grandeza do custo da renovação geral
e tinham um horizonte de tempo aproximado de
oito anos, divididos em 1ª e 2ª urgência. Deve-se
considerar também que as fontes de recursos
seriam diversas, Embratur, BNH, Serfhau, gover-
nos estadual e municipal. Na planilha do consultor
da UNESCO, estavam previstas ações variadas,
desde o plano urbanístico, obras de restauração,
até gastos com publicidade turística.

Observa-se ainda que quase 50% do total de in-


vestimentos previstos são para obras de infra-
estrutura viária, tão cara para viabilizar o projeto
do turismo cultural. Interessa notar que a maior
parte dos custos previstos é a relacionada com
a infraestrutura e não com as intervenções nos
bens culturais, como as obras de restauração e
manutenção em monumentos e imóveis parti-
culares. Isso revela, no mínimo, a importância
atribuída ao turismo cultural comparativamente
com a conservação do acervo cultural.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

716
Operações Monumentos e Sítios Investimentos

Plano urbanístico [estudo] - 20


Restauração 400 -
Infraestrutura – solo: ruas e estradas - 1.160
Trabalhos edafológicos [São bento] - 50
Casa dos artistas - 20
Manutenção de imóveis particulares [auxílio] 200 -
Sustentação dos jardins - 130
Ações culturais diversas - 70
Artesanato - 70
Organização de festivais - 90
Publicidade turística - 60
Empréstimo hoteleiro - 210
600 1.880
TOTAL OLINDA
2.480
TOTAL PERNAMBUCO 4.500
TOTAL BRASIL 48.450
Imprevistos [5%] 2.420
TOTAL GERAL 50.870

Tabela 2: Estimativas de Parent para Olinda (valores em milhares de dólares, não atualizados). Fonte: A autora adaptado
de PARENT, 1968 In LEAL, 2008, p. 179, 189.

Considerações Finais gabarito para novas construções. Com a Lei mu-


nicipal nº 3.826/1973 foram definidos parâmetros
Para além de uma visão redutora centrada na urbanísticos, diretrizes de ocupação e um plano
efetividade ou não do PDLI de Olinda, admitimos de valorização do sítio histórico.
que ele representa uma convergência de noções
Apesar dos limites impostos pelo contexto polí-
e práticas em debate desde a década de 1960 e
se configura como importante instrumento de tico, econômico e social, ao tratar dos aspectos
planejamento e conservação que norteou a gestão relativos ao sítio histórico dentro do plano de de-
municipal no trato do sítio histórico. Ele contri- senvolvimento municipal, o PDLI de Olinda revela
buiu para a institucionalização do planejamento um avanço na integração da conservação ao pla-
urbano como função de governo e técnica de nejamento urbano, que vinha sendo recomendado
administração. e buscado, desde os anos de 1960. A articulação
entre planejamento urbano e conservação con-
O PDLI marcou o início da atuação da esfera local substanciada no PDLI de Olinda se deu por várias
na preservação patrimonial, sobrepondo pionei- motivações, como foi apresentado, ter o conjunto
ramente Olinda no panorama nacional da salva- urbano tombado em 1968, a recomendação de
guarda. Portanto, consideramos ter sido o PDLI Parent, tanto textualmente como no orçamento,
o responsável pela formação do aparato legal e de que fosse elaborado um “plano urbanístico”
administrativo de salvaguarda do sítio histórico e a definição da função de Olinda na RMR como
de Olinda no âmbito municipal, embora este últi- “centro turístico e cultural” evidenciado desde
mo só tenha se efetivado em 1979 com a criação a elaboração do Termo de Referência, em 1970.
da Fundação Centro de Preservação dos Sítios
Históricos de Olinda (FCPSHO). Até aquele mo- Ao incluir o tratamento do sítio histórico no pla-
mento, Olinda contava apenas com a Notificação nejamento de todo o município, o PDLI de Olinda
nº 1004/1968, referente ao tombamento federal do promoveu a articulação entre planejamento e
conjunto urbano, que definia taxa de ocupação e conservação. A partir do estudo do sítio e ali-
EIXO TEMÁTICO 1 nhado com as recomendações nacionais e inter-
nacionais, os Projetos especiais de valorização
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO associaram a conservação do patrimônio com
sua utilização para fins turísticos, especialmente
o Projeto 1 – Restauração da Zona Monumental,
o qual seria o de maior valorização da área. Esse
Projeto envolveria a ação coordenada entre di-
versos órgãos de instâncias distintas, tais como
PMO, BNH, concessionárias de serviços urbanos,
IPHAN, UNESCO, OEA, Faculdade de Arquitetura
da UFPE e proprietários dos imóveis. Portanto, os
referido Projetos jamais poderiam ser implemen-
tados por um único órgão, a DPHAN, por exemplo,
como acontece numa ação isolada de restauro
arquitetônico. A valorização de conjuntos urbanos
patrimoniais para o desenvolvimento do turismo
cultural envolvia a atuação de atores diversos e
elevados custos, que deveriam ser viabilizados
através de várias fontes financeiras.

O PDLI de Olinda avançou ainda mais nesse senti-


do, ao transformar suas diretrizes e proposições
em lei. Assim, o Plano previu os meios legais - Lei
municipal nº 3.826/1973, além dos administrati-
vos - Fundação, físicos – zoneamento e projeto
de valorização e financeiros – incentivos fiscais
e financiamentos em condições especiais.

Apesar da crítica a falta de efetividade dos pla-


nos elaborados no período do Serfhau e sua re-
lação com o regime político ditatorial, busca-se
compreender os avanços e seu significado para a
conservação do sítio histórico de Olinda. Por fim,
espera-se apontar um caminho para o desafio de
conservar nosso patrimônio cultural, através da
integração entre os campos do planejamento e
da conservação.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

718
REFERÊNCIAS vação e turismo cultural: noções e práticas
do PDLI de Olinda. Dissertação (Mestrado em
[livro] Desenvolvimento Urbano) – MDU-UFPE. Recife,
2019.
CURY, Isabelle (Org). Cartas Patrimoniais. Rio
de Janeiro: IPHAN, 2004. CABRAL, Renata Campello. A noção de “am-
biente” em Gustavo Giovannoni e as leis de
PREFEITURA MUNICIPAL DE OLINDA (PMO). tutela do patrimônio cultural na Itália. Tese
Termos de referência para o PDLI - Plano de (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – IAU-
Desenvolvimento Local Integrado, Prefeitura -USP. São Carlos, 2013.
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________. Plano de Desenvolvimento Local tempos do SERFHAU: o processo de cons-
Integrado de Olinda - PDLI, Prefeitura Munici- trução e implementação do plano diretor de
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(Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) - IAU-
[artigo em revistas e periódicos] -USP. São Carlos, 2007.

FELDMAN, Sarah. “O Serviço Federal de Habi- PEREIRA, Cecilia Ribeiro. O turismo cultural e
tação e Urbanismo (Serfhau): avanços, limites as missões UNESCO no Brasil. Tese (Doutora-
e ambiguidades (1964-1975)”. In: ENCONTRO do em Desenvolvimento Urbano) - MDU-UFPE.
NACIONAL DA ANPARQ, 1., 2010. Anais... Rio de Recife, 2012.
Janeiro: Prourb, 2010.
VIZIOLI, Simone Helena T. Planejamento
________. O arranjo SERFHAU: assistência urbano no Brasil: a experiência do SERFHAU
técnica aos municípios/ órgãos de planeja- enquanto órgão federal de planejamento inte-
mento/ empresa de engenharia consultiva. In: grado ao desenvolvimento municipal. Disser-
ENCONTRO NACIONAL DA ANPUR, 11., 2005. tação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo)
Anais... Salvador: Anpur, 2005. - FAU-USP. São Paulo, 1998.

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA (MEC).


Departamento de Assuntos Culturais. Anais do
II Encontro de Governadores. Rio de Janeiro:
IPHAN, 1973.

[capítulo de livro]

FELDMAN, Sarah. O Serviço Federal de Habita-


ção e Urbanismo (Serfhau) e a reconfiguração
do campo profissional do urbanista. In: LEME,
Maria Cristina da Silva (Org.). Urbanismo e
política no Brasil dos anos 1960. São Paulo:
Annablume, 2019. p. 99-128.

PONTUAL, Virgínia. Planejamento e política na


cidade do Recife: sofreu essa relação ruptura
com o Golpe Civil-Militar de 1964? In: LEME, Ma-
ria Cristina da Silva (Org.). Urbanismo e política
no Brasil dos anos 1960. São Paulo: Annablu-
me, 2019. p. 193-223.

[teses acadêmicas]

BACELAR, Aline G. Planejamento, conser-


EIXO TEMÁTICO 1 RESUMO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
A construção deste artigo parte de um diálogo
possível entre Itália e Brasil no período corres-
vídeo-pôster pondente à Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
Estudos realizados identificaram em ambos os
países ações estratégicas de planejamento re-
PLANEJAMENTO E gional pautadas, sobretudo, no desenvolvimen-
to agroindustrial, na ampliação das redes de
FLUXOS MIGRATÓRIOS: infraestrutura, no controle das fronteiras e na
distribuição demográfica como modo de prote-
DO AGRO PONTINO ITALIANO ção territorial e de dinamização das atividades
econômicas. A análise inicia-se pela política ita-
ÀS COLÔNIAS AGRÍCOLAS liana de planejamento regional como estratégia
de interiorização e desenvolvimento centro-sul
NACIONAIS BRASILEIRAS a partir das operações de recuperação do Agro

(1931-1948) Pontino e da implantação de colônias agrícolas


na região do Lazio no período de 1931 a 1938.
Desta estratégia de ocupação territorial con-
duzida por Benito Mussolini aproximamo-nos à
PLANNING AND MIGRATORY FLOWS:
“Marcha para o Oeste” (1938) de Getúlio Vargas
FROM ITALIAN AGRO PONTINO TO BRAZILIAN NATIONAL
e à criação das Colônias Agrícolas Nacionais
AGRICULTURAL COLONIES (1931-1948)
(1941-1948). Um arranjo aqui proposto, cuja fun-
damentação teórica e contextualização históri-
PLANIFICACIÓN Y FLUJOS MIGRATORIOS:
ca apresentam por base referências bibliográ-
DEL AGRO PONTINO ITALIANO A LAS COLONIAS
ficas e documentações italianas e brasileiras,
AGRÍCOLAS NACIONALES BRASILEÑAS (1931-1948)
além de direcionamento a casos específicos,
como: Littoria, na Itália, e Ceres no Brasil. Com
COSTA, Lucas Felicio tal foco objetiva-se costurar uma leitura histó-
rica ainda inédita, aquela direcionada aos flu-
Doutorando (FAU/UnB); prof. Universidade Federal de
Goiás – Faculdade de Artes Visuais (FAV/UFG) xos migratórios conduzidos institucionalmente
lucascosta.arq@ufg.br pelo poder público. Sob uma perspectiva fou-
caultiana, entende-se este deslocamento po-
TREVISAN, Ricardo pulacional por territórios nacionais como uma
artimanha político-econômico-social própria a
Doutor; prof. Universidade de Brasília – Faculdade de
Arquitetura (FAU/UnB)
Estados populistas e ditatoriais, tendo no uso
prof.trevisan@gmail.com do planejamento regional um instrumento do
autoritarismo político vigente. Verificaremos na
estruturação deste enredo, dentre as inúmeras
narrativas possíveis, a construção de novas ci-
dades, a adoção de formas urbanas peculiares
e a apropriação arquitetônica como símbolos do
poder, especialmente em edifícios públicos.

HISTÓRIA DA CIDADE HISTÓRIA DO URBANISMO ITÁLIA


BRASIL CIDADES NOVAS

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

720
ABSTRACT RESUMEN

The construction of this article is based on a La construcción de este artículo se basa en un


possible dialogue between Italy and Brazil in the posible diálogo entre Italia y Brasil en el período
period corresponding to the Second World War correspondiente a la Segunda Guerra Mundial
(1939-1945). In the studies carried out, we identi- (1939-1945). Los estudios realizados identifica-
fied in both countries strategic actions of regio- ron en ambos países acciones estratégicas de
nal planning based, above all, on agro-industrial planificación regional basadas, sobre todo, en el
development, on the expansion of infrastructure desarrollo agroindustrial, en la ampliación de re-
networks, on border control, and demographic des de infraestructura, en el control de fronteras
distribution as a form of territorial protection and y en la distribución demográfica como medio de
economic activity dynamization. The analysis protección territorial y dinamización de las acti-
starts with the Italian policy of regional planning vidades económicas. El análisis comienza con la
as a strategy of interiorization and development política italiana de planificación regional como
of the center-south through the recovery opera- estrategia de interiorización y desarrollo centro-
tion of the Agropontino and the implementation -sur a partir de las operaciones de recuperación
of agricultural colonies in the Lazio region from de Agro Pontino y la implantación de colonias
1933 to 1938. From this territorial occupation agrícolas en la región de Lazio de 1931 a 1938. Esta
strategy, led by Benito Mussolini, we approach estrategia de ocupación territorial liderado por
the Getúlio Vargas’s “March to the West” (1938) Benito Mussolini nos acercamos a la “Marcha ha-
and the creation of the National Agricultural Co- cia el Oeste” de Getúlio Vargas (1938) y la creación
lonies (1941-1948). It was proposed an arrange- de las Colonias Agrícolas Nacionales (1941-1948).
ment whose theoretical foundation and historical Un arreglo propuesto aquí, cuyo fundamento te-
contextualization were based on bibliographical órico y contextualización histórica se basan en
references and Italian and Brazilian documen- referencias bibliográficas y documentación ita-
tation, in addition to the study of specific cases liana y brasileña, además de enfocarse en casos
such as: Littória, in Italy, and Ceres in Brazil. With específicos, como: Littoria, en Italia, y Ceres en
this approach, the objective is to entail a new his- Brasil. Con tal enfoque, el objetivo es coser una
torical reading oriented to migratory flows insti- lectura histórica aún inédita, dirigida a los flujos
tutionally conducted by the government. From a migratorios conducidos institucionalmente por
Foucauldian perspective, this population displa- el poder público. Desde una perspectiva foucaul-
cement by national territories is understood as tiana, este desplazamiento de población por ter-
a political-economic-social stratagem inherent ritorios nacionales se entiende como un truco po-
to populist and dictatorial states, using regional lítico-económico-social inherente a los estados
planning as an instrument of political authorita- populistas y dictatoriales, utilizando la planifica-
rianism. We will verify in the structuring of this ción regional como instrumento del autoritarismo
scenario, among the countless possible narrati- político actual. Comprobaremos en la estructura-
ves, the construction of new cities, the adoption ción de esta trama, entre las innumerables narra-
of peculiar urban forms and the architectural tivas posibles, la construcción de nuevas ciuda-
appropriation as symbols of power, especially in des, la adopción de formas urbanas peculiares y
public buildings. la apropiación arquitectónica como símbolos de
poder, especialmente en los edificios públicos.

HISTORY OF CITIES HISTORY OF URBANISM ITALY


BRAZIL NEW CITIES HISTORIA DE LA CIUDAD HISTORIA DEL URBANISMO
ITALIA BRASIL NUEVAS CIUDADES
EIXO TEMÁTICO 1 INTRODUÇÃO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Embora um Oceano e um Mar os separem fisica-
mente, Brasil e Itália apresentam nos últimos dois
séculos aproximações que permitem estabelecer
vídeo-pôster
uma trama transcontinental entre os dois países.
A cultura ítalo-brasileira, embora marcada por

PLANEJAMENTO E episódios pontuais durante o período Colônia-Im-


pério (por exemplo, a atuação de engenheiros mi-
FLUXOS MIGRATÓRIOS: litares italianos na concepção de vilas pombalinas
no Brasil), vai ganhar consistência pela política
DO AGRO PONTINO ITALIANO imigratória brasileira, a qual atraiu para o país
estrangeiros de diversas nacionalidades (italianos,
ÀS COLÔNIAS AGRÍCOLAS japoneses, libaneses, alemães, poloneses etc.).
Essa ação estatal, ao longo da segunda metade
NACIONAIS BRASILEIRAS do século dezenove (com a proibição do tráfico de
africanos escravizados em 1850), tinha objetivos
(1931-1948) específicos: desde econômicos, como dinami-
zar as fontes produtivas; a questões sociais, de
ampliar a reserva interna de mão de obra e de
PLANNING AND MIGRATORY FLOWS: ocupar e colonizar terras ermas; e culturais, pelo
FROM ITALIAN AGRO PONTINO TO BRAZILIAN NATIONAL “embranquecimento” gradativo da população após
AGRICULTURAL COLONIES (1931-1948) o fim da escravidão (1888). As milhares de famílias
italianas que aqui aportaram, sejam em Santos,
PLANIFICACIÓN Y FLUJOS MIGRATORIOS: Rio de Janeiro, Porto Alegre etc., iam direto tra-
DEL AGRO PONTINO ITALIANO A LAS COLONIAS balhar em colônias agrícolas do interior do país,
AGRÍCOLAS NACIONALES BRASILEÑAS (1931-1948) sobretudo nas lavouras de café, o “ouro-verde”
da economia nacional durante a República Velha
(1889-1930).

O cenário de imigração Brasil-Itália partia de


um acordo bilateral. Do nosso lado, um pacote
estatal de incentivos à imigração; do outro, um
excedente populacional e anos de racionamento
alimentícios. Uma via de mão dupla que acionou tal
política e produziu laços permanentes. Fato é que
a presença de italianos no Brasil é registrada pelo
recenseamento geral de 1940, a qual contabilizou
285.124 mil italianos, correspondendo ao segundo
maior número de pessoas de outra naturalidade,
atrás somente dos portugueses (354.342 mil) – à
época o país contava com uma população superior
a 40 milhões de habitantes (IBGE, 1950). Desta
população italiana, 85% estavam concentrados
na região Sul e Sudeste do país.

Contudo, com a Primeira Guerra Mundial (I GM,


1914-1918), em que a Itália assume um dos papéis
protagonistas e necessita arregimentar um exér-
16º SHCU cito para assegurar suas fronteiras, somadas
30 anos . Atualização Crítica
às constantes denúncias no Brasil de trabalhos
722 realizados pelos imigrantes análogos à escravi-
dão, houve uma mudança na política imigratória, direcionada aos fluxos migratórios conduzidos
reduzindo expressivamente a entrada de estran- institucionalmente pelo poder público. Sob uma
geiros no país. perspectiva foucaultiana, entende-se este des-
locamento populacional por territórios nacionais
Esta breve exposição sobre vínculos entre Brasil e como uma artimanha político-econômico-social
Itália é apenas um pretexto para, de fato, chamar própria a Estados populistas e ditatoriais, tendo
a atenção ao nosso verdadeiro intuito com este no uso do planejamento regional um instrumento
artigo: apresentar como o planejamento regional do autoritarismo político vigente.
foi uma política de Estado adotado por ambos os
países durante a Segunda Guerra Mundial (II GM).
Mais do que vínculos socioculturais construídos
ao longo do processo imigratório, acreditamos UMA ITÁLIA RURALIZADA (1931-1938)
que Brasil e Itália também se aproximam, no re-
corte temporal delimitado (1931-1948), por ações Criado na Itália em 1926, o Comitê Permanente
e práticas governamentais aplicadas visando ao de Migração Interna (CPMI) 1 foi responsável por
desenvolvimento econômico de determinadas articular políticas do Ministério do Trabalho e do
regiões de cada país por processos dirigidos de Ministério de Segurança Social, levando-se em
fluxos migratórios (reequilíbrio demográfico). Ade- consideração ações voltadas à população de-
mais, salienta-se que não se trata de um estudo sempregada e aos veteranos ex-combatentes
comparativo, compreendendo ser dois contextos da I GM. O CPMI tinha como principais objetivos
distintos; porém, a colocação de duas realidades, minimizar a onda migratória da zona rural para os
cuja dinâmicas operacionais se assemelham, pode grandes centros urbanos e controlar o alto índice
apontar um recurso próprio daquele momento. de emigração para outros países.

A análise inicia-se pela política italiana de plane- Em discurso político pelo Partido Nacional Fas-
jamento regional como estratégia de interiori- cista, em 1927, Benito Amilcare Andrea Mussolini
zação e desenvolvimento centro-sul a partir das (1883-1945) lança o slogan “bisogna ruralizzare
operações de recuperação do Agro Pontino e da l’italia, anche se occorrono miliiardi e mezzo seco-
implantação de colônias agrícolas na região do lo” (GALLO, 2010, p.62).2 Com ele, o Dulce – chefe
Lazio no período de 1931 a 1938. Desta estratégia supremo da Itália – declara o novo curso da política
de ocupação territorial conduzida por Benedito nacional de migração interna e conter o proces-
Mussolini aproximamo-nos à “Marcha para o Oes- so de emigração, acarretando na dissolução do
te” (1938) de Getúlio Vargas e à criação das Colônias Commissariato Generale dell’Emigrazione (CGE),
Agrícolas Nacionais (1941-1948). Num primeiro mediante o Decreto-Lei n. 628, de 26 de abril de
momento, interessa-nos a composição do Regi- 1927.
me Fascista Italiano (1922-1943), com destaque à
política de fundação de novas cidades através do Com isto, interrompe-se a política externa e
programa de ruralização e descentralização urba- prioriza-se a interna. Segundo Gallo (2010) três
na. Deste cenário, direcionamos nossa atenção a elementos chaves se destacam nesta mudan-
desdobramentos possíveis deste modus operandi ça: 1) o discurso de ascensão de Mussolini, 2) a
no contexto brasileiro a partir da instauração do supressão do CGE, e 3) a aprovação pelo Conse-
Estado Novo (1937-1945) e suas políticas de ocu- lho de Ministros de medidas antiurbanismo. Esta
pação e colonização dirigida do território. chave direcionava para um movimento de reor-
denamento populacional das cidades italianas,
Um arranjo aqui proposto, cuja fundamentação te- descongestionando os grandes centros e, com
órica e contextualização histórica apresentam por isso, evitando potenciais focos de resistência e
base referências bibliográficas e documentações geradores de conflitos. Redistribuir o contingente
italianas e brasileiras, além de direcionamento
a casos específicos, como: Littoria, na Itália, e
Ceres no Brasil, em que urbanismo e arquitetura 1. Criado pelo Decreto-Lei n. 440, de 4 de março de 1926.
serão explorados. Com tal foco objetiva-se cos- 2. Tradução livre: “Temos que ruralizar a Itália, mesmo que
turar uma leitura histórica ainda inédita, aquela demore bilhões e meio de séculos”.
EIXO TEMÁTICO 1 “excedente” por regiões ermas do interior do país
era a solução.
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Exemplo disto ocorreu em Roma, cujo objetivo
foi reverter a concentração populacional da ca-
pital. O arquiteto e urbanista Marcello Piacentini
(1881-1960) 3, que projetou inúmeros edifícios e
intervenções urbanísticas durante o período Fas-
cista, incluindo o conjunto urbanístico-arquitetô-
nico da Esposizione Universale Roma (EUR, 1938-
1942), consolidou sua imagem como architetto
del regime. Foi membro da comissão do Plano
Diretor de Roma, e juntamente a grupo de urba-
nistas romanos propõem, em 1929, o “Programa
de Planejamento Urbano de Roma”, que previa a
área urbana da capital cercada por várias aldeias
rurais. Tinha-se neste programa uma resposta à
necessidade de controlar o adensamento popula-
cional na capital italiana, mantendo as pessoas no
campo a partir da implantação de programas de
reassentamentos. Segundo Valva e Coelho (2012,
p.121), tratava-se de um controle estatal sobre a
população, “aliviando os medos da burguesia em
relação à massa de desempregados”.

Em artigo publicado: “Fugir das cidades. Cifras


e deduções” (1928), Mussolini discorre sobre os
meios necessários, legais e coercitivos, para
facilitar o êxodo dos centros urbanos, dificultar
o abandono da zona rural e opor-se à onda de
imigração rumo a cidades (CIUCCI e DAL CO, 1990
apud VALVA e COELHO, 2012).

Neste período, as localidades de Agro Pontino


e Líbia, na região do Lazio (centro-sul da Itália,
próximo a Roma), foram os primeiros territórios
escolhidos para aplicação das políticas migrató-
rias. Inicialmente controladas pelo CPMI e, poste-

3. Marcello Piacentini esteve no Brasil em 1935, a convite do


ministro da Educação e Saúde do Brasil, Gustavo Capanema
(1900-19985), para apresentar proposta para a nova Cidade
Universitária da Universidade do Brasil, na Quinta da Boa
Vista. Na ocasião, Piacentini ainda foi membro da comissão
de planejamento e construção do edifício do Ministério da
Educação e Saúde Pública. Até o momento não foram des-
cobertas ligações diretas de do arquiteto italiano à política
de planejamento regional brasileiro, mas podemos traçar
supor possíveis rocas de saberes e conhecimento a partir
16º SHCU
da circulação de ideias do princípio urbanístico europeu
30 anos . Atualização Crítica
em território brasileiro. (Fonte: http://www.cronologia-
724 dourbanismo.ufba.br/apresentacao.php?idVerbete=594).
riormente, pelo Ministério de Obras Públicas,4 tais da pobreza, da miséria, da condição de “inváli-
políticas buscavam uma aceleração do processo do” (veteranos de guerra), e que se transformam
de migração interna. Em 1931 foi constituído o paulatinamente em trabalhadores nacionais su-
Comissariato per le Migrazioni e la Colonizzazione bordinados ao Estado. Um engendramento que
Interna (CMCI) que tinha por objetivo regulamentar reforça o caráter político-ideológico do CMCI,
a mobilidade territorial e atuar como órgão de vinculado curiosamente ao Ministério de Obras.
gerenciamento de obras agrícolas e de infraestru-
tura (GALLO, 2010). Deste modo, previa-se como Esta condição nos remete ao princípio de gestão
uma das principais estratégias para intervenção política aos moldes disciplinares das instituições
a criação de escritórios periféricos à região do estatais analisadas por Foucault (2008, 2012). Tais
Lazio. Já no ano seguinte à constituição do CMCI trabalhadores nacionais, embora não estivessem
há uma redução de 50% na taxa de emigração e em presídios ou manicômios, estavam à serviço
um número expressivo do aumento populacional do Estado como mão de obra excedente.
na região de Agro Pontino – com 5.369 habitantes
Mas fora dos períodos de crise, o interna-
iniciais em 1931, salta para 21.673 habitantes em
mento adquire um outro sentido. Sua função
1933. Este considerável aumento populacional
de repressão vê-se atribuída de uma nova
está diretamente relacionado ao controle dos utilidade. Não se trata mais de prender os
fluxos migratórios, aplicados não apenas em terri- sem trabalho, mas de dar trabalho aos que
tório italiano mas em colônias italianas na África. foram presos, fazendo-os servir com isso a
prosperidade de todos. A alternativa é clara:
Entre 1935 a 1939 o CMCI atuou na África Oriental
mão-de-obra barata nos tempos de pleno
Italiana (AOI),5 compreendida pelas colônias da
emprego e de altos salários; e em período
Abissínia (Etiópia), Eritreia e Somália. Tratou-se
de desemprego, reabsorção dos ociosos
de uma substituição do serviço de migração in-
e proteção social contra a agitação e as
terna pela política de colonização e ocupação
revoltas (FOUCAULT, 2012, p. 67).
do território africano. Em 1941, o Comissariado
já totalizava 35 sedes periféricas em território Para articulação do Estado e os veteranos de
italiano e africano. A administração central, lo- guerra, a Opera Nazionale Combattenti (ONC), cria-
calizada em Roma, coordenava o processo de da inicialmente como Opera Nazionali Invalidi di
ampliação e ocupação territorial do Estado Fas- Guerra (1917), foi uma das principais organizações
cista, como estratégia política e protecionista civis italianas a atuar na reintegração dos vetera-
de ocupação do centro-sul da Itália. Os colonos, nos de guerra ao trabalho. A ONC assumiu impor-
enquanto trabalhadores nacionais, assumiam tante papel de orquestrar a atuação dos veteranos
tanto a função de ocupação e povoamento destas de guerra na condução das obras, sob o principal
áreas a partir de núcleos urbanos projetados e lema “Terra ai reduci” (Terra para veteranos).
recém implantados, como de agentes difusores
do Fascismo. É através da articulação entre a ONC, CMCI
e o Ministério de Obras que um conjunto de
O programa de migração italiana constitui-se, intervenções são realizadas em território italiano,
portanto, como um sistema estatal coordenado, sobretudo, a construção de novas cidades. O
em que se recorre ao excedente de desemprega- sistema de planejamento regional das cidades
dos e necessitados para o exercício ideológico do novas da região de Agro Pontino respondia tan-
Estado Fascista mediante a expansão e ocupação to ao planejamento de reequilíbrio demográfico
das colônias tanto em território italiano quanto quanto objetivamente a utilização da mão de obra
africano. São sujeitos excluídos dos centros ur- dos trabalhadores para intervenções diversas. A
banizados, expurgados para além dos limites das principal foi a construção do Canal Mussolini, cujo
grandes cidades (Roma), marcados pelo estigma propósito era a recuperação da região alagadiça
e pantanosa ao sul de Roma para a implantação
de novos assentamentos.
4. Conforme Decreto-Lei n. 358, de 9 de abril de 1931.

5. A AOI é dissolvida após a II GM, com o reestabelecimento [...] estabelecer permanentemente popu-
dos países africanos enquanto nações independentes. lações que não têm meios de subsistência
EIXO TEMÁTICO 1 suficientes (trabalhadores de outras regiões
italianas com dificuldades de desenvolvi-
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO mento especialmente Veneto e Romagna)
proporcionando-lhes melhores perspecti-
vas e condições de vida. A tarefa de alojar
e estabelecer a população é confiada aos
Opera Nazionale Combattenti (ONC). Portan-
to, não apenas os sistemas de recuperação,
reabilitação hidráulica e canalização, mas
também estruturas urbanas de vários tipos
e consistências, tanto agrícolas quanto pa-
trimoniais, serviços escolares e de saúde,
centros administrativos e logísticos, redes
de infraestrutura organizadas hierarquica-
mente (estradas agrícolas, trilhas, eixos que
interligam os centros). (ZEVI, 2009, p. 7).

A recuperação da área de Agro Pontino permi-


tiu planejar uma série de intervenções urbanas,
criando cidades na Província de Latina, região
do Lazio, ao sul de Roma. A implantação destas
cidades novas perdurou de 1931 a 1938. Nestes
5 anos, cinco cidades foram construídas em um
sistema distrital: Latina (1931), Sabaudia (1934),
Pontinia (1935), Aprilia (1937) e Pomezia (1938), em
um sistema racional de implantação a partir da
dinâmica do planejamento regional (CARTA, 2003).

Neste trabalho, analisaremos a partir da aproxi-


mação das cidades novas construídas na região de
Agro Pontino e a implantação de Colônias Agríco-
las Nacionais no interior Brasil na década de 1940,
a dimensão do planejamento regional e a forma-
ção de núcleos urbano-rurais como estratégia
de equalização das disparidades demográficas,
culminando na ocupação da província de Latina,
na Itália, e dos estados na hinterlândia brasileira.

Do outro lado do Atlântico, a ruralização


institucionalizada

O programa “Marcha para o Oeste”, instituído por


Getúlio Vargas (1882-1954) em 1938, período do
Estado Novo, tinha dentre seus objetivos atuar
em frentes estratégicas quais sejam: incentivar o
progresso e a ocupação do oeste brasileiro, tendo
como plano de ação o recrutamento de “traba-
16º SHCU lhadores nacionais” para migrarem na conquista
30 anos . Atualização Crítica
territorial e econômica das “regiões retardadas”
726 do país (VARGAS, 1938, p.166).
Como parte do processo de instauração desta linha de frente, como experiências/laboratórios
política nacionalista, instituições e normativas de produção agrícola e matérias-primas, visando
foram criadas e proclamadas, a exemplo da Di- a preparar os respectivos territórios ermos para
visão de Terras e Colonização (DTC), de 1940; do ocupação/exploração a fim de transformá-los em
Decreto-Lei de criação das Colônias Agrícolas polos de abastecimento das zonas mais adensa-
Nacionais, de 1941; da Fundação Brasil Central das – faixa litorânea, sobretudo nas regiões Sul e
(FBC) e da Expedição Roncador-Xingu, ambas de Sudeste brasileiras –, bem como condicioná-las
1943; do alistamento de Soldados da Borracha, como mercados consumidores de bens manu-
no período de 1943-1945, para exploração dos faturados.
seringais em território amazônico; além de vários
projetos rodoferroviários que serão apresentados Ao todo, entre 1941 e 1948, foram fundadas oito
a posteriori. Colônias Agrícolas Nacionais (CANs) nas cinco
regiões do país6 (Figura 1): CANG-Goiás (GO, 1941),
Dentre as medidas tomadas, evidencia-se aqui a CANA-Bela Vista (AM, 1941), Barra do Corda (MA,
criação das Colônias Agrícolas Nacionais a partir 1942), CANP-Monte Alegre (PA, 1943), CANGO-
do Decreto-Lei n. 3.059, de 14 de fevereiro de 1941, -General Osório (PR, 1943), CAND-Dourados (MS,
que está diretamente relacionada às formas de 1943), CANPI-Oeiras (PI, 1944) e Jaíba (MG, 1948)
exploração e ocupação territorial. Esta ação fun- (COSTA, 2016).
cionaria, nas perspectivas governamentais, como

Figura 1: Colônias Agrícolas Nacionais criadas a partir do Decreto-Lei n. 3.059, de 14 de fevereiro de 1941. Fonte: Elaborado
pelo autor (2019).

Cada colônia foi implantada a partir de uma ne- da Colônia Agrícola Nacional de Goiás (CANG),
cessidade objetiva para a região previamente posteriormente denominada de cidade de Ceres,
selecionada, variando entre: controle das fron- constituída em 1941.
teiras latino-americanas, desenvolvimento e am-
pliação da malha rodoferroviária, exploração dos
6. A divisão do país em cinco regiões: Norte, Nordeste, Les-
seringais a norte do país, ou mesmo a previsão de te, Sul e Centro-Oeste foi feita por Getúlio Vargas quando
transferência da capital nacional para o Planalto da aprovação de Resolução de 14 de julho de 1941, com base
Central – este caso corresponde ao projeto piloto nas particularidades geográficas dos estados.
EIXO TEMÁTICO 1 O programa das Colônias Agrícolas Nacionais foi
interrompido a partir da publicação do Decreto-
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO -Lei N° 39.364, de 13 de junho de 1956, que trans-
feriu para o patrimônio do Instituto Nacional de
Imigração e Colonização (INIC) “todos os imóveis
e outros direitos que, pertencendo à União, se
encontravam, a 5 de janeiro de 1954, sob adminis-
tração da extinta Divisão de Terras e Colonização
do Ministério da Agricultura e do extinto Depar-
tamento Nacional de Imigração do Ministério do
Trabalho Indústria e Comércio” (BRASIL, 1956, p. 1).

Se no Brasil, a política de ocupação estratégica do


território por pontos isolados – quase imperceptí-
veis numa dimensão continental de nosso país –,
na Itália o sistema de implantação das cidades na
região do Agro Pontino ocorre de modo localizado,
ao longo do sistema hidráulico articulado ao Canal
de Mussolini e aos eixos rodoviários longitudinais,
sendo a estrada mediana Roma-Latina-Terracina
a principal conexão entre a Via costeira Appia e a
Via Lepini, junto à cadeia de montanhas (Figura
2). Os eixos transversais criaria a conexão entre
a zona litorânea e as cidades pré-existentes: Cis-
terna, Valletri, Sezze, Priverno, Terracina, Anzio
e Nettuno (ZEVI, 2009).

Figura 2 – Mapa de distribuição das cidades novas da


região do Agro Pontino italiano. Fonte: Zevi (2009, p. 8).

A produção destas cidades em série revela o plano


regional de implantação baseada no potencial
agrícola da região a partir do beneficiamento da
área e no uso da mão de obra da população mi-
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
grante para condução do trabalho.

728
duas cidades, duas medidas: Littoria (1931)
e Ceres (1941)

Interessa a este estudo apoiar-se em algumas


questões morfológicas que expressam dimen-
sões subjetivas possíveis de análise a partir da
relação de poder do Estado Fascista na produção
de cidades novas. Os paralelos aqui estabelecidos,
embora distantes no tempo e no espaço, serão
especulações da produção da cidade. O debate co-
meça a partir da ordem política, avança pelo plano
regional de ocupação do território e, por fim, de-
Figura 3 – Diagrama do funcionamento reginoal da cidade
de Sabaudia. Fonte: Zevi (2009, p. 8). para-se com planos urbanísticos implementados,
reforçando a partir do desenho do tecido urbano
(PANERAI, 2006) as duas primeiras ordens (políti-
ca-regional). São ideias em movimento que reve-
Em 1934, o arquiteto Luigi Piccinato, ao elaborar lam a atuação do Estado italiano e brasileiro, na
o plano para a cidade de Sabaudia (1934), propõe promoção de ocupação do território nacional, fun-
um diagrama que revela a organização básica de damentado nos princípios ideológicos de nação e
implantação e expansão das cidades do Agro Pon- poder. O binômio se expande para disciplina e alie-
tino. O sistema regional de cidades novas (Figura nação, em interlocução com Foucault (2008, 2012).
3) deveria funcionar como cidades-distritos que
agrupariam um conjunto de funções cívico-ad- Projetada em 1931 pelo arquiteto Oriolo Frez-
ministrativas da região (igreja, prefeitura, escola, zotti (1888-1965), Littoria foi a primeira cidade
centros comerciais, centros agrícolas, correios implantada (1932) a partir do plano de recupera-
etc.) à uma rede de fazendas (P) vinculadas a uma ção de Agro Pontino na região do Lazio. O plano
vila (B, borgo) – célula urbana elementar –, ligada foi explorado por Marcello Piacentini na Rivista
ao distrito (Littoria, Sabaudia, Pontinia etc.), com del Sindacato Nazionale Fascista, edição XI, de
concentração das funções civis e políticas, so- 1933, sendo propaganda da política vigente em
madas a novas fazendas (P). cenário internacional. Ainda em 1933 a cidade foi
apresentada no IV Congresso Internacional de
Como proposta de investigação, aproximaremos Arquitetura Moderna (VI CIAM), em conjunto aos
neste artigo a cidade de Littoria (1931) à cidade planos de Roma, desenvolvido por Piacentini, de
goiana de Ceres (1941) que, apesar de possuírem Gênova e Veneza (ZEDPROJETTI, 2018).
uma arquitetura diametralmente opostas, regido
A operação de construção da nova cidade, co-
pelos recursos econômicos para financiamento,
mandada pela ONC, contou com a mão de obra
sobretudo da cidade goiana, as duas trazem em
de 1.700 trabalhadores na primeira fase em 1931
comum, além da política de planejamento regio-
(desmatamento, topografia e arruamento), se-
nal, a dimensão da ruralidade e o destino como
guida por sua inauguração em dezembro de 1932.
cidades-colônias experimentais a serviço de um
Inicialmente a cidade foi planejada para 5.000
projeto político. Identifica-se também semelhan- habitantes, entretanto, em 1935 é aprovado seu
ças morfológicas do plano urbanístico de ambas plano de expansão, ampliando-a para acomodar
as cidades, que servirá como subsídio para uma 50.000 habitantes.
análise exploratória a partir da dimensão do poder
ideológico dos regimes italiano e brasileiro. O plano urbanístico desenvolvido por Frezzotti se
caracteriza por um traçado radiocêntrico definido,
ao centro, pela Piazza Del Littorio e seus princi-
pais edifícios cívicos e administrativos, sendo a
maioria projetada por Frezzotti e técnicos da ONC,
e pelo anel perimetral demarcado na Vialle Musso-
lini. A praça se interliga a três praças subjacentes,
EIXO TEMÁTICO 1 das quais outras funções cívico-administrativas
são alocadas. A primeira, à esquerda do plano,
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO recebe o centro comercial e agrícola da cidade
(Direzione Agrária dell’ONC), a segunda praça, à
direita, abriga a escola e a praça ao sul (Piazza
Savoia) dispõe da igreja, do asilo, das sedes da
Associação de Veteranos de Guerra e da Opera
Nazionale Balilla (ONB) (ZEVI, 2009).

No projeto destas colônias agrícolas italianas, a


escola terá um papel central na formação de toda
uma geração. Fundada em 1926, a organização
ONB, vinculado ao Ministério da Educação, fun-
cionava como iniciação juvenil à educação física e
moral sob os princípios do nacionalismo fascista.
A educação possuía um ciclo que iniciava aos 6
anos e encerrava aos 18, quando os jovens eram
integrados ao movimento de combate ou a Grupos
Universitários Fascistas (GUF).

Para Foucault (2008), toda relação é passível de


surgimento do poder, seja político, econômico,
cultural. A relação de poder é coextensível, o que
fundamenta o seu caráter multidimensional e
dissimétrico que parte da relação de domina-
ção e subordinação, compreende-se que o poder
constitui uma relação de forças, não singular, mas
imbricada a outras relações de força, assim sendo
uma conjuntura estabelecida pelas próprias ações
de poder seja no campo microfísico das relações
pessoais ou a partir de instituições, por exemplo:
Estado, Família, Religião, Produção, Mercado,
Arte, Moral (FOUCAULT, 2008).

Para Foucault (2008), cada instituição agencia


as formas de poder a partir de dois elementos:
“aparelhos” e “regras”. Seja atuando enquanto
conjunto ou separadamente, as instituições de-
legam/estipulam um conjunto de normas que
condiciona as condutas sociais e as assegura
através dos aparelhos de conversão de poder na
própria ação punitiva, seja como repressão, ex-
clusão, punição etc. No caso da ONB, a dimensão
de poder esteve expressa no conjunto de normas
e posturas indicadas pela organização, seja no
badalar do sino indicando o controle do tempo,
no uso do uniforme como padronização de um
grupo, nas insígnias com a indicação das patentes
ou no próprio código disciplinar evidenciado pela
16º SHCU educação moral. A atuação da ONB representa,
30 anos . Atualização Crítica
na dimensão microfísica, a atuação do poder do
730 Estado totalitário e fascista, cujo controle da polí-
tica nacional atinge o cerne do controle individual
a partir das ações de poder evidenciados pela
disciplina, obediência e, sobretudo, pela dimensão
do medo (ARENDT, 1973).

No programa da ONB, os alunos recebiam além


de educação religiosa e cultural, treinamentos
militares e ginástica esportiva. A saudação ONB
era através do hino Giovinezza (Juventude), criado
em 1909 por Giuseppe Blanc, originalmente inti-
tulado “Il Commiato” (A despedida) – usado como
hino do Partido Fascista entre 1924 e 1943. Em
trecho do hino, lê-se:

Os seus filhos renascem com fé em seu


ideal. O valor de seus guerreiros, a virtude
dos seus pioneiros [...] Juventude, Juven-
tude! Primavera de beleza! Nas fronteiras
da Itália, renascem os italianos. Renascidos
por Mussolini para a guerra do amanhã. Pela
glória do trabalho, pela paz e pelo loureiro.
Pela vergonha daqueles que repudiaram à
Pátria! (BLANC, 1937, p. 1)

A construção de Littoria representava mais que Figura 4 – Estudo comparativo entre edifícios públicos em Lit-
a implantação de uma cidade nova na região do toria (à esquerda) e em Ceres (à direita). Fontes: Zevi (2009, p.
13) e Costa (2016).
Lazio. Era instrumento da imagem e de um vi-
ver pela ideologia política fascista. Para além
dos aspectos formativos, a dimensão estética e
morfológica do tecido urbano, isto é, do traçado Já a cidade de Ceres foi projetada em 1941 como
da cidade e da construção dos edifícios, também núcleo urbano da Colônia Agrícola Nacional de
foram estrategicamente concebidos a serviço Goiás. O nome de Ceres, em alusão à mitologia
do poder. Greco-romana: Ceres - Deusa dos Cereais, decor-
rente do objetivo pelo qual a Colônia foi idealizada:
Ergue-se, em meio à ruralidade, cidades signos ser uma grande produtora de cereais para abaste-
representantes do poder político do Fascismo cimento regional. Vale lembrar que no período de
italiano e do nacionalismo estadonovista. Para construção da CANG, a capital do estado: Goiânia,
Littoria, a monumentalidade de seus edifícios uma cidade nova planejada, já havia sido fundada
(Figura 4), ressaltados pela disposição nas praças, em 24/10/1933 e oficialmente inaugurada em 1942,
estabelecem uma associação entre o projeto ur- um ano após a criação da CANG, o que justifica a
bano e arquitetônico, evidenciando uma paisagem infraestrutura criada para conexão entre ambas
arquitetada a favor do poder. Zevi (2009) apresen- as cidades, além da previsão de transferência da
ta uma coletânea de imagens da construção de capital federal para o Planalto Central.
Littoria, registradas pela prefeitura de Roma, em
1932, durante inspeção pelo prefeito Francesco Apesar do traçado urbano de Ceres trazer a di-
Montuori. mensão técnica urbanística, tendo sido proje-
tada pelo engenheiro Francisco Saturnino Ro-
drigues de Brito Filho (1899-1977), não há uma
correspondência no projeto de seus edifícios,
que em sua maioria, são de pequeno porte e es-
tética ordinária (Art Déco quando muito). Talvez
a dimensão do poder estatal esteja no próprio
EIXO TEMÁTICO 1 ato de se construir uma cidade nova ex-nihilo na
hinterlândia brasileira, que se apoia na dimensão
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO do discurso nacionalista de ocupação do oeste
brasileiro para reconduzir os fluxos migratórios.

Embora a arquitetura das cidades evidencia os re-


cursos econômicos de cada Estado nelas empre-
gados – com maior cuidado no exemplar italiano
–, podemos afirmar que possíveis aproximações
entre Littoria e Ceres ocorre no âmbito funda-
cional, na estrutura social e política apresenta-
da e nos discursos descritivos (CALVINO, 2002),
operando nas relações retro alimentadoras entre
poder, disciplina e subordinação de um Estado
opressor à uma população expropriada.

Isto fica perceptível na morfologia destas cidades


(Figura 5) em que a dimensão subjetiva do poder
imprime questões próprias do processo/discurso
de fundação e implantação de tais núcleos urba-
nos. Este percurso político está grafado nas ruas
da cidade ao atribuir às principais avenidas nomes
dos governantes que conduziram a construção
destas. O anel viário perimetral em Littoria, como
vimos, foi batizado de Vialle Mussolini, enquanto
o de Ceres recebeu o nome do administrador da
cidade: Avenida Bernardo Sayão – engenheiro
agrônomo (1901-1959) responsável também pela
construção da rodovia Belém-Brasília. No caso
brasileiro ainda, o eixo viário principal que corta
todo o traçado foi nomeado de Avenida Getú-
lio Vargas. De certo modo, o nome atribuído às
avenidas indica a expressão e controle do poder
vigente nos projetos urbanos.

Tais cinturões viários delimitadores definem o


conjunto urbano original e limitam o número de
habitantes que nele viverá – 5 mil pessoas em
Littoria e 20 mil em Ceres. Estas perimetrais ainda
são marcadas pelos pontos de entrada e saída da
cidade. Como nos antigos burgos medievais, tais
“portais” denotam a característica de isolamento
interno, um sistema de controle destas colônias
fosse pela ONC fosse pela CANG. O anel viário, por-
tanto, representa o muro panóptico foucaultiano,
em que concentra toda a dimensão disciplinar do
poder de controle deste território.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

732
Figura 5 – Aproximações morfológicas dos planos urbanísticos de Littoria (1931) e Ceres (1941). Fonte: Autor (2020).

Os oito eixos radiais são características nos dois nismo Barroco – cênico e apoteótico –, recorrendo
planos urbanísticos elaborados por Frezotti em a recursos típicos como a patte-d’oie. No encontro
Littoria (1932) e por Saturnino de Brito Filho em destas vias radiais, localiza-se geralmente equi-
Ceres (1941). A confluência destas avenidas para pamentos/edifícios de relevância cívico-admi-
um ponto central, traz em si referências ao urba- nistrativa para a cidade implantados ao redor da
EIXO TEMÁTICO 1 praça central. Trata-se, em ambos os casos, de
conjunto edilício composto por órgãos, institui-
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO ções, escolas de iniciação etc., estrategicamente
alocados como mecanismos de representação
do poder, a quem os habitantes deverão prestar
obediência e subordinação.

Como interpretação de tal configuração espacial


remetemo-nos à obra Vigiar e Punir de Foucault
(2013), para a qual a constituição da sociedade
disciplinar é gerida a partir de uma emergência da
sociedade burguesa pela necessidade dos corpos
moralizados que atendam ao modo de produção
capitalista. Neste caso, são mais úteis, obedientes
e produtivos do que um corpo boêmio, imoral, inca-
paz. Instaura-se, pois, um “elo coercitivo entre uma
aptidão aumentada e uma dominação acentuada”
(FOUCAULT, 2013, p. 134). O que justifica a educa-
ção militar, moral, religiosa além da educação do
corpo, principal instrumento de trabalho a serviço
do Estado. Tanto em Littoria como em Ceres temos
a presença do corpo militar sobreposto ao corpo
agrícola como o caminho para uma sociedade ideal.

Se internamente à città di fondazione fica clara a


presença do Estado, podemos igualmente ampliar
nossa objetiva e atentar para a ação governamental
na ocupação territorial. Se no cenário italiano o
objetivo foi a recuperação da região pantanosa do
Agro Pontino pela construção do Canal Mussolini e
de inúmeras vilas e cidades; 7 no contexto brasileiro
havia a necessidade de equipar o território com
uma rede rodoviária para escoamento da produção
agrícola e recebimento de produtos manufatura-
dos provenientes dos grandes centros. Implantar
uma rodovia que interligasse o sul e o norte do
país, como uma espinha dorsal a cortar o centro do
país, se fazia necessário. Assim nasceu a rodovia
BR-153, popularmente chamada de Belém-Brasília.

Assim, além de mão de obra para trabalhar na


lavoura, a condução direcionada do fluxo migra-
tório estaria também atrelado ao fornecimento
de massa trabalhadora na construção de infra-
estruturas territoriais (canal, rodovia, cidades
etc.) (Figura 6). O conjunto de normas e códigos

7. Para Pizzi (2004) surgiram apenas 37 novos assentamen-


tos; já para Pellegrini (2006) foram no total 137 novos villagios
16º SHCU
e borgos (aldeias), implantados entre 1922 e 1943 por várias
30 anos . Atualização Crítica
regiões da Itália, donde se destacam: Mussolinia (1924), Sa-
734 baudia (1933), Aprilia (1936), Guidonia (1937) e Fertilia (1939).
de postura, instituídos pelos governos italiano Da mesma forma, a gestão administrativa de Ber-
e brasileiro à época, respondem à urgência de nado Sayão na Colônia Agrícola Nacional de Goiás,
um corpo obediente apto para o desempenho do também se apoia em normas e códigos de postura
trabalho braçal (FOUCAULT, 2008, 2012). para seleção e manutenção do corpo moralizado:

Segundo Gasparini (1983) o CMCI, responsável pela Nos primeiros anos da colônia a travessia
condução dos trabalhadores migrantes à ONC: do rio era feita por uma canoa – “a canoa do
Sayão” -, que o próprio administrador contro-
Os colonos teriam que ser rurais, fiéis à lava rigorosamente. Segundo normas adota-
terra, honesto, sóbrio e ter uma compo- das, ele não permitia a entrada de prostitutas.
sição familiar sólida, eles precisavam ser As que apareciam tinham que ficar do outro
fisicamente saudáveis, moralmente, poli- lado do rio. Não se permitia também a venda
de bebida alcoólica (PESSOA, 1999, p. 43)
ticamente, ex-combatentes e de pura Raça
italiana, e finalmente eles teriam que vir A condição moral responde objetivamente à ne-
de áreas de malária, porque eram mais cessidade do Estado, fosse na obra de canaliza-
preparados biologicamente para resistir à ção e recuperação da região do Agro Pontino na
malária. (GASPARINI, 1983, p. 156) Itália, fosse da produção agrícola e promoção
do desenvolvimento econômico no interior do
Mato-Grosso Goiano (como é conhecida a região
de Ceres). Em ambos os casos o próprio modo
disciplinar sugere o que Foucault (2013) assim
interpreta: “Foi ‘expulso o camponês’ e lhe foi dada
a ‘fisionomia de soldado’” (FOUCAULT, 2013, p. 131).

Neste sentido, define-se um conjunto de sistemas


e gestões com vistas a condicionar os cidadãos
a normas coercitiva, ações de subordinação e
medidas disciplinares impostas por um agente ou
sistema de autoridade. Por trás do Poder, nome
próprio, institucionalizado pelo Poder Estatal,
esconde o poder nome comum, fruto do ato de
dominação e subordinação e se apoiam no prin-
cípio básico do regime totalitário, a dimensão
do medo, “graças à sua ideologia peculiar e ao
papel dessa ideologia no aparelho de coação,
o totalitarismo descobriu um meio de subjugar
e aterrorizar os seres humanos internamente.
(ARENDT, 1973, p, 374).

Por um lado, a subordinação da população ao


Estado se dá pela urgência da pobreza e da fome
e que em uma dimensão retroalimentadora sus-
tenta o discurso paternalista – governo populista
em ambos os casos – de conferir à esta massa
oportunidades de emprego, moradia, alimentação
e geração de renda. Por outro, Costa (2016) propõe,
a partir do cruzamento de dados de documentos
históricos, uma desconstrução das alegorias re-
velando as maquinações do Estado brasileiro para
Figura 6 – Operação de construção do Canal Mussolini
para recuperação da área alagadiça no Agro Pontino e a sustentação deste discurso apoiado na perspec-
abertura da Rodovia Federal BR-153 (Trecho Ceres). Fonte: tiva assistencialista. Abaixo alguns trechos que
CAZOLA (2008); COSTA (2016). indicam estas contradições:
EIXO TEMÁTICO 1 [...] na Colônia tudo é perfeito, desde a capa-
cidade técnica do seu administrador, dr. Ber-
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO nardo Sayão, até os seus mais humildes co-
laboradores, a quem não faltam assistência
social, parte importante para o êxito da colo-
nização. (JORNAL O ANÁPOLIS, 1944, N. 469)

[...] 70% da população se constituem de ver-


dadeiros favelados rurais. São subnutridos,
doentes, desassistidos. Amontoam-se em
mocambos e não encontram estímulo ao
trabalho [...]. (DAYREL, 1974, p. 122)

No caso brasileiro, estas contradições chegam


ao cerne do plano urbanístico e da promessa de
cidade pelo Estado brasileiro para a população de
colonos. No trecho abaixo de um dos principais
jornais de circulação no estado, em 1944, indica a
construção de 500 casas e outros equipamentos
agrícolas para o funcionamento da CANG.

Está se tornando mesmo uma cidade. Está


situada em plena mata de S. Patrício, cuja
construção está obedecendo a uma planta e
urbs moderna com mais de 500 casas para
colonos, 1.500 famílias, máquinas de arroz,
engenho de serra, marcenaria, ferraria,
oficina mecânica, cerâmica. Cooperativa e
consumo segundo leis atuais etc. (JORNAL
O ANÁPOLIS, 1944. N. 455)

No relatório emitido por Sayão em resposta à


Comissão de Inquérito, instalada durante o perí-
odo sob sua administração (1941-1950),8 sobre a
promessa de uma casa para cada lote do núcleo
colonial, aponta-se a construção de apenas 23
casas. Esse dado também foi confirmado pelo
geógrafo Leo Waibel na visita técnica à colônia
no ano de 1947: “só algumas casas residenciais
já foram construídas” (WAIBEL, 1947, p. 22). O
que se viu, na realidade, foi a entregue de casas
improvisadas, em madeira e cobertura vegetal.
Waibel (1947) afirma ser este o padrão das casas
da colônia, o que reflete também a condição de
vida das famílias ocupantes (COSTA, 2016).

Gasparini (1983) revela também a mesma condição


dos migrantes italianos na ocupação e desempe-

16º SHCU
8. Bernardo Sayão é afastado do cargo de administrador
30 anos . Atualização Crítica
em 1949 através da Comissão de Inquérito instalada para
736 investigação administrativa.
nho das funções de recuperação do Agro Pontino no cerne social. Como afirma Foucault (2008, p.
à serviço do Estado fascista. O autor associa tal 181), a análise do poder não parte somente do “rei
ocorrência à dois fatores: a pobreza inerente à em sua posição central, mas [d]os súditos em suas
população e os desdobramentos do sistema de relações recíprocas: não [d]a soberania em seu
trabalho ofertado. edifício único, mas [d]as múltiplas sujeições que
existem e funcionam no interior do corpo social”
As famílias chegaram em uma terra des- (FOUCAULT, 2008, p. 181).
conhecida, mal retirado do pântano, de-
solado, desabitado, as fazendas estavam
relativamente distantes uma das outras e
muitas vezes também da vila onde os ser- CONSIDERAÇÕES FINAIS
viços estavam localizados [...] o impacto
com o sistema de trabalho foi igualmente Na Itália, em uma manifestação antiurbana, há
traumático: os colonos plantaram apenas as um duplo movimento concomitante de controle
colheitas decididas pela ONC, terminando a da superpopulação de Roma: o primeiro, de
colheita na própria fazenda, eles poderiam antecipação da migração rural para as áreas
ser enviados para trabalhar em fazendas urbanas, e o segundo, de controle da massa de
próximas [...] eles não tinham direito à me- desempregados e veteranos de guerra que já
tade da colheita [...] os colonos viviam assim estavam na capital italiana. A solução adotada
em antecipação no trigo e em dinheiro dado pelo governo Fascista de Mussolini foi criar
a critério da administração. (GASPARINI, diversas cidades novas como colônias agríco-
1983, p. 157) las em uma região pantanosa, ao sul de Roma,
para que estes sujeitos se agrupassem. Numa
A partir desta aproximação entre a política bra-
escala territorial diminuta em proporção ao
sileira e italiana, verificamos nos trechos acima
caso brasileiro, porém superior na produção de
citados, a constituição do que Gasparini (1983)
cidades novas.
define como o “mito de Mussolini” e Costa (2016)
propõe a revisão dos mitos criados a partir dos Já no Brasil, a operação orquestrada pelo Estado
“heróis desbravadores” do oeste brasileiro. Em- visava num único golpe a construção de redes de
bora distantes espacialmente, ambos os casos infraestrutura para interiorização do país (mão de
levam à reflexão sobre o controle dos fluxos mi- obra), bem como direcionar contingente popula-
gratórios e das massas populares tendo como cional (colonos) para ocupação de regiões ermas
resposta o planejamento regional à serviço de e de fronteiras devolutas à oeste.
um poder estatal.
Embora estas operações não configurem efe-
Para Arendt (1973) o totalitarismo responde ao pa- tivamente como uma punição às massas, sob
radoxo: “Sem ele (figura política), elas (massa) não a dimensão da sociedade capitalista, “O gesto
teriam representação externa e não passariam que aprisiona não é mais simples: também ele
de um bando amorfo; sem as massas o líder seria tem significações políticas, sociais, religiosas,
uma nulidade”, e complementa com uma frase de econômicas, morais” (FOUCAULT, 2012, p. 53).
Adolf Hitler sobre esta interdependência: “Tudo o Apesar de livres, a massa de colonos/migran-
que vocês são, o são através de mim; tudo o que tes/trabalhadores nacionais estavam à serviço
eu sou, sou somente através de vocês” (ARENDT, da política nacionalista, presos nas normas de
1973, p. 374). condutas morais, à subordinação do Estado à
rede de poder institucional criado.
O controle da massa significaria a transformação
do poder institucional para o campo microfísico, Os colonos, na terminologia fascista, tornaram-se
isto é, o controle passaria a ser realizado entre ‘uma massa de soldados em plena guerra, expos-
os próprios indivíduos, sob a dimensão do medo. tos aos perigos letais. Como soldados, eles arris-
Acreditamos, pelos estudos postos, que a socie- caram a morte e tiveram que obedecer a ordens.
dade assume formas de dominação, não pelo Po- Sociedade rural construída pelo fascismo tinha
der cognoscível em nome próprio, mas pelo poder as características de um quartel [...] eles foram
velado e mascarado pelo discurso que entranha tratados como trabalhadores, mas sem ter um
EIXO TEMÁTICO 1 salário [...]. Quanto mais a ONC aumentava seu
controle sobre os colonos para fazê-los trabalhar,
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO muitas vezes banindo-os da entrada em tabernas,
punindo-os com multas e despejos. (GASPARINI,
1983, p. 158)

Faz-se pertinente uma compreensão dialética


que suscita a reflexão sobre as políticas de Es-
tado (“Marcha para o Oeste”, “La bonifica dell’Agro
Pontino”), compreendendo que os planos urba-
nísticos/cidades, nos dois cenários analisados,
foram frutos de uma política baseada na absorção
da mão de obra proletária excedente nos grandes
centros. Essa compreensão implica, não ape-
nas o sentido desbravador de terras devolutas,
de expansão ou de recuperação territorial, mas
também a expropriação da mão de obra como
sujeitos nacionais “reconhecidamente pobres”,
que corresponde a uma estratégia e a uma política
pautadas na relação de domínio e subordinação.
Este cenário comporta o testemunho de uma
ação específica dos governos de uma época, que
utilizaram de estratégias entusiásticas e ufanistas
para sedimentar, ainda mais, relações de extrema
desigualdade camufladas de desenvolvimentismo
distributivista e igualitário.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

738
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16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

740
741
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
EIXO TEMÁTICO 1 RESUMO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
O objetivo desta análise é apresentar o Urba-
nismo como campo científico necessário para
vídeo-pôster o conhecimento e formação crítica, filosófica
e prática, sob a tríade espaço – poder – sujeito.
O Urbanismo fomenta o debate sobre o espa-
POR UMA EDUCAÇÃO ço, incluindo a formulação de hipóteses para o
enfrentamento dos problemas urbanos e con-
URBANA: PERSPECTIVAS DO tribuições para o desenvolvimento do sujeito
enquanto cidadão; não se esgota em si mesmo,
URBANISMO pois viabiliza a compreensão multidisciplinar da
área urbana, bem como, demostra a relevância
das mudanças sociais no território. Entende-se
FOR AN URBAN EDUCATION: PERSPECTIVES OF que, à medida que as transformações sociais
URBANISM ocorrem, sejam coletivas ou individuais, ma-
nifestam-se também territorialmente, dando
PARA UNA EDUCACIÓN URBANA: PERSPECTIVAS DEL singularidade aos espaços. Paradoxalmente,
URBANISMO os espaços singulares são submetidos a pro-
cessos homogeneizantes, contínua e gradual-
mente; e neste aspecto de afetação porosa, o
VALADARES, Raquel Gomes
comportamento social e as relações de poder
Doutoranda em Arquitetura e Urbanismo; IAU/USP
também são acometidas por essa dissolução do
valadaresgr@gmail.com
singular. Deste modo, os processos de forma-
ção e transformação urbana, mesmo que plane-
jado, são sempre condicionados pela apreensão
do ambiente, pela construção de sua memória
e a essência dos fatos coletivos. São articula-
ções indissociáveis, que sintetizam o presente
e determinam o futuro. Busca-se nesta análise
apresentar o Urbanismo como essencial para
entender as mudanças sociais e o que as engre-
na; trata-se de produção histórico-descritiva,
utilizando o método revisão de literatura, que
permitem transitar pela compreensão histórica
e o aprofundamento na problemática contem-
porânea. O que permite inferir que refletir sobre
a totalidade dos fenômenos consiste, inclusive,
em integrar as ciências parcelares e abordar a
totalidade do conhecimento.

URBANISMO PRODUÇÃO SOCIAL DO ESPAÇO


TERRITÓRIO PODER SUJEITO

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

742
ABSTRACT RESUMEN

The objective of this analysis is to present Urba- El objetivo de este análisis es presentar el urba-
nism as a scientific field necessary for knowledge nismo como un campo científico necesario para
and critical formation, philosophical and practi- el conocimiento y la formación crítica, filosófica
cal, under the triad space - power - subject. Ur- y práctica, bajo la tríada espacio - poder - suje-
banism fosters the debate about space, including to. El urbanismo fomenta el debate sobre el es-
the formulation of hypotheses for the confronta- pacio, incluida la formulación de hipótesis para
tion of urban problems and contributions to the el enfrentamiento de los problemas urbanos y las
development of the subject as a citizen; it is not contribuciones al desarrollo del sujeto como ciu-
exhaustive in itself, since it enables the multidis- dadano; no es exhaustivo en sí mismo, ya que per-
ciplinary understanding of the urban area, as well mite la comprensión multidisciplinaria del área
as demonstrates the relevance of social changes urbana, además de demostrar la relevancia de
in the territory. It is understood that, as social los cambios sociales en el territorio. Se entiende
transformations occur, whether collective or in- que, a medida que se producen transformacio-
dividual, they also manifest themselves territo- nes sociales, ya sean colectivas o individuales,
rially, giving singularity to spaces. Paradoxically, también se manifiestan territorialmente, dando
singular spaces are subjected to homogenizing singularidad a los espacios. Paradójicamente,
processes, continuously and gradually; and in los espacios singulares están sujetos a procesos
this aspect of porous affectation, social behavior de homogeneización, de manera continua y gra-
and power relations are also affected by this dis- dual; y en este aspecto de afectación porosa, el
solution of the singular. In this way, the processes comportamiento social y las relaciones de poder
of formation and urban transformation, even if también se ven afectados por esta disolución de
planned, are always conditioned by the apprehen- lo singular. De esta manera, los procesos de for-
sion of the environment, by the construction of its mación y transformación urbana, aunque sean
memory and the essence of collective facts. They planificados, están siempre condicionados por
are inseparable articulations that synthesize the la aprehensión del medio ambiente, por la cons-
present and determine the future. This analysis trucción de su memoria y la esencia de los he-
seeks to present Urbanism as essential to un- chos colectivos. Son articulaciones inseparables
derstand social changes and what drives them; que sintetizan el presente y determinan el futuro.
it is a historical-descriptive production, using Este análisis pretende presentar el urbanismo
the literature review method, which allows one to como algo esencial para comprender los cam-
move through historical understanding and dee- bios sociales y lo que los impulsa; se trata de una
pening contemporary problems. This allows us to producción histórico-descriptiva, utilizando el
infer that reflecting on the totality of the pheno- método de revisión de la literatura, que permite
mena consists in integrating the partial sciences avanzar en la comprensión histórica y profundi-
and approaching the totality of knowledge. zar en los problemas contemporáneos. Esto nos
permite inferir que la reflexión sobre la totalidad
de los fenómenos consiste en integrar las cien-
URBANISM SOCIAL PRODUCTION OF SPACE TERRITORY cias parciales y acercarse a la totalidad del cono-
POWER SUBJECT cimiento.

URBANISMO PRODUCCIÓN SOCIAL DEL ESPACIO


TERRITORIO PODER SUJETO
EIXO TEMÁTICO 1 INTRODUÇÃO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Come gather ‘round people, wherever you
roam […] For the times they are a-changin’
vídeo-pôster Come writers and critics who prophesize
with your pen and keep your eyes wide,
the chance won’t come again […]. For the
POR UMA EDUCAÇÃO times they are a-changin’

URBANA: PERSPECTIVAS DO Come senators, congressmen, please


heed the call, don’t stand in the doorway,
URBANISMO don’t block up the hall […] For the times
they are a-changin’
FOR AN URBAN EDUCATION: PERSPECTIVES OF Come mothers and fathers throughout
URBANISM the land […] please get out of the new one
if you can’t lend your hand. For the times
PARA UNA EDUCACIÓN URBANA: PERSPECTIVAS DEL they are a-changin’ […]
URBANISMO
As the present now will later be past, the
order is rapidly fadin’. And the first one
now will later be last for the times they are
a-changin’ (DYLAN, 1964) 1

Os versos transcritos acima são do Nobel de Li-


teratura em 2016, o estadunidense Robert Allen
Zimmerman, conhecido pelo nome artístico Bob
Dylan. Escolher Dylan (1964) para introduzir ques-
tões sobre estudos urbanos não se trata de uma
decisão aleatória; ele sintetizou o pensamento
político, social, filosófico e literário, como tam-
bém, influenciou mobilizações políticas e sociais
em sua geração. Na poesia cantada, a voz ícone de
protesto, anuncia que ‘os tempos estão mudando’,
trata-se de algo inevitável e perceptível, como re-
sultado de um momento histórico, político e social.

1. Reúnam-se, pessoas, onde quer que estejam [...] pois


os tempos estão mudando. Venham escritores e críticos,
que profetizam com suas canetas e mantenham seus olhos
abertos, a chance não virá novamente [...] pois os tempos
estão mudando. Venham senadores, deputados, por favor
escutem o clamor, não fiquem parados no vão da porta,
não congestionem o corredor [...] pois os tempos estão
mudando. Venham mães e pais de todos os lugares [...]
por favor saiam da frente se não puderem ajudar, pois os
tempos estão mudando. [...] Assim como o presente logo
16º SHCU
mais será passado, a ordem está rapidamente se esvaindo.
30 anos . Atualização Crítica
E o primeiro agora logo mais será o último pois os tempos
744 estão mudando. (tradução própria)
A letra The Times They Are A-Changin’ 2 descreve de muitas obras de arte depende de seu
um cenário de conflito, e o comportamento que conteúdo “sociológico” e da crença dos lei-
se espera do ouvinte é que saia da inércia e que tores e plateias de que o que essas obras
esteja atento aos fatos, pois do contrário será lhes dizem sobre a sociedade é, em certo
sucumbido pelas transições. No texto, Dylan alerta sentido, “verdadeiro”. (BECKER, 2009, p.14).
para os riscos que o ouvinte corre em se perder
num mundo cada vez mais caótico e menos vol- Os tempos estão mudando, e o que isso significa?
tado para o ser humano (VIOTTI, 2018); um duplo É razoável inferir que as mudanças complexificam
risco: tornar-se indiferente diante das sucessivas as relações sociais, possibilitando a diversificação
mudanças ou ser sucumbido pelo caos das trans- das respostas às questões e análises, e por isso
formações. Segundo Luna (2017), Dylan utiliza o integrar as formas de obter as respostas tam-
método poético de criação de imagens; elas estão bém se faz necessário. Falar da sociedade e as
postas numa sequência alegórica e metafórica relações sobrepostas ao terreno nunca se fez tão
que formam um painel de imagens simbólicas. necessário quanto na atualidade; como observa
Além da construção imagética, há ordens espe- Cacciari “[...] vivemos num território desterrito-
cíficas dirigidas aos destinatários citados; são rializado. Habitamos em territórios cuja métrica
escritores, críticos, senadores, deputados, mães já não é espacial” (2010, p.54). Cacciari prossegue
e pais. A mensagem se dirige àqueles que estão chamando a atenção para o fato de
numa função ou exercício de autoridade ou de
[...] o desenvolvimento da cidade de me-
influência nas decisões e opiniões. Para cada
trópole para território não pode, portanto,
grupo os versos se encerram do mesmo modo: ‘os
ser programado: é este o drama de todos
tempos estão mudando’. O que o texto apregoa é
os arquitetos e urbanistas. A dificuldade
que a mudança é constante, contínua, inevitável
não depende da incapacidade deles ou da
e impossível de ser detida; como na descrição
vontade política dos administradores, de-
do princípio da carruagem (LÖWY, 2000) uma vez
pende da impossibilidade de programar
iniciada a mudança, ou posta em marcha a car-
(CACCIARI, 2010, p.55).
ruagem, não há como parar.
Na compreensão de Saffioti (2004), o que ocorre
Recorrer a um gênero artístico para explicar a
é a territorialização do domínio, não se trata de
sociedade é uma possibilidade de análise apre-
uma análise puramente geográfica, ou uma mé-
sentada por Becker (2009), pois os relatos ou re-
trica espacial, mas de uma definição simbólica
presentações que falam sobre a sociedade envol-
dos espaços; sob esta perspectiva ancora-se
vem uma imensa comunidade interpretativa, não
a presente análise. É razoável pensar o espaço
adstrita a um grupo de conhecimento. Segundo
urbano não apenas como lugar das medidas ou
Becker (2009), obras literárias, romances, contos,
estratégias administrativas, sobretudo urge tratar
arte dramática, fotografia, filmes, documentários,
das relações que estão sendo ressignificadas
são modos artísticos de representar a sociedade,
no território. O espaço urbano está atrelado ao
e merecem ser cuidadosamente examinadas. As
transitar e circular das pessoas, ao modo de habi-
múltiplas formas de análise podem convergir e
tar e conviver, e como numa travessia irremediável
dialogar entre si, por ser complexo o sujeito e o
de mudanças, transita-se para novos paradigmas,
grupo social em que está inserido.
novas maneiras de relacionar-se com os demais
Dizer que essas obras e autores fazem “aná- e principalmente novas formas de relacionar-se
lise social” não significa que isso é “tudo” com o espaço físico. Tais mudanças precisam
que fazem, ou que essas obras são “ape- considerar que a maneira de conviver em socie-
nas” sociologia sob um disfarce artístico. dade está posta em xeque e as repercussões,
Em absoluto. Seus autores têm em mente coletivas e individuais, serão distintas em cada
objetivos que vão além da análise social. grupo social.
Contudo até o crítico mais formalista de-
Os tempos estão mudando e isto é percebível nos
veria perceber que alguma parte do efeito
avanços tecnológicos, no dinamismo e na intera-
ção social. Os tempos estão mudando, em que as
2. Os tempos estão mudando crises, sejam elas de caráter nacional ou mundial,
EIXO TEMÁTICO 1 abrangem do sistema econômico às questões
sanitárias e impactam de modo mais agravante
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO o nível mais simples da vida social, as dimensões
locais de organização, neste caso, as cidades.

Fala-se cada vez mais em cidades inteligentes,


pensadas a partir do uso e acesso a tecnologias,
com o foco no crescimento econômico e na sus-
tentabilidade do meio ambiente. Entretanto, os
desafios e os dilemas que o padrão tecnológi-
co apresenta vão além; como substrato do uso
irrestrito do aparato tecnológico tem-se uma
sociedade vigiada, programada, controlada, ho-
mogeneizada e pasteurizada. Ademais, há um
conjunto imensurável de assuntos (não resolvidos)
na área urbana, que os avanços tecnológicos ainda
não foram suficientes para resolvê-los completa-
mente, o que promove uma segregação sistêmica
e destitui direitos coletivos e individuais.

É imprescindível tratar da educação urbana,


agregando uma compreensão transdisciplinar.
Os tempos estão mudando e isso exige uma ma-
neira cada vez mais integrada de compreender
o indivíduo, a sociedade e os espaços, além de
buscar a concepção de modelos de cidades que
respeitem o indivíduo em sua completude, inte-
grando as relações sociais com o meio urbano.
Deste modo, esta análise propõe abordar como
o Urbanismo é imprescindível para a formação
de pensadores e pesquisadores da sociedade,
mostrando como a percepção do espaço é afetada
pelas mudanças individuais e coletivas, e como
os vínculos sociais são transformados pelas alte-
rações no espaço físico, uma afetação múltipla.
Ademais, o objetivo é demostrar como o espaço
está atrelado às relações de poder e às noções
sobre o indivíduo em sociedade, formando a tríade
espaço-poder-sujeito; os três temas são insepa-
ráveis, inesgotáveis e não há como escalona-los,
são necessários e imensuráveis por excelência.

A SINGULARIDADE DA TRÍADE
ESPAÇO-PODER-SUJEITO

Cada lugar possui singularidades históricas,


identitárias e relações sociais específicas que
16º SHCU não podem ser ignoradas (QUIJANO, 2005). Ao
30 anos . Atualização Crítica
analisar os espaços, Quijano (2005) acrescenta
746 que é preciso considerar quatro elementos:
heterogeneidade histórico-estrutural; co- seguida, a força política da história roma-
-presença de tempos históricos; fragmentos na, a ênfase política – no sentido actual do
estruturais de formas de existência social; e as termo – que domina a história romana (sic).
diversas procedências histórica e geocultural. Na civilização grega, a cidade é fundamen-
A identidade e a diversidade cultural de cada talmente a unidade de pessoas do mesmo
grupo social estão expostas no modo como se génos, e portanto consegue-se perceber
organizam e se relacionam, como também na como a pólis, ideia que remete para um todo
forma que se dispõe no espaço físico. orgânico antecede a ideia de cidadão. Em
Cacciari (2010) afirma que não há uma única ter- Roma, pelo contrário, desde as origens – e
minologia que defina a forma de vida urbana ou o o próprio mito fundador romano o diz – a
que seja a cidade. O conceito de cidade se distin- cidade é confluência, convergência de pes-
guia entre gregos e romanos, por exemplo, assim soas muito diferentes no que toca a religião,
como a definição de cidadão e cidadania. Tomar etnias, etc., e que só concordam entre si
por base as duas civilizações citadas é primor- em virtude da lei. (CACCIARI, 2010, p. 10, 11)
dial na cultura ocidental, pois tais grupos sociais
marcaram profundamente a elaboração dos sig- Notadamente, a ideia romana de reunir pessoas
nos, dos códigos e da linguagem, principalmente de origens, etnias, religiões e situações econô-
no Ocidente. Para os gregos a compreensão de micas diferentes, agregadas sob a mesma norma,
cidade estava atrelada a origem do indivíduo, o tornou-se a definição intuitiva das cidades. A
lugar em que determinada família, génos, fixava norma tornou-se unificadora no trato do território,
suas raízes. A partir daí, a cidade, a residência estabelecendo diretrizes, princípios e objetivos do
tradicional do grupo, era formada. Para os roma- uso do espaço físico e social, como projeção de
nos, a finalidade em comum, a confluência dos utilização dos lugares. O conceito globalizou-se
objetivos entorno da lei unia os indivíduos; ainda para além das aspirações iniciais de imperium
que fossem distintas a origem étnica ou religiosa, sine fine3 e rompeu as fronteiras espaciais e tem-
as cidades se consolidavam em torno daquilo que porais; a cidade é o que se move, que ultrapassa
concordavam, dessa concepção decorre o mito os limites.
da concórdia romana.
Outra razão de distinção conceitual entre gre-
As palavras no grego ou no latim que nominam gos e romanos: a expansão física da cidade. As
cidade e cidadão, não se distinguem como mero cidades gregas estavam restritas aos limites es-
ato de tradução da expressão. Ser grego ou ser paciais, pois a expansão indefinida romperia com
romano não se restringia a uma condição pátria, a acepção inicial do lugar do génos. Enquanto que
também estava atrelado a maneira de relacionar para a compreensão romana era inconcebível
com espaço físico. A pólis (cidade, no grego) é o uma cidade que não ultrapassasse a lira (o limite)
termo fundamental e dele deriva o polítes (ci- (CACCIARI, 2010).
dadão), o exercício da cidadania para os gregos
Essas duas civilizações ofereceram às gerações
estava atrelada ao espaço do qual se originava;
e grupos sociais posteriores um inegável legado
enquanto que do termo cíves (indivíduo ou pessoa,
que inclui a linguagem, a nominação, os padrões
no latim) é que deriva civitas (reunião de várias
de organização e os modelos de instituições. Dos
pessoas) e a urbs (sede) é o centro das instituições
gregos as palavras democracia e política ecoam
e decisões políticas (CACCIARI, 2010). A concepção
como herança para todos os povos, enquanto que
da cidadania romana não tinha raiz adstrita ao
a concepção de códigos jurídicos (lex) e estrutura
lugar de origem, mas à função da agregação, isto
institucional (império, senado) são exemplos de
é, a reunião de outros indivíduos semelhantes em
dádivas romanas. A partir destas acepções novos
direitos e obrigações. Deste modo, Cacciari infere:
modelos foram desenvolvidos, somando-se a eles
Este é um aspecto absolutamente carac- características dos outros grupos.
terístico e extraordinário da Constituição
Apresentando esta distinção entre gregos e roma-
romana comparativamente à história das
cidades gregas e helênicas que a precede-
ram. E é fundamental para compreender, de 3. Império sem fim.
EIXO TEMÁTICO 1 nos pretende-se demostrar que desde a maneira
como se nomina as ideias até a forma de se dispor
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO sobre cidade existem singularidades e particula-
ridades explicitas e implícitas. A noção de espaço
físico coaduna-se ao que compreende a respeito
do indivíduo, bem como, atrela-se a noção do
fundamento político, o que os faz permanecer
congregados. A estrutura citadina é a confluência
de histórias, de símbolos, de trajetórias, o que
possibilita a singularidade do lugar e as relações
sociais nele estabelecidas, fazendo corroborar
o desenvolvimento da complexidade do espaço.

A noção de singularidade não está apoiada no


conceito de inércia ou inamovibilidade, mas na
compreensão de autonomia para a construção
de referenciais teóricos e práticos, conforme
preceituam Guattari e Rolnik (1996).

O que vai caracterizar um processo de sin-


gularização (que, durante certa época, eu
chamei de “experiencia de um grupo sujei-
to”), e que ele seja automodelador. Isto é,
que ele capte os elementos da situação, que
construa seus próprios tipos de referências
práticas e teóricas, sem ficar nessa posição
constante de dependência em relação ao
poder global, a nível econômico, a nível do
saber, a nível técnico, a nível das segrega-
ções, dos tipos de prestígio que são difundi-
dos. A partir do momento em que os grupos
adquirem essa liberdade de viver seus pro-
cessos, eles passam a ter uma capacidade
de ler sua própria situação e aquilo que se
passa em torno deles. Essa capacidade é
que vai lhes dar um mínimo de possibilidade
de criação e permitir preservar exatamente
esse caráter de autonomia tão importante.
(GUATTARI e ROLNIK, 1996, p. 46).

A singularização é produzida a partir da produção


da subjetividade. Por sua vez, a subjetividade seria
constituída por imagens, valores, espaços, resul-
tantes da ideia coletiva, “um entrecruzamento
de determinações coletivas de várias espécies,
não só sociais, mas econômicas, tecnológicas,
de mídia, etc.” (GUATTARI e ROLNIK, 1996, p. 34).
A representação coletiva não é constituída pelo
somatório das representações individuais; o que é
16º SHCU constituído coletivamente sobrepõe ao individual.
30 anos . Atualização Crítica
Em cada grupo social há a construção específica
748 de valores, que são internalizado pelos indivíduos,
compreensão durkheimiana também asseveradas poder político, também foi usado para fundamen-
por Guattari e Rolnik (1996). tar as arguições de superioridade e dominação.
A menção do poder religioso será somente esta
A compreensão do que seria o sujeito, o espaço breve citação, pois ele em si constitui uma faceta
e as relações de poder instiuída decorre destes interessante e necessária para compreender a
processos de subjetivação e singularização, cons- tríade espaço-poder-sujeito, cujos aspectos influi
tituindo a identidade, o pertencimento e a terri- na organização e fruição do espaço. No entanto,
torialização, numa fluída e flexível comunicação. como se trata de matéria tão específica e cuja
análise não há como ser superficial, em outra
oportunidade será abordado. Para a presente
análise a menção do termo poder restringe-se
PASTEURIZAÇÃO, HOMOGENEIZAÇÃO ao aspecto político, no exercício ativo e passivo
E A TRANSMUTAÇÃO dos direitos e obrigações legisladas.

Segundo Lévi-Strauss (1993), a diversidade cultu- Retomando às considerações da formulação do


ral e a identidade de cada sociedade, exposta nos conceito de racialidade, a hierarquização racial
modos de divisão do trabalho, organização fami- não partiu das considerações quantitativas, mas
liar e ritos, não poderiam ser escalonadas consi- qualitativas.
derando grupos hierarquicamente superiores a
outros. Não haveria, e não há, uma representação É preciso não esquecer que Gobineau, de
única e linear da história da humanidade. Existem quem a história fez o pai das teorias racis-
singularidades históricas, identidades culturais tas, não concebia, a “desigualdade das raças
particulares e relações sociais específicas que humanas” de uma maneira quantitativa,
não podem ser generalizadas. Cada sociedade mas sim qualitativa: para ele, as grandes
possui sistema próprio de organização social, raças que contribuíram para a formação
histórico e geográfico, que nem sempre apresenta da humanidade atual, sem que se possa
similitudes com outros parâmetros organizacio- dizê-las primitivas - branca, amarela, negra
nais. As tradições no modo de gerir a conduta - não eram tão desiguais em valor absoluto,
social constitui o fiel legado que não podem ser como em suas aptidões particulares. (LÉ-
sintetizadas nos binômios atrasado-moderno, ou VI-STRAUSS, 1993, p.328, 329)
ainda, desenvolvido-subdesenvolvido.
Essa forma de classificar o outro, a partir de si
A perspectiva eurocêntrica, ou perspectiva do mesmo, sendo taxativo em considerar níveis e
hemisfério norte, distorceu, e ainda distorce, graus de melhor ou pior grupo social, enraizou-
a construção identitária e histórico-social dos -se de maneira contumaz, subjetivando e sujei-
demais grupos. O ingresso e a fixação de coloni- tando o pensamento social nas distintas áreas.
zadores em diversos territórios não propunham Até mesmo o pensamento científico se ancorou
analisar a cultura nativa e logo após conhece-la nessa compreensão para afirmar que existiriam
preservar seus principais ritos e costumes, man- estágios evolutivos, pelos quais as sociedades
tendo a identidade singular; a homogeneização transitariam. A definição e estruturação social
da organização do espaço, da conduta social, escalonada tornou-se critério universal e aplicável
desconsiderando aspectos específicos dos povos a toda população, um lugar no sistema onde todos
nativos foi a maneira prática e rápida de domi- deveriam estar categorizados e todos deveriam
nação e subordinação. A classificação dos se- contribuir ou produzir. Não é incomum atrelar
res humanos em raças decorreu também desse a dependência social, econômica, do conheci-
argumento, de que algumas sociedades seriam mento, da arte e da política a esses processos de
inferiores e outras superiores. Era necessário estratificação social introjetados ao longo dos sé-
construir uma justificativa que alicerçasse a ex- culos, principalmente, considerando o hemisfério
ploração de grupos sociais. Convém a menção de norte superior em detrimento do hemisfério sul.
que o poder, não apenas o político, mas inclusive Isto se aplica vorazmente a noção de organização
o religioso, que por vezes exerce autoridade e do espaço físico, na concepção de área urbana e
justificativa, equivalente ou quiçá superior ao de planejamento urbano, vez que, importam-se
EIXO TEMÁTICO 1 modelos considerados universais, que nem sem-
pre se aproximam da realidade social dos lugares
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO onde serão aplicados.

Quanto ao aspecto temporal existe a ideia do con-


tínuo, o avanço constante, linear e progressivo da
sociedade; entretanto, a perspectiva temporal
é distinta para cada grupo. A percepção linear
da evolução social desconsidera que existem
formas históricas e espaciais distintas. Há uma
justaposição de vivência das sociedades, que
mesmo experienciando modos de relações dife-
rentemente, sejam contemporâneas. Considerar
que existem diferentes estágios ou etapas do de-
senvolvimento humano convergindo linearmente
para uma mesma direção, é, portanto, desconsi-
derar a diversidade cultural, condicionando todos
os grupos sociais a uma mesma conformação.

[...] a diversidade das culturas humanas


é, de fato, no presente, de fato e também
de direito no passado, muito maior e mais
rica do que tudo aquilo que delas puder-
mos chegar a conhecer. [...] Existem nas
sociedades humanas, simultaneamente em
elaboração, forças trabalhando em direções
opostas: umas tendem à manutenção, e
mesmo à acentuação dos particularismos;
as outras agem no sentido da convergência
e da afinidade. (LÉVI-STRAUSS, 1993, p. 331)

O processo de violência e destruição social se na-


turalizou sob uma compreensão de que grupos so-
ciais denominados inferiores poderiam ser assim
tratados pois o objetivo final seria transformá-los
de modo que se assemelhassem às metrópoles.
A produção da identidade histórico-cultural foi
desconsiderada e negros e indígenas, embora
provindos de complexas e sofisticadas relações
de poder, foram racializados, categorizados como
inferiores e desiguais. Os povos oriundos da África
têm ainda como agravante o desenraizamento
violento e traumático do seu território originário.

As estratégias de dominação e relações de poder


não se dão apenas pela força física; os discursos,
as instituições, as estruturas, as leis, o dito, e até
mesmo o não dito, formam uma rede que con-
dicionam o sujeito para ser e agir conforme as
regras que concretizam essa relação de poder.
16º SHCU Os mecanismos de dominação condicionavam, e
30 anos . Atualização Crítica
ainda sujeitam, os grupos sociais, naturalizando
750 as ações dos dominadores. A autodenominação
de atrasados, dependentes e inferiores, ao que se rápido desenvolvimento urbano, mas isso não
constituiu como paradigma de desenvolvimento pode ser interpretado como avanço no “estágio
no hemisfério norte, ainda perpetua na concepção da cadeia evolutiva” das cidades, pois não há uma
e formação da sociedade por eles colonizados escala evolutiva linear.
ou neocolonizados. O resgate de uma identidade
histórico-social própria decorrerá do rompimento O desenvolvimento e crescimento desigual ocorre
e inevitável destruição da colonialidade do poder. externa e internamente, ou seja, há variações de
urbanização entre os países e até dentro do mes-
A homogeneização do espaço é torná-lo indife- mo território. Diante disso, é preciso definir prio-
rente a construção singular; é o que discorre Augé ridades de análise, afim de que as investigações
(1994). Um espaço que não pode ser definido como tenham utilidade prática real, pois os problemas se
identitário, nem relacional, tampouco histórico complexificam e exigem reflexões mais apuradas.
é definido por Augé (1994, p. 73) como não-lugar.
Nesse mesmo sentido Guattari e Rolnik (1996) O desafio é buscar unidade interpretativa, que pro-
entendem que a ordem econômica é responsável porcione a compreensão da conjuntura de cada
pela constituição desse não-lugar: lugar. As análises precisam ter a devida acuidade
para que não sejam generalistas, apresentem
A ordem capitalística incide nos modos de agendas locais e situem ou formulem conceitos
temporalização. Ela destrói antigos siste- e teorias. É necessário ter sensibilidade quanto
mas de vida, ela impõe um tempo de equi- ao trato das cidades, não menosprezando suas
valências, a começar pelo assalariamento origens históricas e não diminuindo seu potencial
através do qual ela valoriza as diferentes de crescimento. Retomando o que já fora men-
atividades de produção. As produções que cionado nesta análise por Cacciari (2010), não
entram nos circuitos comerciais, as produ- existe uma única ideia ou noção do que seria vida
ções de ordem social ou as produções de urbana ou cidade. A reflexão precisa se tornar um
alta valorização são, todas elas, sobrecodi- exercício interdisciplinar, vez que as discussões
ficadas por um tempo geral de equivalência. não serão respondidas por uma ciência apenas,
(GUATTARI E ROLNIK, 1996, p. 43, 44) dada a capacidade de ser múltiplo no indivíduo.

Segundo Carrión (1991), as teorias utilizadas na Não há ciência sem hipóteses teóricas. Des-
compreensão das cidades latino-americanas, taquemos desde logo que nossa hipótese,
teoria da urbanização e da urbanização depen- que concerne às ciências ditas “sociais”,
dente, por exemplo, demonstram limitações con- está vinculada a uma concepção episte-
ceituais e precisam ser repensadas, pois caíram mológica e metodológica. O conhecimento
em um reducionismo demasiado e generalista, não é necessariamente cópia ou reflexo,
cerceando as complexidades dos territórios, sob simulacro ou simulação, de um objeto já
a perspectiva da evolução linear dos espaços. real. Em contrapartida, ele não constrói
Os problemas e soluções, em todos os países, necessariamente seu objeto em nome de
sobrepujam uma análise apurada, e por isso, este uma teoria prévia do conhecimento, de uma
é o momento de repensar a cidade considerando teoria do objeto. Se esse “objeto” se situa
as distintas experiências. Principalmente, consi- além do constatável (empírico), nem por
derando que, no exemplo de Carrión, a população isso ele é fictício. (LEFEBVRE, 2008, p. 14)
da América Latina tornou-se predominantemente
urbana nos últimos sessenta anos, um fenômeno A menção dos termos pasteurização, homoge-
recente comparado a população europeia. neização e transmutação nesta seção decorre do
entendimento de que gradativamente os espaços,
Verifica-se que cada país se encontra em um e consequentemente as relações de poder e de
tempo de investigação e análise urbana distinto. constituição do sujeito, perdem suas caracterís-
Isto porque o fenômeno da urbanização e a ex- ticas identitárias, tornam-se empobrecidas da
pansão das cidades difere para cada um deles. E história originária, para cumprir as diretrizes de
por isso, os debates e os temas de discussão são evolução social que torna a estrutura à semelhan-
distintos em cada lugar. Onde a pesquisa sobre ça de outros, resultando em um substrato tanto
urbanização se iniciou primeiro, verifica-se o distinto da origem quanto do modelo tomado. As
EIXO TEMÁTICO 1 mudanças e as transições são inevitáveis, o tempo
urge mudanças, no entanto, o que provocativa-
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO mente busca-se sugerir é que as experiências
afetam profundamente o domínio, resultando no
apagamento da compreensão de si mesmo e do
grupo em que está inserido, como resposta às
expectativas econômicas dominadoras. Não se
trata de uma aversão a mudanças e manutenção
do tradicionalismo, mas a compreensão de que os
processos de mudança podem ser fruídos sem a
violência social, histórica e econômica nos quais
estão sempre associados.

OS AJUSTES ECONÔMICOS À TRÍADE

Considerando as influências das relações econô-


micas estabelecidas na tríade espaço-poder-in-
divíduo verifica-se que o regime de acumulação
flexível amplia o consumo predatório da força
de trabalho, aprofunda as diferenças de classe,
subordina indivíduos e formas de governo, se-
gregando e escalonando espaços. A inclusão é
subordinada, porque é a condição de existência
do processo de acumulação (OLIVEIRA, 2002); o
capital só inclui aquilo que contribui para o pro-
longamento do sistema produtivo citado. Am-
pliam-se políticas econômicas e sociais como
forma de ajustar espacialmente o capital. Como
resultado, a subjetividade é flexibilizada, as perdas
são naturalizadas e se busca uma readequação
ao fluxo de crise constante:

As políticas econômicas e sociais integra-


ram essa “adaptação” à globalização como
dimensão principal, tentando aumentar a
capacidade de reação das empresas, dimi-
nuir a pressão fiscal sobre os rendimentos
do capital e os grupos mais favorecidos,
disciplinar a mão de obra, baixar o custo
do trabalho e aumentar a produtividade.
(DARDOT e LAVAL, 2016, p. 198)

Para Bauman e Bordoni (2016) as consequências do


modelo de governança neoliberal fazem com que
o Estado controle seus governados, ao passo que,
isenta-se de responsabilidade sobre eles; o indi-
víduo é cada vez mais guiado por suas iniciativas,
16º SHCU pois não é mais possível garantir o bem-estar so-
30 anos . Atualização Crítica
cial. O sujeito empresarial, como denomina Dardot
752 e Laval (2016) é motivado pelo constrangimento
social e ativado pela competição. O dispositivo es- essas políticas. (LAUTIER, 2014, p.467).
tatal estabelece novas fronteiras entre as relações
sociais e o indivíduo torna-se empresário de si. Ponderando sobre a capacidade de hesitar, agir
e contestar, Arendt (2007) apresenta a designa-
Se existe um novo sujeito, ele deve ser dis- ção da vida ativa compreendendo as atividades
tinguido nas práticas discursivas e institu- humanas sob três aspectos: o labor, o trabalho e
cionais que, no fim do século XX, engen- a ação. O labor é a atividade correspondente ao
draram a figura do homem-empresa ou do processo biológico, condição natural da própria
“sujeito empresarial”, favorecendo a instau- vida humana. O trabalho corresponde ao artifi-
ração de uma rede de sanções, estímulos cialismo, à execução das coisas. E a ação, como
e comprometimentos que tem o efeito de condição da preservação dos corpos políticos, é a
produzir funcionamentos psíquicos de um capacidade de organização política. A vida ativa do
novo tipo. (DARDOT e LAVAL, 2016 p.322). indivíduo é o pleno exercício destes três aspectos.
No entanto, sem a capacidade de ação, o indivíduo
Esta transformação do indivíduo como o sujei- está reduzido à mera vida ou o animal laborans.
to empresarial pouco a pouco assume todas as
esferas de constituição do ser. Dardot e Laval Esse animal laborans descrito em Arendt (2007) é
(2016) afirmam que há uma redefinição da medida o homem pós-moderno que não abandona a indi-
humana, decorrente da pós-modernidade. vidualidade ou o ego para dedicar-se ao trabalho;
pelo contrário o ego é capaz de dilacerá-lo e hipe-
As políticas econômicas e sociais integra- rativá-lo. A capacidade de resignar foi exaurida.
ram essa “adaptação” à globalização como No entendimento de Han (2017) vive-se uma era
dimensão principal, tentando aumentar a transitória, nada promete duração e subsistên-
capacidade de reação das empresas, dimi- cia, por isso é necessário aprender a ler, pensar,
nuir a pressão fiscal sobre os rendimentos falar e escrever. Habituar o olhar e o pensar a não
do capital e os grupos mais favorecidos, apenas aceitar todos os estímulos apresentados,
disciplinar a mão de obra, baixar o custo do mas compreender enquanto vida ativa, a possi-
trabalho e aumentar a produtividade. Os Es- bilidade de desenvolver a vida contemplativa.
tados tornaram-se elementos-chave dessa
concorrência exacerbada, procurando atrair Para além da resposta aos meros estímulos bio-
uma parte maior dos investimentos estran- lógicos ou produtivos, a vida contemplativa tra-
geiros pela criação de condições fiscais e duz-se no pensamento interpretativo, crítico e
sociais mais favoráveis à valorização do criativo. Circunscrevendo ao âmbito da formação
capital (DARDOT e LAVAL, 2016, p. 198 e 199). da cidadania, o desenvolvimento crítico tem sido
reduzido às respostas dos estímulos do mercado.
Para Han (2017) o ativismo, a hiperatividade e a
histeria do trabalho e da produção exacerbam a Retira-se do indivíduo a possibilidade de variabi-
competitividade na vida pós-moderna, reduzindo lidade do resultado; é necessário responder sem-
a capacidade de ação à mera reação de estímulos. pre positivamente e negar o não-parar (HAN, 2017).
Lautier (2014) afirma que estes estímulos não são Interseccionando as ideias de Dardot e Laval (2016)
aleatórios; as definições das ações de acesso com Han (2017), advém a compreensão de que o
aos direitos sociais possuem um peso político. comportamento humano centrado em si mesmo
Na definição do público alvo das políticas sociais mobiliza todas as coisas sob a capacidade do lucro
serão definidos os mais e menos visíveis: e da mercantilização. O empreendedorismo huma-
no vislumbra a oportunidade comercial de todas as
Por detrás desse nível “técnico”, a deter- ações, tornando uma vigilância constante da rela-
minação de “alvos” prioritários de auxílio ção de si para si mesmo, segundo Dardot e Laval:
coloca múltiplos problemas políticos e ide-
ológicos. Por um lado, os alvos designados O mercado define-se precisamente por seu
como prioritariamente mais “visíveis” são caráter intrinsecamente concorrencial.
aqueles que têm mais peso político e aque- Cada participante tenta superar os outros
les que correspondem aos (pressupostos) a numa luta incessante para tornar-se líder e
priori dos que estão encarregados de operar assim permanecer. Essa luta tem a virtude
EIXO TEMÁTICO 1 do contágio: todos imitam os melhores, tor-
nam-se cada vez mais vigilantes e, progres-
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO sivamente, adquirem entrepreneurship. O
empreendedor que procura vender pelos
métodos da persuasão moderna obtém os
efeitos mais positivos sobre os consumido-
res (DARDOT E LAVAL, 2016, p. 147).

A combinação de condições econômicas desiguais


entre os sujeitos e os níveis diferenciados de in-
fluência e poder são elementos desencadeadores
do ajuste espacial. Harvey (2005) alega que dentre
os motivos para o ajuste espacial está a possibili-
dade de melhor rentabilidade e desenvolvimento:

O desenvolvimento desimpedido do capi-


talismo em novas regiões é uma neces-
sidade absoluta para a sobrevivência do
capitalismo. Essas novas regiões são os
lugares onde o excesso de capitais supe-
racumulados podem mais facilmente ser
absorvidos, criando novos mercados e
novas oportunidades para investimentos
rentáveis. Contudo, deparamo-nos com
outro tipo de dificuldade. Nas novas re-
giões, as novas forças produtivas criam
uma ameaça competitiva [...] Nas novas
regiões, a superacumulação exige um ajuste
espacial, talvez mesmo à custa do capital
nas regiões antigas. (HARVEY, 2005, p.118)

Segundo Harvey (2005) os ajustes espaciais do


capital são orientados pelo próprio Estado, cuja
presença é forte e contundente nas economias
neoliberais, como instrumento de manutenção da
estrutura. Ainda conforme Harvey, “a democracia
burguesa sobrevive apenas com o consentimento
da maioria dos governados; no entanto, ao mesmo
tempo, tem de expressar o interesse distintivo da
classe dirigente” (2005, p. 87). O que demonstra
cada vez mais a indissociabilidade da compreen-
são sobre espaço-poder-sujeito.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Parecem conexões impossíveis, mas na verdade


há um nó na compreensão dos três conceitos: es-
16º SHCU paço, poder e sujeito. Estas três concepções es-
30 anos . Atualização Crítica
tão atreladas, e, irremediavelmente, as mudanças
754 em um deles afetará o modo como os outros são
e as interações decorrentes. Compreende-se que REFERÊNCIAS
o Urbanismo é necessário por ser um involucro
desta tríade, com relações que a contempora-
neidade o torna mais complexo. Os tempos estão ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro:
mudando e isto requer a compreensão cada vez Forense Universitária, 2007.
mais detalhada do que envolve a cidade. A inves-
tigação urbana tem sido caracterizada pela crise; BAUMAN, Z.; BORDONI, C.: Estado de Crise. Rio de
esta, não se circunscreve ao campo econômico, Janeiro: Zahar, 2016.
mas em todos os âmbitos. As pesquisas urbanas
precisam buscar e indicar soluções para as cri- CARRIÓN, F. La investigación urbana América
ses, considerando o valor histórico e prospectivo Latina. Una aproximación. In: Nueva Sociedad (114),
das cidades, por uma educação urbana que não 113-123. Buenos Aires, 1991. Disponível em: https://
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16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

756
757
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
EIXO TEMÁTICO 1 RESUMO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Com base na trajetória do engenheiro sanitário
Saturnino de Brito e, principalmente, em seu
vídeo-pôster ensaio de conclusão de curso na Escola Poli-
técnica do Rio de Janeiro, denominado Teoria
Lógica da Assimilação. Este artigo busca po-
POSITIVISMO: PASSAGENS DE sicioná-la frente à epistemologia positivista,
além de contextualizar historicamente essa
SATURNINO DE BRITO SOBRE escola filosófica na época de sua formulação e
desenvolvimento ao longo do século XIX. Nesse
SUA EPISTEMOLOGIA sentido, foram levantados alguns teóricos ins-
piradores do positivismo, além de destacar sua
origem social e o ideário burguês-industrial de
POSITIVISM: SATURNINO DE BRITO PASSAGES ABOUT sua doutrina. Após apontar alguns paralelos en-
HIS EPISTEMOLOGY tre os axiomas do ensaio de Saturnino de Brito
e os textos de Auguste Comte, também foi dis-
POSITIVISMO: SATURNINO DE BRITO PASA POR SU cutida as ressonâncias do positivismo no Brasil
EPISTEMOLOGÍA e o desenvolvimento de análises das questões
brasileiras inspiradas na doutrina. Assim, o ar-
tigo pretende abrir o diálogo das influências do
DEMINICE, Daniel
positivismo sobre um importante precursor do
Doutorando; IFCH-Unicamp
urbanismo brasileiro.
ddeminice@gmail.com

HISTÓRIA CIDADE URBANISMO POSITIVISMO


SANITARISMO

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

758
ABSTRACT RESUMEN

Based on the trajectory of the sanitary engineer Basado en la trayectoria del ingeniero sanitario
Saturnino de Brito and, mainly, on his conclusion Saturnino de Brito y, principalmente, en su ensayo
of course essay at the Polytechnic School of Rio final de curso en la Escuela Politécnica de Río de
de Janeiro, called Theory of Logical Assimilation. Janeiro, llamado Teoría de la Asimilación Lógica.
This article seeks to position it in the face of po- Este artículo busca posicionarla frente a la epis-
sitivist epistemology, in addition to historically temología positivista, además de contextualizar
contextualizing this philosophical school at the históricamente esta escuela filosófica en el mo-
time of its formulation and development throu- mento de su formulación y desarrollo a lo largo del
ghout the nineteenth century. In this sense, some siglo XIX. En este sentido, se plantearon algunos
inspirational theorists of positivism were raised, teóricos inspiradores del positivismo, además de
in addition to highlighting its social origin and destacar su origen social y la ideología burguesa-
the bourgeois-industrial ideology of its doctrine. -industrial de su doctrina. Después de señalar al-
After pointing out some parallels between the gunos paralelos entre los axiomas del ensayo de
axioms of Saturnino de Brito’s essay and Auguste Saturnino de Brito y los textos de Auguste Comte,
Comte’s texts, a little discussion of the resonan- también se discutió una pequeña discusión sobre
ces of positivism in Brazil and the development las resonancias del positivismo en Brasil y el de-
of analyzes of Brazilian questions inspired by the sarrollo de análisis de las cuestiones brasileñas
doctrine was also discussed. Thus, the article in- inspiradas en la doctrina. Así, el artículo pretende
tends to open the dialogue about the influences abrir el diálogo sobre las influencias del positi-
of positivism on an important precursor of Brazi- vismo en un importante precursor del urbanismo
lian urbanism. brasileño.

HISTORY CITY URBANISM POSITIVISM HISTORIA CIUDAD URBANISMO POSITIVISM


SANITARISM SANEAMENTO
EIXO TEMÁTICO 1 Num artigo já bastante conhecido, publicado em
1988, Paulo E. Arantes defende que o positivismo
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO no Brasil nunca passou de um “clima de opinião” 1,
bastante usado em debates parlamentares e cien-
tíficos, mas nunca de maneira profunda como
vídeo-pôster uma especialidade acadêmica ou uma ideologia
em estado bruto. Para o autor, o positivismo teria
prosperado mais por conta da aridez epistemo-
POSITIVISMO: PASSAGENS DE lógica das elites brasileiras que ansiavam por

SATURNINO DE BRITO SOBRE promessas de redenção social. Na Europa, o posi-


tivismo havia sido uma ideologia essencialmente

SUA EPISTEMOLOGIA burguesa que, como uma utopia conservadora


emergiu de uma sociedade traumatizada pelo
cataclismo da Revolução Francesa, em 1789, e
POSITIVISM: SATURNINO DE BRITO PASSAGES ABOUT tinha por finalidade amainar os conflitos sociais
HIS EPISTEMOLOGY da nova ordem industrial através da contenção
da radicalidade social de base iluminista. Para
POSITIVISMO: SATURNINO DE BRITO PASA POR SU Arantes, porém, existiu uma enorme diferença de
EPISTEMOLOGÍA “fuso histórico” entre a ideologia positivista e a sua
repercussão nos respectivos contextos europeu
e brasileiro, fazendo com que aqui se perdesse a
radicalidade do reformismo burguês em virtude
da arraigada estrutura escravista e latifundiária.
Assim, no Brasil o positivismo acabou servindo
apenas para nobilitar o discurso de engenheiros,
médicos e militares politécnicos, sendo uma ide-
ologia essencialmente contraditória, principal-
mente, em virtude da instituição da escravidão.

Um dos problemas da análise de Paulo Arantes,


entretanto, são os poucos exemplos que utiliza
entre os adeptos da doutrina, o que obscurece
as matizes do positivismo brasileiro que, como
ele próprio aponta, repercutiu entre diferentes
camadas sociais. Todavia, o mais problemático
dessa interpretação está na leitura sobre o capi-
talismo, que também não escapa de uma análise
etapista, que numa dinâmica internacional pare-
ce conceber fases do atrasado ao moderno no
capitalismo. Essa noção temporal do fenômeno
histórico não se assemelharia a visão monoge-
nista2 dos próprios positivistas? Ou seja, como

1. ARANTES, P. E. O Positivismo no Brasil. Novos Estudos


CEBRAP. Nº21, 1988.

2. concepção antropológica que acredita que todas as “ra-


ças” humanas derivam de um tipo promitivo comum res-
tando apenas as diferenças de posição na escala evolutiva
16º SHCU
entre elas. Assim, explica as diferenças culturais entre os
30 anos . Atualização Crítica
povos pelas posições distintas ocupadas por eles na linha
760 civilizatória da evolução. .
diria Maria Sylvia de Carvalho Franco3, não existiu ideais em torno do positivismo. A abertura do en-
no capitalismo brasileiro uma incompatibilidade saio é feita com epigrafes da obra “Discurso sobre
entre as relações de dependência servis e o ideário método” de René Descartes (1596-1650) e do livro
liberal-burguês, que teve o positivismo como um “O espírito das leis” de Montesquieu (1689-1755).
dos seus tributários, uma vez que não existe uma Ou seja, Descartes pode ser considerado como
ordem de sucessão entre o capitalismo central e precursor do pensamento filosófico cartesiano,
suas periferias, embora estejam imbricadas em responsável por uma revolução mecanicista nas
relações econômicas de exploração. Para autora, o ciências modernas, em que o comportamento da
centro e a periferia não possuem modos de produ- matéria física será explicado por leis matemáticas
ção, essencialmente, diferentes, mesmo que pos- e racionais. Na filosofia cartesiana, até mesmo
suam situações particulares no sistema capitalista o sentimento ou a emoção estariam ligados ao
mundial. Assim, derruba as falsas dicotomias entre pensamento e, portanto, associada à esfera da
os sinônimos, respectivamente, tidos como rea- razão. Essa base epistemológica do conhecimen-
cionários e progressistas nas imagens: campo-ci- to constituiu a essência da ética antropocêntrica
dade, escravismo-capitalismo, imperialismo-na- que entendeu a natureza como algo exterior ao
cionalismo, desmontando a ideia redentora de que homem.5 O Barão de Montesquieu (1689-1755),
existiria no capitalismo uma instância civilizadora. por sua vez, defendia que as leis de cada povo
refletiam as suas realidades históricas e sociais
A produção e circulação de ideologias, por sua e, entre elas, as mais importantes seriam as leis
vez, irão acontecer de forma internacional, ou “positivas” que expressariam as relações neces-
transnacional, não sem as particularidades locais. sárias na vida dos povos em correlação as suas
As “vogas intelectuais” no Brasil não foram apenas formas de governo. Estes poderiam ser de três
“bovarismos”, ou ingenuidades, elas se articularam tipos: a República (princípio da Virtude); a Monar-
a interesses políticos complexos. Para Maria Sylvia quia (princípio da Honra); e o Despotismo (princípio
de Carvalho Franco, o positivismo, articulado do Medo). Montesquieu não faz juízo de valor das
à igreja e ao exército, serviu para sufocar todo formas de governo, assim como não existiriam
pensamento agnóstico e materialista, contribuin- para ele leis justas ou injustas, mas apenas as
do para sustentar o desenvolvimento do capitalis- mais adequadas ao “espírito” particular de cada
mo. Paulo E. Arantes diz que, embora o positivis- povo que deveria ser descoberto pela sua análise
mo tenha divergido do marxismo, ambos tiveram física, social e moral.6
a força das promessas de redenção, em que os
O ensaio de Saturnino de Brito, todavia, é bastante
mais “atrasados” pudessem mirar no espelho dos
fundamentado na obra “Curso de Filosofia Positi-
mais “adiantados”, fazendo do positivismo uma
va” de Auguste Comte (1798-1857), da qual realiza
filosofia do progresso. Ainda assim, é possível
diversas anotações construindo um breve estudo
encontrar mais particularidades no positivismo
do que ele considera a escala das “ciências”. Isto
brasileiro moldado pelos diferentes agentes que
é, as disciplinas organizadas por ele de maneira
operaram essa ideologia no contexto da Primeira
hierárquica: a matemática, a química, a biologia,
República. Saturnino de Brito, embora não apare-
ça na antologia organizada por Ivan Lins (1964) 4,
deu a sua contribuição. 5. O contexto social de nascimento da ética antropocên-
trica, porém, ainda era regido pela ética cristã de punição
Em 1887, como trabalho de conclusão de curso na dos pecados, e Descartes correu o risco de ser acusado de
Escola Politécnica, então com 23 anos, Saturnino heresia ao defender a “dúvida cartesiana”, ver RUSSELL,
escreve um ensaio sobre filosofia intitulado “Teo- Bertrand. História da filosofia ocidental. Cia. Ed, Nacional:
ria Lógica da Assimilação”, em que define algumas São Paulo, 1957.

6. Embora adepto de um liberalismo aristocrático, simpático


à monarquia moderada, se torna célebre o capítulo em que
3. FRANCO, M. S. de C. As ideias estão no lugar. Cadernos
Montesquieu escreve sobre a separação e distinção dos po-
de Dabate, nº.1, 1976.; Trans/Form/Ação, Marília, v. 34, p.
deres: Executivo, Legislativo e Judiciário, principalmente,
1-218, 2011.
ao ser inserido na Declaração dos Direitos do Homem de
4. LINS, I. História do positivismo no Brasil. Cia ed, Nacional: 1789, ver FORTES, L. R. S. O iluminismo e os reis filósofos.
São Paulo, 1964. Brasiliense: São Paulo, 1981.
EIXO TEMÁTICO 1 a sociologia e a moral. Comte também classifica
essas ciências dessa forma, porém, em sete ca-
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO tegorias: i) a matemática (lógica), a mais abstrata
das ciências; ii) a astronomia, onde são aplicados
alguns estudos da matemática, como o número
de corpos numa extensão ou geometria celeste,
e o movimento ou mecânica das massas cósmi-
cas; iii) a física, que complexifica a astronomia
numa análise sobre o comportamento da matéria
em relação as energias térmicas, mecânicas e
elétricas; iv) a química, que examina a composi-
ção das matérias, e v) a biologia responsável pela
análise da atividade viva da matéria em milhares
de modelos individuais, sendo por isto, subdivi-
dida em: anatomia (formas), fisiologia (funções) e
biotaxia (classificações). Aqui, Comte encerra o
que classifica como ciências relativas ao conhe-
cimento do mundo e desdobra para as ciências
sobre o homem e a sociedade: vi) a sociologia ou
física social; e vii) a moral, ou psicologia, embora
ele evite este termo por já estar sendo usado nos
estudos sobre a metafísica.

A partir dessa escala científica, a filosofia positiva


teria o papel de reorganizá-las num conjunto.
O projeto filosófico passava pela reunificação
dos conhecimentos científicos como “diferentes
ramos de um tronco único” ao invés de conside-
rá-los como corpos isolados. Embora a divisão
dos trabalhos intelectuais tivesse permitido a
evolução de cada ramo do sistema científico,
segundo os positivistas, não se poderia perder
de vista o seu projeto unitário, inclusive, com
analogias metodológicas numa linha evolutiva das
ciências. Cada ciência se ocuparia de certo grupo
de fenômenos, mas a unidade do conhecimento se
daria pelo emprego de analogias metodológicas:
“uma idêntica metodologia produz convergência
e homogeneidade de teorias” 7 A teoria lógica da
assimilação, portanto, defendida por Brito, fazia
parte de uma tentativa epistemológica baseada
em analogias metodológicas.

Assimilar ou comparar por semelhança, é um dos


mais elementares fenômenos morais, servindo
inicialmente à razão prática no discernimento e
grupamento dos elementos que a ordem universal
fornece. Reciprocamente dependentes, a obser-
vação e a comparação constituem a base objetiva
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
7.GIANNOTTI, J. A. Comte (1798-1857). Vida e Obra.
762 p.11 Os Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
para as mais amplas elaborações especulati- Francesa, segundo Michel Foucault (1977), Cabanis
vas (...) Então, ilimitado o campo de observação, será também o ideólogo da figura do “médico-ma-
abrangendo diretamente a existência objetiva, da gistrado”, a quem a cidade deve confiar “a vida dos
mais rudimentar à mais perfeita, e indiretamente homens” em virtude do papel moral ao qual o mé-
as mais sublimes elevações morais do espírito dico será elevado.10 Junto com Adam Smith está
humano, é sempre por comparação que a razão entre os ideólogos que compuseram o que Fou-
prática e a razão teórica coordenam os aconte- cault, em sua genealogia do poder, considera de
cimentos (BRITO: 1943: 128) maneira crítica como a modernidade do cotidiano.
Ou seja, Adam Smith também estaria associado
Comte havia estudado na Escola Politécnica de ao nascimento da biopolítica pelo viés da razão
Paris na década de 1810, onde teve uma formação governamental do liberalismo, que se revela na
científica significativa para a construção do seu imagem do “homo economicus”. Este, esgarçando
pensamento. Essa instituição, modelo de edu- a dimensão econômica, se comporta como um
cação superior para os positivistas, foi fundada ator regido pelo liberalismo em diferentes níveis
em 1794 durante a Revolução Francesa, sendo o da vida social, reproduzindo de forma sistemá-
fruto de um novo pensamento técnico e científico tica a lógica liberal. Por fim, Foucault resume o
associado ao desenvolvimento industrial. Comte estatuto deste novo sujeito com uma citação de
chega a se manifestar como republicano, parti- David Hume: “a ideia de um sujeito de interesse,
dário da Convenção Nacional (1792-1795) liderada ou seja, um sujeito como princípio de interesse,
pelos jacobinos Marat, Danton e Robespierre, como ponto de partida de um interesse ou lugar
aos quais atribuía as principais conquistas revo- de uma mecânica de interesses”.11
lucionárias, como a abolição da escravidão nas
colônias, a liberdade de ensino e a separação Condorcet, grande contribuinte à gênese do po-
entre os poderes temporal e espiritual essen- sitivismo, era próximo aos fisiocratas que acre-
cial ao seu projeto filosófico. Durante o período ditavam nas analogias entre economia política,
napoleônico, entretanto, as posições de Comte matemática e ciências naturais, generalizando-as
irão acompanhar o movimento politico de mode- a ponto de falar em uma matemática social, ou
ração sustentado pela nova ideologia burguesa. ciência natural da sociedade, que estivesse imune
Por fim, após a derrota de Napoleão Bonaparte aos “interesses e paixões”. Este modelo científi-
pela Santa Aliança, em 1816, os restauracionistas co-natural de Condercet, entretanto, opunha-se
da Casa Real dos Bourbons fecham temporaria- em seu contexto, essencialmente, aos axiomas
mente a Escola Politécnica sob a acusação de sociais e políticos feudais e absolutistas, fazendo
jacobinismo. O filósofo, então, vai se dedicar ao da experiência e do cálculo instrumentos con-
estudo de autores da medicina, como Cabanis tra a ideologia do Antigo Regime. Saint-Simon,
(1757-1808), da economia política, como Adam aristocrata francês adepto do republicanismo,
Smith (1723-1793), e da filosofia e história, como verá no enciclopedista uma das fontes para a
David Hume (1767-1832), Condorcet (1743-1794) e “ciência do homem” tornar-se “positiva”. Comte,
Saint-Simon (1769-1825). após a interrupção de sua formação politécnica,
será secretário de Saint-Simon em publicações
Nesse sentido, o positivismo é filho do iluminismo. periódicas como “L’industrie” e a “Enciclopédia das
Cabanis, por exemplo, professor da Escola Cen- Ideias Positivas”. Porém, se Condorcet e Simon
tral de Medicina de Paris, é um dos entusiastas foram responsáveis por uma revolução conceitual
da teoria neohipocrática8, que estabelecia uma e axiológica do pensamento feudal e absolutista,
estreita relação entre medicina e ética, ou sobre Comte será responsável pela transformação da
a influência do meio ambiente nos hábitos morais,
sendo uma das fontes de Auguste Comte sobre engenharia sanitária no século XIX. Cadernos de Arquite-
o higienismo.9 Próximo aos líderes da Revolução tura: FAAC/Bauro. Ano 1, n.2, jul-dez.1996.

10. FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. Ed. Forense: Rio


8. Segundo Carlos Roberto Monteiro de Andrade (1996) uma de Janeiro, 1977.
das influencias de Saturnino de Brito.
11. FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica. Martins Fontes:
9. ANDRADE, C. R. M. de. “Putrid Miasmata”: higienismo e São Paulo, 2008.
EIXO TEMÁTICO 1 visão de mundo positivista numa ideologia con-
servadora da ordem industrial burguesa, pois
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO ao longo do século dezenove ele volta seu alvo
ao pensamento utópico-crítico do iluminismo12

Ao final do século XVIII, portanto, com aqueles


autores, o positivismo surge como uma utopia
crítico-revolucionária da burguesia anti-absolu-
tista, porém, ao longo do século XIX ele se torna
uma ideologia conservadora identificada a ordem
industrial burguesa. O princípio da neutralidade
dificulta o reconhecimento da relação entre co-
nhecimento científico e classes sociais visto que
não existe no quadro metodológico do positivismo
a pressuposição de uma análise das vinculações
sociais da construção do conhecimento científi-
co. A ideia de leis naturais da vida social (direito
natural) e de uma ciência da sociedade sob o mes-
mo modelo das ciências da natureza estiveram
associadas ao combate intelectual do Terceiro
Estado contra a ordem feudal absolutista.

A Revolução Francesa destrói as instituições so-


ciais do homem europeu e, segundo Comte, seria
fundamental estabelecer uma nova ordem. Embo-
ra a revolução houvesse cumprido uma etapa im-
portante com a dissolução de antigas instituições
sociais e políticas ainda associadas ao estado
teológico, anacrónicas com o estágio científico
da época, ela não deixara os fundamentos para
a reorganização da sociedade. A tarefa do posi-
tivismo será reorganizar as estruturas sociais e
políticas pela direção de uma nova elite científica-
-industrial. Assim, como Marx (1818-1883), Comte
se debruça sobre as questões da industrialização
e do crescimento dos proletários, porém, ao invés
de adotar uma posição revolucionária, assume
uma via moralizadora, ou seja, acreditava que uma
nova ordem humanitária abrandaria o egoísmo
dos capitalistas e os conflitos de classe seriam
abolidos sem a necessidade de eliminação da
propriedade privada (Lowy, 2000).

Essa moralização se dará por meio da ideia de


que a sociologia pertence ao mesmo sistema das
ciências naturais, chegando-se no positivismo a
um estágio de homogeneidade epistemológica
entre as ciências físicas, naturais e sociais. Assim,

16º SHCU
12. Lowy, Michael. As aventuras de Karl Marx contra o Barão
30 anos . Atualização Crítica
de Munchhausen: marxismo e positivismo na sociologia do
764 conhecimento. 7º ed. Cortez: São Paulo, 2000.
uma rigorosa identidade entre sociedade e natu- Para Brito, portanto, o mundo vegetal ou animal
reza, lidas por uma representação matemática poderia ser classificado pela metodologia posi-
da vida social dominada pelas leis naturais inva- tivista numa hierarquia evolutiva, discernindo o
riáveis, entendidas de forma cartesiana, permite fenômeno responsável pela ascensão de uma
que o positivismo congele uma ordem industrial espécie na escala, ou mesmo do desenvolvimen-
desigual e concentradora de capital como na- to fisiológico de algum membro do organismo
tural, exigindo dos proletários uma submissão biológico. Carlos R. M. de Andrade (1996) men-
ao projeto moral dessa ideologia, que teima em ciona o autor L. A. Segond, biólogo positivista
reorganizar a sociedade por meio de uma reforma que teria influenciado Saturnino de Brito com a
intelectual do homem baseada na naturalização obra “Histoire et Systématisation Générale de la
da hierarquia e da competição entre membros de Biologie” (1851), em que enfatiza a necessidade
uma mesma espécie.13 de se compreender a reciprocidade entre os se-
res e o meio como fundamental a biologia. Além
Por consequência, o fenômeno evolutivo no ensaio de outros autores como o biólogo alemão Ernst
de Saturnino de Brito se ancora, principalmente, Haeckel que propõe em 1869 o vocábulo ecologia
em três disciplinas fundamentais - a Biologia; a para definir o estudo daquela reciprocidade que,
Sociologia e a Moral - de onde ele extrai os mé- segundo Andrade (1996), foi crucial a concepção
todos evolucionistas respectivos a cada uma das organicista de cidade que também tem as suas
três disciplinas científicas - a comparação; a fi- origens nas analogias dos naturalistas entre o
liação histórica e a subjetivação. Através de cada corpo humano e o meio ambiente.
uma delas seria possível definir as regras que
A descoberta de uma “hierarquia vital” do orga-
subsidiariam a lógica da assimilação das etapas
nismo biológico poderia ser transportada para a
evolutivas da Humanidade. Segundo Brito, a teoria
análise da evolução social que, por sua vez, deveria
Biológica forneceria inúmeras análises de exem-
ocorrer por processos de filiação histórica aos
plos comparativos da evolução tanto das espécies
graus de progresso de outras civilizações. Ou
quanto dos órgãos de um organismo biológico,
seja, por meio da “observação” da situação social,
o que poderia ser transportado de maneira aná-
econômica, política, territorial e urbana de outros
loga para as “observações” e “comparações” de
povos seria possível realizar a “comparação” com
situações sociológicas no processo de filiação
a posição brasileira na escala evolutiva dos posi-
histórica entre diferentes povos e nações. tivistas. Esse procedimento analítico se explicita
em boa parte dos relatórios de Saturnino de Brito
Em biologia, no mundo vegetal como no
sobre a paisagem, a cidade, o saneamento e as
mundo animal, o método positivo dá como
instituições em que ele lança mão da comparação
regra para o estudo da escala ascendente
com realidades estrangeiras que já haviam sido
ou descendente das espécies, para o da
transformadas de “forma positiva”. Este seria o
evolução na espécie, e finalmente para o
procedimento de filiação histórica fundamental
do desenvolvimento das partes de um mes-
segundo a sua concepção para induzir a evolu-
mo organismo, proceder sempre por via de
ção social desejada na escala civilizatória dos
assimilação tomando um órgão, uma fase,
positivistas.
uma espécie para tipo assimilador e distin-
guindo o quanto e o como se aproximam ou Em sociologia o método por filiação his-
se afastam cada um dos outros elementos, tórica conduz à lei da verdadeira progres-
pertencentes ao organismo, à espécie ou à são humana induzida, por assimilação, da
hierarquia vital (BRITO: 1943: 135) apreciação histórica dos diversos graus
de progresso a que atingiram os diversos
povos, do estudo dos elementos concor-
13. Uma crítica contemporânea a essa representação da
naturalizada da sociedade é feita por Kropotkin, Piotr. Ajuda
rentes para cada evolução, da apreciação
mútua: um fator de evolução. São Sebastião : A Senhora Edi- de sua intensidade relativa (...). Consta a
tora, 2009. Ao contrário dos darwinistas sociais, ele levanta existência social, do passado ao presente,
inúmeros casos de cooperação entre membros da mesma de uma sucessão de termos em que cada
espécie na natureza, incluindo os seres humanos. um representa um esforço evolutivo base-
EIXO TEMÁTICO 1 ado sobre a série dos que o precederam: é
a filiação histórica dos fatos sociológicos
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO cuja expressão se concentra na existência
da Humanidade. (BRITO: 1943: 140)

Nesse sentido, Saturnino de Brito dá bastante


importância a sociologia no ensaio, apontada
como fundamental para a compreensão do mé-
todo de filiação histórica através da observação
e comparação entre os diversos graus evolutivos
alcançados por diversos povos. A pergunta: quais
os fenômenos históricos que os permitiram evo-
luir? É o objeto da lei do progresso positivista.
Entretanto, Brito faz questão de assinalar que
nos processos de observação e comparação das
diferentes realidades sociais seria imprescindí-
vel não recair na “epistemologia materialista”.
Ou seja, o positivismo se distinguiu ao longo do
século dezenove do que vinha constituindo-se
como uma filosofia materialista, principalmente,
de base marxista, que procurava privilegiar nas
explicações da realidade social os aspectos on-
tológicos, econômicos e políticos da reprodução
material da vida humana, entendidos de maneira
dialética. O viés político e associativo dos materia-
listas, ao final do dezenove, no mesmo contexto
da publicação do ensaio de Brito, já se tornara
evidente entre os inúmeros autores que se reu-
niam nos congressos realizados pela Associação
Internacional dos Trabalhadores, idealizada sob
uma filosofia da história regida pelas disputas
materiais entre as diferentes classes sociais.14
Numa passagem do ensaio, Brito escreve sobre
apropriação material associada à sociologia e à
moral:

Como exemplo sociológico citaremos a


apropriação material, ou dos produtos in-
dustriais, e o legado espiritual que recebe
cada geração das que lhe precederam;
estes dois aspectos da assimilação so-
ciológica sendo expressa em sua concor-
dância, pela dependência entre a politica
como resultado, a filosofia como o meio, e
a moral como fonte de toda atividade hu-
mana. Como exemplo moral a concentração
mental é o mais frisante; reservamo-nos
para depois tratarmos do seu termo o mais

16º SHCU
14. Hobsbawm, E. Como mudar o mundo: Marx e o marxismo.
30 anos . Atualização Crítica
1840-2011. Cia, das Letras: São Paulo, 2011. Capítulo 10. A
766 influência do Marxismo, 1880-1914. pp. 196-238.
elevado, as assimilações subjetivas em re- seria equivalente à substituição dos reis pelos
ligião (BRITO: 1943: 133) juízes, quando a sociedade passa a ser entendida
como um contrato e o Estado como originário da
A sociologia é vista por Comte como a finalidade soberania popular. Ela é importante para à passa-
da filosofia positiva, terreno em que pode ser gem a etapa mais evoluída da filosofia comteana,
alcançada a totalização do saber, incluindo em que seria o estado positivo caracterizado pela
seu corpo a psicologia, a economia política, a superação da imaginação e da argumentação
ética e a filosofia da história. Outro aspecto fun- pela observação.
damental da sociologia positivista é a distinção
entre a estática e a dinâmica sociais, a primeira O empirismo, assim, embasaria cada enunciado
dedicada às condições constantes da sociedade propositivo correspondente a um fato particu-
e a segunda as leis de seu progressivo desenvol- lar ou universal, sendo possível estabelecer as
vimento; i) a estática é a ordem e ii) a dinâmica é leis que causam determinados fenômenos ob-
o progresso. Ambas aperfeiçoam os elementos serváveis. Ainda que se investiguem diferentes
fundamentais da sociedade: religião, família e fenômenos físicos ou psicológicos, o método
propriedade. (Giannoti, 1978) positivo procura quais seriam as suas relações
imutáveis. A procura dessas leis imutáveis seria
Outro elemento central no positivismo é a filoso- objeto da ciência positiva que possuía uma longa
fia da história comteana que fundamenta a sua filiação histórica na astronomia matemática dos
concepção evolucionista baseada na lei dos três gregos antigos até a ciência moderna. Isso faria
estados, ou seja, as ciências e o espírito humano do empirismo positivista o instrumento para se
se desenvolveriam pelas seguintes fases: i) a te- alcançar a fraternidade humana, pois o seu mé-
ológica; ii) a metafísica e iii) a positiva. No estado todo de conhecimento das causas constantes
teológico a observação dos fenômenos é muito dos fenômenos determinam qual o futuro da si-
reduzida, deixando espaço para a imaginação, tuação observada. A previsibilidade, o “ver para
o homem só consegue explicar a natureza pela prever” torna-se o lema de uma ciência que se
crença na intervenção sobrenatural. O mundo arroga o poder de prever o futuro, oferecendo as
é compreendido através das ideias de deuses e ferramentas para que se possa alcança-lo. Nesse
espíritos, e a mentalidade teológica desempenha sentido, Saturnino de Brito parece aderir a essa
um relevante papel de coesão social, pois é o sedutora promessa científica ao escrever sobre
fundamento da vida moral. Em virtude da crença quais os elementos logicamente assimiláveis para
em poderes imutáveis, baseados na autoridade, poder evoluir:
a forma política desta fase corresponde a Monar-
quia e ao Militarismo. O estado teológico ainda Em sociologia os fatos das épocas do pas-
subdivide-se em três períodos: o fetichismo, o sado surgem nas épocas de cada presente
politeísmo e o monoteísmo. No fetichismo, a vida cheios d´essa vida que os animou no movi-
espiritual também é atribuída aos seres naturais. mento dos elementos sociais, das tendên-
O politeísmo retira o espírito dos seres naturais e cias de cada geração para uma direção se-
o transfere aos seres invisíveis de um mundo su- gundo a qual convergiam espontaneamente
perior ou paralelo. O monoteísmo, por fim, unifica todos os esforços. E as leis sociológicas,
essas divindades numa só. exprimindo as relações destes fatos, entre
si, coordenando as tendências evolutivas
A fase teológica monoteísta contribui para a tran- para sistematizar o movimento progressivo,
sição do homem ao estado metafísico, em que segundo uma ordem definida, constituem
outros conceitos serão utilizados para a expli- um conjunto sintético onde impera a uni-
cação dos fenômenos da realidade como a “for- dade como preside a harmonia na filiação
ça física”, a “força química” e a “força vital” que, histórica. Para a descoberta das leis, para
posteriormente, serão reunidos no conceito de a enumeração filosófica desta filiação ba-
natureza. Nesse estágio, a argumentação supera seada na sucessão histórica, necessária
a imaginação. A mentalidade metafísica destrói, se faz a assimilação lógica dos elementos,
portanto, a mentalidade teológica de subordina- estudando o caráter intrínseco de cada um,
ção da natureza ao sobrenatural. Na política isso as circunstâncias extrínsecas que o cerca-
EIXO TEMÁTICO 1 ram, e finalmente fazendo surgir à filiação
que, historicamente existindo, fica cienti-
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO ficamente instituída. (BRITO: 1943: 141)

Por fim, a constituição de uma moral positivista


seria o processo mais elevado da evolução, e as
assimilações subjetivas da religião são o exemplo
disso, pois é o que permite moldar os cidadãos,
educá-los, instruí-los a civilização progressiva.
Nesse trecho, Saturnino de Brito resgata uma
passagem da moral de Aristóteles sobre a virtude
política de tornar os cidadãos submissos à lei. Isso
significaria a síntese subjetiva, ou a construção
de uma moral prática, um sentimento através da
subjetivação realizada pelas assimilações lógicas
dos exemplos morais mais evoluídos da Humani-
dade. Estes, definidos a partir da linha evolutiva da
história positivista, levariam, então, ao tipo moral
científico que guiará o alcance do espírito sintético.

Resolvendo o mais digno problema da Sín-


tese Subjetiva, Aug. Comte fundou a moral
teórica e definiu sistematicamente a moral
prática, sob a presidência constante do
sentimento. Seguindo o método subjeti-
vo, por assimilações lógicas, no estudo da
evolução moral da Humanidade, partindo do
empirismo feitichista até o misticismo me-
dieval e as utopias teológico-metafísicas,
comparando as evoluções parciais de cada
sociedade: - criou o tipo moral cientifica-
mente definido, estabeleceu as leis normais
da existência superior da Humanidade. A
fundação da lógica moral sobre elemen-
tos que têm por característicos a completa
unidade do conjunto e a perfeita harmonia
na sucessão, só perde lugar depois que o
espírito sintético abrangera o conjunto de
todos os conhecimentos positivos, base ob-
jetiva necessária para a ascensão filosófica
de mais aquele grau, o último, superior em
dignidade e complexidade a todos os outros
da hierarquia científica. (BRITO: 1943: 141)

Embora o impacto do sistema positivista não


tenha tido grande repercussão na Europa, na
América Latina ele será mais frutífero, talvez pela
sedução de seu universalismo que prometia a
inserção de todas as nações na marcha das civi-
16º SHCU lizações, o que para países periféricos significava
30 anos . Atualização Crítica
um instrumental teórico ideal para adequar suas
768 histórias nacionais àquele caminho evolutivo.
No Brasil, segundo Ângela Alonso (1996), a pe- e os oficiais da Escola Militar, alunos de Benjamin
netração ideológica do positivismo aparece de Constant, chegam a ser taxados de “sofistas” pe-
maneira ainda difusa já em 1850 nas teses cienti- los integrantes da Sociedade Positivista. iii) Uma
ficas defendidas na Escola Militar e, em seguida, terceira vertente do positivismo brasileiro surge
na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, depois na Escola de Recife, com Clóvis Beviláqua e Sílvio
nas Faculdades de Medicina da Bahia e Rio de Romero, que pouco mais tarde irão enxergar o
Janeiro. O primeiro nome a ganhar repercussão darwinismo social de Hebert Spencer como um
pela associação ao positivismo é o do professor possível substituto do positivismo. Sílvio Rome-
da Escola Militar, Benjamin Constant, que desde ro, apesar da adesão, critica depois a influência
1857 inicia os estudos sobre matemática e depois positivista nos primeiros governos da República,
passa às leituras do Curso de Filosofia Positiva. assim como sua infiltração no Exército. Para ele, o
Nos anos 1860, um grupo de filhos de fazendeiros positivismo como prática social havia se transfor-
que estudava medicina em Bruxelas é iniciado no mado num dogma monolítico e inflexível chegando
positivismo trazendo ao Brasil uma vertente mais a assumir um caráter ditatorial e antiliberal. Na
social. Desse grupo, Francisco Antônio Brandão obra “Doutrina contra Doutrina” procura defender
Jr publica o livro “A Escravidão no Brasil”, em 1865, a sua substituição pelo spencerianismo.
em que aplica o sistema positivista para explicar
essa questão. Todavia, quem terá mais projeção Embora de maneira um pouco difusa é possível
política-intelectual dos estudantes de Bruxelas identificar um conjunto de concepções a respeito
é Luìs Pereira Barreto, que tinha a ambição de da história, da sociedade e do Estado brasileiro
adaptar a obra de Comte ao contexto brasileiro e numa espécie de pensameto político e social do
transformá-la numa arma política “civilizatória”. positivismo brasileiro. Nessa questão, Gustavo
Pereira Barreto chega à posição de deputado da B. de Lacerda (2017) aborda, particularmente,
Assembleia Constituinte da República em 1891, o pensamento do grupo ortodoxo pela figura de
e publica textos como “As Três Filosofias” e “So- Teixeira Mendes, que chega a escrever sobre inú-
luções Positivistas da Política Brasileira”, passa meras questões daquele ponto de vista. A utopia
a expor na imprensa paulista através do jornal ideal dos positivistas, ainda da perspectiva de
A província de S. Paulo as soluções positivistas Comte, é a construção de uma nova sociedade
para os problemas nacionais. baseada em atividades pacíficas e industriais
de exploração do mundo com a aplicação de co-
Os positivistas brasileiros, porém, ao final do nhecimentos técnico-científicos. Esta sociedade
século dezenove acabam se dividindo em três positiva, entretanto, não deveria ser alcançada
correntes: i) uma mais ortodoxa, capitaneada através de guerras, escravizações e imperialismo,
por Miguel Lemos e Teixeira Mendes na Socieda- ao contrário, seriam comunidades de 50 mil habi-
de Positivista do Rio de Janeiro, que defendia a tantes que se educariam em processos lógicos de
abstenção da política partidária e do jornalismo, assimilação positiva, ou pela Religião da Humani-
assim como a abdicação da posse de escravos dade. A moral comunitária seria fundamentada na
e a adoção de uma vida privada asséptica. Essa valorização do altruísmo e condenação do egoís-
corrente era crítica ii) a segunda mais heterodoxo, mo, sem perder de vista a autonomia individual.
composta por figuras como Benjamin Constant Estas comunidades, posteriormente, se uniriam
e Pereira Barreto que, embora pensassem como sob um governo não autoritário que respeitasse
positivistas, mantinham uma assídua participação a propriedade privada, mas que conduzisse os
política e jornalística, publicando em certas oca- patrões a serem sensíveis a vida dos trabalha-
siões, inclusive, anúncios sobre escravos foragi- dores, gerando cidadãos ativos que não fossem
dos, como apontara Paulo E. Arantes (1988). Aos nem servis, nem revoltosos.
ortodoxos, a escravidão moderna, ao contrário da
antiga, não correspondia ao estágio da civilização A construção dessa sociedade tinha uma filo-
em que se encontravam os positivistas, sendo sofia da história de longa duração possível de
uma “anomalia monstruosa” indefensável. Os he- ser identificada desde a decadência da ordem
terodoxos, porém, acompanhavam a conjuntura católica feudal com a ascensão de uma sociedade
das discussões e projetos abolicionistas. O mo- pré-industrial. A península Ibérica se encontraria
vimento paulista, sob a órbita de Pereira Barreto, numa condição histórica favorável nesse pro-
EIXO TEMÁTICO 1 cesso evolutivo em virtude do seu regalismo, ou
seja, desde o século XV o papa havia conferido
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO aos reis ibéricos o controle da religião cristã em
seus territórios metropolitanos e coloniais pela
incapacidade da Igreja administrar a posse e a
doutrina nos impérios ultramarinos. Para Com-
te, esse poder material dos reis portugueses e
espanhóis fez com que na América ibérica as po-
pulações estivessem muito mais afeitas ao poder
temporal do que ao poder espiritual, fazendo do
catolicismo nesses lugares uma prática muito
mais formal do que essencial. Diante da teoria do
três estados, portanto, a América ibérica estaria
mais preparada à penetração da moral positiva. 15

Com essas concepções, Teixeira Mendes realiza


algumas interpretações do Brasil. Para ele, a po-
pulação brasileira seria composta por três tipos
- europeus, africanos e autóctones. O português,
ainda mais pela sua origem ibérica, seria o grupo
social em melhor condição intelectual para a rea-
lização da transição revolucionária em direção a
moral positiva, já os africanos e indígenas seriam
povos feitichistas, ou seja, ainda estariam na pri-
meira etapa do estado teológico. Vale ressaltar,
todavia, que os positivistas não utilizavam o con-
ceito de raça como um fator biológico, pois para
eles não existiriam diferenças biológicas entre os
seres humanos, o que fazia da racialização uma
narrativa anticientífica, ou ainda segundo a sua
filosofia da história, um argumento metafísico. Em
termos biológicos, Comte acreditava na unidade
do ser humano. Porém, embora as diferenças
não estivessem dadas pela raça, elas poderiam
aparecer em termos sociológicos, uma vez que
alguns grupos teriam se adaptado melhor aos
seus ambientes, estando por isso numa etapa
evolutiva superior. Essas investigações deveriam
acontecer no campo da história e da sociologia e
não mais em termos biológicos.

Nesse sentido, ainda que os positivistas brasi-


leiros condenassem a escravização de índios e
africanos, ou até um industrialismo criminoso
em relação aos operários, eles não conseguem
romper com o eurocentrismo liberal ao conside-
rar esses povos como grupos subalternos cuja

15. LACERDA, G. B. de. A “teoria de Brasil” dos positivistas


16º SHCU
ortodoxos brasileiros: composição étinica e independência
30 anos . Atualização Crítica
nacional. Política & Sociedade: Florianópolis, vol. 16, nº 35,
770 jan/abr de 2017.
contribuição positiva na história da América ibé- REFERÊNCIAS
rica teria sido a afetividade dada pelos índios e
africanos aos portugueses. A estratégia política ANDRADE, C. R. M. de. “Putrid Miasmata”: hi-
mais imediata dos positivistas brasileiros naquele gienismo e engenharia sanitária no século XIX.
campo étnico seria acabar com a divisão entre Cadernos de Arquitetura: FAAC/Bauro. Ano 1,
senhores e escravos que era um problema mais n.2, jul-dez.1996.
latente visto que a população indígena escapara
da devastação ao adotar uma vida errante pelo ARANTES, P. E. O Positivismo no Brasil. Novos
interior do país em tribos desmoralizadas pelos Estudos CEBRAP. Nº21, 1988.
contatos ocidentais. Assim, os positivistas bra-
sileiros irão engajar-se no movimento abolicio- BRITO, F. S R. de. Publicações Preliminares.
nista na década de 1880, sem deixar de defender Obras Completas de Saturnino de Brito. Vol.1.
a incorporação dos índios a sociedade nacional, Imprensa Nacional: Rio de Janeiro, 1943.
sem erradica-los fisicamento ou degradá-los
FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. Ed.
moral e culturalmente, uma integração digna com
Forense: Rio de Janeiro, 1977.
autonomia as tribos indígenas.
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica. Mar-
Num exame da história política brasileira, José Bo-
tins Fontes: São Paulo, 2008.
nifácio, segundo os positivistas, já teria elaborado
essa solução para a unidade étnica brasileira sem, FORTES, L. R. S. O iluminismo e os reis filóso-
entretanto, tê-la conquistado durante a Monarquia fos. Brasiliense: São Paulo, 1981.
Constitucional. Para Bonifácio, a República não
poderia ser concebida sob a escravidão, sendo FRANCO, M. S. de C. As ideias estão no lugar. Cader-
necessária uma emancipação gradativa reali- nos de Dabate, nº.1, 1976.; Trans/Form/Ação, Marília,
zada ao longo do regime monárquico como uma v. 34, p. 1-218, 2011.
espécie de preparação republicana, tal como a
incorporação indígena sob viés científico ao invés GIANNOTTI, J. A. Comte (1798-1857). Vida e Obra.
da catequese teológica. Ou seja, a monarquia p.11 Os Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural,
constitucional seria o laboratório republicano, 1978.
uma vez que algumas repúblicas, como a dos EUA,
Hobsbawm, E. Como mudar o mundo: Marx e o mar-
haviam nascido imperfeitas por não terem abolido
xismo. 1840-2011. Cia, das Letras: São Paulo, 2011.
a escravidão, ou como as da América hispâni-
ca, ainda presas numa religião de estado. José LACERDA, G. B. de. A “teoria de Brasil” dos positi-
Bonifácio, na linhagem política dos positivistas, vistas ortodoxos brasileiros: composição étinica
também teria sido decisivo pela realização da e independência nacional. Política & Sociedade:
independência brasileira diante do retorno do rei Florianópolis, vol. 16, nº 35, jan/abr de 2017.
a Portugal, frustrando a união política dos portu-
gueses de ambos os hemisférios. Este retorno LINS, I. História do positivismo no Brasil. Cia ed,
sem a independência significaria a restauração Nacional: São Paulo, 1964.
de uma condição de servidão já denunciada pela
Inconfidência Mineira e pela Revolução Pernam- LOWY, Michael. As aventuras de Karl Marx contra
bucana. Para os positivistas, Bonifácio além de o Barão de Munchhausen: marxismo e positivismo
tornar o Brasil independente logrou em manter na sociologia do conhecimento. 7º ed. Cortez: São
a união das províncias, somada a pretensão de Paulo, 2000.
união das três raças, a monarquia constitucional
RUSSELL, Bertrand. História da filosofia ocidental.
foi a solução encontrada por Bonifácio para que
Cia. Ed, Nacional: São Paulo, 1957
com o príncipe regente fosse garantida a unidade
política da nação homogênea. (Lacerda, 2017)

Assim, ao longo da trajetória de Saturnino de Brito


é possível vê-lo repetir inúmeras das “Teorias de
Brasil” dos positivistas.
EIXO TEMÁTICO 1 RESUMO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Este trabalho abordará as epidemias que aco-
meteram o território hoje denominado Região
vídeo-pôster Metropolitana do Rio de Janeiro, entendendo,
em um primeiro momento, como estas guiavam
a urbanização da então capital Rio de Janeiro.
REGIÃO METROPOLITANA DO Em seguida, será abordado como as epidemias
se deram no contexto da Baixada Fluminense,
RIO DE JANEIRO: A CRISE DE parte importante da região metropolitana, con-
trapondo as lógicas de desenvolvimento eco-
SANEAMENTO NA BAIXADA nômico à degradação ambiental, na virada do
século XIX para o XX. Analisaremos também, os
FLUMINENSE E SEUS resultados destas intervenções e a atual situa-
ção sanitária da Baixada, relacionando-a com o
REFLEXOS NA DISSEMINAÇÃO surgimento das epidemias no século XXI e, en-

DE EPIDEMIAS fim, a pandemia da covid-19.

EPIDEMIAS BAIXADA FLUMINENSE


METROPOLITAN REGION OF RIO DE JANEIRO: THE
SANITATION CRISIS IN THE BAIXADA FLUMINENSE AND REGIÃO METROPOLITANA DO RIO DE JANEIRO
YOUR REFLECTIONS ON THE SPREAD OF EPIDEMICS

REGIÓN METROPOLITANA DE RÍO DE JANEIRO: LA


CRISIS DE SANEAMIENTO EN LA BAIXADA FLUMINENSE
Y SUS REFLEXIONES EN LA LAS EPIDEMIAS

SANTOS, Eric
Graduando, LeU/PROURB – FAU/UFRJ
ericcardosantos@outlook.com

MACIEL, Mariana
Graduanda, LeU/PROURB – FAU/UFRJ
marianaestma@gmail.com

FERRARI, Laís
Graduanda, LeU/PROURB – FAU/UFRJ
lais.s.ferrari@hotmail.com

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

772
ABSTRACT RESUMEN

This work will address the epidemics that affec- Este trabajo abordará las epidemias que afec-
ted the territory known today as Metropolitan taron el territorio conocido hoy como la Región
Region of Rio de Janeiro, understanding, at first, Metropolitana de Río de Janeiro, entendiendo,
how these guided the urbanization of the then al principio, cómo guiaron la urbanización de la
capital Rio de Janeiro. Then, it will be addressed entonces capital de Río de Janeiro. Luego, se
how the epidemics took place in the context of abordará cómo ocurrieron las epidemias en el
Baixada Fluminense, an important part of metro- contexto de la Baixada Fluminense, una parte
politan region, opposing their logics of economic importante de la región metropolitana, compa-
development to environment degradation at the rando las lógicas de desarrollo económico con la
turn of the19th to the 20th century. We will also degradación ambiental a fines de siglo XIX y XX.
analyse the results of these interventions and the También analizaremos los resultados de estas
current health situation of Baixada, relating it to intervenciones y la situación actual sanitaria en
the emergence of epidemics in the 21st century la Baixada, relacionándola con el surgimiento de
and finally the pandemic of covid-19. epidemias en el siglo XX y finalmente con la pan-
demia de covid-19.

EPIDEMICS BAIXADA FLUMINENSE RIO DE JANEIRO


EPIDEMIAS BAIXADA FLUMINENSE RIO DE JANEIRO
EIXO TEMÁTICO 1 INTRODUÇÃO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Este trabalho analisa as epidemias que acome-
teram a Região Metropolitana do Rio de Janeiro 1
e atingiram em especial a região da Baixada Flu-
vídeo-pôster
minense, evidenciando como as grandes crises
sanitárias estão, intrinsecamente, relacionadas

REGIÃO METROPOLITANA DO à sua história. É importante salientar que o termo


Baixada Fluminense origina-se do vocabulário ge-
RIO DE JANEIRO: A CRISE DE ográfico referente às áreas planas entre a Serra do
Mar e o litoral e, este, mesmo sendo amplamente
SANEAMENTO NA BAIXADA utilizado, não é reconhecido oficialmente como
uma região administrativa estadual2.
FLUMINENSE E SEUS É grande a lista de doenças que atingiram a
REFLEXOS NA DISSEMINAÇÃO região, sendo necessário, entender a diferença
de endemias, epidemias e pandemias para uma
DE EPIDEMIAS melhor compreensão desses termos. As duas
primeiras expressões já figuravam no Dicionário
de Medicina Popular do século XIX, onde endemia
METROPOLITAN REGION OF RIO DE JANEIRO: THE é definida como “qualquer molestia que grassa
SANITATION CRISIS IN THE BAIXADA FLUMINENSE AND em uma localidade quasi em permanência e que
YOUR REFLECTIONS ON THE SPREAD OF EPIDEMICS pode recrudescer”, enquanto epidemia é definida
por “molestia que ataca ao mesmo tempo e no
REGIÓN METROPOLITANA DE RÍO DE JANEIRO: LA mesmo logar um grande número de pessoas de
CRISIS DE SANEAMIENTO EN LA BAIXADA FLUMINENSE uma vez e que depende de uma causa commum”
Y SUS REFLEXIONES EN LA LAS EPIDEMIAS (CHERNOVIZ, 1890, p. 957;989). Por sua vez, uma
epidemia é classificada como pandemia quando
toma grandes proporções, ou seja, atravessa con-
tinentes, se tornando uma preocupação mundial.

Segundo Pereira (2020) 3, a palavra “pandemia” pas-


sou a circular no Brasil de forma pontual ao final
do século XIX, na imprensa especializada e não
especializada, utilizada, sobretudo, referindo-se
a influenza, grippe, tuberculose ou para falar, re-
trospectivamente, dos surtos de cólera no período
de 1850-60. A historiadora sublinha que, por volta
de 1900, as pandemias já haviam se tornado uma
questão social e econômica no Brasil. O Diário
de Pernambuco, por exemplo, já criticava, em
agosto de 1900, os limites da filantropia e a falta

1. Região criada pela fusão dos estados do Rio de Janeiro e


da Guanabara, instituída pela lei nº 20, de 1974.

2. Para o IBGE (2009), o Estado do Rio de Janeiro é composto


por: Centro-Sul Fluminense, Noroeste Fluminense, Sul Flu-
minense, Norte Fluminense, Médio Paraíba, Metropolitana,
16º SHCU Serrana, Costa-Verde e Baixadas Litorâneas.
30 anos . Atualização Crítica
3. Margareth da Silva Pereira, Roda de Leituras da disciplina
774 de HTU, PROURB/UFRJ –abril de 2020.
de políticas para os “filhos do proletariado que estagnadas nos pântanos e das sepulturas nas
morrem na miséria sem creches e se amontoam igrejas e cemitérios da Santa Casa – onde os cor-
nas enfermarias de adultos.”4 pos amontoados permaneciam quase descober-
tos –, foi apontada como principal responsável
pelas doenças. Os portos foram outro fator pro-
blemático, uma vez que a conservação de carnes
HISTÓRICO DE EPIDEMIAS NA REGIÃO e peixes era realizada com precariedade em suas
METROPOLITANA DO RIO DE JANEIRO proximidades, além de concentrarem tripulações
muitas vezes acometidas por enfermidades.
Há registros de surtos epidêmicos no Rio de Ja-
Como medidas essenciais, estava a criação de
neiro desde o século XVIII. Desde o início da co-
locais para a quarentena de escravos recém-che-
lonização, o contato entre europeus, a população
gados com algum tipo de moléstia ou suspeita e
indígena e aquela de origem africana escravizada a necessidade de serem realizados obras públi-
fez-se acompanhar de várias e diferentes epi- cas como o aterro de pântanos, a demolição de
demias nas povoações e aldeamentos, matando morros – à exemplo o Morro do Castelo, que era
grande parte da população nativa. Ao longo dos apontado como uma barreira para os ventos, e
anos, as características físicas e sociais deste demolido cem anos mais tarde –, encanamento
território passam por diversas ondas de cres- de águas, alargamento de ruas e o afastamento
cimento, sobretudo, com o ciclo do ouro, dando dos matadouros do centro da cidade. Ademais,
forma a área da atual região metropolitana. propunha a proibição de enterros feitos em igrejas
e a criação de cemitérios afastados da cidade,
Estudando o fim das visões de paraíso associa-
como o Cemitério da Misericórdia (PEREIRA, 1988;
das ao Brasil, particularmente no caso do Rio de MARCÍLIO, 1993).
Janeiro, Pereira (1988) cita o inquérito médico de
1798, realizado pela Câmara, que visou estabelecer Em 1809 é criado de maneira provisória um la-
as causas da insalubridade no porto e na cidade, zareto na Ilha do Bom Jesus dos Frades, visto
elencando fatores morfológicos, tanto devidos como fundamental para a manutenção da saúde
à forma física da cidade – como a orientação de pública. Por outro lado, em 1810, se construiu o
suas ruas e casas – quanto ligados às práticas e Lazareto da Gamboa, no morro da Saúde. Este
modo de vida dos habitantes. lazareto chegou a ter capacidade para alojar de
uma só vez mil escravos (MATTOS et al, 2013) e
Com a vinda da corte portuguesa em 1808, os es- foi construído, pelos próprios comerciantes de
forços para o combate às recorrentes doenças na escravo, sob alegação de que o da Ilha do Bom
cidade e seu entorno tornaram-se maiores graça Jesus era longe e prejudicial aos seus negócios.
às iniciativas do Físico-Mor Manoel Vieira da Sil-
va, responsável pela saúde da Corte e Estado do Com a independência, o governo imperial extin-
Brasil à época. As análises reunidas no relatório guiria a figura de Físico-Mor em 1828, ficando a
“Reflexões sobre alguns dos meios propostos por saúde pública à cargo das câmaras municipais.
mais conducentes para melhorar o clima da cidade Nesse mesmo ano, a primeira febre epidêmica
do Rio de Janeiro” (1808), retomam certos temas assolaria o Rio de Janeiro: a febre ou peste do
do inquérito de 1798, destacando, novamente, Macacu, em referência a localidade onde se ini-
que endemias e epidemias não se davam apenas ciou – Cachoeiras de Macacu6 – e de onde logo se
por causas naturais, mas, sobretudo, por hábitos espalhou, até a Corte. É fundada no ano seguinte
dos moradores. a Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Ja-
neiro, em uma tentativa de normatizar e defender
A contaminação do ar5, consequência das águas a prática científica da medicina, mais tarde vin-
do a se tornar a Academia Imperial de Medicina,

4. idem, ibid.
gases tóxicos.
5. A noção de saúde pública neste período estava pautada
pela teoria miasmática na qual a origem das doenças 6. Parte da, até então, Vila de Santo Antônio de Sá – atu-
provinha da putrefação de substâncias que produziam almente município que compõe a Região Metropolitana.
EIXO TEMÁTICO 1 institucionalizando também a medicina social e
preventiva no Brasil.
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Apesar das alterações institucionais referentes
à responsabilização pela saúde da população e à
organização do corpo médico, os surtos epidê-
micos continuavam constantes. A varíola (1834)
e a broncopneumonia (1838), por exemplo, se
alastraram por toda a Região Metropolitana do
Rio de Janeiro (MARCÍLIO, 1993). Paralelamente,
inúmeras doenças em caráter endêmico atingiam
a população, dentre elas: tuberculose pulmonar,
diarreias, disenterias, hepatites e parasitas intes-
tinais. Entretanto, as patologias mais comuns e
letais do século XIX eram as chamadas “febres”,
termo “guarda-chuva” utilizado nesse período para
referir à uma enorme variedade de moléstias.

Desde 1831 a Sociedade de Medicina defendia


que atividades deveriam ser afastadas da cidade,
como as fábricas, os curtumes, os cemitérios,
regulando os lugares de lançamento de dejetos
e de abate do gado e buscando construir além de
lazaretos e hospitais, mercados para a comercia-
lização de diferentes gêneros (PEREIRA, 1988).

Entretanto, o panorama das políticas de saúde


pública na capital só seria efetivamente alterado,
a partir de 1849, com a chegada da mais devas-
tadora epidemia a assolar o Rio de Janeiro no
século XIX: a febre amarela. Afetando principal-
mente estrangeiros europeus e não aclimatados,
que compunham parte de uma categoria mais
abastada da cidade, teve mortalidade em 1850
de 4.160 pessoas, caracterizando 37% da causa
mortis neste ano (ibidem; KODAMA et al., 2012).

As trágicas condições de higiene, os inúmeros


pântanos da cidade e o lixo acumulado por toda
a parte permitiram a multiplicação do mosquito
transmissor, vetor ainda desconhecido nesse
momento, e consequentemente a propagação
da febre amarela. Na verdade, a causa mortis até
então era associada principalmente aos miasmas
– isto é, aos vapores que emanavam dos pântanos,
da putrefação de corpos de animais e dos mortos
ou das fábricas.

A província do Rio de Janeiro tinha, então, suas


belezas naturais contrastadas por um terrível
16º SHCU quadro sanitário. A historiadora Maria Luiza Mar-
30 anos . Atualização Crítica
cílio, aprofundando o tema em relação à saúde,
776 sublinhou a dificuldade de se habitar a província,
salientando que somente no período de 1851-60 piorado com a chegada de uma segunda grande
ocorreram quarenta epidemias e outras dezoito epidemia do século XIX, a epidemia da cólera.
aconteceram na década seguinte. “A população
moradora no Rio de Janeiro aprendeu a conviver Estou certo de que se a cólera aqui apare-
diariamente com a morte, a morte crônica e a cer, ficará deserta esta vila (Barra Mansa),
epidêmica” (MARCÍLIO, 1993, p. 54). como já estão dizendo muitas famílias, que
hão de fugir para Minas, julgando talvez que
As epidemias da década de 1850 levam o governo em Minas ela não irá; eu cá por mim não
imperial a assumir o controle da saúde pública e, tenho medo, conquanto a cólera seja de
em conjunto com a Academia Imperial de Medi- temer! É verdade que só o nome faz arre-
cina, institui a Junta Central de Higiene Pública, piar os cabelos; mas... há de ser o que Deus
mantida até 1886. Paralelamente, é instituída quiser. (A Marmota Fluminense, 21 ago. 1855,
também uma Comissão de Engenheiros, extinta p.2 apud KODAMA et al., 2012)
em 1859, mas que dará origem ao Ministério de
Agricultura, Comércio e Obras Públicas e que O comentário anônimo de 1855 mostra como a
também enfrentaria a questão sanitária asso- doença, conhecida por sua devastação mundo
ciando-a claramente às obras públicas e à ótica afora, já era temida no Rio de Janeiro. Surge,
do desenvolvimento econômico. então, o primeiro caso de cólera-morbus, que
rapidamente se alastra pela província – terceira
Pereira (1988, p. 154) resume os relatórios do a ser afetada no território brasileiro.
Presidente da Junta de Higiene, Francisco Paula
Cândido, e o rol de medidas discutidas à época: Kodama et al. (2012), dedicando-se à questão sa-
nitária no século XIX, destaca que a historiografia
Em 1851 (...) sugere a construção de laza- da saúde explorou exemplarmente a incidência de
retos dentro e fora do porto do Rio, além febre amarela, mas o caso da cólera, em compa-
da implantação de: sistema de esgotos; ração, foi pouco explorado. A epidemia espalhou
sistema de escoamento das águas servidas o terror na cidade do Rio de Janeiro, chegando
ao longo da costa; serviço de inumação de ao território em julho e atingindo em novembro
animais; construção de cais ao longo da uma mortalidade de 2.300 pessoas.
costa; irrigação das ruas para diminuir ao
mesmo tempo o calor e a poeira; melhoria Segundo os relatórios do médico José Pereira do
do abastecimento de água; cobertura de Rego7 do ano de 1872, a cólera foi mais violenta nos
diversas canalizações; e uma intensa po- bairros “periféricos”, afetando principalmente as
lítica de plantações de árvores em todas as categorias mais pobres, dizimando operários que
ruas, praças e no cais. trabalhavam nas estradas de ferro, escravos, ido-
sos e mendigos, que praticamente desaparecem
Os médicos propuseram, ainda, que as paróquias
das ruas da cidade (MARCÍLIO, 1993). Na vila de
e distritos que dividiam a cidade passassem a ter
Barra Mansa, a mortalidade foi de 328 indivíduos,
comissões de saúde pública próprias e, também,
entre os quais 54 pessoas livres, e 266 escraviza-
criassem serviços de assistência médica gratuita
dos (BARBOSA, 1856 apud KODAMA et al., 2012).
aos pobres e assistência sanitária à navios, mer-
cados, prisões, colégios, igrejas, etc (MARCÍLIO, As habitações em lugares baixos, mal arejados,
1993, p. 55). Além disso foram criados hospitais, pouco espaçosos e com alto número de residen-
proibidos enterros e igrejas, criados cemitérios tes, além da alimentação de má qualidade e de
públicos e a quarentena adotada para impedir a
trabalhos rudes estão entre as causas apontadas
disseminação de doenças.
na infecção. Essa lista condizia com a condição
Entretanto, a própria pesquisa científica em ma- de vida da população escravizada e da maioria
téria de microbiologia apenas engatinhava e os dos habitantes pobres.
problemas sanitários eram agravados pelo acele-
Quando estudada em sua relação com a
rado crescimento demográfico que a Corte do Rio
de Janeiro vivia. O número de mortes causadas
pela doença continuou crescendo e tal quadro é 7. Membro da Junta de Higiene Pública do Rio de Janeiro.
EIXO TEMÁTICO 1 sociedade, a epidemia nos possibilita apre-
ender aspectos ainda pouco explorados das
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO relações escravistas e da presença africana
na cidade do Rio de Janeiro logo após o
encerramento do tráfico transatlântico.
(...) chamamos atenção para o fato de que
a distribuição da mortalidade pode e deve
ser analisada à luz não só de fatores bioló-
gicos, mas também das condições históri-
co-sociais vigentes no tempo vivido pelos
que padeceram a epidemia. (KODAMA et
al, 2012, p. 65)

Pereira (1988) alerta que estudos de demografia


histórica8 demonstram as dificuldades e lacunas
dos recenseamentos da população durante essa
década, o que impediria medir com precisão o
impacto da epidemia.

De todo modo, na década de 1860, o estado sani-


tário da cidade ainda era preocupante, sobretudo
as condições de higiene sanitária, abastecimento
de água, moradias e de saúde pública. Apesar da
mortalidade superior à natalidade, a população da
capital do Império continuava tendo um grande
crescimento com a imigração de habitantes de
outras províncias do país e do exterior. Neste
contexto, em 1884, foi inaugurado o Lazareto de
São Sebastião (Figura 1), na Ilha Grande, o maior
Lazareto do Rio de Janeiro (SANTOS, 2007), con-
siderado mais seguro uma vez que mais distante
da cidade.

Figura 1: Lazareto de São Sebastião, Ilha Grande. 1909.


Fonte: SANTOS (2007, p. 1180)

O crescimento natural da população tornou-se


positivo apenas a partir do início do século XX,
16º SHCU
com as medidas de saneamento realizadas por
30 anos . Atualização Crítica

778 8. Cf. Senra. Nelson. História das estatísticas brasileiras.


Oswaldo Cruz e com a Reforma Passos. Vale des-
tacar, contudo, que até os governos de Rodrigues
Alves (1902-1906) e Afonso Pena (1906-1909) as
medidas sanitárias9 restringiram os investimentos
à então capital federal. Essa situação seria rever-
tida apenas durante os governos de Nilo Peçanha
(1909-1910) e Hermes da Fonseca (1910-1914), o
que demonstra a desatenção das autoridades
federais em relação às demais regiões desse Rio
metropolitano que já se forma com os subúrbios
e com a Baixada.
Figura 2: Thomas Ender, Porto da Estrela em aquarela,
1817/1818. Fonte: EICACB

SANEAMENTO E EPIDEMIAS NA BAIXADA FLUMINENSE

Até o século XIX a Baixada Fluminense constituía


uma vasta planície entre a Serra do Mar e o litoral,
sendo cortada por inúmeros rios que conecta-
vam o porto do Rio de Janeiro à Minas Gerais e
São Paulo. As principais estradas ligavam-se aos
portos situados em rios navegáveis e sinuosos,
como os de Pilar, Piedade, Estrela e Iguaçu. Con-
tudo, não existiam nesse período percepções ou
representações negativas sobre a Baixada, pelo
contrário. Sua beleza natural era frequentemente
relatada por viajantes da época com suas matas
verdes, terras férteis, fauna e flora abundantes, Figura 3: Rugendas, Foz do Rio Inhomirim, 1822-25. Fonte: BN
alguns engenhos e belíssima relva.

Alguns viajantes como Thomas Ender e Johann


Moritz Rugendas retrataram a Baixada por meio A forte epidemia de febre intermitente que, como vi-
de pinturas (Figuras 2 e 3). Ender chegou ao Brasil mos, assolou Macacu, em 1828, se espalhando pelos
em 1817, fazendo parte da comitiva da prince- municípios vizinhos até a Corte, foi um alerta sobre os
sa Leopoldina. Já Rugendas veio ao Brasil para perigos para o porto do Rio e das regiões com as quais
participar da expedição do Barão de Langsdorff, comercializava no interior da Baía de Guanabara.
que percorreu o interior do Brasil com a tarefa de
registrar paisagens, usos e costumes dos povos No ano seguinte, a recém criada Sociedade Im-
do Novo Mundo, passando pela região em 1821. perial de Medicina instaura comissão10 enviada à
região a fim de coletar informações a respeito da
febre, sua natureza e meios de propagação, carac-
terizada como epidemia. O relatório reportou que
ela acometia principalmente os mais pobres, com
uma alimentação de baixo valor nutritivo – mui-
tas vezes, contaminada –, vivendo em moradias
inadequadas. Rosa Junior, transcreve trecho do
9. Com a ascensão da engenharia civil como campo do Diário Fluminense sobre o assunto:
saber, torna-se predominante um conceito de saneamento
que é claramente associado ao de engenharia sanitária,
entendidos como a necessidade de obras de engenharia 10. Formada pelos médicos Manoel da Silveira Rodrigues e
para solução das questões de saúde pública e de moder- Francisco José de Sá, pelo cirurgião Antônio Joaquim da
nização urbana. Costa e pelo boticário João Antônio Duarte.
EIXO TEMÁTICO 1 A febre investio primeiramente de preferen-
cia, e com fúria os libertos, e os mais pobres,
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO que preguiçosos, e aversos ao trabalho se
alimentão escassamente de pequena quan-
tidade de farinha de mandioca, arroz, feijão
com carne seca, ou peixe já corrupto, que
eles no meio da seca vão apanhar a mão, en-
terrando-se até os peitos no lodoçal do rio,
ou outras estagnadas, e morão em peque-
nas e mal construídas choupanas situadas
pela maior parte à beira dos rios, ou junto a
pântanos, nas quaes não há a comodidade
necessária para se resguardarem. (Diário
Fluminense, 06 de março de 1829, p.
213. apud. ROSA JUNIOR, 2019, p. 11)

Para médicos, engenheiros e políticos a única


maneira de extinguir as febres era através da rea-
lização de obras, acabando com pântanos e águas
estagnadas. O então presidente da província,
Joaquim José Rodrigues Torres, afirmava que:

somente o tempo, o aumento da popula-


ção, a abundância de capitais, poderão
dessecar os vastos [pântanos] existentes
na parte baixa da província; que somente
a agricultura, a habitação do homem e a
consequente navegação dos nossos rios,
poderão arredar das suas margens e dos
seus leitos os vegetais corrompidos acar-
retados de pântanos que atravessam, e que
decompostos nas águas, de que usam em
geral os habitantes desses lugares, são, na
opinião de pessoas entendidas, uma das
principais causas da insalubridade de tais
paragens (RPPRJ, 1840, p. 13 apud. PIMEN-
TA. et al., 2015. p. 154)

As febres remitentes ou palustres tornam-se


constantes, mas se agravam a partir de 1880,
sobretudo nas áreas de pântanos. Contudo, as
obras públicas de saneamento na região só seriam
implementadas na segunda década do século XX.

Os meios de transporte fluviais e terrestres passa-


ram a ser vistos como “obsoletos” e “insuficientes”
diante da inserção crescente do Brasil em um sis-
tema econômico internacional, no qual o café passa
a representar o principal item na pauta de exporta-
ções. A busca por uma logística mais eficaz para o es-
16º SHCU coamento da produção vinda do longo do Vale do Rio
30 anos . Atualização Crítica
Paraíba estimulará, assim, as primeiras tentativas
780 para estabelecer um sistema ferroviário brasileiro.
O eixo do desenvolvimento urbano da Baixada escoamento às águas, estrangulando-se
Fluminense é alterado de tal forma que suas po- antes vários pontos o curso dos rios, ou des-
voações, ligadas aos portos fluviais, são abando- viando do leito natural para formarem de um
nadas. Para unir as áreas cafeeiras e o porto do e de outro lado dessas linhas um depósito
Rio para o escoamento internacional do produtos, permanente de águas estagnadas. Seme-
a ferrovia atravessava outras áreas da Baixada, lhante imprevidência trouxe como conse-
trazendo uma nova realidade física, econômica, qüência o desenvolvimento das pirexias pa-
social e uma novas povoações. lustres (...). (apud FADEL, 2006, pp. 83 e 114)

A primeira ferrovia no Brasil, inaugurada em 1854, A instalação do sistema de abastecimento de


ligava o pequeno porto Mauá – estação Nossa água para a Corte foi também outro fator para
Senhora da Guia de Pacobaíba ao fundo da Baía de mudanças das condições de salubridade da Bai-
Guanabara - até a Raiz da Serra. Recebeu o nome xada Fluminense e de suas paisagens naturais.
de Imperial Companhia de Navegação a Vapor e Seu território torna-se cada vez mais um “lugar
Estrada de Ferro (EF) e, embora razões econômi- de passagem”, atravessado por ferrovias e por
cas sustentassem a iniciativa, a prioridade foi a canalizações que beneficiavam outros lugares,
comunicação entre a Corte e Petrópolis, onde a mas não necessariamente ele próprio. De fato,
família imperial e a elite passaram a se instalar, como os mananciais da Serra do Tinguá e do Rio
fugindo do verão e das epidemias. d’Ouro haviam sido apontados como ideais para a
captação de água para a Corte, fez-se necessária
Em 1858 foi inaugurada a EF Dom Pedro II. Seu pri-
a construção da EF Rio d’Ouro, concluída em 1880.
meiro trecho ligava a freguesia de Santana, na Cor-
te (hoje Praça da República), à Queimados. Nove Os inúmeros locais de água estagnada (Figura
anos mais tarde chegava à Paraíba do Sul, encon- 4) que surgem a partir destas novas estradas de
trando a Estrada União Indústria, tornando-se a ferro tornaram-se verdadeiros criadouros de
principal via de escoamento da produção cafeeira. mosquito, trazendo, além da febre amarela, a
epidemia de malária, considerada a pior doença
Até meados de 1850 a ideia de insalubridade da
da região. Em 1907, a Gazeta de Notícias publica-
região não estava plenamente associada aos rios e
va o relato de operários das obras de captação
alagadiços. Entretanto, as ferrovias implantadas,
de água, intitulado “Em Xerém, na captação das
ao cortarem diversos rios da Baixada – com ater-
águas, a febre palustre dizima”:
ros para consolidar o solo ou para evitar a cons-
trução de pontes –, tornaram-se barreiras para — a febre! A febre é que mata! A febre é que
o escoamento natural das águas. Dessa forma,
é uma desgraça!
o número de pântanos aumentou exponencial-
mente pois os rios passaram a extravasar seus — Estamos a ouvir uma turma de homens
leitos formando grandes brejos. Fábio Hostílio de macilentos a tremerem de frio, apesar do
Moraes Rego, engenheiro chefe da Comissão de calor ambiente e da pélle que os escaldava.
Saneamento de 1910, criticava:
— Mas o que há de fazer? Continua um de-
(...) O êxodo da população que em outros les. È preciso ganhar a vida, ter dinheiro,
tempos habitava esses logares foi motivado sustentar a família. OH! A palustre.
pela insalubridade da zona, o que se fez sen-
tir logo após a construção das estradas de Eramvítimasdacaptaçãodaságuasqueembre-
ferro, que resultou a estagnação de águas ve impedirão a cidade do Rio de Janeiro de cla-
ao longo das linhas juntos aos aterros (...). mar pela falta de água. (apud FADEL, 2006, p. 90)

(...) Os pequenos [rios] tributários e valas que Ao final da reportagem é retratado o contraste
a eles concorrem apresentam condições do local com a “ civilização”:
idênticas, formando com aquelas exten-
sas bacias pantanosas entre os aterros das A zona é inexplorada. Logo que começou
estradas de ferro, em cujas obras de arte a escurecer os pobres coitados foram ar-
nunca houve a preocupação de dar livre mando em frente de cada tenda grandes
EIXO TEMÁTICO 1 fogueiras para espantar os mosquitos, ver-
dadeiras nuvens de pernilongos – as avan-
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO çadas da febre. Nós estávamos nas faldas
dos Òrgãos, a pegar, entre os horrores da
morte, a água da civilização. (ibidem, p. 91)

Figura 4: Obras de drenagem no atual município de Mes-


quita. Fonte: Fundo Instituto Oswaldo Cruz

Piorando a situação, alternadamente, epidemias


de cólera e de varíola acometeram a região ao final
do século XIX e muitos habitantes se mudaram
das antigas povoações agravando o abandono e
“vazio demográfico”. (Soares: 1962 e Simões 2007).

A historiadora Marlúcia Souza (2013) ressalta, en-


tretanto, que não se pode considerar que o quadro
de degradação fosse permanente e tenha atingido
toda a Baixada Fluminense, visto os dados de
produção agrícola no período. Contudo, pode-se
identificar quais territórios foram impactados
pelas ferrovias e, consequentemente, atingidos
tanto por alagamentos quanto por epidemias (Fi-
gura 5).

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

782
Figura 5: Marcelino Ramos da Silva. Mapa dos rios destacando as Estradas de Ferro e as áreas alagadas na região da
Baixada Fluminense, 1896. Fonte: Biblioteca Nacional

A imagem de uma Baixada hostil, insalubre e im- te e acometida por frequentes surtos de
produtiva se consolidaria a partir de 1880, per- malária. (BRITTO et al., 2018, p. 58)
durando pelas próximas décadas. Nas palavras
de Britto: Para atuar, junto ao Instituto Oswaldo Cruz, no
combate à malária, os médicos Arthur Neiva e
No final do século XIX, a identidade da Bai- Carlos Chagas chegam à Xerém, em 1907. Esta
xada Fluminense havia mudado. Em meio presença celebrava uma aliança entre engenhei-
século ela havia passado de região próspera ros e médicos, chamados agora “sanitaristas”,
a área insalubre, deprimida economicamen- apontada e defendida durante mais de um sécu-
EIXO TEMÁTICO 1 lo, sucessivamente, pelo inquérito de 1798, pelo
Físico-Mor em 1808, pela Academia de Medicina
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO desde 1828, ou, ainda pela Junta de Higiene e
pela Comissão de Engenheiros em meados do
século XIX.

Em 1910, é dado início à uma sequência de in-


tervenções sanitárias, através das chamadas
“Comissões Federais de Saneamento da Baixada
Fluminense”. A Gripe Espanhola (influenza) que
chega ao Rio em 1918, mostraria a relevância do
movimento sanitarista, embora as autoridades
brasileiras a tenham tratado, de início, com des-
caso, tomando-a “ piada e histeria”.

No Rio, em apenas um mês o número de pacientes


chegava a 20 mil e ocorriam as primeiras mortes.
Segundo Hermann Schatzmayr e Maulori Cabral
(2012), o pânico tomou conta, mais uma vez, da
cidade. A maioria dos infectados vivia em con-
dições precárias e, diante do caos, os mortos
eram colocados nas ruas até serem recolhidos.
O avanço da doença levou à renúncia do então
Diretor Geral de Saúde Pública, Carlos Seidl, e o
novo diretor, Theóphilo Torres, convidou o pes-
quisador Carlos Chagas, que acabava de assumir
a direção do Instituto Oswaldo Cruz, para atuar
no controle da epidemia.

Ao todo, estima-se que até dezembro de 1918,


só no Estado do Rio de Janeiro, foram registra-
das mais de 14 mil mortes. Não são encontrados
muitos dados de como a gripe atingiu a Baixada
Fluminense, todavia, de acordo com relatos, quem
possuía recursos fugia da capital para chácaras e
fazendas na Baixada a fim de se isolar (Schatzmayr
e Cabral, 2012).

A epidemia reforçou a ideia da necessidade de


uma intervenção mais ampla dos poderes públicos
sobre as políticas de saúde, legitimando o movi-
mento sanitário, para o qual a epidemia era fruto
de descaso com a população. A gravidade da situ-
ação levaria, ainda que anos mais tarde, a uma das
primeiras iniciativas da Revolução de 1930: a cria-
ção do Ministério de Educação e Saúde Pública,
cujo alcance social acaba sendo minorado por ar-
quitetos e urbanistas contemporâneos que veem
nele apenas um ícone do Movimento Moderno.

16º SHCU As diferentes comissões de saneamento, muda-


30 anos . Atualização Crítica
ram completamente as visões quanto à insalu-
784 bridade da região. Desde os anos de 1930 até a
guerra, pode-se falar em um grande movimento entre as duas guerras, cruzando a inauguração
de urbanização, graças ao controle das condi- das estações ferroviárias de passageiros, a lenta
ções sanitárias, particularmente pelo combate instalação das primeiras unidades industriais de
às epidemias de malária e das febres endêmicas. pequeno e grande porte, os serviços de ônibus, a
abertura das primeiras rodovias e o crescimento
demográfico.

A SAÚDE PÚBLICA NA BAIXADA FLUMINENSE: Haveria, ainda, que se considerar a infraestrutura


NOVAS EPIDEMIAS e a qualidade de serviços oferecida a esta “peri-
feria metropolitana” (Simões, 2006), começando
pelos transportes mas também em relação à ilu-
Na verdade, o século XX representará para a
minação pública e particular, ao abastecimento
Baixada ainda outros movimentos de grandes
de água, limpeza e arborização de ruas, ao sa-
transformações na ocupação de seu território,
neamento básico11, além de equipamentos como
que ocorrem como consequência dos planos de
escolas e hospitais públicos. Isso permitiria uma
reforma para o Rio, começando com a de Pereira
melhor leitura da diversidade da Baixada Flumi-
Passos e com a ideia de zoneamento que passa a
nense, fazendo a distinção, década a década,
ser defendida, cada vez mais, pelos urbanistas.
tanto das áreas dormitorios quanto daquelas que
A descentralização das atividades industriais, acolhem e fixam a população no local, graças às
iniciada no Rio, com os cortumes e com as fá- atividades agrícolas e às indústrias.
bricas de sabão no século XIX, agora volta-se,
particularmente, para os subúrbios ferroviários, É certo que a percepção negativa foi agravada
chegando também na Baixada. Contudo, apesar pela forma em que se deu a prestação de serviços
da clara atração do contingente populacional mais públicos, como por exemplo, o saneamento básico,
pobre pela oferta de empregos no setor industrial, especificamente ao esgotamento sanitário.
de início o novo movimento de urbanização se dá Britto et al (2020) ressalta que grande parte dos
pelas mudanças no mercado imobiliário e também investimentos neste setor foram destinados às
pelas melhorias no transporte público. Parado- áreas centrais da Região Metropolitana do Rio de
xalmente, agora, a malha ferroviária começa a Janeiro, em detrimento da Baixada Fluminense,
promover a revalorização da terra, permitindo ocorrendo desigualdades no nível intramunicipal –
a expansão demográfica e habitacional na re- considerando diferentes áreas dos municípios da
gião e fazendo, ainda, com que novos e antigos Baixada Fluminense – e entre esses e o município
moradores acedessem às ofertas de emprego do Rio de Janeiro.
que estavam, em grande parte, concentradas
A partir de 1964, durante o governo militar, as
na capital.
ações de controle de endemias foram perdendo
Simões (2006) situa essa onda de urbanização sua importância e deixadas em plano secundário,
mais fortemente nos anos 1950, quando um ser- mesmo com o “milagre econômico”. É exemplo
viço regular de transporte de passageiros com a epidemia de Meningite (1970), minimizada
valor acessível, se associa ao baixo valor da terra mesmo com o aumento exponencial de casos
urbana e a certas iniciativas de política habita- que se alastrou pelo país até 1975. Não foi admitida
cional na região. A partir de então também se pelo governo a existência de problema sanitário.
acentua o parcelamento das antigas fazendas Reportagens e dados oficiais locais foram
e a multiplicação de loteamentos “irregulares” e censurados, circulando, inclusive, informações
clandestinos sem condições mínimas de habita- falsas sobre a doença, como mostrou a capa da
bilidade – como pavimentação, redes de água, de revista Veja, em 4 de outubro de 1972: “Meningite:
esgotamento e de drenagem.
11. As ações voltadas a saúde pública neste período estão
Contudo, ainda são desejáveis estudos mais de- intrinsecamente ligadas ao saneamento básico, visando pre-
talhados que avaliem à oferta dos loteamentos servar ou modificar as condições ambientais: esgotamento
na região e o processo de urbanização nas dé- sanitário, abastecimento de água, limpeza e drenagem
cadas anteriores, particularmente no período urbana, manejos de resíduos sólidos e de águas pluviais.
EIXO TEMÁTICO 1 a epidemia da desinformação”. Também foi secun-
darizando o combate à s endemias e a dissemina-
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO ção do Aedes aegypt – que já havia sido erradicado
em 1955 – e, objeto de um discurso negacionista,
voltaria a reinfestar o país em 1973, não sendo
mais alcançada a sua erradicação (SILVA, 2003).

Em abril de 1986, dezenas de moradores do bair-


ro da Prata, em Belford Roxo – à época distrito
de Nova Iguaçu –, denunciavam aos jornais uma
doença que vinha atacando a população desde
fevereiro e que teria sido associada inicialmente
a um vazamento de gases no complexo químico
da Bayer do Brasil, instalada na região em 1958.

O então secretário estadual de saúde, Cláudio


Amaral, confirmou mais de dois mil casos em Nova
Iguaçu da doença - mais tarde, diagnosticada
como dengue - que, rapidamente, se espalhou
por toda região metropolitana do Rio de Janeiro.
Em abril, já atingia também o Parque Proletário
da Penha – na zona norte do Rio, cuja associação
de moradores calculava que 80% das famílias já
havia sido infectada em uma população de 70 mil
pessoas. (CUNHA, 2002)

À época, a dengue era tratada como doença


rara, mas estudos apontavam que fatores como
saneamento básico precário, condições de
moradia inadequadas, aspectos educacionais-
culturais e medidas ineficazes de controle do
mosquito Aedes aegypti eram fatores que con-
tribuíam para a proliferação da doença (COSTA
et al., 1998; SABROZA et al., 1995; CUNHA, 2002).

Em maio, o médico sanitarista Mário Duffles, as-


sinava matéria no “O Globo”, intitulada “Ministro
proporá em Genebra combate ao Aedes aegypti”,
e sublinhava:

A dengue já virou epidemia. Em vez de es-


tarem discutindo, as autoridades sanitárias
deveriam estar atacando os focos do mos-
quito (...) Na verdade, o controle desses focos
pelo Estado é zero. Não adianta ficar falando,
tem é que fazer, ir ao local. Saúde pública se
faz é combatendo os vetores de casa em
casa, como na época de Oswaldo Cruz (...)
O que existe realmente é um problema de
Saúde Pública que tem que ser combatido
16º SHCU em todos os locais e de todas as formas pos-
30 anos . Atualização Crítica
síveis, além de se combater a falta de sane-
786 amento básico. (O Globo apud CUNHA, 2002)
Naquele mês quatorze estados já estavam in- associadas ao mosquito – a zika e a chikungunya –
fectados e o número de vítimas chegava aos 350 que trazem efeitos paralelos aos infectados, como
mil (CUNHA, 2002). O rápido avanço da epide- ataque às articulações ou risco de malformação
mia resultou em diversos protestos, sendo mais congênita de fetos, respectivamente nos casos
notável aquele em que a Via Dutra – que corta da chikungunya e da zika.
diversos municípios da Baixada, ligando Rio e
São Paulo – foi fechada nos dois sentidos (Figura Em 2019, o mosquito ainda é uma questão de saú-
6). Representantes de mais de 400 associações de pública. Em 08 de abril de 2019, por exemplo,
de moradores dos municípios da Baixada pro- o Jornal Extra noticiava: “Casos de chikungunya
testaram contra as más condições de saúde e aumentam 736% em Belford Roxo, na Baixada
de saneamento (SILVA, 2009). A funcionária do Fluminense”, indicando um crescimento dos ca-
Instituto Nacional de Assistência Médica da Pre- sos no município e nos seus vizinhos. Em Nova
vidência Social e secretária geral da Federação Iguaçu, Duque de Caxias e São João de Meriti,
das Associações de Bairros de Nova Iguaçu, Lúcia comparando-se os casos no mesmo período do
Souto, em entrevista ao Jornal do Brasil afirmava ano anterior, os dados mostravam, respectiva-
que o mosquito: mente, um crescimento de 77%, 101% e 450%. Na
verdade, o Aedes aegypti representa “passados
(...) veio provar que a situação ainda é caó- que não querem passar, uma vez que denuncia
tica. Fechar a estrada foi o recurso que en- o histórico de negligências sociais e ambientais
contramos para mostrar o nosso desespero. que o tornam ameaça permanente e, ao mesmo
Por ela trafega a maior parte da riqueza tempo, renovada” (LOPES; SILVA, 2009, p. 71).
entre as duas principais cidades do país,
num movimento absolutamente indiferente Em 2009, o mundo se depara com a que era, até
ao nosso drama, que dura décadas e em vez então, a única pandemia do século XXI: a gripe
de decrescer, como prometem os gover- H1N1, dada pela infecção do vírus influenza A. A
nos, aumentam ano a ano (Jornal do Brasil, identificação de um novo vírus pandêmico desen-
18/05/1986, p. 16 apud SILVA, 2009, p. 100) cadeou estado de Emergência de Saúde Pública
de Importância Internacional, decretado pela Or-
ganização Mundial da Saúde (OMS). A epidemia
chegou ao país em maio, tendo sido registrados os
primeiros casos no Rio de Janeiro. Segundo dados
do Ministério da Saúde, que instituiu o Gabinete
Permanente de Emergência em Saúde Pública
(GAPE) para as ações efetivas de combate à epi-
demia, atingiu seu pico em agosto, atingiu o pico
em agosto. Contudo, “a existência de um sistema
nacional de vigilância epidemiológica específico
para influenza estruturado, em níveis estadual e
municipal facilitou o monitoramento da pandemia
no Brasil”. Assim, houve grande mobilização, “com
produção de informação e difusão nos veícu-
Figura 6: “Manifestantes, carregando faixas, impedem a
los de comunicação, estruturação das redes de
passagem de veículos” Fonte: O Globo, 28/05/86 saúde e investimento nacional para produção da
vacina específica”, sendo uma resposta imediata
à emergência internacional (COSTA, 2016, p. 18).

Surtos de dengue ocorreram nos anos de 2002, O Brasil registrou 50.482 casos em 2009, com 2.060
2008 e 2012 e o Aedes aegypti – popularmente mortes por influenza A/H1N1, segundo o Ministério
“mosquito da dengue” – não só traz o fantasma da da Saúde. De acordo com Ligia Cantarino (2016),
febre amarela – cujos surtos ainda ocorrem em pesquisadora da Fiocruz, a grande dificuldade do
meio silvestre – como no verão de 2015. Nesse combate à gripe neste período foi em locais de
momento o Brasil conhece duas novas patologias moradias irregulares, onde serviços de sanea-
EIXO TEMÁTICO 1 mento básico não chegavam. Logo, os esforços se
deram mais enfaticamente nas áreas periféricas,
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO tanto nas favelas, quanto na Baixada Fluminense.

Alexander Precioso, então diretor da Divisão de


Ensaios Clínicos e Farmacovigilância do Instituto
Butantan, destaca que a vacinação é uma ação
emergencial para conter surtos, mas deve ser
coordenada com outras medidas preventivas.

Não é só ter a capacidade de produzir vacinas,


mas é ter todo um contexto de políticas de saúde
que vão abordar as diversas áreas que possam
contribuir para o controle de uma determinada
pandemia. É muito mais fácil você controlar uma
pandemia em uma sociedade onde questões de
saneamento e nutrição são adequados do que em
regiões precárias. (Agência Brasil, 2019)

Segundo o Ministério da Saúde, a falta de sane-


amento básico é a maior causa de doenças nos
municípios mais pobres. Dados da Agência Na-
cional de Águas mostram que mais da metade
do esgoto do estado do Rio de Janeiro é jogado
sem tratamento nos rios – sendo boa parte deles
na Baixada Fluminense, recordista em casos de
doenças devido às más condições sanitárias.
Sendo essa problemática ainda recorrente na
região, como analisa Rocha (2014), desde a virada
do século XX a Baixada vem recebendo projetos
e programas de saneamento que tentam, até os
dias atuais, solucionar as questões relacionadas
à saúde pública e sanitária, como Baixada Viva,
Nova Baixada, Programa de Despoluição da Baía
de Guanabara e o Projeto Iguaçu.

CONSIDERAÇÕES FINAIS E A PANDEMIA DA COVID-19

O estudo das questões relativas à história am-


biental e à saúde pública e, particularmente, ao
saneamento básico em um território como a Bai-
xada Fluminense desdobra múltiplas temporali-
dades. Ficam evidenciados padrões da relação
do poder público com este território que, como
pudemos ver, tem seu desenvolvimento urbano
intrinsecamente e em grande medida associado
a esta problemática.
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
Até meados do século XIX a região foi associada
788 a uma visão pitoresca e positiva por suas pai-
sagens e seus recursos naturais. Contudo, no Na Baixada Fluminense observamos, como um
final do século XIX observa-se uma quebra nesse espelho do histórico aqui apresentado, que a
pensamento e sua associação aos estigmas de pandemia de Covid-19 atingiu a população com
insalubridade que passam também a interferir no um maior índice de letalidade, se comparada aos
imaginário social sobre a região e de certa forma demais municípios do estado. Em Duque de Caxias
perduram até hoje. o índice de letalidade atingiu 14,3% ao final do
mês de maio, enquanto a média nacional era de
É importante entender que as visões negativas 6,5% segundo dados do IBGE. Além disso, dentre
resultaram de um pensamento urbanístico com os dez municípios com maior número de casos,
ações em macroescala, visando sobretudo be- cinco fazem parte da Baixada. A manifestação
neficiar a economia, sem se aprofundar nas par- profundamente mais agressiva do vírus se dá em
ticularidades de cada território. Primeiramente, grande parte, pelo fato de significativa parte da
a implantação das estradas de ferro, depois, a população continuar a viver em precárias condi-
implantação de redes de abastecimento de água
ções, com baixíssimo acesso à água potável e ao
e a de transmissão de energia elétrica que não
saneamento básico, com unidades médicas insu-
só conferiram à Baixada um caráter de “lugar de
ficientes e, ainda, dificuldade de promover o dis-
passagem” como agravaram as suas condições
tanciamento social – por trabalhar no setor infor-
ambientais.
mal ou pelas próprias limitações das habitações.
Mesmo se tornando um polo de desenvolvimento
Este estudo, se observado à luz das vulnerabili-
agrícola e acolhendo, no início do século XX, parte
dades sociais, retrata em suas similaridades pas-
da população carioca em seus sítios e fazendas
sados que ainda não foram superados. Epidemias
que fugia de diversas epidemias, acabou tendo sua
como a febre do Macacu (1828) e a Cólera (1855),
imagem associada à de uma periferia “dormitório”.
foram mais letais sobre a população escraviza-
Neste artigo, caracterizamos de maneira geral as da, uma vez que à estas se reservavam uma má
epidemias que assolaram a Região Metropolitana alimentação e habitações sem infraestrutura.
do Rio de Janeiro desde o final do século XIX até Epidemias como dengue (1896), zika e chikun-
os dias atuais. Esse trabalho permitiu articular o gunya (2015), são até hoje motivo de grande pre-
estudo histórico de epidemias a um entendimento ocupação, onde as habitações com estoque de
mais preciso dos locais precarizados, uma vez água irregular devido à falta de abastecimento, de
que o município do Rio acabou por concentrar, saneamento e drenagem urbana aliada à coleta
historicamente, os investimentos econômicos, de lixo insuficiente, tornam-se focos recorrentes
produtivos, logísticos e sociais e continua a apre- para a proliferação do mosquito transmissor. A
sentar uma integração ainda restrita com os mu- similaridade das questões históricas com as de
nicípios vizinhos, como os da Baixada Fluminense. hoje, mostra ser fundamental a adoção de po-
Demonstra-se, contudo, extremamente relevante líticas públicas de combate às desigualdades
a busca por uma transdisciplinaridade na tentativa sociais que busquem a universalização do acesso
de compreender as cidades e o urbanismo. ao saneamento básico e da saúde pública para as
populações mais vulneráveis.
No momento em que submetemos este trabalho,
o mundo enfrenta a inesperada pandemia da Co- Outro agravante que estamos vivenciando, da
vid-19. Sua disseminação se deu através de uma mesma forma como aconteceu nos anos da Gripe
“elite globalizada”, mas o que podemos perceber Espanhola (1918) e da Meningite (1971), é o nega-
até o momento é que seu índice de letalidade é cionismo por parte das autoridades políticas na-
maior nas populações com menos recursos e, por cionais em discursos contrários às medidas que
conseguinte, com menor acesso à condições de visam a contenção da contaminação e dificultam
higiene adequadas e a um sistema de saúde de o acesso à dados confiáveis, fomentando uma
qualidade e com estrutura para receber o grande retórica de desvalorização da vida da população.
contingente de infectados. Dessa forma, a epide-
mia atinge mais intensamente favelas, áreas mais Como aponta Sousa (2020), o descontrole na mul-
pobres das Zonas Norte e Oeste e, mais uma vez, tiplicação do vírus pode alimentar o estigma que
a Baixada Fluminense. já torna a população da Baixada Fluminense vítima
EIXO TEMÁTICO 1 de preconceito – especialmente aqueles mais po-
bres, negros e segregados territorialmente – uma
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO vez que, se culpabiliza as próprias vítimas desse
cenário “caótico” e desgovernado.

Nesse sentido, se a segregação sócio espacial de


amplas áreas urbanizadas na Baixada é um fato, os
estigmas que recaem hoje sobre a região não se
deram de forma inocente e puderam ser, muitas
vezes, subvertidos com a presença clara, contínua
e afirmativa de políticas públicas. Assim, temos
por hipótese que estes estigmas sofreram um
movimento de “gangorra” e que exigem enfrenta-
mento político por parte de atores sociais diversos
e, particularmente do poder público. De fato, a
percepção do território da Baixada foi positiva,
como no início do século XIX, depois foi negativa,
como a partir da década de 1880 até a virada do
século XX, mais tarde novamente positiva como
vimos a partir da gripe espanhola até os 1930-40
com a expansão da cultura da laranja, e após os
anos 1950, novamente negativa até as últimas
décadas.

Para compreender permanências e descontinui-


dades dos processos aos quais uma população
está exposta é preciso explorar transdisciplinar-
mente uma história que é tão científica quanto
política e social. A história que se pratica nestas
páginas é uma história movida pelo presente, isto
é, ela não é mera erudição nem é neutra. Ela visita
temas-fantasmas que pairam sem que os atores
sociais do passado e de hoje sejam plenamente
identificados e exige que não sejam esquecidos.
A história das epidemias na Região Metropolitana
do Rio de Janeiro, sobretudo na Baixada Flumi-
nense, é uma história do presente, na qual de-
safios e problemáticas vêm sendo perpetuados
e mais uma vez exigem avaliação crítica, ação e
responsabilização.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

790
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EIXO TEMÁTICO 1 RESUMO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
O texto se volta para o desvendamento do pro-
cesso de configuração da ordem espacial da
vídeo-pôster metrópole industrial paulistana em meados do
século XX. A metropolização é abordada como
um processo disseminado, de dimensão plural e
SÃO PAULO,1938-1968: diversa, que não atua em um só lugar e de uma
única forma. O recorte temporal abrange as três
A METROPOLIZAÇÃO décadas entre 1938 e 1968, pela sincronicidade
de mudanças na atuação tanto de agentes pú-
DISSEMINADA blicos como de matizes diversos de grupos or-
ganizados da sociedade civil e de instituições
religiosas. Nesse processo os bairros refor-
FELDMAN, Sarah çam seu papel como lugares de sociabilidade,
Professora Livre Docente Senior; Instituto de Arquitetura e de identidade de moradores e de articulação de
Urbanismo-USP; pesquisadora do CNPq forças políticas ao nível municipal. A não coin-
sarahfel@sc.usp.br
cidência entre distância social e distância espa-
cial e uma estrutura nucleada que se conforma
pelos circuitos do transporte coletivo trazem
novos elementos a serem desvendados no pro-
cesso de metropolização. Ao mesmo tempo em
que se consolidava uma ocupação periférica
concentradora de pobreza, São Paulo persistia
como uma cidade onde diferentes usos, padrões
e um amplo leque de padrões de moradias se
justapunham. E a redefinição de centralidades
identificada em diferentes níveis da metrópole
confere organicidade ao território metropoli-
tano visceralmente estruturado pelas radiais
que orientam a expansão da área urbana. Es-
tes achados colocam questões metodológicas e
conceituais que são problematizadas no texto.
O texto se propõe a trabalhar o cruzamento das
múltiplas dimensões de configuração do espa-
ço metropolitano - a partir da materialidade, das
instituições, dos agentes e das práticas sociais,
mobilizando formulações de Marcel Roncayollo,
Jacques Revel e Bernard LePetiit, entre outros
autores.

METROPOLIZAÇÃO CENTRALIDADES BAIRROS


POLÍTICAS PÚBLICAS PRÁTICAS SOCIAIS

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

792
ABSTRACT RESUMEN

The paper unveils the spatial order of the indus- El texto devela el proceso de configuración del
trial metropolis of São Paulo in the middle of the orden espacial de la metrópoli industrial de São
20th century. Metropolization is approached as a Paulo a mediados del siglo XX. La metropolizaci-
disseminated process, with a plural and diverse ón se aborda como un proceso difundido, con una
dimension, which does not act in one place and dimensión plural y diversa, que no actúa en un
in a single way.The time frame covers the three solo lugar y de una sola manera. El marco tempo-
decades between 1938 and 1968, due to the syn- ral abarca las tres décadas comprendidas entre
chronicity of changes in the performance of both 1938 y 1968, debido a la sincronicidad de cambios
public agents and different forms of organized en el desempeño tanto de los agentes públicos
groups of civil society and religious institutions. In como de los distintos matices de los grupos orga-
this process, neighborhoods reinforce their role nizados de la sociedad civil y las instituciones re-
as places of sociability, identity of residents and ligiosas. En este proceso, los barrios refuerzan su
articulation of political forces at the municipal le- rol como lugares de sociabilidad, de identidad de
vel. The non-coincidence between social distan- los vecinos y de articulación de fuerzas políticas
ce and spatial distance and a nucleated structure a nivel municipal. Al mismo tiempo que se conso-
conformed by the collective transport circuits lidaba una ocupación periférica que concentraba
bring new elements to be unveiled in metropoli- la pobreza, São Paulo persistía como una ciudad
zation process. At the same time that a peripheral donde se yuxtaponían diferentes usos, patrones
occupation concentrating poverty was consoli- y una amplia gama de patrones habitacionales. Y
dating, São Paulo persisted as a city where diffe- la redefinición de centralidades identificadas en
rent uses, patterns and a wide range of housing diferentes niveles de la metrópoli da organicidad
patterns were juxtaposed. And the redefinition al territorio metropolitano estructurado visceral-
of centralities identified at different levels of the mente por los radiales que orientan la expansión
metropolis gives organicity to the metropolitan del área urbana. Estos hallazgos plantean cues-
territory viscerally structured by the radials that tiones metodológicas y conceptuales que se pro-
guide the expansion of the urban area. These fin- blematizan en el texto. El texto propone trabajar
dings raise methodological and conceptual ques- en la intersección de las múltiples dimensiones
tions that are problematized. The text proposes de configuración del espacio metropolitano -
to work on crossing the multiple dimensions of desde la materialidad, las instituciones, los agen-
configuration of the metropolitan space - mate- tes y las prácticas sociales, movilizando formu-
riality, institutions, agents and social practices, laciones de Marcel Roncayollo, Jacques Revel y
mobilizing formulations by Marcel Roncayollo, Bernard LePetit, entre outros autores.
Jacques Revel and Bernard LePetit, among other
authors.
METROPOLIZACIÓN CENTRALIDADES
POLÍTICAS PÚBLICAS PRÁCTICAS SOCIALES
METROPOLIZATION CENTRALITIES NEIGHBORHOODS
PUBLIC POLICIES SOCIAL PRACTICES
EIXO TEMÁTICO 1 INTRODUÇÃO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
O texto aborda metropolização como um processo
disseminado, de dimensão plural e diversa, que
não atua em um só lugar e de uma única forma.
vídeo-pôster
A ideia da metropolização como processo dis-
seminado se fundamenta na interpretação da

SÃO PAULO,1938-1968: cidade como produção material, social, pela ação


de agentes diversos, que se inscreve no terri-

A METROPOLIZAÇÃO tório em cronologias diversas. A cidade, como


afirma Lepetit (1993:140) “não é um palimpsesto”.
DISSEMINADA Aproxima-se de estudos urbanos que vêm sendo
produzidos em diversas áreas de conhecimento,
que procuram captar as relações entre processos
sociais e organização material da cidade através
de objetos de pesquisa que colocam novas ques-
tões de caráter teórico e de método. Destacam-
-se nesse sentido livros que reúnem textos com
olhares disciplinares diversos sobre São Paulo
e outras cidades brasileiras e sul-americanas,
como “História da Cidade de São Paulo. A cidade
na primeira metade do século XX”(Porta, P.or-
g.,2004);”Transições metropolitanas e centra-
lidades nas cidades brasileiras no breve século
XX” (Lanna, A.L.D.,Souchaud,S.,Cymbalista,R.
orgs,2019) e “Ciudades Sudamericanas como are-
nas culturales”(Gorelik,A. e Peixoto,F.A., orgs.,
2016).No panorama internacional, “The Landscape
of Modernity. New York City 1900-1940”,editado
por Ward, D. and Zunz, O. (1992), reúne textos que
interpretam as múltiplas dimensões das repre-
sentações e da materialidade da metrópole, como
os de Gabaccia, D., Dash Moore, D., Fishman, R.,
Hood, C., e Kessner, T., que abordam os bairros
de estrangeiros, os planos, o sistema de trans-
porte, o desafio do planejamento democrático. O
estudo de Donattella Calabi (1993),“Il mercato e la
città : piazze, strade, architetture d’Europa in età
moderna” e “The unfinished city.New York and the
metropolitan idea”(Bender,T.,2010) completam o
conjunto de referências de estudos de história
urbana que se aproximam da história cultural .

Tendo como ponto de partida a década de 1950


como momento crucial de disseminação da me-
tropolização no território, o texto se volta para o
desvendamento do processo de configuração da
ordem espacial da metrópole industrial paulistana
em meados do século XX. O recorte temporal
16º SHCU abrange as três décadas entre 1938 e 1968, pela
30 anos . Atualização Crítica
sincronicidade de mudanças na atuação tanto
794 de agentes públicos como de matizes diversas
de grupos organizados da sociedade civil e de de uma radial: a estrada do café (1935)”. Como
instituições religiosas .Este processo é anali- uma câmera em movimento, Hermann.L. (1944)
sado a partir de três escalas: dos processos de percorre os 7.285 metros da radial definida por
metropolização, das políticas públicas urbanas “Av. São João, Praça Marechal Deodoro, Palmeiras,
e metropolitanas e das práticas sociais. As es- Água-Branca, Carlos Vicari, Guaicurus, Trindade
calas não se relacionam às escalas geográficas rumo Lapa”. Através de valores das desapropria-
ou cronológicas, mas às escalas de problemáti- ções, de valores locativos, das formas de utiliza-
cas identificadas e delimitadas. A abordagem ção e da aparência dos prédios, da distribuição
multiescalar assim como o recorte temporal se demográfica dos moradores pelo estado civil,
definem a partir de evidências na materialidade pela religiosidade, pela inserção no mercado de
do espaço urbano e metropolitano. trabalho, pela maior ou menor presença de ho-
mens, mulheres, estrangeiros, religiosos, famílias
Economia de escala, proximidade entre produção com ou sem filhos, meretrizes, identifica em cada
e mercado que garantem a produtividade indus- segmento movimentos que variam entre “zonas
trial e a concentração e centralização do capital amorfas” e “zonas de frizantes oscilações”. O cen-
definiram o domínio espacial de São Paulo sobre tro econômico administrativo, a área de transição
o conjunto de cidades em seu entorno. No final da ou deterioração, a área residencial modesta, a
década de 1970 a área metropolitana de São Paulo zona residencial de luxo e a zona suburbana se
se tornou a quarta mais populosa do mundo, com sucedem, revelando temporalidades, aspectos
mais de 13 milhões de habitantes, atrás apenas de materiais e culturais diversos de um fragmento
New York, Tokyo e Mexico City. Assim como New representativo da dinâmica da área densamente
York, São Paulo é a metrópole que não ocupa o ocupada da cidade – o chamado núcleo compacto.
lugar de capital do país, mas concentra o poder Nas décadas de 1920 e 1930 este núcleo abrangia
econômico. Assim como New York, São Paulo o centro e os bairros em seu entorno. Para além
assume o protagonismo cultural, mas somente de seus limites, a maior parte dos quase 900.000
nas últimas décadas do século XX. habitantes que se acrescentaram à cidade se
instalou de forma dispersa, inclusive em outros
As migrações internas e internacionais - uma municípios, mas não se configurava ainda um
constante no desenvolvimento urbano e industrial processo de conurbação. (Langenbuch, 1971:176
de São Paulo - variaram e variam em consonân- ) Na “Planta da Cidade de São Paulo mostrando
cia com as conjunturas nacional e internacional. todos os arrabaldes e terrenos arruados”, de 1924,
Se entre o final do século XIX e início do século a compactação e a dispersão da área urbanizada já
XX os estrangeiros chegaram a compor mais de se evidenciavam de forma contundente. ( Figura 1)
50% da população, com presença significativa
de italianos, portugueses, alemães, espanhóis,
São Paulo entra na década de 1950 com 85% de
habitantes nascidos no Brasil e menos de 14%
de estrangeiros. De fato, parcela significativa
dos brasileiros natos era descendente do amplo
leque de grupos de estrangeiros que afluíram
para o Estado de São Paulo. (Araujo Filho, 1958,
pp.188-190)

A diversidade de grupos sociais e culturais é parte


dos processos de transformação física, demo-
gráfica, econômica, social e cultural da cidade e
conferem a São Paulo o que Calabi (1999) qualifica
como “lugar evidente de cosmopolitismo visí-
vel na materialidade do espaço urbano “. É o que
desvenda na década de 1930 o olhar observador
da socióloga Lucila Hermann em seu “Estudo do
desenvolvimento de São Paulo através da análise
EIXO TEMÁTICO 1
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO

Figura 1-Planta da Cidade de São Paulo mostrando todos os ar-


ruamentos e terrenos arruados,1924 Fonte: Repositório Digital
do Arquivo Público do Estado de São Paulo.

Ao longo da década de 1950 São Paulo se configura


como expressão radical da problemática metro-
politana no Brasil: a concentração do desenvol-
vimento industrial na capital se acentuou, sua
população superou a do Rio de Janeiro, capital
do país, a área urbanizada passou de 180 km²
em 1930, para 440 km² em 1954, e se estendia
de forma contínua, conurbada com São Caetano,
Santo André, São Bernardo do Campo, Guarulhos.
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

796
A REINTERPRETAÇÃO DAS FONTES: ESCAPANDO Geografia Humana e Geografia Física, ocupou a
DA EXCLUSIVIDADE DE SITUAÇÕES EXTREMAS primeira até 1946, quando foi criado o Departa-
mento de Geografia no interior da Faculdade de
A reinterpretação de estudos com ampla base Filosofia, Ciências e Letras da USP. Geógrafos
empírica realizados em São Paulo entre as dé- estrangeiros desenvolveram estudos sobre a rede
cadas de 1940 e 1960 nos campos do urbanismo, urbana no Brasil1 e na década de 1940 inaugurou-
da sociologia, da geografia evidenciam aspectos -se uma nova fase na geografia urbana no Brasil
importantes da estrutura socioespacial paulista- e seus vínculos com o urbanismo começam a ser
na. Pela amplitude de informações, emerge um manifestados.2 (Azevedo,A.,1970:212,2013)
panorama mais sensível da complexa materialida-
Além de estudos desenvolvidos no âmbito aca-
de do tecido urbano ao longo dessas três décadas,
dêmico, em São Paulo foram desenvolvidos tra-
quando São Paulo se consolidava na vanguarda
balhos para a Prefeitura, que mobilizaram equipes
da produção industrial do país.
multidisciplinares em instituições de urbanismo
Trata-se da produção acadêmica de pesquisado- que em sua maioria se organizaram fora da ad-
res estrangeiros e brasileiros que se vincularam ministração3, como a Sociedade de Análise Grá-
à Escola Livre de Sociologia e Política ELSP), fica e Mecanográfica Associada aos Complexos
criada em 1933, à Faculdade de Filosofia, Ciências Sociais-SAGMACS, criada em 1947; o Instituto
e Letras (FFLCH) criada, no ano seguinte, junta- Brasileiro de Administração Municipal-IBAM, em
mente com a fundação da Universidade de São 1952; o Centro de Pesquisa e Estudos Urbanos-
Paulo (USP) - ambas em São Paulo, assim como -CEPEU, em 1955; instituições supragoverna-
à Universidade do Distrito Federal (UDF), criada mentais como a Comissão Interestadual da Bacia
em 1935, no Rio de Janeiro. Nesse momento, as Paraná-Uruguai-CIBPU, em 1951, assim como os
ciências sociais se incluíam entre os campos valo- chamados “diagnósticos” elaborados para planos
rizados como requisitos à modernização social e diretores, já nos anos 1950, mas principalmente
institucional que exigia uma elite dirigente capaz a partir da criação do Serviço Federal de Habita-
de agir política e deliberadamente, e participar da ção e Urbanismo-SERFHAU, durante a ditadura
formação básica dos cidadãos. ( Limongi,F. 2001) civil-militar, quando empresas de consultoria
constituíram equipes para desenvolvimento de
Esses estudos foram fundamentais para a for- planos, absorvendo a geração de profissionais
mação de pesquisadores. Entre os sociólogos, o formados nas décadas de 1940 e 1950.
americano Donald Pierson vinculou-se á ELSP,
em 1939, como professor catedrático de antro-
1. Dentre os estudos sibre a rede urbabna da década de
pologia social, e criou, em 1941, uma seção de
1930, destacam-se o trabalho de Preston E. James - “ Rio
pós-graduação em Sociologia voltada para o de- de Janeiro and São Paulo” - publicado na “ The Geographi-
senvolvimento de pesquisas.( Simões, J.A,2009) cal Review” em 1933 e o de Pierre Deffontaines publicado
Na USP, desde sua criação até o final da déca- na Revista Brasileira de Geografia, em 1939 -“ Geografia
da de 1930, estiveram presentes Paul Arbousse Humana no Brasil”, que captam o momento em que São
Bastide; Claude Lévi- Strauss, Fernand Braudel Paulo supera o Rio de Janeiro como polo industrial do país,
, Jean Gagé, Émile Coornaert,entre outros, nas e contrapõem suas características às do Rio.
cadeiras de Sociologia e de História da Civilização. 2. Em 1940, no IX Congresso Brasileiro de Geografia, reali-
E na Universidade do Distrito Federal, Eugène zado em Florianópolis, Gilberto Freyre apresenta um tra-
Albertini, Henry Hauser.(Peixoto,2003). balho denominado “ Geografia Urbana”, que defende como
especialidade a ser assumida pelos geógrafos. No mesmo
O geógrafo Pierre Deffontaines ministrou, em ano, a Revista Brasileira de Geografia publica o artigo “A
1934, a primeira aula inaugural da cátedra de geografia e sua influência sobre o Urbanismo”, do engenhei-
Geografia na sub-secção de Geografia e História ro da Prefeitura do Distrito Federal Jeronymo Cavalcanti.
criada na Faculdade de Filosofia, Ciências e 3. Em algumas cidades planos e estudos foram desenvolvi-
Letras em São Paulo e, de 1935 a 1938, lecionou dos no interior da administração municipal Em Salvador, o
na Universidade do Distrito Federal. Com sua sa- EPUCS-Escritório do Plano Urbanístico de Salvador, dirigido
ída, Pierre Monbeig assumiu a cátedra e, a partir por Mario Leite Leal Ferreira e constituído por uma equipe
de 1939, com o desdobramento da cátedra em multidisciplinar, foi contratado pelo Município, em .
EIXO TEMÁTICO 1 Estes estudos antecedem trabalhos acadêmicos
desenvolvidos a partir da segunda metade dos
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO anos 1970, que se voltaram para os processos
de urbanização na lógica capitalista, precariza-
ção das condições de moradia, práticas sociais
e agentes de produção de loteamentos clandes-
tinos, favelas, cortiços, como solução de mo-
radia para os trabalhadores. Desenvolvidos por
sociólogos, economistas, arquitetos, cientistas
políticos, expressam o deslocamento para o re-
ferencial teórico da sociologia urbana francesa.
Três publicações - “São Paulo 1975. Crescimento
e pobreza” (Camargo et alii, 1976), “A produção
capitalista da casa (e da cidade) no Brasil indus-
trial” (Maricato,E.,org.,1979) e “Espoliação urba-
na”(Kowarick, L.,1979) – foram fundamentais para o
desvendamento de especificidades da metrópole
brasileira no contexto latino americano.

A partir dos anos 1980 uma vertente hegemônica


de estudos urbanos, em especial no campo do
urbanismo, contrapondo situações extremas,
notadamente centro/periferia, acabou por ofuscar
a complexidade da ordem espacial de São Paulo.
A coincidência entre distância espacial e distân-
cia social, de modo geral, passou a ser admitida
como padrão exclusivo de segregação em São
Paulo ao longo do século XX. Essa hegemonia
se instala apesar de estudos de outros campos
disciplinares, a partir do final da década de 1970,
passarem a abordar aspectos culturais, de gênero,
do movimento feminista, organizações negras,
das organizações sociais e políticas no processo
de periferização. São exemplos significativos as
coletâneas “Cidade.Usos & abusos”( Cardoso, R.
org., 1978) e “São Paulo; o povo em movimento”
(Singer,P. e Caldeira Brant,V. orgs,1980) e os tra-
balhos de Carlos Nelson Ferreira dos Santos, em
especial, “Habitação- o que é mesmo que pode
fazer quem sabe?” (Santos, C.N.,1983).

ESCALAS DE CENTRALIDADES :“A CIDADE


NÃO É UM PALIMPSESTO” 4

Ao mesmo tempo em que se consolidava uma


ocupação periférica concentradora de pobreza,
16º SHCU
que já transbordava os limites municipais, São
30 anos . Atualização Crítica

798 4. LePetit, B.(1993:140)1


Paulo persistia na década de 1950 como uma ci- como estratégia de moradia para a população
dade onde diferentes usos, e um amplo leque de de baixa renda, os cortiços que, por décadas se
padrões e condições de ocupação de moradias mantiveram concentrados nas áreas centrais
se justapunham. através da readaptação de casarões, passaram a
ser produzidos nos fundos de lotes, para aluguel,
Apesar das grandes plantas industriais se loca- inclusive nas áreas periféricas. As favelas que
lizarem ao longo de eixos ferroviários e rodoviá- começaram a se formar na década de 1940, em
rios, a maior parte dos estabelecimentos era de 1957 já abrigavam cerca de 50 mil pessoas vivendo
pequeno porte e estavam pulverizados no espaço em 8.488 barracos distribuídos em 141 núcleos.8
urbano. Em 1958, 62% de mais de 25.000 indús-
trias instaladas na cidade empregavam menos de Nesse panorama, com exceção dos bairros res-
5 pessoas, e apenas 3,3% dos estabelecimentos tritos à ocupação por residências unifamiliares
tinham mais de 100 empregados.5 O comércio de alto padrão, que passaram a ser regulados pelo
varejista se espalhava por todos os subdistritos zoneamento a partir de 1931, usos diversificados e
de São Paulo6 - dos centrais, como Consolação, a desigualdade das condições de moradia estavam
Bom Retiro, Brás, Santa Ifigênia, Sé, aos nos ex- presentes em diferentes proporções em todos
tremos da ocupação urbana, a leste, norte e sul, os distritos da capital. Na maioria dos distritos a
como Itaquera Guaianases, Jaraguá, Perus, e incidência de moradias com condições insatisfa-
Parelheiros. A concentração de comércio varejista tórias atingia a proporção não desprezível entre
em São Miguel Paulista, no extremo leste, era 15% e 29%. E ao norte, sul e oeste, a incidência
equivalente à da Bela Vista, próximo ao centro ( superior a 30% não era condição exclusiva das
Feldman, 2019).Em apenas quatro anos, entre 1950 áreas periféricas, como se observar na locali-
e 1954, foram construídos 90.000 prédios, quase zação de moradias insatisfatórias nas Figuras 2
dobrando os 106.327 construídos na cidade até e 3 . ( Lebret, J.L.,1947)
1932.7 Fundos previdenciários, companhias de
capitalização, caixas econômicas e empresas de
seguros que ofereciam crédito imobiliário, em-
préstimos hipotecários, passaram a investir em
diferentes segmentos do mercado- de grandes
edifícios comerciais e residenciais a conjuntos
populares e em terrenos.(Langenbuch,J.,1970;-
Melo,M.A.,1993).

Obras rodoviárias associadas à prevalência do


ônibus, a partir da década de 1940, desvincularam
simultaneamente a localização das indústrias das
linhas ferroviárias e a moradia da localização do
trabalho, o que alavancou a diversificação das
modalidades de habitações precárias. Ao mesmo
tempo em que a casa própria autoconstruída,
com aquisição de lotes à prestação se impôs

5. Segundo dados do SENAI, apud PMSP/PUB,1968

6. Em 1954 o Distrito de São Paulo era subdividido em 40


subdistritos. Além do distrito sede, mais 6 distritos com-
punham o município: São Miguel Paulista, Itaquera, Guaia-
nases, Parelheiros , Jaraguá e Perus.

7.Secretaria da Educação e Cultura, Boletim Mensal da


Prefeitura Municipal de São Paulo( BMPMSP),1951 e Boletim 8. Os trabalhos de Bonduki, N. (1994) e de Taschner, S. (2001)
Mensal da Prefeitura Municipal de São Paulo( BMPMSP),ju- aprofundam, respectivamente, a emergência das casas
nho-julho1966; FIBGE (1965-1974). autoconstruídas e das favelas em São Paulo.
EIXO TEMÁTICO 1
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO

Figura 2 -LOCALIZAÇÃO DE SUB-CASEBRES E CASEBRES


- Categorias 0-1- Planta nº 5. Fonte : LEBRET, J. L. ( 1947)

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

800
Figura 3 - LOC ALIZAÇÃO DE SUB-CASEBRES- Categoria 0- Planta nº 3. Fonte : LEBRET, J. L. ( 1947)
EIXO TEMÁTICO 1 Ao escapar das informações e dados restritos às
situações extremas, a década de 1950 se revela
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO como momento crucial da metropolização como
processo que se dissemina no território. São Paulo
persistia como uma cidade onde diferentes usos,
padrões e condições de ocupação das moradias se
combinavam, ao mesmo tempo em que se atuali-
zava às mudanças econômicas e de uso do espaço
urbano. Nesse processo, a expressão material
da consolidação de São Paulo na vanguarda da
produção industrial se completava com a emer-
gência de diferentes centralidades inerentes ao
processo de conturbação.

O ônibus teve papel fundamental na cartografia


urbana e metropolitana e nas formas pelas quais
a lógica rodoviária se sobrepôs, se acomodou e
transformou a materialidade de espaços urbanos
ancorados no sistema ferroviário. Até 1940 a circu-
lação rodoviária atuou predominantemente como
auxiliar da expansão direcionada pelas ferrovias,
como meio de transporte “supletivo e comple-
mentador de percursos”, segundo Langenbuch,J.
(1971:177). Na metade da década de 1950, quando
a população de São Paulo superou três milhões
de habitantes, quase a totalidade dos veículos
de transporte público em circulação já era sobre
rodas. As linhas de bondes foram definitivamente
extintas em 1968, numa solenidade com a presen-
ça do prefeito José Vicente de Faria Lima.

Para além dos limites do município, no processo


de conurbação9 que caracteriza a metrópole in-
dustrial do século XX, os locais de transbordo do
transporte coletivo de São Paulo aos municípios
vizinhos e aos loteamentos distantes se consoli-
daram ao longo da década de 1950 em diferentes
escalas de centralidades. Formas de nucleações
diversas se constituíram dentro e fora dos limites
da capital: é o caso dos centros em municípios
vizinhos, como por exemplo em São Bernardo
do Campo e Santo Amaro, e de sub centros na
capital, mais centrais, no Belém, Móoca, Água
Branca, e em Santana, Pinheiros, Penha, Lapa
mais periféricos.

9. Processo de crescimento urbano contínuo de São Paulo


que se irradia e se articula na escala regional, de acordo com
16º SHCU
a definição de GEDDES, Patrick (1915) Cities in Evolution:
30 anos . Atualização Crítica
an introduction to the town planning movement and to the
802 study of civics, London, Williams and Norgate
Figura 4-AGLOMERADO URBANO METROPOLITANO_USO DO SOLO GENERALIZADO 1966. Fonte: PMSP(1968) PLANO UR-
BANÍSTICO BÁSICO DE SÃO PAULO.S/P

Essa redefinição de centralidades, que na década de revisão da história social, as dinâmicas ou


de 1950 pode ser identificada em diferentes níveis relações sociais começam a ser abordadas como
da metrópole confere organicidade ao território tributárias das práticas, costumes, das situações
metropolitano visceralmente estruturado pelas em que são ativadas. Ou seja, as práticas coletivas
radiais convergentes ao centro que orientam a são abordadas como fontes para compreensão
expansão da área urbana. do social. Duas formulações dessa abordagem
historiográfica são fundamentais: em primeiro
lugar, a necessidade de rever periodizações esta-
belecidas, a partir de determinantes circunscritos
TEMPORALIDADES, CONTEXTOS, PRÁTICAS SOCIAIS às problemáticas estudadas (Lepetit, B.,1995).Em
segundo lugar, a redefinição da noção de con-
A não coincidência entre distância social e dis- texto: à ideia de que há um contexto unificado,
tância espacial e uma estrutura nucleada que se homogêneo, dentro do qual e em função do qual
conforma pelos circuitos do transporte coletivo os atores determinariam sua escolhas se contra-
trazem novos elementos a serem desvendados no põe a necessidade de constituir a pluralidade de
processo de metropolização de São Paulo. Para contextos necessários para a compreensão dos
esse desvendamento o escopo metodológico tem comportamentos observados. Indivíduos, grupos,
por base o debate que ocorre no campo da história espaços, se inscrevem em contextos de dimen-
nos anos 1990. Nesse momento, num processo sões e níveis variados, do global ao local, e suas
EIXO TEMÁTICO 1 experiências permitem compreender modulações
da história global (Revel,J.,1996)
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Do ponto de vista das ações da administração
pública, a partir dos anos 1940, pode-se observar
a atuação combinada, mas não necessariamente
articulada, dos governos federal, estadual e mu-
nicipal. Investimentos e ações se voltaram para a
implantação de um sistema de rodovias - a rodo-
via federal presidente Dutra, em direção ao Rio
de Janeiro; as rodovias estaduais Anchieta, em
direção a Santos, e a Anhanguera, em direção a
Campinas, que articularam a capital ao interior e a
outros estados. Nos limites do município, as obras
viárias de larga escala de alargamento do centro
e de direcionamento da expansão urbana condi-
cionam, como mostram Meyer, R.Grostein,M.D.,-
Biderman,C.(2004) a estrutura metropolitana.

Na administração municipal, São Paulo passou


por uma sucessão de reorganizações visando
a descentralização administrativa e a institu-
cionalização de órgãos para atuação na escala
metropolitana. Colocada como necessária para o
crescimento extraordinário da metrópole e a com-
plexidade dos interesses econômicos e sociais
que a envolvem, criando e desenvolvendo varia-
das necessidades, de ordem urbanística e social,
numa sucessão de decretos e leis ordinárias entre
1945 e 1968, a descentralização ocorreu através
da criação de Secretarias Municipais com funções
especializadas e pela divisão do município em
Administrações Regionais. A estas caberia re-
presentar a Prefeitura, na região, e realizar obras
e serviços de acordo com os interesses locais.

Com relação ao transporte coletivo, ao mesmo


tempo em que foi criada a Companhia Municipal
de Transporte Colletivo - CMTC, empresa respon-
sável pela operação e fiscalização do transporte
urbano por ônibus, o metrô que já estava presente
no Plano de Avenidas de 1930, que começou a
ser implantado na gestão de Francisco Prestes
Maia como Prefeito(1938-1945), foi objeto de vá-
rios estudos nas décadas seguintes. Entre 1966 e
1968 foi criada a Companhia do Metrô e o Grupo
Executivo do Metropolitano (GEM), e na esfera e
estadual o Grupo Executivo da Grande São Paulo
(GEGRAN,) e o Conselho de Desenvolvimento da
Grande São Paulo.
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
A partir da gestão de Prestes Maia, instalou-se
804 uma sistemática distribuição de equipamentos
públicos tendo como base territorial a divisão de tidária, chegando a quase cinquenta o número de
distritos e subdistritos, apesar da alternância de partidos no país; os sindicatos se multiplicaram, e
quinze prefeitos ao longo do período, uma vez proliferaram os movimentos da sociedade civil por
que apenas cinco mandatos foram completados melhores condições de vida. (Gohn, M. da G.1995).
entre prefeitos indicados pelos interventores E surgiram nesse período os primeiros jornais de
até 1953 e eleitos a partir deste ano.10Escolas de bairros, que atuaram também como veículos que
educação infantil, bibliotecas, teatros, merca- ecoavam as demandas por melhorias de seus
dos municipais, cemitérios, abrigos de ônibus, moradores : em 1936, o primeiro jornal de que se
etc. conformaram espaços delimitados da vida tem notícia, a Tribuna de Santo Amaro; em 1956, a
na escala local, que em São Paulo passam a ser Gazeta de Pinheiros; em 1960, a Gazeta de Santo
identificados como bairros. A criação, em 1968 Amaro; em 1963, a Gazeta Penhense.
do primeiro Concurso de Monografias sobre a
História dos Bairros de São Paulo pela Prefeitura11, Esta trama de processos concomitantes reve-
reforça a importância assumida pelos bairros na la um período em que, na administração da ca-
dinâmica metropolitana e na política urbana. pital, aparentemente, tudo se move no sentido
de descentralizar a gestão municipal e instalar
Mas além da administração, outros grupos pas- uma governança metropolitana. No entanto, a
saram a atuar nos bairros reforçando seu papel setorização das políticas públicas se consolidou,
como lugares de sociabilidade, de identidade de com o fortalecimento político dos Secretários
seus moradores, de condensadorse de mobiliza- Municipais e pelas políticas populistas que se
ção da população. A Igreja Católica instalou 169 instalaram a partir da retomada de eleições em
igrejas nas 305 paróquias distribuídas por setores 1953.A setorização até hoje permanece entranha-
pastorais nas seis regiões episcopais em que era da na estrutura da administração de São Paulo
subdividida a Arquidiocese de São Paulo: Belém, e as Administrações Regionais, assim como as
Brasilândia, Ipiranga, Lapa,Santana e Sé. Algumas Subprefeituras que as sucederam a partir de
Igrejas eram identificadas pelos grupos de estran- 2004, se restringem a atuar em serviços de manu-
geiros que se concentravam nos bairros, como tenção e nas questões de uso e ocupação do solo
por exemplo, italianos e fiéis latino-americanos; são responsáveis pela aprovação de construções
nipo-brasileiros, coreanos, chineses, eslovenos, até 250 metros quadrados. Quanto à a governança
alemães, nos setores pastorais Catedral, Bom metropolitana, embora tenha sido criada, junto
Retiro, Jardins, Vila Mariana, na Região Episco- ao governo estadual a Empresa de Planejamento
pal Sé (arquisp.org.br) .. Foi a maior expansão da Paulista de Planejamento Metropolitano (Empla-
Igreja Católica no território paulistano, germe sa), em 1975, os municípios continuaram e conti-
das Comunidades Eclesiais de Base que a partir nuam a atuar de forma independente.12
dos anos 1970 ganham protagonismo nos movi-
mentos de bairros em São Paulo. Começaram O período definido em foco nesse texto é parte de
também a ser criadas as Sociedades Amigos de uma história a ser elucidada, uma vez que ainda
Bairros (SABs) e Associações de Moradores, que não recebeu a devida atenção na historiografia
se tornaram importantes agentes de articulação da cidade e do urbanismo e nos estudos urbanos
de forças políticas ao nível municipal, a partir da e regionais, em geral. No que se refere à mate-
retomada das eleições para prefeito. rialidade dos processos de metropolização, a
expansão periférica contraposta às áreas con-
Com o fim do Estado Novo, e no contexto da Cons- centradoras de riqueza e as dualidades centro/
tituinte de 1946, reemergiu a disputa político par- periferia, cidade legal/ilegal, vêm sendo ampla-
mente abordados em estudos que são referências
importantes para a interpretação da metrópole
10. Cumpriram mandatos completos : Francsco Prestes
Maia(1938-1945 e 1961-1965); Adhemar de Barros (1957-1961);
de São Paulo, como os de Maricato, E. (1996) e
José Vicente Faria Lima (1965-1969) de Bogus, M.L.L. e Pasternak, S.(2001), dentre

11. As monografias sobre os bairros do Brás, Pinhei-


ros, Penha e Santo Amaro, foram as premiadas no 12. A única experiência de governança metropolitana se
primeiro concurso e publicadas no ano seguinte.( efetivou no Grande ABC, a partir 1997 com a criação da
Cardoso, V.P.D.,2015) Câmara do Grande ABC
EIXO TEMÁTICO 1 outros. No entanto, diante da generalização des-
sa abordagem em estudos urbanos e regionais,
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO coloca-se a necessidade de considerar os limites
do que é generalizável em função de especifi-
cidades de situações e dos objetos de estudo,
diante da diversidade da rede urbana no Brasil.
Com relação à estrutura urbana e metropolitana,
o sistema de radiais, perimetrais e marginais
proposto e/ou implantado pelas obras do Plano
de Avenidas a partir da gestão de Prestes Maia
como Prefeito(1938-1945) e os seus desdobra-
mentos posteriores vêm sendo privilegiados nos
estudos que abordam o processo de expansão
urbana da capital. Esse sistema vem sendo estu-
dado de forma consistente sob vários aspectos na
historiografia do urbanismo e da cidade : a partir
das referências internacionais (Leme,M.C.,1990);
dos impactos sobre o problema da moradia (Bon-
duki,N.,1994), das relações com estruturas hídri-
cas e de mobilidade (Franco,F.M.,2005); das rela-
ções entre arquitetura e cidade.(De Bem, J.,2006)
e das repercussões dessa estrutura na escala
da metrópole e da macrometrópole (Meyer, R.P.,
Grostein, M.D. e Biderman, C.,2004) .

A dessetorização das políticas públicas, a gover-


nança metropolitana e os processos participa-
tivos se colocam como questões prioritárias a
serem formuladas e/ou reformuladas, efetivadas
e institucionalizadas em São Paulo.

É importante destacar que na perspectiva de


atuar no desenvolvimento urbano, a integração
das políticas setoriais se coloca como um
princípio no campo do urbanismo desde a década
de 1930 e o planejamento metropolitano, desde os
anos 1950, como venho abordando em pesquisas
desenvolvidas desde 2006 .Entre os trabalhos
que se voltam para a necessidade de uma política
urbana metropolitana e a integração das três esfe-
ras de poder, destacam-se “São Paulo Metrópole”
(Meyer,R.,Grostein,M.D.,Biderman,C.,2004), os
trabalhos de Jeroen Klink, que vem abordando a
governança metropolitana de forma aprofundada,
do ponto de vista conceitual (Klink,J.J.,2010) e
os estudos de ciência política desenvolvidos por
Eduardo Marques, discute as relações entre po-
líticas urbanas municipais, estaduais e federais (
Marques, E,.2018).No que se refere à setorização,
16º SHCU com exceção de Scherer, R.(1983), que aborda a
30 anos . Atualização Crítica
atuação das secretarias nos anos 1950 como
806 intensificadoras da visão setorial das questões
urbanas, não há estudos que tenham dado prosse- 5.Referências
guimento a essa questão. A integração de políticas
setoriais, a descentralização e a participação nos
processos são interdependentes, indissociáveis. ARAUJO FILHO, J. R. de (1958) A população
paulistana. In AZEVEDO, Aroldo de, org. (1958)
A recuperação do momento de origem e das A Cidade de São Paulo, São Paulo, Cia. Editora
formas pelas quais se institucionalizaram e se Nacional. Volume 2, pp. 167-247
enraizaram práticas sociais dentro e fora da
administração pública em São Paulo torna-se uma AZEVEDO, Aroldo de (1970) As Cidades in AZE-
colaboração necessária para pensar o presente e VEDO, Aroldo de (1970) Brasil a terra e o homem.
o futuro das cidades. O período é abordado a partir São Paulo. Cia. Editora Nacional/ Editora da
das obras e ações das três esferas de governo; Universidade de São Paulo. Volume II- A Vida
da reorganização institucional da administração Humana pp.212-282
pública municipal e da atuação de organizações
da sociedade civil, que permitem desvendar a BOGUS, Maria Lucia L. e PASTERNAK, Suza-
conformação urbana e metropolitana a partir das na.(2001) São Paulo, uma metrópole desigual.
estruturas materiais como construção social e lu- Revista latinoamericana de estudios urbano
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homogêneos, mas se moldam e se transformam BENDER, Thomas (2002) The Unfinished City.
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cidade é abordada como uma categoria da prática York,The New Press.
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reinterpretação é, portanto, necessário. (Lepe- CALABI,Donatella.(1993) Il mercato e la città
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EIXO TEMÁTICO 1 RESUMO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Trata-se de trabalho derivado de pesquisa dedi-
cada à trajetória de Frank Svensson como arqui-
vídeo-pôster teto e professor. Nosso objetivo aqui é analisar
seu trabalho na Superintendência de Desen-
volvimento do Nordeste, SUDENE, onde atuou
SOBRE URBANISMO E entre 1963 e 1970. Esse período foi marcado por
uma prática urbanística com forte aumento de
DESENVOLVIMENTISMO: A infraestrutura por parte do governo federal em
diferentes escalas e espaços, envolvendo pla-
OBRA DE FRANK SVENSSON nos e projetos para novas cidades ou interven-
ções urbanas. A pesquisa foi realizada a partir
NA SUDENE do acervo documental do arquiteto, catalogado
e classificado em trabalho de iniciação cientí-
fica. Esperamos que esta investigação possa
URBANISM AND DEVELOPMENT: FRANK SVENSSON’S
fomentar discussões sobre trajetórias profis-
WORK AT SUDENE
sionais na história das práticas urbanísticas,
cujos aspectos multicausais e interconectados
URBANISMO Y DESARROLLO: EL TRABAJO DE FRANK podem amparar elaborações descritivas e con-
SVENSSON EN SUDENE ceituais no presente.

LIMA, Carlos Henrique de


FRANK SVENSSON SUDENE
Doutor em Urbanismo (PROURB-UFRJ); PPGFAU-UnB
carloshenrique@unb.br
URBANISMO DESENVOLVIMENTISTA

NERES, Tamara
Graduanda; FAU UnB
tamara.aneres@gmail.com

COSTA, Caio César


Graduando; FAU UnB
caiocesar.nascimento@unb.abea.arq.br

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

810
ABSTRACT RESUMEN

This work is part of a research dedicated to the Este es un trabajo derivado de una investigaci-
Frank Svensson trajectory as architect and pro- ón dedicada a la trayectoria de Frank Svensson
fessor. Our purpose here is to analyze his work in como arquitecto y profesor. Nuestro propósito
the Development Superintendence of the Northe- aquí es analizar su trabajo en la Superintendencia
ast, SUDENE focusing on the relationship betwe- de Desarrollo del Nordeste, SUDENE, centrándo-
en urbanism and developmentalism. This period se en la relación entre urbanismo y desarrollismo.
was signaled by an urbanistic practice with strong Este período fue señalado por una práctica urba-
increase in infrastructure by the government at nística con un fuerte aumento de la infraestruc-
different scales and spaces, involving plans and tura por parte del gobierno a diferentes escalas
projects for new cities or urban interventions. y espacios, que involucra planes y proyectos para
The research has been carried out based on the nuevas ciudades o intervenciones urbanas. La
architect’s documentary collection, which was investigación se ha llevado a cabo en base a la
cataloged and classified in the last twelve mon- colección documental del arquitecto, que fue ca-
ths. We hope that this investigation can foster talogada y clasificada en los últimos doce meses.
discussions about the professional trajectories in Esperamos que esta investigación pueda fomen-
the history of urbanism, whose multi-causal and tar discusiones sobre trayectorias profesionales
interconnected aspects can help descriptive and en la historia de las prácticas urbanísticas, cuyos
conceptual elaborations in the present. aspectos multicausal e interconectados pueden
revelar problemas para varias elaboraciones des-
criptivas y conceptuales en el presente.
FRANK SVENSSON SUDENE
URBANISM AND DEVELOPMENTALISM
FRANK SVENSSON SUDENE
URBANISMO E DESARROLLISMO
EIXO TEMÁTICO 1 INTRODUÇÃO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
O problema de analisar trajetórias profissionais
foi colocado no panorama recente da história da
cidade e do urbanismo por diversos autores. Des-
vídeo-pôster
tacamos as questões que dizem respeito às fontes
de investigação escolhidas e as possibilidades

SOBRE URBANISMO E trazidas por novos elementos para o debate his-


toriográfico, potencialmente capazes de revelar

DESENVOLVIMENTISMO: A jogos de força latentes e seus desdobramentos


no território (CAMPOS, 2014). Se considerarmos o
OBRA DE FRANK SVENSSON conhecimento urbanístico como transdisciplinar e
permeado por imagens produzidas com interesses
NA SUDENE persuasivos técnicos ou conceituais, as trajetórias
podem ajudar a identificar pormenores em perío-
dos determinados. O presente trabalho é análise de
URBANISM AND DEVELOPMENT: FRANK SVENSSON’S uma trajetória, ou melhor, de parte de um itinerário
WORK AT SUDENE profissional. Propõe-se examinar os arquivos do
arquiteto e professor Frank Svensson para iden-
URBANISMO Y DESARROLLO: EL TRABAJO DE FRANK tificar questões relacionadas ao período em que
SVENSSON EN SUDENE atuou na Superintendência de Desenvolvimento
do Nordeste, SUDENE. É a tentativa de costurar
uma breve narrativa articulando as práticas urba-
nísticas do período e o pensamento do autor –mais
que inventário de espaços e cidades. Do ponto
de vista metodológico, essa premissa demandou
um deslocamento constante entre o trabalho no
acervo (levantamento, descrição, organização e
análise) e leitura de trabalhos a respeito do pe-
ríodo desenvolvimentista no quadro da SUDENE.

Almejamos contribuir, ainda que de modo tan-


gencial, para ampliar o exame de autores que se
dedicaram de modo mais detido à obra de Svens-
son (SCHLEE, 2012; CAHU e CANTALICE, 2018) e
ao exame das relações entre urbanismo e desen-
volvimentismo, vínculo explorado em diversas
reflexões. Svensson construiu ao longo dos anos a
consciência da capacidade emancipadora presen-
te na arquitetura e urbanismo quando concebida
em estreito vínculo com a realidade material. E a
criação da SUDENE, como fator de inovação urba-
nística, tanto no âmbito regional como nacional,
está associada à correção de assimetrias econô-
micas entre as regiões brasileiras. Enfrentamento
ocorrido com forte incremento da infraestrutura
territorial e urbana, além de equipamentos públi-
cos e habitação, redistribuindo e ampliando ativi-
dades produtivas entre as diferentes paisagens
16º SHCU do nordeste brasileiro. Sabemos que compara-
30 anos . Atualização Crítica
ções entre contextos separados por grande lapso
812 temporal devem ser feitas com cautela, mas não
nos furtamos de apresentar como justificativa Frank Algot Eugen Svensson nasceu em Belo Ho-
para esta empreitada o fato de que vimos rea- rizonte, Minas Gerais em 1934. Cursou a Escola
vivada no país uma prática desenvolvimentista de Arquitetura da Universidade de Minais Gerais.
do urbanismo durante os anos do Programa de Durante a graduação participou de obras de ca-
Aceleração do Crescimento (PAC), o que estimula ráter artesanal produzidas na Escola e publicou
a curiosidade sobre a agenda programática no com colegas em 1959 o livro de Edgard Graeff,
urbanismo dos 1950 e 1960 (FARIAS FILHO, 2013). “Arquitetura e o Homem”, conduziu grupos de
estudos dedicados a refletir sobre a situação da
O trabalho está dividido em duas partes. Primei- classe trabalhadora e, no mesmo ano, filiou-se
ramente realizamos interseções entre temas ao Partido Comunista (PCB). Conheceu Oscar
urbanísticos presentes nos anos em que Frank Niemeyer quando o arquiteto fazia uma parada em
Svensson atuou na SUDENE e aqueles na pro- Belo Horizonte numa de suas viagens a Brasília.
dução do arquiteto e urbanista, focando aspec- Por intermédio do partido, Frank teve contado
to da produção material coletiva, da matéria e com o arquiteto carioca que o convidou para es-
do território como indissociáveis da prática de tagiar na nova Capital (SCHLEE, 2006)
projeto. Svensson, assim como muitos de seus
contemporâneos, concebe arquitetura e conteúdo Frank Svensson ingressou para o quadro da SU-
social implicados em paralaxe, algo relevante para DENE em 1963, pouco depois de sua fundação,
superar a estagnação e dotar a sociedade de ener- onde permaneceu até 1970. Para o arquiteto,
gia emancipadora – o que muito tem a ver com sua seria possível contribuir de forma mais efetiva
militância política, como veremos. Em seguida, para o benefício comum em um órgão público.
focalizaremos alguns exemplos edificados, onde Naquele momento, os expedientes técnicos do
aparecem problemas como: a) interiorização e país estavam orientados para atuações multi-
a formação de redes urbanas; b) o provimento disciplinares, fazendo convergir campos do co-
de infraestruturas e de serviços urbanos; c) a nhecimento para a transformação da economia
realização de programas habitacionais de médio e território. A primeira metade da década de 1950
e lago escopo. marca o início de políticas desenvolvimentistas
no país. Procede-se ao incremento dos siste-
Espera-se que essa breve observação da traje- mas de transporte e energia, criação do Banco
tória de Svensson possa ajudar a identificar os Nacional de Desenvolvimento Econômico, em
matizes do pensamento e “prática urbanística” 1952; maior participação do setor público nos
(FARIAS FILHO, 2013) no país, contribuindo para fluxos de capital. O desequilíbrio na atividade
construção de repertório teórico e categorias produtiva, os movimentos migratórios atrelados
analíticas capazes de ampliar a leitura sobre pro- entre Estados do Nordeste e em direção a outras
blemas que foram enfrentados, de variadas ma- regiões. A atividade agrícola instalada funcionou
neiras, a respeito do espaço urbano, seu entorno como obstáculo para o desenvolvimento da indús-
de influencia, e suas relações com a dimensão tria regional – problema político-social foi uma
produtiva. constante nos anos mais ativos da instituição,
exigindo habilidade por parte de profissionais na
condução de projetos (COHN, 1976).

Os anos de Svensson na SUDENE Devido à constante vigília, Svensson sugeriu sua


transferência para o projeto de irrigação do Vale
“[...] as relações entre as coisas e as pesso- do São Francisco, onde trabalhou num projeto-
as não podem ser plenamente entendidas -piloto Mandacaru, dedicado às tecnologias de
somente pela observação individual da- irrigação, em parceria com a Organização das
quilo que é manifesto. É exigível, também, Nações Unidas para Agricultura e Alimentação
experiência prática e, mais ainda, troca de (FAO) (CORTEZ, 2005). A experiência na SUDENE
conhecimento e formas superiores da abs- foi fundamental para moldar a visão de mundo de
tração para se atingir a essência dos acon- Svensson. Nos anos seguintes, o arquiteto passou
tecimentos e dos fenômenos. (SVENSSON, a expressar franco desacordo com a perspectiva
1992, pp.127-128) de atuação liberal de seus colegas – mesmo dos
EIXO TEMÁTICO 1 que se consideravam progressistas – cujo inte-
resse recaia sobretudo em programas modestos
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO e encomendas privadas.1 Ao deixar a SUDENE,
Svensson retornou para Brasília e lecionou na
UnB entre 1970 e 1972. Dedicou-se a desenvolver
um programa de extensão universitária contem-
plando o Distrito Federal e região metropolitana.
Encampou uma forma de ensinar assentada na in-
tegração entre pesquisa e proposição de lugares,
de formas de enxergar o conteúdo social como
aspecto mais relevante na prática arquitetônica
e urbanística. Esta experiência foi interrompida
quando Svensson foi exilado na Europa. Em 1973,
foi enquadrado na lei de Exceção 477 que o proi-
bia de atuar como professor em todo território
nacional. Mas perduraram convergências entre
as diferentes esferas da prática arquitetônica
exigiu esforços pela interdisciplinaridade como
reinterpretação dos valores regionais em face
aos problemas do território.

Materialismo, cidade e desenvolvimento

Fator determinante para compreender a trajetória


de Svensson diz respeito à arquitetura como cam-
po de expressão e enfrentamento dos problemas
nacionais. O reconhecimento de que a prática
urbanística não resulta somente das relações
entre as coisas, ou somente da percepção que
se tem sobre a cidade, é algo que Svensson as-
simila a partir do materialismo histórico. O autor
nos lembra que a matéria compreende todas as
formas de movimento e de desenvolvimento da
sociedade – ainda: das próprias relações entre
natureza e cultura – e a imagem dos lugares como
expressão do movimento da matéria demanda que
se conceba formas de mudança social em todos os
setores da vida. Daí a importância da arquitetura
e urbanismo como meios para exteriorização de
valores e sentidos construídos coletivamente,
fonte e foco das disposições e agenciamentos
do espaço.

Frank Svensson manteve sempre atrelada ao seu


trabalho a preocupação com contradições so-

1. Ao se transferi para o Nordeste, Svensson residiu no


16º SHCU
Recife, onde também realizou encomendas privadas como
30 anos . Atualização Crítica
a residência Lineu Borges Escorel (1969), as Residências
814 Edmirson Duarte e Aldo Freire (1970), estas em Olinda.
ciais figuradas na desigualdade do país, em que nistrativos); (5) e, os atores e os mecanismos de
recursos materiais e benefícios da transformação participação. Práticas urbanísticas podem ser
do espaço não são igualmente distribuídos. Sua descritas e situadas em determinado momento
atuação política se desdobra tem fortes vínculos histórico na medida em que acomodam um con-
com sua formação intelectual e profissional. O junto de princípios, métodos, técnicas e meios
aspecto universal da modernidade era de origem de representação sobre os territórios urbanos
universal, de indispensável ação conjunta entre os (FARIAS FILHO, 2013).
sujeitos, em relação as classes, entre diferentes
grupos culturais, o intercambio entre subjetivida- Não aprofundarei a perspectiva histórica traçada
des forjadas em contextos muito contrastantes. por Farias Filho, limito-me aqui a endossar sua
Sua postura intelectual se ampara no pressuposto proposta de periodização que corresponde a
de que a dimensão subjetiva, por mais indutiva duas fases dos anos da SUDENE: Urbanização
que possa ser, não é capaz de operar algo de pro- e Renovação (1950-1964), abrangendo os planos
veitoso e transformador. A relação do arquiteto e de metas do governo de Juscelino Kubistchek,
urbanista deve ser, por isso, de profundo conhe- a construção de Brasília e a ruptura implicada
cimento das relações no território, das escalas pelo golpe militar; Planificação e Tecnocracia
de produção que favoreçam o desenvolvimento. (1964-1982), nas décadas de crise política e eco-
Quer dizer, o vínculo entre o urbanismo e o pro- nômica. Sendo que estudiosos já esmiuçaram
blema teórico da forma, poderão adquirir melhor características e desdobramentos dos períodos,
resultado se em plena relação com instituições no interessa identificar três pontos essenciais da
e instrumentos necessários para a constituição ação urbana conduzida pelo Estado, explicitadas
dos valores da vida coletiva. na introdução do artigo: a ideia de rede e sua
influencia no território; a dotação de equipamen-
Alguns temas presentes em textos de Svensson e tos e infraestruturas urbanas; a realização de
colocados em prática nos projetos da SUDENE nos programas habitacionais e expansão de núcleos
levam a elaborar possíveis vínculos com proces- urbanizados.
sos contínuos de planejamento em que se valoriza
tanto o ordinário quanto o excepcional: a estreita
relação entre o plano urbanístico e a comunidade;
as considerações as condições materiais e do A criação de redes no território
clima, além dos valores e da cultura das popula-
ções e de seu repertório construtivo. A ideia do A noção de rede, de distribuição em pontos es-
planejamento como responsabilidade do setor tratégicos de equipamentos públicos em deter-
público é a premissa presente em projetos que minada região, é algo fundamental para o ideário
se movimentam em diferentes direções. Nesses urbanístico dos anos 1960. E compreende-se que
pontos, podemos identificar relações entre a prá- a escola seja um dos equipamentos que melhor
tica urbanística do nacional-desenvolvimentismo expresse as possibilidades de convergência entre
e pensamento e prática de Svensson. planos programáticos e planejamento espacial,
por demandar que se pense a circulação de di-
A prática urbanística do desenvolvimentismo está ferentes grupos etários na cidade. Em 1963, no
sendo aqui considerada a partir das considera- âmbito da SUDENE, Svensson concebeu escolas
ções de Filho (2013, p.3), que define o termo como primárias (Figura 1) padrão para o projeto de irriga-
conjunto coordenado de ações na cidade que são ção em Pernambuco, replicáveis para municípios
promovidas por arquitetos e urbanistas, técnicos, do semiárido e do sertão. Objetivamente, são
políticos, empresas e outros atores que agem a edifícios de construção simples que podem ser
partir de estratégias, intenções e técnicas de feitos utilizando-se tecnologias e mão-de-obra
intervenção no espaço. Essas práticas podem locais.
ser analisadas por meio de cinco elementos: os
condicionantes político-econômicos nacionais Além das escolas primárias, distribuídas no terri-
e locais; (2) os tipos de planejamento e gestão tório, a rede é formada por edifícios que reúnem
urbanos; (3) os princípios e características; (4) funções mais complexas, como os Centros de
os dispositivos operacionais (técnicos e admi- Treinamento para Professoras Leigas e de Super-
EIXO TEMÁTICO 1 visão de Ensino, em São Luiz do Maranhão. Para
Svensson, a distribuição destes equipamentos é
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO algo que ultrapassa das necessidades arquitetô-
nicas e urbanísticas, funcionando como espaço
de potencial emancipação coletiva e constituição
de vínculos, dotando comunidades de capacidade
para agir e organizar suas concepções de espaço
(SVENSSON, 1992).

Figura 1: Escola Primária, Fachadas (acima) e Planta Baixa,


Projeto Bebedouro. 1. Salas de aula; 2. Administração;
16º SHCU
3. Cantina; 4. Depósito. Cada módulo tem 2x2m de lado.
30 anos . Atualização Crítica
Fonte: Redesenho em CAD elaborado pelos pesquisadores
816 a partir de Svensson (1992, .102).
Infraestrutura e equipamentos como ausente em empreendimento de grande escala.
articuladores da vida urbana A ideia de distribuição de equipamentos públicos
no território revela dois temas caros à prática ur-
banística do período: a escala e dimensionamento
Arquitetura e urbanismo moderno se colocaram
das funções urbanas a partir do equilíbrio entre
no horizonte o enfrentamento à crise societária.
posições da população no território.
Com efeito, segundo Argan (2000), propõe-se
também modificar profundamente a estrutura
da sociedade, renovando as expressões do sen-
timento coletivo, fazendo convergir formação
social e espacial. Desse modo, a expressão das
construções modernas não se exprime apenas no
monumento, no templo, no mausoléu – edifícios
que são forma sensível aos “eternos valores” às
grandes ideias; seu domínio é o da vida cotidiana,
“dos atos através dos quais a cultura e a civiliza-
ção se traduzem num modo de vida: a fábrica, o
escritório, a casa, o teatro, a escola, e com todos
esses objetos que ter referência direta à prática
da existência cotidiana. “ (ARGAN, 2000, p.36)

Figura 2: Estação Principal de Bombeamento, Bebedouro


Fonte: Svensson (2015).

Importa ressaltar a atenção plástica, a preocu-


pação arquitetônica dirigida mesmo objetos téc-
nicos como a estação de bombeamento (Figuras
2 e 3), cuja concepção formal está fortemente
alinhada com a dimensão programática. Res-
salta-se a relação entre plano de cobertura e
corpo da edificação (CAHÚ e CANTALICE, 2018),
assim como a implantação do edifício, em que se
conciliam a demanda técnica e os fisionômicos.
Já as moradias foram projetadas par colonos,
operários e técnicos de nível superior. A seriação
aqui é combinada à expansibilidade, aliada ainda
a pesquisa por novos materiais e soluções técni-
cas. Ainda: a relação entre casa e terreno busca
oferecer mínima diversidade de espaço, às vezes
EIXO TEMÁTICO 1
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO

Figura 3: Estação Principal de Bombeamento, Elevações. O


módulo empregado é o mesmo das escolas, 2x2m. Fonte:
Redesenho em CAD de arquivos originais do acervo de
Frank Svensson (2015).

A realização de programas habitacionais


e núcleos urbanizados

O trabalho de irrigação de Bebedouro permitiu à


prática urbanística desempenhar protagonismo
na organização de um território, fazendo fren-
te à organização social desigual e complexa. Ao
mesmo tempo, representou impactos signifi-
cativos na demanda de circulação de bens, de
movimentação da mão de obra, e o aumento da
demanda por habitação. No projeto de Irrigação
do Bebedouro (1967-1970) em Petrolina, Svensson
coordenou levantamento e estudos das tipologias
habitacionais para melhor compreender sua or-
ganização e forma de construir.

Svensson identifica a possibilidade de realizar


um parcelamento que inclui áreas agricultáveis,
gerando um sistema de economia competitivo a
partir das características socioculturais da po-
pulação local. O êxodo para as cidades em busca
16º SHCU de melhores salários e condições de trabalho
30 anos . Atualização Crítica
é fator relevante para as ações da SUDENE. O
818 deslocamento da população no território resulta
em aumento na demanda por habitação, aumento A produção do campo em maior circulação am-
nos números do comércio e ampliação de ser- plia as características e forma de circulação de
viços locais. Portanto, promover o equilíbrio é mercadorias nas áreas urbanas, de modo que se
determinante para o incremento da produtividade faz necessário reconhecer “o desenvolvimento
tanto da agricultura quanto dos produtos que objetivo do campo em interação com o modo de
resultam do beneficiamento de matéria prima. vida na cidade. “ (SVENSSON, 1992, p.203)

Figura 4: Primeira fase de instalação do projeto de Bebedouro Fonte: Svensson (1992, p. 101).

O dimensionamento populacional em unidades de organização das atividades coletivas na forma de


vizinhança foi feito sem se recorrer à constituição funções compartilhadas em espaços de ensino,
de aldeias, mas não havia nenhuma tradição de saúde, recreação, comércio e outros (Figura 4).
formação de núcleos naquela região. Além disso,
maiores níveis de sociabilidade só poderiam ser Entre as atribuições urbanísticas, está a media-
alcançados por uma forma de morar intimamente ção entre expressão do indivíduo e materialidade
ligado à forma do uso da terra (SVENSSON, 2015). social, de forma que “como seres sociais, a rea-
Esse raciocínio faz eco com o dimensionamen- lidade dos mesmos coincide com o conjunto de
to do assentamento de Bebedouro, fortemente relações sociais da formação socioeconômica a
atrelado às maneiras de circular das pessoas: que pertencem” (SVENSSON, 1992, p. 193). Para
distâncias médias e máximas a serem percorridas Svensson, encontrar as categorias econômicas
à pé por diferentes perfis etários; quantidade dos sujeitos, não nos exime de empregar instru-
de pessoas a serem atendidas pelos serviços mentos específicos de abstração. É a partir do
presentes em determinada áreas de influência; traço real que se compreende as individualidades.
EIXO TEMÁTICO 1 Com efeito, mesmo o tema habitacional nos leva
a investigar as formas socialmente organizadas,
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO sendo estas portadoras do que o autor denomina
por conceitos quantitativos e qualitativos das
condições concretas de vida.

Estas experiências convergem para os pontos que


assinalam o desenvolvimentismo no seu escopo
pioneiro de caráter renovador e urbanizador. A
prática urbanística do período se expressa atra-
vés de planos setoriais ordenados, reguladores
da forma de expansão e consolidação do tecido
urbano, incorporando ao desenho urbanístico
pautado por diretrizes e metas claras e ampla-
mente compartilhadas. No trabalho de Svens-
son, a realidade social é marcada pelas relações
de produção, pela formação socioeconômica
na qual o sujeito está. Portanto, ter perspectiva
clara do desenvolvimento histórico da socieda-
de é necessidade inevitável para arquitetos e
planejadores, algo que requer a “ação recíproca
e planificada entre as instituições as formas so-
cialmente organizadas”, referencias importantes
para o desenvolvimento histórico genérico das
classes (SVENSSON, 1992, p.195)

práticas urbanísticas desenvovimentistas:


repercussões e refLexões

Desde os anos 1990 entrou em curso no país uma


prática urbanística caracterizada pela autonomia
política, em que governos locais atinaram com
novas estratégias de gestão urbana, focadas na
desregulamentação e parcerias entre governos
e capital privado com vista à melhor circulação
de capital e aumento da produtividade e compe-
titividade entre cidades (FARIAS FILHO, 2013a).
Ao final do século XX, o urbanismo estratégico
caracterizado por autores como Vainer (2000)
ganha fôlego, fazendo com que o planejamento
de longo prazo perca espaço para ações imedia-
tas, animadas pela flexibilização e volatilidade de
ambientes urbanos deprimidos por décadas de
desinvestimento. Uma década depois, o gover-
no do Partido dos Trabalhadores articulou um
componente prospectivo às ordens de funciona-
mento estabelecidas à uma década. Quer dizer,
16º SHCU os Planos estratégicos formulados ao longo da
30 anos . Atualização Crítica
década de 1990 encontraram ambiente propício
820 para se transformarem, articulando novas for-
ças econômicas nas cidades. O contexto político econômico da produção agrícola, sobretudo cana
favoreceu a emergência do Programa de Acele- e do algodão. Resulta daí também um contraste
ração do Crescimento (PAC), no âmbito do qual entre a zona úmida litorânea e o interior. A cen-
foram formulados consórcios entre o governos tralização dos meios de produção econômica foi
e instituições. enfrentada com ampliação e melhoria da rede de
infraestrutura viária, de saneamento, de novos
No desenvolvimentismo, o marco intelectual da equipamentos e habitação.
produção urbanística era configurado por ins-
trumentos como zoneamento e plano diretor, em Nos últimos anos, o enfrentamento às assimetrias
que se buscava o equacionamento de iniquidades entre atividades econômicas entre regiões e nos
por meio de planos diretivos organizados a partir diferentes estados no Nordeste, foi modificada,
de princípios gerais. Já no novo desenvolvimen- apesar de manter correlações consideráveis com
tismo, os planos estratégicos se mostram mais as práticas dos anos 1960. Obras vultosas como
versáteis, como plano de negócios, justificados a transposição do Rio São Francisco, a dotação
pela compreensão de que as cidades, entendidas de infraestrutura de eletricidade no âmbito do
como empresas (Sanchez, 2003) devem competir Programa Luz para Todos2, além de iniciativas
com base em suas capacidades de atrair e gerir conduzidas no âmbito da agricultura familiar e
recursos de forma sustentável. Assim, ainda que de programas habitacionais como o Minha Casa
a parceria entre governo e empresas figurado Minha Vida, dinamizaram a economia da região.
no PAC tivesse como meta o estabelecimento A criação de Institutos Federais de Educação –
de novas ordens produtivas no tecido urbano, o responsáveis pelo ensino técnico e tecnológico
que ocorreu foi algo mais assemelhado à instru- –, concomitante aos investimentos em Universi-
mentalização e racionalização da cidade, aspecto dades Públicas3, contribuíram com o expediente
utilitarista que beneficia sobretudo o tempo pre- tecnológico e intelectual desse processo.
sente das ações em curso.
No complexo de forças regionais observa-se,
No momento em que o debate sobre o desenvol- por tudo isso, novos arranjos. Essas ações co-
vimento retorna à agenda pública por meio de ordenadas e de forte impacto territorial, impul-
política governamental caracterizada por ma- sionaram modificações produtivas de diversas
ciços investimentos estatais, a modificação do ordens, criando fatores multiplicadores no campo
território de forma contínua e consciente parece econômico e mudanças na paisagem da região do
ter sido infiltrada por uma prática urbanística semiárido nordestino e no centro oeste brasileiro.
assente no princípio estratégico, ao contrário Diferentemente do que ocorreu nas metrópoles, a
dos anos 1950-1964 em que predominou a cons- modificação do espaço nestas regiões ocorre por
tituição de novos núcleos urbanos ou renovação meio da mecanização da atividade mineradora e
dos mesmos. Farias Filho (2013a) ressalta que no das grandes propriedades monocultoras agrone-
interstício dessa linha temporal, entre o período
desenvolvimentista dos anos 1960 e da primei-
2. Trata-se de um conjunto de medidas públicas do Brasil
ra década do século XXI, situa-as uma prática
cujo propósito é levar eletrificação às áreas remotas com
urbanística liberalizante, de reconfiguração do
tarifas subsidiadas pelo Governo Federal, governos estadu-
arcabouço prático-teórico produzida anterior- ais e empresas distribuidoras. Foi criado em 2003 a partir
mente, assim como das formulações políticas e do Programa Luz no Campo.
formas associativas emancipatórias que tenham
3. O Decreto Federal nº 6.096/2007 criou o Programa de
surgido nesse contexto.
Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Uni-
versidades Federais (Reuni) é o principal marco do movi-
Desequilíbrios regionais fundamentaram a criação
mento recente de expansão da educação superior federal
da SUDENE. Nos anos 1960, o desenvolvimento
no Brasil. A política de ampliação e difusão no território
desigual no país estava combinado à capacidade de universidades públicas foi fator fundamental para re-
limitada de cada região lidar com impasses eco- estruturação da dinâmica urbana de município médios, ao
nômicos e produtivos. Dentre as quais, citamos a ampliar acesso ao ensino superior de camadas populares,
industrialização escassa, limitadora dos estímu- diversificar a formação a partir da realidade do entorno dos
los de urbanização, que ficava retida no circuito campi. (MÁXIMO, 2020)
EIXO TEMÁTICO 1 gócio. Ao lado das obras infra estruturais, direcio-
nam um novo desenvolvimentismo, marcada pela
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO maior participação do Estado no financiamento
de obras públicas por meio do BNDES4.

Estes investimentos em infraestrutura produzi-


ram o que é conhecido no campo da economia por
efeito multiplicador, que mede a criação de em-
pregos e concomitante aumento da renda nacional
resultante de um componente autônomo no gasto
público, pois induzem outros investimentos e es-
timulam maior consumo das famílias. No fim, mu-
da-se complementarmente a paisagem urbana,
transformada por novas fisionomias associadas à
produção ao consumo. O filme de Marcelo Gomes,
“Estou me guardando para quando o carnaval
chegar” de Marcelo Gomes, mostra como Toritama
se transformou de um pequeno vilarejo agrícola à
centro produtor de jeans, em negócios familiares
que, dada a serialização e segmentação, geram
peças de vestuário que circulam por todo o país.

Não há dúvidas de que o Nordeste do país possui


hoje estrutura economia mais integrada que à
época do programa de irrigação conduzido pela
FAO no âmbito da SUDENE. As comparações entre
os anos 1960 e 2000 se restringem a problemas
amplos, compreender em pormenores essas
questões exigiria empenho em direções muito
variadas. O desemprego e o subemprego ainda são
consideráveis no interior e nas regiões metropo-
litanas do litoral. O urbanismo como articulador
dos modos de vida e das relações materiais e
produtivas foi tema relevante para concepções
urbanísticas no bojo da SUDENE e se fez presente
em práticas recentes alinhadas a um conteúdo
desenvolvimentista.

Entretanto, a despeito da centralidade do Esta-


do na condução dos processos urbanísticos, no
âmbito dos programas da SUDENE parecia haver
o que encontramos expresso por Svensson como
a disciplina urbanística associada a problemas
concretos; a meta nos anos do PAC parece mais
alinhada à configuração de um modelo de cidade

4. A economista Laura Carvalho (2018) apresenta três pilares


para as mudanças econômicas no país no inicio do século
XXI: a distribuição de renda na base da pirâmide social por
16º SHCU
meio do Programa Bolsa Família (que atendia 3,6 milhões de
30 anos . Atualização Crítica
famílias em janeiro de 2004); o maior acesso ao crédito e
822 os investimentos públicos em infraestrutura física e social.
voltada a sucessivas operações urbanas, como o sobretudo para ações e projetos conduzidas por
dos “megaeventos”, das urbanização de favelas, instituições públicas. Cientes de que as análises
da reconfiguração de centros urbanos e assim por históricas demandam delimitação temporal e
diante, tudo isso com vistas à abertura de frentes semântica, neste trabalho, não realizamos ex-
especulativas para o capital. Ou seja, um tipo de tensa revisão bibliográfica sobre o problema,
desenvolvimento que beneficia antes os setores mas propusemos uma angulação na tentativa
hegemônicos que o conjunto da população, se- apontar características da prática urbanística
cundarizando a sustentabilidade dos empreen- do desenvolvimentismo. Objetivamos pensar – a
dimentos em benefícios de grupos privilegiados. partir de uma elaboração cara ao pensamento de
Svensson – como o conteúdo social se movimenta
Exemplos não faltam: diversos conjuntos habita- influenciado por ações de atores individuais e
cionais no âmbito do programa Minha Casa Minha coletivos, guardando as diferenças entre dois
localizados nas franjas metropolitanas e que hoje períodos em que a faceta desenvolvimentista
apresentam perfil populacional completamente predominou.
diversos daquele para o qual foi projetado; as
infraestruturas de mobilidade, como o teleférico Sobre a obra de Svensson na SUDENE, conclui-
dos Morros do Alemão e da Providência, no Rio de -se que assimilou experiência do planejamento
Janeiro, há mais de cinco anos paralisados; os físico-territorial progressista articulando com a
estádios de futebol subutilizados em diversas ca- luta emancipatória e a consciência de classe. O
pitais e outros tantos casos de experimentações desenvolvimentismo e a emancipação coletiva,
e investimento nas cidades que estão longe das para o autor, se dão por meio da incorporação de
metas para as quais foram pensados. diferentes aspectos da totalidade da vida urbana.
Declarado defensor do engajamento interdisci-
Por fim, vale ressaltar que na história da cidade plinar como algo próprio ao campo arquitetônico
e do urbanismo, as acumulações derivadas da e urbanístico, Svensson sempre enfatizou as in-
técnica e da tecnologia. A pesquisa histórica e fluencias que recebeu dos intelectuais com quem
historiográfica são formas de pensar não apenas teve contato em sua militância política. Embora
numa lista de interpretações sobre fenômenos nos meados do século XX o vínculo profissional e
como a prática urbanística. Não se trata apenas político fosse algo passível de suspeita ou mes-
de organizar de forma temática ou cronológica mo perseguição. O pensamento de Svensson,
um conjunto de interpretações, mas para nos apresenta de forma deliberada e categórica a
colocar em consciência no âmbito da cultura, estrutura transdisciplinar do pensamento sobre
em que “mudança e continuidade precisam ser a cidade, que muda e se transforma em face ao
reconciliadas para determinar um complexo e pensamento social. O termo “desenvolvimento”
perene equilíbrio e reequilíbrio das exigências é recorrente, tanto quanto consciência é eman-
entre ordem e liberdade humana. “ (BREISACH, cipação, formando a miríada síntese de palavras
2013, p.381). Em Svensson, essa postura aparece empregadas para repensar e agir sobre o territó-
na recusa em assimilar as sínteses do passado e rio. No entanto, ressalta-se que para Svensson,
do presente para propor imagens. Sua procura era os saberes compartilhados não implicam na acei-
antes por pensar na necessidade sempre reno- tação irrefletida das práticas não informadas. A
vada de colocar em evidência os conflitos e jogos urbanização produzida fora do domínio técnico
de força presentes na dinâmica da vida humana, não deve ser desconsiderada, mas sim mediada
e responsáveis por dar forma sensível às cidades. continuamente com os valores e expressões dos
lugares.

Sobre as práticas urbanísticas, identificamos


considerações fInais que a pretensão emancipatória calcada na in-
terdisciplinaridade permeou os anos 1960 e nos
A trajetória de Svensson nos traz contribuições anos 2000, o que nos levou, a exemplo de outros
importas para a compreensão das transforma- autores, a buscar possíveis paralelismos e corre-
ções espaciais promovidas (ou ambicionadas) lações. Entretanto, observa-se que os empreendi-
pela prática urbanística do desenvolvimentismo, mentos inovadores, nos dois casos, encontraram
EIXO TEMÁTICO 1 contextos muito distintos de realização. Em certa
medida, a restruturação da dinâmica produti-
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO va por meio de projetos urbanísticos apresenta
variantes: nos anos 1960, os problemas sociais
locais orientavam a ação pública sobre o espaço
com vistas a realização de metas específicas e
condicionadas; enquanto que a concepção do es-
paço urbano como orientado para o crescimento
e competitividade – em suma, majoritariamente
para o mercado – permeou a primeira década
do século XXI, resultando, em muitos casos, em
projetos inacabados.

O estudo da obra de Frank Svensson nos leva a


considerar que, em diferentes contextos, perma-
nece constante a ideia de que diferentes formas
do conhecimento se interpenetram. Mesmo após
sua aposentadoria, Frank Svensson sempre cri-
ticou a postura do dos profissionais que se dedi-
cam a pensar apenas no horizonte da profissão
liberal, do cotidiano dos escritórios particulares
e toda sorte de ilusão que, segundo o autor, era
proporcionada pelo conforto da regularidade da
vida burguesa. Enquanto professor, Svensson
sempre alertou para as fantasias das formas de
empreendimento territorial calcadas apenas em
prescrições, sejam de caráter estético ou funcio-
nal, na orientação de preceitos voluntariosos de
conteúdo mais moral que ético, e que se traduzia
em projetos arquitetônicos. A agudeza de seu ra-
ciocínio impressionava a todos sem desmobilizar.
Fazendo jus, portanto, ao que sempre considerou
como fundante e estrutural: a consciência cole-
tiva, o movimento da matéria.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

824
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https://doi.org/10.1590/2175-3369.012.e20190080.
EIXO TEMÁTICO 1 RESUMO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
A elaboração teórica da territorialidade queer,
surge em um contexto de acirramento de confli-
vídeo-pôster tos gerados pela ocupação de gênero em deter-
minados centros urbanos brasileiros. São Paulo,
Rio de Janeiro, Goiânia e Brasília são exemplos
TERRITORIALIDADE QUEER: de cidades ligadas à um planejamento urbano
rígido que desconsidera a multiplicidade de cor-
UMA PERSPECTIVA DE pos que os permeiam. Neste sentido, o estudo
de territorialidade ligados à corpos abjetos, am-
ANÁLISE plia a possibilidade de análise crítica aos plane-
jamentos de centralidades urbanas, aplicando
diretrizes e processos de caracterização para
QUEER TERRITORIALITY: A PERSPECTIVE OF ANALYSIS posterior análise em recortes determinados.

TERRITORIALIDAD QUEER: UNA PERSPECTIVA DE


ANÁLISIS TERRITORIALIDADE TEORIA QUEER
PLANEJAMENTO URBANO
Silva, Áureo Rosa
Mestrando em Teoria e História da Cidade e do Urbanismo;
Universidade de Brasília
aureo.rosasilva@gmail.com

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

826
ABSTRACT RESUMEN

The theoretical elaboration of queer territoriality La elaboración teórica de la territorialidad queer


arises in a context of heightened conflicts gene- aparece en un contexto de mayores conflictos
rated by the occupation of gender in certain Bra- generados por la ocupación de género en ciertos
zilian urban centers. São Paulo, Rio de Janeiro, centros urbanos brasileños. São Paulo, Rio de Ja-
Goiânia and Brasília are examples of cities linked neiro, Goiânia y Brasília son ejemplos de ciudades
to a rigid urban planning that disregards the mul- vinculadas a una planificación urbana rígida que
tiplicity of bodies that permeate them. In this ignora la multiplicidad de cuerpos que las impreg-
sense, the study of territoriality linked to abject nan. En este sentido, la investigación de la terri-
bodies, expands the possibility of critical analysis torialidad vinculada a cuerpos abyectos, amplía
to the planning of urban centralities, applying gui- la posibilidad de análisis crítico a la planificación
delines and characterization processes for later de las centralidades urbanas, aplicando pautas
analysis in determined cuts. y procesos de caracterización para su posterior
análisis en ciertos cortes.

TERRITORIALITY QUEER THEORY URBANISM


TERRITORIALIDAD TEORIA QUEER URBANISMO
EIXO TEMÁTICO 1 INTRODUÇÃO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
O termo formulado para esta proposta de análise
é formado por uma combinação em que território
vídeo-pôster é considerado elemento catalisador de manifesta-
ções sociais, e corpo como elemento produtor de
sentido no espaço. Nesta intersecção há muitos

TERRITORIALIDADE QUEER: outros temas - o que poderia levar à uma multipli-


cidade de recortes temáticos dentro do mesmo
UMA PERSPECTIVA DE espaço geográfico - entretanto, o que configura
esta abordagem é produzir uma leitura a partir das
ANÁLISE teorias queer vis a vis as práticas urbanísticas de
intervenção no espaço. Entendemos que há um
discurso de abjeção à centros urbanos que se
QUEER TERRITORIALITY: A PERSPECTIVE OF ANALYSIS estende à negação relacionada aos corpos que
ali circulam e habitam. O processo de transfor-
TERRITORIALIDAD QUEER: UNA PERSPECTIVA DE mação de centros urbanos brasileiros, em que
ANÁLISIS muitas vezes se desconsidera preexistências em
favor de uma ordem urbana renovada, “revitali-
zada”, formalizada para o consumo e mais afeita
aos códigos que circulam no campo hegemônico
do urbanismo moderno. O conceito de território
queer serve como elemento potente de desesta-
bilização das noções e entendimentos assentadas
a respeito de lugares urbanos.

Baseando-se na crítica aos princípios do plane-


jamento urbano moderno, fundamentadas em De
Certeau (2008), alinhando à definição de cidade
corporativa elaborada por Fernandes (2013), for-
ma-se o escopo urbanístico a ser abordado. A ci-
dade corporativa é caracterizada em um contexto
que “formas hegemônicas de organização, as
corporações atuam paralela, simultânea e articu-
ladamente ao setor público, em estreita sintonia
com os próprios processos de definição das polí-
ticas e propriedades públicas de intervenção nas
cidades” (FERNANDES, 2013, p.87). A atuação das
corporações no processo de produção da cidade
é exercida com a produção de centralidades ter-
ciárias e novas expansões urbanas.

Esta territorialidade, gerada pelas consequências


das ações dos poderes hegemônicos, é criada
nas “fissuras” 1 dessas construções homogêne-
as do urbanismo moderno ao mesmo tempo em
que atua nas resistências às continuidades das
intervenções. São nessas fissuras que surgem a
16º SHCU
multiplicidade de possibilidades de exploração do
30 anos . Atualização Crítica

828 1. LEFEBVRE, 1993 apud LIMONAD, 2003.


espaço construído, manifestações e análises que finição do termo, serão traçados nexos possíveis
permitem o rompimento com este hegemonismo. com o planejamento urbano através da proposta
Por meio da noção de território queer, locais e de uma categorização de espaços para a compre-
usuários que não se enquadram em conceitos ensão de ações urbanísticas. Este texto auxilia,
estabelecidos de gênero e que portanto trans- tanto na possível aplicação do termo em diversos
cendem e transgridem. Os espaços que resistem contextos, quanto nas influências da presença dos
neste meio noturno urbano, são aqueles que se corpos dissidentes em centros urbanos, sejam
colocam como alheios à heteronormatividade urbanísticas, sejam aos próprios corpos.
(PILE, 1997, p. 1-32). Por extensão, pode-se di-
zer que esses sujeitos e seus usos, à luz dessas
noções, apresentam uma perspectiva contra a
heterourbanização. TERRITÓRIO E TERRITORIALIDADES

Dada a dimensão e a multiplicidade da abordagem Territorialidade está sendo considerada como


aqui proposta, o foco se concentra na formula- algo que ultrapassa qualidades físicas, engloban-
ção teórica do termo de análise: Territorialidade do as manifestações presentes em determinado
Queer, relatando seus aspectos fundamentais recorte. Ao adentrar no conceito de território, di-
para a compreensão do que hoje apresenta ca- versos autores privilegiam dimensões diferentes
racterísticas de ocupações de centros urbanos que interferem na ordem de percepção do espaço
ligados à estudos de gênero. Servirá, sobretudo físico-social. Souza (1995), destaca as dimensões
para compreender o aspecto social que permeia políticas e relações de poder, indicando que o
centros noturnos, através da observação da dinâ- poder não se restringe ao Estado, sendo formado
mica dos corpos e suas influências no urbanismo. por grupos sociais que formam territórios à partir
Na prática, apoia o estudo dos corpos - objetos de conflitos culturais. Sua abordagem transpassa
de estudo da teoria queer - e suas manifestações a noção de território vinculado ao Estado/Na-
territoriais em recortes centrais, com foco em ção, considerando este uma consequência das
suas ocupações. dominações intra-grupos. Nóbrega, enquadra a
definição de território de Souza, como o espaço
Desta forma, o objetivo da abordagem é tecer em que que os conflitos são insurgentes: “...um
diretrizes iniciais para o diálogo entre a ocupação campo de forças onde as relações de poder se tor-
territorial por corpos dissidentes e a crítica ao nam evidentes e deste recorte espacial é que se
urbanismo normativo, em suas vertentes fun- aflora o território. O território não surge a partir do
cionalistas sobre a ótica da cidade-panorâmica espaço, mas sim a partir das relações emanadas
e corporativa. Nesta trajetória serão pontuados desse campo de forças.” (NÓBREGA, 2013, p.8).
os elementos que enquadram conceitos acerca Raffestin, liga território ao espaço socialmente
de território e territorialidades, bem como as construído pelo homem, reduzindo sua definição à
teorias de gênero aplicáveis ao contexto urbano. materialidade social. Segundo o autor, o conceito
Uma análise que reconheça a importância social e de espaço geográfico antecede ao território, que
urbanística de se estudar temas sensíveis como a ao ser apropriado por grupos, há um processo
decadência de centros urbanos através de visões de formação. Ou seja, existem dois agentes de
multidisciplinares, a questão da abjeção de corpos territorialização, o espaço e seus utilizadores
e territórios será a ótica utilizada para investigar, sociais: “Ao se apropriar de um espaço, concre-
relatar e compreender o processo de ocupação ta ou abstratamente [...] o ator “territorializa” o
existente em variados centros urbanos espaço.” (RAFFESTIN, 1993, p. 143).

São realizadas escolhas metodológicas pela Haesbaert é que mais se aproxima de nossa abor-
não-linearidade – seja temporal, seja temática dagem. Atentando-se às dimensões sociais, de
– em que a multiplicidade de termos e campos apropriação e aspectos históricos, distinguin-
teóricos se entrelaçam. O próprio título abarca do espaço geográfico de território. Na prática,
assuntos no urbanismo crítico e filosofia, mas os territórios de análise podem não se limitar à
que são contemplados por outras áreas como a centros definidos como bairros oficiais, mas à
antropologia, geografia e sociologia. Após a de- dimensão social e aos elementos que integralizam
EIXO TEMÁTICO 1 determinados usos e usuários. Haesbaert se co-
loca como adequado à análise, pois considera
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO as relações de poder presentes no espaço ge-
ográfico, aspecto fundamental por onde passa
a territorialidade aqui desenvolvida, e principal-
mente as dimensões subjetivas, denominadas
como consciência, apropriação, identidade ter-
ritorial ou dominação do espaço, dependendo
dos instrumentos de ação político-econômica.
(HAESBAERT, 2007, p.42-43).

A crítica ao urbanismo moderno trazida por De


Certeau (2008) se alinha à territorialidade de
Haesbaert quando considera o planejamento
urbano passível de construções homogêne-
as de espaço. Os exercícios de dominação dos
espaços e os instrumentos de ação surgem num
segundo momento, quando a cidade-panorama
concebida sob um “olho totalizador”, começa a
apresentar as primeiras contradições em relação
às manifestações inerentes à territorialidades não
planejadas. Marques (2018), menciona que essa
visão panorâmica da cidade, negligência o que
circula em meio à multidão, e as territorialidades,
ao mesmo tempo em que satisfaz um desejo de
visão única e totalitária.

Existe uma ordem de leitura na qual a apropriação


de um grupo através de suas manifestações sob
determinado espaço seriam o ponto de partida
para a formação de uma territorialidade. Enten-
de-se que teóricos como o antropólogo Ferreira
(2014) referem-se ao território apenas como o
ambiente biofísico2, tratando apenas elementos
de materialidade e funcionalidade para a condição
da formação conceitual. Inicialmente, ao com-
preender a existência da Territorialidade Queer
aqui proposta, é de suma importância a noção de
território como espaço/ambiente construído ao
longo de um tempo em que coexistem processos
sociais e históricos, como descrito por Saquet
(2010), como ambiente de dominação, relações
de poder e apropriação, tal qual escrito por Haes-
baert (2007), e oposto à observação panorâmica
de seus objetos, como elaborado por De Certe-
au (2008). Considera-se também como espaço
biofísico já que a funcionalidade e materialidade
também serão importantes para a tecitura da
crítica ao urbanismo normativo a ser elaborada.
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
2. Ferreira (2014), trata de ambiente biofísico para a nomear
830 a ideia de território.
Neste sentido, antes de uma compreensão mais te-dia. Os “territórios queer” servem como chave
ampla da Territorialidade, entende-se que não interpretativa na direção de práticas urbanísticas
existe uma única no mesmo espaço físico e tempo, mais diversas e plurais. Locais em que uma ótica
coexistindo múltiplos territórios. Territorialidade de gênero auxilia na elaboração de um pensamen-
são as manifestações que classificam aquele to da cidade “além-dia”, na qual o sexo, pornografia
território como de “alguém”, constituindo um “con- e prostituição passam a ditar dinâmicas próprias
junto de práticas e suas expressões materiais e de apropriação do traçado urbano. Ao se criar um
simbólicas capazes de garantirem a apropriação conceito de Territorialidade Queer, em paralelo,
e permanência de um dado território por um dado há a referência de um território queer, ou seja,
agente social (Estado, diferentes grupos sociais, espaços apropriados por pessoas queer. Locais
empresas)” (CORRÊA, 2001, p. 252). e usuários que não se enquadram em conceitos
estabelecidos de gênero, que transcendem e
Entretanto, a definição de Corrêa não apon- transgridem, formando territórios de “abjeção”
ta o aspecto pelo qual outros conceitos serão e resistência. Os espaços que resistem nos meios
utilizados para a compreensão do espaço, nos noturnos urbanos são aqueles que se colocam
quais as apropriações são imprescindíveis para como alheios ao capital e a heteronormatividade
a compreensão da dinâmica territorial hoje do – sendo que o próprio corpo pode ser um destes
centro. Saquet (2010), conceitua a territorialidade espaços (PILE, 1997, p. 1-32).
como o cenário de todas as atividades em um
território caracterizada por sua multiplicidade e Para compreender como a teoria queer foi for-
complexidade social (tal qual os territórios). E ao mulada e como lida com os “corpos abjetos”, uma
mesmo tempo relações de domínio entre grupos, síntese do queer por suas correntes de criação,
inerentes ao espaço geográfico, objetos e rela- seguido por sua aplicação aos termos territórios
ções territoriais. Mais do que elaborar a geografia e territorialidade serão realizadas a fim de aplicar
sexual noturna, a territorialidade se atenta aos uma crítica à normatividade e homogeneização
aspectos intangíveis ao urbanismo normativo, dos espaços inerente ao urbanismo moderno. O
aqueles pelos quais um determinado grupo se queer serve de base para um recorte territorial
apropria do recorte, estabelecendo dinâmicas partindo da identificação de uma territorialida-
próprias não planejadas, pois, mesmo após um de, atentando-se aos aspectos impalpáveis do
processos de esvaziamento e abandono, mani- território que levam os “corpos queer” à apro-
festações noturnas podem ainda persistir em um priação de um traçado urbano já consolidado de
horário em que a não permanência prevalece, com uma metrópole.
usos e características em comum.

O desafio é compreender a partir de qual ponto,


a partir das peculiaridades de cada recorte, é QUEER: ASPECTOS TEÓRICOS
possível enquadrar de maneira linear a historici-
dade presente nos objetos de estudo. O ponto de Os corpos abjetos são objeto de estudo constante
partida possível é o território, como materialidade da Teoria Queer3, campo elaborado por Judith
e espaço físico, e a partir dele a compreensão da Butler, que lida com o gênero como algo cultural.
formação da territorialidade queer, retornando ao É, sobretudo, uma corrente política de pensamen-
território, demonstrando suas manifestações no to com o olhar além dos gêneros binários hétero-
espaço urbano. -homo, crítica aos regimes de normatização que

3. Corrente de estudo social cristalizada em meados da


década de 1990 nos Estados Unidos, após o surgimento
TERRITORIALIDADE QUEER da primeira epidemia de AIDS. Judith Butler consolida os
estudos após a publicação de Gender Trouble: feminism and
A ocupação noturna da cidade vêm entrando nas the subversion of identity (1990). Preciado (2015), enquadra
pautas de políticas e reivindicações de grupos Butler como uma “crítica feminista da tradição teórica e
organizados em alguns centros, geralmente rei- metafísica ocidental”, considerando a Teoria Queer como
vindicando um olhar para além do contraste noi- uma corrente pós-feminista.
EIXO TEMÁTICO 1 caracterizam os gêneros como normal-anormal. A
Teoria Queer como modelo de estudo, não se pauta
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO apenas em estudar sexualidades tradicionais,
mas pelos “abjetos”, aquelas pessoas que não se
enquadram em nenhum modelo pré-estabelecido.
O tratamento da sexualidade como social e não
biológico, modificou o foco de visão, centrando-o
nos sujeitos marginalizados, sem categorizá-los
em conceitos genéricos. A teoria busca se opor
às “generalizações corpóreas”, uma vez que o
corpo - quando considerado anterior ao discur-
so generalista e passivo às definições - não se
enquadra na definição de construção cultural do
sexo/gênero (BUTLER, 1990, p. 223).

Ao criticar os binarismos, Butler (1990) desenvolve


a ideia de gênero como uma estilização contínua
do corpo, agindo como regulador e normatizador
do que seria natural ou não, do ponto de vista se-
xual. Salih (2017), nomeia as regulações como um
“script”, no qual o sujeito é guiado socialmente,
ditando maneiras convencionais de se comportar
mediante escolhas naturais. À partir da adoção do
“script”, surge em Butler a ideia de performidade
(ou simulação), indicando que as expressões liga-
das ao gênero, não necessariamente são ineren-
tes ao ser, mas performadas por alguém que “atua”
como determinado gênero: “Não há identidade
de gênero por trás das expressões de gênero; a
identidade é performativamente constituída pelas
próprias ‘expressões’ que supostamente são seus
resultados” (BUTLER, 1990, p.25). Performidades,
neste caso, seriam aquelas expressões ligadas
ao sistema sexo-gênero, reproduzidas à partir
de convenções normatizantes. Assim, pode-se
dizer que os sujeitos queer, não necessariamente
são os performers, uma vez que não se alinham
ao roteiro pré-estabelecido, mesmo que suas
manifestações sexuais também sejam perfor-
midades de si próprios.

Segundo Louro (2016, p.39), queer é um termo


que pode ser traduzido por estranho, ridículo,
excêntrico, sendo utilizado de forma pejorativa
com que são designados homossexuais. Carrega
uma carga de estranheza e deboche, ao mesmo
tempo que é adotado por vertentes de movimen-
tos homossexuais para representar contestação
e oposição à heteronormatividade compulsória
16º SHCU da sociedade. Salih (2017, p.21), indica que Butler
30 anos . Atualização Crítica
ao conceituar o queer, está menos interessada
832 na individualidade do sujeito – e ou seja, a quem
o queer se refere – e mais no processo em que às exclusões normativas, às globalizações e às
o indivíduo se insere para assumir sua posição. identidades homogêneas naturalizadas. Este
Isso indica que o termo aproxima-se muito mais à corpo, manifestante e performático5, é um dos
dualidade entre abjeção e sua adoção pela militân- pontos-chave para a compreensão de um “urba-
cia, frente à gêneros ou recortes de sexualidade nismo não planejado” realizado por estes corpos
específicos. Ainda sobre o queer, a autora ressalta abjetos dentro dos funcionamentos homogêneos
que “sexo e gênero são efeitos - e não causas - de da cidade.
instituições, discursos e práticas” (SALIH, 2017,
p.21), ou seja, queer não define um sexo, mas sim O corpo abjeto, proposto pela teoria queer, passa
um sujeito que foi marcado pelas convenções a ser elaborado como corpo falante pela contras-
heteronormativas institucionais. Desta forma, a sexualidade de Preciado (2015). Em seu manifesto
teoria não investiga os sujeitos com binarismos há a crítica objetiva à desconstrução das práticas
definidos socialmente, e sim aqueles corpos que sexuais naturalizadas, através da visão de equi-
por conta da generalização binária, se tornaram valência dos corpos, com uma análise crítica da
abjetos publicamente. diferença de gênero e sexo. Corpo falante por,
diferente dos abjetos que adotam sua condição,
Abjeção, para Miskolci (2012, p.24), refere-se “ao serem corpos em constante manifestação, con-
espaço a que a coletividade costuma relegar aque- testação e crítica, corpos que mesmo abjetos ela-
les e aquelas que considera uma ameaça ao seu boram sua existência em busca de uma sociedade
com funcionamento, à ordem social e política”. equivalente e justa do ponto de vista do gênero e
Os abjetos, neste caso, ultrapassam a ideia da suas sexualidades: contrassexual.
homossexualidade, referindo-se à corpos que,
pela sua condição sexual passam a ser ameaça- Preciado (2015) leva em consideração um “sujeito
dos por uma lógica de relações de poder políti- do pós estruturalismo”: moldável e criado pelos
co-sociais com uma visão homogênea e estável aspectos normatizantes de cultura, política e
da sexualidade, visão esta, fortificada nos anos instituições. Esta cultura, por sua vez, na teoria
1960 após a epidemia de AIDS vigente. A teoria queer, é ligada à um marxismo crítico e aos estu-
vem, sobretudo para escancarar as marginali- dos culturais, deixando de lado, em parte, a noção
zações geradas desta dualidade entre normais de cultura sob aspectos antropológicos. Este
e “anormais”, sem a normatização dos abjetos, corpo, falante ou abjeto, é criado pelo contexto
mas com o estabelecimento de uma identidade cultural que considera os binarismos enganosos
de resistência a partir da adoção do queer como como “um simples processo evolutivo e, portanto,
sujeito. Salih (2017), argumenta que a teoria de uma vez mais, natural, gerador, sexual” (PRECIA-
Butler causa perturbação, no momento em que DO, 2015, p.11), e como consequência, gerador de
questiona a categoria de “sujeito”, colocando-o dissidências, e anormalidades no âmbito urbano/
como objeto a ser construído e performativo; e ao institucional.
indicar possíveis modos de alterar as identidades
sexuais, que causam ainda mais abjeções por A teoria queer e sua forma de lidar culturalmente
parte de quem está interessado na preservação com os corpos abjetos são a base para a compre-
das oposições binárias. ensão deste usuário noturno do centro, enquanto
a contrassexualidade aparece como crítica aos
Os “modos de alterar as identidades sexuais”, é o usos, compreendendo que mesmo ativadores da
ponto de partida para Preciado (2015), estabele- região, com aspectos positivos de apropriação
cer a crítica pós-feminista4 como a visão de um urbanística, reforçam uma cultura predatória do
sujeito “instável” do ponto de vista das identidades sexo, na qual há a inferiorização de determinados
estabelecidas socialmente, e não como autôno- gêneros. Butler aparece como ponto chave para
mo. Este agente sujeito a constantes renegocia- compreender essa territorialidade abjeta, se colo-
ções identitárias, acaba por realizar resistências

5. Preciado (2015), apresenta o corpo da sociedade con-


4. Além de Butler, há a adequação na corrente, segundo trassexual como um agente promotor de manifestações e
a autora, de Sedgwick, Moraga, Haraway, inspirados por performidades de ruptura com a naturalização das práticas
Foucault, Lacan, Derrida, Lyotard e Deleuze. sexuais.
EIXO TEMÁTICO 1 cando ao lado destes corpos, enquanto Preciado
traz a crítica de como os próprios corpos abjetos
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO se relacionam dentro destes territórios.

Pela ótica do manifesto contrassexual, os cor-


pos abjetos se manifestam performaticamente
buscando equilíbrio de forças com os agentes
detentores de poder sobre os espaços. Essas ma-
nifestações, possuem similaridades às práticas de
espaços de De Certeau (2008), que compreendem
ações de resistência direcionadas aos corpos dis-
ciplinados pela ótima moderna do planejamento
urbano. A capacidade corpórea de inventar prá-
ticas territoriais, reocupar espaços, levando em
consideração sua própria experiência de gênero
na cidade, pode ressignificar o território.

Ao aproximar a teoria queer dos conceitos ter-


ritoriais propostos anteriormente, conectados
fundamentalmente pelas performidades/mani-
festações dos corpos abjetos, são elas as gera-
doras de territorialidades por criarem elementos
de apropriação, uma vez que a presença deste
corpo no território é performático e contestador
no sentido da heteronormatividade. Alinhado ao
momento em que os corpos passam a performar
e usufruir do território, com elementos de territo-
rialidade, se constitui um território de abjeção (ou,
como será chamado: território queer), podendo
estar em conjunto com demais territórios simi-
lares, constituindo uma geografia sexual (abjeta).

TERRITÓRIOS-QUEER

Considerando os corpos elaborados pelas teorias


de gênero citadas, sua inserção nos territórios
possuem multiplicidades de análise que cabem
ser especificadas. A noção de territórios-queer
pressupõem a existência de uma cidade cons-
truída à partir de uma normatização de usos e
funcionalidades. Esse panejamento encontra
resistências nos seus intra-territórios e, tal qual
os corpos, existem de espaços de resistência que
fogem à lógica normativa, muitas vezes pautada
pela moralidade. Estes territórios, quando vincu-
lados aos estudos queer, passam a constituir uma
organização própria ligada à construção de uma
16º SHCU ocupação corpórea. São espaços representativos
30 anos . Atualização Crítica
das contradições binaristas e homogêneas, tanto
834 do sistema sexo/gênero, quanto do urbanismo
moderno. Neles, as sexualidades ditam o ritmo mente aqueles em que há abjeção gerada pela
de sua consolidação, bem como sua relação com cultura heteronormativa às manifestações dos
outros intra-territórios de uma territorialidade corpos abjetos. A permanência desses corpos
constituída. é resultado de diversas disputas territoriais por
pontos ligados ao consumo sexual, configuran-
A concepção da sexualidade como tecnologia, do territorialidades sexuais. Não são espaços
ou seja, como um sistema programado para a criados, planejados, muito menos vislumbrados
naturalização das práticas sexuais, coloca as de- para este fim, mas como reflexo de um processo
nominações culturais dos elementos do sistema de desterritorialidades, produziu novas territo-
sexo/gênero, como agentes centrais para uma rialidades.
sociedade sexual predatória em que os corpos
abjetos se apropriam de espaços e regiões para Preciado exemplifica sistematicamente em sua
formar zonas e rotas em que seja aceitável sua obra, os intensos processos de desconstruções
presença à vista. (PRECIADO, 2015). sociais para a construção de novas fundamen-
tações da visão sobre o sexo. A “sociedade con-
Segundo Miskolci (2012, p.42), “as ordens arqui- trassexual” seria um ideal em que as categorias
tetônicas são tecnologias de construção de gê- biológicas, vinculadas a masculino e feminino,
nero, de discriminação”. Assim, propomos que dariam lugar à “registros abertos à disposição dos
as concepções urbanísticas de ordenamento corpos falantes no âmbito de contratos consen-
e homogeneização de práticas, sobretudo as suais temporários” (PRECIADO, 2015, p.35). Esse
comerciais, acabam por naturalizar os gêneros rompimento é formado à partir da aproximação
heteronormativos, consequentemente criando da teoria queer à desconstrução, afirmando que
territórios de abjeção urbanas. Estes territórios para toda construção equalitária6 nesta socieda-
acabam possuindo maior força no período noturno de, são necessários sistemáticos rompimentos e
pois surgem num vácuo proporcionado pelo es- desconstruções. Por vezes, o Manifesto Contras-
vaziamento após o horário comercial. Podem ser sexual, se aproxima da noção desconstrutivista,
analisados como dissidências que se contrapõem não como um agente atenuador das consequên-
à uma visão de ordenamento urbanístico pré-es- cias, como a abjeção, mas como um caminho para
tabelecido na qual os centros foram planejados. a quebra do “script” sexual imposto.
Voltados ou não à naturalização do consumo se- Assim como Preciado considera a contrasse-
xual, os territórios centrais em que hoje há a pre- xualidade como um suplemento para aquilo que
sença de grupos formados, são, em determinado deveria completar, “Derrida vê a desconstrução
grau, ligados à essa tecnologia de normatização como uma força (ainda que uma força fraca) de
dos corpos sexuais. O território queer, no entanto, resistência e de dissidência para as novas hu-
não necessariamente é um espaço físico delimi- manidades, as humanidades por-vir nessa uni-
tado e com presença de diversidade de gênero. É, versidade sem condição.” (O’ROURKE, 2006, p.7).
sobretudo, um local em que o processo político- Tanto a desconstrução dos binarismos, quanto as
-cultural levou à presença majoritária de corpos desterritorialidades são pontos de dissidências
sexuais abjetos e performáticos que servem de que poderiam culminar no surgimento de uma
questionamento teórico, tanto ao funcionamento sociedade contrassexual (pautada na equivalência
hétero-comercial-diurno da cidade, quanto às de corpos-sujeitos), rompendo com a excitação
apropriações urbanas ligadas ao sexo. sexual atual. O processo de territorialização de
grupos equalitários, é um indicativo da possibili-
Os territórios de estudo só passam a ser consi-
dade de existência da sociedade contrassexual, a
derados queer, abrigando “abjeções culturais”,
territorialidade pautada nas performidades sexu-
quando as performidades passam a ocorrer de
ais abjetas, especulando a definição do sistema
forma sistêmica e organizada. De modo geral,
heteronormativo vigente.
se há territorialidade destes corpos, há neces-
sariamente um território constituído, mas não o
oposto. Diversos territórios coexistem, mas nem 6. A Teoria Queer trata da equidade/equivalência entre os
todos possuem territorialidades e apenas alguns gêneros frente à igualdade, como forma de equilíbrio à
podem se enquadrar como territórios-queer, so- força contrária de controle e repressão heterocêntrica.
EIXO TEMÁTICO 1 QUEER + TERRITÓRIO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Desta forma, territorialidade queer é, ao mes-
mo tempo, resultado e agente de um processo
de desterritorialização. Consequência, por ser
formada após processos de descentralização,
quando características que definiam os centros
como únicas centralidades, migraram para ou-
tras regiões periféricas, e agente por, dentro de
uma perspectiva histórica, contribuir para outras
migrações. Junto com outras territorialidades
anteriormente citadas, a queer é usada como
justificativa para o desinteresse público na re-
ocupação das áreas, aumentando ainda mais as
migrações para as periferias urbanas. Ao mesmo
tempo em que os territórios queer se fortalecem
e se multiplicam, territórios ligados a usos co-
merciais e/ou elitizados, excluem o centro de sua
perspectiva. A própria abjeção é uma repulsa à
presença de elementos heteronormativos tradi-
cionais, sua apropriação por corpos culturalmente
marginalizados, cria elementos de permanência
e exclusão simultaneamente.

São as interações sociais em que necessaria-


mente há presença de paradoxos em relação às
identidades sexuais construídas na contempo-
raneidade, manifestações geradoras de espa-
ços queer, de abjeção e clandestinidade. Mesmo
que os espaços apresentados a posteriori sejam
um reforço de uma cultura sexual predatória em
que as tecnologias sexuais devem ser fixas, se-
rão objetos da territorialidade queer, tanto pela
abjeção causada aos agentes planejadores dos
usos da cidade, quanto pelo conflito entre gênero
presentes.

nexos entre cidade e territorialidade queer

A ideia fundamental para a crítica urbanística a


ser traçada aqui está baseada nos pressupostos
mencionados de De Certeau (2008), da tentativa
de uma “visão total” no processo de concepção
dos espaços urbanos. Juntamente com Lefebvre
(1993), Certeau aborda consequências deste tipo
de atuação urbana nas cidades citando o apareci-
mento de anormalidades, fissuras, manifestações
16º SHCU e resistências. No contexto dos centros urbanos
30 anos . Atualização Crítica
das cidades brasileiras, Fernandes elabora quais
836 seriam os indícios iniciais do aparecimento dessas
consequências relacionando-as aos “vazios cons- na qual o sexo7 e suas variadas determinações
truídos”, como sendo áreas urbanas que perderam são considerados no ato de exercício de poder.
função e vitalidade (2008, p.86). O surgimento Ao mencionar as diversas dissidências sexuais
destes vazios estão ligados à forma de atuação provenientes das ações biopolíticas, Preciado
das “cidades corporativas”, nas quais atuam forças indica que os diversos corpos que fogem às nor-
de produção de espaços ligados diretamente à matizações, se apresentam em tanta quantidade
corporações, atuando principalmente na pro- de minorias sexuais, que se tornam “multidões”, e
dução de novas centralidades no tecido urbano. são essas multidões no espaço urbano, quando
consideradas monstros sexuais, tornam-se queer.
Colocados as consequências da forma de atuação Estes corpos são centrais em um processo de
deste urbanismo, os territórios surgidos na brecha “desterritorialização” da forma de produção es-
do sistema de construção do espaço passam a pacial baseada na heterossexualidade, não só dos
configurar resistências que necessariamente espaços segregados no tecido urbano (guetos e
devem ser controladas por outras intervenções. periferias), mas do “espaço majoritário e o “espaço
Ou seja, o próprio sistema que produz estas fissu- corporal” (2011, p.14).
ras, acaba por justificar novas atuações através
de suas existências. A continuidade entre poder Preciado, Butler e os diversos estudos que teori-
e estratificação social gera, a cada combinação, zam sobre os corpos abjetos, os colocam como
uma nova forma de urbanismo por entre seus abjeções produzidas pelo espaço (e suas formas
paradoxos (FERNANDES, 2013, p.88). Foucault, ao de planejamento) e produtores de ressignificações
elaborar a transformação de imagem em relação espaciais (resistentes). Ocupar um território pro-
ao corpo homossexual, coloca-o como sujeito à duzido para corpos normatizados, através de dire-
disciplina e à marginalização, mas admite a cons- trizes homogêneas de uso e sem a consideração
tante presença de resistências encabeçadas por das diversas manifestações e conflitos inerentes
estes corpos: “Não há relações de poder sem à interação social, é a forma de resistência mais
resistências; estas são tão mais reais e eficazes potente. A ressignificação destes territórios, os
quanto mais se formem ali mesmo onde se exer- colocam como inseridos no contexto sob o qual
cem as relações de poder (CERTEAU, 2008, p.249). foram criados, mas com paradoxos e inscrições
de gênero próprias, sintetizando em si a crítica
Desta forma, o ponto de encontro entre a fissu- à produção urbanística normativa.
ras, as marginalizações e os corpos que exercem
poder contrário são os territórios ocupados no Os territórios-queer podem ser considerados
contexto de produção homogênea, capitalista uma destas “insurgências resistentes”. E para
e altamente funcionalizada, mas sintetizam as além de somente inseri-los como elemento deste
contradições deste sistema a partir dos corpos processo, é necessário elaborar quais os possíveis
ocupantes. Não são espaços onde há sobreposi- “tipos de resistência” exercidos nestes espaços.
ção de poderes, mas onde necessariamente há Compreendendo como esta nova forma de urba-
uma exemplificação dos conflitos gerados pela nismo mencionada por Fernandes, se apresenta
contradição de seus exercícios. Quando Miskolci de forma prática no espaço e quais são seus ato-
menciona as ordens arquitetônicas, é possível res. Esse entendimento por completo do processo
traçar indícios da tangência à crítica urbanística de formação da territorialidade é fundamental
presentes nas obras de Butler e Preciado. A pre- para antever como se darão possíveis futuras
sença dos corpos abjetos provoca aos demais intervenções, auxiliando no processo de conso-
desconforto ou mesmo temor, uma vez que sua lidação das resistências no espaço.
presença constitui um exercício de poder con-
trário à produção heterocêntrica, hegemônica e Quanto à caracterização dos territórios-queer,
normativa do espaço urbano (2012, p.24).
7. Preciado (2011, p.11) identifica os diferentes níveis de
Preciado (2011), considera a forma de poder atuan- determinações inscritas à palavra sexo, mencionando “os
te sobre corpos e espaço no contexto capitalista órgãos chamados “sexuais”, as práticas sexuais e também os
como “ação biopolítica”. Uma das ações de domi- códigos de masculinidade e de feminilidade, as identidades
nação dos corpos é nomeada como “sexopolítica”, sexuais normais e desviantes”.
EIXO TEMÁTICO 1 são utilizadas discussões sobre espaços que já
apresentam relações acerca de usos à margem,
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO ou seja, autores que discorrem sobre territórios
detentores de controvérsias quanto ao uso nor-
mativo dos espaços urbanos. Vejamos em que
medida.

Rose (1993), caracteriza a existência de “espa-


ços paradoxais” do tecido urbano, referindo-se à
territórios de dimensões múltiplas e confrontos
espaço-identitários nos quais o indivíduo não
pode ser enxergado sob uma ótica homogênea,
principalmente nas críticas urbanísticas moder-
nas de centro-periferia. Os territórios-queer di-
recionam os confrontos, antes aplicado a ótica
urbana de uma cidade, à um trecho específico,
em que indivíduos marginalizados utilizam e po-
tencializam territorialidades em um centro urbano
consolidado, mas que repetidamente busca a
expulsão desses indivíduos de seus limites. Na-
bozny (2007), retrata a ideia de espaço paradoxal
como um possível local de subversão de gênero,
nos quais os corpos dissidentes, mesmo que pre-
sentes no território marginalizador, podem igualar
o confronto idiossincrático.

Já Lefebvre (1993) discorre especificamente sobre


os “espaços diferenciais” como aqueles em que há
a oposição ao processo sob o qual ele foi consti-
tuído, negando a atuação prévia dos planejadores.
Tavares, coloca o espaço diferencial como desa-
fiador do espaço abstrato, desconsiderando os
poderes dominantes, colocando os corpos com
liberdade para se autodefinir e se proteger (2015,
apud KILIAN, 1998).

A terceira categorização encontra-se na formula-


ção de “espaço heterotópico” de Foucault (2006),
na qual o espaço concreto seria palco de todas
as representações. O surgimento de diversas
contestações neste contexto, levaria à fragmen-
tações e inversões de regras. Essa dinâmica de
competição entre os corpos seriam marcadas por
superposições de espacialidades, não reduzindo
o espaço heterotópico à relações de domínio e
influência atribuídos aos conceitos de territoria-
lidade (VALVERDE, 2009, p.11). Sinteticamente, a
heterotopia seria definidora de um espaço com
múltiplas presenças de corpos, mas cada um
16º SHCU deles possuindo regras específicas de ocupação
30 anos . Atualização Crítica
trazidas de outros espaços. Nisto, seria possível
838 identificar diferentes formas de utilização, dentro
de um único espaço, por corpos distintos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Neste sentido, para a elaboração de uma crítica
BUTLER, J. Gender Trouble: feminism and the
urbanística que considere as especificidades
subversion of identity. London: Routledge,
dos territórios estudados, propõe-se a carac-
1990.
terização de acordo com as três abordagens
espaciais. Alinhando-os às “ações biopolíticas” CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: 1. Artes
expostas por Preciado (2011), estabelecendo a de Fazer. 15ª ed. Tradução de Ephraim Ferreira
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EIXO TEMÁTICO 1 RESUMO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
A expressiva expansão demográfica pela qual a
cidade de São Paulo passou desde fins do sécu-
vídeo-pôster lo XIX e início do século XX foi identificada como
responsável por inúmeros problemas sociais,
em especial, as aglomerações urbanas, a falta
TROCAS DE SABERES E A de moradia e a insalubridade. Desta forma, a
habitação e a imigração se tornaram demandas
HISTÓRIA TRANSNACIONAL: A que despertavam o interesse do poder públi-
co e de intelectuais, e que, se mantiveram em
QUESTÃO DA IMIGRAÇÃO E DA sua agenda durante muitos anos. Na presente
proposta pretendemos identificar o papel que
HABITAÇÃO EM SÃO PAULO alguns agentes, entre eles, o vereador Celso
Garcia na Câmara Municipal de São Paulo, e al-
NO COMEÇO DO SÉCULO XX gumas instituições, como a Escola Livre de So-
ciologia e Política de São Paulo (ELSP) e a Divi-
são de Estatística e Documentação Histórica e
EXCHANGES OF KNOWLEDGE AND TRANSANCIONAL
Social do Departamento de Cultura (DC) tiveram
HISTORY: IMMIGRATION AND HOUSING IN SÃO PAULO
nesses debates, e como se destacaram sendo
IN THE BEGINNING OF THE 20TH CENTURY
partícipes e manejando conhecimentos do que
estava sendo discutido ao redor do mundo acer-
INTERCAMBIOS DE CONOCIMIENTOS Y HISTORIA
ca dessas temáticas, revelando o caráter trans-
TRANSANCIONAL: INMIGRACIÓN Y VIVIENDA EN SÃO
nacional desses saberes.
PAULO A PRINCIPIOS DEL SIGLO XX

HISTÓRIA TRANSNACIONAL HABITAÇÃO IMIGRAÇÃO


ALMEIDA, Renata Geraissati Castro de
Doutorando em História; Universidade Estadual de
Campinas
rgeraissati@gmail.com

REIS, Philippe Arthur dos


Doutorando em História; Universidade Estadual de
Campinas
philippearthur@hotmail.com

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

842
ABSTRACT RESUMEN

The significant demographic expansion that the La importante expansión demográfica en la ciu-
city of São Paulo has experienced since the end dad de São Paulo desde finales del siglo XIX y prin-
of the 19th century and the beginning of the 20th cipios del XX fue identificada como responsable
century was identified as responsible for nume- de numerosos problemas sociales, en particular,
rous social problems, in particular, urban agglo- las aglomeraciones urbanas, la falta de vivienda y
merations, homelessness and unhealthy condi- las condiciones insalubres. De esta manera, la vi-
tions. Housing and immigration became demands vienda y la inmigración se convirtieron en deman-
for the public authorities and intellectuals, and das que despertaron el interés de las autoridades
remained on their agenda for many years. In this públicas y los intelectuales, y que permanecie-
proposal, we intend to identify the role that some ron en su agenda durante muchos años. En esta
agents, among them, councilor Celso Garcia at propuesta, pretendemos identificar el papel que
the São Paulo City Council, and some institutions, desempeñan algunos agentes, entre ellos, el con-
such as Escola Livre de Sociologia e Política de cejal Celso García en el Ayuntamiento de São Pau-
São Paulo (ELSP) and Divisão de Estatística e Do- lo, y algunas instituciones, como la Escola Livre
cumentação Histórica e Social do Departamen- de Sociologia e Política de São Paulo (ELSP) y la
to de Cultura (DC) had in these debates, and how Divisão de Estatística e Documentação Histórica
they were participants and aware of what was e Social do Departamento de Cultura (DC) tuvo en
being discussed around the world about these estos debates, y cómo se destacaron por ser par-
themes, revealing the transnational aspects of ticipantes y manejar el conocimiento de lo que se
this knowledge. estaba discutiendo en todo el mundo sobre estos
temas, revelando el carácter transnacional deste
conocimiento.
TRANSNATIONAL HISTORY HOUSING IMMIGRATION

HISTORIA TRANSNACIONAL VIVIENDA INMIGRACIÓN


EIXO TEMÁTICO 1 INTRODUÇÃO
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
“Passaremos a examinar o assumpto [da
construção de habitações operárias], em
vídeo-pôster geral, em face dos exemplos das nações ci-
vilizadas e dos estudos que, a respeito, nos
offerecem eminentes publicistas (...)
TROCAS DE SABERES E A Si não fôra o esforço da Repartição Sanitaria

HISTÓRIA TRANSNACIONAL: A [...], o que seria de S. Paulo com o seu espan-


toso augmento de população, principalmente
QUESTÃO DA IMIGRAÇÃO E DA estrangeira? O que seria de suas condições
sanitárias? O que seria das innocentes crean-
HABITAÇÃO EM SÃO PAULO ças, cuja enorme mortalidade tem causado
pavor e se attribue, como uma das causas,
NO COMEÇO DO SÉCULO XX ás habitações insalubres e collectivas? O
que seria de nossas ruas, mesmo centraes,
onde apezar de tudo, se agglomeram, em
EXCHANGES OF KNOWLEDGE AND TRANSANCIONAL sórdida promiscuidade, esses cortiços, que
HISTORY: IMMIGRATION AND HOUSING IN SÃO PAULO são antes formigueiros humanos, sem sol,
IN THE BEGINNING OF THE 20TH CENTURY sem luz, sem ar, sem moral, sem quaesquer
preceitos hygienicos?”1
INTERCAMBIOS DE CONOCIMIENTOS Y HISTORIA
TRANSANCIONAL: INMIGRACIÓN Y VIVIENDA EN SÃO A passagem acima, presente no projeto de lei
PAULO A PRINCIPIOS DEL SIGLO XX municipal nº 1.098, de 1908, demonstra quais eram
as querelas que despertavam o interesse do poder
público paulistano no período, e que, se mantive-
ram em sua agenda durante muitos anos. O vultoso
crescimento demográfico da cidade de São Paulo,
que passou de 65 mil pessoas em 1890, para 240
mil em 1900 (SYNOPSE DO RECENSEAMENTO,
1890; SYNOPSE DO RECENSEAMENTO, 1900),
foi identificado como responsável por diversos
problemas sociais, entre eles, as aglomerações
urbanas, a falta de moradia e a insalubridade (GLE-
ZER, 2007, p. 170).

Durante o processo de expansão urbana da cidade


de São Paulo, financiado e, em grande parte, re-
alizado pela iniciativa privada, diversas parcelas
da população empregaram seus rendimentos na
aquisição de terrenos e na construção de imóveis
destinados ao mercado imobiliário rentista, em
um contexto em que urbanizar os vales, traçar
ruas e ocupar as depressões também significava
multiplicar a riqueza de determinados grupos

1. Projeto de lei municipal nº 1.098 de 30.06.1908 sobre a


16º SHCU
concessão de favores para a construção de casas operárias,
30 anos . Atualização Crítica
p. 04. Arquivo Histórico Municipal de São Paulo. Fundo
844 Prefeitura Municipal de São Paulo. Série Legislação.
sociais2 (SEGAWA, 2000, pp. 15-17). As atividades Diversas propostas foram elaboradas buscando
envolvendo bens imobiliários atraíram investido- viabilizar projetos que fossem rentáveis aos pro-
res de inúmeros portes, pequenos comerciantes e prietários, e que ao mesmo tempo, auxiliassem
grandes capitalistas, responsáveis pela constru- no processo de diminuição do déficit habitacional
ção de bairros inteiros e fundação de sociedades existente na cidade. A exemplo daqueles formula-
anônimas, a exemplo o Banco União e o Banco dos por ocasião do concurso de casas operárias
Santos (ROLNIK, 1997, p. 104).3 Para Josianne Ce- realizado em 1916, e dos resultados do projeto
rasoli (2004) o processo do fazer-se da cidade se de lei n. 1.098, de 1908, que previa uma série de
deu de forma não linear, como fruto da negociação isenções fiscais para os empreendedores que
e conflito dos inúmeros sujeitos envolvidos nestas construíssem de acordo com os programas ar-
quitetônicos vigentes, que tinham com referência
transformações, e, além de não estar alijada das
iniciativas realizadas em outras cidades do Brasil
transformações, a população mobilizava em suas
e do mundo.
solicitações os saberes que eram norteadores
das ações das autoridades municipais. Em grande medida, o déficit habitacional, e as
questões de salubridade eram atribuídos à pre-
Aos poucos, os modos de morar também se tor-
sença do estrangeiro na cidade,5 como apontado
naram alvo da inspeção e controle dos poderes na epígrafe. O fato destes indivíduos se tornarem
públicos, sobretudo as habitações operárias, es- expoentes investidores, e desempenharem um
paços que simbolizavam o “perigo” desses sujei- relevante papel na conformação territorial da
tos,4 e que, contudo, representava uma excelente cidade, impactando o cotidiano com novos cos-
oportunidade de lucro para seus proprietários, tumes e sociabilidades, fez com que se tornassem
dada a intensa procura pelo aluguel deste tipo alvo de observação dos seus contemporâneos.
de habitação na cidade no começo do século XX. Como veremos adiante, raça e etnia se tornaram
Aliados aos preceitos higienistas do final do sé- objeto de estudo de intérpretes da sociedade que
culo XIX, leis e códigos sanitários direcionaram ansiavam por compreender detalhadamente o
as reformas e as proposições de novas constru- que ocorria nas cidades e quais as implicações
ções na cidade, porém, a efetiva aplicação destas políticas e espaciais da entrada dos grupos de
normas dependia da fiscalização municipal, o que imigrantes no tecido urbano e seu impacto na
não implicava em igual inspeção por toda a área conformação de uma espacialidade, visando as-
urbana e suburbana da cidade. sim conseguir reestabelecer uma ordem social.

Para o arquiteto José Lira, os discursos nacio-


2. A propriedade imobiliária passou a representar a principal nalistas permeados por um viés ideológico que
forma de enriquecimento e do simbolismo de ascensão versavam sobre a inserção dos estrangeiros na
econômica e social de muitos proprietários de São Paulo cidade necessitavam de estudos acadêmicos
desde o último quartel do século XIX, que, com o gradual
que corroborassem suas proposições sobre os
processo de alforria e libertação dos negros escravizados,
malefícios das relações raciais de diferentes et-
passou a substituir seus bens de raiz centrados na posse
nias (LIRA, 1999, p. 50). Desta forma, é relevante
de pessoas por imóveis e lotes em diferentes porções da
cidade. O trabalho da historiadora Maria Luiza Ferreira
o fato de pesquisadores ganharem protagonismo
de Oliveira (2005) aprofunda este debate, e o de Beatriz neste debate justamente por conseguirem agre-
Piccoloto Bueno (2016) mapeia a ação desses agentes em- gar interesses políticos e econômicos em suas
preendedores. discussões, respaldadas por investigações da so-
ciedade que tinham como foco a origem, compo-
3. Raquel Rolnik (1997) destaca que este processo não diz
respeito apenas à expansão do número de construções,
sição e distribuição das populações urbanas, dos
mas, sobretudo, trata da transformação das relações eco- enquistamentos e tendências de miscigenação,
nômicas entre proprietários e locatários e o surgimento
da figura do empreendedor imobiliário, um “capitalista”,
5. A imigração foi um fenômeno que impactou a América
segundo termos da época.
como um todo, uma vez que, entre os anos de 1881 a 1915,
4. Sobre as múltiplas associações entre as classes popu- cerca de 31 milhões de pessoas chegaram ao continente no
lares e os medos presentes nos “monstros urbanos”, ver período classificado como de “Grandes Migrações” (KLEIN,
BRESCIANI, 2013. 2000, p. 23).
EIXO TEMÁTICO 1 aculturação, assimilação, contato e sobrevivência
de grupos étnicos e nacionais nas cidades.
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO
Portanto, a presença do estrangeiro na cidade e
as políticas habitacionais foram objeto de atenção
de diferentes profissionais, como políticos, mé-
dicos, engenheiros, sociólogos e advogados que,
ligados a instituições de ensino e pesquisa, dos
governos, em geral, municipais, e de empresas,
produziram uma série de materiais que procu-
raram documentar as transformações urbanas
observadas em diferentes cidades do final do
século XIX e as primeiras décadas do século XX.
Tais questões fizeram parte da “questão urbana”,6
que conforme apontado por Engels se referia
ao que acontecia dentro de todas as “grandes
cidades do mundo” que haviam se industrializado
(ENGELS, 2010, p. 68). Observamos que havia uma
rede de colaboração para a troca de observa-
ções e possíveis soluções que se adequassem
às experiências locais, mostrando que ocorria
uma interação entre profissionais de diferentes
nacionalidades a respeito destas questões ao
longo do século XIX (BRESCIANI, 2014, p. 78) e que
podem ser observadas também em São Paulo ao
longo do século XX. Convém, assim, inicialmente
compreender como a circulação de saberes foi
pensada por algumas perspectivas teóricas, para
então, indicarmos como tal fenômeno também
pode ser identificado na formulação e na conso-
lidação de políticas habitacionais e migratórias.

AS IDEIAS E OS LUGARES: UMA HISTÓRIA


TRANSNACIONAL?

A compreensão da intersecção dos processos


imigratórios e das políticas habitacionais é em
grande medida beneficiada por uma análise que
tenha por perspectiva a leitura transnacional,
uma vez que esta tem por objetivo compreender
as trocas entre sociedades, analisar as redes,
as crenças, as instituições que transcendem a
esfera do espaço nacional e os movimentos de

6. Bresciani argumenta que é François Béguin que desloca a


questão urbana, anteriormente pautada na industrialização
16º SHCU
e no crescimento demográfico, para questões relacionadas
30 anos . Atualização Crítica
à pobreza, à falta de higiene e às doenças, e seus desdo-
846 bramentos (BRESCIANI, 2014, pp. 66-67).
capital, pessoas e práticas. Barbara Weinstein dessa perspectiva enquanto um campo.7 A co-
pontua que “diferente da história internacional, munidade de historiadores busca alternativas ao
que incide sobre a interação entre as nações, a modelo eurocentrista, com destaque para a visi-
história transnacional enfatiza questões para as bilidade dos estudos pós-coloniais que ganharam
quais o país não é a principal arena de interação fôlego a partir da década de 1980, e contribuíram
ou conflito” (WEINSTEIN, 2013, p. 23). Logo, não para que o foco das análises históricas identificas-
devemos pressupor que esta abordagem signi- se a contribuição da Ásia, África e América Latina,
fique o fim das questões nacionais, pois, ela não compreendendo as interações entre fronteiras
se opõe à perspectiva dos Estados-nações, e as (CONRAD, 2016, p. 53). A proposta de compreensão
especificidades locais continuam a desempe- sobre o colonialismo destes estudos visa romper
nhar um papel relevante nas interpretações que com a lógica binária entre colonizador/colonizado
visam mudar o enfoque da esfera estritamente como uma relação exclusivamente exploratória
política, diplomática e econômica para a esfera (CONRAD, 2016, p. 57).
cultural, privilegiando as trocas. O entendimento
Desde os anos de 1950, na América Latina houve
de determinados desdobramentos políticos só é
um destacado papel em torno das contribuições
possível para Weinstein quando é realizada uma
de estudiosos ligados à Comissão Econômica
investigação pormenorizada dos intercâmbios
para a América Latina e o Caribe (CEPAL), que
culturais, que constatem a permeabilidade das
elaboraram uma série de pesquisas as quais obje-
fronteiras, e demonstrem que as relações não são tivavam compreender as relações internacionais
ruas de mão única reforçando apenas uma assi- a partir da investigação do papel que as ditas
metria, mas sim devem ser construídas de forma áreas “centrais” do capitalismo possuíam sobre
relacional. Em vista disso, os estudos buscam as áreas “periféricas”. No Brasil, “a teoria da de-
as “zonas de contato”, locais privilegiados para pendência” foi definida em termos culturais nas
a compreensão dos “encontros internacionais” análises de Roberto Schwarz e seu clássico As
(WEINSTEIN, 2013, pp. 20-23). ideias fora do lugar, publicado em 1973, e que teve
um importante papel no processo de consolida-
Segundo Sebastian Conrad, a história transna-
ção da concepção de uma incongruência entre a
cional, diferentemente de outras correntes que adoção de um ideário europeu no país em diversos
também tentam compreender as dinâmicas do momentos, por exemplo, a disparidade entre a
mundo moderno (como a história comparativa, a convivência da escravidão com o ideal liberal ao
história global – esta, alinhada a um projeto neo- longo século XIX, a importação de um modelo de
liberal), é “uma forma de análise histórica na qual independência e a reprodução de movimentos
fenômenos, eventos e processos são inseridos no artísticos europeus, elementos que para o autor
contexto global” (CONRAD, 2016, p. 5). Tais estudos oferecem subsídios para problematizar as bases
partem do pressuposto de que nenhuma socieda- da formação do Brasil enquanto nação, em virtude
de, nação ou civilização existe em isolamento. O das ideias trazidas de fora (SCHWARZ, 2014, pp.
“transnacional” tem seu escopo de análise focado 48-59). Objeto de ampla discussão a época de
nas dimensões fluídas e nos entrelaçamentos do sua publicação, as propostas de Schwarz foram
processo histórico, estudando as sociedades nos questionadas por Maria Sylvia de Carvalho Franco
contextos em que moldam e são moldadas. (1976), para quem a escravidão e o liberalismo
eram partes integrantes da realidade brasileira,
Da mesma forma que reconhecemos na narrativa sem prejuízo de uma coerência.
transnacional um modelo de abordagem teórica
para se pensar a circulação de ideias que auxi-
liaram na produção do espaço urbano, tomando 7. Conrad destaca que a perspectiva começa a ganhar es-
paço dentro das instituições de ensino a partir dos anos de
como casos o movimento imigratório e a questão
1990 com as mudanças da “revolução da comunicação”, e
da habitação nas primeiras décadas do século
nas últimas décadas tem sido um campo em franco cres-
XX da cidade de São Paulo, também percebemos cimento, algo que em sua opinião, expressa o aumento da
como seu desenvolvimento esteve alinhado a uma mobilidade tanto dos historiadores, quanto de seus leitores,
estrutura de pensamento e crítica que pode ser o que possibilita com que inúmeras narrativas e diferentes
observada em autores, antes da consolidação vozes sobre os processos emerjam (CONRAD, 2016, p. 2).
EIXO TEMÁTICO 1 Contudo, é perceptível como as análises de
Schwarz repercutiram nos estudos sobre o ur-
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO banismo brasileiro, propondo que aqui houve a
adoção dos “modelos europeus” e os mesmos
não se adaptavam efetivamente à realidade
local, produzindo assim cidades incompletas,
marcadas pela inspiração e desejo de ser como
as europeias ou estadunidenses, mas que seus
agentes produtores, notadamente engenheiros e
agentes do mercado imobiliário, dentre os quais
muitos imigrantes, não levavam em consideração
as particularidades locais, vide os trabalhos de
Nestor Goulart Reis Filho (1970), Carlos Lemos
(1976, 1999) e Benedito Lima de Toledo (1983), li-
gados à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
da Universidade de São Paulo (FAUUSP).

Ao se contrapor a essas análises, outros estudos


não apenas complexificaram tal assertiva, como
compreenderam que a experiência interdisciplinar
podia ser uma aposta para se repensar a produção
historiográfica e a questão das relações entre os
países latino-americanos, asiáticos e africanos
com os países europeus e os Estados Unidos.
Stella Bresciani foi uma dessas intelectuais, que,
ao destacar a importância dos estudos transdisci-
plinares entre a História e as áreas de Arquitetura
e Urbanismo, contribuiu no processo de trocas e
recepções intelectuais em torno desses campos
de investigação, sobretudo a partir da agência
de profissionais ligados à produção das cidades,
como engenheiros, arquitetos, filantropos, filó-
sofos e outros que formaram uma rede de agen-
tes que auxiliaram no processo de formação do
Urbanismo como uma disciplina transdisciplinar
ao longo da segunda metade do século XIX e o
começo do século XX (BRESCIANI, 2015).

Além da atenção à necessidade de se compreen-


der à luz da história política as questões urbanas,
Bresciani chama a atenção para o constante fato
de a narrativa histórica das cidades recorrer à
interpretações generalistas, ligadas à lugares-co-
muns, e que possuem um amplo poder metafóri-
co de indução interpretativa, mitos fundadores,
sequenciamento de fases econômicas, arquite-
tônicas e políticas, a fundação de instituições e
empresas, que permanecem como processos de
naturalização das narrativas das cidades e não dão
16º SHCU conta da complexidade e dos reais problemas a
30 anos . Atualização Crítica
serem discutidos. Logo, tal exercício compreende
848 a História apenas como um “suporte”, que dá o im-
pulso para que se desenrole temas conexos, pois HABITAÇÃO E IMIGRAÇÃO: UM OLHAR A PARTIR
solidifica o tempo e o espaço a partir da criação de DA HISTÓRIA TRANSNACIONAL
imagens carregadas de um forte poder metafórico
e persuasivo (BRESCIANI, 2014).8
A busca por métodos que permitissem uma melhor
Alguns dos lugares comuns que constantemente compreensão das transformações urbanas ocor-
são recorridos para interpretações histórico-line- ridas entre o final do século XIX e início do século
ares da cidade de São Paulo, são o da constante XX, tornaram as cidades espaço privilegiado para
dicotomia de classificação dos seus bairros entre a observação de seus processos de ocupação.
os que foram habitados por operários ou pela elite, O papel dos pequenos e médios detentores de
neste último grupo uma ação orquestrada pelos capital foi determinante para a urbanização das
barões do café, dando origem aos bairros dos cidades modernas, em especial pelo financiamen-
Campos Elíseos e Higienópolis. Já os ditos “bairros to da construção de edificações voltadas para
operários”, além de serem entendidos como redu- habitação, seja nos centros e bairros próximos,
to da comunidade trabalhadora foi acompanhado seja nas novas áreas que surgiam para atender
da instalação de diversos grupos imigrantes, que à crescente demanda habitacional pelos fluxos
ali formaram suas redes de sociabilidade, muitas (i)migratórios que mobilizavam trabalhadores
vezes entendidos como pioneiros do processo de para as fábricas e indústrias que se diversifi-
produção do espaço urbano.9 Tal compreensão, cavam desde princípios do século XIX. O poder
generalizada por uma série de autores,10 não dá público, representado muitas vezes pela ação
conta de uma análise mais aprofundada e detida da municipalidade por meio dos seus agentes
em torno destes processos, e nem mesmo dos profissionais, teve um papel crucial na formação
agentes produtores dos territórios, contribuindo de alianças que pudessem equacionar “a questão
para uma análise maniqueísta e sem operação das habitações”, como lembrado por Donatella
política dos seus agentes, que, apesar de sempre Calabi (2015, pp. 41-62). Tais alianças, firmadas
rememorar as greves e manifestações populares com outros profissionais que atuavam nos centros
que ali ocorreram, não percebem a pluralidade de pesquisa e nas empresas da construção civil,
de ações e dos agentes envolvidos na produção auxiliaram a formar um conjunto de dispositivos e
material da cidade de São Paulo.11 políticas para solucionar esses problemas, como
leis, códigos sanitários e manuais de construção,
que buscavam a regulação e o saneamento das
novas edificações.
8. Além do referido trabalho, importante sinalizar outros
Uma das expressões desse debate se dava em
textos que a historiadora desenvolveu ao longo de sua tra-
jetória e que contribuíram ao debate da produção historio-
torno da discussão a respeito do barateamento
gráfica sobre as cidades e das conexões transdisciplinares dos custos de produção das casas destinadas
existentes na formação do Urbanismo como ciência, a à população pobre. As propostas se baseavam
exemplo do “Lógica e dissonância – sociedade de trabalho: em pesquisas realizadas, majoritariamente, por
lei, ciência, disciplina e resistência operária”, publicado filantropos e agentes do poder público, os quais,
inicialmente na Revista Brasileira de História, em 1985, e o por meio de diferentes metodologias, mapearam
clássico “As sete portas da cidade”, publicado em 1991, na o custo de vida, salários, ocupação do solo e ou-
Revista Espaço & Debates. Os dois textos, juntamente de tros dados em diferentes cidades europeias e
outros produzidos ao longo da carreira de Bresciani, foram
americanas. A medida, que buscava atender aos
reunidos na coletânea Da cidade e do urbano: experiências,
interesses do capital privado, esses estudos vis-
sensibilidades, projetos (BRESCIANI, 2018).
lumbravam alternativas ao custo da mão de obra
9. Contrapondo essa linha de raciocínio, ver os trabalhos empregada na construção civil, o uso de materiais
de SANTOS, 1998 e MANZONI, 2019.
que viabilizassem a construção de imóveis em
10. BLAY, 1985; ROLNIK, 1997; LEMOS 1999. menor tempo, além de mapear o valor da terra.
11. Uma análise aprofundada desse processo de escrita Na França, o debate ganhou forças a partir da Loi
que toma a cidade como objeto de análise por diferentes pour les habitations à bon marché (Lei em favor
agentes intelectuais pode ser analisado em CARPINTÉRO; das habitações baratas), de 1894, que se baseava
CERASOLI, 2009. em mais de 40 anos de investigações naquele
EIXO TEMÁTICO 1 país, e que convergia com ações já realizadas em
cidades inglesas desde a década de 1840, com a
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO criação de entidades filantrópicas e cooperativas
de empregados e trabalhadores, além do Public
Health Act, de 1875, e o Housing of Working Class
Act, de 1890 (HALL, 2013; BRESCIANI, 2014).

Em São Paulo as mesmas questões suscitavam


debates, havendo inúmeros ensaios, estudos e
leis produzidos por diferentes agentes que es-
tavam atentos aos processos de urbanização e
implementação de políticas que favorecessem
o barateamento dos custos de construção de
casas voltadas à população operária. Exemplares
são os estudos do jornalista, advogado e verea-
dor Affonso Celso Garcia da Luz (1869-1908), que
por meio de suas investigações e relações com
diferentes agentes do poder público, técnicos e
engenheiros da Escola Politécnica, e pequenos
e médios proprietários da cidade de São Paulo,
elaborou um conjunto de propostas que serviram
de base para a implementação da lei municipal
número 1.098 de 1908, que tratava de medidas
em prol da redução de custos para a construção
de casas operárias em São Paulo (REIS, 2017).
Ao longo de sua trajetória profissional e política,
Celso Garcia desenvolveu uma série de estudos
que buscavam conferir visibilidade às condições
de vida da população pobre da cidade, sobretudo
daquela que habitava a porção leste de São Paulo,
entre a Várzea do Carmo e o bairro da Penha. Seus
escritos, em geral materializados nas página do
jornal O commércio de S. Paulo, periódico que
foi redator-chefe, permitiam que a comunidade
de leitores imaginassem as condições sanitá-
rias de cortiços e outros espaços que serviam
de habitação para a população pobre, denotan-
do o papel de ação que o poder público deveria
ter para sanar tais questões. Assim, se percebe
como tais escritos de observação da “realidade
social” formaram a base para que o seu projeto
de lei municipal ganhasse corpo quando se ele-
geu como vereador em 1905, e ao mesmo tempo,
ser aprimorado pela referência às experiências
de intervenção do poder público sobre o déficit
habitacional em diferentes localidades, como
na Alemanha, em que o problema seria resolvido
pela aplicação de uma série de dispositivos em
favor da construção de casas operárias, como a
16º SHCU contribuição de patrões, a criação de associa-
30 anos . Atualização Crítica
ções ou sociedades sob a proteção dos poderes
850 públicos, a própria iniciativa do poder público
nesse tipo de construção, e o auxílio privado, por para 4,61, e dez anos depois para a taxa de 3,81,
meio de doações ou fundações. As experiências seguido de 3,03 para o período de 1879 a 1885, e
urbanas de Londres e Paris, mas também do Rio em 1897 a 2,60.12 Ou seja, um dos argumentos que
de Janeiro, Buenos Aires, La Plata, Nova York, respaldava a lei que concederia favores para a
Chicago, Saint Louis e outras cidades, propiciaram construção de casas às pessoas pobres, estava
que os agentes urbanos de São Paulo criassem amparado na dupla lógica de também investi-
uma rede de estudos sobre a situação da habi- mento na industrialização local, como um fator
tação em caráter internacional, pois sabiam que determinante para que a economia seguisse o que
o aumento populacional era um problema a ser foi observado em outros espaços, e consequen-
resolvido, não sem conflitos. temente não fosse necessária uma política que
atendesse aos mais pobres, que teoricamente
O trecho da lei municipal nº 1.098 de 1908, eviden- seriam menos pobres conforme a industrializa-
ciado no início, também dá ensejo para compre- ção paulistana ocorresse. Tal observação não
ender a seguinte trama de trocas intelectuais: significava uma correspondência nas condições
apesar de não constar a assinatura do diretor do sociais da população londrina, pois, como ob-
Serviço Sanitário do Estado de São Paulo, o mé- servou Bresciani, houve uma crise da indústria
dico Emílio Ribas, há uma clara observação que, local nos últimos anos da década de 1880, o que
em virtude do papel de fiscalização da “Repartição contribuiu para o aumento do medo de agitação
Sanitária”, que São Paulo conseguia controlar os das classes operárias. Segundo a historiadora,
problemas ligados à insalubridade e à saúde cole-
tiva, apesar de reconhecer nas páginas seguintes A multidão amotinada pelas ruas de Londres
que a cidade possui cortiços, os ditos “formi- constitui um dos elementos de um quadro
gueiros humanos”, em uma clara associação dos de apreensões mais amplo, onde a ansieda-
preceitos médico-sanitaristas presente na obra de ante o declínio da supremacia industrial
do médico francês Jules Rochard. Verifica-se a da Grã-Bretanha e a incerteza apreensiva
importância que a Encyclopédie d’Hygiène et de ante a participação política crescente da
Médecine Publique, publicada em 1895, teve nas classe operária, têm lugar de destaque
proposições de uma política em favor do barate- (BRESCIANI, 2013, p. 106).
amento para construção de casas operárias na
Tomar o exemplo dos processos industriais euro-
cidade de São Paulo.
peus foi uma aposta de parte dos liberais paulistas
O relatório da comissão de finanças da Câmara no começo do século XX, que ali enxergava um
Municipal de São Paulo que acompanha os pare- modelo de diversificação dos seus capitais, e que
ceres da lei municipal nº 1.098 sobre a concessão inclusive podia dar fôlego para que pequenos e
de favores para a construção de casas operárias, médios capitalistas também participassem des-
apresenta a importância do poder público muni- se processo de investimentos na cidade. Não à
cipal em aplicar métodos que melhor auxiliassem toa, um dos principais pontos da legislação em
no conhecimento do perfil da população local na questão, é a isenção por quinze anos de todos os
impostos municipais que recaíam no processo de
primeira década do século XX. Tomando como
edificação de casas voltadas à população operá-
exemplo o panorama social da Inglaterra, enca-
ria, desde que não fossem cortiços, além do fim
rado como “o país mais industrial do mundo”, o
da taxa sanitária destinada ao Governo do Estado.
documento entrelaça o problema da carência
Tal medida contribuía para que pequenos e médios
habitacional da cidade como um claro fator ligado
proprietários passassem a investir seus rendi-
à pobreza, contudo, tal questão podia ser solucio-
mentos na edificação da cidade e os aproximava
nada com o investimento maciço no desenvolvi-
ideologicamente do anseio de transformação
mento da indústria local, pois, os dados do país
da cidade de São Paulo. Os efeitos da lei são tão
europeu evidenciavam, para o relator do projeto
esperados, que se evidencia também existir uma
de lei, uma conexão da diminuição da pobreza
“crise econômica que de há muito nos flagella, [e]
com o crescente processo de industrialização ali
a população da cidade de S. Paulo tem crescido
observado: enquanto no período de 1849 a 1858, a
média de pobres na Grã-Bretanha era de 4,67 por
cem habitantes, no período de 1859 a 1868, diminui 12. Projeto de lei municipal nº 1.098 de 30.06.1908 (...), p. 03.
EIXO TEMÁTICO 1 extraordinariamente em proporção muito supe-
rior ao nosso desenvolvimento industrial”, com a
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO marca de viverem 348.865 pessoas na cidade, em
1907, um aumento de pelo menos 109.045 pessoas
em um curso de sete anos13.

Os métodos que buscavam a quantificação, seria-


ção e mapeamento dos diferentes componentes
sociais que formavam as cidades, tornaram-se um
paradigma para se compreender os problemas
urbanos. Diagnosticar e sistematizar as condi-
ções sociais da cidade por meio de métodos de
pesquisa, tal como no Relatório de Inspecção da
Comissão de exame e inspecção das habitações
operarias e cortiços no districto de Sta Ephigênia,
de 1893,14 foi algo usual em diversas experiências
internacionais de mapeamento dos edifícios que
a população habitava. Para Béguin, são estes
“survey” que tornam o “urbano como meio, onde
se entrecruzam os órgãos da maquinaria urba-
na e os componentes físicos de um terreno”, e
criam a representação gráfica “com as técnicas
que permitem compreender e quantificar certos
fenômenos urbanos, fabricar novas imagens da
cidade” (BÉGUIN, 1991, pp. 43-44).

Observamos em Chicago um paralelo dessas


acepções com Robert Ezra Park que, em 1910,
criou uma linha de pensamento que entendida
as cidades como laboratórios onde processos
sociais poderiam ser estudados, e assim, por
meio da observação do cotidiano era possível
o entendimento de inúmeros outros problemas
sociais. Em seu pensamento, a cidade não se
limitava a uma sobreposição de indivíduos, infra-
estrutura e aparato administrativo, mas sim, era
um estado de espírito, “a cidade não é meramente
um mecanismo físico e uma construção artificial.
Está envolvida nos processos vitais das pesso-
as que a compõem; é um produto da natureza,
e particularmente da natureza humana” (PARK,
1973, p. 25). Com o objetivo de compreender esta
natureza, sua análise abordava a organização da

13. Idem, pp. 4-5.

14. A riqueza das informações do referido relatório de-


monstram as preocupações do poder público em torno das
condições sanitárias do bairro de Santa Ifigênia, acompa-
nhado da posição de sua Comissão em propor “reformas
16º SHCU
e condena a ação dos proprietários que exploram com
30 anos . Atualização Crítica
aluguéis exorbitantes os trabalhadores pobres da cidade”
852 (RIBEIRO, 2010, p. 58).
planta da cidade vinculada aos costumes e hábitos Em 1939 foi contratado pela ELSP a figura de Do-
das pessoas que nela vivem, pois, ainda que ajam nald Pierson, sociólogo que obteve seu doutora-
limitações prescritas, os indivíduos continuam do pela Universidade de Chicago sob orientação
a atuar neste espaço segundo seus gostos e in- de Robert Ezra Park, com uma tese a respeito
teresses vocacionais e econômicos, algo que, das relações raciais na Bahia. A vinda de Pierson
para o autor, necessariamente acabaria por criar ao Brasil foi efetivada por meio de uma troca de
segregações (PARK, 1973, p. 27). correspondências entre Robert Park e Francis-
co Oliveira Vianna, após terem se conhecido em
Tal proposição tem relação com a fundação, em uma viagem que o primeiro fez ao Rio de Janeiro.
1933, da Escola Livre de Sociologia e Política de Posteriormente, ambos discutiram sobre as pos-
São Paulo (ELSP), uma instituição de ensino supe- sibilidades de um maior intercâmbio entre Brasil
rior que objetivava a formação de um grupo capaz e Estados Unidos na área da sociologia, algo que
de atender as necessidades da administração foi parte de um projeto de internacionalização
pública, com a introdução do primeiro curso de construído ao longo dos anos de 1930 pela Uni-
Ciências Políticas, Sociais e Econômicas da Amé- versidade de Chicago.
rica do Sul. Dentro de sua proposta de atuação,
seu estatuto relatava que ansiavam por “elevar o A ELSP em seu primeiro ano realizou uma pesquisa
nível do eleitorado e, sobretudo, formar os fun- sobre o padrão de vida dos operários de São Paulo,
cionários-técnicos, que pela sua permanência seguindo os modelos do Bureau International du
no governo, desempenham um papel cada vez Travail de Genebra, posteriormente publicada na
mais preponderante” (INFORMAÇÕES SOBRE A Revista do Arquivo Municipal (DAVIS, 1935). A se-
ESCOLA LIVRE DE SOCIOLOGIA DE SÃO PAULO, guir iniciou uma pesquisa a respeito da imigração
1935, p. 100), havendo claramente uma orienta- no Estado de São Paulo e outra sobre a situação
ção direcionada para a experiência prática de econômica do pequeno agricultor no município
uma ciência aplicada para o aperfeiçoamento de Piracicaba, que não puderam ser concluídas
dos métodos do aparelho burocrático, algo que em virtude da falta de recursos. Em memorial
remete para a função política que a sociologia apresentado aos deputados, com o objetivo de
desempenhou neste contexto. receber o amparo da Assembleia Legislativa do
Estado de São Paulo para a ELSP, a relevância do
Em virtude das semelhanças das instituições desenvolvimento dessas pesquisas era certifica-
estadunidenses com as brasileiras, foram contra- da (INFORMAÇÕES SOBRE A ESCOLA LIVRE DE
tados professores para apresentarem as experi- SOCIOLOGIA DE SÃO PAULO, 1935, p. 105).
ências, métodos e processos desenvolvidos nos
Estados Unidos.15 O quadro docente era composto, Semelhante contexto se deu na criação, em 1935,
entre outros, por Samuel H. Lowrie e Horace B. do Departamento de Cultura17 que possuía em seu
Davis, ambos com doutorado em Filosofia pela organograma a Seção de Documentação Social,
Universidade de Columbia. Posteriormente, o posteriormente nomeada de Divisão de Estatística
primeiro foi convocado pelo governo para fazer e Documentação Histórica e Social. Em seus 34
a interpretação dos dados do Recenseamento anos de funcionamento, o órgão desempenhou
do Estado de São Paulo e designado pela mu- diversas atividades, entre elas se destacava a
nicipalidade para ser técnico de pesquisas do
Departamento de Documentação Social, como
veremos a seguir.16 em diferentes instituições culturais e desenvolvendo uma
rede de contatos na tríade formada por ELSP, FFCL e o DC
(PEIXOTO-MEHRTENS, 2010).
15. Vale notar como o intercâmbio desses pesquisadores
17. Participaram da idealização do projeto de funcionamento
expressa um estreitamento de relações entre Brasil e Es-
do DC Fernando de Azevedo, Andre Dreyfus, Sergio Milliet,
tados Unidos, algo que já ocorria desde fins do século XIX,
Julio de Mesquita Filho, Plinio Barreto, Mario de Andrade,
como demonstra Fernando Atique (2010).
Rubem Borba de Moraes, Plinio Ayrosa, Nicanor Miranda,
16. Cristina Mehrtens enfatiza que muitos dos intelectuais dentre outros. Além da Divisão de Estatística e Documen-
estrangeiros que vieram para São Paulo nos anos de 1930 se tação Histórica e Social, havia a de Expansão Cultural,
envolveram na consolidação das Ciências Sociais no Brasil Biblioteca, Educação e Recreio, Turismo e Divertimentos,
e fizeram parte do contexto político, realizando transições que não foi efetivada (DUARTE, 1938, p. 38).
EIXO TEMÁTICO 1 divulgação mensal do Índice do Custo de Vida
(ICV), os levantamentos a respeito da situação
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO econômica e social do município e a organização
de recenseamentos.18

A organização desta divisão representava mais


uma vez um apelo à racionalidade científica na
administração pública, objetivando que por meio
dos métodos estatísticos fosse possível conhecer
em minúcia a população que habitava a cidade,
como relatado no ofício a seguir:

Aproveitamos a ocasião para chamar aten-


ção para a deficiência das estatísticas em
geral da Prefeitura, falha esta que não sur-
preende, lembrando-se que o liberalismo
econômico do século XIX exigiu a mais
ampla liberdade de iniciativa particular, e
contribuiu, ao mesmo tempo, para o de-
sinteresse por parte dos governos. Como
exemplo, queremos citar a estatística das
moradias. O estado, nessa época, limitou-
-se somente as questões do urbanismo.19

Em Considerações em torno da Organização dos


serviços de estatísticas oficiais, Bruno Rudolfer,
engenheiro chefe da sub-divisão de Documen-
tação Social, relatava ser cada vez mais neces-
sária a organização de estatísticas visando sua
instrumentalização para a definição e solução
dos problemas administrativos do poder público
(RUDOLFER, 1941, p. 180). A “ciência estatística”
se configurava como um instrumento de medição
do nível de desenvolvimento de cada sociedade
e servia como subsídio para o controle do de-
senvolvimento nacional. Os problemas nacionais
só seriam passíveis de solução com a utilização
de dados que permitissem a existência de um
governo eficiente em um contexto de expansão

18. As cadernetas e os demais documentos referentes às


Pesquisas de Padrão de Vida e Recenseamentos encon-
tram-se no Arquivo Histórico Municipal de São Paulo, Fun-
do Prefeitura Municipal, Grupo Departamento de Cultura,
Subgrupo Divisão de Estatística e Documentação Social.

19. Ofício n. 42-98. Remetendo questionário para a Diretoria


Geral de Informações, Estatística e Divulgação. Carta de
Agradecimento e Sugestões sobre organização das esta-
tísticas municipais. Processo n. 58.876 de 1936. Arquivo
16º SHCU
Histórico Municipal de São Paulo, Fundo Prefeitura Muni-
30 anos . Atualização Crítica
cipal, Grupo Departamento de Cultura, Subgrupo Divisão de
854 Estatística e Documentação Social.
e surgimento de grandes cidades em que não era letivo, trânsito, o valor da terra, dentre outros
mais possível conhecer os problemas através do pontos. Portanto, vemos que o principal objetivo
contato direto na comunidade, mas apenas com da Divisão era a coleta de dados do perfil dos mo-
as informações quantitativas (RUDOLFER, 1941, radores da cidade, para que assim fosse possível
p. 182). Portanto, o conhecimento destes dados, a elaboração de intervenções no tecido urbano.
tornava possível a organização de planos futuros,
respeitando às necessidades mais imediatas e Um componente considerável para esta análi-
distribuindo o orçamento do município de acordo se era o levantamento das nacionalidades que
com essas informações.20 Nos argumentos do compunham a população e qual sua localização
autor, vemos serem reafirmadas algumas premis- espacial. Tal questão esteve presente em dife-
sas que circulavam naquele contexto, tal como a rentes pesquisas, entre elas no levantamento
noção da objetividade dos dados21 e o papel que estatístico sobre as indústrias do município, feito
a Sociologia desempenhava enquanto a área do sob a chancela do Instituto Nacional de Estatís-
conhecimento capaz de solucionar questões do tica23; e nos dados sobre as nacionalidades dos
presente. pais dos alunos dos parques infantis e na pesquisa
de reorganização da distribuição da população,
A imprensa de grande circulação também noti- que teve como subsídio a codificação de 200 mil
ciava os bons resultados obtidos pelo órgão. Em questionários recolhidos durante o Censo Esta-
agosto de 1937, o jornal O Estado de São Paulo, dual de 1934. Esta última permitiu o agrupamento
divulgou que os trabalhos desenvolvidos pela dos habitantes por quarteirão e por zona, dados
Divisão de Documentação Histórica e Social fo- que foram utilizados por Oscar Egydio Araújo em
ram apresentados no Congresso de População seus artigos sobre a imigração em São Paulo pu-
de Paris. Uma vez que o chefe da divisão, Samuel blicados na Revista do Arquivo Municipal.
Lowrie, a estava representando no evento, foi
Bruno Rudolfer quem explicou aos leitores do Araújo24, argumenta em seu artigo Enquistamen-
jornal quais eram as finalidades das pesquisas
realizadas pelo órgão.22 Isto é, seria necessário
23. Tal questionário trazia inúmeras informações que ser-
que o município conhecesse dados específicos
viriam de fonte de informações para futuros estudos ur-
sobre sua realidade, não sendo suficientes os banísticos, em especial para um zoneamento da cidade.
dados genéricos sobre o país, para que assim Foi proposto que fosse acompanhado por um questionário
pudesse propor soluções sobre o transporte co- complementar que contivesse o campo para ser detalhada
a naturalidade dos componentes da empresa. Tal sugestão
de pergunta era pertinente, segundo os autores de tal pro-
20. Em listagem dos livros pertencentes à Divisão de Es-
posta, uma vez que era conveniente “registrar com particular
tatística e Documentação Histórica e Social, verificamos
cuidado no caso de uma população intensamente misturada
que de dez publicações, seis eram estadunidenses e uma
sob o ponto de vista étnico”. Portanto, esses dados permi-
delas de autoria de Robert Park, obras que indicam como
tiriam compreender quais eram os ramos industriais que
as propostas levantadas por essa linha de pensamento
estavam concentrados nas mãos de estrangeiros. Ofício
eram de conhecimentos dos agentes desta instituição e
1003 da Subdivisão de Documentação Social e Estatística
que dialogavam com preceitos construídos contempora-
Municipais, remetendo sugestões sobre a estatística Mu-
neamente em distintos espaços.
nicipal das Indústrias. Processo n. 083418 de 1937. Arquivo
21. Nos estudos Populações Meridionais no Brasil e Raça e Histórico Municipal de São Paulo, Fundo Prefeitura Munici-
Assimilação de Oliveira Vianna são mobilizados constante- pal, Grupo Departamento de Cultura, Subgrupo Divisão de
mente termos que demonstram sua crença na objetividade Estatística e Documentação Social. Série: Estatísticas, p. 8.
das Ciências Sociais. (VIANNA, 1959; 1973). O autor ressalta
24. Formado em Direito pela Universidade de São Paulo,
que tal método de objetividade estava também sendo incor-
Oscar Egídio de Araújo foi nomeado para o cargo de técnico
porado em outros campos do saber, (VIANNA, 1974). Para
em estatística do Departamento de Cultura, em agosto de
uma análise a respeito da produção de Oliveira Vianna, ver
1935, e no ano de 1942, se tornou chefe da Subdivisão de
BRESCIANI, 2005.
Documentação Social da Divisão de Documentos Históri-
22. O Estado de São Paulo. “Departamento Municipal de cos e Social. Em 1948 fez parte da Comissão de Festejos
Cultura”. 17 de agosto de 1937, p. 12. Disponível em: https:// do Quarto Centenário da Cidade de São Paulo. Foi também
acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19370817-20816-nac- Assistente da Escola Livre de Sociologia e Política de São
0012-999-12-not. Acesso em 22 de junho de 2020. Paulo. Arquivo Histórico Municipal de São Paulo, fundo
EIXO TEMÁTICO 1 tos Étnicos publicado em 1940, que decorriam
diferentes características dos indivíduos segundo
HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO suas etnias, assim, era necessário que:

O governo federal precisa conhecer o com-


portamento das várias nacionalidades que
têm procurado o território brasileiro no to-
cante a assimilação, para bem orientar a po-
lítica imigratória, facilitando a permanência
de elementos assimiláveis e dificultando ou,
mesmo, impedindo a entrada em nossos
portos de elementos incapazes de figurar
com proveito, em um cruzamento vantajoso
(ARAÚJO, 1940, p. 227).

Para o autor existiam colônias que não conse-


guiam atingir um nível aceitável de “fusibilidade”,
isto é, para alguns grupos culturais era pouco usu-
al o casamento com pessoas de etnias diferentes,
algo que propiciava a manutenção de suas tradi-
ções de origem.25 A dificuldade de inserção destes
indivíduos em outros grupos impossibilitava com
que estas pessoas ocupassem uniformemente o
território municipal, e favorecia a concentração
destas pessoas em lugares específicos, formando
os “enquistamentos étnicos”, conhecidos também
por “guetos”. Para Araújo, os exemplos seriam os
japoneses na Liberdade, os judeus no Bom Retiro
e os sírios na região da Sé, principalmente no tri-
ângulo formado pelas ruas 25 de Março, Cantareira
e Avenida do Estado.

Araújo pressupunha ser indispensável uma dis-


cussão racial, em virtude de o caldeamento ser
um dos principais problemas em um local “grande-
mente procurado por levas imigratórias de todos
os pontos da terra, as quais tanto poderão provir
de raças eugenicamente fortes e de elevado grau
de civilização, como, ao contrário, também de
etnias de cultura pouco desenvolvidas” (ARAÚJO,

Prefeitura Municipal, grupo Departamento de Cultura, sub-


grupo Divisão de Estatística e Documentação Social. Caixa
n° 229. Ficha de Funcionário.

25. Tal questão era primordial, pois, até então as políticas


selecionistas visavam apenas vetar a entrada de pessoas
com alguma moléstia contagiosa, ou que fossem crimino-
sos, se configurando apenas como uma seleção de indi-
víduos e não como uma política que visava tipos. Vianna
16º SHCU
defendia que eram necessárias pesquisas que norteassem
30 anos . Atualização Crítica
essa escolha tal como havia sido feito nos Estados Unidos.
856 (VIANNA, 1959, pp. 160-161).
1940, p. 227). Portanto, para o autor era relevante CONSIDERAÇÕES FINAIS
estudar o grau de “interfusão” das várias nacionali-
dades que formavam o povo brasileiro, para assim Longe de se constituírem enquanto fenômenos
conseguir verificar os caracteres físicos e psico- de fácil explicação, o déficit habitacional e o pro-
lógicos dos “tipos” resultantes desse cruzamento cesso migratório são compostos de inúmeros ele-
e precisar a contribuição de cada nacionalidade mentos que são cruciais para sua compreensão.
no melting-pot nacional. Escolher quais desses elementos serão privile-
giados na análise diz respeito à quais questões
Para o técnico em estatística era necessário
objetivamos responder, e elas direcionam para
conhecer esses dados afim de que a adminis- qual é o nível de escala mais adequado para nosso
tração pública pudesse corrigir ou sanar seus objeto. Nesta comunicação procuramos mapear
inconvenientes, sua escolha de termos relativos algumas das circulações de saberes em curso
aos paradigmas higiênicos correntes no perí- nestes trintas anos, e concluímos que a imigra-
odo demonstra seu posicionamento eugenista ção e a habitação foram temas sensíveis para
com relação à questão racial. Em 1941, Araújo diferentes agentes do Brasil, Europa e Estados
continua a produzir estudos que tem o tema do Unidos, em um momento que o apelo à racionali-
impacto do imigrante no território paulistano. Em dade científica encontrou na questão urbana um
Latinos e não latinos no município de São Paulo, importante campo de atuação, uma vez que as
o autor utiliza como chave interpretativa de uma cidades se tornaram objetos de observações, e,
imigração benéfica a proximidade de costumes posteriormente, laboratório de políticas públicas
em virtude de alguma destas pessoas serem de que visavam impactar na sua composição. O poder
origem latina. Para o autor, os brasileiros seriam público incorporou inúmeros procedimentos de
latinos, uma vez que provinham em sua maioria análise e planejamento como subsídio para suas
de italianos, portugueses e espanhóis e como ações, sendo que no início do século XX, houve
não latinos estariam os sírios, japoneses, russos, uma simultaneidade entre teoria e prática no que
alemães, austríacos e ingleses. diz respeito à intervenção estatal na vida social.

Da mesma forma o autor aborda as vantagens e


desvantagens de algumas correntes migratórias
a partir da interpretação de suas características
sob os pontos de vista social, cultural, industrial
e agrícola. Algumas proposições do estudo de
Samuel Lowrie são abordadas, entre elas a de
que os brasileiros natos estavam cedendo lugar
ao elemento imigrante, portanto, haveria uma
modificação na população paulista e por este
motivo deveria ocorrer uma seleção cuidadosa
sobre quais imigrantes permitirem a entrada, para
assim, proporcionar a melhor mudança biológica
possível (LOWRIE, 1938, pp. 29-30). Em vista dessa
circunstância, apesar de demonstrar que no caso
específico da cidade de São Paulo eram prefe-
ríveis os operários urbanos, em virtude de uma
necessidade nacional, “somos levados a preferir
as nacionalidades agrícolas, sobretudo as latinas –
portugueses, por exemplo - cujos característicos
são mais semelhantes aos brasileiros”. (ARAÚJO,
1941, p. 97). Vemos mais uma vez o autor corrobo-
rar a ideia, agora sob o argumento dos não latinos,
de que alguns imigrantes não seriam benéficos
por sua presença não atender aos anseios por
braços para a agricultura.
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16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

860
861
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
formato
210 x 297 mm

fontes
Barlow
Gobold
xvishcu.arq.ufba.br
Salvador - Bahia
2021

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