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anais

EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO
E OUTROS CAMPOS DO CONHECIMENTO
SOBRE AS CIDADES

ORG.
Dilton Lopes de Almeida Júnior
Fabio Macedo Velame
José Carlos Huapaya Espinoza
ORGANIZAÇÃO

Dilton Lopes de Almeida Júnior


Fabio Macedo Velame
José Carlos Huapaya Espinoza

PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO

Alyssa Volpini Lustosa


Igor Gonçalves Queiroz
Júlia Dominguez da Silva
Leonardo Vieira de Souza

www.xvishcu.arq.ufba.br

Salvador - Bahia
2021

S471a Seminário de História da Cidade e do Urbanismo (16.: 2021 : Salvador, BA)


Anais [do] XVI Seminário de História da Cidade e do Urbanismo, 15-18 Junho 2021. -
Salvador: UFBA, 2021 / Organização Dilton Lopes de Almeida Júnior, Fábio Macedo
Velame, José Carlos Huapaya Espinoza.

Tema: 30 anos: atualização crítica.


ISSN: 2178-7158

1. Planejamento urbano - Congtressos. 2. Cidades e vilas – Congressos. 3. Urbanização


– História - Congressos. I. Almeida Júnior, Dilton Lopes. II. Velame, Fábio Macedo. III. Espinoza,
José Carlos Huapaya.

CDU: 711.4(091)

Sistema Universitário de Bibliotecas – UFBA


Elaborada por Geovana Soares Lira CRB-5: BA-001975/O
CADERNO DE RESUMOS

16º SHCU
SEMINÁRIO DE HISTÓRIA
DA CIDADE E DO URBANISMO

30 anos . atualização crítica


16º SHCU Entre 15 e 18 de junho de 2021, trinta anos após
o 1º Seminário de História Urbana, o Programa
SEMINÁRIO DE HISTÓRIA de Pós-Graduação da Faculdade de Arquitetu-
ra da UFBA recebeu pela quarta vez (1990, 1993
DA CIDADE E DO URBANISMO e 2002) o Seminário de História da Cidade e do
Urbanismo. Passadas três décadas, surgem al-
gumas indagações: quais seriam as questões
30 anos . atualização crítica teóricas e metodológicas que, com toda a ex-
periência acumulada em pesquisas, interpre-
tações e narrativas históricas das cidades e do
15-18 . junho . 2021 urbanismo no país, guiariam uma atualização
crítica desse campo de conhecimento? Quais
Salvador - Bahia seriam os temas, problemas, teorias, metodo-
logias, sujeitos e redes envolvidas nesse pro-
cesso de construção intelectual da história do
pensamento urbanístico entendido como uma
problemática contemporânea em suas diversas
abrangências? Como os diferentes campos de
pesquisa sobre as cidades, a partir dos limiares
entre os campos da Arquitetura, do Urbanismo
e da História, têm produzido experiências multi
ou transdisciplinares? Quais as dimensões pre-
sentes na construção de nosso campo de deba-
tes relativas às experiências e culturas urbanas
cotidianas, às coletividades, aos saberes tradi-
cionais, aos silenciamentos, às questões étni-
co-raciais e de gênero?

Bienalmente realizado desde 1990, o SHCU en-


contra-se na sua décima sexta edição em 2021,
caracterizada por equacionar, divulgar e estimu-
lar a construção da historiografia da cidade e do
urbanismo no âmbito dos diversos programas
de pós-graduação. Mediante trocas disciplina-
res profícuas por mais de trinta anos, acolhen-
do contribuições de campos de conhecimentos
diversos – Arquitetura e Urbanismo, a História, a
Geografia, a Sociologia, a Antropologia etc. – o
SHCU é o mais importante fórum de debates, di-
fusão, trocas no campo da história urbana entre
pesquisadores, programas de pós-graduação e
prática profissional.

Nesse sentido, nesta edição foram propostos


quatro eixos: 1. Historiografia e Pensamento Ur-
banístico no qual interessa refletir questões te-
órico-metodológicas, os problemas, as teorias,
as metodologias, os atores, as redes intelectu-
ais e os regimes de historicidade; 2. História,
Urbanismo e outros campos do conhecimento
16º SHCU sobre as cidades onde o interesse volta-se para
30 anos . Atualização Crítica experiências, multi, inter e transdisciplinares,
os saberes tradicionais e a dimensão da expe-
riência urbana cotidiana; 3. Escritas da História
Urbana através do qual propomos vislumbrar
as temporalidades, os silenciamentos, os mo-
dos de narração e as práticas historiográficas
– história oral, comparada, conectada, relatos,
testemunhos, cidade letrada, literatura, biogra-
fias, montagens etc e; 4. Cidades, Memórias e
Arquivos o qual se debruça sobre as fontes, os
documentos, as materialidades, os patrimônios,
as cartografias, as iconografias e outras fontes,
documentos e vestígios.

Se, há exatos trinta anos, houve um claro flores-


cimento do interesse pela História no campo do
Urbanismo – que resultou na proposta do 1º se-
minário feita por jovens professores e pesquisa-
dores –, como essa aproximação com o campo
da História e da Historiografia ainda pode con-
tribuir para a discussão das questões urbanas?
Quais seriam hoje as escritas da história urbana,
os modos de narração e as práticas historiográ-
ficas relacionadas às cidades? Como diferentes
fontes documentais vêm sendo ressignificadas
entre memórias e arquivos, cartografias e ico-
nografias urbanas? Como fazer e atualizar criti-
camente a história das cidades e do urbanismo
na conturbada conjuntura atual do Brasil?

As respostas e reflexões de alguns desses ques-


tionamentos podem ser encontradas nas 41 Ses-
sões Temáticas, 30 Mesas Temáticas e 160 vídeo
posters apresentados ao longo do evento e que
agora são disponibilizados em forma de Anais.
Esse conjunto de trabalhos evidenciam, ainda,
uma série de lacunas e temas emergentes que
apontam para a possibilidade (e necessidade) de
ampliação e revisão de questões voltadas para a
história da cidade e do urbanismo e sua inter-re-
lação e fortalecimento com outros campos de
saber como forma de problematizar e contribuir
nas discussões atuais do campo.

Dilton Lopes de Almeida Júnior


Fabio Macedo Velame
José Carlos Huapaya Espinoza

Coordenadores Executivos do 16º Seminário


de História da Cidade e do Urbanismo
16º SHCU Coordenação Honorária

Seminário de História Ana Fernandes

da Cidade e do Urbanismo Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA

Marco Aurélio A. de Filgueiras Gomes


comissão organizadora Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA

Coordenação Executiva

Dilton Lopes de Almeida Júnior


Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA

Fabio Macedo Velame


Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA

José Carlos Huapaya Espinoza


Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA

Coordenação Organizadora

Alexandre Pajeú Moura


Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA

Anna Paula Ferraz


Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA

Aparecida Netto Teixeira


Arquitetura e Urbanismo – PPTDS/UCSAL

Cibele Moreira Nobre Bonfim


Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA

Fellipe Decrescenzo Andrade Amaral


Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA

Igor Gonçalves Queiroz


Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA

Janayna Victória Araujo


16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica Arquitetura e Urbanismo – FAUFBA
Josane dos Santos Oliveira Anna Paula Ferraz
Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA

Júlia Dominguez Fellipe Decrescenzo Andrade Amaral


Arquitetura e Urbanismo – FAUFBA Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA

Juliana Cardoso Nery Igor Gonçalves Queiroz


Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA

Laila Nazem Mourad Janayna Victória Araujo


Arquitetura e Urbanismo – PPTDS/UCSAL Arquitetura e Urbanismo – FAUFBA

Larissa Corrêa Acatauassú Josane dos Santos Oliveira


Arquitetura e Urbanismo – MPCECRE/UFBA Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA

Luiz Antonio de Souza Júlia Dominguez


Arquitetura e Urbanismo - PPGAU/UFBA Arquitetura e Urbanismo – FAUFBA
Urbanismo – UNEB
Ramon Martins da Silva
Nivaldo Vieira de Andrade Junior Arquitetura e Urbanismo - PPGAU/UFBA
Arquitetura e Urbanismo - PPGAU/UFBA

Paola Berenstein Jacques Comunicação e Design GráfIco


Arquitetura e Urbanismo - PPGAU/UFBA
Alyssa Volpini
Ramon Martins da Silva Arquitetura e Urbanismo – FAUFBA
Arquitetura e Urbanismo - PPGAU/UFBA
Dilton Lopes de Almeida Júnior
Sonia Mendes Reis Nascimento Silva Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA
Arquitetura e Urbanismo - PPGAU/UFBA
Igor Gonçalves Queiroz
Sophia Lluís de Oliveira Ramos Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA
Arquitetura e Urbanismo - FAUFBA
Leonardo Vieira de Souza
Arquitetura e Urbanismo – FAUFBA
Secretaria
Ramon Martins da Silva
Alexandre Pajeú Moura Arquitetura e Urbanismo - PPGAU/UFBA
Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA
Sofia de Carvalho Costa e Lima
Alyssa Volpini Arquitetura e Urbanismo – FAUFBA
Arquitetura e Urbanismo – FAUFBA
16º SHCU Márcia Genésia de Sant’Anna
Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA)
Seminário de História Coordenadora

da Cidade e do Urbanismo Adriana Caúla


Arquitetura e Urbanismo – UFF
comissão científIca
Ana Claudia Scaglione Veiga de Castro
Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/USP

Aparecida Netto
Arquitetura e Urbanismo – PPTDS/UCSAL

Carolina Pescatori
Arquitetura e Urbanismo – PPG-FAU/UnB

Cátia Antônia da Silva


Geografia – PPGHS/UERJ

Clarissa Campos
Arquitetura e Urbanismo – UFSJ

Eduardo Rocha Lima


Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA

Elisângela Chiquito
Arquitetura e Urbanismo -DURB/EA/UFMG

Fernanda Arêas Peixoto


Antropologia – PPGAS/USP

Francisco de Assis da Costa


Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA
Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFPB

George Alexandre Ferreira Dantas


Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFRN

José Tavares Correia de Lira


Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/USP

José Simões de Belmont Pessôa


16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFF
Josianne Francia Cerasoli Thaís Bhanthumchinda Portela
História – PPGH/UNICAMP Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA

Laila Mourad Thiago Canettieri


Arquitetura e Urbanismo – PPTDS/UCSAL Geografia – PPGG/UFMG
EA/UFMG
Leandro Cruz
Arquitetura e Urbanismo – FAU/UnB

Luciana Sabóia
Arquitetura e Urbanismo – PPG-FAU/UnB

Luiz Antônio de Souza


Arquitetura e Urbanismo – Urbanismo/UNEB
Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA

Marcio Cotrim Cunha


Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA

Margareth da Silva Pereira


Arquitetura e Urbanismo – PROURB /UFRJ

Milton Araújo Moura


História – PPGH/UFBA
PPGCS/UFBA

Paulo Cesar Borges Alves


Sociologia – PPGCS/UFBA

Rafael Soares Gonçalves


Direito – PUC Rio

Robert Moses Pechman


História – IPPUR/UFRJ

Ricardo Trevisan
Arquitetura e Urbanismo – PPG/FAU UnB

Sarah Feldman
Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/IAU USP

Renata Campello Cabral


Arquitetura e Urbanismo – MDU/UFPE
16º SHCU Apoios e parceiros

Seminário de História João Carlos Salles Pires da Silva

da Cidade e do Urbanismo
Reitor da Universidade Federal da Bahia

Fabiana Dultra Britto


Pró-reitora de Extensão - PROEXT UFBA

Flávia Goulart
Diretora da EDUFBA

Sergio Kopinski Ekerman


Diretor da Faculdade de Arquitetura da UFBA

Nivaldo Vieira de Andrade Junior


Coordenador do PPGAU-UFBA

Larissa Corrêa Acatauassú Nunes Santos


Coordenadora do MP-CECRE-UFBA

Maina Pirajá Silva


Coordenadora PPG-TAS-UCSAL

Márcio Moraes Valença


Presidente da ANPUR

Ricardo Trevisan
Presidente da ANPARQ

Luiz Antonio de Souza


Presidente do IAB-BA

Renato Gama-Rosa Costa


Presidente do Docomomo-BR

Conferencistas

Adrian Gorelik
Universidad Nacional de Quilmes

Silvia Arango
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica Universidad Nacional de Colombia
Wlamyra de Albuquerque Pesquisa HI-SHCU
Universidade Federal da Bahia
Washington Drummond
José Eduardo Ferreira dos Santos
História – PPGH/UNEB Alagoinhas
Acervo da Laje Coordenador

Ângela Mingas Alyssa Volpini


Universidade Lusíada de Angola Arquitetura e Urbanismo – FAUFBA

Redy Wilson Ana Luiza Silva Freire


Universidade Nova de Lisboa Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA

Conferencistas Participantes do I SHU de 1990 Dilton Lopes de Almeida


Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA
Célia Ferraz
PROPUR/UFRGS Eloísa Marçola
Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA
Fânia Fridman
IPPUR/UFRJ Igor Gonçalves Queiroz
Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA
Carlos Roberto Monteiro de Andrade
IAU/USP Luiz Antonio Souza
Arquitetura e Urbanismo PPGAU/UFBA
Maria Cristina Leme Urbanismo – UNEB
FAU/USP
Mauricio José de Jesus
Maria Stella Brescianni História – PPGH/UNEB Alagoinhas
CIEC/UNICAMP
Paola Berenstein Jacques
Pedro Vasconcelos Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA
PPGPTDS/UCSAL
Ramon Martins da Silva
Cibele Rizek Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFBA
IAU/USP
Roberto Luis Bonfim dos Santos Filho
Antônio Heliodório História – PPGH/UNEB Alagoinhas
PPGAU/UFBA
Thaís Gouveia Calazans Dantas
História – PPGH/UNEB Alagoinhas
16º SHCU Participantes do shu de 1990
entrevistados e homenageados pela pesquisa hi-shcu
Seminário de História
Ana Fernandes
da Cidade e do Urbanismo PPGAU/UFBA

Ângela Lúcia de Araújo Ferreira


PPGAU/UFRN

Carlos Roberto Monteiro de Andrade


IAU/USP

Célia Ferraz de Souza


PROPUR/UFRGS

Cibele Rizek
IAU/USP

Fania Fridman
IPPUR/UFRJ

Heliodorio Sampaio
PPGAU/UFBA

Joel Outtes
FA/UFRGS

José Geraldo Simões Junior


FAU/UPM

José Tavares de Lira


FAU/USP

Maria Cristina Leme


FAU/USP

Maria Stella Bresciani


CIEC/UNICAMP

Pasqualino Magnavita
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica PPGAU/UFBA
Pedro Vasconcelos Sophia Lluis Oliveira Ramos
PPGPTDS/UCSAL Tadeu de Brito
Tafnes Amaral
Raquel Rolnik
Talita Lima Sousa
FAU/USP
Victor cesar borges fonseca
Robert Moses Pechman
IPPUR/UFRJ Debatedores de Vídeo-Pôsteres

Alexandre Pajeú Moura


monitores
PPGAU/UFBA
Aretha de Macedo Cardoso
Aparecida Netto
Berta de Oliveira Melo
PPGPTDS/UCSAL
Danilo Lemos de Araújo
Deborah Sandes de Almeida
Cátia Antônia
Eloísa Marçola
PPGHS/UERJ
Ester Moreira Santos
Gabriella Suzart Santana Clarissa Campos
Gisa Maria Gomes de Barros Almeida UFSJ
Guilherme Ferreira dos Santos
Iris Priscila Nunes da Silva Oliveira Dilton Lopes

Jefferson Felipe Macedo Bonfim PPGAU/UFBA

Jiselle Dias
Eliana Queiróz
Jonas Oliveira Santana
PPGAU/UFBA
Júlia Dominguez
Laise Santos Pires Eloísa Marçola
Márcio roque batista Lima PPGAU/UFBA
Maria Janaina Anunciação Ventin
Mariana Cristina da Silva Gomes Elisângela Queiroz Veiga
Mário Pinto Calaça Júnior PPGAU/UFBA

Nathan Andrey Merenciano Bastos


Fellipe Descrescenzo
Paula Mussi Bittencourt
PPGAU/UFBA
Pedro Bahia
Rafael Souza Janaína Bechler
Richardson Thomas da Silva Moraes
PPGAU/UFBA
Robson Dean Araujo de Souza
Rodrigo Oliveira Mato Grosso Pereira Joaquim Nunes
Simone Buiate Brandão PPGAU/UFBA
16º SHCU Josane Oliveira
PPGAU/UFBA
Seminário de História
da Cidade e do Urbanismo José Pessoa
PPGAU/UFF

Josianne Cerasoli
CIEC/UNICAMP

Julia Pela Meneghel


PPGAU/UFBA

Leandro Cruz
FAU/UnB

Leonardo Poli
UNIME

Luz Adriana Iriarte López


PPGAU/UFBA

Marcos Britto
PPGAU/UFBA

Rafaela Izeli
PPGAU/UFBA

Ramon Martins
PPGAU/UFBA

Robert Pechman
IPPUR/UFRJ

Sarah Feldman
PPGAU/IAU USP

Sônia Silva
PPGAU/UFBA

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
SISGEENCO

Júlia Rocha
Clesio Marinho
Carlos Nonato
Bruno Tavares
Robson Tavares

Festa de Encerramento

Spadina Banks
Aimée Lumiére
Nadine Nascimento
Gustavo Ortega
16º SHCU EIXO TEMÁTICO 1

HISTORIOGRAFIA E PENSAMENTO URBANÍSTICO


SEMINÁRIO DE HISTÓRIA
DA CIDADE E DO URBANISMO Refletir as questões teórico-metodológicas, os
problemas, as teorias, as metodologias, os ato-
res, as redes intelectuais e os regimes de histo-
EIXOS temáticOs ricidade.

EIXO TEMÁTICO 2

HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS


DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

Debruçar-se sobre as experiências, multi, inter


e transdisciplinares, os saberes tradicionais e a
dimensão da experiência urbana cotidiana.

EIXO TEMÁTICO 3

ESCRITAS DA HISTÓRIA URBANA

Vislumbrar as temporalidades, os silenciamen-


tos, os modos de narração e as práticas historio-
gráficas – história oral, comparada, conectada,
relatos, testemunhos, cidade letrada, literatura,
biografias, montagens etc.

EIXO TEMÁTICO 4

CIDADES, MEMÓRIAS E ARQUIVOS

Debruçar-se sobre as fontes, os documentos,


as materialidades, os patrimônios, as cartogra-
fias, as iconografias e outras fontes, documen-
tos e vestígios.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
índice . artigos

EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO
E OUTROS CAMPOS DO CONHECIMENTO
SOBRE AS CIDADES
ARTIGOS mesas temáticas

A CIDADE É DELAS? AMPLIANDO IMAGINÁRIOS E


EIXO TEMÁTICO 2 PERSPECTIVAS NA PRÁTICA E NO ENSINO DA
ARQUITETURA E URBANISMO
HISTÓRIA, URBANISMO BOGADO, Diana; PETERLI, Carolina; PENNA, Ana
E OUTROS CAMPOS DO Caroline; VOLPINI, Alyssa.

CONHECIMENTO
878

SOBRE AS CIDADES A ARQUEOLOGIA DA PAISAGEM E SUA CONTRIBUIÇÃO


PARA A HISTÓRIA DA URBANIZAÇÃO DO BRASIL
BORSOI, Diogo Fonseca; BUENO, Beatriz Piccolotto
Siqueira; ARRAES, Esdras; MOURA, Nádia Mendes de.

900

AS [OUTRAS] 7 DE SETEMBRO
ROCHA, Maria Isabel C. M.; BENEZATH, Camila; OLIVEIRA,
Carlos Alberto; BECHLER, Janaina.

918

AS RUAS DE SÃO PAULO E SEUS ATORES: UMA ESCALA


PARA A HISTÓRIA DA CIDADE
CASTRO, Ana Claudia Veiga de; CESARINO, Gabriela
Krantz; ANDRADE, Stephanie Silveira Guerra de;
CARNEIRO, Elisa Zocca.

934

AS RUAS DE SÃO PAULO E SUAS MATERIALIDADES:


UMA ESCALA PARA A HISTÓRIA DA CIDADE
LANNA, Ana Lucia Duarte; FERREIRA, Pedro Beresin
Schleder Ferreira; ALMEIDA, Deborah Sandes de; REIS,
Philippe Arthur dos.

950

HISTÓRIA DA CIDADE NO ENSINO FUNDAMENTAL


BARROS, Amélia de Farias Panet (Coord.); ANDRADE,
Patrícia Alonso; PEIXOTO, Elane Ribeiro; SOLÉ (Coord.),
Julia Mazzutti Bastian; MOURA, Cristina Patriota de;
JANUZZI, Vinicius Prado; MILSTEIN, Diana.

966

HISTÓRIA DA CIDADE, POLÍTICAS DO PRESENTE,


ECONOMIA DO FUTURO
CANETTIERI, Thiago; VELLOSO, Rita; TUPINAMBA,
Gabriel; VALLE, William.
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica 984
HISTORICIDADE DA CIDADE NEGRA: RELAÇÕES
ÉTNICORACIAIS E PRODUÇÃO DO URBANO NO BRASIL
sessões temáticas
FIGUEIREIDO; Glória Cecília dos Santos; VELAME; Fábio
Macêdo; RAMOS-PENHA; Maria Estela Rocha; SOUZA; Luis A CIDADE, O PENSAMENTO ANIMAL E A POESIA:
Antônio; ESPÍRITO SANTO; Maria Teresa G. do. UM MODO DE NARRAR
996 DALVA, Cinira.

1064
O QUE PODE SER DITO, O QUE PODE SER VISTO DA
CIDADE?
A POTENCIALIDADE DO ESPAÇO URBANO COMO
PECHMAN, Robert; PINHO, Fernando; ASSAF, Stephanie; INSTRUMENTO NO PROCESSO DE DEMOCRATIZAÇÃO DAS
BRESCIANI, Stella. RELAÇÕES SOCIAIS: O QUE NOS ENSINA MOVIMENTO
1014 NEGRO BRASILEIRO

RODRIGUES, Danielle Amorim.


PLANEJAMENTO E URBANIZAÇÃO NO BRASIL NAS 1080
DÉCADAS DE 1950 A 2010

TAVARES, Jeferson; BERNARDINI, Sidney Piochi; BELOTO, ARTE RELACIONAL: ESPAÇO PÚBLICO, PARTICIPAÇÃO E
Gislaine Elizete; MEDEIROS, Gabriel Leopoldino Paulo de; AFETIVIDADE
CAMPOS, Tamms Maria da Conceição Morais.
VIANNA MARIA, Natalia Tomaz; CRUZ, Pâmella Mochiute;
1030
PRUDENTE, Marcelo dos Santos.

1100
TERREIRO DE CANDOMBLÉ E CIDADE: EXISTÊNCIAS E
RESISTÊNCIAS NEGRAS AFRO-REFERENCIADAS E
AFRO-CENTRADAS NA CIDADE EM DIREÇÃO AOS ARRABALDES: A (TRANS)
FORMAÇÃO DE UM ANTIGO CAMINHO DE EXPANSÃO
SILVA, Vilma Patrícia Santana; VELAME; Fábio Macêdo; URBANA EM FORTALEZA
OLIVEIRA; Josane; Silva; Sônia.
ALMEIDA, Isabelle de Lima; VASCONCELOS, Ana Cecilia
1050
Serpa Braga.

1118

O LUGAR DO CRUZO

BISSONI, Luisa; FERREIRA TOI, Sofia; ARAVECCHIA-


BOTAS, Nilce.

1140

O NEXO PÚBLICO–PRIVADO NA ORIGEM DOS SISTEMAS


DE SANEAMENTO URBANO DAS CIDADES BRASILEIRAS
ENTRE O SEGUNDO REINADO E A REPÚBLICA VELHA
(1840–1930)

XAVIER, Luiz Merino de F.; SOUZA, Celia Ferraz de.

1158

O RECIFE DE CÍCERO DIAS, 1929-1931

TRINDADE, Ana Carolina de Freitas; MOREIRA, Fernando


Diniz.

1176
ARTIGOS RISCOS AMAZÔNICOS E TRAÇOS ANCESTRAIS

FREIRE, Leonardo; HOLANDA, Frederico de; MEDEIROS,


Valério.
EIXO TEMÁTICO 2 1198

HISTÓRIA, URBANISMO TRATADOS MÉDICOS E ESPAÇO GEOGRÁFICO


E OUTROS CAMPOS DO JULIANELLI, Anna Rachel Baracho Eduardo; FERREIRA,

CONHECIMENTO
Angela Lucia.

1218
SOBRE AS CIDADES
USO E APROPRIAÇÃO LGBT+ DOS ESPAÇOS PÚBLICOS:
SUBVERSÃO DA OCUPAÇÃO NORMATIVA E
CONFORMAÇÃO DE UMA IDENTIDADE

NOGUEIRA, Carolina Rodrigues Chaves.

1236

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
AS IMPLICAÇÕES ECONÔMICAS, TERRITORIAIS
vídeo-pôsteres E HUMANAS DO TRANSPORTE EM MOSSORÓ E REGIÃO
(DÉCADAS DE 1910 – 1930)
A AMÉRICA LATINA NA REVISTA SPAZIO E SOCIETÀ MEDEIROS, Gabriel Leopoldino Paulo de; ANCHIETA,
Adriana Maria do Nascimento; SILVA, Arthur Oliveira;
SAVINO, Fabiane Regina.
PEREIRA, Jassira Rodrigues.
1254
1388

A ESTÉTICA DO ESPAÇO URBANO NO DISCURSO E AS TRAMAS DO RESSENTIMENTO EM REVOLTA NA


IMAGEM DE JOSÉ MARIANNO FILHO (1910-1919) ARTE PUNK: OS SUBTERRÂNEOS NA HISTÓRIA DE
ONOFRE, Carlos Eduardo Lins. SÃO PAULO
1272 PIRES, João Augusto Neves.

1406
A EVOLUÇÃO URBANA DE NITERÓI-RJ: DA CIDADE
COLONIAL À CIDADE CAPITALISTA A TRANSFORMAÇÃO DOS ESPAÇOS DA MOBILIDADE
PEREIRA, Rafael Carvalho Drumond. A PÉ: SÃO PAULO DO SÉCULO XX AO XXI
1294 PRADO, Nathalie.

1430
A FERROVIA E A URBANIZAÇÃO DA ZONA LESTE DE
SÃO PAULO: A FORMAÇÃO DO NÚCLEO URBANO DE BORDEJO PELA PRODUÇÃO ESPACIAL URBANA
GUAIANASES EM SALVADOR (BA)
CAMPOS, Cristina; JESUS, Mayara Pereira de.
LISIAK, Janaína.
1314
1444

A FESTA DE IEMANJÁ NA CIDADE DE SALVADOR CAFÉ, PODER E SALUBRIDADE NO INÍCIO DO SÉCULO XX


SANTOS JUNIOR, Flávio Cardoso dos.
CARDACHEVSKI, Ana Maria; SANTOS JUNIOR, Wilson Ribeiro.
1332
1466

A IMPLANTAÇÃO DA FERROVIA E A URBANIZAÇÃO NA


CARTOGRAFIAS DA EXCLUSÃO: A SEGREGAÇÃO
CIDADE DE IGUATU, CEARÁ
SOCIOESPACIAL NARRA A HISTÓRIA DA CONFORMAÇÃO
OLIVEIRA, Ygor Nobre de; MENESES, Vítor Domício de; URBANA DE PONTA GROSSA-PR
COSTA, Amanda Gabrielle de Queiroz.
COMIN, Bianca Paola.
1352
1484

A PAISAGEM URBANA DO CENTRO HISTÓRICO CIDADE MODERNA E CIDADE PROVINCIANA NAS


DE FLORIANÓPOLIS: PERSPECTIVAS COTIDIANAS CRÔNICAS DE MANUEL BANDEIRA
RIOS, Larissa Ferraz; CONCEIÇÃO, Milton Luz da. LEITE, Brenda Regina Braz.
1370 1504

CIDADE-SENSÍVEL: NARRATIVAS E EXPERIÊNCIAS


URBANAS INSPIRADAS NOS SITUACIONISTAS
PIMENTA, Gustavo.

1518
ARTIGOS CURITIBA ANOS 1950 - 1990: REPRESENTAÇÃO
LITERÁRIA E APROPRIAÇÕES DA GESTÃO PÚBLICA
JAZAR, Manoela Massuchetto; ULTRAMARI, Clovis.

EIXO TEMÁTICO 2 1540

HISTÓRIA, URBANISMO DE VILA PAPELÃO À VILA XURUPITA: LUTA, AUSÊNCIA

E OUTROS CAMPOS DO E CONFLITOS


MOL, Natália Aguiar; OLIVEIRA, Lorena J. Coelho;
CONHECIMENTO PASSOS, Rogério Lucas Gonçalves.

SOBRE AS CIDADES 1560

DIANTE DA FRONTEIRA, A CIDADE BARREIRAS NAS


MARGENS O SENTIDO DA BIOPOLÍTICA E O
NECROPODER (1988-1993)
CORRÊA, Diego Carvalho; REIS, Andressa Sousa; LIMA,
Igor de Moraes.
1582

DO CENTRO HISTÓRICO À CIDADE HISTÓRICA:


PROGRAMAS, PROJETOS E AÇÕES DE REGENERAÇÃO
URBANA EM TORRES VEDRAS, PORTUGAL
SILVA CAVALCANTE, Eunádia; NASCIMENTO, José
Clewton do.
1602

ENCONTROS DE ARTE MODERNA DE CURITIBA:


A DIMENSÃO URBANA DO 6˚ EAM (1974)
KOENTOPP, Gabriela; JABUR, Rodrigo Sartori.
1632

ENSAIO SOBRE O BALLET URBANO: A ESPETACULARI-


ZAÇÃO EM CIDADES DE PEQUENO E MÉDIO PORTE
NUNES, Lara; CARVALHO, Tatiana.
1650

EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA COBRANÇA PELO


ABASTECIMENTO DE ÁGUA NO RIO DE JANEIRO
ARAUJO, Patrícia Finamore; BRITTO, Ana Lucia Nogueira de Paiva.

1672

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
EXPERIÊNCIAS DIDÁTICO-PEDAGÓGICAS LEI DE USO E OCUPAÇÃO DO SOLO DO DISTRITO
INTERDISCIPLINARES EM CIDADES BARROCAS FEDERAL: ANÁLISE NO CONTEXTO HISTÓRICO DISTRITAL
BRASILEIRAS
SAPORI AVELAR, Clarissa.
ALBUQUERQUE, Glauce Lilian Alves de; BRASIL, Amiria 1812
Bezerra; NASCIMENTO, José Clewton do.
1690
METRÓPOLE REGIONAL NO BRASIL DO SÉCULO XX
TAVARES, Jeferson.
FETICHIZAÇÃO DA CIDADE HISTÓRICA: PRAÇA
ANTHENOR NAVARRO E LARGO SÃO FREI PEDRO 1834
GONÇALVES, JOÃO PESSOA / PB
PEREGRINO DE ALBUQUERQUE, Mariana. MÉXICO-TENOCHTITLAN: AS RAÍZES AMERÍNDIAS NA
1704
CIDADE OCIDENTAL
SALVAT, Ana Paula dos Santos.

IMPRENSA PAULISTANA NAS DÉCADAS DE 1930 E 1846


1940: PRESTES MAIA E A DIVULGAÇÃO MIDIÁTICA DO
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TAVARES, Gabriela Maria Paiva; ZAMPRONHA, Sara Cristina
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INCERTOS E AFETOS: UM ESTUDO DE HUMANIZAÇÃO 1866
ESPONT NEA EM ESPAÇOS RESIDUAIS

FONSECA, Anne Elly Pereira. MUSEUS EM COMUNIDADES, TURISMO E CULTURA:


1740 PATRIMÔNIO, IDENTIDADE, MEMÓRIA E PARTICIPAÇÃO
COMUNITÁRIA EM FAVELAS DO RIO DE JANEIRO

INDÚSTRIA E TERRITÓRIO NA REGIÃO DO GRANDE ABC FAGERLANDE, Sergio Moraes Rego.


NOS ÚLTIMOS 70 ANOS: QUESTÕES SOBRE A CRISE DE 1884
UM MODELO

YAMAUCHI, Gisele; OURINHO, Andréa de Oliveira. NARRATIVA À DERIVA: UMA ANÁLISE DA DIMENSÃO
1758
IMAGÉTICA DO COTIDIANO URBANO NO FILME “A CASA
DE ALICE”
SANTOS, Paul Newman dos; CASTRAL, Paulo César.
INTRODUÇÃO À HISTÓRIA URBANA POTIGUAR: EPÍTOME
SOBRE NATAL E PARNAMIRIM 1900

FERNANDES, Lenita Maria dos Santos; FREIRE, Camila


Amaro da Silva. O BAIRRO DE MARECHAL HERMES: OÁSIS ENTRE OS
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LEGISLAÇÃO URBANÍSTICA E FORMA URBANA. SÃO 1918


PAULO NO SÉCULO XXI
TELES, Tatiane. O LUGAR E A PAISAGEM COMO INSTRUMENTOS DE
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ARTIGOS O MINHOCÃO E A REGIÃO DA AVENIDA SÃO JOÃO
EM SÃO PAULO
CAMPOS, Candido Malta.

EIXO TEMÁTICO 2 1954

HISTÓRIA, URBANISMO O MORAR NO CENTRO: OS CONFLITOS NO CENTRO


HISTÓRICO DE CAMPINA GRANDE E EM SEU ENTORNO
E OUTROS CAMPOS DO NO INÍCIO DO SÉCULO XXI

CONHECIMENTO BOMFIM, Leticia Barbosa; ANJOS, Kainara Lira dos;


MINÁ, Ana Lívia Farias.
SOBRE AS CIDADES 1974

O MUSEU DA INDÚSTRIA E A MUSEALIZAÇÃO DA


MANUFACTURA SANTA HELENA
NOVAES, Sophia; SARRAF, Viviane.
1994

O PROGRAMA MONUMENTA EM SÃO FRANCISCO DO


SUL: PATRIMÔNIO, URBANISMO E DESENVOLVIMENTO
BELLA, Diogo Cavallari; GONÇALVES, Fábio Mariz.
2012

OCUPA PAULISTA: RELAÇÕES HISTÓRICAS E DESDO-


BRAMENTOS RECENTES A PARTIR DOS MOVIMENTOS
DE OCUPAÇÃO NA AVENIDA PAULISTA, SÃO PAULO
IZELI, Rafaela Lino.
2032

OS CLUBES SOCIAIS E SEU PAPEL NA SEGREGAÇÃO


SOCIOESPACIAL NO PROCESSO DE MODERNIZAÇÃO DE
FORTALEZA NAS DÉCADAS DE 1930 E 1940
LOPES, Tiago Farias; JUCÁ NETO, Clovis Ramiro.
2050

OS ESTUDOS PARA O PORTO DE MOSSORÓ NO CONTEXTO DE


DESENVOLVIMENTO TERRITORIAL DO RIO GRANDE DO NORTE
MEDEIROS, Gabriel Leopoldino Paulo de; PEREIRA,
Manoel Alex França.
2066

OS RETIRANTES: CONFLITOS ENTRE O PLANEJAMENTO


URBANO INSTITUCIONAL, A CULTURA E A
PARTICIPAÇÃO POPULAR
BITENCOURT, Ricardo.
2080
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
PELAS BRECHAS DA CIDADE: EXPERIÊNCIAS E TERRITORIALIDADES E PRÁTICAS ESPACIAIS NO
NARRATIVAS DO BAIRRO DE CRUZ DAS ALMAS EM IV DISTRITO DE PORTO ALEGRE (RS): REFLEXÕES
MACEIÓ-ALAGOAS SOBRE HISTÓRIA E COTIDIANO
VIANA, Manuela Miranda Vasconcelos; DIAS, Juliana ALMEIDA, Nicole Leal de; CAMPOS, Heleniza Ávila.
Michaello Macêdo; OLIVEIRA, Roseline.
2278
2102

THEODORO SAMPAIO NO VALE DO PARAÍBA:


PEQUENA ÁFRICA E O SAMBA: REPRESENTAÇÃO DA ORIGENS DO URBANISMO SANITARISTA NA SERRA
CIDADE,PATRIMÔNIO E RESISTÊNCIA DA MANTIQUEIRA E O LOCAL ADEQUADO PARA A
BRASÍLIA, CAPITAL DO BRASIL
MAIA, Kélvia Oliveira Alcantra.
2120 SANTOS, Ademir Pereira dos.
2296

PLANEJAMENTO E INDÚSTRIA NO PERÍODO DO SERFHAU:


UM ESTUDO DO CASO DE PRESIDENTE PRUDENTE/SP VIVER NA MARÉ DO RECIFE ENTRE AS DÉCADAS DE
1960- 1980: DISCURSO MIDIÁTICO E DEGRADAÇÃO
SCATALON, Aline Passos; CUCATO, Janaina Andréa.
DA POBREZA
2150
LUCENA, Victor M.; LEITE, Julieta M. V.
2312
POLÍTICA HABITACIONAL: ENTRE O FAZER VIVER E
DEIXAR MORRER
BREDA, Thalles Vichiato.

2172

REPRESENTAÇÕES CULTURAIS E HIBRIDISMO NAS


AÇÕES DE TÉCNICOS E EMPREENDEDORES NA
CONSTRUÇÃO DA CIDADE COLONIAL
LINS, André Bezerra.

2188

RETRATOS DA RUA: INTERVENÇÕES TEMPORÁRIAS NO


ESPAÇO PÚBLICO
CAMARGO, Clara Alvares.
2220

RUPTURAS DE UM PROCESSO PLANIFICADOR: O CASO


DE JUNDIAÍ EM SÃO PAULO
COLAGROSSI, Daniela; BERNARDINI, Sidney Piochi.

2236

SANTA TEREZA E A ESFINGE DA DEFESA DA


DIVERSIDADE URBANA
SILVA, Tássio Santos.
2258
EIXO TEMÁTICO 2

HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS


CAMPOS DO CONHECIMENTO
SOBRE AS CIDADES
EIXO TEMÁTICO 2

HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS


CAMPOS DO CONHECIMENTO
SOBRE AS CIDADES

mesas temáticas
EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Ao observar o aceleramento das transforma-
ções das cidades na atualidade, se torna pos-
sível perceber que, em muitos casos, as inter-
mesa temática venções urbanas possuem como pano de fundo
os interesses de um mercado imobiliário. Isto
porque tais intervenções estão atreladas a pro-
A CIDADE É DELAS? cessos de gentrificação e de remoção de co-
munidades de baixa renda, cuja supressão po-
AMPLIANDO IMAGINÁRIOS E pulacional possibilita a atração de outra classe
social para estes lugares, capazes de consumir
PERSPECTIVAS NA PRÁTICA E as “novas atrações” do espaço urbano reforma-

NO ENSINO DA ARQUITETURA do.

Esse fenômeno, definido por Harvey (2005)


E URBANISMO como “acumulação por despossessão”, é uma
característica do momento mundial atual, o
qual se difere dos demais momentos da vida
THE CITY BELONGS TO WOMEN? EXPANDING
do sistema capitalista por algumas caracterís-
IMAGINARY AND PERSPECTIVES IN THE PRACTICE AND
ticas únicas que têm implicações no funciona-
TEACHING OF ARCHITECTURE AND URBANISM
mento da vida social. Ao partirmos da dinâmica
econômica de base capitalista da atualidade,
¿ES LA CIUDAD DE LAS MUJERES? REFLEXIONES EN
observamos uma espécie de retroalimentação
LA PRÁCTICA Y ENSEÑANZA DE LA ARQUITECTURA Y
entre a mídia e os processos de especulação –
EL URBANISMO
do solo, da moradia, etc (Santos, 2013). Ambas,
mídia e especulação, criam necessidades para
BOGADO, Diana os indivíduos a partir da criação de um estilo
Doutora; UNICEPLAC
de vida fundamentado no consumo constante.
dibogado@yahoo.com.br Enquanto a especulação possibilita o alto custo
das mercadorias a serem consumidas, a mídia
PETERLI, Carolina convence da necessidade do consumo. A es-
trutura financeira, por sua vez, é garantida pela
Doutoranda; PPGGNEIM-UFBA
carolinacpg@hotmail.com
violência estrutural inerente ao sistema, con-
forme explica Milton Santos (2013). Coerção e
repressão mantém, desta forma, a reprodução
PENNA, Ana Caroline
deste ciclo de vida urbana consumista.
Graduanda; Licenciatura em História/UFRRJ
anacarolinepenna@gmail.com
Neste modelo, os processos da vida social são
intermediados pelo consumismo que adentra
VOLPINI, Alyssa os intrínsecos espaços da vida social. A socie-
Graduanda; FAUFBA/FAU-UnB dade se padroniza e se espetaculariza, as rela-
alyssa.volpini@gmail.com ções entre os indivíduos tornam-se relações de
competição e reduzem-se à aparência (Debord
1964). Tal competitividade não se restringe à
esfera das relações individuais, mas passa a
ser a lógica predominante que se justifica por
ela mesma (Santos, 2013). Dentro desta lógica
16º SHCU enquadram-se as cidades, cujas gestões pas-
30 anos . Atualização Crítica
sam a se concentrar na produção de espaços
878 mundializados para competir com as demais
cidades. Este jogo competitivo por visibilidade oliberais através de coalizões de poder entre
internacional torna-se o objetivo das gestões Estado e mercado. O objetivo era desencadear
urbanas: a cidade atrativa, visível, com espaços transformações espaciais e sociais por meio da
padronizados, compatíveis aos gostos de um especulação imobiliária em áreas específicas
público internacional diferenciado passa a ser o das metrópoles globais, tanto do hemisfério
modelo a ser seguido. norte como do sul.

Desta forma, a ideia de uma gestão urbana A implementação do empreendedorismo urba-


adequada, antes entendida como aquela ca- no favorece os interesses elitistas, mais preci-
paz de promover o acesso a cidade a todos os samente alinhados aos setores imobiliários. Tal
cidadãos, bem como infraestrutura básica e fenômeno, também denominado “neoliberali-
recursos, é substituída pela transformação de zação das cidades”, contextualiza o momento
espaços da cidade em vitrines de visibilidade de transição das metrópoles globais (SANTOS,
internacional capazes de atrair turistas e inves- 2013). A partir disso, o modelo foi implementado
timentos financeiros. Dentre as estratégias de em diversas cidades do mundo capitalista, tor-
projeto urbano para transformação de cidades nando-se, portanto, um novo paradigma social
em lugares espetaculares estão a homogenei- capaz de desarticular avanços democráticos ao
zação e a gentrificação, favorecidas em mo- carregar ideologias que legitimam a desigual-
mentos de grandes eventos internacionais que dade social através de teorias ligadas à ideia de
possibilitam que todos estes processos sejam meritocracia e empreendedorismo.
intensificados. O custo deste projeto é o direito
à cidade e o direito à moradia. Estas transformações – ideológicas, políticas e
econômicas – se refletem no ordenamento ter-
As transformações dos espaços urbanos em ritorial. O território passa a ser adaptado para a
espaços capazes de viabilizar a reprodução do reprodução do capital e, devido às diferenças
capital associa-se à emergência da cidade ne- de contextos socioeconômicos e políticos, os
oliberal ou cidade mercadófila (Mascarenhas, efeitos guardam suas particularidades no he-
2016), uma proposta que busca atender o projeto misfério norte e sul.
de sociedade relacionado à espetacularização
da vida (Guy Debord, 1969), na qual os cidadãos Além disso, o pensamento urbanístico e a forma
são convertidos em consumidores acríticos. de se produzir cidades têm se baseado em um
pretenso universalismo. Os pilares modernistas
O processo descrito acentua a segregação nas são um marco de ruptura com o paradigma do
metrópoles globais, fenômeno comum às ges- século XIX, no qual o “Modulor” corbusiano in-
tões “empreendedoras” (Harvey, 2011), um mo- corpora o homem como medida de todas as coi-
delo de gestão que propõe que a administração sas, se tornando dispositivo de controle e dis-
pública funcione como uma empresa, resultan- ciplina dos indivíduos (BRESCIANI, 2001). Sendo
do em inúmeras violações de direitos sociais assim, o modelo de vida que sustenta o paradig-
das classes subalternas, as quais se veem im- ma descrito tem no homem vitruviano - branco
pelidas a articularem-se politicamente. europeu, heterossexual e cisgênero - a referên-
cia de sucesso e o conhecimento científico eu-
Estas mudanças estão associadas à ascensão ropeu como padrão. Isso resulta na ideia de que
do neoliberalismo como paradigma político eco- tudo que não alcança o padrão refere-se à falta
nômico, que surge como reto de direcionamen- de êxito ou à incapacidade de chegar ao padrão
to do pensamento político-econômico entre as estabelecido, patriarcal, branco e elitista.
décadas de 1970-80 (Harvey, 2005) e substitui
os ideais estabelecidos nas décadas que suce- Repensar a formação do campo historiográfico
deram a Segunda Guerra Mundial nos países ca- do urbanismo no Brasil e suas contribuições para
pitalistas (COSENTINO 2015, p. 63). O período de (re)formulação das cidades, problematizando
implementação das gestões neoliberais latino questões urbanas atuais, traz a necessidade do
americanas se deu em meados dos anos 1990 e debate enquanto processo multidisciplinar da
que teve como desdobramento, no princípio do formação do saber e da prática de arquitetura e
milênio, o aprimoramento das estratégias ne- urbanismo, no sentido de tensionar projetos de
EIXO TEMÁTICO 2 cidades que são orientadas pelo pensamento
hegemônico branco do norte global. Na ativida-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS de do urbanismo, este olhar reduz as atividades
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES no interior do urbano, despreza outras vidas e
outros movimentos e exclui possibilidades e
diversidades que deveriam servir de base para
realização de projetos mais plurais. O modelo de
cidade construído e reproduzido pelo planeja-
dor contemporâneo enquadra-se na esfera do
espaço concebido em detrimento da esfera do
espaço vivido e do percebido, (Lefebvre, 1974),
tendo como produto a reprodução das exclu-
sões.

Este modelo de sociedade e cidade – excludente


e consensual – resulta, por outro lado, na orga-
nização daquelas que são diretamente e coti-
dianamente afetadas. No seio da cidade neoli-
beral forja-se a luta por direitos urbanos.

É possível notar que na luta por direito à mora-


dia existe uma predominância de mulheres em
relação aos homens. A maior participação das
mulheres parece estar atrelada ao fato de elas
serem responsáveis socialmente pelo trabalho
doméstico e de cuidados, tornando-as mais
atreladas ao espaço privado – a casa – do que
os homens. O contexto de ameaça da moradia
estabelecido pelos Grandes Projetos Urbanos
atinge, portanto, a população periférica como
um todo, mas principalmente as mulheres, tor-
nando-as as principais articuladoras dos pro-
cessos de resistência.

As questões até aqui apresentadas nortearão o


debate da mesa temática aqui proposta, na qual
pretende-se aprofundar a associação entre
patriarcado e colonização na construção das
cidades, partindo da crítica teórica e política
formulada por mulheres periféricas – negras, in-
dígenas, do sul global. São essas mulheres que
para Maria Galindo, e para nós, produzem uma
verdadeira revolução, invisibilizada e subalterna
que faz parte das notícias de cada dia, nos re-
gistros de ocorrência na lei Maria da Penha, nos
divórcios, nas guardas compartilhadas, na au-
tonomia das mulheres, na ocupação de espaços
na vida privada, pública e institucional.

Segundo Galindo, o modelo neoliberal globali-


16º SHCU zado define a mulher como entidade biológica
30 anos . Atualização Crítica
despojada de qualquer vocação ideológica, por-
880 tanto essencialmente despolitizadas, simplifi-
cadas e banalizadas, entendidas com entes bio- ABSTRACT
lógicos, capturadas em representatividade pela
mulher branca de classe alta profissional, que
apaga a voz das mulheres negras e periféricas. By observing the acceleration of city transforma-
tions today, it becomes possible to realize that,
Reforçando o direito à cidade como um direito in many cases, urban interventions have the in-
coletivo e não um direito individual - sendo os terests of a real estate market as a background.
processos de urbanização inevitavelmente de- This is because such interventions are linked to
pendentes do exercício de um poder coletivo processes of gentrification and removal of low-in-
(HARVEY, 2018) -, esta mesa pretende trazer à come communities, whose population suppres-
tona o debate sobre a atuação revolucionária sion makes it possible to attract another social
das mulheres periféricas, a visibilização das class to these places, capable of consuming the
mulheres arquitetas e urbanistas e a possibili- “new attractions” of the reformed urban space.
dade de uma luta emergente que coloque a vida
e, principalmente, a vida das mulheres no de- This phenomenon, defined by Harvey (2005) as
bate de uma produção comum de cidade que “accumulation by dispossession”, is a characte-
seja democrática, igualitária e solidária, cons- ristic of the current world moment, which differs
truída pela e para as subjetividades alijadas da from the other moments in the life of the capitalist
sociedade, como os corpos periféricos, negros, system by some unique characteristics that have
pobres, desviantes de uma lógica heterocisnor- implications in the functioning of social life. As we
mativa, portadoras de necessidades especiais, start from today’s capitalist base economic dyna-
entre outras. mics, we observe a kind of feedback between the
media and the processes of speculation - of the
soil, housing, etc. (Santos, 2013). Both media and
HISTÓRIA DO URBANISMO GÊNERO DIREITO À CIDADE
speculation create needs for individuals from the
MOVIMENTO SOCIAL FEMINISMOS creation of a lifestyle based on constant consump-
tion. While speculation enables the high cost of
goods to be consumed, the media convince of the
need for consumption. The financial structure, in
turn, is guaranteed by the structural violence inhe-
rent in the system, as Milton Santos (2013) explains.
Coercion and repression maintain, in this way, the
reproduction of this consumerist urban life cycle.

In this model, the processes of social life are in-


termediated by consumerism that enters the
intrinsic spaces of social life. Society becomes
standardized and spectacular; relationships
between individuals become competitive rela-
tionships and are reduced to appearance (Debord
1964). Such competitiveness is not restricted to
the sphere of individual relations, but becomes
the predominant logic that is justified by itself
(Santos, 2013). The cities are inserted in this lo-
gic, whose management starts to focus on the
production of globalized spaces to compete with
other cities. This competitive game for interna-
tional visibility becomes the objective of urban
management: an attractive, visible city with
standardized spaces, compatible to the tastes of
a differentiated international public becomes the
model to be followed.
EIXO TEMÁTICO 2 In this way, the idea of an adequate urban mana-
gement, previously understood as one capable of
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS promoting access to the city for all citizens, as well
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES as basic infrastructure and resources, is replaced
by the transformation of city spaces into showca-
ses of international visibility capable of attrac-
ting tourists and financial investments. Among
the strategies of urban design to transform cities
into spectacular places are homogenization and
gentrification, favored at times of major interna-
tional events that allow all these processes to be
intensified. The costs of this project are the right
to the city and the right to housing.

The transformations of urban spaces into spa-


ces capable of enabling the reproduction of the
capital is associated with the emergence of the
neoliberal city or market city (Mascarenhas, 2016),
a proposal that seeks to attempt the project of a
society based on the spectacularization of life
(Guy Debord, 1969), in which citizens are conver-
ted into uncritical consumers.

The process described above accentuates se-


gregation in the global metropolises, a common
phenomenon on “entrepreneurial” management
(Harvey, 2011), a management model that pro-
poses that the public administration works as a
company, resulting in countless violations of the
social rights of the subordinate classes, which
are impelled to articulate themselves politically.

These changes are associated with the rise of


neoliberalism as an economic and political para-
digm, which emerged as a conductor of the politi-
cal-economic thought between the 1970s and 80s
(Harvey, 2005) and replaces the ideals established
in the decades that followed World War II in the
capitalist countries (COSENTINO 2015, p. 63). The
period of implementation of the neo-liberal ma-
nagement in Latin American took place in the mi-
d-1990s and at the beginning of the millennium,
had as its unfolding the improvement of neo-libe-
ral strategies through power coalitions between
state and market. The goal was to unleash spatial
and social transformations through real estate
speculation in specific areas of the global metro-
polises, both in the northern and southern hemis-
pheres.

16º SHCU The implementation of urban entrepreneurship


30 anos . Atualização Crítica
favors elitist interests, more precisely aligned
882 with the real estate sectors. This phenomenon,
also called “neoliberalization of cities”, contextu- the other hand, this model of society and city - ex-
alizes the transition moment of global metropoli- cluding and consensual - results in the organiza-
ses (SANTOS, 2013). From that point on, the model tion of those who are directly and daily affected.
was implemented in several cities of the capita- Within the neoliberal city, the struggle for urban
list world, thus becoming a new social paradigm rights is forged.
capable of disarticulating democratic advances
by carrying ideologies that legitimize social ine- It is possible to notice that in the struggle for the
quality through theories linked to the idea of me- right to housing there is a predominance of wo-
ritocracy and entrepreneurship. men over men. The greater participation of wo-
men seems to be linked to the fact that they are
These transformations - ideological, political and socially responsible for the domestic and care
economic - are reflected in territorial planning. work, making them more tied to private space -
The territory is now being adapted for the repro- the house - than men. The threatening context of
duction of capital and, due to the differences in housing established by the Great Urban Projects
socioeconomic and political contexts, the effects therefore affects the peripheral population as a
keep their particularities in the northern and sou- whole, but especially women, making them the
thern hemispheres. main articulators of resistance processes.

In addition, urban thinking and the way cities are The issues presented so far will guide the de-
produced have been based on a supposed univer- bate of the thematic seminar proposed here, in
salism. The modernist pillars are a break with the which the association between patriarchy and
paradigm of the 19th century, in which the Corbu- colonization in the construction of cities is to be
sian “Modulor” incorporates man as the measure deepened, based on the theoretical and political
of all things, becoming a device of control and dis- criticism formulated by peripheral women - black,
cipline of individuals (BRESCIANI, 2001). Thus, the indigenous, from the global south. It is these wo-
men who for Maria Galindo, and for us, produce a
model of life that sustains the paradigm described
true revolution, invisible and subaltern that is part
has in Vitruvian man - European white, heterose-
of the news of each day, in the records of occur-
xual and cisgender - the reference of success and
rence in the Maria da Penha law, in the divorces,
European scientific knowledge as standard. This
in the shared guards, in the autonomy of women,
results in the idea that everything that does not
in the occupation of spaces in private, public and
reach the standard refers to the lack of success
institutional life.
or inability to reach the established, patriarchal,
white and elitist standard. According to Galindo, the globalized neoliberal
model defines women as biological entities de-
Rethinking the formation of the historiographic
prived of any ideological vocation, therefore es-
field of urbanism in Brazil and its contributions to
sentially depoliticized, simplified and trivialized,
the (re)formulation of cities, problematizing cur-
understood like biological entities, captured in
rent urban issues, brings the need for debate as
representation by the white woman of professio-
a multidisciplinary process of the formation of
nal high class, who erases the voices of black and
knowledge and practice of architecture and urba- peripheral women.
nism, in the sense of tensioning projects of cities
that are guided by the hegemonic white thinking Strengthening the right to the city as a collective
of the global north. In the activity of urbanism, right and not an individual right - the urbaniza-
this point of view reduces the activities inside the tion processes being inevitably dependent on the
urban, despises other lives and other movements exercise of collective power (HARVEY, 2018) - this
and excludes possibilities and diversities that seminar intends to bring to light the debate on
should serve as a basis for more plural projects. the revolutionary action of peripheral women, the
The model of a city built and reproduced by the visibility of women who are architects and urban
contemporary planner fits into the sphere of the planners and the possibility of an emerging stru-
conceived space in detriment of the sphere of li- ggle that puts life and, mainly, the life of women in
ved and perceived space, (Lefebvre, 1974), having the center of a debate for a common production
as its product the reproduction of exclusions. On of a city that is democratic, egalitarian and soli-
EIXO TEMÁTICO 2 dary, built by and for the subjectivities alienated
from society, such as peripheral bodies, blacks,
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS poor, deviant from a heterocysnormative logic,
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES bearers of special needs, among others.

URBANISM GENDER RIGHT TO THE CITY


SOCIAL MOVEMENT FEMINISMS

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

884
RESUMEN ciudades. Este juego competitivo por la visibili-
dad internacional se convierte en el objetivo de
la gestión urbana: la ciudad atractiva, visible, con
Al observar la aceleración de las transformacio- espacios estandarizados, compatibles con los
nes de la ciudad en la actualidad, se hace posib- gustos de un público internacional diferente, se
le ver que, en muchos casos, las intervenciones convierte en el modelo a seguir.
urbanas tienen como telón de fondo los intereses
de un mercado inmobiliario. Esto se debe a que De esta forma, la idea de una adecuada gestión
tales intervenciones están vinculadas a procesos urbana previamente entendida como aquella ca-
de gentrificación y remoción de comunidades paz de promover el acceso a la ciudad para todos
periféricas, cuya supresión poblacional permite los ciudadanos se sustituye por la transformaci-
la atracción de otra clase social a estos lugares, ón de los espacios de la ciudad en vitrinas de vi-
una clase capaz de consumir las “nuevas atrac- sibilidad internacional capaces de atraer turistas
ciones” del espacio urbano reformulado. e inversiones financieras. Entre las estrategias
urbanísticas para transformar las ciudades en
Este fenómeno, definido por Harvey (2005) como lugares espectaculares se encuentran la homo-
“acumulación por desposesión” es una caracte- geneización y gentrificación, favorecidas en mo-
rística del momento actual, que se diferencia de mentos de grandes eventos internacionales que
otros momentos de la vida del sistema capitalis- permiten intensificar todos estos procesos. El
ta por unas características singulares que tienen precio de este proyecto es la supresión del dere-
implicaciones para el funcionamiento de la vida cho a la ciudad y la vivienda para muchos de sus
social. Cuando partimos de la dinámica económi- habitantes.
ca capitalista de hoy observamos una especie de
retroalimentación entre los medios y los procesos Las transformaciones de los espacios urbanos en
espacios capaces de posibilitar la reproducción
de especulación - del suelo, la vivienda, etc. (San-
del capital se asocian al surgimiento de la ciudad
tos, 2013). Tanto los medios como la especulación
neoliberal o la ciudad “mercadofila” (Mascare-
crean necesidades para las personas al crear un
nhas, 2016), propuesta que busca dar respuesta al
estilo de vida basado en el consumo constante.
proyecto de sociedad relacionado con la espec-
Mientras la especulación garantiza el consumo de
tacularización de la vida (Guy Debord, 1969), en el
los bienes a precio alto, los medios de comunica-
que los ciudadanos se convierten en consumido-
ción convencen de la necesidad de consumir los
res acríticos.
bienes más variables. La estructura financiera, a
su vez, está garantizada por la violencia estructu- El proceso descrito acentúa la segregación en las
ral inherente al sistema, como explica Milton San- metrópolis globales, fenómeno común a las ges-
tos (2013). La coerción y la represión mantienen tiones “emprendedoras” (Harvey, 2011), modelo de
así la reproducción de este ciclo de vida urbano gestión que propone que la administración públi-
consumista. ca funcione como una empresa, resultando en in-
numerables violaciones de los derechos sociales
En este modelo los procesos de la vida social son
de las clases subalternas, la que se ven impulsa-
intermediados por el consumismo que ingresa a dos a​​ articularse políticamente.
los espacios intrínsecos de la vida social de una
sociedad que se estandariza y espectaculariza, Estos cambios están asociados con el surgimien-
las relaciones entre individuos se convierten en to del neoliberalismo como paradigma político
relaciones competitivas y se reducen a la apa- económico, que surge para orientar el pensa-
riencia (Debord 1964). Dicha competitividad no se miento político-económico entre las décadas de
restringe al ámbito de las relaciones individuales, 1970 y 1980 (Harvey, 2005) y reemplaza los ideales
sino que se convierte en la lógica predominante establecidos en las décadas posteriores a la Se-
de la vida, una lógica competitiva que se justifi- gunda Guerra Mundial en los países capitalistas
ca por sí misma (Santos, 2013). Dentro de esta (COSENTINO 2015, p. 63). El período de implemen-
lógica también se incluyen las ciudades, cuyas tación de las administraciones neoliberales lati-
gestiones pasa a centrarse en la producción de noamericanas ocurrió a mediados de la década
espacios globalizados para competir con otras de los noventa, que tuvo el desarrollo, a principios
EIXO TEMÁTICO 2 del milenio, del perfeccionamiento de las estrate-
gias neoliberales a través de coaliciones de poder
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS entre Estado y mercado. El objetivo era desenca-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES denar transformaciones espaciales y sociales a
través de la especulación inmobiliaria en áreas
específicas de las metrópolis globales, tanto en el
hemisferio norte como en el sur.

La implementación del emprendimiento urba-


no favorece intereses elitistas alineados con los
sectores inmobiliarios. Este fenómeno, también
llamado “neoliberalización de las ciudades”, con-
textualiza el momento de transición de las me-
trópolis globales (SANTOS, 2013). En base a esto,
el modelo se implementó en varias ciudades del
mundo capitalista, convirtiéndose así en un nue-
vo paradigma capaz de desmantelar los avances
democráticos al difundir ideologías que legitiman
la desigualdad social a través de teorías vincula-
das a los conceptos de meritocracia y emprendi-
miento.

Estas transformaciones - ideológicas, políticas y


económicas - se reflejan en el ordenamiento ter-
ritorial. El territorio está ahora adaptado para la
reproducción del capital y, debido a las diferen-
cias en los contextos socioeconómicos y políti-
cos, los efectos mantienen sus particularidades
en el hemisferio norte y sur.

Además, el pensamiento urbano y la forma en


que se producen las ciudades se han basado en
un supuesto universalismo. Los pilares moder-
nistas suponen un gran avance con el paradigma
del siglo XIX, en el que el “Modulor” corbusiano in-
corpora al hombre como medida de todas las co-
sas, convirtiéndose en un dispositivo de control y
disciplina de los individuos (BRESCIANI, 2001). Así,
el modelo de vida que sustenta el paradigma des-
crito tiene en el hombre de Vitruvio - blanco euro-
peo, heterosexual y cisgénero - la referencia del
éxito y el conocimiento científico europeo como
estándar. Esto da la idea de que todo lo que no al-
canza el estándar se refiere a la falta de éxito o la
incapacidad para alcanzar el estándar estableci-
do, patriarcal, blanco y elitista

Repensar la formación del campo historiográfi-


co del urbanismo en Brasil y sus aportes a la (re)
formulación de las ciudades, problematizando
16º SHCU los problemas urbanos actuales trae la necesi-
30 anos . Atualização Crítica
dad de debate como un proceso multidisciplina-
886 rio de formación del conocimiento y la práctica
de la arquitectura y el urbanismo, en el sentido de despojada de toda vocación ideológica, por tan-
pretender proyectos de ciudad que están guiados to esencialmente despolitizada, simplificada y
por el pensamiento hegemónico blanco del norte banalizada, entendida con entidades biológicas
global. En la actividad del urbanismo, esta mirada captadas en representación por la mujer profe-
reduce las actividades dentro de lo urbano, des- sional blanca de clase alta, que borra la voz de la
cuida otras vidas y otros movimientos y excluye mujer negra y periférico.
posibilidades y diversidades que deberían servir
de base para la realización de proyectos más plu- Reforzando el derecho a la ciudad como derecho
rales. El modelo de ciudad construido y reprodu- colectivo y no individual -con procesos de urba-
cido por el urbanista contemporáneo se inscribe nización inevitablemente dependientes del ejer-
en la esfera del espacio concebido en detrimento cicio del poder colectivo (HARVEY, 2018) - esta
de la esfera del espacio vivido y percibido (Lefe- mesa pretende plantear el debate sobre el de-
bvre, 1974), con la reproducción de exclusiones sempeño revolucionario de las mujeres periféri-
como producto. cas, la visibilidad de las arquitectas y urbanistas
y la posibilidad de una lucha emergente que sitúe
Este modelo de sociedad y ciudad - exclusivo y la vida y, principalmente, la vida de las mujeres en
consensual - se traduce, por otro lado, en la or- el debate de una producción común de una ciu-
ganización de los afectados directa y cotidiana- dad democrática, igualitaria y solidaria, construi-
mente. Dentro de la ciudad neoliberal se fragua la da por y para las subjetividades de la sociedad,
lucha por los derechos urbanos. tales como cuerpos periféricos, negros, pobres,
desviados de una lógica heterocisnormativa, con
Es posible notar que en la lucha por el derecho a necesidades especiales, entre otras.
la vivienda hay un predominio de las mujeres so-
bre los hombres. La mayor participación de las
mujeres parece estar ligada al hecho de que son HISTORIA DEL URBANISMO GÉNERO
socialmente responsables del trabajo doméstico DERECHO A LA CIUDAD MOVIMIENTO SOCIAL
y del cuidado, lo que las vincula más al espacio
FEMINISMOS
privado - el hogar - que a los hombres. El contex-
to de amenaza habitacional establecido por los
Grandes Proyectos Urbanos (GPU) afecta, por tan-
to, a la población periférica en su conjunto, pero
principalmente a las mujeres, convirtiéndolas en
las principales articuladoras de los procesos de
resistencia.

Las preguntas planteadas hasta ahora guiarán el


debate de la mesa temática aquí propuesta, en la
que se pretende profundizar en la asociación en-
tre patriarcado y colonización en la construcción
de ciudades, a partir de la crítica teórica y política
formulada por mujeres periféricas - negras, indí-
genas, del sur global. Son estas mujeres las que
para María Galindo¹, y para nosotras, producen
una revolución verdadera, invisible y subordina-
da que forma parte de las noticias diarias en los
registros de ocurrencias en la ley Maria da Penha
(ley brasileña), en divorcios, en guardias compar-
tidas, en la autonomía de las mujeres, en la ocu-
pación de espacios en la vida privada, pública e
institucional.

Según Galindo, el modelo neoliberal globaliza-


do define a la mujer como una entidad biológica
EIXO TEMÁTICO 2 A CONSTRUÇÃO DAS CIDADES PELAS MULHERES:
UMA ATUALIZAÇÃO CRÍTICA DO CAMPO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES HISTORIOGRÁFICO DO URBANISMO BRASILEIRO A
PARTIR DAS PORTAS CONCEITUAIS DE
MARIA STELLA BRESCIANI
mesa temática
Há trinta anos, foi realizado em Salvador o 1° Se-

A CIDADE É DELAS? minário de História Urbana, fomentado por inquie-


tações em comum que atravessavam professores

AMPLIANDO IMAGINÁRIOS E e pesquisadores. A aproximação da história com


o campo do urbanismo, naquela época, era pouco
PERSPECTIVAS NA PRÁTICA E explorada no Brasil, e a lacuna existente no campo
historiográfico das nossas cidades foi a fagulha
NO ENSINO DA ARQUITETURA que enunciou a necessidade da construção de
uma rede possível de trocas e reflexões, a fim de
E URBANISMO fornecer subsídios às novas concepções de inter-
venção na cidade a partir da realidade da cidade
contemporânea e do processo de modernização
THE CITY BELONGS TO WOMEN? EXPANDING urbana no século XIX. Portanto, o Mestrado em
IMAGINARY AND PERSPECTIVES IN THE PRACTICE AND Arquitetura e Urbanismo da UFBA, como relata-
TEACHING OF ARCHITECTURE AND URBANISM do pelos organizadores do 1° seminário na carta
de apresentação da publicação nos anais do I
¿ES LA CIUDAD DE LAS MUJERES? REFLEXIONES EN SHU, vislumbrou na aproximação com a história
LA PRÁCTICA Y ENSEÑANZA DE LA ARQUITECTURA Y uma possibilidade de renovação dos parâmetros
EL URBANISMO teóricos-metodológicos acerca das disputas e
questões urbanas e da cidade.

Diante dessa aproximação do campo da história


com o urbanismo, nota-se uma grande interdisci-
plinaridade das questões teórico metodológicas
que estavam sendo experimentadas na formação
do seminário. A presença do geógrafo Milton San-
tos, da historiadora Maria Stella Bresciani e de
pesquisadores outros de diversas áreas como
sociólogos e antropólogos no I Seminário de His-
tória Urbana, em 1990, destaca essa ampliação do
campo e da multidisciplinaridade que constrói o
pensamento urbanístico, sobretudo como prática
e como disciplina. Além da gama de áreas que
atravessam a formação desse campo, segundo
Bresciani (2002), a cidade se forma a partir dos
seus usuários, compreendendo que a arquitetura e
o urbanismo ganham significado, principalmente,
através das movimentações e vínculos humanos
e não-humanos unidos à infraestrutura da paisa-
gem urbana, portanto, não se sustentando apenas
como espaço físico. Sendo assim, a padronização
16º SHCU de cidades a partir de pensamentos universais
30 anos . Atualização Crítica
corrobora com a gentrificação, excluindo formas
888 outras de subjetividades e de vida.
Na fala de abertura do I Seminário de História do ideal hegemônico de identidade e produção de
Urbana, a historiadora Maria stella Bresciani ela- cultura, “cultura no sentido amplo de artifício, de
borou a primeira versão do texto As sete portas arte do ser humano, a cidade se revela, em suma,
da cidade (1991), então intitulada para o seminário como espaço politizado” (BRESCIANI, 2002, p.28).
como Permanência e ruptura nos estudos das ci-
dades. Essas reflexões foram, ainda, desdobradas Sendo, portanto, a cidade um espaço de disputas
em outras publicações que se tornaram referência políticas que não comporta uma construção prá-
na área, culminando na publicação, vinte sete anos tica e conceitual universal. Pois a universalidade
depois, de Dimensões e estar no mundo/cidades: a limita enquanto lugar de representação dos in-
o público, o privado e o íntimo para o livro Gestos divíduos que a constitui, excluindo determinadas
Urbanos organizado por Fabiana Dultra Britto e parcelas da população da vida pública – como os
Paola Berenstein Jacques, no quinto encontro operários, as mulheres e os prisioneiros. Dos “ex-
Corpocidade, em 2017. Essas entradas/portas cluídos da história”, como chama Michelle Perrot,
conceituais que Bresciani propõe se estruturam destaco a luta das mulheres marginalizadas pelo
a partir da problematização das cidades moder- padrão hegemônico branco, patriarcal e elitista
nas e/ou industriais e o surgimento da questão pelo direito ao espaço público, direito à cidade e
urbana, guia para as práticas de intervenção nas à moradia digna. Sendo, aqui, cidade para além
cidades como solução para sujeira, peste e re- do sentido material, mas como espaço fundante
voltas possíveis ou imaginárias. das relações socioculturais, econômicas, de luta
e resistências. A partir da convergência entre
Fundamentada pela noção de modernidade das público e privado, opressão e resistência, apro-
cidades, traz um olhar historiográfico, político e ximo o debate de questões voltadas para temas
social sobre as permanências e as transforma- como representação, subjetividades e intersec-
ções do urbano através dos tempos. Debatendo cionalidade.
sobre o processo de formação das cidades, con-
sequentemente, sobre a estruturação do urba- A partir dos fios que formam a “ciência das ci-
nismo não só como disciplina acadêmica, mas dades” pela historiadora Bresciani, o urbanismo
sobretudo como prática política. (BRESCIANI, se constitui como um campo de reflexão e atua-
1992). O conceito que a autora traz de porta vem ção crítica sobre as cidades contemporâneas. A
do entre-lugar que conceitualmente o urbano se autora aponta a diversidade dos territórios que
encontra: entre o estudo das cidades, desde as compõem a cidade, alertando sobre a proble-
ruínas antigas, e a história recente do urbanismo matização exclusivamente por um olhar técnico,
(a partir das intervenções nas cidades). O urbano, sanitário e disciplinador, que se torna diminuto
portanto, é conceitualmente composto entre as e universal diante da cidade como potência po-
histórias antiga e recente, seria entendido como lítica e lugar de disputas ideológicas e econô-
algo fixado entre o fora e o dentro que, inevitavel- micas. Permitindo assim a reflexão sobre quais
mente, se confundem (SIMMEL, 1970). portas conceituais estão sendo abertas, hoje,
em disputa constante, sobretudo, pelo ativismo
Essa fala, em 1990, sem dúvida foi um marco para de mulheres negras periféricas e por todas as
fomentação do debate e da complexa construção coletividades silenciadas à margem de direi-
de um novo objeto de trabalho e de um novo campo tos. Estruturar o debate a partir das lideranças
disciplinar naquela época, em construção. Quando de mulheres reforça que as cidades se formam,
eu digo “cinco ou sete portas”, destaco a própria principalmente, pelos usuários que nela habitam.
atualização crítica da historiadora ao longo dos Desta forma, a arquitetura e o urbanismo não se
anos, que em sequentes publicações foi atuali- sustentam apenas como espaço físico, mas sim
zando suas entrada/portas conceituais. Em 2017, pelas vivências singulares e subjetivas de cada
Bresciani desenvolve, de forma substancial, duas indivíduo (BRESCIANI, 2002). Corroborando, de
outras portas, que em 1990 havia deixado apenas forma irrevogável, o direito à cidade como um
assinaladas. Portas estas que nos interessam no direito coletivo e não um direito individual, “pois a
diálogo proposto pela mesa, da ideia de cidade mudança da cidade depende inevitavelmente do
como ferramenta de empoderamento dos “sem exercício de um poder coletivo sobre os processos
direito à voz” a partir do processo de rompimento de urbanização.”(HARVEY, 2018, p.1).
EIXO TEMÁTICO 2 MULHERES EM MOVIMENTO: O CASO DA
VILA AUTÓDROMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
Formada na década de 1960, quando ainda era uma
colônia de pescadores e moradia de trabalhadores
que construíam o Autódromo de Jacarepaguá, a
Vila Autódromo é uma comunidade popular que
se localiza em uma faixa de terra da Península de
Itapeba, no extremo norte da Barra da Tijuca, na
cidade do Rio de Janeiro. Com o crescimento da
colônia e das edificações dos moradores que ali
se instalaram, a Vila Autódromo se tornou uma
pequena favela, onde foram construídos espa-
ços comuns e laços de solidariedade (NABACK,
2015, p. 93). O adensamento da região da Barra da
Tijuca se deu principalmente nos idos dos anos
1990, auge do neoliberalismo no Brasil, e de modo
induzido pelo Estado, já que esta área atenderia a
um modelo da nova configuração do trabalho e da
vida. Uma área que se pretendia “à parte” do resto
da cidade, um espaço residencial - para aqueles e
aquelas que pudessem pagar – e que prescindia
a remoção da comunidade. Nos anos seguintes,
entretanto, com as crescentes crises e processos
de empobrecimento da cidade, a Vila Autódromo
deixou de ser o foco de tentativas de remoção.
A relativa paz durou somente até o ano de 2007,
quando ocorreu a nomeação do Brasil para sede
da Copa do Mundo da FIFA de 2014 e, especifica-
mente, do Rio de Janeiro para sede dos Jogos
Olímpicos de 2016, resultando na urgência em
estabelecer um modelo de cidade que atendesse
aos padrões internacionais e impulsionando novas
tentativas de remoção forçada da comunidade
para construção do Parque Olímpico – principal
arena construída para os jogos.

Nesta apresentação, busco demonstrar, de forma


sintética, alguns dos resultados obtidos na minha
pesquisa de mestrado desenvolvida entre março
de 2015 e dezembro de 2017 que resultou na dis-
sertação E Se a Cidade Fosse das Mulheres? Cujo
objetivo foi discutir a ação política de mulheres
populares em movimentos por moradia, tomando
a Vila Autódromo como paradigma. A pesquisa
compreende os últimos momentos de negociação
e de pressão popular por parte das moradoras e a
Prefeitura do Rio de Janeiro, o período dos Jogos
16º SHCU Olímpicos na cidade e o pós-Olimpíadas. Note-se
30 anos . Atualização Crítica
que as remoções de favelas e comunidades, como
890 a Vila Autódromo, foram uma condição de possi-
bilidade indispensável, segundo as autoridades Na observação dos movimentos por moradia e
públicas, para atender aos padrões exigidos pelas contra as remoções, bem como nos Conselhos
organizações internacionais responsáveis pelos da Cidade, é possível constatar uma maior par-
eventos esportivos (ROLNIK, 2016). ticipação das mulheres no debate público local,
quando comparada com as esferas nacionais de
Mas, por que o enfoque no ativismo de mulheres representação. Isso parece dizer que os espaços
populares? O debate feminista tem questionado de participação popular em que são debatidos
a tradicional divisão entre os espaços público temas ligados à moradia, ao cotidiano, ao cuidado
e privado para apontar que ambos os espaços e às garantias de uma vida plena, são aqueles em
devem ser considerados no debate público e na que as mulheres parecem ter um relevante papel
ação estatal, mas que o privado tem uma rele- na sua atuação.
vância fundamental, já que é ali que se dá o local
de aprisionamento da mulher – o lugar onde ela Apesar de movimentos por moradia não serem
realiza os trabalhos domésticos e também sofre organizados como um movimento exclusivamente
violência (PATEMAN, 2008; OKIN, 2008). Sendo de mulheres, elas aparecem como as principais
assim, em razão tão somente deste enfoque, já referências públicas e formuladoras das estra-
seria importante que se pudesse analisar como se tégias do movimento. A partir dos olhares das
dá a dinâmica das remoções tendo como sujeito mulheres que protagonizaram as disputas sobre
as mulheres e o que se espera do seu papel social. a permanência de suas casas, busca-se identi-
ficar perspectivas populares sobre o direito à
Nota-se, ademais, que quando se trata da análise moradia e o direito à cidade que, geralmente,
do papel social das mulheres, não se pode negar são negligenciadas por formuladores de política
que exista uma divisão sexual do trabalho, que pública urbana. O intuito aqui é contribuir para a
trata de forma hierárquica e dicotômica o trabalho visibilidade das experiências de resistência no
produtivo e o trabalho reprodutivo – este atribuído contexto urbano, em especial a partir dos olhares
quase exclusivamente às mulheres –, valorizando das mulheres.
mais a primeira forma em detrimento da segunda
Explora-se aqui a tensão entre público e privado
(KERGOAT & HIRATA, 2007). Se o trabalho repro-
localizando as mulheres como sujeitas desesta-
dutivo é tomado como exclusivo das mulheres e
bilizadoras das abordagens hegemônicas dessas
ele se realiza na casa, o “lugar” considerado so-
categorias, buscando articular os debates teó-
cialmente adequado para a mulher é no ambiente
ricos com a relação das mulheres com o espaço
privado. Por consequência, o “lugar” do homem
público, bem como com sua responsabilidade
seria no público. Dessa forma, se torna possível
atribuída socialmente a respeito do que acontece
pensar que o espaço público, em certa medida,
no espaço privado. A luta das mulheres revela
não tem sido pensado e construído a partir da
que a construção convencional das identidades
realidade vivida por mulheres, uma vez que este
de gênero constitui um obstáculo a ser transpas-
não é o “seu lugar” social.
sado para que elas sejam consideradas sujeitos
políticos e de direitos.
Na reivindicação por moradia, as mulheres lutam
por aquilo que lhes é considerado próprio, mas
essa luta se dá, forçosamente, no espaço públi-
co. Portanto, a moradia aparece como elemento
determinante da vivência das mulheres no espaço
urbano e pode ser considerado um ponto nodal
da perspectiva feminista sobre a cidade: nele, o
público e o privado se encontram. No acompa-
nhamento da experiência da Vila Autódromo, o
encontro entre público e privado se manifestou na
liderança do movimento de resistência, ocupada
por mulheres, elemento que colocou em xeque
teses que partem da premissa de que as mulheres
têm menos interesse na política que os homens.
EIXO TEMÁTICO 2 AS DIMENSÕES DA LUTA PELO DIREITO À MORADIA
EXISTENTES NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES MUSEU DAS REMOÇÕES DA VILA AUTÓDROMO, RJ

A temática a ser apresentada parte dos conflitos


existentes na cidade do Rio de Janeiro às vésperas
dos megaeventos esportivos, contexto que se
insere no fenômeno global de mercantilização de
cidades. As recentes adaptações espaciais das
cidades realizadas para reprodução de interes-
ses capitalistas é tema de pesquisa de diversos
especialistas no mundo, como do professor David
Harvey: a concepção mercadológica de gestão
urbanística converte o território em um “ativo
financeiro” e desconsidera as políticas de inclusão
social (Harvey, 2016). O resultado é a violação do
direito à cidade, o qual inclui diversos direitos,
como o direito à moradia e o direito à informação
(Rolnik, 2016).

Pretende-se abordar, portanto, as transforma-


ções territoriais do Rio de Janeiro levadas a cabo
nas primeiras duas décadas do milênio, que estão
relacionadas às novas formas de condução da po-
lítica urbana contemporânea que assume carac-
terísticas próprias da gestão neoliberal, modelo
adotado em diversas metrópoles do mundo. O
“empreendedorismo urbano” como define Harvey
possui consequências desastrosas se analisado
desde a perspectiva dos acessos, uma vez que
coloca o território a serviço dos interesses de uma
minoria ligada ao mercado global, cujo ônus recai,
necessariamente, sobre a população periférica.

No contexto de remoção de 22.059 famílias no


Rio de Janeiro nos anos que antecederam os me-
gaeventos (Copa do Mundo, 2014 e Olimpíadas Rio,
2016), esse número testemunha o alto preço a ser
pago pela população. A Vila Autódromo, situada na
Zona Oeste carioca, foi uma das favelas atingida
por estas transformações urbanísticas, que se
mobilizou para resistir e denunciar as inúmeras
violações de direitos ocorridas durante o processo
de remoção e de construção do Parque Olímpico.

Ressaltar-se-á como a realização de megaeventos


cria um ambiente propício à realização de mega-
projetos executados de modo discricionário e via-
bilização de acordos comerciais unilaterais capa-
16º SHCU zes de materializar interesses elitistas. Agamben
30 anos . Atualização Crítica
(2005) assemelha este fenômeno institucional ao
892 “estado exceção” e explica que este estado não é a
derrubada de uma autoridade estabelecida (como Na ocasião a violência institucional foi intensa,
ocorre nos golpes de estado), mas o exercício assim como a articulação popular. Fruto dessa
de um poder que se apresenta com o “direito de mobilização surgiu o Museu das Remoções com
suspender direitos” (AGAMBEN, 2005, p. 39) a proposta de lutar pelo direito à permanência da
Vila Autódromo. Este museu é desdobramento da
Os megaprojetos e megaeventos são ingredientes articulação de resistência à mercantilização do
da gestão neoliberal. O neoliberalismo surge como solo do Rio de Janeiro. Entretanto, o problema
paradigma de direcionamento político-econômico pontual da Vila Autódromo é apenas um caso da
entre as décadas de 1970 e 1980 (Harvey, 2005), e política de remoções levada a cabo no Rio, no país
sua implementação na gestão das cidades lati- e em diversas partes do mundo.
noamericanas ocorreu na década de 1990. O Rio
de Janeiro teve sua primeira gestão neoliberal O Museu das Remoções começou a ser pensado
com César Maia, com implementação do plane- a partir do entendimento de que as remoções das
jamento estratégico e intensa participação da casas ultrapassam a destruição da materialidade.
iniciativa privada; após o mandato de César Maia A Vila Autódromo desaparecia do mapa, da his-
abriram-se as portas para outros gestores segui- tória, da vida do Rio de Janeiro, mas também da
rem reproduzindo o ideário neoliberal de política referência e da memória de todos os seus mora-
urbana, que possui o marketing e a ressignificação dores, dos seus vizinhos, dos seus amigos. Todo
simbólica de lugares como aliados deste modelo este emaranhado de vida e memória se ofuscava
de administração. na poeira levantada pela sua destruição operada
pelas máquinas da prefeitura. Nesta poeira per-
A adaptação do território das cidades às neces-
dia-se parte da identidade e da história da cidade.
sidades de fluidez exigidas pelos capitais globais
repercute na alteração considerável da geografia A construção coletiva do museu foi articulada à
dos territórios escolhidos por este capital. Como prática pedagógica, junto ao Projeto de Extensão
o Estado concentra recursos para atender in- à Comunidade, PEC, da Faculdade de Arquitetura
teresses empresariais hegemônicos não sobra
e Urbanismo Anhanguera. Tal projeto foi desen-
recursos para o investimento social, a este quadro
volvido com metodologia participativa entre a
somam-se privatizações, financiamento estatal
universidade e a comunidade. A co-criação e co-
das empresas privadas e venda do capital social
-gestão deste museu, derivadas do processo de
das cidades. (Milton Santos, 2013.)
luta popular, levaram à conscientização de uma
Entende-se, portanto, que as alterações no terri- série de reflexões a respeito do modelo de gestão
tório derivam de um modelo de gestão assumido neoliberal, não só a necessidade e importância
em esfera mundial que modifica a relação entre de dar voz às classes subalternas, verdadeiras
economia e poder e busca inserir a cidade na atrizes no processo de construção da cidade, em
dinâmica capitalista neoliberal. Neste modelo o sua materialidade e imaterialidade patrimonial,
Estado assume novas funções e negligencia as mas considerar ainda mais recortes destas vozes,
funções convencionais, e as empresas participam como de raça e gênero.
de decisões que dizem respeito ao campo da ges-
tão. Os acordos estabelecidos entre grandes em- Além disso, identificaram-se as mulheres peri-
presários e governantes marcam a condução da féricas como protagonistas da luta pelo direito
gestão urbana de diversas metrópoles do mundo. à moradia. Considera-se não ser possível a ex-
tinção do capitalismo – leia-se da desigualdade
No Rio de Janeiro o auge da adaptação do terri- social - que não passe pela extinção do colonia-
tório à reprodução do capital ocorreu no período lismo e do patriarcado, nos quais o racismo, o
que antecede os megaeventos, quando mais se elitismo e o machismo são premissas teóricas
removeu na história da cidade: entre os anos 2009 estruturantes. Pretende-se colocar, portanto,
e 2016 foram realizados mais despejos e remo- estes desdobramentos teóricos na exposição
ções que as gestões de Pereira Passos e Carlos a ser apresentada, partindo da construção do
Lacerda juntas, segundo apresentam Azevedo e Museu das Remoções e da história de luta da Vila
Faulhaber (2016) no livro SMH 2016: Remoções no Autódromo protagonizada por mulheres, como
Rio de Janeiro Olímpico. suporte para desenvolvimento das reflexões.
EIXO TEMÁTICO 2 DIÁLOGOS SOBRE O TERRITÓRIO PERIFÉRICO:
A POTÊNCIA FEMININA DIANTE DA TRANSFORMAÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES URBANA DA BAIXADA FLUMINENSE

Olhar para a periferia do Rio de Janeiro é pensar


diretamente sobre a Baixada Fluminense, essa
região que, historicamente, serviu com um pa-
pel importante para as relações comerciais e
de acumulação na capital. Seus afluentes eram
responsáveis pelo escoamento da produção em
momentos cruciais para a estruturação do que
hoje conhecemos como a cidade do Rio de Ja-
neiro. Essa serventia operacional se modificou
ao longo dos anos devido às oscilações econô-
micas e o êxodo rural. O inchaço populacional
onde o metro quadrado já se estabelecia como
algo inacessível trouxe diversas pessoas para
povoar a região da Baixada.

Inicialmente, esse povoamento se deu próximo


a linha férrea, onde hoje se estabelece o centro
dos municípios da Baixada e, em seguida, dentro
do próprio interior das mesmas. É importante
fazer esse recorte histórico, pois essa dinâmica
foi crucial para a formação das cidades e suas
demais relações na região, características essas
que ainda permeiam a rotina do que é viver na
periferia.

A partir dessa dinâmica de povoamento as ques-


tões relacionadas à moradia são pontos centrais
nesse debate. Terras que antes eram fazendas,
dividida em lotes, fracionadas em sítios se tor-
naram loteamentos vendidos a um preço baixo,
além das ocupações feitas pelos que não possu-
íam condição para a compra dos terrenos. Esse
crescimento desenfreado ganha força na década
de 40, em meio as políticas varguistas.

Olhar para a cidade do Rio de Janeiro e suas


questões como um grande centro urbano, nos
permite identificar desdobramentos sociais e
situações específicas comuns ao processo de
uma acelerada urbanização, sem o devido pla-
nejamento que englobe os recortes de classe e
raça. Usando esse mesmo olhar para a região da
Baixada seremos direcionados a reflexão de que
seguirmos os mesmos modelos; focamos apenas
no centro desses municípios, o que nos leva a
16º SHCU encontrar problemas muito parecidos, porém
30 anos . Atualização Crítica
potencializados pelas questões socioeconômicas
894 presentes na periferia.
A maior parte do abastecimento hídrico do estado à cidade para além do deslocamento da rotina
do Rio de Janeiro se origina na Baixada, assim residência-trabalho-residência, dinâmica essa
como, grande parte do que ainda podemos consi- que compromete grande parte de suas rendas.
derar reserva de mata atlântica também faz parte
da região, essas riquezas estão ameaçadas pelo Debruçar-nos sobre essas informações, nos leva
descaso do poder público na ausência de preocu- a pensar como é ser uma mulher inserida nesse
pação com as questões de saneamento. A falta de contexto, uma vez que, atualmente a maior parte
acesso ao saneamento básico permeia a história da população da Baixada Fluminense é composta
da Baixada Fluminense desde sua origem e nos por mulheres que estão presentes na região sobre
chama atenção com o avanço dos programas de diversos marcadores que dificultam ainda mais
habitação, financiamentos de moradia e as obras habitar a Baixada. Enquanto na cidade do Rio a
realizadas pelo PAC (Programa de Aceleração do renda mínima mensal tem uma média de dois mil
Crescimento), apenas o centro de seus municípios e duzentos reais, na Baixada se sobrevive com
foi minimamente melhorado. Desta forma, cria-se aproximadamente seiscentos reais. A soma de
a sensação de que nos distanciamos da ideia de uma conta de desigualdade, pobreza e falta de
um lugar marginal e precário e estamos dando acesso a serviços básicos, não traria um resultado
espaço a transformação e ao progresso, mas, diferente que não a violência.
seguimos na lógica do capital que visa manter o
interesse na relação estado-mercado e usa da Presente de forma rotineira na vida dessas pes-
política local sua forma de manutenção. soas, em especial das mulheres que, em grande
maioria são negras e mães solo que enfrentam
A especulação imobiliária nos últimos quinze anos diariamente o peso de todos esses apontamen-
transformou a paisagem urbana das cidades da tos citados até aqui, são diversas as implicações
Baixada Fluminense, atraindo mais indústrias na vida dessas mulheres que cuidam do outro
que disputam o espaço com as áreas residen- no grande centro urbano da cidade do Rio, mas
ciais e colocando em risco o meio ambiente e não tem quem as ampare, seja na figura de uma
saúde dos que moram próximo. A acumulação estrutura familiar ou na figura do estado. Quan-
na Baixada Fluminense ainda carrega a herança do essa população feminina não está dedicada
política do poderio local e segue estabelecendo ao trabalho formal, vive a realidade da falta de
suas relações com traços de um clientelismo. O direitos da rotina do trabalho doméstico em suas
contraste é assustador quanto à estrutura feita próprias residências. Estar inserida na periferia
em parceria com as grandes construtoras e as é um verdadeiro desafio, pois a resistência não é
regiões mais afastadas dentro dos municípios. uma escolha, e sim, uma estratégia encontrada
Pensar as questões de moradia é um traço ur- para se manter viva.
gente nessa região conhecida pelo seu conjunto
de cidades-dormitório. No contexto onde a educação não é prioridade
nos programas políticos da região, o machismo
A falta de acesso é um infeliz traço na região; seja é uma tarefa árdua a ser combatida, não é à toa
à água potável, tratamento de esgoto, asfalto, que os dados sobre violência contra a mulher e a
iluminação, transporte e moradia digna. Não há população LGBTQIA+ são, em disparado, maiores
políticas que visem olhar essas questões com sua que nos demais locais. A construção de movi-
devida urgência, já que, a Baixada é uma região mentos e espaços que dialoguem com a socie-
que surgiu sem um planejamento urbano pensado dade e que possibilitem a conscientização e a
para atender as demandas da classe trabalha- denúncia como um caminho viável é uma árdua
dora que formou seu território - uma região que tarefa para as mulheres que se dispõe a construir
cresce sem planejamento e em nenhum momento uma resistência organizada. Para além desses
é pensada para os trabalhadores que habitam desdobramentos, é importante refletir sobre em
o território. Com isso, uma expressiva parce- que condições essas mulheres estão vivendo
la da população segue em longos e demorados no que diz respeito às questões de moradia, já
deslocamentos para suas atividades rotineiras. que, entre a população mais pobre, a exemplo das
Condições precárias e de alto custo estão no coti- periferias se gasta basicamente mais da metade
diano desses trabalhadores os negando o acesso de sua renda com habitação. A importância dos
EIXO TEMÁTICO 2 movimentos de moradia vem sendo construída ao
longo dos últimos anos por lideranças femininas
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS e permitindo que os habitantes da região saibam
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES que morar dignamente é um direito e que estar em
um espaço seguro é possível para essas mulheres
e suas famílias.

Construir esse debate com o protagonismo das


mulheres que ocupam esse importante papel no
território, cria caminhos para a periferia e sobre a
periferia no meio acadêmico,viabiliza o embasa-
mento cada vez maior de frentes de mobilização
que se comuniquem de forma simples e objeti-
va, gerando mecanismos capazes de fortalecer
a luta por moradia como principal capacitor da
reforma urbana e seus desdobramentos diante
deste cenário.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

896
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16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

898
899
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Nestor Goulart Reis, no artigo Notas sobre o
Urbanismo no Brasil, distingue os conceitos
de história do urbanismo e da urbanização, in-
mesa temática dicando que o primeiro pode ser definido pelo
entendimento dos esforços para controle do
espaço urbano no tempo, enquanto o segundo
A ARQUEOLOGIA DA se voltaria para as “configurações assumidas no
espaço” norteadas pelas relações estabelecidas
PAISAGEM E SUA por uma determinada sociedade (REIS FILHO,
1995, p.5). Essa distinção permitiu uma visada
CONTRIBUIÇÃO PARA A mais ampla do fenômeno urbano, abrangendo
não somente vilas e cidades que tiveram algum
HISTÓRIA DA URBANIZAÇÃO sistema de planificação, mas uma compreen-

DO BRASIL são mais capilarizada do processo, incluindo


diversos núcleos urbanos considerados insig-
nificantes por sua pequenez ou mesmo vestí-
THE ARCHEOLOGY OF URBAN LANDSCAPES AND ITS gios de ocupação humana ligados às demandas
CONTRIBUTION TO THE HISTORY OF URBANIZATION IN urbanas. O mesmo autor também aponta que a
BRAZIL história da urbanização não pode ser pensada a
partir de núcleos urbanos isolados, mas como
LA ARQUEOLOGÍA DEL PAISAJE URBANO Y SU unidades de um sistema (REIS FILHO, 1968,
CONTRIBUCIÓN A LA HISTORIA DE LA URBANIZACIÓN p.15). Alterações na configuração social e mate-
EN BRASIL rial ganham sentido quando entendidos dentro
da rede urbana em que estavam inseridos. Es-
tudos sobre bairros rurais, pousos, freguesias,
BORSOI, Diogo Fonseca capelas e pequenas vilas (cuja razão de ser era
Doutor FAU USP; Instituto Federal Baiano – IF Baiano desconhecida) entre outros têm sido exemplos
dfbfonseca@gmail.com de objetos de pesquisa nessa linha.

BUENO, Beatriz Piccolotto Siqueira Lançando mão desses conceitos, pesquisado-


res têm se indagado como apreender o proces-
Professor Associado; Faculdade de Arquitetura e
so de urbanização no tempo, considerando seus
Urbanismo - USP
bpsbueno@gmail.com pormenores e suas interligações. A busca de
resposta para essas perguntas tem direcionado
pesquisadores à prospecção de novas fontes e
ARRAES, Esdras
métodos até então pouco usuais nesse campo
Pesquisador de pós-doutorado da Faculdade de Filosofia,
de estudos. Entre elas, três séries documentais
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
(FFLCH USP). Bolsista FAPESP
têm se destacado pela sua maior ocorrência:
esdrasarraes@gmail.com o imposto da Décima dos Prédios Urbanos, os
censos demográficos e os documentos car-
MOURA, Nádia Mendes de tográficos. As Décimas Urbanas são impostos
prediais estabelecidos em várias regiões e pe-
Doutora Fau USP; PRODOC UNESCO/IPHAN
nadiammoura@yahoo.com.br
ríodos da história. Para a América Portuguesa,
ele começou a ser cobrado por meio do Alvará
de 27 de junho de 1808, com a chegada da fa-
mília Real no Brasil. O imposto consiste na co-
16º SHCU brança de 10% sobre todos os prédios urbanos
30 anos . Atualização Crítica
“desta Corte e de todas as mais Cidades, Villas e
900 Lugares notáveis situados à beira-mar”, com ex-
ceção dos da Ásia e dos que pertencem às San- cessos sociais que lhe deram origem. Assim,
tas Casas de Misericórdia (BRASIL, 1808). Esse por paisagem urbana compreende-se o con-
imposto foi estendido, em 3 de junho de 1809, junto desses vestígios oriundos dos sucessivos
para “todos os prédios urbanos deste Estado e processos históricos amalgamados de forma
Domínios, situados nas Cidades, Villas e lugares desigual na cidade contemporânea. Quando
notáveis” (BRASIL, 1810). De forma geral, encon- corretamente identificados, permitem cruza-
tramos nessa tipologia documental dados sobre mento com outras fontes históricas (décimas,
o logradouro onde se localizava o imóvel, sua maços e mapas por exemplo). Nota-se que com
estrutura física, como esse imóvel era lotado e esse método, podemos interpretar a cidade do
seu valor médio. Já os censos demográficos são presente a partir do cruzamento de séries do-
arrolamentos da população que também acon- cumentais que guardam dados sobre a cultura
teceram em várias regiões e períodos da his- material urbana de determinada localidade.
tória. Um dos mais conhecidos, foi batizado de
Maços de População e abrangeu a toda a Capi- Ele tem permitido diversas interpretações no
tania de São Paulo, iniciando na administração campo da História da Urbanização: as Décimas
de Morgado de Mateus em 1766 e se estendendo, Urbanas, por exemplo, apresentam uma es-
aproximadamente, até a metade do século XIX. pécie de radiografia da materialidade de uma
De modo geral, registram informações de cunho determinada vila ou cidade e, a partir do cruza-
social (dados sobre os ocupantes do domicílio), mento com mapas e as rugosidades da cidade
econômicos (ocupações, renda, produção) e es- atual, é possível propor reconstituições hipoté-
paciais, pois organizam os domicílios em listas ticas (ABREU, 2010) da morfologia do sítio urba-
divididas por uma base geográfica, cuja identi- no no tempo, interpretando suas permanências
ficação permite com que se trabalhe com cer- e transformações. Mapas e Censos, muitas ve-
tos recortes na escala do intraurbano. Também, zes, registram também aspectos detalhados de
esboços, croquis, plantas cadastrais e demais povoações e unidades de ocupação até então
representações gráficas de vilas e cidades têm desapercebidas, o que permite analisar que as
sido largamente utilizados como forma de in- redes urbanas do passado eram bem mais am-
terpretar a dimensão espacial das informações plas e articuladas, a despeito da ideia de ocupa-
encontradas nos documentos escritos e de tra- ção em arquipélago que se tinha da história do
çar continuidades e transformações com o sítio Brasil. Esses documentos permitem também
urbano no presente. dar sentido a núcleos urbanos aparentemente
insignificantes, mas que ganham importância
Esse, por sua vez, também é documento im- quando analisados a partir do dos papeis que
portante. Milton Santos diz que o presente se cumpria na lógica da rede urbana que faziam
defronta com o tempo passado por meio da sua parte.
cristalização em “formas”. Isso, na “paisagem
atual”, foi chamado pelo autor de “rugosidades”, Diante disso, a presente mesa temática tem o
ou seja, restos do processo de supressão, acu- objetivo de apresentar algumas pesquisas que
mulação, superposição com que as coisas se aplicaram o escopo teórico e metodológico
substituem e acumulam em todos os lugares. apresentado na interpretação de diversas vilas
Elas trazem informações sobre as divisões so- e cidades de diferentes regiões do Brasil, num
ciais do trabalho já passadas, dos tipos de ca- recorte temporal compreendido dentro dos sé-
pital utilizados e das combinações pregressas culos XVIII e XX. Pretende-se discutir as dificul-
entre técnica, sociedade e trabalho da mesma dades e percalços de se trabalhar com fontes
forma que décimas, censos e mapas guardam de origem diversa, suas especificidades e varia-
diversos vestígios de localidades (SANTOS, ções regionais, bem como as potencialidades
2006, p. 90-91). Partindo dessa premissa, po- que ela pode trazer para o campo da História da
de-se realizar uma interpretação dessas ru- Urbanização. Assim, são objetivos mais gerais
gosidades por meio de um método chamado do grupo entender a história das vilas e cidades
Arqueologia da Paisagem urbana. Trata-se de brasileiras dentro de uma escala de análise mais
compreender que a materialidade dos núcleos próxima das ações individuais, ressaltando o
urbanos do presente guarda vestígios dos pro- papel da arquitetura comum na composição dos
EIXO TEMÁTICO 2 núcleos urbanos a fim de desvendar um passa-
do urbano bem mais complexo e interligado do
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS que se concebia.
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

HISTÓRIA DA URBANIZAÇÃO
ARQUEOLOGIA DA PAISAGEM URBANA DÉCIMAS URBANAS
CENSOS DEMOGRÁFICOS

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

902
ABSTRACT riods. One of these series of censuses (Maços de
População) covered the entire Captaincy of São
Paulo from the Morgado de Mateus administration
Nestor Goulart Reis’ article Notas sobre o Ur- of 1766 all the way through to the mid-19th cen-
banismo no Brasil [Notes on Urbanism in Brazil] tury. The data gathered were social (household
made a distinction between the history of urba- occupants), economic (occupation, income, pro-
nism and urbanization: the former covering ef- duction) and spatial - since lists of households
forts to control urban space over time, the latter were organized by geographical divisions, hence
focusing “spatial configurations” that arose from their identification enabling researchers to exa-
certain socially determined relationships (REIS mine certain cross-sections on the intra-urban
FILHO, 1995, p.5). This distinction widens the pur- level. Sketches, plans, property deeds and other
view of urban phenomena to cover not only towns graphic representations of towns and cities have
and cities that reflected some sort of systematic been widely used to interpret the spatial dimen-
planning but also took a more capillarized view sion of data found in written documents and to
of the process to include several urban centers track continuities and transformations in relation
previously seen as insignificant due to their small to ongoing or current urban utilization.
size or even as vestiges of human occupancy
connected to urban demands. Goulart Reis also These data points comprise important docu-
noted that the history of urbanization should look mentation. Milton Santos wrote of the present
at units as parts of a system rather than study engaging with the past through the latter’s crys-
urban centers separately (REIS FILHO, 1968, p.15). tallization in “forms” or shapes. In relation to “cur-
Social and material configurations pertaining to rent landscapes”, he coined the word “wrinklings”
urban networks and their alterations gain mea- (rugosidades) for remnants from past processes
ning when examined in this context. Researchers of suppressing, accumulating and overlaying of
in this field have studied rural neighborhoods, structures that are everywhere replaced or su-
layovers, parishes, chapels and hamlets or villa- pplemented. These sources convey information
ges (that originated from activities now unknown). about the past in terms of division of labor, type of
capital used and combination of technique, socie-
Researchers have turned to these concepts to ty and labor in the same way that tithes, censuses
apprehend the urbanization process over time and maps retain different vestiges of localities
in all its details and interconnections. In pur- (SANTOS, 2006, p. 90- 91). On this basis, “wrinklin-
suing these questions they have been prompted gs” may be interpreted using a method that has
to prospect new sources and methods previously been called the “archeology of urban landscapes”.
hardly ever used in this field, particularly by sour- The materiality of present-day urban centers tra-
cing data from documentation for urban-building cks the social processes that gave rise to them,
tithes (Décimas Urbanas), demographic censu- so an urban landscape is seen as a set of vestiges
ses and maps. Urban tithes have been introduced from successive historical processes that have
across various regions and periods in history. In been unevenly amalgamated to shape contem-
Portuguese America, after the royal family moved porary cities. Once correctly identified, they may
to Brazil, an order of June 27, 1808 levied 10% on be compared to other historical sources such as
all urban buildings “of this Court and all other ci- tithes, censuses and maps. Note that this me-
ties, towns and notable places located by the sea”, thod enables interpretation of present-day cities
excepting those located in Asia or belonging to by comparing documentary series that hold data
‘charity hospitals’ (Santas Casas de Misericórdia) for the urban material culture of a given location.
(BRASIL, 1808). The tithe soon extended to “all ur-
ban buildings in this state and domain, located in These sources feed several interpretations in
cities, towns and notable places” on June 3, 1809 the field of the history of urbanization: urban ti-
(BRASIL, 1810). In general, tax documents showed the payments comprise an “x-ray” image of the
the street on which a property was located, its materiality of a certain town or city. Their com-
physical structure, number of inhabitants and parison with current urban maps and wrinkles
average value, whereas demographic censuses may lead to hypothetical reconstitutions (ABREU,
listed populations for different regions and pe- 2010) of the morphology of urban sites over time,
EIXO TEMÁTICO 2 thus interpreting permanent and transformative
aspects. Maps and censuses often record detai-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS led aspects of previously unnoticed settlements
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES and occupation units, thus suggesting that urban
networks in the past were much more extensive
and articulated than Brazilian historiography’s
prevailing notion of archipelago-like
​​ land occu-
pancy patterns. These documents may also make
sense of apparently insignificant urban centers
that gain importance when analyzed for the roles
they played in the rationales or dynamics of their
urban networks.

Given the above, our thematic panel introduces


some research projects that have applied the
above theoretical and methodological scope to
interpret towns and cities in different regions of
Brazil in an 18th- 20th century timeframe. We dis-
cuss difficulties and issues arising from the use
of sources of varying origins, their specificities
and regional variations, as well as their potential
for the history of urbanization. More generally, our
research group analyzes the history of Brazilian
towns and cities on an analytic scale that comes
closer to individual actions by highlighting the
role of mundane architecture composing urban
centers, thus unveiling an urban past as much
more complex and interconnected than previou-
sly thought.

HISTORY OF URBANIZATION
ARCHEOLOGY OF THE URBAN LANDSCAPE URBAN TENTHS
DEMOGRAPHIC CENSUS

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

904
RESUMEN 3 de junio de 1809, a “todos los edificios urbanos de
este Estado y Dominios, ubicados en las Ciudades,
Villas y lugares notables” (BRASIL, 1810). En general,
Nestor Goulart Reis, en el artículo Notas sobre o encontramos en esta tipología documental datos
Urbanismo no Brasil, distingue los conceptos de sobre el patio donde se encontraba la propiedad,
historia del urbanismo y de la urbanización, indi- su estructura física, ya que esta propiedad estaba
cando que el primero puede definirse mediante la llena de gente y su valor medio. Ya los Censos De-
comprensión de los esfuerzos para controlar el es- mográficos están en el ámbito de la población que
pacio urbano en el tiempo, mientras que el segun- también tuvo lugar en varias regiones y períodos
do se convertiría en los “ajustes asumidos en el es- de la historia. Uno de los más conocidos, fue bau-
pacio” guiados por las relaciones establecidas por tizado de Masones de la Población y cubrió toda la
una sociedad en particular (REIS FILHO, 1995, p.5). Capitanía de San Pablo, comenzando en la admi-
Esta distinción permitió una visión más amplia del nistración de Morgado de Mateus en 1766 y se ex-
fenómeno urbano, cubriendo no sólo pueblos y tiende aproximadamente hasta mediados del siglo
ciudades que tenían algún sistema de planificaci- XIX. En general, registran las actividades sociales
ón, pero una comprensión más capilar del proceso, (datos sobre los ocupantes del hogar), económicas
incluyendo varios núcleos urbanos considerados (ocupaciones, ingresos, producción) y espaciales,
insignificantes por su pequeñez o incluso rastros porque organizan a los hogares en listas dividi-
de ocupación humana vinculados a las demandas das por una base geográfica, cuya identificación
urbanas. El mismo autor señala también que la permite trabajar con ciertos recortes en la escala
historia de la urbanización no puede ser pensada intraurbana. También bocetos, planes de registro
desde núcleos urbanos aislados, sino como uni- y otras representaciones gráficas de aldeas y ciu-
dades de un sistema (REIS FILHO, 1968, p.15). Los dades han sido ampliamente utilizados como una
cambios en la configuración social y material ga- forma de interpretar la dimensión espacial de las
nan significado cuando se entienden dentro de la informaciones encontradas en los documentos
red urbana en el que se insertaron. Estudios sobre escritos y para rastrear continuidades y transfor-
barrios rurales, desembarcos, parroquias, capillas maciones con el sitio urbano en el presente.
y pequeñas aldeas (cuya razón de ser era descono-
cida) entre otros han sido ejemplos de objetos de Esto, a su vez, es también un documento importan-
investigación en esta línea. te. Milton Santos dice que el presente se enfrenta
al tiempo pasado a través de su cristalización en
Usando estos conceptos, los investigadores se han “formas”. Esto, en el “paisaje actual”, fue llamado
preguntado cómo aprehender el proceso de urba- por el autor de “rugosidades”, es decir, los restos
nización a tiempo, teniendo en cuenta sus detalles del proceso de supresión, acumulación, superpo-
e sus interconexiones. La búsqueda de respuestas sición con los que las cosas sustituyen y acumulan
a estas preguntas ha dirigido a los investigadores a en todas partes. Ellas proporcionan informaciones
la prospección de nuevas fuentes y métodos hasta sobre las divisiones sociales de trabajo que ya han
ahora inusuales en este campo de estudios. Entre pasado de los tipos de capital utilizados y de las
ellos, dos series documentales han destacado por combinaciones anteriores entre técnica, sociedad
su mayor ocurrencia: el impuesto de la Décima de y trabajo de la misma forma que décimas, censos
Edificios Urbanos, los censos demográficos y los y mapas mantienen varios rastros de localidades
mapas. Las Décimas Urbanas son impuestos so- (SANTOS, 2006, p. 90-91). A partir de esta premisa,
bre la propiedad establecidos en varias regiones y se puede hacer una interpretación de estas rugo-
períodos de la historia. Por América Portuguesa, él sidades, a través de un método llamado Arqueo-
comenzó a cobrar a través de la Carta del 27 de ju- logía del Paisaje Urbano. Se trata de comprender
nio de 1808, con la llegada de la familia Real a Bra- que la materialidad de los centros urbanos de las
sil. El impuesto consiste en la recaudación del 10% actuales huellas de guarda de los procesos socia-
en todos los edificios urbanos “de esta Corte y de les que le dieron origen. Así, por paisaje urbano
todas las Ciudades, Villas y lugares notables situa- comprende el conjunto de estos rastros oriundos
dos junto al mar”, con la excepción de los de Asia y de los sucesivos procesos históricos amalgama-
los que pertenecen a las Casas Santas de la Mise- dos de manera desigual en la ciudad contemporá-
ricordia (BRASIL, 1808). Este impuesto se amplió, el nea. Cuando se identifican correctamente, permi-
EIXO TEMÁTICO 2 ten el cruze con otras fuentes históricas (décimas,
paquetes y mapas, por ejemplo). Tenga en cuenta
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS que con este método, podemos interpretar la ciu-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES dad del presente a partir de la intersección de se-
ries documentales que contienen datos sobre la
cultura material urbana de un lugar determinado.

Él ha permitido varias interpretaciones en el cam-


po de la Historia de la Urbanización: las Décimas
Urbanas, por ejemplo, presentan un tipo de radio-
grafía de la materialidad de un pueblo o ciudad
dada y, desde el cruze con mapas y la rugosidad
de la ciudad actual, es posible proponer reconsti-
tuciones hipotéticas (ABREU, 2010) de la morfolo-
gía del sitio urbano en el tiempo, interpretando sus
permanencias y transformaciones. Mapas y Cen-
sos, a menudo, también registran aspectos de-
tallados de aldeas y unidades de ocupación hasta
ahora desapercibidas, lo que nos permite analizar
que las redes urbanas del pasado eran mucho más
amplias y más articuladas, a pesar de la idea de
ocupación en el archipiélago que tenía de la histo-
ria de Brasil. Estos documentos también permiten
dar sentido a centros urbanos aparentemente in-
significantes, pero eso gana importancia cuando
se analiza desde los roles que cumplía en la lógica
de la red urbana que hacía parte.

Por lo tanto, la mesa temática actual pre-


tende presentar algunas investigaciones que
aplicaron el alcance teórico y metodológico pre-
sentado en la interpretación de diversos pueblos
y ciudades de diferentes regiones de Brasil, en un
marco de tiempo entendido dentro de los siglos
XVIII y XX. Tiene la intención de discutir las dificul-
tades y obstáculos de trabajar con fuentes de ori-
gen diverso, sus especificidades y variaciones re-
gionales, así como los potenciales que ella puede
aportar al campo de la Historia de la Urbanización.
Por lo tanto, son objetivos más generales del gru-
po entender la historia de los pueblos y ciudades
brasileñas dentro de una escala de análisis más
cercana a las acciones individuales, destacando el
papel de la arquitectura común en la composición
de los centros urbanos y desvendar un pasado ur-
bano mucho más complejo e interconectado de lo
que fue concebido.

HISTORIA DE LA URBANIZACIÓN
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica ARQUEOLOGÍA DEL PAISAJE URBANO DÉCIMOS URBANOS
906 CENSO DEMOGRÁFICO
907
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
EIXO TEMÁTICO 2 DO GERAL AO PORMENOR: ARQUEOLOGIA DA
PAISAGEM E SUAS POTENCIALIDADES HEURÍSTICAS.
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES ESTUDO DO CASO DA RUA 15 DE NOVEMBRO
EM SÃO PAULO

mesa temática Há dez anos vimos desenvolvendo uma linha de


pesquisa na FAUUSP à qual intitulamos “Arqueo-
logia da Paisagem” que hoje envolve diversos pes-
A ARQUEOLOGIA DA quisadores geograficamente espalhados por todo
o país. Os estudos têm como denominador comum
PAISAGEM E SUA a eleição de recortes espaciais e temporais mais
alargados, em geral fugindo das circunscrições
CONTRIBUIÇÃO PARA A geográficas políticas atuais em busca de recortes
mais pertinentes às temporalidades analisadas.
HISTÓRIA DA URBANIZAÇÃO
O desafio de explorar um Brasil de dimensões
DO BRASIL continentais impõe, antes de tudo, um trabalho
coletivo para se desconstruir “narrativas” e “luga-
res comuns” que acabaram adquirindo estatuto
THE ARCHEOLOGY OF URBAN LANDSCAPES AND ITS historiográfico, sobretudo mitos emanados dos
CONTRIBUTION TO THE HISTORY OF URBANIZATION IN institutos históricos e geográficos nacional e
BRAZIL regionais. Pesquisas recentes embaçam nossos
olhos viciados por certos estereótipos, fazendo
LA ARQUEOLOGÍA DEL PAISAJE URBANO Y SU saltar à vista novas territorialidades com ramifi-
CONTRIBUCIÓN A LA HISTORIA DE LA URBANIZACIÓN cações bastante alargadas, desmontando a tese
EN BRASIL da colonização arquipelágica, rompendo com a
ideia de fragmentação e descontinuidade entre
as partes do Brasil e assim revelando territoria-
lidades macrorregionais e zonas de intersecção
de perfil cultural híbrido, compartilhando hábitos,
dialetos e costumes que subvertiam as fronteiras
políticas que lhes foram impostas.

A presente comunicação reflete sobre méto-


dos de leitura da paisagem e da cultura material
ensejados por esse grupo de pesquisadores de
perfil nestoriano e braudeliano, preocupados em
desvelar camadas de tempos e imaginar dinâ-
micas, lógicas antrópicas de enraizamento e de
mobilidade na paisagem, imaginando fluxos em
caminhos e rios nas suas possibilidades e dificul-
dades de comunicação, em busca dos vestígios
de uma fenomenologia dos modos de ser e estar
em escala macrorregional.

Em geral, esses estudos operam numa dupla es-


cala, entendidas como interagentes.

Na macroescala regional e por vezes interconti-


16º SHCU nental, analisam a rede urbana na sua conotação
30 anos . Atualização Crítica
mais ampla, nela incluindo-se pousos, bairros
908 rurais, fazendas, feiras, passagens, barreiras,
registros e demais pontos nodais relacionados temporalidades sobrepostas.
às cidades, vilas, capelas, freguesias, julgados e
aldeamentos missioneiros. Isso possibilita ampliar Nesta comunicação, para além do balanço das
o conceito de urbano para todo e qualquer vestígio contribuições do grupo de pesquisadores da
de localidade indicativa de presença humana irra- FAUUSP relacionados à Arqueologia da Paisagem,
diada de demandas urbanas, via homens urbanos, pretende-se explorar o estudo do caso de São
a despeito da sua fragilidade demográfica, formal Paulo, de 1809 a 1942, da macro à microescala,
e estatuto político. com foco na rua 15 de Novembro lote a lote, em
seus atores, nos ritmos de produção do espaço,
Na escala intraurbana, envereda por ruas e lotes, demonstrando as possibilidades heurísticas das
dando vida aos pormenores da produção social diversas fontes mobilizadas.
do espaço em suas lógicas cotidianas, atentando
para os atores envolvidos. Espécie de sinédoque visual, o estudo da rua per-
mite entrever o próprio processo de transforma-
Para tanto, o estudo da cartografia entremeada a ção da cidade em função das mudanças do seu
outras fontes primárias diacrônicas e sincrônicas papel na lógica da rede urbana mundial e regional.
mostra-se estratégia metodológica caracterís-
tica dessa linha de investigação. A estratégia Que São Paulo é um enorme palimpsesto, todos
metodológica é desvelar paisagens pretéritas sabemos. Feliz metáfora cunhada pelo saudo-
representadas na cartografia, entendendo-as so Benedito Lima de Toledo, a imagem das “três
como configurações territoriais de um conjunto cidades em um século”, da taipa para o tijolo e
de elementos naturais e artificiais e, como tal, para o concreto, é já domínio público. Mas como
uma espécie de palimpsesto onde, mediante acu- representar o processo de materialização e des-
mulações e substituições, a ação das diferentes materialização de uma cidade em permanente
gerações se superpõe. transformação, pensando-a como um canteiro
de obras?
Na escala macrorregional temos explorado à
exaustão A Carta Geographica de Projeção Es- Como representar dinâmicas sócio-espaciais
pherica da Nova Lusitânia ou América Portugueza com os novos recursos multimídia que as geo-
e Estado do Brazil (1797), primeira carta geral que tecnologias hoje permitem? Como desenvolver
dá a ver os domínios portugueses e castelhanos na novos métodos visuais e digitais para estudar o
América em seu conjunto. Artefato cartográfico artefato cidade em processo de transformação e
de amplas potencialidades heurísticas, permite movimento? Como encontrar novas maneiras de
explorar as estruturas e dinâmicas do cotidiano análise empírica para respaldar novas hipóteses
em seus usos pretéritos. Na Arqueologia da Pai- sobre o artefato urbano em perspectiva histórica
sagem aqui proposta impõe-se o exame detido e assim problematizar narrativas consagradas e
das paisagens toponímicas e demais códigos de formular novas indagações? Como séries visuais
representação na cartografia – entrecruzados digitalizadas e animadas por meio da combinação
com dados oriundos de outras fontes coevas -, de tecnologias (animações, reconstituições 3D,
em busca de aspectos geomorfológicos, fitofi- videos e outras mídias tecnológicas físicas, digi-
sionômicos, redes de caminhos, rios, pontos de tais e eletrônicas) permitem representar novas
enraizamento e mobilidade, imaginando o fluxo de narrativas sobre o processo social de produção
pessoas e mercadorias em escala macrorregional e transformação das cidades em movimento?
e transnacional, para além das fronteiras políticas
impostas pelo colonialismo e seus desdobramen- Essa linha de pesquisa guarda a peculiaridade de
tos nos séculos seguintes. optar por uma análise arqueológica e filológica
da cidade procedendo à minuciosa reconstitui-
Na escala intraurbana, ao combinar Décimas Ur- ção hipotética de um processo a partir de seus
banas, Maços de População, Impostos de Portas e fragmentos. Baixando o olhar da grande escala à
Janelas, Permisões de Construções, Almanaques micro-escala do lote, numa espécie de micro-his-
e outras fontes, é possível entrever dinâmicas de tória em série, analisaremos a rua 15 de Novembro
produção do espaço, seus ritmos e inflexões no (ex-Rosário) em processo de materialização e
tempo longo, precisando o papel dos atores nas desmaterialização, pensando-a como um can-
EIXO TEMÁTICO 2 teiro de obras em permanente transformação,
buscando descortinar as motivações e as lógicas
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS que presidiram o rápido processo de mudanças,
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES substituições e descartes, bem como buscando
encontrar as rugosidades desses tempos no mo-
saico que se tornou a paisagem contemporânea
da Colina Histórica.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

910
UM QUEBRA CABEÇA QUASE RESOLVIDO: por um conjunto de influências vindas de Minas
A RECONSTITUIÇÃO HIPOTÉTICA DO NÚCLEO URBANO Gerais e do Rio de Janeiro aliadas às tradições
construtivas paulistas mais antigas. Essa obra
DE SÃO LUIZ DO PARAITINGA NO SÉCULO XIX
influenciou tanto o tombamento da cidade em 1982
pelo CONDEPHAAT como o de 2010 pelo IPHAN.
São Luiz do Paraitinga é uma pequena cidade no Para esse último, foi organizado um Dossiê, no
interior de São Paulo, localizada entre o vale do qual reitera muitas das conclusões do texto de
Rio Paraíba e o litoral norte do Estado. Ela guarda 1977, além de consolidar a filiação do traçado e da
um conjunto urbano composto por diversas casas arquitetura luizense aos preceitos do iluminismo
térreas, alguns sobrados e 3 igrejas, datadas do europeu (IPHAN, 2010).
século XIX e início do XX que para alguns seria
“o maior conjunto colonial do Estado” (IPHAN, Assim, o presente trabalho propõe a análise de
2010, p.21). As ações de preservação da cidade novas fontes e métodos para, igualmente, propor
iniciaram em 1956 com o tombamento da casa novas interpretações acerca desse patrimônio
onde nasceu Oswaldo Cruz pelo, então, SPHAN; nacional. A cidade possui um considerável acerco
em 1975, o recém-criado Conselho de Defesa do documental e, para os interesses da pesquisa,
Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e destacamos, fontes de origem tributária (im-
Turístico do Estado de São Paulo (CONDEPHA- postos prediais), cartorária (inventários e testa-
AT) também tombou a referida casa e, em 1982, mentos) e, iconográfica (fotografias). Por meio do
a casa nº 3 da rua praça Oswaldo Cruz (praça da método da Arqueologia da Paisagem, buscamos
Matriz), a Capela das Mercês e o centro histórico fazer uma interpretação retrospectiva do casario
da cidade. No entanto, o seu patrimônio ganhou da cidade, partindo dos seus vestígios materiais
visualidade nacional a partir de 2010, momento remanescentes e entrecruzando com as fontes
em que sofreu a maior enchente da sua história, supracitadas. Os documentos fotográficos da-
comprometendo parte dos imóveis e obrigan- tados do final do século XIX e início do XX guar-
do as autoridades públicas a decretar estado de dam diferentes enquadramentos do casario que
calamidade. Nesse contexto, o IPHAN – que já podem ser utilizados para extrair informações
havia iniciado os estudos de seu tombamento há sobre a morfologia dos imóveis. Para período mais
cerca de três anos – participou de medidas emer- recuados do século XIX, contamos com fontes
genciais para minimizar os danos causados nos manuscritas, sobretudo, os inventários que guar-
imóveis e organizar um plano de recuperação. No dam por vezes dados sobre a volumetria, a largura
entanto, para que o IPHAN pudesse realizar essas da testada e o número de pavimentos. O Imposto
ações efetivamente, necessitava tombar a cidade. sobre Portas e Janelas de 1866 e 1867 registra a
Assim, em fevereiro de 2010, foi constituído um quantidade de portas e janelas de cada imóvel da
processo de tombamento provisório, permitindo cidade, permitindo inferir a tipologia do casario
ao Instituto agir em prol da reconstrução dos da vila (uma casa de porta e janela, meia morada,
edifícios tombados. Em 2012, a cidade também morada inteira etc). Por fim, no Imposto da Décima
foi inscrita no livro do Tombo Arqueológico, Et- dos Prédios Urbanos é possível encontrar a locali-
nográfico e Paisagístico, considerando também zação dos imóveis, seu preço médio e sua lotação.
sua paisagem de mares de morro e o rio Paraitinga
(ALLUCCI; SCHICCHI, 2019, p.17-18) . O cotejamento de todas essas fontes com o pa-
trimônio tombado da cidade permitiu uma com-
A obra mais importante sobre a História da Arqui- preensão mais detalhada do seu casario e sua
tetura e da Urbanização de São Luiz do Paraitinga dinâmica ao longo do tempo. Ele nos permitiu re-
foi escrita em 1977 por Luís Saia e Jaelson Birtran constituir hipoteticamente (ABREU,2010), ou seja,
Trindade e recebeu o mesmo nome da cidade criar interpretações pautadas em sólida pesquisa
(SAIA; TRINDADE, 1977). Trata-se de um estudo documental, que contemple imóvel por imóvel do
métrico-arquitetônico e fotográfico, acompa- conjunto, possibilitando repensar sua cronologia,
nhado de textos interpretativos do material co- identificar áreas mais ou menos preservadas e
letado. Nesse trabalho, foi feito uma análise dos traçar comparações sobre as permanências e
“partidos arquitetônicos” que compõe o conjunto, transformações do seu imobiliário urbano no final
chegando à conclusão de que ele foi formado do século XIX e início do XX.
EIXO TEMÁTICO 2 OEIRAS DO PIAUÍ EM TEXTO E IMAGEM:
ARQUEOLOGIA DA PAISAGEM DE UMA CIDADE
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES DOS SERTÕES DO NORTE 

O primoroso estudo em três volumes do arquiteto


Olavo Pereira da Silva Filho (2007) - Carnaúba,
pedra e barro na Capitania de São José do Piahuy
– dedicado ao urbanismo e à arquitetura da ca-
pitania do Piauí é, em determinados aspectos, o
complemento ou o sequenciamento das pesquisas
pioneiras de Paulo T. Barreto (1938), Nestor Goulart
Reis Filho (1968) e Murillo Marx (1991). Com o olhar
de arquiteto preocupado com a forma dos núcleos
urbanos, a diversidade paisagística e o programa
arquitetônico das sedes de fazendas de gado, o
autor demonstra que o Piauí esteve devidamente
estruturado por uma intricada e hierárquica rede
de povoações e caminhos terrestres, por meios
dos quais verificam-se territórios vivos, eferves-
centes economicamente e conectados com as
capitanias adjacentes do Maranhão, Pernambu-
co, Bahia e Goiás. Silva Filho desvela paisagens
pregressas segundo uma leitura atenciosa dos
objetos da cultura material produzidos em di-
ferentes cronologias, sobretudo de meados do
século XVIII até finais do Oitocentos.

Inspirado na obra de Silva Filho, além de outros


estudos referenciais à História do Urbanismo e
Urbanização brasileira (DELSON, 1997; ARAUJO,
2000; ABREU, 2010; FONSECA, 2011; JUCÁ NETO,
2012), surgiu a proposta dessa comunicação. Seu
foco não se limita a uma capitania, como ocorre
de maneira frequente nas pesquisas de caráter
regionalista, mas situa-se num jogo de escalas a
variar do micro ao macro (LEPETIT, 2001), inter-
pretando o significado das povoações nas tra-
mas social e econômica essenciais à urdidura
dos territórios das capitanias daqueles sertões.
Pode-se afirmar que o seu discurso se circuns-
creve no universo heurístico tanto da História do
Urbanismo e da Urbanização, como da disciplina
cunhada, na década de 1990, de “Arqueologia da
Paisagem” (BENES; ZVELEBIL, 1999), cujo escopo
teórico-metodológico infere sobre uso pretérito
da paisagem a fim de dar significado à interação
entre o homem, a cultural material e a natureza”.

16º SHCU Se há arqueologia é porque existe as dimensões


30 anos . Atualização Crítica
objetiva e subjetiva das atividades humanas em
912 sucessão cronológica na paisagem, ou seja, for-
mam-se camadas materiais diversas no tempo e O ARRAIAL, A VILA E A CIDADE: A ANTIGA CAPITAL
no espaço suscetíveis de interpretação. O pen- DE GOIÁS EM TRÊS TEMPOS
teamento desses palimpsestos permite decifrar
a assinatura de relações humanas esvaídas na
Vila Boa, a antiga capital de Goiás, surgiu da explo-
história. Milton Santos (2012, p. 173) considerou
ração do ouro na primeira metade do século XVIII.
o palimpsesto sob a denominação de “rugosida-
O amplo território, que formaria a Capitania de
de”, “o tempo histórico que se transformou em
Goiás em meados do Setecentos, já era ocupado
paisagem”, cuja determinação final testemunha
por etnias variadas de norte a sul, as quais devem
um momento do mundo.
ter estabelecido algum tipo de contato com dife-
A partir dessa abordagem metodológica multi- rentes grupos como missionários, sertanistas e
disciplinar, esta comunicação também procura sesmeiros, oriundos das capitanias vizinhas. Vila
realizar um exercício de penteamento dos pro- Boa, então arraial de Santana, se insere entre as
cessos de construção da paisagem urbana de primeiras povoações impulsionadas pela febre do
Oeiras do Piauí numa específica temporalidade. ouro, como os arraiais de Barra, Ferreiro e Ouro
Para tanto, serão utilizadas fontes manuscritas Fino. O título de vila chegou anos depois, junto
e cartográficas no intuito de revelar o cotidiano com as primeiras diretrizes urbanísticas oficiais,
da povoação, sua arquitetura, seus espaços..., que orientavam em linhas gerais a ocupação do
objetos que ecoam silenciosamente as diferentes território. Com a criação da Capitania de Goiás
relações do homem com a paisagem e o território. em meados do século XVIII, Vila Boa foi escolhida
A cronologia estabelecida refere-se aos marcos para ser a capital dentre tantos arraiais, tendo se
históricos basilares à fundação de Oeiras e à con- destacado dos demais núcleos urbanos por ser
figuração da capitania do Piauí: 1697 foi o ano da a única vila da capitania na passagem do século
criação do curato de Nossa Senhora da Vitória, XVIII para o século XIX. Em 1818 consagrou-se
enquanto que 1762 diz respeito ao censo realizado como Cidade de Goiás, nome que carrega até os
pelo primeiro governador, João Pereira Caldas, dias atuais.
que dá a ver tessituras sociais de uma cidade
A Cidade de Goiás, originada a partir de um
étnica e culturalmente rica.
acampamento de garimpeiros, foi criando for-
De certa forma, Oeiras e o Piauí, duas escalas ma e adquirindo relevo com a ocupação dessa
de um mesmo problema empírico, se convertem população que não abandonou as lavras e foi se
no paradigma do povoamento dos sertões do estabelecendo no território, firmando camada
Norte. O censo de Pereira Caldas e o mapa do sobre camada nesse processo de consolidação
engenheiro militar Henrique Antônio Galuzzi são do núcleo urbano, tecido pelas mais variadas re-
testemunhos materiais da vitalidade econômica lações sociais. Dessa forma, esse artigo trabalha
e humana dos sertões como um todo, os quais com o processo de formação urbana da cidade de
foram prejudicados por leituras negativas que vêm Goiás durante o período colonial, composta por
sendo rebatidas pelas mais recentes pesquisas. estratos de tempos sucessivos de superposição,
Enquanto que a historiografia clássica os define acumulação ou mesmo de supressão, que ficaram
como espaços vazios e morosos, o censo e a impressos nas rugosidades do presente (SANTOS,
cartografia apresentam o dinamismo e a vitalidade 2006). Como veremos a seguir, essas rugosidades
como qualificativos da cidade e da capitania que desvelaram também as dinâmicas dos jogos de
são, inclusive, dos sertões. poder, impressas na paisagem urbana.

O presente artigo é um recorte de uma pesqui-


sa maior, que trata do processo de urbanização
da Capitania de Goiás nos séculos XVIII e XIX,
entendendo a urbanização enquanto processo
social. Tendo como grandes referências Bernard
Lepetit (2001) e Nestor Goulart Reis (1968, 2013),
estudamos o processo de urbanização a partir do
jogo de escalas e das interfaces entre diferentes
disciplinas humanas e sociais como Geografia
EIXO TEMÁTICO 2 e História, com especial atenção para a cultura
material. Sob essa ótica, a pesquisa se desenrola
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS em duas escalas, uma macrorregional (Capitania)
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES e uma micro (intraurbano), problematizando as
lógicas e as dinâmicas de articulação dos núcle-
os na rede urbana. Ao estudar a cidade, não nos
limitamos a trabalhar com os núcleos de forma
isolada, pois eles são parte de um sistema maior,
que incorpora a rede de estradas terrestres e
fluviais, os registros e contagens, os aldeamentos
e quilombos, assim como as fazendas, engenhos,
sítios e chácaras, dispersos num território he-
terogêneo, levando-se em consideração seus
apectos físicos e humanos.

Ajustando o foco para o estudo em tela nesta


comunicação, qual seja, o processo de formação
urbana de Vıla Boa, nos debruçamos sobretudo
em fontes primárias e nos vestígios da cultura
material. A estratégia metodológica partiu de pes-
quisa bibliográfica, análise in loco e cruzamento
de fontes variadas. Dentre as fontes, a Décima
Urbana se mostrou uma aliada de primeira hora,
por retratar a situação dos imóveis privados e
o perfil da sociedade vilaboense na transição
do núcleo urbano de vila para cidade. A Décima
Urbana incidia na taxação dos imóveis urbanos e
foi promulgada na Capitania de Goiás a partir de
1810. Através das Décimas, tivemos acesso aos
nomes dos proprietários (e seus inquilinos), ao
estado de conservação dos imóveis, assim como
ao valor do rendimento anual desses bens de raiz.

A partir da sistematização dos dados da Décima


Urbana foi possível reconstituir o espaço urbano
da cidade, recorrendo ao cruzamento de fon-
tes diversas como narrativas e descrições do
período estudado; cartografia e iconografia de
época; acervo cartorial e documentos oficiais. A
espacialização dos dados da Décima Urbana de
1818 foi realizada por meio de base cartográfica
atual, fornecida pelo IPHAN. O SIG1 se mostrou
a ferramenta ideal por permitir georreferenciar
as informações contidas no banco de dados e
produzir mapas temáticos dos diversos layers de
informações referentes ao núcleo urbano. Nessa

1. Sistema de Informação Geográfica – em língua inglesa é


conhecido por GIS (Geographic Information System). Para
16º SHCU
esse trabalho, utilizamos o Excel para sistematização dos
30 anos . Atualização Crítica
dados e o QuantumGIS para espacialização em base geor-
914 referenciada.
etapa do trabalho, os estudos desenvolvidos por REFERÊNCIAS
Gauthiez e Zeller (2014) nos anos 1990 na Univer-
sidade de Lyon foram a nossa principal referên- ABREU, Maurício de Almeida. Geografia His-
cia. Os pesquisadores espacializaram dados dos tórica do Rio de Janeiro (1502-1700). Rio de
séculos XVII e XVIII referentes ao caso lionês, Janeiro: Andrea Jakobsson Estúdio e Prefeitu-
desenvolvendo um know how importante para ra Municipal do Rio de Janeiro, 2010.
entendimento dos processos de transformações
sociais e urbanos refinados da escala do edifício, ALLUCCI, Renata Rendelucci; SCHICCHI, Maria
em mapas georreferenciados. Cristina Da Silva. “São Luiz do Paraitinga: o ima-
ginário fundacional e suas projeções”. Anais do
A espacialização dos dados da Décima Urbana de
Museu Paulista, São Paulo, v. 27, e.15, 2019, p.
Vila Boa de 1818 viabilizou a representação das
1-34.
dinâmicas sócio-espaciais no sítio, permitindo
visualizar aspectos ocultos da materialidade ur- ARAUJO, R. M. de. A urbanização do Mato
bana. A partir dos dados extraídos dessa fonte Grosso no século XVIII: discurso e método.
primária, foram desenvolvidos vários mapas te- 2 vols. Tese (doutorado em História da Arte),
máticos, evidenciando interessantes aspectos da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Uni-
sociotopografia local (LE GOFF, 1992). Em função versidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2000.
das imprecisões e lacunas desse tipo de fonte, é
importante salientar o caráter hipotético dos ma- ARRAES, D.E.A. Ecos de um suposto silêncio:
pas produzidos. Ainda assim, aspectos relevantes paisagem e urbanização dos “certoens” do Nor-
da arqueologia da paisagem urbana são colocados te, c.1666-1820. Tese (doutorado) – Faculdade
em evidência, abrindo espaço para novas frentes de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de
de debates, como contraponto a aspectos perpe- São Paulo. São Paulo, 2017.
tuados pela historiografia tradicional.
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EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES “O monumento não tem porta,
a entrada é uma rua antiga, estreita e torta”

mesa temática Caetano Veloso, Tropicália, 1968.

AS [OUTRAS] 7 DE SETEMBRO Investigando de que maneira o tempo históri-


co se expressa nas cidades, notamos como os
monumentos se constituem em um modo de
THE [OTHERS] SETE DE SETEMBRO expressão comum a todas configurações ur-
banas e visam afirmar uma relevância históri-
LAS [OTRAS] SETE DE SETEMBRO ca para determinados fatos e pessoas. Alguns
que marcaram a história nacional são, portanto,
gravados na carne de diversas cidades brasilei-
ROCHA, Maria Isabel C. M. ras através da construção de monumentos ar-
Doutorado; Centro Interdisciplinar de Estudos sobre
tísticos que, em geral, se querem perceptíveis
Cidade - CIEC marcadores das paisagens urbanas. No entan-
bel.cmr@gmail.com to, além desses monumentos, há outra forma
de homenagem pública que se relaciona menos
BENEZATH, Camila com a paisagem urbana, mas que marca igual-
Doutorado; Prefeitura de Vitória - PMV
mente o cotidiano das pessoas: a toponímia dos
camilabenezath@hotmail.com lugares.

Para esta mesa, buscamos provocar um debate


OLIVEIRA, Carlos Alberto
acerca tanto do conteúdo histórico atribuído à
Doutorado; Centro Interdisciplinar de Estudos sobre nomeação de logradouros públicos – que colo-
Cidade - CIEC
ca à margem da narrativa oficial outras tantas
oliveirahcp@gmail.com
narrativas não menos “históricas” - quanto de
como esta fala pública da história é também a
BECHLER, Janaina
condição de possibilidade de profanação de um
Doutorado; Laboratório Urbano -PPGAU/UFBA - bolsista acontecimento, uma data ou uma pessoa, dan-
PNPD CAPES
do ressignificação ao elemento histórico. Des-
janainabechler@gmail.com
ta forma, a toponímia aqui é também entendida
como fator de monumentalização de determi-
nados elementos, juntamente com a forma ur-
bana e a localização na cidade.

Tomamos como campo de experimentação os


logradouros que homenageiam o dia 07 de se-
tembro de 1822. Ruas, praças e avenidas pas-
saram a ser assim batizadas para celebrar a
proclamação da independência do Brasil. As
homenagens se intensificaram nas proximida-
des do centenário da data, em 1922, quando se
pretendia adubar o orgulho nacionalista no Bra-
sil, através da criação de símbolos de civilidade,
sintetizadores da nação. As cidades, como luga-
16º SHCU res privilegiados dessa criação, a fim de entrar
30 anos . Atualização Crítica
no mapa das grandes cidades do mundo capita-
918 lista, são impelidas a seguir a estética de civi-
lidade ditada pelos padrões europeus, fundada nagem e promovem uma outra independência,
sobre discursos de salubridade e organização dissociando-o, pelos usos diversos que fazem
[amenagement]. Tal estética foi amplamen- dele, da sua apelação de origem. Libertando-o
te difundida para fora da Europa a partir, por assim, ainda que momentaneamente, dos pa-
exemplo, das grandes reformas tocadas pelo drões e controles hegemônicos instituídos.
Barão Haussmann, prefeito do departamento
onde se inscrevia Paris. Em terras tupiniquins, Ao mesmo tempo em que certos elementos
a exigência da adoção de padrões de arquitetu- constitutivos das vias remetem a outros con-
ra e urbanismo que expressassem tal civilidade textos espaço-temporais, as ações que se dão
chegou primeiro ao Rio de Janeiro, para depois localmente vêm transformar o registo monu-
ser também perseguido por outras cidades. Tal mental do passado. Assim, em que medida a
parâmetro se tornou uma referência não só no Sete de Setembro em Salvador ainda é associa-
Brasil, mas especialmente no contexto de paí- da à independência brasileira? Da mesma forma,
ses ditos “não industrializados”, o então chama- em Vitória, podemos dizer que o monumento à
do terceiro mundo. data é profanado quando a rua é popularmente
chamada apenas de Rua Sete? Em qual rol de
A mesa pretende trazer à tona alguns elementos espaços públicos se enquadrava a Praça Sete
históricos, por meio da “porta aberta” oferecida de Setembro belo-horizontina quando assim foi
pelo 7 de setembro; nome dado a diversas ave- batizada [e hoje]? Poderíamos dizer que a Rua
nidas, ruas e praças no Brasil. Tal nomenclatura Sete de Setembro de Porto Alegre tem a potên-
homenageia a data do acontecimento às mar- cia de abrigar e expandir vozes que se tentou
gens do Rio Ipiranga, eleito pela narrativa nacio- abafar [como a voz do tambor ou dos passos
nal como crucial no processo de independência invisíveis de tantas histórias]? Que formas de
do país do império português. Associamos o apropriação constroem coletiva e cotidiana-
fato histórico nacional a um urbanismo estra- mente outras memórias que vêm transformar
tégico, também de base militar, discursos [do as referências impostas na denominação das
nacionalismo e da engenharia militar] que tam- diferentes Setes de Setembro?
bém nortearam as grandes reformas do Barão
Nossa mesa vem, portanto, indagar como o co-
parisiense. E aqui já acionamos dois modos de
tidiano ressignifica o “monumento histórico” a
intervenção urbana estratégica que interferem
partir das apropriações e usos desses espaços
diretamente no ordenamento da cidade e na
públicos pelas pessoas que os habitam, pelas
vida que nela habita: os dogmas urbanísticos e
diferentes disputas de significados dos luga-
a toponímia dos lugares.
res-monumentos ao 7 de setembro. E tal ressig-
nificação cotidiana não é novidade do momento
Que outros sentidos históricos estão embutidos
atual, mas está há longa data colocando narrati-
nos muitos logradouros que trazem no nome
vas na disputa das cidades e suas territorialida-
esta mesma data? Partimos aqui de [pelo me-
des. Em determinados momentos, as narrativas
nos] quatro lugares distintos que carregam em
vencedoras colocam novos monumentos sobre
comum, além do nome, o estilo de urbanismo
os antigos, em um jogo de poderes operado pe-
que almejava disciplinar as cidades no início
las elites políticas e econômicas. Outras nar-
do século XX: a Avenida Sete de Setembro em
rativas mais marginais, todavia, sempre com-
Salvador, Bahia; a Rua Sete de Setembro em Vi-
-formaram os territórios urbanos, marcando a
tória, Espírito Santo; a Praça Sete de Setembro
cidade com outros valores exercidos por outras
em Belo Horizonte, Minas Gerais; e a Rua Sete de
formas de vida.
Setembro em Porto Alegre, Rio Grande do Sul.
Nas quatro cidades, todavia, também vemos for-
mas de profanação deste modelo, do ideário de SETE DE SETEMBRO ESPAÇOS PÚBLICOS COTIDIANO
progresso. Profanação aqui entendida, segundo
PROFANAÇÃO NARRATIVAS
Agamben (2007), como potência de apropriação
dos elementos históricos pelo uso cotidiano. As
ações dos muitos sujeitos, nas distintas cida-
des, ressignificam o lugar “sagrado” de home-
EIXO TEMÁTICO 2 ABSTRACT
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES “The monument has no door,
the entrance is an old, narrow, and crooked street”

Caetano Veloso, Tropicália, 1968.

Investigating how historical time is expressed in


cities, we notice how monuments precede them-
selves in a way of expression common to all urban
configurations and aim to guarantee a historical
relevance for certain facts and people. Some of
them that have marked national history are, the-
refore, recorded in the flesh of several Brazilian
cities through artistic monuments that, in gene-
ral, want to be perceptible in urban landscapes.
However, in addition to these monuments, there
is another form of public homage that is less re-
lated to the urban landscape, but also marks peo-
ple’s daily lives: the toponymy of places.

For this communication, we seek to provoke a


debate on the historical content attributed to the
appointment of public places – which puts aside
of the official narrative so many other public nar-
ratives no less “historical” – and on how this public
speech of history is also a condition for the pos-
sibility of profanation of an event, date or person,
giving new meaning to the historical element.
Thus, the toponymy here is also understood as a
factor of monumentalization of certain elements,
together with the urban form and the location in
the city.

We take as a field of experimentation the stre-


ets that honor the September 7th, 1822. Streets,
squares and avenues are now named to celebrate
the proclamation of Brazil’s independence. The
homage intensified around the centenary of the
date, in 1922, when it was intended to fertilize
nationalist pride in Brazil, through the creation
of symbols of civility, synthesizers of the nation.
The cities, as privileged places for this creation,
in order to enter the map of the great cities of the
capitalist world, they are driven to follow the aes-
thetics of civility dictated by European standards,
founded on speeches of healthiness and organi-
zation. Such aesthetics was widely spread outsi-
16º SHCU de Europe, starting, for example, from the great
30 anos . Atualização Crítica
reforms carried out by Baron Haussmann, prefect
920 of the department where Paris was registered. In
Tupiniquin lands, the demand for the adoption of form the monumental record of the past. So, to
architectural and urbanism standards that ex- what extent is Sete de Setembro in Salvador still
pressed such civility first arrived in Rio de Janei- associated with Brazilian independence? Likewi-
ro, only to be later pursued by other cities. This se, in Vitória, can we say that the monument to
parameter has become a reference not only in the date is profaned when the street is popularly
Brazil, but especially in the context of so-called called Rua Sete only? Which list of public spaces
“non-industrialized” countries, the so-called third did Praça Sete de Setembro in Belo Horizonte fit
world. when it was baptized? And today? Could we say
that Rua Sete de Setembro in Porto Alegre has the
We intend to bring up historical elements, through power to house and expand voices that one tried
the “open door” offered by September 7th; name to drown out [like the voice of the drum or the in-
given to several avenues, streets and squares in visible steps of so many stories]? What forms of
Brazil. Such nomenclature pays homage to the appropriation collectively and daily build other
date of the event on the banks of the Ipiranga Ri- memories that come to transform the referen-
ver chosen by the national narrative as crucial in ces imposed on the denomination of the different
the process of independence of the country from September 7th?
the Portuguese empire. We associate the natio-
nal historical fact with a strategic urbanism, also We come, therefore, to inquire how daily life resig-
with a military base, speeches [of nationalism and nifies the “historical monument” from the appro-
military engineering] that also guided the great priations and uses of these public spaces by the
reforms of the Parisian Baron. And here we have people who inhabit them, due to the different dis-
already activated two modes of strategic urban putes of meanings of the monuments places on
intervention that directly interfere in the ordering the September 7th. And this daily resignification
of the city and in the life it inhabits: urban dogmas is not new to the current moment, but it has long
been putting narratives in the dispute over cities
and the toponymy of places.
and their territorialities. At certain times, the
What other historical meanings are embedded in winning narratives place new monuments on top
the many places that bear the same date in the of the old ones, in a game of powers operated by
name? We start here from [at least] four distinct political and economic elites. Other, more margi-
places that carry in common, in addition to the nal narratives, however, have always shaped ur-
name, the style of urbanism that aimed to disci- ban territories, marking the city with other values
pline cities at the beginning of the 20th century: exercised by other forms of life.
Avenida Sete de Setembro in Salvador, Bahia; Rua
Sete de Setembro in Vitória, Espírito Santo; Praça
SETE DE SETEMBRO PUBLIC SPACES EVERYDAY LIFE
Sete de Setembro in Belo Horizonte, Minas Gerais;
and Rua Sete de Setembro in Porto Alegre, Rio PROFANATION NARRATIVES
Grande do Sul. In the four cities, however, we also
see ways of profanating this model, the ideal of
progress. Profanation is understood here accor-
ding to Agamben (2007), as a power of appropria-
tion of historical elements through everyday use.
As actions by many subjects, in different cities,
they resignify the “sacred” place of homage and
promote another independence, dissociating it,
by the different uses that make it, from its original
appeal. Thus, freeing him, even if only momenta-
rily, from the established hegemonic standards
and controls.

At the same time that certain elements that make


up the routes lead to other spatio-temporal con-
texts, the actions that take place locally trans-
EIXO TEMÁTICO 2 RESUMEN
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES “El monumento no tiene puerta,
la entrada es una calle vieja, estrecha y tortuosa”

Tropicália, Caetano Veloso, 1968.

Al investigar cómo se expresa el tiempo históri-


co en las ciudades, observamos cómo los monu-
mentos constituyen un modo de expresión común
a todas las configuraciones urbanas y apuntan a
afirmar la relevancia histórica para ciertos he-
chos y personas. Algunos que han marcado la
historia nacional quedan, por tanto, grabados en
la carne de varias ciudades brasileñas a través de
la construcción de monumentos artísticos que,
en general, quieren ser marcadores perceptibles
de paisajes urbanos. Sin embargo, además de
estos monumentos, hay otra forma de homenaje
público menos relacionada con el paisaje urbano,
pero que también marca la vida cotidiana de las
personas: la toponimia de los lugares.

Para esta mesa, buscamos provocar un deba-


te tanto sobre el contenido histórico atribuido a
la nominación de lugares públicos – que deja de
lado tantas otras narrativas no menos “históri-
cas” – como sobre cómo este discurso público de
la historia es también condición de posibilidad de
la profanación de un hecho, una fecha o una per-
sona, dando un nuevo significado al elemento his-
tórico. Así, la toponimia aquí también se entiende
como un factor de monumentalización de ciertos
elementos, junto con la forma urbana y la ubica-
ción en la ciudad.

Tomamos como campo de experimentación las


calles que honran el 7 de septiembre de 1822.
Calles, plazas y avenidas se nombran ahora para
celebrar la proclamación de la independencia de
Brasil. El homenaje se intensificó en torno al cen-
tenario de la fecha, en 1922, cuando se pretendía
fecundar el orgullo nacionalista en Brasil, me-
diante la creación de símbolos de civismo, sinteti-
zadores de la nación. Las ciudades, como lugares
privilegiados de esta creación, para entrar en el
mapa de las grandes ciudades del mundo capi-
talista, se ven impulsadas a seguir la estética del
16º SHCU civismo dictada por las normas europeas, funda-
30 anos . Atualização Crítica
mentadas en discursos de salubridad y organiza-
922 ción. Esta estética se difundió ampliamente fuera
de Europa, a partir, por ejemplo, de las grandes blecidos.
reformas llevadas a cabo por el barón Hauss-
mann, prefecto del departamento donde se regis- Al mismo tiempo que ciertos elementos que
tró París. En tierras tupiniquins, la demanda por componen las rutas conducen a otros contextos
la adopción de estándares de arquitectura y ur- espacio-temporales, las acciones que se desar-
banismo que expresaran tal civismo llegó primero rollan localmente transforman el registro monu-
a Río de Janeiro, para luego ser perseguida por mental del pasado. Entonces, ¿hasta qué punto la
otras ciudades. Este parámetro se ha convertido Sete de Setembro en Salvador todavía se asocia
en una referencia no solo en Brasil, sino especial- con la independencia brasileña? Asimismo, en
mente en el contexto de los países llamados “no Vitória, ¿podemos decir que el monumento a la
industrializados”, el llamado tercer mundo. fecha está profanado cuando la calle se llama po-
pularmente solo Rua Sete? ¿A qué rol de espacios
La mesa pretende sacar a la luz algunos elemen- públicos se encajaba la Praça Sete de Setembro
tos históricos, a través de la “puerta abierta” que en Belo Horizonte cuando fue bautizada [y hoy]?
ofrece el 7 de septiembre; nombre dado a varias ¿Podríamos decir que la Rua Sete de Setembro en
avenidas, calles y plazas de Brasil. Tal nomencla- Porto Alegre tiene el poder de albergar y expan-
tura rinde homenaje a la fecha del evento en las dir voces que se intentó ahogar [como la voz del
orillas del río Ipiranga, elegido por la narrativa na- tambor o los pasos invisibles de tantas historias]?
cional como crucial en el proceso de la indepen- ¿Qué formas de apropiación construyen colectiva
dencia del país del imperio portugués. Asociamos y cotidianamente otras memorias que vienen a
el hecho histórico nacional con un urbanismo transformar las referencias impuestas a la deno-
estratégico, también con base militar, e discur- minación de los diferentes 7 de septiembre?
sos [de nacionalismo e ingeniería militar] que
Nuestra mesa viene, por tanto, a indagar cómo
también guiaron las grandes reformas del Barón
la vida cotidiana resignifica el “monumento his-
parisino. Y aquí ya hemos activado dos modos de
tórico” de las apropiaciones y usos de estos es-
intervención urbana estratégica que interfieren
pacios públicos por parte de las personas que
directamente en el ordenamiento de la ciudad y
los habitan, debido a las diferentes disputas de
en la vida que habita: los dogmas urbanos y la to-
significaciones de los lugares monumentales el
ponimia de los lugares.
7 de septiembre. Y esta resignificación diaria no
¿Qué otros significados históricos están incrus- es nueva en el momento actual, pero hace mucho
tados en los muchos lugares que llevan la misma tiempo poniendo narrativas en la disputa por las
fecha en el nombre? Partimos aquí de [al menos] ciudades y sus territorialidades. En determina-
dos momentos, las narrativas ganadoras colo-
cuatro lugares distintos que tienen en común,
can nuevos monumentos sobre los antiguos, en
además del nombre, el estilo de urbanismo que
un juego de poderes operado por élites políticas
pretendía disciplinar las ciudades a principios del
y económicas. Otras narrativas, más marginales,
siglo XX: Avenida Sete de Setembro en Salvador,
sin embargo, siempre han moldeado los territo-
Bahía; Rua Sete de Setembro en Vitória, Espírito
rios urbanos, marcando la ciudad con otros valo-
Santo; Praça Sete de Setembro en Belo Horizon-
res ejercidos por otras formas de vida.
te, Minas Gerais; y Rua Sete de Setembro en Porto
Alegre, Rio Grande do Sul. En las cuatro ciudades,
sin embargo, también vemos formas de profanar SETE DE SETEMBRO ESPACIOS PÚBLICOS COTIDIANO
este modelo, el ideal de progreso. La profanación
PROFANACIÓN NARRATIVAS
es entendida aquí, según Agamben (2007), como
el poder de apropiación de elementos históricos a
través del uso cotidiano. Las acciones de los múl-
tiples sujetos, en las distintas ciudades, resignifi-
can el lugar “sagrado” del homenaje y promueven
otra independencia, disociando, por los diferen-
tes usos que lo hacen, de su atractivo original.
Liberándolo así, aunque sea momentáneamente,
de los estándares y controles hegemónicos esta-
EIXO TEMÁTICO 2 DA BAHIA, DOS RIOS, DE OUTROS MARES:
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
SETES DE SETEMBRO, DA MARGEM AO FUNDO
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
Entre 2012-2016 a Avenida Sete de Setembro da
cidade de Salvador era um dos focos de atuação
mesa temática da Prefeitura, através da sua Secretaria Municipal
de Ordem Pública, com o urbanismo dentre suas
frentes de operação. A Avenida preparava-se para
AS [OUTRAS] 7 DE SETEMBRO comemorar o seu centenário [além da Copa da Fifa
de 2014], o que nos levou a recorrer ao passado
para entender como, ainda na sua criação, um
THE [OTHERS] SETE DE SETEMBRO século antes [1912-1916] – buscando endireitar e
emendar ruas tortuosas da primeira cumeada
LAS [OTRAS] SETE DE SETEMBRO a partir da Baía de Todos os Santos – a Avenida
Sete tanto interferiu na vida habitante com sua
“nova ordem”, como compôs com ela novos mo-
dos de existir, novos significados para o espaço
público. Símbolos do patriotismo republicano
eram alçados a monumentos, que carimbavam
os centros urbanos, incluindo-se nesta categoria
a toponímia como homenagem pública; a própria
Avenida Sete de Setembro.

De Salvador, partimos para investigar como o


intento de criação de uma narrativa sobre a “na-
ção brasileira” a partir de elementos destacados
da história, visou sobrepô-la a outras histórias
ou outras narrativas sobre tais elementos, em
diferentes contextos urbanos. Desta forma,
vemos como no período da Primeira República
brasileira, especialmente no início do século XX,
muitas cidades brasileiras tiveram seus centros
reformados a fim de abrigar, a um só tempo, uma
elite econômica “renovada” e civilizada; exem-
plares de uma estética urbana e arquitetônica
internacionalizada; elementos de uma narrativa
histórica hegemônica monumentalizados. Alguns
autores falam da secularização das cidades a
partir da dicotomia sagrado-profano. No entanto,
tal processo de secularização vem impor à cida-
de um outro tipo de culto: o culto do civismo. As
leis, normas e a história da “civilização brasileira”
vieram constituir o novo dogma a ser seguido nos
usos dos espaços públicos das nossas cidades.

Mas o que tais processos de renovação tentaram


omitir? Se a chamada secularização colocava as
16º SHCU atividades da igreja católica em segundo plano, a
30 anos . Atualização Crítica paisagem urbana da República devia deixar para
924 trás o passado colonial escravista. Negar a “colô-
nia infecta e africanizada” 1 significava não mais espetacularizados.
admitir o uso do espaço público pela numerosa
população escravizada, que atuava de modo a Guiaremos a discussão a respeito do exposto
suprir a carência dos diversos sistemas susten- trazendo exemplos em Salvador, mas em diálogo
tadores da vida nas cidades; abastecimento de também com Natal, Porto Alegre – capitais dos
água, esgotamento, transporte urbano, etc. tudo nossos Rios Grandes – e ainda com a cidade do
circulava nas costas de negros escravizados. A Rio de Janeiro. Com o cruzamento de cidades,
chegada da modernidade – com a Avenida Sete buscamos entender a abrangência nacionalista
de Setembro, em Salvador, a Praça Sete de Se- de tais processos de elitização, padronalização
tembro, em Natal, a Rua Sete de Setembro, em e monumentalização, mas, sobretudo, vivenciar
Porto Alegre, entre outras – empurrou os usos as outras formas e narrativas assumidas pela
profanos para as margens do espaço agora des- população habitante. Em Salvador, conhecemos,
tinado às elites. No entanto, os sujeitos de tais o 2 de Julho, bairro que tangencia a Sete e data co-
usos se viram impelidos seja a aquilombar-se memorativa da independência da Bahia [que, por
nas margens de tais monumentos, seja a profa- extensão, também seria do Brasil?]. Entendemos
ná-los. E aqui, entendemos o quilombo ou o ato o caboclo monumental e a imanência cotidiana da
de aquilombar-se, a partir de Beatriz Nascimento cabocla, sujeitos que estavam na linha de frente
(1989), como decorrente da necessidade e da luta da guerra da independência e guerreiam todos
pelo direito à terra, ao território e à liberdade. A os dias por [sobre]vivência. Entre tais sujeitos,
definição de quilombo tem atualizado-se igual- conhecemos ao extremo norte da Avenida Sete
mente no contexto dos estudos de antropologia, de Setembro, o aquilombamento dos Artífices da
de maneira a integrar as práticas cotidianas de Ladeira da Conceição, reivindicando o direito de
existir com seu modo de subsistência, ocupando
resistência na com-formação de territórios não
o território onde se encontram há gerações. No
mais precisamente demarcados, podendo ser
outro extremo da Avenida, conhecemos e convi-
parte constituinte e mutável das/nas cidades.
vemos com o território do Coco da Jô, que viu seu
Por outro lado, consideramos que “Puro, profano,
quiosque demolido e não chegou a ver um novo
livre dos nomes sagrados, é o que é restituído ao
quiosque construído, mas resistiu durante três
uso comum dos homens.” (AGAMBEN, 2007, p. 65).
anos aglomerando fregueses e adeptos em um
Nesse sentido, a partir da prática de determi- ponto alugado, às margens da Avenida.
nados espaços públicos – lugares-monumentos
De que maneiras essas histórias se multiplicam
cuja toponímia homenageia a independência do
cotidianamente nas cidades? A partir do encontro
Brasil – especialmente localizados em regiões
com algumas Setes, construímos novas narrati-
urbanas centrais, indagamos suas significações e
vas sobre os lugares-monumentos, entendendo
ressignificações junto à vida urbana que os habita
que, apesar do esforço de consolidação de uma
e nos colocamos disponíveis à captação de outras
narrativa única, a vida existente, em sua plurali-
histórias. Observamos como os monumentos,
dade, ocupa o território monumentalizado e re-
quando no espaço público, são colocados à prova
siste à sua maneira às tentativas de expulsão e
do livre uso comum pelas pessoas. E como outros
de pacificação.
monumentos vão se constituindo no verso e nas
brechas da narrativa hegemônica. É em torno
deles que vemos o aquilombamento dos diver-
sos sujeitos, colocados à margem dos espaços

1. O jornal O Correio, da Bahia escreveu uma nota criticando


os frades que se opunham à demolição de alguns templos
e outros símbolos da igreja católica. “Homens extranhos
ao movimento civilizador, pouco se lhes dá que a Bahia
seja eternamente a velha cidade da colonia infecta e afri-
canizada, ou que se a queira remodelar dando-lhe o molde
das cidades europeias.” (O CORREIO, 1913. apud PINHEIRO,
2002, p.229)
EIXO TEMÁTICO 2 muitas outras narrativas para a sete:
intervenções e apropriações cotidianas
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

Figura 1: Graffiti na banca de jornal. Fonte: Fotografia da


autora, 2017.

“Do que você se lembra quando passa aqui?” per-


gunta o graffiti no envoltório metálico de uma
das bancas de jornal localizada na Rua Sete de
Setembro, Centro de Vitória, Espírito Santo (Figura
1). O encontro nos instigou a elaborar outras per-
guntas: do que esquecemos? O que foi apagado?
O que permanece na Sete? E numa tentativa de
responder a todas elas fomos em busca de nar-
rativas sobre essa rua, relacionadas às diversas
intervenções urbanas pelas quais esse trecho da
cidade passou e aos corpos e situações presentes
na fotografia: as mesas do bar, o parque infantil,
o homem que passeia com cachorro, a mulher
na janela, o piso em pedra portuguesa, o piso
em bloco intertravado… Corpos e situações que
nos convidam lembrar, escolher e contar muitas
outras narrativas para a Sete. E é com tais nar-
rativas que pretendemos somar à mesa.

A Rua Sete de Setembro de Vitória nem sempre


possuiu esse nome. Até 1872 era chamada de Rua
da Várzea e se caracterizada por uma rua sem
calçamento que ligava o chafariz da Fonte Grande
à área alagadiça formada pela várzea do Córrego
do Reguinho. A denominação de Rua Sete de Se-
tembro foi dada em comemoração aos 50 anos da
data escolhida como emblema da independência
do Brasil. Apesar do nome dado oficialmente, ela
continuou a ser referida como Rua da Várzea em
16º SHCU publicações nos jornais e mesmo em escritos
30 anos . Atualização Crítica
oficiais, como ofícios e relatórios de fiscaliza-
926 ção. Além da mudança do topônimo, no final do
século XIX, a rua passou a receber intervenções destinada as suas brincadeiras. A princípio, não
infra estruturais, como a canalização do Córrego havia setorização da praça e em maio de 1977,
do Reguinho e o aterramento da área alagadiça. um jornal local denunciava a ausência de brin-
Foram essas intervenções, e não a mudança de quedos infantis. Entretanto, essa ausência não
nome, que apagaram o sentido geomorfológico comprometeu a movimentação da praça, que era
de várzea. intensa desde o início da manhã, com crianças em
suas bicicletas, velocípedes, carrinhos ou pulando
Essa breve descrição traz alguns indícios das de banco em banco, além da prática do futebol.
tentativas nacionais de anular as características Apenas no final da década de 1980 é que a área
coloniais nas cidades e propagar símbolos de ganhou a configuração atual: mesas de dama/
uma nova civilidade. Em Vitória, tais movimentos xadrez para os idosos, parquinho infantil com
foram traduzidos em aterramentos, retificações balanço, escorregador e gangorra para os mais
de traçado viário e alterações de toponímias. novos, área cercada e com traves para todas as
idades. A crítica sobre a demolição do Paço Muni-
Nas primeiras décadas do século XX, a Rua Sete cipal ressurgiu nesse momento, quando o piso da
de Setembro recebeu novas intervenções, dessa área reservada para o futebol recebeu o desenho
vez com maior retificação, alargamento e obras da fachada cravado em pedras portuguesas.
destinadas ao trânsito de bondes, à melhoria das
condições de salubridade, e à busca por uma es- Uma interrupção do trânsito de veículos na rua du-
tética das “vias públicas modernizadas”. Por outro rante o período de obras de drenagem na década
lado, os bondes, ao mesmo tempo em que eram de 1960 e da demolição da Prefeitura na década de
meio de transporte, eram usados como diversão 1970 abriu caminhos para transformação da Rua
da garotada. As crianças da região tomavam os Sete em rua de pedestres. Após um curto período
veículos na Rua Sete, contornavam a Praça Costa de experiência, o trecho compreendido entre
Pereira e saltavam logo em seguida só para im- duas praças, Praça Costa Pereira e Praça Ubaldo
plicar com o condutor. Além da brincadeira com Ramalhete Maia, tornou-se em 1977 a primeira
os bondes, a turma se reunia para jogar futebol rua de pedestres da cidade, com calçamento em
ao redor do Paço Municipal, uma edificação re- pedras portuguesas, canteiros e bancos. E serviu
formada e inaugurada com um pomposo baile em de referência para implantação de outras ruas
1926. A quadra para o jogo de futebol era marcada de pedestres/calçadões em Vitória e no interior
diretamente no piso em paralelepípedo da área do Estado. Logo, o calçadão se tornou o espaço
recém-aberta após demolição de edificações ideal para prolongamento das mesas e cadeiras
para ampliar o traçado viário e, ao mesmo tempo, de bares e lanchonetes da Rua Sete, tal como na
destacar a nova edificação-sede da administra- fotografia que abriu esse resumo.
ção municipal.
Atualmente, a Sete é caracterizada pela boêmia
Era dessa área que meninos e meninas corriam das mesas dispostas na rua de pedestres. As
dos policiais e de suas advertências, passando por galerias continuam lá, com parte de suas lojas
dentro das novas galerias comerciais. A partir da ocupadas e partes vazias. A praça também ocu-
década de 1950, a Rua Sete passou a ter grande pada pelas crianças em brincadeiras que não se
importância comercial para a cidade, induzido ou limitam ao parquinho ou à quadra. A Rua da Várzea,
induzindo a construção de galerias comerciais por sua vez, insiste em se fazer lembrar todas as
e lojas localizadas no térreo de edifícios de uso vezes que o córrego do Reguinho transborda as
misto. galerias existentes sob a pavimentação, reafir-
mando sua localização e topografia enquanto um
Já em 1973, a construção de uma nova sede ad- talvegue natural de drenagem das águas.
ministrativa para Prefeitura Municipal, localizada
em Bento Ferreira - bairro de expansão urbana da
cidade - justificou a demolição do Paço Municipal.
Ocorreu que a área foi mantida sem edificações e
transformada em praça, a Praça Ubaldo Ramalhe-
te Maia. Se antes as crianças brincavam ao redor
da edificação, após sua demolição toda a área foi
EIXO TEMÁTICO 2 Ambições republicanas e disputas sociais:
a Praça Sete de Setembro e a reconfIguração
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES dos espaços públicos em Belo Horizonte

Além de expressar uma intensa movimentação


política, a inauguração da Praça Sete de Setem-
bro em 1922 e a instalação do obelisco em 1924
são fundamentais para entender o movimento
de reconfiguração dos espaços públicos em Belo
Horizonte, e a transformação conceitual no en-
tendimento de praças, parques e jardins. Nesta
comunicação pretendo pautar as ambições re-
publicanas e as disputas sociais relacionadas ao
movimento comemorativo nas primeiras décadas
do século XX.

Entre 1897 e 1922, esse espaço público perma-


neceu aberto e vazio, denominado “Doze de Ou-
tubro”, em homenagem à chegada do navegador
Cristóvão Colombo ao continente americano, uma
referência objetiva ao passado colonial malquisto
pelos republicanos. Na década de 1920, devido às
comemorações do centenário da independência
do país, os republicanos mineiros foram questio-
nados sobre qual seria o seu feito comemorati-
vo, já que nas outras capitais as comemorações
estariam sendo anunciadas. Em 1921, colunistas
do Diário de Minas (1921, p. 2) já se manifestavam
em tom de denúncia “que em Minas, ainda nada
se fez ou se procurou fazer em tal sentido, nem
mesmo uma dessas vibrantes e inúteis reuniões
de intellectuais em que se discutem e se apro-
vam vastos planos, para nao serem executados”
e que, “certamente, o nosso grande Estado não
quererá ver passar o centenário de uma data tão
culminante na nossa história, sem fazer alguma
cousa que testemunhe a sua cooparticipação no
enthusiasmo nacional”.

Circunscrito nesse momento político o contraste


entre a quantidade de praças previstas na planta
geral de 1895 e a quantidade e forma das praças
existentes em 1930 chamou a atenção para a noção
de público e a maneira como os gestores e a so-
ciedade se referiam aos espaços livres da cidade.
Foi nesse contexto que a Praça Sete de Setembro
apareceu como local emblemático e paradoxal,
fundamental para o entendimento da organização
16º SHCU do espaço urbano da capital mineira, seja por re-
30 anos . Atualização Crítica
fletir as ambições republicanas, seja para expres-
928 sar as disputas sociais pelos espaços públicos.
A área verde proposta por Aarão Reis na zona evidenciava uma hierarquização dos espaços,
urbana da Capital excedia os 900.000m2, mas que correspondeu com a importância que cada um
somente 248.566m2 foram implementadas. Di- dos tipos de logradouros tinha para os diferentes
ferentes das definições de praça e jardim, surge grupos sociais. Ela também ressignificava a
a definição de “praça ajardinada”, que agregava dimensão simbólica dos lugares a partir do ajar-
maior importância à praça pública, criando uma dinamento e da ornamentação. “Público” não era
nova escala de valor no espaço urbano, eviden- simplesmente referência ao acesso, mas à toda
ciando também as tensões sociais. Ela trazia a organização política e social da cidade. Por isso,
preocupação com a educação moral do cidadão leis e decretos trataram de regulamentar o acesso
e todos os preceitos civilizacionais. Já a praça aos lugares públicos, às fachadas (que também
“tradicional” manteve funções urbanas consoli- podem ser entendidas como conectores entre o
dadas na virada do século, voltadas para deslo- interesse privado e o público), e a ocupação do
camento e organização do trânsito de pessoas e território.
veículos. A praça ajardinada era beneficiada pelo
A funcionalidade do espaço público e o despres-
tratamento dado aos jardins: extensão do privado
tígio das elites fizeram com que as praças não
e direito exclusivo, elemento morfologicamente
ajardinadas fossem vistas como menos impor-
simbólico e, ao mesmo tempo, mantenedor das
tantes. As praças cujo valor simbólico e estético
suas funções urbanas pré-estabelecidas.
não era destacado foram as mais afetadas pela
Das 24 praças planejadas pelo engenheiro Aarão transformação morfológica que reduziu os es-
Reis, 16 foram previstas para zona urbana, e 8 paços públicos em elementos de articulação do
para zona suburbana. No entanto, nem todas as trânsito. As praças públicas foram referenciadas,
praças foram construídas de acordo com o plano reconhecidas pelo seu valor simbólico como ele-
de Reis. Alguns locais destinados aos espaços mentos importantes para a vida cívica e cultural
e por sua constituição funcional, mas dentro de
públicos permaneceram como espaços vazios
uma visão utilitária da noção de público e do uso
e abertos, sem qualquer equipamento de lazer.
do espaço, muitas delas se tornaram rotatórias
Outros espaços não foram nem mesmo cons-
ou esquinas com nome de praça.
truídos, ou nomeados de acordo com o previsto.
A grande variação no número de praças entre a
Curiosamente, em 1928, o prefeito Christiano
elaboração do plano da cidade pelo engenheiro
Monteiro Machado publicou em seu relatório uma
Aarão Reis e as existentes na década de 1930
listagem completa de logradouros públicos nas
não poupou os logradouros não ajardinadas, cujo
zonas urbana, suburbana e rural. Constam em sua
acesso era menos restrito. Retomo dois exemplos
listagem 14 praças na zona urbana, duas a me-
muito significativos: a Praça Sete de Setembro,
nos que no plano proposto para Capital em 1894.
palco de manifestações, ponto de ambulantes
Naquele ano, já com expressivo adensamento
e descanso para transeuntes, foi revitalizada e
populacional, a capital apresentava número de
acrescida de um monumento no centenário da
praças, configuração e toponímia diferente dos le-
Independência do Brasil, mas não resistiu à fun-
vantamentos anteriores presentes nos Relatórios cionalização das praças e é até hoje um grande
de Prefeito. Eram 15 praças, sendo 4 delas ajar- cruzamento com poucos equipamentos de lazer
dinadas: Praça Rui Barbosa, Praça da Liberdade, e conforto. A Praça da Liberdade, pelo contrário,
Praça Raul Soares e Praça da Federação - atual permaneceu como símbolo do civismo mineiro,
Praça Carlos Chagas. As demais não estariam lugar para ser frequentado pelos corpos mais
enquadradas na categoria de praças ajardinadas, educados da cidade. Prevaleceu a ordem do mo-
e já estariam em processo de transformação em vimento, mas também a ordem da ambição em
cruzamentos e rotatórias sem equipamentos de fazer o espaço ter valor mais abstrato do que
lazer e conforto, mas sustentando o nome de a sobreposição de duas grelhas quadriculadas
praça. poderia proporcionar.

A noção de público, presente na documen-


tação produzida pelos engenheiros da co-
missão construtora e pela gestão municipal
EIXO TEMÁTICO 2 Rua de baixo, rua da alfândega, rua Nova
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
da Praia, rua Sete de Setembro
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
Entre os anos 2010 e 2012 realizei uma experiência
que apelidei Deriva Parada. Escolhi uma parede
da Rua dos Andradas – a Rua da Praia – para me
encostar e estar disponível ao que acontecesse
comigo, sempre no mesmo dia da semana, no
mesmo horário e duração. Um afeto, uma troca,
uma conversa, um fluxo de pensamento, um olhar.
A escolha foi por atração, depois de perambular
no centro alguns meses, escolhi aquele ponto
mais ou menos central da rua mais central da
cidade, para me encostar, estar disponível e es-
crever imediatamente depois – e nunca durante
- a memória daquele tempo encostada. Desde
o início, a ideia era experimentar o corpo como
superfície de inscrição do que acontecia na rua,
sem a preocupação de trazer a história, mas uma
memória de superfície, da pele, do olhar, do olfato,
da audição. Um corpo na rua, encostado em uma
parede branca, compondo séries diversas a cada
dia, com outros corpos desconhecidos, que tam-
bém se encostavam na parede. E também com
os passantes da rua e com os trabalhadores, com
quem constituí uma relação a partir da repetição
da ação: O anjo, estátua-viva que ficava bem na
minha frente, o vendedor de chips da TIM, o ven-
dedor de ingressos, personagens mais ou menos
transitórios, que testemunham o cotidiano da rua
com propriedade de habitante, principalmente o
anjo, instalado nas mesmas pedras da rua há 16,
todas as tardes, de segunda a sexta-feira.

Estar disponível é um exercício que exige a con-


dição de um eu-pesquisador em crise, um eu
que, por experimentar uma queda de sua con-
dição identitária, pode se conectar com o fluxo
de acontecimentos de outra forma, um pouco
“des-bordado”, ou pelo menos com a experiência
de limiares eu-outro móveis, em crise. A deriva/
perambulação/deambulação foram maneiras de
exercitar essa condição de estar, que fui apren-
dendo da literatura Surrealista, dos jogos Letristas
e do início do Movimento Situacionista, e também
de inúmeros processos de artistas contemporâ-
16º SHCU neos, das reflexões produzidas por Fabiana Dultra
30 anos . Atualização Crítica e Paola Jacques e o conceito de “corpografia”(-
930 JACQUES; BRITTO, 2009), e dos muitos autores
dos eventos Corpocidade2, presentes como um cruzamentos que aconteceram em minhas an-
arquivo de experiências urbanas nas publicações danças no centro.
da revista Redobra3 e outras publicações fruto
dos encontros. São exercícios de apreensão e A primeira parte de uma deriva que pratiquei
intervenção da/na complexidade da cidade con- com um grupo de moradores de rua com quem
temporânea, além de ferramentas para perceber trabalhei ao longo de 8 anos. Eram jornalistas
os processos de subjetivação do tempo-agora. do Jornal Boca Rua4 e nessa época, 2003-2004,
Além disso, recolho elementos de uma psica- fazíamos juntos um vídeo-carta que apresentava
nálise, por sua relação ética com a produção de Porto Alegre para outro grupo de São Paulo. Um
sujeitos, da memória/narração como atualização dos lugares escolhidos pelo grupo foi a praça da
e, portanto, diferença, um trabalho necessário Alfândega, que tem suas origens no final do século
de habitar o tempo por suas zonas de sombras XVIII e é um dos lugares mais emblemáticos da
(AGAMBEN, 2007) rua Sete de Setembro. Através de um relato da
gravação do vídeo, pretendo trazer personagens
A escrita em flashes de memória – para usar uma e temporalidades que habitam o contemporâneo
palavra da literatura de Baudelaire e depois de da praça.
Walter Benjamin, a partir dessa disponibilidade,
trouxe personagens desses movimentos que volta A segunda, parte de um “Passeio” que acompanhei
algumas vezes enquanto frequentava o Mercado
e meia cruzavam com personagens da memória
Público Municipal, um dos limites da Rua Sete de
da história da cidade inscrita em minha própria
Setembro. Trata-se de um ritual de iniciação de re-
história. Essa imensa introdução é para dizer um
ligiões-tradições de Matriz Africana que se realiza
lugar de produção, que parte de um interesse de
em uma encruzilhada das quatro principais portas
alguém que habita bordas disciplinares, mas que
do Mercado onde, segundo inúmeros relatos, foi
tem sua formação inicial em psicologia/psica-
assentado o orixá Bará, que guarda a cidade, abre
nálise/estudos da subjetividade, e que transita
os caminhos e traz fartura. No chão da encruzilha-
os estudos da cidade há algum tempo. A Sete de
da há um mosaico com estão representadas sete
Setembro virá atravessada por tudo isso, por uma
chaves, demarcando um território de memórias
forma narrativa que tem a ver com um modo de
e ancestralidade do povo negro na considerada
experienciar a cidade e ativar memórias que se
terceira cidade mais “branca” do Brasil.
entrelaçam na Rua de Baixo da Rua da Praia, e
que demorou a ter estatuto de rua. Pretendo amarrar essas duas histórias com uma
terceira, um passeio do poeta Mário Quintana, que
Em Porto Alegre, no mesmo dia de 1865 as ruas
viveu parte de sua vida em um hotel entre a Rua da
“Rua Nova da Praia” e “Rua da Praia”, ganharam
Praia e a Rua Sete de Setembro, e foi um incrível
novos nomes: Rua Sete de Setembro e Rua dos
narrador das transformações da cidade e um an-
Andradas. A primeira havia ganho nome oficial
darilho do centro, perspicaz em ver o invisível – ou
alguns anos ante disso, em 1844. Até então, eram
o invisibilizado, e tocar essas histórias silenciadas
nomeados alguns becos por ali, o Beco dos Mari-
com seu caminhar-escrever distraídos.
nheiros e o Beco da Rua Clara. No início do século
XIX, era conhecida apenas como a irregular costa
do Guaíba, ou o quintal das casas da Rua da Praia.
Muitos processos da urbanização e das trans-
formações da cidade aconteceram na Rua Sete
e para contribuir com esse mosaico, vou contar
duas histórias que puxei do engate das minhas
memórias com a história da cidade, respeitando

2. Promovidos pelos grupos Laboratório Urbano e Labzat


(UFBA) desde 2008, conta com 6 edições.
4. Jornal pautado, escrito e fotografado pelo povo da rua,
3. Revista Redobra é uma publicação dos grupos de pesquisa circula em Porto Alegre desde 2001. É um projeto da ALICE,
Laboratório Urbano e Labzat (UFBA). disponível em: <https://www.alice.org.br/>.
EIXO TEMÁTICO 2 REFERÊNCIAS
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
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30 anos . Atualização Crítica
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da Bahia, Faculdade de Arquitetura. Salvador,
2016.
EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Esta mesa reúne pesquisadores da história ur-
bana, que em suas pesquisas recentes, buscam
elaborar novos problemas e revisitar diferentes
mesa temática lugares da cidade de São Paulo. Os trabalhos
utilizam-se da literatura, da cartografia, do le-
vantamento de plantas arquitetônicas, fotogra-
AS RUAS DE SÃO PAULO E fias e de outros documentos para estudar as
dinâmicas sociais imbricadas na materialidade,
SEUS ATORES: UMA ESCALA tendo a rua como o espaço que centraliza as vá-
rias formas de habitar a cidade. A rua enquanto
PARA A HISTÓRIA DA CIDADE espaço de sociabilidade, que se deixa construir
por seus personagens ao mesmo tempo em que
conforma as atividades que catalisa ao seu re-
THE STREETS OF SÃO PAULO AND ITS ACTORS: A
dor. A escala da rua privilegia as trajetórias dos
SCALE OF ANALYSIS FOR THE HISTORY OF THE CITY
atores sociais e sua formação identitária, na
medida em que desvela a paisagem urbana atra-
LAS CALLES DE SÃO PAULO Y SUS ACTORES: UNA
vés da rotina de seus personagens e da maneira
ESCALA DE ANÁLISIS PARA LA HISTORIA DE LA
como eles transitam e constroem suas trajetó-
CIUDAD
rias pela cidade.

CASTRO, Ana Claudia Veiga de Em seu texto seminal “Arquitetura, Geografia,


História: usos da escala”, Bernard Lepetit asso-
Doutora; Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
ciou a escolha de escala de análise na historio-
Universidade de São Paulo (FAUUSP)
anacvcastro@usp.br grafia com a delimitação de seu escopo. Em di-
ferentes escalas, um mesmo objeto mostra-se
CESARINO, Gabriela Krantz
de forma diferente, ao mesmo tempo suscitan-
Mestre; Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da do diferentes problemáticas e permitindo dife-
Universidade de São Paulo (FAUUSP)
rentes enquadramentos analíticos. Perguntar a
gcesarino@hotmail.com
extensão da costa de uma nação, por exemplo,
ANDRADE, Stephanie Silveira Guerra de é uma questão que permite várias respostas.
Mestre; Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Com uma lente ampla, pode-se observar uma
Universidade de São Paulo (FAUUSP) única costa, totalizante. Contudo, com maior
steguerra@gmail.com
proximidade, pode-se ver baías e penínsulas, e
em escalas muito pequenas o próprio conceito
CARNEIRO, Elisa Zocca de costa pode deixar de ser pertinente e opera-
Graduanda; Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da tivo. Assim, a escolha de uma escala, voluntá-
Universidade de São Paulo (FAUUSP) ria ou involuntariamente, é fundamental para a
elisa.carneiro@usp.br
pesquisa histórica, pois determina “a escolha de
um ponto de vista de conhecimento” (LEPETIT,
2001, p. 214).

Esta Mesa Temática define a escala da rua como


uma escala privilegiada para discutir e analisar
os fenômenos urbanos. Na rua, binômios dis-
solvem-se em tramas mais complexas. Emer-
gem conflitos e disputas interseccionais entre
16º SHCU classes, raças, gêneros e etnias, bem como há
30 anos . Atualização Crítica
inusitadas parcerias, apropriações, tensões e
934 subversões. No espaço da rua, os movimentos
cotidianos se sobressaem, revelando sob ou- século XX, acompanhando as mudanças da rua,
tros ângulos os eventos espetaculares da ci- de seus edifícios e de sua ocupação. Ao longo
dade e dando vida a agentes até então menos desse período, a rua Augusta se deixou fazer
referenciados na historiografia: setores médios pelos bairros adjacentes, ao mesmo tempo em
e populares, pequenos proprietários, peque- que impôs sua própria dinâmica, conectando e
nos empreiteiros e empresários, comercian- catalisando os movimentos que a construíram e
tes, entre outros. Abre-se espaço para outras que a tornaram palco e protagonista na cidade
interpretações nas relações entre diferentes de São Paulo. Nascendo em torno de 1875 nos
grupos, gêneros, raças, classes e poderes que limites da área central, esta rua expandiu-se até
construíram a cidade. os anos 1920 na direção sul, cruzando a Avenida
Paulista e percorrendo em seus três quilôme-
As quatro pesquisas aqui apresentadas buscam tros de extensão os bairros da Bela Vista, Con-
reconstituir tramas urbanas que deram forma a solação e Cerqueira César.
São Paulo a partir da análise de ruas, vilas e cir-
cuitos abordados na literatura. Por meio delas, Em “Imigrações, roupas e edifícios: a rua José
percebe-se que as categorias homogeneizan- Paulino na metropolização de São Paulo”, a his-
tes de bairro operário, bairro de elite, vazios ur- tória da rua é entremeada às histórias de duas
banos, zona industrial, zona habitacional, cen- confecções nela sediadas. O texto mostra como
tro e periferia perdem potência explicativa. As a materialidade da via passou por modificações
fronteiras rígidas, que separam categorias, es- -com a demolição de antigos imóveis e a cons-
paços e grupos ganham contornos movediços trução de novos edifícios- a partir de recursos
e porosos. Ao invés de blocos homogêneos, os advindos da principal atividade econômica pre-
espaços da cidade passam a ser ocupados por sente neste território: a produção e venda de
uma miríade de dinâmicas e trajetórias multi- roupas prontas. Assim, são identificados os
principais agentes dos processos de urbaniza-
facetadas e diversas. Trajetórias profissionais,
ção e verticalização da rua possibilitados pela
individuais, familiares, de grupos, que deixam
transformação do capital das confecções em
de habitar uma cidade pré-existente, pano de
capital imobiliário.
fundo de suas ações, e são encarados como
produtores dessa cidade, figuras que fazem seu
próprio fundo com seus movimentos.
A Rua Teodoro Sampaio é analisada no texto “Vi-
No texto “Os sentidos da rua em João Antonio: las particulares de casas em série: um estudo
três malandros na noite de São Paulo” - o trajeto da Vila Cândida” através do conjunto de casas
se desenha a cada parada, percorrendo-se ruas geminadas voltadas para uma via particular.
e bares, da Lapa até o centro, e de lá até Pinhei- Analisando os produtores do espaço - constru-
ros. Nesse caminhar por uma cidade que escu- tores, proprietários e moradores da vila durante
rece, a casa (ou o mundo doméstico) é o espaço a primeira metade do século XX - é possível com-
de sombra, quase nunca nomeada, lembrada preender como essa específica forma de morar
apenas nos momentos em que as coisas se en- caracteriza os setores médios que habitavam
rolam. Os três “viradores” que nomeiam o conto o bairro de Pinheiros durante o período. A Vila
aqui analisado: Malagueta, Perus e Bacanaço, Cândida possibilita perceber como em um mes-
estão na rua, vivem a rua, são iluminados por ela. mo espaço convivem diversos papéis e dinâmi-
Busca-se nesta leitura flagrar algumas dinâmi- cas sociais possibilitadas pela configuração das
cas sociais e urbanas de São Paulo da década casas em “vila”, em meio ao processo de metro-
de 1960, que se revelam nos usos desse espaço polização que a cidade passava no século XX.
particular da cidade - a rua - que liga, ao mes-
mo tempo que separa, bairros, casas, gentes. Reconhecer estes movimentos - que não foram
intencionalmente documentados - configuran-
No texto “Os armazéns de Secos & Molhados na do um campo analítico, implica em necessaria-
Rua Augusta”, essa rua é observada por meio mente mobilizar uma pluralidade de fontes e co-
das transformações desses armazéns que ali locá-las em diálogo para reconstruir o espaço
se instalaram durante as primeiras décadas do na sua materialidade e nas práticas sociais que
EIXO TEMÁTICO 2 o instituem. Para tanto, o paradigma indiciário
proposto por Carlo Ginzburg (1989) mostra-se de
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS grande valia: é na análise minuciosa de jornais,
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES textos literários, pedidos de obra, desenhos
técnicos, atas camarárias, registro de impostos
e fotografias que os pesquisadores coletam os
diversos indícios e fragmentos que, justapostos
e entrecruzados, os permitem penetrar nos in-
terstícios das tramas cotidianas da cidade. E a
partir da vivacidade de suas ruas, repensar as
dinâmicas de modernização de São Paulo.

Nesse sentido, discute-se também com a pró-


pria historiografia, que variou as escalas de
análise, em função dos temas e problemas en-
frentados, percorrendo da escala territorial
até a do bairro e produzindo análises que aca-
baram por fixar certas explicações. Na escala
territorial, leituras em torno das relações entre
o desenvolvimento econômico da capital e sua
posição geográfica na trama produtiva regional
(PRADO JR., 1941; MONBEIG, 1953; AZEVEDO,
1958; AB’SÁBER, 1957) acabaram acentuando a
perspectiva de um desenvolvimento urbano ra-
dioconcêntrico, desde os caminhos coloniais.
Na escala totalizante do espaço urbano, surgiu
da bibliografia uma cidade na qual o processo de
modernização teria acontecido por substitui-
ções, como indica a imagem canônica conden-
sada pela expressão três cidades em um século,
cunhada por Benedito Lima de Toledo (1981) em
seu livro homônimo. E ainda uma cidade organi-
zada desde esquemas binários e contrastantes:
centro x periferia, público x privado, elites x ope-
rários, indústria x casa. Nessa escala, prioriza-
ram como agentes o poder público, as elites, os
grandes proprietários, as grandes empresas, e
a atuação dos saberes especialistas (FELDMAN,
2005; CAMPOS NETO, 2000). Quando a escala se
reduzia aos bairros, privilegiou-se identidades
homogêneas, peculiaridades culturais de suas
diferentes classes e grupos, que permitiram,
como em um mosaico, apreciar a multiplicida-
de de peças que compuseram a vida da cidade:
a vida dos operários, das elites, dos imigran-
tes, etc (HOMEM, 1980; WOLFF, 2001; MEYER &
GROSTEIN, 2010).

As pesquisas dessa Mesa fazem parte de um


16º SHCU projeto mais amplo de reflexão coletiva, apre-
30 anos . Atualização Crítica
sentado nessa edição do Seminário de História
936 da Cidade e do Urbanismo em duas mesas e em
oito textos, que fazem parte desse largo cami- ABSTRACT
nho de reflexão, para pensar interpretações que
só parecem ser possíveis ao se reduzir o foco
à escala da rua - mostrando uma cidade cons- This panel brings together researchers of urban
truída passo a passo, lote a lote, rua a rua, sem history who in recent research projects seek to
sentido unívoco e consensual pré-estabelecido. revisit known themes and also elaborate on new
Uma cidade na qual o processo de moderniza- questions about different places in the city of São
ção acontecia por justaposições e não por subs- Paulo. These essays use literature, cartography,
tituições, que não foi estritamente radial, mas architectural plans, photographs and other histo-
que parece ter sido polinuclear e multidirecio- ric documents to study the social dynamics inter-
nal, e cujos grupos sociais ocupavam espaços twined within the materiality of urban space, using
de modo menos estanque, mas mais dinâmico the street as the center of various means of inha-
e misturado. biting the city. The street is considered a space of
sociability, built by its characters and at the same
time shaped by the activities within it. The scale of
SÃO PAULO CIDADE MODERNIDADE the street allows for a window onto the paths of the
social actors and the formation of their identities,
as much as it unveils the urban landscape through
the analysis of the routine of the inhabitants as they
configure their trajectories throughout the city.

In his seminal essay “Architecture, Geography, His-


tory: uses of scale”, Bernard Lepetit associated
the choice of the scale of analysis in historiography
with the delineation of its scope. At different scales,
the same object is seen differently and therefore it
raises different problems and allows for different
analytical frameworks. The length of a nation’s co-
ast, for example, is a question that allows for seve-
ral answers. Through a wide lens, you would see a
single, unified coast. However, in closer range, one
would be able to see bays and peninsulas and at a
very small scale, the concept of coast itself might
no longer be relevant or operative. Thus, voluntarily
or involuntarily, the choice of scale is fundamental
to historical research; it determines “the choice
of viewpoint of knowledge” (LEPETIT, 2001, p. 214).

This Thematic Panel adopts the scale of the stre-


et as a strategic viewpoint for the discussion and
analysis of urban phenomena. On the street, bi-
nary interpretations dissolve into more complex
associations. Intersectional conflicts and dispu-
tes emerge between classes, races, genders and
ethnicities, as well as unexpected partnerships,
appropriations, tensions and subversions. On
the space of the street, daily movements reveal
themselves and disclose different aspects of the
spectacles of the city and give life to the less stu-
died characters in historiography: the middle and
lower class people/inhabitants, small landowners,
trades people, small contractors, businessmen,
EIXO TEMÁTICO 2 among others, opening room for new interpre-
tations of the relationships between different
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS groups, genders, races, classes and the powers
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES that shape the city.

We investigate the streets of São Paulo in an effort


to understand how the actors and their trajectories
shaped the city. The research shows that the terms
that homogenize neighborhoods into categories
such as working class or elite neighborhoods, ur-
ban voids, industrial zones, housing zones, center
and periphery derail the complexity of urban pla-
ces. From the perspective of the street, the rigid
borders, which separate categories, spaces and
groups dissolve and take on shifting, porous forms
and instead of homogeneous blocks, city spaces
reveal a myriad of dynamics with multifaceted and
diverse trajectories. Professionals, individuals, fa-
milies and groups are no longer seen as inhabitants
of a pre-existing city, which could be seen merely
as the backdrop of their actions, instead they are
seen as producers of that city, as figures that sha-
pe their background with their own movements.

In “The meanings of street in João Antonio: three


drifters in the night of São Paulo”, an essay that dis-
cusses João Antonio’s story, the route through the
city is drawn as the characters move through the
streets and bars from Lapa to Center City and on to
Pinheiros. In this walk across a darkening city, the
home (or the domestic world) is the space of sha-
dow, almost never named and only remembered in
moments of trouble. The three drifters of the story,
Malagueta, Perus and Bacanaço, are on the street,
live the street and are also illuminated by it. This in-
terpretation seeks to capture the social and urban
dynamics of São Paulo in the 1960s, revealed in the
uses of a particular space of the city - the street
- that connects and at the same time separates,
neighborhoods, houses, people.

The transformations of Rua Augusta during the


first decades of the 20th century are analyzed
in the essay “The general stores of Rua Augusta”
through the study of the architecture that hosted
this traditional retail segment. The analysis of buil-
ding typology and lot configuration is combined
with the stories of the owners of these commer-
cial establishments and the inhabitants of Rua
16º SHCU Augusta. The essay sheds light on the connections
30 anos . Atualização Crítica
between different scales of analysis, including the
938 social use of the buildings, the territorial occupa-
tion of the street and the modernization and eco- itself, which changed the scales of analysis, depen-
nomic globalization of the city. ding on the themes and the problems faced: from
the territorial scale to that of the neighborhood,
The essay “Private vilas, houses in series: a study producing analyses that set certain explanations.
of Vila Cândida” examines a vila, a set of semi-de- On the territorial scale, readings about the rela-
tached houses built around a private street inside tionship between the economic development of the
the block, located on Rua Teodoro Sampaio. The capital and its geographical position in the regional
study of the creators of Vila Cândida – its builders, productive network (PRADO JR., 1941; MONBEIG,
owners and residents during the first half of the 1953; AZEVEDO, 1958; AB’SÁBER, 1957) ended up
20th century – allows for an understanding of the accentuating the perspective of the development
particular way of living characteristic/typical of of São Paulo from a colonial pathway network into
the middle-class that inhabited the Pinheiros nei- a radio-centric city. At the overarching scale or
ghborhood during that period. The study of Vila urban space, the bibliographical references im-
Cândida, a rowhouse village, reveals the different ply that the modernization process happened by
roles and the social dynamics that coexisted in substitutions, as Benedito Lima de Toledo indica-
that place amid the process of São Paulo’s 20th tes in his “Three Cities in a Century” book (1981). And
century metropolization. yet we recognize that the bibliography has been
organized by binary and contrasting schemes:
In the essay “Immigrations, clothes and buildings: center vs. periphery, public vs. private, elites vs.
Rua José Paulino in the metropolization of São workers, industry vs. home. At this scale, the prio-
Paulo”, the history of the street is interspersed ritized agents included public power, the elites, lar-
with the stories of two garment factories based ge landowners, large companies, and the specia-
Rua José Paulino. The research shows how the lists (FELDMAN, 2005; CAMPOS NETO, 2000). When
materiality of this street has undergone modifica- the scale was reduced to the neighborhood level,
tions - with the demolition of old buildings and the homogeneous identities and the cultural peculiari-
construction of new buildings – supported by the ties of the different social classes and groups were
main economic activity present in this territory: studied. This approach, as in a mosaic, allowed
the production and sale of ready-made garments. for the appreciation of the multiplicity of pieces
The paper concludes that the urbanization and the that made up the life of the city: the life of the
verticalization processes of this street were made workers, the elites, the immigrants, etc. (HOMEM,
possible by the transformation of clothing capital 1980; WOLFF, 2015; MEYER & GROSTEIN, 2010).
into real estate capital.
These essays presented for this year’s edition of
The recognition of these movement - which were the City History and Urbanism Seminar in two pa-
not intentionally documented - configures an nels and in eight texts, are part of a broad path
analytical field that certainly implies in the mobi- of reflection, to think of interpretations that only
lization/gathering of a plurality of sources. These seem possible as the focus is reduced to the scale
multiple sources establish a dialogue which allows of the street, therefore displaying a city that was
for the reconstruction of the space in its materia- built step by step, lot by lot, street by street, with no
lity and of its social practices. The indiciary pa- univocal meaning and pre-established consensus.
radigm proposed by Carlo Ginzburg (1989) proves A city in which the modernization process took pla-
to be of great value: it is the thorough analysis of ce through juxtapositions instead of substitutions
newspapers, literary texts, work orders, techni- -, which was not strictly radial, but which appears
cal drawings, town hall minutes, tax records and to have been polynuclear and multidirectional, and
photographs that allows researchers to collect whose social groups occupied spaces less tightly,
several evidences and fragments that, juxtaposed but in a more dynamic and mixed manner.
and intertwined, allow for the penetration into the
interstices of the daily plots/story/mesh of the city.
And through the liveliness/vivacity of São Paulo SÃO PAULO CITY MODERNITY
streets, it is possible to rethink the dynamics of the
city’s modernization.

The papers of the panel also debate historiography


EIXO TEMÁTICO 2 RESUMEN
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Esta sesión reúne a científicos de la historia urba-
na que, en sus investigaciones recientes, buscan
elaborar nuevos problemas y volver a examinar
diferentes lugares de la ciudad de São Paulo. Los
textos utilizan literatura, cartografía, estudios de
planos arquitectónicos, fotografías y otros docu-
mentos para estudiar la dinámica social entrela-
zada con la materialidad, tomando la calle como
el espacio que centraliza las diversas formas de
habitar la ciudad. La calle como espacio de socia-
bilidad, que se deja construir por sus personajes
al mismo tiempo que forma las actividades que
catalizan a su alrededor. La escala de la calle pri-
vilegia las trayectorias de los actores sociales y
su formación de identidad, en la medida en que
revela el paisaje urbano a través de la rutina de
sus personajes y la forma en que se mueven y
construyen sus trayectorias a través de la ciudad.

En su texto seminal “Arquitectura, geografía, his-


toria: usos de la escala”, Bernard Lepetit asoció la
elección de la escala de análisis en la historiogra-
fía con la delimitación de su alcance. A diferentes
escalas, el mismo objeto se muestra de manera
diferente, al mismo tiempo que plantea diferen-
tes problemas y permite diferentes marcos ana-
líticos. Preguntarse sobre la longitud de la costa
de una nación, por ejemplo, es una cuestión que
permite varias respuestas. Con una lente amplia,
puede verse una única costa totalizadora. Sin
embargo, con mayor proximidad, se pueden ver-
se bahías y penínsulas, y, además, en escalas muy
pequeñas, el concepto de costa en sí ya no puede
ser relevante y operativo. Por lo tanto, la elección
de una escala, voluntaria o involuntaria, es fun-
damental para la investigación histórica, ya que
determina “la elección de un punto de vista del co-
nocimiento” (LEPETIT, 2001, p. 214).

Esta sesión temática define la escala de la calle


como la escala privilegiada para discutir y anali-
zar fenómenos urbanos. En la calle, los binomios
se disuelven en tramas más complejas. Surgen
conflictos y disputas interseccionales entre cla-
ses, razas, géneros y etnias, así como asocia-
ciones, apropiaciones, tensiones y subversiones
16º SHCU inusuales. En el espacio de la calle, se destacan
30 anos . Atualização Crítica
los movimientos diarios, que revelan desde otros
940 ángulos los eventos espectaculares de la ciudad
y dan vida a agentes hasta ahora menos referen- das del siglo XX, siguiendo los cambios en la calle,
ciados en la historiografía: sectores medianos y sus edificios y su ocupación. A lo largo de este pe-
populares, pequeños terratenientes, pequeños riodo, la calle Augusta se dejó llevar a cabo en los
contratistas y empresarios, comerciantes, entre barrios adyacentes, al mismo tiempo que impuso
otros. Abre espacio para otras interpretaciones su propia dinámica, conectando y catalizando los
en las relaciones entre diferentes grupos, géne- movimientos que la construyeron y que la convir-
ros, razas, clases y poderes que construyeron la tieron en escenario y protagonista de la ciudad.
ciudad. Nacida alrededor de 1875 en las afueras de la área
central, esta calle se expandió hasta la década de
Las cuatro comunicaciones aquí presentadas 1920 en dirección sur, cruzando la Avenida Paulis-
buscan reconstruir las parcelas urbanas que die- ta y cubriendo sus tres kilómetros en los barrios
ron forma a São Paulo a partir del análisis de cal- de Bela Vista, Consolação y Cerqueira César.
les, pueblos y circuitos cubiertos en la literatura.
A través de ellos, se observa que las categorías En “Inmigraciones, ropa y edificios: la calle José
homogeneizadoras como barrio de la clase tra- Paulino en la metrópolis de São Paulo”, la historia
bajadora, barrio de élite, vacíos urbanos, zona de la calle se entremezcla con las historias de dos
industrial, zona de viviendas, centro y periferia negociantes basados allí. El texto muestra cómo
pierden poder explicativo. Los bordes rígidos, que la materialidad de la calle ha sufrido cambios,
separan categorías, espacios y grupos, adquie- con la demolición de edificios antiguos y la cons-
ren una forma cambiante y porosa. En lugar de trucción de edificios nuevos, a partir de recursos
bloques homogéneos, los espacios de la ciudad derivados de la principal actividad económica
ahora están ocupados por una miríada de diná- presente en este territorio: la producción y ven-
micas y trayectorias multifacéticas y diversas. ta de ropa confeccionada. Así, se identifican los
Trayectorias profesionales, individuales, familia- principales agentes de los procesos de urbaniza-
res y grupales que no habitan una ciudad pree- ción y verticalización de la calle, posibles gracias
xistente, como el telón de fondo de sus acciones, a la transformación del capital de la confección
pero que son vistos como productores de esa ciu- en capital inmobiliario.
dad, figuras que hacen su propio fondo con sus
movimientos. La calle Teodoro Sampaio es analizada en el texto
“Villas privadas de casas en serie: un estudio de la
En el texto “Sentidos de la calle en João Antonio: Vila Cândida” a través de un conjunto de casas en
tres bribones en la noche de São Paulo” - la ruta una calle privada. Analizando los productores es-
se dibuja en cada parada, pasando por calles y paciales, constructores, propietarios y residentes
bares, desde la Lapa hasta el centro, y desde allí de la vila durante la primera mitad del siglo XX, es
hasta Pinheiros. En este paseo por una ciudad posible comprender cómo esta forma de vida es-
cada vez más oscura, la casa (o el mundo domés- pecífica caracterizava a los sectores medios que
tico) es el espacio de la sombra, casi nunca nom- habitaron el barrio de Pinheiros durante el perío-
brado, recordado solo en los momentos en que do. El análisis de la Vila Cândida permite percibir
las cosas se enredan. Los tres “viradores” que cómo en el mismo espacio coexisten diferentes
nombran la historia analizada aquí: Malagueta, roles y dinámicas sociales, posibles gracias a la
Perus y Bacanaço, están en la calle, viven la calle, configuración de las casas, en medio del proceso
se iluminan desde ella. Esta lectura busca captu- de metropolización que atravesó la ciudad en el
rar algunas dinámicas sociales y urbanas de São siglo XX.
Paulo en la década de 1960, que se revelan en los
usos de este espacio particular de la ciudad, la Reconocer estos movimientos, que no se docu-
calle, que conecta, al mismo tiempo que separa, mentaron intencionalmente, para configurar un
barrios, casas, personas. campo analítico implica necesariamente movili-
zar una pluralidad de fuentes y ponerlas en diálo-
En el texto “Los almacenes de Secos y Molhados go para reconstruir el espacio en su materialidad
en la Rua Augusta”, esta calle es observada a tra- y en las prácticas sociales que lo instituyen. Para
vés de las transformaciones de estos almacenes eso, el paradigma indiciario propuesto por Carlo
que se instalaron allí durante las primeras déca- Ginzburg (1989) es de gran valor: es en el análisis
EIXO TEMÁTICO 2 exhaustivo de periódicos, textos literarios, pedi-
dos de obras, dibujos técnicos, actas de ayunta-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS mientos, registros de impuestos y fotografías que
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES los investigadores los recopilan. Varias indicacio-
nes y fragmentos que, yuxtapuestos y entrelaza-
dos, les permite penetrar en los intersticios de las
parcelas diarias de la ciudad. Y desde la vitalidad
de sus calles, les permite reconsiderar la dinámi-
ca de la modernización en São Paulo.

En este sentido, también se discute con la his-


toriografía, que varió las escalas de análisis, de-
pendiendo de los temas y problemas enfrenta-
dos, pasando de la escala territorial a la del barrio
y produciendo análisis que terminaron fijando
ciertas explicaciones. En la escala territorial,
las lecturas sobre la relación entre el desarrollo
económico de la capital y su posición geográfica
en la red productiva regional (PRADO JR., 1941;
MONBEIG, 1953; AZEVEDO, 1958; AB’SÁBER, 1957)
constituyeron la perspectiva de un desarrollo ur-
bano radioconcéntrico, desde caminos colonia-
les. En la escala totalizadora del espacio urbano,
surgió de la bibliografía una ciudad en la que el
proceso de modernización habría sucedido por
sustituciones, como lo indica la imagen canónica
condensada por la expresión “tres ciudades en un
siglo”, creada por Benedito Lima de Toledo (1981)
en su libro homónimo. Una ciudad organizada
a partir de esquemas binarios y contrastantes:
centro x periferia, público x privado, élites x tra-
bajadores, industria x hogar. En esta escala, se
priorizó como agentes el poder público, las élites,
los grandes terratenientes, las grandes empresas
y el desempeño de conocimientos especializados
(FELDMAN, 2005; CAMPOS NETO, 2000). Cuan-
do la escala se redujo a barrios, se privilegiaron
las identidades homogéneas, las peculiaridades
culturales de sus diferentes clases y grupos, lo
que permitió, como en un mosaico, apreciar la
multiplicidad de piezas que componían la vida de
la ciudad: la vida de los trabajadores, las élites,
inmigrantes, etc. (HOMEM, 1980; WOLFF, 2001;
MEYER & GROSTEIN, 2010).

Las investigaciones aquí presentadas son parte


de un proyecto de reflexión colectiva más amplio,
presentado en esta edición del Seminario en dos
sesiones y en ocho textos, parte de este amplio
16º SHCU camino de reflexión, para pensar en interpreta-
30 anos . Atualização Crítica
ciones que solo parecen ser posibles reduciendo
942 el enfoque a la escala de la calle, mostrando una
ciudad construida paso a paso, lote por lote, calle
por calle, sin significado unívoco y consenso pre-
establecido. Una ciudad en la que el proceso de
modernización se llevó a cabo a través de yuxta-
posiciones y no sustituciones, que no era estric-
tamente radial, mostrando haber sido polinuclear
y multidireccional, y cuyos grupos sociales ocu-
paron espacios menos apretados, pero más diná-
micos y mixtos.

SÃO PALO CIUDAD MODERNIDAD


EIXO TEMÁTICO 2 OS SENTIDOS DA RUA EM JOÃO ANTÔNIO:
TRÊS MALANDROS NA NOITE DE SÃO PAULO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
Se a literatura é capaz de plasmar a vida social, os
contos de João Antonio cumprem com maestria
mesa temática a tarefa de responder à própria sociedade da qual
são frutos. Não no sentido dos escritores realistas
do século 19, mas na sua própria forma, como já
AS RUAS DE SÃO PAULO E disse Antonio Candido no prefácio à obra, em

SEUS ATORES: UMA ESCALA


“sua capacidade de criar linguagem a partir do
que se fala no dia a dia”. Pois que “escritos numa

PARA A HISTÓRIA DA CIDADE prosa dura, reduzida às frases mínimas, rejeitando


qualquer ‘elegância’, é adequada a representar a
força da vida” (CANDIDO, 2004, p.13-14). Um desses
THE STREETS OF SÃO PAULO AND ITS ACTORS: A contos, “Malagueta, Perus e Bacanaço”, publicado
SCALE OF ANALYSIS FOR THE HISTORY OF THE CITY no livro de estreia do escritor em 1963, acompanha
três malandros, um velho já cambaleante, o jovem
LAS CALLES DE SÃO PAULO Y SUS ACTORES: UNA aprendiz e o rufião em plena forma, que juntos
ESCALA DE ANÁLISIS PARA LA HISTORIA DE LA percorrem as ruas da cidade até o amanhecer
CIUDAD (ANTONIO, 2004).

Da Lapa – onde os três se encontram no fim do dia


– seguem Água Branca, Barra Funda, Paissandú,
chegando na cidade. Cruzam o vale, recorrem o
centro velho e de lá sobem para Pinheiros, para
dali, dia claro, retornarem exaustos ao ponto ini-
cial. O trajeto se desenha a cada parada, percor-
rendo ruas e bares, a trombar outros habitantes
da noite. Nesse caminhar por uma cidade que
escurece, a casa (ou o mundo doméstico) é o es-
paço de sombra, quase nunca nomeada, lembrada
apenas nos momentos em que as coisas se en-
rolam. Os três “viradores” estão na rua, vivem a
rua, são iluminados por ela.

Este texto percorre a cidade pelo conto de João


Antonio, para explorar os sentidos da rua na São
Paulo metrópole. Sem deixar de lado a larga for-
tuna crítica dedicada ao escritor – que pelo uso
da linguagem urbana falada foi comparado por
Antonio Candido a Guimarães Rosa, e que, pela
escolha de personagens “nos inicia [n]a esfera
dos excluídos, que procuram contornar a miséria
usando esse sucedâneo patético do trabalho que
são as artes da malandragem” (CANDIDO, 2004,
p.17) –, busca-se nesta leitura iluminar algumas
dinâmicas sociais e urbanas de São Paulo da dé-
cada de 1960, que se revelam nos usos desse
16º SHCU espaço particular da cidade – a rua – que liga, ao
30 anos . Atualização Crítica
mesmo tempo que separa, bairros, casas, gentes.
944 Observada ao rés-do-chão, a cidade nesses anos
pode ser tomada como uma plataforma privile- OS ARMAZÉNS DE SECOS E MOLHADOS
giada para se discutir e evidenciar as ambivalên- NA RUA AUGUSTA
cias do processo de modernização, por meio de
percursos, personagens e tensões que fazem a
As transformações dos armazéns de secos e mo-
própria cidade existir.
lhados que se instalaram na rua Augusta durante
O conto “Malagueta, Perus e Bacanaço”, em cer- as primeiras décadas do século XX acompanha-
to sentido, enuncia o embate de personagens ram as mudanças da rua, de seus edifícios e de sua
que não querem, e no fundo não conseguem, se ocupação. Ao longo desse período, a rua Augusta
enquadrar. E talvez por isso seja a rua, e não a se deixou fazer pelos bairros adjacentes, ao mes-
casa, o seu lugar. Elegendo a rua como espa- mo tempo em que impôs sua própria dinâmica,
ço privilegiado, João Antonio percorre a cidade, conectando e catalisando os movimentos que a
entrando e saindo dos lugares, sem jamais fixar construíram e que a tornaram palco e protagonista
os personagens em nenhum deles, sempre es- na cidade de São Paulo. Nascendo em torno de
tranhos e estranhados, como se houvesse uma 1875 nos limites da área central, esta rua expan-
força de expulsão que não os permitissem se diu-se até os anos 1920 na direção sul, cruzando
enraizar. A cidade no conto exerce essa força a Avenida Paulista e percorrendo em seus três
sobre os que nela transitam, que é sentida todo o quilômetros de extensão os bairros da Bela Vista,
tempo provocando reações e implicando ações. Consolação e Cerqueira César.
Esse topos da literatura moderna – o homem na
Os armazéns de secos e molhados tinham abran-
multidão – afasta-se entretanto das sugestões
gência local, funcionavam sob estrutura familiar e
recorrentes, contraposto pelo companheirismo
serviam prioritariamente o bairro onde se locali-
(ou a parceria) que se estabelece entre os três. A
zavam. Ao mesmo tempo em que compartilhavam
opção pela noite também parece contribuir para
características comuns, cada estabelecimento
esse implicar-se, pois é quando o (anti)trabalho
cultivava singularidades, definidas pela origem
da malandragem é exercido com vontade, única
do proprietário, por sua localização e pela época
possibilidade diante das dificuldades de inserção.
de funcionamento. No caso da rua Augusta, a pre-
Como um exercício de aproximação à história da sença majoritária foi de proprietários de origem
cidade, a experiência urbana é retomada por meio portuguesa até a metade dos anos 1920, quando,
de uma leitura rente ao texto literário, buscando- além desses, tornam-se frequentes aqueles de
-se evidenciar não as oposições entre mundos origem italiana.
e sujeitos, que marcam as leituras urbanas que
Entremeados numa paisagem bastante diversa,
partem de uma compreensão dual da cidade, mas
os armazéns de secos e molhados dividiram a rua
sobretudo lançando luz nos espaços intermedi-
Augusta desde finais do século XIX, com peque-
ários, dobradiças e engrenagens que permitem
nas e grandes fábricas, com hospitais, escolas
à própria cidade (e sociedade) funcionar. O olhar
e clubes, com diminutas habitações, sobrados
lançado às ruas por onde caminham aqueles
espaçosos e alguns palacetes. Atividades cultu-
personagens indica “a intersecção estratégica
rais como cinemas, galerias de arte, livrarias e
entre a cultura e o indivíduo, o macro e o micro,
espaços de lazer como bares, casas de música
apresentando práticas políticas, sociais, religio-
e casas noturnas se somam ao cenário eclético
sas, desenvolvimentos portentosos e conflitos
da Augusta nos anos 1940 e 1950. Ao longo desse
memoráveis, num cenário íntimo” (GAY, 2002, p.
período, as diferentes tipologias construtivas e a
16), quase rebaixado, recolocando diante de nós
presença marcante dos armazéns da rua Augusta
a cidade de São Paulo na sua dimensão cotidiana.
responderam às transformações na ocupação
social e territorial da rua e à modernização e mun-
dialização econômica da cidade.
EIXO TEMÁTICO 2 IMIGRAÇÕES, ROUPAS E EDIFÍCIOS: A RUA JOSÉ
PAULINO NA METROPOLIZAÇÃO DE SÃO PAULO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
“Essa é a legítima Goomtex, a capa que veste o Bra-
sil”. “Modastil faz a elegância do Brasil”. Goomtex e
Modastil foram duas confecções paulistanas cujas
sedes, como a de incontáveis outras confecções
de São Paulo, localizavam-se na rua José Paulino,
via nacionalmente conhecida pela especialização
na produção e venda de roupas. O trabalho de-
monstra como o desenvolvimento urbano da José
Paulino relaciona-se com processos de moder-
nização produtiva por quais passaram algumas
das confecções nela sediadas. A identidade da
rua passou por mudanças ao longo do século XX
que derivam de transformações nos perfis das
empresas e nos tipos de roupas produzidas nas
mesmas. Goomtex e Modastil foram escolhidas
como guias na estruturação da história da José
Paulino por possuírem, dentre as confecções às
quais se teve acesso durante a pesquisa, tra-
jetórias marcadamente acentuadas a partir de
processos concomitantes e inter-relacionados
às mudanças na materialidade da rua. Seus pro-
prietários interferiram na urbanidade da rua por
meio da construção de edifícios financiada por
capital advindo das atividades das confecções.
Apesar de representativas das conexões que se
pretende estabelecer entre história urbana e his-
tória da indústria de confecções paulistana, tendo
a José Paulino como estudo de caso, as duas fir-
mas das quais trataremos mais detalhadamente
representam apenas duas, dentre muitas outras,
trajetórias possíveis. 

Goomtex e Modastil foram fundadas no início da


década de 1930 como pequenas empresas fa-
miliares de imigrantes judeus provenientes do
Leste Europeu. Eram denominadas de oficinas
de roupas prontas e possuíam modo de produ-
ção artesanal. Avanços tecnológicos e aumen-
to da demanda por roupas prontas decorrente
da metropolização de São Paulo permitiram a
transição para um modo de produção industrial a
partir do início da década de 1940. A transição foi
acompanhada de mudanças no produto oferecido:
vestimentas simples e utilitárias cederam lugar
a coleções conectadas com a moda produzida
em países referências do setor, como França e
16º SHCU
Estados Unidos.
30 anos . Atualização Crítica

946 O crescimento possibilitou acúmulo de capital


que foi direcionado para a compra de imóveis VILAS PARTICULARES DE CASAS EM SÉRIE:
na rua. Até então, a via era ocupada majorita- UM ESTUDO DA VILA CÂNDIDA
riamente por construções originalmente con-
cebidas como residências e/ou armazéns que
tinham sido adaptadas para o funcionamento de O bairro de Pinheiros, “zona suburbana” da cidade
confecções. Após a aquisição, tais imóveis foram que configurava no início do século forma urbana,
demolidos e em seus lugares foram construídos modos de vida e ocupação do espaço associados
edifícios pensados exclusivamente para abrigar a setores médios, exemplifica a transformação
as atividades comerciais e industriais das con- das chácaras da região em loteamentos priva-
fecções em acelerado crescimento. A tipologia dos recorrente na cidade durante o século XX. O
dos edifícios nos quais funcionaram Goomtex adensamento do bairro acontece no período, com
e Modastil -gabarito até cinco andares, largura lotes subdivididos por diversos empreendedores
estreita e linguagem racional- foi replicada ao imobiliários - reproduzindo um padrão em que o
longo da via nas décadas de 1940, 1950 e 1960. O fundo do lote se mantinha 50m, mas com uma
conjunto de casarões e sobrados foi substituído frente pequena, geralmente de 5m (ZANETTI,
pela sequência de pequenos prédios sem recuos 1988, p.182-184).
e, ao surgimento da nova paisagem, somou-se o
incremento dos fluxos. O comércio atacadista Dentro desses lotes é possível perceber as casas
típico da região foi ganhando popularidade no em série, dado o seu formato repetitivo, e o fato
restante do país e a circulação de pessoas, mer- de estarem geminadas umas às outras. As vilas
cadorias e capitais intensificou-se. são formadas por essas casas em série voltadas
a uma via particular de acesso (GENNARI, 2005).
 Tal qual o desenvolvimento da José Paulino em
Diferentes das vilas operárias, as vilas particulares
via especializada na produção e venda de roupas
geralmente não estavam relacionadas a donos de
prontas ocorreu em contexto de crescente
fábricas como moradia para os seus trabalhado-
afirmação da indústria paulista, a construção de
res. Nas vilas e casas em série particulares, os
edifícios para o funcionamento das confecções se
empreendedores imobiliários - desde pequenos
deu concomitantemente a onda de verticalização
comerciantes a grandes fazendeiros - buscam
e disseminação de edifícios de arquitetura
um maior aproveitamento dos lotes com a criação
utilitarista em São Paulo. Entretanto, mesmo
de ruas particulares, marcando como a história
confecções que se sobressaíram, como Goom-
da cidade é permeada por personagens muito
tex e Modastil, não tiveram suas continuidades
diversos (ZANETTI, 1988, p.184). 
garantidas pelas gerações seguintes aos funda-
dores, tendo a maioria dos filhos de proprietários A partir do estudo de plantas e visitas às casas
seguido carreiras profissionais liberais. O que da Vila Cândida, localizada em Pinheiros, ficou
permaneceu no âmbito familiar é a propriedade
claro como desde o início ela foi projetada para
dos edifícios, hoje alugados em grande parte para
atender o mercado de rendas médias do início do
famílias coreanas proprietárias de confecções,
século XX, médicos, professoras, vendedores de
as atuais protagonistas da atividade na região. O
seguros, secretárias de firmas, e corretores da
capital da confecção, transformado em capital
bolsa de valores por exemplo. O programa das
imobiliário, é expresso na concretude da paisa-
habitações com metragens grandes, o respeito à
gem atual da rua.
legislação em questões de iluminação, ventilação,
além de uma preocupação com o uso de materiais
de qualidade e detalhamento, forneceram pistas
para compreender para quem a vila foi projetada.

O “Exmo, Snr, Coronel Manuel Sampaio Barros”


aparece nos documentos como proprietário do
terreno da Vila Cândida, um grande fazendeiro de
café com terras na cidade de São Manuel. Barros
se muda para a cidade de São Paulo, onde fez
fortuna comprando terrenos grandes, loteando e
EIXO TEMÁTICO 2 vendendo terras, demonstrando a clara conexão
entre grandes produtores de café, e a formação da
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS cidade. O escritório de arquitetura “Arnaldo Maia
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Lello, LTDA. ARCHITECTOS” é responsável pelo
projeto de parte das casas da Vila Cândida, e os
jornais das décadas de 1920 a 1940 deixam claro
como a construtora participou da formação da
cidade de São Paulo ativamente nesse período; se
demonstra a preocupação consciente do proprie-
tário na contratação de um projeto de qualidade
e alto detalhamento. Dessa forma é possível per-
ceber como a escolha de um escritório renoma-
do ajudou a traçar o perfil de moradores da vila:
classes mais abastadas do período. A entrevistada
Lanita Jubilut é moradora da vila desde seus 8
anos. Ela descreve como viver nos anos 1950 na
vila significava estar protegido, demonstrando
como a forma como o espaço da vila é projetado,
com a existência de uma interna à quadra cria
um ambiente de proteção, preservando dessa
maneira sociabilidades próprias. 

A Vila Cândida possibilita compreender como em


um mesmo espaço convivem diversos papéis so-
ciais durante o século XX. Os fazendeiros de café
que investiram na construção das casas feitas
pelos arquitetos, as professoras e contadores que
ali conseguiram uma habitação para criar seus
filhos, as crianças das redondezas que brincavam
no lugar, as empregadas e zeladores que ali viam
um emprego, entre muitas outras sobreposições.
A cidade de São Paulo, conforme se adentra nos
estudos desses diversos perfis, se mostra cada
vez mais plural. 

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

948
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EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Esta Mesa Temática reúne pesquisadores que
têm investigado o processo de modernização
da cidade de São Paulo a partir dos pormenores
mesa temática de sua escala cotidiana. No entrecruzamento de
uma ampla gama de fontes documentais - pedi-
dos de obras privadas, cartografias, fotogra-
AS RUAS DE SÃO PAULO E fias, atas camarárias, notícias e anúncios de jor-
nal - estes pesquisadores têm se aprofundado
SUAS MATERIALIDADES: UMA nas minúcias da vida urbana, construindo seus
caminhos explicativos a partir das dinâmicas e
ESCALA PARA A HISTÓRIA DA movimentações percebidas na rua, em seus lo-

CIDADE tes, nas calçadas e em suas esquinas.

Em seu texto seminal “Arquitetura, Geografia,


História: usos da escala”, Bernard Lepetit asso-
THE STREETS OF SÃO PAULO AND ITS MATERIALITIES:
ciou a escolha de escala de análise na historio-
A SCALE OF ANALYSIS FOR THE HISTORY OF THE CITY
grafia com a delimitação de seu escopo. Em di-
ferentes escalas, um mesmo objeto mostra-se
LAS CALLES DE SÃO PAULO Y SUS MATERIALIDADES:
de forma diferente, ao mesmo tempo suscitan-
UNA ESCALA DE ANÁLISIS PARA LA HISTORIA DE LA
do diferentes problemáticas e permitindo dife-
CIUDAD
rentes enquadramentos analíticos. Perguntar a
extensão da costa de uma nação, por exemplo,
LANNA, Ana Lucia Duarte é uma questão que permite várias respostas.
Com uma lente ampla, pode-se observar uma
Professora Titular; Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
da Universidade de São Paulo (FAUUSP) única costa, totalizante. Contudo, com maior
aldlanna@usp.br proximidade, pode-se ver baías e penínsulas, e
em escalas muito pequenas o próprio conceito
FERREIRA, Pedro Beresin Schleder Ferreira de costa pode deixar de ser pertinente e opera-
tivo. Assim, a escolha de uma escala, voluntá-
Mestre; Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade de São Paulo (FAUUSP)/ Escola da Cidade – ria ou involuntariamente, é fundamental para a
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo pesquisa histórica, pois determina “a escolha de
pedro.beresin@gmail.com um ponto de vista de conhecimento” (LEPETIT,
2001, p. 214).
ALMEIDA, Deborah Sandes de
Esta Mesa Temática define a escala da rua como
Mestre; Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade de São Paulo (FAUUSP)
uma escala privilegiada para discutir e analisar
sandesdeborah@gmail.com os fenômenos urbanos. Na rua, binômios dis-
solvem-se em tramas mais complexas. Emer-
REIS, Philippe Arthur dos gem conflitos e disputas interseccionais entre
classes, raças, gêneros e etnias, bem como há
Mestre; Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da
Unicamp (IFCH-Unicamp)
inusitadas parcerias, apropriações, tensões e
philippearthur@hotmail.com subversões. No espaço da rua, os movimentos
cotidianos se sobressaem, revelando sob ou-
tros ângulos os eventos espetaculares da ci-
dade e dando vida a agentes até então menos
referenciados na historiografia: setores médios
16º SHCU e populares, pequenos proprietários, peque-
30 anos . Atualização Crítica
nos empreiteiros e empresários, comercian-
950 tes, entre outros. Abre-se espaço para outras
interpretações nas relações entre diferentes do um campo analítico, implica em necessaria-
grupos, gêneros, raças, classes e poderes que mente mobilizar uma pluralidade de fontes e co-
construíram a cidade. locá-las em diálogo para reconstruir o espaço
na sua materialidade e nas práticas sociais que
Nas pesquisas aqui apresentadas, tomam-se o instituem. Para tanto, o paradigma indiciário
quatro ruas da cidade de São Paulo - Rua Teo- proposto por Carlo Ginzburg (1989) mostra-se de
doro Sampaio, Avenida Angélica, Avenida do grande valia: é na análise minuciosa de jornais,
Anastácio e Avenida Celso Garcia - em busca de textos literários, pedidos de obras, desenhos
reconstituir as tramas urbanas que deram for- técnicos, atas camarárias, registro de impostos
ma a esta cidade. Por meio delas, percebe-se e fotografias que os pesquisadores coletam os
que as categorias homogeneizantes de bairro diversos indícios e fragmentos que, justapostos
operário, bairro de elite, vazios urbanos, zona e entrecruzados, os permitem penetrar nos in-
industrial, zona habitacional, centro e periferia terstícios das tramas cotidianas da cidade. E a
perdem potência explicativa. As fronteiras rí- partir da vivacidade de suas ruas, repensar as
gidas, que separam categorias, espaços e gru- dinâmicas de modernização de São Paulo.
pos ganham contornos movediços e porosos.
Ao invés de blocos homogêneos, os espaços da Nesse sentido, discute-se também com a pró-
cidade passam a ser ocupados por uma miríade pria historiografia, que variou as escalas de
de dinâmicas e trajetórias multifacetadas e di- análise, em função dos temas e problemas en-
versas. Trajetórias profissionais, individuais, fa- frentados, percorrendo da escala territorial
miliares, de grupos, que deixam de habitar uma até a do bairro e produzindo análises que aca-
cidade pré-existente, pano de fundo de suas baram por fixar certas explicações. Na escala
ações, e são encarados como produtores des- territorial, leituras em torno das relações entre
sa cidade, figuras que fazem seu próprio fundo o desenvolvimento econômico da capital e sua
com seus movimentos. posição geográfica na trama produtiva regional
(PRADO JR., 1941; MONBEIG, 1953; AZEVEDO,
Através da Avenida Angélica, acompanhamos o
1958; AB’SÁBER, 1957) acabaram acentuando a
funcionamento e os conflitos em torno das no-
perspectiva de um desenvolvimento urbano ra-
vas fronteiras materiais e simbólicas que emer-
dioconcêntrico, desde os caminhos coloniais.
giram no processo de modernização da cidade.
Na escala totalizante do espaço urbano, surgiu
Na Teodoro Sampaio, observamos a construção
da bibliografia uma cidade na qual o processo de
de uma via que conectava diferentes universos,
modernização teria acontecido por substitui-
pela qual podemos ver uma cidade que crescia
ções, como indica a imagem canônica conden-
de forma não-linear, em um processo de justa-
sada pela expressão três cidades em um século,
posição e de inusitados entrecruzamentos en-
cunhada por Benedito Lima de Toledo (1981) em
tre o rural e o urbano, centro e periferia, e entre
seu livro homônimo. E ainda uma cidade organi-
diferentes etnias, classes e gêneros. Na Ave-
nida do Anastácio encontramos um território zada desde esquemas binários e contrastantes:
além-rios que se desenvolveu em paralelo, mas centro x periferia, público x privado, elites x ope-
ao mesmo tempo articulado ao núcleo central rários, indústria x casa. Nessa escala, prioriza-
da cidade e de suas dinâmicas de crescimento ram como agentes o poder público, as elites, os
e modernização. Na Avenida Celso Garcia as es- grandes proprietários, as grandes empresas, e
tratégias econômicas de seus proprietários e os a atuação dos saberes especialistas (FELDMAN,
embates junto ao poder público municipal, em 2005; CAMPOS NETO, 2000). Quando a escala se
diálogo com a formação dos setores médios da reduzia aos bairros, privilegiou-se identidades
cidade, os quais tiveram um destacado papel no homogêneas, peculiaridades culturais de suas
processo de urbanização da cidade e naquela diferentes classes e grupos, que permitiram,
avenida em particular criaram redes que permi- como em um mosaico, apreciar a multiplicida-
tiam conexões com seus pares. de de peças que compuseram a vida da cidade:
a vida dos operários, das elites, dos imigran-
Reconhecer estes movimentos - que não foram tes, etc (HOMEM, 1980; WOLFF, 2001; MEYER &
intencionalmente documentados - configuran- GROSTEIN, 2010).
EIXO TEMÁTICO 2 As pesquisas dessa Mesa fazem parte de um
projeto mais amplo de reflexão coletiva, apre-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS sentado nessa edição do Seminário de Histó-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES ria da Cidade e do Urbanismo em duas mesas e
em oito textos, que parte desse largo caminho
de reflexão, para pensar interpretações que só
parecem ser possíveis ao se reduzir o foco a es-
cala da rua - mostrando uma cidade construída
passo a passo, lote a lote, rua a rua, sem sentido
unívoco e consensual pré-estabelecido. Uma ci-
dade na qual o processo de modernização acon-
tecia por justaposições e não por substituições,
que não foi estritamente radial, mas que parece
ter sido polinuclear e multidirecional, e cujos
grupos sociais ocupavam espaços de modo me-
nos estanque, mas mais dinâmico e misturado.

SÃO PAULO CIDADE MODERNIDADE

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

952
ABSTRACT In this panel, four streets of the city of São Pau-
lo - Rua Teodoro Sampaio, Avenida Angélica,
Avenida do Anastácio and Avenida Celso Garcia -
This thematic panel brings together researchers are studied to reconstruct the urban fabric that
who have been investigating the modernization shaped this city. The research shows that the
process of the city of São Paulo, looking at the va- terms that categorize neighborhoods into homo-
rious scales of daily life. Intersecting a wide range geneous units such as working class or elite, ur-
of documentary sources – permit applications, ban voids, industrial zones, housing zones, center
cartographic documents, photographs, town hall and periphery simplify the complexity of urban
minutes, news and newspaper advertisements - places. From the perspective of the street, the
the researchers have delved into the minutiae of rigid borders, which separate categories, spaces
urban life, building their explanatory paths from and groups dissolve and take on shifting, porous
the dynamics and movements observed along forms and instead of homogeneous blocks, city
streets and sidewalks and within properties and spaces reveal a myriad of dynamics with multifa-
intersections. ceted and diverse trajectories. Professionals, in-
dividuals, families and groups are no longer seen
In his seminal essay “Architecture, Geography, as inhabitants of a pre-existing city merely con-
History: uses of scale”, Bernard Lepetit associa- sidered as the backdrop of their actions, instead
ted the choice of the scale of analysis in historio- they are seen as producers of that city, as figures
graphy with the delineation of its scope. At diffe- that shape their background with their own mo-
rent scales, the same object is seen differently vements.
and therefore it raises different problems and
allows for different analytical frameworks. The The study of Avenida Angelica follows the ope-
length of a nation’s coast, for example, is a ques- rations and conflicts that arose around the new
symbolic and material boundaries, which emer-
tion that allows for several answers. Through a
ged in the process of modernization of the city.
wide lens, you would see a single, unified coast.
Analyzing Rua Teodoro Sampaio, we observed
However, in closer range, one would be able to see
the construction of a road that connected diffe-
bays and peninsulas and at a very small scale, the
rent universes, through which we can see a city
concept of coast itself might no longer be relevant
that was growing in a non-linear way, following
or operative. Thus, voluntarily or involuntarily, the
a process of juxtaposition and of particular con-
choice of scale is fundamental to historical re-
vergences between the rural and the urban, the
search; it determines “the choice of viewpoint of
center and the periphery, and between different
knowledge” (LEPETIT, 2001, p. 214).
ethnicities, classes and genders. On Avenida do
Anastácio we find a territory beyond the rivers
This thematic panel defines the street as a privile-
that developed independently, but at the same
ged scale for the discussion and analysis of urban
time was connected to the city center and its
phenomena. On the street, binary interpretations
dynamics of growth and modernization. On Ave-
dissolve into more complex associations. Inter-
nida Celso Garcia, the economic strategies of its
sectional conflicts and disputes emerge between
owners and the clashes with the local authorities
classes, races, genders and ethnicities, as well
while the middle classes were forming played a
as unexpected partnerships, appropriations, ten-
significant role in Sao Paulo’s urbanization and
sions and subversions. In the space of the street,
created networks that allowed connections with
daily movements reveal themselves and disclose
members of corresponding social groups.
different aspects of the spectacles of the city and
give life to the less studied characters in historio- The recognition of these movements - which
graphy: middle and lower class inhabitants, small were not deliberately documented - configures
landowners, trades people, small contractors, an analytical field that requires the gathering
businessmen, among others, opening room for of a plurality of sources which allows for the re-
new interpretations of the relationships between construction of space in its materiality and its
different groups, genders, races, classes and the associated social practices. The indiciary para-
powers that shape the city. digm proposed by Carlo Ginzburg (1989) proves
EIXO TEMÁTICO 2 to be of great value: it is the thorough analysis of
newspapers, literary texts, work orders, techni-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS cal drawings, town hall minutes, tax records and
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES photographs that allows researchers to collect
evidences and fragments that, juxtaposed and
intertwined, allow for penetration into the inters-
tices of the daily stories of the city. And through
this investigation into the vivacity of the São Pau-
lo streets, it is possible to rethink the dynamics of
the city’s modernization.

The papers of the panel also debate historiogra-


phy itself, which changed the scales of analysis,
depending on the themes and the problems fa-
ced: from the territorial scale to that of the nei-
ghborhood, producing analyses that set certain
explanations. On the territorial scale, readings
about the relationship between the economic de-
velopment of the capital and its geographical po-
sition in the regional productive network (PRADO
JR., 1941; MONBEIG, 1953; AZEVEDO, 1958; AB’SÁ-
BER, 1957) ended up accentuating the perspective
of the development of São Paulo from a colonial
pathway network into a radio-centric city. At the
overarching scale or urban space, the bibliogra-
phical references imply that the modernization
process happened by substitutions, as Benedito
Lima de Toledo indicates in his “Three Cities in a
Century” book (1981). And yet we recognize that
the bibliography has been organized by binary
and contrasting schemes: center vs. periphery,
public vs. private, elites vs. workers, industry vs.
home. At this scale, the prioritized agents inclu-
ded public power, the elites, large landowners,
large companies, and the specialists (FELDMAN,
2005; CAMPOS NETO, 2000). When the scale was
reduced to the neighborhood level, homogeneous
identities and the cultural peculiarities of the di-
fferent social classes and groups were studied.
This approach, as in a mosaic, allowed for the
appreciation of the multiplicity of pieces that
made up the life of the city: the life of the worke-
rs, the elites, the immigrants, etc. (HOMEM, 1980;
WOLFF, 2015; MEYER & GROSTEIN, 2010).

These essays presented in two panels and eight


texts at this year’s City History and Urbanism Se-
minar are part of a broad path of reflection that
only seems possible when the focus of study is
16º SHCU reduced to the scale of the street. In this man-
30 anos . Atualização Crítica
ner, we find a city that was built step by step, lot
954 by lot, street by street, with no unified meaning
or pre-established consensus. A city in which the RESUMEN
modernization process took place through jux-
tapositions instead of substitutions - which was
not strictly radial, but which appears to have been Esta sesión temática reúne a investigadores que
polynuclear and multidirectional, and whose so- han investigado el proceso de modernización de
cial groups occupied spaces in a less uniform and la ciudad de São Paulo a partir de los detalles de
more dynamic and mixed manner. su escala diaria. En la intersección de una amplia
gama de fuentes documentales (solicitudes de
obras privadas, cartografías, fotografías, actas
SÃO PAULO CITY MODERNITY del ayuntamiento, noticias y anuncios en perió-
dicos), estos investigadores han profundizado en
las minucias de la vida urbana, construyendo sus
caminos explicativos desde la dinámica y de los
movimientos de la calle, en sus lotes, en las ace-
ras y en sus esquinas.

En su texto seminal “Arquitectura, geografía, his-


toria: usos de la escala”, Bernard Lepetit asoció la
elección de la escala de análisis en la historiogra-
fía con la delimitación de su alcance. A diferentes
escalas, el mismo objeto se muestra de manera
diferente, al mismo tiempo que plantea diferen-
tes problemas y permite diferentes marcos ana-
líticos. Preguntarse sobre la longitud de la costa
de una nación, por ejemplo, es una cuestión que
permite varias respuestas. Con una lente amplia,
puede verse una única costa totalizadora. Sin
embargo, con mayor proximidad, se pueden ver-
se bahías y penínsulas, y, además, en escalas muy
pequeñas, el concepto de costa en sí ya no puede
ser relevante y operativo. Por lo tanto, la elección
de una escala, voluntaria o involuntaria, es fun-
damental para la investigación histórica, ya que
determina “la elección de un punto de vista del co-
nocimiento” (LEPETIT, 2001, p. 214).

Esta sesión temática define la escala de la calle


como la escala privilegiada para discutir y anali-
zar fenómenos urbanos. En la calle, los binomios
se disuelven en tramas más complejas. Surgen
conflictos y disputas interseccionales entre cla-
ses, razas, géneros y etnias, así como asocia-
ciones, apropiaciones, tensiones y subversiones
inusuales. En el espacio de la calle, se destacan
los movimientos diarios, que revelan desde otros
ángulos los eventos espectaculares de la ciudad
y dan vida a agentes hasta ahora menos referen-
ciados en la historiografía: sectores medianos y
populares, pequeños terratenientes, pequeños
contratistas y empresarios, comerciantes, entre
otros. Abre espacio para otras interpretaciones
en las relaciones entre diferentes grupos, géne-
EIXO TEMÁTICO 2 ros, razas, clases y poderes que construyeron la
ciudad.
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES A través de la Avenida Angélica, percibimos el fun-
cionamiento y los conflictos en torno a las nuevas
fronteras materiales y simbólicas que surgieron
en el proceso de modernización de la ciudad. En
la Teodoro Sampaio, observamos la construcción
de una calle que conectaba diferentes universos,
a través de la cual podemos ver una ciudad que
crecía de manera no lineal, en un proceso de yu-
xtaposición e intersecciones inusuales entre lo
rural y lo urbano, el centro y la periferia, y entre
diferentes etnias, clases y géneros. En la Aveni-
da do Anastácio encontramos un territorio más
allá de los ríos que se desarrollaron en paralelo,
pero al mismo tiempo articulados al núcleo cen-
tral de la ciudad y su dinámica de crecimiento y
modernización. En la Avenida Celso García, las
estrategias económicas de sus propietarios y los
enfrentamientos con las autoridades públicas
municipales, en diálogo con la formación de los
sectores medios de la ciudad, que desempeñaron
un papel destacado en el proceso de urbaniza-
ción de la ciudad y, en esa avenida en particular,
crearon redes que permitieron conexiones entre
ellos mismos

Reconocer estos movimientos, que no se docu-


mentaron intencionalmente, para configurar un
campo analítico implica necesariamente movili-
zar una pluralidad de fuentes y ponerlas en diálo-
go para reconstruir el espacio en su materialidad
y en las prácticas sociales que lo instituyen. Para
eso, el paradigma indiciario propuesto por Carlo
Ginzburg (1989) es de gran valor: es en el análisis
exhaustivo de periódicos, textos literarios, pedi-
dos de obras, dibujos técnicos, actas de ayunta-
mientos, registros de impuestos y fotografías que
los investigadores los recopilan. Varias indicacio-
nes y fragmentos que, yuxtapuestos y entrelaza-
dos, les permite penetrar en los intersticios de las
parcelas diarias de la ciudad. Y desde la vitalidad
de sus calles, les permite reconsiderar la dinámi-
ca de la modernización en São Paulo.

En este sentido, también se discute con la his-


toriografía, que varió las escalas de análisis, de-
pendiendo de los temas y problemas enfrenta-
16º SHCU dos, pasando de la escala territorial a la del barrio
30 anos . Atualização Crítica
y produciendo análisis que terminaron fijando
956 ciertas explicaciones. En la escala territorial,
las lecturas sobre la relación entre el desarrollo
económico de la capital y su posición geográfica
en la red productiva regional (PRADO JR., 1941;
MONBEIG, 1953; AZEVEDO, 1958; AB’SÁBER, 1957)
constituyeron la perspectiva de un desarrollo ur-
bano radioconcéntrico, desde caminos colonia-
les. En la escala totalizadora del espacio urbano,
surgió de la bibliografía una ciudad en la que el
proceso de modernización habría sucedido por
sustituciones, como lo indica la imagen canónica
condensada por la expresión “tres ciudades en un
siglo”, creada por Benedito Lima de Toledo (1981)
en su libro homónimo. Una ciudad organizada
a partir de esquemas binarios y contrastantes:
centro x periferia, público x privado, élites x tra-
bajadores, industria x hogar. En esta escala, se
priorizó como agentes el poder público, las élites,
los grandes terratenientes, las grandes empresas
y el desempeño de conocimientos especializados
(FELDMAN, 2005; CAMPOS NETO, 2000). Cuan-
do la escala se redujo a barrios, se privilegiaron
las identidades homogéneas, las peculiaridades
culturales de sus diferentes clases y grupos, lo
que permitió, como en un mosaico, apreciar la
multiplicidad de piezas que componían la vida de
la ciudad: la vida de los trabajadores, las élites,
inmigrantes, etc. (HOMEM, 1980; WOLFF, 2001;
MEYER & GROSTEIN, 2010).

Las investigaciones aquí presentadas son parte


de un proyecto de reflexión colectiva más amplio,
presentado en esta edición del Seminario en dos
sesiones y en ocho textos, parte de este amplio
camino de reflexión, para pensar en interpreta-
ciones que solo parecen ser posibles reduciendo
el enfoque a la escala de la calle, mostrando una
ciudad construida paso a paso, lote por lote, calle
por calle, sin significado unívoco y consenso pre-
establecido. Una ciudad en la que el proceso de
modernización se llevó a cabo a través de yuxta-
posiciones y no sustituciones, que no era estric-
tamente radial, mostrando haber sido polinuclear
y multidireccional, y cuyos grupos sociales ocu-
paron espacios menos apretados, pero más diná-
micos y mixtos.

SÃO PALO CIUDAD MODERNIDAD


EIXO TEMÁTICO 2 TEODORO SAMPAIO, CONECTANDO A CIDADE
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
Através da análise das conformações urbanas
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
da Rua Teodoro Sampaio entre 1900 e 1940, o
presente trabalho tem como objetivo pensar so-
bre as classes médias urbanas, e como configu-
mesa temática
ravam uma cidade plural e diversa. A rua como
vizinhança que conectava múltiplas etnicidades,

AS RUAS DE SÃO PAULO E modos de morar, estabelecendo relação entre


casa e cidade é a escala de análise A Rua Teo-

SUAS MATERIALIDADES: UMA doro Sampaio é, desde início do século XX, um


importante eixo articulador da expansão urbana.
ESCALA PARA A HISTÓRIA DA Cresceu a partir de Cerqueira Cesar e de Pinhei-
ros, conectando-se na área ocupada, até os anos
CIDADE 1940 pelo hipódromo. Configurou-se como um
corredor de conexão e expressão de um segun-
do movimento de crescimento da cidade em um
THE STREETS OF SÃO PAULO AND ITS MATERIALITIES: tempo posterior ao da configuração dos bairros
A SCALE OF ANALYSIS FOR THE HISTORY OF THE CITY centrais iniciais como o Bexiga, expressando a
cidade moderna que se fazia por superposições
LAS CALLES DE SÃO PAULO Y SUS MATERIALIDADES: de práticas e tempos sociais. Para essa pesqui-
UNA ESCALA DE ANÁLISIS PARA LA HISTORIA DE LA sa foram mobilizadas uma pluralidade de fontes
CIUDAD documentais e bibliográficas com vistas a identifi-
car os moradores e construtores deste espaço da
cidade assim como as práticas que o constituíam.

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30 anos . Atualização Crítica

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AS FRONTEIRAS DA CIDADE uma das vias centrais na construção homogenei-
zante de Higienópolis, pretendemos apresentar
Desde fins do século XIX até a atualidade, nas nar- essa modernidade tensa, plural e conflituosa,
rativas cotidianas, historiográficas e memoriais obliterada e apaziguada pelo esquema explica-
da cidade de São Paulo, o bairro de Higienópolis tivo a pouco mencionado. O faremos através de
tem sido largamente evocado como símbolo su- uma investigação em torno de suas fronteiras
premo do ideal de bairro de elite. Independente da materiais, simbólicas e representacionais, que
perspectiva adotada – laudatória, crítica, factual eram formalizadas em variadas esferas: pelos
–, as narrativas em torno de sua formação comu- agentes que habitavam e atuavam na via; nos
mente localizam sua gênese na fortuna cafeeira e jornais e revistas que circulavam pela cidade e
caracterizam sua paisagem através dos mesmos nos debates e ações dos poderes municipais. Ao
elementos: majestosos palacetes e exuberantes focar em suas fronteiras, em quem as delimitava
jardins que, emoldurados por vias amplas e arbo- a cada momento, e no que cada discurso incluía
rizadas, constituíam um palco de plácido e idílico e excluía de seus limiares, perceberemos que até
para o cotidiano “civilizado” e elegante das elites. mesmo a homogeneidade da avenida, bem como
do bairro, eram heterogêneas.
À essa representação aparentemente trivial,
subjaz um potente esquema explicativo sobre A grosso modo, pode-se dizer que nas primeiras
o processo de metropolização de São Paulo. décadas de sua existência, a Avenida era dividi-
Tal esquema concebe a modernização como da em uma parte alta e outra baixa. A primeira
resultado de uma vitória plena de um projeto compreendia as regiões próximas ao Cemitério
consensual das elites – políticas, econômicas da Consolação até o Hospital de Isolamento, a
e técnicas – para disciplinar e ordenar o espaço segunda, ia das proximidades da Praça Buenos
urbano, bem como sua população (PRADO JR., Aires até a Rua das Palmeiras. Na parte alta, ins-
1941; MONBEIG, 1953; HOMEM, 1980; TOLEDO, 1981; talaram-se comerciantes e habitantes de renda
GROSTEIN, 1987; ROLNIK, 1997; SEGAWA, 2000 e média e baixa. Na baixa, as habitações das clas-
MARINS, 2006). O êxito na construção de áreas ses mais abastadas. Apesar dos contrastes, a
exclusivas para as elites, estabelecidas em opo- fronteira entre esses espaços estava longe de
sição aos bairros operários e fabris, não somente configurar uma rígida muralha. Pelo contrário,
confirma a presumida onipotência desse grupo sua consistência e espessura eram circunstan-
dominante na determinação do desenvolvimento ciais, variando de acordo com os agentes e seus
urbano, como fortalece uma percepção da pró- errantes interesses. Assim, na perspectiva dos
pria modernização da cidade como um proces- poderes municipais a Angélica poderia figurar
so unívoco, retilíneo e monolítico, que teria sido ora como uma via incólume, predestinada a co-
assistido passivamente pelos grupos de média nectar as mais belas vias da cidade; ou fratura-
e baixa renda. da, quando eram sistematicamente negados os
melhoramentos à sua parte superior. E nesse
Contudo, como vêm mostrando pesquisas recen- caso, para os moradores da parte prejudicada,
tes, apesar das contundentes forças empregadas exaltar a segregação de forma hiperbólica era
em sua realização, tais planos não transcorreram uma estratégia para conquistar suas demandas.
da forma lisa e plena como projetavam seus arau-
tos (CERASOLI, 2004; CHALHOUB, 2008; BORIN, No dia-a-dia, a fronteira conformava-se como
2014; MARINS 2011 e 2016; entre outros). Foram uma membrana porosa, através da qual ocorriam
entravados e atravancados por desejos e inte- ambicionadas e indesejadas trocas. Veremos
resses dos mais diversos setores da população. que com seus corpos, práticas, materialidades e
A modernização que queriam plena era irrequieta, símbolos; abastados, remediados e trabalhadores
pulsante. Se a queriam equilibrada e pacífica, cruzavam seus universos, com expectativas e
seu dia a dia era um constante agenciamento de interesses distintos, ora revelando percepções
conflitos, pois a desconcertante coexistência e práticas do urbano contrastantes, ora com-
dos contrários era congênita ao seu “fazer-se”.  plementares; repercutindo nos mais variados
resultados entre a associação, a tolerância e o
A partir de uma análise detida na Avenida Angélica, conflito. 
EIXO TEMÁTICO 2 A despeito da coexistência, a distribuição do po-
der de ação e representação era extremamente
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS desigual entre os grupos que habitavam a Ave-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES nida. Sendo assim, mesmo que permeado por
disputas, foram os anseios das elites que tiveram
maior força na consolidação de representações
sobre a região, bem como na tomada de decisões
a respeito de sua materialização. Mas, mesmo
que sujeitos à vontade dominante, os outros gru-
pos permaneciam ativos, com iniciativa própria.
Assim, ao passo em que as elites consolidavam
seus valores, simbólicos, práticos e materiais na
Avenida, os remediados e trabalhadores nesses
se embrenhavam, deles se apropriando, algumas
vezes procurando com eles harmonizar-se – como
no caso dos comerciantes e profissionais liberais
que instalavam-se na região para “aristocratizar”
suas empresas –, ou francamente subvertê-los
ao sabor de seus próprios interesses, como os
jornais operários que se valiam da simbologia
elitista da avenida e do bairro para desmoralizar
os poderes dirigentes da cidade.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

960
AVENIDA DO ANASTÁCIO: DO CAMINHO NA COLÔNIA da cidade, através da Rodovia Anhanguera (SP-
À RUA DA METRÓPOLE 330), que consolidou uma das principais rotas de
penetração ao interior, não só de São Paulo, mas
também do território brasileiro, tendo como base
Os territórios considerados além-rios na cidade de
as antigas trilhas indígenas existentes no local.
São Paulo, ou seja, aqueles locais compreendidos
após os limites hidrográficos estabelecidos pelos Inicialmente este caminho era conhecido como
rios Tietê e Pinheiros - que cortam a cidade no Estrada para Jundiaí ou Estrada do Anastácio, e
sentido leste-oeste e em direção ao sul - salvo en- ganhou maior destaque quando no início do século
gano são pouco evidenciados em relação às suas XIX, passou a integrar a continuidade além-rio da
origens, inserção e participação no processo de Estrada da Boiada (SANTOS, 1980). Diferentemen-
desenvolvimento territorial, urbano e econômico te dos demais caminhos radiais que surgiram a
da cidade de São Paulo, principalmente a partir partir da região central da vila de São Paulo no
da segunda metade do século XIX. período, este era um caminho derivado da Estra-
da para Sorocaba e Itu, que partindo do núcleo
Neste sentido, é importante trazer à luz dos estu-
de Pinheiros, seguia pelas bordas do território,
dos urbanos estes territórios que deram suporte
em paralelo às áreas de várzea do rio Pinheiros,
e estão intrinsecamente ligados ao processo de
atravessava algumas propriedades rurais pouco
expansão e metropolização da cidade - como já
habitadas, localizadas no perímetro suburbano da
sinalizados por Azevedo (1958) e Monbeig (1953),
cidade, até alcançar a várzea do rio Tietê, na altu-
por exemplo - que ocorreu a partir das conexões ra do Sítio do Emboaçava (atual região da Lapa),
do núcleo urbano central, com seus arredores para daí fazer a travessia e seguir adiante, mata
suburbanos e rurais, além de outras porções do adentro na Fazenda Anastácio – de propriedade
Estado, como o interior e o litoral.  do Coronel Anastácio de Freitas Trancoso, rumo
às terras férteis do interior da província (Jundiaí
É no intuito de realçar estes territórios que o artigo
e Campinas) (FREITAS, 1929 e 1935).
busca explicitar o processo de desenvolvimento
territorial além-rios, a partir de uma das conexões Com o início do século XX mudanças ocorreram na
no sentido do interior do Estado - o Caminho região e a antiga paisagem rural e suas atividades
para Jundiaí, hoje conhecido como Avenida relacionadas se transformaram, passando a dar
do Anastácio, na Zona Norte de São Paulo - lugar às novas atividades industriais que aos pou-
repassando suas origens e transformações, até cos foram sendo implantadas nas áreas de várzea
sua consolidação, de antigo caminho colonial dos rios e ao longo das linhas ferroviárias que se
numa via de destaque da metrópole, impulsionada instalaram nestes territórios (ANTUNES, 2013).
pela atração e ocupação desta localidade por
setores das classes médias urbanas, que pas- Neste processo que se espalhou pela cidade, os
saram a habitar os bairros residenciais em seu herdeiros da Fazenda Anastácio comercializaram
entorno. Através da cartografia oficial articulada à suas terras e a desmembraram em algumas glebas
bibliografia existente sobre o tema, será possível que a partir dos anos 1920 passaram a ser ocupa-
recuperar estas modificações e elucidar como das tanto por áreas industriais - como o Frigorífico
estas dinâmicas ocorreram em paralelo na região, Armour do Brasil às margens do rio Tietê - quanto
mas ao mesmo tempo articuladas ao processo por loteamentos residenciais, destinados às clas-
de transformação e expansão do núcleo central ses médias urbanas, que tinham na localidade
da cidade. mais uma opção de moradia e acesso facilitado
ao trabalho, graças à presença da ferrovia e pos-
Graças à sua posição geográfica, situada nas teriormente do ônibus, promovendo a conexão
proximidades do entroncamento dos rios Tietê com o centro da cidade (LANGENBUCH,1968).
e Pinheiros, após a travessia da várzea do Tietê
em direção ao norte, esta região é conhecida As décadas seguintes foram marcadas pelo par-
como uma das portas de entrada da cidade de celamento do solo nestas glebas e pelo protago-
São Paulo, principalmente por promover a co- nismo adquirido pela Avenida do Anastácio como
nexão com a porção oeste do interior do Estado via estruturadora dos bairros residenciais não só
e também de grande parte da porção noroeste em seu perímetro imediato, mas também como
EIXO TEMÁTICO 2 conexão intraurbana entre os demais bairros que
surgiram e se consolidaram em seu entorno, ao
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS longo das décadas de 1950 e 1970 (ALMEIDA, 2020).
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
Esta abordagem histórica pretende ressaltar
como a utilização da cartografia em conjunto com
outros documentos bibliográficos pode contribuir
para embasar a construção das narrativas sobre
a cidade e seus espaços construídos, principal-
mente quando não há estudos anteriores sobre os
temas em questão, como é o caso desta porção da
Zona Norte de São Paulo, mais especificamente
a Fazenda Anastácio e a Avenida do Anastácio.

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30 anos . Atualização Crítica

962
DEAMBULAR PELA CIDADE: NOTAS SOBRE OS Os mais de 6 quilômetros da avenida que já foi
SETORES MÉDIOS DA AVENIDA CELSO GARCIA conhecida como caminho para o Rio de Janeiro,
rua do Brás, estrada e avenida da Intendência,
(1893-1915) homenageiam desde 1908 o vereador, jornalista e
advogado Affonso Celso Garcia da Luz, sujeito que
Muitas das narrativas que procuraram homo- teve um importante papel na articulação de uma
geneizar bairros, ruas e cidades não se susten- rede transnacional de agentes que se envolveram
tam quando analisamos o cotidiano e a agência no debate da construção de políticas que reverbe-
de determinados grupos no processo de feitura raram na construção de casas para a população
dos espaços urbanos. Nesse aspecto, e tomando mais pobre. A partir da tabulação e cruzamento
como espaço de análise a cidade de São Paulo, de diferentes fontes que tratam da incidência dos
percebemos como as dicotomias e apaziguamen- setores médios em atividades urbanizadoras na
to de conflitos estiveram presentes em diversos Avenida Celso Garcia, destrinchamos os múltiplos
escritos ao longo do século XX, sobretudo aqueles usos e conflitos que envolveram tais agentes nos
que analisavam o processo de urbanização e cres- usos da via, como construções voltadas para a
cimento demográfico observado desde o último habitação, comércios e múltiplos serviços que
quartel do século XIX. Não à toa, bairros como atendiam não só as proximidades, mas incidiram
o Brás, Belenzinho e a Mooca, foram encarados sobre outros espaços da cidade entre os anos de
como espaços industriais e fabris, local de morada 1893 a 1915.
das classes operárias e que também estariam
Dos requerimentos e plantas de construção e
alijadas do processo de urbanização da cidade,
reforma expedidos para aprovação da Diretoria
compreensão tida pela existência de moradias de Obras e Viação, passando pelos anúncios do
insalubres (particularmente materializadas pelos Almanack Laemmert, passando pela análise da
cortiços) e pela formação de grandes aglomerados cartografia e dos embates tidos na Câmara Mu-
populacionais. nicipal, percebemos os interesses e formas de
sobrevivência dos setores médios que tiveram
Ao mobilizarmos uma série de fontes que res-
atuação substancial na Avenida Celso Garcia. São
gatam a agência e protagonismo das pessoas
essas ações cotidianas que resguardam o fazer
envolvidas no processo de edificação material da cidade e muitos dos conflitos que perfaziam a
da cidade, tomando como foco a Avenida Celso modernidade das cidades do começo do século
Garcia, percebemos como a população, que ali XX, modernidade esta que também foi construída
residia ou investia, mobilizava em suas demarca- a partir do prisma homogeneizante e linear.
ções cotidianas os saberes preconizados pelas
autoridades municipais, além de suas estratégias
de sobrevivência e demarcação social entre o
final do século XIX e o início do XX. Ou seja, tais
agentes, entendidos como componentes dos se-
tores médios urbanos (OLIVEIRA, 2005), tiveram
um importante papel no processo de construção
da cidade, sobretudo por investirem boa parte de
seus capitais em bens de raiz, como residências
destinadas para o aluguel, além de tirarem van-
tagem financeira pela criação de uma rede de
pequenos e médios comércios como mercearias,
quitandas, farmácias, escolas particulares, fabri-
quetas e lojas de roupas espalhadas por diferentes
ruas e avenidas da capital paulista. O processo
do fazer-se da cidade preconizado por Edward
Thompson, e que foi mobilizado por Josiane Ce-
rasolli (2004) em sua análise da modernização
paulistana.
EIXO TEMÁTICO 2 REFERÊNCIAS
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16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
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Alameda, 2011.

MEYER, Regina Maria Prosperi; GROSTEIN,


Marta Dora. A leste do centro: territórios do
EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Esta mesa apresenta e discute experiências re-
alizadas junto a estudantes de escolas públicas
do ensino fundamental do Distrito Federal, João
mesa temática Pessoa, Buenos Aires e Neuquén, Argentina, a
partir de perspectivas disciplinares distintas,
neste caso, reunindo antropólogos e arquite-
HISTÓRIA DA CIDADE NO tos-urbanistas, em torno de um tema comum:
a cidade. Três desafios apresentam-se como os
ENSINO FUNDAMENTAL articuladores dos trabalhos reunidos.

O primeiro deles diz respeito à problematiza-


CITY’S HISTORY IN ELEMENTARY AND MIDDLE SCHOOL ção de nosso objeto de forma mais abrangen-
te: como o espaço físico constitui vivências,
HISTORIA DE LA CIUDAD EN EDUCACIÓN experiências estéticas e fonte instigante para
FUNDAMENTAL a pesquisa de seus jovens moradores? Como
sublinhar a historicidade do fato urbano, em
suas múltiplas camadas materialmente identifi-
BARROS, Amélia de Farias panet (Coord.); cáveis ou não? E como articular essa historici-
ANDRADE, Patrícia Alonso
dade às dinâmicas das práticas espaciais dadas
Doutora. Professora do Departamento de Arquitetura no presente e inscritas na esfera do cotidiano?
e Urbanismo da UFPB; Doutoranda. Professora do De que forma nossas diferentes visões disci-
Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFPB
plinares poderiam favorecer discussões sobre
ameliapanetbarros@gmail.com; pataalonso@gmail.com
história urbana, urbanismo, memórias sociais,
patrimônio, arte, o corpo e a percepção do es-
PEIXOTO, Elane Ribeiro (Coord.); SOLÉ, Julia Mazzutti Bastian paço, tensionados pelas relações de classe, de
Doutora. FAU/UnB; Mestranda em Teoria e História da gênero e de faixa etária? A partilha de um mes-
Arquitetura e do Urbanismo no PPG-AU/UnB mo tema de pesquisa acompanhada da nossa
elane26rp@gmail.com; julia.mazzuttimbs@gmail.com
clareza quanto à urgência em ampliar o interes-
se dos jovens pelas cidades, contribuindo para
MOURA, Cristina PATRIOTA DE; JANUZZI, Vinicius Prado prepará-los para nelas reconhecer o locus privi-
Doutora. Professora do Departamento de Antropologia legiado de cultura constituído pelos muitos gru-
da UnBrasília (DAN); Doutorando em Antropologia Social pos que compõem seu corpo social, em tensão
PPGAS/UnB
e em jogo.
patriotademoura@gmail.com; vpjanuzzi@gmail.com

O segundo desafio proposto pelos trabalhos


MILSTEIN, Diana constitui-se da construção de caminhos e pon-
Doutora em Antropologia Social. Centro de Investigaciones tes de comunicação com nossos interlocuto-
Sociales- Instituto de Desarrollo Económico y Social/ res: os jovens do ensino fundamental. De que
Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y maneira torná-los parceiros de pesquisa? A prá-
Tecnológicas (CIS-IDES/CONICET)
tica da sala de aula indicaria possibilidades de
diana.milstein4@gmail.com
produção de conhecimento conjunto (alunos e
pesquisadores)? Como transformar a cidade em
nosso livro texto e sala de aula?

Por fim, nosso terceiro desafio se refere às sín-


teses que as experiências com jovens do ensino
fundamental podem propiciar, indagando sobre
16º SHCU
a diversidade de expressão dessas sínteses.
30 anos . Atualização Crítica

966 A primeira comunicação, Rolê pela Cei: um guia


afetivo de Ceilândia apresenta os resultados de significá-lo. O paradigma modernista de Brasí-
trabalho conduzido por dois anos de pesquisa lia se mostrou chave interpretativa em ambas
junto aos estudantes de 9° ano do Centro de En- as experiências desenvolvidas: no Plano Piloto,
sino Fundamental de Ceilândia, a maior região pela crítica ou pelo elogio de estudantes que es-
administrativa de Brasília. Quais as relações que tudavam em escola da Asa Sul, mas que em qua-
os estudantes estabelecem com a cidade? Foi se sua totalidade moravam em outras cidades
essa nossa pergunta inicial. Em parceria com a do Distrito Federal; em Ceilândia, o Plano e seu
professora de Artes, propusemos um curso em Conjunto Urbanístico tombado como referentes
que a cidade seria o tema central a partir da qual de valorização ou de negação de singularidades
se formulariam questões sobre a percepção do da própria cidade e dos próprios espaços e ex-
espaço urbano e sobre os laços afetivos com ele periências.
estabelecidos. Em diálogo com a professora,
ajustamos nossa proposta de forma a permitir a A terceira comunicação, Educação urbana:
sobreposição de conteúdos de nosso interesse cidade e cidadania, apresenta os resultados de
ao que é exigido pela Secretaria de Educação. duas experiências de extensão com o envolvi-
Durante os anos de 2018 e 2019, propusemos mento de crianças e adolescentes do ensino
uma série de oficinas com os alunos com maior fundamental com o propósito de discutir a ci-
desenvoltura em perambular pela cidade, para dade em uma perspectiva transformadora. As
que assim nos ensinassem sobre suas práticas duas experiências fazem parte das atividades
espaciais. As oficinas eram antecedidas por desenvolvidas pelo Trama_ Escritório Modelo
aulas nas quais buscávamos apresentar conte- de Arquitetura e Urbanismo do Curso de Arqui-
údos mínimos de urbanismo e de princípios da tetura e Urbanismo da UFPB. São atividades
cidade modernista, da história de Brasília e de continuadas, a primeira delas, “Cidade e cida-
Ceilândia. Também queríamos ouvi-los sobre dania: educação urbana em João Pessoa/Pb”,
suas vivências de forma que nossos interlocu- propõe a criação, aplicação e divulgação de
tores pudessem nos mostrar uma Ceilândia da cartilhas sobre educação urbana e está em seu
qual apenas esboçávamos ideias vagas. Para segundo ano de desenvolvimento e, a segunda,
isso, propusemos a confecção de diários com “Projeto Participativo Mutirão na Vizinhança”
os trajetos casa-escola-casa; textos e dese- está em seu quarto, nessa última o foco é a
nhos que falassem sobre as formas de morar; execução de projetos de áreas coletivas, em co-
lugares importantes de convívio e de encontro. munidades carentes do município de Conde/Pb.
O conjunto de nossas experiências na cidade e As duas experiências consideram as crianças
o fabuloso cabedal de conhecimento generosa- e adolescentes como protagonistas das deci-
mente produzido pelos estudantes foram sendo sões no contexto do espaço urbano trabalha-
tramados com nossas leituras teóricas, e resul- do. Considera-se fundamental que as crianças
taram na elaboração de um guia afetivo da cida- conheçam e compreendam o espaço urbano
de. em que vivem e exercitem a reflexão crítica so-
bre as ações realizadas no cotidiano. As duas
A segunda comunicação, As escalas do patri- experiências, enquanto educação urbanística,
mônio: comunidades escolares e percursos na procuram despertar a consciência da respon-
cidade, propõe uma comparação entre expe- sabilidade individual e coletiva no processo de
riências etnográficas em escolas públicas de transformação de nossas cidades.
Ceilândia e do Plano Piloto. Durante atividades
desenvolvidas com jovens de ensino fundamen- A quarta comunicação, La ciudad vivida: los
tal, foi possível perceber, etnograficamente, o niños y los lugares, apresenta os resultados de
patrimônio cultural como categoria em cons- duas pesquisas realizadas em colaboração com
trução nos trajetos, nas percepções e nas vi- crianças dos primeiros anos de escolarização
vências na e com a cidade. Longe de configurá- em bairros populares, um na Cidade Atónoma de
-lo como algo dado a priori ou mesmo imutável, Buenos Aires (2004 - 2007) e outro, na cidade de
crianças e adolescentes mostraram, em ofici- Neuquém (2010 -2014), distante de Buenos Aires
nas, visitas, textos escritos, diferentes modos 1.200 km. Em ambos, foram realizados traba-
de se apropriar do espaço urbano, bem como de lhos de campo com as crianças que resultaram
EIXO TEMÁTICO 2 em desenhos, descrições e registros que per-
mitem a compreensão dos espaços da cidade a
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS partir de quem a faz (Agier, 2011). Busca-se, por
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES meio da análise do material produzido, contri-
buir para o entendimento de como as crianças
descrevem e classificam seus espaços e como
os fabricam de forma a torná-los compreensí-
veis.

As quatro comunicações propostas por profis-


sionais de arquitetura, urbanismo e antropolo-
gia indicam a complementaridade e os diálogos
possíveis, visando o entrelaçamento entres
os espaços físicos e os vividos a partir de uma
perspectiva muito particular: a de crianças e jo-
vens. Com elas espera-se tecer reflexões sobre
as indagações proposta por esta mesa.

ANTROPOLOGIA URBANISMO CIDADE CRIANÇAS


PERCEPÇÃO

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

968
ABSTRACT the city? That was our initial question. In partner-
ship with the Arts teacher, we proposed a course
in which the city would be the central theme from
This panel presents and discusses experiences which questions about the perception of urban
carried out with students at grades 6 to 9 from pu- space and the affective bonds established with it
blic schools in the Federal District, João Pessoa, would be formulated. In dialogue with the teacher,
Buenos Aires and Neuquén, Argentina. The studies we adjusted our proposal to allow the overlapping
are based on different disciplinary perspectives of content of interest to what is required by the
which bring together anthropologists and urban ar- Department of Education. During the years 2018
chitects, around a common theme: the city. three and 2019, we proposed a series of workshops with
challenges are presented as articulators for the students with greater ease in roaming the city, so
works here gathered. that they could teach us about their spatial prac-
tices. The workshops were preceded by classes in
The first of them concerns the problematization of
which we sought to present minimal contents of
our object in a broader sense: how does physical
urbanism and principles of the modernist city, the
space constitute life experiences, aesthetic expe-
history of Brasília and Ceilândia. We also wanted to
riences and an instigating source for research by its
hear from them about their experiences so that our
young residents? How is it possible to underline the
interlocutors could show us a Ceilândia from which
historicity of the urban fact, in its multiple mate-
we only sketched vague ideas. For this, we propo-
rially layers, not all of which are easily identifiable?
sed making diaries with the routes which students
And how can we link this historicity to the dynamics
took back and forth from home to school; texts and
of spatial practices given in the present and inscri-
drawings that talked about ways of living; impor-
bed in the sphere of everyday life? How could our
tant places of conviviality and meeting. The set of
different disciplinary views favor discussions about
our experiences in the city and the fabulous wealth
urban history, urbanism, social memories, heritage,
of knowledge generously produced by the students
art, the body and the perception of space, tensio-
were continuously plotted with our theoretical rea-
ned by class, gender and age group relations? The
dings, and resulted in the elaboration of an affecti-
sharing of the same research theme is accompa-
ve guide-book of the city.
nied by our certainty as to the urgency of expanding
young people’s interest in cities, helping to prepare The second communication, The scales of heritage:
them to recognize the privileged locus of culture school communities and routes in the city, propo-
constituted by the many groups that make up their ses a comparison between ethnographic experien-
social body, in tension and in Game. ces in public schools in Ceilândia and Plano Piloto.
During activities developed with elementary school
The second challenge proposed by the works is the
youth, it was possible to perceive, ethnographically,
construction of paths and bridges of communica-
cultural heritage as a category under construction
tion with our interlocutors: youngsters in school
in the paths, perceptions and experiences in and
settings. How can we make them research part-
with the city. Far from configuring it as something a
ners? Would the classroom practice indicate pos-
priori or even immutable, children and adolescents
sibilities for joint knowledge production (students
showed, in workshops, visits, written texts, diffe-
and researchers)? How can we transform the city
rent ways of appropriating the urban space, as well
into our textbook and classroom?
as of signifying it. The modernist paradigm of Brasí-
Finally, our third challenge refers to the syntheses lia proved to be an interpretive key in both experien-
which experiences with school students can provi- ces which developed: in Plano Piloto, by criticism or
de, asking about the diversity of expression of these by the praise of students who studied at a school in
syntheses. Asa Sul, but who mostly lived in other cities in the
Federal District; in Ceilândia, the Plan and its Urban
The first communication, Rolê pela Cei: an affec- Set considered as referents of valorization or denial
tive guide to Ceilândia, presents the results of the of singularities of the city itself and of the spaces
work carried out by two years of research with 9th
and experiences.
grade students at the school in Ceilandia, which is
the most populous administrative region in Brasi- The third communication, Urban education: city
lia. What relationships do students establish with and citizenship, presents the results of two ex-
EIXO TEMÁTICO 2 tension experiences with the involvement of ele-
mentary school children and adolescents with the
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS purpose of discussing the city in a transformative
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES perspective. Both experiences are part of the ac-
tivities developed by Trama_ Model Office of Archi-
tecture and Urbanism of the Architecture and Urba-
nism Course at UFPB. These are ongoing activities,
the first of which, “City and citizenship: urban edu-
cation in João Pessoa / Pb”, proposes the creation,
application and dissemination of booklets on urban
education and is in its second year of development
and, the second, “Participatory Project Mutirão na
Vizinhança ”is in his room, in the latter the focus is
on the execution of projects in collective areas, in
needy communities in the municipality of Conde /
Pb. Both experiences consider children and ado-
lescents as protagonists of decisions in the con-
text of the urban space worked on. It is considered
essential that children know and understand the
urban space in which they live and exercise critical
reflection on the actions taken in daily life. Both ex-
periences, as urban education, seek to raise aware-
ness of individual and collective responsibility in the
process of transforming our cities.

The fourth communication, La ciudad vivida: los


niños y los lugar, presents the results of two surveys
carried out in collaboration with children from the
first years of schooling in popular neighborhoods,
one in the City of Buenos Aires (2004 - 2007) and the
other, in city ​​of Neuquém (2010 -2014), distant from
Buenos Aires 1,200 km. In both, fieldwork was car-
ried out with the children that resulted in drawings,
descriptions and records that allow the unders-
tanding of the city spaces from those who make
it (Agier, 2011). It seeks, through the analysis of the
material produced, to contribute to the unders-
tanding of how children describe and classify their
spaces and how they manufacture them in order to
make them understandable.

The four communications, proposed by professio-


nals in architecture, urbanism and anthropology,
indicate complementarity and possible dialogues,
aiming at the intertwining between physical spa-
ces and daily life from a very particular perspective:
that of children and young people. The presenta-
tions and discussions are expected to reflect on the
questions proposed by this panel.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica ANTHROPOLOGY URBANISM CITY CHILDREN
970 PERCEPTION
RESUMEN Rolê pela Cei: um guia afetivo de Ceilândia pre-
senta los resultados del trabajo realizado por dos
años de investigación con los estudiantes de no-
Esta mesa redonda presenta y discute las ex- veno grado del Centro de Ensino Fundamental de
periencias llevadas a cabo con estudiantes de Ceilândia, la región administrativa más grande de
escuelas públicas de educación primaria en el Brasilia. ¿Qué relaciones establecen los estudian-
Distrito Federal, João Pessoa, Buenos Aires e tes con la ciudad? Esa fue nuestra pregunta ini-
Neuquén, en Argentina, desde diferentes pers- cial. En asociación con la profesora de Artes, pro-
pectivas disciplinarias, en este caso, reuniendo a pusimos un curso en el que la ciudad sería el tema
antropólogos y arquitectos urbanos, en torno a un central a partir del cual se formularían preguntas
tema común: la ciudad. Se presentan tres desafí- sobre la percepción del espacio urbano y los la-
os como articuladores de los trabajos reunidos. zos afectivos establecidos con él. En diálogo con l
maestra, ajustamos nuestra propuesta para per-
El primero de ellos se refiere a la problematizaci- mitir la superposición de contenidos de nuestro
ón de nuestro objeto de una manera más integral: interés a lo que requiere el Departamento de Edu-
¿Cómo el espacio físico constituye experiencias, cación. Durante los años 2018 y 2019, propusimos
incluso las estéticas, y una fuente instigadora una serie de talleres con estudiantes con mayor
para la investigación de sus jóvenes residentes? facilidad para recorrer la ciudad, para que pudie-
¿Cómo subrayar la historicidad del hecho urbano, ran enseñarnos sobre sus prácticas espaciales.
en sus múltiples capas materialmente identifica- Los talleres fueron precedidos por clases en las
bles o no? ¿Y cómo vincular esta historicidad con que buscamos presentar contenidos mínimos de
la dinámica de las prácticas espaciales dadas en urbanismo y principios de la ciudad modernista,
el presente e inscritas en la esfera de la vida coti- la historia de Brasilia y Ceilândia. También querí-
diana? ¿Cómo podrían nuestros diferentes puntos amos saber de ellos sobre sus experiencias para
de vista disciplinarios favorecer las discusiones que nuestros interlocutores pudieran mostrarnos
sobre la historia urbana, el urbanismo, los recuer- una Ceilândia de la cual solo esbozamos ideas va-
dos sociales, el patrimonio, el arte, el cuerpo y la gas. Para esto, propusimos hacer diarios con las
percepción del espacio, tensas por las relaciones rutas hogar-escuela-hogar; textos y dibujos que
de clase, género y grupo de edad? Compartir el hablaban sobre formas de vivir; lugares impor-
mismo tema de investigación, acompañado de tantes de convivencia y reunión. El conjunto de
nuestra claridad en cuanto a la urgencia de ex- nuestras experiencias en la ciudad y la fabulosa
pandir el interés de los jóvenes en las ciudades, riqueza de conocimiento generosamente produ-
contribuyendo a prepararlos para reconocer allí cida por los estudiantes se trazaron con nuestras
el privilegiado lugar de la cultura constituido por lecturas teóricas, y dieron como resultado la ela-
los muchos grupos que conforman su cuerpo so- boración de una guía afectiva de la ciudad.
cial, en tensión y en juego.
La comunicación As escalas do patrimônio: co-
El segundo desafío propuesto por los trabajos es munidades escolares e percursos na cidade pro-
la construcción de caminos y puentes de comuni- pone una comparación entre las experiencias
cación con nuestros interlocutores: jóvenes en la etnográficas en las escuelas públicas de Ceilân-
escuela primaria. ¿Cómo podemos hacerlos so- dia y Plano Piloto. Durante las actividades desar-
cios de investigación? ¿La práctica en el aula in- rolladas con jóvenes de la escuela primaria, fue
dicaría posibilidades para la producción conjunta posible percibir, etnográficamente, el patrimonio
de conocimiento (estudiantes e investigadores)? cultural como una categoría en construcción en
¿Cómo podemos transformar la ciudad en nues- los caminos, percepciones y experiencias en y
tro libro de estudio y aula? con la ciudad. Lejos de configurarlo como algo a
priori o incluso inmutable, los niños y adolescen-
Por fin, nuestro tercer desafío se refiere a las sín- tes mostraron, en talleres, visitas, textos escri-
tesis que pueden proporcionar las experiencias tos, diferentes formas de apropiación del espacio
con los jóvenes en la escuela primaria, pregun- urbano, así como de su significado. El paradigma
tando sobre la diversidad de expresión de estas modernista de Brasilia demostró ser una clave
síntesis. interpretativa en ambas experiencias desarrolla-
EIXO TEMÁTICO 2 das: en Plano Piloto, por la crítica o por el elogio
de los estudiantes que estudiaban en una escuela
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS en Asa Sul, pero que vivían casi todos en otras ciu-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES dades del Distrito Federal; En Ceilândia, el Plan y
su Conjunto Urbano listado como patrimônio his-
torico se consideran referentes de valorización o
negación de las singularidades de la ciudad y de
los propios espacios y experiencias.

La comunicación Educação urbana: cidade e ci-


dadania presenta los resultados de dos experien-
cias de extensión con la participación de niños y
adolescentes de la escuela primaria, con el obje-
tivo de discutir la ciudad desde una perspectiva
transformadora. Ambas experiencias son parte
de las actividades desarrolladas por la oficina del
Curso de Arquitectura y Urbanismo de la UFPB
(Trama). Estas son actividades secuenciadas
donde la primera de ellas Ciudad y ciudadanía:
educación urbana en João Pessoa / PB propo-
ne la creación, aplicación y difusión de folletos
sobre educación urbana y está en su segundo
año de desarrollo y, en la segunda experiencia,
Proyecto participativo fuerza de tarea (Mutirão)
en las cercanías sigue en su cuarto año y se en-
foca en el desarrollo y ejecución de proyectos en
áreas colectivas, plazas y áreas verdes, en comu-
nidades necesitadas en el municipio de Conde /
PB. Ambas experiencias consideran a los niños y
adolescentes como protagonistas de las decisio-
nes en el contexto del espacio urbano trabajado.
Se considera esencial que los niños conozcan
y entiendan el espacio urbano en el que viven y
ejerzan una reflexión crítica sobre las acciones
tomadas en la vida diaria. Ambas experiencias,
como procesos de educación urbana, buscan
crear conciencia sobre la responsabilidad indivi-
dual y colectiva en el proceso de transformación
de nuestras ciudades.

La cuarta comunicación, La ciudad vivida: los


niños y los lugares, presenta los resultados de dos
encuestas realizadas en colaboración con niños
de los primeros años de escolaridad en barrios
populares, uno en la Ciudad Autónoma de Buenos
Aires (2004 - 2007) y el otro, en la ciudad de Neu-
quém (2010-2014), distante de Buenos Aires 1.200
km. En ambos, el trabajo de campo que se llevó
a cabo con los niños resultó en dibujos, descrip-
16º SHCU ciones y registros que permiten una comprensión
30 anos . Atualização Crítica
de los espacios de la ciudad basada en quienes la
972 hacen (AGIER, 2011). Se busca, a través del análisis
del material producido, contribuir a la compren-
sión de cómo los niños describen y clasifican sus
espacios y cómo los fabrican para que sean com-
prensibles.

Las cuatro comunicaciones propuestas por pro-


fesionales de la arquitectura, el urbanismo y la
antropología indican complementariedad y po-
sibles diálogos, con el objetivo de entrelazar los
espacios físicos y vividos desde una perspectiva
muy particular: la de los niños y los jóvenes. Con
ellos se espera reflexionar sobre las preguntas
propuestas por esta mesa.

ANTROPOLOGÍA URBANISMO CIUDAD NIÑOS


PERCEPCIÓN
EIXO TEMÁTICO 2 ROLÊ PELA CEI: UM GUIA AFETIVO DE CEILÂNDIA
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
Ceilândia é uma das Regiões Administrativas do
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
Distrito Federal, precisamente a nona. Região
Administrativa é a atual designação para as cida-
des-satélites de Brasília, que preferimos chamar
mesa temática
de cidades. O nome Ceilândia deriva da Campanha
de Erradicação das Invasões (CEI) empreendi-

HISTÓRIA DA CIDADE NO da durante a década de 1970 como o propósito


de deslocar uma população de cerca de 80.000

ENSINO FUNDAMENTAL pessoas que viviam nas imediações do que hoje


é o Núcleo Bandeirante e, antes, a Cidade Livre.
Conhecida como a Vila IAPI, o complexo de as-
CITY’S HISTORY IN ELEMENTARY AND MIDDLE SCHOOL sentamento informal, compreendia o Morro do
Urubu, o Curral das Éguas, o Morro do Querosene,
HISTORIA DE LA CIUDAD EN EDUCACIÓN entre outras. Os argumentos que sustentavam
FUNDAMENTAL a campanha para a remoção dessa população
respaldam-se nos preceitos higienistas e nos
estudos de cunho técnico que visavam a proteção
da bacia do principal rio da cidade, o Paranoá.

O plano urbanístico da nova cidade é de autoria


do arquiteto Ney Gabriel, à época, funcionário da
NOVACAP. Tudo foi feito em toque de urgência,
porém, o processo de remoção das famílias foi ob-
jeto de um bem pensado e articulado conjunto de
ações que envolviam o cadastramento dos núcleo
familiares, campanhas com jingles circulando em
escolas de ensino fundamental e colaboração de
padres e pastores que convenciam a população
sobre os benefícios da nova cidade. Entre esses
benefícios, o mais convincente era a oportunidade
de ter um lote próprio com a documentação cor-
reta. Desta forma em 1971, 80.000 pessoas foram
realocadas na nova “cidade-satélite” de Brasília,
localizada a 30 km do Plano Piloto.

As famílias eram removidas com ou sem a ajuda


do transporte dos poderes distritais. Mas não só
as pessoas foram deslocadas, as antigas casas
de madeira da Vila do IAPI chegaram a Ceilândia
acompanhadas de seus donos nas carrocerias dos
caminhões, pois, o material de que eram feitas
serviria para construção das casas provisórias a
serem erguidas no fundo dos lotes. Muitas agruras
do início da cidade são relatadas por seus mora-
dores pioneiros: falta de água, poeira, vento e frio,
falta de transporte e energia - a imagem inspirada
por eles é a de um acampamento de refugiados.
16º SHCU Esses relatos fazem parte do Programa de His-
30 anos . Atualização Crítica
tória Oral do Distrito Federal e estão disponíveis
974 no Arquivo Público.
Passaram-se quase 50 anos da criação de Cei- Além do acréscimo dos novos bairros, Ceilândia se
lândia que, hoje, concentra a maior população do reconstruiu sobre si mesma. As casas provisórias
Distrito Federal .Novos bairros foram somados ao foram sendo substituídas por outras de alvenaria
núcleo inicial da cidade que, atualmente com o Sol e a própria dinâmica e arranjo de seus moradores,
Nascente, Pôr do Sol, Taguatinga e Águas Claras, em busca de responder às exigências de seus
Vicente Pires - outras Regiões Administrativas do grupos familiares ou de renda, transformaram a
DF - compõe uma mancha urbana contínua, sepa- estrutura fundiária da cidade forçando mudanças
rada do Plano Piloto em decorrência do perímetro legais sempre a reboque dela. (Figura 1)
de tombamento que lhe resguarda de conurbação.

Figura 1- Evolução urbana de Ceilândia – página dupla do guia. Fonte: Estúdio Marujo (2020)

É sobre esta cidade que nosso trabalho se viver nesta escala urbana. Para isto, sediamos
debruçou, não poderíamos apresentá-lo sem nossos trabalhos de campo em duas escolas de
esta brevíssima história de Ceilândia, todavia, ensino fundamental, uma no Plano Piloto e outra
não podemos prosseguir na sua apresentação na Ceilândia, a comunidade escolar envolve uma
sem pormenorizar a pesquisa que lhe deu origem. amostra significativa de moradores: alunos, fun-
O ponto de partida foi uma parceria firmada entre cionário, professores e pais. Ceilândia foi o nosso
dois laboratórios da Universidade de Brasília, o La- destino e, nela, o Centro de Ensino Fundamental
beurbe da Faculdade de Arquitetura e o Laviver do 19, nossa base de pesquisa durante dois anos.
Departamento de Antropologia. Nosso intuito era Trabalhos conjuntamente com a professora de
propor uma pesquisa interdisciplinar de forma que Artes e com estudantes de 9° ano, com idade
ela nos permitisse ultrapassar nossas formações suficiente para terem autonomia de movimento
específicas. Nosso objeto era a Brasília metrópole pela cidade. Nossa intenção primeira era tornar a
que buscamos compreender em suas dinâmi- história urbana um assunto de interesse de nossos
cas e movimentos. Nos perguntávamos sobre o jovens parceiros, ao mesmo tempo, indagávamos
EIXO TEMÁTICO 2 sobre os elos que esses jovens estabelecem com
o lugar em que vivem. Dividimos nosso programa
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS de atividades em aulas sobre a história da cidade,
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES confecção de maquetes, produção de diários com
a duração de uma semana, onde fossem anota-
das as percepções dos trajetos; e os passeios
exploratórios começando pela proximidade da
escola e alçando círculos maiores até ultrapas-
sarem a própria Ceilândia para visitas ao Plano
Piloto, buscando entrever nesta deambulação a
metrópole Brasília. (Figura 2)

Figura 2- Portões de casas da Ceilândia – página dupla do


guia. Fonte: Estúdio Marujo (2020)

Nossos passeios pela Cei foram um mergulho em


uma cidade que sabíamos por meio dos livros,
artigos e estudos acadêmicos. Aos transpormos
os altos muros do CEF 19 encimado por cerca de
arame, fomos guiadas por nossos jovens com-
panheiros com quem descobrimos as práticas
locais, os modos de morar, de consumir, cele-
brar e festejar. Nossas aventuras resultaram em
16º SHCU material precioso que, mesclados às nossas ex-
30 anos . Atualização Crítica periências e pesquisas na e sobre a cidade, e às
976 nossas leituras teóricas, vindas da História Oral,
das questões sobre memória social, patrimônio EDUCAÇÃO URBANA: CIDADE E CIDADANIA
e identidade resultaram num guia afetivo da ci-
dade a que chamamos “Rolê pela Cei”. Nele, uma A comunicação ‘Educação urbana: cidade e cida-
menina fala de sua cidade que descobre por meio dania’ apresenta os resultados de duas experiên-
de diálogos com a avó e o pai, trespassando, por cias de extensão com o envolvimento de crianças
assim dizer, as três gerações de uma múltipla e adolescentes do ensino fundamental com o
Ceilândia. Os personagens são ficções que se propósito de discutir a cidade em uma perspectiva
sustentam num mundo real apreendido por meio transformadora. A questão motivadora para as
de nossos parceiros de trabalhos. Esperamos, investigações volvia em torno da responsabili-
com alguma sensibilidade, apresentar este outro dade que a universidade pública, especialmente
lado da história e atualidade de Ceilândia. o curso de arquitetura e urbanismo, deveria ter
no comprometimento com ações de combate
Palavras-chave: Ceilândia, crianças, história ur-
ao analfabetismo urbanístico, principalmente
bana
junto às crianças e adolescentes, para promover
a identificação de todos como agentes trans-
formadores da cidade. Nesse sentido, docentes
e estudantes envolvidos com as atividades do
Trama_ Escritório Modelo de Arquitetura e Ur-
banismo do Curso de Arquitetura e Urbanismo da
UFPB desenvolveram projetos de extensão que
pudessem contribuir com a educação urbana nas
novas gerações. Assim, em 2017 surgiu o ‘Projeto
Participativo Mutirão na Vizinhança’ e, em 2019,
o projeto ‘Cidade e cidadania: educação urbana
em João Pessoa’, ambos procuram contribuir
com a transformação das cidades tendo como
protagonistas as crianças e adolescentes das
comunidades envolvidas.

O ‘Projeto Participativo Mutirão na Vizinhança’


é um projeto de assistência técnica resultan-
te de uma parceria entre o Trama, a Prefeitura
Municipal de Conde-PB e a população residente
em comunidades do município, especialmente
as crianças e adolescentes. (Figura 03) Um dos
objetivos é o desenvolvimento e execução de
projetos de arquitetura e urbanismo social de
maneira participativa. O projeto tem como foco
espaços públicos localizados nas comunidades
parceiras, não utilizados adequadamente, que
possuam potencial para se tornarem locais de
convívio coletivo, que sejam objeto de interesse
da população local para melhorá-los, ocupá-los
e mantê-los ativos. A escolha do local e a inicia-
tiva de transformá-los é da comunidade, apoiada
financeiramente pela gestão pública e parceiros,
com a assistência técnica da universidade. Os pro-
jetos são pensados com a comunidade parceira,
cujo processo é intermediado por ferramentas
que estimulam a participação e reflexão crítica,
de maneira que as transformações sugeridas nos
espaços são vistas como decisões democráticas,
EIXO TEMÁTICO 2 pactuadas por todos, onde a população é o princi-
pal agente transformador. As crianças possuem
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS especial importância nas escolhas das atividades
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES que serão desenvolvidas nos espaços coletivos,
participando ativamente de todo o processo.

O ‘Projeto Participativo Mutirão na Vizinhança’


está em sua quarta edição com impactos positi-
vos nas comunidades parceiras, na comunidade
acadêmica e na gestão pública. Em 2017, o pro-
jeto desenvolveu a Praça da Amizade no Lotea-
mento Ademário Régis, finalizando sua execução
em 2018. Ainda em 2018, foram trabalhados o
projeto do Museu Quilombo Ipiranga e a Praça
das Castanholas no Loteamento Nossa Senhora
das Neves. Em 2019, a Praça de Guaxinduba e,
em 2020, a extensão está na Comunidade São
Bento. Durante o processo de desenvolvimento
dos projetos percebe-se uma troca entre profis-
sionais, universidade e população sobre técnicas
de construção e gestão de projeto. A construção
coletiva de espaços de convívio tem contribuído
para sua apropriação pelas comunidades par-
ceiras e para o desenvolvimento do sentimento
de pertencimento e responsabilidade no ato de
ocupar, usufruir e manter tais espaços. Para a
gestão pública esse projeto vem contribuindo
para a aproximação e o envolvimento com a po-
pulação carente do município, permitindo a com-
preensão de suas necessidades mais prementes.
Para a comunidade acadêmica esse envolvimento
com a cidade real contribui com o aprendizado
de tecnologias sociais, com a reflexão crítica e o
desenvolvimento da responsabilidade social do
arquiteto e urbanista, cada vez mais próximos
das necessidades existenciais.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

978
Figura 3 – Processo Participativo Mutirão na Vizinhança. Fonte: Trama (2020)

A metodologia de desenvolvimento dos projetos utilizando como base, vivências realizadas com
enquanto processos participativos é compreen- alunos da Escola Estadual de Ensino Fundamental
dido como práticas projetuais centradas nos usu- Francisco Campos em João Pessoa. Algumas
ários, tendo como base princípios democráticos oficinas foram realizadas com os alunos para
de decisão e participação, procurando nivelar as compreender suas relações com a cidade, de que
hierarquias de posturas e saberes. Cinco etapas maneira eles percebiam o universo urbano, quais
compõe o processo: 1) o reconhecimento, levan- as distorções conceituais perpetuavam como
tamento e problematização; 2) realização das compreensão das problemáticas urbanas e, que
Oficinas de Ideias; 3) elaboração da Maquete dos valores e experiências essas crianças comparti-
Desejos; 4) elaboração do projeto executivo; 5) lhavam conosco, como usuárias reais da cidade
mutirão de execução. Para o desenvolvimento de com todas as dificuldades encontradas em seus
propostas capazes de transformar e dar vitalidade contextos particulares. Diante da realidade urbana
aos espaços, algumas ferramentas são utiliza- percebida por meio dos olhares infantis, alguns
das para colaborar com o processo participativo, eixos conceituais foram elencados para fazerem
entre elas, o Photovoice (WANG;BURRIS, 1997), parte do material gráfico a ser trabalhado nas
a Maquete dos Desejos inspirada no Wish Poem cartilhas e, posteriormente, desenvolvido com as
(SANOFF, 2000) e o Future Search (CREIGHTON, crianças. Assim, questões como história urbana,
2005). As crianças possuem especial importância habitabilidade, mobilidade e meio ambiente estão
nas oficinas de ideias, na construção da Maquete sendo desenvolvidas em formato de cartilha para
dos Desejos e no Photovoice. que sejam exploradas como material didático
interativo junto aos alunos do ensino médio. As
A segunda experiência, o projeto ‘Cidade e cida- duas experiências, portanto, enquanto educação
dania: educação urbana em João Pessoa’, de- urbanística, procuram despertar a consciência da
senvolvido desde 2019, propõe a criação, apli- responsabilidade individual e coletiva no processo
cação e divulgação de cartilhas sobre educação de transformação de nossas cidades.
urbana. Durante o ano de 2019 foi estruturado
o esboço de uma cartilha com conceitos urba- Palavra-chave: Educação Urbana; Athis; Projeto
nísticos destinados às crianças de 10 a 14 anos, Participativo
EIXO TEMÁTICO 2 REFERÊNCIAS
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
CREIGHTON, James L. The public participation
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
hand-book: Making better decisions through
citizen involvement. John Wiley & Sons, 2005.

SANOFF, H. Community Participation Methods


in Design and Planning. Landscape and Urban
Planning, 2000.

WANG, C.C., BURRIS, M. A. Photovoice: Con-


cept, methodology, and use for participatory
needs assessment. Health Education and
Behavior, 1997.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

980
AS ESCALAS DO PATRIMÔNIO: COMUNIDADES A partir de momentos que contaram com variados
ESCOLARES E PERCURSOS NA CIDADE graus de atenção dos estudantes nas atividades
da oficina, bem como de seus depoimentos ao lon-
go do próprio semestre, percebemos diferentes
Nesta comunicação, procuramos articular duas
modos de apropriação da cidade, de percorrê-la
experiências de pesquisa em Brasília, feitas com
e de ocupá-la. A despeito das tentativas recor-
estudantes de escolas públicas do Plano Piloto
rentes da equipe em evidenciar as características
e de Ceilândia. Embora com contornos e propó-
modernas da superquadra “modelo”, a integração
sitos relativamente diferentes, as experiências
entre as escalas previstas no planejamento da
de campo evidenciaram caminhos geográficos e
cidade, prevaleceu o distanciamento dos estu-
simbólicos da construção do patrimônio cultural
dantes em relação a esse patrimônio, quando,
no Distrito Federal, com percepções de aprovação
não raro, atribuições posicionais de valor, como
e de crítica ao patrimônio moderno da capital
na frase recorrente proferida pelos estudantes
brasileira, reconhecido internacionalmente pela
de que “isso aí é coisa de rico, eu moro em lugar
Unesco e por instituições nacionais. As escalas
de pobre”.
do patrimônio, como argumentamos, dizem res-
peito ao processo de constituição da variedade A segunda experiência etnográfica foi acompa-
e da singularidade da experiência urbana em es- nhada por um dos autores em rotina de trabalho
cala metropolitana. Essa experiência é mediada como servidor público no Instituto do Patrimônio
por acessos diferenciais a espaços públicos, por Histórico e Artístico Nacional, mais especifica-
meios de transporte utilizados, por escolhas pes- mente em sua Superintendência no Distrito Fe-
soais e familiares, bem como por marcadores deral. No ano de 2019, foi realizada, em Ceilândia,
sociais de gênero, raça, classe e geração. pesquisa com estudantes e professoras de cinco
escolas públicas da cidade, além de uma orga-
A primeira experiência etnográfica ocorreu em nização da sociedade civil, com a aplicação da
2018, em pesquisa com a comunidade escolar do ferramenta dos Inventários Participativos, meto-
Centro de Ensino Fundamental (CEF) 02, locali- dologia de construção colaborativa em Educação
zado na Superquadra Sul 107, no Plano Piloto de Patrimonial. O objetivo foi executar, com cada
Brasília. Ao longo de dois semestres letivos, uma uma das escolas, pequenos projetos de seleção,
equipe composta pelos dois autores deste artigo, categorização e enumeração de patrimônios cei-
uma estudante de mestrado e uma graduanda em landenses, a partir de seus próprios universos de
antropologia participaram de oficinas temáticas referência cultural e de suas vivências na e com
cujo propósito foi trabalhar as experiências ur- a cidade.
banas de estudantes de sexto e sétimo anos do
ensino fundamental, tanto no entorno da escola Ao longo do processo, multifacetado pelo próprio
quanto em seus trajetos pela cidade. formato adotado, alguns sentidos comuns se so-
bressaíram: a “descoberta” de referências cultu-
As atividades foram compostas desde momentos rais locais como parte dos trajetos (geográficos
de redação (de poemas, de textos dissertativos, de e de pesquisa) percorridos pelos estudantes; os
músicas) em sala de aula, até visitas à Praça dos conflitos entre experiências urbanas de diferentes
Três Poderes e à superquadra 308 sul, a aproxima- gerações, em suas respectivas valorações acerca
damente 10 minutos a pé da escola, e considerada, do que pode ser considerado “bonito”, “feio, “velho”,
pelos seus próprios moradores, como a “quadra “novo”; o encontro com histórias familiares, mas
modelo” de Brasília. Ambas as superquadras estão desconhecidas, sobre o processo de formação
nos limites da chamada Unidade de Vizinhança da cidade; o contraponto regular entre Ceilândia
n. 1, única no Plano Piloto a contemplar pratica- e o Plano Piloto, em relações polissêmicas de
mente todas as diretrizes urbanísticas de Lucio crítica e elogio.
Costa quanto à integração entre equipamentos
urbanos de uso público, blocos residenciais de As experiências de pesquisa nos levaram a cons-
apartamentos e espaços públicos - com exceção, tatar que um projeto como os empreendidos será,
apenas, de prédio destinado aos Correios, nunca em primeira instância, completamente distinto do
construído. pretendido inicialmente. Em ambas, a disposição
EIXO TEMÁTICO 2 e a ação dos participantes foi a linha de condu-
ção das atividades, seja de modo mais direto, no
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS caso do CEF 02, seja indiretamente, a partir dos
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES professores no caso de Ceilândia. A relação com
o patrimônio, com aquilo a que é dada relevância,
mostrou-se como fenômeno vinculado ao que
é próximo, íntimo, vivido. Mostrar a história de
Brasília pelas lentes da contribuição daqueles
que as planejaram foi, nesse sentido, insuficiente,
embora tenha acionado momentos de compara-
ção com vivências particulares e, com o tempo,
contribuído para a valorização de experiências e
relações locais na cidade. Menos do que conven-
cê-los da “beleza” do modernismo urbanístico e
arquitetônico, pudemos, às avessas, perceber a
cidade em sua multiplicidade de cotidianos, de
valores e de tensões - nem sempre os mesmos,
nem sempre nas mesmas configurações.

Palavras-chave: Brasília; Ceilândia; patrimônio


cultural.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

982
LA CIUDAD VIVIDA: LOS NIÑOS Y LOS LUGARES REFERÊNCIAS

Una ciudad, un barrio, una calle o una plaza no AGIER, M. Antropologia da cidade. Lugares, situa-
son “cosas” que podamos ver, ni “objetos” que ções, movimentos. São Paulo: Terceiro Nome, 2011.
podamos aprehender como totalidad, sino que
son aprehensibles en la medida en que captemos
situaciones y eventos vividos y sentidos por gente
que los habita. Los trabajos de investigación con
la colaboración de niños de escuela primaria que
he realizado reafirmaron la relevancia que tiene
acceder a la comprensión de los espacios junto
con quienes también “hacen la ciudad” (Agier, 2011).
En esta presentación compartiré experiencias
de dos proyectos de investigación realizados en
barrios populares de Argentina, uno situado en
el conurbano de la Ciudad Autónoma de Buenos
Aires -entre 2004 y 2007- y el otro de la ciudad de
Neuquén -entre 2010 y 2014-, 1200 km al sur de
la primera. En ambos proyectos organizamos un
equipo de entre seis y nueve niños estudiantes
de escuelas primarias con quienes realizamos
trabajo de campo, análisis y presentación de
resultados en textos que incluyeron además de
escritura, dibujos y fotografía. A través del relato
y la descripción de las experiencias que incluirá
datos y análisis de los estudios realizados, inten-
taré dar cuenta de cómo el paisaje urbano de los
barrios donde residían los niños fue (re)diseñado
y (re) clasificado, cómo “fabricaban” lugares vol-
viéndolos accesibles a nuestras posibilidades de
ver, escuchar y entender, cómo las clasificaciones
utilizadas por los niños se diferenciaban y, a ve-
ces, complejizaban otras clasificaciones usadas
habitualmente en las escuelas y los medios ma-
sivos de comunicación. La presentación incluirá
también referencias a la vida urbana contada por
niños tomadas de una investigación etnográfi-
ca que iniciamos en abril de 2020 (en tiempos
de pandemia) cuyo trabajo de campo se realiza
con modalidades virtuales no presenciales -la
mayoría virtuales- en colaboración con niños.
Me apoyaré en estas referencias que presentaré
a través de textos producidos por los niños para
discutir como esas formas de “fabricar” lugares,
(re) diseñar y (re) clasificar espacios urbanos se
sostienen como dinámicas inscriptas en la coti-
dianeidad en tiempos de aislamiento

Palabras-clave: Niños; Ciudad Autónoma de Bue-


nos Aires; ciudad de Neuquén
EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES A urbanização moderna é umbilicalmente ligada à
expansão do capitalismo. No longo curso da his-
tória desse parto, as dinâmicas sociais do pas-
mesa temática sado foram sucessivamente sendo substituídas
por novas formas sociais. Foi com o capitalismo
que a determinação da coexistência urbana dos
HISTÓRIA DA CIDADE, indivíduos passou a ser estruturada em torno da
categoria de reconhecimento social baseada nas
POLÍTICAS DO PRESENTE, formas mercadoria e valor da mediação social. É
com a modernidade que a Europa se lança como
ECONOMIA DO FUTURO berço das cidades como conhecemos, organizan-
do um princípio estrutural da organização social
baseada na lógica da reprodução ampliada do
HISTORY OF THE CITY, POLITICS OF THE PRESENT AND
capital e que marca o nascimento, segundo Le-
THE ECONOMY OF THE FUTURE
febvre (2019), da cidade industrial. Tratava-se de
submeter às determinações de uma nova forma
CANETTIERI, Thiago econômica em ascensão. Essa forma econômica
não é outra senão aquela que Marx (2013) descre-
Doutor em Geografia; UFMG
ve e analisa em sua obra: um sistema de media-
thiago.canettieri@gmail.com
ção social baseado na produção de mercadorias
como uma forma de dominação social pelo tempo
VELLOSO, Rita
e de acumulação de riquezas socialmente produ-
Doutora em Filosofia; UFMG zidas por uma pequena parcela da população, ain-
ritavelloso@gmail.com
da que isso signifique a penúria para a maior parte
daqueles que a produzem.
TUPINAMBA, Gabriel
Doutor em Filosofia; UFRJ/CEII A consolidação do capitalismo foi demorada devi-
gabrieltupinamba@mac.com do a inércias históricas e a vários entraves ao seu
pleno desenvolvimento. Até ao menos o século
VALLE, William XVII e parte do XVIII, o sistema corporativo ainda
tinha tremenda força e a maior parte da economia
Doutorando em Engenharia de Produção; Brigadas
Populares não era baseada nas cidades.
williamazalim@gmail.com
Vários foram os expedientes usados, como a co-
erção da lei, para transformar servos e artesãos
em operariados das cidades. Com o cercamento
dos campos a cidade realmente significava a úni-
ca possibilidade de sobrevivência. Foi nesse con-
texto que se deu a formação da oferta do insumo
mais necessário ao capital: a força de trabalho.
Assim, por um lado, segundo Marx (2013), a classe
dos trabalhadores nasce juridicamente livre para
negociar como bem entender os termos da venda
de sua única mercadoria, a energia vital sob a for-
ma de força de trabalho. Entretanto, por outro, o
sistema capitalista, em sua dominação abstrata,
significa incorporar para todos a “ditadura do sa-
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
lário” como única forma de poder sobreviver.

984 Diante desse cenário, o século XIX inicia-se mar-


cado por um intenso processo de urbanização. começa a falhar (ENZENSBERGER, 1993; KURZ,
Não seria equivocado dizer que a urbanização, 1991). Resultado das contradições interna dessa
portanto, está ligada à formação do proletariado forma historicamente determinada de mediação,
industrial europeu e, por consequência, ao capi- que se desenvolve cegamente num movimento
talismo. A título de ilustração, basta ver que entre automático, a constante busca por produtividade
1750 e 1800 a população de Londres saltou de 675 capaz de fazer aumentar a apropriação do mais
mil para 1 milhão e 117 mil; e em Paris, no mesmo valor ao mesmo tempo solapou as bases da cria-
período, cresceu quase 30% (LAMAS, 2007). ção do valor ao eliminar o trabalho dos processos
produtivos, sua substância.
Com isso, o cenário de uma intensa urbanização
passou a assolar toda a Europa do século XIX, Com isso, a própria ideia de progresso é desati-
cenário esse que, desde então, não encontrou vada e já não funciona como legitimação social.
freios. À época, ainda que não tenha sido objeto Essa crise é sentida em diferentes âmbitos que
das análises minuciosas de Marx, seu colabo- passam a experimentar um declínio das expecta-
rador, Engels (2008), ao descrever A situação da tivas (LASCH, 1979; ARANTES, 2014). Com a cida-
classe trabalhadora na Inglaterra, não tinha outra de e o urbanismo não poderia ser diferente.
opção senão atentar para o intenso processo de
crescimento das cidades, o que significava pre- As transformações recentes da economia política
cariedade para a maior parte da população – e não alteram, também, nossa concepção de cidade e a
mais liberdade, como queria o provérbio medieval. forma como pessoas e grupos percebem, agem e
Na literatura tal fenômeno não passou desperce- legitimam os processos espaciais. Uma era de ex-
bido já que produziu obras como as de Charles Di- pectativas decrescentes obriga uma reconfigura-
ckens, Charles-Pierre Baudelaire, Victor Hugo e ção das nossas concepções históricas de cidade
Émile Zola, nas quais estão narradas as condições e urbanismo. Mas não apenas. Obriga também a
degradantes da urbanização do século XIX depois (re)pensar nossos repertórios políticos disponí-
da assim chamada Revolução Industrial. veis para disputar a transformação da cidade, as
formas de organização coletiva voltadas para a
Tal situação degradante acarretou custos ao pro- efetivação do direito à cidade (LEFEBVRE, 2001).
cesso de acumulação, pois produziu desecono-
mias e disfunções profundas. Assim, uma certa Assim, essa mesa temática pretende discutir os
concepção de intervenção no espaço da cidade atuais processos derivados das transformações
poderia ser possível para ajustar, normalizar, fun- do processo de acumulação de capital e como
cionalizar e otimizar o espaço urbano tendo como esses são recebidos por diferentes grupos que
horizonte a organização da sociedade (ou da eco- produzem as cidades. Portanto, buscamos re-
nomia). Assim, desenvolvem-se uma série de téc- fletir sobre a história da cidade e do urbanismo e
nicas e de ideias voltadas à intervenção no espaço suas transformações recentes que indicam uma
da cidade que recebem o nome de “urbanística”. O “economia política do futuro” - expressão que
ordenamento do espaço por meio da prática do usamos para referir as modificações nos regimes
urbanismo aparece, assim, como uma saída pos- de acumulação de um capital em crise que, con-
sível - e necessária - para a melhoria da cidade sequentemente, altera também sua ideologia de
(BENEVOLO, 1983). legitimação.

Essa concepção, tributária dos preceitos ilumi- Discutimos a partir da história das cidades e suas
nistas, se baseava na ideia legitimadora da mo- transformações recentes: (i) os problemas ao per-
dernidade: o progresso (KOSELLECK, 2003). Tal ceber tais transformações; (ii) as estratégias de
legitimação foi, assim, a pedra de toque de boa organização das insurgências urbanas; e (iii) so-
parte do urbanismo - orientado por uma certa bre as formas de concepção de uma prática social
pretensão de desenvolvimento por meio do pro- que supere o decaimento das expectativas. Esses
gresso. Assim, foram esses os ideais que anima- três eixos estão em relação, conectados à um
ram a prática dos urbanistas e conformou uma pensamento que pense a possível prática urbana
certa concepção de história das cidades. intuída por Henri Lefebvre (2019).

Contudo, a partir dos anos 1970 uma crise do sis-


tema capitalista se tornou evidente. O progresso HISTÓRIA CIDADE POLÍTICA INSURGÊNCIA
EIXO TEMÁTICO 2 ABSTRACT
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Modern urbanization is closely linked to the ex-
pansion of capitalism. In the course of the history
of this birth, the social dynamics of the past have
been successively replaced by new social forms.
It was with capitalism that the determination
of the urban coexistence of individuals began
to be structured around the category of social
recognition based on the commodity and value
forms of social mediation. It is with modernity
that Europe launches itself as the cradle of the
cities as we know, organizing a structural prin-
ciple of social organization based on the logic of
the expanded reproduction of capital and that
marks the birth, according to Lefebvre (2019), of
the industrial city. It was a matter of submitting
to the determinations of a new economic form
on the rise. This economic form is no other than
the one Marx (2013) describes and analyzes in his
work: a system of social mediation based on the
production of goods as a form of social domina-
tion by time and accumulation of wealth socially
produced by a small portion of the population,
even if this means penury for most of those who
produce it.

The consolidation of capitalism has been de-


layed due to historical inertia and various obs-
tacles to its full development. Until at least the
17th Century and part of the 18th, the corporate
system still had tremendous strength and most
of the economy was not based in the cities.

Several expedients were used, such as the coer-


cion of the law, to transform servants and arti-
sans into workers in the cities. With the enclo-
sure of the fields, the city really meant the only
possibility of survival. It was in this context that
the supply of the most necessary input for the
capital was formed: the labor force. Thus, on the
one hand, according to Marx (2013), the working
class was born legally free to negotiate as it saw
fit the terms of the sale of its only commodity,
vital energy in the form of labor force. However,
on the other hand, the capitalist system, in its
abstract domination, means incorporating for
all the “dictatorship of wages” as the only way to
survive.
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
In the face of this scenario, the 19th century is
986 marked by an intense process of urbanization.
It would not be wrong to say that urbanization, to fail (ENZENSBERGER, 1993; KURZ, 1991). As a
therefore, is linked to the formation of the Euro- result of the internal contradictions of this his-
pean industrial proletariat and, consequently, to torically determined form of mediation, which
capitalism. By way of illustration, it is enough to develops blindly into an automatic movement,
see that between 1750 and 1800 the population the constant search for productivity capable of
of London jumped from 675 thousand to 1 million increasing the appropriation of the most value
117 thousand; and in Paris, in the same period, it at the same time undermined the basis for the
grew almost 30% (LAMAS, 2007). creation of value by eliminating the work of pro-
ductive processes, its substance.
As a result, the scenario of an intense urbaniza-
tion began to devastate the entire Europe of the With this, the very idea of progress is deactiva-
19th century, a scenario that, since then, has not ted and no longer functions as social legitimiza-
found any brakes. At the time, although he was tion. This crisis is perceived in different areas
not the object of Marx’s detailed analyses, his that are experiencing a decline in expectations
collaborator, Engels (2008), when describing The (LASCH, 1979; ARANTES, 2014). With the city and
working class situation in England, had no option urbanism could not be different.
but to pay attention to the intense growth pro-
cess of the cities, which meant precariousness The recent transformations of the political eco-
for most of the population - and not more free- nomy also modify our conception of the city and
dom, as the medieval proverb wished. In litera- the way people and groups perceive, act and le-
ture such a phenomenon did not go unnoticed gitimize the spatial processes. An era of decrea-
since it produced works like those of Charles sing expectations requires a reconfiguration of
Dickens, Charles-Pierre Baudelaire, Victor Hugo our historical conceptions of city and urbanism.
and Émile Zola, in which the degrading condi- But not only that. It also forces us to (re)think
tions of 19th century urbanization after the so- about our political repertoires available to dis-
-called Industrial Revolution are narrated. pute the transformation of the city, the forms of
collective organization aimed at the realization
This degrading situation brought costs to the of the right to the city (LEFEBVRE, 2001).
accumulation process, as it produced profound
diseconomies and dysfunctions. Thus, a certain Thus, this thematic table intends to discuss the
conception of intervention in city space could current processes derived from the transforma-
be possible to adjust, normalize, functionali- tions of the capital accumulation process and
ze and optimize urban space having as horizon how these are received by different groups that
the organization of society (or economy). Thus, produce the cities. Therefore, we seek to reflect
a series of techniques and ideas are developed on the history of the city and urbanism and their
for intervention in the city space that are called recent transformations that indicate a “politi-
“urbanistic”. The planning of space through the cal economy of the future” - an expression we
practice of urbanism appears, thus, as a possib- use to refer to the modifications in the regimes
le - and necessary - way out for the improvement of accumulation of capital in crisis that, conse-
of the city (BENEVOLO, 1983). quently, also alter its ideology of legitimacy.

This conception, tributary of the Enlightenment We discuss from the history of cities and their
precepts, was based on the legitimizing idea of recent transformations: (i) the problems in per-
modernity: progress (KOSELLECK, 2003). Such ceiving such transformations; (ii) the organiza-
legitimation was thus the touchstone of much tion strategies of urban insurgencies; and (iii) the
urbanism - guided by a certain pretension of ways of conceiving a social practice that sur-
development through progress. These were the passes the decay of expectations. These three
ideals that animated the practice of urbanists axes are in relation, connected to a thought that
and shaped a certain conception of the history thinks about the possible urban practice intuited
of cities. by Henri Lefebvre (2019).

However, since the 1970s, a crisis in the capita-


list system has become evident. Progress began HISTORY CITY POLITICS INSURGENCY
EIXO TEMÁTICO 2 Das grandes esperanças às expectativas
decrescentes: por onde andou, anda e andará
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES o urbanismo?

Que o urbanismo nasceu envolto numa manjedou-


mesa temática
ra de progresso não resta dúvida alguma. Filho
dileto da modernidade, o urbanismo foi talvez

HISTÓRIA DA CIDADE, um dos maiores representantes da era moderna,


uma vez que tomou para si a responsabilidade de

POLÍTICAS DO PRESENTE, organizar o espaço de acordo com o exercício


da razão. A razão, entendida como a mais fun-
ECONOMIA DO FUTURO damental e elevada faculdade humana, deveria,
portanto, “intervir” no espaço para promover seu
melhoramento e, assim, pavimentar o caminho
HISTORY OF THE CITY, POLITICS OF THE PRESENT AND rumo ao progresso.
THE ECONOMY OF THE FUTURE
De fato, a herança das crenças iluministas foi
determinante para o desenvolvimento da prática
do urbanismo. Henri Lefebvre (2019, p.28) iden-
tifica o momento de inflexão do agrário para o
urbano que reconfigura a constituição da própria
racionalidade e, assim, nesse processo, ocorre
o “renascimento do Logos” e culmina em toda a
tradição do Iluminismo. Essa tradição continuou
a assombrar as práticas espaciais, buscando o
ordenamento ótimo do espaço - grosso modo,
era essa sua missão.

Seria supérfluo rastrear como esse desenvolvi-


mento alcançou a prática de pensar, conceber
e desenhar as cidades. Muitos já fizeram isso.
Para citar apenas alguns, podemos lembrar de
Leonardo Benevolo, Bernardo Secchi, Françoise
Choay. Importa, contudo, reter que a urbanização
do século XVII beirava o caos. Resultado da indus-
trialização que, por sua vez, teve suas condições
de possibilidade garantidas pelo cercamento dos
campos (MARX, 2013). Evidentemente, num pri-
meiro momento este ordenamento caótico foi
funcional às determinações da acumulação de
capital. O exército industrial de reserva sobrante,
que ocupava as cidades e as enchiam, eram a
condição necessária para sustentar a altíssima
taxa de exploração praticada. Contudo, mais ra-
pidamente do que poderia se prever à época, o
caos das cidades tornou-se um entrave para a
acumulação e circulação. Assim, o ordenamento
espacial por meio da prática do urbanismo apa-
16º SHCU rece como uma panaceia necessária para curar
30 anos . Atualização Crítica
a cidade caótica. Acreditava-se que, por meio do
988 uso da razão, evidente herança do Iluminismo,
seria possível encontrar um ordenamento ótimo progresso, o futuro parece mais sombrio. A partir
do espaço, melhorando as condições de vida e a dos anos 1970, por diferentes vias, vários teóri-
produtividade do capital. A ideia de progresso, cos críticos começaram a identificar um fenô-
que ordenava a experiência daquelas sociedades meno de cancelamento do futuro. Lasch (1983)
e o horizonte de expectativa, parecia ter chegado chamou esse momento de Era das Expectativas
para melhorar as condições da cidade – e o nome Decrescentes. Gunther Anders (2007) observou
desta técnica foi urbanística (BENEVOLO, 1983). a formação de um “niilismo de massas”. Os psi-
canalistas Benasayag e Schmit (2004) observam
A racionalidade derivada do esclarecimento ilumi- a experiência de um futuro que parece ser pior
nista não apenas podia incidir sobre as condições que o presente. O cenário da virada para a se-
de vida por meio do uso público da razão para o gunda década do século XXI, depois da crise de
desenvolvimento de técnicas capazes de ordenar 2008, intensificou essa sensação, levando ao o
e disciplinar a produção do espaço, mas também que Isabelle Stenger (2015) chamou de “tempo
pensavam que, com a produção de um novo espa- de catástrofes”. Para Mark Fisher (2009) a expe-
ço, seria possível produzir uma nova sociedade. riência resultante é de uma impotência reflexiva
Ou seja, havia uma intenção disciplinadora por que transforma a profecia de um futuro terrível
meio da urbanística moderna, como forma de autorrealizável. Franco Berardi (2019) enxerga, a
condicionar as pessoas para que pudessem ser partir daí, um espírito depressivo e melancólico
cidadãos de moralidade. que marca o capitalismo tardio.

O uso da razão levaria ao progresso e, assim, seria Essa mudança, da era do progresso à era das ca-
possível superar a miséria. Leonardo Benevolo tástrofes, não poderá passar desapercebida para
chamou esse momento da história do urbanismo o urbanismo. Nessas condições, o que significa
como uma “Era das Grandes Esperanças”. Por isso, urbanismo? Sabe-se, desde muito tempo, que o
parecia animar o urbanismo um certo espírito urbanismo é um saber político (MARTINS, 2000).
voltado para o futuro. Não é por outro motivo Mas, parece-me, que mesmo agora é preciso levar
que Choay batizou as duas principais correntes em conta o comentário de Oscar Negt e Alexander
do urbanismo, àquelas que conquistaram uma Kluge (1999) sobre o que há de político na política:
certa hegemonia da prática, de progressismo e a política é a capacidade de dar respostas comen-
de novo progressismo. Afinal, acreditava-se no suráveis aos problemas. Os autores escrevem
futuro como uma realização do progresso. num momento de crise e lembram da catástrofe
de Chernobyl que, diante da incomensurabilidade
A crença num futuro melhor, contudo, não mudou da tragédia, parecia não haver resposta política
a natureza do urbanismo. Este continua sendo possível. Talvez, a catástrofe de nosso tempo,
um sistema de dispositivos, de objetos e ações resultado não de um acidente técnico, mas de
relativos à produção e gestão da cidade para o um fenômeno social calcado num agenciamento
ordenamento espacial e, portanto, social das ci- cego e contraditório das formas sociais do valor,
dades, orientado para o progresso. O que levou esteja no rol da incomensurabilidade política. O
ao urbanismo se constituir enquanto uma prática que ainda é possível do urbanismo? Ou mais, é
de denominar, localizar, classificar, definir, espe- ainda possível urbanismo quando o horizonte já
cificar, delimitar, separar os espaços da cidade não preenchido de grandes esperanças? Como
orientado por esse ideal. Essa forma (pretensa- fazer uma prática do urbanismo diante deste ce-
mente) organizada do espaço se sustentou - tanto nário? Como a mudança do Zeitgeist, do progresso
ideológica, como materialmente - enquanto durou ao decrescimento de expectativas, aparece ao
o progresso. urbanismo e impacta sua produção? Essas são
as perguntas que mobilizam essa intervenção.
Contudo, como escreveu Enzensberger, “o pro-
gresso já viu dias melhores”. O que passa a ocorrer
com o urbanismo quando sua ideia de legitimação,
o progresso, começa a falhar?

Nossa era já não carrega mais “grandes espe-


ranças”. Depois dessa Grande Desativação do
EIXO TEMÁTICO 2 O que é um experimento político? Resultados
parciais de uma investigação coletiva
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
A presente contribuição visa expor alguns dos
resultados recentes de um projeto de pesquisa
coletivo, levado à frente por um grupo autônomo
e transdisciplinar, que se debruça atualmente
sobre a teoria da organização coletiva. Nossa
estratégia geral pode ser definida por dois obje-
tivos interconectados.

Primeiramente, conceber a prática política como


uma forma autônoma de pensamento — irredutí-
vel à ciência, à ética e à estética — sem portanto
abdicar da assunção de que essa prática é capaz
de produzir conhecimento rigoroso da realidade
social. Essa condição nos obriga a evitar tanto a
concepção do marxismo como uma “ciência da
história” quanto a concepção oposta que reduz a
política ao campo da ação, luta e decisão conjun-
tural. Para evitar a primeira posição, é necessário
demonstrar que o pensamento político possui
seu próprio critério de rigor e consistência, que
não pode ser reduzido às suas semelhanças com
o procedimento científico. Para evitar a segunda
posição, essa consistência interna da política
precisa se mostrar capaz de incluir os meios de
produção do conhecimento e das tecnologias
sociais. De forma mais específica, nosso primeiro
objetivo é reconfigurar o binômio “economia polí-
tica” — que preserva a distinção entre um campo
de agência política e outro de condições materiais,
leis sociais e tendências — propondo uma inte-
gração mais profunda entre os aspectos ativos
e descritivos da política — entre a organização
política e a economia política — de tal modo que
organizações locais possam ser concebidas como
pequenos modelos econômicos e economias na-
cionais e globais como formas particulares de
organização social.

Nosso segundo objetivo é substituir a estratégia


da “crítica teórica” pela estratégia “axiomática”. O
papel da teoria na esquerda, em geral, é propor
descrições da realidade social que sejam capazes
de localizar e expressar as contradições e fraque-
zas de nosso sistema social, de um modo que as
descrições conservadoras não poderiam. Nossa
16º SHCU proposta, ao invés, é que o espaço teórico seja
30 anos . Atualização Crítica
infinitamente mais rico do que o nosso mundo
990 social, de modo que a formação social capitalista
possa aparecer ali como uma solução particular SERÁ VERDADE QUE, SE NÃO HOUVER PROJETO, NÃO
dentro de um espaço maior de soluções possíveis HAVERÁ FUTURO? A TEORIA E A CRÍTICA DO URBANO,
para os problemas genéricos de coordenação,
QUANDO PENSADAS A PARTIR DA CATÁSTROFE
alocação de recursos, produção e livre associa-
ção. A estratégia de “regionalizar” ou situar os
parâmetros da nossa formação social tem efeitos Como o pensamento sobre os modos de vida ur-
profundos tanto para a construção teórica quanto banos lidará com a temporalidade numa era de
para a prática política, uma vez que transforma o catástrofes? A cidade moderna, de matriz euro-
comunismo na teoria de como resolver problemas peia, produz a si mesma obedecendo a lógicas
comunistas — e o capitalismo em uma solução de projeção de suas direções num tempo a se
precária nesse programa mais geral. realizar. Pensar a cidade e o urbano tem sido,
predominantemente, pensar segundo um plano.
Combinados, esses dois objetivos sugerem uma
Ou, em outros termos, cidades se fazem a partir
nova abordagem para o pensamento político, não
de um projeto – aquilo que se equaciona adian-
apenas por levar a uma nova integração teórica
te. Teoria e crítica conceberam a temporalida-
entre crítica da economia política e a organiza-
ção coletiva, mas também porque, através dessa de urbana colocando o acento sobre o futuro,
integração, a organização política pode adquirir essa linha de chegada na qual se dariam todas
um papel epistemológico novo, nos permitindo as correções, todo aperfeiçoamento. Na cidade
reconhecer, e conceitualizar, a dimensão expe- moderna, a temporalidade do projeto sempre foi
rimental da construção coletiva, assim como a temporalidade do progresso.
possibilidade de mobilizar categorias econômicas
Ora, no tempo presente, em que se duvida da pro-
como parte de modelos de ação e avaliação de
messa dos projetos, em que decrescem as expec-
nossas práticas.
tativas sociais, o pensamento sobre o urbano preci-
Nossa contribuição para o debate será apresentar sa confrontar a ideologia do progresso, questionar
a problemática subjacente a esse projeto, bem as implicações do desenvolvimento como ideia le-
como alguns resultados provisórios dessa inves- gitimadora dos modos de vida coletivos. É neces-
tigação: (1) O papel da escala na análise e prática sário perguntar pelas possibilidades de narrativas
política; (2) O problema do mapeamento cognitivo de fenômenos e experiências urbanos quando
e sua relação com os modelos econômicos; (3) A se lida com a ideia de que o futuro não há mais.
hipótese da organização coletiva como “órgão
No arranjo capitalista da produção do urbano, em
sensível” da realidade social; (4) Uma releitura
que as configurações hegemônicas da sociedade
da teoria do valor desde a generalização do con-
ceito de trabalho enquanto um tipo particular de em seus arranjos de poder (o Estado e as elites)
organização. capturam o espaço, as transformações histó-
ricas da vida urbana culminaram em modos de
experimentar a cidade permeados por violência,
recusa e apassivamento. A cidade que nasceu
funcionalista redundou em indiferença. Para cri-
ticar desse estado de coisas é preciso abandonar
o planejamento urbano como ideia reguladora,
trocá-lo por práxis, pelo cultivo. Contra o projeto,
desenhar estratégias capazes de dar combate à
alienação; contra o plano, estabelecer a prática
de cultivar a vizinhança, sem resultar tão somente
em privacidade e individualismo, mas proximidade
e solidariedade.

É urgente lembrar o que escreveu Walter Benjamin


sobre o comunismo ser um comportamento (Ben-
jamin,1986,131) e reafirmar esse entendimento
em contraposição ao neoliberalismo urbano. De-
EIXO TEMÁTICO 2 fender e demonstrar que na raiz desse compor-
tamento em comum germina um modo de viver
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS aberto aos ritmos do cotidiano, e que nele reside a
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES potência de transformação do pensamento sobre
o urbano atual.

Deter-se sobre o cotidiano urbano aberto trans-


forma a crítica e a teoria pois as faz atravessar a
experiência da cidade, dela se aproximando não
de modo categorial ou reverencial, mas confron-
tando-a com uma tatibilidade que é ação tática.
As tarefas da crítica e da teoria se realizam de
modo imanente, desmontando e remontando os
imperativos urbanos de imediaticidade, brevi-
dade, proximidade, mas sempre falando a partir
da materialidade que configura os lugares e os
tempos da vida desempenhada neles. Para pensar
o urbano desde esta perspectiva cabe considerar
o que Benjamin denominou tarefa do materialista
histórico:

“O materialista histórico só e tão somente aborda


um objeto histórico quando ele se lhe apresenta
enquanto mônada. Nessa estrutura, ele reco-
nhece o signo de uma suspensão messiânica do
acontecido; dito de outro modo, uma oportu-
nidade revolucionária de lutar em favor de um
passado reprimido. Ele percebe nela a ocasião
para fazer explodir uma época específica do curso
homogêneo da história; assim, ele arranca uma
vida determinada de uma época; assim, um traba-
lho determinado de uma obra completa. O ganho
desse seu procedimento consiste em preservar e
ao mesmo tempo se superar no trabalho isolado
a obra completa, na obra completa a época, e
na época a totalidade do processo histórico, a
totalidade do processo histórico só preserva-
dos e transcendidos. O fruto nutritivo do que é
compreendido historicamente traz o tempo em
seu interior, como uma semente preciosa, mas
desprovida de sabor”. (Benjamin, 2020, 127)

Se o funcionalismo nos legou cidades em que


a indiferença do anonimato garantiu a livre cir-
culação e a mobilidade social, em que a noção
de comunidade converteu-se, fetichizada, em
guetização da vida, para fazer frente a esse ur-
bano funcionalista é preciso confrontar a ideia
da catástrofe como destruição criativa. Contra
16º SHCU a ideologia do planejamento criar condições para
30 anos . Atualização Crítica
a emergência de uma renovação permanente da
992 atividade humana nas cidades e da produção so-
cial do espaço, em bases outras que não o plano A produção engajada de conhecimento na
e o projeto urbanos. articulação de apostas de pesquisa:
Num mundo que expõe a saturação das megaci- DO “O QUE FAZER?” AO “COMO FAZER?”
dades e o abismo de desigualdades que as cons-
tituem, é preciso se valer de uma práxis tanto
Sabe-se que toda ação de pesquisa, por mais po-
filosófica quanto política, que seja “capaz de fazer
sitivista que seja a proposta, parte de um conjunto
frente a esta magia de ruínas” (Benjamin, 2004).
de apostas do pesquisador, mais ou menos explí-
Fazer a crítica do urbano exige confrontar a exaus-
citas. Dentre eles, há os que formulam seu modo
tão a que chegou o urbanismo como disciplina e
de agir partindo de princípios ético-políticos, que
regime epistêmico, sem pretender substituí-lo por
buscam afirmar certa harmonia social pretendida.
modelos semelhantes. Para dar conta de narrar
Entre o que se promete e aquilo que se produz, a
modos de vida urbana que se equilibram sobre o
ideologia é, assim, algo que movimenta e dina-
desfazimento das suas expectativas sociais, cole-
miza a ação do pesquisador, capaz de deslocar
tivas e individuais, não será menos que necessário
debates acadêmicos, assim como é um risco na
raciocinar a partir de práticas de transformação
elaboração de conceitos, quando o que se alcança
das consciências e das realidades, resgatando
é apenas a articulação de um discurso. Assim,
para o presente aqueles possíveis que prolifera-
acreditamos que é possível pensar a cidade e a
ram como imaginação do futuro no passado, e que
prática urbana cotidiana a partir de uma produção
não puderam ser por que restaram submetidos à
do conhecimento engajada. Essa dinâmica de pro-
temporalidade unidimensional capitalista.
dução do conhecimento reconhece uma função
epistemológica da militância e permite acessar
determinados dados da realidade empírica que,
de outro modo, poderiam passar desapercebidos.
Sobretudo num momento de crise como o que
atravessamos, a busca por alternativas não deve
buscar caminhos fáceis que não raro dão em becos
sem saídas. Em todos os lugares pululam projetos
e programas, mas são carentes da logística e das
condições sociais para seus desenvolvimentos.
Para nossa abordagem aqui delineada, importa
mais que a máxima consagrada “o que fazer” uma
outra – complementar, mas frequentemente negli-
genciada: “como fazer?”. Apostamos que o meio de
se conquistar um determinado fim importa tanto
quanto – quiçá mais até – do que o próprio fim,
como bem notou Marx (2010) em seus Manuscritos
de Paris ao falar da livre associação dos trabalha-
dores comunistas. É a partir de um histórico de
pesquisas engajadas que pretendo discutir três
perspectivas democráticas relacionadas entre
si, mas de gênese distinta: a política, a social e a
societal. Com essas distinções, proponho expor
o porquê da opção por uma abordagem centrada
no trabalho, como um primado que pode articular
essas distintas dimensões.
EIXO TEMÁTICO 2 REFERÊNCIAS
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EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES A mesa tem como objetivo promover um cam-
po de debate na esfera disciplinar da história
da cidade e urbanismo sobre as questões e
mesa temática relações étnico-raciais, estudos africanos e
afro-diaspóricos no Brasil, notadamente, no
que tange ao legado civilizatório dos africanos
HISTORICIDADE DA CIDADE no país. Visa problematizar a historiografia ofi-
cial do urbanismo e da cidade que invisibilizou
NEGRA: RELAÇÕES ÉTNICO- o papel das populações negras na formação e
desenvolvimento urbano, analises sempre cir-
RACIAIS E PRODUÇÃO DO cunscritas no recorte de classe com aborda-
gens sócio-econômicas, com foco na pobreza
URBANO NO BRASIL e desigualdade social. A categoria étnico-racial
nos estudos urbanos, no campo da arquitetu-
ra e urbanismo, foi negligênciada, esquecida,
THE BLACK IN THE HISTORICITY OF THE BRAZILIAN
e invisibilizada no país que foi o último a abo-
CITY: ETHNIC-RACIAL RELATIONS AND CITY
liar a escravidão no mundo, sistema esse que
PRODUCTION
perdurou por quatro séculos deixando marcas
profundas nas cidades brasileiras. População
EL NEGRO EN LA HISTORICIDAD DE LA CIUDAD
negra cujo contingente e diversidades de gru-
BRASILEÑA: RELACIONES ETNICO-RACIALES Y
pos étinicos africanos que aqui foram trazidos
PRODUCCIÓN DE CIUDAD
pelo tráfico negreiro perfaz a metade da diás-
pora negra do Atlântico (cerca de 4,5 milhões).
FIGUEIREIDO; Glória Cecília dos Santos As cidades brasileiras foram construídas, edifi-
Doutora em Arquitetura e Urbanismo; Professora do cadas e funcionavam pelos corpos de negros e
PPGAU-FAUFBA negras. Tudo o que se movimentava na cidade
gloriaceciliaf@gmail.com
era negro, tudo que se erguia na cidade era com
VELAME; Fábio Macêdo o suor e lágrimas dos negros. A cidade brasilei-
ra é reflexo de suas estruturas sociais, o país
Doutor em Arquitetura e Urbanismo; Professor do PPGAU-
FAUFBA e CEAO-UFBA
moderno e industrial se almagama e se funde
velame.fabio@gmail.com com o passado escravocrata, com uma super-
posição de tempos, as cidades brasileiras ainda
RAMOS-PENHA; Maria Estela Rocha são em essência: coloniais, estamentais e es-
Doutora em Arquitetura e Urbanismo; Professora da cravocratas. Nesse viéis, a produção negra da
UNIME-LF cidades brasileiras dentro de uma perspectiva
mariaestelaramos@gmail.com afro-centrada e afro-referenciada, assim como
SOUZA; Luis Antônio existência e resistência das populações negras
nas cidades constitui aspectos, ainda, lacuna-
Doutor em Arquitetura e Urbanismo; Professor do PPGAU-
res na formação de arquitetos, urbanistas, na
FAUFBA e UNEB
lasouza@terra.com.br historiografia e teoria do urbanismo e da cidade,
no planejamento urbano, e nas políticas urba-
ESPÍRITO SANTO; Maria Teresa G. do nas, onde se desvala, no fundo, de forma arrai-
Mestre em Arquitetura e Urbanismo; Professora- gada um continuo da reprodução sistémica do
Colaboradora da RAU+E-FAUFBA racismo estrutural, racismo institucional, racis-
materesanto@gmail.com mo fundiário, racismo ambiental, operando na
mecânica local, do racismo à ‘’brasileira’’ que se
16º SHCU sustenta e opera a partir de cinco pilares: o mito
30 anos . Atualização Crítica
da democracia racial, o colorismo, o branquea-
996 mento, o eufemismo na linguagem, e o almaga-
mento em outras categorias sociais. Racismo à ABSTRACT
brasileira que opera pelo jogo da dissimulação.
Dissimulação racial que produz cidade, numa
realidade social racializada, em que as cidades The table aims to promote a field of debate in the
reproduzem o racismo, e o racismo produz cida- disciplinary sphere of city history and urbanism
des. A mesa, por fim, visa traçar a construção on ethnic-racial issues and relations, African
de uma agenda nos estudos urbanos que venha and Afro-diasporic studies in Brazil, notably with
a contemplar e inserir o campo nos chamados regard to the civilizing legacy of Africans in the
‘’Estudos Afro-brasileiros’’ e ‘’Estudos Africanos country . It aims to problematize the official his-
e Afro-Diaspóricos’’. toriography of urbanism and the city that made
the role of black populations in urban formation
and development invisible, analyzes always cir-
HISTÓRIA CIDADE URBANISMO ÉTNICO-RACIAL cumscribed in the class cut with socio-econo-
mic approaches, focusing on poverty and social
inequality. The ethnic-racial category in urban
studies, in the field of architecture and urba-
nism, was neglected, forgotten, and made invi-
sible in the country that was the last to abolish
slavery in the world, a system that lasted for four
centuries leaving deep marks in Brazilian cities.
Black population whose contingent and diversi-
ty of African ethnic groups brought here by the
slave trade makes up half of the black diaspora
of the Atlantic (about 4.5 million). Brazilian cities
were built, built and functioned by the bodies of
black men and women. Everything that moved in
the city was black, everything that rose in the city
was with black sweat and tears. The Brazilian city
is a reflection of its social structures, the modern
and industrial country is stirred up and merged
with the slave past, with a superposition of times,
the Brazilian cities are still in essence: colonial,
estamental and slavery. In this context, the black
production of Brazilian cities within an Afro-cen-
tered and Afro-referenced perspective, as well as
the existence and resistance of black populations
in cities, constitutes, still, lacunae aspects in the
training of architects, urban planners, in histo-
riography and theory of urbanism and the city, in
urban planning, and in urban policies, where, in
the background, there is an ingrained and syste-
matic reproduction of structural racism, institu-
tional racism, land-based racism, environmental
racism, operating in local mechanics, from ra-
cism to Brazilian which is sustained and operates
from five pillars: the myth of racial democracy,
colorism, whitening, the euphemism in language,
and the crush in other social categories. Brazilian
racism that operates through the game of dissi-
mulation. Racial dissimulation that produces the
city, in a racialized social reality, in which cities
reproduce racism, and racism produces cities.
EIXO TEMÁTICO 2 Finally, the table aims to outline the construction
of an agenda in urban studies that will contem-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS plate and insert the field in the so-called ‘‘ Afro-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES -Brazilian Studies ’’ and ‘‘ African and Afro-Dias-
poric Studies ’’.

HISTORY CITY URBANISM ÉTHIC-RACIAL

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

998
RESUMEN en otras categorías sociales. El racismo brasileño
que opera a través del juego de disimulación. Di-
simulación racial que produce ciudades, en una
La mesa tiene como objetivo promover un campo realidad social racializada, en la cual las ciudades
de debate en el ámbito disciplinario de la histo- reproducen el racismo, y el racismo produce ciu-
ria de la ciudad y el urbanismo sobre cuestiones dades. Finalmente, la tabla tiene como objetivo
y relaciones étnico-raciales, estudios africanos esbozar la construcción de una agenda en estu-
y afro-diaspóricos en Brasil, en particular con dios urbanos que contemple e inserte el campo
respecto al legado civilizador de los africanos en los llamados “Estudios Afrobrasileños” y “Estu-
en el país. . Su objetivo es problematizar la his- dios Africanos y Afro-Diaspóricos”.
toriografía oficial del urbanismo y la ciudad que
hizo invisible el papel de las poblaciones negras
en la formación y el desarrollo urbano, análisis HISTORIA CIUDAD URBANISMO ÉTNICO-RACIAL
siempre circunscritos en el corte de clase con
enfoques socioeconómicos, centrándose en la
pobreza y la desigualdad social. La categoría ét-
nico-racial en los estudios urbanos, en el campo
de la arquitectura y el urbanismo, se descuidó,
se olvidó y se hizo invisible en el país que fue el
último en abolir la esclavitud en el mundo, un sis-
tema que duró cuatro siglos dejando profundas
huellas en las ciudades brasileñas. Población
negra cuyo contingente y diversidad de grupos
étnicos africanos traídos aquí por el comercio de
esclavos constituye la mitad de la diáspora negra
del Atlántico (alrededor de 4,5 millones). Las ciu-
dades brasileñas fueron construidas, construi-
das y funcionadas por los cuerpos de hombres y
mujeres negros. Todo lo que se movía en la ciudad
era negro, todo lo que se levantaba en la ciudad
era de sudor negro y lágrimas. La ciudad brasi-
leña es un reflejo de sus estructuras sociales, el
país moderno e industrial se agita y se fusiona
con el pasado esclavo, con una superposición de
tiempos, las ciudades brasileñas siguen siendo
en esencia: colonial, estamental y esclavitud. En
este contexto, la producción negra de las ciuda-
des brasileñas dentro de una perspectiva Afro-
centrada y Afro-referenciada, así como la exis-
tencia y resistencia de las poblaciones negras en
las ciudades, constituyen, aún, aspectos lacuna-
res en la formación de arquitectos, urbanistas, en
historiografía y teoría del urbanismo. y la ciudad,
en la planificación urbana y en las políticas ur-
banas, donde, en el fondo, hay una reproducción
arraigada y sistemática del racismo estructural,
el racismo institucional, el racismo basado en la
tierra, el racismo ambiental, operando en la me-
cánica local, del racismo al brasileño que se sus-
tenta y opera desde cinco pilares: el mito de la de-
mocracia racial, el colorismo, el blanqueamiento,
el eufemismo en el lenguaje y el enamoramiento
EIXO TEMÁTICO 2 Cidade negra: confrontações e rearticulações
da vida coletiva em Salvador
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
Propomos uma reflexão sobre a questão das
relacionalidades constitutivas do urbano, pelas
mesa temática quais a cidade negra e múltipla que habita Sal-
vador confronta generativamente processos de
subalternização. De fato, Salvador se conforma
HISTORICIDADE DA CIDADE por meio da contradição de uma modernização
civilizatória que relaciona co-constitutivamente
NEGRA: RELAÇÕES ÉTNICO- cidade, campo - respectivamente sede e espaço

RACIAIS E PRODUÇÃO DO econômico do poder colonial escravocrata - e


quilombo. Como cidade, Salvador se funda (e ao

URBANO NO BRASIL Brasil) sob a perspectiva relacional da desposses-


são colonial e da reinvenção da vida coletiva pela
negritude em mundos outros, construídos multi-
THE BLACK IN THE HISTORICITY OF THE BRAZILIAN dimensionalmente não apenas por confrontações,
CITY: ETHNIC-RACIAL RELATIONS AND CITY mas também por fugitividades que desafiam os
PRODUCTION processos de subalternização (Harney&Moten,
2013; Nascimento, 2018).
EL NEGRO EN LA HISTORICIDAD DE LA CIUDAD
Os atuais conflitos urbanos remetem a reitera-
BRASILEÑA: RELACIONES ETNICO-RACIALES Y
dos processos de modernização (Gorelik, 2003),
PRODUCCIÓN DE CIUDAD
expansão e infraestruturação que tem delineado
historicamente a articulação hegemônica da ci-
dade latino-americana. No caso brasileiro, em-
blematizado por Salvador, sobretudo a partir do
século XX, tratam-se de processos massivos,
racializados e sexualizados (Collins, 2015; Gon-
zales, 1984; Nascimento, 1978) de urbanização
precarizada (Oliveira, 1982), sempre associados
a baixos níveis de integratividade popular e de
mundos não modernos às ordens raciais do ca-
pitalismo e da modernidade globais (Chakravar-
tty & Silva, 2012; Dirlik, 2007), mas que também
são conformadas localmente. Um viés racista
conduzindo os processos de transformação ur-
bana, operados pelo Estado e pelo Capital, está
no cerne da constituição das cidades brasileiras
e pede atenção no debate sobre a sua produção
socioespacial.

É preciso considerar em primeiro plano as


relacionalidades constitutivas do urbano no Brasil,
pela qual mundos (in)comuns (Blaser, de la Cadena,
2018) confrontam subalternidades - sempre mul-
tidimensionais e frequentemente interseccionais
(Akotirene, 2019) -, indicando que os desmante-
16º SHCU lamentos das versões de cidade hegemônica,
30 anos . Atualização Crítica
nunca podem ser absolutos. Às constantes ins-
1000 tabilizações a(o)s moradora(e)s respondem com
também constantes adaptações e improvisações REFERÊNCIAS
(Simone, 2019), lógicas transversais (Caldeira,
2017) pelas quais rearticulam condições de vida Associação de Moradores e Amigos do Cen-
e confrontam as subjugações, nos informando tro Histórico de Salvador (AMACH). Faculdade
sobre trajetórias de vida urbana mais complexas
de Arquitetura e Urbanismo da Universidade
entre formalidade e informalidade.
Federal da Bahia (FAUFBA). Perícia Popular no
Assim temos que esferas conflitivas em torno de Centro Histórico de Salvador.: avaliação da
intervenções e processos de transformação da implementação da 7a Etapa. Salvador, 2017.
cidade, revelam-se como espaços importantes
Associação de Moradores e Amigos do Centro
de interacionalidade e justaposição. Uma espécie
Histórico de Salvador (AMACH). Faculdade de
de impasse ou encruzilhada entre mundos (in)
Arquitetura e Urbanismo da Universidade Fede-
comuns (Blaser, de la Cadena, 2018) que compõem
a cidade, abrindo um campo de possibilidades, ral da Bahia (FAUFBA). Plano da disciplina Ação
disputas e negociações das formas, conteúdos, Curricular em Comunidade e em Sociedade
sentidos e efeitos das transformações urbanas. (ACCS) ARQB 19 Perícia Popular no Centro
Essas possibilidades mobilizam espaços de cola- Histórico de Salvador. Salvador, 2018.
boração, dos quais destacamos aqueles construí-
Akotirene, C. Ferramenta anticolonial podero-
dos entre a universidade e territórios populares.
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Baseados no encontro esses espaços são um
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escravos realizados aos domingos e autorizados
pelos seus senhores, como sendo: ‘’Termo que
primitivamente significava dança e instrumento
de música e, por extensão, passou a designar a
própria cerimônia religiosa dos negros.’’ (RAMOS,
1954, p. 359). A palavra candomblé é, atualmente,
segundo Julio Braga: ‘’Nome pelo qual é conhe-
cida, na Bahia, a comunidade religiosa afro-bra-
sileira.’’ (BRAGA, 1995, p. 128).

Para Muniz Sodré, o Terreiro de Candomblé é a


forma social negro-brasileiro por excelência por
constituir o lócus da resistência afro-diásporica
no Brasil por conservar línguas, religiosidade,
valores, ética, estética, mitos, culinária, visão
de mundo, e, principalmente, por restabelecer
relações sociais de solidariedade, cooperação
e ajuda mútua que se projeta na Cidade. Aborda
o Terreiro de Candomblé em sua relação com
a cidade não circunscrita e limitada ao espaço
físico do templo, não como ‘’o’’ lugar do sagrado
afro-brasileiro, mas trabalha a noção de ‘’lugares’’
sagrados na cidade, uma pluralidade e heteroge-
neidade de lugares em conexão, onde cada lugar
possui um sentido próprio. Ademais os Terreiros
de Candomblé são o berço de diversos outros
territórios negros de resistência como os Afo-
xés, Blocos Afro, Maracatus, Escola de Samba,
assim como constituem elementos geratrizes
de diversos bairros negros que se formaram e
desenvolveram-se a partir deles. Para o desve-
lamento desse duplo movimento trataremos os
processos históricos de existência-resistência
negra de três cidades baianas através de seus
terreiros de Candomblé: Salvador, Itaparica e
Cachoeira.
EIXO TEMÁTICO 2 Em Salvador abordaremos o processo histórico
de desenvolvimento urbano da cidade a partir do
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS surgimento, crescimento, consolidação e migra-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES ção dos terreiros da cidade do Salvador do século
XIX ao XXI. Os bairros negros tecidos pelas redes
de Terreiros de Candomblé na cidade.

O impacto da sociedade mais ampla a partir de


intervenções de infra-estrutura e de habita-
ção do poder público, especulação imobiliária,
e habitação popular imprimindo processos de
desterritorialização e reterritorialização dos Ter-
reiros de Candomblé. A territorialização em rede
dos Candomblés atuais e suas relações com os
espaços públicos, praças, e parques da cidade
como espaços constitutivos dos templos afro-
-brasileiros.

Na Cidade de Itaparica, na Baía de Todos os San-


tos, abordaremos a narrativa do Povoado de Ponta
de Areia a partir da historicidade do Terreiro Omo
Ilê Agboulá. O Omo Ilê Agboulá é o principal templo
de culto aos Egum (os mortes ilustres da África e
Brasil), tombado pelo IPHAN em 2015, ele o herdei-
ro de todos os terreiros de culto a Ancestralidade
Afro-brasileira do século XIX, e matriz de todos
os templos do século XX.

Através da Festa das Águas, no dia 02 de Feve-


reiro, o templo desvela a historia do lugar, no mo-
mento em que o cortejo sagrado advêm do templo,
e irrompe as ruas do povoado até o mar, possibi-
litando a conexão dos lugares sagrados onde o
templo afro-brasileiro esteve anteriormente, e
que foi expulso nos anos de 1940 pela repressão
policial, nos anos de 1960 pela especulação imo-
biliária, e atualmente apresenta uma resistência
tenaz ao racismo religioso. Cortejo sagrado, ritual
do culto aos Egum no espaço público, que desvela
o papel central dos ancestrais na estruturação e
organização do espaço urbano.

Em Cachoeira, no Recôncavo Baiano, conhecida


como Cidade da Macumba ou Cidade do Feitiço,
abordaremos na escala da cidade, a rede de lu-
gares sagrados, os: trevos, ruas, largos, praças,
estradas de ferro, pontes, lagoas, riachos, rios,
matas, terrenos baldios, pedras, feiras, etc, for-
mando uma rede de lugares sagrados afro-brasi-
leiros utilizados coletivamente por um conjunto de
16º SHCU terreiros de Candomblé. Mostraremos, portanto,
30 anos . Atualização Crítica
como essa rede do sagrado, joga o jogo do vísivel
1004 e do invísivel, através das temporalidades do po-
vo-de-santo. Na historicidade da cidade, a rede referências
torna-se flexível, mutável, nômade, e, também,
conexão entre os terreiros. BRAGA, Julio. Ancestralidade Afro-Brasileira:
O culto de Babá Egum. Salvador: Ed. EDUFBA,
Torna-se flexível quando os seus pontos fortes,
1995.
lugares significativos são visíveis ou invisíveis no
cotidiano, a depender das táticas e jogos do dia e _______. Ancestralité et vie quotidienne: le
horário de certas obrigações, trabalhos e rituais culte de babá egum à Ponta de Arei. Stras-
em determinados lugares sagrados sejam eles bourg: Ed. Reproduction, Moderne, 1986.
fixos ou móveis. Debruçar-nos-emos na escala
da região, na festa de Iemanjá, chamada pelo _______. Ancestralidade afro-brasileira. Reli-
povo-de-santo do recôncavo de Festa da Pedra gião e Cidadania, Salvador, Ed.
da Baleia, mostrando através de uma festa e ritual
afro-brasileiro o movimento da rede a construir EGBA/UFBA, p.11-28, 1990.
a história da cidade e com ela a resistência do
povo negro. _______. Ancestralidade em ponta de Areia;
mulheres, crianças e o exercício da autorida-
de. Revista Bahia, Salvador, nº14, p. 29-34, set./
nov. 1989.

C EAO. Mapeamento dos Terreiros de Can-


domblé de Salvador. Salvador: UFBA, 2008.

RAMOS, Arthur. Antologia do Negro Brasileiro.


Rio de Janeiro: Ed. Globo, 1950.

_______. A Raça Africana e seus Costumes.


Salvador: Ed. Progresso, 1955.

_______. Introdução a Antropologia Brasilei-


ra. São Paulo: Ed. Peruna,1954.

_______. O Negro na Civilização Brasileira. Rio


de Janeiro: Ed. da Casa do Estudante do Brasil,
s/d.

_______. O Negro Brasileiro. Rio de Janeiro:


Ed. Cadernos brasileiros, 1968.

SODRE, Muniz. O Terreiro e a Cidade: a forma


social negro-brasileiro. Petrópolis: Vozes,
1988.

VELAME, Fábio Macêdo. Arquiteturas da


Ancestralidade Afro-brasileira: O Omo Ilê
Agboulá – Um Templo do Culto aos Egum no
Brasil. Salvador: EDUFBA, 2019.

VELAME, Fábio Macêdo. Arquiteturas da Ven-


tura: Os Terreiros de Candomblé de Cachoeira
e São Félix. Salvador: Tese de Doutorado –
PPGAU, 2012.
EIXO TEMÁTICO 2 Os bairros negros da Liberdade e do Engenho
Velho da Federação na história urbana
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
A abordagem deste trabalho refere-se à leitura
da constituição de partes da cidade de Salvador
pela perspectiva de grupos populacionais ne-
gros, como alternativa à história urbana oficial
hegemônica, que tradicionalmente invisibilizou as
trajetórias e registros dos grupos negros.Corren-
tes conceituais da historiografia nos apresentam
possibilidades de legitimar as culturas material e
imaterial, memórias e narrativas da história oral
e práticas do cotidiano como importante fontes
de produção histórica para compreensão da for-
mação urbana.

Destacamos, sob esta ótica, os estudos desen-


volvidos nos bairros da Liberdade e do Engenho
Velho da Federação. Denominamos como bairros
negros, para além de bairros populares, por sua
característica demográfica composta majorita-
riamente por pessoas negras (pretos e pardos),
mas também pelas peculiaridades culturais afro-
-brasileiras presentes na formação dos bairros.
São também bairros negros como conquista da
população negra na capacidade de resistir e (re)
existir nas áreas urbanas.

É importante ressaltar que os locais de moradia


dos negros escravizados variavam em função da
diferenciação no sistema escravista, havendo
os escravizados domésticos, que moravam nos
subsolos das residências dos proprietários (as
lojas), e os escravizados de ganho e/ou aluguel, que
moravam afastados dos escravizadores. Então,
mesmo antes da abolição, a habitação foi uma
conquista dos negros, que tornou-se ainda mais
necessária quando espaços de moradia, como
cortiços e casas de cômodos, foram destruídos
nas áreas centrais das grandes remodelações
urbanas na virada do século 20 nas principais
cidades do país.Portanto, a origem destes bair-
ros vem desta necessidade da habitação e cada
bairro negro,a partir de referenciais culturais e
civilizatórios afro-brasileiros, apresenta parti-
cularidades na sua formação histórica.

O bairro da Liberdade surge na vertente histórica


16º SHCU oficial, tanto política quanto economicamente,
30 anos . Atualização Crítica
como bairro derivado da principal via de cumeada,
1006 a Estrada da Liberdade, que faz parte do eixo da
independência da Bahia, ou Estrada das Boiadas, taipa de mão. A técnica de taipa é uma tradição
como parte da estrada de ligação entre o interior africana e definiua construção de casas com
e Salvador para o transporte de gado. No entanto, parede de sopapo e cobertura de palha, muitas
a historiografia remonta o surgimento de povoa- vezes a palha do dendezeiro, o dendê (planta afri-
mento na Liberdade no século 18, desde o período cana), como parte dos conhecimentos tradicio-
da escravidão. nais e sua utilização no uso religioso, alimentar,
medicinal e também para habitação. O termo
É importante ressaltar a posição geográfica do adjutório (o atual mutirão), utilizado pelos mo-
bairro na cidade, próxima à área central e ao porto. radores antigos, ilustra o juntar como parte da
Depoimentos de moradores antigos apontam solidariedade entre familiares, amigos e vizinhos
profissões ligadas ao porto e à navegação como para a construção de casas de taipa e acontece
estivadores, mergulhadores. A proximidade a li- ainda hoje para bater as lajes.
ceus e escolas técnicas e profissionalizantes, for-
mando aprendizes, artífices e profissionais que Sendo bairros tão antigos e com a particularidade
foram direcionados ao pólo petroquímico conferiu de serem bairros situados bem próximos às áreas
formação política e fortalecimento da negritude centrais de salvador, constiituem ainda bairros
no contato com movimentos blackpower e afro- social e urbanisticamente segregados.
centrados e o surgimento de blocos afro.
A irregularidade fundiária é uma realidade em
A história urbana oficial de formação do bairro grande parte destes bairros, sendo porque a
do Engenho Velho da Federação é marcada pela maioria das ocupações se deu por arrendamento
proximidade com a estrada do bonde junto ao ou enfiteuse e aforamentos. Os terrenos aluga-
Rio Lucaia, no século 19 (antigo caminho do Rio dos configuravam construções de moradias com
Vermelho). Entretanto,o início do seu povoamento caráter transitório, e assim, obrigatoriamente,
possui registro pelo Terreiro do Bogum, em 1835. precárias. A infra-estrutura urbana deficiente é
A concentração de tantos outros terreiros de uma realidade ocasionada pelos dados oficiais de
candomblé (33 terreiros encontrados ao longo subdimensionamento de população, ínfima aten-
da história do bairro em área reduzida) definiu a ção à violência urbana, somada à insuficiência de
tônica civilizatória dada pelas famílias-de-santo, creches, escolas e postos de saúde.
que ampliou para as famílias consanguíneas e
estendidas, e conferiu formação da consciência Estes bairros negros, como tantos outros, são
cultural e política da negritude neste bairro. parte da produção de cidade, com suas especi-
ficidades políticas, sociais e culturais afro-bra-
Estes bairros são caracterizados, como tantos ou- sileiras, ainda constituem no século 21 lacunas
tros no Brasil, pela ocupação de áreas periféricas nos estudos urbanísticos e na história urbana
e áreas de matas, destituídas de infraestrutura que precisam ser registradas.
urbana compondo nucleamentos urbanos gerados
pela população negra desde o período escravista,
continuados na pós-abolição. Estes bairros espe-
cíficos foram constituídos em encostas íngremes,
ocupando brongos e quebradas. Os bairros sur-
giram pelos caminhos abertos com machados e
picaretas circundando casas, terreiros, árvores
e fontes d’água sagradas, locais de oferendas.
Os caminhos e atalhos que passavam por dentro
dos quintais se transformaram em logradouros
públicos que fazem parte do sistema viário da ci-
dade. Estas ruas abertas pelos antigos moradores
compõem ambiências particulares e paisagens
específicas destes bairros negros.

A referência construtiva das casas foi a técnica


da taipa, também denominada taipa de sopapo ou
EIXO TEMÁTICO 2 Referências
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
RAMOS, Maria Estela R. Território Afrodescen-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
dente: Leitura de cidade através do bairro da
Liberdade, Salvador (Bahia). Dissertação de
Mestrado. Faculdade de Arquitetura e Urbanis-
mo. Salvador: PPGAU/UFBA, 2007.

RAMOS, Maria Estela R. Bairros negros: uma


lacuna nos estudos urbanísticos.Um estudo
empírico-conceitual no bairro do Engenho
Velho da Federação, Salvador (Bahia). Tese de
Doutorado. Faculdade de Arquitetura e Urba-
nismo. Salvador: PPGAU/UFBA, 2013.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1008
Seminário Diáspora Negra e a Exposição Design da Bahia, em outubro de 1997. A iniciativa teve
Diaspora Black Architecto sand International como perspectiva buscar uma aproximação entre
os pesquisadores, a prática do exercício profis-
Architecture FAUFBA e IAB-BA
sional e a sociedade, no sentido de fomentar a
visibilidade da contribuição do negro, ou melhor,
A construção do campo dos debates e estudos das do trabalhador africano feito escravo – na maior
questões étnico-raciais seja na Arquitetura, seja migração forçada da história da humanidade – seja
no campo da organização do território no Brasil, na arquitetura e na construção, seja na formação
em particular nos centros universitários orienta- do território (quilombos, vilas e aldeias), seja nas
dos para formação de arquitetos, esta questão formações urbanas que ora se integraram, ora
vacila entre o emudecer e tímidas realizações. foram segregadas ou esmagadas no espaço e na
O incentivo à discussão e a produção do conhe- vida das cidades (quilombos urbanos, capelas ne-
cimento relativo ao legado da contribuição das gras, espaços de cultos religiosos e mocambos).
culturas negras à Arquitetura e à organização do
espaço no nosso país ainda continuam episódicas. No plano do exercício profissional o Design Diás-
Assim, em 1997, apelava-se e atuava-se no sentido pora, a exposição trouxe projetos de arquitetura
de iniciativas que abrissem novas perspectivas executados, entro os anos 1970/1990, por cin-
para a compreensão e politização do resgate da quenta arquitetos negros americanos, europeus e
contribuição da diáspora africana na origem da africanos. A exposição foi uma mostra itinerante,
formação sócio-espacial do Brasil. Saliente-se apresentada em vários países que no Brasil, além
que para Milton Santos (1997), a construção do de Salvador, foi exibida em Curitiba e no Rio de
espaço é uma obra realizada pela sociedade e Janeiro, em 1997.
que acontece temporalmente no decorrer da his-
O Brasil é filho da Diáspora Africana, durante
tória. Para esse autor, o espaço é uma instância
400 anos a modernidade ocidental, ou seja, o
da sociedade assim como a política, a economia,
capitalismo se sustentou do saber e fazer da li-
a cultura.
nhagem desse grupo social. É necessário um
Se nos detivermos no interesse da Faculdade de esforço para que uma história fraudulenta não
Arquitetura da UFBA, pela questão racial negra, reduza ou mesmo inviabilize o olhar da contri-
encontraremos registro na presença do político buição do pensar e fazer, enfim do conhecimento
e ativista negro dos direitos civis americanos e sabedoria em todos os campos, transmitido e
Sterling Tucker, sociólogo que realizou em 1975, refundado pelos povos africanos – impiedosamen-
uma palestra sobre urbandevelopment. Pode, te explorados – que continua a mover o país de
também, ser apontado como de interesse no de- acordo com sutis e, às vezes não tão sutis assim,
bate étnico-racial em torno da presença negra: mecanismos de “perpetuação da escravidão”.
uma “Exposição sobre Arquitetura Brasileira em Condição reelaborada a partir de um processo
África”, em 1978; uma outra exposição de fotogra- de urbanização excludente, fomentando legiões
fias da população negra, em 1980 e, em 1981, uma de trabalhadores a confundirem-se ora como
semana dedicada ao negro também organizada exército de reserva a ser acionado nos momen-
pelo Diretório Acadêmico da FAUFBA, como lem- tos de tensão entre capital e trabalho,ora como
brou Fernandes e Ulisses (2019). homo saucer, na expressão contemporânea de
ZygmuntBauman – homens sem valor, sem ser-
A atualização crítica possibilitada pela propos- ventia, sobrantes e excluídos sociais.
ta do “Seminário de História do Urbanismo e da
Cidade”, permite, também, uma reflexão sobre Há 23 anos, deve ter soado estranhas as formula-
duas atividades que estruturaram, há 23 anos, a ções para discussão acadêmica, não só relativo
iniciativa de realização do “Seminário Diáspora a “diáspora negra”, mas também sobre “a contri-
Negra” e da “Exposição Design Diaspora Black buição do negro à arquitetura e a organização do
Architecto sand International Architecture”, rea- território”, temas que, na atualidade, ganharam
lizadas pela Faculdade de Arquitetura, pelo en- novos contornos, vertentes interpretativas e re-
tão Mestrado em Arquitetura e Urbanismo e pelo pertórios conceituais, com seus limites e contra-
Instituto de Arquitetos do Brasil – Departamento dições. Será que duas décadas foram suficientes
EIXO TEMÁTICO 2 para uma releitura dos processos de supressão
das experiências cognitivas para a construção
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS de novas perspectivas?
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1010
Referências POLÍTICAS PÚBLICAS EM habitação e segregação
sócio-espacial-racial URBANA
SANTOS, Milton, Espaço e método. – São Pau-
lo: Nobel, 1997
Não há dúvidas de que a ação pública em habita-
FERNANDES, Ana; ULISSES, Elisabete. Três ção de interesse social gerou uma significativa
dimensões comemorativas: passado, futuro, produção de moradias, provocando impacto não
presente. In: FONSECA, Fernando Luiz da. desprezível – porém insuficiente, no déficit de
Apontamentos para história da Faculdade de habitação, desde o final dos anos 50 do século
Arquitetura da Bahia. Salvador: Edufba ,2019. passado, quando foram estabelecidas as primei-
ras iniciativas de caráter institucional, em âmbito
nacional, de constituição de políticas públicas
de habitação.

Mas, também é sabido que essa produção re-


forçou e agudizou – e muito, as características
de segregação espacial nas cidades grandes
e médias. Para tanto, contribuíram os padrões
construtivos utilizados desde os tempos do Ban-
co Nacional da Habitação (criticados quanto às
dimensões, qualidade do material, padroniza-
ção, soluções arquitetônicas e urbanísticas), os
aspectos locacionais altamente determinantes
(distância dos centros urbanos, ausência de equi-
pamentos comunitários e serviços). Não obstante
essa produção ter contribuído para a elevação da
oferta de infraestrutura urbana, principalmente
de saneamento, não foi isso suficiente para mini-
mizar o aprofundamento da partição da cidade.
Observe-se, inclusive, o fato de tal produção se
destinar a uma população considerada, duran-
te muitas décadas, irrelevante para o mercado
produtor de bens e serviços, desinteressado de
suprir as demandas de consumo dessas parcelas
da população. Tampouco o mercado privado da
construção se interessava por propor alterna-
tivas formais de moradia para as parcelas mais
empobrecidas.

Apesar de principalmente, nas cidades médias,


ter havido uma progressiva substituição da popu-
lação originária por setores financeiramente mais
bem posicionados, nas grandes cidades o que
predominou, diferentemente, foi à consolidação
bastante explícita do padrão de segregação espa-
cial que já existia. Há que se dizer que o propósito
anunciado das políticas promotoras de habitação
popular, ou social, ou de interesse social – como
denominado na atualidade, era de higienização
das moradias, erradicação e substituição das
habitações precárias e também de promoção
de trabalho e renda, mas, o fortalecimento da
EIXO TEMÁTICO 2 indústria da construção civil, o atendimento aos
interesses do mercado imobiliário e dos proprie-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS tários de terras urbanas e também rurais foram
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES sempre determinantes nesse processo.

Tudo isso tem sido bastante estudado – da Fun-


dação da Casa Popular (1946) ao Programa Minha
Casa Minha Vida.

Mas, pouco tem se dito que ao lado da segregação


socioespacial, a ação institucional promoveu
também o reforço e a consolidação da segregação
racial que já existia desde tempos imemoriais.
Anteriormente mais concentrada nos centros
antigos abandonados e decadentes e nas fran-
jas periféricas de ocupação espontânea, muitas
vezes de risco, com infra-estrutura precária ou
sem ela.

Isso pode parecer óbvio, na medida em que po-


breza e segregação socioespecial estão umbili-
calmente associadas, assim como as políticas
públicas em habitação têm como alvo principal
os setores de menor renda, portanto, os pobres.
Então, se são eles os destinatários das políticas
públicas e estas promovem ou reforçam a segre-
gação das cidades, naturalmente, são os pobres
as vítimas de todos esses processos que se re-
petem há quase um século, desde as primeiras
iniciativas públicas. Mas, se os pobres são negros,
seria uma simples coincidência histórica?

A sociedade brasileira convive, não pacificamen-


te, com um racismo que tem estruturado histo-
ricamente, do Brasil colonial e escravista à eco-
nomia capitalista neoliberal, as relações sociais
e econômicas, na forma de uma desigualdade
profunda de renda, acesso, oportunidades. O fim
da escravatura não foi suficiente para desman-
telar essa realidade, ao contrário, desde então,
apesar da abolição formal, o racismo e as suas
expressões permanecem vivos e ativos, proje-
tando-se de forma multidimensional, inclusive na
esfera pública, através do racismo institucional.
A exclusão – social, econômica e política, a vio-
lência explícita e recorrente, o encarceramento
em massa, o desemprego, a baixa escolaridade
são facetas dessa condição de extrema subal-
ternidade em que a maior parte da população de
ascendência africana se encontra no Brasil ainda
16º SHCU
nos tempos atuais.
30 anos . Atualização Crítica

1012 Assim, esse estudo propõe-se a analisar como


as políticas públicas de habitação têm ignorado Referências
a existência do racismo, sem levar em conta a
sua expressão também na formação e desenvol- CARRIL, Lourdes. Quilombo, favela e Periferia:
vimento das cidades, na sua espacialização, na A longa busca da cidadania. São Paulo: Anna-
valorização da terra, na oferta de infra-estrutura blume; Fapesb, 2006.
e serviços, nos níveis de conforto socioambiental,
na preservação dos valores culturais – mate- CUNHA Jr, Henrique e RAMOS, Maria Estela
riais e imateriais. Pode-se argumentar que essa Rocha. Espaço urbano e afrodescendência:
negação é também uma expressão do racismo estudos da espacialidade negra urbana para
institucional – não se destrói o que se ignora ou o debate das políticas públicas. Fortaleza:
o que se considera que não existe. Problematizar Edições UFC, 2007.
essa questão é o objetivo dessa intervenção.
ESPÍRITO SANTO, M. Teresa G. do. Habitação
social na Bahia: trajetória e produção da
URBIS – 1965/1998. Dissertação de Mestrado
apresentada ao PPGAU-UFBA, 2002.

GARCIA, Antonia dos Santos. Desigualdades


raciais e segregação urbana em antigas capi-
tais: Salvador, cidade D’Óxum e Rio de Janei-
ro, cidade de Ogum. Rio de Janeiro: Garamond,
2009.

GORDILHO-SOUZA, Angela. Limites do Habitar;


segregação e exclusão na configuração ur-
bana contemporânea de Salvador e perspec-
tivas no final do século XX. 2ª. Ed. rev. e amp.
Salvador: EDUFBA, 2008.

SECRETARIA Especial de Políticas de Promo-


ção da Igualdade Racial. CNEPIR. Brasília-DF,
2015.

SILVA, Martiniano José da. Racismo à bra-


sileira: raízes históricas: um novo nível de
reflexão sobre a história social do Brasil. São
Paulo: Anita, 1995.

SOUZA, N. S. Tornar-se negro ou as vicissi-


tudes da identidade do negro brasileiro em
ascensão social. Rio de Janeiro: Graal, 1983.

THEODORO, Mário (Org.). As políticas públicas


e a desigualdade racial no Brasil: 120 anos
após a abolição. Brasília: IPEA, 2008.
EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES “O que melhor define a cidade?”, perguntava-se
a historiadora Stella Bresciani, há 30 anos atrás,
quando convidada para falar no 1º Seminário de
mesa temática História Urbana da ANPUR em Salvador. Suge-
riu a autora do já clássico artigo “Permanência
e ruptura no estudo das cidades” que a dife-
O QUE PODE SER DITO, O QUE renciação entre uma vida urbana e uma vida do
campo estaria baseada na noção de artifício, da
PODE SER VISTO DA CIDADE? arte como transposição de uma ideia em obra, o
que poderia nos dar a possibilidade de compre-
WHAT CAN BE SPOKEN, WHAT CAN BE SEEN OF THE ender a cidade como uma obra: obra de homens
CITY? que imaginaram a cidade não apenas como um
constructo de pedra, mas também como um
¿QUÉ PUEDE SER DICHO, QUÉ PUEDE SER VISTO DE LA lugar de coexistência, de convívio, de sociabili-
CIUDAD? dade. Sendo assim, abraçando e estendendo a
orientação da historiadora, poderíamos, então,
entender a cidade como lugar do outro – esse
PECHMAN, Robert que traz a ideia de alteridade, da diferença e da
Doutor em História; IPPUR/UFRJ constituição de nossa subjetividade.
betuspechman@hotmail.com
Ou seja, a cidade supõe sempre o investimento
PINHO, Fernando na compreensão da cidadania. E, acrescente-
Doutor em Planejamento Urbano e Regional; Governo do
mos, que é na figura do cidadão que se assenta
Estado do Pará a democracia. Mas o que define a democracia,
fernandoaspinho@gmail.com no seu sentido mais completo e não somente no
sentido político, senão a conjugação entre auto-
ASSAF, Stephanie nomia, isonomia e publicidade da vida.
Doutoranda em Planejamento Urbano e Regional;
IPPUR/UFRJ Há três décadas, Stella Bresciani, trabalhando
stephanie.assaf@gmail.com o tema da modernidade nos grandes centros
urbanos, alertava para o fato da democracia
BRESCIANI, Stella ser a parteira das cidades. Inaugurava-se, en-
Doutora em História; UNICAMP
tão, entre nós uma percepção da cidade que,
sbrescia@lexxa.com.br mais do que lugar da cena econômica da acu-
mulação, seria o lugar fundante da condição
política de qualquer sociedade. Nesse sentido,
a historiadora brindou-nos com uma narrativa
que, incorporando a sobrevivência econômica
e material da população, possibilitaria que me-
lhor compreendêssemos a cidade desde que a
interrogássemos a partir de conceitos-chave
que permitiriam observá-la como se fôra um
objeto multidimensional. Tais conceitos impli-
cam numa análise da questão técnica, no reco-
nhecimento da questão social, no mapeamento
16º SHCU das identidades sociais, na atenção à irrupção
30 anos . Atualização Crítica
de novas sensibilidades, no progresso e desen-
1014 volvimento, na cultura popular e no território.
Guardadas as devidas diferenças, o escritor de um campo de concentração, pois a “cidade ama-
Cidades invisíveis, Ítalo Calvino, ao descrever as da” se transmuta em “pátria amada”, ou melhor,
cidades do grande império de Kublai Khan, tam- em “pátria armada”. Sem democracia, a cidade,
bém lançou mão de conceitos para descrever na sua complexa mecânica, vê sua engrenagem
suas cidades imaginárias. No entanto, tratava- falhar, não conseguindo mais transmitir o “elan”
-se de conceitos que lhe permitiam ver a cidade necessário às práticas da hospitalidade, da ami-
muito além de sua materialidade e mineralidade. zade, da confiança, da vergonha e do decoro.
De uma cidade, diria Marco Polo, personagem
de Calvino, não se aproveitam suas maravilhas, Muitas são as maneiras de se reatualizar criti-
mas as respostas que dá às nossas perguntas. camente a história das cidades e do urbanismo
São conceitos, portanto, tecidos de narrativas na conturbada e atual conjuntura brasileira.
fantásticas e que explicitam a tensão entre ra- Nesse sentido, voltando ao que foi menciona-
cionalidade geométrica (o urbano) e o emara- do antes, a pergunta que reverbera é sobre qual
nhado de existências humanas (a urbanidade). seria o papel da cidade na consolidação de uma
Calvino elabora, portanto, conceitos cuja poé- sociedade democrática, uma vez que o papel do
tica ajuda a iluminar os mistérios das cidades. Estado pós-democrático aponta para o fim dos
direitos e das garantias fundamentais, que se dá
Tanto Calvino como Bresciani dramatizam a ci- no mesmo compasso que o empobrecimento da
dade, assim como a vida urbana, como o lugar do subjetividade.
encontro com o outro e da sociabilidade, ou seja,
como sendo o “reino dos desejos ilimitados”. No livro O ódio à democracia, Jacques Rancière
nos sugere que é preciso voltar ao escândalo
Naquele já distante ano de 1992, dois anos após primeiro que representa o “governo do povo” e
a realização do 1º Seminário, seria lançado livro, entender as relações complexas entre demo-
com o material do evento, que representa com cracia, política, república e representação, te-
muita fidelidade o “estado da arte” do pensa- mas que atravessam inclementemente o viver, o
mento sobre o urbano naquele momento. Lê-se ser e o estar na cidade. Temas que repercutem
na apresentação do livro que a área da História dolorosamente na condição urbana e humana
Urbana ainda era pouco explorada e diversifica- da cidade. É preciso voltar ao escândalo pri-
da e não havia se cristalizado ainda como cam- meiro que representa a cidade em seu poder de
po de saber. Qual caminho, então, trilhar para acolhimento de todas as misérias, de todos os
compreender que uma cidade é feita de pedra, afetos, de todas as diferenças, de todas formas
mas também de carne? Que uma cidade é feita e possibilidades de convívio, de todas generosi-
de “urbanismos” e também de “urbanidades”. De dades. Como a cidade deve lidar, então, com o
que seria feita a cidade e qual seria o seu des- ódio à democracia, com o poder social da rique-
tino, era a pergunta que então se fazia sobre a za que não tolera nenhum entrave ao seu cres-
sua história. cimento ilimitado?

Fundados nessa constatação e premidos, atual- Propõe-se nesta mesa que se examine a cida-
mente, por um autoritarismo intoxicante, ocor- de quando ela mesma parece estar à beira do
reu-nos pensar que seria interessante evocar abismo, prestes a ser tragada pela intolerância
uma espécie de genealogia daquilo que foi pen- e, sua aparentada, a violência.
sado sobre a cidade há 30 anos atrás e qual seria
o papel na construção de uma sociedade livre e A cidade intolerante é a que tende a se tornar ci-
democrática nos dias de hoje. Para tanto, seria dade totalitária, de onde a política é expulsa, o
preciso pensar sobre quem éramos, como pen- diálogo é interrompido e onde reina um silêncio
sávamos e quais eram nossos temas e questões. de campo de concentração. Ali o único desejo é
o desejo do líder e a cidade se encolhe, se redu-
A pergunta que nos leva ao passado, é funda- zindo a um campo de trabalho.
mental que se diga, traz a marca de nossa angús-
tia atual diante dos fortes indícios do fracasso, O que fora o lugar da confiança, do inesperado,
seja da democracia, seja da cidade. Sem demo- da surpresa, das possibilidades de encontro, da
cracia a cidade se desertifica e se assemelha a amizade e dos afetos públicos, agora mais do
EIXO TEMÁTICO 2 que nunca, dá vazão à desconfiança, à rotina,
à impossibilidade da vida pública, ao ódio e ao
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS desafeto, com o que a cidade deixa de exprimir
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES o sentido múltiplo da vida e da experiência de
sociabilidade.

Cidade, civilidade, cidadania… Com quantas ci-


dades se constrói a democracia?

CIDADE DEMOCRACIA URBANIDADE

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1016
ABSTRACT that allowed him to see the city far beyond its ma-
teriality and minerality. Marco Polo, a character
created by Calvino, would say that we do not en-
“What better defines the city itself?” asked her- joy the wonders cities toast us, but the answers
self the historian Stella Bresciani as she spoke cities give to our questions. Therefore, they are
at the 1st Urban and Regional Planning National concepts (or woven from fantastic narratives)
Association (ANPUR) Urban History Seminar in that illustrate the tension between geometric ra-
Salvador, Brazil, 30 years ago. She is the author tionality (the urban) and the knot of human exis-
of the already classical article “Permanence and tences (urbanity). This way, Calvino refines con-
rupture in the study of cities,” and suggested that cepts whose poetry supports to illuminate the
the difference between urban life and rural life re- mysteries of cities.
lies upon the notion of artifice. In other words, the
notion of art as though the transposal of an idea Both Calvin and Bresciani dramatize the city and
into work. By seeing it this way, we meet the chan- urban life as the place where we bump into each
ce to understand the city as a work. Better said: other and the place of sociability, that is, as being
the city as the men’s work, those men who ima- the “kingdom of unlimited desires.”
gined the city as a stone construct and a place
of coexistence and sociability. Thus, we can un- Two years after taking place the 1st Seminar in the
derstand the city as the place of the other by em- yet distant year of 1992, the book release contai-
bracing and extending the historian’s orientation: ning the annals represented faithfully the “state
this other brings with itself the idea of alterity, di- of the art” on what used to be the urban thoughts.
fference, and the constitution of our subjectivity. In the book’s preface, the area of ​​Urban History
was mentioned as still little explored and diversi-
In other words, the city presupposes investment fied since it had not yet solidified itself as a field
in understanding citizenship. It is also worth men- of knowledge. Then which path should we have
tioning that democracy is based upon the role of taken to understand that a city is made of stone,
the citizen. Nevertheless, what defines democra- but also of meat? The one that pointed out that
cy in its most complete sense and not only in the the city is made up of “urbanisms” and of “urba-
political sense, if not the combination of auto- nities.” The questions we asked ourselves about
nomy, isonomy, and publicity of life? cities’ history were what the city was made of and
its destination, then.
As she worked on the subject of modernity in lar-
ge urban centers three decades ago, Stella Bres- As intoxicating authoritarianism grinds us down
ciani suggested that democracy was the midwi- (and based on the previous observation), it occur-
fe of cities. More than a place to function as an red to us to call forth the genealogy of what used
economic scene of accumulation, the city would to be thought regarding the city 30 years ago and
also be the founding place of any society’s poli- the city’s role in building a free and democratic
tical condition. By incorporating the population’s society in nowadays. We came up with the con-
economic and material survival into her thoughts, clusion that it is necessary to remember who we
the historian provided us a narrative that enables were, how we used to think, and what our themes
us to understand the city better as long as we and issues were at that time.
questioned it from critical concepts to observe it
as if it were a multidimensional object. Such con- The question that takes us to the past lays out the
cepts imply an analysis of the technical issue, the mark of our current anguish in the face of definite
recognition of the social issue, the mapping of so- signs of failure, be it democracy or the city. Wi-
cial identities, attention to the emergence of new thout democracy, the city becomes a desert and
sensitivities, progress & development, popular resembles a concentration camp, as the “beloved
culture, and territory. city” transforms itself into a “beloved homeland,”
or rather, an “armed homeland.” Without demo-
With due regard for differences, when describing cracy, the city, in its complex mechanics, sees its
the Great Kublai Khan cities, Italo Calvino’s Invi- gear fail; no longer transmitting the “elan” requi-
sible cities also made use of concepts to descri- red to hospitality, friendship and trustiness, sha-
be his imaginary cities. These were the concepts me, and decorum practices.
EIXO TEMÁTICO 2 There are many critical ways to update the history
of cities and urbanism in the troubled and cur-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS rent Brazilian context. In this sense, the question
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES that reverberates is what would be the city’s role
in consolidating a democratic society, once the
post-democratic state’s role points towards the
end of fundamental rights and guarantees, which
takes place at the same pace as the impoverish-
ment of subjectivity.

Jacques Rancière’s Hatred of democracy book


suggests that we must first return to the scandal
that represents the “people’s government” to un-
derstand the complex relations between demo-
cracy, politics, republic, and representation the-
mes that tie up living and existing issues in the city.

These themes hold a severe impact on the urban


and human condition of the city. We must re-
turn to the scandal that represents the city in its
power to welcome all miseries, all affections, all
differences, all forms and possibilities of coexis-
tence, all kindnesses. How, then, should the city
deal with the hatred of democracy, with the social
power of wealth that does not tolerate any obsta-
cle to its unlimited growth?

This roundtable proposes to examine cities as


they appear to be on the abyss’ edge. In other
words, as they seem to be about to be soaked up
by intolerance and related violence.

The intolerant city is the one that tends to beco-


me a totalitarian city. The one that kicks politics
out and breaks dialogue in, and where a concen-
tration camp silence prevails everywhere. The
only desire is the leader’s desire, which makes the
city shrink, reducing itself to a work field.

What had previously been the place of trust, the


unexpected, the surprise, the meeting possibili-
ties, friendship, and public affections, now more
than ever, gives rise to distrust, routine, the failu-
re of public life, hatred, and disaffection. Facts
with which the city fails to express the multiple
meaning of life and the experience of sociability.

City, civility, citizenship… With how many cities is


democracy built?

16º SHCU CITIES DEMOCRACY URBANITY


30 anos . Atualização Crítica

1018
RESUMEN desarrollo, de la cultura popular y del territorio.

Reservando las debidas diferencias, el escritor


“¿Qué mejor define la ciudad?”, se preguntaba la de Ciudades invisibles, Ítalo Calvino, al describir
historiadora Stella Bresciani hace 30 años cuan- las ciudades del gran imperio de Kublai Khan,
do invitada a discursar en el 1er Seminário de His- también ha lanzado mano de conceptos para
tória Urbana de la Associação Nacional de Plane- detallar sus ciudades imaginarias. Sin embargo,
jamento Urbano e Regional (ANPUR), en la ciudad se trataban de conceptos que le permitían ver la
de Salvador, Brasil. La autora del clásico artículo ciudad más allá de su materialidad y mineralidad.
“Permanência e ruptura no estudo das cidades” Dicho de Marco Polo, personaje de Calvino, apun-
sugirió que la distinción entre una vida urbana y ta que no son las maravillas que se aprovechan
una vida en el campo estaría basada por la noci- de una ciudad, sino las respuestas que ellas nos
ón de artificio, o sea, del arte como transposición ofrecen a nuestras preguntas. Por lo tanto, son
de una idea en obra, la cual podría ofrecernos la conceptos, tejidos de narrativas fantásticas, y
posibilidad de comprender la ciudad como una que explicitan la tensión entre racionalidad geo-
obra. Sería la obra de hombres que imaginaban métrica (el urbano) y una maraña de existencias
la ciudad no solamente como un constructo de humanas (la urbanidad). Calvino elabora, de este
piedra, pero también un lugar de coexistencia, de modo, conceptos cuya poética ayuda a iluminar
convivio, de sociabilidad. Así siendo, al convergir los misterios de las ciudades.
y ampliar la orientación dada por la historiadora,
Tanto Calvino como Bresciani dramatizan la ciu-
podríamos entender la ciudad como lugar del otro
dad y la vida urbana como el lugar del encuentro
– este otro que trae consigo la idea de alteridad,
con el otro y de la sociabilidad – o sea, como si
de la diferencia y de la constitución de nuestra
fuera el “reino de los deseos ilimitados”.
subjetividad.
En aquel lejano año de 1992, dos años tras haber
La ciudad presupone que se produzca una inver-
sido realizado el 1er Seminario, se lanzaría el libro
sión para que comprendamos la ciudadanía. Y,
conteniendo el material del evento y que repre-
acrecentemos, que la democracia se asienta en
senta fielmente el estado del arte del pensamien-
la figura del ciudadano. Sin embargo, lo que de-
to acerca del urbano. En su prefacio, se lee que el
fine la democracia en su sentido más completo y
área de Historia Urbana aún era poco explorado
no solamente político, ¿sino la conjugación entre
y diversificado, y, por ello, no se había cristaliza-
autonomía, igualdad y publicidad de la vida?
do como campo de saber. Entonces, ¿qué camino
trillar para comprender que una ciudad es hecha
Hace tres décadas, al trabajar el tema de la mo-
de piedra y también de carne? Que una ciudad es
dernidad en los grandes centros urbanos, Stella
hecha de “urbanismos” y también de “urbanida-
Bresciani advertía para el hecho de que la demo-
des”. De que sería hecha la ciudad y cuál sería su
cracia sería la partera de las ciudades. Se inau-
destino, era la pregunta que se haría acerca de su
guraba así entre nosotros una percepción de la
historia.
ciudad que, más que un lugar de escena econó-
mica de la acumulación, sería el lugar fundador A partir de esta constatación, y oprimidos actual-
de la condición política de cualquier sociedad. En mente por un autoritarismo tóxico, se nos ocurrió
este sentido, la historiadora nos ha brindado con evocar una especie de genealogía de aquello que
una narrativa que, incorporando la sobrevivencia ha sido pensado acerca de la ciudad desde hace
económica y material de la populación, posibilita- más de 30 años y cuál sería su papel para cons-
ría que mejor comprendiéramos la ciudad desde truir una sociedad libre y democrática en los días
que la interrogáramos a partir de conceptos-cla- de hoy. Para ello, sería necesario pensar acerca
ve que permitirían observarla como si fuera un de quien éramos, como pensábamos y cuales
objeto multidimensional. Esos conceptos impli- eran nuestros temas y cuestiones.
can un análisis de la cuestión técnica, del reco-
nocimiento de la cuestión social, de la cartografía La pregunta que nos lleva al pasado, es funda-
de identidades sociales, de la atención puesta a la mental que se mencione, presenta la marca de
irrupción de nuevas sensibilidades, del progreso y nuestra angustia actual delante de los fuertes in-
EIXO TEMÁTICO 2 dicios de fracaso, sea de la democracia sea de la
ciudad. Sin democracia, la ciudad se desertifica y
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS se asemeja a un campo de concentración, pues la
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES “ciudad amada” se transmuta en “patria amada”, o
mejor, en “patria armada”. Sin democracia, la ciu-
dad, en su compleja mecánica, ve a su engranaje
fallar. Ya no puede transmitir el “ímpeto” necesa-
rio a las prácticas de hospitalidad, de amistad, de
confianza, de vergüenza y del decoro.

Muchas son las maneras de reactualizarse críti-


camente la historia de las ciudades y del urbanis-
mo en la conturbada y actual coyuntura brasileña.
En este sentido, volteando a lo que fue menciona-
do anteriormente, nuestra indagación es acerca
de cuál sería el papel de la ciudad en el proceso
de consolidación de una sociedad democrática.
Eso porque el papel del Estado pos-democráti-
co señala el fin de los derechos y de las garantías
fundamentales que se dan en el mismo compaso
que el empobrecimiento de la subjetividad.

En su libro El odio a la democracia, Jacques Ran-


cière nos sugiere que sea necesario regresar al
escándalo que representa el “gobierno del pue-
blo” y entender las relaciones complejas entre
democracia, política, república y representación,
temas que cruzan inclementemente el vivir, el ser
y el estar en la ciudad. Temas que repercuten do-
lorosamente en la condición urbana y humana de
la ciudad. Es necesario que regresemos al escán-
dalo primero que representa la ciudad en su po-
der de acogimiento de todas las miserias, de to-
dos los afectos, de todas las diferencias, de todas
formas y posibilidades de convivio, de todas las
generosidades. Entonces, ¿cómo la ciudad debe
lidiar con el odio a la democracia, con el poder so-
cial de la riqueza que no tolera ningún entrabe a
su crecimiento ilimitado?

En esta mesa se propone que se examine la ciu-


dad cuando ella misma parece estar al borde del
abismo, a punto de ser tragada por la intolerancia
y su aparentada violencia.

La ciudad intolerante es la que tiende a volverse


totalitaria, de la cual la política es expulsa, el dia-
logo interrumpido y en donde reina un silencio de
campo de concentración. Allá, el único deseo es
el deseo del líder y la ciudad se encoge, se reduce
16º SHCU
a un campo de trabajo.
30 anos . Atualização Crítica

1020 Lo que había sido el lugar de la confianza, del


inesperado, de la sorpresa, de las posibilidades
de encuentro, de la amistad y de los afectos pú-
blicos, ahora más que nunca, dan salida a la des-
confianza, a la rutina, a la imposibilidad de la vida
pública, al odio y al desafecto, con lo que la ciu-
dad deja de exprimir el sentido múltiplo de la vida
y de la experiencia de la sociabilidad.

Ciudad, civilidad, ciudadanía… ¿Con cuántas ciu-


dades se construye la democracia?

CIUDAD DEMOCRACIA URBANIDAD


EIXO TEMÁTICO 2 Itinerários urbanos em tempos surreais.
Como a ação urbanística entremeia nosso
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES cotidiano e o que lhe escapa?

Se o artifício/artefato humano se impõe sobre


mesa temática o espaço da natureza e se dispõe em cidade, o
lugar da política expressa pela palavra a forma
de ação privilegiada na relação entre os que nela
O QUE PODE SER DITO, O QUE habitam, não esqueçamos que se a primeira parte
da premissa se sustenta, já a segunda estabelece
PODE SER VISTO DA CIDADE? um corte, o sentido da divisão/exclusão. Ou seja,
a partilha da palavra definidora do ser político
percorreu por dois milênios um longo, tortuoso
WHAT CAN BE SPOKEN, WHAT CAN BE SEEN OF THE e sangrento caminho até assumir a “forma” con-
CITY? temporânea da democracia de sujeito universal.
Até onde a afirmação do direito universal à pala-
¿QUÉ PUEDE SER DICHO, QUÉ PUEDE SER VISTO DE LA vra/à política se sustenta? O quanto o artefato
CIUDAD? proporciona um meio urbano que abriga/acolhe
os habitantes/cidadãos e os coloca em convívio
e relacionamento?

Assim, a partir daquelas primeiras indagações


dos anos 1980-1990, outras facetas da “questão
urbana” se apresentaram, ou melhor, se impuse-
ram como percursos a explorar ou indagações
a exigirem respostas, reflexões. As noções de
caos, de monstro, de sujeira e necessidade de
políticas sanitárias presentes na bibliografia-li-
teratura sobre o urbano no século XIX e início do
XX permanecem como indagações impositivas.

Posso tomar temas correntes da população pau-


listana e da opinião pública em geral preocupada
com a mancha asfáltica em que a cidade se tornou,
carente de áreas de vegetação e adequadas ao
lazer e, de forma especial, a ocupação irregular
de áreas de mananciais e/ou de risco, a poluição
causadora de ar impróprio à vida saudável e cau-
sador de doenças crônicas. Matérias jornalísticas,
programas televisivos e trabalhos acadêmicos
destacam a má manutenção de vias públicas,
ausente os acessos às calçadas para cadeiran-
tes, a precariedade dos equipamentos públicos
básicos em áreas periféricas e a insuficiência
do transporte público e sua inadequação para
atender pessoas com necessidades especiais.
Onde se dá o encontro e o convívio entre cidadãos
e deles com a cidade que habitam?

16º SHCU Várias dessas críticas, porém não só elas, moti-


30 anos . Atualização Crítica
varam políticas urbanas: criar jardins lineares, os
1022 seguidos projetos de despoluição do rio Tietê na
área metropolitana, incluídas regiões do interior rebatizada “comunidade”, acompanha-se da cifra
do Estado (Faxina no Rio Pinheiros. O Estado de S. de favelados vivendo na cidade do Rio de Janeiro
Paulo 13.07.2019. p.1 e A18). A questão da qualidade – entre 1.200.000 e 2.000.000 pessoas! Só a Ro-
das águas deu lugar a publicações como a Águas cinha tem quantos? Se somarmos aos moradores
Claras, destinadas a esclarecer um público não de favelas da cidade de São Paulo, e às palafitas
especializado sobre o significado da inter-relação de Recife, e as iguais condições de habitat das
das águas das bacias hidrográficas e a cidade1. muitas outras cidades brasileiras, quanto são?
Críticas também motivaram ativistas em defesa
da transformação de terrenos baldios ou deso- Por isso, ao trazer para o debate “os ruídos na
cupados em áreas ajardinadas para uso público cidade”, sou obrigada a admitir serem muito mais
e dos vários projetos destinados a transformar que ruídos e contrastes; a diversidade configura
em parque a via expressa elevado João Goulart, um novelo de vidas tão díspares e entrelaçadas,
conhecida como “Minhocão” (O Estado de São um desafio tão enorme que me assusta enfren-
Paulo. 22.02.2019, p. A15). Contudo, a ocupação tar. A bibliografia – livros, artigos especializados,
irregular-ilegal de áreas contíguas a mananciais, matérias jornalísticas – oferece um começo, mas
com 24 novas invasões desde janeiro de 2018, até onde as duas ou mais partes da sociedade se
expõe o descontrole do poder público sobre as dão a ver e a compreender em sua constituição
gangues e milícias criminosas e a carência crônica e vida cotidiana?
de moradias para a população de baixa renda (O
A partir desse quadro inquietante, proponho dirigir
Estado de São Paulo. 24.06.2019, p. A9).
o foco para a dimensão imagético-paisagística
Abandono a mídia impressa e passo para as atuais das cidades, pois nos dá conta da desigual e va-
horas frente à TV assistindo jornais (Globo News), riada forma de ocupação da área urbanizada nos
entre assustada e impotente, e escutando as pres- dois sentidos da noção de poder normativo: os
crições de infectologistas sobre como se proteger dispositivos legais como elementos estruturan-
do covid-19: lavar bem as mãos e usar álcool gel tes da prática urbanística - projetos desenhados
com frequência, a controvérsia sobre usar ou não sobre os mapas de cidades e de áreas a serem
máscaras e em que situações, mas principalmente urbanizadas e o que extrapola esse “poder”. A
o ditame do “isolamento social”, manter distância noção de poder normativo remete, assim, a dire-
entre as pessoas, se sentir sintomas suspeitos, trizes que buscam/pretendem conduzir “de modo
isolar-se dentro da própria casa, não faça vida impositivo” a forma de ocupação do território, sua
social,  não vá à praia. Porém, a mídia televisiva é expansão e a hierarquização das diversas áreas
rápida; trabalha também com a colagem de cenas urbanas, por meio de legislação em diferenças
associadas ao tema da reportagem e, passo se- esferas - municipal, estadual e federal -, ou seja,
guinte, surgiu dias desses a imagem impactante no desenho urbano propriamente dito ou no de-
da Rocinha, suas ruelas, se é que podem ser assim senho viário cujo objetivo se dispõe em projetos
chamadas, os cubículos em que as pessoas “mo- urbanísticos para muito além da definição de rotas
ram” (!?), uma situação viva e contrastante com para a circulação. Como se dá o próprio da cidade
as subjacentes às falas dos infectologistas, o que – a fala, as várias linguagens – sua sociabilidade?
fez um deles, uma médica, ficar com os olhos
marejados e vermelhos e dizer: “é somos dois
mundos à parte”. Mas isso em termos, pois os en-
trevistados, a maioria mulheres, trabalham como
empregadas domésticas, balconistas de lojas, e
moram em áreas de risco – denominadas no meu
tempo de juventude como “o asfalto”. Logo, uma
troca desigual porém essencial em sua comple-
mentariedade. Essa “outra parte da sociedade”,

1. Rio Pinheiros e seu Território. Conhecer para transfor-


mar, MORI, C.C. et alii, Águas Claras do Rio Pinheiros, São
Paulo, 2017.
EIXO TEMÁTICO 2 O PADEIRO, A DEMOCRACIA E A CIDADE
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
A cidade tornou-se, na modernidade, o lugar fun-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
dante da condição política de qualquer socieda-
de. Talvez por isso possamos inferir que tenham
se tornado as grandes parteiras da democracia.
Evidencia-se, portanto, que sem democracia a
cidade fracassa, pois perde uma de suas princi-
pais características que é a produção de relações.
Assim sendo, a cidade deixa de poder transmitir
sua verdadeira herança que a configura como
lugar da reunião, do encontro e da negociação
pelo destino dos homens e da sociedade. São,
portanto, os assuntos humanos que dão signifi-
cado e sentido à aglomeração urbana. Faz todo
sentido que pensemos, então, que a urbanidade
e a sociabilidade pública estejam tanto na raiz
da cidade como na da democracia. Assim, tor-
na-se fundamental para a compreensão, tanto
da cidade quanto da democracia, a percepção
de como os “afetos urbanos” são negociados.
Por isso mesmo, o reconhecimento do Outro,
a tolerância, a confiança, a amizade pública (o
que é comum aos cidadãos para além dos afetos
familiares), a hospitalidade, que tanto precisam
do mundo e da visibilidade dos assuntos huma-
nos para florescer, são as possibilidades dadas
para a democracia se atualizar a cada momento
histórico. Nesse sentido, democracia, cidade e
cidadania podem conviver numa mesma frase,
quase como se fossem sinônimos. É na cidade
que o debate, o raciocínio, o exame das questões
propostas e a escolha do que a sociedade quer, se
tornam possíveis e viáveis pelas mãos dos cida-
dãos, pois ali é o único lugar onde a proeminência
do coletivo se impõe ao indivíduo.

Não se trata, no entanto, neste artigo, de analisar


a “grande urbanidade”, própria à política e ao po-
lítico. Não se trata, tampouco, de uma análise da
democracia, mas, sim, de seu rebatimento sobre
a cidade. Assim, vou me ater ao que podemos
cunhar como “pequena urbanidade”, ou seja, a
experiência da democracia no miúdo e que quero
capturar na narrativa dos afetos urbanos, prati-
cados no cotidiano da vida citadina. De fato, não
me aterei à dimensão política da democracia, mas
me deterei na maneira como ela se manifesta na
cidade, nas suas minúcias, nos comportamentos
16º SHCU cotidianos e banais, tão bem capturados pelas
30 anos . Atualização Crítica
narrativas literárias e que expressam de maneira
1024 veemente a condição humana da cidade. Para
tanto lançarei mão daquilo que é o próprio da estas respondiam: “Não é ninguém, é o padeiro,
cidade: a fala. madame”. Assim, o humilde padeiro ficara saben-
do que não era ninguém.
O que nos conta a cidade quando esta resolve abrir
a boca? Às vezes essa fala é apenas um sussurro, A banalidade da história e sua cotidianidade apon-
às vezes são ruídos, mas também gritos, berros, tam para um fato corriqueiro na vida da cidade.
gemidos, ordens, lamentos, urros. É próprio da Mas, ao mesmo tempo, tem o pendão de revelar
cidade falar. Na pólis grega, por exemplo, tida a hierarquia de classes, quem é quem na cidade
historicamente como o derradeiro universo de e na sociedade. É justamente a partir daí que
convívio humano, a publicidade da vida (a esfera podemos levantar algumas questões que certa-
pública), a negociação pública e transparente, mente atravessam a estrutura social e de classes
era um dos esteios que sustentavam a própria da sociedade. Tal crônica empurra-nos também
ideia de democracia. Por isso mesmo, o teatro à questão da subjetividade e da identidade do
grego, que era encenado ao ar livre, concernia ao padeiro e tudo o mais que possa se desdobrar daí.
político, no seu poder de colocar em questão, de
Eis aí um pequeno exemplo que pode trazer à
tornar público o conflito, de discutir, de deliberar,
tona o papel das pequenas urbanidades na con-
de ser transparente ao olhar de todos.
figuração das representações sobre o viver em
Tomando em conta essas premissas, passamos cidade. É sobre isso, exatamente, sobre esses
a entender porque a cidade e narração evoluem pequenos acontecimentos que tecem o dia-a-dia
como se fossem um ser único. Ao apenas falar, a que quero falar.
cidade nos conta alguma coisa sobre a sua manei-
ra de ser. E nessa narrativa percebemos como se
intercalam ou se sobrepõem a história, a memória,
o homem urbano, o cotidiano, o narrador e suas
diferentes narrativas da cidade vista como vício
ou como virtude. É essa narrativa que irá nos per-
mitir vislumbrar os laços que se entretecem entre
a pequena e grande urbanidade, apontando-se
a tessitura de que é tecida a democracia como
forma de compartilhamento da vida em comum.

Para melhor aquilatar o que proponho, formulo


um breve exemplo. Tomo ao léu o cronista Rubem
Braga que muito escreveu sobre a vida urbana e
seus afetos. Em crônica muito singela intitulada
“O padeiro”, ele nos revela importantes aspectos
da hierarquia da sociedade e da própria cidade.
Trata-se de um padeiro que entregava a bisnaga
fresquinha em casa, como era comum nos anos
50, quando as pessoas ainda moravam em casas.
Diariamente, o padeiro percorria o bairro, tocando
de casa em casa. Ao toque da campainha ouvia-se
a voz da empregada que perguntava: “Quem é?”.
Ao que o entregador respondia: “Não é ninguém
não, é o padeiro”! Certo dia, tocando à porta do
cronista, este se deparando com o padeiro, per-
guntou-lhe porque ele dizia às pessoas que não
era ninguém. Foi quando o padeiro respondeu
que aprendera isso com as empregadas. Ao toque
da campainha, quando a patroa perguntava lá de
dentro da casa para as empregadas “Quem é?”
EIXO TEMÁTICO 2 DE LISBOA AO RIO DE JANEIRO E BELÉM, O QUE
PODEM NOS DIZER OS DIZERES URBANOS?
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
Em abril de 2012, quase 8 anos atrás, graças ao
Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior
promovido pela CAPES, cheguei a Lisboa para
realizar um estágio no Centro de Estudos de
Sociologia (CesNova), vinculado à Faculdade de
Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova
de Lisboa. Na época realizava meu doutoramento
em planejamento urbano e regional no IPPUR/
UFRJ, sob orientação do professor Robert Pe-
chman. Não cabe aqui entrar em detalhes sobre
minha pesquisa de tese, e basta apenas destacar
que ali meu interesse eram as relações entre
cidade, discurso e saudade. Antes do doutorado,
inclusive, os nexos entre discurso e cidade, bem
como a necessidade de ter uma forma de operar
essa análise, já eram uma questão para mim e,
mesmo após a conclusão do doutoramento, meu
olhar continuou e continua sendo pautado por
essa temática. Desde então para mim, é impos-
sível, olhar para a cidade e não ter em pauta esse
viés, com maior ou menor grau, ainda que outros
interesses o intersecionem.

Voltando à estada em Lisboa, gostaria de des-


tacar que minha experiência pessoal foi media-
da por uma tensão entre curiosidade, surpresa,
estranhamento e “estrangeiridade”. Lembro que,
ainda no Brasil, antes de viajar, me preocupava
com a crise econômica portuguesa e a aparen-
te acomodação popular diante desse cenário.
Incomodava-me não perceber qualquer indig-
nação mais enfática por parte dos portugueses.
Todavia, esta foi uma errônea impressão que
desmoronou quando passei a residir em Lisboa.
Passeando pelas ruas da capital portuguesa e
assistindo aos telejornais, notei que as coisas
não eram como eu havia pensado, por ignorância
minha, mas também por certa invisibilização do
assunto na grande imprensa brasileira. Não só
havia resistência como essa era potente e plural.

Esse incômodo aliado à curiosidade, ao desejo


por descortinar a cidade em que estava residin-
do, compôs os ingredientes que fermentaram e
temperaram os meus percursos por Lisboa. O que
deu origem a um conjunto de registros fotográfi-
16º SHCU cos, certamente também amparados no que eu
30 anos . Atualização Crítica
poderia chamar de “modo turista de estar”. Estava
1026 assim montando, ainda que inconscientemente
e de forma espontânea, um arquivo que mais espaço de sujeitos e de significantes. É na e pela
tarde eu denominei como “narrativas da/sobre a cidade que se constitui o discurso urbano. O que
Lisboa”. Deste conjunto, como que em resposta denominei como uma “escrita urbana”, Eni Orlan-
à pergunta sobre a (aparente) falta de resistência di chama de “narratividade urbana”, da qual as
diante das medidas impostas pelo governo por- pichações, por exemplo, seriam uma forma de
tuguês frente à crise econômica, fui observando sua materialidade.
um modo específico de escrita, que se inscrevia
na materialidade da cidade, em muros e paredes, Foi a partir dessas observações em Lisboa, ou foi
por exemplo, com enunciados que apresentavam ali que a escrita urbana começou a se constituir
uma crítica à crise econômica portuguesa e, de como uma questão a ser investigada. De Lisboa
forma mais geral, uma crítica ao capitalismo. A ao Rio de Janeiro e Belém, continuei motivado
esse tipo de enunciado, com base em seu modo pela curiosidade, observação e questionamento.
de funcionar, chamei de “dizer rebelde”. E assim, desde 2012, fui constituindo um arquivo
sobre os dizeres nas cidades.
Para a investigação dessa forma de dizer, deste
tipo de escrita urbana, adotei os pressupostos Portanto, considerando a questão proposta para
oriundos da análise de discurso francesa (AD), o XVI SHCU, a saber, aquela ligada à incontornável
indagação sobre o montante já produzido e a pro-
mais especificamente aqueles vinculados ao qua-
duzir sobre a história da cidade e do urbanismo e
dro téorico-metodológico elaborado pelo filósofo
sua crítica, busco nesta comunicação promover
francês Michel Pêcheux e pelos seus desdobra-
uma reflexão que tematize a cidade por meio de
mentos no Brasil realizados pela linguista Eni
imagens, por meio de registros fotográficos de
Orlandi. Seguindo essa orientação, uma análise
minha autoria, sob um ponto de vista da escrita
do discurso deve privilegiar a discursividade, ou
urbana em seus nexos com as categorias de dis-
seja, em poucas palavras, deve atentar para os
curso, arquivo, silêncio e resistência. Trata-se,
sentidos, em uma relação de significação que alia
deste modo, de uma espécie de breve retrospec-
sujeito, história e língua. Nesse âmbito da AD, o
to, retomando algumas considerações anteriores
discurso refere-se à palavra em movimento, a
e levando em conta os desdobramentos seguintes
uma prática social. O discurso é uma prática,
em relação ao material reunido.
uma prática de linguagem. Não é o mesmo que
língua, fala ou texto, embora seja na materialidade Sendo assim, esta comunicação toma como
da língua que o discurso pode existir. O discurso material empírico um conjunto de enunciados
também não transmissão de informações e nem que se encontravam materializados em muros
mensagem transmitida. O discurso é efeito de e paredes da cidade e que traziam/trazem im-
sentido. portantes marcas de significação sobre o viver
urbano, tais como, por exemplo, as relações de
Nesse sentido, foi no início dos anos 2000, que desigualdade e de diferença que marcam a histó-
a questão da cidade parece ser colocada mais ria de nossas cidades. Todavia, não se tratam de
enfaticamente nos estudos do discurso. Em uma quaisquer enunciados, mas sim daqueles que têm
mirada discursiva, a cidade é compreendida para na ilegalidade e na rebeldia a sua maior marca.
além de sua conformação físico-geográfica. Para São enunciados que, em sua maioria, se carac-
Eni Orlandi, em Cidade atravessada: os sentidos terizam pelo que chamamos de “pichação”, e que
públicos no espaço urbano (2001) e em Cidade se diferenciam de um status artístico conferido
dos sentidos (2004), a cidade é, do ponto de vista ao grafitti.
discursivo, um espaço de significação, onde os
dizeres operam sentidos, cabendo ao analista
investigar como e para quem esses dizeres sig-
nificam. A cidade é entendida, por conseguinte,
como um espaço particular de interpretação:
um espaço em que os sujeitos se interpretam
e interpretam a cidade, a qual, por sua vez, im-
põe determinados gestos de interpretação. É
um espaço simbólico e histórico: a cidade é um
EIXO TEMÁTICO 2 Cidades, discursos e subjetividades:
dos novos arranjos fascistas
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
As cidades, para além da sua materialidade – pre-
sente desde a própria concretude do espaço, das
edificações e até mesmo na dureza das relações
de produção que as envolvem – necessariamente,
se erguem pela incorporação e mistura de elemen-
tos cuja natureza é intangível e imaterial. Neste
sentido, reconhecemos tanto as imagens, como
as palavras, enfim a linguagem, enquanto alguns
desses componentes não palatáveis e fundamen-
tais ao urbano. Tais elementos não brotam da terra,
mas nascem na prática social e nela se dotam de
significados, os quais não poderiam nem deixar
de se relacionar com disposições materiais, assim
como às estruturas e relações de poder em voga.

Considerando o atribulado ano de 2020, no qual o


mundo está sendo varrido por uma nova e terrível
pandemia, poderíamos nos debruçar em análises
sobre uma série de possibilidades de nascentes
arranjos sociais que, obviamente, se constroem
e são atravessados por mudanças sintomáticas
na linguagem que reverberarão nas formas (não
apenas físicas) das cidades. Entretanto, não há
como se ignorar que tal pandemia se espalha
em sobreposição à existência prévia de fortes
alianças conservadoras, combinadas com ondas
massivas de produções de subjetividades reacio-
nárias, efetivadas pela presença numerosa de
políticos e governos de extrema direita, sendo
que alguns, como visto no caso brasileiro, estão
fortemente impregnados de traços característi-
cos dos regimes totalitários do início do século
XX, reunidos aqui pelo termo fascismo.

O caso brasileiro, a ser sintetizado e amarrado


pelo período histórico em curso e recém-no-
meado como “Bolsonarismo”, é bastante repre-
sentativo e trágico nesse aspecto. Eleito por vias
democráticas em 2018, a figura do presidente Jair
Bolsonaro tanto coagula o que reconhecemos
por subjetividades reacionárias, como flerta e
reproduz referências nazistas e fascistas (o que
se estende desde sua equipe governamental até
às calorosas manifestações de seu eleitorado
mais fiel), assim como parece estar em franco
16º SHCU
diálogo com as atualizações desses símbolos2
30 anos . Atualização Crítica

1028 2. Por exemplo, no dia primeiro de junho (também decretado


e, não podemos deixar de mencionar, aponta Aquilo que pode ser dito não só demarca épocas,
nitidamente para um excesso de tendências períodos na história, como floresce em contextos
autoritárias e antidemocráticas. Ainda que em propícios à germinação de ideias específicas e
um momento delicado e de baixa popularidade, não deixa de alterar tais conjunturas. Portanto,
é significativo o fato deste presidente ter sido nos perguntamos e investigamos em qual tipo de
eleito democraticamente, como é muito relevante cidade, suas características, suas qualidades, se
o lastro de representantes políticos com perfil permitem que tais narrativas, tais símbolos te-
parecido eleitos em grandes quantidades nas nham ampla circulação por suas ruas e livre trân-
últimas eleições e o assustador apoio popular sito para se entranharem em seus altos cargos
recebido por estes. representativos, em sua estrutura burocrática e
administrativa. Não nos esqueçamos também de
Tendo em vista tal contexto, nesta reflexão pro- que tais narrativas não apenas estão alinhadas a
pomos detectar algumas dessas manifestações
perspectivas e visões de mundo características,
discursivas de matrizes fascistas3 nos quadros do
mas são casos extremos e absolutamente contrá-
governo brasileiro, em especial aquelas relaciona-
rios àquilo que define o urbano por excelência: o
das ao presidente da república e aos seus funcio-
entendimento do outro enquanto igual, passível
nários estatais de alto escalão. Essa depuração
de diálogo, de interações, de troca. Lembremos,
é útil não somente para escancarar e elucidar os
pois, que o que agrupamos aqui como do cerne do
absurdos daquilo que é dito, mas, principalmente,
que pode definir o fascismo tem como princípio
para se iluminar aquilo que se pode dizer, ainda
básico a negação do outro, da alteridade; o que,
mais considerando que o que se é dito agora era
inclusive, chegou a ser manifestado em formas
indizível, inimaginável e inaceitável há pouquíssi-
e dispositivos de aniquilação do outro/o inimigo.
mos anos atrás. Por exemplo, o fato da Secretaria
de Comunicação (órgão de comunicação nacional)
reeditar a frase que emoldurava o campo de con-
centração Auschwitz em uma patética releitura
exposta em uma peça publicitária vinculada no
twitter em maio deste ano.4

como o Dia Internacional do Leite pela Organização das


Nações Unidas para Alimentação e Agricultura) o presidente
Jair Bolsonaro tomou um copo de leite em transmissão
ao vivo. Tal ato, aparentemente um simples incentivo ao
consumo de leite e da alimentação saudável, nas palavras
do presidente, também pode ser lido como um brinde ao
nazismo e uma homenagem a grupos suprematistas bran-
cos, uma vez em que esses associaram o leite à pureza
racial. Destacamos ainda que tais grupos, muitos desses
associados a Alt-right, em sua maioria, não abandonaram
antigos símbolos associados à pureza racial e supremacia
branca (racistas), assim como criaram novas práticas e
representações – sendo as mais famosas o brinde com
leite, o uso da figura do sapo e até mesmo o gesto de “ok”,
feito com as mãos.

3. Em conformidade com as discussões mais atuais e com a


amplitude dos estudiosos do tema, usaremos o termo guar-
da-chuva fascismo, tal como Theodor Adorno e Max Horkhei-
mer. Entretanto, destacamos que, ainda representado pelo
termo em questão, no Brasil, há um aumento recente dos
em maio de 2020 através da forma recauchutada na oração
diálogos com o Nazismo alemão, tanto pela alta cúpula go-
“O trabalho, a união e a verdade libertarão o Brasil”, uma
vernamental como por algum dos seus apoiadores mais fiéis.
referência óbvia e grosseira para “O trabalho liberta”, no
4. A frase apresentada nessa peça da SeCom foi publicada original em Alemão: “Arbeit Macht Frei”.
EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES O objetivo dessa mesa temática é discutir as
escalas do planejamento e sua relação com o
processo de urbanização. O enfoque ocorre a
mesa temática partir de estudos sobre: as propostas regio-
nais de polos e eixos de desenvolvimento para o
Centro-Sul e Nordeste como estratégias articu-
PLANEJAMENTO E ladas aos planos nacionais de desenvolvimento
nacional; a profusão de planos locais no pre-
URBANIZAÇÃO NO BRASIL NAS núncio do ordenamento metropolitano de Cam-
pinas-SP; os planos de metrópole linear para o
DÉCADAS DE 1950 A 2010 Norte do Paraná; e a compreensão do desenvol-
vimento regional e estruturação intraurbana do
Alto Oeste Potiguar, na região do Semi-Árido. Os
PLANNING AND URBANIZATION IN BRAZIL IN THE
DECADES FROM 1950 TO 2010 estudos abarcam o período dos anos 1950 aos
2010 cujo arco histórico colabora para a com-
preensão dos fenômenos atuais da urbanização
URBANIZACIÓN IN BRASIL EN LAS DÉCADAS DE 1950
brasileira.
A 2010
As análises estão orientadas pelas relações em
TAVARES, Jeferson rede de ações interdisciplinares. As experiên-
cias analisadas possibilitam uma visão sobre a
Professor Doutor do Instituto de Arquitetura e Urbanismo
da Universidade de São Paulo (IAU-USP)
formação do território nacional em suas dife-
jctavares@gmailo.com rentes escalas (regional, metropolitana e local)
e abordagens (setorial ou integradas) sedimen-
BERNARDINI, Sidney Piochi tando uma estrutura a partir da qual decorrem
as principais transformações da urbanização,
Professor Doutor do Departamento de Arquitetura e
Construção da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura como o processo de espraiamento urbano, as
e Urbanismo da Unicamp alterações nas dinâmicas regionais e o fortale-
spiochi@unicamp.br cimento das redes urbanas hierarquizadas.

BELOTO, Gislaine Elizete Essas experiências analisadas que se concreti-


zaram com o objetivo de regular a ocupação do
Professora Adjunta do Departamento de Arquitetura e
Urbanismo, Universidade Estadual e Maringá território dialogam com um aspecto mais amplo
gebeloto@uem.br da política nacional de desenvolvimento cujas
variações nos planos e no processo de urbani-
MEDEIROS, Gabriel Leopoldino Paulo de zação acompanham os movimentos das políti-
cas nacionais. As análises observam diferentes
Professor Doutor do curso de Arquitetura e Urbanismo da
UFERSA escalas de impactos significantes na reestru-
gabriel.leopoldino@ufersa.edu.br turação territorial e, fundamentalmente na ex-
pansão da ocupação, seja no âmbito regional
CAMPOS, Tamms Maria da Conceição Morais ou metropolitano. Destacam, por exemplo uma
base urbano-regional sobre a qual se desenvol-
Professora Doutora do curso de Arquitetura e Urbanismo
da UFERSA vem a economia e os aspectos ambientais por
tamms.morais@ufersa.edu.br meio de conflitos e convergências.

Por um lado, muitas dessas ações representa-


16º SHCU ram o rompimento de uma condição dada desde
30 anos . Atualização Crítica
o período colonial de desenvolvimento territo-
1030 rial atrelado exclusivamente às principais capi-
tais estaduais que formavam, na compreensão riências pioneiras de criação de polos de de-
de Milton Santos (1998, p. 26), um arquipélago senvolvimento nos espaços subnacionais, mais
de subespaços autônomos baseados; por outro especificamente nas regiões Nordeste e Cen-
lado, essas ações promoveram condições fér- tro-Sul, demonstrando como esses incentivos
teis para a expansão da urbanização e do reforço que faziam parte da política de industrialização
das desigualdades territoriais pela concentra- do país transformou a rede urbana nacional pela
ção de recursos nas áreas mais desenvolvidas. valorização de cidades de segunda categoria
Contribuíram, portanto para as contradições do na relação hierárquica. A segunda apresenta-
processo de desenvolvimento nacional ao pas- ção percorre a gênese da formação da região
so que incentivaram uma inflexão nos padrões metropolitana de Campinas sob o enfoque do
seculares de urbanização. planejamento local articulado com os fatores
produtivos e de infraestrutura. O aspecto me-
A forte presença do Estado na provisão e regu- tropolitano e o diálogo (ou ausência de) com os
lação do espaço nas suas diferentes escalas, no instrumentos urbanísticos esclarecem a consti-
período analisado, foi fundamental para conso- tuição desse sistema urbano. A metrópole tam-
lidação dessas condições. Perpassando perí- bém é abordada na terceira apresentação com a
odos de regimes democrático e autoritário, as exposição comparativa de dois planos para uma
análises demonstram algumas ações estatais metrópole linear no Norte do Paraná. Apresen-
no território que evidenciam os modelos econô- tando as referências estrangeiras, as continui-
micos predominantes em cada período e como dades e rupturas de modelos de planejamento,
cada modelo considerou o território como es- o estudo traz um repertório inovador de experi-
tratégia para sua efetivação. ências nessa escala. Por fim, a quarta apresen-
tação busca compreender as estruturas regio-
Nos anos 1950 e 1970, antes e durante a ditadu- nais e intraurbanas de cidades do Semi-Árido
ra militar, as ações diversificaram-se nos ob- sob um enfoque da rede urbana e das relações
jetivos que buscavam promover a ocupação de históricas e contemporâneas de hierarquias e
“vazios” territoriais e de constituir novas áreas influências entre os centros urbanos.
de desenvolvimento a partir da necessidade de
crescimento econômico. A partir os anos 1970, Em comum, pode-se apontar: a abordagem do
frente às deseconomias de aglomeração ge- processo de urbanização pelas formas de pla-
radas pelas altas concentrações demográfica nejamento; a perspectiva histórica da análise; a
e produtiva, o Estado incentivou ações de dis- compreensão da(s) cidade(s) pela rede urbana;
persão articulando-se pelo início da reestrutu- a hegemonia da infraestrutura no ordenamen-
ração produtiva que se instalaria nessas novas to territorial, principalmente a infraestrutura
condições espaciais proporcionadas pela pro- rodoviária; o destaque do aspecto regional nas
visão de novas infraestruturas e da regulação análises do planejamento local, metropolitano
do espaço. Nesse sentido, uma nova malha ro- ou territorial; a abordagem das diferentes esca-
doviária, cidades novas, hidrelétricas, polos e las do planejamento e o esforço de compreen-
eixos de desenvolvimento e formas de controle der a história pelo presente e vice-versa.
da expansão urbana orientaram-se pelas infra-
estruturas e conformaram novos redutos do Esta mesa insere-se na pesquisa desenvolvi-
desenvolvimento. A crise fiscal dos anos 1980 e da por uma rede insterinstitucional de pesqui-
a nulidade de ações de planejamento de âmbito sa cujo objetivo é congregar pesquisadores de
territorial foram sucedidas por uma reestrutu- universidades públicas brasileiras em torno da
ração (produtiva, administrativa, etc.) que le- compreensão histórica dos processos de me-
vou a novas experiências de planejamento sem, tropolização e urbanização onde se situam as
contudo desconsiderar as transformações em instituições de pesquisa, assim como confluir
boa parte oriundas das práticas precedentes. A estudos de teorias, conceitos e métodos de
rigor, são esses elementos os objetos de análise análise e experiências em planejamento urbano
nessa Mesa Temática. e regional. Esta Mesa Temática agrega as pes-
quisas em desenvolvimento pelos membros da
A primeira apresentação expõe algumas expe- rede que buscam compreender as experiências
EIXO TEMÁTICO 2 em planejamento urbano e regional para o de-
senvolvimento a partir da perspectiva das regi-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS ões Nordeste, Sudeste, Centro-Oeste e Sul.
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
Metodologicamente, as análises aqui propostas
buscam dialogar com as principais questões
propostas pelo Seminário pela tentativa de evi-
denciar temáticas, procedimentos, conceitos e
teorias que auxiliam na compreensão historio-
gráfica da transformação territorial em dife-
rentes escalas; por entender que o olhar crítico
constrói-se pela compreensão das ações den-
tro de um contexto mais amplo e diversificado;
e que essas ações, embora não sejam concebi-
das articuladas, integram-se no território con-
formando redes de transformações.

Conceitualmente, filiamos essa leitura à com-


preensão da história urbana a partir da qual pre-
domina uma visão sistêmica sobre as cidades
que não se resume à materialidade física, mas
que reconhece também nas ideias, nas obras,
nas leis, nos planos a constituição de um siste-
ma interno à própria cidade e de um sistema que
se forma pela relação entre cidades.

No atual momento de impasses na profusão de


políticas públicas e da exclusão do Estado em
relação ao planejamento nas escalas nacional,
estadual, metropolitana e local, o reconheci-
mento dessas experiências e a compreensão
de seus impactos na constituição do território
nacional parecem importantes para construção
de formulações alternativas e críticas sobre o
planejamento.

POLOS E EIXOS METRÓPOLE CAMPINEIRA


METRÓPOLE LINEAR ALTO OESTE POTIGUAR

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1032
ABSTRACT the reinforcement of territorial inequalities by the
concentration of resources in the most develo-
ped areas. They therefore contributed to the con-
The purpose is to discuss the scales of planning tradictions of the national development process
and their relationship with the urbanization pro- while encouraging an inflection in secular patter-
cess. The focus is based on studies on: regional ns of urbanization.
proposals for development hubs and axes for the
Center-South and Northeast as strategies articu- The strong presence of the State in the provision
lated to national national development plans; the and regulation of space in its different scales,
profusion of local plans in the foreshadowing of in the analyzed period, was fundamental for the
the Campinas-SP metropolitan system; the line- consolidation of these conditions. Crossing pe-
ar metropolis plans for Northern Paraná; and the riods of democratic and authoritarian regimes,
understanding of regional development and in- the analyzes demonstrate some state actions in
tra-urban structuring of the Upper West Potiguar, the territory that show the predominant econo-
in the Semi-Arid region. The studies cover the pe- mic models in each period and how each model
riod from the 1950s to 2010s, whose historical arc considered the territory as a strategy for its ef-
contributes to the understanding of the current fectiveness.
phenomena of Brazilian urbanization.
In the 1950s and 1970s, before and during the mi-
The analyzes are guided by the network relations litary dictatorship, actions diversified in the ob-
of interdisciplinary actions. The analyzed expe- jectives that sought to promote the occupation
riences provide a view on the formation of the of territorial “voids” and to constitute new areas
national territory in its different scales (regional, of development based on the need for economic
metropolitan and local) and approaches (secto- growth. From the 1970s onwards, in view of the
rial or integrated) establishing a structure from agglomeration diseconomies generated by the
which the main transformations of urbanization high demographic and productive concentra-
take place, such as the urban spreading process , tions, the State encouraged dispersion actions
changes in regional dynamics and the strengthe- articulating itself by the beginning of the produc-
ning of hierarchical urban networks. tive restructuring that would be installed in these
new spatial conditions provided by the provision
These analyzed experiences that took place in or- of new infrastructures and the regulation of the
der to regulate the occupation of the territory dia- space. In this sense, a new road network, new
logue with a broader aspect of national develop- cities, hydroelectric plants, development poles
ment policy, whose variations in plans and in the and axes and ways of controlling urban expan-
urbanization process accompany the movements sion were guided by infrastructure and formed
of national policies. The analyzes observe diffe- new development strongholds. The fiscal crisis
rent scales of significant impacts in the territorial of the 1980s and the nullity of territorial planning
restructuring and, fundamentally in the expan- actions were followed by a restructuring (produc-
sion of the occupation, either in the regional or tive, administrative, etc.) that led to new planning
metropolitan scope. These highlight, for example, experiences without, however, disregarding the
an urban-regional base on which the economy transformations largely stemming from previous
and environmental aspects are developed throu- practices. Strictly speaking, these elements are
gh conflicts and convergences. the objects of analysis in this Thematic Section.

On the one hand, many of these actions repre- The first presentation exposes some pioneering
sented the breaking of a condition given since the experiences of creating development hubs in
colonial period of territorial development linked subnational spaces, more specifically in the Nor-
exclusively to the main state capitals that formed, theast and Center-South regions, demonstrating
in the understanding of Milton Santos (1998, p. 26), how these incentives that were part of the coun-
an autonomous subspace based archipelago; on try’s industrialization policy transformed the na-
the other hand, these actions promoted fertile tional urban network by valuing cities of second
conditions for the expansion of urbanization and category in the hierarchical relationship. The se-
EIXO TEMÁTICO 2 cond presentation goes through the genesis of the
formation of the metropolitan region of Campinas
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS under the focus of local planning articulated with
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES the productive and infrastructure factors. The
metropolitan aspect and the dialogue (or absen-
ce of) with urban planning instruments clarify the
constitution of this urban system. The The metro-
polis is also approached in the third presentation
with the comparative exhibition of two plans for a
linear metropolis in Northern Paraná. Presenting
foreign references, continuities and ruptures in
planning models, the study brings an innovative
repertoire of experiences on this scale. Finally,
the fourth presentation seeks to understand the
regional and intra-urban structures of cities in
the Semi-Arid under a focus on the urban network
and the historical and contemporary relations of
hierarchies and influences between urban cen-
ters.

In common, one can point out: the approach of


the urbanization process through the forms of
planning; the historical perspective of the analy-
sis; the understanding of the city by the urban
network; the hegemony of infrastructure in spa-
tial planning, especially road infrastructure; the
highlight of the regional aspect in the analysis
of local, metropolitan or territorial planning; the
approach of the different scales of planning and
the effort to understand history for the present
and vice versa.

This propose is part of the research developed


by an inter-institutional research network whose
objective is to bring together researchers from
Brazilian public universities around the histori-
cal understanding of the processes of metropo-
lization and urbanization where research institu-
tions are located, as well as to combine studies
of theories, concepts and methods of analysis
and experiences in urban and regional planning.
This Thematic Section aggregates research un-
der development by members of the network that
seek to understand the experiences in urban and
regional planning for development from the pers-
pective of the Northeast, Southeast, Midwest and
South regions.

Methodologically, the analyzes proposed here


16º SHCU seek to dialogue with the main questions pro-
30 anos . Atualização Crítica
posed by the Seminar in an attempt to highlight
1034 themes, procedures, concepts and theories that
assist in the historiographical understanding of RESUMEN
territorial transformation at different scales; for
understanding that the critical look is built by
understanding the actions within a broader and El propósito es discutir las escalas de planifica-
more diversified context; and that these actions, ción y su relación con el proceso de urbanización.
although not conceived as articulated, are inte- El enfoque se basa en estudios sobre: propues-
grated in the territory, forming networks of trans- tas regionales para centros y ejes de desarrollo
formations. para el Centro-Sur y Nordeste como estrategias
articuladas a los planes nacionales de desarrollo
Conceptually, we link this reading to the unders- nacional; la profusión de planes locales en el pre-
tanding of urban history, from which a systemic sagio del sistema metropolitano Campinas-SP;
view of cities prevails, which is not limited to phy- los planes lineales de metrópolis para el norte de
sical materiality, but which also recognizes in the Paraná; y la comprensión del desarrollo regional
ideas, works, laws, plans the constitution of an in- y la estructuración intraurbana del Alto Oeste Po-
ternal system to the city itself and a system that is tiguar, en la región semiárida. Los estudios abar-
formed by the relationship between cities. can el período comprendido entre 1950 y 2010,
cuyo arco histórico contribuye a la comprensión
In the current moment of impasses in the pro-
de los fenómenos actuales de la urbanización
fusion of public policies and the exclusion of the
brasileña.
State in relation to planning at national, state,
metropolitan and local scales, the recognition
Los análisis están guiados por las relaciones de
of these experiences and the understanding of
red de acciones interdisciplinarias. Las expe-
their impacts on the constitution of the national
riencias analizadas brindan una visión sobre la
territory seem important for the construction of
formación del territorio nacional en sus diferen-
formulations alternatives and criticisms about
tes escalas (regional, metropolitana y local) y en-
planning.
foques (sectoriales o integrados) que establecen
una estructura a partir de la cual tienen lugar las
POLES AND AXES CAMPINAS METROPOLIS principales transformaciones de la urbanización,
como el proceso de expansión urbana, cambios
LINEAR METROPOLIS
en la dinámica regional y el fortalecimiento de las
HIGH WEST OF THE STATE OF RIO GRANDE DO NORTE redes urbanas jerárquicas.

Estas experiencias analizadas que tuvieron lugar


para regular la ocupación del territorio dialogan
con un aspecto más amplio de la política nacional
de desarrollo, cuyas variaciones en los planes y en
el proceso de urbanización acompañan los movi-
mientos de las políticas nacionales. Los análisis
observan diferentes escalas de impactos signifi-
cativos en la reestructuración territorial y, funda-
mentalmente en la expansión de la ocupación, ya
sea en el ámbito regional o metropolitano.

Destacan, por ejemplo, una base urbano-regional


sobre la cual los aspectos económicos y ambien-
tales se desarrollan a través de conflictos y con-
vergencia. Por un lado, muchas de estas acciones
representaron la ruptura de una condición dada
desde el período colonial de desarrollo territorial
vinculado exclusivamente a las principales capi-
tales estatales que formaron, en la comprensión
de Milton Santos (1998, p. 26), un archipiélago au-
EIXO TEMÁTICO 2 tónomo basado en el subespacio; por otro lado,
estas acciones promovieron condiciones fértiles
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS para la expansión de la urbanización y el refuer-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES zo de las desigualdades territoriales mediante
la concentración de recursos en las áreas más
desarrolladas. Por lo tanto, contribuyeron a las
contradicciones del proceso de desarrollo nacio-
nal al tiempo que fomentaron una inflexión en los
patrones seculares de urbanización. La fuerte
presencia del Estado en la provisión y regulación
del espacio en sus diferentes escalas, en el perío-
do analizado, fue fundamental para la consolida-
ción de estas condiciones. Al cruzar períodos de
regímenes democráticos y autoritarios, los análi-
sis demuestran algunas acciones estatales en el
territorio que muestran los modelos económicos
predominantes en cada período y cómo cada mo-
delo considera el territorio como una estrategia
para su efectividad.

En las décadas de 1950 y 1970, antes y durante la


dictadura militar, las acciones se diversificaron
en los objetivos que buscaban promover la ocu-
pación de “vacíos” territoriales y constituir nuevas
áreas de desarrollo basadas en la necesidad de
crecimiento económico. A partir de la década de
1970, en vista de las deseconomías de aglome-
ración generadas por las altas concentraciones
demográficas y productivas, el Estado alentó las
acciones de dispersión que se articulaban al co-
mienzo de la reestructuración productiva que se
instalaría en estas nuevas condiciones espacia-
les proporcionadas por la provisión de nueva in-
fraestructura y la regulación de espacio.

En este sentido, una nueva red de carreteras,


nuevas ciudades, centrales hidroeléctricas, pos-
tes y ejes de desarrollo y formas de controlar la
expansión urbana fueron guiados por la infra-
estructura y formaron nuevas fortalezas de de-
sarrollo. La crisis fiscal de los años ochenta y la
nulidad de las acciones de planificación terri-
torial fueron seguidas por una reestructuración
(productiva, administrativa, etc.) que condujo a
nuevas experiencias de planificación sin tener en
cuenta, sin embargo, las transformaciones deri-
vadas en gran medida de las prácticas anteriores.
Estrictamente hablando, estos elementos son los
objetos de análisis en esta tabla temática.
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
La primera presentación expone algunas expe-
1036 riencias pioneras de la creación de centros de
desarrollo en espacios subnacionales, más es- la perspectiva de las regiones del Nordes, Sudes-
pecíficamente en las regiones noreste y centro- te, Centro-Oeste y Sul.
-sur, demostrando cómo estos incentivos que
formaban parte de la política de industrialización Metodológicamente, los análisis aquí propuestos
del país transformaron la red urbana nacional al buscan dialogar con las principales preguntas
valorar las ciudades de segunda categoría en la propuestas por el Seminario en un intento de re-
relación jerárquica. La segunda presentación saltar temas, procedimientos, conceptos y teorí-
pasa por la génesis de la formación de la región as que ayudan en la comprensión historiográfica
metropolitana de Campinas bajo el enfoque de de la transformación territorial a diferentes esca-
la planificación local articulada con los factores las; para comprender que el ojo crítico se cons-
productivos y de infraestructura. El aspecto me- truye entendiendo las acciones dentro de un con-
tropolitano y el diálogo (o ausencia de) con los texto más amplio y más diversificado; y que estas
instrumentos de planificación urbana aclaran la acciones, aunque no se conciben como articula-
constitución de este sistema urbano. La metró- das, se integran en el territorio, formando redes
polis también se aborda en la tercera presenta- de transformaciones.
ción con la exposición comparativa de dos planes
Conceptualmente, vinculamos esta lectura con
para una metrópolis lineal en el norte de Paraná.
la comprensión de la historia urbana, desde la
Al presentar referencias extranjeras, continuida-
cual prevalece una visión sistémica de las ciuda-
des y rupturas en los modelos de planificación, des, que no se limita a la materialidad física, sino
el estudio aporta un repertorio innovador de ex- que también reconoce en las ideas, obras, leyes,
periencias a esta escala. Finalmente, la cuarta planes la constitución de un sistema interno. a la
presentación busca comprender las estructuras ciudad misma y a un sistema que se forma por la
regionales e intraurbanas de las ciudades en el relación entre ciudades.
semiárido bajo un enfoque en la red urbana y las
relaciones históricas y contemporáneas de jerar- En el momento actual de impases en la profusión
quías e influencias entre centros urbanos. de políticas públicas y la exclusión del Estado en
relación con la planificación a escala nacional,
En común, se puede señalar: el enfoque del proce- estatal, metropolitana y local, el reconocimiento
so de urbanización a través de las formas de pla- de estas experiencias y la comprensión de sus
nificación; la perspectiva histórica del análisis; la impactos en la constitución del territorio nacio-
comprensión de la ciudad (s) por la red urbana; la nal parecen importantes para la construcción
hegemonía de la infraestructura en la planifica- de formulaciones. alternativas y críticas sobre la
ción espacial, especialmente la infraestructura planificación.
vial; Lo más destacado del aspecto regional en el
análisis de la planificación local, metropolitana o
territorial; El enfoque de las diferentes escalas de POSTES Y HACHAS METRÓPOLIS DE CAMPINAS
planificación y el esfuerzo por comprender la his- METRÓPOLI LINEAL
toria del presente y viceversa.
ALTO OESTE DEL ESTADO DE RIO GRANDE DO NORTE
Esta proponencia es parte de la investigación re-
alizada por una red de investigación interinstitu-
cional cuyo objetivo es reunir a investigadores de
universidades públicas brasileñas en torno a la
comprensión histórica de los procesos de metro-
polización y urbanización donde se encuentran
las instituciones de investigación, así como com-
binar estudios de teorías, conceptos y métodos
de análisis y experiencias en planificación urbana
y regional. Esta tabla temática agrega investiga-
ciones en desarrollo por miembros de la red que
buscan comprender las experiencias en la planifi-
cación urbana y regional para el desarrollo desde
EIXO TEMÁTICO 2 polos e eixos no centro-sul e no nordeste.
INDÍCIOS da dispersão urbana
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
O início do regime militar em 1964 e a instituição
de um estado autoritário deram novo rumo ao
mesa temática planejamento urbano e regional e paulatinamente
o modelo de polo de crescimento (de F. Perroux)
e de eixo de desenvolvimento foram sendo incor-
PLANEJAMENTO E porados primeiramente pelas diretrizes setoriais
e posteriormente como políticas nacionais.
URBANIZAÇÃO NO BRASIL NAS Em 1964, a Comissão Interestadual da Bacia do
DÉCADAS DE 1950 A 2010 Paraná-Uruguai (CIBPU) promoveu os estudos de
polos de desenvolvimento em cada um dos esta-
dos que compunham a Comissão (Minas Gerais,
PLANNING AND URBANIZATION IN BRAZIL IN THE São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande
DECADES FROM 1950 TO 2010 do Sul, Mato Grosso e Goiás) com a finalidade de
subsidiar o Plano de Industrialização Regional (PIR)
URBANIZACIÓN IN BRASIL EN LAS DÉCADAS DE 1950 que seria empreendido sob a responsabilidade
A 2010 do Departamento de Planejamento Econômico
e Social da CIBPU. Os estudos foram elaborados
por intermédio de técnicos e economistas da
Faculdade de Economia e Administração (FEA) da
Universidade de São Paulo (USP) e equipes esta-
duais coordenadas pelo economista e professor
da FEA, Antonio Delfin Netto.

A partir de considerações a respeito das carac-


terísticas geográficas, demográficas, de infraes-
trutura e econômicas (renda, produção agrícola e
industrial, comércio interestadual, finanças, etc.),
a Comissão definiu em cada estado uma “área ge-
ográfica” (uma ou mais cidades) que reunisse con-
dições para se constituir polo de desenvolvimento
e “para onde seriam canalizados investimentos
que teriam o caráter de tornar a área um centro
dinâmico do ponto de vista do Estado” (COMISSÃO
INTERESTADUAL DA BACIA PARANÁ-URUGUAI,
1964c, p. 11). As vias de comunicação foram tidas
como principais elementos no ordenamento do
polo e em alguns casos com prioridade em relação
à proximidade com mão-de-obra, matéria-prima
ou mercado consumidor (COMISSÃO INTERESTA-
DUAL DA BACIA PARANÁ-URUGUAI, 1964b, p. 14),
desde que o polo se transformasse em principal
estratégia de repercussão regional da elevação
da renda per capita e melhoria de vida (COMIS-
SÃO INTERESTADUAL DA BACIA PARANÁ-URU-
GUAI, 1964a, p. 17). O polo de desenvolvimento foi
16º SHCU considerado o principal motivador pela geração
30 anos . Atualização Crítica
dessas economias; com abrangência regional
1038 e destinado às diferentes escalas do mercado
consumidor (local, estadual e nacional). Além de e centrados no Centro-Sul (formado por todos os
se tornar o principal núcleo industrial da região, estados do Sul e Sudeste e os estados de Goiás
deveria potencializar os investimentos em um e Mato Grosso).
raio de influência difusor de desenvolvimento.
O exemplo do Centro-Sul propagou-se e o III Plano
As escolhas ocorreram sobre regiões com mais Diretor da SUDENE (coordenado por João Gon-
alto nível de urbanização de cada estado, histo- çalves de Souza, então superintendente) para o
ricamente privilegiadas por investimento público período 1966-1968 também adotou o modelo polo
em infraestrutura ou por investimentos priva- de crescimento como política de desenvolvimento
dos em atividades industriais. Apresentavam os para todo o Nordeste buscando identificar e pro-
maiores índices de renda per capita, estrutura mover a região pela integração espacial e setorial
financeira instalada, mão-de-obra qualificada, da economia sem distorções locais de cresci-
dinâmica demográfica e localização próxima ou mento (MINISTÉRIO EXTRAORDINÁRIO PARA A
à matéria-prima ou ao mercado consumidor es- COORDENAÇÃO DOS ORGANISMOS REGIONAIS,
tadual e/ou nacional. Em apenas um dos casos a SUPERINTENDÊNCIA DO DESENVOLVIMENTO DO
cidade escolhida foi a própria capital estadual, NORDESTE, 1966, p. 14 e 15). O objetivo definido
como ocorreu em Goiás, nos demais, a escolha foi de identificar polos em cada um dos estados
concentrou-se em núcleos secundários. Essa que se transformariam em áreas prioritárias para
premissa demonstrava - por parte dos técnicos – investimentos, principalmente para aproveita-
posicionamento favorável à descentralização da mento das vantagens locacionais ligadas aos re-
indústria em relação à concentração já existente cursos naturais a partir da implantação de grandes
nas capitais. projetos (MINISTÉRIO EXTRAORDINÁRIO PARA A
COORDENAÇÃO DOS ORGANISMOS REGIONAIS,
A localização à margem das principais rodovias SUPERINTENDÊNCIA DO DESENVOLVIMENTO
e em entroncamentos rodoviários regionais e DO NORDESTE, 1966, p. 61).
nacionais foi decisiva na escolha de todas as cida-
des que se tornariam polos de desenvolvimento. A composição da rede urbana brasileira, ao longo
Argumento reforçado pela escolha de cidades das décadas seguintes, completou-se com os
que estavam no vetor direcionado a São Paulo/ efeitos da implantação desses polos que foram
Rio de Janeiro ou a Brasília. Assim, os estados posteriormente reconhecidos como capitais re-
do sul escolheram cidades interligadas à BR-2 gionais articuladas às principais rodovias regio-
na direção aos mercados consumidores de São nais ou nacionais. A escolha de cidades com fun-
Paulo e Rio de Janeiro (São Leopoldo-Novo Ham- ções secundárias na rede urbana para se tornarem
polos colaborou para o início de um espraiamento
burgo e Caxias do Sul [RS]; Blumenau [SC]; Ponta
das atividades industriais e no movimento de dis-
Grossa e Londrina [PR]); e os demais estados
persão urbana que se verificaria dali uma década
escolheram os núcleos mais desenvolvidos pró-
pela interiorização produtiva, demográfica e dos
ximos às interligações rodoviárias e em direção a
serviços essenciais. Muito embora o período dos
São Paulo e Brasília (Varginha e Uberlândia [MG];
anos 1960 tenha sido marcado pela intensa con-
Goiânia [GO]; e Campo Grande [MT] que ainda não
centração metropolitana, processos políticos,
era capital, pois o estado do Mato Grosso do Sul
produtivos e de planejamento induziram ao início
foi separado do estado do Mato Grosso em 1977).
do espraiamento das manchas urbanas que se
No Estado de São Paulo, Presidente Prudente
consolidariam junto à reestruturação produtiva.
foi a cidade definida para ser o distrito industrial
pela sua localização próxima às fronteiras com
Mato Grosso, Goiás, Paraná e Minas Gerais. Na-
quele momento, conceber um polo implicava no
reconhecimento da sua relação com um eixo de
transportes que levou a uma organicidade entre
esses dois elementos no planejamento e no pro-
cesso de urbanização. Os estudos posicionavam
as ações planejadoras na escala da rede urbana
tendo a cidade como foco (CHIQUITO, 2017, p. 174)
EIXO TEMÁTICO 2 ENUNCIAÇÕES DA METRÓPOLE CAMPINEIRA –
PLANOS DIRETORES DA região de campinas
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES ENTRE 1968 E 1970

A Região Metropolitana de Campinas, no estado


de São Paulo, foi instituída em lei no ano de 2000.
A formação de sua área metropolitana, porém, foi
se constituindo bem antes, no início da década de
1970, no âmbito do processo de reestruturação
produtiva pelo qual passou o estado de São Paulo.
Alguns autores já abordaram as características
desta suposta nova divisão regional do estado
(AZZONI, 1985; GONÇALVES, 1993; LENCIONI; SAM-
PAIO e PEREIRA, 1996; SILVA NETO, 1998), cujos
insumos explicativos baseiam-se na tendência
verificada de uma desconcentração industrial no
Estado de São Paulo. Campinas, desde os fins do
século XIX, já se despontava como uma impor-
tante localidade vinculada à produção do café e,
posteriormente, como um entreposto distribuidor,
considerando a confluência das principais linhas
ferroviárias do estado. Sua importância na rede
urbana paulista foi se consolidando com sua parti-
cipação na economia industrial já a partir dos anos
1930 (CANO, 2012), competindo na formação, ainda
que incipiente, de uma base territorial em desen-
volvimento, aglutinando vários municípios do seu
entorno, que também passaram a se despontar
em termos econômicos e como centralidades no
contexto da formação regional. A inauguração da
Rodovia Anhanguera, nos anos 1940 e, posterior-
mente, da Rodovia dos Bandeirantes, nos anos
1970, fazendo a ligação destes municípios com a
Região Metropolitana de São Paulo, tiveram um
papel decisivo de indução da urbanização que se
processou nestes anos.

Neste contexto, sob a égide de uma política


nacional de desenvolvimento urbano instituída
pelo SERFHAU (Serviço Federal de Habitação
e Urbanismo) 1, nove municípios que comporiam
a Região Metropolitana de Campinas em 2000,
elaboraram planos diretores: Americana, Artur
Nogueira, Campinas, Itatiba, Nova Odessa, Paulí-
nia, Santa Bárbara d’Oeste, Sumaré e Valinhos. A
heterogeneidade quanto aos tipos de documentos

1. Segundo Vizioli (1998), o SERFHAU, criado em 1964 e ex-


16º SHCU
tinto em 1974 tinha como função desde promover pesquisas
30 anos . Atualização Crítica
relativas ao déficit habitacional até assistir os municípios
1040 na elaboração dos seus planos diretores.
produzidos, entretanto, denotam que não houve Campinas e Indaiatuba. Assim também no caso
uma uniformidade na condução dos processos de Sumaré, a fragmentação territorial disposta
de elaboração, questão que aponta para uma nos seus vários distritos de origens históricas
indisposição destas localidades em elaborar seus diferentes não foi devidamente considerada nas
planos de forma compulsória. A maior parte des- hipóteses de crescimento e a expansão urbana
tes não apresentaram mapas contendo diretrizes que se efetivou para além do perímetro urbano
de desenvolvimento urbano e alguns nem sequer demonstrou o descompasso que se estabeleceu
foram encontrados. Um outro grupo minoritário entre as áreas urbana e rural para um município
de municípios, entretanto, corroborou a diretriz que cresceu, nos anos posteriores, de forma de-
postulada pelo órgão federal, envolvendo-se na sordenada, abarcando grande parte da população
elaboração de planos que, em certa medida, apon- mais vulnerável da região de Campinas.
tavam para uma política de desenvolvimento e
ordenamento territorial em sintonia com a posição
que já ocupavam no espectro regional polarizado
pelo município de Campinas. Vinculados ao prin-
cipal eixo rodoviário, a Rodovia Anhanguera, estes
municípios também estavam estruturando o seu
parque industrial, além de receberem um contin-
gente populacional que elevou a taxa geométrica
populacional da região, durante a década de 1970,
para além dos 7%. Deste grupo, fazem parte os
municípios de Americana, Sumaré, Campinas e
Indaiatuba, cujos planos foram desenvolvidos
entre 1968 (Sumaré e Indaiatuba) e 1970 (Ameri-
cana e Campinas).

Os planos desenvolvidos por estes municípios


tiveram a participação de grandes escritórios de
consultoria, como a Asplan (Americana), Consór-
cio Serete Engenharia, SD Consultoria de Plane-
jamento e Jorge Wilheim (Campinas), este último
também atuante no plano diretor de Indaiatuba.
No entanto, alguns também foram desenvolvidos
por equipes técnicas locais vinculadas ao próprio
município, como foi o caso do plano de Sumaré.
Em linhas gerais, buscaram estabelecer diretri-
zes de crescimento, expansão e ordenamento
urbanos, evidenciando, como no caso do Plano
Diretor de Campinas, a necessária vinculação
e articulação com as dinâmicas regionais que
abarcavam os demais municípios. Nas diretrizes
de ocupação, a apresentação de cenários possí-
veis relacionados a vetores de expansão, como
no caso de Campinas, ou mesmo em uma nítida
associação desta ocupação aos eixos rodoviários,
como no caso de Americana e Sumaré, corres-
pondiam, em certa medida, ao principal eixo de
indução condicionado pelas rodovias. Ao mesmo
tempo e ao cabo de um horizonte de crescimen-
to e oportunidades que se vislumbravam, estes
planos estabeleceram vetores que não se efeti-
varam nas décadas seguintes, como no caso de
EIXO TEMÁTICO 2 NORTE DO PARANÁ: UMA METRÓPOLE E DUAS
NARRATIVAS. CONSONÂNCIAS ESTRUTURAIS
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES E MUDANÇAS DE PARADIGMAS

O desejo de constituir uma metrópole única e


linearmente formada entre as cidades de Lon-
drina e Maringá no norte do estado do Paraná,
Brasil, é registrado em dois momentos da his-
toriografia do planejamento regional do estado.
No final da década de 1970 foi elaborado o Plano
Diretor do Eixo Londrina Maringá e, em 2019, foi
desenvolvido o Plano da Metrópole Paraná Norte.
O eixo constituído por 13 cidades e, atualmente,
um montante aproximado de 1,7 milhões de ha-
bitantes foi implantado pela companhia inglesa
Parana Plantations entre as décadas de 1930 e
idos de 1940. A futura rede urbana era parte da
estrutura territorial, cujo plano compreendia a
região norte do estado como um todo. O modelo
de descentralização urbana ao longo de um eixo
ferroviário era suporte à estratégia econômica
regional para a agricultura cafeeira. Quando o
planejamento urbano e regional foi institucionali-
zado no estado do Paraná, ou seja, anos de 1960,
as duas principais cidades desta rede - Londrina
e Maringá - passaram a ser pensadas como polos
propulsores do crescimento econômico da região,
sendo peças-chave para o planejamento regional.

Foi entre os anos de 1978 e 1980 que o conceito


de corredores, baseado nos estudos do geógrafo
Charles Frederick John Whebell (1969), foi aplica-
do sob a forma de um plano para a construção
de uma metrópole linear. Esta metrópole, então
chamada de METRONOR - Metrópole Norte do
Paraná, compreendia a rede urbana organizada
sobre um eixo rodoferroviário entre as cidades
supracitadas de Londrina e Maringá. Constituía-se
de um polo linear de desenvolvimento muito mais
voltado à transformação econômica e físico-ter-
ritorial da rede de cidades do que propriamente o
desenvolvimento da região onde estava inserido.
A proposta da Metronor trazia implícita toda a
carga dos problemas de uma metrópole qualquer,
da industrialização à formação de um continuum
urbano. A formação da metrópole era uma questão
de tempo, conforme previam os autores do plano.
Tanto Londrina quanto Maringá se expandiam den-
16º SHCU tro de um processo de conurbação e consequente
30 anos . Atualização Crítica
absorção dos núcleos menores imediatamente
1042 próximos, compondo um modelo de centralização
das atividades econômicas responsável pelos tuição da Metrópole Norte do Paraná através de
fluxos pendulares entre o centro e os núcleos um plano estratégico para a institucionalização e
urbanos a ele periféricos. Complementado pelos para as ações e programas que devem se seguir.
problemas ambientais derivados da expansão das Este é um plano cuja complexidade metodológi-
cidades, sobretudo a poluição de mananciais, ca contrasta com a linearidade da metodologia
estava desenhado o cenário que permitia a com- aplicada no plano da Metronor de 1980.
paração entre o que ocorria nas principais cidades
do norte do Paraná e o “caos” da expansão urbana Em sua dimensão urbano-territorial, a propos-
nas grandes metrópoles brasileiras. ta de 2019 para Metrópole Norte do Paraná, ou
Metrópole Paraná Norte como é denominado
Não obstante, a confiança na racionalidade do no documento, é ainda muito mais estruturan-
planejamento territorial era o diferencial na for- te e avança territorialmente além das áreas de
mação da Metronor. As diretrizes de ordenamento expansão urbana de cada núcleo que compõe
e controle da expansão e do uso do solo urbanos a metrópole. Resumidamente, corresponde à
deveriam garantir a construção de uma verdadeira implantação de metrô interligando todas as ci-
cidade regional contínua sob a forma linear. Em dades e aproveitando a infraestrutura ferroviária
contraposição aos vetores tendenciais à concen- existente, à implantação de portos fluviais no rios
tração polarizada em torno de Londrina e Marin- Paranapanema e Ivaí, de aeroportos de carga e de
gá pretendia-se construir a metrópole de modo conexão internacional, à construção de desvio fer-
ordenado e integrado, reforçando, para tanto, os roviário para o transporte de carga e a interligação
vetores tendentes à linearização da expansão ur- com a ferrovia norte-sul em construção no país,
bana e industrial em direção a um entrelaçamento à execução de novas conexões rodoviárias com
urbano ao longo do eixo de transporte rodoferro- as cidades do entorno da metrópole para maior
viário. Neste caso, cada cidade se transformaria penetração dos avanços tecnológicos e econô-
em subcentro da metrópole linear. Da consonância micos, e à implantação de corredores ecológicos
entre os núcleos urbanos, as áreas industriais e associados às áreas estratégicas de conservação
o eixo de transporte, se construiria uma única da biodiversidade do estado do Paraná.
cidade.
Enquanto a dificuldade no passado foi a insti-
Elevar o eixo à condição de Metrópole Linear sig- tucionalização da metrópole sob seu aspecto
nificava ampliar a geração de inovações e deter as político-administrativo, o atual plano possui res-
vantagens culturais próprias das grandes metró- paldado legal de ordem federal e estadual para tal
poles, numa espécie de ideia de progresso. Isso institucionalização. A semelhança entre ambos
fazia, e ainda faz, com que o status de metrópole os documentos ocorre nas propostas referentes
seja bastante sedutor. A referência urbanística as estruturas regionais. As diferenças, contudo,
para o pioneirismo da proposta em construir uma refletem os paradigmas contemporâneos de sus-
metrópole linear foi identificada pela própria equi- tentabilidade e de estratégia. O primeiro enfatiza o
pe técnica de elaboração do plano como sendo objetivo principal que norteia o desenvolvimento
a metrópole linear de Nancy-Metz em Lorena, do plano, enquanto o segundo paradigma molda a
França. Tida como uma das oito metrópoles de metodologia de elaboração do documento.
equilíbrio aprovada pelo parlamento francês na
década de 1960, além do nome, as semelhanças Através do estudo de caso comparativo entre
também recaem sobre as propostas de fomento à os planos de 1979 e 2019, objetiva-se traçar uma
industrialização, implantação de transporte rápi- reflexão a respeito desses paradigmas no pla-
do e a criação de um escritório administrativo no nejamento urbano e regional assim como dos
ponto médio entre os dois extremos da metrópole, conceitos por eles engendrados nos planos para
o que na França era a cidade de Pont-à-Mousson a Metrópole Norte do Paraná. Notadamente, há
e no norte do estado do Paraná era a cidade de um contraste entre os novos paradigmas de sus-
Apucarana. tentabilidade e de estratégia e os paradigmas
modernos de desenvolvimento e de racionalidade.
40 anos depois e 1 milhão habitantes à mais, o O desenvolvimento per si carrega uma forte base
governo do estado do Paraná retomou a consti- conceitual que o correlaciona ao crescimento
EIXO TEMÁTICO 2 econômico, enquanto a racionalidade ainda reflete
a razão cientifica e, portanto, o controle sobre os
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS resultados das ações.
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
De forma específica, o referido estudo demonstra
a permanência de propostas estruturantes em
ambos os planos, sobretudo aquelas que dizem
respeito às estruturas regionais antrópicas. Por
outro lado, as estruturas regionais naturais são
elevadas à categoria ambiental do paradigma de
sustentabilidade sob a aplicação do conceito de
infraestrutura verde.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1044
DESENVOLVIMENTO REGIONAL DO ALTO OESTE ambiental. Verifica-se a necessidade de aplicação
POTIGUAR E ESTRUTURAÇÃO IntRAURBANA – de instrumentos de gestão urbana, ordenamento
físico e controle do uso do solo, já que a cidade
O PLANEJAMENTO NAS CIDADES DE PEQUENO PORTE
não instituiu seu Plano Diretor e outras legislações
municipais que, em consonância com o Estatuto
A Região do Alto Oeste do Rio Grande do Norte/ da Cidade, fundamentem os preceitos de função
Nordeste é constituída por 30 municípios, dentre social da propriedade no processo de ordenação
eles Pau dos Ferros, cidade-polo, e centraliza- e crescimento.
dora de atividades produtivas, comerciais e de
serviços de educação e saúde. Para o IBGE, os Assim, a nova dimensão espacial gerou um padrão
centros que se encontram em nível abaixo das de ocupação cuja estrutura dista do sustentável,
capitais regionais, como Pau dos Ferros, são de caracterizada pelo crescimento desordenado e
fundamental importância para a rede urbana nor- pela má gestão de recursos naturais e materiais,
destina interiorizada, sendo classificados pelo a exemplo da relação cidade e mananciais e à
REGIC como Centros Sub-Regionais (IBGE, 2008). destinação de resíduos sólidos. Dessa forma,
Apesar de ainda não apresentar características de o objetivo desta proposta é apontar elemen-
uma cidade média, Dantas, Clementino e França tos ao entendimento da influência e dinâmica
(2015) destacam que sua localização – fronteiriça urbana entre as principais cidades do Alto Oeste
e no cruzamento das BR-405 com a BR-226 – re- – Portalegre, Martins, São Miguel e Pau dos Ferros
força a influência no desenvolvimento regional, –, sua estruturação intraurbana e fenômenos
em especial através da oferta de serviços. Esses relacionados à produção do espaço. Busca-se
autores traçam uma “raia divisória” que especializa contextualizar e correlacionar os processos nas
a zona de influência das três principais capitais diferentes escalas compreendendo interações
regionais interioranas: Mossoró (RN), Campina mútuas. O artigo intenta também sintetizar cons-
Grande (PB) e Juazeiro do Norte (CE). Dentro dessa tatações e resultados de estudos prévios que
zona, as “cidades médias” da região desempenham elucidam os vínculos mencionados.
papel importante até os dias atuais, sendo elas
Cajazeiras (PB), Sousa (PB) e Pau dos Ferros (RN) As publicações do GPUR em eventos Nacionais e
– esta última localizada no centro do cruzamento Internacionais reafirmam a importância da con-
das rodovias federais que perpassam esses três juntura econômica e funcional entre os municípios
estados. e para além dos limites estaduais. Os resultados
contribuem à reestruturação urbana em cidades
No contexto atual e com base nas pesquisas do pequenas, apontando elementos e indicadores
GPUR, a dinâmica urbana da cidade-polo de Pau que expliquem novas formas de urbanização. As
dos Ferros acentuou a produção imobiliária au- fontes de dados provêm de documentos oficiais
mentando a procura por moradias de aluguel. Essa dos municípios, especialmente Secretarias de
dinâmica foi intensificada pela interiorização do Meio Ambiente e Urbanismo, dados estatísticos
ensino, alocando-se à estrutura urbana três novos do IBGE, diagnósticos, produções bibliográficas,
campi: a Universidade Federal Rural do Semi-Á- relatórios e documentos históricos, assim como
rido (UFERSA), a Universidade do Estado do Rio a consolidação das preocupações consubstan-
Grande do Norte (UERN) e o Instituto Federal do ciadas por estudos anteriores.
Rio Grande do Norte (IFRN). Além das instituições
públicas, três faculdades particulares também se O Projeto de Extensão “Reinvente Seu Bairro”
instalaram, contribuindo à intensificação da pro- (2018-2019) foi iniciativa primeira das ações do
dução imobiliária e ao maior afluxo populacional GPUR na extensão em parceria com a comunida-
entre municípios da área de influência, gerando de. Com o aporte metodológico do Livro “Reinven-
demanda por espaços públicos qualificados e te seu bairro” de Candido Malta (2003), foi realizado
infraestrutura urbana. o diagnóstico urbanístico do bairro Frei Damião
especialmente sobre soluções de melhorias da
Nesse contexto, foram gerados outros conflitos: qualidade de vida. Foi feito um levantamento de
dificuldades em mobilidade urbana, alto índice dados em campo e realizadas dinâmicas educati-
de pavimentação asfáltica e mau uso da gestão vas e propositivas com os moradores, delineando
EIXO TEMÁTICO 2 diretrizes de intervenção e reordenamento urba-
nos e projeto de equipamentos (Praça e pavilhão
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS Multiuso). Fundamentou, destarte, ações propo-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES sitivas de configuração trabalhando na escala do
bairro e em consonância com as necessidades
dos residentes em seus diferentes estratos. As
soluções preveem um desenho urbano mais ade-
quado à área e suas peculiaridades históricas de
forma e uso.

Das preocupações de âmbito intraurbano (VILLA-


ÇA, 2001) se passou ao regional e suas transfor-
mações abarcando as relações entre cidades do
Alto Oeste, especialmente com Pau dos Ferros.
Entender a estruturação territorial em uma pers-
pectiva histórica mostrou-se importante. A ocu-
pação da região remete aos núcleos de povoação
fundados primeiramente em meados do século
XVIII e, posteriormente, durante o século XIX e pri-
meira metade do século XX. O projeto de pesquisa
intitulado “Formação de redes urbanas no Oeste
Potiguar: caminhos, desenvolvimento urbano e
arquitetura (1756-1950)”, em desenvolvimento,
objetiva compreender o processo de estrutura-
ção territorial da região a partir da formação de
redes urbanas. Parte, portanto, dos processos
de ocupação da região desde a atividade pecu-
arista – matriz da ocupação do sertão semiárido
– e da concessão de sesmarias. A valorização
econômica dessa atividade de cunho extensivo
condicionou a formação de grandes domínios
territoriais. Outro ciclo analisado é a interposição
da malha ferroviária sobre o território, a partir da
construção da Estrada de Ferro de Mossoró a Sou-
sa (1912-1951), que se entroncaria posteriormente
com a rede paraibana (ARAÚJO, MEDEIROS, 2019).
Depois viriam as estradas de rodagem, entre elas
a principal que interligava Mossoró a Apodi e Pau
dos Ferros, que daria origem à atual BR-405, que
também demanda a Sousa. Interliga também ao
porto de Areia Branca-RN, num sistema cuja cida-
de-polo é Mossoró. Esse projeto objetiva construir
uma historiografia urbana e territorial sobre a
região, até então inexistente, cuja pouca produ-
ção historiográfica indica aspectos mais gerais,
sem atentar para as especificidades espaciais e
estruturantes.

Os aspectos relativos às acomodações, dinâmicas


16º SHCU e tendências sobre a estrutura urbana de Pau
30 anos . Atualização Crítica
dos Ferros têm dado ênfase às questões urbanas
1046 concernentes às pequenas cidades. As espe-
cificidades intraurbanas refletem no cotidiano REFERÊNCIAS
da população e suas formas de apropriação do
espaço. O crescimento e articulação em escala ARAÚJO, Breno de Assis Silva; MEDEIROS,
regional dos núcleos estudados demonstram isso. Gabriel Leopoldino Paulo de. A Capital do
Esses aportes, portanto, indicam rebatimentos Oeste sobre trilhos: A ferrovia Mossoró-Sousa
socioespaciais intraurbanos cujos impactos se- e a consolidação da centralidade regional de
rão objeto de sistematização e aprofundamento. Mossoró-RN (1920-1941). Anais do Simpósio
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EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES A mesa tem como objetivo debater a relação
Terreiro de Candomblé e História da Cidade
numa perspectiva afrocentrada e afroreferen-
mesa temática ciada. Relação essa facetada pelos processos
de perseguição e criminalização, vigilância e
controle, folclorização, e turismo de massa. Os
TERREIRO DE CANDOMBLÉ conflitos e resistências do povo-de-santo dos
Terreiros de Candomblé aos processos diver-
E CIDADE: EXISTÊNCIAS E sos de urbanização provenientes das ações do
poder público com as obras de infra-estrutura,
RESISTÊNCIAS NEGRAS habitação, dos empreendimentos do mercado
imobiliário, setor privado, e ocupação das casas
AFRO-REFERENCIADAS E das camadas populares. Os diversos processos
de sobrevivencia desses templos afro-brasilei-
AFRO-CENTRADAS NA CIDADE ros, com o crescimento dos terreiros verticais,
cahamados genericamente de ‘’terreiros de
laje’’. O papel desempenhado pelos terreiros nos
CANDOMBLÉ AND CITY TERREIRO: AFRO-REFERENCED
processos de criação, surgimento, desenvol-
AND AFRO-CENTERED BLACK EXISTENCIES AND
vimento e consolidação dos bairros negros da
RESISTANCE IN THE CITY
cidade. O carater dos Terreiros de Candomblé
como berço de diversos outros terreitórios ne-
SILVA, Vilma Patrícia Santana gros da Cidade: Blocos Afro, Afoxés, Congadas,
Maracatus, Reizados, Foguedos.
Arquiteta Urbanista; Mestranda em Arquitetura e
Urbanismo do PPGAU-FAUFBA
vilma.patricia@ufba.br
HISTÓRIA CIDADE CANDOMBLÉ
VELAME; Fábio Macêdo
Doutor em Arquitetura e Urbanismo; Professor do PPGAU-
FAUFBA e CEAO-UFBA
velame.fabio@gmail.com

OLIVEIRA; Josane
Arquiteta Urbanista; Mestranda em Arquitetura e
Urbanismo do PPGAU-FAUFBA
josane.ssa@gmail.com

Silva; Sônia
Administradora; Mestranda em Arquitetura e Urbanismo
do PPGAU-FAUFBA
sonia@mouspadbahia.com.br

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1050
ABSTRACT RESUMEN

The table aims to discuss the relationship betwe- La mesa tiene como objetivo discutir la relación
en Terreiro de Candomblé and History of the City entre Terreiro de Candomblé e Historia de la Ciu-
from an afrocentric and afroreferenced perspec- dad desde una perspectiva afrocéntrica y afrore-
tive. This relationship is faceted by the processes ferencial. Esta relación es facetada por los proce-
of persecution and criminalization, surveillance sos de persecución y criminalización, vigilancia y
and control, folklorization, and mass tourism. The control, folclorización y turismo de masas. Los
conflicts and resistance of the people-of-saint conflictos y resistencias del pueblo santo de Ter-
of Terreiros de Candomblé to the various urba- reiros de Candomblé a los diversos procesos de
nization processes arising from the actions of urbanización derivados de las acciones del go-
the government with the works of infrastructure, bierno con las obras de infraestructura, vivienda,
housing, real estate projects, private sector, and empresas del mercado inmobiliario, sector priva-
occupation of the houses of the layers popular. do y ocupación de las casas de los estratos. po-
The diverse processes of survival of these Afro- pular. Los diversos procesos de supervivencia de
-Brazilian temples, with the growth of vertical ter- estos templos afrobrasileños, con el crecimiento
races, generically called ‘‘ slab terraces ’’. The role de terrazas verticales, genéricamente llamadas
played by the terreiros in the processes of crea- “terrazas de losa”. El papel de los terreiros en los
tion, emergence, development and consolidation procesos de creación, surgimiento, desarrollo y
of the city’s black neighborhoods. The character consolidación de los barrios negros de la ciudad.
of the Candomblé Terreiros as the birthplace of El carácter del Candomblé Terreiros como cuna
several other black terreitories in the City: Afro, de varios otros terreitorios negros de la Ciudad:
Afoxés, Congadas, Maracatus, Reizados, Fogue- Afro, Afoxés, Congadas, Maracatus, Reizados, Fo-
dos blocks. guedos blocks.

STORY CITY CANDOMBLÉ HISTORIA CIUDAD CANDOMBLÉ


EIXO TEMÁTICO 2 MULHERES NEGRAS E O URBANISMO: O papel
desempenhado pelas Mulheres Negras
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES religiosas de matrizes africanas no processo
de consolidação de Salvador e Recôncavo

mesa temática
O presente trabalho tem como objetivo refletir
sobre o papel desempenhado pelas mulheres
TERREIRO DE CANDOMBLÉ negras lideres religiosas de matrizes africanas
quanto a organização, estruturação, tessitura
E CIDADE: EXISTÊNCIAS E social, trajetória histórica, dos grupos como
instrumento de luta e resistência social, cultu-
RESISTÊNCIAS NEGRAS ral e política que contribuíram para o processo
de consolidação urbanística de bairros negros
AFRO-REFERENCIADAS E na cidade do Salvador e Cidades do Recôncavo
Baiano com o objetivo de mostrar a diversidade
AFRO-CENTRADAS NA CIDADE quanto a prática cultural e social que foi desen-
volvida e implementada no Brasil e na Diáspora,
desenvolvendo assim uma forma de resistência
CANDOMBLÉ AND CITY TERREIRO: AFRO-REFERENCED feminina negra que não foi escrita mas praticada
AND AFRO-CENTERED BLACK EXISTENCIES AND e se inicia no Brasil nos sec. XIX e XX.
RESISTANCE IN THE CITY
As trajetórias históricas das lideranças femininas
fortalecidas através dos laços do candomblé, são
marcadas de articulações de enfrentamentos pú-
blicos de complexas construções logística assim
como a Festa da Boa Morte, e temáticas que trazem
a temporalidade entre a vida e a morte marcada
por rituais religiosos e festividades que marcam
o social como descrita em: “Eram mulheres do
candomblé que canalizavam a vida das gentes na
Bahia e assim foi um grande acontecimento quando
se espalhou a notícia de que o Gantois ia realizar
os ritos cruciais do axexê para limpar o templo
dos sombrios miasmas trazidos pela morte de
ogã Bibiano, um ano antes. O Egungum da morte
interrompera a vida durante um ano, afugentando
os deuses da África; mas, após os ritos programa-
dos, seguidos de missas na igreja dos Agostinia-
nos, os deuses desceriam e dançariam novamen-
te e permitiriam que o sacerdócio funcionasse
em toda sua capacidade.” (LANDES, 2002, p.108)

Ainda nas mediações de conflitos históricos so-


ciais como tática de sobrevivências e resistencia
dos terreiros de candomblé e a prática do culto
através de alianças e parcerias conforme (REIS;
FREITAS, 2010, p. 12), “Do final do século XIX, até
o início do século XX, as mães de santo iniciaram
16º SHCU a organização de uma religião brasileira, de matriz
30 anos . Atualização Crítica
africana, o candomblé. Congregando um cará-
1052 ter sincrético fortíssimo, essas representantes
religiosas buscaram acima de tudo as alianças BIBLIOGRAFIA
necessárias para o resgate, a manutenção e o
respeito às práticas religiosas de origem africa- CORREIA, Marcos Fábio Resende . Mulheres de
na. As alianças eram fundamentais, uma vez que Axé . Salvador , Ed. Kawo-Kabiyesile . 2013.
a perseguição policial aos cultos africanos era
intensa. E, neste sentido, a criatividade mais uma DUARTE, Everaldo Conceição. Terreiro do
vez prevaleceu na criação de cargos ministeriais Bogum; memórias de uma comunidade Je-
nos terreiros, atribuindo aos homens, muitas ve- je-Mahi -Lauro de Freitas- BA. Ed. Solisluna,
zes brancos, ocupantes de cargos de destaque na 2018.
vida pública, a proteção e o diálogo dos terreiros
com as instituições constituídas.” Festa da Boa Morte. / IPAC. – Salvador: Funda-
ção, Pedro Calmon; IPAC, 2011.122 p.: il. (Cader-
Ainda a importância dessas mulheres negras li- nos do IPAC, 2)
deres religiosas nas mediações de conflitos his-
tóricos sociais nos processos de urbanização em Festa de Santa Bárbara. / Governo do Estado,
bairros negros, como ocorrido por volta de 1940 Secretaria de Cultura, IPAC. - Salvador: Funda-
no bairro do Engenho Velho da Federação na ci- ção Pedro Calmon, 2010.76p. : il. – (Cadernos do
dade de Salvador local de fundação do terreiro do IPAC, 5).
Bogum,que na época estava sob a liderança reli-
giosa da Maria Valentina dos Anjos religiosamente FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senza-
reconhecida como Mãe Runhó a Doné do Bogum, la. Editora Record, Rio de Janeiro, 1998, 34ª
que usou de estratégia com a comunidade local edição.
quanto a subitração fundiária do entorno do terrei-
ro conforme descreve o sobrinho carnal da Doné LANDES, Ruth. A cidade das mulheres/ Ruth
, o Agbagigan do terreiro (DUARTE, 2018,p47/48), Landes; tradução de Maria Lúcia do Eirado Sil-
em : “Alguns anos atrás, os donos da fazenda, da va; revisão e notas de Édison Carneiro – 2ª ed.
qual fazia parte o Bogum, faziam pressão para o ver. – Rio de Janeiro. Editora UFRJ, 2002.
afastamento da comunidade através de aumentos
MARIANO, A. Mães de Santo. Publicado em
sucessivos das taxas de arrendamento e ameaças
SOTEROPOLITANOS: cultura Afro. 2007.
de expulsão. (...) Runhó não pensou duas vezes,
começou a retirada dos assentamentos existen- NASCIMENTO, Luiz Cláudio Dias do. Bitedô:
tes sob as árvores, dessacralizou o espaço e fez onde moram os nagôs: redes de sociabili-
vista grossa aos ocupantes que, pouco a pouco, dades africanas na formação do candomblé
foram preenchendo os espaços com as casas jêje-nagô no recôncavo baiano, Rio de Janei-
populares, casinhas e barracos”. ro, CEAP. 2010.
Concluir destacando a importância dessas mu-
PÓVOAS, Ruy do Carmo. A memória do femini-
lheres como potencias na consolidação de so-
no no candomblé: tecelagem e padronização
cial , que sob a atuação conjunta dessas lide-
do tecido social do povo de terreiro – Ilheús.
res religiosas na mobilização das comunidades
Ed. Editus, 2010.
fortalecendo e preservação da cultura negra de
matriz africana e irmandades no qual exerce o
Santos, Edmar Ferreira. O poder dos candom-
papel organizador, aglutinador e disseminador
blés : perseguição e resistência no Recônca-
demonstrando o prestígio dessas lideres perante
vo da Bahia / Edmar Ferreira Santos. - Salva-
a sociedade civil através da eugenia feminina
dor : EDUFBA, 2009. 209 p.
matriarcal afro-brasileira , contribuíram signifi-
cativamente para o desenvolvimento territorial SOARES, Cecília Moreira. Mulher Negra na
de Salvador e cidades do Recôncavo. Bahia do Século XIX. (Dissertação de mestra-
do) UFBA, Salvador 1994.

SOUSA JUNIOR, Vilson Caetano de . Nagô: a


nação de ancestralidade itinerante. – Salva-
dor: Ed. FIB, 2005.
EIXO TEMÁTICO 2 CANDOMBLÉ, CIDADE E CONTEMPORANEIDADE
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Este ensaio visa realizar uma rápida reflexão sobre
a mercantilização dos deuses africanos nagôs
na Bahia, os Orixás, em sua transformação de
divindades afro-brasileiras a fetiches mercadorias
e ferramentas publicitárias para alimentar, via
estado, o desenvolvimento da indústria cultural,
turística e do entretenimento, através da cons-
trução dos consensos e conflitos presentes nas
transformações da espacialidade urbana em seu
contexto e produto. Os consensos e conflitos aqui
trabalhados são: os movimentos sociais de dimen-
sões étnicas afro-brasileiras na busca de suas
diferenças; as disputas e resistências identitárias
afro-brasileiras e apropriações do seu passado
e cultura no contraponto entre as suas tradições
no âmbito do candomblé e as construídas pe-
los aparelhos de estado e a indústria cultural; as
territorialidades afro-brasileiras nos terreiros
de candomblé e formas de intervenção cultural
em espaços da cidade do Salvador pelo poder
público. Para tanto, o trabalho visa revelar como
os ‘’Orixás Invisíveis’’ em seus lares autênticos, os
terreiros de candomblé, vão gradativamente se
transformando em ‘’Orixás Visíveis’’ de múltiplas
formas nos museus, espaços públicos e lojas de
toda a cidade. Tal como as táticas de resistência
do povo de santo frente a esta nova voga e face
da exploração do negro na Bahia, processos es-
tes, notadamente condensados, nas políticas de
tombamentos de seus templos.

Partiremos da verdadeira morada dos Orixás,


o espaço sagrado dos terreiros, onde eles são
verdadeiramente representados e cultivados.
Entretanto, para o seu entendimento alguns
conceitos e características serão trabalhados,
pois são fundamentais dentro do universo do
candomblé. Assim serão abordados, rapidamen-
te, as noções centrais do candomblé1, de matriz
nagô, notadamente da nação Ketu, como axé, os
próprios orixás, relações e configuração espacial
do terreiro na Bahia e os templos na África, os
templos dos orixás e seus assentos, e as formas
simbólicas dos Orixás nesta realidade e universo.

Nessa empreitada de desvendar o processo de


16º SHCU transformação dos Orixás, tanto em conteúdo
30 anos . Atualização Crítica
quanto em sua materialidade, foram lançados
1054 sobre a luz dos conceitos e sistemas de pensa-
mento de Walter Benjamin e Hannah Arendt. As- Referências BibliográfIcas
sim em Walter Benjamin foram trabalhados os
seus conceitos de aura, os papeis desempenhado
pela técnica nos processos de transformações, e Arantes, Otília. Urbanismo em Fim de Linha.
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EIXO TEMÁTICO 2 PROJETO KINGOONGO[1] - ABRANGÊNCIA TERRITORIAL
E SUA IMPORTÂNCIA NA LUTA POR DIREITO A CIDADE
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
O presente trabalho visa, a partir do projeto de Re-
forma de 53 Terreiros, compreendia reformas de
terreiros em todas as regiões administrativas de
Salvador, que foi executado a partir do Convênio
008/2009 firmado entre o Estado da Bahia (atra-
vés da SEDUR - Secretaria de Desenvolvimento
Urbano da Bahia) com a ACBANTU (Associação
Cultural de Preservação do Patrimônio Bantu),
traçar a sua abrangência municipal, e apontar
alguns desdobramentos como a metropolização
do projeto, a partir de extensão, com o apoio da
AFA (Associação Brasileira de Preservação da
Cultura Afro-Ameríndia) a mais terreiros, ocor-
rido em 2014, abrangendo, assim a RMS (região
metropolitana de Salvador). Objetiva também
trazer a tona, mecanismo de luta pelo direito a
cidade e a cidadania de grupos a margem dos
processos hegemônicos de construção e nego-
ciação urbana.

Sendo Salvador fundada sob a égide do colonia-


lismo europeu, cuja esteio econômica se baseou
na mão de obra traficada e escravizada, do con-
tinente africano até o sec. XIX, a presença negro
acompanhou seu desenvolvimento desde o sec.
XVI, e após a abolição a presença destes perma-
neceu sendo reforçado ao longo do tempo, a bem
disso, como ocorreu no Brasil, aqui “o patrimônio
simbólico do negro brasileiro (a memória cultural
da África) afirmou se aqui como território políti-
co-mitico e religioso, para a sua transmissão e
preservação”, como afirma Muniz Sodré.

Os terreiros de candomblé são territórios que


sintetizam e reforçam esse patrimônio simbólico
a bem da africanidade soteropolitana e também
a resistência as mazelas da comunidade descen-
dente dos escravizados brasileiros, constituindo
assim, e, como nos aponta Muniz Sodré “a forma
social negro-brasileira por excelência, porque
além de da diversidade existencial e cultural
que engendra, é um lugar originário de força e
potencia social para uma etnia que experimenta
a cidadania em condições desiguais”.

16º SHCU Esses territórios constituem elemento de grande


30 anos . Atualização Crítica
importância também na ocupação urbana da po-
1056 pulação afrodescendente, oferecendo dentro das
comunidades onde estão inseridos muito além de Notas
atuações beneficentes. Inclui também o trabalho
educacional, sendo em casos a única possibili- 1 - Projeto Kingoongo - nome dado ao Projeto de
dade de educação infantil para algumas famílias. Reformas de 53 Territórios de Matrizes Africanas,
É possível afirmar que em alguns momentos da firmado pelo Convênio 008/2009, pela ACBANTU
história foi a única possibilidade de tratamento de - Associação Cultural de Preservação do Patrimô-
saúde para negros empobrecidos, tendo em vista nio Bantu, convenente do referido instrumento,
que o sistema SUS ser algo recente e o acesso a cuja referencia se faz ao inquice (entidade que faz
medicina não era abrangente. Mas apesar de sua respectivo com os orixás nas nações de Candom-
já mencionada importância, muitos encontram-se blé Ketu) de mesma denominação nos candomblés
degradados e não oferecem conforto e dignidade de nação bantu (Congo/ Angola).
para sua finalidade. Assim o projeto de reforma
objeto do convenio, nomeado conveniente de 2 - “Porteira para dentro” e 3 - “Porteira para
Kingoongo pela interveniente, tem importância fora” - expressões que indicam o interior e exte-
no sentido de que visava preservar e integralizar rior do sítio do terreiro, respectivamente, muito
os espaços físicos dessas instituições além de usadas pelas comunidades de terreiro.
promover ações de fortalecimento das mesmas.

Assim, apesar desse projeto abranger a refor-


ma do terreiro “porteira pra dentro”², a partir de
políticas publicas, ele tem um forte impacto da
“porteira pra fora”³, uma vez que as comunidades
do entorno do terreiro são beneficiadas pela pre-
sença dessa instituição, ocorrendo o fortaleci-
mento conjunto. E trazer a luz a essa experiência
pioneira objetiva criar modelos e encorajar atua-
ções similares em territórios de desigualdade e
desafios históricos de acesso a cidadania e bem
estar social, a bem de apontar a importância da
formação de arquitetos e urbanistas com perfis
capazes de atuar nessas comunidades.
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16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1058
TERREIROS DE CANDOMBLÉ E A CIDADE Com o crescimento da cidade os terreiros vão
DE SALVADOR NOS SEC. XIX A XXI: UMA HISTÓRIA se espalhando para lugares distantes no meio
do mato, primeiro como forma de fugir das per-
DE INVISIBILIDADE
seguições e reclamação dos vizinhos conforme
mostra relatos no periódico O Alabama depois
A Bahia e principalmente Salvador vão constituir por conta da aproximação da cidade para áreas
como um dos principais territórios de matriz afri- antes consideradas rurais, estes passam a sitiar
cana, não só pela sua expressiva população negra, nos arredores da cidade.
mas também pelos significativos elementos sim-
“Ao mesmo, ordenando-lhe que vá a ladeira
bólicos culturais que vão desenhar a identidade
do alvo nº 27 onde mora o o africano Hygino, e
dessa cidade. Os terreiros de candomblé vão
faço mudar-se para algum lugar do subúrbio,
surgir quase junto com a fundação da cidade de
visto não poder morar aquele africano dentro
Salvador. Os escravizados quando aqui desem-
da cidade pelo incomodo que causa aos vizi-
barcaram trouxeram também a sua cultura e
nhos à noite pelo barulho infernal que faz com
religiosidade Os primeiros relatos são de casas
festejos de santos, O que cumpra” (O Alabama
comuns (residenciais) que eram utilizadas para
27/02/1827)
cultos fetichistas conforme nos conta de João
José Reis no livro Domingos Sodré um sacerdote
Durante o século XX os terreiros mesmo perse-
africano onde o negro Domingos Sodré realiza-
guidos e invisibilizados cresceram nestas áreas,
vas suas consultas em uma casa comum na Rua
no miolo de Salvador,antes vistas como rurais,
do Sodré.
sendo um dos responsáveis pelo nascimento e
Trata-se de um sobrado de nº 7 na pequena e crescimento dos bairros em que estão inseridos
íngreme ladeira de Santa Tereza, que ligava a fazendo diferença no crescimento da cidade . Só
Ruas de baixo de São Bento (atual Carlos Gomes) depois da metade deste século , em fins da década
à Rua do Sodré. (REIS, 1970, pg. 95) de 70, esse crescimento será mais expansivo em
a partor da Lei Estadual 25.095, de 15 de janeiro
Espalhados pela cidade a partir dessas pequenas de 1976 que vai permitir aos terreiros executarem
residências vão surgir espaços maiores, que vão suas festas sem a necessidade de uma autoriza-
reunir o culto dos muitos Orixás em um só lugar, ção da delegacia de Jogos e Costumes.
estas casas passam a ser conhecidas como “ter-
reiro de candomblé”, (sociedades de aprendizado No inicio do século XXI, em seu trabalho de pes-
e convivência social). É em meados do século XIX quisa do Mapeamento dos Terreiros em parceria
que o negro começa ocupar seu espaço na cidade, da UFBA com CEAO o professor Jocélio observou
surgem novos elementos identitários, e os terrei- um crescimento considerável de terreiros na área
ros de Candomblés é um deles, ainda segundo do miolo, em fins da década de oitenta e bem
Reis no século XIX os terreiros se espalhavam por acentuada durante toda década de 90 isto será
toda cidade de Salvador. Em seu artigo Geografia bem percebido principalmente a área que com-
Religiosa o pesquisador Jocélio Teles relata que preende Cajazeiras e adjacências, analisando o
os candomblés floresciam pela cidade de Salvador mapeamento dos terreiros percebemos o quanto
e cita o periódico (Albama1864) que se referia a as questões atuais de urbanização afetou os es-
algumas áreas como “imensos Terreiros” sendo paços de terreiros, que pra la foram em busca de
este um ponto significativo quando pensamos nos privacidade, liberdade, rios e matas que existiam
candomblés ocupando grandes áreas urbanas. em abundância nesta região do miolo, porém com
o crescimento urbano que o bairro vem passando
No decorrer do tempo Prof. Jocélio ressalta que desde a implantação dos conjuntos habitacionais,
o termo terreiro passa a ser sinônimo da Casa e como nos séculos passados apesar de um gran-
de Candomblé, é o terreiro não visto mais como de numero de terreiros no espaço do bairro estes
espaço de terra aberto onde aconteciam os ba- estão invisibilizados apesar de fazerem parte do
tuques , mas como um espaço fechado por isso o crescimento do bairro através dos filhos de santo
termo casa que dá o sentido realização de práticas de muitos terreiros que pra ca vieram pra estarem
rituais privados porém publico. mais perto dos mesmos.
EIXO TEMÁTICO 2 Inúmeros são os terreiros cujo espaço residen-
cial do pai/mãe-de-santo, inclusive com família
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS consangüínea, encontra-se próximo ao espaço
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES sagrado. (TELES, 2009, pg.06)

A exemplo do que ocorreu no bairro da Federação


que surge a partir do terreiro do Bogum e da Casa
Branca, Cajazeiras tem seu inicio com os terreiros
que aqui chegaram ainda no século XX durante a
década de 40 com os terreiros instalados entre
Águas Claras Castelo Branco e o que hoje é co-
nhecido como Cajazeiras.

Mas apesar da importância desses terreiros no


crescimento da cidade, uma vez que a urbanização
no espaço onde estes se instalaram começar a
partir da movimentação que é provocada pela
movimentação dos ir e vir dos filhos de santo, a
falta de um planejamentos urbano com partici-
pam da comunidade, foram desconsiderados nos
espaços preservados de áreas verdes destruídos
e desrespeitado, lugares sagrados, o crescimento
desordenado do bairro a partir da migração de um
população vunerabilizada, para esta área obriga
muitos terreiros a se verticalizarem pra se man-
terem resistentes, nos seus espaços. A primeira
função do terreiro é social de manter sua família
de axé unida conectada com o sagrado, junto a
essa vem a preocupação com a preservação das
áreas verdes uma vez que sem folhas não há Ori-
xá, pois estes precisam das energias emanadas
por elas para a relação espiritual que vai trazer
o Orixá em terra pra se conectar ao Omorixá1. O
mapeamento dos terreiros chamou atenção pra
essa modificação arquitetônica dos terreiros nas
últimas décadas:

“Muitos terreiros apresentam uma fachada


similar às de casas comuns na periferia,
alguns tendo dois ou três pavimentos, ou
localizados em subsolos.” (TELES, 2009,
pg.06)

Esse crescimento urbano incontrolado, que força


a verticalização dos terreiros, vai interferir no
culto aos Orixás que precisam além das folhas do
contato com a terra para muitos rituais litúrgicos.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1060 1. Omorixá – Filho de Orixá


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EIXO TEMÁTICO 2

HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS


CAMPOS DO CONHECIMENTO
SOBRE AS CIDADES

sessões temáticas
EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES O artigo comenta uma experiência com a cidade
que se desenrola em um contexto de produção
artística. Durante um período de dez dias, uma
sessão temática série de errâncias urbanas leva a autora à propo-
sição de uma narrativa que cria, através de uma
instalação visual e sonora, um campo propício
A CIDADE, O PENSAMENTO à instauração de experiências indiretas com a
cidade. O que está em questão é uma prática ur-
ANIMAL E A POESIA: UM banística que faça jorrar as falas da cidade em
narrativas insuspeitáveis ao pensamento racio-
MODO DE NARRAR nal. Como manusear o campo que se abre sem
cerceamos o fluxo dos acontecimentos em um
fim? O que está também em questão é um modo
THE CITY, THE ANIMAL THOUGHT AND THE POETRY: A de narrar que inclua o público na construção dos
WAY OF NARRATING relatos. A narrativa por fragmentos imagéticos
(visuais e sonoros) se configura como território
DALVA, Cinira propício à criação de composições entre o es-
paço expositivo e o observador, possibilitando
Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade
que este faça sua própria cartografia. Por fim, o
Federal da Bahia
dalvacinira@gmail.com que está em questão, em forma de metáfora in-
suspeitável, é o pensamento animal como pen-
samento poético, capaz de gerar corpos mais
sensíveis aos recados da cidade.

CIDADE URBANISMO MODOS DE NARRAR


MONTAGEM PENSAMENTO ANIMAL POESIA

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1064
ABSTRACT

The article comments on an experience with the


city that unfolds in a context of artistic produc-
tion. Over a period of ten days, a series of urban
wanderings leads the author to the elaboration
of a narrative that creates, through a visual and
sound installation, a field conducive to the esta-
blishment of indirect experiences with the city.
What is at issue is an urban practice that makes
the city’s speeches flow in narratives that are un-
suspected by rational thought. How can we han-
dle the field that opens without restricting the
flow of events in an end? What is also at issue is
a way of narrating that includes the audience in
the construction of the reports. The narrative by
image fragments (visual and sound) is configured
as a favorable territory for the creation of compo-
sitions between the exhibition space and the ob-
server, allowing him to make his own cartography.
Finally, what is at issue, in the form of an unsus-
pected metaphor, is the animal thinking as poetic
thinking, capable of generating bodies more sen-
sitive to city messages.

CITY URBANISM WAYS OF NARRATING ASSEMBLY


ANIMAL THINKING POETRY
EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
1.
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
um escorpião
alguns besouros
sessão temática
um elefante e
uma aranhola
A CIDADE, O PENSAMENTO uma tartaruga
ANIMAL E A POESIA: UM dois sapos

MODO DE NARRAR dois tigres


um tatuí e

THE CITY, THE ANIMAL THOUGHT AND THE POETRY: A uma patativa
WAY OF NARRATING nesta ordem mas
não apenas esta
.. e um pinguim
vieram deixar um recado

Assim começa o poema-síntese de um processo


de imersão que pude vivenciar na cidade de For-
taleza durante a residência artística “Sala vazia”,
realizada em março de 2019 pelas organizações
Trincheira e Salão das ilusões, espaços de fomen-
to, difusão e criação artística. A proposta original,
apresentada durante o processo seletivo para a
residência, consistia em “nomear lugares”. Os
lugares seriam encontrados em errâncias coti-
dianas em um trecho específico entre minha casa
e o local da residência. Os “nomes” seriam enun-
ciados em vídeo-poemas. O dispositivo para as
errâncias se limitaria ao corpo atento: “Proponho
uma experiência de escutar lugares: o dispositivo
é o corpo atento, disposto à perda e à dissolução”

O corpo atento a uma escuta da cidade enuncia-


ria os nomes dos lugares a partir de fragmentos
coletados durante as errâncias. A enunciação
seria feita durante o processo de montagem dos
fragmentos em “mesas de montagens”: “Proponho
uma experiência de nomear lugares: o dispositivo
é a coleta e justaposição de palavras através da
montagem”.

16º SHCU Ao fim de dez dias (período de imersão após o


30 anos . Atualização Crítica
qual o processo seria apresentado ao público)
1066 os lugares não foram nomeados. O “corpo atento,
disposto à perda e à dissolução”, encontrou-se ma de narrar o que foi escutado. Borram-se as
perdido em direções distintas da planejada. No fronteiras entre forma, conteúdo, sujeito, coisa,
lugar de nomes deparei-me com um conjunto de humano e animal.
dez bichos os quais encontrei em formas e tempos
diversos. O “recado” dos bichos foi enunciado no
trabalho que denominei Concerto para múltiplas
vozes: o recado de Exu. Começo este texto confes- o CORPO
sando, portanto, um paradoxo: Ao mesmo tempo
em que proponho uma atitude de abertura para a 2.
escuta da cidade, estipulo um formato final para o recado eu vou dizer
o trabalho. A abertura, no entanto, não se faz
com objetivos previamente estabelecidos, deve mas antes quero fazer alguns reconhecimen-
coincidir com uma completa disponibilidade e tos:
aceitação do imprevisível. reconheço minha posição de mediação

Esse artigo é uma possibilidade de refletir sobre disso que veio a ser um
esta experiência e compreender com mais clare- ‘concerto de múltiplas vozes’
za como algumas práticas – que são críticas ao
reconheço a disposição do
pensamento logocêntrico ocidental – convergem
para uma mesma atitude que, em última instância, meu corpo
demanda a construção de um outro corpo. O mé- não é pelos olhos que
todo cartográfico e a técnica da montagem, pro-
postos como procedimentos para uma escuta da se escuta
cidade, fizeram emergir um “pensamento animal” nem pelos ouvidos
possível de se expressar através de um poema.
talvez
Talvez porque a linguagem da poesia, como afirma
a escritora Maria Esther Maciel (2020), assim como pelos pelos,
o animal em sua estranha alteridade, “desafia o isso que possuímos
poder humano de compreensão e se furta às ex-
plicações racionais, para se inscrever sobretudo o mais próximo
na esfera do corpo e dos sentidos”. das ondas

Desconfio de que os bichos que surgem durante o ser onda é a única forma de
processo, a partir dos fragmentos coletados em suportar
campo, sejam uma metáfora da atitude proposta,
o aprendizado do tempo
a “atitude à espreita” típica do animal, mas também
do escritor e do filósofo, como lembra Deleuze um do qual
(2020). A cartografia e a montagem como métodos não possuímos mais
de investigação da cidade, demandam um corpo
capaz de compor com a multiplicidade de seres e memória
tempos que formam a cidade contemporânea. Um
corpo que não se ache no centro e no comando da
ação. É o que também nos demanda o momento Cada experiência com a cidade é única, mas isso
atual de destruição antropocêntrica. é uma coisa que se aprende e se esquece a cada
vez. A cada vez carregamos fórmulas de experiên-
Não é a cidade que narra. Narra-se o encontro cias bem-sucedidas e esperamos que funcionem.
entre narrador e cidade. O relato da experiência, Foi assim que iniciei no dia 13 de março de 2019,
dependendo do modo como se faz, pode gerar cotidianamente, um deslocamento a pé entre
agenciamentos potentes com quem escuta as minha casa (no bairro Praia de Iracema) e o local
memórias do vivido. Neste trabalho que aqui da residência Sala vazia (no bairro Centro), com
comento, o modo de se por à escuta confunde-se algumas variações no percurso. Foi assim que
com o próprio conteúdo da escuta e com a for- aguardei com ansiedade, a princípio, e depois
EIXO TEMÁTICO 2 com angústia, que acontecimentos “incríveis” me
cruzassem o caminho:
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES 13.03.19. Saí pelo caminho usual. Minhas
pernas me levam naturalmente na direção
do poente no fim de tarde. Meu estado sem-
pre fica um pouco alterado quando atraves-
so a rua Antônio Augusto. Hoje, mais ainda.
Acho que me sentia prestes a testemunhar
algo incrível a qualquer momento. Acho que
observava o cotidiano das pessoas como
um cachorro fareja um osso e não acho que
essa dosagem extra de procura tenha me
alegrado. Dosar a ansiedade com o tempo
vai ser meu desafio. Pensar em prazos é
uma atitude que não seduz o tempo. Fui
apenas levar uma primeira imagem pra colar
na parede da sala vazia. Hoje foi quarta feira.

Figura 1: “mulher sem cabeça”. Fonte: Arquivo pessoal (2019).

A “mulher sem cabeça”, primeira imagem exposta


na sala vazia, reflete a atitude proposta. O corpo
sem cabeça como símbolo e firmeza da intenção
de deixar que a capacidade receptiva esteja à
frente do hábito de fazer escolhas intencionais.
Deixando de lado o paradoxo confessado anterior-
mente, o que esteve em jogo durante a realização
da ação foi esta atitude diante do campo da pes-
16º SHCU quisa. A proposição, mesmo com a modificação
30 anos . Atualização Crítica do resultado esperado, não passou da execução
1068 de uma ação: “errar”, imbuída de uma determinada
atitude: “estar atenta”. Junto a isto, a aposta na atencional, lembra Kastrup, precisa ser desen-
capacidade da “perda de controle e dissolução”. volvida como “política cognitiva”. Nesta política, a
matéria não é mero suporte passivo da produção
Uma proposição desta natureza aposta na potên- do pesquisador: “Ela não se submete ao domínio,
cia da experimentação e se aproxima da noção de mas expõe veios que devem ser seguidos e ofere-
cartografia elaborada por Gilles Deleuze e Félix ce resistência à ação humana. Mais que domínio, o
Guattari (1995) investigada no livro Pistas do méto- conhecimento surge como composição” (Passos,
do da cartografia por Passos, Kastrup e Escócia: Kastrup, Escócia. 2015. P. 49).
a cartografia é “um método não para ser aplicado,
mas para ser experimentado e assumido como Logo nos primeiros dias do processo percebi a
atitude. [...] uma intervenção que se realiza atra- transformação gradual do corpo em algo que
vés de um mergulho na experiência.” (2015, p. 18) denominei “corpo-onda”. A matéria, como afirma
Kastrup, oferece resistência. Essa resistência,
Vêm de longe as tentativas de driblarmos o con- anotada cotidianamente em um diário de campo,
trole da razão sobre a experiência. Muitas dessas revelava a contingência de uma composição de
práticas se iniciam simultâneas à própria constru- corpos que, assim como o meu, tinha agência e
ção do projeto da modernidade, e talvez subsistam se relacionava: “15.03.19. Acordo onda. O som do
ancoradas na desconfiança de que a mudança ne- alarme é nota. Vou pegar os lápis de cor. Não há
cessária em nosso conceito de humano depende lápis de cor. Pego a aquarela. No estado onda,
delas. Penso que o desejo de “dissolução” parta obstáculo gera movimento. Eis o conteúdo da
desse lugar, da intuição de que desmanchar as minha experiência”.
separações criadas pelo modo de operar moderno
nos leve a uma versão melhor de nós mesmos. O
desejo de dissolução sendo, portanto, desejo de
“fazer falar” outros seres que não os humanos. A o MEIO
cidade e as coisas por exemplo.
3.
os objetos do mundo
diz o poeta walt whitman
Corpo-Onda
fluem perpetuamente.
“Estar atento”, é uma atitude capaz de gerar ou- “todos estão escritos para mim e
tro-corpo. Gilles Deleuze em seu abecedário, fala
eu preciso
de uma “atenção à espreita” que é típica do animal,
mas que é a mesma do escritor e do filósofo: capaz entender o que dizem”
de detectar “se acontece algo atrás dele, a seu as coisas carregam palavras
lado..” (2020). O movimento da ameba é também
mas se não são vistas
descrito por Deleuze como uma metáfora do tipo
de exploração que o corpo faz em uma cartografia, são mudas
um movimento regido por sensações, por ações como toda matéria
de forças invisíveis. Kastrup (2015) assemelha a
atenção do cartógrafo a uma antena parabólica: parece ser
uma matéria aparentemente desconexa e frag-
mentada vem ao encontro do cartógrafo, até que
a atenção, numa atitude de ativa receptividade, Construir um corpo sensível para errar na cida-
é tocada por algo. de, mostrou-se similar a desconstruir o corpo
humano: cortar a cabeça e deixar crescer pelos,
Corpo- ameba, corpo-antena-parabólica, corpo- mover-se entre obstáculos como uma ameba, um
-à-espreita. Há uma performance do corpo, que tatuí, uma tartaruga. O sensível, nos diz Emanuele
pode ser exercitada e desenvolvida. Um “tônus Coccia em A vida sensível (2010, p. 10), “é aqui-
atencional” que deve evitar tanto “o relaxamento lo pelo qual vivemos indiferentemente à nossa
passivo “quanto a rigidez controlada”. Tal dinâmica diferença específica de animais racionais: pa-
EIXO TEMÁTICO 2 radoxalmente, ele define a nossa vida enquanto
ela não tem nada de especificamente humano”.
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS Deste modo, cada animal não seria senão uma
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES forma particular de relação com o sensível, que
tem como resultado sua própria forma: “a vida
que as próprias imagens esculpiram e tornaram
possível”. Para observar a si mesmo, no entanto,
faz-se necessário, para todo animal, constituir a
própria imagem fora de si, em um espaço exterior:

é no espelho que conseguimos devir


sensíveis e é ao espelho (e não exatamente
aos nossos corpos) que demandamos
nossa imagem; é apenas depois de
termos pronunciado alguma palavra que
podemos ouvir aquilo que dizemos. Não se
trata simplesmente da impossibilidade da
percepção imediata de si. Na realidade, é
sempre fora de si que algo se torna passível
de experiência: algo se torna sensível
apenas no corpo intermediário que está
entre o objeto e o sujeito. (Coccia, 2010, p. 19).

O mundo das imagens, o lugar do sensível, não


coincide, assim, nem com o espaço dos objetos (o
mundo físico), nem com o espaço dos sujeitos cog-
noscentes, ele vive em um “terceiro espaço”, entre
objeto e sujeito, que Coccia denomina um “meio”:

Um meio é um ser que tem em si mesmo


um suplemento de espaço diferente da-
quele produzido por sua natureza e por sua
matéria. Esse lugar é a recepção mesma.
Um meio é um receptor. A existência do
sensível é possível apenas graças a essa
potência suplementar que alguns entes têm,
potência que não se baseia na natureza das
coisas, nem na essência de suas matérias
nem nas suas formas. Não é da essência da
madeira receber inscrições e figuras. Não é
da essência da celulose receber e acolher
os traços que a caneta inscreve. A potência
do meio é a recepção. (Coccia, 2010, p. 30).

Assim, afirma Coccia, do ponto de vista da ima-


gem, o espelho ou o fundo do olho seriam a mesma
coisa: “não passam de superfícies capazes de
acolher a imagem, de não lhe opor resistência”.
Mas além de receber o sensível, o meio é capaz de
transmiti-lo. É graças a este que o sujeito pode
16º SHCU “ver, perceber e, dessa maneira, interagir com o
30 anos . Atualização Crítica
objeto.” (2010, p. 38). O meio estaria, assim, aquém
1070 de toda a dialética entre sujeito e objeto.
Penso na atitude do corpo que cartografa na in-
tenção de “receber” o mundo. Penso em uma das
muitas definições do método da cartografia: A
intervenção que “se realiza por um mergulho na
experiência que agencia sujeito e objeto, teoria e
prática, num mesmo plano de produção ou de co-
-emergência”. (Passos, Kastrup, Escócia. 2015. p.
18). Não seria esse “plano” também um “meio”? Não
será similar ao funcionamento de um meio a atitude
do corpo-cartógrafo? Nem humano, nem animal.
Nem sujeito, nem objeto. Nem coisa, nem alma.
Apenas potência imaterial de receber e transmitir?

A meio

Os fragmentos se acumulavam na sala vazia. Uma


foto dos meus avós, a imagem de dois sapos e
fotos do trajeto que conduziu a eles, fragmentos
de textos sobre o tempo, trechos de filmes, reci-
bos de compras, artigos de revistas. Até que uma
ordenação tenha surgido, experimentei a dúvida
e a falta de sentido como norma do trabalho. À
medida que mais imagens se juntavam ao con-
junto, eu ansiava por uma peça que trouxesse
sentido à narrativa. Por mais que tenha, even-
tualmente, encontrado uma tal peça, a narrativa
não se fechou em um único sentido, e a forma
de transmiti-la parecia um desafio tão complexo
quanto a experiência da montagem das peças.
Eventualmente precisei me dedicar a uma síntese,
e o que fiz, foi agrupar pequenos conjuntos de
imagens em subconjuntos e ordena-los a partir
de sua aparição. Desenhei setas que cruzavam o Figuras 2 e 3: “sala de montagem”. Fonte: Arquivo pessoal
espaço da sala em direções diversas, causando (2019).
ainda mais a sensação de confusão e mistério.

Finalizada a tentativa de síntese, mais peças con-


tinuavam a chegar, o processo parecia não ter
fim. Em algum momento percebi, ainda durante
a montagem, que as pessoas que entravam na
sala faziam conexões muito particulares com
as imagens, como se estivessem vivendo uma
experiência similar à minha. Foi quando entendi
que a montagem da sala não era um processo para
realizar algo, mas um fim em si, ou melhor, um “não
fim”. E decidi usar a sala como espaço expositivo.

A força do fragmento, diz Paola Jacques (2001, p.


44), está precisamente em suas potencialidades
EIXO TEMÁTICO 2 anárquicas que provocam tensões:

HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS Podemos então considerar a confusão


DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES como provisória e a ordem fragmentária
como ordem em construção, em transição,
intermediária, em transformação contínua.
O Fragmento é força daquilo cuja natureza
não conhecemos, daquilo que não oferece
qualquer garantia de atualização. O Frag-
mento semeia a dúvida. (JACQUES, 2001,
p. 44).

É preciso um “corpo-onda” para suportar a


dúvida, o mutável e a ausência de um sentido ou
lógica unitária. Mas é também preciso um corpo-
onda para usufruir do prazer do inacabado e da
surpresa. Também da novidade de testemunhar
uma narrativa se construir de forma singular.

Walter Benjamin usou o processo de montagem


para narrar, a partir de fragmentos, a história de
uma cidade, no caso, Paris. Mas ao “citar sem
aspas”, talvez tenha entendido que são os próprios
fragmentos que narram, a partir da montagem.
A montagem como “meio” (Coccia, 2010), o autor
como “meio”, receptor e transmissor do universo
sensível que se engendra: “Tão densa é a monta-
gem que o autor, esmagado por ela, mal consegue
tomar a palavra”. (BENJAMIN, Apud, JACQUES,
2001, p. 44).

A afirmação de Benjamin se assemelha à de Coc-


cia (2010), para quem “o sujeito não desempenha
nenhum papel na gênese do sensível”. O verdadeiro
centro da percepção é a imagem. “Assim, toda
forma de conhecimento sensível é uma aceitação
de uma imagem perceptiva que já se produziu fora
de nós. Não há uma ação específica do sujeito no
ato da percepção: perceber não significa produzir
a imagem de algo, mas recebê-la”. (Coccia, 2010,
p. 34). Desta forma, seria preciso observarmos a
gênese da percepção “do ponto de vista da ima-
gem” e não a partir do sujeito que a percebe.

Ora, se é verdade que as coisas se tornam


propriamente percebidas fora dos obje-
tos, elas não aguardam, porém, um sujeito
para constituir-se como perceptos, como
imagens. E vice-versa, é a existência do
sensível que torna possível a sensação, e
16º SHCU não o contrário: é porque o visível existe
30 anos . Atualização Crítica
que a visão é possível, e é porque a música
1072 existe que a audição é possível. [...] Não
somos nós e nem mesmo nossos órgãos de março). Seu Gildo se aproximou de mim, em
que transformam o mundo em algo passível um trecho escuro da Av. Dom Manoel, levando
de se fazer experiência. Não é o olho que sua bicicleta pela mão. Apressei o passo e ele
abre o mundo: a luz existe antes do olho e apressou também, conseguiu ficar ao meu lado
não no seu fundo, o sensível existe antes e fazer uma pergunta. Andamos juntos por volta
e indiferentemente da existência de todo de dois quarteirões, o suficiente para me dizer
órgão perceptivo. (Coccia, 2010, p. 36). que era pedreiro e que era de Assaré, a terra do
Patativa. Pediu que anotasse seu telefone e que
o procurasse um dia em Assaré, porque ele ia
voltar pro sertão. Depois que entrou na pousada
O sensível (a existência fenomênica do mundo), onde estava hospedado desconfiei de que sua
finaliza Coccia, “é a vida sobrenatural das coisas. intenção era a de me acompanhar para me fazer
a vida das coisas além da sua natureza, para além companhia no trecho escuro da avenida.
da sua existência física “. E é o meio que permite
às formas prolongarem sua vida para além de sua Foi também assim que, por dias, desconsiderei
natureza e de sua existência material e corpórea. o primeiro bicho da pequena série de bichos que
O “esmagamento” do autor”, de que fala Benjamin, convergiram durante o processo No dia da apre-
não é senão o entendimento de que as imagens sentação pública da proposta, dia 11 de março, (an-
se formam em outro lugar que não a psique do tes do início das errâncias), uma amiga encontra
sujeito, estão aquém deste (e além dos objetos), um jornal antigo no porta malas do carro, cola na
mas é uma “arte” tornar-se esse lugar. parede ao lado do prédio da residência e ao final
da apresentação me comunica: “abri um portal
pra você”. Vi os jornais colados na parede e não
dei importância. No dia 14 de março, encontro um
O TEMPO pequeno elefante de plástico no local da residên-
cia que me faz voltar atrás e receber o fragmento
4. oferecido por minha amiga. Abre-se um portal.
“a desatenção é a primeira etapa da violência”
disse o joão moreira sales
citando simone weil
em texto publicado na revista piauí em dezem-
bro de 2018
ano da destruição do museu nacional do brasil.
“nós que vemos o outro nas garras da aflição,
nós somos obrigados,
primeiro e acima de tudo,
a prestar atenção”
disse a simone weil

Mesmo com a intenção clara de não dirigir o pro-


cesso, fazemos escolhas e tomamos direções. Por
isso a importância de estar receptivo e receber
cada fragmento aparentemente sem valor. Foi
assim que por sorte, mais que por cuidado, guardei
o pedaço de papel onde anotei o telefone de um
senhor que me acompanhou à noite debaixo de
Figura 4: “o elefante”. Fonte: Arquivo pessoal (2019).
chuva em meu primeiro dia de errâncias (o dia 13
EIXO TEMÁTICO 2 Esse pequeno incidente com o tempo é suficiente
para me colocar em um estado de alerta a coin-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS cidências que havia ignorado. Uma delas sendo
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES a atenção despropositada que vinha dando a la-
vanderias de roupas nos percursos cotidianos.
Não fosse por isso (por esses pequenos lampejos
de coisas sem sentido), não teria me chamado a
atenção uma revista Piauí tendo na capa a frase
“Aula de lavanderia” durante um almoço na casa
de minha mãe. A matéria que vem de encontro
ao fluxo já aberto no processo, no entanto, não
é essa. Mas a “isca” veio a partir desse encontro.

A matéria da revista que me faz confirmar a dire-


ção do processo e também me ajuda a enuncia-lo,
é o texto de João Moreira Salles: “El salvador: a
respeito da força e da fragilidade”. Nele Salles
narra o telefonema de um amigo no dia seguinte ao
incêndio do Museu Nacional do Brasil em setembro
de 2018. A partir de uma foto de um conjunto de
besouros Coleópteros feita pelo amigo em sua
última visita ao museu, o autor discorre sobre
a responsabilidade que temos perante o frágil
e, citando Simone Weil, afirma repetidas vezes:
“A desatenção é a primeira etapa da violência”
(Salles, 2018).

Figura 5: “os besouros coleópteros”. Fonte: Arquivo pes-


soal (2019).

A imagem dos besouros coleópteros produziu


um efeito de euforia no meu corpo. Uma primeira
ordenação do conjunto se mostrou possível. Não
apenas pela simples associação com o apareci-
16º SHCU mento de bichos (até aquele momento um elefan-
30 anos . Atualização Crítica
te, uma tartaruga, dois sapos e uma aranhola).
1074 Mas devido à coincidência de minutos antes, ao
ter que voltar em casa por ter esquecido o com- O elefante morreu um ano depois de ter
putador, escutar no rádio do carro uma entrevista chegado em Viena. Esfolaram-no e corta-
com uma bióloga falando da possível extinção das ram-lhe as patas dianteiras para usá-las
baratinhas de praia (os tatuís) no litoral cearense. como recipientes (para colocar ali os guarda
Neste intervalo (entre o encontro com a revista chuvas, as bengalas, os bastões, as som-
e a entrevista escutada no rádio), o sentido do brinhas...). Senão tivesse acontecido isto,
aparecimento dos bichos parecia se revelar: A que é histórico, eu não direi que não teria
vulnerabilidade de existir no território onde pre- escrito o livro, mas talvez não escrevesse.
domina a espécie humana; a cidade. Porque aquele corte das patas, aquelas
patas, que tinham andado milhares de qui-
A questão da lógica fragmentária, como afirma lômetros (da índia) até chegar a Viena, no
Paola Jacques (2015, p.52), é também temporal, fundo eram uma metáfora da inutilidade
“diz respeito a uma ordem incompleta e mutável”. da vida: Não conseguimos fazer dela mais
Neste fluxo, múltiplo e aberto, o futuro não está do que o pouco que ela é. Quer dizer, que
determinado, outras associações podem ser fei- triste fim, não é? Que triste fim. Por isso,
tas, “em particular a partir do intervalo (do vazio este elefante deve a sua existência literária
que os separa) entre eles”. essa circunstância.

É assim que, através de uma sugestão de leitura,


retorno ao fragmento “elefante” para reiterar, ou
Novamente, o elefante talvez, complementar, a mensagem trazida nas
pistas anteriores. Se seres tão diminutos quanto
Recebo outra mensagem da amiga que me ofe- besouros e tatuís demandam nossa responsabi-
receu a imagem do elefante. Na mensagem ela lidade sobre o frágil, seres tão grandes quanto
sugere a leitura de um livro do escritor português elefantes podem ser fragilizados pela ação hu-
José Saramago. mana. Os fragmentos expunham, por operações
múltiplas no espaço e no tempo, os paradoxos que
definem nossas relações com os bichos: a anima-
lidade do humano nas relações com os animais.

“O que vem a ser o tempo quando passa a ser


pensado como multiplicidade pura?” Indaga Peter
Pál Pelbart (2019) em texto publicado em uma
revista que também chega a minhas mãos como
fragmento. Os pontos da cartografia se conec-
tavam como na imagem do rizoma de Deleuze e
Guattari (1995). O tempo como uma rede de fluxos
intercruzados: “entra-se por qualquer lado, cada
ponto se conecta com qualquer outro, ele é feito
de direções móveis, sem início ou fim, tendo ape-
nas um meio, por onde ele cresce e transborda”
(PELBART, 2019).

O tempo, como o conceito de Exu, que “atirou uma


Figura 6: “novamente o elefante”. Fonte: Arquivo pessoal
pedra hoje e matou um pássaro ontem”.
(2019).

Àquela altura do processo não dispunha de tempo


para leitura, mas encontro no Youtube um vídeo
em que Saramago comenta a razão da escrita do
livro. Aqui um trecho do comentário transcrito:
EIXO TEMÁTICO 2 O RECADO DOS BICHOS
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES 6.
a palavra que
os besouros coleópteros carregam é a
fragilidade
o joão moreira sales leu a palavra dos besouros
mudos
os besouros não são mudos

eles fizeram o joão escrever um texto de seis grandes


páginas

na revista piauí

no ano em que o museu nacional do brasil foi destruído

“quanto a mim

diria mesmo que

o objeto da responsabilidade

é o frágil,
o perecível que nos solicita,

porque o frágil está,

de algum modo,

confiado à nossa guarda,

entregue ao nosso cuidado”

tudo nasce do ato de prestar atenção

eis o recado dos besouros.

Em Metafísicas Canibais (2018), Eduardo Vivei-


ros de Castro analisa como a concepção do ser
para os ameríndios, diverge em um ponto muito
específico da concepção do ser para o ocidente
moderno. Enquanto no regime ontológico oci-
dental apenas o sujeito cognoscente é dotado de
agência sobre a realidade, para os povos do Novo
mundo esta é composta por uma multiplicidade de
pontos de vista: “todos os existentes são centros
potenciais de intencionalidade”. (2018, p. 43). Os
povos ameríndios imaginam um universo povoado
por diferentes tipos de agentes, tanto humanos
como não-humanos: “os deuses, os animais, os
16º SHCU mortos, as plantas, os fenômenos meteorológi-
30 anos . Atualização Crítica
cos, muitas vezes também objetos e artefatos”.
1076 (2018, p. 44). Todos seres providos de “alma”.
Neste universo heterogêneo de seres sensíveis, antropologia vê a humanidade como erguida so-
apenas alguns indivíduos têm a capacidade de bre um fundamento animal oculto pela cultura
cruzar as barreiras entre as outras espécies para – tendo outrora sido completamente animais – o
administrar as relações entre estas e os humanos. pensamento indígena conclui ao contrário que,
São os xamãs, “interlocutores ativos no diálogo tendo sido outrora humanos, os animais e outros
transespecífico”. (2018, p. 49). seres cósmicos continuam a sê-lo, mesmo que de
uma maneira não evidente para nós. (2018, p. 60).
Para Viveiros de Castro, essa interlocução de-
manda um modo de conhecer inverso ao da nossa A revelação desse lado mais oculto dos seres,
epistemologia objetivista. Enquanto para esta, afirma Irving Goldman (1963, Apud Viveiros de
“conhecer é objetivar” – ou seja deixar claro o que Castro, 2018, p. 60), tem uma associação íntima
é intrínseco ao objeto e o que pertence ao sujeito com a violência:
do conhecimento – para o xamanismo amerín-
dio “conhecer é personificar”, ou seja, fazer um “[...] em ambas as tradições intelectuais: a anima-
deslocamento para o ponto de vista daquilo (ou lidade dos humanos, para nós, e a humanidade do
daquele) que se deseja conhecer: animal, para os ameríndios, raramente se atuali-
zam sem acarretar consequências destrutivas.
[...] diríamos que estamos aqui diante de um Os Cubeo do Noroeste amazônico dizem que a
ideal epistemológico que, longe de buscar ferocidade do jaguar é de origem humana”.
reduzir a “intencionalidade ambiente” a zero
a fim de atingir uma representação abso- Em L’Animal que donc je suis, nos lembra a escri-
lutamente objetiva do mundo, faz a aposta tora Maria Esther Maciel (2020), o escritor Jac-
inversa: o conhecimento verdadeiro visa à ques Derrida faz uma crítica implacável das falsas
revelação de um máximo de intencionalida- oposições que separam a espécie humana das
de, por via de um processo de “abdução de demais espécies. Oposições que “serviram não
agência” sistemático e deliberado. (VIVEI- apenas para o estabelecimento de uma radical
ROS DE CASTRO, 2018, p. 51). cisão entre homem e animal, humanidade e ani-
malidade, como também para a legitimação das
O sujeito do conhecimento, no caso o xamã, apar- práticas humanas de violência contra os demais
ta-se de sua agência, para dar lugar à escuta das viventes”. Também Michel de Montaigne, conti-
intenções dos demais agentes. Novamente citan- nua Maciel (2020), admitiu formas alternativas de
do Benjamin, qualquer possibilidade de intenção racionalidade e questionou a hierarquia entre os
é “esmagada”. humanos e outros animais. Montagne, assim como
Derrida, associou a crueldade dos homens contra
Os personagens que povoam o mito indígena, diz os animais aos atos de crueldade dos homens
Viveiros de Castro, possuem aspectos humanos contra os próprios homens.
e não-humanos inextricavelmente emaranhados.
“O mito fala de um estado do ser onde os corpos O curioso, na constelação de animais que surge
e os nomes, as almas e as ações, o eu e o outro durante a experiência que relato neste texto, é
se interpenetram, mergulhados em um mesmo constatar – após o aparecimento de elefantes
meio pré-subjetivo e pré-objetivo”. A finalidade e tigres; tartarugas, aranholas e tatuís; escor-
da mitologia é justamente a de contar o fim desse piões e besouros – que a imagem da patativa é
estado de ser. Ou seja, de “descrever a ‘passagem’ trazida por um poeta. Essa, uma outra vereda
da Natureza à Cultura”. (VIVEIROS DE CASTRO, do rizoma: a poesia como a linguagem mais apta
2018, p. 59). a servir de meio às imagens. Patativa do Assaré
é um poeta que canta a fragilidade do humano –
Esta “passagem”, não seria um processo de dife- no caso o homem do sertão cearense – e clama
renciação do humano a partir do animal, como na a responsabilidade para com ele. Finalizo essa
crença evolucionista ocidental, pois a condição reflexão com um trecho do poema Seu dotô me
original comum aos humanos e animais não é a conhece? fragmento que integrou a instalação
animalidade, mas a humanidade. Os mitos contam sonora na exposição do trabalho. A patativa, ainda
como os animais perderam atributos herdados a tempo, quis deixar seu recado, a nós, homens
ou mantidos pelos humanos. Assim, se nossa da academia:
EIXO TEMÁTICO 2 Seu dotô, só me parece 
Que o sinhô não me conhece 
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Nunca sôbe quem sou eu 
Nunca viu minha paioça, 
Minha muié, minha roça, 
E os fio que Deus me deu. 
Se não sabe, escute agora, 
Que eu vô contá minha história, 
Tenha a bondade de ouvi: 
Eu sou da crasse matuta, 
Da crasse que não desfruta 
Das riqueza do Brasil. 

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1078
REFERÊNCIAS

[livro]

COCCIA, Emanuele. A vida sensível. Florianópolis:


Editora Cultura e Barbárie, 2010.

DELEUZE, Gilles. O abecedário de Gilles Deleu-


ze. Acessado em setembro de 2020, em http://
escolanomade.org/wp-content/downloads/
deleuze-o-abecedario.pdf

DELEUZE, Gilles; & GUATTARI, Felix. Mil Pla-


tôs: Vol. 1. Rio de Janeiro, RJ: Ed. 34 Letras, 1995. 

PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓCIA,


Liliana (orgs). Pistas do método da cartografia:
Pesquisa-intervenção e produção de subjetivi-
dade. Porto Alegre: Sulina, 2015.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas cani-


bais: elementos para uma metafísica pós-estru-
tural. São Paulo: Ubu Editora, n-1 edições, 2018.

[artigo em revistas e periódicos]

CANTINHO, Maria João. “Conversa com Maria


Esther Maciel: animalidade e literatura”. Revista
Caliban. Acessado em setembro de 2020, em
https://revistacaliban.net

PELBART, Peter Paul. O tempo não reconciliado.


Acessado em março de 2019 em https://territo-
riosdefilosofia.wordpress.com/2015/04/28/o-
-tempo-nao-reconciliado-peter-pal-pelbart/

SALES, João Moreira. El Salvador: A respeito


da força e da fragilidade. Revista Piauí 147, 2018.

[capítulo de livro]

JACQUES, Paola. Montagem urbana: uma forma de co-


nhecimento das cidades e do urbanismo. In: JACQUES,
Paola; BRITO, Fabiana; DRUMMOND, Washington (org.).
Experiências metodológicas para a compreensão
da cidade contemporânea. Salvador; Edufba, 2015.
EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES O presente artigo sublinha e estuda o papel do
espaço urbano como meio de resistência cultu-
ral e social dos negros, ao longo da história do
sessão temática Brasil, frente ao sistema complexo de segrega-
ção racial. Esta pesquisa busca entender a im-
portância do espaço para a luta negra e como
A POTENCIALIDADE DO essa instrumentalização, em prol da igualdade
e da diversidade social, pode contribuir para
ESPAÇO URBANO COMO repensarmos as cidades e a estrutura social
brasileira, e para projetarmos novas formas de
INSTRUMENTO NO PROCESSO produzir o espaço urbano de maneira mais de-
mocrática. Toda essa discussão parte da ideia
DE DEMOCRATIZAÇÃO DAS de que a produção do espaço urbano apresenta
dimensões dicotômicas que podem estar rela-
RELAÇÕES SOCIAIS: O QUE cionadas a sistemas de produção social macro,

NOS ENSINA MOVIMENTO


o que inclui no caso brasileiro o Capitalismo, a
desigualdade social e o racismo, ou podem estar

NEGRO BRASILEIRO associadas a uma produção independente que


se materializa como desvio a todos esses siste-
mas sociais determinantes (LEFEBVRE, 2006).
THE POTENCIALITY OF URBAN SPACE AS AN Por isso, apesar do espaço urbano ser condição
INSTRUMENT IN THE PROCESS OF SOCIAL de produção e produto de uma sociedade racis-
DEMOCRATIZATION: WHAT BRAZILIAN BLACK ta, o mesmo, a depender de seus agentes e me-
MOVEMENT TEACH US canismos de estruturação, tem potencialidade
de se tornar instrumento de democratização
das relações sociais. Dessa forma, este artigo
LA POTENCIALIDADE DEL ESPACIO URBANO COMO
se debruça no entendimento da complexida-
INSTRUMENTO EN EL PROCESO DE DEMOCRATIZAR
de das relações sociais e espaciais no Brasil, e
LAS RELACIONES SOCIALES: LO QUE NOS ENSEÑA EL
busca aprender com o Movimento Negro quais
MOVIMIENTO NEGRO BRASILEÑO
podem ser as vertentes de usos, apropriações e
estratégias do espaço que o faz instrumento de
RODRIGUES, Danielle Amorim ruptura do racismo estrutural e de construção
de uma sociedade mais justa, igualitária e ple-
Estudante de Mestrado em Arquitetura e Urbanismo;
Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo namente democrática.
da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas
Gerais
danielleamorimr@gmail.com RACISMO MOVIMENTO NEGRO ESPAÇO URBANO

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1080
ABSTRACT RESUMEN

This article highlights and studies the role of ur- Este artículo destaca y estudia el papel del espa-
ban space as a way for cultural and social resis- cio urbano como un medio de resistencia cultural
tance of black people in the face of the complex y social de los negros, a lo largo de la historia del
system of racial segregation throughout brazil’s Brasil, frente al complejo sistema de segregaci-
history. This research seeks to understand the ón racial. Esta investigación busca comprender
importance of space for the black struggle and la importancia del espacio para la lucha negra
how this instrumentalization, which is in favor of y cómo esta instrumentalización, a favor de la
equality and social diversity, can contribute to re- igualdad y la diversidad social, puede contribuir a
thinking cities and the Brazilian social structure. repensar las ciudades y la estructura social bra-
Furthermore, this text intends to be a reflection sileña, y a diseñar nuevas formas de producir el
about new ways of producing urban space to build espacio urbano de una manera más democrática.
more democratic relations. All this discussion ba- Toda esta discusión parte de la idea de que la pro-
ses on the idea that the production of urban spa- ducción del espacio urbano tiene dimensiones
ce has dichotomous dimensions that may be re- dicotómicas que pueden estar relacionadas con
lated to macro social production systems (which los sistemas de producción macro social, que en
in the Brazilian case includes: Capitalism, social el caso brasileño incluyen el Capitalismo, la desi-
inequality and racism) or may be associated with gualdad social y el racismo, o pueden estar aso-
independent production of itself that materiali- ciados con una producción independiente que se
zes as a deviation from all these determinant so- materializa como una desviación de todos estos
cial systems (LEFEBVRE, 2006). For this reason, sistemas sociales determinantes (LEFEBVRE,
beyond the fact that urban space is a condition 2006). Por esta razón, a pesar del espacio urba-
of production and product of a racist society, this no ser una condición de producción y producto
same urban space has the potential to become de una sociedad racista, lo mismo, dependiendo
an instrument for the democratization of social de sus agentes y mecanismos de estructuración,
relations, depending on its agents and structu- tiene el potencial de convertirse en un instrumen-
ring mechanisms. Finally, this article focuses on to para la democratización de las relaciones so-
the understanding of the complexity of social and ciales. Por lo tanto, este artículo se centra en la
spatial relations in Brazil, and it aims to learn from comprensión de la complejidad de las relaciones
the Black Movement what can be the aspects of sociales y espaciales en Brasil, y busca aprender
uses, appropriations and strategies of space that del Movimiento Negro cuáles son los caminos de
transform the space in an instrument for bre- uso, apropiación y estrategias del espacio como
aking structural racism and building a more fair, un instrumento para romper el racismo estructu-
egalitarian and fully democratic society. ral y construir una sociedad más justa, igualitaria
y plenamente democrática.

RACISM BLACK MOVEMENT URBAN SPACE


RACISMO MOVIMIENTO NEGRO ESPACIO URBANO
EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
Na atualidade, um dos assuntos mais aborda-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
dos por intelectuais e pesquisadores é o racismo
estrutural presente na sociedade brasileira. Cada
vez mais esse tema aparece presente no dia-a-dia
sessão temática
dos brasileiros devido às dimensões que ações de
injustiça social e de discriminação racial, final-

A POTENCIALIDADE DO mente, vem tomando na esfera pública e privada


das relações sociais. A chegada desse tema nas

ESPAÇO URBANO COMO discussões sociais e políticas dos brasileiros,


apesar de extremamente atrasada, se dá justa-
INSTRUMENTO NO PROCESSO mente pela conquista gradual e a luta constante do
Movimento Negro contra um racismo impregnado
DE DEMOCRATIZAÇÃO DAS na sociedade, e que hoje ganhou visibilidade na-
cional e mundial a partir do seu questionamento
RELAÇÕES SOCIAIS: O QUE nas ruas e nas cidades.

NOS ENSINA MOVIMENTO Dito isso, torna-se importante, além de estudar


e aprofundar o racismo como estrutura inques-
NEGRO BRASILEIRO tionável na sociedade brasileira, compreender
e destrinchar o Movimento Negro no país como
uma coletividade ativa e indispensável para todas
THE POTENCIALITY OF URBAN SPACE AS AN as transformações sociais ocorridas e que ainda
INSTRUMENT IN THE PROCESS OF SOCIAL estão por vir. Por isso, este artigo apresenta parte
DEMOCRATIZATION: WHAT BRAZILIAN BLACK de um estudo sobre essa complexidade social
MOVEMENT TEACH US que engloba as práticas racistas, sua constru-
ção, renovação e permanência, e o combate a
LA POTENCIALIDADE DEL ESPACIO URBANO COMO esse sistema, em sua estrutura, potencialidade,
INSTRUMENTO EN EL PROCESO DE DEMOCRATIZAR e demandas na busca por justiça social, igualdade
LAS RELACIONES SOCIALES: LO QUE NOS ENSEÑA EL e reconhecimento da negritude.
MOVIMIENTO NEGRO BRASILEÑO
Além disso, este texto identifica que o espaço
urbano faz parte das ações e relações sociais.
Devido a sua produção, suas dimensões e função
social, Henri Lefebvre (2006) demonstra que o
espaço urbano pode ser produto e condição de
produção de si mesmo, de sistemas sociais, e de
desvios desses sistemas. Portanto, as cidades
se instituem como causa e produto das relações
racistas e, ao mesmo tempo das relações demo-
cráticas. Isso indica que não só o espaço urbano
reproduz as práticas racistas, como o uso e a apro-
priação dele também pode ter a potencialidade
de transformá-lo em instrumento catalizador de
mudanças sociais, como as realizadas e deseja-
das pelo Movimento Negro no Brasil. Assim, este
artigo finaliza sua investigação reconhecendo e
descrevendo qual o papel do espaço para a luta
16º SHCU negra, quais são os mecanismos de uso do espaço
30 anos . Atualização Crítica
e suas projeções sociais que materializam esse
1082 Movimento, e, por fim, analisa-se essas estra-
tégias espaciais e a possibilidade serem apro- Essas práticas estão diretamente associadas a
priadas pelos agentes produtores do espaço na dinâmica do sexismo e da desigualdade de clas-
contemporaneidade. ses na sociedade, o que forma binários de com-
binações dessas opressões e sobreposições de
desigualdades e vulnerabilidades (GRACIA, 2009).
A desigualdade de classes, definida como uma
O RACISMO E O MOVIMENTO NEGRO NO BRASIL disparidade socioeconômica e de desenvolvi-
mento, complementa a estrutura do racismo no
Segundo Ângela Davis (2016), o racismo faz parte Brasil por ser um instrumento de mascaramento
de uma tríade de opressões sociais que cons- das suas práticas e por somar elementos de dis-
troem a complexa desigualdade social presente tanciamento dos grupos oprimidos em relação
nos países capitalistas1, como o Brasil. A autora aos bens capitalistas2. No caso do sexismo, a
demonstra que a desigualdade social se constrói construção dessa discriminação se estrutura da
em uma dinâmica de interseccionalidade entre mesma forma que o racismo, ou seja, ambos se
três sistemas de discriminação e hierarquização sustentam no controle das ações dos corpos e
social: o racismo, o sexismo e a desigualdade de
das relações humanas pelos critérios “biológicos”
classes. Essa relação se dá de forma comple-
(GONZALES, 2011).
mentar, interdependente e horizontal, ou seja,
nenhuma opressão seria dominante a outra, e Preconceito é marca abrangente e significa
sim, todas seriam constantes, indissociáveis e fazer da diferença (seja ela racial, de gêne-
com o mesmo peso social. Enquanto uma ainda ro, de região, de classe) algo mais do que
permanecer nas estruturas socias, as demais efetivamente é. Em outras palavras, implica
também continuam. valorizar negativamente certos marcado-
res sociais de diferença e incluir neles uma
Dessa forma, o racismo pode ser entendido então
como um dos pilares da construção da desigualda- análise moral. (SCHWARCZ, 2012. p. 76).
de social brasileira, e obviamente, como produto
No Brasil, o racismo nasceu junto com sua própria
e condição de produção das relações sociais do
institucionalização de país, ou seja, no momento
Sistema Capitalista consolidado no país. Nes-
da colonização do território pelos Portugueses no
se sentido, o racismo se institui em um sistema
início do século XVI, e permanece presente nos
estratégico de categorização e hierarquização
dias atuais. Assim como as relações e os modos
social que legitima a relação de dominação e su-
de vida estão em constante mudança, o racismo
bordinação entre grupos sociais (LORDE, 1981).
também se transformou ao longo dos séculos,
No caso da discriminação racial, entende-se que
a raça passa a ser uma categoria simbólica de porém, sua presença constante em toda história
definição social de superioridade (brancos) ou é inquestionável. Durante os primeiros séculos do
inferioridade (negros, pardos, amarelos, etc.) a Brasil, enquanto Estado e colônia de Portugal, o
partir de critérios biológicos, culturais e étnicos. racismo tinha como sua base principal o regime
Logo, as práticas racistas são definidas como escravista3 estabelecido no país do século XVI
ações, mecanismos e relações sociais diversos ao XIX.
de classificação, controle e exploração social
dentro dessa configuração (HASENBALG, 2005). 2. GONZALES, 2011; PACHECO, 2013.

3. O regime escravista dessa época foi nomeado como


1. Antônio Guimarães (2012) sintetiza que a desigualdade Escravidão Mercantilista e constituiu em um sistema socio-
social se configura em uma das engrenagens do Sistema econômico complexo que baseou as relações produtivas e
Capitalista, e se constrói a partir de determinações de sociais durante muitos séculos em escala mundial. Foi um
distâncias e categorias sociais de acordo com critérios sistema extremamente organizado e genérico que foi es-
que projetam hierarquias e relações de poder e privilégio. A truturado nas dimensões de raça e origem para discriminar
desigualdade social determina um contexto de disparidade o dominante (brancos e europeus) e o explorado (negros e
social e de desigualdade de acesso aos capitais diversos, o nativos das colônias) (GOMES, 2019). O Brasil foi o maior país
que privilegia grupos e concretiza a acumulação de capital, escravista do hemisfério ocidental e recebeu aproxima-
princípio central da sociedade capitalista (SILVA, 2018) damente 4,9 milhões de escravos africanos (GOMES, 2019)
EIXO TEMÁTICO 2 A escravidão estava diretamente relacionada ao
racismo, e, dialeticamente, ambos se construí-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS ram de forma a garantir a exploração social e do
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES trabalho, principalmente dos negros escraviza-
dos. Estes sistemas sociais foram estruturados
em justificativas relacionadas à: crença religio-
sa (hegemonia cultural); pensamento e estudos
científicos (subjetivos e associados aos valores
sociais); razões desenvolvimentistas e econô-
micas; e determinação de hierarquias entre os
diversos berços mundiais (racismo de origem) 4.
Cada uma dessas vertentes legitimava a escravi-
dão e o racismo, e os tornava algo natural, banal e
coerente dentro da sociedade brasileira da época.

Após tantos anos de regime escravista, em 1888


se concretizou a abolição oficial desse sistema,
porém em nenhum momento este processo teve
como finalidade o fim do racismo. A abolição da
escravidão, segundo Antônia Garcia (2009), cum-
priu com uma necessidade econômica de otimi-
zação da relação entre mão-de-obra e mercado
consumidor com o objetivo seguir com o avanço
do Capitalismo. Dessa maneira, a exploração do
trabalho do negro, tal como era feita no regime
escravista, não era mais benéfica à economia.
Em oposição, o racismo ainda seria necessário
para o desequilíbrio social e o acúmulo do capital
que manteria o sistema de produção social fun-
cionando (GARCIA, 2009).

Isto posto, entende-se que mesmo com o fim da


escravidão os agentes dominantes do Sistema
Capitalista - sendo eles o Estado, e as institui-
ções proprietárias dos meios de produção e dos
meios fundiários e imobiliários5 - , necessitavam
de manter as práticas racistas para que a rede de
forças da sociedade continuasse em suas mãos.
Dessa forma, esses diversos agentes, através de
inúmeros mecanismos sociais, foram respon-
sáveis por construir um racismo: desconectado
da escravidão, impregnado nos valores sociais e
inserido na prática cotidiana6. Em outras palavras,
o racismo precisava se renovar para se tornar

4. SEYFERTH, 2002; GOMES, 2019.

5. DE SOUZA, 2001; CORRÊA, 2004.

6. Segundo Lefebvre (2006), o cotidiano seria um conjunto


16º SHCU
de ações, práticas, forças e vetores socias experimentados
30 anos . Atualização Crítica
em um espaço, que reproduz temporalidades, individuali-
1084 dades, micro e macro política, entre outros.
uma estrutura independente que iria compor a leis, e não ser assumido pelos seus praticantes,
sociedade brasileira. o racismo ainda está. Todos os dias.

Assim, a partir do final do século XIX e durante O jornalista Laurentino Gomes (2019) apresenta
todo o século XX o racismo passou a fazer parte que cerca de 54% da população brasileira são
de grandes conceitos e ideologias sociais, e, pos- negros, sendo que nos 10% mais pobres do país
teriormente, do cotidiano de todos os brasileiros. 78% deles são desse grupo. Nesse contexto, os
A ciência permaneceu sendo um dos principais homens negros têm oito vezes mais chances de
legitimadores das práticas racistas. Pesquisado- serem assassinados do que um homem bran-
res divulgavam princípios de hierarquização social co, a cada 7 horas uma mulher é assassinada no
através da biologia e da genética, e “comprovaram” Brasil, e a cada 16 horas um crime de homofobia
a existência de grupos sociais (raça) superiores é registrado. O país é o 5º lugar no ranking mun-
e inferiores as outras (SEYFERTH, 2002). Além dial de feminicídio, o primeiro de assassinato de
disso, medidas sociais realizadas, principalmente transsexuais, e o 3º em números brutos de en-
pelo Estado Brasileiro e seus diversos braços, carceramento social, sendo a maioria jovens,
perpetuaram essa disparidade racial. Isso foi feito negros e homens (BARRETTO, 2017). Na política,
através da divulgação de teorias sociais, políticas entre os 1626 deputados distritais, estaduais,
públicas de discriminação, estereótipos e rotu- federais e senadores somente 4% são negros,
lações sociais, e também através de medidas de e, na área da cultura, apenas 10% dos livros pu-
controle social responsáveis por negar as práticas blicados entre 1965-2014 são de autores negros
racistas e silenciar os vestígios de injustiça social. (GOMES, 2019). Marcelo Paixão, professor doutor
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
Por toda essa história de constante construção acrescenta que no início do século XXI os negros
e obstrução do racismo, o processo de discrimi- ainda constituem a maioria abaixo da linha da
nação e segregação racial permanece até hoje pobreza e recebem o menor salário. Estes ainda
inserido nos valores sociais, na cultura e nas prá- são a maioria em bairros de pior infraestrutura e
ticas diárias de cada um dos cidadãos brasileiros. ocupam os maiores índices de analfabetismo. As
Atualmente, o racismo se apresenta, de acordo mulheres negras, são as que ocupam os cargos de
com muitos intelectuais, como uma engrenagem trabalho mais precários e as que menos ocupam
social que não segue mais os padrões tradicionais trabalhos institucionalizados (PAIXÃO, s/d).
de discriminação pela cor e pela origem. Nos dias
de hoje, segundo Oracy Nogueira (1954), o Brasil Percebe-se que essa desigualdade, interseccional
apresenta o chamado Preconceito de Marca, o que e sistêmica, e que inclui um racismo estrutural e
significa que o racismo a la brasileira tem uma es- permanente, não projeta apenas benefícios e lucro
trutura comparativa que se define na simbologia, para os grupos dominantes, mas também reflete
no status e no que a cor/raça representa dentro em uma série de problemas sociais e urbanos
da sociedade (SCHWARCZ, 2012). Além disso, que atingem a todos, como: violência urbana,
Florestan Fernandes (1960) acrescenta que as falta de infraestrutura, corrupção, centralização
práticas racistas no Brasil incluem a experiência e abuso da força policial, dependência química,
do Racismo Retroativo e do Racismo Cordial, que precarização das cidades, entre outros. No Bra-
constitui no exercício da discriminação centrali- sil, aproximadamente 17% da população não tem
zado na esfera privada e de maneira silenciosa7 - o acesso à água e 48% não tem esgoto tratado (EM
que distorcidamente, muitas vezes, considera-se MOVIMENTO, 2018). Aproximadamente 1 milhão
como a forma mais branda do racismo. de pessoas não têm acesso à energia elétrica, e
cerca de 65% das pessoas nas grandes cidades
Mas, sabe-se que, pelo contrário, o racismo no fazem uso de transporte público diariamente e
Brasil é extremamente profundo e duro para todos de maneira precária, onerosa, com superlotação
os cidadãos e, principalmente, para os oprimidos e insegurança. O país tem aproximadamente 153
desse sistema, em sua maioria os negros. Ape- mortes por assassinato por dia, número 30 vezes
sar do seu silêncio, de não estar estampado em maior do que a Europa (SALGADO, 2018) 8.

7. SCHWARCZ, 2012; OLIVEIRA & BARRETO, 2013 8. Cada um desses problemas ficara ainda mais evidente
EIXO TEMÁTICO 2 Simultaneamente a toda essa dinâmica de cons-
trução do racismo na sociedade brasileira, o Mo-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS vimento Negro coexistiu na história e assegurou
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES que onde há injustiça, há luta. Juntamente com a
escravidão e o racismo, o Movimento Negro tam-
bém nasceu no princípio da institucionalização
do Brasil. Inicialmente, durante os longos séculos
do regime escravista, o Movimento Negro atuava
na busca, principalmente, de garantir a sobre-
vivência dos negros escravizados, fugitivos ou
libertos. Não existia nessa época uma organização
unificada que lutava por esses personagens e
contra o racismo. Na verdade, o Movimento Negro
se apresentava em organizações elaboradas,
porém individuais e em grupos independentes
que tinham como principal objetivo a garantia de
sobrevida e a experiência da liberdade.

Durante os séculos XVI ao XIX, a luta negra foi


marcada por fugas e saques que se configuravam
como forma de rompimento da condição de es-
cravo e de busca pela liberdade, principalmente
no abrigo dos quilombos (VINHAS, 2018). Ou seja,
nesse momento da história do Brasil, o Movimen-
to Negro se propagava em embates e rupturas
diretas ao sistema, e na vivência da liberdade no
esconderijo e na ilegalidade.

Os quilombos eram essas espacialidades que ga-


rantiam a sobrevivência, a preservação e o exercí-
cio da liberdade (limitado a seu território). Segundo
Laurentino Gomes (2019), estes eram estruturas
sociais e espaciais organizadas de acordo com as
estratégias de defesa do território e guerrilha, e de
acordo com princípios da cultura negra, africana.
Por isso, sua organização espacial e social trazia
formas diferentes de relações de poder, relações
com a terra e o trabalho, e novos entendimentos
sobre o que seria o espaço, a esfera pública e a
ideia de coletividade (NASCIMENTO, 1985) 9.

e profundo neste ano. A pandemia do vírus do COVID 19,


iluminou a estrutural precariedade das condições de vida
e moradia de inúmeras pessoas no Brasil, principalmente
dos grupos sociais excluídos, o que aumentou significati-
vamente a propagação dessa doença nas cidades do país.

9. Os quilombos permaneceram na sociedade brasileira


durante toda a história até a atualidade. Obviamente, com
o passar dos anos suas estruturas passaram por modifica-
16º SHCU
ções juntamente com a sociedade como um todo, porém
30 anos . Atualização Crítica
nunca deixaram de ser estruturas de luta negra. Segun-
1086 do Beatriz Nascimento (1985) e Wagner Vinhas (2018), os
Mais do que isso, nesta época os negros escra- tos, não conseguiam concretizar seus direitos
vizados passaram a explorar a constante troca e muito menos se reconhecerem (e serem
cultural que o contexto colonial brasileiro abri- reconhecidos) como sujeitos sociais e coletividade
gava. Eduardo Paiva (2001) afirma que havia, nas importante para a sociedade brasileira. Portanto,
cidades coloniais, certo Hibridismo Cultural em entendeu-se que o caminho principal de luta seria
que intercâmbios de experiências e de culturas a busca pela inserção social, pelo fortalecimento
aconteciam de forma espontânea. Apesar des- da voz política, e pela construção de desvio das
te contexto não causar flexibilização alguma na barreiras sociais como forma de solucionar a pre-
distância social que abrigava a dinâmica racial, o cariedade de vida e a não urbanidade.
hibridismo proporcionava brechas de adaptação
dos negros a cultura branca (europeia), e vice- Dessa forma, no início do século XX, o Movimento
-versa (PAIVA, 2001). Ou seja, apesar da dureza e Negro passou a se estruturar em organizações so-
da proposta de uma hegemonia cultural branca, ciais institucionalizadas: como as organizações as-
muitas vertentes da história e da memória negra sistencialistas e a imprensa negra. De acordo com
conseguiram ser preservadas a partir de proces- “Projeto Imprensa Negra Paulista” da Universidade
sos adaptativos e transformadores no cotidiano de São Paulo (USP), só em São Paulo, entre 1903 a
dessa sociedade escravista. Isso reforça a con- 1963, existiram cerca de 25 periódicos de conteúdo
dição do negro como um ser ativo na sociedade para negros (FARRARA, 2020). Esses jornais foram
brasileira, mesmo em um momento de tamanha extremamente importantes para a divulgação da
discriminação e exploração. cultura negra, sua história e, principalmente, de
seu cotidiano, o que fez com que gradualmente
Com a chegada da possibilidade da abolição da se estabelecesse seu papel social e os mesmos
escravidão, o Movimento Negro começou a ga- recuperassem suas identidades e autoestima (DA
nhar forma como organização de luta contra o ROSA, 2014). Além disso, os jornais tornaram-se
racismo. Assim, no final do século XIX, a partir de grandes portais de projeção da voz política e crí-
organizações e encontros ilegais, o Movimento foi tica dos negros, a ponto de trazerem reflexões
um dos responsáveis por estruturar a demanda sociais importantes perante sua situação social.
de libertação dos negros e pressionar as insti-
tuições perante o cenário inevitável da abolição Junto a essa abertura social, as organizações as-
(DAVIS, 2016). Porém, como se sabe, o racismo sistencialistas compactuavam com o processo de
não foi extinto, e, portanto, a luta negra não po- divulgação, propagação, e afirmação das vozes
deria cessar. Por isso, a partir do século XX, no- culturais e políticas que estavam silenciadas. A
vas estratégias de luta se tornaram engrenagens maioria desses movimentos tinha como objetivo
essenciais para chegarmos ao momento de luta dar assistência jurídica, social e infraestrutura à
atual e suas conquistas. essas pessoas, e ofereciam serviços como: as-
sistencialismo técnico-construtivo; dentistas;
Nesse cenário, os negros, apesar de recém liber-
atendimentos médicos; compras; farmácia; cursos
de política, oficinas de artes plásticas e cênicas;
quilombos a partir do século XX passam a apresentar-se festas; entre outros (DOMINGUES, 2013). Muitas
em duas estruturas sociais: os quilombos tradicionais organizações coexistiram no Brasil nessa época,
e os quilombos “virtuais”. Os quilombos tradicionais fo- sendo as principais: o Centro da Federação dos
ram reconhecidos em 2004, como territórios nacionais Homens de Cor (início do século XX); a Frente Negra
de preservação histórica e de exercício da cultura negra,
Brasileira (década de 1930); a União dos Homes de
e, atualmente, o país apresenta aproximadamente 3 mil
Cor e o Teatro Experimental Negro (década de 1940).
comunidades quilombolas regulamentadas (SILVA, 2018).
Porém, além desse abrigo histórico, os quilombos também
A partir da segunda metade do século XX e o início
são considerados como toda e qualquer manifestação ou
do século XXI, o Movimento Negro passou por
espacialidade que representa/apresenta a luta e a cultura
negra (VINHAS, 2018). Dessa forma, o quilombo se encontra
novas adaptações e renovações para permanecer
também de maneira fluida (como prática) nas cidades e na no combate do racismo que também se renovara
sociedade brasileira. Por exemplo: as favelas, o funk, o gra- e estava cada vez mais consolidado no cotidiano.
fite, entre outros, são considerados dimensões quilombolas Dessa forma, para questionar e contrapor um con-
do Movimento Negro. texto de racismo silencioso e diário, o Movimento
EIXO TEMÁTICO 2 transformou suas ações sociais visando intervir
no cotidiano e, mais ainda, desviar a propagação
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS silenciosa da segregação racial. Para isso, o Mo-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES vimento Negro voltou ao combate direto e passou
a gritar a presença dessa injustiça social.

Atualmente, além da continuidade dos quilom-


bos em toda sua diversidade, o Movimento Negro
continuou sua batalha através das manifestações.
Segundo Ilse Scherer-Warren (2014), socióloga e
ativista brasileira, os movimentos sociais contem-
porâneos são organizações de luta permanente
e elaborada, como é o caso do Movimento Negro
Unificado, e estes apresentam manifestações
sociais de formas diversas que representam o
eixo principal da luta. A manifestações sociais,
em sua maioria, tem um caráter efêmero e são
construídas por uma ação reativa ou pelo objetivo
de criar visibilidade e cumprir demandas especi-
ficas do movimento (SCHERER-WARREN, 2014).
No caso do Movimento Negro contemporâneo as
manifestações principais são eventos políticos de
protesto ou de caráter cultural, sendo que ambos
fazem uso da ocupação e apropriação do espaço
urbano para promover suas conquistas.

Essas frentes de combate ao racismo apresen-


tam objetivos distintos que se complementam
na finalidade de ruptura com a segregação racial
e na inserção plena do negro na sociedade. As
manifestações culturais, a partir da metade do
século XX, transformaram suas formas de adap-
tação em dinâmicas de mediadores culturais.
Segundo Waldemir Rosa (2006) os mediadores
são manifestações e expressões culturais que
se propagam em territórios10 distintos e, des-
sa forma, se constroem como intermediários
de conflitos. Portanto, são culturas fluídas, e no
caso, também negras, que transitam em outras
culturas denunciando a segregação e valorizando
a negritude11 (ROSA, 2006). Em um outro plano, as
manifestações como protesto e como conflito
também se tornaram dominantes na atualidade.

10. De acordo com Julio Arroyo (2007), territorialidade tem


relação com um processo de reconhecimento e perten-
cimento de um grupo social em um determinado espaço.
Portanto, uma espacialidade que é apropriada e apresenta
identificação com uma coletividade ou individualidade tem
16º SHCU o caráter de um território.
30 anos . Atualização Crítica
11. Segundo Lisandra Silva (2018), negritude se define como cam-
1088 po virtual, político, ideológico e cultural do Movimento Negro.
Essas manifestações estão ligadas a bloqueio,
marchas e cidadanias indignadas que projetam
suas questões na apropriação do espaço (SCHE-
RER-WARREN, 2014). Portanto, além de dar visi-
bilidade aos problemas sociais ocasionados pelo
racismo, os protestos provocam uma inversão
nas posições sociais através da inversão do uso
do espaço. Em outras palavras, uma vez que es-
sas manifestações usam do espaço público para
dar visibilidade e conquistar demandas, o negro,
momentaneamente, passa a ser protagonista e
ter sua voz amplificada. Isso desloca-o para a
posição de sujeito central, urbano e ativo (o que
com o passar do tempo pode ocasionar transfor-
mações permanentes).

Por toda essa história de luta e de atuação do


Movimento Negro contemporâneo, o racismo,
apesar de uma constante social, vem cada dia
mais afundando em questionamentos e se enfra-
quecendo. A partir do final do século XX muitas Figura 1: Ato do Movimento Vidas Negras Importam no Rio
conquistas fortaleceram a negritude e deses- de Janeiro em Maio de 2020. Fonte: Fotografia por: André
tabilizaram a hegemonia branca e a segregação Mantelli. Publicado por: Mídia Ninja, 2020.
racial. São frutos do Movimento Negro e suas
manifestações: a Lei Afonso Arinos (1951) e a
Lei Caó (1989) 12, responsáveis por criminalizar
as práticas racistas e intensificar as penas sob O MOVIMENTO NEGRO E O USO DO ESPAÇO URBANO
o crime de racismo; a garantia de participação COMO FISSURA DA SEGREGAÇÃO RACIAL SISTÊMICA
política (ainda pequena) através do Conselho de
Participação da Comunidade Negra (1980), do O organismo vivo só tem sentido e existên-
Grupo de Trabalho Interministerial para a Va- cia considerado com seus prolongamentos:
lorização da População Negra e do Programa o espaço que ele alcança, que ele produz
Nacional de Direitos Humanos na transição para (seu ‘meio’, termo corrente que reduz a ativi-
o século XXI (SCHWARCZ, 2012); a consolidação dade à inserção passiva numa materialidade
da Lei de Cotas (2012) 13 responsável por ceder natural). Todo organismo vivo se reflete, se
parte das vagas no ensino superior para grupos refrata, nas modificações que ele produz
historicamente marginalizados; a publicação da em seu ‘meio’, seu ‘ambiente’: seu espaço.
cartilha do Politicamente Correto & Direitos (LEFEBVRE, 2006. p. 313)
Humanos (2004) que condena cerca 96 expres-
sões consideradas pejorativas a esses grupos Todos esses dados da desigualdade social brasi-
(SCHWARCZ, 2012); a propagação do movimento leira e suas projeções materiais e humanas tornam
Black Lives Matter (original dos Estados Unidos claro que um dos principais meios de produção e
em 2013-2014) no Brasil, como o Vida Negras Im- reprodução dessa desigualdade são as cidades
portam14 (Figura 1), entre tantas outras conquistas.
da arte da periferia, antes ilegal, como o picho e o grafite,
12. Lei 1390/51 de 1951; Lei nº 7.716 de 1989. entre tantas outras questões (GELEDÉS, 2015). Além disso,
comanda muitas manifestações e protestos contra práti-
13. Lei nº 12.711 de 2012.
cas racistas e a favor de mudanças políticas e sociais que
14. Esse movimento apresenta duas frentes principais de visam a igualdade social, como as que estão acontecendo
luta. Primeiramente auxilia na propagação da cultura negra atualmente. 2020, nas manifestações mundiais devido as
e incentiva: empreendedores, mulheres e negros; a propa- mortes, racistas, de negros no Estados Unidos, no Brasil
gação dos ritmos das favelas, o Rap e o Funk; a propagação e em outros países.
EIXO TEMÁTICO 2 capitalistas, no caso, brasileiras. Segundo Henri
Lefebvre (2006) a produção do espaço urbano
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS está ligada a três dimensões principais: prática
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES espacial (linguagem, escala e materialização),
espaço de representação (cotidiano e práxis) e
representação do espaço (imagem e simbolismo).
Cada um desses campos se complementam e
constroem o espaço urbano na perspectiva ma-
terial, simbólica e cotidiana, o transformando em
um objeto de função social, ou seja, de relação di-
reta com as ações e relações sociais (LEFEBVRE,
2006). Nesse sentido, o espaço tem sua produção
ligada a relação inerente entre tempo, espaço e
sociedade, sendo assim, o espaço urbano é pro-
duto e condição de produção de todos os vetores
sociais a partir de sua constante produção e de
suas dimensões que abordam a vida em socieda-
de em sua prática, imaginário e materialização
(LEFEBVRE, 2006).

Por essa composição construtiva do espaço urba-


no apresenta sua produção ligada ao sistema de
produção em que a sociedade está condicionada,
ou seja, no caso brasileiro, a produção do espaço
urbano está inserida no Sistema de Produção So-
cial Capitalista. Por essa razão, o espaço urbano
brasileiro é formado pelas cidades capitalistas.

Segundo Roberto Corrêa (2004), as cidades são a


materialização da circulação e centralização do
capital na vida em sociedade, por isso reprodu-
zem e também são combustíveis de produção de
muitas das engrenagens capitalistas, o que inclui
a desigualdade social e seus pilares construtivos,
o racismo. Dessa maneira, o espaço urbano, no
Brasil, se configura fragmentado, assim como a
própria sociedade, refletindo e construindo dispa-
ridades sociais no cotidiano das cidades. Ou seja,
a segregação social se configura na segregação
urbana e vice-versa, e, obviamente, a maneira
como construímos e projetamos nossas cidades
interfere na manutenção ou no combate a todas
essas discriminações e problemas sociais.

Henri Lefebvre (2001) ainda afirma que a segre-


gação social produz uma disparidade no acesso
aos bens urbanos (como infraestrutura, mora-
dia, saneamento, mobilidade, etc.) e, por isso,
cria-se cidades fragmentadas e segregadas que
16º SHCU realimentam as separações e opressões sociais.
30 anos . Atualização Crítica
Em outras palavras, sem um acesso igualitário
1090 à vida urbana, não há como resolvermos a desi-
gualdade social, e o contrário também. De acordo Espaço como confLito
com o mesmo, esse cenário se configura no não
cumprimento do direito à cidade (causa e conse- O espaço como conflito, desde a escravidão, se
quência da desigualdade social), o que provoca configura como essência da luta negra, e isto não
a não concretização deste direito pelos grupos mudou nos dias de hoje (como pode ser perce-
oprimidos, uma vez que eles não têm acesso aos bido nas inúmeras manifestações organizadas
bens capitalistas urbanos e à: liberdade, singu- pelo Black Lives Matter e Vida Negras Importam
laridade, igualdade, ao habitar e a participação neste ano). Primeiramente, o conflito estava na
na construção das cidades e seus produtos (LE- ação de fuga dos escravos, em que o rompimento
FEBVRE, 2001). com o espaço de trabalho e de exploração do
regime escravista transformou-se em símbolo
Entende-se então que as dificuldades históricas da ruptura da condição do negro de escravo e
e do século XXI no Brasil estão projetadas nas ci- mais ainda na possibilidade da liberdade. Com
dades, e, portanto, a transformação da produção o passar dos anos, a partir do século XX até a
do espaço, de um vetor de desigualdade social atualidade, o espaço como conflito passou a ser
para um vetor da democratização da cidadania, materializado na inversão do uso original/padrão
do bem-estar, e do direito à vida urbana, se torna de espaços públicos das cidades brasileiras. Esse
necessário. Para além disso, o Movimento Negro processo se dá na apropriação desses espaços
reafirma esse combate à segregação urbana, como espaço de manifestação, cultural ou po-
e dialeticamente, à segregação racial. Este se lítica (em uma veia de protesto e indignação).
apropriou do espaço urbano de forma conflituosa, Nesse cenário, o conflito no uso do espaço está
propositiva e estratégica na busca de inverter, na própria apropriação negra, o que inverte o pro-
através do espaço, esse ciclo de discriminação. tagonismo branco das cidades15, e no conteúdo
dessa manifestação que faz uso do espaço como
A partir da história do Movimento Negro, breve- meio de garantir visibilidade às demandas, aos
mente relatada neste artigo, é possível perceber problemas sociais e à injustiça social (Figura 2).
diversas estratégias de uso do espaço urbano em
prol da sobrevivência, preservação da memória
e de uma transformação social, que trazem re-
flexões importantes para repensarmos nossas
cidades. Em todos os séculos de luta negra, a
presença da relação do Movimento com o espaço
urbano se define como inevitável e essencial. Da
mesma forma que o Movimento Negro se reno-
vou e se adaptou, sua relação com o espaço e a
apropriação dele também mudou e se adequou
ao processo de instrumentalização necessário
para o combate ao racismo e a inserção social
dos negros ao longo dos tempos. Porém, após
longa pesquisa, foi possível identificar e com-
preender mecanismos gerais de uso do espaço,
pelo Movimento Negro, que momentaneamen-
te ou permanentemente, constroem a inserção
social e a promoção da justiça social e urbana.
Identifica-se, na história e na atualidade, cerca
de cinco mecanismos de instrumentalização do
15. Nos dias atuais, podemos resgatar também a transforma-
espaço como desvio a segregação racial: o uso
ção do espaço urbano como forma de protesto e ruptura com
do espaço como abrigo; o espaço como conflito; a segregação e a hegemonia cultural. Cito como exemplo
o espaço como transmissão e propaganda; o uso o caso das inúmeras manifestações dos últimos meses,
do espaço como veículo de adaptação cultural; e no Brasil e no mundo, que derrubaram diversas estátuas
o espaço como proposição social. de homens brancos e de símbolos racistas pelas cidades.
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

Figura 2: Ato do Movimento Vidas Negras Importam em


Campos (RJ) em Junho de 2020. Fonte: Fotografia por:
Thaís Tostes. Publicado por: Mídia Ninja, 2020.

Espaço como meio de comunicação social 16

Em complemento a dimensão anterior, a cidades


brasileiras, entre seus espaços públicos e pri-
vados, também são utilizadas como veículo de
propagação da história, dos aspectos culturais
dos negros e de suas denúncias. Logo, em todos
os anos de prática do Movimento Negro, o espaço
urbano vem sendo instrumentalizado como objeto
de transmissão e formação de valores sociais que
rompem com a barreira do racismo e incluem os
negros e suas vozes. Esse processo de explorar o
aspecto representativo e cotidiano do espaço foi
utilizado de diferentes maneiras pelo Movimento.

Ao final do regime escravista, espaços privados


(ilegais na época) foram transformados em espa-
ços de discussão e troca de ideias, propagando a
voz política e a capacidade crítica e ativa desses
personagens. Com o passar do tempo o espaço
tornou-se a vitrine da memória e da disperssão
de expressões sociais que regastam a história
e a cultura dos negros brasileiros (Figura 3). As
cidades na atualidade, e principalmente seus
espaços públicos, se apresentam também como
mediadores culturais, que com seu uso, apropria-
ção e reterritorialização pelo Movimento Negro
passaram se instrumentalizar como potencia-

16. Segundo Solange de Lima (1996-1997) meios de comuni-


cação são veículos de transmissão de conceitos e ideias,
16º SHCU
e por isso, o espaço urbano se encaixa como um de seus
30 anos . Atualização Crítica
exemplos, devido à suas dimensões representativas, cons-
1092 tantes e de contato diário.
lizadores culturais e como denúncia. Atravé do
espaço urbano, o negro, enquanto indivíduo e
coletividade, amplificou sua voz.

Figura 4: Desfile da Escola de Samba Estação Primeira de


Mangueira no Rio de Janeiro, com um enredo crítico sobre
a história de Jesus, valorização da negritude e denúncia
a desigualdade social. Fonte: Fotografia por: Fábio Tito.
Reproduzida por: G1, 2020.
Figura 3: Projeto da cidade de Belo Horizonte, de levar a
arte do grafite para os diversos edifícios verticais do cen-
tro. Grafite: Híbrida Astral – Guardiã Brasileira, de autoria
da artista mineira, Criola, que retrata a mulher negra, a Mais que isso, as organizações assistencialistas
origem do povo brasileiro e a espiritualidade desses po- do Movimento Negro apresentam também uma
vos. Fonte: Fotografia por: Leo Fontes. Reproduzida por: outra vertente do espaço como meio de adapta-
JORNAL O TEMPO, 2018. ção: o processo de levar a cidade até os margi-
nalizados (os excluídos dela). Dentre os serviços
oferecidos por essas organizações a garantia de
infraestrutura, serviços urbanos, e a luta jurídica
Espaço como meio de adaptação por moradia se apresentavam como seus maio-
res focos. Percebe-se então que o Movimento
O espaço urbano também pode ser apropriado de entende que a segregação urbana e as barreiras
forma a garantir não só a potencialização cultural, diversas de consolidação do direito à cidade e
como seu reconhecimento e até certa absorção à moradia (como o não acesso e a situação de
por outras culturas. Esse processo se dá por sua irregularidade urbana) impede o indivíduo de ter
associação diária com ações, relações sociais, sua identidade e garantir sua cidadania, e, dessa
expressões e representações, o que garante sua forma, sem a plena urbanidade, a igualdade racial
função social, e, de certa forma, uma essência e social ficaria limitada. Por isso, a partir do sé-
democrática. Em outras palavras, apesar da culo XX, a luta da negritude passa a ser também
produção do espaço, quando sistêmica e ins- pelo acesso à cidade, à moradia, e, portanto, pela
titucional, configurar espaços fragmentados e reformulação do espaço urbano.
segregadores, é inevitável a constante produção
e transformação do mesmo pelos mais diver-
sos agentes e posições sociais. Logo, utilizando
dessa brecha sistêmica do espaço fragmentado Espaço como abrigo
das cidades, o cruzamento contínuo de relações
neste faz com que, gradualmente, o Movimento Para além da propagação e adaptação cultural
Negro consiga desviar, “empurrar” e modificar através do espaço, o Movimento Negro também
as práticas hegemônicas. Cito como exemplo, se apropriou da materialização, representação e
alguns mediadores culturais que com o tempo uso cotidiano do espaço para torná-lo instrumento
passaram a ser apropriados pela cultura brasileira de preservação da cultura, da história e muitas
como um todo: como o Carnaval (Figura 4), o Funk vezes da vida.
e os rituais de adoração a Iemanjá, todos frutos
da crítica e da expressão cultural da negritude Desde a escravidão, construiu-se espacialida-
no espaço urbano. des para abrigar e proteger a vida do negro, sua
EIXO TEMÁTICO 2 liberdade e condição humana, como o caso dos
quilombos. Mais que isso, esses espaços tinham
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS o papel de preservar e resgatar a história, o que
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES permitiu que muitos aspectos da cultura africana,
negra, e brasileira se mantivessem até hoje. Esses
espaços continuaram presentes nas cidades, jus-
tamente porque a necessidade de sobrevivência
à desigualdade social e aos problemas sociais se
mantiveram (como por exemplo as ocupações e
invasões urbanas contemporâneas) (Figura 5).
Porém, com o passar do tempo os abrigos se
reformularam.

Atualmente, o isolamento urbano, produto e


condição de produção da segregação social, foi
transformado pelo Movimento Negro como um
potencial espaço de proteção e experiência da
cidade e da sua cultura. Ou seja, novamente se
inverte a proposta espacial oficial, e altera-se
a perspectiva de viver em exclusão social e ur-
bana. Dessa forma, o “não lugar” ocupado pelos
negros passou a ser visto e apropriado como o
“seu lugar no urbano”: o lugar da identidade e do
pertencimento, e por isso, o espaço da segu-
rança dos costumes, da história e da negritude.
Assim, altera-se o uso do espaço, transforma-se
a exclusão em preservação e, reposiciona-se os
negros e suas vozes na sociedade.

Figura 5: Ocupação Tina Martins em Belo Horizonte. Ocu-


pação de uma residência em região nobre da cidade com
o intuito de lutar pelos direitos das mulheres e fornecer
abrigo. Fonte: Reproduzida por: PÁGINA DO FACEBOOK DO
CASA DA REFERÊNCIA DA MULHER – TINA MARTINS, 2020.

Espaço como proposta

16º SHCU Dentre a história negra, africana e brasileira, e


30 anos . Atualização Crítica
suas culturas diversas, a relação com o espaço
1094 se manifesta como algo específico e desviante,
em relação a sistêmica ocidental. Por isso, todas
essas relações sociais e espaciais, anteriormente
apresentadas, e algumas das novas dinâmicas
ds cidades que estão presentes nas discussões
urbanas hoje surgiram das diferentes formas de
experienciar o espaço através da cultura negra.
Segundo Beatriz Nascimento (1985), os quilombos
foram as primeiras formas de manifestação de
Estados alternativos no Brasil, em que negros fu-
gidos resgatavam, de suas referências africanas,
formas de organização espacial e social distintas
das europeias. Os quilombos apresentavam, e
muitos ainda se estruturam, em um relação cole-
tiva e profunda com a terra, a partir de princípios FIgura 6: Reunião de Moradores no Quilombo Mangueiras.
espirituais e “científicos” (GOMES, 2019). A terra Fonte: SITE BLOG DA REGIONAL NORTE, 2015.
era entendida como o lugar do simbólico, do tra-
balho, da subsistência e da dimensão pública, ou
seja, a administração da vida em sociedade se
dava através dos princípios da coletividade e da CONSIDERAÇÕES FINAIS
autogestão (DAVIS, 2016). Essa relação com o es-
paço projetava novas formas de relações sociais A partir desse breve estudo da complexidade da
e de poder em que direitos e deveres eram igual- sociedade brasileira e sua história, e a análise do
mente distribuidos e a participação de todos era espaço urbano como instrumento de ruptura das
valorizada e necessária. Muitos quilombos ainda práticas racistas pelo Movimento Negro, torna-se
funcionam desta maneira, tanto socialmente, possível refletir sobre aspectos importantes da
quanto espacialmente, porém, essas perspecti- produção do espaço urbano e do processo de
vas distintas chegaram às estruturas das cidades democratização da cidade e das relações sociais.
capitalistas através das manifestações quilom- Primeiramente, afirmo que o racismo estrutural
bolas (quilombos “virtuais”), o que transformou no Brasil se configura como um sistema social
muitos territórios, movimentos e manifestações complexo estruturado em inúmeras camadas
negras em propostas sociais e espaciais (Figura de construção de valores sociais e de práticas
6). Essas espacialidades, como por exemplo as cotidianas, o que torna impossível esgotar sua
favelas e as ocupações, muitas vezes apresentam compreensão neste artigo e mais ainda de for-
traços de gestão horizontal do espaço, justiça so- malizar alguma solução “mágica”. Entretanto, com
cial, e senso de coletividade e comunidade. Assim, este estudo, pode-se entender que dentre essas
devido a uma herança histórica e a propagação camadas, o espaço urbano se posiciona em um
de diferentes formas de se relacionar com o es- papel essencial de produção e reprodução das
paço, o Movimento Negro passou também a ter práticas racistas, e que as cidades brasileiras
um significado de proposição de novas relações se baseiam em uma segregação social e racial.
sociais no Brasil.
Assim, nesse contexto em que nos encontramos,
o Movimento Negro se torna um espectro social
essencial de estudo, pois apresenta uma luta
importante para a sociedade brasileira e proje-
ta, inevitavelmente, transformações espaciais
e sociais em prol da democratização da cidade
e da justiça social. Logo, ao debruçar na história
da negritude no país, foi possível reconhecer e
aprofundar em alguns mecanismos de uso do
espaço urbano para a conquista desses objetivos:
o espaço como abrigo; como proposição social;
como meio de adaptação cultural; como conflito;
EIXO TEMÁTICO 2 e como meio de comunicação. Cada um desses
mecanismos se materializou em diferentes es-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS tratégias ao longo da história, e acompanhou os
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES momentos sociais e as renovações do racismo.

Todos essas dimensões espaciais, na prática,


tiveram um papel extremamente importante: no
processo de reterritorialização do negro; na supe-
ração de muitos aspectos do racismo estrutural,
no resgate da autoestima e da identidade desses
indivíduos; e no estabelecimento da relação de
pertencimento com a cidade. Assim, entende-se
que o Movimento Negro inspira reformulações no
uso do espaço ao transforma-lo, momentanea-
mente ou permanentemente, em instrumento
modulador: de relações sociais mais democráti-
cas, da concretização do direito pleno à cidade e
à moradia, de reconhecimento do papel social de
cada grupo e das individualidades diversas, e da
ressiguinificação de territórios em seu aspecto
coletivo e fluído.

Conclui-se que para que mudanças profundas


sejam concretizadas na sociedade brasileira, a
urbanidade deve ser repensada em todos os as-
pectos que produzem a desigualdade social, e
que também a quebra. Portanto, o processo de
democratização das relações sociais deve ser
compreendido de maneira interdependente à um
processo democratização urbana. Por essa ra-
zão, o Movimento Negro pode ser uma chave para
guiar reflexões sobre novas formas de produzir o
espaço institucionalmente, ou sobre a importân-
cia de reconhecer do potencial desses agentes
espaciais desviantes, que constantemente são
responsáveis por transformar nossa sociedade
e nossas cidades.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1096
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noticia/2020/02/24/mangueira-busca-bicampeo-
nato-com-releitura-critica-da-vida-de-um-jesus-
-cristo-nascido-no-morro.ghtml>. Publicado em:
EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES O artigo pretende refletir sobre as apropriações
artísticas nos espaços públicos, analisando três
intervenções artísticas: Na Casa de Paulo e O
sessão temática Retrato mais que óbvio daquilo que não vemos,
ambas do Coletivo PI (núcleo de performance in-
tervenções urbanas da cidade de São Paulo), e a
ARTE RELACIONAL: ESPAÇO performance Aceita, do Coletivo Transe (forma-
do por um casal de artistas que transitam entre
PÚBLICO, PARTICIPAÇÃO E a performance, intervenção nas artes visuais).
Para tal, são usados os conceitos de estética
AFETIVIDADE relacional, de Bourriaud (2009), e de práticas do
dissenso, de Rancière (2005), contribuindo para
se pensar nas relações entre arte, corpo da ci-
RELATIONAL ART: PUBLIC SPACE, PARTICIPATION AND dade, sujeitos e afetividades. Busca-se enten-
AFFECTIVITY der as ações estéticas temporárias aqui anali-
sadas como práticas informais e colaborativas
ARTE RELACIONAL: ESPACIO PÚBLICO, PARTICIPACIÓN no território, que atravessam os imaginários
Y AFECTIVIDAD urbanos e expandem relações entre cotidia-
no, memória e lugares urbanos, podendo abrir
fendas no espaço-tempo que causam efeito de
VIANNA MARIA, Natalia Tomaz
choque de sentidos nos indivíduos.
Mestra em História da Arte; Universidade Federal de São
Paulo (UNIFESP)
nataliatvianna@gmail.com
ESPAÇO PÚBLICO APROPRIAÇÕES ARTÍSTICAS
ARTE RELACIONAL
CRUZ, Pâmella Mochiute
Mestra em Arquitetura e Urbanismo; Universidade
Presbiteriana Mackenzie (MACK)
pamellamochicruz@gmail.com

PRUDENTE, Marcelo dos Santos


Mestrando em Artes Cênicas; Universidade de São Paulo
(USP)
marceloprudente@usp.br ; marceloprudente@hotmail.com

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1100
ABSTRACT RESUMEN

The paper intends to reflect on artistic appropria- El artículo pretende reflexionar sobre apropiacio-
tions in public spaces, analyzing three artistic in- nes artísticas en espacios públicos, analizando
terventions: Na Casa de Paulo and O Retrato mais tres intervenciones artísticas: Na Casa de Paulo y
que óbvio daquilo que não vemos, both from Co- O Retrato mais que óbvio daquilo que não vemos,
letivo PI (artistic group of urban interventions and ambas de Coletivo PI (grupo artístico de perfor-
performance art from São Paulo/SP); and Aceita, mance y intervenciones urbanas en la ciudad de
from Coletivo Transe (formed by a couple of artists São Paulo/SP), y la performance Aceita, de Coleti-
who work with performance art and art interven- vo Transe (formada por una pareja de artistas que
tions). For this research, the concepts of relatio- transitan entre la performance art y las interven-
nal aesthetics, by Bourriaud (2009), and practices ciones en las artes visuales). Para ello, se utilizan
of dissensus, by Rancière (2005), are used, con- los conceptos de estética relacional, de Bour-
tributing to think about the relationships between riaud (2009), y prácticas de disenso, de Rancière
art, the body of the city, subjects and affectivity. (2005), que contribuyen a pensar en las relaciones
It seeks to understand the temporary aesthetic entre el arte, el cuerpo de la ciudad, los sujetos
actions analyzed here as informal and collabora- y la afectividad. Busca comprender las acciones
tive practices in the territory, which cross urban estéticas temporales analizadas aquí como prác-
imagery and expand relations between daily life, ticas informales y colaborativas en el territorio,
memory and urban places, that can open cracks que cruzan las imágenes urbanas y expanden las
in space-time causing senses shocks in individu- relaciones entre la vida cotidiana, la memoria y
als. los lugares urbanos, lo que puede abrir grietas en
el espacio-tiempo que causan el impacto de los
sentidos en los individuos.
PUBLIC SPACE ARTISTIC APPROPRIATIONS
RELATIONAL ART
ESPACIO PUBLICO APROPIACIONES ARTÍSTICAS
ARTE RELACIONAL
EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
Nas cidades urbanas, principalmente as metró-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
poles, o modo de vida contemporâneo suscita
diversas discussões nos mais diversos campos de
estudo quanto à forma em que são estabelecidas
sessão temática
as relações entre os sujeitos, a cidade e a vida
cotidiana. Cada vez mais há um olhar transdis-

ARTE RELACIONAL: ESPAÇO ciplinar para refletir sobre a cidade, não apenas
sobre seu corpo físico, quanto à sua materialidade,
PÚBLICO, PARTICIPAÇÃO E arquitetura, mobiliários, mas também sobre seu
corpo-organismo, um funcionamento orgânico,
AFETIVIDADE em que os sistemas e partes estão profundamente
conectados.

RELATIONAL ART: PUBLIC SPACE, PARTICIPATION AND A manifestação da condição efêmera nas cida-
AFFECTIVITY des contemporâneas é fator fundamental para
entender as relações urbanas e a importância
ARTE RELACIONAL: ESPACIO PÚBLICO, PARTICIPACIÓN dos fluxos materiais e imateriais na organização
Y AFECTIVIDAD da cidade. O espaço deixa de ser um produto final
ou reflexo de uma cultura e passa a ser entendido
como processo, atividade em constante exercício
e transformação. Aqui, cabe um paralelo com a
arte contemporânea, em que o artista deixa de
produzir novas obras/objetos e passa a centrar
sua ação no próprio processo de experiência e
construção, atribuindo novos usos e significados
às pré-existências. Conforme nos diz Canclini
(2012, p. 24), 

refiro-me ao processo nas últimas décadas


no qual aumentam os deslocamentos das
práticas artísticas baseadas em objetos a
práticas baseadas em contextos até chegar
a inserir as obras no meio de comunicação,
espaços urbanos, redes digitais e formas de
participação social onde parece diluir-se a
diferença estética. (grifo do autor)

Desta forma, a cidade contemporânea, assim


como a prática artística, é contrária às marcas
das estruturas da antiga modernidade, como a
solidez e a continuidade. Como descreve Bauman:
“a ‘sociedade’ é cada vez mais vista e tratada como
uma ‘rede’ em vez de uma ‘estrutura’ (para não falar
em uma ‘totalidade sólida’)” (2007, p. 09), vivemos
em tempos líquidos, que constituem aglomerados
líquidos, reservando a ideia de fluidez, desconti-
nuidade e fragmentação.
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
Essa condição efêmera, segundo Fontes (2013),
1102 implicará em dois aspectos presentes na dinâmica
urbana atual: a aceleração da vida contemporânea atual debate, portanto, como ferramentas
e as novas formas de engajamento dos indivíduos de potencialização, revelando novas possi-
na cidade. Trazendo também os estudos de Ar- bilidades dos espaços. Atuam na forma de
mando Silva (2014), vemos que essas mudanças auto-observadores da sociedade, uma vez
criam novos imaginários urbanos, isto é, imagens que, por estarem à margem do planejamen-
públicas que as pessoas fazem da cidade. Assim, to das cidades, ocupam ou se apropriam de
a relação estética entre cidadãos e cidade é mar- áreas vazias. Logo, observam as relações
cada por urna memória individual e pública que sociais e exploram nichos, apresentando-
leva à ação. -se muitas vezes como alternativas, como
É nessa teia urbana que os artistas que criam a potência e como forma de movimento para
partir e para o espaço público se inserem. Cada a revitalização das áreas residuais e dos
vez mais, na arte contemporânea, se apagam espaços ociosos da cidade, movimento
as fronteiras entre as linguagens artísticas e inclusive com potencial elástico, que per-
mesclam-se os campos de conhecimento. A in- mite o contínuo fazer e desfazer. (FONTES,
tervenção artística urbana surge como uma ma- 2013, p. 34)
neira de trazer à tona aspectos e questionamentos
referentes ao modo como sujeito, arte e ambiente Entendendo que os espaços que são apropriados
urbano se relacionam, utilizando, para tanto, as se constroem a partir de contextos e relações1,
mais diversas linguagens e técnicas. as intervenções vêm mostrar uma cidade que
se forma muito mais por meio das experiências
A palavra intervenção vem do latim interevenire, vividas do que por um espaço construído, um
significando, literalmente, “vir entre”. Levando desenho formal. Desta maneira, as intervenções,
sua etimologia em consideração, podemos dizer além de proporcionarem espaços e relações afe-
que intervenções são formas artísticas de estar tivas, também são uma forma de resistência à
entre – entre o cidadão e a cidade, entre o artista normatização do comportamento das pessoas
e a cidade, entre o artista e o espectador. A inter- no ambiente urbano, possibilitando a reflexão,
venção estaria, assim, em uma área fronteiriça uma tomada de consciência e de atitude por parte
entre as linguagens artísticas e entre os campos
do público. 
de saberes.
As práticas artísticas podem criar situações iné-
Ao estar entre, a intervenção artística acontece
ditas de visibilidade, apontar ausências notáveis
em um intervalo temporal e espacial que separa e
ou resistências à exclusão do domínio público e
ao mesmo tempo media a relação entre o espaço
desestabilizar expectativas e criar novas convi-
ordinário e sua possível ressignificação, entre o
tempo da cidade e o tempo suspenso da obra. vências. Sua potência, que leva as transformações
para além do temporário, está em desregular
As três obras aqui analisadas, duas do Coletivo PI valores cristalizados e abrir novas extensões do
e uma do Coletivo Transe se inserem nessa fron- espaço vivido. (PALLAMIN, 2002, p. 108)
teira de linguagens e enquadram-se no que Fontes
(2013) chama de intervenções temporárias, pois
são ações de pequena escala, pensadas para lu-
gares específicos. Além disso, carregam consigo
um jogo participativo/relacional, potencializando
novas percepções e relações entre as pessoas
1. “O espaço deve ser considerado como uma totalidade,
e o lugar, bem como ativando outros vínculos. a exemplo da própria sociedade que lhe dá vida (...) o es-
Ainda que sejam efêmeras, no sentido de uma paço deve ser considerado como um conjunto de funções
permanência no tempo, elas causam um efeito e formas que se apresentam por processos do passado e
de contaminação, deixando rastros de outras do presente (...) o espaço se define como um conjunto de
formas de convívio e atuação na esfera pública. formas representativas de relações sociais do passado e
Assim, segundo Fontes:  do presente e por uma estrutura representada por relações
sociais que se manifestam através de processos e funções”
Usos e ocupações temporárias são vistos no (SANTOS, 1978, p. 122).
EIXO TEMÁTICO 2 Arte relacional: desdobramentos
contemporâneos
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
A arte contemporânea traz profundas mudanças
de pensamentos sobre o próprio fazer artístico, a
figura do artista e a relação da arte com a socie-
dade. Há um constante movimento que quebra a
funcionalidade habitual dos espaços, dos saberes
e das produções. Uma das marcas da contem-
poraneidade é recozer da relação artista/obra
espectador/sociedade. Em O processo criativo,
de 1954, Marcel Duchamp discorre sobre as “ten-
sões” entre o artista e o público. Ele foi um dos
responsáveis por expandir as reflexões sobre arte
e cotidiano, aproximados não enquanto campo de
representação, mas enquanto elementos inte-
grados e que se expandem um por meio do outro.

Tendo este viés de diálogo para possíveis trans-


formações, destaca-se o happening, surgido
no começo dos anos 1960, como um desafio à
pintura e a outras obras artísticas apenas con-
templativas, proporcionando acontecimentos
com participação direta ou indireta do público.
Comumente realizados no espaço cotidiano da
vida, extrapolando os lugares institucionalizados
da arte, é através destas movimentações artísti-
cas, que permeiam a arte/vida, que se inicia um
diálogo sobre acessibilidade e abrangência da
arte para classes sociais que até então não se
sentiam pertencentes a instituições artísticas.
Para o compositor John Cage, os happenings
eram “eventos teatrais espontâneos e sem tra-
ma” (Cage apud COHEN, 2007, p. 38). Tal termo foi
empregado, pela primeira vez, pelo artista Allan
Kaprow (Kaprow apud COHEN, 2007, p. 38), em
1959, como um evento artístico que acontecia
em ambientes diversos, geralmente fora de mu-
seus e galerias, nunca preparado previamente
para esse fim. Artistas como Jim Dine e Kaprow
programavam happenings com o intuito de “tirar
a arte das telas e trazê-la para a vida”, quebrando
paradigmas estabelecidos no campo da arte e
potencializando movimentos artísticos.

Segundo Joseph Beuys, um dos precursores do


movimento Fluxus2, “todo ser humano é um artis-

16º SHCU
2. Fluxus foi um coletivo e um movimento artístico de cunho
30 anos . Atualização Crítica
libertário, caracterizado pela mescla de diferentes artes,
1104 primordialmente das artes visuais mas também da música
ta, um ser da liberdade, chamado a participar na interações humanas e em contexto social, mais
transformação e reformulação das condições, do que na afirmação de um espaço simbólico
pensamentos e estruturas que moldam e infor- autônomo e privado. “A arte é um estado de en-
mam nossas vidas”. Tais movimentos artísticos, contro” (BOURRIAUD, 2009, p. 17), argumenta o
a exemplo do Fluxus, proporcionaram desdobra- autor, que favorece os intercâmbios humanos e
mentos e o surgimento da performance art, que tem como tema central o “estar-junto” e a elabo-
passa a ser reconhecida como expressão artística ração coletiva do sentido. Bourriaud considera
e uma nova linguagem a partir dos anos 1970. De que, independente da historicidade do fenômeno,
acordo com Renato Cohen “o que caracteriza a “a arte sempre foi relacional em diferentes graus,
passagem do happening para a performance é ou seja, elemento do social e fundadora de diálogo”
o aumento de preparação em detrimento do im- (BOURRIAUD, 2009, p. 14).
proviso e espontaneidade” (2007, p. 27).
A autora Claire Bishop, em sua obra Participatory
A performance é, por natureza, uma arte multi- art (2012), propõe um conceito diferente do ela-
disciplinar, uma arte de fronteira, que também borado em Estética relacional (2009), de Nicolas
pode ser definida como uma arte híbrida, poten- Bourriaud, na medida em que participação do
cializadora de outros movimentos artísticos, já público e colaboração social se efetuam de modo
que, de acordo com Glusberg, “futuristas e da- mais direto. Bishop propõe reflexões sobre arte
daístas utilizavam a performance como um meio contemporânea “politicamente engajada”, com
de provocação e desafio na sua ruidosa batalha atenção especial para as atividades artísticas que
para romper com a arte tradicional e impor novas se baseiam em colaborações com comunidades
formas de arte” (2013, p. 12). A proposta destes e indivíduos específicos, procurando abordar
movimentos era a aproximação do público, per- os inúmeros desafios que tal trabalho propõe à
meando as barreiras entre arte e vida e buscando história da arte e à crítica de arte. Isso porque,
que os artistas se envolvessem como mediadores desde os anos 1990, a intensificação de práticas
culturais de um processo social. militantes, relacionais, transdisciplinares e so-
cialmente engajadas têm sido uma das tendên-
Partindo da teoria apresentada pelo crítico-cu- cias mais marcantes na arte. Segundo Bishop,
rador Nicolas Bourriaud em Estética relacional “a arte participativa não é apenas uma atividade
(2009), tenta-se caracterizar a prática artística social, mas também simbólica, tanto inserida no
dos anos 1990 com base nos trabalhos de vários mundo quanto ao mesmo tempo afastada dele.
artistas que trazem esse viés estético experien- A arte participativa exige que nós encontremos
cial. Segundo sua análise, as obras artísticas pro- novas formas de analisar a arte que não estão
duzidas nesta época teriam o intuito de contribuir mais ligadas apenas à visualidade, embora a forma
para o nascimento e o fortalecimento de uma nova permaneça como um receptáculo crucial para
sociedade ao criar dispositivos de experiência comunicar significados” (2012, p. 07). Precisamos
artística social que possibilitam novas formas nos atentar a quais movimentos políticos as mani-
de convivência, mesmo dentro do contexto dos festações artísticas estão atreladas, assumindo
museus e das galerias. São propostas artísticas a responsabilidade social e genuína da proposta
que possibilitam transitar por outros espaços, desenvolvida, seus objetivos e cuidados no en-
outras percepções e vivências, promovendo en- contro relacional.
contros intersubjetivos, cujos significados são
construídos coletivamente e não só num âmbito Helguera afirma ainda que a arte socialmente
individual. O autor defende que a tendência da engajada depende, para sua existência, de rela-
arte contemporânea é trabalhar na esfera das ção, interação e participação social, bem como
da intersecção de assuntos de outras disciplinas.
Em outras palavras, para além de uma abordagem
e literatura. Teve seu momento mais ativo entre a década
de 1960 e década de 1970, se declarando contra o objeto
de questões sobre estética na arte, o autor inclui
artístico tradicional como mercadoria e se proclamou como em seus processos, questões políticas como a
a antiarte. Dentre seus principais artistas estão John Cage, educação, o gênero, a sustentabilidade, a imigra-
Jackson Mac Low, Joseph Beuys, Dick Higgins, Gustav ção, a gentrificação, a habitação, as fronteiras,
Metzger, Nam June Paik, Wolf Vostell e Yoko Ono. as guerras e o colonialismo. 
EIXO TEMÁTICO 2 Muitos artistas que realizam projetos de
arte socialmente engajada estão interes-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS sados em criar uma arte coletiva que afe-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES te a esfera pública de forma profunda e
carregada de sentido, e não em criar uma
representação como faria uma peça de te-
atro sobre questões sociais. (HELGUERA,
2011, p.7)

Com base nas ideias de Bishop e Helguera, que


problematizam o conceito de arte relacional tra-
zida por Bourriaud, ficam as seguintes questões
sobre as criações artísticas relacionais na cena
contemporânea que aqui são analisadas: como
criar ações artísticas participativas propondo
um convite ao espectador/participante? Como o
artista cria ações participativas que partam das
relações entre corpo do artista e corpo da cidade?
Como criar propostas estéticas que produzam
formas artísticas de resistência num âmbito social
engajado nas cidades? 

ACEITA 

Aqui se analisa a performance relacional/inter-


venção urbana Aceita, do coletivo Transe, da ci-
dade de São Paulo, formado por Marcelo Prudente
e Pedro Orlando. A ação artística, realizada em
diversas cidades brasileiras desde 2015, traz uma
caminhada nupcial de um casal gay. Marcelo usa
um vestido de noiva feito de camadas de um de-
licado papel, construído por seu companheiro,
que ao finalizá-lo nas ruas no corpo do perfor-
mer, entrega para ele um buquê com canetas
pretas, escrevendo em seguida no vestido a per-
gunta: “Aceita?”. Então, ambos seguem um longo
trajeto pelas ruas e o espectador/transeunte é
interpelado e fica livre para compor o vestido
com palavras, frases e desenhos.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1106
(2002), “há os que pensam o conceito de territó-
rio não apenas na sua dimensão física e política,
mas também simbólica e afetiva, interligando a
multiplicidade de significados que operam em
conjunto, articulando estratégias que compõem
as dinâmicas do cotidiano”. É justamente essa di-
mensão simbólica da experiência vivida no espaço
público com a ação relacional que se pretende
atingir. Durante essa trajetória de marcha nupcial,
o casal de performers para em frente às igrejas
católicas em analogia as fotografias dos álbuns
de casamento, prática comum do cristianismo,
Figura 1: Aceita. Coletivo Transe, 2016. Mostra Sesc Rio apenas permitida aos casais heteronormativos.
das Artes, Piracicaba/SP. Foto: Rodrigo Dionísio. Fonte:
acervo do grupo.

A rua é um espaço de justaposição de usos, uma


trama urbana em que a vida coletiva se corporifica
e acontece, revelando e refletindo os pensamen-
tos, comportamentos, normatizações e desejos
de uma sociedade. A intervenção artística é algo
que não só desloca o olhar do transeunte, mas
que também compõe - em sua operação poética
- com o corpo coletivo das ruas, saindo da ideia
de cidade como apenas uma cenografia, espa-
ço em si. Assim, a rua é transformada por meio
Figura 2: Aceita. Coletivo Transe, 2016. Mostra Sesc Rio
desses corpos artísticos gays que se deslocam, das Artes, Piracicaba/SP. Foto: Rodrigo Dionisio. Fonte:
instaurando um momento de ruptura, um esta- acervo do grupo.
do de relação-reflexão com os transeuntes que
atravessa todo o universo simbólico e represen-
tativo sobre a vida pública, as cidades e a maneira
como estas se inscrevem nos corpos gays e são A obra se insere dentro da noção de práticas do
escritas por eles. dissenso, de Rancière (2005), sendo uma ação de
micro resistência, de natureza crítica e sensível,
Um vestido feito de papel vegetal é construído no que questiona padrões e condutas coletivas.
corpo do performer 1 pelo performer 2, em uma
praça, local de descanso, lazer ou mera passa- A dimensão política dos coletivos, se-
gem. A relação com o espectador inicia-se nesta gundo Jacques Rancière, consistiria em
montagem, intervindo diretamente no fluxo das evidenciar “simples práticas” – “modos de
pessoas que frequentam aquele espaço diaria- discursos”, “formas de vida” que operariam
mente ou que ali estão ocasionalmente.. Assim como forma de resistência à sociedade do
que o vestido é finalizado no corpo do performer espetáculo. (Rancière, 2004). Ao “artista
1, o performer 2 lhe entrega um buquê com cane- relacional” caberia apenas criar as con-
tas pretas, escrevendo, em seguida, no vestido a dições de possibilidade para que “experi-
pergunta: Aceita? Neste momento, começa uma ências comunitárias” se exteriorizassem.
marcha nupcial pelo espaço público promovendo Esse artista “desenharia esteticamente”
encontros com as pessoas que por ali estão de as “figuras de comunidade”, ou antes, fa-
passagem, ofertando o buquê, através do convite voreceria sua evidenciação (ou “valor de
e da pergunta: Aceita? O espectador é livre para exibição”), recompondo deste modo a “pai-
compor o vestido com palavras, frases, dese- sagem do visível”: a relação entre o “fazer”,
nhos, o que quiser. Segundo Rogério Haesbaert “ser”, “ver”, “dizer”. (Rancière, 2005). E nessa
EIXO TEMÁTICO 2 “mostração de signos” (de um “lugar”, de um
“grupo”) teríamos, ainda segundo Rancière,
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS não a simples “ficcionalização do real”, mas
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES como em certas obras literárias um emba-
ralhamento dos modos de enunciação. Os
coletivos seriam “práticas artístico-sociais”
que encontrariam seu “conteúdo de verda-
de”, - na mescla entre a “razão dos fatos” e
a “razão da ficção”. (id.). Nessas práticas
Rancière vê, portanto, uma tentativa de
reconstituir o sentido perdido de um mundo
comum, reparando as falhas dos vínculos
societários. (FABBRINI, 2013, p.174) 

O gesto político, pedagógico, artístico e estético


da ação Aceita está colocado no diálogo direto
entre o espectador participante e a obra em si,
seja compondo ou observando a imagem e abrindo
caminhos para uma reflexão crítica social, em
relação a questões de gênero e direitos humanos.
Neste contexto, fazendo uma analogia ao início de
uma ruptura no final da década de 50, destaca-se
o artista Flávio de Carvalho, o qual tinha como
marca constante em suas criações as intersec-
ções entre arte e vida. Durante oito meses, de
março a outubro de 1956, ele usou sua coluna no
Diário de São Paulo para discutir questões rela-
tivas à moda e gênero - mesmo que, talvez, este
último não fosse seu intuito, Flávio começava ali a
trazer um posicionamento e reflexão sobre estas
questões. Como coroamento desse processo, no
dia 18 de outubro do mesmo ano, ele sai às ruas de
São Paulo em passeata-desfile, vestindo seu traje
irreverente chamado New Look, cujo escândalo
concentrava-se no uso de saias como parte do
vestuário masculino.

Segundo Flávio de Carvalho, relatado em Osório


(2009), “antes da moda ser moda, ela é um trajo
em trânsito. O que pretendo sugerir é que o trajo,
antes de ser moda, pode ser mutação, ou trajo
em trânsito”. Enquanto moda em trânsito, a obra
New Look é experimentação, ou melhor, usando
seus termos, uma experiência. Mais do que isso,
ela revela a vontade de pensar o Brasil, e, acima
de tudo, fazer o Brasil pensar sobre si mesmo e
isso só pode ser dar na via pública, no espaço
que pulsa a vida coletiva. Dentro desse viés da
experiência, citado por Flávio, Aceita, propõe
16º SHCU ao público uma participação experiencial direta
30 anos . Atualização Crítica
para compor esse vestido e corpo gay por meio
1108 do afeto, que está em constante mutação. Este
vestido de noiva também se constitui como um losa, a performer não chama a atenção do
trajo em trânsito, nos fazendo refletir sobre nós transeunte. É justamente seu silêncio que
mesmos, sobre nossa nação e sobre os discursos aproxima. Por outro lado, ao invés de per-
de ódio e opressão - reflexões ainda latentes, guntar sobre grandes acontecimentos ali
necessárias de serem discutidas, na arte, na vida ocorridos, instiga o morador do bairro a
e dentro da contemporaneidade. aproximar-se de suas memórias pessoais
sobre aquele lugar. (ANDRÉ, 2011, p. 12)

Após a passagem por oito bairros no ano de 2011,


Na Casa de Paulo as narrativas se transformaram em uma espé-
cie de diário do local, relevando as lembranças
Analisa-se agora a ação Na Casa de Paulo, do Co- e desejos dos seus moradores e trabalhadores.
letivo PI, que percorreu oito bairros de diferentes Então, em 2012, fomentado pelo Prêmio Funarte
regiões da cidade de São Paulo, em 2012, levando Artes na Rua, o Coletivo PI retornou a cada local,
uma casa a céu aberto para o espaço público. A instalando uma casa que, em seus detalhes, como
ação surgiu após as artistas realizarem, no ano travesseiro, porta-retratos etc., contava as me-
anterior, a intervenção Narrativas de São Paulo, mórias do bairro. As artistas ali permaneciam,
durante a qual passavam uma tarde em um bairro “habitando” a casa durante o dia todo, recebendo
ouvindo histórias das pessoas que paravam suas os visitantes e acolhendo novas memórias que ali
rotinas para sentar em um banco vazio, uma es- iam sendo compartilhadas. 
pécie de sala de estar no meio da rua, comparti-
lhando suas memórias com uma moça na poltrona
e seu livro com páginas em branco. 

Figura 5: Na Casa de Santana. Coletivo PI, 2012. Santana


– São Paulo/SP. Foto: Eduardo Bernardino. Fonte: acervo
do grupo.

Figura 3: Narrativas de Miguel. Coletivo PI, 2011. São Miguel


Paulista, São Paulo/SP. Fonte: acervo do grupo. Para esta intervenção, o grupo escolhe contrapor
o espaço íntimo (casa) com o espaço público (rua)
como a primeira forma de aproximação. Essa
aproximação por meio da arte e do próprio es-
Aqui, explicitamente, as artistas instalam
paço da cidade potencializa a rua como espaço
um espaço privado – a sala – em um espa- do encontro, do diálogo, do aprendizado e não
ço público para trocar memórias que são apenas um local de passagem, terra de ninguém. 
registradas para a escritura de livros de
cada bairro. Dois fatores chamam a mi- As pessoas que param sua rotina para con-
nha atenção nessa ação: o modo como se versar, contar suas histórias e percepções
aproximam do morador do bairro e ideia do bairro em que vivem, onde nasceram
de história como memórias de cidadãos ou trabalham, contribuem de maneira sin-
comuns. A aproximação não é espetacu- gular para a memória não só de um local,
EIXO TEMÁTICO 2 mas para a invenção de uma nova relação,
percepção entre rua, artista e o cotidiano.
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS Além disso, durante certo tempo as pessoas
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES que se sentam na cadeira vazia se tornam
ali escritores, poetas, historiadores, trans-
formando as palavras em imagem e poesia.
(COLETIVO PI) 

Um dos bairros do projeto foi Santa Cecília e, em


2011, a intervenção para coletar as histórias foi
feita no Largo da Santa Cecília, na saída do metrô,
onde há uma igreja. Ali, a artista Natalia Vianna
ouvia as memórias e desejos dos moradores que,
por sua vez, chamavam outros moradores - como
o rapaz do comércio que trouxe a senhora que
limpava a igreja e residia na região há mais de
trinta anos. Há aqui um potencial aproximativo, o
aconchego daquele “pequeno cenário”, recorte da
intimidade de uma casa rompe com a paisagem
urbana local, causando curiosidade, vontade de
saber o motivo daquela existência ali. 

Estamos ligados a este lugar pelas lembran-


ças [...]. É pessoal, isto não interessaria a
ninguém, mas enfim é isso que faz o espírito
do bairro. Só há lugar quando frequentado
por espíritos múltiplos, ali escondidos em
silêncio, e que se pode ‘evocar’ ou não. Só
se pode morar num lugar assim povoado
de lembranças. (CERTEAU, 1994, p. 189). 

A intervenção centra sua preocupação na relação


afetiva entre as pessoas e o lugar que habitam.
Não se trata da história oficial, daquilo que as
estatísticas e livros contam, e sim de narrativas
singulares de cada um que se senta naquele banco
vazio. A ação subverte a ideia da rua como local de
passagem e, por meio do estranhamento, convida
as pessoas a se relacionarem, se olharem.

Se a rua permanece como um campo de


guerra, é transformada em gênero mascu-
lino patriarcal e o que temos é a violência, a
segregação, as fronteiras. Porém, quando
a rua é tornada um espaço de intimidade,
transformada em gênero feminino, a violên-
cia é desmontada; busca-se a aproximação
com a vida nua, apagam-se fronteiras. (AN-
DRÉ, 2011, p. 06)

16º SHCU Em 2012, durante a intervenção Na Casa de Cecí-


30 anos . Atualização Crítica
lia, instalada na Praça Marechal Deodoro, muitos
1110 encontros inusitados ocorreram. A praça serve
de moradia para pessoas em situação de rua, que que não significa uma relação homogênea, mas
gentilmente ofereceram apoio para as artistas a experiência radical do convívio com o “outro”,
construírem a instalação, e possui um banco de um campo aberto às descobertas e também aos
areia com brinquedos frequentemente utiliza- conflitos. O exercício de alteridade não exclui as
dos pelas crianças da região - ou seja, um local diferenças, há um jogo de poder. Aproximando-se
movimentado, onde muitos curiosos paravam do conceito de hospitalidade incondicional de Ja-
para conhecer a casa. A ação, neste caso, borra cques Derrida (2003), o convívio com o estranho/
as fronteiras devido ao seu potencial aproxima- estrangeiro é sempre uma linha tensionada, pois
tivo, que permite o encontro entre sujeitos de é marcada pelo medo do desconhecido.
realidades tão distintas. A casa quebra com a
invisibilidade dos moradores de rua, pois dentro Para Derrida, a hospitalidade incondicional é uma
dela (da casa sem paredes) todos são bem-vindos, alteridade máxima, sempre um devir. Trata-se do
falam da mesma posição. encontro com o outro além de um ideal regulador,
ou seja, além das convenções sociais e das leis
A intervenção Na Casa de Paulo também resguar-
que governam a vida pública.
da um traçado nômade, já que percorre bairros
da cidade, instalando a moradia a céu aberto e A lei da hospitalidade incondicional, a lei
remetendo às figuras desviantes que habitam formal que governa o conceito geral de hos-
as cidades. O estar na rua, expondo-se aos seus pitalidade, aparece como uma lei paradoxal,
perigos e encantos, propões cavar possibilidades pervertível e perversora. Ela parece ditar
outras que não são as dos espaços lisos, com suas que a hospitalidade absoluta rompe com a
fronteiras e caminhos esquadrinhados.  lei da hospitalidade como direito ou dever,
Ao se negar habitar um lugar fechado (gale- com o “pacto” da hospitalidade. Para dizer
rias, teatros, casas de show, espaços alter- noutros termos, a hospitalidade absoluta
nativos fechados), a artista da rua torna-se exige que eu abra a minha casa (chez-moi)
uma despossuída e, com isso, afirma um (...) e que lhe dê lugar, que o deixe vir, que o
modo de vida nômade. A nômade passa deixe chegar, e ter lugar no que lhe ofereço,
a não mais reconhecer, como valor ético, sem lhe pedir reciprocidade (a entrada num
noções tais como: nacionalidade, origem pacto) e sem mesmo lhe perguntar o nome.
étnica, sexo, periculosidade, propriedade (DERRIDA, 2003, p. 40)
privada, paternidade. A mulher nômade –
símbolo raro na História das culturas – é Derrida defende a possibilidade de um acolhimen-
aquela que se lança a experiências afetivas to incondicional ao “outro”. No entanto, a potência
fora das identidades sexistas, fora dos lu- do acolhimento absoluto e sua própria impossibi-
gares instituídos para as artes, fora da sub- lidade (já que o sujeito sempre reserva algo que
jetividade feminina ligada à maternidade é de seu domínio) gera um constante movimento
dentro de casamentos contratuais, enfim, de reinvenção da relação com o outro e da pró-
fora do modelo burguês de vida feminina. O pria dinâmica com o mundo. Isto é, a constante
símbolo de maior senso comum da mulher produção de novas subjetividades, o sujeito não
nômade é o da cigana. (ANDRÉ, 2011, p. 07) é mais o mesmo após o encontro com o “outro”,
ele é retirado de seu local de conforto e certezas.
A ação também tange a questão da alteridade,
já que o exercício de conviver com o “estranho”, É neste devir que intervenções como Na Casa de
o “outro”, o “diferente” só é possível na vida pú- Paulo possibilitam a criação de novas narrativas
blica, nas áreas comuns, onde cada um sai de pessoais e coletivas, novas relações com o “outro”
sua bolha privada e parte para dinâmica da vida em um lugar que é ao mesmo tempo conhecido
coletiva - neste sentido, o enfraquecimento da e desconhecido, um lugar vivo e, portanto, em
vida nas áreas públicas afrouxa a capacidade da constante transformação, que é a cidade.
dimensão relacional dentro das práticas sociais.

Assim, intervenção artística torna-se um instru-


mento da experiência de alteridade na cidade, o
EIXO TEMÁTICO 2 O retrato mais que óbvio daquilo que
não vemos
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
A terceira intervenção estudada é O retrato mais
que óbvio daquilo que não vemos (2014-2015), um
experimento urbano itinerante do Coletivo PI que
mesclava a teatralidade e a representação com a
performance e a intervenção urbana. Realizado
em site specific, a cidade surge como protagonista
da obra, que discute especulação imobiliária e as
relações que se estabelecem no/com o espaço
urbano.

Uma espécie de espetáculo itinerante, o expe-


rimento teve duas versões: a primeira (por ora
analisada) em 2014, percorrendo as proximidades
da Associação Casa das Caldeiras na Avenida
Francisco Matarazzo, zona oeste da cidade de
São Paulo; enquanto a segunda foi realizada em
2015, nas ruas do baixo centro da capital.

O projeto partia do contexto do bairro para discutir


o conceito de “vida em segurança” nas metrópoles,
tão presente nos apelos midiáticos, a partir dos
estudos de Michel Foucault sobre biopolítica. O
experimento transformava a realidade apresen-
tada em ficção, propondo ao público (um grupo de
20 pessoas) uma itinerância pelas ruas do bairro
que eram ressignificados com imagens, cenas e
instalações. 

Figura 5: O retrato mais que óbvio daquilo que não vemos.


Coletivo PI, São Paulo/SP, 2014. Foto: Eduardo Bernardino.
Fonte: acervo do Coletivo PI

16º SHCU A obra acontece na proposição de um jogo – entre


30 anos . Atualização Crítica artistas, espectadores e espaço público (onde
1112 também acontece o jogo) – sujeito às possibilida-
des, limitações e imprevisibilidades que a cidade constituição de uma sociedade humana, o jogo
pode impor. O Retrato propõe uma brincadeira na (ou a brincadeira) precede uma organização so-
cidade e com ela, transformando-a, ou melhor, cial, ja ́ que mesmo os animais brincam entre si
revelando-a como um espaço lúdico, onde é pos- independentemente da ação humana (2019, n.p.).
sível brincar e construir espaços amáveis, que se
contrapõem à lógica consumista e individualista Aparentemente, todos os empreendimen-
do mercado. tos humanos são construídos e marcados
pelo jogo, por certo regramento consentido
Na gênese do experimento, tudo começa com o socialmente e, sobretudo, pelo impulso de
público sendo recepcionado por supostos correto- competição. O homem, no contexto social,
res de imóveis, que tratam a todos como compra- é um ser que brinca, e o elemento lúdico
dores em potencial e iniciam um tour pela região, estimula o imaginário, transferindo os joga-
apresentando um novo conceito em moradia – um dores para um espaço de tempo prazeroso
Complexo Imobiliário ousado e inovador. Diante e diferente da vida cotidiana. (LEÃO, 2011,
desse jogo de cena, o público percorre as ruas p. 109)
da região e se depara com instalações, vídeos
e células dramáticas que abordam as questões Huizinga estuda o jogo como um fenômeno cul-
levantadas sobre o projeto de vida em segurança tural, defendendo que “é no jogo e pelo jogo que
e as relações que se estabelecem entre o sujeito a civilização surge e se desenvolve” (2019, n.p.).
e o espaço urbano. Enquanto parte da cultura, o jogo é principal-
mente associado ao ritual e ao sagrado, sendo
Esse faz-de-conta, incorpora, gradativamente, que muitas brincadeiras populares derivam de
os elementos da cidade, assim como as demais antigos rituais sagrados da mesma forma que
pessoas encontradas pelo caminho, como parte os rituais organizam-se na forma de um jogo. O
da história que está sendo construída no jogo. filósofo alemão Hans-Georg Gadamer, por sua
Desta forma, as obras em andamento na rua, as vez, pensa o jogo em sua relação com a arte, não
arquiteturas remanescentes e os próprios traba- como o “comportamento ou estado de ânimo do
lhadores destes locais (seguranças, funcionários sujeito ou a própria liberdade subjetiva atuante
de estabelecimentos comerciais etc.), ao se in- no jogo”, mas compreendendo-o como “o próprio
tegrarem à história e completarem a narrativa modo de ser da obra de arte” (Gadamer, 1998 apud
iniciada pelos corretores, passam a ser, também, LEÃO, 2011, p. 110). Assim, pode-se pensar o jogo
jogadores.
... como tendência inata do homem à arte,
Este jogo propunha, por meio do discurso dos como automovimento que não tem uma
corretores, um percurso simbólico do cotidia- finalidade ou uma meta, sendo apenas o
no até o absurdo: desde seguranças 24h até a próprio movimento enquanto movimento
construção de praias e montanhas artificiais, de vai-e-vem. Se, para Gadamer, “a arte
uma cidade imaginária era criada. O medo da rua, deixa para aquele que a recebe um espaço
do deslocar-se pelo espaço público, colocava o de jogo a ser preenchido” (GADAMER, 1991,
empreendimento descrito pelos corretores como p. 73- 74), também a arte enquanto jogo
a cidade dos sonhos, longe dos perigos da cidade encara o exemplo humano mais puro de au-
real. Os elementos absurdos do discurso eram tonomia do movimento, pois a obra de arte
uma forma de explicitar a critica à uma constru- constrói-se e se reconstrói no processo
ção panóptica da cidade, assim como chamar a de contínua recepção, na contínua transi-
atenção para a banalização do espaço público. ção tanto para os criadores quanto para os
Além disso, o tom cômico do discurso absurdo observadores, sempre imersos nos planos
acabava fazendo com que os espectadores se presente/passado. (LEÃO, 2011, p. 110-111)
sentissem mais à vontade para interagir durante
o espetáculo. É compreendendo o jogo como um “modo de ser
da obra arte” e, portanto, um “fenômeno cultural”
Como afirma Johan Huizinga (2019), o jogo é uma (HUIZINGA, 2019, n.p.), que podemos pensar o
ação (não apenas) humana que antecede a pró- jogo proposto pelas pelo Retrato. A obra so ́ se
pria cultura. Enquanto esta última pressupõe a constitui, assim como nos disse Duchamp, na
EIXO TEMÁTICO 2 relação com o Outro, quando este assume o risco
de jogar, de “assistir a uma encenação ritualística
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS ou teatral” e “torna-se, consequentemente, um
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES jogador ou um espectador” (LEÃO, 2011, p. 111). 

Figura 6: O retrato mais que óbvio daquilo que não vemos.


Coletivo PI, São Paulo/SP, 2014. Foto: Eduardo Bernardino.
Acervo do Coletivo PI.

O Retrato pode ser pensado também como um


jogo entre paradas e deslocamentos. Um cami-
nhar que se associa a um parar, uma pausa no
modo automático de vivenciar o cotidiano da cida-
de, que se inscreve em nossos corpos ao mesmo
tempo em que é escrito por eles.

Frutos das diferentes formas de inscrição da ci-


dade em nossos corpos, as práticas intervencio-
nistas como o Retrato podem, portanto, propor-
cionar a construção de um saber relacional, que
se faz no ato da experiência e que não pode ser
dissociado da memória pessoal e da afetividade
– tanto para o artista como para o público. Nas
ações do espetáculo analisado, percebemos que
o processo relacional torna-se parte constituinte
da própria obra, que passa a contar com a incer-
teza de imprevistos e reações, com o inesperado
e com a efemeridade como elementos essenciais
deste fazer artístico. Nossa participação como
artistas intervencionistas não é mais entendida
como elemento transformador, ressignificador
ou algo do tipo. Nossa prática artística (criação,
processo, execução etc.) foi pensada na relação
com o Outro – seja o Outro-habitante ou o Outro-
-cidade. Este último ultrapassa-nos e obriga-nos
a pensar a atividade artística nesta relação de-
16º SHCU sigual, meio quixotesca, sem esquecer que este
30 anos . Atualização Crítica
Outro-cidade é, paradoxalmente, uma criação
1114 nossa que também nos define.
CONSIDERAÇÕES FINAIS REFERÊNCIAS

Nesta unidade simbólica que é a cidade - uma ima- ANDRÉ, C. M. “Arte, Biopolítica e Resistência”.
gem mental irrigada e que permite uma formação Revista Brasileira de Estudos da Presença. Porto
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nova urbe é um ativador de relações que provoca 2020. DOI: https://doi.org/10.1590/2237-266021497
ecos, que dilata a experiência da cidade vivida e
assim instaura uma partilha do sensível.  BAUMAN, Zygmunt. Tempos Líquidos. Rio de Janei-
ro: Jorge Zahar, 2007.
A maneira como nosso corpo habita e usa a cidade
e, consequentemente, a arte produzida por/com BISHOP, Claire. Participatory Art and the Politics
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Para Jacques Rancière, arte e política compar-
BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. São
tilham uma gênese estética, já que ambas inter-
Paulo: Martins Fontes, 2009.
ferem na partilha que fazemos do nosso mundo
sensível. O filósofo denomina partilha do sensível  CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas: es-
tratégias para entrar e sair da modernidade. São
(...) o sistema de evidências sensíveis que
Paulo: EDUSP, 1997.
revela, ao mesmo tempo, a existência
comum e dos recortes que nele definem ______. A Sociedade sem Relato: antropologia e
lugares e partes respectivas. Uma parti- estética da iminência. São Paulo: EDUSP, 2012. 
lha do sensível fixa, portanto, ao mesmo
tempo, um comum compartilhado e par- CERTEAU, Michel de. Caminhadas pela cidade:
tes exclusivas. Essa repartição das partes Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994. 
e dos lugares se funde numa partilha de
espaços, tempos e tipos de atividade que COHEN, Renato. Performance como linguagem.
determina propriamente a maneira como São Paulo: Perspectiva, 2007.
um comum se presta à participação e como
uns e outros tomam parte nessa partilha. COLETIVO PI. Narrativas de São Paulo: cidade,
(RANCIÈRE, 2005, p. 15) memória e poesia. Blog do grupo. Disponível em:
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Então, as obras de arte relacionais aqui analisadas -sao-paulo.html . Acesso em 30 jun. 2020.
são formas de despertar o estado anestesiado e
automatizado dos corpos em uma experiência de DERRIDA, Jacques. Da hospitalidade. São Paulo:
cidade fortemente caracterizada pelo processo Escuta, 2003.
do corpo-mercadoria. As ações artísticas agem
DUCHAMP, Marcel. O Acto Criativo. Tradução de Rui
nessa relação corpo-cidade, provocam atraves-
Cascais Parada. Portugal: Água Forte, 1997.
samentos e rupturas nas cadências cotidianas.
FABBRINI, R.N. “Fim das vanguardas: estetização
As práticas intervencionistas embaralham a or-
da vida e generalização do estético”. Poliética. São
dem vigente e as práticas usuais nas ruas, criando
Paulo, v. 1, n. 1, 2013, pp. 167-183.
rupturas nas lógicas repetitivas e protocolares do
cotidiano e são capazes de ressignificar as rela- FONTES, Adriana Sansão. Intervenções tempo-
ções sensíveis entre sujeito e o espaço público, rárias, marcas permanentes: apropriações, arte
provocando fissuras nos modelos comportamen- e festa na cidade contemporânea. Rio de Janeiro:
tais e proporcionando a construção de um saber Casa da Palavra, 2013.
relacional, que se faz no ato da experiência e que
não pode ser dissociado da memória pessoal e GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. São
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EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES O presente trabalho busca explorar os proces-
sos de formação e de transformação do antigo
bairro do Calçamento de Messejana, localizado
sessão temática em Fortaleza, capital do Ceará. A área, originada
a partir de um histórico eixo de expansão urbana
do núcleo fundacional da cidade em direção aos
EM DIREÇÃO AOS seus arrabaldes, caracteriza-se na atualidade
pela permanência de edifícios históricos rema-
ARRABALDES: A (TRANS) nescentes do antigo casario eclético resultante
da ocupação linear ao longo do caminho de saí-
FORMAÇÃO DE UM ANTIGO da da cidade rumo ao sertão. Atualmente deno-
minada como Avenida Visconde do Rio Branco,
CAMINHO DE EXPANSÃO a porção da cidade em questão conta com uma
expressiva quantidade de exemplares arquite-
URBANA EM FORTALEZA tônicos de interesse cultural, que resistem, ain-
da hoje, apesar da ausência de políticas públi-
cas voltadas à proteção do patrimônio cultural
TOWARDS THE outskirts: THE (TRANS)FORMATION
edificado existente naquele lugar. No momento
OF AN OLD PATH OF URBAN EXPANSION IN FORTALEZA
presente, o casario remanescente mostra-se
como uma resistência local frente à pressão de
HACIA LAS AFUERAS: LA (TRANS)FORMACIÓN DE
uma maior atuação do mercado imobiliário na
UN ANTIGUO CAMINO DE EXPANSIÓN URBANA EN
produção de novas torres de apartamentos, fa-
FORTALEZA
tor que tem estimulado o avanço da demolição e
do abandono de imóveis antigos por meio de um
ALMEIDA, Isabelle de Lima processo especulativo de formação de reservas
fundiárias. Em vista disso, esta pesquisa busca
Graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade
resgatar algumas das características arquite-
de Fortaleza; Pós-Graduanda em Reabilitação Ambiental
Sustentável Arquitetônica e Urbanística pela Universidade tônicas, urbanísticas, administrativas, sociais,
de Brasília culturais e religiosas que historicamente mol-
isabell.almeid@gmail.com daram o espaço urbano fortalezense. Por fim,
propõe-se uma reflexão acerca do atual quadro
VASCONCELOS, Ana Cecilia Serpa Braga da política urbana de conservação do patrimô-
Doutora em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade
nio cultural em meio a um cenário de iminente
Presbiteriana Mackenzie; Professora da Universidade de desaparecimento de uma expressiva quantida-
Fortaleza de de exemplares arquitetônicos de interesse
anaceciliavas@unifor.br cultural na paisagem fortalezense. Como resul-
tado desse processo, estabelece-se um cenário
em que tradições urbanas não possuem lugar.

PATRIMÔNIO CULTURAL URBANO PAISAGEM URBANA


PROCESSO DE EXPANSÃO URBANA

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1118
ABSTRACT RESUMEN

This present work seeks to explore the formation El presente trabajo busca explorar los procesos
and transformation processes of the old nei- de formación y transformación del antiguo barrio
ghborhood of Calçamento de Messejana, located de Calçamento de Messejana, ubicado en Forta-
in Fortaleza, capital of Ceará. The area, origina- leza, capital de Ceará. El área, originada a partir
ted from a historic axis of urban expansion from de un eje histórico de expansión urbana del nú-
the founding nucleus of the city towards its out- cleo fundacional de la ciudad hacia su periferia,
skirts, currently characterizes by the permanen- se caracteriza actualmente por la permanencia
ce of old buildings remnants from the historical de antiguas casas eclécticas remanentes de la
process of urban occupation. Currently known as ocupación lineal a lo largo del camino de conexi-
Avenida Visconde do Rio Branco, the portion of ón entre la capital y el interior. Actualmente co-
the city in question has a significant number of nocida como Avenida Visconde do Rio Branco, la
architectural examples of cultural interest, which porción de la ciudad en cuestión tiene un número
resist, even today, despite the absence of public importante de ejemplos arquitectónicos de inte-
policies towards the protection of the built cultu- rés cultural, que resisten, aún hoy, a pesar de la
ral heritage existing in that place. At the present ausencia de políticas públicas de protección del
time, the remnants historical houses are facing patrimonio cultural construido existente en ese
the pressure of a greater presence of the real lugar. En la actualidad, las viviendas históricas
estate market in the production of new apart- remanentes se establecen como una resistencia
ment towers, which has stimulated the advance local ante la presión de una mayor presencia del
of demolition and abandonment of old properties mercado inmobiliario, que ha estimulado el avan-
through a speculative process aiming the forma- ce de demoliciones y el abandono de antiguas
tion of land reserves. In view of this, this rese- propiedades mediante un proceso especulativo
arch seeks to rescue some of the architectural, de formación de reservas territoriales. Ante esto,
urbanistic, administrative, social, cultural and esta investigación busca rescatar algunas de las
religious characteristics that historically shaped características arquitectónicas, urbanísticas,
the urban space of Fortaleza. Finally, this paper administrativas, sociales, culturales y religiosas
proposes a reflection on the current urban policy que históricamente configuraron el espacio ur-
framework for the conservation of cultural heri- bano en Fortaleza. Finalmente, se propone una
tage amid a scenario of imminent disappearance reflexión sobre la actual política urbana para la
of a significant number of historical architectural conservación del patrimonio cultural en un es-
models in the Fortaleza urban landscape. As a re- cenario de inminente desaparición de un número
sult of this process, a scenario in which urban tra- significativo de muestras arquitectónicas de in-
ditions have no place seems to be about to settle. terés cultural en el paisaje urbano de Fortaleza.
Como resultado de este proceso, se establece un
escenario en el que las tradiciones urbanas no
URBAN CULTURAL HERITAGE URBAN LANDSCAPE tienen lugar.
URBAN EXPANSION PROCESS

PATRIMONIO CULTURAL URBANO PAISAJE URBANO


PROCESO DE EXPANSIÓN URBANA
EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
O presente trabalho busca explorar os processos
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
de formação e de transformação da Avenida Vis-
conde do Rio Branco, localizada no setor centro-
-sudeste de Fortaleza (Mapa 01), capital do Ceará.
sessão temática
Surgida a partir do antigo bairro do Calçamento
de Messejana, a porção da cidade em questão

EM DIREÇÃO AOS conta, ainda hoje, com exemplares arquitetônicos


de interesse cultural remanescentes da segunda

ARRABALDES: A (TRANS) metade do século XIX e do início do século XX.


Durante este período histórico, a Visconde do
FORMAÇÃO DE UM ANTIGO Rio Branco consolidava-se como um caminho de
expansão urbana do núcleo fundacional de For-
CAMINHO DE EXPANSÃO taleza em direção aos seus arrabaldes, atraindo
uma ocupação linear contínua ao longo do ca-
URBANA EM FORTALEZA minho de saída da cidade em direção ao sertão.
Formava-se, assim, o seu casario eclético, cujos
exemplares de arquitetura tanto erudita quanto
TOWARDS THE outskirts: THE (TRANS)FORMATION popular espalhavam-se de um lado e do outro
OF AN OLD PATH OF URBAN EXPANSION IN FORTALEZA dos trilhos da linha de bonde do Calçamento de
Messejana.
HACIA LAS AFUERAS: LA (TRANS)FORMACIÓN DE
UN ANTIGUO CAMINO DE EXPANSIÓN URBANA EN
FORTALEZA

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1120
Figura 1: Localização da Avenida Visconde do Rio Branco na área central de Fortaleza. Fonte: Mapa elaborado pelas
autoras (2019).

Ao incorporar-se como uma diagonal ao traçado Não obstante, durante o século XX — em especial
viário predominantemente ortogonal da área cen- durante a sua fase mais rodoviarista no contexto
tral de Fortaleza, o antigo caminho de expansão local, por volta dos anos 1970 —, a abertura ou o
urbana permitiu o crescimento da cidade em di- alargamento de eixos viários resultou em demo-
lições de pequenos trechos do antigo casario
reção à sua porção sudeste, estruturando, assim,
do Calçamento de Messejana. Já neste século,
a ocupação urbana ao longo de seu eixo. Dessa
os exemplares arquitetônicos de interesse cul-
forma, o acervo arquitetônico antigo da Avenida
tural que resistiram ou foram poupados pelas
Visconde do Rio Branco constitui-se como um mudanças viárias passaram a sofrer, com maior
importante documento histórico de formação e intensidade, as ameaças de descaracterização
expansão da cidade de Fortaleza em direção aos e de demolição decorrentes das dinâmicas de
seus arrabaldes. valorização do solo urbano e de atuação do mer-
EIXO TEMÁTICO 2 cado imobiliário na produção de novos prédios
residenciais verticalizados.
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES À exceção dos tombamentos municipais do Parque
da Liberdade e do antigo Colégio das Doroteias,
o acervo arquitetônico de interesse cultural da
Visconde do Rio Branco não motivou a imple-
mentação de políticas públicas de proteção de
seu patrimônio cultural edificado, seja por meio
do tombamento ou por meio do planejamento
urbano. Atualmente, sua paisagem encontra-se
inserida em meio a um processo dicotômico de
transformação: por um lado, destaca-se a ame-
aça representada pelo avanço da degradação
urbana, com demolição e abandono de imóveis
antigos; por outro, acentua-se uma forte reno-
vação urbana, visto que a Visconde do Rio Branco
encontra-se inserida em áreas de grande atuação
do mercado imobiliário na produção de novos
prédios de apartamentos. Estes edifícios foram
construídos, em grande parte, após a aprovação
do atual Plano Diretor Participativo do Município
de Fortaleza (PDP-For), de 2009, que estimula a
verticalização da ocupação do solo por meio de
seus parâmetros urbanísticos. Assim, as constan-
tes demolições e descaracterizações, motivadas
por um processo de valorização do solo urbano
daquele setor da cidade, levam à formação de
reservas fundiárias, por um lado, e à verticalização
residencial, por outro. Dessa forma, a legislação
urbana oferece um potencial construtivo atraente
à atuação do mercado imobiliário, sem entre-
tanto apresentar instrumentos que alinhem tal
renovação a uma política de reconhecimento e
preservação dos antigos imóveis remanescentes.
Nesse contexto de transformação da paisagem
urbana, os exemplares de arquitetura histórica,
severamente ameaçados de desaparecimen-
to, evidenciam-se como elementos de grande
importância da memória urbana, assim como
o fragmento mais frágil frente às dinâmicas de
transformação da paisagem urbana.

O presente trabalho encontra-se estruturado em


três grandes partes. A primeira diz respeito ao
processo de urbanização e de expansão da Vila do
Forte, assentemento urbano colonial que deu ori-
gem à Fortaleza de hoje. Logo em seguida, inicia-
-se a exposição sobre a formação do antigo bairro
16º SHCU do Calçamento de Messejana, que deu origem à
30 anos . Atualização Crítica
atual Avenida Visconde do Rio Branco. Por fim,
1122 analisa-se a paisagem contemporânea do espaço
urbano em questão por meio da apresentação to acompanhava as curvas do Riacho Pajeú, em
de suas permanências e suas transformações. sua margem esquerda”. A formação do núcleo
O processo de pesquisa contou com a revisão urbano, nesse contexto, ocorria de forma linear,
bibliográfica de autores que abordam a história “consoante uma tipologia morfológica comum
local do processo de urbanização de Fortaleza, nos vilarejos medievais europeus” (CASTRO, 1994,
como Andrade (2012), Castro (1994; 2014), Costa p. 44). Como resultado, a diminuta aglomeração
(2014), dentre outros. Há, ainda, a abordagem de de Fortaleza foi elevada a cidade apenas em 1823
conceitos desenvolvidos por autores como Carlos (CASTRO, 1994).
(2007) e Santos (2006). Consultou-se, também, a
legislação urbanística local por meio das leis de A expansão da cidade era objeto de preocupação
uso e ocupação do solo e do plano diretor mais da Câmara Municipal, que manifestava insatisfa-
recentes. ção com a ocupação rarefeita ao longo das estra-
das que saíam de Fortaleza, havendo decretado,
em 1808, a proibição de edificações ao longo do
caminho de saída da cidade em direção às vilas de
a urbanização e a expansão da vila do forte Messejana e Aquiraz (COSTA, 2014). Havia, assim,
a aspiração de ordenar a malha viária da capital, o
A Vila do Forte, assentamento urbano que deu que levou à elaboração do primeiro plano urbano
origem à atual Fortaleza, era descrita por via- de Fortaleza. Este ficou a cargo do engenheiro
jantes dos séculos XVII e XVIII como apenas “um militar Silva Paulet, também responsável pelas
forte, um riacho e poucos moradores” (COSTA, importantes obras da nova Fortaleza de Nossa
2014, p. 44). Durante esse período, havia no Ce- Senhora da Assunção e do Mercado Municipal.
ará a predominância da atividade econômica da Com o plano, datado de 1812, orientou-se o cres-
pecuária. Desse modo, a importância da Vila do cimento da vila a oeste do núcleo urbano conso-
Forte era diminuta frente às demais vilas da ca- lidado por meio de um traçado ortogonal, “com
pitania, que então concentravam-se no sertão
‘ruas’ no sentido norte-sul e ‘travessas’ no sentido
cearense (ANDRADE, 2012). Foi somente com o
leste oeste” (ANDRADE, 2012, p. 83). Dessa forma,
desenvolvimento da agricultura do algodão para
foi imposta uma malha xadrez, que “desprezou” o
exportação e com a emancipação do Ceará em
sentido natural do crescimento da vila, “que tendia
relação à capitania de Pernambuco, em 1799,
a acompanhar as tortuosidades do Pajeú. Daí em
que Fortaleza tornou-se a capital da província,
diante, as novas edificações passaram a ser guia-
adquirindo, assim, o status e as características
das pelo traçado urbano de ruas paralelas”, indo
de um centro urbano (COSTA, 2014).
de encontro com o estabelecimento do núcleo
A Fortaleza do início do século XIX passou, então, a fundacional (COSTA, 2014, p. 93). Costa (2014, p.
desempenhar a importante função de pólo comer- 94) defende que, dessa forma, “Fortaleza nasceu,
cializador e exportador da economia do algodão realmente, de um traçado sobre um papel”.
(ANDRADE, 2012). A partir do estabelecimento de
seu novo papel na rede urbana regional e interna- Assim, a expansão urbana de Fortaleza no início
cional, a capital começava a atrair investimentos do século XIX se dava por meio da reprodução e
em sua infraestrutura urbana, principalmente da ocupação de uma malha ortogonal, que, “em-
em relação às suas instalações portuárias, que bora pudesse traduzir aspirações envolvidas com
tornaram-se essenciais à economia e ao comércio o ‘moderno’” e com as ideias higienistas então
da capitania com a abertura dos portos brasileiros vigentes, dava continuidade ao “sistema de lotes
para o mercado internacional, em 1808. Como estreitos e profundos, de evidente cunho medie-
resultado, Fortaleza passava a exercer uma “hege- val” (CASTRO, 1994, p. 78). Como resultado dessas
monia política, econômica e administrativa sobre caracter urbanas e fundiárias, existia na Fortaleza
as outras cidades do Ceará” (ANDRADE, 2012, p. de então uma noção de distinção de classes a
58). Ainda assim, no início do século XIX, “a vila não partir da posição do lote, que “valorizava social e
passava de umas poucas ruas arenosas, formadas imobiliariamente as casas conforme a incidên-
por um casario de baixa qualidade material, ruas cia da insolação” (CASTRO, 2014, p. 49). Segundo
nascidas ao pé do Forte e cujo desenvolvimen- Castro (2014, p. 49-50), as casas:
EIXO TEMÁTICO 2 [...] localizadas nas ruas norte-sul, com
frente voltada para o leste, desfrutavam
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS de especial condição. Chamavam-se casas
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES do “lado da sombra”, porque recebiam fron-
talmente, na sala de visitas, o sol matinal
benfazejo e a contínua ventilação ameniza-
dora, além de permitirem que à tardinha a
família pudesse espairecer à frente da casa,
todos sentados à calçada, formando rodas
de conversação. O mesmo não ocorria nas
casas do “lado do sol”, cuja sala de visitas,
exposta ao sol quente da tarde, obrigava à
reclusão, ao encontro familiar no alpendre
da cozinha ou no quintal. O traçado urbano
também propiciava um terceiro tipo de lo-
tes, localizados nas “travessas”, isto é, nas
ruas leste-oeste. Resultavam do aproveita-
mento dos quintais das casas de esquina,
divididos em pequenas parcelas ocupadas
por uma seqüência de quartos onde vivia
gente menos favorecida, dedicada a tare-
fas humildes. Morar em “casa de travessa”
redundava em demérito social.

À medida em que crescia, Fortaleza estabelecia-


-se como um espaço geográfico privilegiado na
jovem capitania do Ceará, tornando-se, dessa
forma, um ponto de convergência de diversas
estradas que conectavam a capital ao interior,
assim como às províncias vizinhas. A partir de
Fortaleza, e mais especificamente do Forte, sa-
íam as estradas, “radiais nascidas no centro da
cidade, todas velhos caminhos de comunicação
com o interior da Província” (CASTRO, 1994, p. 58).
A “Planta da villa de Fortaleza e seu porto”, reali-
zada em 1818 por Silva Paulet, evidencia algumas
dessas vias de saída da cidade. São estas: as
estradas “de Jacarecanga, de Soure, de Arron-
ches, do Aquiraz, da Precabura, e a Picada de
Macoripe” (COSTA, 2014, p. 90). Esses caminhos
foram posteriormente substituídos pelas atuais
estradas federais e estaduais que têm início em
Fortaleza, conectando a capital a diversas regiões
do estado e do país.

Com o processo de expansão urbana por meio


do traçado xadrez de Silva Paulet, alguns dos
“velhos caminhos de saída” da cidade foram sendo
“gradativamente incorporados à malha urbana em
16º SHCU expansão”, principalmente na porção oeste da
30 anos . Atualização Crítica
cidade (CASTRO, 1994, p. 76). Dessa forma, algu-
1124 mas estradas desapareceram do núcleo urbano
central, enquanto outras se estabeleceram no
sistema viário radial-perimetral, “convertendo-
-se nos vetores de crescimento da cidade” (AN-
DRADE, 2012, p. 66). Aquelas que permaneceram
“passaram a iniciar-se em pontos relativamente
distantes da parte central da cidade [...]” (CASTRO,
1994, p. 68). Infere-se que, no caso do caminho
que seguia em direção à Messejana e ao Aquiraz,
a estrada não passava de um prolongamento para
além do Açude do Garrote — hoje, o Lago do Amor
no Parque da Liberdade — da própria Rua Direita
ou dos Mercadores, estendendo-se até o largo em
frente ao Forte e à Igreja Matriz. Incorporada como
uma diagonal ao traçado viário predominantemen-
te em xadrez, a antiga estrada foi paulatinamente
moldando e orientando o crescimento da cidade.

O crescimento de Fortaleza para além do redu-


zido núcleo central desenhado por Silva Paulet
se dá apenas na segunda metade do século XIX,
quando o também engenheiro Adolfo Herbster
é contratado para planejar a expansão urbana
da capital. A manutenção do traçado xadrez era
então tida como inquestionável, e assim Herbs-
ter pautou o seu desenho da nova malha viária
(CASTRO, 1994). O processo de planejamento
teve início pela realização de um levantamento
cartográfico de Fortaleza, resultando na “Planta
exacta da capital do Ceará”, de 1859. Nesta planta,
Herbster identifica o núcleo urbano consolidade
e, em sua periferia, a existência de amplas áreas
ocupadas por moradias precárias, representadas
como casas de palhas, que concentravam-se na
periferia do núcleo urbano consolidado (BRASIL,
2016). A partir desse processo de levantamento
e representação da ocupação urbana existente,
teve início a elaboração dos planos de expansão
viária da cidade, resultando nas plantas de 1863 e
de 1888 (Figura 2), sendo esta última uma atualiza-
ção da primeira (CASTRO, 1994). As duas últimas
cartas de Herbster, ao contrária da primeira, não
refletem a realidade física da cidade, e sim o pla-
nejamento do seu crescimento. Dessa forma, boa
parte das quadras apresentadas nestas plantas
não encontravam-se ocupadas (CASTRO, 1994).
Ainda assim, é possível distinguir a ocupação à
época existente daquela que foi planejada a partir
da observação das diferentes representações
utilizadas na cartografia.
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

Figura 2: Planta da cidade da Fortaleza capital da provín-


cia do Ceará, de 1888. Fonte: Biblioteca Nacional (2020) 1
editada pelas autoras.

Dentre as propostas de Herbster, destaca-se o


contorno viário do Centro tradicional através dos
boulevards, à exemplo das reformas urbanas de
Paris realizadas pelo Barão de Haussmann (COS-

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TA, 2014). Os boulevards propostos para Fortaleza reedificar novas edificações com materiais
formam um quadrado “aberto no lado que faria construtivos mais duráveis e conforme o
face com o mar” (CASTRO, 1994, p. 67), sendo estes alinhamento das ruas.
os do Imperador, do Livramento (atual Duque de
Caxias) e da Conceição (atual Dom Manuel), que Em relação ao plano anterior, a planta de 1888 in-
demarcavam o perímetro da cidade. Fora desse troduz a novidade da representação das linhas de
circuito delimitado pelos boulevards, a expansão bondes de tração animal, inaugurados na cidade
da ocupação se dava “timidamente” através das em 1882 (CASTRO, 1994). As linhas partiam do Cen-
“radiais como vetores de penetração, compreen- tro — mais especificamente da Praça do Ferreira,
dendo uma seqüência de chácaras que se agre- que firmava-se como força centralizadora na
gavam nos arrabaldes mais agradáveis” (CASTRO, cidade — e se direcionavam aos arrabaldes eliti-
1994, p. 67). É o caso do eixo de crescimento em zados da cidade (CAPASSO, 2007), que cresceram
direção ao sudeste da cidade, onde encontrava-se a partir dos eixos viários das antigas estradas que
a estrada de Messejana, denominada por Herbster partiam do núcleo urbano fundacional. Nesse
como Boulevard do Visconde do Rio Branco, cujo contexto, o local de moradia da população era de-
“relevo topográfico não acusava empecilhos”, terminado pela classe social de seus habitantes:
possibilitando que a cidade se expandisse pri- os de maior renda concentravam-se no Centro e
meiro nessa direção do que para além do Riacho nos arrabaldes bucólicos, porém acessíveis por
Pajeú (CASTRO, 1994). Entretanto, a aplicação do linhas de bonde, como os bairros elitizados do
desenho do plano de Herbster — que em partes in- Jacarecanga e do Benfica; já a população mais
corporava o eixo viário da Estrada de Messejana — carente, que não podia pagar pela terra urbana,
criava algumas incongruências pela sobreposição dependia da autoconstrução precária e irregular
da malha dos novos boulevards e quarteirões em de suas choupanas nos arredores da área central,
relação à já consolidada ocupação urbana ao longo mais urbanizada (COSTA, 2014).
da estrada. Infere-se que, com a implementação
Assim, com base na proposta de Herbster, a cida-
do traçado viário proposto por Herbster, foram
de se expandia, superando os obstáculos iniciais
demolidas partes da continuidade formada pelo
do “solo arenoso em que a cidade se implantava”
casario que estendia-se através do percurso de
(CASTRO, 1994, p. 63). Nesse cenário, persistia o
saída da cidade em direção à Messejana, em espe-
“sistema de divisão fundiária caracterizado por
cial os trechos dos cruzamentos da velha estrada
lotes profundos e estreitos, de velha herança
com os boulevards do Livramento e da Conceição.
colonial portuguesa”, que levou ao predomínio da
Para além dos antigos caminhos de ligação da ocupação do solo urbano por meio da tipologia da
Vila do Forte com o interior da província, havia casa-corredor, formando um casario contínuo e
também a questão das casas de palha. De acordo majoritariamente térreo ao longo dos eixos viários
com Pompeu (1997 apud ANDRADE, 2012), Forta- da cidade (CASTRO, 1994, p. 68). Não obstante, o
leza contava, em 1863, com cerca de 960 casas planejamento de Herbster teve “grande papel no
de tijolo, sendo oitenta destas sobrados, e mais aspecto com que a cidade chegou ao século XX”
7.200 casas cobertas de palha. Sendo assim, 88% (COSTA, 2014, p. 104). Sendo assim, a Fortaleza do
das moradias em Fortaleza eram choupanas. An- início daquele século ainda crescia através da do
drade (2012, p. 79) levanta algumas questões e preenchimento do traçado proposto por Herbster.
suposições em relação à temática da moradia
precária no plano de Adolfo Herbster:

Aqui merecem algumas perguntas: como a formação do bairro do calçamento


as palhoças seriam incorporadas ao plano de messejana
de Herbster? Houve uma política de reas-
sentamento e inclusão da população exclu- A área atualmente conhecida como Joaquim Tá-
ída pelo plano? Ao que indica, o plano e as vora surge, em meados do século XIX, a partir da
posturas municipais induziram à elimina- ocupação urbana ao longo do caminho de saída
ção das palhoças nas novas áreas arruadas de Fortaleza em direção à Messejana. O núcleo
cabendo à iniciativa privada comprá-las e urbano linear iniciava-se na altura do Açude do
EIXO TEMÁTICO 2 Garrote — atualmente localizado no Parque Liber-
dade — e dispersava-se, aos poucos, até atingir
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS a área alagável do Riacho Tauape. Mais tarde, o
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES casario contínuo ali formado veio a constituir-se
no imaginário da população fortalezense como o
bairro do Calçamento de Messejana.

O percurso até a Messejana teve como origem os


caminhos e as veredas da antiga Estrada Geral,
que, durante o período colonial, conectava a Vila
do Forte às capitanias do Rio Grande do Norte e
Pernambuco, “passando pelas vilas de Messe-
jana, Aquiraz e Aracati” (ANDRADE, 2012, p. 60).
A estrada em si, no entanto, surge oficialmente
apenas em 1836, quando o governo provincial de
José Martiniano de Alencar (1834-1837) estabelece
a abertura de uma estrada entre a capital e a Vila
de Aracati (RIBEIRO, 1982), localizada no litoral
leste do Ceará. A obra levou cerca de um século
para ficar pronta (FREITAS, 2014).

O calçamento da estrada, por sua vez, levou 70


anos para ser concluído, sendo iniciado em 1870,
quando o trecho entre a Rua Conde d’Eu e Avenida
Duque de Caxias, na altura do Parque da Liber-
dade, recebeu as primeiras pedras. A finalização
do calçamento ao longo de toda a extensão da
estrada até a Messejana se deu apenas em 1936
(FREITAS, 2014), enquanto o trecho do bairro do
Calçamento de Messejana foi concluído em 1925
(RIBEIRO, 1982). O calçamento era, inicialmente,
de pedra tosca, sendo posteriormente substituído
por paralalepídos (MAGALHÃES, 2009).

A ocupação ao longo do caminho que levava à Mes-


sejana data, no mínimo, do início do século XIX,
quando a Câmara Municipal de Fortaleza já tomava
providências para a proibição de edificações nes-
se trecho da cidade (COSTA, 2014). A ocupação do
Calçamento de Messejana aparenta intensificar-
-se apenas a partir da segunda metade do século
XIX, quando Adolfo Herbster registra e consolida
em seu plano a ocupação ao longo do eixo viário,
que passava a se chamar de Boulevard do Visconde
do Rio Branco. O plano de 1888 retrata que a área
era contemplada por uma linha de bonde a tração
animal, tendo como ponto final a Estação de Fer-
ro Carril, construída em 1879 (ALMADA, 2003).

Em 1913, os bondes elétricos foram introduzidos


16º SHCU em Fortaleza. À época, a linha do Calçamento de
30 anos . Atualização Crítica
Messejana percorria os 2.450 metros entre a Pra-
1128 ça do Ferreira e a Estação de Ferro Carril. Existia
uma proposta para que os bondes seguissem por
trilho até a Messejana, sendo o trajeto expandi-
do em 1925 até a terceira seção, no cruzamento
com a Avenida Pontes Vieira (SAMPAIO, 2009). No
entanto, há divergências quanto ao verdadeiro
destino final da linha de bonde do Calçamento de
Messejana, uma vez que, segundo Almada (2003),
“o ponto final da linha era em frente do casarão do
Sr. Alberto Costa Sousa”, situado no atual número
2800, localização sustentada pela representação
da linha de bonde presente na “Carta da Cidade
de Fortaleza e Arredores”, realizada em 1945 pelo
Serviço Geográfico do Exército. Figura 3: Núcleo urbano do Calçamento de Messejana no
início do século XX. Fonte: Arquivo Nirez (2018).
A linha chegou a ser a segunda mais extensa rota
de bonde da cidade, perdendo apenas para a linha
do Alagadiço (ALMADA, 2003). Contudo, o modal Presume-se, assim, que a paisagem urbana do
era precário, e o plano de chegar até à Messejana Boulevard do Visconde do Rio Branco era então
nunca foi concretizado. Segundo Nirez (2001), a marcada pela presença pontual de chácaras e
ligação entre o final do Calçamento de Messejana sobrados, sendo estes habitados pelas classes
e a localidade de Cajazeiras, já próxima de Messe- sociais mais abastadas. Havia ali, portanto, uma
jana, era realizada desde 1927 por um veículo su- predominância de vilas e correr de casas térre-
burbano puxado a trator. A partir de 1934, deu-se as, com ou sem porão alto, implantadas junto ao
início à linha de ônibus que realizava o percurso alinhamento da via. Supõe-se que essas resi-
entre a área central de Fortaleza e a Messejana, dências eram majoritariamente reservadas ao
já então incorporada aos limites municipais da aluguel, tendo em vista o então contexto nacional
capital cearense como um distrito (RIBEIRO, 1982). da produção rentista da habitação (BONDUKI,
Atualmente, a Messejana é um dos 121 bairros de 2013) e a realidade local em que cerca de 70% da
Fortaleza, assim como Cajazeiras. população fortalezense no final do século XIX vivia
em imóveis alugados (ANDRADE, 2012). Naquele
Os arrabaldes bucólicos servidos por linhas de período, as casas de aluguel eram destinadas à
bonde mostravam-se atrativos à construção de habitação unifamiliar dos setores sociais médios,
novas moradias. No caso do Calçamento de Mes- que alugavam suas moradias de proprietários
sejana, a área começou a ganhar moldes de bairro pertencentes às classes mais altas (BRASIL, 2016).
a partir da instalação dos trilhos do bonde (Figura Tal modalidade de habitação surge a partir do
3), tornando-se um intenso corredor comercial e processo de parcelamento de antigos sítios e
residencial. O bairro mostrava-se mais procurado fazendas localizados nas margens das antigas
pelas camadas médias da população, que não “estradas empedradas do Arronches, Messeja-
podiam “ocupar os lugares mais nobres da cidade, na e Soure, futuras áreas de expansão urbana
como Jacarecanga e Benfica” (SAMPAIO, 2009, da cidade” (ANDRADE, 2012, p. 143-144). Havia,
p. 4). O fator da localização também induziu a portanto, uma grande concentração imobiliária
ocupação do bairro por pessoas vindas do interior e fundiária nas mãos da elite urbana de Forta-
do estado, que ali fixavam-se, estando ao mesmo leza, que construiu um verdadeiro “mercado de
tempo próximas da área central de Fortaleza e terras” na periferia do núcleo urbano consolidado
à saída da cidade. Assim, o bairro foi sendo for- (ANDRADE, 2012).
mado, passando oficialmente a ser chamado de
Joaquim Távora em 1930 (NIREZ, 2001). Sampaio Não exclui-se, no entanto, a possibilidade da au-
(2009, p. 3) descreve o então bairro, “que não tinha toconstrução precária e irregular da moradia por
tantos palacetes, mas sim uma uniformidade no parte dos setores de baixa renda da população,
casario, residências simples, geminadas, que se uma vez que há naquele espaço o registro de pe-
espalhavam de um lado e do outro dos trilhos da quenas casas térreas ao rés do chão de porta e
linha de bonde até a chamada ‘terceira secção’”. janela e “meia-água”, modelo habitacional bas-
EIXO TEMÁTICO 2 tante tradicional na Fortaleza do século XIX, cujo
telhado contava com apenas um caimento em
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS direção ao quintal. Estas casas ocupavam lotes
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES muito estreitos e, como resultado, suas fachadas
geralmente apresentavam duas aberturas, ou, por
vezes, restringindo-se a uma única porta. Neste
último caso, adotavam-se as portas roladas, em
que “seccionava-se horizontalmente a folha ou
uma das folhas da porta, ao meio, permanecendo
a parte inferior fechada com ferrolho, à feição
de peitoril, enquanto o trecho superior se abria,
como janela” (CASTRO, 2014, p. 46).

Como resultado desse padrão de ocupação do


solo, o bairro do Calçamento de Messejana apre-
sentava uma estrutura fundiária de lotes bastante
estreitos e compridos, resultando num sistema
de parcelamento do solo bastante similar àquele
já existente na área central da cidade. O bairro
afasta-se, portanto, das características fundi-
árias dos arrabaldes bucólicos e elitizados do
Benfica e do Jacarecanga, onde predominvam
chácaras isoladas em amplos terrenos. Havia,
no entanto, uma diferença em relação ao núcleo
urbano central: os lotes ao longo do Boulevard do
Visconde do Rio Branco costumavam ser ainda
mais profundos do que aqueles inseridos em lotes
no núcleo urbano consolidado, tendo em vista que,
até então, não existia o arruamento e a delimita-
ção de quadras por trás da ocupação urbana linear
do Calçamento de Messejana — localizava-se, a
oeste do boulevard, o vale do Riacho Aguanambi,
área ocupada por sítios. Como resultado, possi-
bilitava-se a existência de áreas de cultivo e de
criação de animais aos fundos dos lotes. Desse
modo, desenvolveu-se ali uma arquitetura híbrida,
com elementos espaciais e arquitetônicos rurais
tradicionais do sertão cearense encobertos por
um pano de alvenaria como suporte de uma de-
coração consoante com os estilos arquitetônicos
então vigentes, como o neogótico, o neoclássi-
co, o art-nouveau e o art-déco. O resultado era
um casario marcado pela estética do ecletismo
então em voga, que constituiu-se como o “traço
expressivo da imagem urbana da capital cearense”
(CASTRO, 2014, p. 13).

Posteriormente, já em meados do século XX, ini-


cia-se o processo de formação do que seria mais
16º SHCU tarde conhecido como o bairro da Piedade (Figura
30 anos . Atualização Crítica
4), um núcleo urbano surgido a partir da ocupa-
1130 ção da área a leste do eixo do então Boulevard
do Visconde do Rio Branco. Segundo Magalhães tado. Iniciava-se, assim, um período de intensas
(2009, p. 13), “por trás do casario, a gente abaixo transformações na paisagem urbana tradicional
da linha da pobreza também começava a povoar do antigo Boulevard do Visconde do Rio Branco.
as extensões de terra, fincando na areia frouxa
os seus barracos de taipa, cobertos com palhas Mais tarde, em 1972, inaugurou-se a oeste da Vis-
de carnaúba”. Essa descrição revela um forte conde do Rio Branco a Avenida Aguanambi (NIREZ,
contraste entre os núcleos do Calçamento de 2001), que canalizou o riacho homônimo e demoliu
Messejana e da Piedade: por um lado, o primeiro o trecho correspondente ao atual cruzamento
presenciava a formação de um contínuo casario do antigo Boulevard com a Rua Padre Valdevino
em alvenaria, produzido por um mercado habi- — próximo à antiga Estação de Ferro Carril —,
tacional rentista e destinado a uma população conectando a Aguanambi à Avenida Dom Manoel.
de classe média atraída pela acessibilidade ga- Em 1975, o Departamento Nacional de Estradas
rantida pelo bonde; por outro lado, os moradores e Rodagem “aprovou o projeto para ampliação
da Piedade dependendiam da auconstrução de em 60 metros da rodovia no trecho Fortaleza-
suas precárias moradias, enfrentando, assim, -Cajazeiras, além da abertura de um ramal de 30
dificuldades materiais e sociais. Entende-se que metros de largura de Cajazeiras ao quilômetro 13,
a instalação desses núcleos urbanos antagônicos pelo lado do poente”, correspondendo ao trecho
se dá conforme um histórico processo de segre- entre o Riacho Tauape e Cajazeiras. A inaugura-
gação socioespacial fortemente marcado pela ção do trecho ampliado da BR-116 se deu em 1981
concentração da propriedade privada terra, que (RIBEIRO, 1982, p. 84), conectando-se, assim, à já
tornou a habitação formal inacessível a grande existente Avenida Aguanambi. Estima-se que, por
parte da população fortalezense. Esse processo meio da abertura da BR-116, diversos exemplares
“culminou na apropriação desigual e na produção arquitetônicos históricos tenham desaparecido ao
ilegal do espaço urbano”, proporcionando “uma longo do velho caminho de ligação entre Fortaleza
crescente ocupação irregular e precária” na pe- e a antiga Vila de Messejana.
riferia da cidade (BRASIL, 2016, p. 46).
Não obstante, até por volta dos anos 1990 (NIREZ,
2001), a abertura ou o alargamento de avenidas
como a Domingos Olímpio e a Soriano Albuquerque
resultou em novas demolições de pequenos tre-
chos do conjunto arquitetônico da Visconde do Rio
Branco. Destaca-se, aqui, o desaparecimento do
trecho oeste do casario na porção entre a Avenida
Pontes Vieira e a BR-116, que foi demolido com as
obras de alargamento da Avenida Visconde do
Rio Branco. A previsão, segundo consta na Lei de
Uso e Ocupação do Solo (LUOS) de 1996, era dar
continuidade ao alargamento da Visconde do Rio
Figura 4: Núcleo urbano da Piedade no início do século Branco até a Avenida Domingos Olímpio (FORTA-
XX. Fonte: Arquivo IPHAN/CE (2019). LEZA, 1996). Felizmente, o plano de aumentar a
caixa viária da avenida foi abandonado, e a mais
recente Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação
Já por volta da metade do século XX, em 1947, os do Solo (LPUOS) determina que a caixa atual seja
mantida (FORTALEZA, 2017)
bondes deixavam de circular por Fortaleza, sendo
substituídos por linhas de ônibus (SAMPAIO, 2009). Para além de seus aspectos materiais, o Calça-
Em concordância com a implantação de um mo- mento de Messejana compreendia diversos espa-
delo rodoviarista de cidade, a Avenida Visconde do ços dedicados à sociabilidade de seus moradores,
Rio Branco foi asfaltada no ano seguinte. Intensi- como o Grupo Escolar Visconde do Rio Branco,
ficava-se, assim, a circulação de automóveis por a Biblioteca de Abraão de Carvalho, o Colégio
meio de seu eixo viário, muitos destes realizando Dom Bosco, o Colégio das Dorotéias, a Igreja da
deslocamentos entre Fortaleza e o interior do es- Piedade, o Grêmio Dramático Familiar do drama-
EIXO TEMÁTICO 2 turgo Carlos Torres Câmara, o Cine Atapu, dentre
outros, sendo alguns destes ainda hoje de grande
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS importância para a identidade e a paisagem lo-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES cal. Para além desses lugares, existiam naquele
bairro inúmeras expressões populares de cunho
cultural e religioso que extrapolavam a esfera
do espaço privado e movimentavam, também, o
espaço público urbano. Dentre as manifestações
populares que historicamente animaram as ruas
e as praças do bairro, destacam-se as procissões
religiosas e as tradições carnavalescas. A Figura
5 é resultante do mapeamento desse estudo.

Segundo Magalhães (2009), três grandes procis-


sões marcaram a história do bairro: a de Alberto
Milhomes Maranhão, a de Joaquim Cassiano e a
de Ilzanira Barbosa. Estas procissões comemora-
vam as festas de santos populares que possuíam
dezenas de devotos no bairro e seus arredores. No
caso da procissão de Milhomes, comemorava-se
a festa de Santo Antônio com um cortejo que saía
na noite de 13 de junho, evento no qual os devotos
entoavam cânticos e carregavam velas. O cortejo
de Milhomes foi o maior e mais duradouro das pro-
cissões do bairro, sendo realizado de 1932 a 1987.
Já o cortejo de Joaquim Cassiano percorria as
principais ruas do bairro e ocorria na noite de 31 de
maio, quando encerravam-se os festejos do mês
de Maria na Igreja da Piedade com a coroação da
Santa na praça em frente à paróquia, local no qual
eram montadas banquinhas de comercialização
de alimentos durante a realização da festa. Por
fim, a procissão de Ilzanira Barbosa dedicava-se
à devoção a Nossa Senhora das Graças e ocorria
na noite de 27 de novembro. Teve início em 1936
e perdurou por mais de quarenta anos.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1132
Figura 5: Festas e eventos populares nas proximidades dos núcleos urbanos do Calçamento de Messejana e da Piedade.
Fonte: Mapa elaborado pelas autoras (2019).

Para além das manifestações de cunho religioso, de forró no quintal de sua casa durante os fins
o Calçamento de Messejana viu nascer o primeiro de semana. Outro bloco que surgiu no bairro foi o
bloco de maracatu do carnaval de rua de Fortale- Maracatu Az de Paus, atual Maracatu Rei de Paus.
za. Segundo Magalhães (2009), a ideia foi trazida O grupo foi formado em 1954, tendo como primeira
do Pernambuco para o Ceará pelo personagem sede uma residência na Rua Padre Antonino. Já o
popularmente conhecido como Raimundo Boca último bloco a surgir no bairro foi o Maracatu Vozes
Aberta, que fundou o Maracatu Az de Ouro, em D’África, fundado em 1980. Atualmente, o grupo
1936. O grupo inicialmente ocupou uma casa lo- ocupa um edifício localizado na Rua Sousa Girão.
calizada na Rua Nogueira Acioli, posteriormente Os três blocos de maracatu continuam a existir,
deslocando-se para a casa de Joaquim Cassiano, porém apenas o Maracatu Vozes D’África continua
o mesmo personagem da procissão do mês de no bairro, já que os demais grupos passaram a ter
Maria, que à época também organizava festas suas sedes na periferia de Fortaleza. Todos os
EIXO TEMÁTICO 2 anos, os três maracatus desfilam no carnaval de
rua da Avenida Domingos Olímpio, que ocorre nas
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS proximidades da Avenida Visconde do Rio Branco.
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
O bairro contava ainda com blocos e outras tradi-
ções carnavalescas. O primeiro bloco foi o Prova
de Fogo, fundado em 1935 no nº 2187 da Avenida
Visconde do Rio Branco. O bloco interpretava
sambas compostos por Lauro Maia (MAGALHÃES,
2009), importante musicista cearense, que tam-
bém dá nome a uma rua paralela à Visconde do
Rio Branco, que, por sua vez, já foi um polo carna-
valesco da cidade, atraindo foliões que seguiam
trios elétricos.

AS PERMANÊNCIAS E AS TRANSFORMAÇÕES dA
PAISAGEM DA AVENIDA VISCONDE DO RIO BRANCO

De acordo com Santos (2006, p. 67), “a paisagem


existe através de suas formas, criadas em mo-
mentos históricos diferentes, porém coexistindo
no momento atual”. Essas formas, entendidas
como a cristalização de um tempo passado, po-
dem ser definidas conceitualmente como rugosi-
dades. Logo, a paisagem seria o conjunto de ob-
jetos herdados das sucessivas relações técnicas
e sociais através do tempo. Já o espaço seria a
combinação entre “essas formas mais a vida que
as anima” (SANTOS, 2006, p. 66).

No momento atual, observa-se uma grande


pressão das forças de reprodução do espaço
urbano atuando sobre os fragmentos materiais
dos núcleos urbanos antigos, que permanecem
na paisagem enquanto formas. O resultado da
confrontação entre a inserção de objetos tecni-
camente representativos da atualidade em meio
a uma paisagem marcada por formas caracterís-
ticas de um tempo passado é a criação da ten-
são entre as chamadas ações hegemônicas e
não-hegemônicas (SANTOS, 2006). No caso da
Avenida Visconde do Rio Branco, a existência de
um acervo arquitetônico de interesse cultural
em uma área de crescente valorização fundiária
representa bem a disputa desigual entre as forças
verticais do processo de urbanização dominante
e a resistência horizontal do lugar.
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
Em termos gerais, o conflito se expressa por meio
1134 de um processo dicotômico de transformação
da paisagem urbana, que estimula, simultanea- um processo de “estranhamento”, marcado “pela
mente, a degradação urbana, relacionada à de- queda dos referenciais” e “pelo desaparecimento
molição e ao abandono de imóveis antigos, e a das marcas do passado histórico lido na paisa-
renovação urbana, alusiva a uma maior atuação gem” (CARLOS, 2007, p. 47). A transformação da
do mercado imobiliário na produção de torres de paisagem urbana naquele setor da cidade contam,
apartamentos. Fatores como a implantação de portanto, com repercussões culturais e sociais.
um modelo rodoviarista de cidade, a ameaça de
descaracterização e de supressão de exemplares Como possível resposta ao atual cenário, des-
arquitetônicos de interesse cultural e a crescente taca-se, aqui, a importância de alinhar um pos-
insalubridade de moradias históricas, por exem- sível novo ciclo de produção do espaço urbano
plo, tendem a reforçar a degradação urbana, que, voltado às necessidades e às vocações locais. A
por sua vez, encontra-se alinhada à formação de elaboração de novos modelos contemporâneos
reservas fundiárias e à produção de escassez e de moradia voltados à produção habitacional de
segregação no espaço urbano. Já questões como interesse social poderia, por exemplo, reverter o
a superposição e a substituição de residências contexto corrente de degradação e de abandono
históricas unifamiliares por edifícios multifamilia- do acervo arquitetônico antigo. Seria, portan-
res, a forte tendência à verticalização imobiliária e to, um processo de renovação urbana positivo,
o descolamento dos parâmetros urbanísticos em promovendo características como urbanidade e
relação à realidade morfológica e fundiária local, qualidade ambiental. Aspectos que relacionam-se
por seu lado, indicam um processo de renovação diretamente à percepção do ambiente construído,
urbana em desacordo com os interesses social e como gabarito, volumetria, taxa de ocupação e
cultural. O resultado, portanto, é a produção de implantação, poderiam, também, ser repensa-
uma não-permanência das rugosidades por meio dos para que a inserção de novos edifícios possa
do processo de supressão, acumulação e super- ocorrer de maneira harmoniosa.
posição dos fragmentos materiais do passado
que compõem a paisagem atual (SANTOS, 2006).

Para além de seus aspectos materiais, o forte


contraste existente entre as tipologias habitacio-
nais tradicionais e os produtos imobiliários mais
recentes (Figura 6) revela a transformação das
práticas sociais e dos modos de vida. Com o apro-
fundamento da degradação do espaço público
urbano, os modos de vida podem inclinar-se a uma
maior reclusão na esfera privada, possibilitando,
assim, uma crescente demanda pela produção
de modelos habitacionais caracterizados pela
Figura 6: Contraste entre casas antigas e torres de apar-
auto segregação. Como resultado, os imóveis de
tamentos na Avenida Visconde do Rio branco. Fonte: Fo-
interesse cultural — caracterizados pela qualidade tografia realizada pelas autoras (2018).
ambiental de um relacionamento tangível entre
a habitação e a rua — tendem a voltar-se contra
um ambiente urbano sem vida, intensificando,
portanto, o processo de descaracterização e Um ponto de partida possível para alcançar tais
abandono de casas históricas. Perde-se, dessa melhorias e intervenções urbanas seria a demar-
maneira, a tradicional prática social da calçada cação da área como uma Zona Especial de Pre-
como extensão da sala de estar, costume que dá servação do Patrimônio Paisagístico, Histórico,
espaço aos acontecimentos da vida comunitária Cultural e Arqueológico (ZEPH). O instrumento,
local. Entende-se, assim, que “as transformações criado pelo Plano Diretor Participativo de For-
nas formas da cidade impõem transformações nos taleza (PDP-For) de 2009, destina-se à proteção
tempos da vida e nos modos de apropriação dos de áreas de “sítios, ruínas, conjuntos ou edifícios
lugares através de mudanças nos usos” (CARLOS, isolados de relevante expressão arquitetônica,
2007, p. 45). Consequentemente, estabelece-se artística, histórica, cultural, arqueológica ou pai-
EIXO TEMÁTICO 2 sagística, considerados representativos e signi-
ficativos da memória arquitetônica, paisagística
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS e urbanística do município” (FORTALEZA, 2009,
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES p. 17). A aplicação do instrumento passa pela
elaboração de planos específicos para as áreas
demarcadas como ZEPH. No entanto, a adoção do
zoneamento especial para a área em questão não
seria suficiente para atingir o objetivo de um novo
ciclo de produção do espaço urbano, tendo em
vista que, mais de uma década após a aprovação
de seu Plano Diretor Participativo, Fortaleza ainda
não contou com a elaboração de nenhum plano
de ZEPH. Mostra-se necessário, acima de tudo,
refortalecer horizontalmente o lugar “a partir das
ações localmente constituídas”, que tenham como
objetivo construir “uma base de vida que amplie a
coesão da sociedade civil, a serviço do interesse
coletivo” (SANTOS, 2006, p. 194).

conclusão

Durante o período de realização da presente


pesquisa, as dinâmicas atuantes sobre o acervo
arquitetônico da Avenida Visconde do Rio Branco
mostraram toda a sua força. As análises aqui apre-
sentadas surgem a partir do testemunho ocular
da demolição e da descaracterização de uma
expressiva quantidade de exemplares arquitetôni-
cos de interesse cultural, o que revela o contínuo
aprofundamento do processo de degradação ur-
bana. Por outro lado, novos volumes construídos
foram inseridos, atendendo, em sua maior parte,
a demandas habitacionais das classes médias e
altas. Tal processo de renovação urbana mos-
trou-se diretamente relacionado à formação de
reservas fundiárias, que, por sua vez, indicam a
forte atuação de ações especulativas naquele
setor da cidade. Dessa maneira, o cenário atual é
de abandono das formas históricas de ocupação
do solo, bem como de esvaziamento da escala da
rua como o lugar da vida cotidiana. Constitui-se,
portanto, um contexto local de tendência à perda
de referenciais culturais tanto construídos quanto
intangíveis.

De forma geral, o presente trabalho pode ser de-


finido como uma reflexão e um registro do quadro
16º SHCU atual do patrimônio cultural urbano de Fortaleza,
30 anos . Atualização Crítica
culminando, assim, em uma defesa pela sobrevi-
1136 vência dos tecidos urbanos antigos e seus modos
de vida. Assume-se, aqui, uma postura de que a REFERÊNCIAS
transformação do ambiente construído é tida
como inevitável e, desde que gerida a partir da ALMADA, Z. Hoje Av. Visconde do Rio Branco - an-
ótica dos interesses social e cultural, desejável.
tiga Estrada de Messejana. Diário do Nordeste. 19
Assim, a compreensão do passado e a análise
jul. 2003. Disponível em: <http://diariodonordeste.
do presente revelam-se como instrumentos de
verdesmares.com.br/cadernos/caderno-3/hoje-av-
grande importância para viabilizar o ponto de
-visconde-do-rio-branco-antiga-estrada-de-mes-
partida em direção a um futuro em que o lugar se
sejana-1.162379>. Acesso em: 25 set. 2018.
fortaleça enquanto resistência do interesse cole-
tivo frente às forças do processo de urbanização
ANDRADE, M. Fortaleza em perspectiva histórica:
dominante. Recorre-se, portanto, a um projeto
poder público e iniciativa privada na apropriação e
utópico de mundo. É com pesar, no entanto, que
produção material da cidade (1810-1933). Tese (Dou-
esta pesquisa evidencia um cenário de iminente
torado) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
desaparecimento de exemplares arquitetônicos
Universidade de São Paulo. São Paulo, 2012.
residenciais de interesse cultural na paisagem
fortalezense. Por meio desse processo, perde-
BONDUKI, N. Origens da habitação social no Brasil:
-se, também, o papel memorial e documental do
arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da
patrimônio cultural edificado, criando ausências
casa própria. São Paulo: Editora Estação Liberda-
e negando as identidades e as memórias coletivas
de, 2013.
que dão sentido à vida. Estabelece-se, assim, um
cenário em que tradições urbanas não possuem
BRASIL, A. A ineficácia das ZEIS: um problema
lugar.
de legislação ou uma questão político-social? O
caso de Fortaleza. Tese (Doutorado) - Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São
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16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1138
1139
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES A partir de uma bibliografia que busca construir
uma visão não dicotômica sobre as cidades lati-
no-americanas, o objetivo deste artigo é anali-
sessão temática sar a experiência dos movimentos de moradia,
partindo de uma abordagem ampla de todos os
atores. Voltamos o olhar para a Ocupação 9 de
O LUGAR DO CRUZO Julho, para recuperar os momentos que trans-
passam os fatos oficiais, e dar protagonismo ao
espaço que revela a luta pela reprodução. As-
THE CROSSROAD’S PLACE sim, o foco é o espaço “privado”, onde a lógica
transgride a mera resistência, mas reinventa
EL LUGAR DE LO CRUZO uma existência nova, que não é pautada pelos
valores da sociedade que tende a excluir os cor-
pos que ali estão. Adotando como ponto de par-
BISSONI, Luisa
tida a cozinha coletiva da Ocupação, e a partir
Graduanda; FAU USP do o trabalho reprodutivo, busca-se repensar as
luisa.bissoni.souza@usp.br referências para a atuação de arquitetos e urba-
nistas na cidade. A ação dentro da Ocupação, e
FERREIRA TOI, SofIa especificamente dentro de sua cozinha, é uma
Graduanda; FAU USP possibilidade que surge de uma luta política e
sofia.toi@usp.br de uma cultura de diáspora. Essa possibilidade
nos dá novos instrumentos para abordar a re-
ARAVECCHIA-BOTAS, Nilce produção coletiva da vida no planejamento das
Professora doutora; FAU USP cidades, frente ao cenário de desestruturação
nilcearavecchia@usp.br neoliberal atual.

OCUPAÇÃO COZINHA COLETIVA


TRABALHO REPRODUTIVO

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1140
ABSTRACT RESUMEN

Based on a bibliography that seeks to build a non- A partir de una bibliografía que busca construir
-dichotomous view of Latin American cities, the una visión no dicotómica de las ciudades latinoa-
goal of this article is to analyze the experience mericanas, el objetivo de este artículo es analizar
of housing movements, starting from a broad la experiencia de los movimientos habitaciona-
approach of all actors. We look at the 9 de Julho les, partiendo de un enfoque amplio de todos los
Squat, to recover the moments that go beyond actores. Miramos hacia la Ocupación 9 de Julio,
the official facts, and give prominence to the para recuperar los momentos que van más allá de
space that reveals the struggle for reproduction. los hechos oficiales, y dar protagonismo al espa-
Thus, the focus is on the “private” space, where lo- cio que revela la lucha por la reproducción. Así, el
gic violates mere resistance, but reinvents a new foco está en el espacio “privado”, donde la lógica
existence, which is not guided by the values ​​of the viola la mera resistencia, pero reinventa una nue-
society that tends to exclude the bodies that are va existencia, que no se guía por los valores de la
there. Adopting the collective kitchen of the Squat sociedad que tiende a excluir los cuerpos que allí
as a starting point, we seek to rethink the role of se encuentran. Tomando como punto de partida
architects and urban planners in the city having la cocina colectiva de la Ocupación, y partiendo
reproductive work as a reference. The action in- del trabajo reproductivo, intentamos repensar los
side the Squat, and specifically inside its kitchen, referentes para la actuación de arquitectos y ur-
is a possibility that arises from a political struggle banistas en la ciudad. La acción dentro de la Ocu-
and a culture of diaspora. This possibility gives us pación, y específicamente dentro de su cocina,
new instruments to address the collective repro- es una posibilidad que surge de una lucha política
duction of life in city planning, in the face of the y una cultura de diáspora. Esta posibilidad nos
current neoliberal disruption scenario. brinda nuevas herramientas para abordar la re-
producción colectiva de la vida en el urbanismo,
ante el actual escenario de disrupción neoliberal.
SQUAT COLLECTIVE KITCHEN REPRODUCTIVE WORK

OCUPACIÓN COCINA COLECTIVA


TRABAJO REPRODUCTIVO
EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
Ao abordarmos as cidades latino-americanas,
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
percebemos os limites dos conceitos instrumen-
tais elaborados em contextos completamente
diferentes, que não são neutros. No campo da
sessão temática
arquitetura, a historiadora e crítica argentina Ma-
rina Waisman aponta que a relação teoria, práxis

O LUGAR DO CRUZO e crítica, que fundamenta o desenvolvimento do


sistema de valores arquitetônicos, encontra-se
interrompida nos países marginais (WAISMAN,
THE CROSSROAD’S PLACE 2013). O nosso contexto é marcado por imposi-
ções, disrupções, descontinuidades e rupturas.
EL LUGAR DE LO CRUZO
Os chamados estudos descoloniais nas ciências
humanas no final do século XX marcaram uma
nova rodada de consciência cultural e histórica na
América Latina, em que a proposição sistemática
de novas epistemologias, contra a mera imitação
de modelos das metrópoles, questiona o mito do
progresso (BALLESTRIN, 2013). Em países que
deixaram de ser colônias há tempos, mas que
permanecem dependentes cultural e economi-
camente, percebe-se o esgotamento e os limites
dos conceitos dos países centrais, recorrendo-se
à ideia de subversão da ordem e à afirmação de
valores “próprios” e culturas seculares.

Fruto de uma historiografia relativamente re-


cente, que buscou os sujeitos silenciados ou in-
visibilizados pelas narrativas mais recorrentes,
experiências e saberes tidos como “cultura in-
formal” emergem com um potencial pedagógico
e epistêmico.Trata-se de contar a história a partir
da diáspora, da travessia do Atlântico, do êxodo
rural, ou das margens que fundam a sociedade
moderna. A voz das ruas, da “viração de perren-
gue”, das frestas e das macumbas, são tomadas
como fonte, e trazidas para as universidades e
para a produção acadêmica. Em seu texto “Os
sentidos da Informalidade”, o historiador Lincoln
Secco constrói um referencial historiográfico
que teve como objeto o “setor populacional que
não se enquadrava nas categorias fundamentais
da economia”. O autor recupera uma tradição de
historiadores, sobretudo do ambiente uspiano
com destaque para as mulheres Maria Odila Leite
Silva Dias, Laura de Mello Souza, e Emilia Viotti
da Costa, que em seus trabalhos tiveram como
16º SHCU objeto esse amplo contingente populacional, para
30 anos . Atualização Crítica
o qual as frestas da economia formal, configu-
1142 ra a “informalidade, a rotatividade, a fluidez, a
sazonalidade e a exploração sem limites”, he- a leitura do universo popular das ruas e de suas
rança colonial que sempre esteve presente na produções, proporciona visões da cidade como
sociedade brasileira (SECCO, 2020). Desde os um todo e o cruzamento de diferentes disciplinas:
vadios e agregados coloniais, até os motoristas de história, antropologia, urbanismo, sociologia etc.
aplicativo do século XXI, a informalidade aparece Mas fala-se também do cruzo, o encontro ou o
como uma constante, colocando em questão o confronto, entre os saberes oriundos de outras
que entendemos propriamente como trabalho. fontes.
No continente latino americano, tais economias
chamadas de “informais” configuram formas de Nas práticas urbanas, cujo tempo histórico é o
trabalho majoritárias, e “que não se enquadram cotidiano, se organizam de forma complexa e
na categoria marginal simplesmente porque não entrecruzada, sobrepondo
são estritamente remuneradas”. (GAGO, CIELO,
“as fronteiras entre o formal e o informal,
GACHET, 2018. p. 16) Essa interpretação é im-
subsistência e acumulação, o comunitário e
portante para não pensar tais práticas como o
os cálculos do lucro, e também as fronteiras
“outro” trabalho, mas como uma trama de ações
que são traçadas entre múltiplas escalas e
e práticas que participam ativamente de nossa
fronteiras nacionais. O resultado é o deslo-
sociedade, e que podem gerar alternativas para
camento dessas delimitações, sua reconfi-
interpretá-la e questioná-la. “Estamos, de muitas
guração e, em alguns casos, seu desfoque.
maneiras, diante de uma definição de conflito,
” (GAGO, CIELO, GACHET, 2018. p. 11)
ligada a um debate que é ao mesmo tempo epis-
temológico, conceitual e político. ” (GAGO, CIELO, Nas práticas urbanas, cujo tempo histórico é o
GACHET, 2018. p. 13). cotidiano, se organizam de forma complexa e
entrecruzada, sobrepondo “as fronteiras entre o
Em sentido diverso, mas dialogando diretamente
formal e o informal, subsistência e acumulação,
com as reflexões mais acadêmicas, o historiador
o comunitário e os cálculos do lucro, e também
Luiz Antonio Simas evoca o cruzo entre sabe-
as fronteiras que são traçadas entre múltiplas
res para produzir um “sarapatel que une Bach
escalas e fronteiras nacionais”. (GAGO, CIELO, GA-
e Pixinguinha, a semântica do Grande Sertão e
CHET, 2018. p. 11). Essa interpretação se aproxima
a semântica da sasanha das folhas, Heráclito e
do conceito do “entre”, descrito pela autora texana
Exu, Spinoza e Pastinha, a biblioteca e a birosca”
Gloria Anzaldua como los interstícios2 em que se
numa prosa de fronteira, que parte dos saberes
encontrariam as economias populares deslizando
populares. (SIMAS, 2019. p. 56)
entre a “oscilação e a problematização”. E se dife-
Em diálogo direto com Simas1, o educador Luiz rem das formas revolucionárias mais clássicas,
Rufino escreve sobre o potencial de “uma política já que a diretriz é a “experimentação teórica e
parida nos vazios, uma pedagogia que se tece nas prática das formas produtivas”, sem um ponto de
invenções cotidianas, dos cacos e aquilo que em chegada preestabelecido, ou uma regra a priori
meio aos escombros permanece vivo”. (RUFINO, que indique o caminho para confrontar as relações
2019. p.5) São as encruzilhadas e Exu, a entidade de exploração e o domínio do capitalismo. (GAGO,
do Candomblé, como seu dono, que representam CIELO E GACHET, 2018. p. 11)
o saber praticado nas margens, ou as “sabedorias
Nesse exercício, desde o campo disciplinar da ar-
de fresta”. Para o autor, a encruzilhada é a pos-
quitetura e do urbanismo, o objetivo deste artigo é
sibilidade de uma interpretação do mundo não
dicotômica ou binária, que escapa a uma visão
cartesiana e eurocêntrica. Rufino evoca Exu como 2. A texana Gloria Anzaldua pensou de maneira muito origi-
potencial pedagógico e epistêmico, transbor- nal as ideias de fronteira e hibridismo, utilizando a própria
dando seu contexto religioso a fim de criar um palavra fronteira em sentido literal e figurado. Em seu livro
campo historiográfico próprio. Dessa perspectiva, Borderlands/La frontera: The New Mestiza (1987), combinan-
do prosa e verso, ela explora as fronteiras físicas, culturais,
e simbólicas entre México e Estados Unidos para descrever
1. SIMAS, Luiz Antonio; RUFINO, Luiz. Fogo no mato: a o conceito de mestiza. Esse espaço, que ela chama de los
ciência encantada das macumbas. Rio de Janeiro: Mórula interstícios, representa um pensamento de aproximação e
Editorial, 2019. assimilação das diferenças.
EIXO TEMÁTICO 2 construir uma visão não dicotômica. Pretende-se
reconstituir as tramas de um processo histórico
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS semelhante ao das sociedades transicionales3
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES (BALLENT, 2009), mas que tenha como ponto de
partida a experiência dos movimentos de mora-
dia, buscando desde aí uma abordagem ampla
de todos os atores, para entendê-los para além
da ideia de direito à cidade, tomada muitas vezes
em abstrato.

Como recorte, a lupa é colocada diante da expe-


riência da Ocupação 9 de Julho em São Paulo,
para recuperar os momentos que transpassam
os fatos oficiais, e dar protagonismo ao espaço
que revela a luta pela reprodução. O olhar volta-se
ao espaço que é definido como “privado”, onde a
lógica não é a da mera resistência, mas da rein-
venção da própria existência, que não é pautada
pelos valores da sociedade que tende a excluir os
corpos que ali estão.

O esforço de trazer o trabalho reprodutivo como


mote para pensar a cidade, e colocá-lo no cen-
tro de nossa atuação, vai no sentido de pensar a
“redefinição da esfera privada como uma esfera
de relações de produção e como terreno de luta
anticapitalista. ” (FEDERICI, 2019, p. 214-215). A
dimensão política do cuidado com a sobrevivência
das famílias que ocupam o edifício da 9 de Julho
mostra que, ao alcançar uma esfera coletiva, esse
trabalho se torna mais “libertador e criativo para
a experimentação das relações humanas” (FEDE-
RICI, 2019, p. 230).

A ação dentro da Ocupação, e especificamente


dentro de sua cozinha coletiva, é uma possibilida-
de que surge a partir de uma luta política e de uma
cultura de diáspora. Entende-se que na vida urba-
na contemporânea, marcada pela colonialidade
dos saberes, é nos corpos que estão as divergên-

3. Em seu texto “Learning from Lima” Anahí Ballent analisa


a atuação do arquiteto inglês John F. C. Turner no Peru, e
seu interesse em aprender a partir do “conhecimento e dos
instrumentos construídos pela pobreza e pelas habilidades
dos pobres de colocar esses instrumentos a serviço de sua
ascensão social”, no que a autora denomina como “socie-
dades em transição” (sociedades transicionales). Assim,
não se tratando do que Oscar Lewis chamou de “cultura
16º SHCU
da pobreza”, Turner buscava conhecer a pobreza “ciente de
30 anos . Atualização Crítica
suas possibilidades de integração social e de pertencer a
1144 uma sociedade moderna” (BALLENT, 2009, p. 90)
cias, as transgressões, e as re-existências produ- em teoria, seria assegurado pela Constituição de
zidas por essas culturas. Os corpos submetidos a 1988. Ocupar foi também uma via de ação política
distintas formas de diáspora, produzem cultura em defesa desse direito constitucional que esbar-
própria para existir, e deles emergem situações ra em burocracias utilizadas como instrumento
potenciais de culturas e sociabilidades infinitas. político para conservar privilégios na distribuição
Essa cultura de diáspora jamais é centrada no dos benefícios urbanos.
indivíduo, mas é a reconstrução permanente de
coletividades diante de um cenário de desagre- As ocupações são substancialmente uma prática
gação (SIMAS, 2020). que expõe as contradições históricas. Se por um
lado nascem à margem dos processos legais, por
outro lado, tem como premissa a defesa de um
direito constitucional4. Em São Paulo, a moradia
OS MOVIMENTOS DE MORADIA E A CONSTRUÇÃO como direito universal e o uso da função social
DE NOVOS COMUNS da propriedade são garantidos através do Parce-
lamento, Edificação e Utilização Compulsórios
São Paulo foi, desde sua ocupação como acampa- (PEUC), instrumento previsto na Constituição
mento provisório de alguns bandeirantes, uma ci- Federal de 1988 (art. 182), mas também no Esta-
dade de grandes contradições. Ao longo do século tuto da Cidade (Lei 10.257/2001) e no Plano Diretor
XX, sobretudo no período do pós-guerra, a cidade Estratégico (Lei 16050/14), que tem como objetivo
expandiu-se alcançando dimensões colossais, ao reorientar o uso de imóveis não edificados, su-
mesmo tempo que seu centro acumulou espaços butilizados ou não utilizados para o cumprimento
vazios e vacância. Hoje, como a maior parte das da função social da propriedade.
cidades localizadas no “Sul global”, em sociedades
consideradas “emergentes”, o capital imobiliário Os movimentos de luta por moradia encontraram,
procura constantemente novas centralidades, portanto, uma forma de contestar o processo de
mas ao retomarmos a lógica do passado, vê-se cercamento social5 ao qual foram submetidos. O
que a ação predatória tem fundamento em pro- centro de São Paulo ainda enfrenta o paradoxo
cessos de longa duração. Atualizando a situação de grande parte das grandes cidades brasileiras,
de diáspora, a crise habitacional do século XX, é suas áreas centrais são muito bem equipadas com
um dos problemas mais sérios que aflige os pobres infraestrutura, justamente onde se encontra a
na capital. Paralelamente, de acordo com o último maior parte dos imóveis vazios. Essa contradição
Censo do IBGE, foram quantificados 293.621 do- alimenta as lutas pela cidade e ao “gingar” com a
micílios vagos na cidade. A Secretaria Municipal lei, as pessoas inventaram práticas espacializa-
de Urbanismo e Licenciamento notificou 1.198 das de cidadania insurgente, inventando um novo
desses imóveis e, dentre eles, 860 localizam-se
nas Prefeituras Regionais da Sé e da Mooca, re-
4. A ambiguidade entre o direito de uso e a posse da pro-
giões da cidade onde está concentrada a maior
priedade é outro fator de longa duração na reprodução das
parte da infraestrutura urbana, dos empregos e
desigualdades urbanas. Raquel Rolnik, em seu livro “A Cidade
da infraestrutura cultural e de lazer, local também e a Lei”, aponta para a contradição provocada pela Lei de
da grande maioria das ocupações em imóveis. Terras de 1850, quando a posse da terra, dada em concessão
condicionada a um uso, passa para o sistema de titulação
No curso desse quadro a luta pelo direito à mo- que independe de sua destinação. (ROLNIK, Raquel. A cidade
radia e à cidade emergiu nos anos de 1980 como e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de
parte do processo de redemocratização (ARA- São Paulo. Studio Nobel, 1997.)
VECCHIA-BOTAS, 2005). Desde da década de 1990,
5. No sentido elaborado por Federici, “a separação dos
os movimentos sociais têm sistematicamente
produtores de seus meios de (re)produção, bem como a
ocupado prédios vazios, em resposta à enorme destruição de qualquer atividade econômica não orientada
crise habitacional que se observa na cidade. Es- para o mercado” veio acompanhada do que a autora chama
tima-se que atualmente há 358 mil pessoas sem de “cercamento social”, ou seja, “a reprodução dos trabalha-
moradia, engrossando o déficit habitacional na dores passou do campo aberto para o lar, da comunidade
grande metrópole. Pessoas que não têm um direi- para a família, do espaço público para o privado.” (FEDERICI,
to fundamental assegurado verdadeiramente, que Silvia. Calibã e a bruxa. São Paulo: Elefante, 2017.)
EIXO TEMÁTICO 2 jeito de morar, de conviver, de se reproduzir. Esse
fazer-cidade insurgente nos mostra caminhos
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS para uma forma radicalmente diferente de pensar
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES e de intervir na renovação urbana.

“Esses espaços se tornam ponta de lança


para pensarmos a organização social do es-
paço urbano. A partir dessa perspectiva, é
possível pensar os edifícios organizados em
ocupações para moradia e cultura como os
novos monumentos do centro, portadores
de valores a serem enaltecidos por meio da
ativação de seus moradores organizados
e por toda a rede de apoio que mobilizam
(artistas, agentes de saúde, advogados,
educadores, jornalistas, vizinhos). São pos-
síveis monumentos de hoje, devido à sua
representatividade social e política, que
propiciam uma revisão da construção iden-
titária e simbólica do espaço construído”.
(FERRARI, 2019, pp.101)

Nesse sentido, a Ocupação 9 de Julho surge como


um exemplo emblemático. Localizada no bairro
da Bela Vista, em uma das áreas nobres do centro
de São Paulo e entre espaços estruturalmente
ocupados por uma determinada classe social, o
antigo prédio do INSS permaneceu desocupado
por mais de 30 anos. Construído em 1940, projeto
do arquiteto Jayme Fonseca Rodrigues, o edifício
marcava a verticalização da cidade subindo com
14 andares em concreto e mármore. Um marco
da modernidade cosmopolita, as escadarias e o
pórtico monumental na entrada estavam voltadas
para a Avenida Nove de Julho, uma das grandes
avenidas de São Paulo. O prédio era dividido entre
os escritórios do Instituto de Aposentadorias
e Pensões dos Empregados em Transportes e
Cargas (IAPETC) e grandes apartamentos para
sua elite burocrática. Grandes varandas e ter-
raços compunham a paisagem e as fachadas do
majestoso edifício. (ARAVECCHIA-BOTAS, 2016).

Jayme Fonseca Rodrigues, o edifício marcava a


verticalização da cidade subindo com 14 andares
em concreto e mármore. Um marco da moder-
nidade cosmopolita, as escadarias e o pórtico
monumental na entrada estavam voltadas para
a Avenida Nove de Julho, uma das grandes ave-
16º SHCU nidas de São Paulo. O prédio era dividido entre
30 anos . Atualização Crítica
os escritórios do Instituto de Aposentadorias
1146 e Pensões dos Empregados em Transportes e
Cargas (IAPETC) e grandes apartamentos para diversas tentativas de reocupar o prédio, seguidas
sua elite burocrática. Grandes varandas e ter- de violentas reintegrações de posse.
raços compunham a paisagem e as fachadas do
majestoso edifício. (ARAVECCHIA-BOTAS, 2016). É apenas em 2014 que o MSTC volta para o
antigo edifício do INSS. Apesar de um confronto
Na década de 1970 o prédio foi esvaziado para ser inicial com a polícia, os moradores conseguem
sede de repartição pública em São Paulo, o que permanecer e iniciam o processo de limpeza
nunca chegou a acontecer. Em 1997 foi ocupado e adaptação do edifício. Além do mutirão para
por pessoas que formariam, posteriormente, o retirada de toneladas de lixo dos andares do
Movimento Sem Teto do Centro (MSTC). Em torno prédio, as primeiras medidas adotadas foram a
de 150 famílias trabalharam dia e noite nos mu- organização da cozinha e de um banheiro coleti-
tirões que limparam o antigo edifício desocupa- vos. A partir daí, toda transformação no edifício,
do, retirando toneladas de lixo. Desde o início o e da área do terreno que ele ocupa, é obra de uma
movimento buscou a aproximação com o poder construção coletiva. As famílias providenciaram
público, para que a ocupação se traduzisse em um as instalações técnicas básicas, de eletricidade,
projeto de reforma que fosse permanente para a água, gás e esgoto; e subdividiram os amplos
habitação das famílias. Os moradores montaram apartamentos da antiga elite burocrática do IA-
uma organização interna, sempre aliada à uma PETC com painéis de madeira, alvenaria e drywall,
forte articulação política. a fim de abrigar um maior número de pessoas.
A luta pela elaboração do projeto de reforma re- Os espaços coletivos receberam igualmente o
cebeu apoio da Assessoria Técnica Ambiente devido cuidado. Aproveitando o espaço do ter-
Arquitetura, que também apoiou a construção ceiro andar, antes ocupado com escritórios, or-
de novas unidades de habitação social nos terre- ganizaram salas de aula, de reunião e diversos
nos próximos ao edifício. Ainda contou com ação outros equipamentos comunitários. O edifício
pública, por meio do Procentro e da Companhia se tornou a sede principal do MSTC, mas também
Metropolitana de Habitação de São Paulo (COHAB).
um importante pólo coletivo, cultural, artístico e
Todo o processo foi permeado pela intensa par-
comunitário da região.
ticipação das famílias que ocupavam o edifício
através de reuniões, workshops e negociações. Importante destacar que as principais lideranças
Nas salas da 9 de julho, a partir dessa organiza- do movimento são mulheres. A partir do cuida-
ção, as mulheres desta ocupação, mas também do com a reprodução de suas famílias, elas te-
de outras, formaram o Movimento Sem-Teto do cem importantes redes de apoio e assistência,
Centro. Tendo como líder Carmen Silva Ferreira, construindo espaços seguros para si e seus vi-
baiana, mão de 8, filha de empregada domésti- zinhos, que são também companheiros na luta
ca e militar. O trabalho de cuidar de um espaço por moradia. A percepção de uma vida incer-
recém-ocupado cria e fortalece as relações de ta e provisória, típica da situação de diáspora,
cooperação e solidariedade. leva a ações contínuas, num processo em que a
luta é a forma da existência: «Quem não luta tá
A liderança de Carmem é paradigmática dos diver-
sos perfis sociais que compõem os movimentos morto» é a frase sempre proferida por Carmem
de luta por moradia em São Paulo, mas que têm Silva, estampada em lambes, faixas e camisetas.
em comum o desterro, formando o que pode ser Essa experiência traz uma ampla dimensão para
entendido como a energia do pensamento e da a moradia, que vai muito além de um teto e quatro
ação diaspórica. paredes. A luta constante pela sobrevivência
vem assim, imperativamente, acompanhada da
Em 2001 o MSTC, aliado a outros movimentos construção da cidadania, realizada a partir de
por moradia cria a FLM (Frente de Luta por Mora- diferentes iniciativas. As mulheres, sobretudo
dia), grupo de articulação e cooperação entre os as mais pobres, historicamente são uma classe à
movimentos. O prédio na 9 de Julho é desocupa- margem, e são silenciadas pelas políticas urbanas
do em 2003, após a promessa da prefeitura em hegemônicas, que apagam seus corpos da cidade
transformá-lo em um conjunto habitacional. No e transformam as ruas em lugares perigosos para
entanto, o projeto não é consumado e se seguem os corpos femininos.
EIXO TEMÁTICO 2 O Estado, ao privar determinados corpos dos es-
paços públicos da cidade, protagoniza um ataque
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS disseminado às formas de sociabilidade coletivas,
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES que impulsiona a disciplina social e arma uma
campanha sanguinária contra a cultura popular.
Esse ataque teria resultado na

“dessocialização ou descoletivização da
reprodução da força de trabalho, bem como
a tentativa de impor um uso mais produtivo
do tempo livre.” Nesse processo de cerca-
mento social, “a reprodução dos trabalha-
dores passou do campo aberto para o lar,
da comunidade para a família, do espaço
público [...] para o privado. ” (FEDERICI, 2017.
p.162-163)

A apropriação do espaço público sem uma finali-


dade produtiva, sem uma objetividade geradora de
capital, aparece como a forma mais contundente
de transgressão da ordem vigente.

No contexto atual de crise econômica, social,


ecológica e sanitária generalizada, emerge uma
necessidade urgente de construir maneiras não
capitalistas para reproduzir a vida, reinventando
aquelas financiadas pelos Estados e mercados.
Tais formas de reprodução são chamadas de
“comuns”, o que Christophe Aguiton identifica
como “processos de gestão social sobre dife-
rentes elementos e aspectos necessários para a
coletividade humana” 6. Seriam embriões de um
sistema social radicalmente novo,

“no qual a reprodução decorre da participa-


ção direta de comunidades de produtores
que reclamam, compartilham e agrupam
recursos de vários tipos, impulsionados
por valores fundamentalmente opostos
aos incorporados nos circuitos do capital:
solidariedade, ajuda mútua, cooperação,
respeito ao ser humano e ao meio ambiente,
horizontalismo e democracia direta.” DE
ANGELIS, 2012. p.xiii).

Na Ocupação 9 de Julho, o sistema de cuidado


coletivo criado não se resume ao edifício ocupado,
mas estende-se às famílias que fazem parte dele.

16º SHCU
6. SOLON, Pablo. Alternativas Sistêmicas; Bem Viver, De-
30 anos . Atualização Crítica
crescimento, Comuns, Ecofeminismo, DIreitos da Mãe Terra
1148 e Desglobalização. Editora Elefante, 2019.
Colocando a reprodução das famílias como ponto O trabalho de cuidado é um aspecto particular do
central do movimento, num processo inverso ao trabalho reprodutivo, que inclui também:
de cercamento social, o movimento costura redes
de provisão, afeto e apoio. No entanto, entende-se “limpeza doméstica, compras, preparação
a luta por moradia não como um oásis comuni- de alimentos, lavanderia, pagamento de
tário, mas como uma construção contínua, que contas, cuidados de intimidade e apoio
é constantemente ameaçada pelos poderes he- emocional, como ouvir e consolar; ter filhos,
gemônicos. O sistema de cooperação construído ensiná-los e discipliná-los também é uma
não faz parte de um mundo baseado no cálculo parte importante do trabalho reprodutivo.
e na acumulação, “mas as próprias comunidades Devemos adicionar o trabalho inominável
constituem tensão, negociação e os interstícios e sem nome necessário para antecipar,
do capital”. (GAGO, CIELO e GACHET, 2018. p. 16) prevenir ou resolver crises, manter boas
relações com parentes e vizinhos, enfren-
A ação do MSTC no antigo edifício do INSS ensaia tando as crescentes ameaças à nossa saú-
a possibilidade de construir um espaço demo- de - através dos alimentos que ingerimos,
crático, no terreno produtivo e reprodutivo. A da água que bebemos. ” (BARBAGALLO,
ocupação não é um fim nela mesma, mas funcio- FEDERICI, 2012. p.15)
na também como espacialização das demandas
políticas do movimento, que luta por transformar A condição invisível desse trabalho o condena à
a “cultura informal” em uma política pública de ha- uma situação gratuita de não-trabalho, que jus-
bitação segura, coletiva e acessível. Dessa forma, tifica a exploração de quem é responsável pela
o aprendizado adquirido na 9 de Julho acompanha reprodução da vida dos trabalhadores, principal-
as famílias que são atendidas por algum programa mente mulheres. Assim, a luta dessas mulheres
governamental e se mudam, criando novas redes escancara essa contradição. O movimento por
de cuidado em suas novas casas. moradia procura transformar não apenas o traba-
lho reprodutivo, mas também o trabalho em geral
Para o desenvolvimento e sobrevivência dos bens e em casa, inventando novos espaços comuns,
comuns, e também para sua estruturação e or- cruzando saberes e construindo pontes entre
ganização em uma rede mais ampla, eles devem todos os agentes desse processo.
ser concebidos como locais-luta, além de formas
alternativas de reprodução de vida. A transforma- Assim, a interpretação sugerida aqui é pensar
ção, construída a partir dos comuns, acaba por ir o trabalho reprodutivo no âmbito da cidade. A
além da lógica da sobrevivência, inventando uma atuação cotidiana dos movimentos de moradia,
nova forma de vida. Dessa forma, como sugere encarna e enuncia corpos transgressores e re-
Luiz Rufino “não sairemos do mato, mas traremos silientes. (RUFINO, 2019, p.9). Reinventa novas
os senhores para o mato. ” (RUFINO, 2019) formas de “reapropriação e recoletivização da
reprodução, o que é indispensável se quisermos
recuperar o controle sobre nossa vida” (FEDERI-
CI, 2019, p. 232). Sem adotar como motor central
O LUGAR DO CRUZO a própria reprodução de seus participantes, os
movimentos podem se perder e se tornar espo-
rádicos e dependentes.
A cozinha Ocupação 9 de Julho e a luta
por reprodução Nesse sentido, um dos espaços mais emblemáti-
cos da 9 de Julho é a cozinha coletiva. No processo
Na Ocupação 9 de julho, ao aliar o espaço do- de ocupação foi o primeiro espaço a ser montado,
méstico à luta social, o grupo de mulheres líderes para garantir a alimentação das famílias e a per-
mostra o que o sistema procura cada vez mais manência do movimento no prédio. A preocupação
esconder, a enorme importância que o trabalho com a fome e com a alimentação põe em questão
reprodutivo tem para a manutenção do capital. a subsistência e a reprodução de uma população.
Quando falamos em trabalho reprodutivo, falamos Comer é o mínimo que uma pessoa precisa para
do trabalho doméstico, do trabalho de cuidado viver e o mínimo que uma sociedade precisa para
com idosos, com crianças, mas não apenas isso. se reproduzir.
EIXO TEMÁTICO 2 No âmbito do campo disciplinar da arquitetura
e do urbanismo, em já clássico trabalho, Carlos
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS Lemos investigou as correlações entre as ativi-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES dades de repouso, estar e serviços nas casas das
classes altas, médias e operárias paulistanas.
Ele observou que na casa dos ricos essas três
esferas encontram-se claramente delimitadas e
dificilmente se cruzam, quando nas casas pobres
elas se encontram sobrepostas. Estar e serviço
formam um mesmo ambiente, “fica-se à von-
tade na cozinha, costura-se, ouve-se rádio na
cozinha, as crianças fazem lição na cozinha e a
família reúne-se aos domingos na cozinha para
comer e ouvir o jogo de futebol. ” (LEMOS, 1989) A
cozinha vira um espaço de sociabilidade, de estar.
Ao transpor a “área de serviço” e compartilhar o
trabalho de reprodução, o espaço doméstico vira
espaço público.

Na Ocupação 9 de julho, porém, além dessa sobre-


posição de funções descrita por Lemos, a cozinha
apresenta também um caráter público. Ela não
está mais restrita ao espaço privado e ultrapassa
seu papel como equipamento de sobrevivência,
tornando-se um espaço de (re)existência. Mesmo
após a instalação das famílias nos apartamentos e
da organização das cozinhas individuais, a cozinha
coletiva permaneceu como lugar de encontro, de
trocas, de partilha de refeições e virou o nó da
resistência da ocupação.

Lá, a preparação das comidas aproxima todos


os presentes, considerando suas individualida-
des. O cozinhar é repleto de momentos infor-
mais, aprofundando os laços entre as pessoas e
ajudando a construir uma consciência coletiva. A
cozinha ocupa um espaço político, é um lugar de
decisões, trocas e reuniões. O preparo é pensa-
do em conjunto, os ingredientes são escolhidos
de forma a não apenas alimentar os moradores,
mas providenciar uma alimentação saudável, de
qualidade e saborosa.

Os saberes são horizontais, o espaço é democrá-


tico: cada pessoa pensa uma forma diferente para
o preparo de diversos ingredientes, com muitas
receitas para o mesmo prato. A práxis na cozinha
é sempre negociada, enriquece-se uma receita
tradicional com um novo saber, e trocas de dicas
entre os participantes.
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
Podemos pensar a cozinha Ocupação como uma
1150 encruzilhada, onde ao lado de tomates e cebolas
cozinha-se também histórias e saberes. Assim, a de consciência e organização levou esse grupo
cozinha ganha uma dimensão pedagógica, educa- de mulheres da olla común a uma organização
cional. Quando cozinhamos em ambientes com- pioneira contra a violência de gênero no Chile
partilhados, aprendemos a partir das trocas e dos que permanece importante até hoje. (HINER, 2011)
cruzamentos entre saberes que, em ambientes
formais, estariam explicitamente demarcados. Na 9 de julho, a cozinha é também um poderoso
Nesse formato livre, todos têm a ensinar ou a instrumento de articulação entre a ocupação e sua
aprender, seja uma maneira específica de cor- área envoltória. Uma vez por mês organizam-se
tar certo ingrediente, qual tempero usar, como almoços públicos, que atraem pessoas de dis-
organizar o espaço ou servir as pessoas mais tintos lugares da cidade. As conversas animadas
rapidamente... A cozinha coletiva possui um po- em mesas coletivas juntam pessoas diferentes
tencial político, pedagógico e relacional. em um ambiente democrático e a encruzilhada
acontece naturalmente.
“A alimentação é uma necessidade básica
para a sobrevivência humana, e agencia Em meio ao clima de festa, a aproximação da co-
relações dos indivíduos entre si, com o ter- munidade com a ocupação se dá de forma aberta,
ritório e o sistema político e econômico no descontraída e horizontal. A festa é uma impor-
tante forma de descriminalizar o movimento de
qual se inserem. Cozinhar é também uma
moradia, que sofre ataques contínuos da polícia.
forma de se aproximar da alteridade, en-
Em 2019, as principais lideranças da 9 de julho
contrar um território comum que permite
foram encarceradas sem provas contundentes.
atravessar fronteiras e conhecer outros
Enquanto Preta Ferreira, filha de Carmen Silva e
modos de vida e de fazer.” (NERY, FLORES,
importante líder do MSTC, ainda estava em deten-
LOBATO, 2017. p. 75)
ção provisória, a 9 de julho organizou uma grande
A cozinha da Ocupação nasceu com o objetivo de festa junina, aberta ao público. E, alguns meses
lidar diretamente com o problema da fome, mas depois, acolheram a cientista social italiana Silvia
se desenvolveu em uma prática popular coletiva Federici, que falou sobre trabalho doméstico,
para enfrentar as consequências de um mode- reprodução e luta feminista, e a importância de
lo econômico excludente. Nessa perspectiva, resistir ao processo de cercamento social que
a reprodução de cada família deixa de ser uma aliena e coloniza nossos corpos.
responsabilidade individual, “a fome deixa de ser
Assim realiza-se a festa, que “em tempos de crise
uma “culpa” individual por não conseguir alimentar
é mais necessária que nunca.” (SIMAS, 2019)
a família; logo, é preciso o apoio e a solidarieda-
de dos outros para encarar um problema que é Esse cruzamento entre a experiência cotidiana da
comum. ” (CORTÉS, 2018. p.269) luta pela sobrevivência, e a construção de cami-
nhos para alcançar uma cidadania formal, faz das
Importante destacar que essa não é uma experi- ocupações o que Luis Rufino chama de “síncope”,
ência exclusiva, dentro das cozinhas coletivas as que aqui pode ser entendida como a (re)existência
pessoas se aproximam e desenvolvem atitudes nas frestas entre a cidadania formal e opressão
solidárias, sentido de reciprocidade e aprendem cotidiana encontrada por esse grupo de mulheres,
a trabalhar em grupo. O potencial político desse em sua maioria negras e pobres, para garantir seu
espaço foi explicitado, por exemplo, nas “ollas direito à moradia digna. Não se trata de resistir
comunes” (panelas comuns), as cozinhas chilenas à ordem vigente, ou se pautar pelo desenho da
formadas durante a ditadura de Pinochet. Apesar cidade neoliberal que apazigua seus corpos, mas
de não serem uma organização inédita naquele de inventar uma nova existência, novas formas de
país, as cozinhas formadas durante a ditadura sociabilidade, de integração.
foram importantes focos de mobilização contra o
sistema. É o caso da Casa Yela, em Talca, em que Vemos na 9 de julho diferentes ressignificações
um pequeno grupo de mulheres ligadas à Igreja, do verbo “morar”, como escreve a líder Carmen
preocupadas com a repressão política e escassez Silva, ao falar sobre a Casa Verbo, iniciativa para
econômica, montaram um “comedor popular” para formar ativistas para a luta pelo direito à cidade,
suprir a população local. O processo de tomada disseminar informação, mediar as relações com
EIXO TEMÁTICO 2 o poder público. No contexto de pandemia que
atravessamos, também se conformou alí, uma luta
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS contra a Covid-19 e o cuidado com as populações
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES mais vulneráveis:

“A moradia é o que importa, mas queremos


enxergá-la além dela. A Casa Verbo surge
da necessidade de realmente entender que
morar não é apenas se cercar de paredes
e ter um teto por cima. Mas é se cercar de
direitos, de informações, de cidadania. Não
basta partir de um assistencialismo. Não
basta partir da ideia de que você precisa ter
acesso às políticas públicas.” (SILVA, 2020)

Nas ocupações a construção do espaço é feita


coletivamente e, como movimento de diáspora,
trabalha para produzir relações entre moradores
e colaboradores de maneira aberta e horizontal.
Além de uma possibilidade acessível de moradia
segura próxima dos empregos e da maior infra-
estrutura da cidade, os moradores costuraram
uma ampla rede de apoio e cidadania entre eles.
Ao praticarem a autogestão constroem a convi-
vência na transformação dos espaços comuns,
na zeladoria, cuidando do que é de cada um, mas
também do que é de todos.

CONCLUSÃO

Aprendendo com a Ocupação em tempos


de pandemia global

Esse artigo foi escrito durante a pandemia global


de Covid-19. O momento histórico corrobora o
argumento já há muito discutido: o violento neo-
liberalismo sobre o qual construímos a sociedade
contemporânea, que garante sua manutenção
pela exploração e opressão de alguns grupos
sociais e transforma o cidadão em consumidor,
conduziu o mundo a uma crise econômica, social,
sanitária e ambiental sem precedentes.

Os impactos da degradação das condições de vida


de milhões de pessoas são ainda mais evidentes
agora, quando os governos precisam fazer uma
escolha falaciosa entre a vida da população e a
16º SHCU economia do país. Nas redes sociais, publica-
30 anos . Atualização Crítica
ções que alegam que “o desemprego mata mais
1152 que o vírus” parecem dissimular uma realidade
imposta de forma institucional há mais de 500 Casa Verbo7, cozinhando marmitas que são distri-
anos: o capitalismo como sistema depende da buídas a moradores de rua, comunidades carentes
abundância de mão de obra e do desemprego. e outras ocupações pela cidade inteira.
Com o neoliberalismo, a privatização e mercantili-
zação da reprodução da vida, por meio de trabalho A força que esses lugares adquiriram durante a
doméstico pago, principalmente de mulheres pandemia revela a importância de organizações
pobres e negras, antes restrita a países ditos que priorizem a reprodução coletiva da vida, mas
subdesenvolvidos, generalizou-se. A flexibilização não devem se restringir a um contexto emer-
do mercado de trabalho ampliou essa condição gencial. Na verdade, o lema “Lute como Quem
para homens, em sua maioria jovens, pobres e Cuida”, adotado pelo MSTC durante a quarentena
negros, entregadores de aplicativos em moto- em São Paulo, é um importante instrumento para
cicletas e bicicletas. Trata-se da transferência a atuação de arquitetos e urbanistas. É urgente
da reprodução da força de trabalho formalizada, o reposicionamento do trabalho de cuidado e do
para uma massa de trabalhadores pobres e racia- trabalho reprodutivo no planejamento não só dos
lizados, impondo-lhes condições de exploração espaços privados, mas da cidade como um todo.
sem precedentes como única forma de escapar A Cozinha Ocupação 9 de Julho não é apenas um
da fome e miséria. Tudo isso acontece em para- instrumento para sobrevivência à crise, mas uma
lelo à destruição sem precedentes dos recursos possibilidade de repensar todo o sistema a partir
naturais. Esses temas não foram diretamente do qual organizamos nossas relações sociais,
tratados aqui, mas é possível traçar uma corre- recusando a mercantilização total da vida. Pensar
lação entre as iniciativas de economia popular o trabalho reprodutivo como uma questão social
e a temporalidade da crise. Em um cenário de abre espaço para o
desestruturação neoliberal do trabalho conside-
rado “formal”, as economias solidárias são uma “ressurgimento [...] das lutas coletivas so-
resposta emergencial frente à crise da reprodução bre a reprodução, reivindicando o contro-
social. Com renovada criatividade nas formas de le sobre as condições materiais de nossa
organização, essas iniciativas ensaiam formas de reprodução e criando novas formas de
organização social não baseadas no capital ou cooperação em torno desse trabalho que
na mercantilização da reprodução e fornecem escapem da lógica do capital e do mercado”
instrumentos para uma reflexão mais profunda (FEDERICI, 2019. p.230-231)
sobre a intervenção direta na cidade.
Recusar a hegemonia da racionalidade neoliberal
María Gallindo, ativista boliviana e criadora do faz parte da busca de outro corpo social político,
coletivo Mujeres Creando defende que a pandemia um que, como as economias solidárias, reinven-
no Terceiro Mundo é, na verdade, uma crise de
cuidados. O “colôniavírus”, como ela se refere ao 7. A Casa Verbo faz parte do Comitê Popular de Combate ao
Covid-19, escancarou as desigualdades gritantes e Covid-19. “O Comitê Popular de Combate ao Covid-19 leva
tornou visível o que há muito cumpria seu papel de apoio imediato às famílias em territórios vulneráveis ao
forma invisível. A solução encontrada pelos pobres coronavírus na cidade de São Paulo, captando recursos e
na Bolívia foram as cozinhas comuns, uma respos- doações financeiras, estabelecendo parcerias com o poder
ta coletiva à fome. Nesse ato de desobediência público e diferentes atores da sociedade civil. Assim conduz
ao isolamento social, garantem a sobrevivência a Operação Povo Sem Fome para arrecadar e distribuir
doações para os núcleos atendidos na capital. Autoges-
de suas comunidades e “são super eficazes como
tionário, surgiu nos movimentos sociais organizados, sob
medida social contra a fome. Ninguém se atreve
a condução de Carmen Silva Ferreira, ativista pelo direito
a intervir, desqualificar ou desativar qualquer co- à cidade, com a Casa Verbo e o Movimento Sem-teto do
zinha comum ou comunitária” (GALLINDO, 2020). Centro (MSTC). Juntos somam esforços ao programa Cidade
Solidária, da prefeitura de São Paulo. O comitê integra a
A Bolívia não é um caso isolado, e as cozinhas Plataforma Covid-19, organizada por BEĨ Editora, Instituto
comunitárias fazem parte do combate às conse- BEĨ e núcleo de Mulheres e Território do Laboratório de
quências da pandemia em todo continente latino- Cidades do Insper/ Arq. Futuro e Por quê? - economês em
-americano. Na Ocupação 9 de Julho, a cozinha bom português.” (Disponível em: https://casaverbo.com.
continua a funcionar todos os dias, apoiada pela br/ . Acesso em 24/07/2020.)
EIXO TEMÁTICO 2 ta “formas de desobediência à condenação de
‘excluídas’” (GAGO, CIELO, GACHET, 2018. p.17) e
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS nos oferece frestas para outras existências que
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES reivindicam a reprodução ampliada da vida.

É o que Jean Tible denomina “políticas do cultivo”,


uma política dos “ritos e cuidados”. O autor volta o
olhar para formas de vida não-humanas, adotan-
do a floresta como inspiração, num movimento
contrário à modernidade capitalista e racional,
que aliena o Homem da Natureza. A partir de uma
observação atenta da vida animal e vegetal, Tible
conclui que a cooperação e a coletividade não
apenas fazem parte da vida terrestre há milhares
de anos, mas estão presentes em nosso DNA. Ele
sugere, então, “um cultivo de comunidades onde
dormir, acolher quem chega, se reunir, cozinhar e
comer, plantar e se cuidar em espaços construídos
coletivamente. ” A “forma-ocupação territorial
dessas insurgências contemporâneas” são prá-
ticas para viver juntos, aproximando “o cotidiano,
economia doméstica, cuidado e a chamada esfera
da reprodução. ” (TIBLE, 2020. p. 42)

A pandemia sob a qual estamos vivendo faz lem-


brar, como coloca Safatle, “que não há essa coisa
de indivíduo e família, há a sociedade que luta
coletivamente contra a morte de todos e sente
coletivamente quando um dos seus se julga viver
por conta própria.” (SAFATLE, 2020)

Entende-se aqui, que a experiência na 9 de julho


traz novos instrumentos para pensar a atuação
de arquitetos e urbanistas na cidade. Talvez o
mais importante sobre a reivindicação da moradia
pelo MSTC seja não apenas a demanda por habi-
tação social, mas a luta pela própria reprodução
em geral. Vemos a espacialização dessa luta na
Ocupação 9 de Julho, que não separa o trabalho
político das atividades necessárias para a repro-
dução da vida. Na verdade, a vida em comunida-
de é a principal fonte da força política, que não
ignora as necessidades, experiências e práticas
que são intrínsecas à reprodução. Além disso, a
intensificação generalizada da crise econômica
global, ainda agora agudizada pela pandemia de
COVID-19, demanda com urgência a construção de
novas formas sociais que tenham em vista garantir
a reprodução. Tais transformações também evi-
16º SHCU denciam a necessidade de revisão dos preceitos
30 anos . Atualização Crítica
disciplinares da arquitetura e do urbanismo. Para
1154 além dos processos participativos, já defendidos
por arquitetos desde meados do século XX, a REFERÊNCIAS
experiência aqui descrita parece apontar para a
transformação conceitual da própria arquitetura e BARBAGALLO, Camille; FEDERICI, Silvia. “In-
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EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Este artigo investiga a origem e as transforma-
ções nas políticas de saneamento nas cidades
brasileiras entre o Segundo Reinado (1840-1889)
sessão temática e a República Velha (1889-1930), abordando as
formas iniciais de acesso à agua e aos servi-
ços de coleta de esgotos – formas difusas, não
O NEXO PÚBLICO–PRIVADO NA coordenadas e dependentes da mão de obra
escravizada – e a subsequente implantação de
ORIGEM DOS SISTEMAS DE sistemas ditos “modernos”, a partir da criação
das primeiras companhias privadas de sanea-
SANEAMENTO URBANO DAS mento na segunda metade do século XIX. Esta
transição resulta, entre outros fatores, na mer-
CIDADES BRASILEIRAS ENTRE cantilização da água, até então bem de acesso
público. O artigo investiga a seguir os fatores
O SEGUNDO REINADO E A que levaram ao processo de encampação dos
serviços pelo setor público em grande parte dos
REPÚBLICA VELHA (1840–1930) centros urbanos brasileiros a partir da Repúbli-
ca Velha.
PUBLIC-PRIVATE NEXUS IN BRAZILIAN CITIES URBAN
SANITATION SYSTEMS ORIGINS BETWEEN SECOND
SANEAMENTO PÚBLICO/PRIVADO
REIGN AND OLD REPUBLIC (1840–1930)
CIDADES BRASILEIRAS SEGUNDO REINADO
EL NEXO PÚBLICO-PRIVADO EN EL ORIGEN DE LOS REPÚBLICA VELHA
SISTEMAS DE SANEAMIENTO URBANO EN CIUDADES
BRASILEÑAS ENTRE EL SEGUNDO REINO Y LA
REPÚBLICA VIEJA (1840–1930)

XAVIER, Luiz Merino de F.


Doutorando; Programa de Pós-Graduação em
Planejamento Urbano e Regional, PROPUR/UFRGS
arq.luizmerino@gmail.com

SOUZA, Celia Ferraz de


Doutora; Programa de Pós-Graduação em Planejamento
Urbano e Regional, PROPUR/UFRGS
cefsouza2@gmail.com

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1158
ABSTRACT RESUMEN

This article investigates Brazilian cities sani- Este artículo investiga el origen y los cambios en
tation policies origins and transformations be- las políticas de saneamiento en las ciudades bra-
tween Empire (1822-1889) and the Old Republic sileñas entre el Imperio (1822-1889) y la “República
(1889-1930) periods, addressing water and sewa- Vieja” (1889-1930), abordando las formas iniciales
ge collection services initial forms of access – de acceso a los servicios de recolección de agua
diffuse, uncoordinated and enslaved labour-de- y alcantarillado – formas difusas, no coordinadas
pendent – and subsequent so-called “modern” y dependientes de la mano de obra esclavizada – y
systems, starting with precursor sanitation com- la posterior implantación de los sistemas llama-
panies in the second half of the 19th century. This dos “modernos”, comenzando con la creación de
transition results, among other factors, in the las primeras empresas privadas de saneamiento
commodification of water, which until then had en la segunda mitad del siglo XIX. Esta transición
been publicly accessible. The article then investi- resulta, entre otros factores, en la mercantiliza-
gates the factors that led to the process of taking ción del agua, que hasta entonces había sido de
services by public sector in most of Brazilian ur- acceso público. Luego, el artículo investiga los
ban centres from Old Republic onwards. factores que llevaron al proceso de toma de ser-
vicios por parte del sector público en la mayoría
de los centros urbanos brasileños a partir de la
SANITATION PUBLIC/PRIVATE BRAZILIAN CITIES República Vieja.
SECOND REIGN OLD REPUBLIC

SANEAMIENTO PUBLICO/PRIVADO
CIUDADES BRASILEÑAS SEGUNDO REINO
VIEJA REPÚBLICA
EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
A análise da gênese da implantação das infra-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
estruturas e dos serviços técnicos urbanos de
saneamento nas cidades brasileiras recai na ques-
sessão temática tão da atribuição de papéis ao poder público e à
iniciativa privada na provisão destes serviços.
No momento atual, em que se discute no Brasil
O NEXO PÚBLICO–PRIVADO NA a privatização dos serviços de saneamento, en-
quanto em diversos países europeus se considera
ORIGEM DOS SISTEMAS DE a necessidade de retomar o controle público dos
mesmos, é importante perceber que essa questão
SANEAMENTO URBANO DAS perpassa historicamente as diversas fases da
administração pública urbana brasileira.
CIDADES BRASILEIRAS ENTRE
Este artigo vai se concentrar nos processos ocor-
O SEGUNDO REINADO E A ridos a partir da metade do século XIX, durante o
Segundo Império, até a década de 1930 do século
REPÚBLICA VELHA (1840–1930) XX, ao final da República Velha. Neste arco de
tempo se delineiam os primeiros sistemas técni-
cos modernos de distribuição de água e de coleta
PUBLIC-PRIVATE NEXUS IN BRAZILIAN CITIES URBAN
de esgotos no Brasil, quando se estabelece um
SANITATION SYSTEMS ORIGINS BETWEEN SECOND
jogo de forças na disputa pela concessão destes
REIGN AND OLD REPUBLIC (1840–1930)
serviços.
EL NEXO PÚBLICO-PRIVADO EN EL ORIGEN DE LOS O artigo pretende investigar inicialmente a transi-
SISTEMAS DE SANEAMIENTO URBANO EN CIUDADES ção das formas anteriores de acesso à agua e aos
BRASILEÑAS ENTRE EL SEGUNDO REINO Y LA serviços de coleta de esgotos – formas difusas,
REPÚBLICA VIEJA (1840–1930)
não coordenadas e dependentes da mão de obra
escravizada – para a implantação de sistemas
“modernos”, geridos por empresas privadas, equa-
cionados a partir de embasamento médico e de
soluções de engenharia. Esta transição resulta,
entre outros fatores, na mercantilização da água,
ofertada apenas àquela parcela da população que
tinha condições de assinar as “penas domésticas”,
e também na cobrança dos serviços de coleta de
esgotos. Um segundo objetivo do artigo é analisar
os fatores que levaram à alternância no gerencia-
mento e provisão dos serviços de saneamento,
implantados inicialmente através de capital pri-
vado, porém transferidos para o setor público em
grande parte dos centros urbanos brasileiros a
partir da República Velha.

Swyngedouw, Kaïka e Castro (2016), ao discutirem


o nexo entre público e privado nos serviços ur-
banos de saneamento numa análise comparativa
16º SHCU entre diversos países, propõem uma periodização
30 anos . Atualização Crítica
que de forma geral pode ser aplicada ao caso
1160 brasileiro, com algumas adequações:
a) Para os autores, um primeiro período se estende do implantados sistemas “modernos”, ou seja,
até a metade do século XIX, quando a maior parte privatizados, controlados, regulados – e pagos.
dos sistemas de saneamento urbano nos países Na segunda parte serão abordadas as contri-
europeus se constituiu por pequenas companhias buições das técnicas de engenharia durante a
privadas, que proviam algumas partes das cida- República Velha (1889-1930), quando se iniciam os
des (usualmente as mais ricas) com os serviços processos de estatização e em grande medida de
de abastecimento de água e coleta de efluentes municipalização. O caso da cidade de Porto Ale-
(op. cit., p. 15). No Brasil este período pode ser gre, que ilustra bem a dinâmica identificada por
estabelecido a partir do Segundo Reinado, com Swyngedouw, Kaïka e Castro (2016), é discutido
duração até ao final do Império; com maior detalhe, com um olhar comparativo
com outras cidades brasileiras, sendo aborda-
b) um período subsequente se situa a partir da dos os processos ocorridos nas cidades do Rio
década de 1890 e vai até os anos 1930, onde ocorre de Janeiro, São Paulo e Salvador, as maiores em
a estatização do saneamento, decorrente da pre- população no período.
cariedade dos serviços anteriormente oferecidos
e das demandas crescentes por parte das elites
locais. Neste segundo período, os sistemas de
infraestrutura tendem a se consolidar, expan- A ESTRUTURAÇÃO DOS SERVIÇOS DE ÁGUA E
dindo a área de cobertura a setores urbanos que SANEAMENTO NO SEGUNDO REINADO (1840–1889)
crescem em decorrência da expansão industrial.
Ocorrem também investimentos importantes em
infraestruturas, represas e redes subterrâneas
Antecedentes – Primeiro Reinado (1822-1840)
(op. cit., p. 15-16). A estes dois períodos corres-
ponde o recorte temporal deste artigo. O conjunto de leis e decretos urbanísticos promul-
gados no Primeiro Reinado, inspirado nos ideais
Diversos autores abordam a questão do nexo pú- liberais, impulsionará as mudanças necessárias
blico-privado no Brasil para os setores de água e à consolidação de novas formas de viver nas ci-
saneamento, destacando os sucessivos proces- dades brasileiras (MAIA, 2014). Tais normativas
sos de mercantilização e de estatização por que repercutirão na morfologia, nos serviços públicos
passaram estes serviços. Murtha, Castro e Heller e no ordenamento urbano, uma vez que deter-
(2015) elaboram um panorama histórico dos usos e minarão as novas formas de configuração e de
da regulação da água nas cidades brasileiras des- administração das cidades. O papel do estado
de a colônia; Britto e Rezende (2017), ao analisar os imperial brasileiro no tocante a intervenções no
processos de financeirização do saneamento em território inclui o projeto de normatizar o espa-
curso no Brasil, retomam o processo histórico do ço das cidades através de posturas municipais
acesso a estes serviços no país. Almeida (2010), que visavam a civilidade, a higiene, o asseio e o
Pinheiro (2011) e Quintslr (2018) abordam o caso da “aformoseamento”. É também neste período que
cidade do Rio de Janeiro, a qual tem uma lógica o cientificismo e especialmente o pensamento
própria no contexto nacional. Em Porto Alegre, higienista vão fincar as suas bases (op. cit., 466-7).
os principais autores que analisam o acesso ao
saneamento e à água de um ponto de vista históri- Segundo a autora (op. cit., p. 468), ainda no Pri-
co são Rückert (2013) e Ávila (2010). Pinheiro (2011) meiro Reinado, as Câmaras Municipais vão ser
aborda as origens do saneamento em Salvador. regulamentadas para o tratamento do espaço
urbano a partir da Carta de Lei de 1º de outubro de
Na primeira parte será abordada a estruturação 1828, mais conhecida como “Regimento das Câ-
dos serviços de saneamento no período Imperial maras Municipais”. O Regimento é uma normativa
(1822-1889), identificando-se duas fases distintas: que ainda não dá conta plenamente das grandes
o Primeiro Reinado (1822-1840), quando os servi- transformações urbanas e técnicas que se estão
ços de água e esgoto são executados predominan- iniciando no período. É uma legislação centra-
temente por mão de obra escravizada, de forma da na questão do aspecto das vilas e cidades e
pouco ou nada regulada, dispersa e gratuita; e o preocupada com a civilidade de comportamen-
Segundo Reinado (1840-1889), quando vão sen- to dos cidadãos, como se percebe da leitura do
EIXO TEMÁTICO 2 seu Artigo 66, em que são definidas as posturas
municipais, com as atribuições das câmaras de
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS vereadores, quanto aos serviços públicos:
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
Art. 66. As câmaras [...] proverão por suas
posturas sobre os objectos seguintes:

§ 1º Alinhamento, limpeza, illuminação, e


desempachamento das ruas, cães e pra-
ças, conservação e reparos de muralhas
feitas para segurança dos edificios, e pri-
sões publicas, calçadas, pontes, fontes,
aqueductos, chafarizes, poços, tanques,
e quaesquer outras construcções em be-
neficio commum dos habitantes, ou para
decôro e ornamento das povoações (BRA-
SIL, 1828)

No tocante ao abastecimento de água, está-se


diante ainda das formas tradicionais de abaste-
cimento herdadas do período colonial: as fontes,
chafarizes e poços, de onde a mão de obra escra-
vizada abastecia a cidade. O Regimento por sua
vez não diferencia a coleta de resíduos do esgo-
tamento sanitário, tratados como uma questão
genérica de limpeza. Não são abordados ainda
neste momento a necessidade de infraestruturas
como pontos de reservação, redes de adução e
de distribuição de água, ou sistemas de coleta e
condução de esgotos domésticos.

A maior parte das cidades brasileiras até a me-


tade do século XIX continuará a abastecer sua
população através da captação direta de água em
mananciais próximos das áreas ocupadas, com a
distribuição a cargo de mão de obra escravizada
ou venda através de pipeiros e aguadeiros. Este
sistema se complementa com uma rede de po-
ços, bicas e fontes públicas. Em algumas praças
importantes, chafarizes importados auxiliam o
abastecimento. Com a inexistência de técnicas
de tratamento da água, a questão da localização
do ponto de captação era crucial, pois em muitas
cidades havia conflito com os pontos de despejo
dos esgotos, dos restos de matadouros e dos
resíduos domiciliares. A definição dos pontos
de coleta de água e despejo de esgotos era
tema constante das discussões nas câmaras de
vereadores, nos jornais e no âmbito dos governos.

16º SHCU O Rio de Janeiro, por exemplo, chega ao início do


30 anos . Atualização Crítica
século XIX com graves problemas de abasteci-
1162 mento de água. O Rio Carioca, afastado da área
ocupada, desde o século anterior era o principal alguns poços e bicas d’água. Ávila (2010) denomina
manancial de abastecimento da cidade, com adu- esta etapa do saneamento público da cidade de
ção através do Aqueduto da Carioca (1719-1725) Porto Alegre como “fase de limpeza”, tendo por
(ALMEIDA, 2010). Diante da insuficiência desta característica principal as ações do saneamento
fonte principal, novos mananciais são procurados pautadas pela limpeza das ruas, terrenos e águas,
para o abastecimento, resultando na adução das mediante interferências diretas dos fiscais da Câ-
águas do Rio Comprido até o Campo de Santana mara sobre o espaço, como limpar, remover, não
(1808) e na canalização das águas do Rio Maracanã obstruir, construir trapiches para despejos, des-
a partir de 1843 ((BRITTO e QUINTSLR, p. 142). locar cemitérios e hospitais para as partes afas-
tadas e altas, entre outras ações (op. cit., p. 87).
Quanto aos esgotos, no Rio de Janeiro e nas de-
mais cidades brasileiras, os escravos eram os Britto e Rezende (2017) identificam, ainda nessa
responsáveis por recolher os dejetos em tonéis primeira metade do século XIX, a chegada ao país
para jogá-los em fossos e praias. Segundo Pinhei- dos discursos sanitaristas. Para as autoras, “com
ro (2011, p.106), “os primeiros movimentos de mé- o aumento da população e seu adensamento nas
dicos e higienistas reivindicando as necessárias principais cidades do Império, em meio à insalubri-
medidas para solucionar esse problema, apoiados dade ambiental e às doenças, [...] surgiu o debate
pela opinião pública, surgem somente depois da pautado na teoria do contágio e, decorrente deste,
primeira grande epidemia de febre amarela em [...] a premissa de que o microrganismo transmis-
1849-1850”. sor da doença seria democrático, escolhendo suas
vítimas indistintamente” (op. cit., p. 559). Amplos
Em Porto Alegre, o ponto de despejo de matérias debates tomam conta das câmaras de vereadores,
fecais era o mesmo da coleta de água: as praias dos jornais e das associações civis tratando das
do Guaíba. Segundo Ávila (2010, p. 100), em 1837 demandas sanitárias, porém neste momento, a
o Código de Posturas estabeleceu dez locais es- falta de clareza técnico-científica acerca da real
pecíficos com permissão de despejo ao longo
causa das doenças leva a uma carência de solu-
da orla da cidade. O conflito entre os pontos de
ções de engenharia, que vão se viabilizar apenas
lançamento de esgotos e os pontos de captação
a partir da segunda metade do século.
de água é percebido no Relatório do Conde de
Caxias, Presidente da Província, à Assembleia,
em 01 de março de 1846, onde se identificam as
bases de um discurso higienista: Segundo Reinado (1840-1889)
Não havendo nesta cidade fontes públi-
cas ou outros mananciais donde possam A partir de 1850, começam a se manifestar os
os seus habitantes fornecerem-se de boa resultados econômicos da exploração cafeeira e
água, e mostrando a experiência que qua- das reformas tributárias e comerciais implantadas
se todas as moléstias que afligem seus na primeira metade do século. Segundo Murtha,
moradores provêm em parte da impureza Castro e Heller (2015), citando Prado Jr. (1980), “a
das águas, apanhadas nas praias cheias expansão da atividade cafeeira e a ampliação das
de imundícies, e convindo por isso que se relações econômicas com os Estados Unidos, que
construíssem pontes de madeira pelo rio se tornaram o principal importador do Brasil ainda
adentro, a fim de abastecer a cidade de água na primeira metade do século XIX, fortaleceram a
potável, ordenei em julho do ano passado, posição do país [...] Aumenta-se o poder financeiro
que na praça do Mercado, em seguimen- do governo central, que duplica sua receita já na
to a rua Bragança [Marechal Floriano] se década seguinte e consolida sua autoridade. [...]
construísse uma dessas pontes, com 200 Com a aprovação do Código Comercial do Impé-
palmos rio adentro... (MACEDO, 1993, p.113). rio em 1850, o Estado ganha musculatura para
colaborar com a iniciativa privada e estabelece
Os trapiches foram a forma encontrada de acessar regulamentações para as atividades econômicas,
água potável para o abastecimento da população, iniciando um ciclo de investimentos privados em
com evidentes riscos de contaminação. Este sis- atividades de infraestrutura e serviços urbanos”
tema era complementado em Porto Alegre com (op. cit., p. 198).
EIXO TEMÁTICO 2 A este panorama econômico favorável, acres-
ce-se a extinção do tráfico negreiro. Segundo
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS Almeida (2010), “o espaço da rua, que antes da
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES implantação da Lei Euzébio de Queirós em 1850
era o espaço do escravo, considerado a força de
trabalho que movimentava todas as engrenagens
da existência econômica, social e urbana da ci-
dade, sobretudo na manutenção das condições
básicas das moradias urbanas, como por exemplo,
no despejo dos dejetos humanos e na aquisição de
água e víveres vai ser gradativamente substituída
[...] pela mão-de-obra assalariada” (op. cit., p.17).

A partir de então se intensifica a constituição de


empresas de infraestrutura urbana no Brasil, com-
panhias de capital nacional, estrangeiro ou misto,
em geral de pequeno ou médio porte, voltadas ao
abastecimento de água e ao recolhimento de de-
jetos e resíduos. No contexto político-econômico
influenciado pelo ideário liberal, ao Estado cabe,
no que tange aos serviços urbanos, predominan-
temente o papel regulador e fiscalizador, enquanto
que a exploração dos serviços (incluindo implan-
tação e gerenciamento) é delegada à iniciativa
dessas companhias privadas.

A partir de então, as principais cidades brasileiras


iniciam a implantação de tecnologias de captação,
adução, represamento e distribuição da água.
Quanto aos sistemas de esgotos, algumas cidades
optam por implantar redes subterrâneas e outras
mantêm a coleta através de tonéis, através de
empresas contratadas para o desague em pontos
distantes das áreas de captação. Cabe salientar
que, não tendo sido abolido de fato o trabalho es-
cravizado, a implantação destes serviços técnicos
se dá em um contexto de profundas ambiguida-
des e contradições. As inovações tecnológicas,
o cientificismo, o discurso médico-higienista, a
própria noção de progresso, convivem com prá-
ticas arcaicas, conflitantes com o novo cenário
civilizado e “moderno” que se deseja.

Segundo Murtha, Castro e Heller (2015, p. 200), a


provisão de serviços de abastecimento de água
por empresas privadas apresenta alguns servi-
ços pioneiros, como Pernambuco (1838), Alagoas
(1846), Salvador (1852) e Maranhão (1855). Quanto
ao capital inglês, começa a predominar a par-
16º SHCU tir da década de 1870. Segundo Murtha, Castro
30 anos . Atualização Crítica
e Heller (2015), em 1867 Fortaleza passou a ser
1164 atendida por chafarizes da Ceará Water Works
Company Limited; em 1873 instala-se na capital tanto, os serviços prestados não são satisfatórios
de Pernambuco a Recife Drainage Company Li- e são muitas as críticas, especialmente as que se
mited, que atuaria até 1908. Belém foi atendida referem ao “problema da contaminação do subsolo
pela Companhia das Águas do Grão-Pará a partir e ao fato de ser a Baía de Guanabara usada como
de 1881, todas organizadas com capital inglês. uma grande cloaca.” (PINHEIRO, 2011, p. 106-7).

O caso da implantação dos sistemas de sanea- Diferentemente do sistema de esgotos, no Rio


mento no Rio de Janeiro merece neste período de Janeiro a distribuição de água urbana foi pla-
uma atenção especial, por ser a capital do país e nejada e operada durante o Império não por uma
sede da Corte a maior cidade brasileira na segunda empresa privada, mas pelo Ministério da Agricul-
metade do século XIX. No Rio, estabelece-se um tura, Comércio e Obras Públicas – MACOP, através
sistema privado de capital inglês para coleta de da Inspetoria de Obras Públicas. A este respeito
esgotos através de redes subterrâneas, ao lado Almeida (2010) coloca que “desde o início do sé-
um sistema público de abastecimento de água, culo XIX existiam propostas para transformar
controlado e operado em todas as suas fases o abastecimento de água em empresa privada.
pelo Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Todas, porém foram recusadas pelo governo que
Públicas – MACOP (ALMEIDA, 2010). achava ser um enorme prejuízo para o Estado e
a população uma possível privatização da água”
A concessão para os esgotos domésticos do (op. cit., p. 143).
Rio de Janeiro, segundo Pinheiro (2011), é obtida
em 1862, pelo Coronel João Frederico Russel, A implantação do sistema moderno de abasteci-
e vendida em 1863 a Edward Gotto, engenhei- mento de água no Rio de Janeiro ocorre apenas
ro inglês que elaborou os projetos e organizou, no final da década de 1870, posterior a diversas
com capitais da casa bancária britânica Glenn cidades das províncias, que em geral conheceram
and Mills Co., a empresa The Rio de Janeiro City os serviços já na década anterior. Segundo Britto
Improvements Company Limited (op. cit., p.106). e Quintslr (2017), apenas em 1872, com a chegada
do engenheiro Jeronymo Jardim à direção da
Segundo Murtha, Castro e Heller (2015, p.199),
Inspetoria de Obras Públicas, encerra-se uma
“as condições estabelecidas pelo Decreto 1.929
longa etapa de discussões acerca de sistemas
de abril de 1857 determinavam a construção de
alternativos e pontos ideais de captação e de-
sistema [de esgotos] semelhante ao de Leices-
fine-se que “a base do plano de abastecimento
ter, atualizações tecnológicas equivalentes às
d’água da capital deveria estar na canalização
adotadas em Londres, a constituição de capitais
das águas da serra do Tinguá, com a adução dos
financeiros fora do país, prazo de concessão de
rios Iguaçu, Ouro, Santo Antônio e São Pedro”
90 anos, bem como isenção por 33 anos de taxas
(ALMEIDA, 2010, p. 156).
e impostos referentes à importação de toda a
maquinaria, materiais de construção e insumos As obras ficaram prontas entre 1877 e 1880, envol-
para a operação dos sistemas” (op. cit., p. 199). vendo, segundo Britto e Quintslr (2016), “a constru-
ção de represas, de novos reservatórios, de canos
As redes foram implantadas, segundo Silva (2002),
de chumbo para abastecer os prédios particulares
operando o sistema separador parcial inglês – cuja e públicos; de equipamentos para extinção de in-
rede recebia, além do esgoto propriamente dito, cêndios, lavagem de calçadas, abastecimento de
as águas pluviais dos pátios internos e telhados, e torneiras, mictórios e latrinas públicas; aparelhos
livraram os bairros centrais de um dos principais para lavagem de esgotos; fontes e chafarizes a
problemas sanitários do período: o transporte serem instalados em locais designados pela ad-
de tonéis com fezes humanas por escravos e a ministração pública [...]. Em 1878, 8.334 prédios
disposição inadequada dos esgotos domésticos. estavam ligados à rede de água” (op. cit., p. 144).
Em 1864, já funcionam os primeiros segmentos
da rede domiciliar. Em finais do século XIX, qua- Em São Paulo, desde 1863, o governo da Província
se toda a área urbana está conectada à rede de tratava com o engenheiro inglês James Brunless
esgoto. Os contratos com a City foram sendo re- um plano de abastecimento de água e coleta e
novados e aditados até 1947, já no Estado Novo, disposição de esgotos para a capital, quando indi-
abarcando toda a área urbana da cidade. Entre- cou-se a adução das águas da Serra da Cantareira.
EIXO TEMÁTICO 2 O projeto é colocado em prática em 1877, através
da empresa Companhia Cantareira e Esgotos, de
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS capital inglês, que constrói dois grandes reser-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES vatórios de acumulação para represamento dos
mananciais na Serra. Em 1881 foram concluídas as
obras para abastecer de água o dobro da popula-
ção na época, que era de 30.000 habitantes. Em
1882 alguns chafarizes já recebiam águas do novo
manancial e em 1883 os moradores de 71 prédios
do bairro da Luz começaram a receber água em
casa, quando também ficou pronto o reservatório
velho da Consolação com 6.500 metros cúbicos
de capacidade, abastecendo a área central da
cidade (SABESP, 2008).

Na cidade de Salvador, a distribuição de água po-


tável se dará através da Companhia de Águas do
Queimado, criada em 1852, através da Lei Provin-
cial nº 451 (PINHEIRO, 2011). A distribuição de água
se dava principalmente por chafarizes, casas de
venda d’água e em residências, com a instalação
de penas d’água. A Companhia construiu a represa
de Santa Luzia, próxima à Fonte do Queimado,
bem como cisternas e cacimbas pela cidade.
A empresa chegou a instalar um sistema de 22
chafarizes, complementados a partir de 1858,
por um sistema de torneiras para fornecimento
de água aos navios e para combate a incêndio
(op. cit., 2011).

Em 1860, segundo Pinheiro (2011), a venda de água


nos chafarizes de Salvador chegava a 13 mil barris
por dia no verão, e nas penas d’água atingia 8 mil
barris. O contrato com a Companhia de Águas
do Queimado foi renovado em 22 de dezembro
de 1870, prevendo obras para o encanamento
das águas do Riacho Negrão, Fonte da Telha e
Rio Camarajipe. Além disso, a Companhia estava
autorizada a instalar novos chafarizes e obrigada
a construir quatro casas de banho. Entretanto, os
resultados terminam ficando aquém das neces-
sidades da população crescente e de uma cidade
que se estende no território (PINHEIRO, 2011). As
queixas devido à precariedade dos serviços, à
falta d’água e surtos epidêmicos irão atravessar
o Império até a encampação da empresa em 1907
pelo governo do Estado.

Quanto aos esgotos, em Salvador, segundo Pinhei-


16º SHCU ro (op. cit.), só em 1867 a Câmara dos Vereadores
30 anos . Atualização Crítica
passa a se responsabilizar pela coleta, após uma
1166 década de discussões sobre o sistema apropriado.
Em 1869, um contrato é assinado com o eng. An- No decênio final do Império, as reclamações sobre
tônio Luís da Cunha Bahiano para a execução da a qualidade das águas da Companhia tornaram-
rede de esgoto nas edificações e nas ruas, porém -se ainda mais frequentes e ganharam espaço
não é executado. Enfim, a cidade de fato só vai nas páginas da imprensa. Em 1886, o Jornal A
receber um sistema propriamente dito a partir Federação publica um memorando elaborado
da República, quando, em 1905, o Engenheiro pela Junta de Higiene e pela Sociedade Médico-
Theodoro Sampaio é contratado para elaborar -Cirúrgica afirmando que a água consumida pela
um projeto de abastecimento de água e de coleta população era insuficiente e de má qualidade e
de esgotos (PINHEIRO, 2011). que, consequentemente, o poder público deveria
providenciar a captação no Guaíba e que a Compa-
Em Porto Alegre, o primeiro sistema de abaste- nhia Hidráulica Porto-Alegrense deveria fazer re-
cimento de água moderno começa a ser implan- paros nos seus reservatórios (“A Federação”, 23 de
tado a partir de 1861, com a fundação da Compa- novembro de 1886). Problemas de capacidade da
nhia Hydraulica Porto-Alegrense (Pereira, 1991). adutora do Arroio Sabão e da qualidade das águas
O sistema abrangia a definição de um ponto de são continuamente reportados (Macedo, 1993).
captação de água potável na cidade vizinha de
Viamão, a cerca de 14 quilômetros de distância As negociações para a criação de uma segunda
do centro da cidade, nas nascentes do Arroio empresa hidráulica na cidade, que captasse água
Sabão, onde é construída uma represa. Uma rede direto do manancial do Guaíba, iniciam-se no úl-
adutora com canos de ferro conduz as águas até timo decênio do Império. Em 1887, o eng. José
um reservatório enterrado na Praça da Matriz, de Estácio de Lima Brandão apresenta à Câmara
onde partem redes de distribuição da água para Municipal planos para a construção de uma nova
chafarizes e penas domiciliares. O contrato se Hidráulica cujo ponto de captação seria o próprio
dá entre o Presidente da Província, João Leão C. Guaíba, de forma a resolver o problema de insufici-
de Sinimbu, e o doutor Francisco Antônio Pereira ência de água. A Companhia Hydráulica Guaibense
da Rocha, através da Lei n0 466, de 02 de abril irá começar a operar no início da República, em
de 1861. Oito chafarizes de ferro bronzeado são 1891, quando então a cidade passa a operar com
importados da França, sendo distribuídos nas dois sistemas concorrentes.
principais praças da cidade. Em complementação
aos chafarizes, a Companhia Hydraulica inicia Quanto aos esgotos, até 1869 a Câmara de Porto
a implantação de penas domiciliares. Em 1869, Alegre, em conjunto com a Comissão de Higiene
Porto Alegre já contava com 1.082 penas e em limita-se a contratar serviços de limpeza e coleta
1879 já eram 2.056 (op. cit.). de águas servidas, fiscalizar e multar abusos e
eventualmente construir trapiches ou pontes
Já na década de 1870 começam a surgir reclama- para desague no Guaíba. Em setembro de 1869
ções sobre a qualidade das águas da Companhia. (ÁVILA, 2010, p. 147), a Câmara decide pela con-
Segundo Rückert (2013), um ofício da Repartição tratação da coleta de esgotos, para o qual venceu
de Obras Públicas Provinciais datado de 1875, a proposta de Estácio da Cunha Bittencourt, que
denuncia: se propõe fazer este serviço por meio de cubos
hermeticamente fechados, através da Empresa
Continuando a apparecer carregada de in- Salubridade Pública. A Câmara definiu nas ime-
setos a agua que a Companhia Hydráulica diações da antiga Cadeia (na ponta da península)
faz distribuir nesta Capital, e como dessa um lugar onde o empresário construísse um tra-
impureza das aguas possa resultar graves piche para despejar as matérias provenientes do
prejuízos á salubridade publica, mormente asseio público. (op. cit., p. 147). Os serviços são
na presente estação em que tem lugar com iniciados em 1872, mas duram pouco, devido às
freqüência os casos de molestias gastricas; constantes críticas à ineficiência e a sujeira em
assim o communico a V. Exa. para que se que permanece a cidade. O contrato com o mu-
digne mandar por peritos examinar o es- nicípio é rompido em 1875, depois de um surto de
tado das mesmas aguas e as causas que varíola assolar a cidade (op. cit., p. 148). Em 1878 o
determinão as impurezas que infelizmente as Presidente da Província despachou um parecer
tornão impotáveis (RÜCKERT, 2013, p. 1165). à Câmara Municipal, aprovando a contratação de
EIXO TEMÁTICO 2 uma nova empresa, Alvim & Pitrez, para a condu-
ção de materiais fecais e águas servidas. (op. cit.,
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS p. 148). Cubos deveriam ser empregados no servi-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES ço de remoção dos materiais fecais. A empresa,
depois rebatizada de Empresa de Asseio Público,
vai permanecer como responsável pelos serviços
até a proclamação da República (ÁVILA, 2010).

Da análise dos dados acima, percebe-se um mo-


vimento de transição nas cidades brasileiras da
segunda metade do século XIX do modo de dis-
tribuição coletiva e gratuita de água por meio de
chafarizes, bicas e fontes, para um modo baseado
na comercialização da água através de redes pri-
vadas, na maior parte dos casos, de distribuição
de água para os cidadãos. No caso do Rio de Janei-
ro temos o mesmo processo de comercialização
da água, porém controlado pelo poder público
Imperial. No caso dos esgotos, predominam nas
cidades brasileiras o modelo privado de prestação
dos serviços. Um ponto salientado por Murtha,
Castro e Heller (2015) é que “na medida em que se
amplia a cobertura por rede de abastecimento,
a municipalidade vai desativando e demolindo
os chafarizes públicos. Trata-se do processo de
mercadorização da água por meio do serviço de
abastecimento público, da apropriação e comer-
cialização de um bem até então tratado como bem
de acesso irrestrito” (op. cit., p. 200). Pinheiro
(2011), chama a atenção para a convivência dos
dois sistema, onde “o início da comercialização da
água, [...] beneficia primeiro as áreas ocupadas
do[s] Centro[s], cuja população tem maior poder
aquisitivo, e, logo depois, os bairros, enquanto os
pobres continuam se abastecendo nas fontes e
chafarizes das ruas” (op. cit., p. 105).

A REPÚBLICA VELHA E OS PROCESSOS


DE ESTATIZAÇÃO DOS SERVIÇOS DE SANEAMENTO
(1889-1930)

Pesavento (2002), discutindo as transformações


econômico-sociais que se encontravam no bojo
do processo político que implantou a República
no Brasil, menciona a formação de um mercado
de trabalho livre, o crescimento das cidades e o
desenvolvimento e diversificação dos setores
16º SHCU secundário e terciário da economia, propiciando
30 anos . Atualização Crítica
a emergência e fortalecimento de uma “burguesia
1168 urbana apoiada no capital comercial, industrial
e financeiro, assim como de uma pequena bur- Um artigo publicado na Gazeta de Notícias em 4
guesia de funcionários públicos e profissionais de agosto de 1890, citado pelo autor (op. cit, p.
liberais” (op. cit., 2002, p. 178). 202), ilustra bem um novo posicionamento acerca
dos papéis do público e do privado nas grandes
Essa elite, com forte vinculação aos meios técni- obras urbanas:
cos – militares, engenheiros, médicos sanitaris-
tas, assume o poder imbuída do projeto de moder- Cada vez que os argumentos e as demonstra-
nizar as cidades brasileiras. As reformas urbanas ções irrespondíveis mostram que as causas
em diversas cidades brasileiras, entre o final do de todos os nossos males são as péssimas
século XIX e o início do século XX, lançaram as condições higiênicas da cidade, não faltam
bases do moderno urbanismo brasileiro. Segundo espíritos sutis (...) que (...) insinuam a impos-
Murtha, Castro e Heller (2015), ocorreram, não sibilidade de resolver o problema do sanea-
apenas no Rio de Janeiro, mas em Manaus, Belém, mento, porque só a iniciativa particular pode-
Porto Alegre, Curitiba, Santos, Recife e São Paulo ria levá-la a cabo, e nós não temos fé nessas
mudanças que conjugaram obras de saneamen- iniciativas. [...] Em todas as legislações, em
to, obras viárias, embelezamento, bem como as todos os países, assuntos que dizem respeito
bases para um mercado imobiliário em termos à higiene pública e a modificações totais de
capitalistas. O novo grupo dirigente não poupa uma cidade foram sempre da alçada dos
críticas à forma como a questão do saneamento poderes públicos porque é tal a natureza
vinha sendo conduzida durante o Império pelas jurídica do fato que seria uma diminutiu
antigas empresas, denunciando a precariedade e capitis da autoridade, e menosprezo mani-
a ineficiência dos mesmos. Os constantes surtos festo da soberania nacional. (Gazeta de No-
de epidemias colaboram para que paulatinamente tícias, 1890, apud BENCHIMOL, 1992, p. 202).
a gestão dos serviços privados de água e esgotos
O Rio, na virada do século XX assume sua con-
seja questionada pelo corpo técnico dos setores
dição de centro cosmopolita e passa a receber
públicos, cada vez mais qualificados, prepara-
inversões de capital estrangeiro, principalmente
dos nas escolas de engenharia estrangeiras ou na implantação de sua infraestrutura. Em 1902,
nacionais. Rodrigues Alves assume a Presidência da Repúbli-
ca (1902-1906) e designa o Engenheiro Francisco
Um fator importante no processo de estatização é
Pereira Passos para a Prefeitura da capital com
destacado por Braadbaart (2013): a incorporação
o projeto de modernizá-la, transformando seu
de conhecimentos técnicos e experiências pela
aspecto colonial. Suas prioridades são o sanea-
florescente engenharia nacional, a emergência
mento e a modernização da cidade.
de corpos de engenheiros que substituiriam os
estrangeiros na implantação de serviços sani- No Rio de Janeiro são constantes as pressões
tários e que exerceriam forte influência sobre a pela privatização dos sistemas de água, já que os
administração pública. esgotos estavam nas mãos de capitais ingleses
desde a década de 1860. Grupos ligados ao Vis-
A disputa entre o setor público e a iniciativa privada
conde de Mauá, aos investidores do Porto do Rio e
ganha visibilidade através de debates travados nas
à companhia City constantemente pressionavam
páginas dos principais jornais. Benchimol (1992) as autoridades e a opinião pública, apontando os
tratando das reformas de Pereira Passos no Rio de pontos falhos do sistema público de abasteci-
Janeiro, apresenta um quadro das discussões que mento. Segundo Benchimol (1992) durante toda a
se travavam à época. Segundo o autor, “no Império República Velha, entretanto, o abastecimento de
e nos primeiros anos da República, multiplicaram- água se mantém administrado pelo governo fe-
-se as concessões ao grande capital, que prometia deral, agora através da Inspeção-Geral das Obras
regenerar a cidade. Contudo, na virada do Século Públicas do Distrito Federal.
essa questão era objeto de intensas controvér-
sias, prevalecendo a posição de que cabia ao Ao longo do período, diversos decretos alteram
Estado, agora, assumir diretamente a execução a estrutura e as atribuições da Inspeção-Geral,
dos melhoramentos e do saneamento urgente- que passa a se denominar sucessivamente “Re-
mente reclamados pela capital” (op. cit., p. 201). partição de Águas, Esgotos e Obras Públicas”
EIXO TEMÁTICO 2 (1910), “Repartição de Águas e Obras Públicas”
(1911) e “Inspetoria de Águas e Esgotos” (1924), mas
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS sempre mantiveram a prerrogativa da adminis-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES tração federal do abastecimento de água no Rio
de Janeiro.

Já os esgotos, bem como os serviços de gás e


iluminação pública, durante toda a República Velha
e Estado Novo se mantiveram nas mãos de con-
cessões exploradas por companhias estrangeiras,
com uma relação contratual direta com o gover-
no federal. Apenas em 1947 o serviço de esgoto
será absorvido pelo Departamento de Águas e
Esgotos – DAE, com a extinção do contrato com
a empresa The Rio de Janeiro City Improvements
Company Limited’.

Em São Paulo, a República se inicia com graves


conflitos na gestão das águas pela Companhia
Cantareira, de capital inglês. Em 1893, para for-
çar a instalação de rede de água nos domicílios,
a Companhia mandou demolir os chafarizes que
tinha entregue ao público em 1882, o que causou
grande revolta na população. Neste ano, o Estado
assume a gestão do saneamento, criando a Re-
partição de Serviços Técnicos de Águas e Esgotos
da Capital – RAE, (Decreto Estadual, nº 152-A,
de 31 de janeiro de 1893), dirigida por Theodoro
Sampaio, e subordinada à Superintendência de
Obras Pública da Secretaria de Agricultura do
governo do Estado.

A partir de então, o governo estadual ao longo


da República Velha trabalha na ampliação das
aduções e na proteção das nascentes. Em 1890
comprou a área que compõe a superfície atual
do Parque Estadual da Serra da Cantareira, de-
cretada “Reserva Florestal do Estado”. Em 1893
construiu a adutora do Guaraú até o reservatório
da Consolação. Em 1903, o volume médio de água
fornecido à cidade era de 40.119 m3/dia, sendo
que em fins de 1929 a cidade recebia 231.400 m3/
dia (SABESP, 2008).

Em Salvador, em 1904, após décadas de reclama-


ções sobre os serviços de abastecimento de água
na cidade, o município encampa a Companhia do
Queimado (PINHEIRO, 2011). O governo do Estado
contrata o Engenheiro Theodoro Sampaio, para
realizar o projeto e as obras para o abastecimento
16º SHCU de água e coleta de esgotos – a construção de re-
30 anos . Atualização Crítica
presas e de uma estação elevatória –, ampliando
1170 assim a rede de distribuição. Essas obras, que se
inauguram em 1907, abastecem a cidade até 1925, Em 1898, seguindo também os preceitos políticos
quando se realiza um novo projeto, parcialmente orientados por Júlio de Castilhos, Borges de Me-
implantado, para a ampliação da rede, a cargo deiros, o novo Presidente do Estado, comunicava à
do Engenheiro Saturnino de Brito. Desde então Assembleia que havia sido dado início aos projetos
os serviços de água e esgotos estão a cargo do de melhoramentos do saneamento na capital. É a
governo do Estado da Bahia. gênese da Comissão de Melhoramentos e Embe-
lezamento criada no município em 1912 (SOUZA,
Em Porto Alegre, a proclamação da República e 2010), visando um plano de melhoramentos que
especialmente a chegada ao poder do líder posi- possibilitasse à cidade acompanhar de forma
tivista Júlio de Castilhos em 1893, abre caminho harmônica e coordenada a implantação de me-
para um redirecionamento na condução dos ser- lhoramentos já em andamento pelo governo do
viços. Castilhos ressaltava a importância de pro- Estado (implantação do porto da capital, obras
ver a capital com serviços básicos, cujo controle de canalização de esgoto, entre outras) e que
deveria estar a cargo do poder público. Segundo resultou em uma ação de “síntese” das ideias de
Ávila (2010, p. 169), o novo governo enfatizava a modernidade circulantes até então (op. cit., 2010).
importância de prover a capital com serviços de Importante salientar, configurou-se numa inicia-
água, luz, sistema de esgotos, policiamento e tiva pública, quando a maior parte das ações de
outros melhoramentos que a transformariam em melhorias até então haviam sido feitas pela inicia-
uma cidade moderna e progressista. Tais serviços tiva privada, com resultados muito criticados. As
deveriam ser municipalizados, pois os custos obras que deram início ao sistema de canalização
diminuiriam por estarem sob responsabilidade de esgoto começaram a funcionar em 1912. A área
governamental, que não visaria o lucro, ao con- beneficiada por esta rede foi limitada às ruas
trário da iniciativa privada. da área central da cidade, compreendendo 7 mil
prédios (ÁVILA, 2010).
A primeira intervenção se dá nos serviços de es-
gotos. Às voltas com a precariedade dos serviços Quanto ao abastecimento de água, Porto Alegre
de despejo dos cubos no Guaíba, prestados pela inicia a Republica com uma segunda empresa
Empresa de Asseio Público, a Câmara descarta privada, a Companhia Hidráulica Guaibense, que
a construção de um sistema de tubulações de entra em operação em 1º de março de 1891. São
esgoto como implantado no Rio de Janeiro e São implantados inicialmente 6.432 metros de enca-
Paulo. A solução proposta será muito peculiar. namentos para atender 1.065 ligações domiciliares
(FRANCO, 1998). Em seu contrato, além da questão
Em 1893, o poder público municipal começou a
da captação, havia a previsão de aprimoramento
debater a possibilidade de se construir uma es-
do tratamento da água. Até então, não havia água
trada de ferro que viabilizasse a remoção dos
filtrada na cidade. A água era apenas decantada
materiais fecais para a chamada Ponta do Dionísio,
e dos reservatórios era remetida diretamente às
localizada na zona sul da cidade (HUYER, 2010).
torneiras das casas (PEREIRA, 1991).
A estrada de ferro começou a ser construída em
1894, pelo município, através de empréstimos, Inaugurada com grande expectativa por parte da
sendo concluída em 1896. Imediatamente, a In- municipalidade, a expansão da Companhia foi fre-
tendência encerra o contrato com a Empresa de ada por falta de capital e dificuldades de impor-
Asseio Público, transferindo o serviço de coleta tação de equipamentos. Já em 1896 a companhia
de cubos para o sistema ferroviário e encampan- declara a impossibilidade de implantar o sistema
do os serviços de coleta de lixo. Os serviços são de filtragem acordado em contrato e propõe for-
tornados gratuitos para os pobres e obrigatórios necer um filtro Pasteur a cada um dos assinantes
para todas as residências. Em 1909 começam a para a purificação doméstica da água. Em 1904, a
ser implantadas redes de coleta de esgoto na zona Companhia Hidráulica Guaibense foi comprada pelo
urbana da cidade, entrando em operação em 1912 Município, que passou a operar os serviços, através
(op. cit, p. 65). A medida que este novo sistema da Secção de Abastecimento de Água. A munici-
se expande, o transporte de cubos sanitários palidade inicia a construção de uma nova usina de
vai perdendo importância, até ser encerrado em recalque na Rua Voluntários da Pátria com reserva-
março de 1927 (op.cit, p. 80). tórios no bairro Moinhos de Vento (FRANCO, 1998).
EIXO TEMÁTICO 2 Quanto à Companhia Hidráulica Porto-Alegrense,
a mais antiga, a Intendência também teve a inten-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS ção de encampá-la, sem chegar a acordo quanto
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES ao valor de indenização. Apenas em 1926, na ad-
ministração Otávio Rocha, o município adquire
o reservatório na Praça da Matriz, bem como a
rede urbana da Porto-Alegrense.

O processo de encampação das empresas priva-


das de saneamento ao final do período, demons-
tra o fracasso do modelo privatista imperial em
fornecer um serviço abrangente, qualificado e
confiável para o consumidor. Prenuncia também
um período de muito mais intensa nacionalização
dos serviços urbanos a partir da revolução de
1930, atingindo outros setores além do sanea-
mento, como a geração de energia elétrica e os
transportes urbanos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Da análise dos casos estudados, percebe-se como


a implantação dos sistemas técnicos de água e
saneamento acompanharam as transformações
nos sistemas político-administrativos que se es-
tabeleceram no Brasil ao longo do século XIX e
início do século XX. Ao investigar a estruturação
dos serviços de água e saneamento no período
Imperial (1822-1889) nas cidades do Rio de Janeiro,
São Paulo, Salvador e Porto Alegre, onde paula-
tinamente a mão de obra escravizada vai sendo
substituída por sistemas “modernos”, ou seja,
controlados, regulados, privatizados. Ao final do
período está completo o processo de transição
de um antigo sistema de distribuição coletiva e
gratuita de água por meio de chafarizes, bicas e
fontes, para um novo modelo baseado em redes de
distribuição e venda de água para as residências.
Já os sistemas de redes de esgoto demoram a ser
efetivados, com exceção do Rio de Janeiro. Várias
cidades vão conviver com a coleta de esgotos por
tonéis ou cubos até meados do século XX.

O modelo de serviços implantados no Brasil repre-


sentou a busca pela modernização urbana, através
da abertura para a exploração direta dos serviços
públicos pelo capital privado, denotando o caráter
16º SHCU empresarial das iniciativas e sua decorrência
30 anos . Atualização Crítica
fundamental, o acesso preferencial de atendi-
1172 mento à parcela da sociedade com condições de
remunerar os capitais aplicados. Mercantilização REFERÊNCIAS
e desigualdade no acesso, marcam a fase inicial
de implantação destes serviços no Império. ALMEIDA, G. M. A domesticação da água: os aces-
sos e os usos da água na cidade do Rio de Janeiro
Um efeito indireto da implantação de empresas
entre 1850 a 1889. Dissertação (mestrado) – UNIRIO.
privadas na estruturação de serviços urbanos na
Rio de Janeiro, 2010.
segunda metade de século XIX, foi a paulatina in-
corporação de conhecimentos e experiências pela ÁVILA, V. F. de. Saberes históricos e práticas
engenharia nacional, a emergência de corpos de
cotidianas sobre o saneamento: desdobramentos
engenheiros que substituiriam os estrangeiros na
na Porto Alegre do século XIX (1850-1900). Disserta-
implantação de serviços sanitários e que exerce-
ção (mestrado) – Faculdade de Filosofia e Ciências
riam forte influência dentro da administração pú-
Humanas, PUCRS. Porto Alegre, 2010.
blica. É o caso de Teodoro Sampaio e Saturnino de
Brito. Estes fatores contribuem para o processo BENCHIMOL, J. L. Pereira Passos: um Haussman
de estatização das antigas companhias privadas tropical. Rio de Janeiro: Departamento Geral de
de saneamento durante a República Velha (1889- Documentação e Informação Cultural - Divisão de
1930), processo que se estendeu e se ampliou após Editoração, 1992.
a revolução de 1930, quando os departamentos de
água e saneamento tornam-se empresas públi- BRAADBAART, O. “A transferência Norte-Sul do
cas de grande porte, muitas de âmbito estadual, paradigma da água canalizada: o papel do setor
que passam a ser responsáveis por significativos público nos serviços de água e esgotos”. In: HEL-
investimentos de infraestrutura. LER, L. e CASTRO, J.E. Política Pública e gestão de
serviços de saneamento. Belo Horizonte: Editora
As discussões acima, para além de sistematizar
UFMG, 2013. p. 116-134..
o conhecimento sobre um importante período
da história da administração pública brasilei- BRITTO, A. L. e QUINTSLR, S. “Redes técnicas de
ra, também podem amparar reflexões sobre o abastecimento de água no Rio de Janeiro: história
momento atual. Estamos diante de conflitos em e dependência de trajetória”. Revista Brasileira de
muito similares aos de 100 anos atrás, envolvendo História & Ciências Sociais – RBHCS. Rio Grande:
o debate em torno do novo Marco Regulatório FURG, vol. 9, nº 18, jul.-dez. 2017, p. 137-162.
do Saneamento (PL 4.162/2019) que tramita no
Congresso e que envolve disputas a favor e contra CAMARGO, A. R. Inspeção geral das obras públi-
a concessão, a mercantilização dos serviços e cas da capital federal (1889-1930). MAPA, 2018.
quanto às formas de gestão do setor. Diante da Disponível em: http://mapa.an.gov.br/index.php/
persistência da desigualdade em relação ao aces- dicionario-primeira-republica/569-inspecao-geral-
so à água, à coleta de esgotos e ao tratamento -das-obras-publicas-da-capital-federal, acessado
dos mesmos nas zonas urbanas, percebe-se a em 20 de janeiro de 2020.
permanência de muitas das contradições des-
critas no período analisado, em que volta à tona a FRANCO, S. da C. Porto Alegre: guia histórico. Por-
questão dos limites da atuação do poder público e to Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1998.
do setor privado nesta área, decorrentes de seus
diferentes objetivos – sociais ou comerciais, da HUYER, André. A ferrovia do Riacho: um caminho
diferente visão do saneamento como bem público para a urbanização da zona sul de Porto Alegre. Dis-
ou mercadoria, bem como da real capacidade e sertação (mestrado) – Programa de Pós-Graduação
sobretudo interesse na expansão do atendimento em Planejamento Urbano e Regional, UFRGS. Porto
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1175
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Partindo do princípio que a produção artísti-
ca de um determinado período pode contribuir
para o estudo da história de uma cidade, este
sessão temática trabalho oferece uma reflexão sobre as repre-
sentações do Recife presentes nas pinturas do
artista Cícero Dias (1907-2003), realizadas no
O RECIFE DE CÍCERO DIAS, final da década de 1920 e início dos anos 1930.
Neste período. Dias pintou uma série de quadros
1929-1931 que revelam fragmentos e detalhes da cidade,
explorando a paisagem e introduzindo cenas
do cotidiano com seus elementos e persona-
THE RECIFE OF CÍCERO DIAS, 1929-1931 gens. Essas pinturas remontam a um passado
e parecem propositalmente esquecer aspectos
EL RECIFE DE CICERO DIAS, 1929-1931 do presente, criando paisagens oníricas. Seria
uma tentativa de frear os efeitos do progresso
que começavam a alterar a imagem do Recife? O
TRINDADE, Ana Carolina de Freitas
que impulsionaria esse próprio artista a querer
Mestre; Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento preservar aquilo que ameaçava desaparecer?
Urbano/UFPE
Para responder às questões, buscou-se estudar
acarol.freit@gmail.com
a trajetória do artista identificando suas influên-
cias, contexto cultural que permitiu o processo
MOREIRA, Fernando Diniz
de modernização da cidade. Logo, busca-se en-
Ph.D., University of Pensylvania; Professor Associado, tender que elementos da cidade o artista des-
Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento taca, nega e/ou resignifica nestas pinturas. Por
Urbano/UFPE
meio desta análise, acredita-se poder oferecer
fernando.diniz.moreira@gmail.com
elementos para um entendimento mais rico e di-
verso do Recife dos anos 1920.

CÍCERO DIAS RECIFE PINTURAS


TRANSFORMAÇÃO URBANA

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1176
ABSTRACT RESUMEN

Assuming that the artistic production of a given Suponiendo que la producción artística de un
period can contribute to the study of the history período determinado puede contribuir al estudio
of a city, this paper reflects on the representa- de la historia de una ciudad, este trabajo ofrece
tions of Recife made by the artist Cícero Dias una reflexión sobre cómo las representaciones de
(1907-2003), in his paintings made from the late Recife están presentes en las pinturas del artista
1920s and to the early 1930s. In this period, Dias Cícero Dias (1907-2003), realizadas a fines de los
produced a series of paintings that reveal frag- años 1920 y principios de los 1930. Neste perío-
ments and details of the city, exploring the lands- do, Dias pinta una serie de cuadros que revelan
cape and introducing everyday scenes with their fragmentos y detalles de la ciudad, explorando
elements and characters. These paintings revisit explora un paisaje e introduciendo y escenas co-
a past and purposefully forgets aspects of the tidianas con sus elementos y personajes. Estes
present, creating dream landscapes. Was it an cuadros remontan al pasado y propuestamente
attempt to prevent the effects of progress whi- olvidan aspectos del presente, creando paisajes
ch were transforming the image of Recife? What de ensueño. ¿Fue un intento de alterar los efec-
would drive this artist himself to desire to preser- tos del progreso lo que comenzó a alterar una
ve what was threatened to disappear? To answer imagen de Recife? ¿Qué impulsa a este artista a
the questions, we sought to study the artist’s tra- querer preservar lo que amenaza con desapare-
jectory by identifying his influences, the cultural cer? Para responder preguntas, busque un es-
context that allowed the process of moderniza- tudio de la trayectoria del artista identificando
tion of the city. Therefore, we seek to understand sus influencias, el contexto cultural que permitió
what elements of the city the artist highlights, el proceso de modernización de la ciudad. Para
denies and / or re-signifies in these paintings. By responder las preguntas, buscamos estudiar la
doing that, we aim to offer elements for a more trayectoria del artista identificando sus influen-
diverse and rich understanding of the Recife in cias, el contexto cultural que permitió el proceso
the 1920s. A través de este análisis, se cree que de modernización de la ciudad. Por lo tanto, trate
puede ofrecer elementos para una comprensión de comprender qué elementos de la ciudad o ar-
más rica y diversa de Recife en la década de 1920. tistas representan, niegan y / o vuelven a signifi-
car estas pinturas.

CÍCERO DIAS RECIFE PAINTINGS


URBAN TRANSFORMATION CÍCERO DIAS RECIFE PINTURAS
TRANSFORMACIÓN URBANA
EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
O intenso processo de modernização urbana nas
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
cidades europeias a partir do começo do século
XIX transformou o modo como as pessoas se re-
sessão temática lacionavam com a cidade. Em seu texto clássico,
Simmel (1903 [1950]) revelou os sinais de formação
de uma nova sensibilidade na grande metrópole.
O RECIFE DE CÍCERO DIAS, Entre os diversos olhares que se lançaram sobre
esta nova realidade, escritores como Carlyle, Di-
1929-1931 ckens e Baudelaire imortalizaram a nova situação
urbana. O fenômeno também atraiu atenção de
pintores, gravadores, chargistas e fotógrafos
THE RECIFE OF CÍCERO DIAS, 1929-1931 que passaram a produzir uma imensa quantidade
de registros das novas paisagens, avenidas, das
EL RECIFE DE CICERO DIAS, 1929-1931 fábricas, moradias, novas formas de trabalho
e de vivência urbana, muitas vezes em tom de
denúncia social.

Atentos ao novo cotidiano urbano, os artistas


sentiram o dinamismo das cidades, suas varia-
ções cromáticas, rítmicas e sonoras em contínua
transformação, uma estrutura viva que reunia
edifícios, pessoas, paisagens, áreas centrais,
áreas suburbanas. Observadores, narradores e
críticos privilegiados, eles captavam a essência
da nova realidade urbana e vislumbraram o enor-
me repositório de sensações e formas a serem
exploradas. Eles tiveram ainda um papel central
na formação de novas representações das cidades

A percepção do movimento formigante de pes-


soas e veículos, máquinas, fábricas, postes de
energia e novas estruturas foram fundamentais
para a expressão de diversos movimentos de van-
guarda, como atestam as pinturas de Boccioni, e
Delaunay de Milão e Paris, respectivamente, ao
redor de 1910. Elas oferecem pistas como cidade
foi percebida por estes artistas, das pressões
que estas impunham ao indivíduo provocando
deformações e representações oníricas.

Se uma cidade não pode ser compreendida sem


reconstruir ou esboçar a história de suas repre-
sentações literárias, como nos lembra Marta Díaz
(2015 p.12), afirmamos que ela não pode ser plena-
mente entendida sem os pinturas que a retrata-
ram, pois estas são representações que iluminam
16º SHCU a relação do homem com o espaço urbano, seus
30 anos . Atualização Crítica
edifícios e estruturas e as formas de vivenciá-los
1178 e habitá-los.
Se considerarmos que as pinturas constituem um era revelado e cristalizado por sua pintura. Explo-
material pertinente para a história, como afirma rando as cores, formas, encantos e histórias suas
Baxandall “Um quadro antigo é um documento de e de outros, suas telas apresentam imagens de um
uma atividade visual. Deve-se aprender a lê-lo da mundo mágico e lírico vividos entre o engenho e a
mesma forma que deve se aprender a ler um texto cidade. O Recife foi tema em muitas de suas telas,
proveniente de uma outra cultura” (Baxandall, 1991, uma cidade afetiva da sua memória de infância e
p.225), isto se torna ainda mais evidente para a adolescência e que passou a se transformar ao
história urbana. Por outro lado, o conhecimento longo das décadas de 1920 e 1930. Assim, acredi-
deste contexto no qual as pinturas foram pro- ta-se que um estudo sobre o olhar de Cicero Dias
duzidas podem enriquecer nosso entendimento pode nos revelar outras dimensões da cidade do
sobre determinado artista e revelar nuances de Recife auxiliando-nos a completar este quadro
seu trabalho antes despercebidas. da cidade nos anos 1920. Suas telas nos permite
um olhar mais rico e perceber as impressões do
Esta nova realidade urbana logo se estendeu às artista sobre as transformações em curso na
cidades norte-americanas e, posteriormente, cidade nas primeiras décadas do século XX.
às cidades latino-americanas. Entre meados do
século XIX e meados do século XX, o Recife pas- No campo das artes, os estudos sobre Dias abor-
sou por um amplo processo de modernização e dam primordialmente seu período no Rio de Janei-
transformação urbana, que contou com diver- ro, Paris ou sua infância no engenho da família na
sas fases, das quais, a década de 1920 merece Zona da Mata Sul de Pernambuco. Angela Grando
ainda um estudo mais aprofundado. A cidade (2012) investigou o processo poético de Dias do
expandiu-se para novas áreas suburbanas, por “regional ao universal”, ou seja, a proposta de pre-
meio da construção de pontes, avenidas, praças, servar aquilo que ameaçava desaparecer sejam
palacetes, trilhos de bondes e vias pavimentadas eles os bens culturais materiais e imateriais do
para automóveis, ditando um outro ritmo e novos campo ou cidade. Já Raquel Czarneski Borges
hábitos, que contrastavam com o centro tradi- (2012) oferece um estudo das representações de
cional e traziam um dinamismo para os antigos algumas pinturas de paisagem da cidade a partir
e bucólicos arrabaldes (Moreira, 1994). . das reflexões de Gaston Bachelard sobre imagem
e a imaginação poética, mostrando como o artista
Souza Barros (1980) e Neroaldo Azevedo (1996) dialoga com a cidade, identificando os elementos
revelaram a dimensão cultural da cidade neste que o artista apresenta em sua pintura.
período, o primeiro oferecendo um quadro do
ambiente cultural e social e o segundo focando Este trabalho se propõe ir além e analisar os ele-
no embate ocorrido no campo da literatura entre mentos coletados por Dias da cidade, por meio
aqueles grupos considerados modernos e aqueles do estudo da imagem, buscando sua dimensão
considerados tradicionais. Antonio Paulo Rezende crítica e outra poética ou temporal da cidade
(1997) ofereceu uma magistral quadro da emer- proposta por Walter Benjamin. Para isto, foram
gência de sensibilidades modernas na cidade. selecionadas as pinturas Gamboa do Carmo no
Daniel Vieira (2003) estudou a construção dos Recife (1929), Sonoridade na Gamboa do Carmo
olhares sobre o Recife e sua paisagem por meio (década de 1930), Porto do Recife (1930-31) e Visão
da percepção do ambiente urbano e a elaboração Romântica do Porto do Recife (década de 1930).
de representações da cidade pelos veículos de
imprensa. Já Saraiva (2018) mostrou como os Entendendo as pinturas como documentos histó-
cineastas do Ciclo do Recife (1923-1931) constru- ricos e como representações passíveis de inter-
íram um olhar sobre a paisagem da cidade e seu pretação, como defendem Roger Chartier (2002) e
processo de modernização. Por fim, Silva (2010), Ulpiano Meneses (2002), buscou-se interpretar as
tna sua história das intervenções paisagísticas pinturas de Dias do final da década de 1920, iden-
da cidade, mostrou a riqueza dos jardins e praças tificando elementos e personagens apresentados,
projetadas neste período. o contexto local vivido pelo artista, os pequenos
detalhes e fragmentos de vários tempos. Nesse
Nessa ambiência, o pintor Cicero Dias (1907-2003) sentido, este trabalho busca trazer um outro olhar
apresentou um Recife que não era dado, mas que sobre a obra do artista, a partir das reflexões de
EIXO TEMÁTICO 2 Walter Benjamin que dedicou-se a estudar a ex-
periência da modernidade na cidade, assim como
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS olhar dos artistas sobre ete fenômeno. Destaca-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES mos o aporte dado ao colecionador, personagem
que, assim como Dias, dirige sua paixão para o
mundo das coisas velhas e ordinárias, coletadas
do cotidiano, que se entrelaçam a um lado oposto
a um impulso de renovação, deslocando-as do
tempo linear e cronológico para integração em um
sistema histórico novo, proporcionando uma re-
flexão sobre as representações da cidade na arte.

Nesse sentido, o texto foi organizado em quatro


partes. A primeira apresenta a figura de Cícero
Dias, sua trajetória de vida e artística, ressaltan-
do-se as principais influências afetivas e intelec-
tuais; a segunda busca contextualizar os efeitos
da modernização da cidade que Dias vivenciou na
sua infância e juventude; a terceira compreende
a análise das obras.

CÍCERO DIAS, UM PERCURSO POÉTICO

“Eu vi o mundo, ele começava no Recife”. O título


de uma das mais importantes pinturas de Cícero
Dias, situa o Recife como o começo de uma vida
dedicada à arte. Não era apenas uma referência
ao início de carreira ou a seu local de origem de
nascimento ou familiar, mas também anunciava
para o mundo um Recife que continha o que ele
imaginava ser ou desejava ser o mundo.

Mas que Recife é este que Dias pintou e que per-


meou várias pinturas ao longo de sua carreira?
Cícero Dias nasceu em 1907 no Engenho de Jun-
diá, um dos mais importantes e ricos engenhos
do estado, localizado no município de Escada, na
zona-da-mata pernambucana. Dias foi educado
no engenho junto com parentes e crianças locais,
pela sua tia e madrinha Angelina, que utilizando
a música e elemento cotidianos, lhe “apresentou
o mundo”, o qual definiu como “mágico”. Angelina
também era pintora e foi por meio dela que Dias
teve contato com a pintura.

Dias cresceu influenciado pela cultura canavieira:


a luz e as cores do Nordeste interiorano, dos en-
16º SHCU genhos de cana-de-açúcar, das casas-grandes e
30 anos . Atualização Crítica
senzalas, das tradições aristocráticas, dos sobra-
1180 dos e do mar do Recife, para onde frequentemente
ia. Sem abandonar a pintura e o desenho, aos treze surgiu nesse contexto, relembra o pintor1:
anos (1920) mudou-se para Rio de Janeiro onde
continuou os estudos no Colégio São Bento. Aos [...] Toda hora andara pra baixo e para cima,
dezoito anos (1925), iniciou o curso de pintura e de Santa Teresa para o bar Nacional. Tudo se
arquitetura na Escola Nacional de Belas Artes mexia na minha cabeça. Imagens do come-
(ENBA-RJ), mas não os concluiu. ço da minha vida. Tantas coisas: mulheres,
histórias fantásticas, escada de Jacó, as
O boêmio Dias viveu intensamente a década de onze mil virgens. Levaria todas essas ima-
1920: frequentava galeria, bares, restaurantes e gens para dentro de um grande afresco?
rapidamente se integrou a cena composta por (DIAS, 2011, p.55)
Manuel Bandeira, Jayme Ovalle, Dante Milano,
Murilo Mendes, Di Cavalcanti, Dodô Barroso do Devido a ousadia do projeto, o tamanho e material
Amaral, Ismael Nery, Josué Castro, entre ou- escolhido, o papel craft, Dias teve que executar
tros (DIAS, 2011, p.44-45). Dias buscou o contato seu projeto no ateliê de Santa Teresa, enquanto
com os modernos, como Graça Aranha, de quem organizava-se para sua primeira exposição em
escutou as histórias de Paris e dos modernos 1928. Por intermédio de Graça Aranha, a primeira
como Cendrars e Léger. Apesar do convívio nessa exposição realizou-se no hall da Policlínica da
arena cultural, Dias lembra sua obra ainda era Urca, onde foram apresentadas suas primeiras
considerada marginal e poucos o compreendiam aquarelas e devido a falta de espaço conveniente,
(2011-p.46-47). Isto porque, apesar do rápido en- o painel ficou ausente desta exposição. Além de
trosamento à cena carioca, a recepção de suas Graça Aranha, o evento contou com apoio dos
pinturas e desenhos pelos modernistas como amigos e artistas como Di Cavalcanti, Murilo Men-
Tarsila, Oswald ou do próprio Mário de Andrade foi des e Ismael Nery. Apesar do espanto do público
reticente, talvez pela liberdade e intuição,, explica e da tentativa de ataque à exposição, esta foi
Mattar (2018, p.12). Dias frequentemente ia ao bem recebida pela imprensa, mas também pelos
Recife, aproximando-se da cena pernambucana, psicanalistas e pacientes (DIAS, 2011, p. 57–59).
particularmente dos intelectuais do Movimento
Regionalista, um projeto também moderno, que Após a exposição, Dias seguiu para Pernambuco
acontecia em Recife, em resposta à Semana de onde realizou mais duas exposições, uma em Re-
Arte Moderna de 1922. cife no hall do recém-inaugurado Hotel Central,
pois o hall do Teatro Santa Isabel lhe fora negado,
As aquarelas foram seus primeiros trabalhos de e outra em Escada. Assim como na Policlínica,
pintura ou experiências, isto porque ainda que as aquarelas expostas faziam uma evocação de
Dias viesse de uma tradição técnica advinda dos um mundo mágico e primitivo, construindo uma
estudos na ENBA, o conteúdo pintado quebrava estrutura formal de espaço que jamais obedece
com a tradição temática e de certa forma o man- às leis da gravidade, tudo flutua, movimenta-se
tinha numa certa marginalidade. Todavia, suas sem delimitações, e radicaliza a alusão inevitável
pinturas encontravam a essência do que também ao processo emancipatório da razão.2
a arte de vanguarda se propunha afirmar, o coti-
diano ordinário como arte. (DIAS, 2011, p. 44-45).
1. Em 2011, foi publicado Eu vi o mundo, um livro de memórias
de Cicero Dias, no qual são apresentados sob viés auto-
Dias pintou memórias e desejos de algo que não
biográfico, os bastidores de sua vida intelectual, literária
era visível, algo aparentemente experimental, e artística (DIAS, 2011).
próximos a um universo de sonhos inquietantes.
Eram imagens, fragmentos, de seu presente e 2. Se a exposição no Hotel Central dividiu opiniões, a recep-
ção em Escada pareceu mais amigável: “ao som de viola e
passado, com personagens e objetos trazidos do
cheiro de folhas de canela espalhadas no chão e foguetes
cotidiano. Os elementos eram postos na tela em
espocando no céu, o povo humilde do sertão viu o mundo
escalas diferentes das paisagens, e apresentam que um dos seus via”. A recepção foi diferente das nas
muita leveza, frequentemente flutuando. Os anos exposições anteriores, quando uma “burguesia com seus
1920 foram significativos pela experiência lúdica preconceitos invioláveis mantinha uma posição negativa.
e poética da pintura de Dias e a ideia de pintar o Uma vitória do analfabetismo. Vocação plástica da gente
painel Eu vi o mundo... ele começava em Recife do povo” (Dias, 2011, p. 75-77).
EIXO TEMÁTICO 2 Em 1931, sua pintura ganhara repercussão nacio-
nal com a exposição do painel Eu vi o mundo..., a
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS convite de Di Cavalcanti, no 38º Exposição Geral
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES de Belas Artes. Organizado por Lúcio Costa, então
diretor da Escola Nacional de Belas Artes, o Salão
Revolucionário, como ficou conhecido, abrigou,
pela primeira vez, artistas de perfil moderno.
Segundo Costa, “o salão de 31 foi o canto do cisne
da tentativa de reforma e atualização do ensino
das artes no país” 3 e abriu as mostras oficiais à
arte moderna, até então dominadas pelos artistas
acadêmicos.

O painel abriu o salão e gerou reações diversas.


Foi apontado como imoral e escandaloso, mas
recebeu o Prêmio Graça Aranha de pintura, no
mesmo ano, reafirmando o reconhecimento por
parte dos intelectuais e artistas ligados ao mo-
derno. Em carta à Manuel de Bandeira, em 1931,
Mário de Andrade descreve: “a novidade aqui é a
exposição de um rapaz pernambucano que vive
no Rio, Cícero Dias, com uma arte profundamen-
te sarcástica e difamadora... mas aceito pelos
modernistas”4.

Figura 01: Cícero Dias. Eu vi o mundo... ele começava no


Recife, 1929. Dimensões: 198x2100cm. Fonte: Enciclopédia
Itaú Cultural (col. Particular).

Feito em homenagem a Joaquim Nabuco, o painel


seguia os mesmos sonhos e devaneios de suas
aquarelas. Assim, como um colecionador, Dias
reuniu peças, cenas, personagens, lugares seus ou
relatados por outros, criando uma montagem de
um Recife que era um mundo seu e de todos. O pin-
tor rememorou, mas também ironizou o passado no
engenho e, principalmente, o erotizou fortemente.

3. Comentário de Lucio Costa sobre o Salão de 31 para a ex-


posição comemorativa do Salão realizada em 1984. Ver: VIEI-
RA, Lucia Gouvêa. Salão de 1931: marco da revelação de arte
moderna em nível nacional. Rio de Janeiro: Funarte, 1984.
16º SHCU
4. A carta foi publicada em 1944. Ver: ANDRADE, Oswald.
30 anos . Atualização Crítica
Gênese da Semana de Arte Moderna. Hoje – O mundo em
1182 letra de fôrma. São Paulo, ano VII, n. 75, p. 13, abr. 1944.
Pelo olhar e pinceladas de Dias se percebe a busca para um jovem de sua origem. Ainda mais lírico,
pela reinvenção da arte por novos significados Dias, utiliza a tinta a óleo e sua produção torna-se
e estratégias, alimentados por novas situações mais narrativa, mais estática e bem construída.
culturais, econômicas, sociais e urbanas. Sua A paisagem rural continuava presente nas telas
obra reflete a importância das artes frente ao com a vida dentro da casa grande e fora dela, o
processo de modernização e (remodelação da canavial, os trabalhadores, as festas populares
cidade desde o início do século XX, isto porque foram amplamente explorados, mas outros temas
as imagens de cidade, sejam elas do Recife ou despertaram: cenas internas do convívio familiar
do Rio de Janeiro, estão presentes em várias de e íntimo do artista, o Recife, que antes parecia
suas obras. As pinturas, logo, não seriam uma distante como uma referência da proximidade ou
realidade na sua essência e sim uma interpretação distância entre o rural e o urbano, passou a ser
da realidade vista por uma pessoa ou grupo, as representado mais próximo com vários elemen-
imagens pintadas, portanto, assumem um novo tos que caracterizavam a sua paisagem como os
significado para torna-se “uma imagem presente seus habitantes, os sobrados, o mar ou o porto.
em um objeto ausente”. (CHARTIER, 1990, p. 21).
A estada em Recife, entretanto, não foi muito
No fim dos anos 1920 e início dos anos de 1930, longa, devido às suas afinidades políticas com
Dias mergulhou a fundo no cotidiano da sua re- setores das esquerdas, perseguidos após com
gião, propondo uma pintura de interesse literário, o endurecimento do Regime Vargas6. Em 1937
histórico e antropológico, imersa no mesmo am- encorajado por Di Cavalcanti, viajou para Paris,
biente que motivava no Recife as obras de Gilberto onde estabeleceu residência até sua morte em
Freyre, José Lins do Rego e Ascenso Ferreira. Nas 2003. Na França, Dias entrosou-se rapidamente
representações que construiu sobre o Recife, nos meios artísticos, aproximando-se de Geor-
Dias recorreu ao acervo de experiências, tanto ges Braque, Fernand Léger e Henri Matisse, e
suas como as narradas por outros (as histórias tornando-se amigo de Pablo Picasso, que mar-
populares), para desenvolver uma série de tra- cou profundamente suas obras, conduzindo-as a
balhos em paralelo: em 1933, a ilustração para o outras formas, algo entre figurativo e a abstração.
livro Casa-grande & Senzala, de Gilberto Freyre; Apesar da geometrização que sua obra tendeu e
os figurinos para o Balé Maracatu de Chico Rei; a distância da terra natal, a cor e forma do cana-
os figurinos e a cenografia para o Balé Jurupari vial, da vegetação, do mar e do Recife deixado
no ano seguinte5. fazem-se presentes nas obras. Na Europa, Dias
teve contato com outros temas como a guerra,
A densidade cromática foi uma característica a saudade, a solidão. A abstração que se vê nas
marcante nas suas obras, particularmente nas suas pinturas pareceu trilhar um caminho de dis-
pinturas internas, com cores escuras e cheia de tanciamento da temática regional, mas a terra
sombras, nas quais Dias mostrava os detalhes de natal foi rememorada nas cores presentes desde
dentro das mobílias mas também os hábitos da as primeiras pinturas. A biografia e carreira do
família, que segundo Mattar (2017, p. 59) “nos faz pintor são ricas e longas e pode-se ver o Recife
respirar a pesada atmosfera das casas grandes”. está presente e representado com seus sobrados,
Nos exteriores, as cores se desenrolam mais lumi- flora, personagens.
nosas, explorando ao máximo sua diversidade: o
canavial, os coqueiros, a flora, as casas coloridas,
a musicalidade das festas populares. Nos primei-
ros anos de 1930, Dias retornou a Recife e organi- O RECIFE EM TRANSFORMAÇÃO, ANOS 1920 E 1930
zou seu ateliê na Rua do Fogo, no bairro de Santo
Antônio, cuja vizinhança não era aquela esperada Cícero Dias viveu pouco menos de um terço de
sua vida no Brasil. O Rio de Janeiro foi onde pas-
sou maior parte deste tempo, mas ainda assim
5. O Balé Maracatu de Chico Rei tem música de Francisco
Mignone, argumento de Mário de Andrade e coreografia de
Maria Olenewal. O Balé Jurupari é de autoria de Villa-lobos 6. Dias tinha ligações com a Liga Sindical e amizade com
com a coreografia de Serge Lifar e foi apresentado no Teatro Josias Carneiro Leão, que foi um elemento de ligação com
Municipal do Rio de Janeiro em 1934. a Coluna Prestes.
EIXO TEMÁTICO 2 Pernambuco e o Recife estiveram presentes e
foram fundamentais para o desenvolvimento de
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS sua obra. Mesmo morando no Rio, ele pôde acom-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES panhar e vivenciar um período de significativas
transformações do Recife entre os anos 1920 e
1930.

Ao longo do século XX, a cidade passou por alguns


ciclos de modernização. Logo no início do século
XX, a necessidade de dotar a cidade de melhor
infraestrutura para aumentar a circulação de
mercadorias e pessoas, o levou à modernização
do porto e a remodelação do bairro portuário, o
bairro do Recife. Além de possibilitar maiores
navios e em maior quantidade, a modernização
do porto não se limitou apenas à construção de
diques, armazéns, ramais ferroviários e novas
docas e aterros, mas chegou a elaborar uma nova
imagem de cidade para seus habitantes e aqueles
que chegavam à cidade. O redesenho das ruas,
lotes, edifícios, áreas livres, iluminação, praças
implicou em uma nova experiência urbana, que
seduzia e encantava - a espetacularização da
cidade - como define Benjamin (1987, 2000, 2009)
quando analisa a Paris de meados do século XIX.

O processo de modernização compreendeu ações


higienizadoras e embelezamento da cidade, mas
também ações que promoviam a circulação de
ideias e pessoas. Além da chegada da luz elétrica
nas ruas, bondes elétricos e veículos motoriza-
dos começam a circular pelas ruas das cidades
já na primeira década do século, novidades que
eram celebradas pelos jornais e revistas, como
pontua Rezende (1997). As forças da propagan-
da e do consumo, as novidades da indústria que
chegavam e circulavam impactavam o cotidiano
das pessoas: cafés, saraus e cinemas tornavam a
vida urbana mais agitada. O footing predominava
no centro entre lojas e cafés. As faculdades de
Engenharia, Medicina e Direito atraíam jovens que
eram receptivos à modernidade e à modernização.
As invenções modernas seduziam e a cidade era
lugar da fabricação da utopia:

A forma de um meio de construção que, no


começo, ainda é dominada pela do modo
antigo (Marx), correspondem na consciên-
cia coletiva imagens nas quais se interpe-
16º SHCU netraram o novo e antigo. Estas imagens
30 anos . Atualização Crítica
são imagens do desejo e nelas o coletivo
1184 procura tanto superar quanto transfigurar
as imperfeições do produto social, bem revistas, propagandas, nas novas diversões que
como as deficiências da ordem social da surgem marcadas pela presença da tecnologia,
produção. Ao lado disso, nestas imagens como o cinema, e anunciava os primórdios da
de desejo vem à tona a vontade expressa cultura de massa. Além de sete jornais em circu-
de distanciar-se daquilo que se tornou an- lação, haviam boas livrarias, uma imprensa ativa e
tiquado - isso significa, do passado mais revistas que acompanhava a movimentação social
recente. Estas tendências remetem a fan- e cultural, e onde circulavam as propagandas
tasia imagética, impulsionada pelo novo, de para estimular o consumo. Pouco a pouco, no-
volta ao passado mais remoto. No sonho, em vos hábitos iam sendo introduzidos no cotidiano,
que diante dos olhos de cada época surge alterando os hábitos considerados provincianos.
em imagens a época seguinte, esta aparece
associada a elementos da história primeva, A cidade tinha pressa e começava a encurtar
ou seja, de uma sociedade sem classes. distâncias, permitindo sua expansão para além
As experiências desta sociedade, que têm da área central. Enquanto o bairro do Recife era
seu depósito no inconsciente do coletivo, identificado como entrada da cidade e centro co-
geram, em interação com o novo, a utopia mercial e de negócios, o bairro de Santo Antônio,
que deixou seu rastro em mil configurações era o centro administrativo e cultural, e iniciava a
da vida, das construções duradouras até as partir de 1927 um processo de remodelação que
modas passageiras (BENJAMIN, 2009, p. 41). se estendeu por cerca de um quarto de século. O
Bairro da Boa Vista, demarcando o limite entre o
As reformas empreendidas modificaram o perfil núcleo central e a área suburbana, era ainda pouco
da antiga cidade e despertaram tensões, que “se denso e detinha um forte caráter residencial, mas
expressavam nos debates dos seus intelectuais, a cidade ainda detinha paisagens naturais como
nas notícias e opiniões registradas na imprensa, mangues, praias, núcleos coloniais distribuídos
no cotidiano invadido por certas invenções e há- entre núcleos urbanos pelos subúrbios. Já no
bitos modernos” (Rezende, 1997, p.26). O processo governo de Sérgio Loreto (1922-26), ocorreram
de modernização estimulou movimentos culturais as obras de urbanização do parque e bairro do
em Pernambuco, que inspirados pela Semana de Derby, baseados nos princípios das cidades-jar-
Arte Moderna de 1922, debatiam sobre a formação dim, a construção da avenida Boa Viagem, além
da nova imagem do Brasil e papel da arte moderna da reforma de vários largos e praças nos núcleos
nesse processo. Por outro lado, outros defendiam suburbanos, vieram lançar as bases de um pro-
a necessidade de preservar traços característi- cesso de ocupação das áreas suburbanas.
cos do passado, diante do desaparecimento de
antigas ruas, edifícios e tradições culturais. Os A partir dos anos 1920 a cidade tornava-se um
debates entre tradição e progresso estão repre- terreno fértil para a cultura moderna. A vida cul-
sentados no contraponto entre Gilberto Freyre, tural se tornava mais ativa e agitada, eram peças
fundador do Movimento Regionalista (1926) e Jo- de teatro, uma expressiva quantidade de salas
aquim Inojosa simpatizante do modernismo da de cinema, fazendo da cidade um dos principais
Semana de 22. polos de cinema no Brasil, mostras de pinturas,
exposições - coletivas e individuais - de artistas
Esta tensão norteou grande parte das discussões locais e estrangeiros. Entre as exposições impor-
sobre o futuro da cidade por décadas, envolvendo tantes, destacou-se a trazida por Vicente de Rego
intelectuais de diversos campos, como sociologia, Monteiro e pelo jornalista Géo Charles, diretor da
história, arquitetura, literatura, artes e até mesmo revista Montparnasse, que reuniu no Teatro Santa
a religião. Dias estava envolvido nessa arena e Isabel, em 1930, obras de Picasso, Braque, Léger,
suas obras, como veremos, pareciam estabe- Guillaume Apollinaire, Juan Gris, André Lhote,
lecer um diálogo entre as visões, uma espécie Jean Lurçat, Matisse, além do próprio Vicente e
de conciliação entre vertentes aparentemente do seu irmão Joaquim.
antagônicas.
Pouco a pouco a arte moderna era apresentada
No Recife, a convivência entre “moderno e tra- à sociedade pernambucana. A pintura de Dias
dição” está registrada nas páginas dos jornais, parecia mais agradar aqueles identificados com
EIXO TEMÁTICO 2 aqueles que tinham um forte desejo moderniza-
dor. Pouco a pouco, a cidade e os hábitos sociais
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS começavam a se modernizar, impulsionando sua
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES função como local de circulação de pessoas e
mercadoria. A modernização do Recife implicava
na construção e afirmação de imagem da cidade
que transitava entre progresso e tradição, como
se pode ver nas suas pinturas.

RECORDAÇÕES URBANAS

Ao analisarmos as pinturas feitas sobre o Re-


cife na virada da década de 1920 para a de 1930
as quais iremos chamar recordações urbanas,
buscaremos fazer uma leitura7 das telas e sua
interpretação. Um passo inicial para análise das
obras, a leitura, segundo Ulpiano Meneses, busca
“assinalar alguns traços morfológicos, pois eles
contarão em qualquer alternativa, já que definem
a especificidade da informação imediata o que a
imagem pode fornecer” (2002, p.133-134). Mesmo
utilizando uma fotografia, Meneses oferece-nos
alguns caminhos para a análise de pinturas, como
estudo do contexto de produção e por onde estas
obras circularam. Nesse sentido, propõe uma
materialização da foto, assim como a história da
arte já o faz, considerando a obra de arte tam-
bém como um objeto material e não só como um
abstrato emissor semiótico, ou seja, entenden-
do-a como “coisas que participam das relações
sociais e, mais que isto, como práticas materiais”
(MENESES, 2002, p.143-144).

Como uma prática material, a arte articula-se


com o que Roger Chartier (1990) denomina como
representações de uma sociedade e de um ima-

7. Ulpiano Meneses (2002) realiza um estudo morfológico da


fotografia realizada em 1936 por Robert Capa de uma cena
da guerra civil espanhola. Tratando-a como documento
histórico, Meneses investiga não apenas as informações e a
forma como a imagem circulou, mas também os elementos
que constroem a cena, tais como: composição, nitidez,
os elementos presentes e suas respectiva relação com o
que está em volta, o cenário, luz, sombras, a posição do
fotógrafo, do miliciano, a autenticidade da imagem. Para
Meneses, este estudo da morfologia seria um primeiro mo-
16º SHCU
mento na tarefa do historiador, seguida pela investigação
30 anos . Atualização Crítica
da circulação da imagem, para se entender o processo de
1186 transformação da fotografia em imagem emblemática.
ginário instituído, como também apresenta a po-
tencialidade criadora, instituindo novos códigos,
novos significados para o mundo. Logo aquilo re-
presentado ou apresentado compreende o modo
pelo qual, em diferentes lugares e momentos, uma
realidade é construída e dada a ler por diferentes
grupos sociais. Essa imagem artística é entendida
como documento histórico e como articulação
entre sentimento e ideia, como comunicação e
representação de um contexto social e cultural
específico. Ao interrogar uma obra de arte, sabe-
-se que não se ouvirá uma única resposta, mas
uma variedade de possibilidades expressas em
uma imagem complexa. Interrogar uma obra de
arte é perceber as histórias e significações que
ela pode abarcar, relacioná-las e dar-lhes sentidos
em nossa própria narrativa historiográfica.

Mas que cidade Dias pintou? Escolhemos quatro


pinturas (figuras 2-5), em óleo, que inauguram uma
outra fase do artista, não distante do lirismo das
aquarelas anteriores, Dias constrói uma estrutura Figura 1: Cícero Dias. Gamboa do Carmo no Recife, 1929.
Dimensões 61x70cm. Fonte: Enciclopédia Cultural Itaú.
formal de espaço, na qual a cidade representada
ganha um realismo, pela proporção e detalhes
representados num gesto que tenta dar conta
do que é visto. Sua pintura, todavia, vai além, ao Em Gamboa do Carmo no Recife (1929), o quadro
explorar os descompassos entre o vivido e dese- mais antigo da série escolhida, Dias nos apresenta
jado, Dias não pintou apenas o que viu, mas o que uma cena interna, talvez de dentro de um quarto
desejou se lembrado e guardado, radicalizando a
de um alto sobrado, já que da janela avistam-se
alusão inevitável ao processo emancipatório da
telhados e empenas de sobrados (figura 1). A pin-
razão e do progresso.
tura é organizada em planos que cuidadosamen-
Estas pinturas mostram a maior proximidade do te revelam a intimidade e a presença feminina
pintor com a cidade. É nesta fase que se observa no local. A cada camada, Dias apresenta com
mais detalhes de casas coloniais, sobrados e seus detalhes esta presença, seja pelos utensílios,
telhados, os jardins, as praças, os pátios, o porto, móveis ou objetos decorativos, que nos contam
o mar, as jangadas, os navios, além dos perso- sobre privada e hábitos culturais da época. A
nagens, como trabalhadores, mulheres na rua. cena é cuidadosamente montada de forma que
os elementos presentes na tela bem como pelo
trabalho de alternância das cores criam linhas
invisíveis que se convergem para um ponto de
fuga - cidade.

O quadro apresenta uma cena de intimidade: uma


mulher, vestida apenas com meias ¾, deitada
sobre a cama e pousando para o artista, ao fun-
do uma janela aberta emoldura a paisagem do
Carmo, centro do Recife, como o título da obra a
situa. O foco do quadro não é a modelo, que a a um
primeiro olhar, parecia ser o objeto de interesse
mas a cidade. A posição da modelo nos remete a
observar a cidade.
EIXO TEMÁTICO 2 Observa-se o cuidado na composição do artista
ao posicionar modelo no canto da tela, criando
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS um primeiro plano ou uma segunda moldura que
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES direciona o olhar do seu observador para o que
se passa fora daquele ambiente, a cidade. A cena
é rica em detalhes, o ambiente vermelho, que
aparenta ser um quarto, pela presença da cama
e de objetos decorativos e de uso íntimo. Seria
esse seu ateliê ou a casa de alguma amante? Os
sapatos de salto junto à cama; pente, escova e
algumas caixas sobre a mesa com toalha ver-
melha, marcam a presença feminina no local. De
pele clara e cabelos pretos e levemente preso, a
jovem mulher está sentada com as pernas sobre
a cama forrada com colcha branca de flores ver-
melhas, ela parece estar confortável, apesar de
suas mãos cruzadas sobre o ventre aparentarem
um certo pudor ou controle em deixar-se revelar
seu corpo. A luminosidade do corpo desnudo so-
bre a cama se contrapõe ao ambiente vermelho.
Acima da mulher, está a imagem de São Jorge, que
parece flutuar, um ambiente de prazer e pecado
que contrasta com a luminosidade da janela e a
presença da torre de uma igreja como marco na
vista. Dias expõe conflitos culturais e religiosos
presentes no cotidiano.

Pela janela se vêem os altos sobrados, o casario e


a torre de uma igreja, elementos típicos da cidade
colonial e ainda predominantes na paisagem do
Bairro de Santo Antônio no final dos anos 1920.
A vista é contemplativa, não se avistam confli-
tos, nem pessoas, apenas a materialidade da
arquitetura colonial, que estaria ameaçado nos
anos seguintes. A estaticidade da pintura parece
congelar um tempo, um instante, uma cena do
cotidiano quebrada apenas pelo movimento da
cortina ao vento.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1188
no chão. Assim como a pintura anterior, mesmo
com a riqueza de detalhes do ambiente privado, a
cidade é a grande protagonista, um elogio a esta
que estaria prestes a desaparecer.

Figura 3: Cícero Dias. Vista romântica do Porto do Recife,


década 1930. Dimensões 124x248cm. Fonte: Enciclopédia
Cultural Itaú
Figura 2: Cícero Dias. Sonoridade na Gamboa do Carmo,
década 1930. Dimensões 78x75cm. Fonte: Enciclopédia
Cultural Itaú.
Em Visão Romântica do Porto do Recife (figura
03), pintada na década de 1930, Dias retrata a
paisagem do porto do Recife. Como um panorama,
Em outra cena interna, Sonoridade na Gamboa com a linha do horizonte bem demarcada, a visão
(figura 2),, produzida no seu ateliê na Rua do Fogo, de Dias é diferente das clássicas imagens pano-
também no bairro de Santo Antônio, Dias apre- râmicas que dividem a cidade em duas metades.
senta um homem sentado em uma poltrona e um Dias descola esse eixo, a cidade vai se revelando,
menino apoiado sobre um piano preto, separados são fragmentos, telhados, os ornamentos da ar-
por uma janela aberta pela qual se avista a cidade. quitetura, a praça, jangadas, o mar, a geografia,
As paredes também são vermelhas e criam uma trabalhadores, músicos, mulheres. Dias vai além,
ambiência mais sombria que a representação da monta com detalhes o cotidiano das ruas com
tela anterior. A presença de jarros de flores indi- seus personagens e detalhes.
cam que aquele lugar é frequentemente utilizado,
talvez o ambiente social do seu ateliê. Dias pinta do íntimo ao coletivo, aproximando-os,
o íntimo do quintal privado da mulher e da criança
Com janela centralizada, a composição é constru- que distraidamente conversam sentadas no banco
ída seguindo as linhas da perspectiva e reforça a e de costas para a cidade, é também o local do
distância entre os personagens. Pela fisionomia, trabalho dos homens trazem bananas num barco,
o homem sentado assemelha-se ao artista, mas ou do músico que sob às árvores está com a viola
seria o menino uma representação sua enquanto nos braços, ainda das mulheres que conversam
criança? Seria a mesma cidade de menino e de na rua e dos que observam, elementos que re-
adulto? Aquela cidade conteria o tempo de menino presentam a vida nos subúrbios, traços de uma
e adulto? A posição dos corpos guia o olhar do Recife suspensa no tempo. Vê-se um esforço do
observador para a janela, a cidade parece querer artista em aproximar realidades que coexistem no
entrar naquele ambiente. Os telhados inclina- mesmo território. Num segundo plano estão os
dos ganham maior atenção e escurecem a tela, sobrados colorido que delimitam o desenho das
contrapondo-se ao colorido das fachadas e da ruas e quadra da cidade mesmo cortado pela água
luminosidade ressaltada pelo que parece ser um de um rio dão ritmo ao horizonte até encontrar
pátio. A rua estreita, típica do traçado colonial, há o mar. A concentração de jangadas ou barcos à
pessoas e sua luminosidade trazem uma sonori- vela quebram a dança dos telhados e anunciam
dade em meio aos telhados escuros, despertando a presença do porto do Recife. Percebe-se uma
a curiosidade do observador para o que acontece exaltação à vocação marítima e comercial da ci-
EIXO TEMÁTICO 2 dade, evocando as diferentes experiências sociais
e culturais que a dinâmica de um porto propor-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS ciona ao desenvolvimento de um centro urbano,
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES desde a convivência de variados tipos humanos,
constantes trocas comerciais, efervescência
cultural econômica e social. Na visão romântica,
os sobrados e vista do porto preenchem parte da
tela, mas vemos verde dos quintal, o muro colorido
com os guardiões de pedra, elementos comuns
dos casarões distantes do centro. A pintura é
uma representação dos bairros do Recife e Santo
Antônio bem diferente do que seriam estes bairros
nos anos que foi pintada Dias retrata uma paisa-
gem bucólica e, como o título aborda, romântica
do cotidiano ou do que o gostaria que fosse, uma
vez que nos anos 1930, o bairro já havia passado
por reformas e remodelações.

Dias congela na sua pintura hábitos, personagens


e cenas do cotidiano de uma cidade que se mo-
dernizava. Suas pinturas podem ser consideradas
uma imersão da prática artística no ordinário e,
assim, um convite à cidade. É aquilo que Michel
de Certeau (1994, p.38) denominou de “artes do
fazer”, “astúcias sutis”, “táticas de resistência”,
que vão alterando os objetos e os códigos, e esta-
belecendo uma (re)apropriação do espaço do uso
ao jeito de cada um. A imersão da prática artística
no ordinário, como vemos nas pinturas de Dias,
pode despertar no homem ordinário maneiras de
“caça não autorizada”, escapando silenciosamente
da conformação e revelando uma potência crítica
(revolucionária) sobre a cidade moderna.

Neste quadro não vemos as máquinas, as cha-


minés das fábricas, as vitrines, o movimento do
turbulento da multidão e dos bonde. Também
não vemos o caos, a falta de serviços públicos,
a pobreza, mas uma cidade cujas ruas são es-
treitas e tranquilas, as casas simples, pequenas
agrupadas, que nos dá impressão de uma cidade
pequena, onde tempo não é ditado pelo compasso
das máquinas. Portanto, imaginamos que sua
representação seja um elogio saudoso à cidade
que o Recife estava deixando de ser.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1190
Praça Dezessete, praça construída em meados
do século XIX em homenagem a revolução de 1817
que abriga importantes monumentos históricos. A
cidade pintada é a cidade da fluidez, do comércio,
da circulação de mercadorias, do trabalho, nesta
a presença da figura humana dá lugar as inven-
ções modernas: o navio, os passeios públicos
ajardinados, edifícios altos, quebrada apenas
pela presença da jangada que enaltece o trabalho
braçal. As recordações urbanas de Dias revelam
fragmentos de uma cidade coletados de sua me-
mória desde infância e projetam uma cidade que
ele resistisse ao tempo e a modernização que
ameaçava extingui-la. Na cidade colorida de Dias,
os símbolos do cosmopolitismo ou modernização
não eram as máquinas, eram os personagens e a
fisionomia da cidade do passado.
Figura 4: Cícero Dias. Porto do Recife, 1930-31. Dimensões
105x105cm. Fonte: Enciclopédia Cultural Itaú.

O ARTISTA COLECIONADOR
Em Porto do Recife (1930-31), apesar de o bairro
Como dito, Dias foi um artista de vanguarda, e sua
portuário ser apresentado de um ponto similar à
pintura propunha um reencontro e fazia emergir
pintura anterior, nesta a modernização é ressal-
certas singularidades seja pela sua arquitetura,
tada, já que em que as jangadas e barcos à vela personagens ou hábitos cotidianos, caracterís-
dão lugar aos navios com chaminés expelindo ticas que o aproximam dos princípios do surre-
fumaça. Sem a mesma diversidade cromática das alismo. Segundo Walter Benjamin (1987, p. 28), a
telas anteriores, a vista de parte do porto divide atitude surrealista trilhava um caminho que desde
atenção com o protagonismo dado ao encontro suas origens destinava-se ao enfrentamento no
do Rio Capibaribe e o mar, a fisionomia da cidade sentido de “transformação de uma postura ex-
está em segundo plano. tremamente contemplativa em uma oposição
revolucionária”. Benjamin elege algumas pistas
A relação da cidade do Recife com suas águas,
das “energias revolucionárias” que surrealistas
fonte de sustento, meio de transporte, é ressal-
deixam transparecer
tada, mas a cena não traz tanto do cotidiano da
cidade com seus personagens que dão sentido, [...] no “antiquado”, nas primeiras constru-
cor e vida ao cotidiano do lugar como nas telas ções de ferro, nas primeiras fábricas, nas
anteriores. A cidade apresentada é envolvida pelo primeiras fotografias, nos objetos que co-
rio e pelo mar, seus personagens são os navios meçam a extinguir-se, nos pianos de cau-
modernos e vapores, que trazem a representa- da, nas roupas de mais de cinco anos, nos
ção que a modernização começa a fazer parte da locais mundanos, quando a moda começa
paisagem para o artista. No porto do Recife de a abandoná-los. Esses autores compreen-
Dias, vemos a presença das jangadas lado a lado deram melhor que ninguém a relação entre
às novas máquinas, uma exaltação aos elementos esses objetos e a revolução (BENJAMIN,
marcadamente regionais que teima em sobreviver. 1987, p. 25, grifo nosso).
A cidade moderna, propõe Dias, também seria um
acúmulo de tempos. Foi por meio dos personagens ordinários que Ben-
jamin buscou capturar a essência da experiência
A vista do porto Recife foi feita a partir do Cais da cidade, não a cidade dos grandes monumentos,
Martins de Barros, próximo do ateliê de Dias. A mas a cidade vivida ao nível do chão. Benjamin
arborização densa abaixo esconde o que seria a elegeu alguns personagens anônimos como o flâ-
EIXO TEMÁTICO 2 neur, o dândi, o trapeiro, o detetive, o colecionador,
a prostituta como aqueles capazes de desafiar as
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS regras do jogo social. Estas figuras representa-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES vam a contradição e o espírito da modernidade
e permitiam uma outra maneira de compreender
os sujeitos no espaço da cidade, uma chave de
leitura desse novo tempo. Benjamin (2009, p.462)
pensou a cidade como uma extensão da casa e
quiçá também da existência, a “rua como inté-
rieur”. A rua também era intérieur porque é vista
como o lugar em que mora o coletivo, a massa,
as pessoas em conjunto. Elas se identificam e
se formam nessa paisagem: a dos corredores,
das ruas, das empresas, dos automóveis, das
praças, do asfalto. Esses são lugares que ecoam,
reverberam a condição de vida das cidades e de
seus moradores.

Nas pinturas, Dias coletou das ruas e da vida ínti-


ma elementos que pareciam contrastar do ritmo
que o processo modernização imprimia à cidade.
O pintor apropria-se do passado com uma inten-
ção de resgatá-lo ao presente e identificá-lo, por
meio da reconstrução de outras imagens como
emblema, trazendo outros significados para es-
ses fragmentos assim como o colecionador faz
com os objetos, que segundo Benjamin (2009, p.
240) compreende “o verdadeiro método de tornar
as coisas presentes é representá-las em nosso
espaço (e não nos representar no espaço delas).
O ato de colecionar está, portanto, relacionado
à memória e à história.

É decisivo na arte de colecionar que o objeto


seja desligado de todas as suas funções
primitivas, a fim de travar a relação mais
íntima que se pode imaginar com aquilo
que lhe é semelhante. [...] É uma grandiosa
tentativa de superar o caráter totalmente
irracional de sua mera existência através da
integração em um sistema histórico novo,
criado especialmente para este fim: a co-
leção. E para o verdadeiro colecionador,
cada uma das coisas torna-se neste sis-
tema uma enciclopédia de toda a ciência
da época. [...] Colecionar é uma forma de
recordação prática e de todas as manifes-
tações profanas da “proximidade”, a mais
resumida. Portanto, o ato mais diminuto
16º SHCU de reflexão política faz, de certa maneira,
30 anos . Atualização Crítica
época no comércio antiquário. (BENJAMIN,
1192 2009, p.239).
O gesto do artista de coletar e expor os elemen- apresenta não apenas um apelo saudosista, mas
tos intrigantes para si, parecem contrastar ao critica o processo de modernização que alterava
ritmo que a modernização tratava a tradição e o de vez as relações sociais e culturais do Recife.
passado, em que o progresso imprimia uma ideia
de futuro. O colecionador, “para quem as coisas Dias apresenta Recifes que vão além do discurso
se enriquecem através do conhecimento de sua modernista-regionalista que nunca chega a um
gênese e sua duração na história ”, luta contra termo comum sobre o elogio à modernidade ou a
a dispersão promovida pelo progresso, define tradição. Esses dois elementos não se excluem,
Benjamin (2009, p. 245). O ato de colecionar está, pelo contrário, acabam significando um ao outro
portanto, relacionado à memória e à história. O e é esta a tentativa do movimento que se pode
colecionador benjaminiano possui os objetos qua- perceber nas pinturas: a busca por reunir numa
se que como peças de quebra-cabeças, que se mesma imagem de cidade ou num mesmo dis-
curso a tradição, o antigo, o passado, que mesmo
relacionam entre si e que juntas ‘montam’ algo. “O
primitivo é autêntico ou típico e a modernidade
colecionador [...] reúne as coisas que são afins;
cosmopolita, elo com o mundo desenvolvido e
consegue, deste modo, informar a respeito das
que colocaria o Recife nas rotas das relações
coisas através de suas afinidades ou de sua su-
internacionais, do progresso e da civilização
cessão no tempo”.
Dias pintou uma cidade afetiva, uma cidade que
O colecionador retira os objetos de suas relações
povoava sua memória de infância e adolescência.
funcionais, assim como Dias retira elementos do
Uma cidade da magia, do mito, do sonho, mas que
cotidiano, uma vez que este são para ele o mundo.
tem regras, modos, leis, sentidos próprios. Uma
Benjamin (2009, p.245) explica que não apenas os
cidade cristalizada na memória e uma soma de
objetos em si interessam ao colecionador, mas
elaborações que, ao mesmo tempo em que se re-
também sua gênese e duração na história. “O
feriam ao ‘real’, à materialidade da cidade, criavam
grande colecionador é tocado bem na origem pela
um discurso transformador sobre a própria cidade
confusão, pela dispersão em que se encontram
as coisas do mundo”. A pintura de Dias respondia a um forte desejo
modernizador que movimentava a cidade do Re-
A imersão no ordinário ou encontro com a vida são cife desde o final do século XIX. Pouco a pouco,
as formas como Benjamin visualizou a moderni- a cidade e os hábitos sociais começavam a se
dade. Como um sonho coletivo ou um modo de modernizar, impulsionando sua função como local
opressão e poder, Benjamin buscou apresentar de circulação de pessoas e mercadoria. A mo-
seus encantos e desencantos a nova condição. dernização do Recife implicava na construção e
Ao revelar essa outras histórias e outros perso- afirmação de imagem da cidade que transitava
nagens anônimos, Benjamin induz a desconfian- entre progresso e tradição, como se pode ver
ça dos feitos burgueses que na arquitetura são nas suas pinturas. A arte moderna rompia com
materializados pelas construções em ferro, as entendimento de arte e revelava várias imagens
estações de trem, as vitrines, os passeios e pra- cidades perdidas pelo tempo ou ameaçadas pelo
ças ajardinadas. Este processo, como define Willi progresso.
Bolle (1996, p.64), compreende o despertar de um
sonho, visto que muitos destes feitos repercutiam
no imaginário coletivo para uma emancipação
social ou para uma fantasmagoria idealizadora.

É esta a noção de imagem criada, ou a percepção


dela, que Benjamin (2009, p.56) consegue captar
as expressões da fantasmagoria na modernidade.
É a negação dessa imagem criada para o Recife,
que tinha a Paris haussmaniana como modelo, que
Dias recorre a imagens do passado como forma de
frear esse descolamento entre sujeito e cidade.
Ao negar às novas estruturas, a pintura Dias nos
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de exposição.
EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES A pesquisa explora a ancestralidade da rede ur-
bana na região amazônica sob um recorte tem-
poral que carece de maior investigação arqui-
sessão temática tetônica, o período pré-Colombiano. A evolução
tecnológica e conceitual do campo da Arque-
ologia permitiu a identificação de uma ampla
RISCOS AMAZÔNICOS E rede de assentamentos primitivos complexos
e milenares, interligados por vias, com modos
TRAÇOS ANCESTRAIS de apropriação espacial que podem fornecer
contrapontos para a produção atual de cidades,
razão pela qual a pesquisa explora e avalia a ur-
AMAZONIAN RISKS AND ANCESTRAL TRAITS banidade destes sítios em relação ao potencial
de movimento dos caminhos hídricos e terres-
RIESGOS AMAZÓNICOS Y RASGOS ANCESTRALES tres então disponíveis. A inserção territorial é
enfocada utilizando-se uma metodologia que
correlaciona os conceitos da Sintaxe Espacial
FREIRE, Leonardo
com outros métodos de análise morfológica, de
Mestrando em Arquitetura e Urbanismo; Universidade de forma a esquadrinhar aspectos de formalidade,
Brasília
urbanidade, socialização, usos, funções e mo-
lecofreire@uol.com.br
dos de apropriação socioespacial, discutindo
a relação simbiótica formada entre os povos
HOLANDA, Frederico de
pioneiros e a região amazônica. Os resultados
Doutor em Arquitetura e Urbanismo; Universidade de desvelam algumas concepções dos amplos e
Brasília variados adensamentos antropogênicos desse
fredholanda44@gmail.com
território e saberes legados para as sociedades
hodiernamente estabelecidas nesse ambiente
MEDEIROS, Valério pelas civilizações milenarmente amalgamadas
Doutor em Arquitetura e Urbanismo; Universidade de com os mistérios da floresta. Isso aponta para
Brasília inconsistências na concepção de que as ocu-
valeriomedeiros@gmail.com
pações urbanas amazônicas de caráter perene,
situadas nos leitos ribeirinhos, decorram pe-
remptoriamente de arraigadas tradições regio-
nais.

CIDADES AMAZÔNICAS SINTAXE ESPACIAL


ANCESTRALIDADE URBANA

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1196
ABSTRACT RESUMEN

The research explores the ancestry of the urban La investigación explora la ascendencia de la
network in the Amazon region under a time fra- red urbana en la región amazónica bajo un mar-
me that lacks further architectural investigation, co temporal que carece de más investigación
the pre-Colombian period. The technological and arquitectónica, el período pre-Colombiano. La
conceptual evolution of the field of Archaeology evolución tecnológica y conceptual del campo de
allowed the identification of a wide network of la Arqueología permitió la identificación de una
complex and millenary primitive settlements, amplia red de asentamientos primitivos comple-
interconnected by roads, with modes of spatial jos y milenarios, interconectados por carreteras,
appropriation that can provide counterpoints for con modos de apropiación espacial que pueden
the current production of cities, which is why the proporcionar contrapuntos para la producción
research explores and evaluates the urbanity of actual de ciudades, razón por la cual la investiga-
these sites in relation to the movement potential ción explora y evalúa la urbanidad de estos sitios
of the water and terrestrial paths then available. en relación con el potencial de movimiento de
Territorial insertion is focused using a methodo- los caminos terrestres y de agua entonces dis-
logy that correlates the concepts of Spatial Syn- ponibles. La inserción territorial se estudia cor-
tax with other methods of morphological analysis, relacionando los conceptos de sintaxis espacial
in order to scan aspects of formality, urbanity, so- con otros métodos de análisis morfológico, para
cialization, uses, functions and modes of socio- escanear aspectos de formalidad, urbanidad,
-spatial appropriation, discussing the symbiotic socialización, usos, funciones y modos de apro-
relationship formed between the pioneer people piación socioespacial, discutiendo la relación
and the Amazon region. The results reveal some simbiótica formada entre los pueblos pioneros y
conceptions of the broad and varied anthropo- la región amazónica. Los resultados revelan al-
genic densities of this territory and the knowle- gunas concepciones de las densidades antropo-
dge bequeathed to today’s societies established génicas amplias y variadas de este territorio y el
in this environment by the ancient civilizations conocimiento heredado para las sociedades de
amalgamated with the mysteries of the forest. hoy establecidas en este entorno por las antiguas
This points to inconsistencies in the conception civilizaciones fusionadas con los misterios del
that the Amazonian urban occupations of a pe- bosque. Esto apunta a incoherencias en la con-
rennial character, situated in the riverside beds, cepción de que las ocupaciones urbanas amazó-
are peremptorily rooted in entrenched regional nicas de carácter perenne, situadas en los lechos
traditions. ribereños, están perentoriamente basadas en
tradiciones regionales arraigadas.

AMAZONIAN CITIES SPATIAL SYNTAX


URBAN ANCESTRY CIUDADES AMAZÓNICAS SINTAXIS ESPACIAL
ASCENDENCIA URBANA
EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
A formação da rede urbana amazônica tem sido
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
objeto de estudos de pesquisadores integrantes
das principais universidades e núcleos de inves-
tigação do país. O amadurecimento conceitual e
sessão temática
a discussão de abordagens vêm sendo o foco de
eventos como o “Painel de Mudanças Climáticas em

RISCOS AMAZÔNICOS E Contexto Amazônico: Desafios e Oportunidades”


ocorrido em 2018, debate que posicionou “[...]

TRAÇOS ANCESTRAIS muito claramente as contradições que emergem


do abandono de práticas que são altamente re-
silientes, inerentes ao modo de vida local, e do
AMAZONIAN RISKS AND ANCESTRAL TRAITS avanço de práticas importadas de outros contex-
tos, que têm também sido portadoras de grande
RIESGOS AMAZÓNICOS Y RASGOS ANCESTRALES desigualdade socioambiental” (CARDOSO1, 2018).

Este contexto pressupõe o combate aos estigmas


e à segregação das áreas vulneráveis enquanto
ocupações inevitavelmente precárias e insalu-
bres, articulado com a percepção das qualidades
urbanas de certas ocupações espontâneas. É um
olhar que se contrapõe à excessiva formalidade
e deficitária urbanidade de determinadas partes
da cidade (cf. HOLANDA, 2002).

No âmbito amazônico, é vital considerar a ameaça


de efeitos adversos aos pretendidos em projetos
de intervenção, quando não calcados na realidade
local. Ocorre que áreas urbanas qualificadas como
insalubres, inseguras, localizados não nas mar-
gens, mas nos leitos de grandes rios, têm, muitas
vezes, dinâmicas ricas e forte apelo cultural. Além
disso, estes espaços parecem guardar heranças
de assentamentos que atravessam séculos, e
não podem ser desprezados em favor de práticas
contemporâneas exógenas.

A desvalorização de idiossincrasias locais e do


patrimônio arquitetônico, em prol da “erudição”
universal externa, são paradigmas coloniais e
modernos que influem na percepção hodierna.
Saberes produzidos ao longo de muitas gerações,
em uma relação simbiótica com o sítio, têm sido
substituídos em favor de novas lógicas que não
consideram as mesmas correlações entre for-
ma, práticas sociais e meio ambiente. Henri C.
apud DUNN, R. E., (2012) considera que “culturas
diferentes daquelas dos antigos gregos e roma-
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
1. Depoimento disponibilizado em < https://www.youtube.
1198 com/watch?v=tFRn736dSzs >, acessado em 21/03/2020.
nos, mas não menos civilizadas, permaneceram foco do presente artigo.
desconhecidas para aqueles que escreveram a
história de seu pequeno mundo como se estives- A abordagem dialoga com a visão estruturalista e
sem escrevendo a história do mundo”. pós-estruturalista, ao discutir a investigação de
tempos e espaços correlacionados e diversos,
Gondim e Medeiros (2019) discutem essa con- incluindo-se sociedades antigas. Assim, a per-
cepção e apontam a necessidade de priorizar cepção acurada das dimensões analíticas que
uma compreensão das transformações espaciais influem nas ocupações ribeirinhas, por exemplo,
que seja mais complexa e irregular 2: os proces- depende da qualidade e quantidade dos exames
sos do saber-fazer urbano não são lineares nem feitos nos tempos e espaços afins.
forçosamente similares em todas as culturas,
sociedades e civilizações. A história é composta As regiões metropolitanas neste território coexis-
por avanços e retrocessos, esquecimento versus tem com aldeias de povos indígenas tradicionais.
registro: a concepção de progresso e evolução Registra-se, ainda, a resistência dos chamados
é relativamente recente, não sendo comum nem índios isolados, alguns dos quais nunca tiveram
constante na história. contato com não-índios 3, havendo indícios de
heranças culturais na contemporaneidade.
É sabida a falta de predisposição histórica das
sociedades dominantes para reconhecer, estudar, Para incorporar as percepções advindas dos
compreender e valorizar as culturas pretéritas. saberes originários, o trabalho sustenta-se no
No caso da Amazônia, há ainda o agravante das estudo de fontes primárias e secundárias, de
dificuldades logísticas e técnicas relativas à iden- modo a apresentar, na primeira seção, os traços
tificação e exploração dos sítios arqueológicos ancestrais amazônicos em panorama. Poste-
existentes. Ainda assim, já foram catalogados riormente, no segundo tópico, são discutidos os
cerca de 4,7 mil sítios arqueológicos na região, vestígios presentes na forma de geoglifos, o que
muitos dos quais mapeados, estudados e alguns antecede a terceira seção baseada na dimensão
tombados, segundo o Cadastro Nacional de Sítios sociológica da arquitetura (HOLANDA, 2019) e na
Arqueológicos do IPHAN, constatando-se inclu- análise da configuração espacial, das concentra-
sive correlações formais com sítios de países ções antropogênicas, das redes de caminhos e da
como Reino Unido, Peru e Portugal. relação com as hidrovias. Inclui-se aqui a análise
do sistema formado pelos grandes rios amazô-
Com base nestas premissas, o artigo dedica-se nicos e afluentes do sudeste da região, por meio
à investigação de traços de ocupação ancestrais da Teoria da Lógica Social do Espaço (HILLIER
amazônicos a partir de discussão da literatura e HANSON, 1984; HOLANDA, 2002; MEDEIROS,
disponível e adoção exploratória de modelagens 2013) e categorias analíticas de formalidade e ur-
e variáveis espaciais. Procura-se compreender as banidade apresentadas por Holanda (2002; 2019).
implicações das tradições culturais nas consti-
tuições territoriais e urbanas da região, com foco
naquelas anteriores à colonização europeia, sus-
citando questões sobre centralidades, hierarquia, OS TRAÇOS ANCESTRAIS AMAZÔNICOS
movimento e nexo socioespacial com os rios. A
hipótese é de que havia centralidades articula- Atualmente, muitos paradigmas antigos têm
das com redes de caminhos, relações de trocas sido alterados em função de novos achados ar-
e modos de apropriação espacial, aprimorados queológicos e alterações na disciplina, de uma
durante gerações, que podem fornecer contra- perspectiva de fases e tradições para a visão
pontos socioespaciais aos períodos seguintes na estruturalista e do pensamento complexo. Esta
região, embora estes últimos não constituam o mudança possibilitou a constituição de amplo

2. Na disciplina de Evolução Urbana, ministrada pelos pro- 3. Segundo a Funai (2019), a denominação “povos indígenas
fessores Mônica Gondim e Valério de Medeiros, no Pro- isolados” refere especificamente grupos sem relações
grama de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, da permanentes com as sociedades nacionais ou com pouca
Universidade de Brasília, em 2019. interação, seja com não-índios ou com outros indígenas.
EIXO TEMÁTICO 2 alinhamento contemporâneo com relação à ideia
de que a Região Amazônica foi habitada por di-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS mensões populacionais bastante superiores ao
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES que se pressupunha anteriormente, e que estes
povos teriam se complexificado e expandido os
seus territórios durante milênios, após o início
da chegada de ancestrais asiáticos ao vale do
Amazonas, por volta de 14.000 AP, segundo Ma-
galhães (2016). A respeito de heranças ances-
trais, Hackenberger (2008) descreve, ao relatar
as expedições realizadas aos sítios da região do
Xingu, itens exatamente iguais, nos detalhes,
aos dos atuais índios Cuicuro, incluindo certos
depósitos e artefatos.

Os registros destas civilizações se iniciam em 1541,


quando foi empreendida uma expedição entre
Quito e o Leste Amazônico, relatada pelo padre
Gaspar de Carvajal. O religioso aponta a surpresa
por encontrarem sociedades populosas, com
grandes caciques, que controlavam numerosos
guerreiros e vastos territórios, dispondo de “(...)
grande quantidade de comida, como tartarugas
criadas em lagos artificiais e abundância de car-
ne, peixe, e pão, tudo isso em uma fartura tão
grande, que seria suficiente para alimentar uma
força de mil homens durante um ano” e prossegue
afirmando que o território Machiaparo, no alto rio
Solimões, tinha muitos caminhos, estradas boas
rumo ao interior e “se estendia por mais de oitenta
léguas (390km), e a distância entre as aldeias,
na maioria das vezes, não alcançava um tiro de
arco, e tinha assentamento que se estendia sem
ter nenhum espaço entre as casas” (CARVAJAL
apud MEDINA, 1894).

Uma outra expedição ocorreu posteriormente no


Rio Amazonas, saindo de Belém até Quito (Equa-
dor) e retornando a Belém, relatada por Acuña
(1641). No registro desta viagem, ulterior às guer-
ras, à escravidão, ao subjugo e ao extermínio in-
dígena por parte das missões, não há menção a
‘milhares de guerreiros, estradas muito boas, a
melhor porcelana do mundo, e cidades brancas
que brilhavam nos barrancos altos de terra fir-
me’, de modo que estes trechos passaram a ser
considerados fantasias criadas por Carvajal para
impressionar Dom João III.

16º SHCU Apesar da diferença, o autor ainda descreve uma


30 anos . Atualização Crítica
multidão que teria mais de cento e cinquenta
1200 nações, com povos habitando densamente as
ilhas, a terra firme, os rios secundários e o inte- geopolítica amazônica nos primórdios da ocu-
rior, “(...) todas de línguas diferentes, tão vastos pação humana.
e povoados são esses caminhos que vimos (que)
essas nações ficam tão próximas umas das ou- Para Risério (2013) os conceitos ocidentais não
tras, que, em muitas delas, no último povoado de são imperativos para a classificação de urbes,
uma se pode ouvir o corte da madeira nos outros pois estas são oriundas do Oriente, como Jericó,
(...)”, (ACUÑA, 1641). Chatal Huyuk e Uruk. O autor afirma que:

As expedições seguintes encontraram cená- O que tivemos na Amazônia foram agre-


rios desoladores e rios quase inabitados, sendo gados demográficos densos, autores de
esta uma das razões pelas quais Meggers (1971) obras excepcionais de engenharia, com
não confiou no relato de Carvajal, assegurando estruturas definidas de poder e divisão so-
que a Amazônia seria um “paraíso ilusório” sem cial do trabalho, com exércitos e escravos,
condições para sustentar grandes sociedades vivendo em várzeas culturalmente comple-
complexas. Ao estudar as etnias marajoaras dos xas. Se deixo de lado as especificações da
tesos4, mais avançadas, ela argumentou que se- burocracia europeia para o funcionamento
riam oriundas dos “Andes” e teriam sucumbido de uma simples vila e, antropologicamente
à floresta, sendo contradita por Simões (1969) aceito a diversidade histórica e cultural dos
e posteriormente por Roosevelt (1991) que, com modos possíveis de manifestação objetiva
datações radiocarbônicas, atestou se tratar de dos fenômenos urbanos, só me resta uma
culturas milenares desenvolvidas in-situ, o que categoria para definir o que se desenhou
coaduna com a existência de cerâmicas similares na Amazônia pré-colonial. É o conceito lato
nos rios Amazonas, Solimões e afluentes. sensu de cidade (RISÉRIO, 2013).

Ocorre que entre as décadas de 1940 a 1970 pre- Conforme a categorização apresentada por Maga-
dominou a arqueologia processual, com abor- lhães (2016), a evolução antropogênica da Amazô-
dagem positivista, que pretendia determinar o nia partiria da Cultura Tropical para a Neotropical,
passado através de indícios concretos, o que não sendo que os povos correlatos à primeira já apre-
foi possível com a tecnologia existente na época. sentavam certa complexidade social e um relativo
Para Stewart, Meggers e Evans (1957), a escassez sedentarismo inicial. Porém as sociedades eram
de recursos naturais e a falta de monumentos, cultural e socialmente mais homogêneas e seus
modos de produção se baseavam ainda em pesca,
metalurgia e excedentes na região resultariam
caça, coleta e roçados. Ele afirma que a Cultura
de fatores como semisedentarismo e baixo aden-
Tropical evoluiu para a Neotropical das sociedades
samento populacional.
agricultoras sedentarizadas e diversificadas, pois
Da década de 1980 até a atualidade pode-se con- as áreas de várzea e de terra firme são hetero-
siderar, em linhas gerais, que ocorre o predo- gêneas enquanto suportes para obtenção dos
mínio da arqueologia pós-processual, com uma recursos.
abordagem relativista que antagoniza a ideia de
As ocupações primitivas ocorriam na confluên-
compreensão plena de história por meio apenas
cia dos rios de segunda ordem (junção de duas
da ciência, o que coincidiu com o aumento ex-
nascentes) com os de terceira (junção de dois
ponencial de achados arqueológicos na região.
rios de segunda ordem), e às margens destes em
Novas tecnologias, como o sensoriamento re-
diante, notadamente no entorno das suas várzeas.
moto, e novas técnicas de estudos e correlações
Significa que se apropriavam das margens dos
entre línguas, solos, vegetação (manejo florestal/
grandes rios e dos seus tributários, até alcançar
diversidade agrícola) e artefatos, identificaram a
os menores (mas perenes), estivessem eles nas
abundância de recursos naturais e a relevância
terras baixas, firmes ou altas, os interflúvios.

4. Magalhães (2016) descreve os tesos como “paisagens Denevan (1996) traduz as potencialidades e res-
com barragens e lagoas artificiais associadas aos aterros trições dos saberes primitivos por meio de seu
de várzeas alagadas” e Roosevelt (1991) calcula a população modelo de complementariedade ribanceira/vár-
da civilização marajoara em até 200 mil pessoas. zea. Nele as áreas inundáveis seriam ocupadas
EIXO TEMÁTICO 2 temporariamente para a pesca e o cultivo com-
plementar, mas os solos firmes sitos nas bordas
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS das ribanceiras próximas aos rios navegáveis
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES sediariam as concentrações populacionais per-
manentes. Para o autor, este “sistema integrado
de subsistência” poderia, teoricamente, ter sub-
sidiado assentamentos perenes de milhares de
pessoas ou mais.

O autor diz que a insegurança advinda das inun-


dações resultou em uma configuração simbiótica
entre estes terrenos, já que havia abundância de
terras (figura 01):

Finalmente, o modelo de ribanceiras mina


a dicotomia convencional entre várzea e
assentamento de terra firme e agricultura
com base em restrições de solo expressas
por muitos estudiosos da Amazônia. Se so-
los de ribanceiras poderiam ser feitos para
ajudar a apoiar um número relativamente
grande de pessoas, então também pode-
riam outros solos terra firme. Os sítios nos
interflúvios de terra preta confirmam isso
(...) (DENEVAN, 1996).

Figura 01. Corte da planície alagada do Alto Amazonas


mostrando os canais principal e lateral, níveis d’água,
diques naturais, ribanceiras, aldeias e um sítio de terra
preta. Fonte: Coomes apud Denevan (1996).

Mesmo Meggers reviu a sua percepção anterior,


16º SHCU ao afirmar que “a terra firme [era] um habitat
30 anos . Atualização Crítica igualmente, se não mais confiável para os seres
1202 humanos” (Meggers et al., 1988) e que os sítios de
várzea eram escassos e com a função principal figuração, sugerindo cautela com a ideia de falta
de campos efêmeros durante as estações secas, de centralizações de poder, que demandariam
de águas baixas ou de pescas, dos quais poucos um potencial de controle derivado da escassez
exemplos restaram. e teriam sido evitadas pela abundância de re-
cursos desta região, conforme Magalhães (2016).
Um dos vestígios que corrobora esta conclusão Ele afirma que estes povos eram definidos por
é a ampla presença de terra preta, que resulta do uma estrutura política centrífuga, traduzida por
despejo de resíduos orgânicos que geram uma
meios de expansão cultural e gestão administra-
reação química com o solo, produzindo a colo-
tiva, formando uma rede territorial, com trilhas,
ração escura: “os cultivos em si não produzem
caminhos e estradas ligando lugares e assen-
terra preta, somente áreas de moradia onde foram
tamentos, onde não haveria uma centralidade
descartados lixos de origem orgânica, portanto
referencial. O autor assevera inexistirem indícios
terra preta têm mais relação com sedentarismos
de governos centralizados, povos sedentários
do que com agricultura” (MAGALHÃES, 2016). Este
é considerado o melhor marcador de modos de subjugando oponentes ou guerras de expansão,
vida sedentários, por conter fragmentos cerâmi- pois o monopólio foi superado pela coletividade
cos, material usado no cultivo. Mas há sítios com e, ao permitir a mobilização territorial de grande
terra preta sem cerâmicas na região, sugerindo parte das populações nativas, a ordem social
outras atividades. facilitou intercâmbios étnicos, indefinições de
fronteiras, controles não revolucionários da go-
A figura 02, relativa a sítios arqueológicos, solos vernança, convergências para padrões territoriais
ricos em terra preta, manejos florestais e cultu- em comum e um equilíbrio permanente do estado
ras primitivas, consolida mais de vinte anos de da situação social.
estudos na região e oferece pistas sobre a con-

Figura 02. Sítios arqueológicos, geoglífos e solos de terra preta. Fonte: Clement et al. (2015), adaptado.
EIXO TEMÁTICO 2 GEOGLIFOS
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
Dos vestígos amazônicos existentes, destacam-se
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
os geoglifos, que compreendem a movimentação
organizada e intencional de sendimentos, de modo
a criar estruturas e/ou imagens5. Os primeiros na
região foram identificados na década de 1970,
com investigações posteriores presentes nos
estudos de Ranzi e Aguiar (2004), Schaan (2010)
e Rampanelli (2015). Em 2018, o IPHAN, durante a
91ª Reunião do Conselho Consultivo do Patrimônio
Cultural, tombou como patrimônio nacional o Sítio
Arqueológico Jacó Sá, em Rio Branco (AC).

Os geoglifos apresentam-se com morfologias


variadas, predominando as formas circulares e
quadriláteros. As unidades de menor tamanho
correspondem principalmente às formas circu-
lares e as de maior tamanho incluem circulares
e quadriláteros (o maior geoglifo é um círculo na
mais elevada altitude obtida, porém os quadrilá-
teros apresentam as maiores medidas médias).

Estes assentamentos são formados por trinchei-


ras com profundidade média de 1,0 a 2,0 metros
e largura média de 11,6 metros, com diâmetros
entre 20,0 e 385,0 metros e áreas de até 3,0 ha.
É um fenômeno com grande dispersão territorial
e que consistentemente ocorre em platôs nos
topos dos vales, nas zonas de interflúvio e acima
da cabeceira dos rios (SCHAAN, 2010).

Situam-se sobre os divisores de águas e próximos


às nascentes, mas distantes entre 2 e 8 km dos
principais rios navegáveis. A técnica arquitetô-
nica se repete em um raio de 300 km, suscitando
uma significativa inter-relação antropogênica no
território:

Os geoglifos que tem sido encontrados


no Acre são estruturas de terra que de-
marcavam espaços de sociabilidade, de
inclusão e exclusão, pois possuíam vias
de entrada e saída de ambientes públicos
e privados, disciplinando a movimentação
dos indivíduos no espaço. A organização

5. Geoglifos são sítios arqueológicos formados por estru-


turas escavadas no solo, valetas e muretas, representando
16º SHCU
figuras geométricas grandes e variadas. (Fonte: < http://por-
30 anos . Atualização Crítica
tal.iphan.gov.br/ac/noticias/detalhes/4894/geoglifo-do-a-
1204 cre-e-tombado-pelo-iphan >; Acesso em 13 de julho de 2020).
espacial física presente nas estruturas hoje [...] espaços destinados a diversos fins que
remanescentes, com seus caminhos mar- podem ter sido: aldeias fortificadas, lo-
cados por saídas e entradas e longas vias cais de encontro ou locais para realização
de comunicação entre um geoglifo e outro de festas e rituais. Assim como em nossa
e entre estes e os rios, por exemplo, indica sociedade construímos prédios para abri-
a existência de uma malha de comunicação gar diferentes tipos de atividades: casas,
terrestre necessária à integração regional igrejas, shoppings centers, usando deter-
(SCHAAN, 2010). minadas técnicas de construção, assim
eram as estruturas de terra: edificações
As estruturas circulares se concentram mais ao padronizadas destinadas a atender a dife-
sul e as retangulares ao norte da área, e surge um rentes propósitos sociais (CALADO apud
conjunto híbrido nas zonas de intersecção, o que SCHAAN, 2010).
implicaria diferenças culturais, teoria corrobora-
da pelas características plurais das cerâmicas Rampanelli (2016) conclui que não havia preferên-
coletadas nestes assentamentos. cias altimétricas ou quanto à distância dos rios,
e que os geoglifos do Acre e do Amazonas são
Trindade (2015) agrupou estes sítios por morfolo- mais geométricos do que os de Rondônia e da
gia, explicitando as interações culturais destes Bolívia (com áreas variando de 19,2 m² a 237.582,9
povos, ainda que segregados, pois apesar das m²), asseverando que os caminhos integravam os
formas circulares e quadrangulares estarem apar- vários artefatos com as redes hídricas, as áreas
tadas, muitos exemplares foram localizados no de cultivo e também entre si.
território oposto. As geometrias lineares estão
concentradas na intersecção entre os dois con- Em um estudo amostral sobre a rede de caminhos
juntos principais mencionados, se estendendo ao dos geoglifos do Acre, foi identificado por Rampa-
sudeste, mas não na região em que prevalecem os nelli et al. (2017) que cerca de 60% dos percursos
círculos, enquanto que as elipsoides apresentam não interligam os sítios com os cursos hídricos,
uma dispersão mais extensiva. sendo que alguns destes se direcionam para a
floresta, outros conectam estruturas adicionais
Não existe um consenso sobre o papel dessas e muitos foram classificados como sem preferên-
estruturas e Rampanelli (2016) cogita teses como cia6, significando indefinição quanto aos destinos.
as funções de defesa, mas também de moradia de
elites, armadilhas, pecuária, manejo da água, áre- Para verificar a existência de eventuais centra-
as de cultivo, cemitério, instalações cerimoniais, lidades e agrupamentos, Schaan (2010) utilizou
áreas de uso público, entre outras. A arqueóloga a técnica de cluster analysis, em que cada sítio
questiona ainda a ideia de usos esporádicos e de é convencionado como o centro de uma circun-
baixas densidades, já que nesta região os uten- ferência com raio de 3 km, sendo consideradas
sílios poderiam ser produzidos com materiais agrupadas as amostras nas quais ocorrer o toque
degradáveis, como a madeira, ou ter havido a deste perímetro. Posteriormente foi realizada
danificação e o furto de vestígios. Ela registra nova avaliação utilizando um raio de 5 km, que
ainda que Chandless (1866), ao chegar a uma vila no obteve resultados similares e resultou na conclu-
território do Acre, avistou 3 ou 4 casas e um arma- são de que não existe um único sistema central
zém, separado por uma vala e com uma entrada. de assentamentos, mas vários sítios moderada-
Após perguntar aos nativos, ele foi informado de mente centralizados e certos sítios periféricos
que essa área continha suprimentos armazenados não engajados (ou há eventuais amostras ocultas
para os feriados, levando-o a supor que a trin- não identificadas).
cheira corresponderia a uma estrutura de defesa.
Segundo a autora, Carvajal (1955), Métraux (1942), Rampanelli (2016) investiga estas mesmas variá-
Erickson et al. (2008) e Erickson (2010) também
sugerem objetivos de defesa (Erickson acresce 6. Esta priorização de acesso ao entorno imediato dos
usos esporádicos). Entretanto, outros propõem sítios, em conjunto com algumas linhas de integração com
que a morfologia plural dos geoglifos refletiria estruturas próximas, remete aos exemplos da Bacia do
uma profusão de usos, que representariam: Kabhur, conforme aponta Gondim (2014).
EIXO TEMÁTICO 2 veis utilizando a análise de vizinho mais próximo,
em que os sítios com distâncias inferiores a uma
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS dimensão convencionada são julgados agrupa-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES mentos, e também usa os Polígonos Thiessen, em
que se define o território teórico de cada ponto
com base em densidade e na proximidade relativa.

Quanto ao índice de vizinho mais próximo, a autora


conclui que no caso dos referidos geoglifos “[...]
foi identificada uma distribuição agrupada, pois
apresenta o índice do vizinho mais próximo de
0,38, o resultado de uma distância média para o
vizinho mais próximo de 2.806,63 metros versus
um valor esperado de 7.570,47 metros” (RAMPA-
NELLI, 2016).

Quanto aos Polígonos Thiessen, Rampanelli (2016)


diz que optou por excluir as amostras mais isola-
das, para não deturpar o resultado, concluindo que
o estudo aponta para a relativa homogeneidade
entre os assentamentos, sem uma centralidade
territorial significativa. Para a autora “(...) é im-
provável que o padrão espacial observado reflita
o padrão aleatório teórico, ou seja, confirma a
ideia de que os depósitos de terras delimitados
por trincheiras analisados apresentam dispersão
não aleatória” considerando que a distribuição
dos sítios é homogênea. Quanto ao afastamento
entre os sítios e o curso d’água mais próximo ela
relata que a maior medida corresponde a 2.021,71
m, a menor a 20,00 m e a média geral redundou
em 724,50m.

HIERARQUIA DA REDE HIDROVIÁRIA


E CENTRALIDADES

A retomada da figura 2 per mite perceber uma


possível associação entre a rede hidroviária e a
localização de vestígios. Ainda que consideremos
as prováveis ausências de sítios não identificados,
a significativa amostragem existente permite
associar concentração populacional (regiões de
sítios arqueológicos, terra preta e diversidades
de culturas agrícolas e florestais) e as redes de
caminhos hidroviários e terrestres.

Carneiro (1995) registrou os “impressionantes ves-


16º SHCU tígios arqueológicos” e propôs a hipótese de que o
30 anos . Atualização Crítica
Alto Xingu já teve, “aldeias bastante grandes, forte
1206 liderança política, um certo grau de estratificação
social, guerra considerável, e extensas obras de ções equivalentes e seria também distribuído em
defesa”, ou seja uma importante subcentralidade subcentros menores, circundados por cinturões
potencial, com sociedade complexa e diversidade florestais e rurais. Assim, a percepção das cen-
de usos. tralidades revelaria mais sobre estes povos que
Magalhães (2016) vê como “uma ordem social cole-
Heckenberger (1996) confirmou a existência des- tiva e livre sem um centro único de domínio social”.
tas aldeias grandes e duradouras, que ocorreram
com frequência na bacia do Alto Xingu e explicitam Há muita diversidade entre arranjos de sítios uni-
um padrão hierárquico de assentamentos, todos dos e unidades separadas, sendo que os sítios da
ligados por um sistema de estradas elevadas. O área central (mais adensada) sugerem menor rigor
sistema incluía valas de 5,0 m de profundidade geométrico e os de amostras das extremidades
cercando os assentamentos (com extensão de Norte, Sul e Oeste do sistema geral revelam for-
2,5 km), pontes com alguns metros de altura, 15,0 mas regulares ou complexas.
m de largura e mais de 100,0 m de comprimento
estendendo-se dentro das áreas alagadas, uma Nas franjas Sul e Sudoeste (atuais regiões do Acre,
barragem de 100,0 m de comprimento conectando Rondônia, Mato Grosso e Bolívia) ocorrem geogli-
duas praças, delimitadas por palmeiras, e repre- fos com uma relativa uniformidade morfológica
sando um igarapé para criar assim um açude, além em escala local e diversidade formal em escala
de muitas barragens e restingas artificiais utili- global. Nos sítios marajoaras não há grandes en-
zadas para o manejo de água e da vida aquática. foques geométricos e os usos são cerimoniais e
seculares, ocorrendo geoglifos e tesos irregula-
O autor correlaciona este sítio com versões primi- res. Este panorama coincidiria com a percepção
tivas das cidades jardim, que poderiam ser vaga- de alguns arqueólogos, que consideram em espe-
mente sintetizadas por atributos como espaços cífico os geoglifos situados nos interflúvios como
públicos, interação cidade/campo e unidades centros cerimoniais, o que seria reforçado pela
satélites (para 32.000 habitantes, 2.000 na área localização do artefato amapaense apelidado de
rural e 30.000 na área urbana), circundando uma “Stonehenge da Amazônia”, mas não pelos sítios
unidade central e cultural para 58.000 pessoas, do Alto Xingú, que apresentam usos diversos e
conforme estabeleceu Howard (1902). A asso- cotidianos. A figura 03 ilustra os geoglifos e tesos
ciação se dá porque o sítio comportaria popula- amazônicos.

Figura 03. Geoglifo acreano (A) e tesos marajoaras (B). Fonte: A - SCHAAN (2010) e B – www.itaucultural.org (2020)
EIXO TEMÁTICO 2 A lógica da rede urbana contemporânea certa-
mente não deve ser transplantada para os núcleos
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS nativos milenares (por exemplo, em relação à in-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES tensidade de mobilidade e às escalas de transição
entre as realidades urbana e não urbana). Assim,
esta centralidade não deve ter concentrado usos
comerciais e de serviços, mas sim outros modos
de interação social:

Em relação à dicotomia várzea/terra firme,


todos os espaços, todos os ecossistemas
amazônicos passam a ser inseridos em uma
ampla e complexa rede interligada para o
uso econômico, como a obtenção de re-
cursos das matas de terra firme, matérias-
-primas como rochas, caças, plantações de
mandiocas, entre outros diversos usos que,
em conjunto com a já conhecida alta ferti-
lidade da várzea da Amazônia, (sugerem)
a constituição de complexas sociedades
(MAGALHÃES et al., 2016).

Na escala local, há indicativos de diversidade de


usos, grandes dimensões relativas e expressivo
agrupamento, como os tesos marajoaras e certos
conjuntos na Amazônia Central, enquanto que os
sítios do Alto Xingú e os geoglifos ao sudoeste do
território revelam grandes espaços abertos, espe-
cialização, proliferação de barreiras, abundância
de muros, divisão de assentamentos em partes
menores dispersas e certo grau de segregação
social e cultural.

Assim, os modos de apropriação espacial teriam


incluído construções de grandes aterros em re-
giões de várzea, arranjos adensados em regiões
altas e distantes dos principais cursos d’água, a
reutilização de grutas e a construção de geoglifos
e monumentos, entre outros.

As informações presentes nos itens anteriores


permitem sustentar a noção de que havia na Ama-
zônia centralidades regionais com agrupamentos,
sistemas de deslocamentos e produção agrícola/
florestal que justificariam possíveis relações de
trocas. O resultado seriam modos de apropriação
espacial específicos, o que constitui contexto
compatível com assentamentos de períodos equi-
valentes, considerados cidades primitivas.

16º SHCU As opções de apropriação espacial adotadas por


30 anos . Atualização Crítica
estas populações nativas, em que os rios parecem
1208 cumprir os papéis básicos de suporte à integração
regional, viabilização das atividades produtivas e rante todo o ano, e dadas distâncias aos
fonte de água para consumo, mas não de adensa- mercados. O padrão (ribanceira/várzea)
mento socioespacial imediato, indicam profunda existia na pré-história, existe hoje e é pro-
simbiose com o ambiente e o seu Genius Loci vável que persista no futuro. Em segundo
(espírito do lugar). lugar, os solos em terra firme podem ter
cultivo perene por métodos tradicionais
Estes povos evoluíram interativamente com aque- (DENEVAN, 1996).
le ambiente ao longo de séculos, se considerada
cada sociedade, ou milênios, se considerado todo A produção urbana é afetada por condicionantes
o mosaico temporal e espacial, decidindo por ambientais análogas aos desafios descritos e a
implantações prioritariamente fora dos leitos compreensão diacrônica das diferentes abor-
hídricos ou, no caso excepcional dos tesos ma- dagens segundo a sazonalidade determinante é
rajoaras, por empreender previamente amplas fundamental, já que estas constituem camadas
obras de movimentação de terra. diversas de sabedoria no mesmo suporte.

O resultado de tal simbiose pode ter sido a con- Conforme exposto, a amostragem arqueológi-
formação de relações sociais menos desequili- ca existente é numerosa e aponta uma relação
bradas, o que se refletiria na ausência de grandes entre a concentração populacional primitiva e
centros unitários de poder e de monopólios ou as redes de caminhos hidroviários e terrestres
oligopólios fundiários, viabilizando o amplo acesso mais acessíveis (integrados e conectados). Para
social a terras adequadas. simular e avaliar mais precisamente, ainda que
de modo qualitativo, pode-se adotar a Teoria da
A importante dispersão territorial refere um Sintaxe Espacial (TSE) (HILLIER e HANSON, 1984).
sistema social contrastante com as sociedades
hodiernas, por inexistirem tanto as concentra- Não se pretende extrapolar indevidamente a ló-
ções populacionais absolutas quanto a distinção gica do movimento natural (que integra a teoria
rigorosa entre cidade e campo, ou urbano e rural. supracitada e tem carácter especificamente
Assim, se torna essencial a priorização de pesqui- urbano), entretanto a definição parece dialogar
sas na escala ampliada, considerando o sistema com o entendimento de que a configuração da
amazônico primitivo, globalmente. rede de caminhos em um território, por sua forma
de articulação, contém indícios da hierarquia de
Além disso, a complementariedade entre as áreas movimento definindo áreas com maior e menor
adensadas das ribanceiras e os sítios de várze- concentração de fluxos (MEDEIROS, 2013).
as traduz aspectos importantes da apropriação
territorial ancestral, capazes de agregar uma Há produção no campo da TSE avaliando as
percepção milenar à prática atual e também de correlações eventualmente existentes entre os
combater certos paradigmas incorretos, como o caminhos formados por sistemas fluviais e as
que pressupõe uma suposta capacidade inerente ocupações territoriais situadas ao longo dos per-
aos amazônidas de se adaptarem aos fluxos das cursos. Jiang, Liu e Jia (2011) demonstram, por
águas de forma invariavelmente resiliente. Neste exemplo, que um sistema fluvial segue certos
sentido, observa-se que: princípios de potência similares aos que coman-
dam os sistemas viários ou ainda a geometria de
O modelo de ribanceiras, se válido, tem im- uma costa marítima:
plicações significativas para o desenvolvi-
mento contemporâneo da Amazônia. A colo- O padrão visual (do sistema hídrico) mostra
nização uniforme e o cultivo das principais uma hierarquia semelhante à rede sueca
zonas ribeirinhas são improváveis, dado de ruas – fluxos muito mais curtos do que
que as planícies inundadas estão sujeitas a os longos estão presentes. Os fluxos são
inundações destrutivas periódicas (a menos formados de acordo com alguns princípios
que os agricultores estejam protegidos por de agrupamento perceptivo (Thomson e
crédito ou seguro), dada a extensão limitada Brooks 2000), mais precisamente o princí-
de ribanceiras não inundadas adjacentes pio de “sempre melhores assentamentos”
aos canais ativos de rios navegáveis du- desenvolvido por Jiang, Zhao e Yin (2008).
EIXO TEMÁTICO 2 Os fluxos vermelhos são “backbones” ou
vitais, enquanto os azuis são curtos ou tri-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS viais. Mais uma vez, descobrimos que tanto
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES o comprimento quanto a conectividade dos
córregos seguem as distribuições dos prin-
cípios de potência (JIANG, LIU E JIA, 2011).

Em relação ao contexto Amazônico, Rocha (2017)


explora o isolamento territorial e a relevância
das conexões via sistema hídrico para a cidade
de Afuá, no Pará. De modo semelhante, Carva-
lho (2019) analisa a rede urbana de municípios
no Arquipélago do Marajó e produz modelagens
espaciais considerando os rios como canais de
conexão, incluindo-os nas representações, a re-
sultar em emblemáticos mapas de hierarquia de
deslocamento no território.

Com base na possibilidade de “afetar”, a TSE for-


nece elementos para deduzir uma centralidade re-
gional potencial, em escala macro, no conjunto de
sítios situados próximos às linhas mais acessíveis
dos grandes rios amazônicos, simultaneamente
a um conjunto de subcentralidades e unidades
dispersas. É, portanto, uma linha a se investigar.

Segundo os mapas sintáticos do sistema hidrovi-


ário amazônico, presentes nas figuras 04 e 05, as
variáveis de integração (que apontam centralida-
des, NAIN) e escolha (que indicam os percursos
mais escolhidos para a realização de trajetos,
NACH) reafirmam a força dos rios Solimões e
Amazonas para o sistema.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1210
Figura 04. Mapa de integração global (NAIN) dos principais eixos hidroviários (quanto mais vermelho, mais acessível
potencialmente). Fonte: Elaboração Própria.

As imagens também demonstram o elevado po-


tencial dos rios Xingú, Tapajós, Negro, Madeira e
início do Purus enquanto subcentralidades pos-
síveis, bem como a imprevista potencialidade dos
Rios Madeira, Purus e Juruá enquanto trajetos
para a região circundante aos geoglifos.

Esta leitura revela uma correspondência elevada


com a localização da maioria dos achados arque-
ológicos, situados ao longo dos grandes rios na
área central da Amazônia, confirmando o prota-
gonismo destes na formação e na integração das
centralidades regionais, em conjunto com demais
possíveis condicionantes como, por exemplo, os
aspectos geológicos, climáticos e socioculturais,
além da disponibilidade local de recursos naturais,
dentre outros aspectos.

Os mapas de escolha (NACH) indicam ainda uma


posição estratégica destes geoglifos, ao sul e
sudoeste do sistema geral, para uma potencial
expansão da abrangência destas culturas em
relação às áreas à jusante destes rios, se valendo
do sentido favorável para a navegação.
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

Figura 05. Mapa de escolha geral dos principais sistemas


hidroviários (NACH) (quanto mais vermelho, mais acessível
potencialmente). Fonte: Elaboração Própria.

Esta localização dos geoglifos é ainda privile-


giada em relação ao aspecto de proteção, já que
a acessibilidade global é baixa, possibilitando
vislumbrar a conjugação de usos cerimoniais (que
também coadunam com baixa integração), de
defesa e de cultivo em geral. Os mapas revelam
correspondência entre os sítios e o movimento
potencial das hidrovias e conexões caminháveis
sugeridas, gerando dois cenários distintos quanto
ao subsistema dos geoglifos.

No primeiro cenário foram consideradas apenas


as hidrovias, resultando em incompatibilidade
16º SHCU entre os assentamentos e as centralidades, que
30 anos . Atualização Crítica
decorreram em um núcleo de integração (conjunto
1212 de eixos mais integrados do ponto de vista da TSE)
externo ao conjunto, em subcentralidades restri- integra um quadro recorrentemente identificado
tas e sutil combinação com o mapa de escolha. em povos ancestrais.

No segundo caso, foi simulado o acréscimo de co- Isto reverteria toda a lógica da rede, criando uma
nexões caminháveis entre os rios, com até 10 km malha de percursos cujo núcleo coincide com a
de comprimento, já que cada subsistema hídrico localização dos geoglifos, fortalecendo as cen-
está separado dos demais por distâncias inferio- tralidades e as relações entre os sítios e os eixos
res a esta e o deslocamento através de tramas mais escolhidos, conforme demonstra a figura 06.
conjugadas de caminhos terrestres e hídricos

Figura 06. Integração global (NAIN) do sistema geoglifos – com conexões caminháveis (até 10km) (quanto mais vermelho,
mais acessível potencialmente). Fonte: Elaboração Própria.

Assim, embora a região ocupada por estes ge- caminhos terrestres sejam articulados, como de
oglifos apresente baixa integração global, com- fato o são para a execução de deslocamentos.
preende a centralidade do subsistema quando
considerada a articulação dos modais fluvial e A pluralidade de tipos, dimensões e configurações
terrestre, permitindo a conjugação dos aspectos dos sítios, em conjunto com a grande dimensão
de proteção com a alta acessibilidade potencial populacional estimada atualmente para o período
local. Os achados apontam, portanto, para a ne- primitivo, suscitam povos com graus de comple-
cessidade em conjugar as modelagens e ferra- xidade e de relevância regional significativos.
mentas, de modo que as estruturas hídricas e Este quadro sugere sociedades produtoras de
EIXO TEMÁTICO 2 assentamentos com centralidades e redes de
caminhos que criaram arranjos mais resilientes
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS do que os atuais, na medida em que surgiram
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES de relações simbióticas com ciclos climáticos,
priorizando interflúvios e ribanceiras elevadas
para os sítios mais populosos.

De toda forma, enquanto pesquisa exploratória,


seria equivocado asseverar, de maneira positi-
vista, que o potencial de movimento desta rede
de caminhos antropogênicos determinaria abso-
lutamente a relação hierárquica dos povos a ela
vinculados e sua respectiva distribuição sobre o
território. O fundamento, conforme a referida a
Teoria da Lógica Social do Espaço preconiza, é que
a morfologia é um importante fator condicionante
que afeta a distribuição do movimento, embora
não o determine.

Outro aspecto de interesse é a discussão a res-


peito dos paradigmas de urbanidade (configura-
ção favorável ao convívio plural) e formalidade
(separação fisicamente marcada entre práticas
sociais infra e superestruturais) das estruturas
arqueológicas identificadas, ao se adotarem os
parâmetros elaborados por Holanda (2002; 2019).
O suposto núcleo de integração do sistema pre-
sente nas figuras 3 e 4, situado nos rios Solimões,
Amazonas, e em parte dos rios Tocantins, Xingú,
Tapajós, Madeira e Negro coincide com socieda-
des que têm aspectos de urbanidade, enquanto
que as margens sul e sudeste do sistema suscitam
tipos mais próximos ao polo de formalidade, com
um rigor geométrico que presume planejamento
e institucionalização de poder, em que os maiores
artefatos conjugam-se às maiores altitudes.

Ambos os paradigmas seriam compatíveis com


assentamentos adensados, diferindo-se apenas
quanto às características das culturas subjacen-
tes e às funções de cada artefato em relação à
rede pré-colombiana. Holanda (2019) rejeita a
existência de correlação direta entre formalidade
e autoritarismo, ou entre urbanidade e democra-
cia, mas reconhece a existência de numerosos
registros de exemplares que coadunam com o
citado panorama.

Formas geométricas pré-determinadas pressu-


põem maior planejamento para a sua efetivação,
16º SHCU traduzindo algum tipo de institucionalização de
30 anos . Atualização Crítica
poder, o que pode suscitar modos de produção
1214 espacial top/down, mas não articulados forçosa-
mente a governos autoritários. O aspecto sim- Madeira, Purus e Juruá enquanto trajetos entre
bólico que se destaca é a aparente correlação os geoglifos e o núcleo de integração.
entre a maior dimensão de artefatos com rigor
geométrico e a implantação em maiores altitudes O território dos geoglifos apresenta baixa inte-
(divisores de águas), corroborando a hipótese de gração global e elevado potencial de trajeto em
ocorrência de usos cerimoniais em determinados relação ao contexto amazônico. Entretanto, situ-
geoglifos, por exemplo. a-se na centralidade do subsistema correspon-
dente quando considerada a articulação entre
Portanto, excetuando-se o critério referente à as hidrovias por trilhas terrestres, facultando
vitalidade (que alguns estudiosos considerariam a conjugação dos aspectos de proteção com
baixa em função da escassez de vestígios cerâmi- possíveis funções simbólicas cerimoniais e de
cos e outros alta em função da eventual ocorrên- produção em geral.
cia de terra preta) todos os demais enquadrariam
Isto suscita povos complexos e relevantes no
previamente os geoglifos das regiões do Acre,
continente, produtores de assentamentos com
Rondônia, Mato Grosso e Bolívia próximos ao polo
centralidades e redes de caminhos que resultaram
de formalidade.
em arranjos mais resilientes do que os atuais. A
perspectiva é decorrente de uma relação inte-
ligente com os ciclos climáticos, legando uma
CONCLUSÃO herança que as populações tradicionais contem-
porâneas incorporaram ao seu modo de repro-
dução espacial.
A questão básica deste estudo se refere às impli-
cações das tradições culturais amazônicas nas Mas estes saberes tem influído insuficientemente
constituições territoriais e urbanas da região, nas políticas territoriais e urbanas amazônicas
quanto às centralidades, à correlação com o mo- hodiernas, marcada por conceitos estandar-
vimento e ao nexo socioespacial com os rios. A tizados e mercantilismo exacerbado, segundo
hipótese correspondente é de que havia centra- Trindade Júnior (2013). O produto é a segrega-
lidades articuladas com redes de caminhos, rela- ção de grupos vulneráveis em áreas insalubres
ções de trocas e modos de apropriação espacial, e inseguras, deficitárias quanto à infraestrutura
aprimorados por muitas gerações e portadores e aos equipamentos públicos e sujeitas a riscos
de saberes vernaculares relevantes. como desmoronamentos, enchentes e epidemias.

Quanto às implicações das tradições culturais Os resultados corroboram também o aparente


amazônicas nas constituições territoriais e ur- potencial de aplicabilidade do arcabouço teórico
banas, os estudos revelaram centralidades po- e ferramental da Sintaxe Espacial na prospecção
pulosas e relativamente dinâmicas. O contexto de lógicas socioespaciais regionais relacionadas
é compatível com assentamentos de períodos ao sistema hidroviário para os casos de comuni-
equivalentes que são caracterizados como urbes dades efetivamente ribeirinhas, inclusive para
primitivas, além de indicar articulações simbió- eventuais estudos arqueológicos urbanos em que
ticas entre a localização majoritária dos sítios houver escassez de informações. Ressalva-se,
permanentes nas ribanceiras ou terras altas e porém, que este quadro hipotético é afetado por
dos sítios efêmeros nas várzeas, com base na diversos fatores adicionais a serem investigados
ampla oferta de terras, na pluralidade cultural e futuramente, como as condicionantes geológicas,
em profundo conhecimento empírico. climáticas e socioculturais, além da disponibi-
lidade local de recursos naturais, entre outros
A leitura sintática das hidrovias indica também aspectos.
coincidência entre os adensamentos dos conjun-
tos de sítios e os eixos mais acessíveis e integra-
dos, relativos aos rios Amazonas e Solimões, e à
subcentralidade potencial dos rios Xingú, Tapajós,
Negro, Madeira e início do Purus. Além disso, ve-
rificou-se o cenário de potencialidade dos rios
EIXO TEMÁTICO 2 REFERÊNCIAS
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EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES As recentes discussões acerca dos problemas
gerados pela disseminação das enfermidades
e o rápido espraiamento no território da pande-
sessão temática mia atual, evidenciaram temas como as tensões
entre a insalubridade e as questões ambientais,
fazendo-nos retomar estudos realizados há
TRATADOS MÉDICOS E ESPAÇO exatamente 20 anos. Tais estudos diziam res-
peito às investigações médicas empreendidas
GEOGRÁFICO na Europa, a partir do Século XVIII e, de modo
mais enfático, com a contínua ameaça das epi-
demias no Século XX as quais revelaram a in-
MEDICAL TREATIES AND GEOGRAPHIC SPACE fluência do meio natural, dos condicionantes
geográficos e do contexto social no processo
TRATADOS MÉDICOS Y ESPACIO GEOGRÁFICO de origem e difusão de enfermidades. O pensa-
mento higienista orientou médicos no diagnós-
tico do espaço urbano a partir da relação entre
JULIANELLI, Anna Rachel Baracho Eduardo
fatores da geografia física, da história natural,
Doutora em Arquitetura e Urbanismo/PPGAU-UFF; Professora dos hábitos sociais e a ocorrência de doenças
da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU/UnB)
endêmicas e epidêmicas. Tratados conhecidos
arbaracho@hotmail.com
como Geografias e Topografias Médicas, difun-
didos pelo mundo, permitiram uma descrição
FERREIRA, Angela Lucia
documental das cidades, “espacializando” as
Doutora em Geografia; Professora Titular do Departamento de doenças e identificando sua natureza, sua evo-
Arquitetura (DARQ/UFRN)
lução e seu tratamento. O presente artigo re-
angela.ferreira@pq.cnpq.br
toma o que pode ser considerado os primeiros
estudos geográficos e ambientais do espaço
urbano. De modo específico, dar-se-á ênfase à
análise da “Topographia de Natal e sua Geogra-
phia Médica” elaborada pelo médico Januário
Cicco em 1920, demarcando, assim, 100 anos de
sua publicação.

TOPOGRAFIA MÉDICA GEOGRAFIA MÉDICA


NATAL/RN/BRASIL

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1218
ABSTRACT RESUMEN

Recent discussions about the problems genera- Las recientes discusiones acerca de los proble-
ted by the spread of diseases and the rapid spre- mas que han generado la propagación de las
ad in the territory of the current pandemic, have enfermedades y la rápida propagación en el ter-
highlighted themes such as the tensions between ritorio de la pandemia actual, pusieron de relieve
the unhealthy and environmental issues, making temas como las tensiones entre la insalubridad
us resume studies carried out exactly 20 years y las cuestiones ambientales, lo que nos hizo re-
ago. Such studies related to medical investiga- tomar estudios realizados hace exactamente 20
tions undertaken in Europe, starting in the 18th años. Dichos estudios se relacionaron con las
century and, more emphatically, with the con- investigaciones médicas realizadas en Europa,
tinuous threat of epidemics in the 20th century a partir del siglo XVIII y, más enfáticamente, con
which revealed the influence of the natural en- la continua amenaza de epidemias en el siglo XX
vironment, geographical conditions and the so- que revelaron la influencia del medio natural, los
cial context in the process of origin and spread condicionantes geográficos y el contexto social
of diseases. Hygienist thinking guided doctors in en el proceso de origen y propagación de enfer-
the diagnosis of urban space based on the rela- medades. El pensamiento higienista orientó a
tionship between factors of physical geography, los médicos en el diagnóstico del espacio urba-
natural history, social habits and the occurren- no fundamentado en la relación entre factores de
ce of endemic and epidemic diseases. Treaties geografía física, historia natural, hábitos sociales
known as Geographies and Medical Topogra- y la ocurrencia de enfermedades endémicas y
phies, widespread throughout the world, allowed epidémicas. Los tratados conocidos como Ge-
a documentary description of cities, “spatializing” ografías y Topografías Médicas, muy extendidos
diseases and identifying their nature, evolution en todo el mundo, permitieron una descripción
and treatment. This article takes up what can be documental de las ciudades, “espacializando”
considered the first geographic and environmen- las enfermedades e identificando su naturaleza,
tal studies of urban space. Specifically, emphasis evolución y tratamiento. Este artículo retoma los
will be placed on the analysis of the “Topography que pueden considerarse los primeros estudios
Natal and its Medical Geography” prepared by the geográficos y ambientales del espacio urbano. En
doctor Januário Cicco in 1920, demarcating 100 concreto, se enfatizará el análisis de la “Topogra-
years of its publication. fía de Natal y su Geografía Médica” elaborado por
el médico Januário Cicco en 1920, demarcando,
así, 100 años de su publicación.
MEDICAL TOPOGRAPHY MEDICAL GEOGRAPHY
NATAL-RN-BRAZIL
TOPOGRAFÍA MÉDICA GEOGRAFÍA MÉDICA
NATAL-RN-BRASIL
EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
As Geografias e Topografias Médicas, surgidas no
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
século XVIII na Europa e difundidas pelo mundo,
consolidaram-se como importantes instrumentos
de análise e observação do espaço urbano, tendo
sessão temática
fundamento a inter-relação entre meio natural, o
ambiente construído e a origem e propagação de

TRATADOS MÉDICOS E ESPAÇO certas enfermidades. Ao considerarem fatores


naturais e sociais como categorias de análise,

GEOGRÁFICO esses tratados médicos contribuíram para a for-


mação de quadros característicos de regiões,
como também subsidiaram, na escala urbana,
MEDICAL TREATIES AND GEOGRAPHIC SPACE descrições precisas das cidades existentes.

Tal temática foi objeto de estudo do Grupo de


TRATADOS MÉDICOS Y ESPACIO GEOGRÁFICO
Pesquisa História da Cidade, do Território e do
Urbanismo (HCUrb/UFRN) há 20 anos com pro-
dução, no campo teórico e pesquisa documen-
tal, resultando em artigos e capítulos de livros
que foram revisitados neste trabalho. Estudos
científicos e investigações multidisciplinares
atuais, em decorrência do contexto pandêmico
da COVID-19 em distintas regiões do mundo, des-
pertaram o interesse na retomada do tema ao vir
à tona questões ressignificadas e outras que se
mantém, sendo a principal o reconhecimento da
importância do mapeamento e espacialização da
doença. Em contexto atual, estudos adequam bases
de dados geográficos da Vigilância Epidemiológica
aos sistemas de referências cartográficas permi-
tindo o geoprocessamento das informações e a ela-
boração dos mapeamentos. Produções científicas
contemporâneas também enfocam a COVID-19 e
suas redes de conectividade no território a partir
da compreensão de sua espacialização (SOU-
SA et al, 2020). Nesse sentido, destacam-se os
Sistemas de Informações Geográficas (SIG) que,
além de possibilitarem a distribuição espacial das
doenças, permitem a visualização, descrição e
análise socioambiental de um dado espaço geo-
gráfico (CHIESA, WESTPHAL e KASHIWAGI, 2002;
CHIARAVALLOTI-NETO, 2020).

O interesse em reassumir a temática também foi


reflexo do atual projeto de pesquisa em desen-
volvimento pelo HCUrb, bem como, do centená-
rio da Topografia e Geografia de Natal datada de
1920. O presente artigo – que se configura como
16º SHCU uma versão ampliada de trabalhos anteriores
30 anos . Atualização Crítica
elaborados no início dos anos 2000 pelos autores
1220 – busca, assim, reinserir a perspectiva analítica
que embora aparentemente inovadora e atual, sente artigo configura-se como uma tentativa de
aponta para a interface entre distintos campos sistematizar a trajetória desses tratados médicos
disciplinares, ou a própria relação entre cidade e no Brasil que deram origem às primeiras apre-
saúde coletiva, entre medicina e geografia (e de ciações “geográficas” do meio urbano. De modo
forma mais geral, entre meio ambiente e socie- particular, procura inserir a cidade de Natal/RN
dade), não tem origem na contemporaneidade. As no conjunto desses estudos, a partir da investi-
pesquisas nessa área devem ser compreendidas gação da “Topographia de Natal e sua Geographia
no seio de uma discussão que contemple os seus Medica”, elaborada pelo médico Januário Cicco,
fundamentos ao longo da história, em particular a em 1920 – há 100 anos, portanto. A pesquisa em-
partir do século XVIII e do surgimento das ciências penha-se, ainda, na reflexão das interfaces entre
modernas. o espaço geográfico e demais abordagens do
espaço urbano, contribuindo para a ampliação dos
Autores como Carlos Lacaz, Baruzzi e Siqueira debates sobre a origem dos estudos ambientais e,
Jr. (1972); Mumford (1982); Luis Urteaga (1980); ao mesmo tempo, alicerçando a discussão atual
George Rosen (1994); Clarence Glacken (1996); sobre a cidade.
e Anthony Dzik (2002), debruçaram-se no estu-
do dessa relação evidenciando que a origem do Para esse estudo sistematizaram-se algumas
ideário higienista, da preocupação com os con- Topografias e Geografias Médicas elaboradas no
dicionantes ambientais e de sua vinculação com Brasil da segunda metade do século XIX à década
a qualidade de vida nas cidades têm suas raízes de 1930, que representam a principal fonte primá-
nas teorias de Hipócrates do século V a.C. A partir ria utilizada na pesquisa. O Quadro 01 apresenta
de sua mais citada obra – “Dos ares, das águas e uma listagem com títulos, autores e anos de pu-
dos lugares” – o pensamento hipocrático é difun- blicação de alguns desses tratados:
dido, adquirindo novos adeptos e novas leituras
ao longo dos séculos. As ideias de Hipócrates,
ao relacionarem questões ambientais à saúde da
população, representam a base dos princípios do
mundo moderno em relação ao meio ambiente.
Foram esses princípios que orientaram os higie-
nistas do século XVIII ao início do século XX e que
justificaram mudanças tanto na estrutura física
dos espaços da cidade como nas habitações e
nos costumes dos indivíduos. Para Glacken (1996,
p.106), essa obra constitui-se como “(...) el primer
tratado sistemático sobre las influencias del medio
en la cultura humana”, ao apontar relevantes con-
tribuições para a história da medicina, da geogra-
fia e da antropologia. Atribui-se à teoria hipocrá-
tica, por exemplo, a compreensão da importância
do consumo da água pura, tanto para a ingestão
quanto para os banhos. A influência dessas ideias
tornou-se evidente com o surgimento dos siste-
mas de abastecimento d’água nas cidades, dos
aquedutos e dos balneários especializados em
todos os tipos de banhos.

Dentre os estudos elaborados com o escopo de


diagnosticar e “curar” os “males” das cidades des-
tacam-se as Topografias e Geografias Médicas
que, surgidas ainda no século XVIII, consolidaram-
-se como importantes instrumentos de análise e
observação do espaço urbano e regional. O pre-
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

TÍTULO AUTOR ANO

“Considerações geraes sobre a sobre a topografia físico-medica Francisco Lopes de Oli-


1852
da cidade do Rio de Janeiro” veira Araújo
Jarbas Sertorio de Car-
“Ensaio sobre a geografia medica do districto de Araponga” 19--
valho
“Considerações pathologicas regionais (sobre o município de
Placido P. Gomes 1910
Joinville) contribuição ao estudo social-nosographico do paiz”
“Geographia e Topographia medica de Manaos” Alfredo da Matta 1916
“Topographia de Natal e sua Geographia Medica” Januario Cicco 1920
“Climatologia e Nosologia do Ceará: páginas de medicina Antônio Gavião Gon-
1925
tropical” zaga
“Geographia medica do município de Ponta Nova (estado de
Jarbas Sertorio de Gon-
Minas Gerais) apresentado ao 100 Congresso brasileiro de medi- 1932
zaga
cina (sucinta contribuição)”

Quadro 01: Pesquisa preliminar das Topografias e Geografias Médicas no Brasil (até metade do Século XX). Fonte: Acervo
Digital do HCUrb. Nota: Elaboração própria (2020).

Outras importantes fontes de dados empregadas


nesta pesquisa foram periódicos médicos (jornais
e revistas) e teses de doutoramento da Faculdade
de Medicina da Bahia – principalmente as de 1906,
ano de conclusão do curso de Medicina, nessa
instituição, por Januário Cicco. Para complemen-
tar o estudo utilizou-se de livros, compostos pelo
próprio Cicco, bem como se mencionou de traba-
lhos anteriores desenvolvidos pelo HCUrb/UFRN.
Instituições brasileiras consultadas à época no
levantamento de dados foram, sobretudo, a Fa-
culdade de Higiene e Saúde Pública, a Faculda-
de de Medicina, a Escola Paulista de Medicina
e o Arquivo do Estado, na cidade de São Paulo/
SP; a Biblioteca Nacional e o Arquivo Nacional,
na cidade do Rio de Janeiro/RJ; a Faculdade de
Medicina, em Salvador/BA; o Arquivo do Estado e
o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande
do Norte, em Natal/RN.

O trabalho, inicialmente, destaca alguns aportes


sobre a origem, a conceituação, as influências
teóricas e o desenvolvimento das Geografias Mé-
dicas em algumas regiões do mundo, seguida de
16º SHCU uma breve trajetória desses estudos no Brasil.
30 anos . Atualização Crítica
Por fim, expõe e discute a Topografia e Geografia
1222 Médica elaborada para a cidade de Natal em 1920.
TopografIas e GeografIas Médicas: Luis Urteaga (1980, p.14) aponta os estudos espa-
APORTES para uma discussão nhóis como herdeiros de trabalhos anteriormente
desenvolvidos na Inglaterra e na França e destaca
o pioneirismo, em seu país, da “Topografia Médica
Os tratados conhecidos por Topografias e Ge-
de Alcira y de los Riberos del Xucar”, elaborada por
ografias Médicas transpuseram, ao longo dos
F. Llansol em 1797. O autor, ao discorrer sobre a
tempos, o campo de vinculação com a medicina,
tradição geográfica na medicina espanhola, res-
sendo também considerados uma ramificação da
salta que, naquele país, a elaboração das Topogra-
Geografia Humana. Ao contemplarem o estudo do
fias Médicas foi, em grande medida, uma tarefa
homem em suas relações com o meio, utilizam-se
institucional apoiada e promovida por diversas
de alguns conceitos e descobertas de outras dis-
corporações médicas. Tais instituições passaram
ciplinas correlatas como a Antropologia, a Etno-
a organizar e publicar “programas” e “planos” para
grafia, a Estatística, a Demografia, a Arqueologia e
redação das topografias que se tratavam de um
a História (LACAZ, BARUZZII e SIQUEIRA JR., 1972).
esquema geral amplamente difundido. Os itens
Contudo, são consideradas de forma mais geral
que compunham esse esquema eram: introdução
pela historiografia como a disciplina que estuda
histórica do local; estudo da geografia física da
a geografia das doenças, “isto é, a patologia à luz
área (relevo, clima, vegetação); descrição econô-
dos conhecimentos geográficos”, sendo por vezes
mico-social (produção agrária, situação econô-
denominadas Patologia Geográfica, Geopatologia
mica, comércio, profissões, festas, vestimentas)
ou Medicina Geográfica (Ibidem, p.1).
e descrição do meio urbano, com seção dedicada
A estrita relação com a epidemiologia é também à higiene urbana (situação das moradias, abaste-
destacada por Anthony Dzik (2002, p.250) que cimento d’água, descrição de edifícios anti-higi-
define a Geografia Médica como “(...) um sub-cam- ênicos, elaboração de plantas da cidade); demo-
po da geografia que lida principalmente com os grafia (estatísticas da natalidade, mortalidade e
padrões espaciais das epidemias”. nupcialidade) e, por fim, a situação patológica com
possíveis medidas terapêuticas (URTEAGA,1980).
Outra abordagem é defendida por Luis Urteaga
(1980, p.24), que confere significância aos as- Por meio de exposições precisas do território
pectos sociais como geradores ou propagadores das cidades, buscava-se espacializar as doen-
de doenças, considerando tais tratados como a ças identificando sua natureza, evolução e trata-
“ciencia que estudia las relaciones existentes entre mento. A noção de clima também se fez presente
el médio físico y social y el estado de salud de la nesses estudos, pois se acreditava na alteração
población” – com relevante destaque para a influ- da feição genérica da patologia em função de
ência do clima e do meio local no determinismo aspectos climatológicos, dando-a características
das enfermidades. regionais e distintas. Eram registrados desde
dados de temperatura, pluviometria e direção
Quanto ao surgimento e ao primeiro uso do ter- dos ventos aos hábitos, alimentação, moradia,
mo há, por parte da historiografia, uma certa di- meios de comunicação, costumes religiosos e
vergência. Alemanha e França, sobretudo, são superstições de seus habitantes. Ao estudar a
considerados marcos de desenvolvimento des- qualidade de vida na cidade, no local de trabalho e,
ses estudos e como importantes difusores do principalmente, ao destacar temas como eugenia,
uso de inquéritos sanitários como instrumentos prostituição, alcoolismo e pobreza, mais que as-
de saúde pública em fins do século XVIII e início pectos físicos da estrutura urbana, eram contem-
do século XIX (ROSEN, 1994, p.144). Contudo, há plados os aspectos sociais do lugar. Esse registro
concordância no que se refere à base teórica das detalhado, próprio das topografias médicas, gera
Topografias Médicas. As pesquisas, de um modo informações importantes que contribuem para a
geral, contemplam os primórdios da relação entre formação de quadros característicos de regiões
fatores geográficos, saúde e doença a partir das e subsidia na escala urbana uma descrição da
obras hipocráticas, consideradas como fontes cidade existente, tanto no que se refere aos as-
fundamentais e base “paradigmática” para ela- pectos físicos, territoriais e ambientais, quanto
boração desses tratados médicos. aos hábitos da população.
EIXO TEMÁTICO 2 “Doutrinas científicas”, elaboradas por médicos,
constituíram-se como base teórica das topogra-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS fias, dentre as quais merecem destaque a teoria
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES dos meios (filiada à tradição do pensamento hipo-
crático) e a teoria miasmática. Para essa última,
tudo que estava parado ou estagnado – o ar, a
água, os dejetos, o lixo e os próprios homens – era
fator de doenças; e os vapores emanados dos
processos de putrefação da matéria animal ou ve-
getal (os miasmas), os causadores das epidemias.

Todavia, a publicação, em 1790, do folheto “La


miseria del pueblo, madre de enfermedades”, pelo
médico J. P. Frank, é indicada por Urteaga (1980)
como o marco de uma nova abordagem aos pro-
blemas de saúde coletiva, dando origem ao que
ele denominou de “Teoría social de la enfermedad”.
As precárias condições de vida da população pós-
-Revolução Industrial fizeram consolidar essa
outra corrente de pensamento – que coexistiu,
no meio médico, com a teoria miasmática – que
identificava a doença como um fenômeno social.

É importante destacar que apesar do papel do


meio físico no determinismo das doenças ficar
relegado a um plano secundário a partir da teoria
microbiana de Pasteur e da nova medicina do final
do século XIX, continuou a se verificar ainda no
início do século XX a realização de Topografias e
Geografias Médicas em várias partes do mundo,
inclusive em território brasileiro. A pesquisa já
identificou e analisou alguns exemplos no mundo e
no Brasil como a Geografia Médica de Joinville-SC
de 1910; a “Geographia e Topographia medica de
Manaós” de 1916; a já mencionada “Topographia de
Natal e sua Geographia Medica” de 1920 – melhor
analisada adiante – e a Geografia Médica de Ponte
Nova-MG de 1932 (Quadro 01).

uma trajetória dos tratados médicos no


Brasil – séculos XIX e XX

No Brasil, a obra do médico francês José Fran-


cisco Xavier Sigaud, intitulada “Du climat et dês
Maladies du Brésil” (1844), pode ser considerada
como o primeiro tratado brasileiro de Geografia
Médica. Nessa obra, merece destaque a seção
16º SHCU Géographie Médicale na qual – além dos “males
30 anos . Atualização Crítica
endêmicos”, que assolavam, sobretudo, o lito-
1224 ral brasileiro – foram descritas características
do próprio território e da população nativa. As al. (1978). A medicina se afirmou, então, como
contribuições das viagens investigativas pelo apoio científico necessário ao exercício do poder
Brasil, entre 1817 e 1820, do zoólogo Johann Spix do Estado.
e do médico naturalista Carl Friedrick Martius
são também ressaltadas por Lacaz, Baruzzi e No âmbito desse discurso, fazia-se necessá-
Siqueira Jr (1972). Ao longo de suas explorações ria também a criação de instituições de ensi-
por São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Bahia, Per- no médico que difundissem esse saber no país
nambuco, Piauí, Maranhão e Amazonas, Spix e e contribuíssem para a superação da imagem
Martius estudaram a fauna e a flora do Brasil, considerada arcaica e pouco atrativa ao capital
como também as moléstias que acometiam os estrangeiro. No ano de 1808 foram criadas as pri-
indígenas (Ibidem, p.10). meiras instituições de ensino no Brasil: a Escola
Cirúrgica da Bahia e a Escola Cirúrgica do Rio de
Assim, pode-se conjeturar que o pensamento Janeiro. Cinco anos depois, em 1813, tais escolas
higienista, apesar de pouco influente, já vigorava sofreram uma reorganização, dando origem à
no país desde o século XVIII com forte influência Academia Médico-Cirúrgica do Rio de Janeiro e,
da mencionada teoria miasmática. Em suas inves- no ano de 1815, à Academia Médico-Cirúrgica da
tigações empíricas, os médicos apontavam como Bahia. Apenas em 1832 consolidaram-se como
causas para a insalubridade da colônia, de forma Faculdades de Medicina (MACHADO et al., 1978).
geral, a produção de miasmas nos pântanos; a não Outra importante instituição de saber médico foi
circulação de ventos puros em função da barreira instituída em 1850 na cidade do Rio de Janeiro.
física estabelecida pelas montanhas; a imperme- Tratava-se da Junta Central de Higiene que, com
abilidade do solo e o consequente acúmulo de o intuito de deter as epidemias, passou a intervir
águas pluviais; o sepultamento dentro das igrejas; no espaço público e privado das cidades por meio
o despejo de lixo e dejetos nas vias públicas e, ain- da adoção de normas de higiene que combatiam
da, a disposição das ruas no tecido urbano, em sua “ativamente os hábitos e ‘vícios’ considerados
grande maioria, estreitas e contrárias ao sentido anti-higiênicos” (ABREU, 1997, p. 45).
dos ventos dominantes (ABREU, 1997, p.40-41).
Diagnosticada pelos médicos, a insalubridade do Conectada à noção de higiene, surgia a ideia de
espaço urbano serviu de justificativa para inter- saneamento evidenciando outra forma de ação
venções nas cidades, exigindo sua reorganização no espaço, mais prática e vinculada aos princípios
diante da necessidade da livre circulação do ar da atuação dos médicos como proponentes de
e da água, além de pautar ações de adequação planos de intervenção (SCWARCHZ, 2001, p.206).
dos espaços públicos pelos padrões de higie- As Geografias Médicas, desse modo, podem ser
ne (ANAYA, 2018). No caso específico do Brasil, consideradas, no Brasil, como uma junção de
grande parte das ações propostas pelos médicos práticas (do teórico e do proponente), uma vez que
coloniais é desconsiderada, excetuando-se os apresentavam propostas concretas de modifica-
aterros de “pântanos” e a condenação dos enter- ção do espaço construído em função de pesqui-
ramentos no interior dos templos (ABREU, 1997). sas e levantamentos realizados pelos médicos.
Em grande medida, surgem como resultado de
A influência do meio sobre a saúde da população investigações de médicos vinculados a alguma
passou, no entanto, a ter maior sustentabilidade instituição ou órgão administrativo de Saúde com
no Brasil a partir do século XIX, com a transferên- o princípio inicial de estabelecer as causas das
cia da corte portuguesa para o Rio de Janeiro, em epidemias e endemias. Da teoria, ou da investi-
1808. Todavia, no campo da medicina, as mudan- gação empírica, muitas partem para a prática ao
ças ocorridas no século XIX tornaram-se mais proporem soluções e medidas de controle para
perceptíveis, principalmente a partir da difusão os problemas encontrados, a exemplo do que era
do ideário positivista no Brasil republicano. Tais difundido na Europa.
modificações instauraram, no país, um processo
de “medicalização da sociedade” que consolidou A “Geographia e Topographiia medica de Manaós”,
o meio urbano e seus habitantes como alvos de de 1916 (figura 01) – umas das mais completas
estudo, de intervenção e, principalmente, de nor- obras de Geografia Médica do Brasil, até agora
malização, como discutem Roberto Machado et encontrada – foi elaborada pelo médico chefe da
EIXO TEMÁTICO 2 municipalidade, Alfredo da Matta, e tinha como
objetivo apontar a evolução das doenças que atin-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS giam a população local, devendo ainda mostrar
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES quais as “medidas indispensáveis ao saneamento
do meio urbano e suburbano” e a correta ação
do poder público no combate às enfermidades
(MATTA, 1916, p.10). O médico, com a preocupação
em assumir parâmetros científicos para o estudo,
discorreu na introdução da obra: “como estudar
as doenças de Manaus, sem conhecer o meio, e
de que modo a este precisar sem intervir nas suas
condições meteorológicas e topografia local?
Como estabelecer as relações de mortalidade,
por exemplo, desconhecendo o movimento de
sua população? ” (Ibidem, p.11).

Figura 01: Capa do livro Geographia e Topographia Medica


de Manáos, de Alfredo Da Matta. Fonte: MATTA, 1916.

A partir desses princípios, subdividiu o estudo


em quatro capítulos, que muito se assemelham
à estrutura dos tratados espanhóis: “Noções su-
márias de Geografia” (situação e descrição da
16º SHCU cidade, natureza do solo, topografia, sistema de
30 anos . Atualização Crítica águas, fauna e flora); “Noções de climatologia”
1226 (temperatura, chuvas, pressão atmosférica,
higrometria, ventos, luminosidade, trovoadas, “Topografia de Natal e sua Geografia
atmosfera, reparos à climatologia de Manaus); Médica”, Januário Cicco - 1920
“Demografia em geral” (Censo e demografia sani-
tária da cidade); “Notas para o serviço de Profilaxia
O médico potiguar Januário Cicco, então Inspetor
do Paludismo, da Lepra e da Tuberculose”; e, ao da Saúde do Porto de Natal, publicou em 1920 o
final, vários anexos com planta da cidade, planta livro “Como se higienizaria Natal” no qual faz uma
da rede de esgotos, planta dos igarapés, quadros primeira descrição e caracterização do espaço da
de observações pluviométricas, quadro de obser- cidade. Nesse momento, no país, era atribuição
vações termométricas e gráficos com índices de do Inspetor de Saúde do Porto informar ao Diretor
mortalidade em decorrência de algumas doenças. Geral de Saúde Pública da Federação os traba-
lhos desenvolvidos pela repartição, solicitando,
Ao longo da Geografia Médica, mudanças também
se necessário, medidas de defesa sanitária dos
foram impressas no “corpo” da cidade como a dre- Portos. Segundo dizeres do próprio Cicco (1920),
nagem e retificação de pequenos rios, proteção os relatórios encaminhados contemplavam bo-
das margens com muralhas até o nível da rua e letins de entradas e saídas de navios, índices de
plantio de árvores para absorção da umidade. No letalidade locais e despesas efetuadas. A obra pu-
âmbito das habitações se previu a colocação de blicada pelo médico potiguar, ao que tudo indica,
telas milimétricas nas aberturas para impedir a teria esse objetivo a princípio, mas ganhou novos
passagem de mosquitos, bem como a adoção de enfoques e novas abordagens por parte do autor.
portas denominadas de “duplo tambor” do sistema
Oswaldo Cruz (MATTA, 1916). Januário Cicco nasceu em São José de Mipibu-RN,
em 1881, e formou-se na Faculdade de Medicina da
Ao final de suas considerações, o médico estimula Bahia no ano de 1906. Sua contribuição científica
a prática da educação física e incentiva a vida ao inclui a tese de doutoramento “Ligeiras conside-
ar livre, reivindicando para as cidades brasileiras rações sobre o destino dos cadáveres perante
a construção de grandes jardins e parques para a Higiene e a Medicina Legal” – que defendia a
exercícios e jogos. A exemplo da Inglaterra, Alema- cremação como meio de higiene e profilaxia dos
nha e Estados Unidos defendia a “construção das cemitérios –, entre outras publicações nas déca-
GARDEN CITIES”, mostrando-se em sintonia com das de 1920 e 1930. A formação na consagrada e
o ideário Cidade-Jardim difundido por Ebenezer tradicional Faculdade de Medicina da Bahia (criada
Howard no final do século XIX. De forte preocupa- nos moldes da Academia Francesa) rendeu-lhe
ção sanitária, esse modelo pregava por uma har- o convívio com profissionais de várias partes do
monia entre o homem e a natureza, valorizando, Brasil e do mundo, além do acesso a artigos e
no espaço urbano, a criação de parques, áreas pesquisas publicados na Gazeta Médica da Bahia
verdes com jardins e pomares – que permitiriam – primeiro periódico médico brasileiro criado em
a circulação saudável do ar –, avenidas largas e, 1866. Os artigos de higiene pública compreendiam
frequentemente, habitações isoladas no lote e além da epidemiologia, temas como saneamento,
baixa densidade. demografia e meteorologia.

Datada de 1916 e, portanto, posterior às descober- A “Topographia de Natal e sua Geographia Medica”
tas pasteurianas, a Geografia Médica de Manaus constitui-se como parte principal do livro publica-
evidencia que o meio continuava, pelo menos no do em 1920 (figura 02) que contemplou ainda con-
siderações gerais sobre higiene e saúde pública
Brasil, a desempenhar papel relevante no que
no Brasil. O seu ideário, apesar de se fundamentar
concerne ao surgimento e desenvolvimento de
e incorporar a concepção científica com base na
doenças, embasando pesquisas científicas sobre
microbiologia e na concepção infecto-contagiosa
as especificidades de um país de clima tropical.
da nova medicina, levava em consideração tam-
bém o meio urbano como agente favorecedor da
propagação das doenças e epidemias. Enfatizou,
em suas propostas, o combate à estagnação hídri-
ca por considerar a água como o veículo de maior
transmissibilidade das enfermidades.
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

Figura 02: Capa do livro Como se Hygienizaria Natal, de


Januário Cicco. Fonte: CICCO, 1920.

Na Topografia Médica, deu ênfase à descrição das


áreas habitadas de Natal (incluindo número de
edificações e seus usos, número de habitantes e
características geográficas do lugar, consideran-
do sua climatologia e topografia), como também
à espacialização das principais enfermidades e à
indicação das possíveis causas e soluções. Para
tanto, o médico não respeitou os limites oficiais
dos bairros instituídos pela Municipalidade e divi-
diu a cidade em áreas com base na contiguidade
dos focos e nas zonas atendidas pelos “serviços
de profilaxia” (Figura 03).

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1228
Figura 03: Mapa de Natal na década de 1920, com espacialização das epidemias. Fonte: FERREIRA et al (2008)

Figura 05: Rocas, Natal – década de 1920 – áreas alagadas.


Figura 04: Passo da Pátria, Natal – década de 1920. Fonte: Fonte: CICCO (1920).
CICCO (1920).

Parte das doenças foram classificadas de acordo âmbito mundial, as práticas e hábitos populares
com as estações do ano: as de começo e fim do começaram, de modo mais enfático, a serem
inverno; as de começo e fim do verão e as comuns condenados. Os locais insalubres, e, portanto,
a todas as estações. Contudo, o meio ambiente, censurados, eram, para as administrações públi-
a insalubridade urbana e as precárias condições cas e inspetores sanitários, “aqueles em que se
de habitabilidade, sobretudo das camadas po- amontoavam os pobres, e os corpos são aqueles
pulares, foram largamente apontados em seu que a roupa nem sempre protege” (VIGARELLO,
estudo como responsáveis pela origem de cer- 1985, p.117). Estabeleceu-se, de acordo com o
tas enfermidades. Segundo Georges Vigarello autor, uma clara distinção entre a sujicidade po-
(1985), a partir dessas investigações médicas, em pular e o bem-estar burguês.
EIXO TEMÁTICO 2 Em Natal, apesar de considerada “a cidade mais
saudável do Norte do Brasil” por Januário Cicco,
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS a insalubridade urbana era visível, sobretudo nas
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES áreas populares, de acordo com estudos do pró-
prio médico. Embora considerasse a proximidade
com o oceano, a predominância e constância de
ventos “puros”, o clima temperado, a incidência
solar e a permeabilidade do solo, presentes na
capital potiguar como fatores favoráveis à salubri-
dade, a realidade de sua investigação era contrária
a isso em algumas localidades. Em seu estudo,
subdividiu a cidade (área urbana e suburbana) por
sua situação geográfica, em relação ao nível do
mar, em duas: a Cidade Alta – que compreendia
os bairros Cidade Alta e Alecrim e se estendia à
Cidade Nova, com os bairros Petrópolis de Tirol – e
a Cidade Baixa, abrangida pelos bairros Ribeira e
Rocas, confirmando o uso de denominações (ou
divisões) presentes de modo habitual nas cidades
coloniais brasileiras. A partir de suas observa-
ções – com base em levantamentos realizados
anteriormente – pode-se ter, como caracterização
geral da cidade em 1920, um número total de 23951
habitantes, 5379 residências e 190 edificações
destinadas ao comércio. A Cidade Alta aparece
como o bairro de maior percentual de residên-
cias (28,89%), a Ribeira com o maior número de
estabelecimentos comerciais (125 ou 65,78%) e o
Alecrim como o mais populoso dos bairros (7132
habitantes ou 29,77% do total).

O bairro da Cidade Alta, apesar de se consti-


tuir uma área habitada por parte da população
abastada da cidade, é citado pelo médico como
o foco inicial das epidemias em Natal, devido à
proximidade com o Matadouro Público, com o
forno de incineração de lixo e com o “aglomerado
de pobres” denominado Passo da Pátria – local
descrito como zona de criação de porcos com
habitações úmidas, baixas e sem fossas. Propõe,
como soluções à insalubridade do lugar, a retirada
de tais equipamentos do centro habitado, a re-
gulamentação das construções e a “destruição”
do Passo da Pátria como uma medida profilática.

A Ribeira, centro comercial da cidade na época e


sede do Porto e da estação ferroviária, mereceu
especial atenção em seu diagnóstico por repre-
sentar “a porta de entrada de Natal à civilização
16º SHCU e à morte”. Essas vias de comunicação (Porto e
30 anos . Atualização Crítica
estrada de ferro) ofereciam condições propícias
1230 para a disseminação de doenças vindas de outras
localidades do país e do exterior. Apesar de plana abilização dos pisos e a construção, em cada
na sua maior parte, possuía um grande declive – habitação, de um tipo de fossa biológica.
Lagoa do Jacob – que gerava o acúmulo de água,
especialmente em épocas de inverno em função Os bairros da Cidade Nova – Petrópolis e Tirol –,
da inexistência de galerias de escoamento. O seu frutos de uma intervenção urbanística ocorrida
estado de insalubridade era agravado pela própria em 1904, eram considerados, na Topografia, os
edificação do bairro “de Norte para Sul, em oposi- pontos mais saudáveis de Natal, não apresentando
ção às correntes dos ventos dominantes” (CICCO, patologias consideráveis em suas localidades. As
1920, p.24) e por possuir um traçado urbano cons- avenidas largas, o afastamento entre as edifica-
tituído por ruas estreitas e irregulares. As medidas ções, o solo arenoso e a disposição das ruas no
apontadas foram a terraplenagem da Lagoa do sentido dos ventos dominantes, foram alguns dos
Jacob, a impermeabilização dos pisos das edifi- aspectos que o médico julgou como responsáveis
cações, a retirada das vacarias, das cocheiras e pelas boas condições de salubridade das duas
dos estábulos presentes no bairro. A construção áreas, confirmando, assim, a dicotomia entre a
de fossas estanques foi outra medida proposta cidade “antiga” e a cidade planejada dentro dos
pelo médico visando acabar com as escavações princípios higienistas.
para depósito de excrementos, a céu aberto, mui-
A principal fonte de abastecimento d’água de
tas vezes visíveis nas ruas e avenidas de grande
Natal também foi alvo de análise por parte do
parte da cidade. Essa prática foi enfaticamente
médico. O Baldo, como era conhecida, ficava em
criticada pelo médico por contaminar o lençol
uma área intermediária entre a Cidade Alta e o
freático, uma vez que a população natalense se
Alecrim, em um terreno pantanoso próximo ao
abastecia, nessa época, das águas subterrâneas
matadouro e ao forno de incineração de lixo – o
das dunas.
que não favorecia a salubridade de suas águas.
A maior parte dos habitantes do Alecrim – naquele Como sugestão, Cicco indicou a criação de uma
galeria subterrânea para a condução da água
momento o bairro mais populoso da cidade – era
das nascentes vizinhas até o sítio Oitizeiro, onde
de operários, à exceção de alguns abastados que
somente afloraria. Ao se evitar a contaminação do
ali possuíam suas chácaras. Segundo descri-
lençol, seriam oferecidas boas condições para o
ção de Cicco, era composto por habitações de
consumo saudável da água, tornando-se possível,
taipa, úmidas e com alta densidade, gerando a
também, o aterramento do Baldo e a eliminação
tão combatida “promiscuidade”. A proximidade
de mais um foco de doenças na cidade.
com o Cemitério e seu solo infectado, a inexis-
tência de um sistema de fossas e o acúmulo de Para finalizar, o médico menciona que
água em algumas pequenas lagoas agravavam
as condições de insalubridade do lugar. Dentre Outras medidas de maior alcance sanitário,
as medidas mais importantes para a profilaxia do e removíveis só pela rede de esgotos da
Alecrim, o médico, ressaltou a construção de um capital, pedem a intervenção dos governos,
cemitério em outro local da cidade, “longe quanto reclamam o nosso empenho, apelam para
possível da nossa urbe, atendendo aos meios de o nosso patriotismo, exigem mesmo o nos-
fácil comunicação” (CICCO, 1920, p.35). so sacrifício, desafiam os nossos créditos
de gente civilizada, cuja cultura se mede
A descontinuidade das dunas no bairro das Rocas – também pelas condições de vida de que
local de moradia dos trabalhadores do porto e dos nos cercamos (CICCO, 1920, p.39).
pescadores – e as depressões por elas formadas
geravam acúmulo de água também nesse bairro Assim, além de soluções pontuais, Januário Cic-
operário. As precárias condições das habitações co, ao longo do estudo e principalmente em suas
(em sua grande maioria de taipa) eram aponta- conclusões, apontou a construção de uma rede de
das como propagadoras de doenças. Portanto, esgotos como medida indispensável à salubridade
algumas medidas saneadoras foram indicadas de qualquer cidade constituída por uma população
por Cicco para esses problemas: terraplenagem maior que dois mil habitantes. Cabe observar que
dirigindo o escoamento das águas para a planície Natal, segundo o Anuário Estatístico do Brasil
e reconduzindo-as ao Rio Potengi; a imperme- (INSTITUTO, 1936, p.46) possuía, em 1920, uma po-
EIXO TEMÁTICO 2 pulação de 30.696 habitantes, o que justificava a
eloquência das palavras do médico, clamando por
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS uma solução urgente e extremamente necessária
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES ao bem-estar e à salubridade da cidade.

A relação entre meio ambiente e sociedade:


considerações finais

Com uma produção consolidada ao longo de 22


anos de constantes desdobramentos dos seus es-
tudos, o HCUrb trouxe à tona a discussão do pro-
blema contemporâneo, acreditando que entendê-
-lo pressupõe a compreensão, numa perspectiva
histórica, do processo e das formas em que as
questões concernentes ao urbano, ao ambiente e
ao social apareceram e foram tematizadas. Nesse
sentido, o presente trabalho buscou demonstrar
que as investigações médicas empreendidas na
Europa, a partir do século XVIII e, de modo mais
enfático, com a contínua ameaça das epidemias
no século XIX, revelaram a influência do meio
ambiente e do contexto social no processo de
origem e difusão das enfermidades.

Nesse momento, o espaço das cidades e os condi-


cionantes geográficos passaram a ser percebidos
como objetos de estudo e, ao mesmo tempo, como
alvos de intervenção das autoridades públicas e
sanitárias. No combate às epidemias e aos con-
siderados desajustes sociais, as Geografias e
Topografias Médicas surgem com o duplo papel de
diagnóstico e tratamento, tornando-se também
importantes arquivos históricos para o estudo da
geografia e do urbanismo.

Difundidas pelo mundo, mesmo que adotando


estrutura de elaboração semelhante, ganharam
características distintas por descreverem tão
variados lugares. No Brasil, revelaram as pecu-
liaridades regionais de um extenso país tropical,
sendo pensadas soluções para cada localidade em
concordância com suas singularidades geográfi-
cas e socioculturais. Em Natal, as condições de
salubridade foram descritas e analisadas no seu
contexto socioespacial e ambiental. Zonas que
não compreendiam os limites oficiais do espaço
urbano (como Rocas e Passo da Pátria) foram, pela
16º SHCU primeira vez e de modo consistente, descritas
30 anos . Atualização Crítica
e historiadas. O aproveitamento das areias das
1232 dunas para o aterramento das áreas encharcadas
expressa a presença marcante dos cômoros no REFERÊNCIAS
cenário urbano da época, de certa forma, carac-
terizando-o e dando-o singularidade em relação ABREU, M. de A. Pensando a cidade no Brasil do
a outras áreas do país. Constituiu-se, portanto, passado. In.: Silva, J. B. da, et. al. A cidade e o
como um dos primeiros estudos do meio ambiente urbano. Fortaleza: EUFC, 1997. pp.27-52.
natalense no século XX que, mesmo permane-
cendo no ideário de seu propositor, ressalta a ANAYA, G. L.. Natal: pântanos, miasmas e
evidência da relação da questão médica como micróbios. Natal: Caravela Selo Cultural, 2018.
diagnóstico e proposta, e da questão técnica e po- ARAÚJO, I. S. de. Januário Cicco: um homem
lítica, como solução. Solução essa que, aliás, viria além do seu tempo. Natal: Ed. Universitária,
se concretizar em Natal apenas na década de 1930. 1985.

Assim, evidencia-se, nesse momento, a existên- BARRET, F. A. The role of French-language con-
cia de uma estrita relação entre meio ambiente, tributors to the development of medical geo-
medicina e sociedade, que possibilitou a criação graphy (1782-1933). Social Science & Medicine,
(ou apenas ideação) de uma cidade salubre, fun- v. 55, jul., 2002, pp.155-165.
damentada em estudos de cunho higienista e
CAMPOS, C. de. São Paulo pela lente da higie-
intervenções sanitárias do poder público. Este ne: As propostas de Geraldo Horácio de Paulo
estudo histórico, desse modo, buscou ressaltar Souza para a cidade (1925-1945). São Carlos:
a importante contribuição dos médicos, por meio Rima, 2002.
das Topografias e Geografias Médicas, como os
precursores na análise do espaço concreto das CAMPOS, M. R., VALENCIA, L. I. O., FORTES,
cidades e, de modo particular, como anunciado- B. de P. M. D. et al. Distribuição espacial da
res da relação entre clima, sociedade e ambiente infecção por Ascaris lumbricoides. Revista
construído, antecipando estudos posteriormente Saúde Pública. [online]. fev., v.36, nº.1, 2002
desenvolvidos por geógrafos e ecólogos. O estudo [citado 16 dezembro 2002], pp.69-74. Disponí-
contribui ainda para ampliar a discussão acerca vel na World Wide Web: <http://www.scielo.
da evolução das práticas e ideias concernentes ao br/scielo.php? script=sci_arttext& pid=S-
meio ambiente e sociedade no Brasil levantando 0034-89102002000100011&lng= pt&nrm=iso>.
ISSN 0034-8910.
questões sobre a continuidade – e porque não di-
zer “atualidade” – dessas proposições históricas. CHIARAVALLOTI-NETO, F. O GEOPROCESSA-
Cabe mencionar, por fim, que tais estudos revivem MENTO E SAÚDE PÚBLICA. Arquivos de Ciên-
hoje como importantes ferramentas na promoção cias da Saúde, [S.l.], v. 23, n. 4, p. 01-02, fev.
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cio dos anos 2000 que deram base ao trabalho t&nrm=iso>. ISSN 0034-8910.
ora apresentado, bem como, ao CNPq pela bolsa
concedida e pelo apoio financeiro à pesquisa. CICCO, J. Ligeiras considerações sobre o
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EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES A comunidade LGBT+ historicamente esteve
cerceada nas suas possibilidades de manifesta-
ção em público. Confinados a locais e horários
sessão temática específicos, homossexuais buscaram, nos es-
paços públicos, parceiros com os quais pudes-
sem compartilhar experiências eróticas, numa
USO E APROPRIAÇÃO LGBT+ sociedade que reprimia a homossexualidade
com ações policiais punitivas ou patologização
DOS ESPAÇOS PÚBLICOS: médica. Este artigo se inicia com um entendi-
mento sobre a tratativa dada aos espaços públi-
SUBVERSÃO DA OCUPAÇÃO cos contemporâneos, em seu aspecto político,
envoltos em ideologias de moralidade e cida-
NORMATIVA E CONFORMAÇÃO dania, que condicionam formas de apropriação
específicas. Estabelece-se um recorte cronoló-
DE UMA IDENTIDADE gico a partir da experiência LGBT+ com os es-
paços públicos no Brasil do século XX, visando
entender o processo pelo qual passou a comu-
LGBT + USE AND APPROPRIATION OF PUBLIC SPACES:
nidade para desenvolver formas de socialização
SUBVERSION OF NORMATIVE OCCUPATION AND
imprescindíveis para sua vivência enquanto se-
CONFORMATION OF AN IDENTITY
res não heterossexuais, encontrando fissuras
mais permissivas em determinados recortes de
USO Y APROPIACIÓN LGBT+ DE LOS ESPACIOS
espaço-tempo, como as festas carnavalescas.
PÚBLICOS: SUBVERSIÓN DE LA OCUPACIÓN
Tal processo, como se pretende mostrar, con-
NORMATIVA Y CONFORMACIÓN DE UNA IDENTIDAD
tribuiu para a conformação de uma identidade
de pertencimento coletivo, importante para o
NOGUEIRA, Carolina Rodrigues Chaves desenvolvimento de grupos atuantes na causa
LGBT+.
Mestranda em Arquitetura e Urbanismo; Universidade
Federal de Minas Gerais
carol.rc.nogueira@gmail.com
ESPAÇO PÚBLICO OCUPAÇÃO HOMOSSEXUALIDADE
IDENTIDADE CARNAVAL

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1236
ABSTRACT RESUMEN

The LGBT+ community has historically been cur- La comunidad LGBT+ históricamente se ha visto
tailed in its possibilities for public demonstration. restringida en sus posibilidades de manifestación
Confined to specific places and times, homo- pública. Confinados a lugares y tiempos especí-
sexuals sought, in public spaces, partners with ficos, homosexuales buscaban, en los espacios
whom they could share erotic experiences, in a públicos, parejas con las que compartir experien-
society that repressed homosexuality with pu- cias eróticas, en una sociedad que reprimía la ho-
nitive police actions or medical pathologization. mosexualidad con acciones policiales punitivas
This article begins with an understanding of the o patologización médica. Este artículo comienza
deal given to contemporary public spaces, in their con una comprensión del trato dado a los espa-
political aspect, involved in ideologies of morality cios públicos contemporáneos, en su vertiente
and citizenship, which condition specific forms of política, involucrados en ideologías de moralidad
appropriation. A chronological cut is established y ciudadanía, que condicionan formas específi-
from the LGBT+ experience with public spaces cas de apropiación. Se establece un corte cro-
in 20th century Brazil, aiming to understand the nológico a partir de la experiencia LGBT+ con los
process that the community went through to de- espacios públicos en el Brasil del siglo XX, con el
velop forms of socialization that are essential for objetivo de comprender el proceso que atravesó
their experience as non-heterosexual beings, fin- la comunidad para desarrollar formas de socia-
ding more permissive fissures in certain clippings lización que son fundamentales para su vivencia
space-time, like carnival parties. Such a process, como seres no heterosexuales, encontrando fisu-
as we intend to show, contributed to the forma- ras más permisivas en determinados recortes es-
tion of an identity of collective belonging, impor- pacio-tiempo, como fiestas de carnaval. Tal pro-
tant for the development of groups active in the ceso, como pretendemos demostrar, contribuyó
LGBT+ cause. a la formación de una identidad de pertenencia
colectiva, importante para el desarrollo de gru-
pos activos en la causa LGBT+.
PUBLIC SPACE OCCUPATION HOMOSEXUALITY
IDENTITY CARNIVAL
ESPACIO PÚBLICO OCUPACIÓN HOMOSEXUALIDAD
IDENTIDAD CARNAVAL
EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
O acesso ao espaço público é desigual. As deli-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
mitações que definem as formas de uso e apro-
priação, os sujeitos e as temporalidades, são as
mais diversas, tanto em termos materiais, como
sessão temática
imateriais. O processo de formação da cidade
capitalista segregou populações inteiras às pe-

USO E APROPRIAÇÃO LGBT+ riferias, ao trabalho precário, às más condições


de vida. Ainda, a moralidade social, parte desse

DOS ESPAÇOS PÚBLICOS: processo, delineou os comportamentos, as nor-


mas de conduta, os modos de se relacionar, que
SUBVERSÃO DA OCUPAÇÃO estão de acordo com os pensamentos e diretrizes
de uma sociedade dominante não apenas com
NORMATIVA E CONFORMAÇÃO relação às classes, mas também ao gênero, à
raça, à sexualidade.1
DE UMA IDENTIDADE
1

A atualmente denominada comunidade LGBT+2


historicamente esteve cerceada nas suas possibi-
LGBT+ USE AND APPROPRIATION OF PUBLIC SPACES: lidades de manifestação em público. Confinados
SUBVERSION OF NORMATIVE OCCUPATION AND a locais e horários específicos, homossexuais
CONFORMATION OF AN IDENTITY buscaram, nos espaços públicos, parceiros com
os quais pudessem compartilhar experiências
USO Y APROPIACIÓN LGBT+ DE LOS ESPACIOS eróticas, numa sociedade que, se não criminali-
PÚBLICOS: SUBVERSIÓN DE LA OCUPACIÓN zava a homossexualidade, a reprimia com ações
NORMATIVA Y CONFORMACIÓN DE UNA IDENTIDAD policiais punitivas ou patologização médica. A
situação das mulheres homossexuais, como de
praxe na vivência feminina, foi ainda mais re-
pressora. Mais difícil se faz retomar a história
de apropriação dos espaços públicos por essas
mulheres, a não ser por relatos mais recentes,
principalmente a partir da década de 1980.

Essa situação, grosso modo, não mudou. Muitos


avanços, em termos legislativos e espaciais, fo-
ram alcançados. Mas a moralidade permanece e
se fortalece nos tempos atuais, com a consolida-
ção de governos de extrema direita e suas pau-
tas conservadoras, em nome das famílias e dos
sujeitos de bem. Ainda hoje, LGBT+’s conformam

1. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coorde-


nação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
– Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.

2. Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e


Transgêneros. Optou-se por convencionar, no texto, o uso
da sigla LGBT+ em referência ao movimento LGBTQIAP+
(Lésbicas, Gays, Bi, Travestis, Transexuais e Transgêneros,
Queer/Questionando, Intersexo, Assexuais/Arromânticas/
16º SHCU
Agênero, Pan/Poli e mais), que também pode aparecer, em
30 anos . Atualização Crítica
outras referências, com siglas diferentes, maiores e mais
1238 complexas.
guetos em espaços públicos e estabelecimen- circulação de pessoas, mercadorias, serviços. É
tos de lazer, buscando uma melhor e mais justa por onde se desloca desde casa ao trabalho, onde
vivência urbana. os automóveis ganham preferência, por onde se
distribuem usos e práticas que perpetuam o modo
O presente trabalho tem como objetivo entender de produção capitalista. A rua é vista como espaço
o processo pelo qual passou a comunidade LGBT+ racionalizado, prestada para garantir eficiência
para desenvolver formas de socialização a partir e deslocamentos produtivos.
dos usos dos espaços públicos que, mesmo que
domesticados e controlados, são imprescindíveis De acordo com Mendonça (2007), relaciona-se o
para sua vivência enquanto seres não heterosse- espaço público, na cidade, como o próprio meio
xuais, encontrando fissuras mais permissivas em urbano, fortemente ligado aos seus aspectos
determinados recortes de espaço-tempo, como físicos, naturais e/ou construídos, ou seja, à sua
as festas carnavalescas. morfologia, ao desenho e à forma com que ele se
apresenta. A autora trata de conceitos atribuídos,
Através de uma revisão bibliográfica, o trabalho por diversos outros autores, aos espaços públicos
se estrutura da seguinte forma: inicia-se com um formalmente constituídos, como as ruas, praças e
entendimento sobre a tratativa dada aos espa- parques, considerando, a princípio, seus aspectos
ços públicos contemporâneos, em seu aspecto morfológicos.
político, distante de uma caracterização apenas
morfológica. Tais espaços, como se pretende A rua é a estruturadora do traçado, regulando os
demonstrar, são atualmente envoltos em ideolo- fluxos, a ligação entre partes e regiões da cidade,
gias de moralidade e cidadania, que condicionam a disposição de edifícios e quarteirões. Pontua-se,
formas de apropriação específicas que têm refle- ainda, seu caráter de permanência no traçado,
xo direto na vida social pública. Estabelece-se, sua capacidade de resistir às transformações
então, um recorte a partir da experiência LGBT+ urbanas, por não ser totalmente ou facilmente
com os espaços públicos, e se parte para uma modificável.
cronologia histórica das formas e locais urbanos
A praça é, logo, resultado do alargamento ou
de apropriação da comunidade LGBT+ em grandes
confluência de traçados, elemento morfológico
cidades do Brasil: Rio de Janeiro, São Paulo e Belo
característico das cidades ocidentais, sendo, de
Horizonte. Ainda, discorre-se sobre o papel do
acordo com sua função premeditada, lugar de
carnaval com relação a uma maior permissividade
encontro intencional, de permanência, de práticas
das vivências não heterossexuais da cidade.
e convívios sociais, destinadas ao lazer, ao con-
trário da rua, concebida como lugar de circulação.
O processo vivenciado por homossexuais e discor-
Supõe-se que são livres de veículos e acessíveis
rido ao longo do artigo, como se intenta mostrar,
a toda a população.
contribuiu para a conformação de uma identidade
de pertencimento coletivo, relacionada a uma Já os parques são ambientes caracterizados por
subversão de gênero e sexualidade, bem como estruturas verdes, referentes à vegetação que
de uso e apropriação dos espaços públicos, que apresentam, e seriam elementos de composi-
foi importante para o desenvolvimento de grupos ção da cidade. Têm a função predominante de
e coletivos atuantes na causa LGBT+. recreação, com áreas geralmente maiores que
o quarteirão típico.

O espaço público, contudo, tem como traço pos-


espaço público como cateGoria política suir uma forma “fugidia” (PEREIRA, 2012), não
guardando configuração fechada por ser cons-
Qual seria o conceito e a função da rua, enquanto truído sobre conflitos e forças, sendo, portanto,
espaço público? Seria ela de livre acesso a todos espaço político. O debate sobre espaço público
os cidadãos de determinada área urbana? Seria enquanto conceito, logo, ultrapassa seus aspec-
de igualitário usufruto por qualquer habitante? É tos morfológicos e, segundo Delgado (2011), é
realmente necessário esse tipo de questionamen- mais recorrente a partir de fins do século XX. De
to? A rua, de modo geral, é tratada como local de acordo com o autor, de modo geral, em trabalhos
EIXO TEMÁTICO 2 das décadas de 1960 a 1990, nas poucas vezes
em que o termo aparece, é tratado como uma
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS ampliação do conceito de rua, ou designando
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES genericamente espaços acessíveis e abertos da
cidade. Outros vieses foram dados, ao longo dos
últimos anos, à tratativa do termo, como um es-
paço de e para relações em público, ou aquelas
áreas da cidade às quais todos têm acesso legal,
ao contrário do espaço privado, onde o acesso
pode ser legalmente restrito. Ainda, a filosofia
política, segundo o autor, traz uma linha de de-
finições que remetem à constituição da esfera
pública, associada à construção e organização
de vínculos sociais, à reunião de indivíduos que
controlam e acompanham o exercício do poder e
se pronunciam sobre assuntos que concernem a
vida em comunidade.

Fato é que o espaço público não se restringe ao


seu conteúdo material, sendo necessário admitir o
caráter socioeconômico que assumem as formas
urbanas, que são relacionadas e moldadas às arti-
culações dos diversos interesses e intenções pos-
tos desde seu planejamento, até sua construção
e apropriação. O espaço público é o lugar da vida
coletiva, das ações públicas, dos encontros. De
acordo com Andrade (2007), nos comícios e festas,
é possível que os espaços públicos aparentem se
desfazer das desigualdades sociais, mas fato é
que eles não são imunes a elas, sendo, portanto,
local das disputas cotidianas, dos conflitos. Mais
que isso, o espaço público explicita o exercício de
poder de um grupo sobre outro, da inclusão de uns
em detrimento da exclusão de outros.

Apesar disso, o conceito vigente de espaço pú-


blico, segundo Delgado (2011), é um conjunto de
lugares de livre acesso e visibilidade generalizada,
no qual se desenvolve uma determinada forma de
vínculo social e de relação com o poder. Investe-se
um sentido de moralidade ao termo, não apenas
nos discursos institucionais e técnicos sobre a
cidade, como também na promulgação de normas
de regulação de conduta dos usuários e de cam-
panhas de boas práticas urbanas e de cidadania.

Nos últimos anos, não apenas o conceito hoje


utilizado para definir o espaço público foi sendo
moldado, mas também o interesse por sua impor-
16º SHCU tância nos planos urbanísticos e nas administra-
30 anos . Atualização Crítica
ções públicas. Hoje, segundo Delgado (2011), rela-
1240 ciona-se à ideia de vazio entre construções que
deve ser adequadamente preenchido de acordo que é a de espaço da vida social das cidades. A
com os objetivos das autoridades: que seja ga- apropriação e ocupação desses lugares é que
rantida boa fluidez entre pontos, usos adequados, denota o status de “público” aos espaços, não bas-
significados desejáveis, grosso modo, que seja um tando sua mera existência física. A domesticação
espaço asseado e que garanta previsibilidade e inerente às práticas de uso impostas enfraquece
segurança. As iniciativas de revitalização urba- a dimensão pública dos espaços, bem como sua
na, comuns nas últimas décadas, popularizaram potencialidade para a diversidade, contraposta
e utilizaram dessa conceituação para adequa- à dimensão privada como lugar dos encontros
rem seus planos urbanísticos aos interesses da íntimos entre conhecidos.
especulação, do turismo e de outras demandas
institucionais. O idealismo do espaço público é subserviente da
apropriação capitalista das cidades, que, apesar
Desse modo, para além do conceito de espaço de nomeadamente tratar essas áreas como de
a ser preenchido pelos planos urbanísticos, in- livre acesso e boas práticas, nega e expulsa uma
sere-se outro discurso, complementar a este, série de vivências diversas que não se enquadram
que incide sobre as atitudes e ideias, de modo no padrão de modos da classe média ao qual seu
ambicioso e com forte valor ideológico, onde usufruto está realmente destinado. Assim, fun-
se visa materializar conceitos como cidadania, ciona como um mecanismo através do qual as
democracia, convivência, civismo, consenso. classes dominantes dissimulam as contradições
Essa conotação política dada ao espaço público que perpetuam e sustentam seu poder, ao mesmo
supõe, logo, que este seja uma esfera pacífica tempo que obtêm a aprovação das classes domi-
e harmoniosa de coexistência entre elementos nadas ao se valer do instrumento de neutralidade
heterogêneos da sociedade, onde as diferenças do sistema político imposto.
são superadas e postas de lado, para serem trata-
das apenas em âmbito privado. Assim se assume O espaço público, na sua tratativa contemporânea,
que os compromissos morais sejam cumpridos, seria, assim, de acordo com Delgado (2011), a ex-
fazendo com que a noção de espaço público tenha tensão material do que, em realidade, é ideologia,
se tornado, na atualidade, conceito básico da no sentido marxista clássico, como mascaramen-
ideologia de cidadania e instrumento ideológico, to ou fetichização das relações sociais reais, ao
pautado como espaço democrático cujo protago- conceber um desaparecimento das desigualdades
nista é o ser abstrato denominado cidadão, como e sua dissolução em valores universais superiores,
coloca Delgado (2011). ignorando a ordem econômica e outros fatores
que geram desigualdades e conflitos na socieda-
Essa ideologia se mostra concretizada no espaço de. Desse modo, é exatamente contra o conflito de
público, enquanto categoria política, sendo a ele interesses irreconciliáveis que surge a noção de
assignada a tarefa de materializar os sistemas espaço público na ideologia de cidadania, segundo
democráticos que pregam a natureza igualitá- o autor. As “insolências” e “indecoros” sociais são
ria da sociedade. Contudo, pode-se afirmar que repetidamente subjugados em nome de princípios
essa ideologia de cidadania e, logo, de espaço conciliadores abstratos, incentivando condutas
público, são ideias provenientes de grupos do- guiadas por normas de comportamento nesses
minantes – o Estado, autoridades e seus planos espaços de encontro entre desiguais, em nome
urbanísticos – que tratam de dissuadir qualquer de uma ordem política teoricamente igualitária.
capacidade de resistência ou de contestação,
qualquer apropriação considerada inadequada As instâncias governamentais de gestão das ci-
ou inapropriada, através, principalmente, de uma dades, muitas vezes submissas no contexto do
desqualificação dos atos e/ou cidadãos que se capitalismo neoliberal, aparecem, aí, obcecadas
apresentem como contraventores dos princípios por garantir o controle de ruas, praças, parques,
básicos da boa convivência. agora obrigados a se converterem em espaços
públicos de qualidade. O que acontece por trás
A contradição colocada a essa idealização do de tudo isso é a mesma sociedade hierarquizada
espaço público se mostra a partir de sua função forçada a se enquadrar nos pressupostos iguali-
por excelência, como apresenta Andrade (2007), tários materializados nos espaços públicos das
EIXO TEMÁTICO 2 cidades, onde as discrepâncias são proclamadas
como magicamente abolidas.
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES As cidades, os espaços públicos, a vida contem-
porânea, se veem subordinados ao modo de pro-
dução capitalista, que confere, em conjunto com
a tratativa da ideologia de cidadania, um almejado
caráter de produtividade, onde se mercadoriza o
trabalho, se racionalizam os corpos. Os conflitos,
as diferenças, as realidades, contudo, seguem
resistentes na prática das cidades, apesar do dis-
curso que desconsidera desigualdades de classe,
gênero, raça, sexualidade, que seguem sendo
carregadas de estigmas e negativações por baixo
do discurso de plena cidadania, que termina, em
realidade, por agudizar suas vulnerabilidades.

Desse modo, ainda que estâncias de poder ins-


titucionais trabalhem por e preguem um espaço
público moral e higienizado, grupos que possuem
existências não-normativas encontram formas e
vivências resistentes às ações e discursos hege-
mônicos. A comunidade LGBT+, como será discu-
tido no próximo item, não só encontrou maneiras
de se utilizar e apropriar dos espaços públicos
das grandes cidades, no Brasil, como foi a partir
disso que foi possível desenvolver novas formas
de relações sociais, afetivas e eróticas, a despeito
da repressão policial, da estigmatização médica
e social, e da tratativa de moralidade dada aos es-
paços públicos. Foi, inclusive, através da criação
das vivências urbanas que foram desenvolvidos
laços de pertencimento e conformação de uma
identidade que, segundo Green (2019) foi possível,
entre as décadas de 1970 e 1980, fazer surgir mo-
vimentos em nome dos direitos LGBT+ no Brasil.

Uma cronologia do uso e APROPRIAÇÃO


HOMOSSEXUAL DOS ESPAÇOS PÚBLICOS

Green (2019) expõe uma análise historiográfica


sobre a homossexualidade masculina no Brasil
do século XX, tendo por base o carnaval, princi-
palmente do Rio de Janeiro, e seu reflexo inter-
nacional que leva a crer que o Brasil é um país de
diversidade e tolerância, “[...] terra de democracia
de gênero e paraíso sexual para LGBT’s” (GREEN,
16º SHCU 2019, p. 15). Contudo, como mostra ao longo de
30 anos . Atualização Crítica
seu trabalho, a experiência homossexual nos es-
1242 paços públicos das grandes cidades brasileiras
foi amplamente reprimida, ao longo do século. Nos anos 1930, “[...] a topografia homoerótica do
Paradoxalmente, esses espaços públicos foram Rio de Janeiro estendia-se num semicírculo que
essenciais para o desenvolvimento do que o autor começava na Praça Floriano Peixoto e no Passeio
chama de uma identidade homossexual, que se Público, na Cinelândia, passando pelo bairro bo-
desdobrou, entre a década de 1970 e 1980, nas êmio e operário da Lapa, até a Praça Tiradentes”
primeiras organizações coletivas em nome dos (GREEN, 2019, p. 157). Além dos jardins e cantos
direitos dos homossexuais. escurecidos dos parques, a área oferecia ambien-
tes como pensões, bordéis e quartos para alugar
Com a instalação da República do Brasil em 1889, por hora, onde facilmente conseguia-se realizar
um novo Código Penal foi aprovado que, ainda que interações homossexuais, além, também, de abri-
não punindo explicitamente, visava controlar cer- gar a prostituição feminina. Já em São Paulo, à
tas condutas e restringir o comportamento homos- mesma época, as atividades homoeróticas eram
sexual. Segundo Green (2019), artigos previam pu- concentradas no Vale do Anhangabaú, na Avenida
nições baseadas em ações como atentado público São João, na Praça da República, no Jardim da
ao pudor, que ofendessem os bons costumes com Luz, na Estação da Luz (GREEN, 2019).
exibições impudicas praticadas em lugar público,
passíveis de escandalizar a sociedade; ou proibi- Até a década de 1940, o travestismo em públi-
ções de “nome suposto”, títulos indevidos e outros co permaneceu como violação do Código Penal.
disfarces, que tornaram ilegal o travestismo ao Era comum observar, nessas áreas públicas de
proibir disfarçar o sexo publicamente com o intuito interação homossexual, a performance feminina
de enganar a outrem. Ainda, a vadiagem era carac- daqueles que, à essa época, eram chamados de
terizada como crime pelo Código Penal, e utilizada “viados”. Além da gestualidade, usavam, por ve-
com frequência para coibir manifestações públi- zes, camadas finas de pó de arroz e ruge. Comum
cas que não se enquadrassem na normatividade. ainda era que esses homens adotassem nomes de
guerra também femininos, o que alimentou, por
Apesar disso, o estudo de Green (2019) demonstra anos, uma associação entre a homossexualidade e
que, desde fins do século XIX e inícios do século o travestismo, mesmo não sendo todos os homens
XX, era possível associar o uso de alguns espa- que necessitassem de uma afirmação de gênero
ços públicos de cidades como o Rio de Janeiro a feminino para se identificar como homossexuais
homens homossexuais em busca de parceiros. (Green, 2019). É importante lembrar que relações
A rua, à época, era um espaço predominante- homoafetivas, pelo menos até meados do século
mente ocupado por homens, sendo às mulheres XX, eram associadas ao padrão de gênero que
reservado o espaço privado para que pudessem remete à heterossexualidade, onde havia o ho-
permanecer preservadas e resguardadas. Essa mossexual, ou como foi chamado a cada tempo
liberdade masculina trouxe, a eles, maiores pos- (fresco, viado, bicha), que é o passivo, e o homem
sibilidades de encontros e busca por parceiros, e verdadeiro, ativo, que não se entendia ou era en-
alguns espaços públicos, ao longo dos anos, foram quadrado como homossexual.
sendo reconhecidos e caracterizados como espa-
ços de ocupação homossexual. O antigo Largo do Em Belo Horizonte, o Parque Municipal foi um
Rossio, atual Praça Tiradentes, no Rio de Janeiro, importante espaço de socialização, na década de
foi um dos primeiros lugares públicos a serem as- 1940, especialmente para gays e travestis, sendo
sociados aos então chamados “frescos”, no início alvo de constantes batidas policiais. Segundo
do século XX. Como precisavam esconder sua Galuppo (2019), o “Paraíso das Maravilhas” era uma
orientação sexual da família e de amigos, esses área conhecida do local, à época, como território
homens buscavam parques, jardins, e também de convivência gay. O parque, atualmente gra-
lugares como banheiros públicos e cinemas de deado, passou as décadas de 1940 a 1970 sem
modo a propiciar encontros e buscar parceiros grades, quando a circulação de homossexuais,
em potencial. Assim, contribuíram para a con- principalmente no período noturno, foi grande.
formação de um espaço público social inventi- Os encontros eram realizados com o motivo de
vo, necessário não apenas para sua satisfação se conhecer outros homens ou travestis, reali-
sexual, mas para a própria manifestação de sua zar encontros e até pequenas festas e desfiles
identidade. (GALUPPO, 2019).
EIXO TEMÁTICO 2 Esses espaços públicos eram locais de sociali-
zação e das possiblidades, enquanto os quartos
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS privados e alugados, nas áreas boêmias, per-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES mitiam abrigo contra a censura social e as per-
seguições policiais. Munida pela força da lei e
respaldada pelo consenso social, a polícia passou
décadas perseguindo homens que estavam à toa
por esses espaços públicos reconhecidamente
homossexuais, justificados pelo enquadramento
da vadiagem, que demonstrassem traços de fe-
minilidade, ou, até mesmo, que se travestissem.
O resultado era o encarceramento ou a hospitali-
zação, principalmente, no segundo caso, quando
se tratava de homens de classes mais abastadas.
Ao se ocupar desses espaços públicos, os ho-
mossexuais desafiavam os preceitos morais da
família, da sociedade, além da própria lei, em nome
da resistência ao recriar formas de socialização
que desafiavam a normatividade.

Entre as décadas de 1930 e 1940, no Brasil, o


comportamento homossexual era considerado
patológico por especialistas médicos, institui-
ções legais e psiquiátricas, através dos fortes
códigos de moralidade tradicionais, amparados,
também, pela Igreja Católica (GREEN, 2019). As-
sim, além da polícia e da justiça, também a me-
dicina trabalhava para controlar e tratar esses
desvios, objetivando, inclusive, a cura, que pre-
cedia uma ressocialização do sujeito. As ações
de internação em hospitais psiquiátricos, além
do debate e das pesquisas médicas com relação
aos distúrbios psíquicos e endocrinológicos que
pudessem causar a homossexualidade, tomaram
tamanha proporção a ponto de, em 1937, quando
da reformulação do Código Penal após a formação
do Estado Novo, ter sido sugerida uma cláusula
que penalizaria, com mais de um ano de prisão,
atos homossexuais consentidos entre adultos
(GREEN, 2019). A cláusula acabou sendo omitida
da redação final, mas sua sugestão denota os
ânimos da sociedade brasileira com relação à
temática à época. A tratativa dada pelas estâncias
de poder institucional às relações homossexuais,
bem como à sua exposição nos espaços públi-
cos, tinha como objetivo neutralizar os conflitos
sociais, sendo parte de um projeto político de
ordenação e controle social, que não aceitava
manifestações de sexualidade e gênero diferentes
16º SHCU
da norma heterossexual.
30 anos . Atualização Crítica

1244 Contudo, a década de 1950, já com o fim do Estado


Novo, trouxe algumas alterações nos papéis de partir da década de 1960. Ao efetuar contatos e
gênero definidos de modo rígido durante os anos ter a percepção de que há outros com os mesmos
anteriores, principalmente à medida que um maior interesses sexuais e afetivos, na convivência pelos
número de mulheres não só passou a fazer parte espaços públicos urbanos, passa a existir uma
da força de trabalho, como também estendeu sua afirmação pessoal da identidade homossexual.
formação estudantil e universitária. A polaridade Além de socializar, essas pessoas agem como
entre os homens “afeminados” e “verdadeiros” uma rede de apoio que compartilha “[...] códigos,
afrouxou com o surgimento de novas identidades gírias, espaços públicos e concepções sobre sua
sexuais e de gênero. Novas áreas das maiores homossexualidade” (GREEN, 2019, p. 301).
cidades brasileiras passaram a ser ocupadas por
homossexuais, como Copacabana, que passou a A apropriação dos espaços públicos, ou a neces-
fazer parte da rota homoerótica na cidade do Rio sidade de uso desses espaços para escapar ao
de Janeiro (GREEN, 2019). controle da família tradicional brasileira, suscitou
o desenvolvimento do que Green (2019) chamou de
Entre as décadas de 1950 e 1970, também já foi subcultura homossexual. A facilidade de acesso
possível mapear uma movimentação LGBT+ na dos homens ao espaço público, à rua, facilitou en-
cidade de Belo Horizonte. A sociabilidade desse contros e permitiu o desenvolvimento de relações
grupo, segundo Galuppo (2019), se concentrava que não podiam acontecer na esfera da família. Ao
no Parque Municipal, na zona boêmia conformada mesmo tempo, a estigmatização dessas relações,
entre a Rua Curitiba, a Avenida Santos Dumont, a muitas vezes, trouxe a necessidade de busca
Rua da Bahia e a Avenida do Contorno, as praças por espaços semipúblicos, como os bares que
Sete, da Rodoviária, da Estação, Raul Soares e sabidamente permitiam o acesso do público gay,
Vaz de Melo na Lagoinha, e o conjunto Arcângelo que passaram a surgir nas décadas de 1950 e 1960
Maletta. nessas grandes cidades brasileiras. Os bailes de
carnaval, também, eram oportunidades para se
As opções de vida noturna foram ampliadas com o publicitar vivências e performances que, hege-
surgimento de estabelecimentos exclusivos para monicamente, eram relegadas à esfera privada.
o público gay, principalmente nos anos 1960. A
sexualidade, de modo geral, passou a ser tratada
com uma atitude mais liberal, tendo sido abran-
dadas as normas sociais e sexuais. Ainda assim, O PAPEL DO CARNAVAL
a vigilância da polícia permanecia, e conflitos
eram frequentes, tanto entre os homossexuais e O carnaval do Rio de Janeiro, por exemplo, am-
a polícia, quanto entre homossexuais e parte da plamente reconhecido em âmbito internacional, é
sociedade que não tolerava dividir seus espaços associado por turistas estrangeiros como paraíso
normativamente ocupados, principalmente com homossexual, lugar da transgressão sexual e de
o avanço da ditadura militar. Em Belo Horizonte, gênero. Embora um comportamento subversivo
por exemplo, foi proibida a circulação de travestis fosse permitido no carnaval, desde meados do
(GALUPPO, 2019). Ainda assim, as áreas urbanas, século XX, o restante do ano simbolizava uma
tão necessárias para a sociabilidade pública dos necessidade de adequação comportamental
homossexuais, não só foram mantidas, como por parte dos homossexuais, dentro dos limites
ampliadas. aceitos pela sociedade. Ainda assim, a festa teve
importante papel na visibilidade homossexual no
Esses espaços de socialização contribuíram para Brasil, através da cobertura da imprensa, amplian-
o surgimento de um sentimento de pertencimento do a visão do público sobre elementos importantes
do grupo, similar ao de família, essencial para en- dessa subcultura. A constante aparição nos jor-
frentar a hostilidade social que lhes era imposta. nais e a maior visibilidade dos bailes de carnaval
Segundo Green (2019), a ocupação coletiva de de homossexuais, porém, terminou por criar uma
espaços públicos das cidades como participação imagem de associação entre homossexualidade e
em um grupo social favoreceu a criação e reforço travestismo. A sociedade passou a se acostumar
de uma identidade homossexual, rara em inícios com imagens de homens afeminados vestidos
do século XX, mas cada vez mais constante a com exuberância, relacionando homossexuais
EIXO TEMÁTICO 2 com homens de peruca, que se vestiam com
plumas e paetês para fazer sua entrada triunfal
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS nos bailes de carnaval. A visibilidade, ainda que
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES trouxesse familiaridade e um determinado grau
de tolerância, reforçou o travestismo e, por con-
sequência, a associação com os papéis de gênero
tradicionais, além de dar à homossexualidade um
ar de espetáculo divertido que acontecia durante
o carnaval.

DaMatta (1997) debate a importância de duas es-


feras da sociedade brasileira, que são a casa e a
rua, ou o privado e o público. Os grupos sociais
referentes a cada uma das esferas são completa-
mente diferentes: na casa, dominam as relações
de parentesco e de sangue; na rua, as possibilida-
des de escolha se oferecem. É também à esfera
da casa que é relegado tudo relacionado ao uso,
cuidado e recuperação do corpo, como é o caso
das relações sexuais. Explicitar, na rua, ou na
esfera pública, uma orientação sexual, ademais
não normativa, caracteriza uma subversão des-
ses papéis sociais. No carnaval, contudo, além
de socialmente aceita, essa exposição passa a
ser celebrada.

A fuga da rigidez das relações familiares e hierár-


quicas da esfera da casa, vivenciadas no carnaval,
permite a experiência, na esfera pública, dessas
características pessoais socialmente relegadas
à privacidade. A moralidade social imposta ao
espaço público termina sendo afrouxada durante
a festa, perdem-se os regramentos e pode-se
vivenciar valores igualitários dentro de uma so-
ciedade hierárquica e estruturada com rigidez.

O carnaval, para muitos homossexuais, passou a


significar mais que um ato de inversão, mas uma
real intensificação de suas próprias identidades
e experiências, como indivíduos que subvertem
os papéis de gênero e ultrapassam os limites
sexuais socialmente aceitos não só nas festas,
mas no ano inteiro. O carnaval aparenta ser uma
conformação social capaz de inventar um espa-
ço onde, como pontua DaMatta (1997), a casa e
a rua se encontram. Ainda que permaneçam os
aspectos públicos da folia, como os desfiles e as
exposições, ele também torna possível algumas
ações sociais designadas à esfera privada, como
16º SHCU as performances de gênero e demonstrações de
30 anos . Atualização Crítica
sexualidade não hegemônica. Ainda que a rua já
1246 fosse um local privilegiado para a vivência dos
homossexuais, durante o carnaval a esfera pri- que mobilizações populares conseguissem ter
vada relacionada à sua sexualidade invade com algum espaço de atuação.
mais intensidade a esfera pública, ultrapassan-
do-se, inclusive, as amarras familiares impostas Ainda assim, ao longo da década de 1970, passa-
a essas pessoas no restante do ano. Nas festas e ram a ser mais comuns espaços de lazer destina-
bailes de carnaval, a hostilidade social voltada ao dos a mulheres lésbicas, como o Ferro’s Bar, um
comportamento homossexual era arrefecida, o restaurante em São Paulo que acabou se tornando
prazer festivo era uma pausa na pressão sofrida o primeiro local de encontro público para mulhe-
no restante do ano. res homossexuais. Outro ponto importante na
mudança da paisagem urbana, durante a década,
De toda forma, a polícia ainda realizava prisões foi a crescente visibilidade de travestis e michês
durante os dias de carnaval, principalmente à pelas calçadas de São Paulo e do Rio de Janeiro.
medida que se avançava pela década de 1960 e a Nos anos 1980, Belo Horizonte também já con-
ambiência política já se tornava mais represso- tava com boates e bares que conhecidamente
ra e conservadora, adentrando-se na ditadura abrigavam um público LGBT+, como nos bairros
militar. As exibições públicas escandalosas, nas Barro Preto, Santa Tereza, e na região centro-sul
proximidades dos bailes ou no caminho para eles, da cidade (GALUPPO, 2019)
muitas vezes chamavam a atenção das autori-
dades, que tinham como alvo, principalmente, As mudanças na sociedade brasileira trazidas à
as festas reconhecidamente como de ocupação época, como a revolta política e social alimentadas
homossexual. Ao serem liberados na quarta-feira por movimentações de contracultura, motivaram
de cinzas, muitas vezes os detidos continuavam a questionamentos das ordens hegemônicas como,
celebrar, ainda vestidos com trajes carnavalescos, dentre outros, a desestabilização dos códigos
já que tiveram a folia interrompida pela ação poli- sexuais, principalmente em relação à heteros-
cial. Festas eram improvisadas nas escadas das sexualidade normativa e à virgindade feminina
delegacias, e passaram a abrigar encontro para antes do casamento (GREEN, 2019). Passou-se a
aqueles que ainda desejavam um último dia de ter um ambiente mais favorável para um questio-
folia. Assim surgiu o bloco “O que é que eu vou dizer namento dos conceitos de gênero tradicionais.
em casa?” que, em 1966, já contava com cerca de Artistas como Caetano Veloso e Ney Matogrosso,
setecentas pessoas, alimentado pela constante o surgimento de discussões e performers andró-
cobertura da imprensa (GREEN, 2019). As mani- ginos, peças de teatro com temática homosse-
festações homossexuais, como se vê, buscavam xual, contribuíram para uma valorização de uma
resistir à constante coibição imposta à sua iden- identidade, trazendo mudanças com relação à
tidade e vivência, mesmo em períodos em que, tratativa popular a tais pessoas e questões.
em teoria, o controle tenderia a ser mais brando.
O processo de formação dessa identidade ho-
mossexual, iniciado nas décadas de 1950 e 1960,
ganhou, assim, força na década de 1970, alimen-
A CONFORMAÇÃO DE UMA IDENTIDADE tado pela expansão dos espaços públicos para
socialização entre homossexuais e por uma maior
Já na década de 1970, o espaço dos homossexuais cobertura da imprensa às ações internacionais
no carnaval estava estabelecido, através dessa em busca de direitos para a comunidade, como
constante resistência aos padrões hegemônicos casamento entre pessoas do mesmo sexo e a eli-
impostos, ao criarem aberturas nas normas de minação da patologização da homossexualidade
respeitabilidade e, por consequência, amplia- da Associação Psiquiátrica Americana (GREEN,
rem as noções culturais de sexualidade e gênero. 2019). Em 1978, um grupo de intelectuais do Rio
Ainda que a instauração da ditadura militar não de Janeiro e de São Paulo fundou o Lampião da
tivesse, de fato, interferido na logística das fes- Esquina, um tabloide voltado ao público gay. Mo-
tas e estabelecimentos de lazer ocupados por vimentações como essa passaram a constituir as
homossexuais (GREEN, 2019), após seu endure- fundações para a construção de um movimento
cimento com a instalação do Ato Institucional nº em nome dos direitos dos homossexuais. Após
5, em 1968, foram necessários alguns anos até a crescente circulação do jornal por todo o país,
EIXO TEMÁTICO 2 um grupo de gays organizou, em São Paulo, um
coletivo que viria a se tornar a primeira organi-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS zação bem-sucedida, chamada Núcleo de Ação
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES pelos Direitos dos Homossexuais, em nome da
tomada de uma consciência gay, e, mais tarde,
na promoção de atividades como campanhas
políticas e debates. Posteriormente, o grupo foi
renomeado como Somos: Grupo de Afirmação
Homossexual. A partir de 1979, outros grupos de
debate foram surgindo, bem como publicações
de material favorável às relações homossexuais,
apresentando ideias de que “[...] a homossexu-
alidade era apenas um entre muitos diferentes
comportamentos sexuais possíveis, e não uma
patologia” (GREEN, 2019, p. 443).

Grupos de militância, de acordo com Galuppo


(2019), também surgiram em Belo Horizonte, na
década de 1980, trazendo à cidade um novo tipo de
movimentação, como o Movimento Viva o Amor,
o Núcleo Gay do PT, o Movimento de Defesa dos
Direitos Homossexuais e o GAPA - Grupo de Apoio
e Prevenção à Aids.

A organização de grupos em nome dos direitos


LGBT+ acompanhou a expansão da “territoriali-
zação” dessa comunidade pelos centros urbanos.
O centro-sul de Belo Horizonte foi, desde os anos
1980, a maior área de circulação de LGBT+’s. Nos
anos 2000, contudo, essa ocupação se estendeu
a bairros que antes não contavam com espaços
voltados especificamente a este público, como
Prado, Floresta, e a Praça da Liberdade (GALUPPO,
2019), esta historicamente ocupada e frequentada
pela elite belo-horizontina.

A vivência dos espaços públicos por LGBT+’s no


Brasil, ao longo do século XX, explicitou a impor-
tância com relação às esferas tradicionais da vida
social brasileira, entre a casa e a rua, o público e o
privado. A atuação da família brasileira, bem como
das instituições de poder, frente à homossexuali-
dade, foi desde a renegação até a hospitalização
daqueles que se desviavam das normas sociais da
heterossexualidade. Os espaços públicos foram
e seguem sendo componente importante das
relações vividas pela comunidade LGBT+, numa
dialética entre explícito e oculto, que envolve as
relações românticas/sexuais, as relações familia-
res, as relações sociais, e, em especial, as formas
16º SHCU
de coerção e violência, físicas e simbólicas.
30 anos . Atualização Crítica

1248 O cenário social brasileiro do século XX contribuiu


para que LGBT’s muitas vezes buscassem distan- 2010, é objeto de preocupação dos ativistas, que
ciamento dos sistemas familiares tradicionais e se veem perdendo direitos em variadas frentes,
construíssem novas redes de apoio com amigos não restritas ao debate da sexualidade.
que compartilhavam os mesmos desejos sexuais.
A formação desses grupos nas esferas públicas Conforme pôde ser observado, os espaços pú-
ou semipúblicas da sociedade e das cidades fa- blicos urbanos não só fizeram parte da vivência
voreceu a mobilização necessária para a busca e LGBT+, ao longo do tempo, como foram funda-
debate explícitos em nome de direitos e vivência mentais para a conformação de uma identidade e
urbana LGBT+, desassociadas do estigma imposto consciência coletiva de luta, apesar da repressão
e da violência. social e policial. A moralidade imposta aos espa-
ços públicos, ainda que seja fortemente debatida
na contemporaneidade com o avanço do neolibe-
ralismo e das políticas públicas de higienização
CONSIDERAÇÕES FINAIS da cidade, foi evidente ao longo de todo o século
XX, ao menos no que diz respeito à apropriação
O ativismo LGBT, na contemporaneidade, atin- homossexual nas áreas urbanas. A pauta conser-
ge patamares legislativos, espaciais, sociais, e vadora da família e dos costumes não chega a ser
alguns direitos3 foram conquistados, no Brasil: novidade na sociedade brasileira, ainda que se
veja reforçada pelo governo federal atuante desde
- Em 1985, a homossexualidade deixou de ser 2018, acompanhado por outros representantes
considerada doença; das outras esferas de poder.

- A cirurgia de redesignação sexual foi regula- A resistência desses grupos, apesar de controle
mentada em 1997; social, foi necessária para sua própria existência,
negada com constância nas esferas privadas da
- Em 2011, foram permitidas uniões estáveis ho- família e na própria sociedade. Às mulheres, então,
moafetivas e, em 2013, o casamento; apenas foi viabilizada essa vivência tardiamente,
pois, ademais das pautas de sexualidade, preci-
- Em 2018 o Supremo Tribunal Federal reconheceu saram conquistar direitos frente ao patriarcado,
que todo cidadão tem direito de escolher como à sociedade masculina dominante.
quer ser chamado, independentemente de cirurgia
ou decisão judicial; Os espaços públicos contemporâneos tendem a
ser domesticados, higienizados, de modo que se
- Em 2018, a Organização Mundial da Saúde anun- evite o conflito. A tratativa dada a esses espaços
ciou que vai retirar a transexualidade da lista de é mercadológica, com a busca pela revitalização
doenças e distúrbios mentais até 2022. de espaços, desconsiderando-se sua vida urbana
própria. O higienismo segue atuante, disfarçado
Contudo, é sabido que a cidade não é livre e segura
ou escancarado, pois o espaço público buscado
para as diversas vivências não hegemônicas, e
pelas estâncias de poder, nas figuras do mercado
LGBT+’s seguem sendo estigmatizados, perse-
ou do Estado, é um espaço harmônico, preten-
guidos e violentados nos espaços públicos. As
samente igualitário, onde a sociedade acessa as
performances de gênero e as demonstrações
belas obras de engenharia urbana e vivencia uma
públicas de afeto seguem sendo cerceadas e
cidade embelezada e sem conflitos. Os corpos,
destinadas a determinados espaços, como foi
também, são mercadorizados. Racionalizados,
ao longo do século XX no Brasil. Ademais, a pau-
feitos para cumprir a produtividade, se comportar
ta conservadora de direita/extrema direita, que
nos espaços públicos de acordo com a moral e os
avança em termos globais, nos fins da década de
bons costumes da família e do cidadão de bem.
Qualquer manifestação pública diferente do es-
3. Retirado de MENEZES, Luiz Fernando. Desenhamos as perado é estigmatizada, é taxada negativamente.
conquistas LGBTQI no Brasil. Aos Fatos, 2019. Disponível
em: https://aosfatos.org/noticias/desenhamos-as-con- Ainda assim, persistem na cidade formas de uso
quistas-lgbtqi-no-brasil/. Acesso em 10 de setembro de e apropriação dos espaços que resistem à ordem
2020. e à racionalidade impostos pela lógica do capital.
EIXO TEMÁTICO 2 É comum a existência de guetos, festas, esta-
belecimentos voltados ao público LGBT+, que,
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS ainda que em determinados espaços, seguem
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES fortalecendo laços entre os seus, na busca de
espaços seguros para a experiência urbana. Mes-
mo reforçada a importância desses espaços, as
festas que ultrapassam fronteiras locais, como
foi e segue sendo o carnaval, são primordiais para
refletir e propagar a resistência nas possibilidades
de experimentações de sexualidades e desejos,
geralmente restritas a espaços privados.

Em Belo Horizonte, a década de 2010 trouxe o


ressurgimento e popularização do carnaval de rua,
cujos blocos se dispuseram a debater conflitos
sócio-espaciais da sociedade contemporânea,
sendo a discussão LGBT+ parte do movimento.
Através de um questionamento dos padrões, os
blocos se propõem a subverter a ocupação urbana
heteronormativa, trazendo à esfera pública per-
formances de gênero e de sexualidade, demons-
trações públicas de afeto que, de acordo com as
normas sociais, deveriam estar destinadas ao
campo privado. A valorização do espaço público
e da própria cidade como palcos para as lutas vai
de encontro e questiona o esvaziamento imposto
pelo valor de troca da acumulação capitalista,
pelas normas de moralidade que mascaram as
relações sociais reais através da ideologia de
cidadania, que regem, de modo dominante, as
vidas urbanas.

Um conjunto de corpos reunidos em público, como


é o caso da festa com teor político que levanta a
pauta LGBT+, se trata de uma presença política
que exercita uma demanda corporal, segundo
Butler (2018, p. 32), por um “conjunto de vidas
mais vivíveis”. A subversão proposta pela festa
carnavalesca pode refletir uma sinalização de
abrandamento, mesmo que naquele recorte de
espaço e de tempo, do domínio de coerção impos-
to pela heteronormatividade. Nesses momentos
em que a subversão acontece, o espaço ocupado
é tomado por um conjunto de corpos LGBT+ que,
unidos, compartilham de um objetivo comum, ex-
pressam sua existência plural no espaço público,
demandam reconhecimento, exercitam liberdade,
reivindicam uma vida que possa ser vivida.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1250
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EIXO TEMÁTICO 2

HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS


CAMPOS DO CONHECIMENTO
SOBRE AS CIDADES

vídeo-pôsteres
EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES O presente artigo analisa as publicações da re-
vista italiana Spazio e Società (1978-2000) que
tratam, dentre suas temáticas, da arquitetura
vídeo-pôster
e do urbanismo da América Latina no intuito de
compreender os inúmeros olhares para esse

A AMÉRICA LATINA NA
subcontinente. Dentro das seções da revista há
diversos artigos que tratam de temas classifi-

REVISTA SPAZIO E SOCIETÀ cados como Terceiro mundo e outros compõe


os Dossiês sobre o estado da arquitetura e do
urbanismo nos países estrangeiros. O objetivo
LATIN AMERICA IN SPAZIO E SOCIETÀ MAGAZINE é então compreender tal classificação dos arti-
gos a partir dos tópicos abordados, de seus au-
tores e das semelhanças e diferenças nas suas
AMÉRICA LATINA EN LA REVISTA SPAZIO E SOCIETÀ
temáticas.

savino, fabiane regina


AMÉRICA LATINA TERCEIRO MUNDO
Mestranda em História e Fundamentos da Arquitetura e do
Urbanismo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da REVISTA SPAZIO E SOCIETÀ
Universidade de São Paulo

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1254
ABSTRACT RESUMEN

This article analyzes the publications from Spa- El presente artículo analiza las publicaciones de
zio e Società magazine (1978-2000) about Latin la revista italiana Spazio e Società (1978-2000)
American architecture and urbanism in order to que tratan, entre sus temas, de la arquitectura
encompass the countless perspectives regarding y el urbanismo de Latinoamérica, con el intuito
this subcontinent. In the magazine sections there de comprender las innúmeras miradas sobre ese
are several articles related to themes classified subcontinente. Dentro de las diferentes seccio-
as Third world and other articles which are part nes de la revista, hay diversos artículos que tratan
of Dossiers regarding the state of architecture de temas clasificados como Tercer mundo y otros
and urbanism in foreign countries. The aim is to que componen los dossiers sobre el estado de la
understand such articles’ classification as from arquitectura y del urbanismo en el extranjero. El
addressed topics, its authors and the similarities objetivo es comprender esta clasificación de ar-
and differences of said themes. tículos a partir de los temas tratados, sus autores
y las similitudes y diferencias en sus temáticas.

LATIN AMERICA THIRD WORLD


SPAZIO E SOCIETÀ MAGAZINE AMÉRICA LATINA TERCER MUNDO
REVISTA SPAZIO E SOCIETÀ
EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
O presente artigo busca analisar as publicações da
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
revista italiana Spazio e Società (1978-2000) que
tratam da arquitetura e do urbanismo da América
Latina a partir de suas temáticas e de seus auto-
vídeo-pôster
res. O periódico se destaca dentre seus contem-
porâneos de mesma categoria por se declarar uma

A AMÉRICA LATINA NA revista de arquitetura e urbanismo internacional


- no sentido mais amplo da palavra - e buscar
REVISTA SPAZIO E SOCIETÀ de fato olhar para as inúmeras manifestações
e experiências do campo disciplinar por todo o
globo, sem perder de vista as dimensões sociais
LATIN AMERICA IN SPAZIO E SOCIETÀ MAGAZINE que as atravessam. A proposta do corpo editorial
era a de olhar para o ambiente construído aten-
AMÉRICA LATINA EN LA REVISTA SPAZIO E SOCIETÀ tando-se, sobretudo, aos processos de projeto,
às relações estabelecidas, à cultura, história etc.,
que constituem e ultrapassam a sua materialida-
de. O interesse pelos processos há muito estava
presente nas pesquisas de seu editor chefe, o
arquiteto italiano Giancarlo de Carlo.

Giancarlo De Carlo (1919-2005) foi uma figura im-


portante do campo disciplinar da arquitetura e do
urbanismo do século XX, destacando-se pela sua
trajetória enquanto arquiteto, urbanista, escritor,
militante, professor e crítico. A historiografia tor-
nou notórios seus argumentos e ações no Team
X, como as discussões em torno do projeto par-
ticipativo e a importância do vínculo da arquite-
tura e do urbanismo com a história. Contudo, seu
pensamento crítico sobre a sociedade ultrapassa
tais argumentos e se expressa em grande medida
na revista estudada.

Os artigos da América Latina aparecem em dife-


rentes segmentos internos da Spazio e Società e
a análise se direciona especificamente para dois
deles: os textos presentes nos dossiês – seção de
destaque, em que um único país é objeto de estudo
e ganha um espaço privilegiado na publicação – e
os textos classificados pelo corpo editorial italia-
no como artigos sobre a arquitetura e o urbanismo
do Terceiro mundo. O estudo que se busca fazer é
entender as diferenças na construção da imagem
de América Latina em cada um desses segmentos
e como as temáticas e seus autores corroboram
para essa divisão.

16º SHCU Para tal, o presente artigo está subdividido em


30 anos . Atualização Crítica
cinco partes: a primeira parte trata da revista
1256 Spazio e Società e de seu editor chefe Giancarlo
De Carlo, da sua origem e suas divisões internas; a cação traduzida - assume a direção da revista,
segunda parte apresenta de forma breve o concei- dando início a uma nova série e recomeçando do
to de Terceiro mundo, suas disputas pelos campos número um. Enquanto a revista francesa partia
disciplinares e alguns de seus significados; na do ponto de vista da sociologia para entender
terceira parte são analisados os artigos da Spazio as transformações do ambiente construído, a
e Società que tratam de países da América Latina Spazio e Società o fazia por meio de projetos de
e que foram classificados pelo corpo editorial da arquitetura e urbanismo, mas ambas acolhiam
revista como Terceiro mundo; em seguida, a aná- também pontos de vista multidisciplinares para
lise se direciona para a América Latina retratada enriquecer seus debates.
nos dossiês, um segmento importante da revista.
Por fim são apresentadas as considerações finais. Juntamente com a nova direção, o projeto grá-
fico, o formato e a redação mudam. As edições
são escritas em italiano e em inglês e continuam
sendo publicadas trimestralmente. No editorial do
A REVISTA SPAZIO E SOCIETÀ primeiro exemplar, De Carlo explica as mudanças
estruturais da revista e afirma que seu objetivo
A revista de arquitetura, urbanismo e design Spa- principal é tratar das transformações do ambiente
zio e Società nasce em 1975 como uma edição físico sob a ótica arquitetônica, que se ancora na
italiana da revista francesa Espaces et Sociétés, estrutura organizacional e na forma do espaço.
fundada em 1970 pelo filósofo e sociólogo fran- Segundo o arquiteto, para isso, é preciso renovar,
cês Henri Lefebvre e pelo arquiteto e urbanista ou até mesmo inventar novos mecanismos críticos
Anatole Koop. Este periódico internacional de (DE CARLO, 1978, p.4).
arquitetura e urbanismo buscava uma síntese das
A Spazio e Società foi estruturada em duas gran-
diversas aproximações disciplinares que tratavam
des partes: um núcleo principal, com ensaios
da relação entre as sociedades e seus espaços
críticos e projetos, e um apêndice com a partici-
e territórios, dando voz a uma discussão sobre
pação de colunistas. Os ensaios tratam de teoria
urbanismo e políticas urbanas já muito presen-
e método, confrontam propostas de contextos
te nos interesses de pesquisa de seus editores. similares e diversos, abrem discussões sobre
Lefebvre partia da “definição de espaço como problemas já abertos ou ainda latentes na cena
categoria fundamental de produção e, ao mesmo internacional da arquitetura. São textos relativa-
tempo, como produto social em que o tempo é mente maiores e mais densos.
uma de suas articulações”, sendo o urbanismo,
uma ciência do espaço tanto global – de toda a Os projetos eram escolhidos buscando abarcar a
sociedade – quanto local – presente na escala produção contemporânea do máximo de países
da habitação (DAIDONE, 2012, pp. 25-26). Koop do mundo e eram ilustrados de modo a mostrar
já havia trabalhado em projetos de habitação seu desenvolvimento inteiro; também eram con-
social e desenvolvimento urbano na Argélia e mais siderados projetos não tão contemporâneos, no
tarde publicaria seu livro sobre a arquitetura e o intuito de verificar como seus programas originais
urbanismo soviéticos dos anos 1920. Os editores resistiram ao uso e ao passar do tempo. A escolha
chefes da Espaces et Sociétés “acreditavam que dos projetos – e dos ensaios – não era guiada pelo
fosse possível construir uma nova sociedade, fato de serem mais ou menos inéditos; o material
baseada em novos relacionamentos de produção, publicado não necessariamente precisava ser
por meio da construção de uma nova estrutura inédito também, porque interesse maior era na
de espaço onde o homem, vivendo lá, transfor- circulação da informação e, sobretudo, da crítica.
mar-se-ia” (ibidem).
Já a coluna editorial no apêndice é dividida em
O primeiro exemplar da sua versão italiana data três partes: Hipóteses (Congetture), Argumentos
de junho de 1975 e surge como uma tradução di- e Eventos (Argomenti e Avvenimenti) e Documen-
reta da revista francesa, seguido de outras três tos (Documenti). Nas Hipóteses eram coletadas
edições em que já apareciam alguns textos iné- contribuições tardias em relação às edições da
ditos. Em 1978 Giancarlo de Carlo – que já fazia revista, porém significativas por abrirem novos
parte do corpo editorial desde a primeira publi- problemas ou abordarem problemas já tratados,
EIXO TEMÁTICO 2 direcionando-os para saídas ainda não vislum-
bradas. Nos “Argumentos e Eventos”, grupos de
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS livros eram comentados, bem como fatos contem-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES porâneos que se encaixassem nos assuntos da
revista. Nos “Documentos” eram reunidos provas,
testemunhos e até mesmo documentos reais,
como materiais de apoio à pesquisa realizada na
área de Projetos ou de Ensaios.

A Spazio e Società teve um total de 92 números


publicados ao longo de 22 anos e se mostra in-
teressante enquanto objeto de estudo primeira-
mente por se declarar uma revista internacional
de arquitetura e urbanismo e, de fato, buscar
conteúdo dos mais variados meios culturais para
suas publicações e enriquecimento dos debates.
Ainda, também se diferencia de outras publica-
ções italianas contemporâneas a ela por ter a
figura de Giancarlo de Carlo à frente da sua dire-
ção, arquiteto cujo pensamento e crítica sobre o
homem, a sociedade, a arquitetura e o urbanismo
são de grande valor e se traduzem na sua ativida-
de editorial. Segundo Samassa (2003), “no geral
pode-se dizer que De Carlo transmite à revista
a sua inclinação pessoal de dar mais atenção às
instâncias que provém ‘de baixo’, do ofício e da
prática da arquitetura, mais do que do topo das
cátedras da cultura acadêmica”. Em consonância
com a pesquisa arquitetônica do seu editor chefe,
a revista se diferenciava dos demais periódicos
de arquitetura e urbanismo italianos por ter ao
centro de suas reflexões a natureza processual
da prática projetual, bem como a dimensão par-
ticipativa da arquitetura e a leitura do contexto,
argumentos largamente utilizados por De Carlo
quando da sua participação no Team X e nas suas
críticas aos postulados canônicos de grupos
internos do CIAM.

Alguns tópicos que se pretendiam abordar foram


destacados nos editais das primeiras publicações
e, ainda que não seguissem uma linha rigorosa-
mente pré-estabelecida, referiam-se à forma do
espaço e às transformações do ambiente físico,
submetidos a uma investigação realizada a partir
de diferentes pontos de vista. Os tópicos mais
explorados dizem respeito à forma do espaço, o
ensino da arquitetura, os processos pelos quais
passam as intervenções arquitetônicas e urba-
16º SHCU nísticas - desde as motivações iniciais até os usos
30 anos . Atualização Crítica
e ocupação dos espaços -, as diferentes tecno-
1258 logias utilizadas nas construções, a relação da
arquitetura com a história, a evolução dos tipos creve que estes dois blocos estavam “lutando
de habitações, a crise da cidade contemporânea pela posse do Terceiro Mundo, que é o coletivo
e as transformações do ambiente físico ligado à daqueles que eram chamados pelos membros
urbanização em países do Terceiro mundo. das Nações Unidas de ‘subdesenvolvidos’” (SAUVY,
1952, p. 5). Ele ainda, o final do artigo, compara
o Terceiro mundo ao Terceiro Estado (tiersétat)
da Revolução Francesa, “ignorado, explorado e
O TERCEIRO MUNDO desprezado” (ibidem).

A temática da arquitetura e do urbanismo do Dentre os inúmeros pensadores, escritores,


Terceiro mundo, além de ter sido anunciada nos economistas, sociólogos, antropólogos, cien-
textos editoriais como assunto de interesse, tem tistas sociais, cientistas políticos e geógrafos
sua importância reforçada quando do fechamento que escreveram sobre o conceito, destaco as
da revista. No ano de 2001 foi publicado um índice reflexões do antropólogo colombiano Arturo Es-
geral1 dos mais de vinte anos de publicações da cobar presentes em seu livro “La invención del
Spazio e Società, dividido em seis partes: um Tercer Mundo”. Mais especificamente no segundo
índice estendido com todos os títulos dos artigos capítulo o autor mostra a pobreza como traço
e seus autores por ordem de publicação, índice inicial do Terceiro mundo, desvendando como o
por autor, por projetistas, lugar, local de projeto e “descobrimento” de uma pobreza massiva no se-
palavras-chave. Segundo o índice, foram publica- gundo pós guerra na Ásia, África e América Latina
dos 59 artigos que contém a expressão Terceiro levou a novos “mecanismos de controle” (p. 49) de
mundo como palavra-chave de seu conteúdo. Estados mais ricos e estes territórios, e que, se o
problema era a insuficiência de recursos mone-
Àquela altura, o termo Terceiro mundo tinha uma tários atestada pela renda per capita, a solução
história de quase cinquenta anos, utilizado pela do problema da pobreza estava justamente “no
primeira vez pelo demógrafo francês Alfred Sauvy crescimento econômico e no desenvolvimento
em um artigo escrito em 19522 para o jornal L’Ob- [que] se converteram em verdades universais,
servateur. Durante a segunda metade do século evidentes e necessárias” (p. 52). Ainda partindo
XX, foi conceitualizado por diversos campos do da ideia de pobreza, foram também elaborados
saber e seus significados por muito tempo per- os conceitos de dependência e desenvolvimento/
manecem em disputa. O momento histórico era subdesenvolvimento, todos em grande medida
marcado por conflitos indiretos e disputas es- ligados a ideias de atraso, marginalidade, peri-
tratégicas de ordem política, militar, econômica, feria e insuficiência, com um lugar geográfico
social e ideológica entre os Estados Unidos e a bem marcado no globo. O historiador inglês Eric
União Soviética e suas zonas de influência, que Hobsbawn (1995) ao analisar o século XX – mais
caracterizaram a Guerra Fria. O fim da Segunda especificamente o arco temporal que vai de 1914
Guerra Mundial acentuou as diferenças entre os a 1991 – também dá ao Terceiro mundo lugar de
sistemas socialista e capitalista, formando esses destaque, analisando historicamente seus sig-
dois grandes blocos ideológicos que disputavam nificados com os processos de industrialização,
a hegemonia política do mundo. Sauvy então es- êxodo rural e a explosão das cidades, neutralidade
política no contexto da Guerra Fria, revolução e
independências de ex-colônias.
1. “Indici com figure, 1976 – 2000”, apêndice de Spazio e
Società, Milão: Maggioli, 2001.

2. Pesquisas sobre a origem do termo apontam o demógrafo


francês como a figura que cunhou a expressão, mas outros O TERCEIRO MUNDO NA REVISTA
autores anteriores a ele podem ter contribuído para a ideia
inicial de Terceiro mundo. Ressalto o brasileiro Josué de
Castro que se destacou nacional e internacionalmente Além dos campos de conhecimento já citados, a
pelos seus estudos sobre o problema da fome no mundo arquitetura e o urbanismo também aparecem na
expressos em seus dois livros Geografia da fome: a fome disputa pelos significados do conceito de Terceiro
no Brasil. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1946 e Geopolítica da mundo. Dos 59 artigos cujo assunto foi classifi-
fome. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1951. cado como sobre o Terceiro mundo, 21 envolvem
EIXO TEMÁTICO 2 países asiáticos - com destaque para a Índia que é
assunto principal de 11 desses textos -, 20 envol-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS vem países africanos sendo a Nigéria o país mais
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES citado, 1 artigo que envolve obras arquitetônicas
asiáticas e africanas e 8 textos sobre países da
América Latina. Considerando tais números e a
proporção de artigos entre os 3 continentes em
questão, é possível inferir que o interesse maior
da revista no Terceiro mundo se volta para a África
e Ásia. Por outro lado, enquanto a América Latina
parece ser assunto minoritário no âmbito terceiro
mundista, ganha destaque em outros setores da
revista, como nos dossiês. Além dos 8 textos cita-
dos, foram publicados outros 52 sobre a América
Latina, dos quais 21 configuram esses dossiês.

O termo “Terzo Mondo” aparece pela primeira vez


logo no segundo ensaio do primeiro número da
revista - Architettura e neocolonialismo -. O arti-
go é uma síntese do trabalho final de graduação
de seus autores, de 1975, e leva o mesmo nome.
Apesar de se tratar de um tema muito vasto, os
autores acreditam que somente uma aproximação
o menos parcial possível seria capaz de integrar as
múltiplas relações que ligam o Ocidente ao Tercei-
ro mundo. Segundo eles, o que impulsionou esse
estudo foi a desigualdade de exportações dos
países mais industrializados (tecnologia, técnicas
e produtos) para os países menos industrializados,
trazendo grandes vantagens para uns e dificultan-
do o desenvolvimento dos outros. No que tange à
arquitetura, os autores denunciam que existem
arquitetos “disponíveis a tomar a causa dos mais
fortes para si e a colaborar com aqueles que des-
frutam” (BARBERO; SAVVIDU, 1978, p. 27), sem
muito pensar nos efeitos sociais das suas obras.

Tal artigo, bem como alguns outros desse gru-


po, esboça um panorama das relações entre
o Primeiro e Terceiro mundos, deflagrando as
desigualdades econômicas e políticas antes de
tratar mais especificamente de algum território
em questão. A arquitetura aparece na maioria
dos casos como símbolo dessa relação. Muitos
artigos da revista tratam de cooperações eco-
nômicas de entes como o Banco Mundial3, ou
cooperações universitárias para pesquisas de

3. PINI, D. Abaji, Nigeria di Vernon Gracie. N. 20, 1982; PE-


16º SHCU
TRILLI, A. Una città di villaggi: una comunità per 40000
30 anos . Atualização Crítica
abitanti a Indore. N. 25, 1984; EDITORIAL. Marocco, India,
1260 Indonesia, Egitto: quattro quartieri pubblici. N. 37, 1987.
materiais e tecnologias em países subdesenvol- livro Bâtir la vie5, autobiografia de Georges Candilis
vidos4. Ainda na esteira da colaboração, outros publicado em 1977. Trata-se de um episódio de in-
artigos tratam de questões como a importação vasão em Pamplona, área distante 30 quilômetros
(ou, por vezes, imposição) de modelos arquitetô- de Lima no Peru, por moradores das bidonvilles
nicos e - sobretudo - urbanísticos estrangeiros, superlotadas da cidade. “Um movimento de re-
que frequentemente demandam alta tecnologia volta e entusiasmo” (p.101) segundo o autor, que
e mão de obra especializada, reproduzidos em narra o desenrolar do episódio de organização
ambientes desprovidos de recursos. e planejamento da “Nova Cidade de Pamplona”
integralmente desenvolvido e posto em prática
Analisando os artigos desse conjunto é possível por esses moradores, a construção de suas casas
assimilar alguns tópicos recorrentes: habitação, com ajuda mútua e, por fim, a intervenção estatal
autoconstrução, políticas públicas, tradição, tec- (“Administração peruana”) que, com o pretexto de
nologia, materiais locais, o meio rural, trânsito
levar rede de esgoto, água e luz elétrica, “subtraiu
de arquitetos, slum, bidonvilles, identidade, de-
progressivamente a iniciativa e o entusiasmo dos
senvolvimento nacional, cooperação dos países
habitantes, destruindo a solidariedade humana e
desenvolvidos, planejamento urbano, cidades-
introduzindo a indiferença e o fatalismo” (p. 105).
-satélite. Entre outros assuntos interessantes,
porém menos corriqueiros nos textos publicados, Na revista de número 7 (1979) constam três arti-
destacam-se a arquitetura islâmica e arquitetura gos sobre o Terceiro mundo. O primeiro é sobre o
experimental. Brasil e foi escrito pelo arquiteto Joaquim Guedes.
Nele, Guedes apresenta seus projetos de ‘cidade
aberta’ para a Cidade Nova de Caraíba (1976) na
Bahia e de um bairro ‘popular’ na periferia da ci-
A AMÉRICA LATINA NA REVISTA - TERCEIRO MUNDO
dade paulista de Campinas. (os quatro pontos em
torno dos quais os projetos se deram). O artigo
Embora a América Latina fizesse parte do Ter-
apresenta o processo de planejamento urbano
ceiro mundo segundo seus conceitos, apenas
de uma cidade para 15 mil habitantes no sertão
uma pequena parte dos artigos que tratam de
da Bahia, região semiárida e até então sem infra-
países latino-americanos é classificada como
estrutura, destinada a uma população de famílias
terceiro-mundistas no índice geral. Nesse sentido,
de operários e técnicos, em sua maioria iletrada
é possível analisar os principais temas tratados
e de baixa renda. O planejamento, gerenciamento
em cada um dos sessenta artigos em busca de
e execução da obra da cidade de Caraíba foram
elucidar as justificativas que levaram apenas oito
incumbidos ao escritório brasileiro Joaquim Gue-
destes textos a serem classificados como tal.
des e Associados, conhecido por seus projetos de
Ainda, faz-se também necessário considerar os
edifícios públicos e planejamento urbano. O pla-
autores dos textos e suas origens para um maior
nejamento foi pensado na contramão dos anseios
entendimento das redes formadas entre os edi-
tores da Spazio e Società e os autores italianos e da burocracia estatal, que almejava uma cidade
estrangeiros que nela escreviam. Partindo desse com segregação de funções e classes de renda.
conjunto de temas, de autores e entendendo essa Já a proposta para o bairro popular era o desen-
classificação, pode-se traçar um panorama geral volvimento de habitações populares cujo projeto
de como foram retratados a arquitetura e o urba- cumprisse estritamente as exigências impostas
nismo da América Latina na revista. a esse tipo de empreendimento - custo mínimo
dos materiais, tempo mínimo de construção e
Os oito artigos em questão que constam na clas- “programa limitado aos elementos que as normas
sificação do Terceiro mundo tratam dos países oficiais consideram estritamente necessários”
latino-americanos Brasil, Peru, Chile, Venezuela e (p. 44), tomando uma forma racionalista em de-
Nicarágua. O primeiro deles (1978) é uma tradução trimento de qualquer forma mais orgânica ou que
feita pelo Giancarlo de Carlo do último capítulo do se aproximasse da ‘lógica’ dos assentamentos

4. COSTA, R. Sul neo-colonialismo. N. 17, 1982; CECCARONI, 5. CANDILIS, G. Bâtir la vie: un architecte témoin de son
M. Architetti senza frontiere. N. 68, 1994. temps. Gollion: Infolio, 2012.
EIXO TEMÁTICO 2 espontâneos. No total foram construídas 672
unidades divididas entre 42 edifícios de quatro
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS andares cada um, dispostos numa superfície de
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES 60 mil metros quadrados.

O segundo artigo, escrito pelo arquiteto argentino


Fernando Eduardo Catalano, narra a história do
Campamento Nueva Habana, uma comunidade
planejada e construída entre 1970 e 1973 no Chile
pelos pobladores como uma resposta aos proble-
mas sociais e espaciais gerados por uma política
de urbanização e modernização que visava quase
somente a industrialização. O foco recai sobre a
organização autônoma dessa população margina-
lizada que, com o respaldo de uma esquerda coesa
(Movimiento de Izquierda Revolucionária), colocou
em prática desde o planejamento das ações até
a construção de suas habitações, revelando um
caso de planejamento urbano participativo e au-
togestão alcançados por meio da luta por moradia
e busca por autonomia.

Aldo Van Eyck publica na revista de número 8 (1979)


um compilado de textos sob o título “Immagina-
zione e Competenza”. Os escritos, as fotografias
e projetos mostrados buscam, segundo o autor,
representar o que ele acredita ser a arquitetura.
O primeiro deles trata do plano experimental de
habitação, o PREVI (Proyecto Esperimental para
Viviendas), lançado em 1966 pelo estado perua-
no e apoiado pelas Nações Unidas. O artigo se
inicia com uma rápida descrição do plano que
tinha como objetivo “desenvolver, por meio de
experiências estrangeiras e peruanas, técnicas
e métodos a serem utilizados em seguida, em
larga escala, na política nacional”. Dentre as três
diretrizes de ação previstas – a realização de no-
vas comunidades, a recuperação de habitações
degradadas e a racionalização de assentamentos
espontâneos – o foco do artigo recai nos projetos
apresentados para o concurso divulgado em 1968
para a realização de habitações de baixo custo
previstas para uma área situada a 8 quilômetros
da cidade de Lima. Embora não tenha sido
premiado, o projeto de Eyck (bem como os de
outros arquitetos renomados como o do indiano
Charles Correa, do inglês James Stirling e dos
membros do Team X George Candilis e Shadrach
Woods) foi construído e evidenciado na Spazio
16º SHCU e Società. O arquiteto descreve seu processo
30 anos . Atualização Crítica
projetual até chegar na forma última, justificada
1262 não só pelas exigências do concurso – cujo foco
era o estudo e desenvolvimento de novos méto- do em Estelí, cidade distante 150 quilômetros ao
dos de pré-fabricação – mas principalmente pela norte da capital Manágua, na Nicarágua, e o outro
“rejeição do emprego de materiais ou métodos em Rosso, no sul da Mauritânia. O artigo aborda os
construtivos não correntemente acessíveis e objetivos da ASF, que, por meio da solidariedade
utilizados pelas pessoas que têm equipamentos internacional, buscava auxiliar países em desen-
escassos e escassa experiência de construção” volvimento na área da arquitetura e do urbanismo,
(EYCK, 1979, p.52). Van Eyck ainda critica alguns e desenvolvia uma pesquisa mais específica volta-
projetos construídos ao observar que o bairro da para a melhoria das condições de habitabilida-
novo ficou por anos vazio antes de suas unidades de deles. A construção do Centro Sanitário Leonel
serem vendidas para famílias de classe média e, Rugama na Nicarágua é apresentada, portanto,
em suas palavras, “[o bairro] parece uma Weis- como fruto desta colaboração internacional que
senhof Siedlung do terceiro mundo pós Segunda tinha como objetivo a busca pelo ‘saber fazer’
Guerra Mundial” (ibidem). local e a utilização de materiais também locais e
estimular a autoconstrução, além de impulsionar
Em 1984 é publicado o texto de Lisa Peattie e uma cooperativa de produção de blocos de
William Porter, membros do corpo docente do concreto e envolver pedreiros, carpinteiros e
Massachusetts Institute of Technology e inte- outros trabalhadores da cidade.
grantes do Centro Unificado de Estudos Urbanos
MIT-Harvard, sobre o planejamento de uma cidade O sociólogo francês Noel Cannat, que já havia
industrial na Venezuela, a Ciudad Guayana. Tra- publicado dois livros de temáticas semelhantes
ta-se de um projeto urbano realizado na década como o “Sob as latas, a cidade: De Manila ao Mé-
de 1960 para uma área distante aproximadamente xico, passando pelas favelas da esperança” 7 e “O
560 quilômetros a sudoeste da capital Caracas poder dos excluídos”8, tem um artigo seu publi-
como parte de uma estratégia de desenvolvi- cado em 1995 de título ”Quali esperanze per gli
mento nacional por meio da industrialização e da esclusi dela città mondo?” 9, em que traça, sob
modernização. O título do artigo, “Os problemas o ponto de vista das ciências sociais, as possi-
sociais do planejamento/design urbano”, indica o bilidades de sobrevivência de uma população
ponto de vista do grupo Urban Studies, contac- pobre – denominada ‘excluída’ pelo autor – que
tado pela corporação governamental CVG para geralmente habita nas bidonvilles das metrópoles
assessoria técnica, e os impasses provocados que cresciam rapidamente no final do século XX.
pelas divergências de ideias entre os grupos que O Centro de Estudos da Família e da Comunidade,
trabalharam nesse projeto – arquitetos, planejado- pólo formador em terapia comunitária integrativa
res, técnicos de transportes etc. Essencialmente localizado em Fortaleza, propôs um projeto de
os autores mostram como a ideologia da indústria terapia popular que associava tradição e mo-
e no progresso balizou inicialmente as escolhas dernidade para os moradores da favela Pirambu,
de planejamento que se voltava para um futuro a então maior do Ceará. O intuito era criar uma
muito diferente do presente, chocando-se com casa da memória a partir das histórias orais, dos
uma realidade local diversa e complexa. depoimentos de músicos e cantores populares e
nela expor essas narrativas no intuito de dar um
Dez anos mais tarde é publicado o texto do ita- sentido de comunidade e coesão social para os
liano Marco Ceccaroni que apresenta a ONG dos moradores daquela favela. “Para os excluídos das
Arquitectos sin fronteras – Espana6 e dois de seus metrópoles, a única esperança verdadeiramente
projetos de cooperação, sendo um deles localiza-

7. CANNAT, N. Sous les bidons, la ville... De Manille à Mexico


6. A Organização Não Governamental Arquitectura sin Fron- à travers les bidonvilles de l’espoir. Paris: L’Harmattan, 1988.
teras Espanha (ASF-E) foi criada em 1992 com o objetivo
8. CANNAT, N. Le pouvoir des exclus: por un nouvel ordre
de apoiar, por meio de projetos colaborativos nas áreas da
culturel mondial. Paris: L’Harmatan, 1990.
arquitetura, infraestrutura e planejamento urbano, “popu-
lações desprivilegiadas de países em desenvolvimento, ou 9. Originalmente, o artigo foi publicado na revista da Facul-
seja, daqueles em situação de extrema pobreza” (Fonte: < dade de Arquitetura e Urbanismo da Universidad Central de
https://www.asfint.org/asf-member/asf-spain/> acesso Venezuela “Urbana”, n. 13, vol. 2 em 1993, como consta ao
em 13/08/2020). fim da sua publicação na Spazio e Società n. 71.
EIXO TEMÁTICO 2 importante é cultural: é no ato de recuperar a
memória, a identidade profunda negada por uma
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS modernidade convencida de ter respostas para
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES tudo” (CANNAT, 1995, p. 74).

Bem como no artigo de Cannat, o texto do arqui-


teto italiano e colaborador da Spazio e Società
Mauro Manfrin publicado em 2000 também tinha
como objeto principal as favelas do Brasil. O últi-
mo dos artigos sobre a América Latina indexados
como terceiro mundistas trata de programas da
prefeitura do Rio de Janeiro de reestruturação
de favelas e recuperação de áreas degradadas
urbanas. As iniciativas descritas partem, em sua
maioria, do PROAP (Programa de Urbanização de
Assentamentos Populares do Rio de Janeiro, po-
pularmente conhecido como Favela-Bairro) desde
1993, cuja ação se dá por meio da regularização
urbanística, urbanização e inclusão social. O tipo
de intervenção dependia do tamanho e das ne-
cessidades da área selecionada e tinha o objetivo
de melhorar as condições de habitabilidade e de
vida da população de baixa renda. Alguns dos
programas citados foram o Projeto Bairrinho de
1997, o Programa “Grandes Favelas” e o Projeto
“Morar sem risco” de 1994, este com o foco nos
moradores de rua. Segundo o autor:

[...] Estas operações de reabilitação urbana


são semelhantes a intervenções em outros
países do mundo documentadas na Spazio
e Società e representam um testemunho
interessante frente ao debate medíocre
em curso das teorias urbanas modernas
que tendem a discutir a conveniência e a
eficácia dos grandes projetos. Na verdade,
nos parece que a eficácia de grandes ou pe-
quenas intervenções esteja ligada sempre
à qualidade sociocultural que os projetos
podem estimular ou salvaguardar, e que as
teorias de projeto, apesar das suas grandes
diferenças, são mais ou menos eficazes de
acordo com os reais objetivos de interesse
público e privado que alcançam. (MANFRIM,
2000, p. 15, tradução da autora)

A AMÉRICA LATINA NA REVISTA – OS DOSSIÊS


16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
Além dos oito artigos citados, foram publicados
1264 outros cinquenta e dois textos sobre países da
América Latina. A partir da publicação de número tetônicas ganham maior destaque, começando
33, começam a ser publicados dossiês sobre o es- com um breve panorama da história da arquitetura
tado da arquitetura em alguns países estrangeiros na Argentina desde o período pré-hispânico até
como Argentina (n.33), China (n.34), Uruguai (n.35), a primeira metade do século XX escrito pelo ar-
Índia (n.38) e Venezuela (n.39). De maneira geral, quiteto e historiador argentino Ramón Gutiérrez.
os editores-chefes de cada dossiê – convidados
por De Carlo e sua equipe - poderiam seguir um Já o texto do também arquiteto Rafael Iglesia trata
roteiro proposto pelo arquiteto que abrangia a das “tendências arquitetônicas de vanguarda”
história político-social, a cultura e a base geográ- de 1958 a 1984 que, segundo ele, percorreram
fico-ambiental do país em questão, até a história “caminhos semelhantes àqueles dos países mais
da “evolução arquitetônica e urbanística” e suas industrializados: Estados Unidos, França, Grã
tendências atuais (PESCI, 1985, p. 58). Para os fins Bretanha, Itália, Japão” (IGLESIA, 1985, p. 84),
desta pesquisa, serão analisados os dossiês da num recorte específico que exclui, portanto, “a
Argentina, Uruguai e Venezuela10. maior parte da produção arquitetônica argentina
que não tem ambições artísticas ou de vanguarda
Ficava a encargo do curador do dossiê os outros (a mais interessante do ponto de vista antropo-
autores que comporiam a sua equipe. No caso do lógico)” (ibidem). A política urbana e residencial
dossiê da Argentina a organização foi feita pelo argentina é o tema principal do artigo de Joan
arquiteto Ruben Pesci11 e são oito os artigos que Manuel Borthagaray que trata do crescimento
o compõe. Os dois primeiros tratam da Argentina urbano e da ação do Estado ao longo do século
do pós-Segunda Guerra com um foco maior nas XX. Segundo o autor, a gênese das cidades se
questões sociais e políticas de um país que sofreu daria em torno do núcleo colonial de uma “Plaza
diversos golpes de Estado ao longo do século XX. Mayor” e sua expansão ocorria historicamente
A produção cultural nestes momentos aparece segundo a especulação fundiária, “única força
como empobrecida devido à censura e ao exílio orientadora da urbanização na Argentina” (BOR-
de intelectuais, músicos e artistas. O terceiro THAGARAY, 1985, p. 126). O Estado argentino cria
artigo é uma passagem do ensaio “Radiografia a primeira lei para “habitações econômicas” em
de la Pampa” 12 em que Ezequiel Martínez Estra- 1905 que dá origem a uma comissão de mesmo
da interpreta o ‘ser argentino’ considerando a nome, mas que não possui um número expressivo
histórica conquista de seu território pela coroa de construções. Quanto às cidades argentinas
espanhola, a geografia da vasta planície argentina planejadas, o autor aponta La Plata, fundada em
e as relações humanas que nela se dão. A partir 1882 como nova capital da província de Buenos
do quarto artigo as questões urbanísticas e arqui- Aires e Mendonza, “a verdadeira pérola urbana
da Argentina” (ibidem, p. 128) reconstruída após
um grande terremoto. O artigo então trata de
10. Ainda refletindo sobre a palavra-chave Terceiro mundo
do índice oficial, a Índia também é objeto de um dossiê
uma série de inciativas e planos do Estado que
cujos artigos não entram na citada classificação, mas o contava com empréstimos do Banco hipotecário
presente artigo não analisará seu conteúdo pois foge ao nacional, autorizado a concedê-los segundo uma
escopo da pesquisa que é a representação da América lei de 1911. O autor aponta o decênio de 1947 a
Latina na revista. 1957 como um marco pela concessão de 390 mil
11. Ruben Pesci (La Plata, Argentina, 1942) é um arquiteto empréstimos e o relaciona com um momento de
e urbanista argentino graduado na Universidade Nacional riqueza do país no pós-Segunda Guerra atrelado a
de La Plata e pós-graduado em História e Urbanismo pela uma maior atenção ao problema da habitação por
Faculdade de Arquitetura de Roma e em Projeção Ambiental parte do governo populista de Perón. No intuito
pela Universidade de Veneza em 1973/74, este dirigido, entre de entender melhor esse momento emblemático
outros professores, por Giancarlo De Carlo. Pesci criou a na produção de habitação na Argentina, seguem
Fundacion CEPA (Centro de Estudos e Projetos do Ambiente) as palavras do arquiteto e professor argentino
em 1974, fundou em 1976 e dirigiu da revista A/MBIENTE e Horacio Balliero:
foi diretor do Curso Superior de Proyectación Ambiental da
Universidad de Belgrano, em Buenos Aires, de 1980 a 1987. Pela primeira vez entra no campo da cons-
12. ESTRADA, E. M. Radiografía de la Pampa. Buenos Aires: trução edilícia e do urbanismo o termo
Editorial Losada S.A., 1933. plano, que conduzirá à realização de uma
EIXO TEMÁTICO 2 política coerente em matéria de habita-
ções e à criação de melhores condições
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS urbanas. Até pouco tempo as habitações de
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES tipo social, pelo fato de virem inseridas nos
bairros pré-existentes e por conta da sua
caracterização formal repetitiva ou vaga-
mente industrial, não eram percebidas nas
nossas cidades e não se constituíam como
símbolo; passavam despercebidas... Isso
porque não vinham produzidas em grande
escala, coerentemente com o tipo de ação
efetuada pelo Banco Hipotecário Nacional...
Não precisa esquecer que este instituto
concedeu até o presente momento por volta
de 500 mil empréstimos para a construção
de habitações. (BALLIERO apud BORTHA-
GARAY, 1985, p. 130, tradução da autora)

No ano de 1957 se deu uma crise econômica que


resultou na diminuição dessa grande produção
de habitação. Borthagaray ainda mostra três
importantes iniciativas nos anos 1960: a lei para
o Plano de demolição das casas de emergência
(‘bidonvilles’) promulgada pelo Congresso em 1964;
no mesmo ano entra em vigor o Plano Federal de
Habitação, que concedia crédito do Banco Inte-
ramericano de Desenvolvimento para famílias de
baixa renda e o Plano VEA (Viviendas Economicas
Argentinas) de 1968, não integralmente financiado
pelo Estado, mas com ações envolvendo entes
sem fins lucrativos como cooperativas de cons-
trução e empresas privadas, modelo abandonado
pelo governo militar sucessivo ao de Isabel Pe-
ron. Para o autor, que fez uma análise história da
produção de habitação dentro e fora da ação do
Estado e escreveu em 1985 para a Spazio e Socie-
tà, ele acredita que as experiências do passado
não sejam desconsideradas e que se abram forças
criativas para o novo contexto democrático.

O dossiê do Uruguai, publicado no ano seguinte,


tem como seu editor convidado o arquiteto e políti-
co Mariano Arana13 e é composto por três artigos. O
primeiro, intitulado “O paradoxo uruguaio”, traz um
panorama geral histórico-político e cultural de um
país que, segundo a autora Alicia Migdal (escritora
uruguaia) é o “único país ibero-americano sem

13. Mariano Arana (Montevideo, 1933) é um arquiteto e político


16º SHCU
uruguaio, eleito duas vezes prefeito municipal de Montevideo
30 anos . Atualização Crítica
(em 1994 e em 2000) pelo partido de esquerda Frente Ampio
1266 e Ministro da Habitação de 2005 a 2008.
população nativa” (MIGDAL, 1986, p. 84) e em cuja O caso Vilamajó é paradigmático. Ele não
capital, Montevideo – conhecida como a “tacinha foi sujeito às periódicas crises de ‘identi-
do [Rio da] Plata” ou a “Suíça da América” -, habita dade nacional’ das quais se fala no início
metade da população total do país. Migdal mostra deste artigo, porque aceitou lucidamente
de que forma a população do Uruguai é o resultado a condição periférica da nossa cultura. A
de uma confluência de espanhóis, italianos, ne- peneira crítica que impôs às correntes mo-
gros e hebreus e como essa identidade, que é fruto dernas estadounidenses e européias lhe
da “elaboração sincrética das culturas europeias”, permitiu adaptá-las às exigências locais, de
espelha-se nas tensões do presente por meio da inseri-las facilmente no ambiente urbano,
cultura. A autora comenta sobre os artistas mais paisagístico e social do nosso país. (ibidem,
conhecidos historicamente da pintura, da música p. 107, tradução da autora)
e da literatura desde a metade do século XIX até
Mariano Arana é o autor do último artigo do dossiê
o XX, sempre mostrando por um lado os laços
em que se propõe a fazer um balanço crítico e
fortes da cultura uruguaia com a Europa (e, no
reabrir um debate segundo ele necessário sobre a
caso da literatura, também a penetração maciça
prática da arquitetura e do urbanismo do Uruguai
de obras norte-americanas até a década de 1950),
nos aspectos técnico, acadêmico e profissional,
por outro o esforço de muitos por encontrar uma
com um maior foco na questão da habitação do
identidade – ou uma nova identidade – uruguaia
final dos anos 1960 até os anos 1980. Sua crítica
sem renegar o que veio antes.
se inicia diferenciando os países industrializados
O segundo artigo, escrito por Mariano Arana e europeus, cujas obras arquitetônicas seriam
espontaneamente “nacionais”, enquanto o
pelo arquiteto uruguaio Lorenzo Garabeli, apre-
panorama dos países periféricos seria diferente,
senta um esforço de reflexão sobre a arquitetura
em que o fenômeno da “transferência de modelos”
no Uruguai realizada entre 1915 e 1940 - “período
é tanto mais generalizado quanto maiores forem
da introdução e da relativa afirmação da nova
os laços de dependência desses países com
arquitetura no país, e sobretudo em Montevideo”
aqueles centrais. Arana mostra mais uma vez
(ARANA; GARABELI, 1986, p. 92), anunciando os
as diferenças do Uruguai também com relação
limites de sua análise feita sobre uma seleção
aos seus vizinhos ao notar que embora fosse
de obras e autores, que se justifica “segundo a
aquele um país periférico, era um caso atípico
coerência entre suas definições teóricas e pro-
no âmbito latino-americano: um território àquela
postas práticas” (ibidem) com o intuito de evi-
altura quase totalmente desprovido de população
denciar a pluralidade de ideias que embalaram indígena, um país que integrou diversas ondas
a arquitetura do período em exame. Os autores migratórias europeias desde o início do século
mostram como desde a fundação da primeira XVIII e cuja população total - muito mal distribuída
Faculdade de Arquitetura em 1915 e a partir da pelo território (1.375.000 habitantes somente na
revista da Ordem dos Arquitetos no Uruguai se área metropolitana da capital Montevideo) - não
dava a busca por uma arquitetura ‘própria’ que passava de 3 milhões de habitantes. Suas críti-
se daria curiosamente olhando para o exterior, cas perpassam a gestão política municipal que,
entre elementos nacionais, latino-americanos e segundo ele, nunca chegou a orientar de fato o
coloniais. Também deve-se levar em considera- processo de expansão das cidades, a degrada-
ção a difusão da arquitetura estrangeira por meio ção arquitetônica e ambiental, o poder econô-
das revistas internacionais Moderne Bauformen mico que monopolizaria o campo da produção
(alemã), Architectural Forum (norteamericana) e da arquitetura privilegiando grandes estúdios e
Wendingen (holandesa). Por fim, a hipótese que grandes empresas que nem sempre realizariam
os autores indicam no início do texto de que no um trabalho contínuo e de qualidade e, por fim, a
período em questão não tenha nascido uma ar- questão da habitação de baixa e média renda. Ele
quitetura efetivamente nacional mas que tenham cita a Ley Nacional de Vivienda, aprovada em 1968,
sido “nacionalizados” elementos arquitetônicos como uma experiência que envolvida concessão
do exterior para resolver problemas locais é cor- de crédito dos ‘Fundos Sociais’ de certas empre-
roborada pela figura do arquiteto uruguaio Júlio sas ou organizações de trabalhadores e que se
Vilamajó (1894 – 1948): tornou mais frutífera em conjunto com a criação
EIXO TEMÁTICO 2 e o impulso das Cooperativas de habitação, que
tinham o apoio de Institutos de assistência técnica
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS interdisciplinar. Tal experiência foi freada em 1975,
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES “seguida da decisão governamental de redução
de empréstimos a novos grupos cooperativos e
de apoio, sobretudo, a iniciativas provadas que já
haviam dado péssimas provas arquitetônicas e
urbanas” (ARANA, 1986, p. 124), mais uma escolha
a favor das leis de mercado e do lucro.

O dossiê da Venezuela é o maior dos que estamos


analisando, composto por 10 textos. A arquiteta
curadora é a venezuelana Margarita Iglesia14 que
abre a série de artigos com a sua publicação “50
anos de boom do petróleo”, mostrando as mu-
danças econômicas e sociais profundas pelas
quais passou a Venezuela no século XX a partir
da descoberta de jazidas de petróleo nos anos
1920. A economia do país passou rapidamente
de agrícola para petrolífera com um consequente
processo acelerado de urbanização. “Em 1920,
cerca de 80% da população habitava em vilarejos
ou na zona rural e vivia de agricultura; em 1985,
80% dos venezuelanos tinha se transferido para
as cidades e se ocupava de comércio, nos servi-
ços e na indústria” (IGLESIA, 1987, p. 76). O cres-
cimento das cidades se deu em grande medida
por planos nacionais que investiram na indústria,
na educação, na saúde pública e na habitação
principalmente em centros urbanos já de maior
concentração de população e de mercado, além
da grande imigração europeia e de outros países
latino-americanos nos anos do boom do petró-
leo. Segundo Iglesia, as cidades venezuelanas se
desenvolvem geralmente seguindo modelos de
assentamento dos espanhóis dos anos da colo-
nização, ao longo de vias comerciais, pela costa e
nos vales agrícolas do norte do país. Nos últimos
anos outras cidades se desenvolveram por meio
de planejamentos regionais de grande escala,
como o caso da Ciudad Guayana.

14. Margarita Iglesia graduou-se arquiteta e urbanista na Ve-


nezuela e cursou o programa de Mestrado em Planejamento
Urbano na Universidade de Harvard. Há vinte anos Iglesia
trabalha com design e planejamento urbano e projetos de
arquitetura. No âmbito acadêmico, sua pesquisa é focada
no projeto sustentável, planejamento urbano de escalas
menores (‘comunidades’) e recuperação de áreas degra-
16º SHCU
dadas. Atualmente é professora de Urbanismo sustentável
30 anos . Atualização Crítica
na Boston Architectural College e Projeto Arquitetônico no
1268 Wentworth Institute of Technology.
Caracas é a capital do país, além do centro político, CONSIDERAÇÕES FINAIS
cultural e econômico da Venezuela, concentrando
um quarto da população total do território e ganha Analisando o conjunto de oito artigos sobre a Amé-
destaque nos dois artigos que seguem o texto rica Latina indexados como terceiro-mundistas,
da arquiteta. De modo geral, ambos comparam é possível perceber alguns tópicos que podem ter
a estrutura da cidade antes e depois do boom, levado os editores da revista a colocá-los nessa
sendo o primeiro texto do arquiteto Jose Guillermo categoria: vulnerabilidade, exclusão, pobreza,
Frontado, em que ele mostra a lógica do traçado luta por moradia, favelas e moradias precárias,
original das cidades “de fundação” latino-ameri- autoconstrução, movimentos populares. Desta-
canas, seguido pelo texto do arquiteto e professor cam-se também projetos urbanos desenvolvidos
venezuelano Alberto Morales Tucker, cujo foco tanto por parte do poder público - como no caso
recai sobre as consequências do crescimento da Ciudad Guayana e no caso dos artigos sobre a
descontrolado da cidade de Caracas durante os municipalidade do Rio de Janeiro – quanto casos
50 anos anteriores à publicação do dossiê como de planejamento urbano participativo e autoges-
o aumento do tráfego de veículos, o congestio- tão, com o Campamento Nueva Habana como caso
namento e a segregação espacial. emblemático. Em se tratando da autoria desses
textos, sete são os autores estrangeiros e dois
Os outros três artigos que seguem tratam mais latino americanos, o que sugere que o ponto de
especificamente de possíveis soluções para os vista que olha – e talvez constrói? – o Terceiro
problemas resultantes de uma urbanização ca- mundo na Spazio e Società é externo a ele próprio.
ótica: o arquiteto venezuelano e estadounidense
David Gouverneur em seu artigo mostra as possi- Já a análise dos três dossiês mostram as diferen-
bilidades de renovação em áreas degradadas da ças com os artigos acima citados. Seus autores
cidade trazidas pela construção de um sistema são todos latino-americanos, ainda que a equipe
rápido de transportes públicos; outro venezuelano venezuelana tenha fortes ligações com os EUA,
radicado nos EUA Folco Riccio examina as então tendo em vista o âmbito de estudos e de trabalho
políticas de habitação do setor público e propõe da arquiteta-curadora do dossiê, Margarita Igle-
soluções para os assentamentos residenciais; sia. Partindo das orientações de De Carlo para a
já o mestre em planejamento urbano de Harvard realização desses dossiês, os autores em maior
e doutor pela mesma universidade, o arquiteto ou menor medida atuam em diversos campos
Oscar Grauer descreve os efeitos de uma adoção disciplinares, ou seja, são conjuntos de textos que
acrítica de conceitos e valores estrangeiros, sem buscam entender cada um de seus territórios sob
que estes se relacionem com as realidades locais um ponto de vista múltiplo, a fim de compreen-
– problema comum, segundo ele, a grande maioria der melhor suas realidades. O dissiê do Uruguai,
dos países então ditos em desenvolvimento. embora pequeno em número de textos, não perde
para os outros no quesito do conteúdo, apresen-
Por fim, os quatro últimos artigos do arquiteto, tando um panorama histórico e crítico de sua
docente e escritor José Miguel Roig, do curador, cultura, política, artes e arquitetura.
escritor e historiador Miguel Arroyo e do arquiteto
Enrique Larrañaga tratam da arquitetura produzi- As diferenças entre cada um desses países são
da nos anos do boom do petróleo e concluem que inúmeras, porém percebe-se nas três séries de
os resultados são melhores à medida em que esta documentos alguns pontos em comum. Para além
arquitetura conseguiu conciliar as novas tendên- do esforço geral de trazer olhares múltiplos para
cias arquitetônicas com as características locais diversos segmentos dos países – a geografia, a
e valores tradicionais, sobretudo quando essas história, a política, a cultura – que certamente
novas tendências propunham uma unidade esti- auxiliam no entendimento das questões arqui-
lística internacional, mais facilmente notável no tetônicas e urbanísticas dos anos em que foram
texto de Roig sobre o modernismo na Venezuela. escritos, todos ressaltam de certa forma seus
laços com a Europa a partir de um passado co-
mum colonial, ou até mesmo a partir da primeira
Faculdade de Arquitetura do Uruguai com todos
os seus primeiros professores graduados em uni-
EIXO TEMÁTICO 2 versidades europeias. Disso surgem os esforços
de entendimento dos movimentos de vanguarda
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS estrangeiros “aplicados” nos contextos nacionais
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES e posteriormente a busca por uma identidade
própria e “inteiramente nacional”. Também, as
capitais Buenos Aires, Montevideo e Caracas ga-
nham destaque não só por serem importantes
centros econômicos, culturais e políticos de seus
países, mas também pela grande concentração
de habitantes e acelerado crescimento urbano
no século XX que as torna objetos de estudos
importantes para o campo disciplinar.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1270
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EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Entre os séculos XIX e XX, as ideias e práticas
da arquitetura e planejamento urbano foram
transformadas com o desenvolvimento da in-
vídeo-pôster dustrialização – o que refletiu no campo do pai-
sagismo. Os novos pensamentos que surgiam,
incialmente no Hemisfério Norte, influenciaram
A ESTÉTICA DO ESPAÇO profissionais atuantes no Brasil. Este estudo
discute essas repercussões no discurso e ima-
URBANO NO DISCURSO E gem pública de José Marianno Filho, uma figura
mais conhecida na historiografia da arquitetura
IMAGEM DE JOSÉ MARIANNO brasileira por sua atuação no movimento neoco-
lonial, a partir dos anos 1920, mas que também
FILHO (1910-1919) se voltou para a prática e crítica da estética ur-
bana - com ênfase em arborização - na década
anterior. Serão abordados alguns pontos de sua
URBAN AESTHETICS IN JOSÉ MARIANNO FILHO’S
trajetória profissional, como a fundação da Liga
DISCOURSE AND IMAGE (1910-1919)
de Defesa Esthetica, seus escritos críticos na
imprensa local, e a consolidação de sua imagem
LA ESTÉTICA DEL ESPACIO URBANO EN EL DISCURSO E como defensor das árvores e matas.
IMAGEN DE JOSÉ MARIANNO FILHO (1910-1919)

PAISAGEM URBANA ESTÉTICA JOSÉ MARIANNO FILHO


ONOFRE, Carlos Eduardo Lins
Doutorando; Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e
Urbanismo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
clonofre@gmail.com

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1272
ABSTRACT RESUMEN

Between the 19th and 20th centuries, ideas and Entre los siglos XIX y XX, las ideas y prácticas de la
practices in architecture and urban planning arquitectura y el urbanismo se transformaron con
were changing, due to the development of in- el desarrollo de la industrialización, que se reflejó
dustrialization – which reflected in the studies of en el campo del paisajismo. Los nuevos pensa-
landscape design. The new thoughts that arose, mientos que surgieron, inicialmente en el hemis-
initially in the Northern Hemisphere, influenced ferio norte, influyeron en los profesionales que
professionals in Brazil. This study discusses the- trabajaban en Brasil. Este estudio analiza estas
se repercussions on the discourse and public repercusiones en el discurso y la imagen pública
image of José Marianno Filho, a figure better de José Marianno Filho, figura más conocida en
known in Brazilian architecture’s historiography la historiografía de la arquitectura brasileña por
for his involvement in the neocolonial movement, su actuación en el movimiento neocolonial, de la
from the 1920s, but who also turned to the practi- década de 1920, pero que también recurrió a la
ce and criticism of urban aesthetics – with an em- práctica y crítica de la estética urbana - con én-
phasis on urban forestry – in the previous decade. fasis en la forestación - en la década anterior. Se
Some landmarks of his professional career will be abordarán algunos puntos de su carrera profesio-
covered, such as the establishment of the Liga de nal, como la fundación de la Liga de Defesa Es-
Defesa Esthetica, his critical writings published thetica, sus escritos críticos en la prensa local, y
by the local press, and the consolidation of his la consolidación de su imagen como defensor de
image as a defender of trees and forests. los árboles y los bosques.

URBAN LANDSCAPE AESTHETICS PAISAJE URBANO ESTÉTICA JOSÉ MARIANNO FILHO


JOSÉ MARIANNO FILHO
EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
A paisagem pode ser um dos fundamentos na
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
formação de identidades urbanas; no contexto da
virada do século XIX para o XX, ganha importância
vídeo-pôster no debate internacional, possivelmente por sua
relevância em conceitos-chave do pensamento
da época: beleza e salubridade. Este texto discute
A ESTÉTICA DO ESPAÇO como ideias sobre paisagem urbana, consolida-
das nacional e internacionalmente, repercutem
URBANO NO DISCURSO E no discurso e imagem pública de José Marianno
Filho, uma figura mais conhecida na historiogra-
IMAGEM DE JOSÉ MARIANNO fia da arquitetura brasileira por sua atuação no
movimento neocolonial, a partir dos anos 1920,
FILHO (1910-1919) mas que também voltou-se para a prática e crítica
do universo da botânica, arborização e estética
urbana pelo menos desde a década anterior.
URBAN AESTHETICS IN JOSÉ MARIANNO FILHO’S
DISCOURSE AND IMAGE (1910-1919) Inicialmente será apresentado um brevíssimo
panorama de algumas das ideias e práticas à
LA ESTÉTICA DEL ESPACIO URBANO EN EL DISCURSO E estética e paisagem urbanas – surgidas interna-
IMAGEN DE JOSÉ MARIANNO FILHO (1910-1919) cionalmente entre a segunda metade do século
XIX e início do século XX, e seus rebatimentos
no Brasil. Será destacado texto O Verde na Me-
trópole, do austríaco Camillo Sitte, uma fonte
relevante e detalhada da época. Em seguida, serão
apresentados exemplos de textos escritos sobre
e por José Marianno Filho, a partir de 1910, que
mostram em pontos de sua trajetória profissio-
nal o discurso sobre arborização e estética da
cidade, encontrados no acervo da Hemeroteca
Digital Brasileira, da Biblioteca Nacional. Será
apresentada a Liga de Defesa Esthetica, grupo
liderado por Marianno Filho que pretendia advogar
pelos recursos naturais e arquitetônicos do Rio
de Janeiro. Por fim, uma pequena análise de um
texto representativo do tema escrito por Marianno
Filho, seguida de registros da consolidação de
sua imagem como defensor das árvores e do que
considerava tradicional.

Breve panorama SOBRE estética urbana


na virada para o século XX

Em meados do século XIX, a arquitetura e o de-


16º SHCU sign foram impactados pela estética decorrente
30 anos . Atualização Crítica da ascensão das indústrias, como edifícios com
1274 estruturas metálicas e produtos reproduzidos em
massa. O pensador inglês William Morris1, influen- e foram traduzidos por Unwin e Parker tendo a
ciado pelo pensamento de seu contemporâneo promoção da “beleza ou deleite” (p.117) como prio-
e conterrâneo John Ruskin2, pregou oposição ridade. Os planos das cidades-jardim tinham a
à estética e implicações sociais decorrentes da paisagem como elemento importante do partido,
industrialização e defendia a produção de objetos contextualizadas na ideia de aldeamento comuni-
e espaços sob a luz da autenticidade popular e tário, com espaços livres para lazer e socialização.
do artesanato (PEVSNER, 2001/1968, p. 18-28).
No paisagismo, o jardim inglês alinhava-se a es- Uma fonte da época que pode ser considerado
sas ideias, valorizando ambiências pendentes ao um registro rico a respeito da arborização é O
natural e orgânico. Andrade (2010) aponta que as Verde na Metrópole, apêndice ao livro A Construção
influências de Ruskin e Morris no início da tran- das Cidades Segundo seus Princípios Artísticos,
sição do jardim eclético para o jardim moderno, de Camillo Sitte (1992/1909) 7. O autor deixa suas
entre os séculos XIX e XX, acarretou a rejeição de impressões e diretrizes para o emprego de ve-
paisagistas à estética da máquina – o que mesmo getação em áreas urbanas, sobretudo no que diz
assim, em sua visão, não anulou a coexistência respeito à arborização, e apresenta suas ideias
da tradição e inovação no planejamento urbano em um tom crítico, ora citando estudos científi-
e paisagístico durante o processo. Na América, cos, ora emitindo seu o ponto de vista estético. A
inclusive no Brasil, o modelo de jardim e parque beleza (e categorias) é tema de várias passagens
inglês predominou até o início do século XX, ainda do texto, mas Sitte realça propriedades funcionais
de acordo com a autora, que destaca neste pano- da arborização como elemento de promoção da
rama a influência internacional do estadunidense qualidade do espaço urbano, principalmente no
Frederick Law Olmsted3 – figura-chave do Park sentido de poupar o habitante dos inconvenientes
Movement. Paralelamente, a França também se da poluição. Se adiantada a leitura da conclusão
constituiu em uma referência relevante no de- do texto, vê-se que Sitte classifica “o verde nas
senvolvimento dos ideais de paisagem urbana, metrópoles” em dois grupos com funções dis-
arborização e jardins públicos ao redor do mundo, tintas, que chama de “verde sanitário” e “verde
notadamente em decorrência das ações desen- decorativo”. Apesar de atribuir a importância do
volvidas em Paris (DOURADO, 2008). valor evocativo da vegetação ao pitoresco, o autor
critica o verde decorativo, e diz que “[...] só ofe-
Outro movimento importante da época, conhecido rece efeitos ilusórios” (p.181), enquanto o verde
como Garden City (Cidade-Jardim), também era sanitário tem muito claros os benefícios à cidade.
produto de reações à cidade industrial, incialmen- Apesar desses comentários sobre a importância
te no contexto inglês – mas cujas ideias, mesmo da dimensão funcional, ao longo do texto, Sitte
que transformadas, se espalhariam a várias partes aponta a vegetação como um complemento es-
do mundo. Segundo Hall (2013/1988) a estrutura tético importante à arquitetura e composição da
sócio-espacial idealizada por Ebenezer Howard4 paisagem urbana: a falta do verde como elemento
em meados da virada do século XX, que pairava de harmonização poderia tornar o espaço edifica-
na mesma atmosfera das ideias de William Mor- do pelo humano “seco e monótono”; essa opinião
ris, encontrou no trabalho de Raymond Unwin5 e também se estendia ao uso da água, inclusive
Barry Parker 6 “[...] sua perfeita realização física” na condição simplesmente decorativa (p.166).
(p.114). As ideias de Howard, ainda segundo Hall, O discurso de Sitte não antagonizava a relação
envolviam aliar características do campo com
os potenciais econômicos e sociais das cidades,
7. Austríaco, viveu entre 1843 e 1903. A Edição de A
Construção das Cidades Segundo seus Princípios Ar-
1. 1834-1896. tísticos aqui utilizada foi publicada em português pela
2. 1819-1900. Editora Ática em 1992, traduzida da quarta edição
alemã, de 1909. A primeira edição da obra é de 1889. O
3. 1822-1903. Verde na Metrópole, entretanto, foi publicado apenas
4. 1850-1928. na quarta edição, após a morte de Camillo Sitte em
1903. O texto, segundo o Prólogo à quarta edição - as-
5. 1863-1940.
sinado por Siegfried e Heinrich Sitte em 1908 -, antes
6. 1867-1947. era “acessível apenas a um restrito círculo de leitores”.
EIXO TEMÁTICO 2 entre natural e artificial, tampouco apontava a
intervenção humana como necessariamente uma
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS força destruidora, pelo contrário: quando feita
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES respeitando-se certos princípios, a vegetação e
a arquitetura formavam uma espécie de coreo-
grafia onde ocorreria uma valorização estética
recíproca:

A necessidade de a arborização estar em


uma composição harmoniosa com suas
adjacências arquitetônicas é uma reinvindi-
cação importante. Todavia, não deve jamais
furtar os preciosos efeitos visuais artísti-
cos da arquitetura e da plástica, de portais,
torreões, nichos de estátuas, mosaicos de
fachadas etc. Torna-se fundamental uma
transição gradativa das formas vegetais
para as arquitetônicas, assim como em al-
guns tipos de música os diversos acordes
destoantes se combinam em transições de
extrema harmonia. (SITTE, 1992/1909, p. 174)

Alguns argumentos com referências culturais e


subjetivas também permeiam as ideias de Sitte
ao se referir à preservação da vegetação. O autor
critica o planejamento urbano de sua época por
não poupar os exemplares existentes no desen-
volvimento dos projetos, nem mesmo permitindo
a referência do pinturesco, “[...] sacrificados pelo
primeiro golpe da régua do geômetra moderno,
com seu monótono traçado retilíneo de ruas de
largura uniforme” (p.171). Sitte reforça a impor-
tância da vegetação não apenas no campo esté-
tico, mas também como construtor da imagem e
identidade das cidades. A sua crítica às tendências
de planejamento urbano dos tais “homens-régua”
(p.171), portanto, aludem não apenas a perdas
visuais, mas também simbólicas – principalmente
ao exaltar a importância de exemplares especí-
ficos antigos e já conhecidos das populações.
Entende-se que Sitte defende um planejamento
urbano que, do ponto de vista estético, preza
por uma atmosfera ao menos aparentemente
espontânea, diferentemente do cartesianismo
– que poderia se manifestar em soluções de as-
pecto artificial, algo antagônico ao pitoresco.
Nota-se também, no discurso de Sitte, mais do
que a preocupação compositiva, imagética ou
cultural, que a arborização deveria ser pensada
16º SHCU como instrumento do bem-estar humano. Um dos
30 anos . Atualização Crítica
momentos particularmente voltados à esfera da
1276 subjetividade é quando o autor enfatiza a relação
entre aspectos emocionais e o poder evocativo ma que se um órgão está pervertido, o outro não
da vegetação no espaço urbano: consegue funcionar adequadamente” (TOLSTOI,
2002/1898, p. 260). Para o pensador, as “verdades
O melancólico indivíduo metropolitano é e o conhecimento” estudados pela ciência são,
um doente em parte imaginário, em par- no âmbito da arte, transferidos do “campo do
te real, sofrendo da nostalgia e da sauda- conhecimento para o campo do sentimento”.
de da natureza ao relento. Esta moléstia,
que pode agravar-se a ponto de entorpe- No Brasil, a união entre planejamento do espaço
cer qualquer vontade de trabalho, não é e ciências naturais, especialmente medicina e
curada através de uma mera inalação in- epidemiologia, também marcou a historiografia
consciente de tantos por tantos metros da arquitetura, urbanismo e engenharia. Segun-
cúbicos de oxigênio ou ozônio, mas com do Lemos (2012), no início da Primeira República
a visão sobre o verde, na representação já existiam dispositivos legais para estabeleci-
da tenra e cara mãe natureza. [...] basta mento obrigatório de padrões de higiene para as
a possibilidade da mera sugestão de um edificações. O mesmo ocorreu na dimensão do
simples olhar sobre folhagens ou mesmo planejamento urbano, com os estudos da Medicina
sobre uma única árvore transpondo com Social; segundo Costa (2002, p. 68), “o discurso
seus galhos vigorosos a altura do muro e médico higienista, dominante no século XIX, con-
assim enchendo de vida uma rua inteira; [...] tribuiu para um novo pensamento sobre a cidade
Já é bastante conhecido o fato de a imagi- e a sociedade urbana. [...] O meio (natural e social)
nação não precisar de uma pesada massa foi considerado como fator fundamental para
de efeitos, mas apenas de estímulos e as- explicar a grande mortalidade urbana”. Este fe-
sociações (SITTE, 1992/1909, p. 169-170). nômeno também é explicado por Faria (2015), que
comenta que os governos federal e estaduais no
Nota-se que a utilização das palavras “doente” e Brasil viveram um período propício ao empreen-
“moléstia” na introdução do argumento legitima dimento de grandes obras, devido aos superávits
a utilização da vegetação como recurso de pro- na balança comercial do país, que perduraram do
moção da saúde mental; algo que foi abordado final do século XIX até 1913, e trouxeram impactos
cientificamente a partir da segunda metade do urbanos e sociais significativos:
século XX com os estudos da Psicologia Ambien-
tal, e que desde então vem ganhando espaço nas Desse modo, coube aos médicos e aos en-
discussões do campo da arquitetura na temática genheiros a tarefa de transformar as cida-
dos Espaços Restauradores, que, entre outras des onde ainda predominavam a estrutura
abordagens, relacionam o contato com ambientes colonial e tomá-las símbolos do progresso
naturais e o conforto mental do usuário (GRESS- e da civilização. [...] Os discursos sobre a hi-
LER, GÜNTER, 2013). O autor, ao descrever ima- giene vão orientar as intervenções urbanas
gens específicas como os galhos que transpõem com evidentes repercussões na paisagem.
o muro, constrói uma narrativa que associa o (FARIA, 2015, p. 117)
bem-estar psicológico ao planejamento paisa-
gístico. Neste caso, há um momento de encontro Segawa (1996, p. 70) aponta que em fins do século
entre a estética e a saúde; inclusive, Sitte dá mais XIX, no Brasil, “[...] o conceito da rua e do parque
importância a este aspecto psicológico que ao arborizados como pulmões urbanos estava ampla-
argumento que as árvores seriam as responsáveis mente assimilado. Não apenas em sua dimensão
pelo controle da quantidade de dióxido de carbono salubrista, como por um suposto caráter cívico”.
no ar, algo que ele questiona baseando-se em Entre os exemplos do pensamento nacional no
estudos científicos da época (p. 167-169). recorte da arborização urbana, Simononi (2016)
resgata uma citação de 1900 do engenheiro Joa-
A abordagem de Sitte, que concilia beleza e saúde quim Silvério de Castro Barbosa, e comenta que
pública, acompanha o pensamento estético de o autor estabelecia dois critérios balizadores no
sua época. Tolstoi afirma, em O que é Arte, que cultivo dos exemplares urbanos: “a estética e
“a ciência e a arte estão tão intimamente ligadas a higiene”; sendo o primeiro enriquecido espe-
entre si como os pulmões e o coração, de tal for- cialmente pelos potenciais de exuberância da
EIXO TEMÁTICO 2 diversidade da flora local. Exemplos da incorpo-
ração do discurso internacional podem ser vistos
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS através do próprio Sitte; Lersch (2014, p. 93-106)
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES aponta dois casos importantes de absorção de
suas ideias no Brasil no início do século XX: o
contato do engenheiro Saturnino de Britto com as
versões francesas de seus escritos, e a influência
na prática do engenheiro civil português Victor
da Silva Freire, radicado na cidade de São Paulo,
onde desenvolveu projetos urbanísticos para o
poder municipal.

O realce aos pilares beleza/aformoseamen-


to e higiene/saneamento recorria em diversos
pensamentos da época, especialmente como
princípios complementares. Um nome relevante
no debate público sobre arborização urbana da
época, por coincidência ou não, é o de uma figura
que incorporava as duas dimensões profissionais:
um médico de formação que se enveredou
profundamente pela arte, arquitetura e urbanismo.

José Marianno Filho, arborização


e estética urbana

José Marianno Filho (1881-1946) é mais conheci-


do na historiografia da Arquitetura e Urbanismo
brasileiros como um dos principais promotores
do movimento neocolonial, especialmente pela
década de 1920 (Silveira; Bittar, 2013). No entanto,
uma parte pouco abordada de sua carreira englo-
ba as ciências naturais, arborização urbana e seus
desdobramentos estéticos. Estas questões são
tratadas com ênfase por Marianno Filho entre o
início da década de 1910 e o início da década de
1920, quando passa a dedicar-se principalmente
a outras causas da arte e da arquitetura. Isso
não significa que ele abandonaria as questões
ambientais, que são recorrentes em sua trajetória
profissional em maior ou menor grau. Por hora,
serão expostas as ideias encontradas em alguns
textos sobre e escritos por José Marianno Filho
no início de sua carreira, considerando que estão
entre os primeiros registros de teor profissional
em seu nome encontrados pelo mecanismo de
busca da Hemeroteca Digital Brasileira, da Bi-
16º SHCU
blioteca Nacional8.
30 anos . Atualização Crítica

1278 8. Este estudo contextualiza-se em uma pesquisa de


O ano de 1910 já menciona José Marianno Filho no versos, por exemplo, quando menciona que “[...] o
universo da botânica. O periódico Fon-Fon o men- processo de poda praticado pelos boçalissimos [?]
ciona como diretor da revista Hortas e Quintaes chacareiros da Prefeitura é um acto de revoltante
(HORTAS..., 1910, p.23). Posteriormente, anuncia vandalismo, porque degrada as linhas architecto-
a sua nomeação, ainda pendente de assinatura, nicas do apparelho vegetativo, dando-lhe fórmas
para chefe da seção de agricultura do Ministé- artificiaes e grotescas (feitio de compoteira, e de
rio da Agricultura (NOTICIARIO, 1910, p.28). Não tatú, etc.)”, e que “a esthetica official não pode
foi encontrado registro se ele chegou a, de fato, acompanhar as phantasias dos commendadores
assumir o cargo. do subúrbio, em cujas chacaras o estylo de poda
adoptado é o da «meia cabelleira a carris urba-
A arborisação urbana: Projecto Officioso é um dos nos»”. Nessas passagens, combativas até mesmo
primeiros textos assinados por José Marianno às próprias pessoas dos chacareiros, mostra nos
Filho (1911a) encontrados no acervo pesquisado. termos formas artificiais e fantasias, um discurso
Nele, vê-se o tom crítico que leitores de diversos condenatório daquilo que não considera natural
jornais, especialmente do Rio de Janeiro, encon- ou “real” o bastante; a própria noção de “linhas
trariam em escritos do autor pelas três décadas arquitetônicas do aparelho vegetativo” já revela a
seguintes. Neste primeiro caso, as observações elaboração de uma relação visual entre as árvores
são direcionadas à maneira que a arborização e a paisagem urbana construída. Essas ideias
urbana era conduzida pela prefeitura do Rio de certamente não nasceram com José Marianno
Janeiro; Marianno Filho, imaginando-se com o Filho, visto que a relação entre verdade e beleza
poder de um edil9, elenca diversas considera- é recorrente na teoria estética desde a antigui-
ções que incluiria em um projeto; observa que dade, sendo empregada por muitos teóricos, ao
“[...] as arvores destinadas á arborisação publica longo dos anos, inclusive para a arquitetura e
impressionam antes pelo seu «habitus» do que urbanismo. Como já mencionado anteriormen-
por qualquer outro caracteristico de natureza cul- te, Camillo Sitte corroborava a condenação às
tural, ou melhor, «chacareiral»” – assinalando sua formas geométricas “artificiais”, assim como
predileção ao emprego dos potenciais estéticos via valor estético nos conjuntos formados entre
das formas naturais das espécies, como confirma vegetação e arquitetura. Contudo, é importante
em seguida: “[...] esse «habitus» dá a cada arvore atentar que, nesta mesma crítica, José Marianno
uma physionomia propria, individual e inconfun- Filho cita John Ruskin como “marechal inconteste
divel” (p.03) 10. da arte contemporanea”, que “lançou as bases
de uma esthetica que repousa justamente nos
Alguns trechos desta crítica publicada em A Noite documentos architeturaes dos diversos grupos
levantam tons incisivos e potencialmente contro- vegetaes superiores”, revelando o pensamento
que o inspirou. O próprio Ruskin (1889), em As Sete
Lâmpadas da Arquitetura, condena práticas que
doutorado, em desenvolvimento no Programa de Pós-
-Graduação em Arquitetura e urbanismo da UFRN, que sejam atentados à “verdade” nas construções.
traz em suas temáticas o discurso de José Marianno Nos meses seguintes o nome de Marianno Filho
Filho sob o viés estético. continua presente na imprensa, dando entrevistas
(PRECISAMOS..., 1912) e assinando textos como “A
9. O texto é aberto e fechado com a frase “Se eu fosse
arborisação está morrendo por falta de cuidado”
edil”. Constam, no dicionário eletrônico Michaelis, as
seguintes definições de Edil: “1 Na Roma antiga, alto
(1911b), onde emite pareceres sobre botânica,
funcionário administrativo que tinha como função comenta sobre a importância de se criar uma
zelar pelo bom funcionamento dos edifícios e serviços legislação para a arborização, e critica as ações do
públicos, pelas vias públicas e condições do tráfego, poder público – em especial a Inspetoria de Matas.
pelo abastecimento de gêneros alimentícios e água, Em “Defendamos as nossas arvores!”, de 1914, José
pelo bom funcionamento das atividades policiais, Marianno Filho assina (agora como ex-assistente
bem como oferecer aos cidadãos segurança nas do Jardim Botânico) mais um texto em que conde-
festividades e condições para a prática religiosa. 2 na a ação dos balões, defende uma legislação es-
V vereador” (EDIL, 2015). pecífica para a arborização, e critica a derrubada
10. A ortografia dos textos transcritos foi mantida de árvores pela prefeitura em favor de interesses
como nos originais. privados (MARIANNO FILHO, 1914b, p.02).
EIXO TEMÁTICO 2 Os artigos, entrevistas e menções ao nome de
José Marianno Filho como defensor das árvo-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS res, aliado aos cargos que ocupou, certamente
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES o posicionaram como uma figura publicamente
envolvida com as questões da arborização e es-
tética urbana nos primeiros anos da década de
1910. Outras temáticas seriam abordadas já nos
anos iniciais. A Nota “Uma questão de esthetica
urbana”, publicada na revista Fon-Fon, mostra que
em 1914 José Marianno Filho se opunha à ideia da
Prefeitura de arrancar o grades do Passeio Públi-
co do Rio de Janeiro, anunciando a expansão de
sua atuação para além dos espécimes vegetais,
e cobrindo o mundo construído. No início de 1915,
o seu envolvimento público com estas questões
ganharia ainda mais notoriedade com a fundação
da Liga de Defesa Esthetica do Rio de Janeiro.

Liga de Defesa Esthetica do Rio de Janeiro

Segundo Oliveira (2008, p. 159), a Liga de Defesa


Esthetica foi um ressurgimento da “Liga Anti-
-feio” criada por Luiz Edmundo em 1908 para “[...]
fiscalizar a manutenção da vigência dos novos
hábitos e tendências arquitetônicas no período
pós-reformas urbanas”. De fato, a Liga de Defesa
Esthetica nasce dentro de um protesto de seu
grupo fundador a uma decisão do poder público.

Em janeiro de 1915 a revista Fon-Fon levantou, em


uma nota, a preocupação causada pela ideia do
então Prefeito Distrito Federal, Rivadávia Correia,
de mandar arrancar as grades do Passeio Públi-
co – cenário em que os “[...] teimósos idealistas,
Coelho Netto, Alcides Maya, Gregorio Fonseca,
Felippe de Oliveira e outros, ao lado de José Ma-
rianno Filho, pensam fundar uma Liga de defeza
esthetica, para proteger o que ha de bello ainda, no
Rio.” (RISCOS..., 1915, p.41). O que era pensamento
não demorou muito para se transformar em ação:
em fevereiro de 1915 de A Noite noticia que “[...] o
enthusiasmo patriotico do nosso colaborador Dr.
José Marianno (filho) em boa hora creou” a Liga de
Defesa Esthetica do Rio de Janeiro, continuando:
“Já sábbado haverá a segunda reunião da Liga,
no mesmo local e á mesma hora da primeira. Vão
ser lidos os estatutos e eleitos os «comités» que
16º SHCU têm de dar execução pratica aos bellos ideaes [?]
30 anos . Atualização Crítica
da Liga, defendendo a esthetica do Rio contra os
1280 botes selvagens que a acommettem frequente-
mente” (A LIGA...,1915, p. 02). A Fon-Fon também tuto da Liga11, conforme mencionado por A Noite,
noticia que, no sábado anterior, a Liga de Defesa fornecendo mais detalhes de sua composição:
Esthetica do Rio foi fundada na sede do Jornal do José Marianno Filho foi apontado presidente, e
Commercio, comentando: “José Marianno Filho Victor Viana o secretário geral; era organizada em
conseguiu acordar enthusiasmos para o amparo e dois comitês: Defesa Florestal e Defesa Estética,
compostos por mais dezenove membros (VARIAS
a protecção de tudo o que na nossa cidade ainda
NOTICIAS, 1915, p.06). Um registro fotográfico do
resta de bello e de tradicional [...]” (LIGA DE DEFE-
grupo presente à leitura dos estatutos da Liga
ZA..., 1915a, p.31). No dia seguinte, o próprio Jornal
pode ser visto na Figura 01.
do Commercio publica sobre a instituição do esta

Figura 01: Grupo presente na leitura e discussão do estatuto da Liga de Defesa Esthetica do Rio de Janeiro. Fonte: Fon-Fon
(LIGA DE DEFEZA..., 1915b, p. 22). Acervo da Hemeroteca Digital Brasileira/Biblioteca Nacional.

11. O início da notícia encontra-se praticamente ilegível,


mas era possível identificar que se tratava sobre a
aprovação do estatuto da Liga de Defesa Estética,
no dia anterior. Foi possível identificar, também, que
o apontamento da direção e secretaria geral foram
decorrentes da declinação por parte de outros nomes,
não identificados.
EIXO TEMÁTICO 2 Em entrevista sobre a Liga de Defesa Esthetica
para Fon-Fon, pouco depois de sua fundação12,
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS José Marianno Filho comenta que os motivos
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES para a criação do grupo se deram pela devastação
dos recursos naturais da cidade, especialmen-
te pelos prejuízos paisagísticos. Apesar disso,
também revela perceber um “[...] movimento de
reação modernista contra a tradição historica
do nosso povo”, que elabora: “Assim nós attenta-
mos simultaneamente contra dois sentimentos
fundamentaes da civilisação humana: o amor á
natureza e o respeito ao patrimonio historico da
raça”. As motivações d’A Liga de Defesa Esthetica
parecem ser uma espécie de primeira semente –
pelo menos pública – de um discurso que cresceria
exponencialmente a partir da década seguinte.
A “reação modernista” é descrita como um mo-
vimento contra o patrimônio histórico, aliada à
menção ao povo e à “raça”.

Pouco tempo após a sua fundação, a Liga de De-


fesa Esthetica do Rio de Janeiro já começava
aparecer na imprensa também sob outras óticas.
Em uma charge publicada na edição de revista O
Malho de 13 de março de 191513 (Figura 02), José
Marianno Filho é retratado em um diálogo com
Júlio Furtado14 e outra figura identificada como
Zé, provavelmente o personagem “Zé Povo” 15, que
normalmente representava a opinião do brasilei-
ro comum, com tons pejorativos à sua suposta
mediocridade.

12. Ainda na edição de 13 de fevereiro de 1915, p.48

13. Apesar de conter assinatura, não foi identificado


o nome do chargista.
14. Segundo do Dicionário de Verbetes do Arquivo
Geral da Cidade do Rio de Janeiro (VILELA, YGOR, 20-
-?), Júlio Gonçalves Furtado (1851-1934) foi o Inspetor
de Matas, Jardins e Arborização e Caça (entre outras
variações de nomes do Órgão) da Prefeitura do Distrito
Federal entre 1895 e 1931, até se aposentar.
15. Tenório (2009) e Justen e Doré (2020) apontam
16º SHCU
que o personagem Zé Povo era utilizado de maneira
30 anos . Atualização Crítica
a estereotipar a opinião pública do brasileiro médio
1282 na revista O Malho no início do século XX.
(ou, pelo menos, seu nome já era autoexplicativo
o suficiente) para ser contextualizada autono-
mamente pelos leitores, sem a necessidade de
maiores explicações sobre o que se tratava. A fala
atribuída a José Marianno Filho pelo chargista,
que associa a derrubada das árvores ao binômio
“beleza e saúde” indica uma assimilação dentro
do senso comum das funções como “verde deco-
rativo” e “verde sanitário” comentados por Sitte
anos antes, já presentes nos discursos nacionais
e estrangeiros. Outras ações da Liga de Defesa
Esthetica ficaram mais claras em uma matéria do
Correio da Manhã de julho de 1915 (Figura 03), onde
é noticiado que José Marianno Filho ofereceu um
terço de sua coleção de árvores ornamentais à
Inspetoria de Matas da Prefeitura; entretanto, em
sua entrevista, ele novamente repreende o órgão,
dessa vez por empregarem espécies exóticas na
arborização.

Figura 02: Charge sobre Liga de Defesa Esthetica do Rio


de Janeiro. Fonte: (O VERDADEIRO..., 1915, p. 39). Acervo
da Hemeroteca Digital Brasileira/Biblioteca Nacional.

Acima da imagem, há o título: “O Verdadeiro autor


de uma selvageria”, seguido de “’A Liga da Defesa
Esthetica do Rio de Janeiro, sob a presidencia
do Dr. José Marianno Filho, já protestou contra a
pavorosa derrubada das mattas em torno da urbs
carioca’ – (Dos jornaes)”. Abaixo da imagem do trio
de personagens, o seguinte diálogo:

José Marianno: - É inconcebivel que se der-


rubem arvores que se destrua a belleza e a
saude do Rio de Janeiro, para o fim ignobil
de se reduzir tudo a carvão!

Julio Furtado: - Sim! É uma perfeita cala-


midade! Mas seria preciso que o governo
comprasse essas mattas para se evitar essa
selvageria! Não ha outro meio!

Zé: - Ha, sim, senhor! Mande-se vir uma mis-


são estrangeria e dê-se-lhe carta branca
para agir! O sentimentalismo nacional é o
verdadeiro autor da derrubada das mat-
tas!... (O VERDADEIRO..., 1915, p. 39) Figura 03: Título e foto que acompanham entrevista de
José Marianno Filho ao Correio da Manhã. Fonte: A INS-
A utilização do nome da Liga de Defesa Esthetica PECTORIA..., 1915, p.05. Acervo da Hemeroteca Digital
em uma publicação de humor é um indício de Brasileira/Biblioteca Nacional.
que a entidade já era suficientemente relevante
EIXO TEMÁTICO 2 O Passeio Público e a entrada à estética
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
arquitetônica
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
Entre o anúncio da ideia de se criar a Liga, sob a
polêmica retirada das grades do Passeio Público,
à efetiva formalização do grupo, a edição de 10 de
janeiro de A Noite trouxe em suas páginas o texto
“Pobre Passeio Publico”, de José Marianno Filho
(1915b). Esse texto é um exemplo que encapsula
muitos conceitos sobre estética do espaço ur-
bano, extrapolando as questões específicas da
arborização.

Marianno Filho inicia o texto com um conceito


estético que, por si só, já revela muito sobre as
ideias que defende: o pitoresco16. O Passeio Pú-
blico, nas mãos da Inspetoria de Matas, perderia
esta qualidade para se tornar mais uma praça,
implicitamente medíocre, por estar prestes a
passar por uma reforma que seguiria um modelo
repetido em outros bairros pelo agente público
que o autor já havia criticado diversas vezes an-
teriormente. Segundo suas palavras, a medida
causou revolta em toda a população da cidade. O
binômio estética e higiene também aparece nos
parágrafos iniciais do artigo, quando o autor co-
menta que “[...] nenhum argumento, sob o ponto de
vista esthetico, hygienico ou mesmo de utilidade
publica poderia justificar a impiedosa profanação
daquelle tradicional jardim, que representa na
historia da nossa arte o momento talvez mais
decisivo de sua affirmação esthetica” (MARIANNO
FILHO, 1915b, p.02).

Antes de dar continuidade à análise, é interessante


abordar rapidamente o pitoresco paisagístico.
Brook (2018, p. 41-42) comenta que esta catego-
ria estética “leva a irregularidade escarpada do
sublime aos contornos menores e mais íntimos
do pastoral” 17. A autora distingue, então, seus
elementos como “variedade, complexidade, sel-

16. Camillo Sitte (1992/1909, p. 171) também menciona


a importância do pinturesco ou poético na “construção
urbana”.
17. No original: “The picturesque as a specific aesthetic
category arises out of a blending of the pastoral and the
16º SHCU
sublime. It takes the craggy irregularity of the sublime
30 anos . Atualização Crítica
into the smaller more intimate compass of the pastoral”
1284 (BROOK, 2018, p. 42). Tradução livre nossa.
vagismo, e ruína” 18. Isto é, o pitoresco se opõe à segundo ato de sua crítica, desta vez, em direção
obviedade da intervenção humana presente no contrária.
excesso de cuidado e precisão, e não combina
com a noção de monumentalidade e imponência. “Durante o governo despotico do prefeito Passos,
o Passeio Publico pagou seu tributo á furia de-
De volta a “Pobre Passeio Publico!” – apesar de molidora que incendiou a cidade” – é a frase que
centrar seus argumentos em arcabouços artís- abre o parágrafo mais crítico. Neste ponto, José
ticos, José Marianno Filho comenta que Mestre Marianno Filho atribui o infortúnio das reformas
Valentim19 priorizou o ponto de vista utilitário já praticadas ao processo de descaracteriza-
quando concebeu o espaço: ção do espaço. Há, ainda, uma crítica à prática
de se trocar a vegetação existente, com função
Num paiz tropical, de intensissima irradia- de sombreamento, por espécies decorativas:
ção solar, o jardim não deve existir apenas “Nos canteiros outr’ora povoados pelas sombras
para o goso esthetico da vista. Para elle mysteriosas das grandes arvores plantaram-se
o jardim devia ser um oasis, não ‘para ser papoulas e crotons variegados” é um trecho que
atravessado’ na pittoresca phrase de Coe- faz particularmente o contraste entre o pitores-
lho Netto, mas para ser buscado, para ser
co embebido pelo “mistério” das sombras das
gosado pela população abrasada nos dias
árvores à banalidade das espécies decorativas
de soalheira. (MARIANNO FILHO, 1915b, p.02)
de pequeno porte. O grande lamento sobre as
O que é interessante na citação é ver como ela mudanças, observadas como destruidoras, vem
ecoa o conceito de “Verde utilitário” de Camillo em “A grande obra de vandalismo estava, pois,
Sitte, e, em um panorama mais amplo, com a encetada. Restavam ainda as grades silenciosas
legitimidade que a função parece conferir à be- e os lindos portões rematados em motivos bar-
leza, quando se trata de espaços construídos. A rocos”. Grades estas que, ameaçadas, vieram a
partir desse ponto, Marianno Filho aplica em seu motivar a fundação da Liga de Defesa Esthetica.
texto diversos termos e argumentos que apelam
O texto é fechado, como já sugerido em outros
à construção de imagens mentais e suas quali-
escritos de Marianno Filho, com a responsabili-
dades sob o ponto de vista artístico e sensorial.
zação ao mesmo tempo que impessoal, coletiva;
Em um primeiro momento, leve e elogioso, fala
que pode ser interpretada como fruto de uma ig-
que o primeiro traçado do Passeio era de “[...] um
norância – ou mau julgamento estético – de todos
suave e ingenuo classicismo”, e comenta sobre a
ou de ninguém específico, mas decorrente de um
vegetação de grande porte, que fazia do lugar “[...]
um delicioso bosque de frescura e de sombra”. problema local: “Contentemo-nos, pois, com os
Em seguida elogia algumas reformas que vieram taes jardins decorativos que fazem a delicia do
depois, pois “[...] não lhe alteraram o aspecto geral hellenismo indígena. A época e para os canteiros
caracteristico”, em especial a de Glaziou20, que floridos de hortaliças variadas e ‘parterres’ de
dispôs “[...] com intelligencia os grandes massi- mangericão. § Eles são realmente dignos de nossa
ços de verdura de cuja composição elle possuia o cultura esthetica”. O discurso, ao mesmo tempo
maravilhoso segredo”. Após continuar e concluir que persuade pela subjetividade, certamente por
seus elogios ao passado, Marianno Filho inicia o apelar mais ao estético que ao utilitário em seus
momentos finais, arremata as ideias golpeando
a autoestima local, atingindo não apenas a ima-
18. No original: “Distinct elements of the picturesque ginação do leitor carioca, mas também trazendo
are its endorsement of variety, intricacy, wildness and provocações. Os argumentos que associam as
decay (Brook 2008: 112)” (BROOK, 2018, p.42). Tradução
medidas da Prefeitura à falta de sofisticação são
livre nossa.
enfatizados por contrastes de palavras como “he-
19. Brasileiro, ca. 1745-1813. lenismo indígena” e “parterre de manjericão”, como
20. O engenheiro/paisagista bretão Auguste Glaziou se buscasse descortinar um requinte fraudulento,
(1833-1906) assina a reforma do Passeio Público inau- onde a influência estrangeira é uma espécie de
gurada em 1862, segundo informações de Dourado maquiagem mal aplicada.
(2008) e da Fundação Casa de Rui Barbosa (2009). No
texto aqui discutido está grafado “Glazion”.
EIXO TEMÁTICO 2 Consolidação pública como especialista
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
Nos anos que se seguiram, José Marianno Filho
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
continuou a consolidar-se como uma figura públi-
ca especialista em arborização e botânica. Ainda
em 1915, A Noite publicou a matéria “Um problema
inadiavel Teremos enfim um Codigo Florestal?” (UM
PROBLEMA..., 1915, p.01), onde ele, apresentado
como “um dos mais competentes especialistas da
materia”, comenta as principais ideias abordadas
no projeto de lei que propôs à Comissão do Código
Florestal na Câmara dos Deputados. Esse fato já
sinaliza seu envolvimento com estas questões
não apenas como crítico ou líder de um grupo
independente como a Liga de Defesa Esthetica,
mas como uma figura de grande influência entre
as instituições públicas. No ano seguinte, em 1916,
o Correio da Manhã noticia em primeira página a
nomeação de José Marianno Filho para a direção
do Horto Florestal, do Jardim Botânico do Rio de
Janeiro (TOPICOS & NOTICIAS, 1916b, p.01). Já em
seus primeiros meses no Horto, José Marianno
Filho realizou uma conferência ao Presidente da
República sobre a situação das florestas ante à ca-
rência de carvão de pedra (TOPICOS & NOTICIAS,
1916a, p.01), e divulgou na imprensa a devastação
das matas do Rio de Janeiro (TELEGRAMMAS,
1916, p.04). Também está documentada nos jor-
nais a festa que organizou para ocorrer no dia 20
de setembro de 1916, voltada ao público infantil,
e inspirada no Arbor Day estadunidense – onde
incentivaria a proteção das árvores (O HORTO...,
1916, p.01; A ENTRADA..., 1916, p.02). Segundo
Segawa (1996, p. 70), o primeiro registro de uma
comemoração desse tipo no Brasil ocorreu em 07
de junho de 1902; o que coloca os eventos pro-
movidos por José Marianno Filho, provavelmente,
em um contexto de popularização inicial desse
tipo de ação no Brasil – já que se encontra entre o
primeiro evento e a oficialização da data em 1925
(SERVIÇO TELEGRAPHICO, 1925, p.04).

A imagem pública de José Marianno Filho como


defensor das árvores continuou a se solidificar
ao fim da década. Para citar um exemplo, em 1919
a revista Brasil Illustrado publica uma nota bas-
tante elogiosa, intitulada O amigo das arvores. O
texto é ilustrado por um retrato de Marianno Filho
segurando uma corda, em frente ao que parece
16º SHCU
um painel pintado com tema florestal (Figura 04).
30 anos . Atualização Crítica

1286
não apenas com a paisagem urbana, mas no geral:

Grande amigo das arvores! Mas José Ma-


rianno Filho, estheta de nobres creações,
mentalidade superior, é egual por egual
um reconstituidor do passado, fremindo
de emoção sempre que se lhe depara num
objecto, numa cadeira antiga, num alfarra-
bio, um traço qualquer de glorias mortas.
Para que melhor caracteristico? (O AMIGO...,
1919, p.07)

Mesmo que esse escrito seja sobre a dedicação


de Marianno Filho pela vida das árvores, foi con-
cluído iluminando sua faceta de “reconstituidor”,
entusiasmado pelos objetos antigos e “glórias
mortas”. É ainda mais significativo notar a data de
publicação às portas da década de 1920 – período
que marcaria o início de uma jornada veemente
e polêmica que José Marianno Filho empreen-
deria pelo que considerava tradicional na arte e
na arquitetura.

Figura 04: Retrato de José Marianno Filho na nota “O amigo


das arvores”. Fonte: (O AMIGO..., 1919, p.07). Acervo da
Hemeroteca Digital Brasileira/Biblioteca Nacional. CONSIDERAÇÕES FINAIS

José Marianno Filho tornou-se uma referência


O perfil traz mensagens que mostram muito ex- muito presente na imprensa, inicialmente ligado
plicitamente como os valores que vinham sendo às questões da arborização, mas que rapidamente
atrelados à imagem de José Marianno Filho como espalhou suas opiniões – às vezes controversas –
figura ambientalmente pró-ativa: “Ha no Rio uma à estética do espaço urbano e suas implicações
voz fiel e solícita que sempre defende as arvores, como patrimônio histórico e artístico. Apresentou
ora quando a furia mercenaria de lenhadores in- discurso e imagem pública que, ao mesmo tempo
veste contra as nossas mattas, [...] e até quando se que aliados a certos conceitos-chave das ideias
sacrificam velhas palmeiras solitarias, nas quaes que circulavam internacionalmente (como pôde
se conserva uma tradição, a memoria de outras ser visto em alguns paralelos com os escritos do
épocas... É José Marianno Filho” (O AMIGO..., 1919, austríaco Camillo Sitte, aqui apresentados), era
p.07). Essa passagem, que o coloca em posição crítico das ações tanto do poder público quanto
heroica de defensor da natureza e da tradição, da coletividade local. Nesse contexto, Marianno
remanesce ao binômio “higiene e beleza”, que unia Filho, por concentra-se no caráter estético da
as ciências naturais e médicas à arte e estética urbanidade, utilizava argumentos evocativos de
para a construção de um espaço mais condizente imagens mentais e apelo às referências do lei-
com os tempos. A palmeira solitária citada, sím- tor como recursos de persuasão. Foi observado,
bolo de um passado formador da identidade da principalmente, que nesses primeiros anos de sua
cidade, ressoa o discurso de Sitte (1992/1909), que trajetória profissional já estava sendo ensaiada a
defendia a importância de exemplares vegetais defesa de valores entendidos como tradicionais,
específicos na construção da paisagem urbana, que estavam por vir com mais veemência nas
pelo seus valores simbólicos. Entretanto, há um décadas seguintes.
trecho muito revelador do que viria a ser a imagem
que José Marianno Filho deixaria em seu trabalho
EIXO TEMÁTICO 2 REFERÊNCIAS
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DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
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Ao Grupo de Pesquisa História da Cidade, do Ter-
des de William Morris, John Ruskin, Frederick
ritório e do Urbanismo – HCUrb (Universidade
Law Olmsted, Camillo Sitte e Viollet-le-Duc
Federal do Rio Grande do Norte) e ao orientador
foram obtidas pelos seus respectivos verbetes
Prof. Dr. George Alexandre Ferreira Dantas.
na versão eletrônica da Encyclopaedia Britanni-
ca, assim como a datação da edição original de
“O que é Arte?” de Leon Tolstoi. Disponível em:
https://www.britannica.com/ Acesso em: 20
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As datações de períodos de vida de Ebenezer


Howard, Raymond Unwin e Barry Parker foram
obtidas em: HALL, Peter. Cidades do Amanhã.
Tradução Pérola de Carvalho. São Paulo: Pers-
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A datação de período de vida e nacionalidade


de Mestre Valentim foi obtida pelo seu verbete
na Enciclopédia Itaú Cultural. Disponível em:
https://enciclopedia.itaucultural.org.br/pes-
soa215791/mestre-valentim. Acesso em: 16 set.
2020.
EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES O presente artigo tem o objetivo de traçar um
panorama da evolução urbana do município de
Niterói-RJ evidenciando as diferentes dimen-
vídeo-pôster sões temporais do processo de ocupação do
território a partir do processo de estruturação
do espaço intra-urbano. Trata-se, sobretudo,
A EVOLUÇÃO URBANA DE de enfatizar como os processos e ritmos da ex-
periência histórica encontram seu reflexo na
NITERÓI-RJ: DA CIDADE paisagem urbana e na constituição da urbanida-
de. Na parte inicial, retoma aspectos gerais dos
COLONIAL À CIDADE processos de ocupação e colonização, inicia-
dos durante o século XVI, até a implantação do
CAPITALISTA Plano de Edificação da Vila Real da Praia Gran-
de (de autoria do pintor francês Arnaud Julien
Pallière) e a elaboração das primeiras normas
EVOLUCIÓN URBANA DE NITERÓI-RJ: DE LA CIUDAD
e intervenções urbanísticas, que anunciavam a
COLONIAL A CIUDAD CAPITALISTA
passagem da estrutura rural, predominante até
meados do século XIX, para o sistema urbano
PEREIRA, Rafael Carvalho Drumond que se anunciava. No tópico seguinte, são abor-
dados aspectos da configuração da ocupação
Geógrafo, Mestre em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU/
UFF); Pesquisador no Núcleo de Estudos e Projetos
urbana de Niterói-RJ com base em fatores po-
Habitacionais e Urbanos (NEPHU/UFF); Bolsista FAPERJ pulacionais, econômicos, sociais e institucio-
no Grupo Sistema de Espaços Livres no Rio de Janeiro nais, tendo como pano de fundo o processo de
(Grupo SEL-RJ/PROARQ-UFRJ) modernização da capital republicana. As análi-
ses desenvolvidas indicam que a construção do
espaço urbano do município teve sua paisagem
e história marcados pela proximidade com o
Rio de Janeiro, o que influenciou fortemente a
sua imagem e representação como cidade, com
repercussões tanto nos processos sociais que
dão forma, função e significação ao espaço,
quanto na aparência, organização interna e na
implementação de políticas urbanas na cidade.

HISTÓRIA URBANA ESPAÇO URBANO


PLANEJAMENTO URBANO URBANISMO NITERÓI-RJ

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1294
ABSTRACT

Este artículo tiene como objetivo trazar una visi-


ón general de la evolución urbana del municipio
de Niterói-RJ, evidenciando las diferentes dimen-
siones temporales del proceso de ocupación del
territorio desde el proceso de estructuración del
espacio intraurbano. Es, sobre todo, destacar
cómo los procesos y ritmos de la experiencia his-
tórica encuentran su reflejo en el paisaje urbano
y en la constitución de la urbanidad. En la parte
inicial, retoma aspectos generales de los proce-
sos de ocupación y colonización, iniciados duran-
te el siglo XVI, hasta la implementación del Plan
para el Edificio de la Vila Real da Praia Grande
(autor del pintor francés Arnaud Julien Palliére)
y la elaboración de las primeras normas e inter-
venciones urbanas, que anunció el paso de la es-
tructura rural, predominante hasta mediados del
siglo XIX, hasta mediados del siglo XIX. En el si-
guiente tema, los aspectos de la configuración de
la ocupación urbana en Niterói-RJ se abordan en
función de factores poblacionales, económicos,
sociales e institucionales, basados en el proceso
de modernización de la capital republicana. Los
análisis desarrollados indican que la construcci-
ón del espacio urbano del municipio tuvo su pai-
saje e historia marcados por la proximidad a Río
de Janeiro, lo que influyó fuertemente en su ima-
gen y representación como ciudad, con repercu-
siones tanto en los procesos sociales que forman,
funcionan y sentido al espacio, como en aparien-
cia, organización interna y en la implementación
de políticas urbanas en la ciudad.

HISTORIA URBANA ESPACIO URBANO


PLANIFICACIÓN URBANA URBANISMO NITERÓI-RJ
EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
O município de Niterói, localizado no estado do
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
Rio de Janeiro, às margens orientais da Baía de
Guanabara, tem sua história marcada pelas pre-
senças indígena e portuguesa, que deram origem
vídeo-pôster
aos primeiros povoados e ao aldeamento inicial.
A seguir, vamos abordar esse período inicial da

A EVOLUÇÃO URBANA DE ocupação do território, apontando as importantes


marcas na paisagem da cidade, fruto da forte he-
NITERÓI-RJ: DA CIDADE rança colonial. Na primeira parte, são abordados
aspectos sobre a construção do espaço da cidade
COLONIAL À CIDADE e, posteriormente, sobre sua evolução urbana,
enfatizando o processo de modernização da ci-
CAPITALISTA dade através de breve cronologia das principais
intervenções urbanísticas.

EVOLUCIÓN URBANA DE NITERÓI-RJ: DE LA CIUDAD De início, é importante dizer que a presença com-
COLONIAL A CIUDAD CAPITALISTA binada de elementos naturais favoráveis, como as
praias, os vales e montanhas, as reentrâncias do li-
toral, a abundância de água, fizeram com que esse
espaço às margens da Baía de Guanabara fosse
cobiçado por diferentes grupos, como índios, je-
suítas e colonizadores franceses e portugueses.
A configuração do território se deu, portanto,
a partir das lutas pela apropriação do espaço.

A Guanabara, devido a sua posição geográ-


fica favorável, era um lugar privilegiado;
ali, uma grande cidade teria fatalmente de
surgir, por maiores que fosse os obstáculos
a sua expansão urbanística (LAMEGO apud
AZEVEDO, 1997, p.20).

A cobiça pela posse das terras no litoral do Brasil


se deu após a notícia da existência de terras ricas
em pau-brasil se espalhar pelos portos e cortes
europeias (WEHRS, 1984, p.29). Até então, Portu-
gal pouco se preocupava com a efetiva ocupação
do território recém descoberto, uma vez que os
interesses ultramarinos estavam direcionados
para a Ásia. Ocorrido o processo de decadência do
Império Português nas Índias, aliado ao crescente
número de navios corsários e contrabandistas, es-
pecialmente franceses, no litoral brasileiro, a partir
de 1530 foi intensificado o processo de colonização.

O modelo de colonização a ser implementado


pela Coroa Portuguesa, assim como nas ilhas
16º SHCU do Atlântico sob seu domínio, foi o sistema de
30 anos . Atualização Crítica
Capitanias Hereditárias. E a primeira expedição
1296 colonizadora se deu, sob o comando de Martim
Afonso de Souza, em 1531, que resultou no pri- novembro de 1573, contando com a presença do
meiro núcleo colonizador, a Vila de São Vicente. Governador Cristóvão Barros. Nessa data foi fun-
Porém, esse modelo pouco contribuiu para pro- dada a Aldeia de São Lourenço dos Índios e, co-
teger o território e, em 1555, houve uma grande memora-se oficialmente o aniversário da cidade.
e maciça invasão francesa à Baía de Guanabara,
conhecida como a Primeira Invasão.

É importante lembrar que a partir dessa invasão, A OCUPAÇÃO DO TERRITÓRIO:


os franceses fundaram uma colônia, a chamada A ALDEIA, A VILA e a cidade
França Antártica, na Baía de Guanabara, sob o do-
mínio do Vice-Almirante da Bretanha Villegaignon. A partir da fundação da Aldeia de São Lourenço
Os franceses se instalaram na região e, somente dos Índios, deu-se o início da ocupação dessas
em 1560, Mem de Sá, nomeado dois anos antes terras, nas proximidades da Baía de Guanabara e
para a missão de expulsão, chegou ao local. Mem no topo de um morro, para facilitar a observação
de Sá arrasou o forte instalado na Ilha de Ville- de eventuais invasões inimigas. O espaço ocupado
gaignon, mas como não dispunha de gente para pelos índios desempenhava, durante o final do
povoar a terra, abandonou-a. Passado o perigo, século XVI e início do século XVII, uma função
os franceses voltaram a ocupar a região, agora de guardião do território (CAMPOS, 2004, p.137).
com seus aliados tamoios.
Segundo Azevedo (2014), o aldeamento se instalou
No final do ano de 1564, o governo português re- sob as normas do projeto colonizador português
solveu intervir novamente, agora sob o comando de orientação jesuítica. Apesar de extensa, a ses-
do Capitão-Mor Estácio de Sá, sobrinho de Mem maria era composta por apenas um aldeamento,
de Sá. Dessa vez, tiveram o auxílio dos índios tu- e seu núcleo se localizou junto à enseada denomi-
piminós (ou temimimós1), aliados dos portugueses nada de São Lourenço, e no morro foi edificada
e comandados por seu tuxaua Araribóia (Cobra uma pequena igreja2 dedicada ao santo. A autora
Feroz, em português), já catequisado e batizado destaca que havia um interesse especial dos je-
com o nome de seu padrinho, Martim Afonso de suítas na expansão dessas terras, já que, além
Sousa. Após anos de árduas batalhas e recor- da catequização, tinham como alvo um maior
rentes pedidos de reforços, na manhã de 20 de contingente de mão de obra nos cultivos.
janeiro de 1567, dia de São Sebastião, foi feito o
último ataque aos inimigos. Araribóia e Estácio O aldeamento não durou muito tempo. Suas terras
de Sá avançaram por terra contra os entrinchei- foram sendo fracionadas por aforamentos ou por
ramentos indígenas, enquanto Mem de Sá atacou invasões, intermediadas pelos jesuítas. Após a
com navios (WEHRS, 1984). morte de Araribóia, em 1587, o núcleo de povoa-
mento passou por um franco processo de declínio
Após o término do conflito, Araribóia e sua tribo por vários motivos, dentre eles, o isolamento em
não retornaram nem para onde estavam fixados, relação a cidade do Rio de Janeiro. Apesar das
no Espírito Santo, nem à sua antiga morada, na incipientes propriedades agrícolas, podendo-se
Ilha de Paranapuã (atual Ilha do Governador), onde destacar São Domingos e Praia Grande como
nascera por volta de 1523. Como recompensa núcleos de maior densidade demográfica, a ocu-
pelos serviços prestados à Coroa portuguesa e, pação do território era dificultada pelos terrenos
principalmente, para garantir o domínio lusitano pantanosos e pelos mangues, além do terreno
nas terras do Rio de Janeiro, Araribóia e sua tribo acidentado. Wehrs (1984) destaca que:
receberam terras na Banda d’Além (no outro lado
da Baía de Guanabara). Contudo, a posse solene
das terras ocorreu anos mais tarde, em 22 de 2. A Igreja de São Lourenço dos Índios, marco de fundação
do aldeamento indígena, foi substituída por outra de pedra
e cal em 1627 e, em 1729, a capela foi reconstruída com a
1. Os índios Temimimós eram antigos inimigos dos Tamoios, arquitetura que mantém até hoje, conservando os traços do
tendo sido travadas várias batalhas por território. Para estilo jesuíta. A torre do sino é de 1769. A igreja foi tombada
saber mais sobre esse assunto, consultar: Wehrs (1984), pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Cultural (IPHAN) em
entre outros. 1948, e pela Prefeitura, em 1992 (AZEVEDO, 2014).
EIXO TEMÁTICO 2 O progresso que vinha do outro lado da Baía
de Guanabara localizou-se na parte mais
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS plana, mais fácil de ser alcançada por mar,
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES e sem a necessidade de atravessar os ter-
renos pantanosos junto a Enseada de São
Lourenço. Assim surgiram os núcleos de
São Domingos, Praia Grande, São João de
Icaraí, São Sebastião de Itaipu e São Gon-
çalo, todos acessíveis por via marítima, e
que lentamente foram se desenvolvendo
(WEHRS, 1984, p.36).

A expulsão dos jesuítas, em 1759, já no período


pombalino, acabou por “[...] agravar a situação de
espoliação de terras que estava sendo verificada
na aldeia”, conforme aponta Azevedo (1997, p.23).
A partir daí a população indígena vai decaindo
até que, em 1849, restavam apenas 92 índios. Por
deliberação do governo provincial, o aldeamento
foi extinto em 26 de janeiro de 1866.

Segundo Azevedo (1997), ao longo do século XVII


e XVIII, algumas propriedades agrícolas prospe-
ravam, com sua produção sendo escoada por
pequenos portos. Nessas fazendas, era comum
erguer-se capelas e até pequenas igrejas em lou-
vor ao seu santo ou em troca de missas. Como
assinala a seguir, essas construções podem sig-
nificar a origem de pequenos povoados:

Essas diferentes modalidades de apro-


priação de terra entre o poder religioso e
civil foram dando forma a povoados que
de acordo com sua influência eram eleva-
dos à categoria de freguesia, isto é, sede
paroquial. Nelas, a assistência religiosa
era associada ao registro de nascimento,
casamento, óbito, com todas as suas res-
ponsabilidades jurídicas e sociais, possibi-
litando a formalidade civil, suas garantias e
implicações (AZEVEDO, 1997, p.24).

A partir dessa ideia que atribui a presença de cons-


truções religiosas ao processo de ocupação, temos
que, em contraposição, estavam as construções
militares, como as fortalezas erguidas para defesa
do território. Se, ao contrário das capelas, não de-
ram origem aos povoados, estas são responsáveis
pela manutenção da face costeira, com caracte-
rísticas ambientais em muito preservadas. Nesse
16º SHCU sentido, podemos apontar que as construções
30 anos . Atualização Crítica
militares e religiosas “[...] constituem a principal
1298 herança colonial de Niterói” (AZEVEDO, 1997, p.29).
Segundo Campos (2004, p.137), “[...] a paisagem da rialmente, pelas povoações de São Domingos e
região das Bandas d’Além sofreu poucas modifica- Praia Grande e quatro freguesias vizinhas – São
ções até o início do século XIX”. As terras, até então, João Batista de Carahy, São Sebastião de Itaipu,
eram ocupadas predominantemente pelas proprie- São Lourenço dos Índios e São Gonçalo, desmem-
dades agrícolas para subsistência dos habitantes, bradas do termo da cidade do Rio de Janeiro. A
passando pelos períodos de monocultura de cana- localização escolhida para a sede da nova vila foi
-de-açúcar e, posteriormente, de café. Essa confi- a Praia Grande em virtude da largura do território
guração só começa a ser modificada com a chega- plano e da concentração de povoação, além do por-
da da Corte portuguesa na cidade do Rio de Janeiro, to de comunicação com a Corte. (AZEVEDO, 1997).
em 1808, aumentando a demanda por alimentos,
já que a população cresceu repentinamente. Em 1819, tomou posse o juiz de fora José Clemente
Pereira que teve papel central na implantação do
A partir desse momento, intensificaram-se as
Plano de Edificação da Vila Real da Praia Grande,
mudanças espaciais na Praia Grande. Em 1816,
de autoria do pintor francês Arnaud Julien Pallière
após a visita de Dom João VI, o crescimento po-
(Figura 1). O Plano previa normas urbanísticas
pulacional foi ainda mais intenso, em virtude da
rígidas, com largura das ruas definidas, normas
valorização da moradia na Corte e da proximidade
de edificação, gabaritos, alinhamentos, muros,
da região com a cidade do Rio de Janeiro. Esse
entre outros. Além disso, a transformação da
aumento da população, que chegou à 13 mil pes-
soas, foi usado como argumento para o pedido paisagem colonial também previu elementos sim-
de elevação da freguesia à categoria de vila, um bólicos como um passeio público, denominado
ano mais tarde, em 1817. Largo da Memória. Este passeio foi desenhado
de acordo com o paisagismo europeu da época,
A nova vila foi denominada pelo monarca de Vila em forma retangular, cortado por alamedas que
Real da Praia Grande, sendo constituída, territo- se entrecruzavam (AZEVEDO, 1997, p.31).

Figura 1: Plano de Edificação da Vila Real da Praia Grande, 1819. Fonte: Sociedade de Geografia de Lisboa.
EIXO TEMÁTICO 2 Segundo Marx (1991, p. 52), o crescimento popula-
cional, econômico e da área edificada das fregue-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS sias no Brasil-colônia, fazia crescer a aspiração a
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES outra categoria institucional, em meio à divisão
territorial vigente pelos poderes constituídos.
A autonomia política e administrativa estava no
cerne da passagem da categoria de freguesia à
vila. Esse processo de transição, com a criação
da Vila Real da Praia Grande, foi bem capturado
por Campos (2004):

Contudo, deve-se ressaltar que a elevação de


uma freguesia à categoria de vila representa-
va muito mais que um desenvolvimento hie-
rárquico oriundo de seu crescimento popu-
lacional. Significava uma autonomia política
e administrativa, com território bem definido
e autoridade para gerenciar seus problemas
internos, através da Câmara que nascia jun-
tamente com a vila (CAMPOS, 2004, p.139).

Assim, como podemos observar, foi a partir das


inúmeras freguesias existentes ao longo do litoral
da Baia de Guanabara, em seu lado oriental, que
deu origem à criação da Vila e, posteriormente, no
século XIX, colaborou para formação dos indícios
da ocupação urbana na cidade de Niterói, através
de uma ocupação mais densa na orla da praia,
tanto na Praia Grande quanto em São Domingos
(PMN, 1991; AZEVEDO, 1997). A Figura 2 mostra a
expressão do processo de ocupação nas primeiras
décadas do século XIX, com a identificação do
nome de cada província.

Em 1840, foi elaborado (e aprovado no ano seguin-


te) um novo plano urbanístico para a cidade, agora
elevada a capital provincial3 pelo ato adicional de
1835. O Plano Geral de Arruamento para a Cidade
Nova (Icaraí e Ingá) foi solicitado pelo Presidente
da Província ao engenheiro militar francês Pedro
Taulois. Além de apresentar um novo arruamento
para Icaraí, com urbanização em tabuleiro de
xadrez, o plano mostrou a capacidade de uma
intervenção planejada sobre o espaço, origina-
da por decisão governamental. A configuração
espacial da capital provincial só seria alterada
com magnitude semelhante cem anos depois, já
no período republicano, quando da realização dos
aterros (São Lourenço e Praia Grande), criando
16º SHCU
artificialmente novos terrenos para uso público.
30 anos . Atualização Crítica

1300 3. Recebendo o nome de “Nictheroy”.


Figura 2: Primeira Carta da Praia Grande (1833). Cópia do exemplar existente no Museu Naval, RJ. Litografia original no
Arquivo Militar. Fonte: WEHRS, 1984, p.132-133.

É interessante notar que o Período Colonial se mentos em obras públicas e aberturas de ruas,
caracterizou pela existência das construções com o objetivo de “[...] transformar a sede da nova
religiosas e militares e, o século XIX foi marcado vila num espaço urbanizado, moderno, digno de
pela presença das construções civis de maiores seu status de vila e do título de imperial” (CAMPOS,
proporções. O mercado imobiliário do município 2004, p.142). Até então, a cidade convivia com
surge nessa época, a partir da venda e do aluguel problemas no abastecimento de água, problemas
de engenhos, fábricas de tabaco, olarias e cerâ- de transporte e acesso (ruas e estradas públicas),
micas. Além disso, é importante salientar que a dificuldades de abastecimento (alimentos), pro-
vida urbana que estava nascendo era fortemente blemas de saúde pública (epidemias de cólera e
influenciada pela proximidade com o Rio de Ja- febre amarela) etc. Assim, os projetos de urba-
neiro, não só pelo modo de vida ou consumo, mas nização empreendidos pela Câmara Municipal,
especialmente pelos reflexos políticos entre a ca- tinham por objetivo dar uma aparência moderna
pital do Império e a cidade (AZEVEDO, 1997, p.36). à cidade, atacando esses problemas.

Nesse sentido, o século XIX vai ser marcado pelas Todavia, esses “objetivos oficiais” acabaram por
intervenções no espaço da cidade, com investi- escamotear o propósito de setores da elite local
EIXO TEMÁTICO 2 que estavam no poder, que era de reafirmar sua
posição e importância política diante do poder
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS central e do espaço da Corte. Coube à polícia
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES exercer um papel de destaque nessa estratégia,
impondo normas de condutas aos moradores
através de códigos de sociabilidade para os “no-
vos espaços urbanos”. Um exemplo desse tipo de
procedimento exigido pelas autoridades locais é
descrito a seguir:

Todo e qualquer habitante desta vila e seu


Termo é obrigado a mandar fazer diaria-
mente o despejo das imundícies e águas
impuras dentro do mar, nos lugares próxi-
mos a ele e nos outros lugares ou valas que
mais remotos estiverem da povoação, em
cuja distância não incomode os moradores
das respectivas povoações, às 11 horas nas
noites de verão e às 10 nas de inverno. (...) E o
mesmo se deve entender a respeito do lixo,
à exceção daquele que não sendo impuro
se pode aplicar para entulhar as cavidades
que houverem na praia4.

O teor excludente, que marginalizava a população


mais pobre, não apareceu somente nas normas de
conduta, mas também sob a forma de leis, ocul-
tado pelo argumento da prevenção e/ou combate
às epidemias, tão em voga na época. No ano de
1890, propostas como a proibição da conversão
de prédios em cortiços e a proibição de constru-
ção em becos e estalagens já sinalizavam para
os problemas habitacionais e de saneamento. A
partir daí o debate sobre os problemas da habi-
tação e suas alternativas, como a construção de
“habitações para proletários”, entra efetivamente
na pauta da Câmara municipal.

Assim, a passagem de uma estrutura semi-rural,


até meados do século XIX, para o sistema urbano
que se anunciava, ocorreu de maneira radical,
alterando não só o espaço físico da cidade, mas
o modo de vida da população. As contradições
desse processo não tardaram a aparecer. A estru-
tura espacial estratificada em termos de classes
sociais foi, pouco a pouco, se consolidando, e os
conflitos gerados por esse movimento irão se
refletir no espaço urbano.
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
4. Trecho contido em: Posturas Policiais da Câmara da Vila
1302 Real da Praia Grande (1833) apud Campos (2004, p.145).
O século XX e as principais intervenções tante campo disciplinar para tratar dos proble-
urbanísticas mas resultantes da urbanização rápida e caótica
— a ciência da organização espacial da cidade.
Baseado no planejamento urbano moderno de
Como vimos, no final do século XIX, a cidade de
Hausmann5, a cidade do Rio de Janeiro passou
Niterói começava a transformar a sua forma ur-
por um período que revolucionou sua forma urba-
bana a partir das intervenções urbanísticas ci-
na, sob o comando do prefeito Pereira Passos. A
tadas e a apresentar elementos característicos
reforma urbana, conhecida popularmente como
dos centros urbanos. Até então, a ocupação de
“bota-abaixo”, surgiu como uma resposta ao cres-
Niterói era rarefeita, situando-se de maneira mais
cimento rápido e desordenado, intensificado pela
densa na Praia Grande e em São Domingos. Os
imigração europeia e pela transição do trabalho
planos urbanísticos, que procuraram substituir
cativo para o trabalho livre.
os caminhos tortuosos por praças e ruas retilí-
neas de idêntica largura, com o desenho de uma No outro lado da Baía de Guanabara, em Niterói,
malha xadrez, estavam em consonância com as a vida urbana se intensificava com a entrada de
aspirações da sociedade rumo a instâncias ad- outros agentes socioeconômicos. Estavam sendo
ministrativas superiores. Além de significarem criados bancos, veículos de imprensa locais, com-
grandes avanços no que diz respeito à capacidade panhias de seguros, assim como a incipiente in-
governamental de intervenção, as alterações no dústria de tecidos. A necessidade da adaptação do
espaço apresentavam também os signos da nova espaço urbano às transformações foi concretizada
ordem urbana. com uma fase de obras de urbanização e constru-
ção de prédios públicos, já no início do século XX.
O final do século XIX trouxe grandes mudanças no
Anos antes, entre 1893 e 1894, a cidade havia sido
processo de estruturação das cidades brasileiras,
devastada pela Revolta da Armada, resultando na
especialmente no estado do RJ. Tanto no que diz
transferência da capital para Petrópolis, no mes-
respeito aos processos sociais que dão forma,
mo ano de 1894. A capital voltaria para Niterói em
função e significação ao espaço, quanto na apa-
19036, reforçando a necessidade de readaptação
rência e na organização interna da cidade (ABREU,
da imagem da capital republicana (AZVEDO, 1997).
1987, p.30-35). A estrutura da sociedade, fundada
a partir de relações de produção arcaicas, de base
escravista, passariam a conviver com elementos 5. Georges-Eugène Hausmann (1809-1891) foi um importante
novos, típicos do capitalismo urbano-industrial. arquiteto francês. Durante o século XIX, foi responsável pela
Lembrando Francisco de Oliveira, a formação reforma urbana de Paris, determinada por Napoleão III, e
social brasileira fundava-se “[...] introduzindo tornou-se um dos grandes nomes da história do urbanismo
relações novas no arcaico e reproduzindo relações mundial. A intervenção radical que realizou na cidade, nos
moldes do funcionalismo modernista, destruiu a cidade
arcaicas no novo” (OLIVEIRA, 2003, p.60).
antiga, começando pelo alargamento das ruas (bulevares
monumentais sobre planos retilíneos), seguido pela demo-
O cenário político-econômico nacional era agi-
lição e reconstrução de diversos edifícios. Ficou conhecido
tado: as relações de trabalho mudaram com a
como “artista da destruição”.
abolição da escravatura, fazendo emergir a ques-
tão habitacional; a revolução industrial chegava, 6. A possibilidade de mudança da capital em caráter provisó-
introduzindo novas tecnologias nos processos rio estava prevista na Constituição aprovada em 1892, caso
surgisse algum acontecimento grave. Com os bombardeios
de produção; o declínio da produção cafeeira
iniciados em setembro de 1893, Niterói virou uma praça de
no interior do estado do Rio de Janeiro exigia
guerra, com comunicações cortadas e comércio fechado.
uma diversificação da economia de base agrária;
A Assembleia Legislativa ficou fechada até dezembro do
a instalação da República demandava um novo mesmo ano, quando voltou a funcionar, na cidade de Pe-
arcabouço legal e administrativo. Finalmente, trópolis. Niterói perdeu também, nesta época, a sede do
vivia-se um intenso período de modernização bispado, transferida para Campos dos Goytacazes. Após o
urbana, no qual havia necessidade de adequar a período turbulento, cresceu o movimento em prol da volta
forma urbana às necessidades de concentração da capital para Niterói, contando com o apoio de políticos
e acumulação de capitais. como Quintino Bocaiúva. E, em 20 de junho de 1903, Niterói
voltou à condição de capital e centro político do estado, de
Na Europa, o urbanismo se firmava como impor- acordo com o decreto 801 de 6 de junho (WEHRS, 1984, p. 90).
EIXO TEMÁTICO 2 O esforço de consolidação da urbanização na
cidade ficou conhecido como “Renascença Flu-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS minense”, iniciando-se a partir do curto governo
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES de Paulo Alves, de janeiro a novembro de 1904.
A ideia era adaptar a cidade aos novos padrões
de desenvolvimento capitalista através de inter-
venções urbanísticas, assim como acontecia do
outro lado da Baía, na cidade do Rio de Janeiro.
O processo de modernização niteroiense se in-
tensificaria durante o governo do prefeito Pereira
Ferraz (1906-1910), com melhorias no saneamento,
calçamentos, aberturas de ruas etc. (SOARES,
1992).

Nesse contexto, vão surgir os edifícios no centro


que simbolizavam o status de capital, tais como:
o Palácio Araribóia (1904), Prefeitura Municipal
(1904), a Câmara Municipal (1908), o prédio dos
Correios e a Estação das Barcas, em 1908. Houve
também remodelação e criação de largos, par-
ques e praças, como: o Largo de São Domingos
(1905); o Campo de São Bento, em Icaraí (1910); a
Praça Enéas de Castro, no Barreto (1910); a Praça
Araribóia e o Jardim São João, no Centro (1911);
e a Praça General Gomes Carneiro, conhecida
com Rink, no Centro da cidade (antigo Largo da
Memória), em 1913.

À essa altura, a ocupação urbana de Niterói


já estava se configurando com a separação
entre zona norte e zona sul, tendo o Centro
multifuncional como concentrador de serviços
e atividades. Na zona sul, Icaraí se destacava pelo
traçado planejado e regular, sendo ocupado, pre-
dominantemente de forma sazonal, como local
de veraneio. Já a zona norte, que se expandia em
direção ao Barreto e São Gonçalo, destacava-se
pelo uso industrial e pela presença das primeiras
fábricas (fósforos e tecidos), assim como pelo
surgimento das primeiras vilas operárias. Assim,
enquanto a elite da capital se concentrava nos
bairros do Fonseca, Centro, Icaraí e Ingá, a zona
norte (Barreto e São Gonçalo) já se constituía como
principal local de moradia proletária e da popu-
lação migrante do interior do estado (AZEVEDO,
1997; SOARES, 1992).

O início de século também foi marcado pela ins-


tabilidade política, que ficava visível com a dispu-
16º SHCU ta de poder entre as oligarquias do estado, com
30 anos . Atualização Crítica
predominância do grupo político liderado por Nilo
1304 Peçanha, conhecidos como “nilistas”. Nilo Peça-
nha, que assume seu primeiro mandato à frente
do Estado do Rio de Janeiro em 1903, teve seu
governo marcado pelo corte de despesas e pela
criação de serviços públicos essenciais. Além
disso, no plano administrativo, criou as quatro
primeiras prefeituras do estado e os cargos de
prefeito para Niterói, São Gonçalo, Campos dos
Goytacazes e Petrópolis, com base na Reforma
Constitucional de 1903 (SOARES, 1992, p. 17-18).

Como já mencionado, para a capital fluminense,


foi nomeado Paulo Alves, engenheiro precursor
das reformas urbanas na cidade, que governou
por menos de um ano com grande oposição na
cidade. Durante seu governo, aumentou impostos
e pregou o fim dos cortiços, apesar de incentivar
a construção das primeiras vilas operárias, assim
como o turismo e a preservação ambiental.

A derrota de Nilo Peçanha para Artur Bernardes


(1922) põe fim ao predomínio dos nilistas no ce-
nário político, dando lugar ao grupo liderado por
Feliciano Sodré. Segundo Vasconcellos (1998),
este foi considerado o governo mais produtivo da
Primeira República. Em parceria com o prefeito
Villanova Machado (1924-1926), foi realizado um Figura 3: Perspectiva do arruamento projetado para o
grande volume de obras de urbanização e sa- porto (Ilustração da Comissão Construtora do Porto; Fonte:
neamento, com intervenções de grande escala. Livro da CCP, 1927) comparado à Imagem de satélite (Google
Realizou os projetos de aterro do Mangue de São Earth) da área atualmente (Fonte: Google Earth, 2019).
Lourenço e a derrubada do Morro da Conceição.
Além disso, ainda urbanizou a Praça da República
e estendeu os trilhos da estrada de ferro até a Outras obras importantes nesta mesma época
Praça Renascença. foram o alargamento da Rua da Conceição, em
A construção do Porto de Niterói (1911), foi idealiza- 1917 na área central, a inauguração da Alameda
do entre a Ponta D´Areia e o Porto do Méier (Ense- São Boaventura, em 1909 na zona norte, e o alar-
ada de São Lourenço). Seguindo a linha higienista gamento da Estrada Leopoldo Fróes, em 1912, que
em voga na época, foi aterrado o manguezal da conectava os bairros de Icaraí à São Francisco.
enseada de São Lourenço, a partir de desmontes Merecem ser destacados também a construção
de morros (Dr. Celestino e do Bispo) e os casebres,
da Assembleia Legislativa, Palácio da Justiça,
considerados “ferida cancerosa da cidade”, fo-
ram removidos O aterrado de 357.000 m² liberou sedes do poder legislativo e judiciário (a sede do
novas áreas para o uso urbano, dinamizando o poder executivo já era no Palácio do Ingá desde
traçado da cidade e a ligação interurbana através 1904). Além dos dois edifícios, também foi cons-
de ruas semicirculares e radiais (em leque), que truída a Biblioteca Estadual. O conjunto eclético
desembocavam numa grande avenida paralela de edifícios compunham a Praça da República
ao cais (av. Feliciano Sodré) — principal artéria do
(1927), constituindo o espaço de poder e símbolo
sistema — e convergiam para uma praça central, a
da identidade niteroiense (AZEVEDO, 1997, p.49).
Renascença (Figura 3) (AZEVEDO, 1997, p.45-46).
Nos anos 1930, o ideário modernista chega de vez
à cidade de Niterói através da proposta de remo-
delação da cidade contida na tese de doutorado
EIXO TEMÁTICO 2 do arquiteto Atílio Correa Lima7, defendida em
Paris, contemporaneamente ao Plano Agache no
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS Rio de Janeiro. Segundo Azevedo (1997, p.50), o
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES arquiteto estava “[...] baseado na convicção de que
Niterói é uma extensão do Rio de Janeiro”. Essas
ideias influenciaram fortemente as seguintes
intervenções contidas no Plano de Urbanização e
Remodelação da cidade (gestão de Brandão Júnior
1937-1945): abertura da Avenida Amaral Peixoto,
Aterro da Praia Grande (Decreto nº 2.441/1940) e
a parcelamento urbano da Região Oceânica.

A abertura da Avenida Ernani do Amaral Peixoto


(Figura 4), em 1942, reestruturou o espaço urbano
do centro da cidade. Foram demolidos cerca de
230 prédios para dar lugar a uma avenida de 1
quilômetro de extensão e 20 metros de largura.
O padrão de ocupação proposto foi o de grandes
edifícios (alto gabarito) com galerias de lojas no
térreo. A reportagem do Jornal “O Fluminense”
antecipava os impactos:

As obras que vão ser iniciadas farão da ca-


pital fluminense uma das mais modernas
cidades do Brasil e da América, modificando
assim inteiramente seu aspecto vetusto que
mais avilta em contraste com a capital ca-
rioca (JORNAL O FLUMINENSE, em 6 de fe-
vereiro de 1942 apud KRYKHTINE, 2011, p.15).

7. Merece ser destacado que o projeto-tese “Avant Projet


d’Aménagement et d’Extension de la Ville de Niterói” (1930),
defendido no Institut d’Urbanisme de Paris (IUP) já mencio-
nava o problema das favelas no município. O autor previa
a construção de uma cidade operária, com habitações
16º SHCU
econômicas, individuais e de responsabilidade estatal,
30 anos . Atualização Crítica
no Barreto. Completariam a utopia do arquiteto a cidade
1306 universitária no Cubango e a cidade-jardim em Piratininga.
Figura 4: Estudo comparativo da tipologia dominante no Centro antes e depois da Avenida Amaral Peixoto, à esquerda,
e foto da Avenida Ernani do Amaral Peixoto, sem Data. Fonte: KRYKHTINE, 2011, p. 9.

É interessante notar que a produção do espaço


urbano de Niterói, mais uma vez, ocorre a reboque
das transformações ocorridas na cidade vizinha do
Rio de Janeiro. Nesse período, Niterói ocupou o “ [...]
segundo lugar nacional em volume de obras ur-
banas, perdendo apenas para o Rio de Janeiro”
(BACKHEUSER, 1994 apud SALANDÍA, 2006). A
constante comparação entre as duas cidades sur-
gia quase como uma obsessão dos governantes
de Niterói e, como se verá a seguir, tratam-se de
investimentos urbanos em que o Estado manti-
nha estreitas relações com a iniciativa privada,
representada pela construção civil.
Figura 5: Foto aérea do Aterro da Praia Grande, durante o
A megalomania dos governantes ficaria ainda início da década de 1970. Fonte: Centro De Memória Flu-
mais evidente com a consolidação do Aterrado minense – Coleção Carlos Mônaco – Série Júlio Figueiredo
Praia Grande (Figura 5), sancionado no decreto-lei
federal nº 2.441 de 23 de julho de 1940, que autori- Somente no ano de 1970 a obra do Aterro da Praia
zou a Prefeitura de Niterói a executar o Plano de Grande foi realizada, ainda que parcialmente, im-
Urbanização e Remodelação da Cidade. O projeto plicando em grandes modificações no litoral do
permitiu o aterro da faixa litorânea central entre bairro de São Domingos. O antigo cais e as pontes
a Ponta da Armação e a Praia das Flechas, com de atração foram demolidos, já que não eram mais
aproximadamente 1.000.000m² de área. O parce- utilizados. Em 1977, a parte sul do Aterro da Praia
lamento recebeu o nome de Jardim Fluminense, Grande foi desapropriada pelo governo federal
com mais de mil lotes, só sendo aprovado pela através do Decreto 80.693 de 09/11/1977 para a
Prefeitura em 29 de agosto de 1967, compreen- construção do campus da Universidade Federal
dendo as áreas denominadas Enseada da Praia Fluminense.
Grande, Enseada de São Domingos e Morro do
Gragoatá. Atualmente, é uma região caracterizada Em 1943, foi iniciado o plano de urbanização da
no PUR das Praias da Baía como Área de Especial Região Litorânea de Itaipu e Piratininga, sendo
Interesse Urbanístico (AEIS) (BARROS, 2007, p.89). aprovado os loteamentos “Cidade Balneária de
Itaipu”, em 1945, “Maravista”, em 1949, “Marazul”,
em 1951, e o “Bairro de Piratininga”, em 1952. É
interessante notar que esses loteamentos fo-
mentaram a expansão urbana da cidade rumo
à área periférica, esgarçando o tecido urbano.
EIXO TEMÁTICO 2 Atualmente, com a instalação do túnel Charitas-
-Cafubá, a Região Oceânica é um importante ve-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS tor de crescimento da cidade, com significativa
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES valorização fundiária.

A partir da década de 1950, intensificou-se o pro-


cesso de ocupação urbana. A área plana da cidade
entre a Baía de Guanabara e os morros do maciço
central já estava densamente ocupada. Os bairros
do Barreto e Engenhoca destacavam-se pela ati-
vidade industrial, e os bairros da orla (Icaraí, Boa
viagem e São Francisco) pelo uso residencial das
classes média e alta. Destacam-se também neste
período importantes obras viárias como a Avenida
do Contorno, dinamizando o tráfego entre Niterói e
São Gonçalo, e a abertura do túnel Roberto Silveira
conectando os bairros de Icaraí e São Francisco.

Nos anos 1960, foram loteados os últimos bairros


da região Praias da Baía: Vital Brazil e São Fran-
cisco. Com a inauguração da Estrada Francisco da
Cruz Nunes e da abertura da Estrada da Cachoeira,
consolida-se a ocupação da Região Oceânica.
Até então, a região tinha uma esparsa ocupação,
restrita à orla, com predominância de residências
de veraneio. Segundo Figueiredo (2014, p.33), “[...]
o impulso de ocupação urbana será dado pelo
modelo de ocupação em condomínio horizontal
fechado (enclaves fortificados) ”.

De poucos anos para cá toda a região de


Piratininga e Itaipu sofreu uma transfor-
mação acentuada; com os loteamentos de
grandes áreas, surgiram bairros inteiros da
noite para o dia, estimulados pela desen-
freada especulação imobiliários. Melhora-
ram estradas antigas, outras novas foram
construídas (...) Grandes áreas foram assim
retalhadas e vendidas para um público des-
lumbrado pelas atrações paisagísticas do
lugar, embora sem contar com o abasteci-
mento regular de água e serviço de esgotos
(WHERS, 1984, p.207).

A década de 1970 representou importantes trans-


formações na estrutura urbana da cidade de Ni-
terói. Em razão da Lei de Fusão (1975), o Estado
do Rio de Janeiro e o antigo Estado da Guanabara
foram unificados e, como consequência, a capital
foi transferida para a cidade do Rio de Janeiro.
16º SHCU Outro fato de grande relevância foi a inauguração
30 anos . Atualização Crítica
da Ponte Presidente Costa e Silva (Lei 5.512 de
1308 17/10/1968), com extensão total de 13,29 km, dos
quais 8,83 km são sobre a água, ligando Niterói cípios adjacentes e forte expansão da produção
ao Rio de Janeiro (Figura 6). Com isto, o proces- imobiliária em Niterói. Como consequência do
so de urbanização dos municípios situados no surto imobiliário, foi elaborado o primeiro Código
Leste Fluminense foi exacerbado, gerando um de Obras (Deliberação nº 2.705/70) do município
aumento na migração da população dos muni- (BARROS, 2007).

Figura 6: Localização da Ponte Rio-Niterói, à esquerda (Fonte: PMN/UDU) e construção da Ponte Rio-Niterói, durante a
década de 1970 (Fonte: Agência O Globo/Eurico Dantas)

Esses dois fatos têm grande importância para argumentam que, desde a fundação da cidade,
o entendimento da construção do espaço urba- passando pela sua herança indígena e colonial,
no e dos sistemas que compõem a sociedade. A a cidade sempre esteve associada ao município
construção da Ponte Rio-Niterói significou um vizinho do Rio de Janeiro, como uma espécie de
intenso surto demográfico na cidade de Niterói. complementaridade. Assim, a construção da iden-
De acordo com dados do Censo (IBGE), em 1960, tidade niteroiense estaria ligada à imagem do RJ
a população residente era de 243.168 habitan- até meados dos anos 1990.
tes, em 1970 já haviam 324.246 habitantes e, em
1980, 397.123 habitantes. Segundo Aono (2012,
p.82-83), a rápida expansão demográfica deu-
-se em função da busca por terras baratas para CONSIDERAÇÕES FINAIS
moradia, sobretudo da classe média. Através da
vocação habitacional, a cidade se transformava Como vimos, desde 1834, com a transformação da
na “cidade dormitório”, o que representou um forte Província do Rio de Janeiro em Estado, e a eleva-
desenvolvimento do mercado imobiliário, intensa
ção do município de Niterói à condição de capital
verticalização nos bairros da zona sul e expansão
da Província do Rio de Janeiro, até 1975, quando
para Região Oceânica.
ocorreu a fusão dos antigos Estados da Guana-
Já a perda da capital teve um significado menos bara e Estado do Rio de Janeiro, o município de
objetivo, mas não menos importante. Segundo Niterói teve sua paisagem e história marcados pela
Oliveira & Mizubuti (2007), a mudança da capital proximidade com o Rio de Janeiro, o que influen-
para o Rio de Janeiro, “esmaeceu paulatinamente ciou fortemente a sua imagem e representação
a importância de Niterói no cenário político e como cidade. Além disso, é possível identificar
econômico do estado, assim como a identida- que os principais vetores de crescimento refletem
de do niteroiense que dominava até então, ins- a divisão espacial do trabalho ao nível da Região
taurando-se, assim, um “vazio” identitário que Metropolitana, ditados pelos interesses do capital
perduraria até meados dos anos 90”. Os autores imobiliário e poderes locais (MIZUBUTI, 1986, p.49).
EIXO TEMÁTICO 2 Conforme aponta Azevedo (1997, p.55), as prin-
cipais caraterísticas que configuram a evolução
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS urbana do município de Niterói são “a reprodução
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES da forma de ocupação do Rio de Janeiro, a loca-
lização do Centro em frente ao Rio de Janeiro e
a segregação espacial por faixas de renda”. Essa
similaridade entre os dois processos de ocupação
foi descrita por Geiger (1961):

Nesse sentido, certos setores da capital


carioca têm traçados semelhantes aos de
Niterói; nesta cidade igualmente, o relevo,
ainda que menos rigoroso, determinou ge-
ralmente as formas de ocupação. Constata-
-se que nas duas cidades, os centros de ati-
vidades se encontram nas proximidades da
estreita entrada da baía. As classes sociais
elevadas, nas duas cidades, instalaram-se
na costa, ao sul, ou nos vales e encostas de
suas respectivas zonas setentrionais. As zo-
nas industriais são paralelas, nas margens
pantanosas do interior da baía, enquanto
que a s classes populares fixaram-se nos
subúrbios da zona norte, onde se encontram
igualmente os estabelecimentos industriais
(GEIGER, 1961 apud AZEVEDO, 1997, p.55).

A autora (Idem) ainda complementa, explicando


que “a forma de apropriação dos novos espaços
se deu de forma anárquica e espontânea, não pre-
cedida de planos globais, caracterizando-se pela
fragmentação e medidas pontuais” (AZEVEDO,
1997, p.56). Nesse sentido, podemos notar que o
processo de estruturação do espaço intra-urbano
ocorreu de forma descontínua e nem sempre foi
acompanhado de estudos que levassem em conta
a complexidade da cidade, enfatizando somente
a condição de capital republicana.

É interessante notar como a adoção de políticas


urbanas de forma fragmentada e pontual permanece
até os dias atuais como uma marca das gestões
municipais da cidade, como apontam estudos
recentes8. O que se observa, em muitos casos,
é que a adoção do planejamento pontual passou
a nortear as estratégias dos agentes públicos
que comandam a produção do espaço urbano,
desrespeitando as escalas de planejamento e
subordinando o interesse público às exigências
16º SHCU
do capital privado, em especial, o imobiliário.
30 anos . Atualização Crítica

1310 8. Pereira (2018; 2019) e Gorham (2018), dentre outros.


Portanto, a partir da análise crítica do processo REFERÊNCIAS
histórico de ocupação do território, podemos con-
cluir que: (i) a passagem da estrutura rural, predo- [Livros]
minante até meados do século XIX, para o sistema
urbano aconteceu de maneira rápida, motivada ABREU, M. A Evolução Urbana do Rio de Janeiro.
pela relevância que a cidade assumia enquanto Rio de Janeiro, IPLANRio/Zahar, 1988.
capital republicana; (ii) durante esse processo,
Niterói se manteve fortemente influenciada pelo MARX, M. Cidade no Brasil. Terra de Quem? São
município do Rio de Janeiro, seja na paisagem Paulo: Nobel/ EDUSP. 1991.
urbana ou nos valores culturais e urbanidades; (iii)
o processo de modernização urbana teve como OLIVEIRA, F. A economia brasileira: crítica à razão
objetivo adaptar o espaço e a forma urbana às dualista. São Paulo: Boitempo Ediorial, 2003 [1981].
necessidades de concentração e acumulação de
PREFEITURA MUNICIPAL DE NITERÓI. Niterói do
capitais; (iv) os vetores do crescimento urbano
Século XXI: 1º Módulo do Plano Diretor. Consolida-
em Niterói se definiram obedecendo a estrati-
ficação da renda, na qual as frações de rendas ção das Informações Disponíveis. Secretaria Muni-
mais elevadas se dirigiram para certas porções cipal de Urbanismo e Meio Ambiente. Niterói, 1991.
do território, normalmente mediadas pelo mer-
SOARES, E. A prefeitura e os prefeitos de Niterói.
cado imobiliário, enquanto os segmentos sociais
Niterói: Êxito,1992.
mais empobrecidos, de forma mais ou menos
concentrada e homogênea, tenderam a ocupar os WEHRS, C. Niterói: Cidade Sorriso – A história de
bairros periféricos, predominantemente na Zona um lugar. Rio de Janeiro. 366p.1984.
Norte. Essa divisão social do espaço foi iniciada
no século XIX e se acentuou ao longo do século
XX; e (v) a manutenção do planejamento urbano
fragmentado e pontual na implementação das [Artigos]
políticas públicas.
KRYKHTINE, C. Avenida Amaral Peixoto: O
Modernismo e o Colonial na abertura de uma via
monumental, 2011.

OLIVEIRA, M.; MIZUBUTI, S. Do Local ao Global:


Jogo Político, Paisagem e Construção de uma
Nova Identidade para a Cidade - Niterói, RJ,
Brasil. 2007.

OLIVEIRA, M. O Retorno à Cidade e Novos Ter-


ritórios de Restrição à Cidadania 2ª Edição. In:
Docentes do Programa de Pós-graduação em
Geografia da UFF. (Org.). Território, Territórios
-Ensaios sobre o Ordenamento Territorial. 2ª
ed. Rio de Janeiro /Niterói: DP&A / PPGEO-UFF,
2006, p. 173-198.

__________. Niterói: o jogo político e sua reper-


cussão na paisagem cultura e representações.
Revista Espaço e Cultura, n. 25, p.69-83 UERJ,
RJ, jan/jun de 2009.

PEREIRA, R. A Cidade De Niterói: Política


Urbana, Valorização Do Solo E Habitação. In:
Anais do XV Seminário de História da Cida-
de e do Urbanismo. Anais...Rio de Janeiro
EIXO TEMÁTICO 2 (RJ) UFRJ, 2018. Disponível em: <https//www.
even3.com.br/anais/xvshcu/82985-A-CIDADE-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS -DE-NITEROI--POLITICA-URBANA-VALORIZA-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES CAO-DO-SOLO-E-HABITACAO>.

SALANDÍA, L. Da intenção à ação: Desafios na


busca por uma distribuição dos ônus e benefí-
cios do processo de urbanização após o estatu-
to da cidade e o plano Diretor. Niterói, 2006.

[Capítulos de livro]

AZEVEDO, M. Niterói e a enseada de São Lou-


renço como local estratégico: a aldeia, o porto
e a ponte. In: Costa, Maria de Lourdes e SILVA,
Maria Laís Pereira (Orgs.) Produção e Gestão
do Espaço. Niterói: FAPERJ; Casa 8, 2014. pp.
35-54.

__________. Niterói Urbano - a construção


do espaço da cidade. In: MARTINS, Ismênia;
KNAUSS, Paulo (Orgs.). Cidade Múltipla: temas
da história de Niterói. Niterói, RJ: Niterói Li-
vros, 1997. pp. 19-72.

[Teses acadêmicas]

AONO, R. Quo Vadis Niterói: Entre o discurso e a


prática da política socioambiental. Dissertação
(Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em
Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal
Fluminense. Niterói, 2012.

BARROS, P. Política Habitacional em Niterói:


avaliação das normas e ações públicas nos últimos
20 anos. Dissertação (mestrado) – Programa de
Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Uni-
versidade Federal Fluminense, Niterói, 2007.

CAMPOS, M. O governo da cidade: elites locais e


urbanização em Niterói (1835-1890). Tese (doutora-
do) – Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2004.

FIGUEIREDO, K. A incorporação do espaço na


lógica de acumulação capitalista e a formação de
16º SHCU novos eixos/áreas de valorização imobiliária em
30 anos . Atualização Crítica
Niterói (RJ). Dissertação (Mestrado em Geografia) –
1312 Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2015.
GORHAM, Cynthia. Planejamento e participação:
estudo de caso PUR Pendotiba, Niterói-RJ. Disser-
tação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em
Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal
Fluminense. Niterói, 2018.

MIZUBUTI, S. O movimento associativo de bairro


em Niterói (RJ). Tese (Doutorado na Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas) – Universida-
de de São Paulo, 1986.

PEREIRA, R. A Produção do Espaço e da Moradia


em Niterói-RJ. Dissertação (Mestrado) – Programa
de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da
Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2019.
EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Guaianases é distrito de São Paulo, localizado
no extremo leste com 268.508 habitantes, que
representam 2,4% da população total do muni-
vídeo-pôster cípio. As bibliografias que discutem a formação
do distrito são poucas e não elucidam sobre sua
formação urbana e territorial. O objetivo do tra-
A FERROVIA E A URBANIZAÇÃO balho é discutir a formação do núcleo urbano de
Guaianases e a relação estabelecida com os ca-
DA ZONA LESTE DE SÃO minhos para sua consolidação. A hipótese for-
mulada parte do entendimento que os caminhos
PAULO: A FORMAÇÃO terrestres e ferroviários guiaram a expansão ur-
bana da periferia paulistana, fomentando a for-
DO NÚCLEO URBANO DE mação de diversos núcleos urbanos. Os cami-
nhos terrestres e ferrovia são entendidos como
GUAIANASES objetos técnicos que viabilizaram o povoamento
e ocupação do espaço, conforme identificado
por Langenbuch (1971). O trabalho tomou como
THE RAILWAY AND THE URBANIZATION OF THE EAST
marco temporal as datas de 1875 e 1929, onde
ZONE OF SÃO PAULO: THE URBAN FORMATION OF
a primeira corresponde a abertura da primeira
GUAIANASES
estação ferroviária e a última quando passa a
ser distrito autônomo de São Paulo. Os dados
EL FERROCARRIL Y LA URBANIZACIÓN DE LA ZONA
qualitativos foram coletados a partir da biblio-
ORIENTAL DE SAN PABLO: LA FORMACIÓN URBANA DE
grafia, composta de documentos governamen-
GUAIANASES
tais e trabalhos acadêmicos sobre a região leste
de São Paulo. Foram consultados arquivos pú-
CAMPOS, Cristina blicos como o Arquivo do Estado de São Paulo
para coleta de documentos e cartografias e a
Doutora em Arquitetura e Urbanismo pela FAUUSP;
Professora Adjunta Universidade São Judas Tadeu, Professora
Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, que
Colaboradora Universidade Estadual de Campinas permitiu recolher notícias e informações sobre
crcampos@unicamp.br o distrito. Com a pesquisa espera-se contribuir
com informações sobre a formação do distrito
JESUS, Mayara Pereira de de Guaianases e assim trazer novas luzes para
o entendimento da urbanização da periferia de
Graduanda em Arquitetura e Urbanismo; Universidade São
Judas Tadeu São Paulo.
mayara070199@gmail.com

GUAIANASES URBANIZAÇÃO FERROVIA

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1314
ABSTRACT RESUMEN

Guaianases is a district of São Paulo, located in Guaianases es un distrito de São Paulo, ubicado
the far east with 268,508 inhabitants, which re- en el extremo este con 268,508 habitantes, que
present 2.4% of the total population of the mu- representan el 2.4% de la población total del mu-
nicipality. The bibliographies that discuss the nicipio. Las bibliografías que discuten la forma-
formation of the district are restricted and do ción del distrito son restringidas y no aclaran su
not clarify its urban and territorial formation. The formación urbana y territorial. El objetivo del tra-
objective of the work is to discuss the formation bajo es discutir la formación del núcleo urbano de
of the Guaianases urban nucleus, and the rela- Guaianases y la relación establecida con los ca-
tionship established with the paths for its con- minos para su consolidación. La hipótesis formu-
solidation. The hypothesis formulated is based lada se basa en el entendimiento de que los cami-
on the understanding that land and rail paths nos terrestres y ferroviarios guiaron la expansión
guided the urban expansion of the São Paulo pe- urbana de la periferia de São Paulo, fomentando
riphery, promoting the formation of several urban la formación de varios centros urbanos. Los ca-
centers. The land and railroad paths are unders- minos terrestres y ferroviarios se entienden como
tood as technical objects that made possible the objetos técnicos que permitieron el asentamiento
settlement and occupation of space, as identified y la ocupación del espacio, según lo identificado
by Langenbuch (1971). The work took as a timeline por Langenbuch (1971). El trabajo tomó como cro-
the dates of 1875 and 1929, where the first cor- nología las fechas de 1875 y 1929, donde la prime-
responds to the opening of the first train station ra corresponde a la apertura de la primera esta-
and the last when it becomes an autonomous dis- ción de trenes y la última cuando se convierte en
trict of São Paulo. Qualitative data were collected un distrito autónomo de São Paulo. Se recogieron
from the bibliography, consisting of government datos cualitativos de la bibliografía, que consta
documents and academic papers on the eastern de documentos gubernamentales y documen-
region of São Paulo. Public archives were consul- tos académicos sobre la región oriental de São
ted, such as the Archive of the State of São Pau- Paulo. Se consultaron archivos públicos, como
lo to collect documents and cartographies, and el Archivo del Estado de São Paulo para recopilar
the Digital Library of the National Library, which documentos y cartografía, y la Biblioteca Digital
made it possible to collect news and information de la Biblioteca Nacional, que permitió recopilar
about the district. The research is expected to noticias e información sobre el distrito. Se espera
contribute with information about the formation que la investigación contribuya con información
of the Guaianases district and thus bring new li- sobre la formación del distrito de Guaianases y,
ghts to the understanding of urbanization in the por lo tanto, traiga nuevas luces a la comprensión
periphery of São Paulo. de la urbanización en la periferia de São Paulo.

GUAIANASES URBANIZATION RAILROAD GUAIANASES URBANIZACIÓN FERROCARRILES


EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
Guaianases é um dos distritos da cidade de São
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
Paulo, localizado no extremo leste do município.
Segundo documento produzido pela Prefeitura
Municipal de São Paulo (2016), Guaianases é for-
vídeo-pôster
mado por dois distritos – Guaianases e Lajeado
– com população de 268.508 habitantes que re-

A FERROVIA E A URBANIZAÇÃO presentam 2,4% da população total do município.

“Parte significativa de seu território carac-


DA ZONA LESTE DE SÃO teriza-se pela presença de assentamentos
precários habitados por população de baixa
PAULO: A FORMAÇÃO renda, sendo a grande maioria desses as-

DO NÚCLEO URBANO DE sentamentos constituída por loteamentos


irregulares” (SÃO PAULO, 2016:p.5).

GUAIANASES Situação que não é diferente de outros distritos


da capital paulista, marcados pela pobreza e de-
sigualdade social.
THE RAILWAY AND THE URBANIZATION OF THE EAST
ZONE OF SÃO PAULO: THE URBAN FORMATION OF
GUAIANASES

EL FERROCARRIL Y LA URBANIZACIÓN DE LA ZONA


ORIENTAL DE SAN PABLO: LA FORMACIÓN URBANA DE
GUAIANASES

Figura 1: Área do Distrito de Guaianases. Fonte: (SÃO PAU-


LO, 2016, p. 5).

A pesquisa foi motivada por uma inquietação de


como teria se iniciado o núcleo urbano original
de Guaianases. Um trabalho exploratório nas bi-
bliografias existentes sobre o distrito apontou
a existência de poucos dados sobre o distrito,
com várias lacunas não explicadas sobre sua for-
16º SHCU mação urbana e territorial. Por outro lado, essa
30 anos . Atualização Crítica
documentação apontava para a importância que
1316 a ferrovia desempenhou na formação do distrito.
Observou-se que não somente as ferrovias, mas com os anos passaram a ser núcleos de povoa-
os caminhos terrestres - usados nas rotas co- mento na região leste. As primeiras ocupações e a
merciais do período colonial – transformaram-se existências dos povos originais e suas ocupações,
em eixos de expansão urbana da cidade de São os aldeamentos, são examinados para se entender
Paulo. Nesse movimento de expansão por tais a origem do nome “Guaianases”. No século XIX,
eixos é que ocorreu a formação de Guaianases e surgem as primeiras ferrovias na Província de
outros distritos periféricos de São Paulo. Assim, São Paulo, causando mudanças na organização
o objetivo do trabalho é discutir a formação do espacial da cidade. Na segunda parte, o trabalho
núcleo urbano de Guaianases e a relação estabe- enfoca a formação do núcleo urbano, cuja origem
lecida com os caminhos para sua consolidação. está no distrito de Lajeado. Foi com a abertura
A hipótese formulada parte do entendimento da estação ferroviária em 1875 que trouxe outra
que os caminhos terrestres e ferroviários guia- dinâmica ao distrito, deslocando a centralidade
ram a expansão urbana da periferia paulistana, de Lajeado para o entorno da estação. Foram
formando outros núcleos urbanos. Os caminhos coletadas informações na Hemeroteca que per-
terrestres e ferroviários são entendidos como mitiram rastrear a vida urbana existente e sua
objetos técnicos que viabilizaram o povoamento materialização no espaço, com times de futebol,
e ocupação do espaço, conforme identificado por organização de trabalhadores e serviços de me-
Langenbuch (1971). lhoria urbana realizados pela Prefeitura Municipal,
além de um mapeamento inicial do avanço do
O trabalho tomou como marco temporal o período mercado imobiliário, com anúncios sobre lote-
compreendido entre 1875 e 1929. A primeira data amentos no distrito. Com a pesquisa espera-se
– 1875 – é de inauguração da primeira estação contribuir com informações sobre a formação do
ferroviária do distrito. A presença da ferrovia, no distrito de Guaianases e assim trazer novas luzes
entanto, não apaga a importância que as rotas para o entendimento da urbanização da periferia
terrestres tiveram no desenvolvimento do nú- de São Paulo.
cleo inicial. A segunda data – 1929 – é quando foi
anunciada a autonomia administrativa do distrito Por último, um esclarecimento ao leitor sobre a
de Carvalho Araújo, que em 1948 viria a tornar-se ortografia da palavra Lajeado. Como o distrito
Guaianases. Com as balizas temporais postas, a de Guaianases passa a existir somente em 1948,
pesquisa para recolhimento de dados qualitativos antes era conhecido como Lageado, escrito com
foi realizada a partir de bibliografia, documentos “g”. Com as alterações ortográficas ocorridas no
governamentais e trabalhos acadêmicos sobre século XX passou a ser com “j”, Lajeado. No artigo,
a região leste de São Paulo. Foram consultados optou-se por manter a ortografia atualizada, ape-
arquivos públicos como o Arquivo do Estado de sar de na documentação ser comum sua escrita
São Paulo e a Hemeroteca Digital da Biblioteca Na- como “Lageado”.
cional. No Arquivo do Estado, buscou-se material
sobre as estradas de ferro e consultou-se o rico
acervo cartográfico mantido pela instituição. Na
Hemeroteca Digital foi realizado levantamento nos
CAMINHOS NO PERÍODO COLONIAL E IMPACTOS
periódicos de circulação em São Paulo no período NA FORMAÇÃO DE NÚCLEOS E POVOAMENTOS
compreendido entre as décadas de 1910 e 1930,
a partir da palavra chave “Lageado”. O material Escrever sobre a ocupação da região leste de
recolhido junto à Hemeroteca permitiu mapear São Paulo implica necessariamente entender
dados dispersos que quando reunidos e sistema- que os núcleos e povoamentos que surgem nos
tizados mostram ao pesquisador como o núcleo arredores ocorrem em função da existência da
urbano começa a se organizar e a se firmar como cidade de São Paulo. A ocupação da América
tal, mostrando seu processo de urbanização. Portuguesa pelo invasor europeu ocorre a partir
de 1530, com a definição de uma política urbani-
O artigo foi estruturado em duas partes. A pri- zadora da Coroa, pois com a ocupação é que se
meira remonta aos tempos coloniais, entendendo garantia a posse da terra (REIS FILHO, 1968). De
como os caminhos usados para o transporte de acordo com os estudos de Beatriz Bueno (BUENO,
mercadorias abrigava pousos aos viajantes que 2009), a Capitania de São Paulo formou-se com
EIXO TEMÁTICO 2 a união das Capitanias de São Vicente e Santo
Amaro em 1532. Nos primórdios manifestou-se a
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS “extrema austeridade” na Capitânia com o desen-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES volvimento de uma lavoura para consumo próprio,
em contraste com o nordeste que prosperou com
o cultivo de açúcar. Foram criados alguns núcleos
urbanos na Capitania, estabelecendo assim uma
rede de núcleos (São Vicente em 1532, Vila Porto
de Santos em 1545, São Paulo dos Campos de
Piratininga 1560), onde o contato com o indígena
era fundamental para a existência e a manutenção
do povoamento (BUENO, 2009).

A ocupação do planalto caracteriza-se pela cria-


ção de capelas, freguesias e vilas, onde a Igreja
Católica assume papel fundamental nesta política
urbanizadora com a regularização desses postos
pelo território (BUENO, 2009). Dentro deste con-
texto, as capelas, freguesias e vilas eram uma
forma de ocupação legal, reconhecidas pela Igreja
e autorizadas pela Coroa, mas existiam também
outros tipos de aglomerados humanos, aqui ca-
racterizados pelas aldeias e aldeamentos1. Os
estudos de Monteiro (2001) apontam a existência
de pelo menos três aldeias. A principal, conhecida
como Inhapuambuçu, depois Piratininga, locali-
zada na região onde de erigiu a capela e o colégio
dos jesuítas; a segunda aldeia, de Jerubatuba, à
12 kilometros ao sul de Inhapuambuçu, onde seria
depois Santo Amaro e a terceira e última aldeia,
de Ururaí, localizada à 6 kilometros ao leste de
Inhapuambuçu, que depois se tornaria São Miguel
Paulista.

O memorialista Silvio Bontempi recuperou em


pesquisa uma cartografia publicada em livro de
Benedito Calixto, onde é indicada a presença de
nações como Tamoios, Muiramomis, Guayanas e
Tupinaquins (BONTEMPI, 1970:p.26). Mais signifi-
cativo pela representação gráfica do espaço do
que pelas informações etnográficas trazidas, o
mapa (Figura n. 2) de Bontempi indica a existência
da etnia Guaianá próximo a São Miguel, sem indicar
a existência de uma aldeia ou ponto específico de
ocupação dos indígenas. Eram nações de povos
nômades, que transitavam pelo território.

1. As aldeias, de acordo com John Monteiro (2001:p.112),


reuniam pessoas de uma mesma etnia que não estavam
16º SHCU
totalmente sob o controle da Igreja e da Coroa. O aldeamen-
30 anos . Atualização Crítica
to representa “uma aglomeração multiétnica”, abrigando
1318 indivíduos deslocados ou dessocializados.
Figura 2. Capitania de S. Vicente. Intervenção gráfica realizada pelas autoras para indicar aldeamento de São Miguel.
Fonte: (BONTEMPI, 1970:p.26).

Richard Langenbuch, em estudo de 1971, escre- legalmente perante a Igreja e a Coroa, alcançando
ve que desde os primórdios da colonização São em algumas situações a condição de Freguesia.
Paulo conservou até o século XVIII os seguintes
núcleos de aldeamentos: Guarulhos, São Miguel, Interessa o enfoque dado ao aldeamento de São
Itaquaquecetuba, Pinheiros, Itapecerica, Embu, Miguel porque é a partir do mesmo que se co-
Carapicuíba e Barueri (LANGENBUCH, 1971:p14). meçará um processo de ocupação intensivo da
O autor explica que no século XVIII houve uma região, sendo nos seus arredores que irá surgir
metamorfose de núcleos indígenas para povoado Guaianases no século XX. De acordo com o tra-
caipira, formados essencialmente por indivíduos balho de Bontempi, a formação do aldeamento
descendentes dos primeiros habitantes, fruto da de São Miguel ocorreu por volta de 1560, em lo-
miscigenação entre europeus e indígenas (LAN- cal próximo da nascente do Anhembi (rio Tietê),
GENBUCH, 1971:p.59). Ao que indica Langenbuch, formando-se aí a Aldeia de Ururaí. O autor trata
estes aldeamentos encaixam-se na definição de como aldeia, mas pelas descrições de autores
aldeamento de Monteiro, como uma aglomeração como Langenbuch e Monteiro, o correto é tratar
multiétnica, que devido a política de amalgamento Ururaí como um aldeamento pelos grupos multi-
para promoção da mestiçagem (entre brancos, in- étnicos presentes no local. Segundo Bontempi,
dígenas e africanos) em vigor na província promo- Ururaí era alcançada por meio terrestre, pelas
veu uma massiva extinção não só de aldeias como trilhas existentes ou pela via fluvial, subindo ou
de várias nações que antes existiam (MONTEIRO, descendo o rio Tietê.
2001:p.116). A política de amalgamento produziu
como resultado a descaracterização étnica e o O aldeamento consolidou-se e auxiliou na forma-
apagamento dos rastros de nações indígenas. ção de outros núcleos de povoamento nos arre-
Com a mestiçagem, surgem os povoamentos dores como Itaquera, Caguassú e Itaim. Ururaí/
caipiras que prosperam e foram reconhecidos São Miguel estava em uma situação geográfica
EIXO TEMÁTICO 2 que favorecia o povoamento, pois o viajante que
vinha do Rio de Janeiro e das Minas Gerais pas-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS sava por Ururaí antes de alcançar a cidade de São
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Paulo (BONTEMPI, 1970:pp. 90-103). O estudo de
Bontempi indica que Ururaí atingiu o seu auge en-
quanto povoado no século XVIII, entrando depois
em um período de decadência. Entre os séculos
XVII e XVIII, Ururaí “reuniu grandes e numerosos
fazendeiros donos de vastas lavouras e copiosos
rebanhos”, que declinaram no início do século XIX
devido ao exaurimento das terras. As grandes
lavouras deram origem a pequenas roças, que
produziam cereais e cana de açúcar, este último
para a produção de cachaça. O autor indica ain-
da que os excedentes eram comercializados na
cidade de São Paulo, seguindo por via terrestre
ou fluvial (BONTEMPI, 1970: pp.133-134).

Assim, identifica-se a existência de uma ampla


movimentação entre São Miguel/Ururaí e a cidade
de São Paulo na comercialização de produtos
agrícolas, feitas por tropeiros e carreiros, através
das rotas terrestres existentes. Para servir de
apoio aos transportes, uma série de pousos são
construídos nos arredores de São Miguel/Ururaí.
Os pousos são estruturas rudimentares, amplos
galpões cobertos geralmente de sapé e pare-
des de taipa para oferecer abrigo aos viajantes,
especialmente os que transportavam produtos
agrícolas e outros gêneros para comercialização.
Muitos desses pousos ou paragens, situados seja
nos caminhos principais como nos secundários,
deram origem a outros núcleos que mais tarde se
consolidaram como povoamentos (REIS FILHO,
2014). Nos arredores de São Miguel constituí-
ram-se pousos que se tornaram depois núcleos
de povoamento, como são exemplos Itaquera e
Lajeado.

Os caminhos existentes no território da Capitania


de São Paulo antecedem aos invasores europeus.
Antigas trilhas indígenas, conhecidas como Pea-
biru, entrecortavam o território e o conectavam
a outras regiões. Muitos dos caminhos utilizados
entre os séculos XVI ao XIX foram criados a partir
de trilhas indígenas preexistentes. Costumava-se
viajar por esses caminhos a pé ou em animais
como mulas, mais afeitas aos leitos acidenta-
dos e percalços das estradas. Soma-se a este
16º SHCU o uso dos caminhos fluviais, na região de São
30 anos . Atualização Crítica
Miguel, utilizava-se o Tietê para alcançar São
1320 Paulo. Tais caminhos - terrestres e fluviais - foram
amplamente utilizados provocando uma intensa surgindo na província, nos interessando a Estrada
movimentação na capitania (BUENO, 2009). Os de Ferro São Paulo – Rio de Janeiro2, organiza-
caminhos terrestres, segundo Langenbuch (1971) da por fazendeiros do Vale do Paraíba em 1869
foram essenciais e determinantes na ocupação (GIESBRECHT, 2020). A linha possuía bitola de 1m
dos arredores de São Paulo, sendo comum a trans- e foi inaugurada em 1875. Enquanto a São Paulo
formação de pousos ou ranchos em núcleos de Railway cortava os distritos do Brás e Ipiranga, a
povoamentos. A região de São Miguel pertencia a Cia do Norte margeava com seus trilhos os antigos
uma rota de ligação entre as cidades de São Paulo caminhos que ligavam as duas cidades. Assim,
e Rio de Janeiro, além de conectar os paulistanos causou mudanças no cotidiano desses pequenos
com as cidades do Vale do Paraíba, indicando a núcleos e chácaras.
existência de uma rota comercial intensa.
O primeiro trecho da Cia. do Norte, segundo Gies-
Os caminhos passam a ter intensa movimentação brecht (2020), ligava a estação do Brás ao distrito
com a reativação da lavoura de cana de açúcar em da Penha (Estação Guayauna), sendo que no Brás
São Paulo, no final do século XVIII. A nova região existia uma estação da São Paulo Railway. A ex-
produtora, conhecida como o quadrilátero do açú- tensão do traçado, até a cidade de Cachoeira, foi
car, estava geograficamente afastada da cidade inaugurada em 1877, realizando assim a ligação
de São Paulo, no entanto, a reativação da lavoura com a Estrada de Ferro D. Pedro II, oferecendo
aqueceu toda a economia da capitania, fazendo assim uma ligação ferroviária entre São Paulo e
com que houvesse uma intensa movimentação e a corte (GIESBRECHT, 2020).
fluxo de comércio nas estradas. No século XIX, a
introdução do café dinamiza ainda mais os fluxos Os caminhos terrestres favoreceram o surgimento
comerciais, fazendo com que comerciantes e de núcleos de povoamento ao longo de seu trajeto
produtores reivindicassem aos órgãos públicos e a chegada da ferrovia trouxe, sem embargo,
outro impulso para a urbanização de tais núcleos.
competentes o melhoramento das estradas.
Assim, rotas terrestres e ferrovia desempenha-
Com a comercialização do café e as novas plan- ram importante papel para a expansão urbana
tações existentes no Vale do Paraíba e na região da cidade de São Paulo, corredores que ao longo
de Campinas, colocava-se como uma das neces- dos séculos XIX e XX se configuraram como seus
sidades o melhoramento do sistema de transpor- eixos de expansão urbana (LANGENBUCH, 1971).
tes, realizado majoritariamente por muares em Na parte seguinte, será analisado como ocorreu
estradas em condições difíceis de tráfego. Em a formação do núcleo urbano que daria origem a
meados do século, discussões começam a surgir Guaianases décadas depois.
na Província sobre a necessidade de aprimorar
os meios de transporte, para proporcionar um
escoamento rápido e seguro das mercadorias
(MILLIET, 1982). Algumas vozes mais acaloradas
FORMAÇÃO DO NÚCLEO URBANO DE GUAIANASES
pediam pela implantação do sistema de transpor-
tes que vinha revolucionando os países do norte. Guaianases, distrito da cidade de São Paulo, lo-
No Brasil imperial da década de 1850, empresas calizado em sua periferia leste é um bairro resi-
estavam sendo organizadas em outras províncias dencial, conhecido pelos conjuntos habitacionais
e as façanhas dos caminhos de ferro seduziam populares e áreas consideradas de vulnerabilidade
produtores e comerciantes ávidos por um trans- social. A origem do povoamento que viria a se
porte mais eficiente (LAMOUNIER, 2000). transformar em Guaianases está intimamente
ligada à estrada de ferro e por meio desta é que
A primeira linha construída em São Paulo foi a teve um impulso para o seu desenvolvimento en-
São Paulo Railway Company, inaugurada em 1867,
uma companhia de capital inglês, que passan- 2. Em outros documentos e em notícias veiculadas na im-
do por São Paulo conectava o porto de Santos prensa, essa ferrovia era conhecida como “Estrada do Norte”
ao vasto hinterland da província, cujas portas ou “Companhia do Norte”, pois estava em uma região co-
eram a cidade de Jundiaí. No esteio da São Paulo nhecida como o “norte” da província, o que não corresponde
Railway, outras empresas de capital misto foram ao posicionamento geográfico real.
EIXO TEMÁTICO 2 quanto núcleo urbano. Quais são as origens de
Guaianases antes do advento da ferrovia? Nesta
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS seção, procura-se trazer informações que per-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES mitam entender como Guaianases constitui-se
enquanto núcleo urbano. As informações exis-
tem, mas estão dispersas em vários materiais.
Os esforços concentraram-se na reunião desses
materiais que permitam contar a história do sur-
gimento do núcleo urbano do distrito.

Escrever sobre os primórdios obriga-nos a reto-


mar o período colonial e ao antigo núcleo de São
Miguel. Conforme observado na primeira parte
do artigo, as origens de São Miguel estão atre-
ladas aos aldeamentos existentes na Capitania
de São Paulo, sendo este um dos mais antigos
remontando ao ano de 1560, segundo Bontem-
pi (1970:p.25). São Miguel atingiu sua plenitude
econômica no século XVIII, como um entreposto
fornecedor de cereais e criação de gado. No sé-
culo seguinte entrou em decadência, o que gerou
segundo Bontempi a dispersão dos habitantes de
São Miguel para outros povoamentos próximos.
Como mencionado, no século XIX essa região que
compreendia São Miguel e suas cercanias eram
atravessadas pelas rotas terrestres que ligavam
São Paulo ao Rio de Janeiro. Pelo fluxo significa-
tivo de viajantes, tropeiros e carreiros era comum
encontrar pousos ao longo dos caminhos, simples
ranchos para abrigar pessoas e seus animais.
Alguns ranchos prosperaram, passando a abrigar
algumas casas e estabelecimentos comerciais,
como foi o caso de Itaquera3 e Lajeado.

Para entender a existência de Guaianases é pre-


ciso conhecer Lajeado. No site da Prefeitura Mu-
nicipal de São Paulo, o distrito de Guaianases é
composto por dois bairros, Lajeado e Guaianases
(observar a Figura 1). Lajeado antecedeu Guaiana-
ses, que surgiria mais tardiamente, ao longo do
século XX. Lajeado surge no século XVIII como um
pouso de viajantes, sendo que o primeiro núcleo
surgiu de acordo com Azevedo a 2 quilômetros do
Vale do Ribeirão Lajeado (AZEVEDO, 1954:p.173). O
site da subprefeitura de Guaianases informa que
as terras do primeiro núcleo pertenciam a família
Bueno, que edificaram um pouso e capela para
os viajantes. Essas edificações iniciais estavam
situadas na estrada conhecida como “Estrada
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
3. Sobre a história do subúrbio de Itaquera consultar Aze-
1322 vedo (1954) e Oliveira (2018).
do Imperador” e posteriormente “Estrada dos crescia em várias direções, especialmente em
Guaianases”, hoje é conhecida como “Estrada do sua porção leste, impulsionada pelo crescimento
Lajeado Velho”. De acordo com o mesmo site, a de bairros como o Brás e a Mooca (REIS, 2017).
partir de novembro de 1857 a área passou a ser Saindo do Brás e Mooca, no sentido da Penha
conhecida como “Lajeado Velho” (SÃO PAULO, de França, existiam muitas chácaras, utilizadas
2019). Antes da construção da ferrovia, Lajeado como local de veraneio por famílias paulistanas
e Itaquera revezaram a sua jurisdição entre os e como produtoras de hortifruti para a cidade
distritos de São Miguel e Penha de França (BON- de São Paulo. O fenômeno que foi observado por
TEMPI, 1970). autores como Azevedo (1954), Langenbuch (1971)
e Oliveira (2018) foi o parcelamento das chácaras
Na década de 1860, a febre da ferrovia chega à em lotes menores, aumentando a área urbana e
Província de São Paulo. A inauguração da São diminuindo a fronteira com o mundo rural. A di-
Paulo Railway fez com que outros empresários se retoria e empresários responsáveis pela Estrada
reunissem para abrir companhias ferroviárias na de Ferro São Paulo – Rio de Janeiro perceberam o
província. Dentro desse contexto é que se organi- potencial para transporte urbano do Brás e seus
zou a Estrada de Ferro São Paulo -Rio de Janeiro, arredores, fazendo com que após a Estação do
inaugurada em 1875. Originalmente, essa ferrovia Norte, o ponto inicial da ferrovia, fossem esta-
proporcionava ligação entre São Paulo e Rio de belecidas seis paradas ligando o Brás a Penha.
Janeiro, passando pelo Vale do Paraíba, no lado Observando a cartografia produzida na época, a
paulista. A ferrovia oferecia os produtores de café curta distância entre as paradas não tinha uma
do Vale do Paraíba a oportunidade de escoamento justificativa plausível para uma linha que visava
de sua produção via Santos ou Rio de Janeiro. O alcançar a cidade de Cachoeira. Os empresários
traçado da ferrovia favorecia os núcleos de Lajea- fizeram uso intencional da linha para dois fins:
do, Itaquera e Penha, ficando São Miguel preterido o transporte de longa distância e o transporte
em um primeiro momento4. Como visto, a ferrovia suburbano.
tinha como objetivo conectar-se à Estrada de
Ferro Pedro II, na cidade de Cachoeira, situada O primeiro trecho urbano/suburbano da Estrada
no Vale do Paraíba no lado paulista. Ao chegar de Ferro São Paulo – Rio de Janeiro consistia
em Cachoeira, os passageiros eram obrigados em seis paradas, chegando até Penha de Fran-
a descerem da composição e transpor o rio em ça. Prosseguia a linha até Mogi das Cruzes, com
uma balsa para embarcar na linha da Pedro II. A estações em Itaquera e Lajeado. A existência de
Estrada de Ferro São Paulo – Rio de Janeiro é uma uma estação ferroviária nos pequenos núcleos
empresa importante, no entanto, ainda não foi causou, sem embargo, uma segunda fundação
alvo de estudos acadêmicos mais aprofundados, dos mesmos, para utilizar a expressão consagrada
sendo necessário trazer informações sobre esta por Simões de Paula (DE PAULA, 1954). A ferrovia
companhia. Ao estudar a empresa em seus por- representava no imaginário social o progresso e
menores e detalhes, chama a atenção como os desenvolvimento. Em termos práticos criava uma
empresários e diretoria da empresa foram hábeis forma de transporte rápido com a capital paulista,
quando pensaram sobre o traçado da ferrovia e oferecendo mobilidade aos habitantes e para os
os locais por onde iria passar, especialmente na comerciantes um meio rápido de transporte. As
parte suburbana da cidade de São Paulo. estações impulsionam os núcleos e tornam-se
o marco da nova centralidade, com estabeleci-
Nessa época, a cidade de São Paulo passava por mentos comerciais e outros edifícios instalados
mudanças em suas estruturas urbanas, organiza- em seu entorno.
das pelo Presidente da Província João Theodoro,
alargando ruas e drenando áreas pantanosas da
várzea do Tamanduateí (FRANCO, 2003). A cidade

4. Segundo Aroldo Azevedo (1954) é com a abertura da


variante de Poá, da Central do Brasil, que São Miguel irá
prosperar enquanto núcleo urbano. A variante é aberta na
década de 1920.
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

Figura 3. Intervenção gráfica realizada pelas autoras indicando


a linha férrea da Central do Brasil e a localização de Itaquera e
Guaianases. Fonte: Azevedo (1954:p.158).

As mudanças no campo político atravessadas


pelo país, com o golpe militar que implantou o
regime republicano em 1889, trouxeram consequ-
ências para as ferrovias. Em primeiro, destaca-se
a incorporação da Estrada de Ferro Pedro II pelo
governo federal e em segundo, a Estrada de Ferro
São Paulo – Rio de Janeiro que passava por dificul-
dades financeiras foi igualmente estatizada junto
a uma nova empresa: a Central do Brasil. O antigo
desejo de ligação efetiva com a cidade do Rio de
Janeiro concretizava-se com a incorporação pelo
Estado. A Estrada de Ferro Pedro II que pertencia
ao governo imperial, foi incorporada pelo Esta-
do pelo Decreto nº 701 de 30 de agosto de 1890.
Sob a Central do Brasil, que passou a denominar
a linha, um dos primeiros melhoramentos foi o
alargamento da bitola de 1m para 1m60, com os
trabalhos iniciados em 1896 e concluídos em 1908.
Outro detalhe foi a construção da ponte sobre
o Rio Paraíba do Sul, evitando as baldeações e
praticamente unificando o trajeto até o Rio de
Janeiro (VASCONCELLOS, 1934).

Assim, no longínquo Lajeado passam a existir dois


núcleos urbanos: o Lajeado Velho, onde teve início
ao povoamento a partir de um rancho de tropeiros
e o Lajeado Novo, no entorno da estação ferrovi-
ária. Na nova dinâmica, a existência da estação
da Central do Brasil no Lajeado Novo atraiu co-
mércios e outras atividades, como será abordado
mais à frente. Da estação do Lajeado, partiam
16º SHCU outras duas ferrovias (ou variantes): o Ramal da
30 anos . Atualização Crítica
Pedreira Vicente Mateus, que conectava a pedreira
1324 existente em Lajeado com a estação da Central do
Brasil, para escoamento de pedras e o Tramway No tocante as atividades econômicas em Lajeado,
da Fazenda Santa Etelvina, que segundo apurou a mineração era uma das principais do povoa-
Giesbrecht, estava em operação desde 1895. A mento5, tanto que deve ter sido o motivo para a
Fazenda Santa Etelvina era de propriedade do escolha de seu nome. Lajeado, de lajes, muito
coronel Antonio Proost Rodovalho. Nesta fazen- utilizadas para calçamentos, sendo que Itaquera
da, Rodovalho havia instalado serrarias e olarias, e Lajeado eram referência na extração mineral
que abasteciam São Paulo (GIESBRECHT, 2020). de pedras e argila. As extrações de pedras – o
granito Itaquera - não se sabe ao certo quando
A operação da linha da Central do Brasil na cidade tiveram início. Registros obtidos nos jornais, como
de São Paulo trouxe outro impulso de desenvolvi- em uma nota de 1912, indicam o funcionamento
mento para a região leste. Não é possível afirmar da pedreira, onde a Prefeitura Municipal de São
uma data precisa dos transportes para os subúr- Paulo solicita ao diretor da Central do Brasil o
bios paulistanos. Ralph Giesbrecht, pesquisador fornecimento diário de 10 vagões para transporte
responsável pelo site Estações Ferroviárias do de pedra da estação Lajeado até São Paulo para
Brasil (2020), afirma que os transportes suburba- o calçamento da cidade (CORREIO PAULISTANO,
nos se iniciam em 1914, mas há fortes indícios de 1912). Vale lembrar que nessa época o setor da
que ocorriam anteriormente. Pesquisa realizada construção civil paulistana estava em plena ativi-
no jornal Correio Paulistano indica que os trans- dade (PEREIRA, 2004). O granito Itaquera retirado
portes suburbanos eram realizados em 1891, de da pedreira do Lajeado foi empregado em várias
acordo com um anúncio de venda de chácara edificações do centro de São Paulo (SÃO PAULO,
em terreno na Segunda Parada, assegurando ao 2018). Granito utilizado em ornamentações, como
comprador que o indica o Illustração Paulista de 1911, de edifícios
suntuosos como o novo Teatro Municipal:
“transporte é facílimo, pois que há diaria-
mente 10 trens de ida e outros antes de vol-
“No vestíbulo, duas grossas columnas de
ta, sendo o preço das passagens 100 réis”
granito cinzento, com seis metros de altura
(CORREIO PAULISTANO, 1891).
(...) provenientes do Lageado e executadas
Em outros anúncios de venda de imóveis, a pro- pelos canteiros do theatro (...)” (ILLUSTRA-
ximidade com as paradas da Estrada do Norte ÇÃO PAULISTA, 1911:p.41).
eram um diferencial para o imóvel. Em anúncio de
Além da extração de pedras, em Lajeado exis-
1915, o jornal A Gazeta publica quadro de horários
tiam olarias, como a existente na Fazenda Santa
do Ramal de São Paulo, indicando a existência de
Etelvina (GIESBRECHT, 2020). As olarias também
trens de passageiros, mistos e de subúrbio, este
eram importantes para o fornecimento de mate-
último salientando que esse tipo de transporte
riais para o setor da construção civil, produzindo
era realizado pela Central do Brasil. Na década
telhas, tijolos e manilhas.
inicial do século, Itaquera e Lajeado eram locali-
dades mais afastadas, com número pequeno de No núcleo de Lajeado, com as atividades extrati-
habitantes. Nos jornais, são poucas as menções vistas, surge todo um ecossistema ligado à mine-
a essas duas estações/povoados. ração que se materializa no núcleo urbano. O jornal
O Combate traz informações sobre a organização
dos canteiros, trabalhadores ligados a mineração,
para reivindicar melhores condições de trabalho e
salário. A partir de material divulgado pelo O Com-
bate, foi possível identificar que o movimento pela
organização de várias categorias de trabalhadores
Figura 4. Anúncio da Central do Brasil, Ramal de São Paulo, publi- (chapeleiros, canteiros, pedreiros, padeiros, fer-
cado em 1915. Além dos comboios convencionais de transporte, roviários, operários etc.) inicia-se após a grande
o anúncio destaca a existência dos trens de subúrbio. Fonte:
Gazeta de São Paulo (1915:p.6).
5. Atualmente existe somente uma pedreira em atividade
em Guaianases. A pedreira mais antiga foi desativada na
metade do século XX.
EIXO TEMÁTICO 2 greve realizada em 1917 (HARDMAN E LEONARDI,
1982). Os canteiros que trabalhavam em quatro
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS grandes pedreiras da cidade (Ribeirão Pires, Cotia,
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Barueri, Itaquera e Lajeado) organizaram-se em
sindicatos para integrarem a Federação Operária
de São Paulo, organizada por Edgard Leuenroth
em 1917. A pedreira do Lajeado, segundo o jornal,
tinha como proprietários ou empreiteiros nomes
como Salvador di Tulio, José Gerlonio, Luiz Mathe-
os e Francisco Rodrigues Selker. Neste esforço
de organização dos trabalhadores, em 1921 foi
organizada a União dos Canteiros e Classes An-
nexas de São Paulo6.

A existência desse conjunto de trabalhadores –


canteiros como se auto denominavam – merece
uma reflexão sobre quem eram esses trabalha-
dores pobres e se moravam próximos à pedrei-
ra, constituindo assim a base da população do
Lajeado. Até o momento, a pesquisa não reuniu
informações sobre esses trabalhadores, mas
pode ser um elemento a ser investigado futura-
mente, indicando a participação de grupos sociais
composto por negros, nacionais e imigrantes.
Trabalhos acadêmicos como o de Sheila Silva
apontam para a ausência dentro da historiogra-
fia sobre Guaianases de outros grupos étnicos,
como os negros que eram numerosos no povoa-
mento, mas os trabalhos reforçam as narrativas
dos imigrantes europeus como “construtores e
desenvolvedores do bairro” (SILVA, 2014:p.4). O
aprofundamento sobre o Sindicato dos Cantei-
ros de Lajeado pode ser um caminho para trazer
à tona os outros grupos sociais formadores do
distrito, bem como a contribuição para o aflora-
mento de um núcleo urbano.

A existência de um grupo de trabalhadores orga-


nizados ligados à pedreira são um forte indício de
que o Lajeado deixava sua essência rural e se ur-
banizava cada vez mais. Prova disso é a existência
dos clubes de , cuja existência denota um certo
grau de urbanidade. A notícia de 1920 publicado
no jornal A Gazeta de São Paulo notificava a vitória
do Atlas Lageadenses, contra o seu oponente o
União de Poá. Cada um dos times representava as
localidades de Lageado e Poá, lendo-se também
na nota:

16º SHCU
6. Informações sistematizadas pelas autoras a partir do jornal
30 anos . Atualização Crítica
O Combate de 1919 e 1921, edições nº01192, nº01195 e nº01883. O
1326 jornal está disponível no site da Hemeroteca Digital Nacional.
“O embate, que foi sensacional, levou ao campo Outras notas publicadas na Gazeta de São Paulo,
da lucta uma grande multidão das duas cidades, entre 1924 e 1927, mostram como crescia o La-
ávida de assistir e aplaudir aos feitos dos seus jeado Novo, nos arredores da estação da Central
valentes conterraneos” (GAZETA DE SÃO PAULO, do Brasil. São notas publicadas pela Prefeitura
13 de outubro de 1920) (Grifo nosso). Municipal de São Paulo sobre a abertura de con-
corrência pública para empresas interessadas em
Para o jornal, tratava-se de um embate esporti- explorar serviços públicos como o de iluminação
vo entre “duas cidades”. Os dados populacionais pública (a querosene) para ser implementado em
coletados no jornal Correio Paulistano de 1950, 1925. Em 1924, uma reestruturação da Estrada de
ou seja, muitas décadas depois, indicam que no Ferro Central do Brasil renomeia uma série de es-
distrito de Guaianases existiam 8.000 habitantes tações no ramal de São Paulo, homenageando os
(CORREIO PAULISTANO, 15 de junho de 1950). engenheiros da empresa (VASCONCELLOS, 1934).
Nota-se que até hoje muitas estações da Compa-
O crescimento populacional e a crescente urba- nhia Paulista de Trens Metropolitanos e o Metrô de
nização são percebidos nas ocorrências envol- São Paulo mantiveram nomes de engenheiros da
vendo crimes e os acidentes envolvendo os trens Central do Brasil como “Ferraz de Vasconcelos”,
do Ramal de São Paulo da Central do Brasil. Em “Arthur Alvin”, “Calmon Vianna” que eram da antiga
Lajeado Novo, onde estava situada a estação, a estrada de ferro. A estação de Lajeado passa a
linha ficava na mesma cota da rua, aumentando ser denominada “Carvalho Araújo” permanecendo
a incidência de acidentes como atropelamentos. até 1948, quando é chamada de Guaianases. Em
Em 1921 o jornal O Combate estampa mais um 1927, novos serviços públicos realizados por em-
acidente na linha, uma colisão entre um trem de presas privadas são contratados como a limpeza
carga e uma locomotiva. O jornal faz duras críticas pública (proposta por Sebastião Veiga Bueno). No
aos funcionários responsáveis pelo controle de mesmo ano de 1927, a Câmara Municipal de São
tráfego da Central do Brasil, pela alta incidência Paulo solicita a execução da macadamização do
de acidentes na linha. A linha não era duplicada entorno da estação ferroviária. Outra nota indica
e dependia de um rígido controle de tráfego, que que a Prefeitura Municipal de São Paulo estava
o jornal sugere tinha graves falhas. executando o alinhamento de ruas existentes
no bairro, como é o caso da rua 15 de Novembro
A década de 1920 atrai novos contingentes po-
para retificação de alinhamento com aquisição
pulacionais para o Lajeado. Em 1924 anúncios
de prédio e terreno particulares para efetuar a
veiculados pelos jornais oferecem terrenos como
ação. São pequenas notas, mas que mostram a
uma ótima oportunidade de negócio, como o ofe-
complexidade que o núcleo vai assumindo, tendo
recido pela “Empreza de Terrenos Sta. Etelvina”.
o entorno da Estação Carvalho Araújo (Antiga
A fazenda, de propriedade de Antonio Rodovalho,
Lajeado) firmando-se como a nova centralidade.
havia sido retalhada em lotes menores. A empre-
sa responsável pela venda, estava negociando
terrenos a partir de 5.000 metros para chácaras
e sítios, financiados em até 4 anos. O anúncio
salientava que os terrenos eram bem servidos
de estradas de rodagem e que a empresa ha-
via contratado a firma “Barros Oliva & Cia” para a
reconstrução da antiga Estrada de Ferro Santa
Etelvina (GAZETA DE SÃO PAULO, 1924). Não deixa
de ser curioso a reativação do antigo ramal, pois
estariam os empreendedores interessados em
retalhar as chácaras e sítios para facilitar trans- encerrar a análise sobre a urbanização de Lajeado, futura
porte de moradores? Quais as consequências que Guaianases. No final do século XX, as chácaras e sítios re-
tal empreendimento trouxe para a urbanização de sultado da repartição das terras da Fazenda Santa Etelvina
Guaianases nas décadas seguintes? 7 abrigam conjuntos habitacionais populares, sendo uma das
maiores concentrações no distrito. Esses estudos fazem
parte do segundo ano de pesquisa da Iniciação Científica
7. O presente artigo toma o marco temporal de 1929 para sob o abrigo de bolsa PIBIC (2020-2021).
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

Figura 5. Intervenção gráfica realizada pelas autoras in-


dicando em azul a Estação de Guaianases (Lajeado Nova).
Em vermelho, a localização do primeiro núcleo que deu
origem ao distrito, conhecido como Lajeado Velho. Fonte:
Azevedo (1954:p.174).

Segundo Vasconcellos, o viajante que partia do Rio


de Janeiro com destino a São Paulo, entre Ferraz
de Vasconcelos e Itaquera notava a quantidade de
casas aumentando e que se intensificava depois
de passar por Arthur Alvin, indicando a intensa ur-
banização da zona leste de São Paulo na década de
1920. Segundo Bontempi (1970:p.165), os núcleos
de Itaquera e Lajeado cresceram consideravel-
mente durante a década de 1920, desmembran-
do-se de São Miguel em 1920 (Itaquera) e em 1929
(Lajeado/Carvalho Araújo). Ambos se constituíram
distritos autônomos, ligados à Prefeitura Muni-
cipal de São Paulo. Dos fenômenos narrados por
Vasconcellos (1934) e Bontempi (1970), é Aroldo de
Azevedo em seu estudo 1954 que ajuda a entender
o que ocorre com o distrito de Carvalho Araújo e
consequentemente, com a zona leste paulistana.
O geógrafo chama a atenção para a dispersão do
habitat, a busca por habitações em locais dis-
tantes do centro de São Paulo, geralmente pelas
camadas mais pobres da população. Ao buscar
locais distantes, outra característica que marca
esse habitante de regiões longínquas é a mobili-
dade, sendo necessário gastar boa parte de seu
tempo em deslocamentos. Mesmo tratando-se de
uma constatação feita pelo geógrafo na década
de 1950, é importante notar que tais fenômenos
estavam presentes (dispersão urbana e mobili-
dade) nos núcleos estudados. Segundo Azevedo
16º SHCU (1954:p.162), na zona leste, destacam-se 4 núcleos
30 anos . Atualização Crítica urbanos: os maiores Itaquera e Poá e os menores
1328 Guaianases e Ferraz de Vasconcelos.
Carvalho Araújo, distrito da cidade de São Paulo, cleos vizinhos) e os acidentes com vítimas nas
passará nas décadas seguintes por mudanças linhas do trem.
significativas em termos de complexidade urba-
na. Na década de 1930 aumentam as atividades Durante a década de 1920, a Prefeitura Municipal
ligadas a comercialização de lotes urbanos, com realiza obras de melhoramentos que apontam
o surgimento de vários empreendimentos imobi- para um núcleo em expansão: calçamentos, ilu-
liários. Esta será a próxima etapa que a pesquisa minação pública e recolhimento de lixo. Em 1929,
seguirá. Lajeado emancipa-se de São Miguel, tornando-se
sede de distrito, com o nome de Carvalho Araújo.
A Central do Brasil havia anos antes alterado o
nome de algumas estações e a permanência do
À guisa de conclusão mesmo nome para o distrito reforçam a ligação
existente entre a ferrovia e o povoamento.
Ao longo do artigo a intenção foi entender como
ocorreu a formação do distrito de Guaianases,
na periferia de São Paulo. Área conhecida pela
pobreza e assentamentos precários, suas origens
remontam ao século XVIII. Guaianases foi o nome
oficializado em 1948, sendo anteriormente co-
nhecido como Lajeado, Lajeado Velho e Carvalho
Araújo. Lajeado surge como pouso para viajantes
em uma das variantes do caminho entre São Paulo
e Rio de Janeiro, no entanto, foi no século XIX
com a inauguração da linha da Estrada de Ferro
São Paulo – Rio de Janeiro que o pequeno vilarejo
prospera. A estação ferroviária torna-se a nova
centralidade do povoamento, ficando o núcleo
inicial em segundo plano, passando a ser denomi-
nado como “Lajeado Velho”. A nova centralidade
da estação fica conhecida como “Lajeado Novo”.

O material levantado e sistematizado pela pes-


quisa permitiu verificar que, de fato, os caminhos
terrestres e ferroviários foram determinantes
para a expansão urbana da cidade de São Paulo,
como apontou Langenbuch, bem como para os
núcleos urbanos à beira dos ditos caminhos. Foi
com a chegada da ferrovia que houve um sopro
de vitalidade em tais núcleos: a facilidade do
transporte aquecia o mercado imobiliário, que
oferecia sítios, chácaras e lotes urbanos para
venda. Uma nova dinâmica urbana de desenvolve
e se materializa no espaço. Foi essa perspectiva
que a pesquisa junto à Hemeroteca Digital propor-
cionou, evidenciando que relações sociais ligada
ao trabalho, ao esporte e mesmo nas questões
do cotidiano estavam presentes em Lajeado, que
assim se urbanizava. Identificado nos documentos
oficiais como situado em área rural do município,
os jornais mostram um cotidiano alinhado com o
urbano como trabalhadores organizados, clubes
esportivos (com direito a campeonatos entre nú-
EIXO TEMÁTICO 2 REFERÊNCIAS
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
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EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES O estudo que ora se apresenta tem como fonte
investigativa a Festa de Iemanjá que acontece
anualmente, dia 2 de fevereiro, desde o início
vídeo-pôster da década de 1920, no bairro soteropolitano do
Rio Vermelho. Através dos constructos históri-
cos procuramos analisar as diferenças e trans-
A FESTA DE IEMANJÁ NA formações, de ordem urbana e cultural que o
festejo imprime no local. Consiste em estudo
CIDADE DE SALVADOR Etnográfico, via Observação Participante, que
lança mão de pesquisa bibliográfica em arqui-
vos e bibliotecas à periódicos, bem como en-
THE YEMANJÁ PARTY IN THE CITY OF SALVADOR trevistas, fotografias e filmagens do festejo e
seus atores sociais e culturais nos momentos
LA FIESTA YEMANJÁ EN LA CIUDAD DE SALVADOR de fruição e devoção ao Orixá. Buscando pistas
através da memória coletiva e afetiva presentes
nas práticas culturais, de fruição e religiosas
SANTOS JUNIOR, Flávio Cardoso dos
dos interlocutores ouvidos e observados nas
Doutorando no Programa de Pós Graduação em Arquitetura e comunidades, cotidiano do bairro e no dia da
Urbanismo – Universidade Federal da Bahia (PPGAU-UFBA) /
festa, procuramos contribuir no entendimento
Bolsista Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia
(FAPESB)
da evolução urbana da cidade, bem como per-
professsorflaviocardoso@gmail.com ceber como se processam as resignificações
sócio-culturais que influenciam na paisagem e
arquitetura local. Se por um lado, as indústrias
do turismo e entretenimento juntamente com
as cervejarias e demais patrocinadores desca-
racterizam e esvaziam os elementos da cultura
e religião folclorizando os mesmos, do outro os
personagens anônimos da comunidade pes-
queira e adeptos das religiões de matriz afro-
-brasileira, resistem e protagonizam uma das
maiores comemorações religiosas do Brasil e
patrimônio imaterial da humanidade.

FESTA DE IEMANJÁ PATRIMÔNIO IMATERIAL


SALVADOR

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1332
ABSTRACT RESUMEN

The present study has as its investigative source El presente estudio tiene como fuente de inves-
the Festa de Iemanjá, which takes place annually tigación la Festa de Iemanjá, que se realiza anu-
on February 2, since the beginning of the 1920s, in almente el 2 de febrero, desde principios de la
the suburb of Rio Vermelho. Through the histori- década de 1920, en el suburbio de Río Vermelho.
cal constructs we seek to analyze the differences A través de las construcciones históricas busca-
and transformations, of urban and cultural order mos analizar las diferencias y transformaciones,
that the celebration prints in the place. It con- del orden urbano y cultural que la celebración im-
sists of an Ethnographic study, via Participant prime en el lugar. Consiste en un estudio etnográ-
Observation, which uses bibliographic research fico, a través de la observación participante, que
in archives and libraries to periodicals, as well utiliza la investigación bibliográfica en archivos
as interviews, photographs and footage of the y bibliotecas para publicaciones periódicas, así
celebration and its social and cultural actors in como entrevistas, fotografías y filmaciones de la
moments of enjoyment and devotion to the Ori- celebración y sus actores sociales y culturales en
xá. Searching for clues through the collective and momentos de disfrute y devoción al Orixá. Bus-
affective memory present in the cultural, fruition cando pistas a través de la memoria colectiva
and religious practices of the interlocutors he- y afectiva presente en las prácticas culturales,
ard and observed in the communities, daily life fructíferas y religiosas de los interlocutores es-
in the neighborhood and on the day of the party, cuchados y observados en las comunidades, la
we seek to contribute to the understanding of the vida cotidiana en el vecindario y el día de la fies-
urban evolution of the city, as well as to unders- ta, buscamos contribuir a la comprensión de la
tand how socio-cultural resignifications that in- evolución urbana de la ciudad, así como a com-
fluence the local landscape and architecture. If, prender cómo Resignaciones socioculturales que
on the one hand, the tourism and entertainment influyen en el paisaje y la arquitectura locales.
industries, together with the breweries and other Si, por un lado, las industrias del turismo y el en-
sponsors, mischaracterize and empty the ele- tretenimiento, junto con las cervecerías y otros
ments of culture and religion and folklore them, patrocinadores, caracterizan erróneamente y
on the other hand the anonymous characters of vacían los elementos de la cultura y la religión y
the fishing community and followers of religions los folclóricos, por otro lado, los personajes anó-
of African-Brazilian origin, resist and star in one nimos de la comunidad pesquera y seguidores de
of the biggest religious celebrations in Brazil and religiones de origen afrobrasileño, resisten y pro-
intangible heritage of humanity. tagonizar una de las celebraciones religiosas más
grandes de Brasil y el patrimonio inmaterial de la
humanidad.
IEMANJÁ PARTY INTANGIBLE HERITAGE SALVADOR

PARTIDO IEMANJÁ PATRIMONIO INMATERIAL


IEMANJÁ
EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
A cena representada abaixo (Figura 1) retrata um
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
dos maiores eventos do calendário festivo da
Bahia. Anualmente, dia 2 de fevereiro, milhares
vídeo-pôster de pessoas se dirigem ao bairro do Rio Vermelho
para prestar homenagens a um dos Orixás1 do
Panteão Africano: Iemanjá2.
A FESTA DE IEMANJÁ NA No ano de 2020 a festa contou, segundo a or-
CIDADE DE SALVADOR ganização, com cerca de 1 milhão de pessoas.
Atualmente o festejo acontece em diferentes
espacialidades e temporalidades. De maneira
THE YEMANJÁ PARTY IN THE CITY OF SALVADOR horizontal o espaço se divide em três sítios3: o
mar, a areia da praia e o asfalto e verticalmente
LA FIESTA YEMANJÁ EN LA CIUDAD DE SALVADOR em função do tempo4.

1. Segundo, Velame (2019), os Orixás seriam “[...] as divin-


dades nagôs que foram reunidas na Bahia pelos escravos
em um panteão, tendo no terreiro o seu lar, distinto de seu
culto na África, onde cada cidade e região cultuam uma
determinada e especifica divindade. Os Orixás são essen-
cialmente as energias em estado puro e concentrado da
natureza.” (VELAME, 2019, p.20).

2.“Iemanjá a mãe das águas, aquela que mora na Iorubalân-


dia, veio para o Brasil acompanhando os primeiros escravos,
para ajudar sua gente no cativeiro.” (SELJAN, 1973, pag.
15). Muitas são as representações atribuídas, bem como
qualidades e nomes. Em nossas pesquisas encontramos
16. Existem Iemanjás idosas, de meia idade e jovens, da
mesma forma que podemos encontrá-las em diversos tipos
de águas (profundas, rasas, limpas, calmas...).

3.No mar encontram-se diversos tipos de embarcações


que variam da canoa ao iate, cada qual com seu público
e finalidade, como por exemplo, a entrega de oferendas
ou simplesmente uma festa de amigos. Na areia são rea-
lizados rituais sagrados dos grupos religiosos e pessoas,
de maneira individual, vão fazer suas homenagens. Nas
ruas se apresentam diversos grupos de capoeira, rodas de
samba, mini trios, manifestações políticas entre outras...
Ali também se organiza uma fila onde os devotos depositam
seus presentes.

4.Apesar de ser a mesma festa, de acordo com o horário,


acontecem mudanças de público e interesses, onde “[...]
alguns trazem oferendas e escrevem seus pedidos, ou
silenciosamente os anunciam para ‘rainha do mar’. Outros
participam de diferentes modos da ‘Festa de Largo’ que eclo-
de ao redor da praia...” (BLASS, 2007, p.03).Dois momentos
são distintos dentro dessa configuração e que merecem
16º SHCU
destaque: A “alvorada” ao amanhecer, onde há uma queima
30 anos . Atualização Crítica
de fogos e ao final da tarde a “saída do presente” que conta
1334 com um “presente principal” elaborado pelos pescadores
A Festa de Iemanjá é a única da cidade que não cultura e entretenimento em torno de uma co-
se configura na perspectiva do “paralelismo re- memoração bastante interessante para o capital
ligioso” ou “sentimento de dupla pertença”, pois privado. As consequências desse tipo de parce-
ao contrário das outras não estabelece ligação ria é que de um lado ela dá visibilidade a festa,
entre o Orixá e santos da Igreja Católica como porém do outro promove esvaziamento cultural
acontece na Lavagem do Bonfim (Oxalá), Festa e folclorização e gera resultados desastrosos
de Santa Bárbara (Iansã), Festa da Conceição para os elementos sagrados das religiões como
(Oxum)... (CASTRO JUNIOR et al, 2014). no caso em que as marcas de cerveja imprimem
à paisagem urbana a suas cores em detrimento
Apesar de existir, desde 1967, uma Comissão Or-
ganizadora entre os pescadores da colônia Z-1 ao azul e branco que representa Iemanjá.
para que a festa aconteça (PORTO FILHO, 2008),
Dessa forma, o motivo dessa investigação é identi-
o Poder Público atualmente agencia a organiza-
ficar a gênese desse folguedo. Quando, como, por
ção e logística do dia 2 de fevereiro atuando na
segurança pública, saúde, iluminação, controle quem ele é criado e quais as motivações? Qual o
do tráfego marítimo, trânsito e acesso ao lugar “momento dramático” em que o Estado começa a
entre outros. intervir no evento? O que reverbera no processo de
formação urbana e sócio-cultural da cidade? Convi-
Há também um assédio das indústrias do turismo, damos o leitor a embarcar nessa viagem conosco...

Figura 1: Festa de Iemanjá. Fonte: Santos Junior (2019).

A GÊNESE DA FESTA O Rio Vermelho antes da chegada do colonizador


europeu era morada dos indígenas Tupinambás,
Iemanjá, “[...] mãe de todos os Orixás, a mãe de etnia que tinha domínio da técnica da pesca (DE
tudo que existe sobre a face da terra.” (SELJAN, SENA, 2011). O antigo entreposto de contrabando
1963, p. 29). É protetora dos marinheiros, pesca- de pau-brasil comandado por Caramuru (RISÉRIO,
dores, lavadeiras, marisqueiras e mulheres do 2004) se transforma em balneário turístico entre
cais e tem seu culto em todas as partes do mundo os anos de 1880 e 1930 a ponto de ser considerado
(SANTOS JUNIOR, 2018). como o “primeiro balneário turístico da Bahia”
e as demais oferendas depositadas em um barracão pelo constituindo-se um “sofisticado centro de vera-
público geral. neio...” (PORTO-FILHO, 2010).
EIXO TEMÁTICO 2 Porém a tradição pesqueira dos antepassados
Tupinambás cria raízes no lugar. O Rio Vermelho
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS sempre teve tradição com a pesca (LOPES, 1984;
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES PORTO FILHO, 1991). Os “riêros” como eram conhe-
cidos os pescadores da região “pelos colegas de
outros núcleos pesqueiros”, juntamente com os
pescadores de Itapuã, se dedicavam à pesca das
baleias5, onde tinham a costa soteropolitana como
rota. As baleias abatidas eram transportadas para
os núcleos em terra de Itapuã e Manguinhos, na
Ilha de Itaparica, e daí era comercializado o seu
óleo e a sua carne. (PORTO-FILHO, 1991, p.81).

Nos séculos XVII e XVIII documentos já faziam “[...]


referência a uma casa de aferição das medidas
das vendagens de pescado, denominada Casa do
Peso6 (Figura 2) instalada na praia da Mariquita. O
porto da praia da Mariquita, onde a Casa do Peso
estava localizada, funcionava como principal por-
to da costa norte do Estado.” (COSTA, 2011, p.26).

Apesar de o bairro ter abrigado fábricas7, os pes-


cadores, juntamente com os comerciantes, mo-
vimentavam a economia local, principalmente
antes do processo de especulação imobiliária
que se deu nos anos de 1970.

O fato do bairro estabelecer ligações com im-


portantes pontos da cidade, sobretudo o recém
construído aeroporto, supervaloriza o local. Fa-
zendas e chácaras são loteadas para atender a
demanda do vertiginoso mercado imobiliário. Em
agosto de 1971 Ubaldino Gonzaga resolve lotear

5.A carne da baleia alimentava a população negra da cidade,


e o seu óleo era usado na iluminação pública (NASCIMENTO,
2007).

6.Atualmente chamada de Casa de Iemanjá, servia de


abrigo para o material usado na pesca e para a pesagem e
armazenamento dos pescados. Foi construída “[...] antes
mesmo da nova Igreja de Santana ser construída em 1963
e sempre desempenhou o papel de núcleo de organização
dos festejos à Iemanjá. Foi “[...] colocada em sua frente
uma estátua [...] sob a forma de metade mulher e metade
peixe [...] de autoria do escultor Manoel Bonfim”.” (PORTO
FILHO, 1991, p.81)

7.Na década de 60 chegam ao bairro, na Avenida Vasco da


Gama, duas fábricas de grande porte, uma de biscoito e
outra de refrigerante: a Águia Central e a Coca-cola. Essa
16º SHCU
última, “pertencente a Refrigerantes da Bahia S/A, então
30 anos . Atualização Crítica
a única empresa no Estado autorizada a engarrafar e co-
1336 mercializar a bebida americana.” (PORTO FILHO, 1991, p. 31).
sua chácara que se localizava entre o final da Rua Filho (1991), até o início da década de 1960, era
Waldemar Falcão e a margem esquerda do Rio conhecida como o “Presente da Mãe d’Água”, que
Lucaia. A compradora, Imobiliária Corrêa Ribeiro, depois ganhou a denominação atual, Festa de
em 1972 comercializa esses lotes com o nome de Iemanjá.
Parque Lucaia, onde uma camada da chamada
“classe alta” viria a construir suas casas. (PORTO Devido a falta de registros não existe unanimidade
FILHO, 1991, p.32). entre os historiadores a respeito de quando foi re-
alizada a primeira festa para Iemanjá. Até mesmo
Mesmo de maneira subalterna participavam das na história oral há desencontros de informações.
comemorações da Igreja Católica em devoção A Festa de Iemanjá segue rituais transmitidos pela
a Nossa Senhora de Sant’ana. Essa festa tinha, tradição oral e por esse motivo a sua organização
além das comemorações na igreja, uma parte e abrangência podem se alterar “[...] no decorrer
voltada para o que Porto Filho (1991) chama de dos tempos. Protagonistas e principais atores
“Programação Popular”, que se dividia em: Coro- sociais envolvidos na sua produção desconhecem,
ação da Rainha, Banho de Mar à Fantasia, Bando muitas vezes, as origens e matrizes simbólicas
Anunciador, Lavagem da Igreja, Sábado de Ternos dos rituais das festas...” (BLASS, 2007, p.10).
e Ranchos, Segunda Feira Gorda e Entrega do
Ramo. (PORTO FILHO, 1991, p.93 e 94). Um dos memorialistas da Bahia, Licídio Lopes
em suas crônicas do cotidiano nos revela que os
No que tocava a “Programação Religiosa”, o evento primeiros responsáveis pelas festas foram três
contava com uma comemoração que durava nove pescadores e dois peixeiros: “[...] Alípio Capen-
noites. No décimo dia (um domingo), a procissão ga, Saturnino, apelidado por Satu, e Florentino
percorria as principais ruas do bairro e tinha a apelidado por Fulô e também Olavo e Clemente
sua frente uma comissão de representantes da Tanajura...” (LOPES, 1984, p.60). Segundo ele esse
comunidade de pescadores, onde o pescador grupo, na década de 1920, com ajuda dos demais:
mais antigo ostentava “um lindo crucifixo” acom-
“[...] pescadores, conseguiram uma caixinha
panhado dos demais “colegas de profissão”, com
de papelão, cada um botou seu presente que
“suas capas e tochas”. Crianças carregavam “um
constava de perfumes, pós-de-arroz, sabo-
peixe de papelão, bem grande, confeccionado
netes, espelhos e outras coisas, botaram
para este fim, ou uma cruz envolta por flores di-
a caixinha dentro de um balaio, enfeitaram
versas”. Durante essas comemorações religiosas
com muitas flores e fitas, fizeram muitos
“no Largo de Santana transcorriam manifestações
pedidos para Iemanjá ajudar, botaram em
populares...”, a primeira para as pessoas de “maior
um saveiro com bandeiras de papel, onde
recurso” e a segunda para as demais pessoas
embarcaram os encarregados do presen-
menos favorecidas economicamente. (PORTO
te. Outras embarcações levaram outros
FILHO, 1991, p.94).
pescadores e as famílias, e os amigos que
Não distante disso, os pescadores destinavam quiseram embarcar; foram batendo palmas,
uma parte da venda do pescado para o pagamento cantando sambas e soltando muitos fogue-
do dízimo. Num período de escassez resolveram tes. Quando chegaram no lugar apropriado,
deixar de contribuir com o dinheiro o que resultou o saveiro que levava os presentes, que ia na
no rompimento com a igreja (PORTO-FILHO1991, frente dos outros, estancou a carreira, bo-
p.95). A Festa de Iemanjá8, de acordo com Porto tavam os presentes, sempre cantando para
Iemanjá. As outras embarcações fizeram a
volta e botaram as flores no mesmo lugar.
8.“Nas sociedades contemporâneas ocidentais, as festas Voltaram, chegaram em terra, fizeram um
como, por exemplo, as de Iemanjá, no dois de fevereiro em samba de roda, se divertiram até alta noite.
Salvador, permanecem como manifestações residuais.
Assim, trabalho parece se opor ao lúdico, à festa; trabalho
e não trabalho, dimensões complementares da vida, estão encontramos um caráter formativo, onde através do lúdico
separadas entre si...” (BLASS, 2007, p.10). Embora se esta- acontecem conquistas no campo político. A prova disso
beleça essa relação do lazer em oposição ao trabalho, não é que comunidades como o Morro da Sereia e Vila Matos
só da Festa de Iemanjá, mas todas as demais festas afins, ainda existem em meio ao luxuoso bairro.
EIXO TEMÁTICO 2 Assim realizou-se o primeiro presente a
Iemanjá no Rio Vermelho.” (LOPES, 1984,
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS pag. 60).
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
Ubaldo Marques Porto Filho segue precisando que
foi em 1924 que um grupo de “[...] 29 pescadores
resolvem organizar a entrega de um presente a
Iemanjá [...]” e a “[...] Mãe de Santo que organizou a
festa foi Julia bogum do Terreiro Língua de Vaca,
sendo sucedida por Mãe Emília...” (PORTO FILHO,
1991, p. 95).

Existem, também, vestígios que as primeiras co-


memorações à Iemanjá teriam sido realizadas na
comunidade da Pedra da Sereia9 (Figura 2). Ali,
até os anos de 1920, entre as praias do Canzuá e
Paciência, em cima das pedras:

“[...] havia uma gruta muito grande que os


antigos diziam que era a casa da Sereia ou
Mãe D’água, porém ela não morava mais
ali e a gruta estava abandonada. A gruta
era muito grande e parecia uma casa, ca-
bia um homem em pé. Era uma espécie de
salão onde cabiam muitas pessoas, havia
lugares que diziam que eram prateleira,
pilão e outras coisas. O mais importante é
que no meio do salão havia uma poça em
forma de banheira, que conservava sempre
água doce, que minava das próprias pedras.
Muita gente quando estava com sede, ia
beber água ali, pois a água era muito boa.
Diziam que a mãe D’água depois que tomava
banho doce, ia para aquela pedra em fren-
te da gruta perto do mar, que se chamava
Pedra da Mãe D’água, ou Pedra da Sereia...”
(LOPES, 1984, p.58).

O autor revela que uma empresa de exploração de


pedras, na década de 1920 teria demolido a gruta
(LOPES, 1984, p.58). O fato que chama a atenção
é o de que existia um lugar especifico, fora dos
terreiros em que se homenageava Iemanjá. O
então “[...] ‘Alto de Bibiano’, e antes, ‘Canzuá’. His-
tória dos antigos... Foi aqui que nasceu a festa do
2 de fevereiro, em homenagem a Iemanjá, a orixá
protetora do mar e dos pescadores. Sendo aqui

9.Considerada como área remanescente de quilombo (PAS-


16º SHCU
SOS, 1996) o Morro da Sereia é dividido em duas partes, uma
30 anos . Atualização Crítica
ao nível do mar, conhecida como Pedra da Sereia (Figura 1) e
1338 outra denominada Alto da Sereia, na parte acima do cume.
uma comunidade de pescadores.” (TERREIROS marcam espaço no território físico, cultural e
DE GRIÔS, 2014). afetivo do bairro e o Candomblé incorpora seus
elementos sagrados a lugares que transcendem
Dessa forma, fica evidente como se deu o pro- os portões dos terreiros10. (SODRÉ, 1988).
cesso de resistência urbana, onde os pescadores

Figura 2: Festa de Iemanjá na década de 1920. Fonte: Lopes (1984, p.31, 85 e 88).

10.O terreiro pode até conter critérios geotopográficos (lugar


físico delimitado para o culto), porém este não deve somente
“[...] ser entendido como um espaço técnico, suscetível de
demarcações euclidianas. Isto porque ele não se confina
no espaço visível, funcionando na prática como um ‘entre-
lugar’ – uma zona de intercessão entre o invisível (orum) e
o visível (aiê) – habitado por princípios cósmicos (orixás) e
representações de ancestralidade...” (SODRÉ, 1988, p.75).
EIXO TEMÁTICO 2 A METAMORFOSE...
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
Nessa direção a festa vai sobrevivendo à custa de
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
rifas, “caixinhas”, livros de ouro e ajuda de comer-
ciantes locais. Em 1967, um pescador chamado
Flaviano do Santos organiza uma comissão de
pescadores onde “[...] conseguiu auxílio junto à
Superintendência de Turismo de Salvador (Sutur-
sa, atual Bahiatursa), e promoveu uma festa muito
boa, bonita e diferente de todas as anteriores,
conforme reconheciam os próprios pescadores...”
(PORTO FILHO, 1991, p.96).

Esse foi o que iremos chamar de “momento dra-


mático” do evento, no qual a Prefeitura começa
a intervir na festa. Até então o evento acontecia
de maneira improvisada, não havia sanitários e
demais equipamentos/serviços que hoje atendem
o público. Nessa direção, Porto Filho (2008) vai
considerar o pescador Flaviano como um:

“[...] divisor de águas, entre dois tempos do


evento, a época do Presente da Mãe d’Água
e a fase em que se passou a ser chamado
de Festa de Yemanjá”. Entre os pescadores,
foi o primeiro a vislumbrar o 2 de fevereiro
como uma festa também de cunho cultural
e turístico.”(PORTO FILHO, 2008, p.85)

Seria a primeira vez que o evento teria suporte


do órgão municipal de turismo. Com esse “[...]
apoio oficial, a Festa de Yemanjá ganhou um novo
impulso. Além dos recursos financeiros, a Sutursa
investiu na sua divulgação turística. Foi o início
do período da vertiginosa ascensão da Festa de
Yemanjá, que passou a ter uma relevante impor-
tância nacional...” (PORTO FILHO, 2009), p.29)

Cinco anos depois, em 1972, a comissão da festa


do Rio Vermelho admite novamente a apelar ajuda
à Sutursa, pelo fato da falta de recursos próprios
para organizar o evento que ainda se dava pelo
recolhimento de dinheiro através de doações e
promoções, ou seja, a festa não conseguia mais se
auto sustentar por conta do volume que o evento
tinha alcançado.

Paralelo a isso, a música “Dois de Fevereiro”


composta pelo artista baiano Dorival Caymmi é
16º SHCU regravada em 1969 pela cantora Maria Bethânia.
30 anos . Atualização Crítica
O sucesso, teve projeção nacional e deu visibili-
1340 dade tanto ao bairro, quanto a festa, a ponto de
Caymmi ganhar uma casa para morar no bairro. aspectos religiosos, o evento em si acaba sendo
Ele foi “[...] trazido pelo governador Luis Viana uma maneira da comunidade conseguir uma renda
Filho para residir novamente em Salvador. O bairro extra nesse período, pois a festa:
escolhido foi o Rio Vermelho, onde o governador
lhe ofertou a casa de numero 2 da Rua Pedra da “[...]apresenta múltiplos significados con-
Sereia...” (PORTO FILHO, 2009, p.28). forme os diversos atores sociais nela envol-
vidos. Por isso, o ritual e a performance dos
Recordemos que se tratava de um bairro que pas- pescadores parecem, sob olhares externos,
sava por um momento de “ascensão” imobiliária atender mais ao interesse turístico do que
e era interessante atrair nomes que agregassem aos canoeiros na sua labuta diária com o
valor e potencializa-se a fama do lugar como “ce- mar. No entanto, a festa segue, sob olhares
leiro de artistas e intelectuais”. internos, preceitos e propósitos dos seus
protagonistas, que a realizam, antes para
Doravante, a Prefeitura aumenta o investimento e
si mesmos. Ao fazerem para si mesmos,
intervenção na Festa de Iemanjá. A gestão pública
tinha interesse em melhorar a dinâmica das ruas oferecem uma oportunidade de um ato de
no sentido de deixar a sua marca, não importa fé para os outros, ou seja, para quem vem
que para isso a cultura popular se esvaziasse: de longe descrente; para os moradores do
o processo de mercantilização do festejo tinha bairro e para os devotos da cidade. Assim,
dado seu início. a festa pertence também aos outros, con-
fundindo produtores e consumidores nessa
Em contrapartida, vale ressaltar que além dos manifestação festiva.” (BLASS, 2007, p.12).

Figura 3: Pedra da Sereia e Casa de Iemanjá. Fonte: Santos Junior (2020).

Sendo assim, ao passo que a modernidade traz manutenção e auto-afirmação das pessoas da
novos traços ao contorno da festa, como a pre- comunidade no espaço urbano, pois as:
sença de trios elétricos, ainda se mantêm práticas
tradicionais da religiosidade e cultura. Manter “[...] forças sociais subalternizadas entram
a tradição é uma estratégia de sobrevivência, em diálogo ou confronto, no campo simbóli-
EIXO TEMÁTICO 2 co, com a ordem estabelecida, tais disputas
podem desestabilizar a ordem hegemônica
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS e assim a festa revela seu potencial trans-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES gressor. Entre a sua caracterização como
reafirmação da ordem ou instauração do
caos, creio ser cabível a percepção da festa
como espaço de competição e negociação
entre diferentes paradigmas, que se dão ao
sabor das articulações ali estabelecidas.”
(AGUAS, 2012, p.63).

Dessa forma, os trabalhadores informais que atu-


am na festa, como ambulantes, moto taxistas,
guardadores de automóveis e outros, acabam
conquistando nesse “jogo cultural” (HALL, 2003)
uma estratégia de subsistência fora das “zonas
opacas” , ou sombreadas da cidade em que vi-
vem11. Estes, juntamente com os pescadores,
benzedeiros, benzedeiras, lideranças religiosas
e pessoas adeptas do Candomblé e demais religi-
ões, ao longo do processo histórico, tiveram suas
histórias e práticas encortinadas e/ou moldadas
na cena urbana.

O Professor Hélio Campos, batizado na Capoeira


como Mestre Xareu, que viveu no Rio Vermelho,
na Rua da Paciência nas décadas de 1950 a 1980,
nos revelou em depoimento que:

“[...] a festa de Iemanjá era uma festa dos


pescadores... [...] meu pai recebia os co-
legas do Tesouro do Estado e os reunia
na varanda de minha casa, onde se servia
feijoada e sarapatel. Eles não chegavam

11.Paola Berenstein Jacques (2012) fala da tensão entre


os espaços “opacos” e “luminosos”: [...] como dizia Milton
Santos, das zonas escondidas, ocultadas, apagadas, que
se opõem às zonas luminosas, espetaculares, gentrifica-
das. Uma outra cidade, opaca, intensa e viva se insinua
assim nas brechas, margens e desvios do espetáculo ur-
bano pacificado. O Outro urbano é o homem ordinário que
escapa – resiste e sobrevive – no cotidiano, da anestesia
pacificadora. Como bem mostra Michel de Certeau, ele
inventa seu cotidiano, reinventa modos de fazer, astúcias
sutis e criativas, táticas de resistência e de sobrevivência
pelas quais se apropria do espaço urbano e assim ocupa o
espaço público de forma anônima e dissensual (JACQUES,
2012, p.15). Em contrapartida, “[...] o espaço luminoso é
o espaço hegemônico da mercadoria, do espetáculo, da
16º SHCU
imagem – ou do que ofusca – enquanto o espaço opaco é
30 anos . Atualização Crítica
o espaço do corpo a corpo, da tentativa, da cegueira ou
1342 do tato, do conhecimento cego” (JACQUES, 2012, p.283).
tão cedo, era mais de meio dia em diante, uma mudança conceitual muito importante,
na hora do almoço [...] nós assistíamos a é o momento em que Salvador começa a
tudo da varanda e podíamos transitar nas deixar de ser uma capital provinciana, como
ruas com todo conforto, não era tão cheio também passa a pensar num desenvolvi-
como é hoje [...] era um glamour fantástico mento efetivo rumo àquele almejado pelas
ver os barcos saírem, a queima de fogos [...] grandes cidades do mundo. Sem esquecer
eram os saveiros [...] os terreiros vinham suas tradições, Salvador, num olhar que se
para a praia fazer seus rituais andando [...] volta para o passado, busca, a partir desse
eu observava de longe, nunca fui lá [...] é elemento que lhe é peculiar – o potencial
interessante falar por que eu e meus amigos cultural e visual que a natureza lhe legara
não íamos lá [...] era talvez pela questão do –, tirar proveito econômico, vislumbrando
preconceito, um preconceito cultural [...] acima de tudo projetar-se rumo ao futuro.
minha mãe teve uma experiência com o Tem início, então, o pensamento de ofere-
candomblé que não foi positiva para ela [...] cer aquilo que a natureza e a história lhe
e eu não recordo de nenhum de meus ami- reservaram como produto de consumo à
gos irem lá [...] era uma coisa que ninguém disposição de um cliente muito especial – o
tinha coragem de chegar perto [...] eu até turista – que começara a colocar a cidade
lembro das pessoa darem dinheiro, mais ir nos seus roteiros de viagem.”(FERREIRA,
lá ninguém ia...” (CAPOS, 2019). 2004 p.62 e 63).

A cultura começa a ser tratada como mercadoria.


As ações culturais do Estado começam a ter um
A FESTA NA CONTEMPORANEIDADE peso político e, sobretudo econômico, pois não
visavam somente:
Com a redemocratização do país há um início de
“[...] reconhecer a contribuição e a experi-
mudança de comportamento das pessoas perante
ência de manifestações afro-brasileiras.
o preconceito racial e intolerância religiosa. As
Estavam direcionadas para uma “mais valia
práticas outrora de “vadiagem”, como a Capoeira, simbólica”, no sentido enquanto nação: a
o Samba, e o Candomblé (Figura 4) começam a reprodução da cultura e a sua imbricação
sair do anonimato e marginalidade, pois as pes- com o incremento do pólo turístico que
soas negras e mestiças desde a década de 1970, começava a se efetivar, por exemplo, na
vêm buscando relembrar a sua identidade étnica Bahia.”. (SANTOS, 2009, p.114).
deixada lá no passado.Nas palavras de Antônio
Risério, a Bahia,a partir dos anos 80 passa por Esse turista chega à cidade e é visto como po-
um “processo de reafricanização” (RISÉRIO, 1981). tencial consumidor/cliente e tem o privilégio de
escolher o que quer consumir, bem como:
Paralelo a isso, Edson Dias Ferreira lembra que
Salvador e a Bahia entram no século XX sofrendo “[...] estabelecer o grau de satisfação que
com a“[...] incapacidade de dar novos rumos à eco- procura, além do fato de ser quem define a
nomia, fato este que se estenderá até o terceiro quantia que irá desembolsar; por sua vez,
quartel deste século, quando o Estado investe e os mecanismos públicos e privados cons-
promove políticas de industrialização e a cidade tituem os promotores e comercializadores
assume a natural vocação turística.” (FERREIRA, dos recursos turísticos, convertendo-os
2004, p.61). em produtos de consumo cujo propósito é
satisfazer ao cliente turista...” (FERREIRA,
“O período que começa a partir da década 2004 p. 63).
de cinqüenta irá marcar, de fato, um tipo
de mudança significativa no contexto da O capital privado enxerga nas grandes festas po-
cidade: promoção por parte do governo pulares uma excelente oportunidade de lucro.
municipal de ações públicas que visam Tais eventos movimentam generosas cifras seja
tornar a cidade atrativa ao visitante [...] A pela venda de abadás dos blocos de trio elétrico,
década de cinqüenta também vai marcar camarotes e demais festas particulares, aquilo
EIXO TEMÁTICO 2 que Dumazedier (1994) chamou de “paraísos ar-
tificiais”, ou seja, festas acontecendo dentro de
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS outra festa conforme visto na Figura 5.
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
A Prefeitura começa a estabelecer parcerias com
empresas privadas, principalmente cervejarias,
para realizar as festas de rua como o carnaval e
eventos afins. Em 2008 anunciou o presidente
da Empresa de Turismo de Salvador (Emtursa)
Misael Tavares:

“[...] a Emtursa não tem mais o papel de


fomentar ou de patrocinar blocos de carnaval
e festas de largo, mas de ser um articula-
dor com a função de viabilizar a realização
dos eventos culturais populares através da
captação de recursos. Dinheiro da iniciativa
privada é o xis da questão da revitalização
das festas populares para o novo modelo
em gestão dentro da Emtursa [...] a Emtursa
vai apostar em um único pacote para atrair
patrocinadores para as festas populares [...]
‘nós vamos lançar uma licitação em 2009, já
incorporando as festas populares também
no mesmo critério do carnaval’, afirmou
Tavares. ‘Aí podemos fazer aquilo que nós
fizemos no Rio Vermelho, com a decora-
ção’, completou, referindo-se à Festa de
Iemanjá deste ano, que [...] contou com o
patrocínio privado...” (BRITO, 2008, p.A5).

Figura 4: As rodas de Samba, Capoeira e Xirê. Fonte:


Santos Junior (2008).

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica Tal ação, conforme já dito na introdução aci-
1344 ma, traz consequências no mínimo desastrosas
para a cultura e os elementos religiosos, pois o Carnaval do mesmo ano, R$ 9,3 milhões. “[...] o
a estética da festa se transforma. As antigas valor reflete a profissionalização do segmento
barracas de comidas e bebidas são produzidas carnavalesco de Salvador, que investe em festas
em série e obedecem a um padrão estabelecido particulares com atrações de repercussão nacio-
pelo patrocinador. Além disso, os elementos da nal como, Chiclete com Banana, Ivete Sangalo,
pertença afro brasileira “[...] são mutilados e de- Cláudia Leite, Asa de Águia, Daniela Mercury entre
turpados pelo ‘olhar paisagístico’ da sociedade outros...” (BRITO, 2008, p.A6).
mais ampla, que representam com o seu olhar
etnocêntrico os Orixás, os deuses africanos nagôs
da Bahia, nos espaços públicos com temáticas
afro-brasileiras”. (VELAME, 2009, p.02).

Desde que o festejo foi ganhando “caráter co-


mercial” e motivo de movimentação de dinheiro
em grande escala, os pescadores e demais ato-
res sócios que lideram os preparativos da festa
começam a se dividir. No ano de 2008 para 2009
uma “queda de braço” foi notícia de jornal, entre
a administração da Colônia de Pescadores do Rio
Vermelho (Z1), que tinha Joel Gouvêia como pre-
sidente e a Associação Iemanjá do Rio Vermelho,
entidade criada pelo escritor Ubaldo Marques
Porto Filho (exaustivamente citado nesse artigo)
e o Sr. Eulirío Menezes para angariar fundos para
a festa. O episódio foi parar na justiça:

“Um grupo dissidente dentro da colônia,


liderado por Joel Gouveia, acusa Menezes
e Porto de terem interesses meramente
econômicos. ‘Querem angariar fundos, pa-
rece que eles estão comprometidos com
empresários. Mas eles não têm legitimida-
de.” Disparou Gouvêia. [...] Porto disse que
a associação foi criada para ajudar os pes-
cadores, não separá-los [...] como o atual
estatuto da Z1 não habilita a colônia a captar
recursos para a festa, Menezes teve a ideia
de criar a associação, com finalidade de tra-
zer dinheiro do empresariado [...] ‘os tempos
são outros, não se pode mais pegar o Livro
de Ouro (usado no passado para colher con-
tribuições do moradores para a festa). Hoje
a Prefeitura exige prestação de contas.
Temos de nos profissionalizar’. Argumen-
tou Ubaldo Porto...” (BRITO, 2008, p.A6).

Chama-nos atenção o termo “profissionalização”


usado, sinal de que o evento se torna um vantajoso
negócio. Em 2009 a produtora Pequena Notável
anunciou, através de seu sócio Alexandre Libe-
rato, o investimento de R$ 9 milhões. Quase o
mesmo montante estabelecido, em edital, para
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

Figura 5: Paraísos artificiais: As festas dentro da festa.


Fonte: Santos Junior (2019 e 2020).

Nessa direção, os eventos fechados caem no


gosto, tanto dos turistas, quanto da pequena bur-
guesia local. Passam a serem conhecidos como
“festas de camisa”. Feijoadas “Vips” servidas em
saguões e áreas verdes de grandes hotéis jun-
tamente com grandes shows atraem adeptos. A
cena cultural fica de fora dos muros e tapumes:

“[...] ‘são inúmeras festas dentro da festa


principal. Feijoadas, sambas e festas li-
ghts em homenagem aos santos. Isso não
prejudica a festa em si, pois as homena-
gens e os rituais continuam acontecendo’,
explicou a historiadora Edilece Couto. ‘Era
tão bonito ver a participação popular nas
festas de largo, a presença dos blocos afros
16º SHCU e afoxés. Hoje não tem mais incentivo para
30 anos . Atualização Crítica
a participação desses grupos’. Destacou
1346 a Ialorixá Ana Daraunké [...] o antropólogo
Ordep Serra acredita que as transforma- Percebemos em nossos apontamentos e itinerân-
ções ocorridas são fruto do acompanha- cia de estudo de 12 anos que a Festa de Iemanjá
mento das mudanças na sociedade e na imprime a cada ano uma mudança na paisagem
cidade. ‘As festas estão se transformando, urbana e arquitetura do lugar. Isso se faz percep-
se modificaram bastante. Algumas inclusive tível nas diversas fachadas de casas e prédios,
tendem a desaparecer. O ciclo das festas de esculturas em praças e na própria casa de Iemanjá
largo ficou empobrecido, muito por conta de ao lado da Igreja de Santana.
uma má política. As festas deixaram de ser
comunitárias e se tronaram massificadas. Entendemos que as práticas sócio-culturais e
(Dias, 2011, p.A7). religiosas que possuem os corpos como fio con-
dutor, também atribuem significados a evolução
Nesse mesmo ano a Empresa Salvador Turismo urbana da cidade. Estes são revelados através
(Saltur), o órgão da Prefeitura, anunciou o cadas- da memória afetiva e coletiva de seus pratican-
tramento de entidades culturais para participarem tes que dançam, lutam, jogam, comem, bebem,
das festas populares da cidade. Percebe-se a benzem, são benzidos, gingam, tomam banho
cada ano a intervenção e controle do evento por de mar, namoram, trabalham, entram em transe
parte do poder público. Em 2014 noticiou o jornal: religioso entre outros...

“Um arco delimitava a entrada da festa, na Um evento que “nasce” no início do século XX
Praia da Paciência, e até as proximidades do numa comunidade quilombola de pescadores,
Mercado do Peixe só era permitida a venda marisqueiras e outros trabalhadores com o ob-
dos produtos da Schincariol, patrocinadora jetivo de nutrirem sua devoção e fé e que acaba
do evento. Três mil caixas de cerveja de marcando o calendário festivo da capital seja pela
marcas não permitidas foram apreendidas. religiosidade presente nas oferendas e cultos à
A determinação não agradou comerciantes Iemanjá, seja pelos aspectos de cultura e fruição
que aqui citamos.
e consumidores [...] ‘ A gente tem o direito
de escolher o que quiser beber. Não pode Outro aspecto relevante se dá ao fato do poder
ser uma determinação, já que vamos com- público tomar o controle de um evento criado
prar’ contou a contadora Fernanda Souza, pelos populares. Atualmente a Prefeitura possui a
32 anos.” (MACHADO E PERL, 2014, p A4). gerência e controle do espaço público através do
ordenamento dos ambulantes, da sonoridade, da
Vale lembrar que os ambulantes para poderem tra-
organização da fila do presente, da segurança, da
balhar nas festas populares têm que passar por um
saúde, da vigilância sanitária, banheiros, ilumina-
cadastro da Prefeitura,através da Secretaria Mu-
ção, trânsito e demais equipamentos e serviços.
nicipal de Ordem Pública (Semop), onde atualmen-
Não será surpresa se algum órgão público surgir
te se cobra uma taxa de R$35,47. A pessoas enca-
com a ideia de fiscalizar as oferendas oferecidas
ram filas que duram mais de um dia. Outro fato é o
à Iemanjá. O nome da festa já tentaram mudar...
de que os vendedores têm de adquirir um “Kit” da
cervejaria para poder trabalhar. Em 2020, foram A partir do momento que se vislumbrou uma fonte
expedidas 500 licenças para a Festa de Iemanjá. de lucro nas festas de largo, o capital privado vem
adotando parcerias com o Estado. As indústrias
Em 2019, houve uma tentativa de mudar o nome de da cultura e entretenimento, cervejarias e demais
Festa de Iemanjá para 2 de fevereiro. Aos nossos patrocinadores descaracterizam e esvaziam os
olhos uma estratégia preconceituosa perante a elementos da cultura e religião, folclorizando os
cultura e religiões de matrizes africanas. mesmos. Porém, os personagens anônimos da
comunidade pesqueira e adeptos das religiões
de matrizes afro-brasileira, resistem e protagoni-
zam uma das maiores comemorações religiosas
CONSIDERAÇÕES FINAIS do Brasil e patrimônio imaterial da humanidade.

Passeamos pela história do Rio Vermelho. Uma Apesar da faceta espetacularizante das festas pri-
das cenas culturais mais importantes da cidade. vadas, trata-se de um espaço onde vários grupos
EIXO TEMÁTICO 2 e territórios negros marginalizados tencionam a
cidade contra o racismo estrutural da sociedade
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS brasileira e sua faceta urbana de segregação étni-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES co-racial. Seja através das práticas como o samba
de roda, o bumba meu boi, o maculelê, a capoeira,
os batuques, os candomblés, os afoxés, etc...

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1348
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16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1350
1351
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Desde a sua invenção no século XIX, a ferrovia
tem provocado grandes mudanças nas estru-
turas urbanas das cidades que se integraram à
vídeo-pôster rede ferroviária. Este artigo discute o desenvol-
vimento histórico e a formação urbana da cida-
de de Iguatu (CE) por onde passa a Linha Ferrovi-
A IMPLANTAÇÃO DA FERROVIA ária Sul da Rede de Viação Cearense (RVC). Para
tanto traça-se uma relação entre o processo de
E A URBANIZAÇÃO NA CIDADE industrialização e urbanização, ilustrada pela
chegada da ferrovia no município, bem como
DE IGUATU, CEARÁ entre o processo de desindustrialização e o sur-
gimento de espaços urbanos obsoletos, a partir
da desativação da linha ferroviária. Além disso,
THE IMPLEMENTATION OF THE RAILROAD AND são apresentadas questões a respeito do patri-
URBANIZATION IN THE CITY OF IGUATU, CEARÁ mônio industrial existente nas regiões centrais
das áreas metropolitanas. Objetiva-se a partir
OLIVEIRA, Ygor Nobre de do estudo destes assuntos discutir as transfor-
mações ocorridas na cidade de Iguatu após a
Graduando em Arquitetura e Urbanismo; UniFanor
implantação da estrada de ferro e caracterizar
ygor.ndo@gmail.com
o processo de obsolescência transcorrido no
Núcleo Ferroviário de Iguatu desde o encerra-
MENESES, Vítor Domício de
mento de suas atividades.
Mestre em Arquitetura e Urbanismo e Design; UniFanor
vitor.meneses@professores.unifanor.edu.br
IGUATU URBANIZAÇÃO FERROVIA
INDUSTRIALIZAÇÃO
COSTA, Amanda Gabrielle de Queiroz
Mestre em História; UniFanor
amanda.costa@professores.unifanor.edu.br

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1352
ABSTRACT

Since its invention in the 19th century, the railway


has caused major changes in the urban structures
of the cities that have integrated into the railway
network. This work discusses the historical deve-
lopment and urban formation of the city of Igua-
tu (CE) through which the Southern Railway Line
of the Cearense Road Network (RVC) passes. For
this, a relationship is drawn between the process
of industrialization and urbanization, illustrated
by the arrival of the railroad in the municipality,
as well as between the process of deindustriali-
zation and the emergence of obsolete urban spa-
ces, from the deactivation of the railway line. In
addition, questions are raised about the existing
industrial heritage in the central regions of the
metropolitan areas. The objective is from the stu-
dy of these subjects to discuss the transforma-
tions that occurred in the city of Iguatu after the
implementation of the railway and to characterize
the obsolescence process that has taken place in
the Iguatu Railway Center since the closure of its
activities.

IGUATU URBANIZATION RAILROAD


INDUSTRIALIZATION
EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
Este trabalho é fruto da realização de uma pes-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
quisa sobre o município de Iguatu no contexto da
elaboração de um Trabalho de Conclusão de Curso
de Arquitetura e Urbanismo para a área central
vídeo-pôster
do município com foco na mobilidade urbana.
No levantamento de dados sobre a área de inter-

A IMPLANTAÇÃO DA FERROVIA venção do projeto foram identificadas diversas


questões sobre a memória e a história do local,
E A URBANIZAÇÃO NA CIDADE principalmente no que diz respeito à instalação da
ferrovia e à consequente urbanização da região.
DE IGUATU, CEARÁ Iguatu é um município localizado na Região Cen-
tro-Sul do estado do Ceará, a 380 km da capital
THE IMPLEMENTATION OF THE RAILROAD AND Fortaleza, possui cerca de 100 mil habitantes e
URBANIZATION IN THE CITY OF IGUATU, CEARÁ está entre os 9 municípios mais populosos do
Ceará. Iguatu exerce, historicamente, protago-
nismo econômico na região, antigamente sendo
um centro de produção de algodão no estado e
atualmente concentrando produção e comér-
cio de calçados e móveis, além de uma gama de
serviços.

A chegada da ferrovia e, consequentemente, a


construção da Estação Ferroviária na cidade de
Iguatu (CE) em 1910 foi fundamental para o desen-
volvimento deste centro urbano que se tornou um
dos maiores do Ceará e principal polo econômico
da Região Centro-Sul do estado, como aponta os
dados do Informe n.º 142 do Instituto de Pesquisa
e Estratégia Econômica do Ceará (IPECE). A Linha
Ferroviária Sul da Rede de Viação Cearense (RVC)
conectou a Capital à região Sul, unindo o litoral do
estado ao Cariri durante décadas, favorecendo a
comunicação entre as localidades, bem como o
transporte de passageiros e mercadorias. Além
disso, provocou transformações no cenário ur-
bano de Iguatu e a passagem do trem alterou os
hábitos de vida e as relações sociais da população.

As mudanças geradas pela transição da cidade


industrial para a cidade pós-industrial produziram
transformações complexas nos espaços urbanos,
a partir do esvaziamento da ocupação industrial, a
ferrovia perdeu muito de sua função. Na cidade de
Iguatu, o trem de passageiros teve sua circulação
concluída na Linha Ferroviária Sul em 1988, porém
o transporte de cargas teve continuidade, em 2013
16º SHCU ocorreu a desativação total da linha e desde então
30 anos . Atualização Crítica
é notório o abandono da mesma e das edificações
1354 que compõe o núcleo ferroviário da cidade, que
por consequência passaram a adquirir o caráter INDUSTRIALIZAÇÃO, ESPAÇOS FERROVIÁRIOS,
de espaços urbanos obsoletos. PATRIMÔNIO E OBSOLESCÊNCIA
Segundo Sousa (2010), os espaços urbanos obso-
letos são aqueles que já entraram num processo O processo de industrialização
de obsolescência, o qual está associado ao es-
tado de deterioração do espaço edificado ou à A industrialização, desde o seu início, carac-
degradação do espaço urbano. Considerados teriza-se como um motor das transformações
expectantes, são lugares em compasso de espera na sociedade, ou seja, esse processo assume
que se encontram na estrutura urbana e estão um papel de indutor e dentre os induzidos estão
disponíveis para alterar o seu estado no futuro. os problemas relativos ao crescimento e plane-
Atualmente, o núcleo ferroviário iguatuense pode jamento, aos dilemas referentes à cidade e ao
ser compreendido como um espaço em estado desenvolvimento da realidade urbana, além das
de degradação que esvaziada de suas funções questões relacionadas aos lazeres e à cultura. Do
originais vem sendo, ao longo do tempo, ocupa- mesmo modo, a cidade desempenhou um papel
da por usos que eliminam a riqueza da memória importante na implantação de indústrias, gerando
histórica do local. um processo com dois aspectos: industrialização
e urbanização (LEFEBVRE, 2011).
O objetivo deste trabalho é refletir sobre a forma-
ção histórica de Iguatu verificando como a che- Sobre este assunto, Castells (2006) afirma que a
gada da ferrovia influenciou no desenvolvimento urbanização ligada à primeira Revolução Industrial
urbano do município e na organização do espaço. é um processo de organização do espaço, onde a
Com isso, evidencia-se o papel do processo de indústria é o elemento predominante e dinamiza-
desindustrialização, ilustrado pela desativação dor. Dessa forma, as cidades atraem a indústria
da Linha Ferroviária Sul, na transformação do devido a dois fatores essenciais, mão-de-obra
Núcleo Ferroviário de Iguatu, gerando espaços e mercado. Neste caso, a indústria desenvol-
urbanos obsoletos no tecido urbano. ve novas possibilidades de empregos e suscita
serviços. Podendo ocorrer também o contrário,
Buscando atingir o objetivo proposto, a investi- isto significa que, onde há elementos funcionais
gação foi realizada a partir de pesquisa biblio- como matérias-primas e meios de transporte, a
gráfica, pesquisa de campo com observação. A indústria coloniza e provoca a urbanização.
pesquisa bibliográfica contemplou consultas em
livros, artigos científicos e trabalhos acadêmicos O termo urbanização refere-se ao mesmo
sobre a história do município de Iguatu, espaços tempo à constituição de formas espaciais
urbanos obsoletos, industrialização, linhas férre- específicas das sociedades humanas, ca-
as e urbanização. A pesquisa de campo ocorreu racterizadas pela concentração significa-
através de visita nas edificações que compõe o tiva das atividades e das populações num
Núcleo Ferroviário de Iguatu (para levantamento espaço restrito, bem como à existência e à
das condições físicas), e através de observação difusão de um sistema cultural específico,
com foco na movimentação de pessoas e na di- a cultura urbana1. (CASTELLS, 2006, p. 46,
nâmica geral de uso do espaço público da área grifo do autor)
central do município (para identificar transfor-
Além disso, a transformação do processo pro-
mações a partir da obsolescência ocasionada
dutivo e a expansão comercial, resultado da in-
pela desativação da linha férrea).
dustrialização, implicou grandes mudanças em
A metodologia utilizada revelou-se eficaz ao de- diversas áreas, em especial nas comunicações,
monstrar a importância da pesquisa histórica pois o seu desenvolvimento tornou-se imprescin-
como dado relevante para a elaboração de projeto
de intervenção. Além disso, a pesquisa proporcio- 1. Segundo Castells (2006), a “cultura urbana” refere-se ao
nou informações essenciais para a compreensão resultado da ligação entre o espaço, o urbano e um sistema
do significado histórico da área de estudo para o de comportamentos, formando assim uma estrutura urbana
município de Iguatu. composta por diferentes unidades.
EIXO TEMÁTICO 2 dível para o avanço da economia fundamentada
no valor de troca. Por conseguinte, os meios de
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS transporte apareceram como um fator importante
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES à medida que reduzia os custos de circulação e
as distâncias entre os povos. Assim, a ferrovia,
considerada a maior conquista da Revolução In-
dustrial depois da máquina a vapor, foi o primei-
ro meio de transporte moderno utilizado para a
expansão da economia de mercado e alcance de
novos espaços (BORGES, 2011).

Borges (2011) aponta que a ferrovia se expandiu


conforme o crescimento e regionalização da
economia primário-exportadora2, isto significa
que, a construção das vias férreas ocorria se-
gundo os interesses de acumulação capitalista
e de grupos dominantes. No Brasil, as primeiras
ferrovias foram pequenas extensões entre
as regiões interioranas, produtoras de bens
primários, e um porto exportador, a estas linhas
se anexaram outras e assim construíram-se as
malhas ferroviárias regionais. O algodão, o cacau
e o açúcar fizeram parte das principais atividades
econômicas exportadoras da região Nordeste
(MONASTIRSKY, 2013).

O simbolismo e a experiência no entorno


de espaços ferroviários

Na busca pela construção de símbolos por parte


do movimento republicano, intencionado em con-
quistar o apoio da população, as inovações tecno-
lógicas se destacaram como a representação das
grandes transformações que viriam a acontecer
no Brasil. Com isso, a ferrovia transformou-se
facilmente num símbolo de progresso para o país,
pois representava características inegáveis como
a dinamização das exportações, as modificações
do espaço urbano, a segurança, agilidade e
conforto no transporte de carga e pessoas, a
aceleração dos processos de integração regional
e nacional, dentre outras (MONASTIRSKY, 2013).

Com a implantação dos equipamentos ferroviá-


rios, as cidades passam a concentrar inúmeras

2. Refere-se ao modelo de produção agrícola concentrada


16º SHCU
em alguns produtos — no caso do Brasil destaca-se o café,
30 anos . Atualização Crítica
cana-de-açúcar, algodão, etc. — voltado para o setor externo
1356 (MELLO, 2009).
modificações não só na economia e em sua es- Cultura material e patrimônio industrial
trutura física, mas também na dinâmica social e
cultural, assim, surgia um novo cenário para as Para a compreensão sobre os estudos do patri-
relações humanas. “O apelo popular do trem era mônio industrial, precisamos percebê-lo dentro
muito grande, sobretudo nas localidades do inte- de um campo interdisciplinar que tem como pre-
rior brasileiro. Ir à estação era, antes do advento cursora a arqueologia industrial, a qual, em ter-
do rádio e da televisão, o contato humano mais mos gerais, dedica-se ao estudo das instalações
importante com as pessoas, com o novo” (SCHOP- fabris, desde a época da Revolução Industrial até
PA, 2004, p. 09 apud MONASTIRSKY, 2013, p. 790). os dias atuais. Esse tipo de patrimônio muitas
Nesse sentido, nas cidades ferroviárias, existia vezes carrega uma complexidade por estar em
uma diversificação e efervescência cultural que um “espaço industrial”. Em geral, muitos desses
não ocorria em regiões afastadas dos trilhos. espaços foram bem estruturados, dotados de
uma racionalidade, foram planejados e conce-
Portanto, o simbolismo associado a ferrovia não
bidos dentro de uma logística em que incluíam o
advém apenas de cunho político, já que está, tam-
transporte e escoamento do que era ali produ-
bém, fortemente ligado a significação construída
zido e contemplando até a mão-de-obra de que
pela população que conviveu com a presença
necessitavam (SAMPAIO, 2015).
ferroviária, como aponta Monastirsky (2013, p.
781): “a notoriedade dos ‘bons tempos da ferrovia’ Nesse sentido, o núcleo ferroviário de Iguatu é
ficou registrada na mídia, na história oficial, nas aqui compreendido como patrimônio industrial,
lembranças dos trabalhadores ferroviários e das uma vez que foi criado para contribuir com a lógi-
pessoas que conviveram com os trens”. Assim ca de produção industrial do início da República,
sendo, mais do que a disposição física de seus impulsionando também outras áreas da economia.
equipamentos, os espaços ferroviários foram Todo o funcionamento da ferrovia depende de um
construídos emotivamente a partir de experiên- conjunto de edifícios industriais de diferentes
cias e, dessa forma, constituem-se como lugares tipos, mas todos dentro da mesma lógica racio-
de memórias. nalista da industrialização da segunda metade do
século XIX. Assim, é interessante percebermos
A cidade, portanto, não é apenas um conglo- esse conjunto a partir de uma visão prospectiva
merado de construções e leis. Ela é também da industrialização e de sua expressão na cultura
construída emotivamente a partir de cada material. Dessa maneira, os estudos sobre patri-
experiência vivida. Estruturas e sentimen- mônio industrial também precisam compreender
tos se conectam, um interfere no outro, o a dimensão do presente no patrimônio.
sentimento pode dar maior ou menor sig-
nificado a uma casa, ao passo que a casa Ao longo do tempo as noções de “património”
pode aflorar sentimentos variados em uma alargam-se pela velocidade das alterações
pessoa — medo, dor, tristeza, felicidade — económicas e técnicas e pelo novo papel
de acordo com as experiências vividas ali. das ciências humanas na sociedade do sé-
Nesse viés, portanto, o trem criou novas culo XX, fatores decisivos para a expansão
expectativas e sensibilidades. (ARAÚJO, do campo cronológico no qual se inscrevem
2014, p. 32) os monumentos históricos. Este aspeto é
particularmente importante para acompa-
Sobre a vivência na cidade de Iguatu posterior- nharmos o interesse e o âmbito do patrimó-
mente a integração ferroviária, Araújo (2014) nio industrial [...] Para o “património indus-
retrata que se criou uma praça no entorno da trial” este alargamento é decisivo na medida
estação destinada às sociabilidades e trocas de que as fronteiras da era industrial foram
informações que permitiu uma maior diversifi- transpostas em direção a um passado cada
cação de emoções e sentimentos, sejam medos vez mais próximo. (SAMPAIO, 2015, p. 49)
ou anseios, através de uma relação construída,
ao mesmo tempo, de maneira pessoal e coletiva A citação acima de Sampaio (2015) destaca essa
que permanece nas memórias transmitidas pelas extensão tipológica e cronológica que a noção
pessoas que vivenciaram esse período. de patrimônio recebe. A autora também destaca
EIXO TEMÁTICO 2 os processos de “desindustrialização” e “deslo-
camento de indústrias” como fenômenos que
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS chamam a nossa atenção, no presente, para a
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES história da indústria. Algumas das cidades que
se integraram a rede ferroviária buscam o apro-
veitamento dessas antigas infraestruturas atra-
vés da ampliação das linhas de metrô e veículos
leves sobre trilhos, gerando simultaneamente
uma preocupação em musealizar o conjunto ar-
quitetônico ferroviário, em outros casos essas
mesmas infraestruturas acabam permanecendo
em situação de desuso e abandono.

Segundo Monastirsky (2013), devido à falta de


política pública de conservação do patrimônio
cultural ferroviário no Brasil os destinos e as
funções das estações ferroviárias são diversi-
ficados. Com isso, o patrimônio industrial vem
sendo interpretado de forma limitada, onde as
edificações são encaradas principalmente pelo
potencial econômico agregado, muito mais que
pelo potencial sociocultural, tornando-se objeto
de adaptações a diversos usos, como restauran-
tes, mercados, habitações, dentre outros (RODRI-
GUES; CAMARGO, 2010). Nesse sentido, o patri-
mônio industrial apresenta-se mais acolhedor a
adaptações e modernizações, principalmente se
pertencerem a programas arquitetônicos que se
tornaram obsoletos.

O processo de obsolescência

Os teóricos da geografia crítica e radical, como


indica Mendes (2014), explicam que os processos
de desenvolvimento da cidade ou urbanização são
a manifestação espacial de acumulação de capi-
tal. Portanto, a mudança do processo de produção
capitalista, da cidade industrial para a cidade
pós-industrial, acarretou grandes modificações
nos espaços urbanos. No final do século XX, há
um aumento no número de fábricas desativa-
das, zonas industriais e edifícios abandonados,
decorrente do processo de desindustrialização,
com isso, muitas ferrovias perderam sua função.
Surge então o fenômeno dos vazios urbanos,
caracterizados como espaços sem usos e sem
limites evidentes resultados da ruptura no tecido
16º SHCU urbano, sob outra ótica, trata-se ainda de áreas
30 anos . Atualização Crítica
disponíveis e expectantes com forte memória
1358 urbana, onde a memória de seu uso anterior so-
bressai a presença atual (LEITE; AWAD, 2012). desses espaços vacantes, típicos da sociedade
pós-industrial, está na oportunidade que eles
Sendo assim, como aponta Sousa (2010), a condi- representam “de mudança, que pode implicar
ção de “vazio” não tem relação com a ocupação, novo uso, nova construção, ou pelo contrário,
mas sim com o seu uso, uma vez que esse conceito uma qualificação como espaço de memória ou
pode abrigar espaços com construções. Como espaço verde ou espaço de nova infraestrutu-
indica Clemente et al. (2012) a expressão “vazio ur- ração” (SOUSA, 2010, p. 60), nesse sentido, de-
bano” também inclui os espaços edificados, desde terminado espaço que possui uma conotação
que estejam improdutivos ou desprovidos de uso, negativa na cidade, traz consigo a possibilidade
assim, o vazio urbano pode ser entendido como de transformação futura.
consequência do processo de esvaziamento de
algo que se esgotou, ou seja, refere-se a espaços
vazios de usos, no caso das cidades ferroviárias
trata-se de vazios industriais. A LINHA FÉRREA DE IGUATU E SUA INFLUÊNCIA
‘Vazios Industriais’: cidades predominante-
NAS TRANSFORMAÇÕES URBANAS
mente com um perfil terciário, industriais
cuja transformação de uso leva ao apare- A história do município de Iguatu está estritamen-
cimento de vazios decorrente de antigas te vinculada ao processo histórico de colonização
áreas ferroviárias, fábricas, portos. Neste e ocupação do Ceará. A partir do aldeamento dos
tipo de vazios lidamos com grandes áreas Quixelôs, Telha (Iguatu), durante o século XVIII,
de infra-estruturas e com construção. São passava por um processo de transição de sítio
espaços cuja condição de vazio se relaciona para povoação, sendo grande parte de suas ter-
com o seu uso, ou neste caso, a falta dele. ras pertencentes aos moradores de Icó. Nesse
(SOUSA, 2010, p. 59-60) período a Vila de Icó, uma das primeiras e mais
importantes vilas criadas no Ceará, ganhou des-
Devido à conotação abrangente da expressão taque como importante entreposto comercial dos
“vazio urbano”, Sousa (2010), visando uma estru- sertões, conectando a Região Centro-Sul com o
turação dos significados, utiliza-se do conceito porto de Aracati (LIMA, 2011). O trecho presente
de “espaços urbanos obsoletos” — espaços urba- na “Enciclopédia dos Municípios Brasileiros” evi-
nos que entram num processo de obsolescência dencia esse fato:
devido à sua incapacidade de se adaptar às mu-
danças — de modo a propor novos termos que Em 1707, o padre João de Matos Serra, pre-
concentrem as diferentes acepções relacionadas feito das missões, percorreu a região habi-
aos vazios urbanos. Para tanto, é necessário en- tada pelos aguerridos Quixelôs, visitando,
tender como este processo de obsolescência de passagem, terras em que se acha loca-
acontece, Carmona (2003 apud SOUSA, 2010) o lizado o atual Município de Iguatu. As lutas
descreve em cinco dimensões, ligadas ora com que, posteriormente, se travaram entre
os edifícios e suas funções, ora com os espaços colonizadores e indígenas tiveram como
urbanos, sendo estas: obsolescência física/es- conseqüência a pacificação e o aldeamento
trutural, obsolescência funcional, obsolescência dos Quixelôs, num sítio próximo a confluên-
locacional, obsolescência legal e obsolescência cia do Jaguaribe com Trussu. O aldeamento,
de imagem. que era conhecido como Venda passou a
ser identificado pelo nome de Telha, em
A partir dessa compreensão, Sousa (2010) estabe- virtude da configuração convexa de suas
lece definições acerca das tipologias dos espaços terras, que convergiam para o rio Trussu.
urbanos obsoletos, sendo estas: espaços urbanos (IBGE, 1959, online)
desocupados, espaços urbanos desafetados e
espaços urbanos subutilizados. Vale ressaltar o Sobre a formação administrativa do município
caráter temporário e transitório destas classifi- de Iguatu destacam-se três marcos. O primeiro
cações, podendo o espaço compreender mais de ocorrido em 1851, onde o povoado de Telha é ele-
uma classificação ou alternar entre elas durante vado à categoria de vila através da lei provincial
sua existência. A importância da conceituação n.º 558, de 27 de novembro de 1851, onde a partir
EIXO TEMÁTICO 2 da sua inauguração, em 1853, Telha desmem-
bra-se de Icó. O segundo momento refere-se à
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS elevação à condição de cidade em 1874, pela lei
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES provincial n.º 1612, de 21 de agosto de 1874. Por fim,
em 1883, o nome Telha foi substituído por Iguatu,
pela lei provincial n.º 2035, de 20 de outubro de
1883 (IBGE,1959). Lima (2011, p. 92-93) aponta que
“as vésperas da proclamação da República, Iguatu
já demonstrava significativo desenvolvimento
econômico e ganhava destaque e influência na
política cearense”.

A formação histórica e urbana de Iguatu foi for-


temente influenciada pela escalada da atividade
algodoeira no estado do Ceará, bem como está
inserida “num contexto estrutural que correspon-
de à ascensão do capitalismo moderno ao nível
mundial” (LIMA, 2011, p. 93). O algodão passou a
ter maior importância econômica no Ceará com
a Guerra de Secessão, ocorrida entre 1861 e 1865,
que provocou a retração das exportações dos
Estados Unidos para a Europa. A partir desse
conflito, alavancou-se a produção e exportação
do algodão cearense, e o valor da exportação
algodoeira passou a superar, expressivamente,
o de outros produtos como couro, café e açúcar
no decorrer do século XIX (LIMA, 2011).

A chegada da ferrovia em Iguatu

Ao algodão, no Ceará, atribui-se uma importância


crucial no contexto agroexportador, este repre-
sentou a principal atividade agrícola do Estado
durante mais de um século, ficando conhecido
como o ouro branco. Como aponta Lima (2011,
p. 93) “são inegáveis as marcas deixadas pela
economia algodoeira na formação territorial do
Ceará, fato que pode ser apreendido tanto nas
formas materiais quanto nas imateriais que ainda
coexistem”. Nas últimas décadas do século XIX e
início do século XX, o algodão assume o posto de
principal atividade econômica do Ceará.

O estabelecimento da cultura algodoeira redefiniu


os fluxos econômicos, onde as redes de circu-
lação se voltaram para o litoral, sobretudo para
Fortaleza, devido ao aumento das exportações
16º SHCU para a Europa (LIMA, 2011). Sendo assim, o algodão
30 anos . Atualização Crítica
constituiu um fator primordial para a ampliação da
1360 infraestrutura ferroviária nas regiões produtoras
e, por consequência, contribuiu para a formação A figura 1 mostra a Linha Ferroviária Sul da RVC
e modernização do espaço cearense. — que conecta Fortaleza, no litoral, a Região Sul,
no Cariri — passando pelo município de Iguatu. Se-
As ferrovias além de traçar caminhos que gundo o historiador e residente de Iguatu, Wilson
acabavam ligando áreas com objetivos Lima Verde, em entrevista concedida a Lima (2011),
agro-exportadores, também modificaram a estrada de ferro em seus planos iniciais iria pas-
processualmente a configuração territorial sar por Icó, contudo sofreu a resistência da popu-
do Ceará, construindo e fortalecendo cida- lação e da elite local sob a alegação de que iria tra-
des como Baturité, Quixadá, Quixeramobim, zer muito barulho e desconforto para a população.
Senador Pompeu, Piquet Carneiro, Iguatu, Devido à localização de Iguatu, situado a margem
Missão Velha, Crato, Barbalha (Caminho de do Rio Jaguaribe, para a implantação da estrada
Baturité) e Camocim, Sobral, Ipú, Cariré, de ferro no município haveria a necessidade da
Nova Russas e Crateús (Caminho de Sobral) construção de uma grande ponte para atravessar
e redefinindo caminhos antigos, considera- o rio, fazendo com que os gastos fossem enormes
dos antes de grande porte, que passavam para tal feitio, dessa forma, o mais conveniente
nesse momento a ser secundários frente ao seria um traçado que desviasse da cidade.
tempo rápido das locomotivas [...]. (ASSIS;
SAMPAIO, 2009, p.13 apud LIMA, 2011, p. 95)

Figura 1: Mapa do eixo ferroviário no município de Iguatu-CE. Fonte: Elaborado pelo autor (2020).
EIXO TEMÁTICO 2 É diante desse cenário que se destaca a influência
política do Coronel Belisário Cícero Alexandrino,
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS chefe político aciolino3 da época, na província
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES cearense, o qual exigiu que a estrada de ferro
em construção passasse por Iguatu, o pedido
foi prontamente atendido pelo então Presidente
do Estado, Antônio Pinto Nogueira Accioly (LIMA,
2011). Com isso, em 5 de novembro de 1910 foi
inaugurada a estação e estrada de ferro ligando
o município a capital Fortaleza (BARROS, 1982)
e em 23 de janeiro de 1916 inaugurou-se a Ponte
Metálica4 sobre o Rio Jaguaribe (BARBOSA, 2016).
Araújo (2013, p. 10) indica que “provavelmente a
expansão do comércio de algodão tenha sido o
principal fator do desvio da estrada de ferro para
as terras de Iguatu”.

Figura 2: A - Ponte Metálica de Iguatu sobre o Rio Jagua-


ribe; B - Estação da RVC em Iguatu no início do século XX.
Fonte: IBGE (1959).

No decorrer do século XX, principalmente nas


primeiras décadas, as cidades que se integraram
à rede ferroviária vivenciaram notórias mudanças
econômicas e nas suas estruturas urbanas. Neste
contexto, a chegada da ferrovia na cidade signi-
ficava a possibilidade de maior comercialização
e mais acessibilidade para novas indústrias se

3. A oligarquia aciolina recebeu esse nome por ser coman-


dada por Antônio Pinto Nogueira Accioly, que governou o
estado de forma autoritária e monolítica entre 1896 e 1912
(BARBOSA, 2011).

4. A ponte possui 160 metros de extensão e foi construída


pela companhia inglesa SARCCOL (South American Railway
16º SHCU
Construction Company Limited), com seu desenho com-
30 anos . Atualização Crítica
posto por arcos metálicos de visual marcante tornou-se o
1362 cartão postal de Iguatu (BARBOSA, 2016).
instalarem. Lima (2011) aponta que nesse perío- também se destaca como um forte dinamiza-
do a cidade de Iguatu já começava a apresentar dor da urbanização do município. No mapa 4 é
indícios de que iria se tornar um grande centro destacado a área de maior desenvolvimento e
produtor de algodão, pois já apresentava consi- efervescência sociocultural, nas décadas do sé-
derável número de fábricas de beneficiamento culo XX, localizada no entorno da Igreja Matriz
de algodão e notória dinamização econômica. e da Estação de Iguatu, onde se encontravam
indústrias, hotéis, palacetes, sobrados, bancos,
Dessa forma, a chegada do trem na cidade foi cinemas, entre outras edificações que hoje em
decisiva para que Iguatu se tornasse um dos prin- dia, muitas delas, já não mais funcionam ou até
cipais produtores de algodão do Ceará. A cidade mesmo deixaram de existir.
de Iguatu, ao longo de boa parte das décadas do
século XX, foi referência na região devido à sua
condição de produtora de algodão: “a ‘princesa do
centro’ ou ‘princesa do ouro’, dentre os apelidos
que recebeu aparecia no cenário econômico na-
cional dos anos 1960 com sua produção cotada na
9.ª posição” (ARAÚJO, 2014, p. 26-27). Além de ser-
vir como base para o desenvolvimento econômico
da cidade, a ferrovia acarretou transformações
urbanas ordenadas a partir da localização dos
equipamentos ferroviários, podendo ser com-
preendida como o estopim para a modernização
de Iguatu, tal como afirma Barros:

Com a chegada da estrada de ferro, Iguatu


sofreu profundas transformações. Foram
construídas muitas casas novas. [...] Fez-
-se um cemitério novo. A rua do Comércio
chegou até a Praça da Estação. Estabelece-
ram-se dois hotéis (Iguatu antes da estrada
de ferro, não tinha nenhum). Abriu-se um
cinema bem montado. (Pelo menos, era mui-
to superior aos de Viçosa e Maranguape).
(BARROS, 1982, p. 224)

É sabido que a formação da maioria dos povoados,


vilas e posteriormente cidades brasileiras se
deu ao redor de capelas e igrejas, devido à forte
participação da Igreja Católica no desenvolvi-
mento dos núcleos urbanos. Do mesmo modo
ocorreu na cidade de Iguatu, o seu espaço cen-
tral se desenvolveu nas proximidades da Igreja
Matriz 5, onde foram estabelecidas a prefeitu-
ra e a cadeia pública (ARAÚJO, 2014). Todavia,
em Iguatu a construção da Estação, localizada
a cerca de quinhentos metros da Igreja Matriz,

5. A Igreja Matriz de Iguatu, também conhecida como Igreja


Matriz Nossa Senhora de Santana, segundo informações
do IPHAN (Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico),
não possui documento que identifique o período em que
foi construída.
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

Figura 3: Área de maior desenvolvimento nas primeiras


décadas do século XX em Iguatu. Fonte: Elaborado pelo
autor com base em Araújo (2014) e Lima (2011).

Dessa forma, transportando cargas, passageiros,


informações e cultura, a ferrovia delineou um
novo cenário para as relações humanas. Após a
implantação da Estação a paisagem urbana igua-
tuense foi modificada, as novas construções situ-
adas nos arredores tinham o intuito de vivenciar
a modernização proporcionada pelo trem, sejam
pelos jornais vindos da capital, a chegada de um
novo filme ou, até mesmo, pela maior circulação
de pessoas. Com o aumento das exportações e do
estabelecimento de indústrias nacionais — como
a Companhia Industrial de Algodão e Óleo (CIDAO),
construída entre 1921 e 1924 que ganhou destaque
16º SHCU na economia algodoeira da região por várias déca-
30 anos . Atualização Crítica das — Iguatu vivencia seus tempos áureos em boa
1364 parte das décadas do século XX (ARAÚJO, 2013).
A degradação e a descontinuidade ferroviária gigantescas e densas, ao mesmo tempo, muitos
núcleos urbanos antigos explodem gerando des-
A partir de 1930, no Brasil, o setor ferroviário entra locamentos para periferias distantes — induzidos,
em um período de crise encadeado pelas mudan- em parte, pela urbanização dispersa e fragmenta-
ças internas e externas, onde o país alterava a da influenciada pela disseminação do automóvel
dinâmica da economia para o ramo de mercado — ou se deterioram através do abandono e des-
interno e transitava do capital britânico para a valorização que ocorrem pela falta de manuten-
área de influência e domínio do capital norte-a- ção, uso, função e ocupação das áreas centrais.
mericano. Na segunda metade do século XX, o
Barbosa e Santos (2013) registram que a antiga
novo processo de produção exigia dinamismo
Linha Ferroviária Sul da RVC teve o funcionamento
no modelo de circulação, inicia-se assim, a era
do trem de passageiros desligado em 1988 e no
rodoviária brasileira promovida por incentivos do
ano de 2013 ocorreu a desativação total da linha.
poder público — baseados em interesses de grupos
Desde então, o prédio da antiga estação ferrovi-
econômicos e de grande capital internacional,
ária iguatuense vem sendo instrumento de usos
principalmente dos Estados Unidos — para im-
que não condizem com sua importância histórica
plantação de rodovias, em especial pelo Governo
ou até mesmo ficando em completo abandono em
Kubitschek (BORGES, 2011).
certos períodos, dessa forma, encontra-se em
Ao contrário das políticas adotadas para a mo- um estado de obsolescência nos últimos anos.
bilidade na maioria dos países, os sistemas de
transporte brasileiro não tinham articulação entre
si, nem adequação ao seu uso, isto significa que,
A OBSOLESCÊNCIA DO NÚCLEO FERROVIÁRIO
a política de implantação do sistema rodoviário
aconteceu com o desprendimento do ferroviário DE IGUATU
em vez de associar-se a este (MONASTIRSKY,
2013). Com isso, o Brasil começa abandonar o O Núcleo Ferroviário de Iguatu é composto, atu-
transporte ferroviário e seus equipamentos, o almente, por três edifícios: o prédio da estação,
caso da CIDAO é um exemplo desse sucateamento, o prédio de depósito e o galpão de garagem e
a indústria continha um ramal de ferrovia au- alojamentos. A princípio havia também um pré-
xiliar utilizado para conduzir o maquinário aos dio de oficina, contudo esse foi demolido devido
pátios internos, após alguns anos de inatividade a uma obra de conexão da malha rodoviária em
foi demolida, em 2009, para dar lugar ao Campus 2019. Além disso, outras edificações estão inse-
Multi-institucional Humberto Teixeira, contudo, a ridas no terreno do núcleo como uma residência
obra sucedida não considerou a importância do privativa, a antiga quadra poliesportiva da Rede
patrimônio ferroviário iguatuense, como aponta Ferroviária Federal S/A (RFFSA) e uma churrasca-
a reportagem do Ceará Notícia de 2011: ria, há também a presença de antigas instalações
como a caixa d’água, a subestação de energia e
Telhados, madeira, trilhos e ferro da antiga os tanques de armazenamento de combustíveis.
usina de algodão desapareceram da noite
para o dia. Até mesmo três vagões de trem O Núcleo Ferroviário de Iguatu, assim como a
que estavam há dezenas de anos abando- orla ferroviária, pode ser caracterizado como um
nados sobre trilhos na antiga unidade foram vazio industrial que teve seu uso esgotado após
cortados com uso de maçarico, sem contar a desativação total da Linha Ferroviária Sul em
também com o uma grande caixa d’água, com 2013, desde então, esses espaços vêm passan-
estrutura toda de metal, que sumiu sem dei- do por um processo de obsolescência que com-
xar rastros. (FERNANDES NETO, 2011, online) preende múltiplas dimensões. A obsolescência
física/estrutural pode ser nitidamente observada
Todo esse movimento de industrialização e tran- nos prédios que compõe o núcleo. O prédio da
sição econômica ocorrida ao longo do século XX, antiga Estação Ferroviária vem sofrendo, nos
resultou em um processo denominado, de acordo últimos anos, com a falta de manutenção e ações
com Lefebvre (2011), “implosão-explosão” da cida- de vandalismo como pichações, depredação e,
de, em que as concentrações urbanas tornam-se até mesmo, incêndio criminoso.
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

Figura 4: Estação de Iguatu após ações de vandalismo em


2016. Fonte: Diário do Nordeste (2016).

O galpão de garagem e alojamentos encontra-se


em um profundo processo de obsolescência físi-
ca/estrutural, estando totalmente sucateado no
espaço urbano, sem nenhum tipo de atenção ou
manutenção. A obsolescência funcional manifes-
ta-se através da perda e falta de uso nos prédios e
na orla ferroviária. No caso do prédio de depósito
observa-se também a atribuição de usos inadequa-
dos ao contexto da cidade, especialmente contexto
do patrimônio histórico-arquitetônico, sendo este
usado como ponto de van restaurante fast-food,
bar, casa noturna, entre outros. A Estação Ferro-
viária também passou por um período de obsoles-
cência legal, desde a desativação da linha em 2013
até a prefeitura obter a cessão de uso em 2017.

Figura 5: A – Prédio de depósito sendo usado como bar; B


– Galpão de garagem e alojamentos. Fonte: Grupo Memória
da Ferrovia Cearense no Facebook6 (2018).
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1366 6. Disponível em: <https://www.facebook.com/groups/


Pode-se ainda destacar a obsolescência locacio- ferroviária iguatuense, seja na sua implementação
nal, reforçada pelo espraiamento da cidade e a proporcionando viagens aos moradores de Iguatu
escassa oferta de alternativa de transportes para pelos municípios cearenses, ou até mesmo na de-
os deslocamentos da população até área central, sativação da estrada de ferro com a crise do setor
que fica sujeita a uma mobilidade privada, indivi- ferroviário e o aumento dos incentivos voltados
dual e motorizada. É fato que as questões ligadas para o sistema rodoviário. Esses acontecimentos
a mobilidade urbana estiveram intrinsecamente influenciaram diretamente no desenvolvimento
relacionadas aos desdobramentos da história do tecido urbano da cidade.

Figura 6: Levantamento fotográfico do núcleo e orla ferroviária de Iguatu. Fonte: Elaborado pelo autor (2020).

Diante do cenário apresentado, podemos enqua- uso no local e a presença dos remanescentes físi-
drar os espaços do núcleo e da orla ferroviária cos — estrada de ferro e prédios da estação — que
em duas classes, definidas por Sousa (2010), de remetem para as memórias dos tempos áureos
Espaços Urbanos Desafetados e Espaços Urbanos
de Iguatu. A segunda ocorre pela ocupação e uso
Subutilizados. A primeira se dá devido à falta de
inadequados, apresentados anteriormente, em
264508676990114/?post_id=1504560729651563> Acesso um espaço que possui um grande potencial para
em: setembro de 2020. ser um equipamento mais eficaz no tecido urbano.
EIXO TEMÁTICO 2 CONSIDERAÇÕES FINAIS
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
As percepções levantadas neste artigo revelam
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
que a integração de Iguatu na rede ferroviária
cearense foi fulcral para o desenvolvimento da
cidade no século XX, uma vez que a ferrovia e os
espaços ferroviários contribuíram diretamente
para o processo de urbanização e promoveram
melhorias urbanas, sociais e culturais no cenário
iguatuense. A partir do movimento de transição
econômica e o esvaziamento da ocupação in-
dustrial, os equipamentos e terrenos da ferrovia
entraram em decadência, dando margem ao sur-
gimento de espaços urbanos obsoletos.

A ferrovia foi desativada, contudo, o patrimônio


industrial, sobretudo ferroviário, de Iguatu ain-
da guarda a memória da cidade e a história da
industrialização na região, onde os edifícios e
estruturas complementares permanecem per-
meadas de histórias e significados. Na pesquisa,
observou-se, até o momento, a necessidade de
ações focadas na conservação deste patrimônio.
Como aponta Kühl (2010, p. 30), o patrimônio in-
dustrial deve exercer o seu papel primordial de
“ser documentos fidedignos e, como tal, servir
como efetivos suportes do conhecimento e da
memória coletiva”.

Os estudos aqui abordados objetivam propiciar


debates futuros sobre como esses espaços rema-
nescentes nas regiões centrais urbanas, podem
colaborar para o desenvolvimento sustentável
da cidade e, dessa forma, serem reinseridos no
tecido urbano contribuindo para a qualidade de
vida da população e uma maior valorização e vi-
sibilidade do patrimônio industrial.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1368
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EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Interpretar o centro histórico de uma cidade im-
plica compreendê-lo sob o viés de um lugar que
admite e conserva diferentes temporalidades,
vídeo-pôster materialidades impressas e também certas
imaterialidades, e que é neste conjunto que se
refletem sua memória e sua identidade. Para
A PAISAGEM URBANA sintetizar a paisagem urbana do centro histó-
rico de Florianópolis, toma-se como referên-
DO CENTRO HISTÓRICO cia o coração deste centro, cerne do mosaico
fundador da cidade: a Praça XV de Novembro
DE FLORIANÓPOLIS: e seu entorno imediato. Sendo esta um marco
centralizador das sociabilidades diárias citadi-
PERSPECTIVAS COTIDIANAS nas, o objetivo deste artigo é investigar como se
apresenta sua paisagem urbana atual e quais as
relações identitárias de outrora que podem ser
THE URBAN LANDSCAPE OF FLORIANÓPOLIS
percebidas, seja devido à sua perda ou perma-
HISTORICAL CENTER: DAILY PERSPECTIVES
nência. A investigação parte do pressuposto da
praça enquanto lugar praticado e sua análise se
EL PAISAJE URBANO DEL CENTRO HISTÓRICO DE torna possível mediante a observação de traços
FLORIANÓPOLIS: PERSPECTIVAS DIARIAS e dinâmicas cotidianas. O artigo se organiza em
três partes: primeiramente, houve a necessida-
RIOS, Larissa Ferraz de de revisitar e problematizar alguns conceitos
como os de paisagem, urbano e lugar, evocan-
Arquiteta e Urbanista Mestranda em Arquitetura e Urbanismo;
do principalmente autores como Georg Simmel,
Universidade Federal de Santa Catarina
lari.rferraz@gmail.com Manuel Delgado, Marc Augé e Michel de Certeau.
O segundo momento visa expor a construção
histórica das perspectivas sobre as sociabilida-
CONCEIÇÃO, Milton Luz da
des da Praça XV ao longo dos anos e, por fim,
Arquiteto e Urbanista Doutor em Geografia Humana;
o terceiro momento analisa suas relações coti-
Universidade Federal de Santa Catarina
miltonluzdaconceicao@gmail.com
dianas atuais sob o método etnográfico de ca-
minhadas diárias no local.

PAISAGEM URBANA SOCIABILIDADE URBANISMO

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1370
ABSTRACT RESUMEN

Interpreting the historic center of a city implies Interpretar el centro histórico de una ciudad im-
understanding it from the point of view of a place plica comprenderlo desde el punto de vista de un
that admits and preserves different temporali- lugar que admite y conserva diferentes tempora-
ties, printed materialities and also certain imma- lidades, materialidades impresas y también cier-
terialities, and it is in this set that its memory and tas inmaterialidades, y es en este conjunto donde
identity are reflected. To synthesize the urban se reflejan su memoria e identidad. Para sinteti-
landscape of Florianopolis historic center, the zar el paisaje urbano del centro histórico de Flo-
heart of this center was take as reference, hear- rianópolis, se toma como referencia el corazón
twood mosaic base of the foundation of the city: de este centro, el núcleo del mosaico fundador
XV November square and its immediate surrou- de la ciudad: la Plaza XV de Noviembre y sus al-
nds. As this is a centralizing landmark of daily city rededores inmediatos. Como este es un hito cen-
sociability, the purpose of this article is to inves- tralizador de la sociabilidad diaria de la ciudad,
tigate how your current urban landscape is pre- el objetivo de este artículo es investigar cómo se
sented and which identity relations of yore can be presenta su paisaje urbano actual y qué relacio-
perceived, either due to their loss or permanence. nes de identidad anteriores se pueden percibir,
The investigation starts from the assumption of ya sea debido a su pérdida o permanencia. La in-
the square as a practiced place and its analysis vestigación parte de la asunción de la plaza como
is made possible through the observation of tra- lugar practicado y su análisis es posible a través
ces and daily dynamics. The article is organized in de la observación de trazas y dinámicas diarias.
three parts: first, there was a need to revisit and El artículo está organizado en tres partes: prime-
problematize some concepts such as landscape, ro, fue necesario revisar y problematizar algunos
urban and place, mainly evoking authors such as conceptos como paisaje, urbano y lugar, evocan-
Georg Simmel, Manuel Delgado, Marc Augé and do principalmente a autores como Georg Simmel,
Michel de Certeau. The second moment aims to Manuel Delgado, Marc Augé y Michel de Certeau.
expose the historical construction of the socia- El segundo momento tiene como objetivo expo-
bility of the XV November square over the years, ner la construcción histórica de las perspectivas
and, finally, the third moment analyzes its current sobre la sociabilidad de la Plaza XV a lo largo de
daily relationships under the ethnographic me- los años y, finalmente, el tercer momento analiza
thod of daily walks on site. sus relaciones diarias actuales bajo el método et-
nográfico de los paseos diarios en el sitio.

URBAN LANDSCAPE SOCIABILITY URBANISM


PAISAJE URBANO SOCIABILIDAD CENTRO HISTORICO
EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
Anterior a qualquer tipo de reflexão, é necessário
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
situar o cenário da atual Florianópolis, no contexto
das cidades contemporâneas. O termo “contem-
porâneo”, definido pelo antropólogo Marc Augé
vídeo-pôster
(1994) como um termo simultaneamente unificado
e plural, implica uma perspectiva de cidades mar-

A PAISAGEM URBANA cadas por sua complexidade, pela fragmentação


de seu território, pelos conflitos derivados de
DO CENTRO HISTÓRICO sua heterogeneidade e pelas características de
mutabilidade e incertezas que acompanham o
DE FLORIANÓPOLIS: cotidiano na vida citadina, e a capital do estado de
Santa Catarina reflete este panóptico. A cidade é,
PERSPECTIVAS COTIDIANAS de acordo com Yunes (2012, p. 123), um “[...] terri-
tório múltiplo, polinucleado, com superposições
de tempos históricos e culturas diversificadas:
THE URBAN LANDSCAPE OF FLORIANÓPOLIS um mosaico de culturas e atividades econômicas
HISTORICAL CENTER: DAILY PERSPECTIVES com uma complexa transversalidade funcional,
muitas vezes conflitante”. Dentro deste contexto,
EL PAISAJE URBANO DEL CENTRO HISTÓRICO DE no decorrer dos anos, Florianópolis foi marcada
FLORIANÓPOLIS: PERSPECTIVAS DIARIAS por sucessivas intervenções e transfigurações
em sua composição socioespacial.

No cerne do centro histórico da cidade encon-


tra-se a Praça XV de Novembro objeto de estudo
deste artigo, situada na porção central deste gran-
de mosaico. Apesar de ter acompanhado desde
sempre suas inúmeras transformações, confor-
me explica a autora Coradini (1992), a praça é um
marco centralizador das atividades citadinas, das
sociabilidades e do tecido urbano desde o surgi-
mento da antiga Vila de Nossa Senhora do Des-
terro, tendo a esta nascido e crescido em torno
desta praça e gravitando em torno dela até hoje.

Segundo Machado (2000, p. 30), apesar de possuir


diferentes nomenclaturas em variados períodos
de sua história, “[...] enquanto espaço de convi-
vência e interação social, delimitado ou não, a
Praça XV sempre existiu”. Castells (2014, p. 181)
comenta que

Trabalhos sobre a sociabilidade da Praça XV


(...) trazem elementos preciosos sobre usos
e apropriações destes mesmos espaços,
formas de fazer no espaço e fazer o próprio
espaço. (...) o tecido urbano mantém ruas,
vielas e a Praça XV que, embora tenha sido
16º SHCU sujeita a várias intervenções, continua a
30 anos . Atualização Crítica
ser um ponto nodal das formas de fazer e
1372 ser na cidade.
É a partir deste pressuposto que se fundamenta o de que haja a consciência de uma paisagem, “[...]
objetivo desta análise: sintetizar a atual paisagem tudo o que precisamos é que um certo conteúdo
urbana da Praça XV no centro histórico da do campo de visão cative o nosso espírito (...) é
cidade como lugar praticado, como espaço de justamente sua delimitação, seu alcance num
sociabilidade mediante uma análise de seus traços raio visual momentâneo ou durável que seja, que
e de suas dinâmicas cotidianas, a fim de revisitar a define essencialmente” (SIMMEL, 1996, p. 15).
sua história sob a análise de relações sociais que
se perderam ou que continuam acontecendo no A consciência da paisagem surgiria a partir de
decorrer dos anos. Toma-se partido da praça uma nova percepção do todo visto, provenien-
como um lugar que conserva, ou melhor, o lugar te de um conjunto unitário de base material e
que melhor conserva dentro do centro histórico de pedaços isolados de natureza. Ou seja, seria
da cidade as relações de identidade e de memória diferente do que uma simples soma das partes
de suas diferentes temporalidades, cicatrizes da natureza e de suas limitações quanto a sig-
materiais e também certas imaterialidades, como nificações particulares: “[...] representada a tí-
as tradições, crenças, os valores e os sentidos tulo de paisagem, ela reivindica um ser para si,
impressos nas vivências no decorrer destas tem- eventualmente ótico, eventualmente estético,
eventualmente atmosférico, em suma, uma
poralidades.
singularidade (SIMMEL, 1996, p. 16).

Até este ponto, é possível compreender as pala-


vras de Simmel aproximando-as a um contexto de
A PAISAGEM URBANA
paisagem-fragmento. Todavia, essa ideia isolada
se torna insuficiente, pois “[...] reduzir a paisagem
Para que se alcance uma definição mais clara a um sistema material, à dimensão visível dos
do que este trabalho visa compreender como sistemas de objetos que constituem os lugares e
ideia de paisagem urbana, houve a necessidade, as regiões não permite apreender, sobretudo na
em um primeiro momento, de separar estes dois escala do lugar, a própria inteireza da dimensão
conceitos, explicando a que conjecturas ambos qualitativa desta visibilidade” (CUSTÓDIO; GALEN-
se referem isoladamente, para posteriormente DER; MACEDO; QUEIROGA; ROBBA, 2009, p. 290).
poder relacioná-los. A primeira reflexão se dá a
respeito da categoria paisagem, categoria esta No decorrer de suas reflexões, Simmel (1996, p.
que abrange uma grande interdisciplinaridade, 17) explica que “para que nasça a paisagem, é
tendo sua conceituação orientada por diferentes preciso inegavelmente que a pulsação da vida,
áreas do conhecimento e sendo passível de sus- na percepção e no sentimento, seja arrancada
tentar variadas definições. Todavia, é à contex- à homogeneidade da natureza”. Esta pulsação
tualização e ao pressuposto do sociólogo Georg da vida insere uma variável fundamental para
Simmel que este artigo se atentará. esta discussão que é a introdução, na leitura da
paisagem, de um sistema de ações, remetendo a
Tira-se partido de seu texto A Filosofia da Paisa- perspectiva de paisagem-evento. A paisagem-e-
gem. Nele, Simmel distingue, sob uma visão filosó- vento é aquela a partir da qual um subsistema de
fica, questões relativas à natureza e à paisagem, objetos, em uma determinada porção contínua de
categorizando a primeira como um conjunto de espaço, encontra-se em uma interação dialética
elementos, uma “[...] cadeia sem fim das coisas, com um subsistema de ações, não devendo ser
o nascimento e o aniquilamento ininterruptos de tomada apenas pelo cenário resultante desta
formas” (SIMMEL, 1996, p. 15), e a segunda como interação, mas utilizando-se de sua categoria de
um aspecto interpretativo, referente a conscien- evento para se qualificar e se especificar.
tização do ser humano sobre os recortes ou frag-
mentos da primeira. Reservando estas ideias, pode-se introduzir uma
segunda discussão sobre a conceituação de ur-
Sua definição de paisagem surge, portanto, da bano apresentada por Manuel Delgado. Diferen-
busca por entender como o espírito humano pode ciando primeiramente a ideia da palavra urbano
dar forma a um conjunto de elementos da natureza da ideia de palavra cidade, sendo esta última “[...]
dispersos na superfície da terra. Para o autor, a fim um lugar, uma grande parcela em que se levanta
EIXO TEMÁTICO 2 uma quantidade considerável de construções”
(DELGADO, 2007, p. 11), ou seja, referindo-se a
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS uma estrutura sólida, o urbano, segundo o au-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES tor, é um estilo de vida, uma estrutura líquida,
ou seja, “[...] tudo o que em uma cidade pode ser
visto flutuando em sua superfície” (DELGADO,
2008, p. 26). Um conjunto de ações perecíveis
que flutua pelas entranhas públicas e semipú-
blicas citadinas, refazendo-se constantemente,
acidentalmente e fortuitamente no cotidiano da
vida de seus habitantes.

O urbano estaria relacionado ao espaço público,


superfície onde se produzem oscilações que per-
mitem uma infinidade de conectividades e bifur-
cações, “[...] elaborando e reelaborando constan-
temente suas definições e suas propriedades, a
partir de novos avatares e negociação ininterrupta
a que se entregam uns componentes humanos e
contextuais que raras vezes se repetem” (DELGA-
DO, 2008, p. 25). Teria como protagonista a vida
pública, sendo esta marcada, como comenta Sim-
mel (1903, p. 583), em seu célebre texto As grandes
cidades e a vida do espírito quase que um século
antes, por “[...] suas medidas e suas misturas, o
ritmo de seu aparecimento e desaparecimento”.

Para Delgado, estas misturas da vida pública se-


riam marcadas por interações minimalistas e
frias entre as pessoas, por vínculos débeis, por
contrastes de simultaneidades e aleatoriedades,
pela reunião de estranhos e pelo anonimato. Ou
ainda, nas palavras de Simmel (1903, p. 583), por
“[...] uma gradação extremamente multifacetada
de simpatias, indiferenças e aversões”.

Considera-se, portanto, nesta análise, o urbano


em si como o sistema de ações, o flutuante, vari-
ável, ou seja, o fundamento dialético da definição
de paisagem-evento, a estrutura líquida respon-
sável por deixar marcas direta ou indiretamente
na realidade das paisagens. Realidade essa, nas
palavras de Delgado (2008), definida como algo
semelhante a uma realidade porosa, onde se so-
breporiam variados sistemas de ações, e também
uma realidade conceitualmente instável, cujas
oscilações a centralizam simbolicamente e a dis-
persam culturalmente, ou seja, simultaneamente
episódica – eventual – e estruturada. Eis que se
constrói e se aproxima o que se visa creditar sob
16º SHCU
a denominação de paisagem urbana.
30 anos . Atualização Crítica

1374 A paisagem urbana é pendular, pois “para um mes-


mo sistema de objetos, podemos ter diferentes maram até hoje e continuarão se transformando,
estados de paisagem, exatamente quando nele e as cicatrizes de suas permanências e trans-
se realizam diferentes sistemas de ações” (CUS- formações são um reflexo das escolhas sociais
TÓDIO; GALENDER; MACEDO; QUEIROGA; ROBBA, materializadas no decorrer dos anos. São nestas
2009, p. 290), mutável e intimamente relacionada cicatrizes também que nos é permitido juntar
a questões do cotidiano. Por exemplo, para com- fatores que não se encontrariam se não fossem
preender a paisagem urbana de um determinado as diferentes temporalidades – e conectá-las a
local é necessário prestar atenção principalmente partir da união entre sistema de objetos e sistema
em seus conflitos: diferentes situações e esta- de ações, costurando tangível e intangível.
dos de paisagem que oscilam, seja por fatores
biológicos (dia, noite, sol, chuva), seja por fatores Dentro da definição do centro histórico e de suas
socioculturais, identitários, antrópicos, pela quan- fronteiras, por assim dizer – mesmo que abstra-
tidade e tipo de interações e relações sociais que tas –, é possível o estabelecimento de diferentes
protagonizam seu espaço público em diferentes recortes ou “lugares, que terão sentidos diferen-
tempos e escalas, integrando-o ou fragmentan- ciados para usuários distintos ou em períodos de
do-o enquanto a suas formas, fluxos e funções. tempo distintos, conforme a cotidianidade ou
excepcionalidade dos acontecimentos” (NARDI,
Por fim, deve-se levar em conta que as pesso- 2012, p. 242). O pressuposto de análise deste ar-
as, enquanto circulam no espaço urbano, vão tigo surge, portanto, de que a interpretação da
se apropriando (ou seja, transformando seu uso) paisagem urbana apenas é possível pela inves-
e se desapropriando deste espaço, e que estas tigação entre os conjuntos de objetos e ações,
reconfigurações sempre deixam marcas para materialidades e imaterialidades provenientes
aquele que observa a paisagem urbana. Sendo das práticas das relações cotidianas.
assim, abstrair o fator urbano (enquanto refe-
rencial ao cotidiano, às pessoas) da leitura de Antes de prosseguir com este tema, deve-se es-
uma paisagem, conforme comentam Custódio; clarecer que, nesta análise, o espaço público do
Galender; Macedo; Queiroga; Robba (2009), seria centro histórico parte de seu pressuposto como
correspondente à abdicação da própria leitura “lugar antropológico”, definido por Augé (1994,
estritamente visual de determinada paisagem e p. 51) como “[...] aquela construção concreta e
de todas as suas possíveis significações. simbólica que não poderia dar conta, somente por
ela, das vicissitudes e contradições da vida social,
mas à qual se referem todos aqueles a quem ela
resigna um lugar, por mais humilde e modesto que
o lugar do centro histórico no cotidiano seja”. Augé define os lugares também a partir de
3 propriedades: são identitários, pois identificam
Levando em consideração que as cidades con- quem os frequenta; relacionais, pois relacionam
temporâneas contemplam em si a acumulação de “elementos distintos e singulares” (AUGÉ, 1994,
diferentes tempos, é em seus centros históricos p.53) em um mesmo espaço; e históricos, pois
que, segundo Castells (2014), enquanto lugares de nele existem marcos construídos no passado que
vestígio, encontram-se abrigadas as cicatrizes de podem ser preenchidos de significados. Sendo
suas transformações e apropriações ao longo dos assim, o espaço público do centro se apresenta
anos e também das relações que nela se advieram. como “o lugar” onde melhor se podem perceber
Ou seja, compreender a paisagem urbana destes explicitadas as relações anteriormente citadas
lugares em geral implica uma reflexão a respeito por Delgado (2008), a dizer, onde melhor se per-
de suas características materiais, suas formas cebem as conjunções das estruturas sólidas da
e critérios concretos, e das imaterialidades que cidade e as estruturas líquidas do urbano.
transformam estes lugares em privilegiados para
as interações humanas. Voltando à questão das práticas cotidianas, para
que se compreendam suas relações, segundo
Sendo assim, também é necessário atentar que Justo (2015 p. 22,), é necessária uma subjetiva-
suas paisagens urbanas são provenientes de um ção do espaço da cidade: “[...] é, antes de tudo,
aspecto dinâmico, pois os centros se transfor- transformar em símbolo o concreto, o asfalto, o
EIXO TEMÁTICO 2 traçado urbano e sua materialidade; é a passa-
gem do real ao simbólico (...) é produzir sentido
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS nas práticas cotidianas deflagradas na urbe”. So-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES mente a cidade subjetiva poderia fundamentar a
cidade praticada, ou melhor, o espaço praticado
acorrido por De Certeau (1994), as lógicas das
práticas inseridas nos espaços e dos espaços
como práticas representacionais, simbólicas,
ou melhor, a “[...] maneira como seus habitantes
sentem sua presença – da cidade – nesse lugar e
lhe dão inteligibilidade” (JUSTO, 2015, p. 22).

De acordo com De Certeau (1994), é na prática co-


tidiana, no espaço da rua, que o sujeito se coloca
aberto à diversas possibilidades nas quais pode
exercer sua singularidade, e tanto o autor quanto
Delgado trabalham sob uma ótica de denúncia:
que não é possível a compreensão do cotidiano
a partir de uma visão de totalidade, pois esta se
afasta da referência encontrada nas singulari-
dades, sendo necessário sempre estar atrás dos
usuários. É na vida diária destes usuários onde
se revelam os “[...] conflitos e as contradições de
cada sociedade em seus diferentes momentos
históricos” (CUSTÓDIO; GALENDER; MACEDO;
QUEIROGA; ROBBA, 2009, p. 291). Segundo os
últimos, o cotidiano seria ainda palco de possibi-
lidades e transgressões, pois abrigaria formas da
sociabilidade que geram lugares de encontros e
apropriações imprevistas que renovam o espaço
livre urbano.

Delgado nos ajuda a compreender as subjetiva-


ções destes encontros e apropriações, enquanto
discorre sobre as situações e territorializações.
Para o autor, encontros seriam resultados da
dinâmica autônoma (concentração, dispersão,
conflito, das possibilidades) a que se sujeitam as
pessoas em seu dia-a-dia, as situações cotidianas
que exigem improvisações e provocam variabili-
dades em suas articulações. Já as apropriações
poderiam ser aproximadas à noção de constantes
reterritorializações que acontecem nestes luga-
res, onde as relações interpessoais flexibilizam o
espaço e este “[...] acompanha o indivíduo aonde
vá e se expande ou contrai em função dos tipos de
encontro e em função da busca de equilíbrio entre
aproximação e evitação” (DELGADO, 2008, p. 30).

16º SHCU É a partir deste contexto que se compreende o


30 anos . Atualização Crítica
lugar do centro urbano nas relações cotidianas,
1376 pautado em relações de certa forma imprevisíveis,
que implicam processos de pertencimento cons- sua região central (Figura 2), até os dias atuais,
tantemente renovados. Um espaço que, quando encontram-se mantidos os principais traços da
usado de passagem, segundo Delgado (2008, p. disposição espacial da praça, refletindo algumas
34), é “[...] diferenciado, isto é, territorializado, mas características típicas da colonização portugue-
as técnicas práticas e simbólicas que o organizam sa. Enquanto “coração” do centro histórico, tanto
espacialmente ou temporalmente (...) são pouco como espaço de interação social e convivência
menos que inumeráveis proliferações até o infinito quanto como elemento central para o desenvol-
(...) e se renovam a cada instante”. vimento físico e crescimento urbano, a praça
abrigou em seu entorno elementos fundamen-
tais para o desenvolvimento do Desterro, como
a antiga capela de Nossa Senhora do Desterro,
praça xv: história e sociabilidades onde atualmente se encontra a Catedral Metro-
politana, que provocou a antiga denominação do
Apesar da denominação Praça XV de Novembro espaço como Largo da Matriz, e outros edifícios
ter surgido apenas após a proclamação da Re- importantes para a instauração e solidificação do
pública, a acompanha a história de Florianópolis domínio português, como o Palácio do Governo,
desde o surgimento da cidade enquanto ainda atual Palácio Cruz e Souza. Devido a estas duas
Vila da Nossa Senhora do Desterro (Figura 1). Mes- edificações, a praça foi anteriormente conhecida
mo com todo o desenvolvimento da cidade e de também como Largo do Palácio.

Figura 1: Mapa do Desterro no ano 1819. Fonte: Memórias urbanas, Eliane Vera Veiga (1993).
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

Figura 2: Mapa da região central de Florianópolis atual. Fonte:


Google Earth (2020).

Com o passar dos anos, a Praça XV acompanhou


socio-espacialmente os diferentes momentos e
ideais políticos que historicamente se sucederam,
porém de maneira geral ela sempre funcionou
como referência da paisagem urbana central co-
tidiana na cidade, e suas configurações socioes-
paciais associaram-se diretamente ao fato de em
sua porção sul localizar-se o trapiche do Desterro,
além de seu primeiro mercado, ambos de extrema
influência militar e comercial. A autora Coradini
(1992) traça um panorama destes momentos até
a década de 1990 de acordo com o papel da pra-
ça enquanto espaço de sociabilidade, definição
esta que para a autora se refere ao “conjunto de
apropriações, usos, discursos, olhares e repre-
sentações” (CORADINI, 1992, p. 17), definindo-os
em quatro: “Espaço Militar e portuário”, “Espaço
Desodorizado”, “Espaço Modernizado” e Espaço
16º SHCU
Carnavalizado”.
30 anos . Atualização Crítica

1378 Pressupõe-se que cada um destes períodos abri-


gou – e de certa forma condicionou – diferentes a alta sociedade, a costumes tradicionais, a praça
tipos de relações, identidades e práticas urba- dos namorados, das simpatias casamenteiras, e
nas. Tais condições geraram cicatrizes em sua a segunda associada ao insalubre, ao inseguro; a
paisagem urbana tanto pela perspectiva de sua boemia, a prostituição, ao suor, ao peixe. No final
natureza tangível quanto intangível, e que a par- deste período, o artista Hassis foi convidado para
tir destas categorizações é possível montar um o projeto de pavimentação da praça onde, em
pequeno panorama de associações entre suas pedras portuguesas, registrou o cotidiano das
diferentes temporalidades e os dias atuais. pessoas que a frequentavam.

O “Espaço Militar e Portuário” trata desde a funda- O último período retratado por Coradini (1992), o
ção e definição do espaço da Praça XV até o final “Espaço Carnavalizado”, compreende de 1970 até
do século XIX. Houve a fundação de grande parte a data da pesquisa da autora, período em que o
das edificações administrativas e comerciais de Miramar, já decadente, foi demolido e o centro
seu entorno, que permitiam o exercício do domínio foi afastado do mar com a construção da Baía
português. Ao mesmo tempo, a praça se tornou Sul. Também no ano de 1979, o espaço foi mar-
uma centralidade também para o comércio infor- cado pela manifestação política da novembrada,
mal, o que gerou sua associação a inseguridade capítulo que marcou fortemente a sua história e
e insalubridade tornando-a mal vista para a alta reforçou seu poder referencial. Foi neste período
sociedade da época. também que surgiram na praça os movimentos
da contracultura, onde vários hippies passaram a
O segundo momento chamado de “Espaço De- estender suas toalhas como forma de demarca-
sodorizado” acompanhou as primeiras tentati- ção efêmera de territorialização para a venda de
vas de urbanização da cidade e recebeu e essa artesanatos. O “Espaço Carnavalizado”, segundo
denominação em analogia à tentativa de limpe- a autora, foi assim denominado não apenas pelo
za e higienização do movimento sanitarista que fator cultural, mas também porque o espaço “acei-
surgiu no Rio de Janeiro. A praça foi cercada, e tava” praticamente todos os usuários do centro,
seu interior recebeu a criação do Jardim Oliveira desde as prostitutas aos turistas, dos senhores
Belo, sendo seu acesso permitido apenas à elite aposentados aos comerciantes, da boemia ao
local até aproximadamente a primeira dezena do descanso à sombra, das manifestações políticas
século. Foi nesta época que a Figueira, o maior as manifestações ritualísticas.
e mais emblemático monumento da praça, foi
transportada desde um jardim em frente à cate- Até os dias atuais, a Praça XV é um local que man-
dral para dentro de seu perímetro. tém ainda o papel de palco de certas tradições,
festas, feiras e eventos de cunho político, reli-
O terceiro momento, chamado de “Espaço Mo- gioso e cívico, cujo espaço, como atenta Castells
dernizado”, compreende o período entre os anos (2014, p. 183), é “[...] palco da política – passeatas
30 e 70 do século XX, época em que a cidade efe- de todas as bandeiras, lutas e reivindicações –,
tivamente se modernizou, tendo todo o centro do sagrado – cortejos devotados às diferentes
histórico acompanhado a ebulição da vida moder- santidades – do profano – a festa carnavalesca
na. Segundo Coradini (1992, p. 141), a praça foi se se congrega religiosamente em pontos desses
tornando um “[...] lugar de apropriações múltiplas trajetos da malha”. Este tipo de relação de tra-
e abriga novos frequentadores como: lambe-lam- dições entre as pessoas e o lugar cria um laço
bes, engraxates, jornaleiros, taxistas, vendedores particular entre identidade e temporalidade, entre
ambulantes e jogo do bicho”. As múltiplas apro- materialidade e imaterialidade, uma vez que “[...]
priações reforçaram uma certa divisão imaginária a tradição (...) é uma maneira de lidar com o tem-
em seu espaço, uma vez que a criação do popular po e o espaço, que insere qualquer atividade ou
bar Miramar junto ao trapiche da porção sul da experiência particular dentro da continuidade do
praça, junto também da mureta que seguia do bar passado, presente e futuro, sendo estes por sua
até o mercado público, propiciaram um momento vez estruturados por práticas sociais recorrentes”
de efervescência sociocultural na região. Estas (GIDDENS, 1990, p. 44).
efervescências aumentaram a distopia entre suas
porções norte e sul, estando a primeira associada Mesmo a partir desta análise sob perspectiva de
EIXO TEMÁTICO 2 periodização e categorização, é possível perce-
ber que a praça sempre funcionou como um dos
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS lugares mais expressivos do centro histórico de
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Florianópolis, trazendo atrelados em todos os
períodos os conceitos de Augé (1994) para sua
interpretação como lugar enquanto identitário,
relacional e histórico. Vaz (2003, p. 146) sintetiza
estas relações e nos insere o pressuposto pelo
qual se tomará partido para a análise da Praça XV
dos dias atuais, enquanto cita que

Mudanças ocorreram posteriormente na


paisagem local (...) mas o lugar manteve a
sua função e significado. As antigas prá-
ticas de sociabilidade mostram-se resis-
tentes às mudanças, contribuindo para a
renovação do significado da praça como
espaço de sociabilidade, reforçado pela
celebração de episódios históricos (...) O
significado consagrado pela população é
sempre renovado para os visitantes e para
os novos imigrantes, sendo então designa-
do como o principal sítio de manifestações
religiosas e políticas, mas sobretudo como
o principal sítio de comunicação entre os
cidadãos no cotidiano.

lendo a paisagem urbana atual

A leitura da atual da paisagem urbana da Praça


XV de Novembro (Figura 3) realizou-se a partir de
caminhadas diárias no perímetro da praça e seu
entorno imediato com paradas para observação e
registro. A fim de captar o seu sistema pendular e
suas respectivas oscilações optou-se por visitá-la
em diferentes dias e períodos durante algumas
semanas, a fim de compreender a relação dialética
entre suas materialidades e cicatrizes – sistema
de objetos fixos que enquadram os fragmentos
da paisagem – e imaterialidades presentes no
cotidiano – sistema variável de ações que intervém
e modificam estes fragmentos, o caráter urbano.
Para melhor compreender estas relações, houve
a subdivisão do espaço observado em três cama-
das – a camada do entorno construído, a camada
da rua e a camada da praça em si.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1380
Além dos frequentadores da catedral, há também
aqueles que se apropriam deste espaço externo
(da escadaria e do largo) para fazer pequenas re-
feições, momentos de pausa, descanso, silêncio;
assim como para turistas com suas câmeras, ou
como ponto de encontro entre pessoas de dife-
rentes grupos sociais e idades. A porção norte é
marcada também pela presença intensa (e quase
que constante) de jogadores de dominó, em sua
maioria senhores de idade avançada que pro-
Figura 3: Foto aérea da Praça XV de Novembro. Fonte: vavelmente fazem disto um hábito, uma prática
Google Earth (2020).
diária de apropriação (ou nas palavras de Delgado:
de reterritorialização) que se gera durante o dia
e que some durante a noite, acompanhando-os.
O entorno edificado dos lados leste e oeste da
praça, mesclam fachadas de antigas edificações, Sabe-se que não se pode abstrair da paisagem
como o Museu Histórico de Santa Catarina, lo- urbana do lugar a presença dos automóveis, pois
calizado no Palácio Cruz e Souza (antigo Palácio estes se fazem presentes durante todo o período
do Governo) a Casa da Alfândega e alguns sobra- do dia-a-dia na praça. Entretanto, o foco desta
dos, por exemplo, com edificações modernas e análise se dá a partir da sociabilidade vivenciada
edificações de fachadas contemporâneas que no espaço livre, dos comportamentos visíveis no
concentram principalmente atividades comer- espaço público da rua por seus usuários enquanto
ciais e relacionadas ao setor financeiro. Esta con- transeuntes, pois segundo De Certeau (1994, p.
centração indica que persistem ainda traços da 176), “[...] os jogos dos passos moldam espaços.
centralidade de outrora. Sendo os panos de fundo Tecem os lugares (...) as motricidades dos pe-
do palco do cotidiano, os edifícios nos indicam destres formam um desses sistemas reais cuja
vestígios das diferentes temporalidades à medida existência faz efetivamente a cidade”.
que remetem os usuários a um caráter preser-
vativo e patrimonial característico dos centros A camada subsequente aos edifícios é a camada
históricos, a um imaginário de lugar identitário e das ruas. Há um fluxo intenso de pedestres em
histórico, evocando Augé (1994). Ao sul da Praça todos os lados, principalmente em períodos de
XV encontra-se o Memorial do Miramar, em uma meio-dia, onde os sentidos parecem mais alea-
outra praça chamada Praça Fernando Machado tórios e torna-se visível a pressa por aproveitar
Soares, local este que funciona principalmente cada passo e cada minuto de tempo presente. São
como espaço de passagem e de memória e que momentos de efervescência: as pessoas correm
hoje substitui o cenário que antes se conformava para aproveitar ao máximo seu tempo, ingressan-
com a paisagem do mar. do principalmente em edificações de serviços
bancários (é possível encontrar no perímetro um
Já ao norte, a Catedral Metropolitana é uma re- representante de cada uma das agências vigen-
ferência simbólica do espaço. Seu entorno, com tes na cidade). A mesma intensificação ocorre
o largo da catedral, como observa Vaz (2003, p. no fim da tarde – onde os sentidos se voltam ao
145), é quem recebe eventos que permitem a lado sul ou as ruas perpendiculares (ao calçadão
afirmação de que “[...] no quadro do imaginário do centro), direcionando os fluxos para o terminal
da comunidade local, a praça permanece com a de transporte público, sendo visível a pressa pelo
designação de lugar de manifestações políticas descanso devido as expressões fechadas nos
e de celebrações religiosas”. Durante a realização diversos rostos que cruzam a cada momento.
destes eventos, segundo o autor, são desfeitas
particularmente as rotinas e a objetividade das Observando estes momentos de auge de movi-
atividades cotidianas, havendo uma reformula- mento, tanto nas ruas que cercam a praça quanto
ção momentânea das regras de comportamento, nos caminhos que a transpassam, foi possível per-
tratando-se de uma “[...] subversão controlada e ceber que é nestes momentos em específico, com
limitada” (VAZ, 1991 p. 76). a intensificação de presenças e olhares intercru-
EIXO TEMÁTICO 2 zados que mais se fazem presentes as películas
protetoras proporcionadas pela intensificação
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS da vida nervosa. É possível compreender durante
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES este recorte temporal o que Delgado (2008, p. 26)
define como uma analogia à decoração: “[...] uma
cidade que muda de hora em hora, de minuto em
minuto, feita de imagens, sensações e impulsos
mentais”. Há uma intensificação de estímulos de-
vido a esta “[...] rápida concentração de imagens
em mudança, o intervalo ríspido no interior daquilo
que se compreende com um olhar” (SIMMEL, 1903,
p. 578), motivo pelo qual melhor se nota nas pes-
soas o caráter blasé, definido por Simmel como
um embotamento frente a distinção das coisas.

Adentrando a terceira camada de análise – da pra-


ça em si –, é possível comparar ludicamente como
seus caminhos orgânicos remetem à sinuosidade
dos diferentes tempos, espaços, usos e formas
de apropriação que fizeram durante anos a praça
o palco central das sociabilidades da vida urbana
do centro. O pano de fundo da sociabilidade dentro
do perímetro da praça engloba materialidades
e cicatrizes observadas nas categorizações de
Coradini (1992), como a figueira centenária, mo-
numentos históricos e a própria pavimentação
em mosaico português de Hassis, restaurada na
virada de século.

Gravitando em torno da figueira (Figura 4), que


é atualmente tão grande que seus braços ne-
cessitam de escoras para sustentação, a praça
funciona periodicamente como “[...] espaço para
divulgação de ideias e de obras artísticas, assim
como do comércio de artesanato. A esses signifi-
cados associou-se à função sempre renovada de
lugar de celebração histórica, com a implantação
de monumentos que eternizam personagens e
fatos (VAZ, 2003, p. 145). O mais interessante é
que tudo isto ocorre sobre o atualmente tomba-
do painel da pavimentação de Hassis (Figura 5)
que, dividido entre variadas séries de desenhos
reúne diferentes marcas da cultura local: figuras
relacionadas a brincadeiras tradicionais da ilha,
como cabra-cega e pandorgas, figuras relacionas
a festas populares e folguedos, como o carnaval, o
boi-de-mamão, figuras relacionadas ao cotidiano
do período como pombeiros e lavadeiras, jornalei-
16º SHCU ros e o fotógrafo, e desenhos relacionados a arte
30 anos . Atualização Crítica
e artesanato, através de trançados, de rendeiras
1382 de bilro e pescadores.
em dias ensolarados, pois sua copa proporciona
uma grande área sombreada convidativa as pes-
soas a sentarem nos bancos que a circundam por
diferentes porções de tempo. A vegetação mais
densa da praça também reproduz uma sensação
de conforto e pertencimento ao local.

Sob seus braços e folhas, os lugares para sen-


tar proporcionam diferentes tipos de interações
causadas por aproximações, como é o caso de
companheiros de trabalho, jovens estudantes,
casais, pessoas que esperam por outros, fre-
Figura 4: Figueira Centenária. Fonte: Tasso Claudio Sche-
quentadores diários que já possuem um ou outro
rer (2018).
lugar de apropriação dentro deste espaço mais
ou menos fixo, onde encontram seus respectivos
grupos, e também turistas, que buscam em uma
foto com a figueira capturar um fragmento de
realidade para levar consigo, celebrando assim
o caráter histórico da praça. Também funciona
como local de interação a partir de estranhamen-
tos e conflitos, enquanto pessoas desconheci-
das ocupam um mesmo banco, trocam olhares
e por educação ou simpatia se cumprimentam,
ou interagem minimamente, por exemplo, quan-
do pessoas que desfrutam de um momento de
silêncio durante uma pausa ou conversa a dois
são interferidas por vendedores ambulantes ou
pessoas que “pedem” algo.

De maneira geral, meu caminhar em meio aos


transeuntes e observar silencioso compreende-
ram que a praça possui uma dinâmica diária de
maior movimento do que permanência. Apesar de
algumas “rotinas” fixas de alguns usuários, como
de trabalhadores informais, de moradores da pró-
pria rua, senhores que buscam em semelhantes
uma abstração de possíveis solidões, os fluxos
e as permanências são mais aleatórios. As per-
manências das situações cotidianas funcionam
Figura 5: Pavimentação de Hassis e a Figueira aos fundos. enquanto momento de pausa, muitas vezes não
Fonte: Tasso Claudio Scherer (2012). planejada, um estar rápido, um ponto de encontro,
referencial. Poucas permanências ultrapassam
a questão de uma hora. Observando, pode-se
constatar algumas características dos usuários
Observou-se que são os elementos da paisagem
apontadas por Castells (2014, p. 183):
que definem as áreas de estar e a implantação
de bancos, por exemplo, definindo os possíveis Circuitos de figuras conhecidas pela população
sistemas de ações e interações entre diferentes assídua do centro, que durante anos, auxiliados
grupos, como é o caso principalmente da figueira. de megafones manuais e trajes chamativos, anun-
A figueira centenária funciona como “coração” ciaram as ofertas das casas comerciais da redon-
da praça, e é em seu entorno onde ocorrem a deza, distribuidores de panfletos, trabalhadores
maioria das atividades da praça, principalmente informais, músicos itinerantes, muitos desses
EIXO TEMÁTICO 2 personagens associados à figura do manezinho,
na sua versão mais popular – cômica e de atraso,
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS mas também assimilados a figuras “folclóricas”
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES do que seja considerado mais típico desse centro
urbano.

considerações fInais

A análise permitiu a compreensão de o porquê de


o centro histórico ser, de um modo ou de outro, a
melhor forma de representação histórica de uma
cidade. A paisagem urbana observada confirma a
conservação do significado primário que a Praça
XV sempre teve – enquanto representatividade
simbólica e enquanto espaço de sociabilidade,
interação social e convivência – uma vez que, por
vários momentos, foram percebidos diferentes
fragmentos de paisagem urbana que remeteram
aos períodos categorizados anteriormente. Isto
é, diversas atividades de outrora puderam ser
observadas, seja referenciando-se a sua perda
ou permanência; porém sob uma perspectiva
diferente, sob um contexto, um momento histórico
e uma temporalidade diferente, onde dialogam
práticas antigas com novas formas de executá-las
ou, por exemplo, novas formas de tecnologia e
apropriação.

Firma-se um diálogo: pode que feiras artesa-


nais de artistas locais, com suas barraquinhas,
remetam às antigas práticas de artesanato da
contracultura, com suas toalhas ao chão; que
as pausas solitárias das pessoas ao sentarem-
-se nos bancos sob a sombra acompanhadas de
um display iluminado remetam as pausas para a
leitura diária dos tradicionais jornais de papel;
que as pressas diárias da vida contemporânea
remetam a efervescência da vida moderna; que
câmeras instantâneas eternizem a memória da
Figueira capturando fragmentos, remetendo ao
que antigamente apenas o olhar atento contem-
plativo podia fazer. Tudo isto sem contar, é claro,
as tradições e atividades festivas, como a cele-
brações carnavalescas que, atualmente, atingem
tamanha dimensão que não mais se enquadram
no espaço físico da praça, mantendo, todavia, sua
tradição essencial, pois os ensaios das escolas
16º SHCU
são realizados em seu perímetro.
30 anos . Atualização Crítica

1384 Analisar permanências de costumes cotidianos


das sociedades nos fala muito sobre elas, e per- REFERÊNCIAS
mite que se revisite a história sob a perspectiva
dos usuários, dos frequentadores do espaço ur- AUGÉ, M. Não-Lugares. Introdução a uma an-
bano. Esta dialética da paisagem urbana nunca tropologia da supermodernidade. Campinas:
se torna estática, e é natural que o sistema de Papirus, 1994.
ações e objetos da paisagem se transformem,
que a renovação constante de práticas esteja CASTELLS, A. N. G. Revitalizações Urbanas na
sempre vinculada as condições de cada período Ilha da Magia. In:_______. Patrimônio Cultural
de história, tendo como conclusão que o diálogo e Seus Campos. Florianópolis: Editora UFSC,
entre os sistemas de objetos e os sistemas de 2014. p. 175-187.
ações sempre se perpetua, deixando marcas na
paisagem urbana que fazem parte de sua pers- CERTEAU, M. D. A Invenção do Cotidiano. 1.
pectiva atual e que farão também parte de sua Artes de Fazer. Rio de Janeiro: Vozes, 1994.
paisagem futura.

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16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1386
1387
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES A instalação das primeiras estruturas de trans-
porte no Nordeste brasileiro dinamizou as con-
dições socioeconômicas do território e das ci-
vídeo-pôster dades, contribuindo também ao crescimento
demográfico urbano e favorecendo o escoa-
mento de mercadorias. Este trabalho objetiva
AS IMPLICAÇÕES compreender a influência da estrada de ferro
que partia de Mossoró, localizada no Rio Gran-
ECONÔMICAS, TERRITORIAIS de do Norte, à cidade de Sousa, no estado da
Paraíba – principal estrutura de transporte da
E HUMANAS DO TRANSPORTE década de 1910 da região – analisando-a partir
de suas implicações econômicas, territoriais e
EM MOSSORÓ E REGIÃO humanas. O desenvolvimento metodológico do
estudo consistiu em levantamento de fontes
(DÉCADAS DE 1910 – 1930) primárias e secundárias: obras e documentos
de época, jornais e revistas do período estuda-
do, artigos científicos e trabalhos monográficos
TERRITORIAL, ECONOMIC AND HUMAN IMPLICATIONS
acadêmicos diversos referentes ao tema. Esta
BY TRANSPORT IN MOSSORÓ AND REGION
pesquisa discute sobre as causas fundamentais
(1910 - 1930)
e os interesses políticos-econômicos imbrica-
dos na construção da referida ferrovia, aten-
IMPLICACIONES TERRITORIALES, ECONÓMICAS E
tando para a conexão litoral-sertão e para as
HUMANAS POR LOS TRANSPORTES EN MOSSORÓ Y
implicações em ambos os Estados. Além do de-
REGIÓN (1910 - 1930)
senvolvimento urbano das cidades cabeça-de-
-linha, Mossoró e Sousa, os efeitos territoriais
MEDEIROS, Gabriel Leopoldino Paulo de podem ser percebidos a partir do crescimento
econômico e populacional das cidades vizinhas
Professor Doutor do curso de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade Federal Rural do Semiárido - UFERSA. Campus
nas zonas interioranas, em especial devido ao
de Pau dos Ferros-RN vetor de comunicação estabelecido e ao trans-
gabriel.leopoldino@ufersa.edu.br porte de mercadorias a áreas anteriormente co-
nectadas através das estradas carroçáveis.
ANCHIETA, Adriana Maria do Nascimento
Discente do curso de Arquitetura e Urbanismo UFERSA -
ESTRADA DE FERRO MOSSORÓ SOUSA TERRITÓRIO
Campus de Pau dos Ferros-RN
adrianaanchieta@hotmail.com DESENVOLVIMENTO URBANO

SILVA, Arthur Oliveira


Discente e pesquisador do curso de Arquitetura e Urbanismo
UFERSA - Campus de Pau dos Ferros-RN
arthur.aladiah@gmail.com

PEREIRA, Jassira Rodrigues


Discente e pesquisadora do curso de Arquitetura e Urbanismo
UFERSA - Campus de Pau dos Ferros-RN
jassialves.arq@gmail.com

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1388
ABSTRACT RESUMEN

The settlement of transport infrastructures in La instalación de ferrocarriles en el Noreste de


Northeast Brazil improved the socieconomical Brasil desarrolló las condiciones socioeconómi-
conditions of the territory and its cities, contri- cas del territorio y de las ciudades, contribuyen-
buting also to the urban demographic growth do también al crecimiento poblacional urbano y
and merchant displacement. Therefore, this work favoreciendo el lujo de mercancías. Este traba-
aims to understand the influence of the railway jo tiene como objetivo comprender la influencia
which connected Mossoró, located in Rio Grande del ferrocarril que partía de Mossoró, ubicada
do Norte, to Sousa, in the State of Paraíba – main en Rio Grande do Norte, a la ciudad de Sousa,
regional transport structure in the 1910s – anali- en el Estado de Paraíba – m principal estructura
zing it from its economic, territorial and human de transporte de la década de 1910 de la región
implications. The methodological development – analisandola por medio de sus implicaciones
consisted of primary and secondary sources: económicas, terriatoriales e humanas. El desar-
works and documents from the period studied, rollo metodológico consistió de consulta a fuen-
scientific articles and monographic papers con- tes primárias y secundarias: obras y documentos
cerned to the theme. This research discusses de la época, periódicos y revistas, artículos cien-
about the fundamental causes and the political- tíficos y trabajos monográficos académicos. La
-socialeconomic interests linked to the railroad investigación discute las causas fundamentales
construction, aiming the aspects related to the y los intereses político-económicos relacionados
connection coast-inner land and the implications a la construcción del referido ferrocarril, aten-
in both states. Besides the urban development tando para la conexión entre el litoral y las tier-
that occurred in the cities that were final stops, ras del interior y para las implicaciones en ambos
such as Mossoró and Sousa, the territorial effects los estados. Además del desarrollo urbano de las
can be perceived from the economic and popula- ciudades cabeza-de-línea, Mossoró y Sousa, los
tional growth of the towns located at its influencial efectos territorial pueden ser percebidos desde
range, especially because of the communication el crecimiento económico y poblacional de las
vector established and the merchant transport in ciudades vecinas, en especial devido al vector
areas before only attended by chargeble roads. de comunicación establecido y al transporte de
mercancías a las áreas anteriormente solamente
conectadas por caminos vecinales.
RAILROAD MOSSORÓ SOUSA TERRITORY
URBAN DEVELOPMENT
FERROCARRIL MOSSORÓ SOUZA TERRITORIO
DESARROLLO URBANO
EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
O surgimento das ferrovias aconteceu no início
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
do século XIX através do avanço tecnológico oca-
sionado pela Revolução Industrial. Este sistema
indubitavelmente transformou a economia euro-
vídeo-pôster
peia, onde foi fundamental para a comercialização
de manufaturas nos mercados consumidores e

AS IMPLICAÇÕES também para a circulação de matérias-primas


oriundas de países exportadores e de pessoas
ECONÔMICAS, TERRITORIAIS pelo território. 

E HUMANAS DO TRANSPORTE A partir da década de 1830, surgiram os primeiros


debates e leis de incentivo à construção ferroviá-
EM MOSSORÓ E REGIÃO ria, contudo somente na década de 1850 o modal
ferroviário começou a ser implementado no Brasil.
(DÉCADAS DE 1910 – 1930) A expansão da rede ferroviária ligou-se, sobre-
tudo, à necessidade de exportação do café. No
Nordeste, as primeiras estradas de ferro foram
TERRITORIAL, ECONOMIC AND HUMAN IMPLICATIONS construídas entre 1858 e 1875;
BY TRANSPORT IN MOSSORÓ AND REGION
(1910 - 1930) Foram implantadas outras quatro: três na
Bahia e uma no Ceará. As demais ferrovias
IMPLICACIONES TERRITORIALES, ECONÓMICAS E da região, só tiveram seus trechos entre-
HUMANAS POR LOS TRANSPORTES EN MOSSORÓ Y gues ao tráfego nas décadas seguintes.
REGIÓN (1910 - 1930) Embora parte das concessões para a cons-
trução destas estradas tenha sido feita pelo
Governo Imperial na década de sessenta,
a maioria ocorreu na década de setenta
(CAMELO FILHO, 2000, p. 8). 

O aporte deste estudo remonta ao levantamento


de informações sobre o sistema de transporte da
região Oeste Potiguar no início do século XX, espe-
cialmente para a Estrada de Ferro de Mossoró-RN
a Sousa-PB (EFMS) e suas implicações territoriais.
Símbolo de progresso e modernização, a estrada
garantiu medidas de enfrentamento às secas e
às questões de salubridade e desenvolvimento
urbanos, maneiras que possibilitaram perceber
sua influência sobre a dinâmica nas cidades.

O recorte temporal desta pesquisa se enquadra


nas três primeiras décadas do século XX, 1910
a 1930, período que corresponde às primeiras
concessões e construção dos primeiros trechos
ferroviários da EFMS. Por sua natureza histórica,
foram buscados dados de época sobre essas ci-
dades e de outras que foram beneficiadas por
16º SHCU se encontrarem nas proximidades, no raio de
30 anos . Atualização Crítica
influência da ferrovia. As informações foram re-
1390 tiradas de documentos de época, disponíveis em
periódicos, o que configurou a pesquisa empíri- cessão. Materializar-se-ia apenas anos depois,
ca, mas também de pesquisa bibliográfica, em com estudos e traçado distintos
livros e artigos que abordam o assunto. O artigo
foi estruturado em quatro itens: 1) O problema É importante ressaltar que esta pesquisa faz parte
da construção ferroviária no Nordeste e no Rio de um projeto maior que possui, em linhas gerais,
Grande do Norte; 2) Fluxos entre as cidades da o intuito de estudar e entender o surgimento e
evolução de cidades nordestinas e a consequente
Estrada de Ferro Mossoró-RN a Sousa-PB; e 3)
conformação de redes urbanas, suas relações
A questão dos retirantes e o processo de urba-
econômicas e sociais e sua influência no desen-
nização de Mossoró.
volvimento dos povoamentos de forma indepen-
O projeto da EFMS remonta ao século XIX. Por dente e contínua ao longo da história.
meio da Lei Provincial n° 742, de 26 de agosto de
1875. Confirmada por decreto imperial, a via foi
concedida ao suíço Johan Ulrich Graf1. Inicial-
O PROBLEMA DA CONSTRUÇÃO FERROVIÁRIA
mente tinha como finalidade ligar Mossoró-RN2 a
Boa Vista-PE3, às margens do Rio São Francisco,
NO NORDESTE E NO RIO GRANDE DO NORTE
finalizando o trecho potiguar no município de
Luiz Gomes 4, próximo à divisa com a Paraíba. A história do Nordeste do Brasil foi marcada pelas
Entretanto, por falta de recursos o projeto não constantes secas, ocasionadas por condições ge-
alcançou sucesso, caducando o contrato de con- ográficas e humanas peculiares que desvelavam
um cenário de consequências estruturalmente
modificadoras: “A seca pode não ser o principal
1.Johan Ulrich Graf: Comerciante residente na vila de Mos- problema do Nordeste, mas é, com certeza, o
soró desde 1866, onde estabeleceu uma casa compradora e momento de desvelamento e exacerbação de uma
exportadora de produtos, e que ao mesmo tempo, importava estrutura social, política e econômica que está na
fazendas (tecidos) e outras mercadorias estrangeiras para
raiz dos seus problemas” (FERREIRA, DANTAS,
aquela vila e região. Foi o idealizador do projeto, sendo um
2006, p. 45). Conforme afirma Herschmann (1994,
dos principais agentes para execução da estrada de ferro
p. 51), “as secas, para as cidades nordestinas,
Mossoró-Sousa. Uma estação com seu nome foi inaugurada
em 1951. Cf. Estações Ferroviárias do Brasil. Disponível em
imbricavam-se aos diversos temas que moveram
<http://www.estacoesferroviarias.com.br/rgn/ulrick.htm>. a transformação da estrutura urbana herdada
Acesso 28 de Abril 2020. Cf. MEDEIROS, 2018. de uma economia colonial – melhoramentos de
porto, ferrovias, saneamento, higienização e
2. Elevada à categoria de vila pela Lei Provincial n° 620,
em 09 de novembro de 1852, posteriormente passou a ser
moralização”.
reconhecida como cidade no ano de 1870, se tornando a
Embora existissem outros problemas, especial-
segunda do Rio Grande do Norte. Acabou surgindo como
centro de comércio, de administração e ganhou importância
mente de ordem política, pode-se assegurar que
depois como empório comercial em função da produção a seca se tornou indubitavelmente a propulsora
algodoeira no sertão. O sargento-mor Antônio de Souza das medidas para enfrentamento da questão so-
Machado foi o primeiro povoador de Mossoró, pois pos- cial nordestina e da implementação de mudan-
suía terras nas ribeiras do rio homônimo e por isso tinha ças. No contexto ferroviário, a seca se tornou a
interesse no desenvolvimento das condições do lugar. Em justificativa para implantação da comunicação
razão disso, ele pediu autorização para erigir uma capela terrestre, solução para as cidades da vizinhança
no ano de 1772, cujo nome seria o mesmo da sua fazenda, que se desenvolviam sem condições propícias ao
Santa Luzia (CASCUDO, 1937).
escoamento de suas mercadorias. 
3. Elevado à condição de cidade, em 01 de julho de 1909. Em
31 de dezembro de 1943, o município de Boa Vista passou Essa característica transformadora pode ser per-
a denominar-se Coripós. Em 30 de dezembro de 1953, o cebida nos discursos oitocentistas, como por
município de Coripós passou a denominar-se Santa Maria exemplo naquele feito pelo presidente da Estrada
da Boa Vista, incorporando novamente a denominação de Ferro Recife ao São Francisco, no dia 02 de
original. Localiza-se às margens do Rio São Francisco. abril de 1856: “a introdução de estradas de ferro
4. Cf. GRAF, João Ulrich. Estrada de Ferro de Mossoró. 4ª é uma das melhores e mais eficientes medidas
Edição. Coleção Mossoerense, vol. 120. Ano: 1980. que possam ser empregadas, não somente para
EIXO TEMÁTICO 2 desenvolver os recursos e capacidades de um
país, mas também para promover a civilização e
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS aperfeiçoar e melhorar a condição do povo” (apud
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES EDMUNDSON, 2016, p. 65). A busca, com efeito,
se deu de maneira gradativa. 

A primeira lei para promover a construção de


estradas de ferro no Brasil – Lei n° 101, aprovada
no Legislativo em 31 de outubro de 1835 – tinha
como intuito autorizar a Regência a outorgar con-
cessões ferroviárias sendo associadas a alguns
privilégios. A primeira estrada de ferro do Brasil
foi “inaugurada em abril de 1854, sem o benefício
de subsídios do governo brasileiro, e cobria um
percurso de 16 quilômetros de Mauá à Raiz da Serra
na província do Rio de Janeiro” (EDMUNDSON,
2016, p. 33).  William Edmundson (2016) aponta
que a linha tinha como pretensão impressionar
o imperador Dom Pedro II, tornando-se motivo
para atração turística e justificativa à atração
de pessoas para conhecer a novidade, dentre
outros benefícios.

As ferrovias somente entraram em pauta mais


efetiva de modernização do Brasil – especialmente
como agenda de melhoramento das comunica-
ções entre centros de produção agrícola do in-
terior e portos de exportação – anos mais tarde,
mais precisamente em 1873, por meio do Decreto
Imperial n° 2.450. Ademais da importância das
construções ferroviárias na otimização das comu-
nicações por terra, em contraponto à interligação
rudimentar e precária anterior, a instalação mais
sistemática se deu de forma paulatina em virtude
de sua complexidade de implantação. Apesar
disso, era propagada como o veículo de trans-
formação: “da perspectiva do governo imperial, a
construção ferroviária prometia o potencial para
lograr a integração do país e assegurar a estabili-
dade e a ordem social” (EDMUNDSON, 2016, p. 48).

No Rio Grande do Norte, a história das ferrovias


se inicia na década de 1870, a partir da solicitação
dos proprietários de engenhos do vale do rio Ce-
ará-Mirim. Assegurados pelas garantias de juros
do Governo Imperial, intentavam construir estrada
de ferro destinada sobretudo ao transporte da
produção do açúcar – material responsável por
65% da produção da província naquele momen-
16º SHCU to – e de farta produção daquela região de vales
30 anos . Atualização Crítica
úmidos próximos ao litoral. O projeto, aprovado
1392 pela Lei Provincial n° 650 de 25 de novembro de
1870, não foi materializado em virtude de fatores Central do RN, com 122 quilômetros em tráfego em
contratuais e possibilidades financeiras (MEDEI- 1916, na extensão entre Natal a Epitácio Pessoa,
ROS, 2007, p. 150). O primeiro trecho ferroviário no município de Angicos; e a E F. de Mossoró a
foi construído durante a década de 1880, pela Sousa, nessa época ligando Porto Franco, no mu-
Imperial Brazilian Natal and Nova Cruz Railway nicípio de Areia Branca (hoje Grossos) à cidade de
Company Limited, outra companhia. Partindo da Mossoró, constituindo ainda um percurso inicial
capital Natal a São José de Mipibu, foi inaugurado de 38 quilômetros (CÂMARA, 1923, p. 41).
pelo então presidente da província, Dr. Sátiro de
Oliveira Dias, em 28 de setembro de 1881 (CASCU- A E. F. de Mossoró a Sousa foi usada como plano
DO, 1999, p. 427). A ferrovia posteriormente seria de penetração para servir os municípios do alto
encampada pela Great Western Railway Company, sertão nordestino – embora no contexto cearense
em 1901, e estabeleceu comunicação terrestre houvesse a E. F. Baturité – tanto para atender a
população, que se beneficiaria dos novos servi-
entre as capitais Natal, Cidade da Paraíba e Recife.
ços, como para dinamizar a vida econômica do
O empresário João Pedro de Almeida, em 1872, Rio Grande do Norte e Paraíba, aproximando o
foi o primeiro a pleitear junto ao Governo Imperial sertão ao porto marítimo (Figura 1). Sendo assim,
a concessão para construir uma estrada de ferro ela foi penetrando o interior do Oeste Potiguar
ligando o porto de Mossoró à cidade de Sousa, até encontrar a zona oeste da Paraíba na década
na província da Paraíba, como um empreendi- de 1950. Em 1939, possuía uma extensão de 174,6
mento industrial. Serviria para ligar Mossoró ao quilômetros.
alto sertão potiguar e paraibano, possibilitando
o progresso econômico de uma vasta região in-
teriorana. Posteriormente, uma nova concessão
seria dada a Ulrich Graf, como já comentado, em
1875. O discurso de Graf corrobora a importância
do projeto, especialmente dentro de uma pers-
pectiva de caráter civilizatório: “o luxo ainda se
acha pouco espalhado naquelas regiões, porém
basta a estrada de ferro, mão direita da civilização,
para introduzir naquelas localidades o progresso
e uma vida mais confortável e social” (GRAF, p. 31
apud CABRAL, 2002, p. 25). Lima (2011) reitera esse
caráter, ao enfatizar a natureza de penetração
territorial das vias:

A origem da estrada de ferro de Mossoró


está inserida no contexto ainda do século
XIX, quando as ferrovias se tornaram mui-
to populares por todo o país. No caso do
Nordeste, as estradas de ferro serviam ao
propósito de ligar um ponto do litoral ao
sertão, geralmente em direção ao rio São
Francisco (LIMA, 2011, p. 54)

Os efeitos articuladores territoriais seriam disse-


minados nas primeiras décadas do XX. De acordo
com Amphilóquio Câmara (1923), o Rio Grande
do Norte em 1916 possuía três estradas de ferro:
E. F. Natal a Nova-Cruz, com 121 quilômetros de
extensão e que fazia parte da rede Great Western
of Brazil Railway Company, interligando Rio Grande
do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas; a E. F.
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

Figura 1: Localização Geográfica de Mossoró. Fonte: ARAÚ-


JO, MEDEIROS, 2019.

A vinda do primeiro idealizador da estrada, Ulrich


Graf, a Mossoró começou a se materializar em
Natal. O padre Antônio Joaquim Rodrigues – vi-
gário de Mossoró por um longo período, de 1844
a 1894 – incentivou o suíço Johan Ulrich Graf a
instalar sua casa de exportação em Mossoró,
ao demostrar as vantagens do município e ao
ventilar a facilitação de auxílios à empresa. De
acordo com Felipe Guerra (1948), Graf estava mais
propenso, ao observar o ambiente comercial da
capital e redondezas, a se estabelecer ou em
Natal ou em Macaíba, cidade próxima, uma vez
que esses dois núcleos apresentavam estrutura
16º SHCU comercial mais bem estabelecida. Entretanto, em
30 anos . Atualização Crítica virtude das vantagens oferecidas, em especial a
1394 isenção de impostos municipais, Graf resolveu
por estabelecer “em Mossoró casa compradora os esforços políticos do governador do estado,
e exportadora de produtos da zona, e ao mesmo Alberto Maranhão (1908-1912), dos representantes
tempo importando fazendas e outras mercadorias federais no congresso e do deputado cearense
estrangeiras” (GUERRA, 1948, p. 59).  coronel Vicente de Saboia, resultaram no início
dos serviços dessa via férrea no dia 3 de novem-
A ideia de implantação da Estrada de Ferro de bro de 1912. Essa abertura possibilitou a melhora
Mossoró permitiria a expansão da exportação significativa na importação de mercadorias no
comercial, como alternativa ao moroso transporte município de Mossoró, culminando na arreca-
de tração animal. Como se sabe, o intento de Ulri- dação crescente de receitas (11.473:289$ no ano
ch Graf não foi atingido, especialmente em virtude de 1919) e ampliando a circulação da produção,
da não requisição de garantia de juros por parte com destaque para o açúcar, o algodão5 e o milho
do Governo Imperial (MEDEIROS, 2007). Porém, (Quadro 1).

Mercadoria Quantidade de sacos Quilogramas Valor


Açúcar 10.228 652.061 441:741$000
Algodão 4.904 437.421 63:662$000
Milho 23.356 1.319.300 376:692$000

Quadro 1 - Mercadoria Importada pelo município de Mossoró em 1919. Fonte: ROSADO, Jerônimo, [1976], 1919. Nota: Ela-
borado pelos autores.

As informações apresentadas no quadro acima sas exportadoras de Mossoró, como o algodão.


foram coletadas do relatório da Intendência Mu- A abertura possibilitou a melhora significativa na
nicipal de Mossoró de 1919, cujo presidente era importação de mercadorias no município, como
Jerônimo Rosado – propagandeador da estrada se pode aferir a partir do aumento da receita ar-
desde os tempos de Graf. Esses números pos- recadada. Comparando-se os anos anteriores
sibilitam perceber as vantagens econômicas da à implantação do primeiro trecho (1915), com os
estrada de ferro para a cidade, especialmente anos posteriores, em especial entre 1915 e 1919,
no tocante aos gêneros de abastecimento e de percebe-se que a receita de arrecadação muni-
beneficiamento, que eram realizados pelas ca- cipal mais do que duplica (Quadros 2 e 3).

ANO QUANTIA
1894 14:787$000
1897 19:000$000
1905 24:100$000
1910 40:000$000

Quadro 2 – Demonstrativo da receita arrecada de 1894 até 1910, anos anteriores à EFMS. Fonte: CASCUDO, Luís da Câmara,
1984. Nota: Adaptado pelos autores.

5. O algodão se expandiu e ganhou importância no interior


nordestino através do povoamento intensificado no interior
do país a partir da segunda metade do século XVIII, período
que ocorria a Revolução Industrial na Europa. A necessidade
crescente da indústria têxtil inglesa fez com que o algodão
se tornasse importante quando substituiu parte significativa
do linho (CLEMENTINO, 1987).
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

ANO QUANTIA
1915 55:285$410
1916 62:875$280
1917 74:218$560
1918 85:740$510
1919 87:925$110

Quadro 3 – Demonstrativo da receita arrecada de 1915


até 1919, anos posteriores ao primeiro trecho da EFMS.
Fonte: ROSADO, Jerônimo, [1976], 1919. Nota: Adaptado
pelos autores.

O crescimento significativo da receita com o


passar dos anos estava diretamente associado
à inserção da ferrovia, que garantia a vazão das
crescentes safras. Camelo Filho (2000, p. 232)
destaca que para estradas de natureza de pene-
tração como a EFMS, “os interesses políticos e
econômicos foram satisfatoriamente amparados
pelo Estado, com a manutenção da unidade das
linhas, porém sem possibilitar a integração mais
efetiva às regiões mais distantes do país”. Além
disso, a possibilidade de integração inter-regional
e de penetração no território teria sido prejudica-
da pela falta de concatenação entre os diferentes
setores, limitando a capacidade de interiorização.

Os interesses políticos e econômicos foram


satisfatoriamente amparados pelo Estado,
e este manteve a unidade sem que as ferro-
vias integrassem as regiões mais distantes
do País. No Nordeste, elas não ultrapassa-
ram 800 km de extensão em direção ao in-
terior, e nas outras regiões esta penetração
foi cerca de 1.100 km. Somente a Noroeste
do Brasil alcançou o ponto mais distante do
território (2.000 km). As Estradas de ferro
do Nordeste não avançaram além dos seus
limites regionais, apesar da. construção
destas terem sido realizadas pelo Estado,
porém não integrou (CAMELO FILHO, 2000,
p. 232).
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
Apesar do investimento reduzido frente à ampli-
1396 tude do espaço geográfico, os efeitos de caráter
social, econômico e estratégico foram preponde- socioeconômico, como Mossoró (RN) e Sousa
rantes ao desenvolvimento. As cidades e regiões (PB), com a compleição do traçado da ferrovia.
integraram-se ao eixo vetorial da linha, embora a Mossoró é uma cidade da região Oeste do Rio
capilaridade da inserção da malha fosse limitada. Grande do Norte, distante 281 km de Natal. Sousa
localiza-se no estado da Paraíba e encontra-se
a 438 km de João Pessoa. A estrada entre essas
duas importantes localidades, capitais de região
FLUXOS ENTRE AS CIDADES DA ESTRADA DE FERRO dos respectivos estados, teve sua construção
MOSSORÓ RN A SOUSA PB  iniciada no ano de 1912, com o primeiro trecho,
entre Porto Franco e Mossoró, concluído em 1915.
As primeiras ferrovias no Nordeste brasileiro O trecho norte-riograndense, nos limites com a
marcaram uma nova fase para os transportes Paraíba, ia até a cidade de Alexandria, passando
da região. Facilitavam em rapidez e agilidade os por outras como: São Sebastião – atual Governa-
deslocamentos das mercadorias, o que gerava dor Dix-Sept Rosado –, Caraúbas, Patu, Almino
um maior incremento econômico, bem como a Afonso, Antônio Martins e Frutuoso Gomes – an-
circulação e aumento populacional nas cidades. tigamente Mombaça.
Isso contribuiu de maneira significativa para a
formação de núcleos e desenvolvimento urbano, O novo percurso deveria atravessar cida-
uma vez que a construção das estradas de ferro des como Caraúbas, Patu, Almino Afonso,
facilitava o acesso das pessoas do interior.  Demétrio Lemos (atual Antônio Martins) e
Barriguda (atual Alexandria). A mudança do
O estabelecimento de companhias ferroviá- projeto obedeceu a um estudo comparativo
rias em vários estados do Nordeste a partir de viabilidade, efetuado pelo engenheiro
de meados do século 19 marcou o início de Edison Junqueira Passos (....). A estrada,
uma nova fase dos meios de transporte da como suas precedentes, vinha efetuar uma
região. Em oposição aos principais concor- função de integração de áreas de produção,
rentes – os tropeiros e as barcaças –, as es- sobretudo mineral e agrícola, privilegiando
tradas de ferro tornaram os deslocamentos a cidade de Mossoró, que se constituiria o
mais rápidos, diminuíram as perdas durante polo para onde convergiriam as mercado-
o transporte de mercadorias e reduziram os rias, e cujo porto, responderia pelo o escoa-
custos de frete. Além disso, influenciaram mento das mesmas (MEDEIROS, 2007, p. 70).
também na ocupação do território e na fi-
xação da população no interior, por meio da De acordo com o livro segundo do “Guia Geral
influência na formação de cidades e na loca- das Estradas de Ferro do Brasil”, de 1960, e base-
lização de fábricas (SIQUEIRA, 2002, p. 170). ando-se nos dados da RFN (Rede Ferroviária do
Nordeste), até o ano de 1941 os trilhos da Estrada
Com o prolongamento da malha ferroviária no de Ferro de Mossoró a Sousa passavam de 180
Nordeste, muitas cidades passaram a fazer par- km de extensão, e atingiam a estação de Almino
te do processo de desenvolvimento territorial e Afonso (Quadro 04).

Trecho Abertura km Soma


Porto Franco - Mossoró 1915/03/19 38 38
Mossoró - São Sebastião 1926/11/01 39 77
São Sebastião - Caraúbas 1929/09/30 44 121
Caraúbas - Patu 1936/09/30 37 158
Patu - Almino Afonso 1937/09/30 17 175
Almino Afonso - Mombaça 1941/12/30 11 186

Quadro 04: Extensão e datas de abertura da estrada de Mossoró por trechos até 1941. Nota: MEDEIROS, 2007.
EIXO TEMÁTICO 2 Após muitos adiamentos, o prolongamento da
linha aconteceu lentamente, somente atingindo
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS Alexandria, última cidade no RN, em 1951. Por volta
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES de 1958 chegou a Sousa, encontrando-se com a
linha Recife-Fortaleza nesta cidade.

Nas Figuras 2 e 3, há um mapa da via férrea em


1923 e um quadro que detalha os horários e pa-
radas nas cidades atendidas, em viagens de ida e
de volta. A ida começava por Sousa até Mossoró,
a volta o percurso inverso. No quadro pode-se
perceber que algumas viagens possuíam trens
que tinham percursos menores, com menos pa-
radas – como aqueles que iam somente de Sousa
a Alexandria nos sábados e cuja viagem durava
duas horas.

A viagem completa possuía 13 paradas, sendo 8


horas e 45 minutos de duração na ida, enquanto a
volta durava 9 horas e meia, partindo de Mossoró
no percurso inverso. A distância total coberta era
de 280 quilômetros. Três paradas eram em territó-
rio paraibano – Sousa, São Pedro e Santa Cruz – e
dez paradas no Rio Grande do Norte – Alexandria
(antiga Barriguda), Ulrick Graff (no município de
Alexandria), Demétrio Lemos (atualmente Antônio
Martins), Mineiro (município de Mombaça), Almino
Afonso (antiga Mombaça), Patu, Jordão (município
de Caraúbas), Caraúbas, Governador Dix-Sept
Rosado e Mossoró.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1398
Figura 2: Mapa do RN e PB com linha ferroviária de Mossoró a Sousa, nesse momento atingindo Barriguda (Alexandria)
em 1923. Destacada em vermelho a zona de influência da EFMS. Fonte: https://www.brasil-turismo.com/rio-grande-
-norte/mapa-antigo.htm

Figura 3: Quando com os horários de trens de passageiros da EFMS em 1960. Fonte: https://www.estacoesferroviarias.
com.br/trens_ne/mossoro-souza.htm
EIXO TEMÁTICO 2 A estrada de ferro cruzava uma extensa parte do
sertão nordestino, passando pelas cidades men-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS cionadas nos estados do Rio Grande do Norte e
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Paraíba. Nos dias atuais os edifícios do patrimônio
ferroviário da linha se encontram em situações
díspares. Algumas edificações foram preserva-
das (como em Mossoró e Patu), outras antigas
estações foram derrubadas ou se encontram
em precário estágio de conservação (como em
Frutuoso Gomes e Antônio Martins). Além das
edificações, os percursos também registram a
territorialidade das ferrovias na região Oeste do
Rio Grande do Norte. Os traços patrimoniais das
estações ferroviárias ainda hoje estão presentes
na cidade de Patu. A antiga ferrovia da cidade
foi transformada na casa de cultura popular. A
estação ferroviária de Alexandria também se
encontra em uso, abrigando uma escola pública
nos dias atuais

É notória a importância desempenhada pela ci-


dade de Mossoró e seus representantes políticos
no que toca à construção da ferrovia. Era uma
maneira de a cidade manter e aprofundar sua
influência sobre núcleos interioranos da região
Oeste Potiguar e do sertão paraibano e em parte
cearense. A integração promovida pelos trilhos
aprofundou as relações territoriais entre Paraíba
e Rio Grande do Norte. O trem se tornou elo que
fortalecia laços econômicos e familiares, devido
ao intenso fluxo diário entre as cidades atendi-
das, corroborando a centralidade da cidade de
Mossoró na região. 

A QUESTÃO DOS RETIRANTES E O PROCESSO


DE URBANIZAÇÃO DE MOSSORÓ

O período da Primeira República, ou República


Velha, teve grande relevância no contexto de mo-
dernização regional brasileira. Ferreira e Dantas
(2006) esclarecem que as grandes transforma-
ções no Nordeste vieram por meio do interesse
dos homens que regressaram do Sudeste e da
Europa às cidades com novas ideias e o desejo de
intervir sobre a realidade buscando progredir as
condições materiais. Dessa forma, era necessário
interceder sobre os problemas até então mais
evidentes, tais como, a seca e os retirantes que
16º SHCU
se amontoavam nas cidades nos períodos críticos.
30 anos . Atualização Crítica

1400 As secas imbricavam-se aos diversos temas que


moveram a transformação da estrutura urbana mandiocas e legumes. Em Vera Cruz o pa-
herdada de uma economia colonial – fazendo com dre Antonio Xavier de Paiva fundou outra
que ocorresse o melhoramento dos portos, ferro- colônia, com 600 retirantes. Aproveitando
vias, saneamento, higienização e moralização de a facilidade e abundancia do braço huma-
antigos costumes (HERSCHMANN, 1994; FERREI- no, o presidente fez abrir estradas, cavar
RA, DANTAS, 2006). Esses aspectos podem ser barreiros, construir açudes e desobstruir
notados mediante o reconhecimento da impor- álveos dos rios em Pitimbu e Cajupiranga.
tância em aprovar o projeto para a implantação (CASCUDO, 1984, p. 185).
da EFMS pelo Senado Federal:
A dinâmica na cidade de Mossoró era alterada no
O governo da União mandara construir uma tempo da seca, como podia ser percebido com
estrada de ferro que partindo do porto de a chegada dos retirantes que traziam consigo
Mossoró, na vila de Areia Branca, no Estado fome, miséria, doença e ócio. A migração, mui-
do Rio Grande do Norte, penetre no sertão tas vezes à região Norte do país por navegação
desse Estado, demandando o da Parahyba de cabotagem do Lloyd Brasileiro, era tida como
na região do rio do Peixe, aproximando-se grande empecilho à modernização, motivo de
dos sertões do Ceará e atravessando o Es- atraso no processo de desenvolvimento urbano
tado de Pernambuco vá terminar no rio São e territorial, uma vez que despovoava as zonas
Francisco, na cidade de Petrolina, e conci- sertanejas (FERREIRA, DANTAS, 2006). Com a
liando-se com as exigências do traçado a criação em 1909 do órgão para o enfrentamento
necessidade de servir a mesma estrada ao técnico do problema, a Inspetoria de Obras Contra
maior número possível (LIMA, 2011, p. 58). as Secas (IOCS) 7, tanto os meios de transporte,
quanto o levantamento topográfico e as obras de
Esses relatos demonstram que a história do Nor- açudes, reservatórios e barragens, passavam a
deste do Brasil tem sido duramente marcada, ser encarados como imprescindíveis para a busca
especialmente no “polígono das secas”, garantindo de atenuar os efeitos nefastos sobre a população.
assim o desgaste socioeconômico e a redução de- As ações de combate se tornavam instituciona-
mográfica. A exemplo, teve o agravante da grande lizadas, o que ocasionava sua sistematização.
seca de 1877-1879 que marcou a insurgência de um
novo sujeito coletivo – os retirantes. Esta grande Entretanto, as alternativas pensadas para com-
seca levou à morte, em Mossoró, o quantitativo de bater as secas, até o início do século XX, eram
35.000 pessoas, de janeiro de 1878 a outubro de de caráter assistencialista, pois apenas surgiam
1879. Sendo esse o motivo para que Rodrigo Lo- quando o fenômeno climático eclodia com virulên-
bato6, presidente da Província, objetivasse evitar cia, a ponto de fazer com que a população enfren-
o deslocamento de pessoas para Mossoró e litoral tasse uma infinidade de adversidades, tais como
ao enviar recursos para os pontos assolados, com o êxodo, a concentração em centros urbanos sem
uma despesa que chegou à soma de 6.217.264$227 infraestrutura e condições sanitárias precárias.
(CASCUDO, 1984, p.184). Além disso, o presidente Tal estado calamitoso pode ser percebido a partir
provincial fundaria colônias nos arredores das dos telegramas expedidos em 04 de dezembro de
zonas urbanas para o recebimento das levas de 1915, indicando que “acham-se em Mossoró 2.425
migrantes, como aquelas descritas abaixo nas flagelados do município, 2.200 flagelados outros
proximidades de Natal. municípios Estado, 1.324 diferentes municípios
da Paraíba, Ceará, Pernambuco, Piauí ” (GUERRA,
Entre as medidas de emergência fundou, 1948, p. 77). Esse número expressivo foi o que
nas terras frescas de Pitimbu e Cajupiran- levou a um agravamento da situação sanitária
ga a colônia “Bom Jesus dos Navegantes”, e se tornou um dos propulsores para o desen-
com 3.600 pessoas, divididas em núcleos. volvimento do plano de construção da estrada
A colônia plantou meio milhão de covas de

7. Instituição que ficou responsável por tudo o que tornasse


6. Rodrigo Lobato Marcondes Machado, 39° presidente, quantificável a realidade que transformasse o problema da
assumiu o governo em 13 de março de 1879 e seguiu até 01 seca numa “fórmula aritmética mais simples” (Cunha, 1902,
de maio de 1880. p. 34: apud Ferreira, Dantas, p. 48).
EIXO TEMÁTICO 2 ferroviária do interior do RN ao sertão Paraibano.

HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS Passando-se alguns anos, com a chegada


DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES da seca, são reavivadas as tentativas de se
construir uma estrada de ferro em Mossoró.
As secas, no contexto dos sertões nordes-
tinos, sempre foram antônimas da ordem
vigente. Nesse contexto, esses fenômenos
naturais adquiriram um novo significado
em fenômenos sociais como, o êxodo rural.
Milhares de sertanejos migravam para cen-
tros urbanos, em busca de amparo contra
as calamidades dos períodos de estiagem,
causando preocupações diversas à tranqui-
lidade pública das cidades. (LIMA, p. 2011,
54 – 55)

A seca estava transformando a dinâmica social


das cidades, os retirantes estavam deixando a
vida rural na tentativa de melhores condições na
área urbana. Então naquela época uma maneira
de suprir as necessidades dos retirantes seria o
seu emprego na construção de obras grandiosas
como a ferrovia. Assim teriam os auxílios neces-
sários para a sobrevivência, como alimentação
e atendimento de saúde. Com o trabalho na es-
trada de ferro os retirantes eram pagos e isto
minimizava a presença no ambiente urbano, pois
movimentava a economia.

Enquanto até 1890, Mossoró contava com uma


pequena população, de 1920 a 1940 houve uma
evolução desse número, uma vez que esse perí-
odo corresponde ao “crescimento financeiro” da
cidade (MEDEIROS, 2007, p. 118). Apesar disso, a
população operária empregada na construção
da ferrovia enfrentava a limitação de materiais
necessários, além da falta de infraestrutura bá-
sica ofertada pela concessionária para tocar as
obras de construção. O comprometimento era de
empregar 3 mil pessoas nas obras, como condição
para o recebimento dos recursos por parte do
Governo da União (IOCS).

Em Maio de 32, a Companhia movida por


um dever humano de atender aos flagela-
dos, colocava a todos que se apresentavam
para o trabalho, até completar o número
de três mil – como se comprometera, mas
esse compromisso redundava em prejuízos
16º SHCU consideráveis por falta de material cor-
30 anos . Atualização Crítica
respondente ao número de operários. Não
1402 existindo bastante carrinho de mão que
facilitasse o transporte para os aterros, as
terras eram acumuladas dentro dos cortes.
Em outras turmas faltava pá ou picareta, de
maneira que uns operários ficavam parados
revezando o serviço uns com os outros...
(MEDEIROS, 2007, p. 164).

Ano População Índice %

1877 3.000 -

1890 10.336 +244%

1920 23.000 +122%

1940 35.000 +52%

Quadro 04: População de Mossoró de 1877 a 1940. Fonte: ROSADO, 2006, p. 207; apud MEDEIROS, 2007, p. 118.

A cotonicultura foi um dos sustentáculos das requisitos capitalistas que alicerçam o empreen-
exportações através da ferrovia, devido à sua dimento e coadunando com as potencialidades
estrutura de beneficiamento da fibra que era ur- econômicas das regiões atendidas.
bana e que, destarte, permitia a “polarização da
população nos centros urbanos mais prósperos” CONSIDERAÇÕES FINAIS
(MARIZ, SUASSUNA, 2002, p. 212). Rosado afirma
que a quantidade da tonelagem de produção au-
mentou consideravelmente entre os anos de 1917 A pesquisa desenvolvida acerca do transporte
e 1919 em Mossoró – especialmente de açúcar, regional no Oeste Potiguar na primeira metade
algodão e milho, como comentado anteriormente. do XX possibilita observar o importante papel
Foi expressiva também a exportação do sal cuja desse elemento de maior relevância para o desen-
indústria, de acordo com dados apresentados na volvimento socioeconômico. O modal ferroviário
Revista Potyguar em 1938, contava só em Areia se consagrou como veículo de transformação
Branca com “17 salinas com a capacidade de pro- para regiões do país, principalmente no Nordeste
dução anual de 117.800 toneladas, ocupando cerca brasileiro que enfrentava graves problemas oca-
de dois mil homens para a safra anual” (CASCUDO, sionados pelas secas.
1937, p.38).
A iniciativa para formação de redes urbanas com
Os valores de arrecadação de receitas da década as estradas de ferro fazia parte de um plano que
de 1920 são superados na década seguinte, quan- contemplava a questão da integração de regiões
do a estrada se estabelecia, atingindo respectiva- isoladas ao mercado externo. Iniciativas como
mente em 1935 e 1936 as quantias de 130:000$000 essas estimulavam o povoamento de cidades, o
e 148:900$000. Esses dados, portanto, confirmam combate contra as secas, que eram destinados a
a influência das obras de estruturação na expan- amparar as populações do interior, quando preju-
são da economia da região. É importante ressaltar dicadas pelas crises climáticas e dessa maneira
que a escolha de cada cidade que receberia a impedir o despovoamento.
ferrovia, levava em consideração a posição
geográfica, condições econômicas, o material A construção da ferrovia no Oeste Potiguar teve
produzido e o retorno financeiro decorrente como ponto de partida a cidade de Mossoró,
de suas atividades, oferecendo estabilidade e destinando-se ao sertão paraibano onde um dos
progresso na vida social, ou seja, atendendo aos objetivos era a expansão do desenvolvimento
EIXO TEMÁTICO 2 econômico. Além disso, objetivava também o
agenciamento territorial, tanto das cidades de
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS Mossoró e Sousa quanto das circunjacentes. Nes-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES sa perspectiva a cidade de Mossoró passou a ser
o polo do Oeste Potiguar, status que é mantido
até a atualidade.

Embora apresentasse grande variedade de produ-


tos era evidente que a região Oeste estava limitada
em virtude do parco agenciamento territorial.
Sendo esse um dos motivos para que a EFMS fun-
cionasse como um marco para o desenvolvimento
da economia, se tornando indispensável também
na formação e desenvolvimento dos núcleos de
povoamento. Dessa forma, eram criados meios
que estabeleciam a articulação do sertão com
o litoral e, consequentemente, com as demais
regiões do país. Introduzia, destarte, o próprio
sentimento de modernidade nesses rincões da
nação, corroborando assim o projeto de integra-
ção inter-regional brasileiro.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1404
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Mossoró: Uma história singular no sertão do Rio
Grande do Norte. Mossoró: Revista Sertões. V.1, n.2,
EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES No final do século XX, São Paulo era considera-
da a maior cidade da América do Sul, conectada
e submetida ao sistema capitalista internacio-
vídeo-pôster nalizado. Sua região metropolitana concentrava
milhares de corpos que preservavam as (con)
tradições históricas de nossa sociedade brasi-
AS TRAMAS DO leira. Seus primórdios contam do Colégio de São
Paulo de Piratininga e suas edificações sacras
RESSENTIMENTO EM construídas em meados do século XVI sobre as
paisagens sagradas dos povos guaranis que por
REVOLTA NA ARTE PUNK: OS ali circulavam. A primeira Igreja foi levantada
por indígenas escravizados pela missão cató-
SUBTERRÂNEOS NA HISTÓRIA lica que dominavam essas aldeias. O perverso
processo de colonização, conjugada com a es-
DE SÃO PAULO cravidão africana, sedimentou o começo da ur-
banização e produziu seus primeiros edifícios,
praças, ruas e avenidas. Enquanto a cidade
THE WEFTS OF RESENTMENT AND REVOLT IN THE
crescia, o projeto moderno tentava apagar as
PUNK ART: THE SUBTERRANEAN OF SÃO PAULO/BRAZIL
referências das lutas dos povos indígenas e ne-
HISTORY
gros em sua constituição, mas no subterrâneo,
nas margens periféricas, nos poros e nas suas
LAS TRAMAS DEL RESENTIMIENTO Y REVUELTA EN LA
entranhas essas existências formavam parte do
ARTE PUNK: LO SUBTERRANEOS EN LA HISTORIA DE
tecido urbano. Em diferentes momentos histó-
SÃO PAULO/BRAZIL EN 1980
ricos, o ressentimento e a revolta causada por
esse violento combate de dominação irrompeu
PIRES, João Augusto Neves e estimulou manifestações artísticas, perfor-
mances da resiliência. Minha hipóteses é que a
Professor Escola Técnica Estadual Pedro Ferreira Alves (Mogi
Mirim/SP); Doutorando História; IFHC/UNICAMP; Bolsista
Arte Punk expressa essas sensibilidades e sua
FAPESP produção revela esse longo processo, pois a tra-
prof.joaoneves@gmail.com ma dessa cena político cultural se formou na in-
tersecção entre o ponto de encontro das movi-
mentações globais da cólera punk na década de
1980 com a Avenida São João, que pavimentava
a antiga Ladeira Yacuba e o Vale Anhangabaú –
rotas e lugares sagrados dos antigos povos in-
dígenas. Nessa composição, sentimos os punks
se identificarem e performarem a vivência dos
corpos historicamente assujeitados em São
Paulo. Seguindo os passos de diferentes grupos
punks e ouvindo suas produções sonoras, ten-
tarei demonstrar a manifestação do ressenti-
mento em revolta e suas correlações históricas
com os sentimentos subterrâneos que teceram
a vida humana/urbana daquela metrópole.

16º SHCU
SÃO PAULO RESSENTIMENTO EM REVOLTA ARTE PUNK
30 anos . Atualização Crítica

1406
ABSTRACT RESUMEN

At the end of the XXTH century, São Paulo was Al final del siclo XX, São Paulo era considerada la
considered the biggest city of South America más grande ciudad de America del Sur, conectada
connected and submitted to the international y submetida al sistema capitalista internacional.
capitalist system. No accident, its metropolitan Su región metropolitana concentraba miles de
region concentrated millions of bodies and pre- cuerpos que preservaban las contradiciones his-
served the historical contradiction of our society. toricas de nuestra sociedad brasileña. El Cólegio
At the beginning of Brazilian colonization, the São de São Paulo de Piratininga y sus edificaciones
Paulo Religious College was constructed overhe- sacras fueron construidas por medio del siclo XVI
ad of sacred indigenous places. The first church sobre los paisajes sagrados de los pueblos guara-
was built by indigenous enslaved by the catholic nis que por allí caminaban. La primera Iglecia fue
mission, who destroyed their sacred house. This elevada por indígenas esclavizados por la misíon
perverse colonization process conjugated with católica que dominaba aquellos pueblos. El per-
African black slavering was the beginning of the verso proceso de colonización, conjugado con la
city and the construction of their major buildings, esclavitu africana, ha producido el comienzo de
streets and squares. As the city grew, the modern la urbanización con sus primeiros edificios, pla-
project tried to erase the indigenous and bla- zas, calles y avenidas. Mientras la ciudad crescía,
cks fight references in their constitutions, but in el proyecto moderno intentaba apagar las refe-
the subterranean, the resistance continues and rencias de luchas de los pueblos indigénas y ne-
constituting the urban wefts. In different mo- gros de su constitución, pero en el subterráneo,
ments the resentment and revolt caused by this en las margenes perifericas, en los poros y en-
violent combat of dominance erupted and some- trañas esas excistencias formaban parte del teji-
times stimulated art manifestations. My hypothe- do urbano. En diferentes momentos historicos, el
sis is that Punk Art is part of this sensibilities ex- resentimiento y la revuelta causada por ese vio-
perience and their production reveal this process, lento combate de dominación rompió y estimuló
is not coincidental that the point of meeting of the manifestaciones artisticas, performances de la
first punk scene in the 80’s was the same place of resiliencia. Mi hipótesis es que la Arte Punk ex-
the old sacred indigenous valley and part of the presa esas sensibilidades y su producción mues-
punk people identify with the black experience in tra ese largo proceso. Las tramas de esa cena
São Paulo. Following the steps of different punk politico cultural se formó en la intersección entre
groups in the metropolitan region of São Pau- el punto de encuentro de las movimentaciones de
lo and hearing their songs, I try to demonstrate la década de 1980 con la Avenida São João, que
the manifestations of resentment and revolt and pavimenta la antigua “Ladeira Yacuba” y el “Vale
their relations with the historical subterranean Anhangabaú” – rutas y lugares sagrados para los
sensibilities which weave the urban life. antigos pueblos indigenas. En esta composición
sentimos los punks se identificarem e performar
la vivencia de los cuerpos historicamente sujeta-
SÃO PAULO RESENTMENT REVOLT PUNK ART dos en São Paulo. Seguindo los pasos de diferen-
tes grupos punks e escuchando sus produciones
sonoras, intentaré demonstrar las manifestacio-
nes del resentimiento en revuelta y sus relaciones
historicas con los sentimientos subterráneos que
tejeran la vida humana/urbana de aquella metro-
pole.

SÃO PAULO RESENTIMIENTO EN REVUELTA ARTE PUNK


EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
A palavra punk, entendida na língua inglesa, como
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
algo sujo, podre e desajeitado, se transforma,
no decorrer da década de 1970, em uma mar-
ca identitária assumida por aqueles/as que, nas
vídeo-pôster
suas errâncias pela urbe, concentravam energias
nos becos e subterrâneos da cidade, aderindo a

AS TRAMAS DO uma performatividade desajustada que agredia


e incomodava. Pelas vias de circulação opera-

RESSENTIMENTO EM cionalizadas na modernidade globalizada, seus


significados vão se incorporando a outras experi-
REVOLTA NA ARTE PUNK: OS ências e se disseminando como um estilo de vida
no meio urbano, as vezes cômico e glamouroso,
SUBTERRÂNEOS NA HISTÓRIA mas quase sempre ameaçador. Apesar do adjetivo
em inglês, suas sombras de significados empres-
DE SÃO PAULO tam atributos aos antigos nomadismos e novas
maneiras de sobrevivência na cidade. À medida
que seus sentidos correm pelo mundo, compõem
THE WEFTS OF RESENTMENT AND REVOLT IN THE com as trajetórias e traçados dos lugares, colando
PUNK ART: THE SUBTERRANEAN OF SÃO PAULO/BRAZIL aos estilhaços das paisagens urbanas. Criando,
HISTORY nas tensões dos encontros, bricolagens e hibridis-
mo, outras singularidades do punk em São Paulo
LAS TRAMAS DEL RESENTIMIENTO Y REVUELTA EN LA (Brasil), na Cidade do Cabo (África do Sul) ou em
ARTE PUNK: LO SUBTERRANEOS EN LA HISTORIA DE Oslo (Noruega). Por essas e outras, não é certo
SÃO PAULO/BRAZIL EN 1980 dizer categoricamente que o punk tenha surgido
nas ruas de Londres ou nos bairros sitiados de
Nova York, se reproduzindo, tempos depois, em
outros centros urbanos. Essa prática errante,
que veio se popularizar nas últimas décadas do
século XX como punk, conforme tentarei demons-
trar, guarda entre suas performances a herança
das/os insubmissas/os revoltadas/os que, em
pequenas ações sub-reptícias, desviantes e in-
surgentes, ou em grandes movimentos coletivos
de cólera, partilhavam sentimentos nos fluxos da
modernidade e abalavam a ordem imposta com
sua fúria ressentida. As movimentações errantes
dos punks pelos escombros e reconstruções nas
grandes cidades revelam as profundas camadas
em nossas história de dominação dos corpos. No
decorrer deste texto pretendo apresentar, por
meio da gestualidade e da escuta das sonoridades
do punk, as concretizações do receituário capi-
talista implementado na Região Metropolitana de
São Paulo durante o governo militar (1964 - 1985),
seus impactos na vida urbana e sua correspondên-
cia com o processo de submissão dos territórios
e povos indígenas.
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1408
FIGURA 1: Colagem dos ressentimentos e revoltas em São Paulo, de própria autoria. Composição com: Terra Indígena de
Danilson Baniwa; Planta da Cidade de São Paulo por Rufino José Felizardo e Costa, 1810; Sistema Cartográfico da Grande
São Paulo por Grupo Executivo da Grande São Paulo (GEGRAN), 1974; Caricatura punk, Caixa 17, Arq. 1 do Centro de Do-
cumentação de Informação Científica / Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

A colagem da FIGURA 1 tenta sintetizar essas – poço, fonte, manancial.1 Segundo consta no
ideias por meio de uma montagem de imagens. Dicionário de Ruas do Arquivo Histórico Municipal
O fluxo imagético nos lança nas convergências e
contingências históricas, confunde nossas cer- de São Paulo, antes do asfaltamento e o batis-
tezas e cria outras percepções. Ler São Paulo mo da rua que cruza o Vale do Anhangabaú pelo
como uma Terra Indígena, como quer o artista
nome de São João, a ladeira servia de “esconderijo
Danilson, da etnia Baniwa. Sua denúncia se as-
senta na compreensão histórica de que aquele
território, originalmente dos povos guaranis, foi 1.O córrego Yacuba em guarani significa “água envenenada”
ocupado durante um longo processo de colo- e corresponde também a etimologia da palavra Anhanga-
nização, seguido por ambiciosos projetos de baú, “águas assombradas” ou “águas do diabo”. Na pers-
modernização, que sucumbiram e enterraram pectiva cristã poderíamos compreender como algo ruim
os restos dos aldeamentos na região. A “Planta e maléfico, contudo na visão indígena apresentam outros
sentidos, conforme notamos em: Timóteo da Silva Verá
da Cidade de São Paulo” cartografada por Ru-
Tupã Popygua & Anita Ekman. Yvyrupa: A terra uma só.
fino José Felizardo e Costa em 1810, apresenta
São Paulo: Hedra, 2017. Sobre o significado das palavras
os traços inicias da cidade e mostra as marcas
ver: TIBIRIÇÁ, Luíz Caldas. Dicionário Guarani Português.
da deterioração do Vale do Anhangabaú e dos São Paulo: Editora Traço, 1989; CANESE, Natalia Krivoshein;
antigos Córrego Yacuba e a Ladeira do Acu que ALCARAZ, Feliciano Acosta. Ñe’ẽryru Avañe’ẽ – Karaiñe’e
compunham aquela natureza. Essas terminolo- / Diccionario Guarani – Espanhol. Universidad Nacional de
gias, oriundas da cosmovisão indígena, pressu- Asunción, 2002. Anhá – s. diabo, demônio; adj. mau, má.
punham o cuidado e preservação daquele lugar, Acu – v. hacu, adj. quente, caloroso. Ykua – poço, fonte,
dado suas características naturais de uma Ykua manancial.
EIXO TEMÁTICO 2 para assaltantes e escravos fugidos”.2 Também
era o antigo caminho tomado pelos bandeiras,
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS por tropeiros, mas também servia como rota de
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES fuga que levava as aldeias e quilombos do sertão.

Decorrido os anos, o Sistema Cartográfico da


Grande São Paulo, desenvolvido pelo Grupo Exe-
cutivo da Grande São Paulo (GEGRAN) em 1974,
mostra as intensas transformações daquelas
mediações. No subterrâneo do Vale do Anhanga-
baú cruzavam as primeiras linhas do metrô que
chegavam e partiam da Estação São Bento. Entre
arranhas céus, praças, galerias e outros símbolos
da modernidade, a Avenida São João era concebi-
da como uma importante via arterial para os fluxos
de automóveis. Seu percurso combinava, em de-
terminado trecho, com uma imponente elevação
construída pelos ditames do regime militar home-
nageando o seu presidente ditador Costa e Silva
(1967 – 1969) – estrutura apelidada de Minhocão.

Nessa mesma Avenida São João, nº439, na Loja


240 no 1º Andar das Grandes Galerias, construída
em frente ao Largo do Paiçandu e da Igreja Nos-
sa Senhora do Rosários dos Homens Pretos, foi
inaugura, em 1979, a Punk Rock Discos. No livro “O
que é punk”, da Coleção Primeiros Passos, Antônio
Bivar conta que “quando os punks não estão nas
Grandes Galerias, estão no Largo do São Bento”
(BIVAR, 2018, p. 112). Nesses entrelaçamentos, a
garotada errante, fascinada com as performance
do punk, se encontravam e promoviam uma inten-
sa movimentação pela cidade. Suas aspirações e
provocações, alimentadas por essa prática cultu-
ral juvenil urbana, que, como veremos, pendulava
entre os ressentimento e as revoltas, remontam
as antigas formas de submissão e insurgências
das populações nesse território.

Seguindo essas direções, alcançamos os perso-


nagens que aqui nos interessam. A performance
punk, caracterizada pelo desenho encontrado na

2. PREFEITURA DE SÃO PAULO. Arquivo Histórico Municipal


de São Paulo. Avenida São João. 2020. Disponível em:<ht-
tps://dicionarioderuas.prefeitura.sp.gov.br/>. Acesso sem:
20 de Jan. 2020. Uma análise pormenorizada também pode
ser consultada em: CAMPOS, Helcio Ribeiro. A renovação
urbana do centro de São Paulo e o Largo de São Bento.
16º SHCU
Revista GEOUSP – espaço e tempo, São Paulo, N°32, PP.
30 anos . Atualização Crítica
39-51., 2012. <http://www.revistas.usp.br/geousp/article/
1410 view/74281/77924> .
Caixa 17, Arq. 1 no Centro de Documentação de AS AMEAÇAS DA FÚRIA PUNK EM SÃO PAULO
Informação Científica / Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (CEDIC/PUC), assemelha-se
à ferocidade da onça que ruge as ancestralida-
des da Terra Indígena. Na sobreposição dessas
imagens, anotamos a conformação de histórias
e as tramas do tecido urbano. No entrecruzar
desses vestígios históricos evidencia-se uma
constelação de corpos e temporalidades. Os punk,
como veremos mais adiante, andavam em grupos,
preservavam a prática do nomadismo, conduziam
suas ações conforme uma “sociedade contra o
Estado” (CLASTRES, 2017), cantavam e dançavam
ritualizando a guerra e em alguns casos assumiam
o codinome de “Índio”.

Essa mesma percepção aparece no trabalho da


antropóloga Janice Caiafa (1985), que inserida
no meio punk na cidade do Rio de Janeiro, ao
descrever “a invasão dos bandos sub”, arrisca em
Figura 2: Folha da Tarde 7 JUN 1979. Acervo Punk CAIXA 17,
chamá-los de “índios metropolitanos”, pois, de Arq. 1, p.60 . Centro de documentação e informação científica
acordo com suas observações, “em relação aos (CEDIC) / PUC/SP.
marcos da sociedade que lhe fazia pensá-los, não
pouco seriamente, como uma tribo que nomadi- Abaixo das imagens: A moda punk – culto à promiscui-
zava por aquelas ruas perigosas” (CAIAFA, 1985, dade física e social – chega a São Paulo numa de suas
variações mais típicas (ainda que plagiada): a violência.
p. 16). A mesma impressão também aparece no
E os grupos, que usam roupas sujas e cabelos tingidos,
texto de André Abreu (2020), o qual entende que:
resolveram defrontar-se usando correntes, canivetes e
machados indígenas.
A efervescência política, social e cultural
da primeira metade dos anos de 1980, em Reportagem de Valdir Sanchez e fotos de Luis Gavaert.
São Paulo, testemunhou a ascendência de
uma juventude que se organizava através de
uma codificação comportamental e simbó-
lica de confronto. De forma similar, talvez, No dia 7 de Junho de 1979, o Jornal da Tarde dava
aos indígenas quando realizavam seus ritos notícia de um conflito, com disparos de armas de
cotidianos de guerra, mas, desta vez, adap- fogo e prisões, nas mediações do Largo do São
tados a uma dimensão histórica sintetizada Bento no centro da cidade de São Paulo, envol-
entre os signos da cidade e de seus anteces- vendo alguns jovens de grupos adeptos ao movi-
sores rebeldes urbanos. (SILVA, 2020, p. 15) mento punk (FIGURA 2). Segundo as informações
do periódico, tratava-se de uma vingança entre
Em diálogo com essas percepções, por meio dos gangues rivais. Em suas palavras: “O show de rock,
rastros dessa movimentação na Região Metropo- dentro da estação do metrô, tinha terminado. Era
litana de São Paulo no final da década de 1970, é domingo último e o relógio marcava as cindo da
possível perceber as composições da performan- tarde. Foi nessa hora que o Punk do Terror atacou.”
ce punk e sua correspondência com o processo (SANCHEZ, 1979)
histórico de dominação dos corpos instaurado
nesse território. Nas próximas linhas pretendo Antes de descrever os pormenores dos aconte-
fazer coro com essas análises, revelando outros cimentos e dos envolvidos, o repórter provoca
aspectos que testemunham essa herança. Nesse as comparações entre o fenômeno que ocorrera
ínterim, enfatizo como os ressentimentos e as anos antes em Londres e seus correspondentes
revoltas comovem os subterrâneos da história na maior metrópole da América do Sul. Assim
compondo outros devires. descreve Vladimir Sanchez: “De tal modo, como
EIXO TEMÁTICO 2 se o relógio do mosteiro de São Bento fosse o
Big Bang e os punk de São Paulo tão originais, ou
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS revoltados, quanto os de Londres ]…] os nossos
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES punk trataram de imitá-las com fidelidade”(IBID.,
1979).No momento de sua redação, o autor não
se preocupava em entender as dinâmicas e os
desdobramentos do movimento punk no processo
de metropolização e seus correspondentes com
o que se consagrou chamar de globalização. Sua
descrição se restringe na denúncia da “ameça
punk” que incendiou o cenário político do Impé-
rio Britânico e que poderia incomodar a ordem
brasileira. Por isso, subentende-se, seguindo as
prerrogativas da notícia, que “os adolescentes
vestidos de sujo; com suas grossas correntes
penduradas à cintura ou ao pescoço”(IBID., 1979)
estavam contribuindo para disseminar a violência
e o ódio pela região metropolitana de São Paulo.
No seu entendimento, estes jovens foram comovi-
dos pelos desejos que circulavam na música e na
moda “que exalta o sujo, podre, o grotesco, criadas
na Inglaterra”(IBID., 1979). Apesar do preconceito
e estigmas lançados sobre essa movimentação
que pulsava em São Paulo, suas palavras nos
possibilita averiguar importantes aspectos que
dizem sobre a composição urbana da metrópole
e os sentimentos indigestos, tramados por res-
sentimentos e revolta, na arte punk.

Antes de aprofundarmos na análise sobre os acon-


tecimentos, lugares e personagens apresentados
na reportagem, vale dizer que os bandos de jo-
vens que despertaram a atenção do jornalista e
a própria reação acusatória, não eram nenhuma
novidade, pelo contrário, eles correspondiam com
os antecedentes históricos da própria composição
das grandes cidades modernas. A historiadora
Michelle Perrot, para citarmos um significativo
exemplo, conta da “França da Belle Époque, os
apaches, primeiros bandos de jovens” (PERROT,
2017) que percorriam os subúrbios operários e
incomodavam Paris, “a capital do século XIX”
(BENJAMIN, 1984). Com importantes ressalvas
históricas, também poderíamos aproximar essas
experiências com a dos negros afrodescendentes,
ameríndios, mulheres e outros tipos de miseráveis
reconhecidos como as “classes perigosas”, as “tur-
bas de desordeiros” que transitavam por São Paulo
na virada do século. A partir dessas referências,
16º SHCU é possível afirmar que os punk seguem os cami-
30 anos . Atualização Crítica
nhos desviantes dessas práticas, afinal, o modo
1412 de vida punk é análogo aos corpos errantes que,
ao caminharem pelas entranhas da urbe, fazem ses da sociedade de consumo de massa. Nessa
seu reino a cidade e usam, de forma habilidosa, conjuntura, emergem os grupos juvenis ligados
suas potencialidades. Promovem movimentações as tendências artísticas e elos identitários vincu-
e, conforme discute Paola Jacques no “Elogio aos lados ao mercado da música, pois, como anota
errantes” (2014), “recusam o controle disciplinar Abramo (1994), este é um dos principais meio de
total dos planos modernos” (JACQUES, 2014, p.33). diversão, “seja para ouvir, para dançar ou tocar. A
Da mesma forma, como veremos no decorrer da música está presente e acompanha quase todos
reportagem sobre a ameça punk, os envolvidos os momentos de lazer: o tempo em que fica sozi-
com os fatos narrados, tinham uma particular nho em casa, o encontro com os amigos, as festas
desenvoltura em percorrer e aproximar longas e, principalmente, os bailes […] Discos e fitas são
distâncias, estabelecer vínculos, promover ativi- um dos principais elementos de consumo”. (IBID.,
dades artísticas em diferentes cantos da cidade p.66). No caso das expressões vinculadas ao gê-
e se comunicar com outros punks no restante do nero rock’n’roll e suas manifestações nas cenas
mundo. São alguns aspectos importantes que vão Teddy Boys na década de 1950 e Hippie no anos
além da violência urbana destacados na notícia 1960, a bibliografia existente aponta a difusão de
e que, de alguma forma, fomentam uma postura determinados desejos e padrões culturais (HEB-
errante na cidade. DIGE, 1979; FRITH, 1982).

Apesar dessas similaridades, no tempo da Belle Na esteira desses movimentos juvenis urbanos,
Époque, a juventude oriunda das camadas popula- o punk aparece em meados da década de 1970
res, era negada como grupo, como indivíduo, “visto e princípios de 1980 em diferentes cidades do
apenas como futuro trabalhador, corpo produtor mundo. Era visto com força e intensidade em
a ser dobrado aos ritmos da disciplina industrial” Londres, Nova York e Los Angeles, na Cidade do
(PERROT, 2017, p. 354). No caso aqui apresentado, México, em Lima e Buenos Aires, composições
no contexto da segunda metade do século XX, a que também pulsavam nas cidades nórdicas de
juventude, de diferentes camadas sociais, se in- Oslo, Estocolmo e Helsinque. Por todos os lados,
tegrava – às vezes de modo perverso – ao sistema inclusive cruzando / os muros da União das Repú-
capitalista, empregando sua força de trabalho em blicas Socialista Soviéticas (URSS) \ começavam
ramos específicos da produção, se educando para a aparecer, pequenos grupelhos de jovens que
servirem como futura mão de obra qualificada assumiam uma indumentária identificada com o
e principalmente dinamizando um importante visual punk – roupas no estilo jeans e couro sur-
segmento do mercado de bens de consumo, lazer rados, com bottons de bandas presos a tecidos
e diversão. Helena Wendel Abramo (1994), ao es- remendados; cores que reverenciavam o aspec-
tudar “Cenas juvenis” conta que “entre os setores to sombrio misturado ao mais exuberante das
populares das cidades brasileiras dos anos 70 e tinturas fluorecente, combinando com cabelos
80, a maior parte dos jovens trabalhava ou estava tingidos, correntes e adereço metálicos atraves-
à procura de emprego” (ABRAMO, 1994, p.64) e, por sando seus corpos.
esta relativa autonomia financeira, desfrutavam,
do que ela denomina como, a condição juvenil. Em São Paulo, na matéria de Vladimir Sanchez
Sem maiores preocupações com a subsistência são anotadas algumas singularidades do punk
familiar e outras conveniência da vida adulta, brasileiro que nos interessa aqui aprofundar, pois,
estes jovens gastavam seu tempo ocioso e sua além das características comuns identificadas em
renda acessando aos produtos culturais, bem outras grandes cidades, o Jornal Folha da Tarde
como participando de espaços de lazer e diversão. ressaltava, no texto de chamada da reportagem,
Nessa interação, criavam vínculos identitários, a presença do “machado indígena e canivetes”(-
coletivos de produção e circulação de saberes. SANCHEZ, 1979). Além disso, no decorrer do texto
são identificados apelidos que demarcavam cor
Dessas observações, vale destacar as ordenações de pele e traços étnicos, mas, antes de entender
da indústria cultural que se capilarizou, em espe- esses destaques, vamos aos lugares de origem
cial após a segunda guerra mundial, ocupando daqueles jovens, talvez esse caminho contribua
diferentes instâncias da vida, protagonizando, para a compreensão dessas características mar-
desta forma, novos estilos adaptados aos interes- cantes da cena punk nessa metrópole.
EIXO TEMÁTICO 2 O CENÁRIO DA “METRÓPOLE CORPORATIVA
E FRAGMENTADA”
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
Apesar dos acontecimentos noticiados pelo pe-
riódico terem ocorrido nas mediações do Largo
do São Bento, os envolvidos, segundo consta na
reportagem, são de lugares diversos da Região
Metropolitana de São Paulo. Para mapear essa
movimentação, o repórter segue as pistas e acom-
panha as investigações da polícia na delegacia,
anota os relatos das testemunhas e, com isso,
alerta a população criando um discurso de pânico
que permite as ações truculentas dos aparatos
de repressão militar. Valdir Sanchez, faz questão
de narrar que:

Longe dali, em São Caetano, [cidade na


região sudeste da metrópole], também a
vizinhança do Clube da Sociedade Benefi-
cente Esportiva e Recreativa Oswaldo Cruz
(SBEROC) não se espantava tanto com os
frequentadores dos bailes Punk, que trava-
vam violentas lutas ou amanheciam dormin-
do na calçada. Ou ainda, drogados, subiam
nos telhados de vizinhos, ou simplesmente
usavam os jardins das casa próximas para
se amar (IBID., 1979).

Sobre o local, em específico, ele conta que “é


um clube da rua Lisboa, em São Caetano, que
está com a piscina vazia e o salão de baile fe-
chado”(IBID., 1979), mas que devido a problemas
financeiros “alugou o salão para um certo Luiz
Carlos Nunes, que começou com os bailes punks
nos fins de semana. Os frequentadores surgiram
de toda a Grande São Paulo”(IBID., 1979).

O detalhamento das informações e os pormenores


da averiguação policial demonstram o trabalho
conjunto entre o meio de comunicação e os mili-
tares em caracterizar esse fenômeno como uma
ameaça social. Suas palavras comovem os valo-
res morais que repudiam a desordem e a trans-
gressão, mesmo assim, sua descrição não está
muito distante da realidade de uma festa punk e
os pormenores de sua organização. Nesses en-
contros, a diversão era movida pela euforia dos
corpos, ritmados por uma música frenética, que
16º SHCU estimulava a exaltação da sexualidade e o uso de
30 anos . Atualização Crítica
entorpecentes. Afinal, estavam diante de um mo-
1414 vimento em que se busca por outras experiências
e a sensação da liberdade. Isso, para os olhares alegrias quanto as tristezas, combinando ressen-
conservadores da época, era assustador, visto timentos e revoltas, mesmo porque, durantes os
que o tipo de dança e canto que se promoviam shows, as bandas tocavam e gritavam a miséria
nesses eventos em nada lembravam os bailes social, vide o nome dos grupos musicais da época:
da geração Jovem Guarda, tampouco pareciam Condutores de Cadáver, Cólera, Lixomania, Olho
com a nova onda dos bailes e discotecas daquela Seco e tantos outros que ressaltavam os aspectos
época. A antropóloga Janice Caiafa, ao descrever sombrios da sociedade.
“Os bandos sub” (1983) na cidade do Rio de Janeiro,
anota que durante os shows, Voltando à reportagem de Vladimir Sanchez,
percebemos como aqueles encontros criavam
[…] sacam suas correntes e começam a agi- um espaço próprio para diversão/contestação,
tar. É um massacre. Empurrões e tombos, fomentavam a formação de grupos e vínculos
correntes voam a esmo. […] Quando alguns identitários, mas também conformava territó-
se afastam, e já muitos se acalmam, não há rios e suas disputas. As falas das testemunhas
nenhuma raiva entre eles. Ninguém está apresentadas pelo repórter revelam os desen-
machucado seriamente, poque inclusive cadeadores do conflito. Segundo consta na no-
um dos passos dessa dança é saber escapar tícia, deve-se basicamente a disputa territorial,
dos golpes das correntes. É a brincadeira a proeminência do macho entre seu bando e a
como o perigo de transpor o limite do cor- pertinência identitária da performance punk.
po do outro, alegria malévola mas jamais Marrom, de 16 anos, um dos principais envolvidos
ressentida. (CAIAFA, 1985, p. 56). nos acontecimentos, conta que o motivador da
briga devia a uma disputa entre os membros da
Esse relato, lançando mão de uma descrição deta- gangue Punk do Terror, originária de Pirituba (zona
lhada da gestualidade, no entanto, guarda algumas noroeste de São Paulo), que vinham participar dos
contradições, mesmo porque seu estudo está eventos no SBROC em Santo Caetano (região su-
concentrado em um determinado grupo e suas deste da metrópole) – “os punk do Terror entravam
relações no Rio de Janeiro, por isso devemos sem pagar os Cr$ 20 […] e os do Terror queriam
filtrar algumas informações. Para além do que foi ouvir apenas rock punk. Se tocassem outra mú-
anotado, no momento daquele show observado sica reclamavam, davam correntadas no chão,
pela autora, devemos considerar outros contextos a correntada acertava alguém o tempo fechava”
e aspectos que alimentavam aquelas ações. Em (SANCHEZ, 1979). Nesses conflitos, seus amigos:
suas anotações, Caiafa (1985) não pondera sobre Tigrão, Índio e Betão, acabaram por se envolver
a conjuntura histórica que instigam os anseios em violentos confrontos. No relato anotado por
punk. É necessário, portanto, acrescentar que Vladimir Sanchez, Marrom conta que antes dos
nos encontros festivos, a garotada, enquanto ocorridos no Largo do São Bento “há alguns me-
performava, davam vazam a seus ressentimentos, ses [os Punk do Terror] tinham atacado o Tigrão
ritualizando o ambiente de guerra que se instaurou num baile do SBROC (embora o Tigrão, moderado,
nos meios urbanos, fruto da espoliação, crimi- tivesse depois dado uma machada na cabeça de
nalidades, perseguições e o controle disciplinar um dos Terror). Também, em outra vez, tinham
dos corpos, em especial no contexto da ditadura malhado a correntadas o Índio e o Betão, da turma
militar. Assim, de forma efusiva, esse sujeitos de São Caetano, no mesmo SBEROC”(IBID., 1979).
dissolviam as conturbações vividas na metrópole, Ainda que a narrativa tenha sido elaborada para
os medos e angústias enfrentados no cotidia- o texto jornalístico e esteja enviesada, ocultando
no. Afinal, como a própria antropóloga constata, alguns pormenores e contaminada por estratégias
esses errantes, nas suas andanças noturnas, de persuasão, ela nos conta sobre a cultura da
caminhavam pelos subterrâneos da cidade, con- violência difundida nesses meios e os confrontos
viviam com as violências do submundo e fugiam inerentes à movimentação punk pela metrópole.
da polícia que os perseguiam. Apesar do clima
festivo, o ressentimento e a revolta comoviam A versão dada pelos membros do grupo Punk do
as movimentações punk instaurando ambientes Terror também apresentam aspectos revelado-
contestatórios. Portanto, esses espaços eram res sobre a cena: “O Carlinhos, José Carlos do
fomentados pelos afetos que tramavam tanto as Nascimento, 18 anos, e Paulo Valim, 22 anos, re-
EIXO TEMÁTICO 2 sumiam o problema todo nisto: em Pirituba, onde
moram, não há bons salões de rock. Então eles
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS têm de ser punk nos salões dos outros, o que nem
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES sempre agrada. Além disso, se conquistam uma
menina, os punks locais ficam com ciúmes”(IBID.,
1979). Nesse relato podemos perceber a busca
por lazer entre o segmento jovem e como esses
lugares, ao mesmo tempo, eram irregulares e
estavam dispersos pela metrópole. Independente
das distâncias geográficas, a garotada procura-
va desfrutar dos espaços que agradavam a sua
turma, mas isso nem sempre era harmonioso.
Necessário compreender que, no contexto das
grandes cidades, a comunidade próxima, muita
das vezes localizada no bairro ou região próxima,
quase sempre, preserva os laços afetivos entre
amigos e familiares. A partir desses vínculos nas-
ciam os pequenos grupos escolares, turmas de
companheiros, tribos e gangues urbanas. Na me-
trópole, perdido na multidão, o reconhecimento
de alguns indivíduos e determinados territórios
têm significativa importância. Por esse motivo,
mesmo que fosse possível percorrer longos tra-
jetos à procura de lugares para diversão, poderia
ser um risco ingressar em determinados espaços
demarcados. Para ingressar no território de um
tribo ou gangue, o sujeito precisava ser iniciado
ou convidado por alguém próximo, ao contrário
os olhares discriminatório vigiavam o estrangeiro.

As observações do redator da matéria também


ressaltam os valores machistas, os quais compre-
endem a mulher como um objeto de conquista,
troca ou disputa entre os homens e suas turmas.
No entanto, existe uma outra demissão interes-
sante que se esconde nessas linhas da reporta-
gem, pois, as expressões de “ciúmes”, invejas e
outras indisposições que desencadeavam os con-
flitos entre os diferentes, guardam aspectos das
desigualdades e diferenças sociais na metrópole.
Diante disso, antes de voltarmos aos fatos, vamos
observar mais de perto a constituição desse co-
nurbado para compreender suas ressonâncias
nas práticas sociais. O fato de Pirituba não haver
salões de rock e os membros dos Punk do Terror
dessa região não quererem ou não terem dinheiro
para pagar as festas em outros cantos da cidade,
bem como assediarem as meninas dessa região
podem ser compreendidos por diferentes fatores.
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
Analisando de perto a constituição desse ende-
1416 reços e os vínculos entre os extremos do tecido
urbano, percebemos como esse estilo de vida Assim, alterava-se as zonas de investimento em
nasce das tensões nas precariedades, fissuras e infraestrutura urbana, desapropriavam-se terre-
fragmentos perpetuados durante os processos nos, modificavam o valor da terra e ampliavam as
de conurbação. O texto “Zoneamento Industrial interferências do capital imobiliário nas decisões
Metropolitano: Experiência da Grande São Pau- sobre o uso do solo.
lo”, publicado em 1979 pelo Governo do Estado
de São Paulo, por meio da Secretaria de Esta- Suas expectativas coadunavam com o projeto
do dos Negócios Metropolitanos e da Empresa nacional desenvolvimentista, sintetizado nos
Metropolitana de Planejamento da Grande São Plano Nacional de Desenvolvimento (PND I e II),
Paulo S.A (EMPLASA), apresenta os ditames do conduzidos pelos militares sob o tripé, como anota
processo de metropolização que envolve, dentre Napolitano (2016), da vigilância, censura e repres-
são para o progresso da Nação.5 Esses planos,
outras coisas, os acordos políticos tramados aos
como veremos mais adiante, foram cimentados
interesses do capital, em nível nacional e regional,
pelas reformas urbanas traçadas por técnicos
para a viabilização de projetos econômicos e a
da Empresa Municipal de Urbanização (EMURB),
organização espacial.3 A documentação disponível
criada em 1971. O prefeito da época, Paulo Maluf
nesse material nos faz perceber como as políticas
(1969-1971), orquestrava, junto com urbanistas,
gestadas no período, sob a égide do regime mili-
geógrafos, sanitaristas e outros técnicos da Em-
tar, convinham aos interesses do empresariado,
presa Paulista de Planejamento Metropolitano S/A
contribuindo, desta forma, para que a disposição
(EMPLASA), fundada em 1974, os instrumentos
espacial favorecesse principalmente a produção
para tocar propostas de reconfiguração urbana.6
e circulação de mercadorias.
Os desenhos e as propostas de remodelação do
O zoneamento planejado pelo poder instituído em
Arquiteto Urbanista Ernest Robert de Carvalho
benefício do capital, reordenava as estruturas Mange, na época presidente da EMURB, foram
das cidades. A medida que empresas e indústrias apresentados nos primeiros meses de 1978 e di-
eram criadas ou realocadas, terrenos superva-
lorizados, rodovias e modais ampliados, inves-
timento redirecionados, legislações e acordos Desenvolvimento Industrial da Grande São Paulo. In: SE-
firmados, dava-se feição a uma das primeiras CRETARIA DE ESTADO DOS NEGÓCIOS METROPOLITANOS
& EMPRESA METROPOLITANA DE PLANEJAMENTO DA
grandes regiões metropolitanas do país. O go-
GRANDE SÃO PAULO S.A. Zoneamento industrial metropo-
vernador do Estado de São Paulo na época Paulo
litano: A experiência da Grande São Paulo. São Paulo: Noro,
Egydio Martins (1975 – 1979), o qual participou de 1979. p. 4. Vale lembrar que antes da promulgação dessa lei
grandes negócios quando Ministro da Indústria e houve a construção das bases normativas que dispunham
Comércio no governo Castello Branco (1964 – 1967), sobre a criação da Região Metropolitana de São Paulo e
comandou as primeiras ações para a consolidação que também criava os artifícios técnicos e financeiros
do projeto de metropolização. Em seu discurso para o desenvolvimento desse plano, faço referência em
para a sanção da “Lei de Zoneamento Industrial especial a Lei Complementar nº 94, de 29 de maio de 1974
da Grande São Paulo”, disse que ensaiava-se “o que dispõe sobre os termos legais da metrópole. Seguindo
futuro perfil do parque industrial metropolita- essas empreitadas, no decorrer da década de 1980 tivemos
a aprovação dos Planos Metropolitano de Desenvolvimento
no, onde predominarão as indústrias de espe-
Integrado (1981) e Metropolitano de Transportes– PMT (1983).
cialização ou vocação metropolitana” e que “os
investimentos que recaem e irão recair sobre a 5. Para um aprofundamento sobre a política institucional e
nossa Região Metropolitana são fantásticos”.4 os arranjos econômicos do período militar: SORJ, Bernardo;
ALMEIDA, Maria Herminia Tavares (Org.). Sociedade e Po-
líticas no Brasil pós-1964. São Paulo: Editora Brasiliense,
3. SECRETARIA DE ESTADO DOS NEGÓCIOS METROPOLI- 1983; STEPAN, Alfred (org.). Democratizando o Brasil. Rio
TANOS & EMPRESA METROPOLITANA DE PLANEJAMEN- de Janeiro: Paz e terra, 1988. REIS, Daniel Aarão. A vida
TO DA GRANDE SÃO PAULO S.A. Zoneamento industrial política. In: REIS, Daniel Aarão (Coord.). Modernização,
metropolitano: A experiência da Grande São Paulo. São ditadura e democracia (1964 – 2010). Vol.5. Rio de Janeiro:
Paulo: Noro, 1979. Objetiva, 2014.

4. Discurso proferido pelo Governador Paulo Egydio Martins 6. LEME, Nereu. Emurb quer recuperar o Centro. Folha de
em 27 de outubro de 1978, quando foi sancionada a Lei do São Paulo. 19 de Fevereiro de 1978, 3º caderno, p. 29.
EIXO TEMÁTICO 2 fundidos pela Folha de São Paulo. Suas ideias
mostram como a recuperação do centro excluía
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS de seu planos os corpos indesejados que por ali
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES circulavam. As convicções defendidas por ele,
somado aos princípios da instituição que coman-
dava e os meios de comunicação hegemônicos
confabulados com o poder instituído, foram ins-
piradas nas novas concepções discutidas nos
meios intelectualizados que se preocupavam
com aspectos “psicossociológico das cidades”.
Assim, suas perspectivas consideravam que: “o
centro é a imagem da cidade (o coração), que
precisa transmitir uma mensagem de otimismo
e credibilidade e tornar a cidade viável” (LEME,
1978, p.29). Desta forma, ele constatava que “a
doença características das grandes cidades gera
um estado geral de agressividade, um clima de
tensão que passa a se manifestar violentamente.
Porque ninguém pertence a nada e todo mundo
é inimigo.” (IBID., 1978). Dessas palavras o jornal
explica os planos de intervenção urbana:

Toda a filosofia do arquiteto Ernest Man-


ge, presidente da Emurb, na tentativa de
transmitir sua mensagem de otimismo e
credibilidade na cidade, se resume, segundo
ele próprio explica, em determinadas inter-
venções urbanas, que procuram melhorar
a imagem de São Paulo, gradativamente,
na medida em que forem sendo aceitas e
utilizadas pela população. (…) É o inves-
timento de Cr$ 32 milhões para recupe-
ração do viaduto Santa Efigênia, que de
acordo com Mange será pintado em cor
clara e iluminado para dar “uma presença
otimista e alegre”, cujas obras deverão ser
concluiadas em Maio próximo (…) as refor-
mas programadas para o Pátio do Colégio,
que ainda dependem de liberação federal;
o projeto de construir uma praça no lugar
do antigo QG do II Exército, na rua Conse-
lheiro Crispiniano e a super obra urbana
de remodelação da praça da Sé, feita pela
Companhia Metropolitana no valor de Cr$
200 milhões (IBID., 1978).

Isso mostra como aquela espacialidade, sempre


transformada pelos anseios da modernidade,
continuava servindo como ponto de referência e
16º SHCU intervenção dos poderes instituídos. Os projetos
30 anos . Atualização Crítica
de remodelação, traziam em seu bojo o desejo de
1418 harmonizar o lugar, afim de “melhorar a imagem”
da cidade. Os punk, nesse sentido, dado suas Outro documento, escrito posterior ao processo
posturas ruidosas e origens populares, eram re- implementação dos projetos militares, escrito no
presentativos do clima de tensão, por suas con- período da democracia e sensível as dores das
testações e manifestações da violência urbana. normativas que regeram o desenvolvimento da
Aqueles corpos indesejados não caberiam nos Região Metropolitana de São Paulo, ajuda a com-
projetos de remodelação, pelo contrário, eles preender outras questões sobre os desejos postos
anunciavam as pertubações “psicossociológico em ação naquele conurbado por acionistas do
das cidades”. mercado e seus comparsas da política instituída. O
estudo “São Paulo: crise e mudança”, coordenado
Olhando por outro ângulo, percebemos como entre 1989 – 1991 por Raquel Rolnik, Lucio Kowarik
as vontades descritas nos projetos da EMURB e Nadia Somekh, a pedido da Secretária Municipal
retomam as primeiras intervenções naquela na- de Planejamento, comandada naquele momento
tureza nos arredores do Vale do Anhangabaú. No por Paul Singer, revela, ao descortinar os vários
livro “Crônicas da cidade de São Paulo”, o indígena aspectos da vida urbana naquela região, as con-
Daniel Munduruku, conta que o nome do lugar tradições acumuladas nas décadas anteriores.
designa uma assombração ou maldição recebida No que diz respeito as mudanças implementadas
pelos povos originários. Nessas mediações ele na legislação sobre o uso do solo, mostram que:
narra que:
Mudanças na legislação relativa ao parce-
Com o pensamento no passado, fiquei ima- lamento do solo, em 1979, através das quais
ginando o espanto que originou um nome o loteador clandestino passou a responder
tão forte e tão mágico. Se os portugueses por crime, desestimularam a oferta de lotes
eram a assombração que povoou o imaginá- na periferia. A isto se somam custos cres-
rio dos Tupiniquim dos primeiros tempos, é centes de transporte, preços elevados de
possível que esses nossos antepassados já materiais de construção e oferta reduzida
conhecessem o poder de fogo que aqueles de financiamento para a habitação.
alienígenas tinham em suas mãos e isso os
apavorou de tal maneira que não fizeram A explosão do crescimento populacional nos anéis
oposição ao avanço deles. (DANIEL MUN- interior e intermediário de São Paulo, que passa a
DURUKU, 2011, p. 125) ocorrer no anos 80, é, sem sem sombra de dúvida,
um processo novo no padrão de crescimento da
Quer dizer, o ímpeto colonizador que destruiu a cidade. Mas esta novidade representa o fim de
paisagem do lugar prossegue nas ganâncias dos uma época: a era da casa própria.7
tecnocratas que servem aos interesses do mer-
cado, dinamizados pela especulação imobiliária Lendo essas informações nos estudos organiza-
e os anseios do Estado moderno. Nesse cenário, dos para o relatório “São Paulo: Crise e Mudança”,
como discute André Abreu Silva (2020), os punk conseguimos entender as dinâmicas das sensi-
aparecem como “herdeiros da combatividade dos bilidades nos “anéis interiores e intermediários”,
espíritos guerreiros indígenas que um dia habita- bem como os extremos da cidade. Dessas análises
ram o lugar, massacrados sistematicamente pelos é possível perceber as vivencias e perspectivas
bandeirantes, e pela imperiosa ideia de progresso” dos jovens de família de baixa renda, em especial
(SILVA, 2020, p. 15). Movendo nos subterrâneos e os adeptos ao estilo punk, quando seguimos os
submundos da metrópole, esses sujeitos nos lan-
çam para as sobreposições e contingenciamentos
históricos, de modo que enxergamos os punk 7. PREFEITURA DE SÃO PAULO & SECRETARIA DE PLANEJA-
MENTO. São Paulo: Crise e Mudança. São Paulo: Brasiliense,
como “uma das últimas formas de resistência aos
1991, p.37. A publicação corresponde as pesquisas e opera-
ímpetos da modernidade avassaladora” (IBID.,p.15).
ções na máquina burocrática feita pelo primeiro governo do
Nas margens e fissuras da “metrópole corporativa Partido dos Trabalhadores (PT) na Capital paulista. Nesses
e fragmentada” (SANTOS, 2009), estes sujeitos anos houveram a aplicação, por meio do prefeita Luíza
protagonizaram o “grito suburbano” – Long Play Erundina (PT), de políticas públicas, pensadas no decorrer da
lançado em 1982 com as bandas Cólera, Inocente década de 1980 por movimentos sociais ligados ao partido,
e Olho Seco. como formas de gestão da crise que se vivia na cidade.
EIXO TEMÁTICO 2 passos dos envolvidos com os acontecimento
noticiados no Jornal da Tarde no dia 7 de Junho
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS de 1979. Aqueles identificados com grupo Punk
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES do Terror, originários da região de Pirituba, por
exemplo, segundo os diagnóstico do trabalho “São
Paulo: crise e mudanças”, em meados da década
de 1980, sua população vivam em uma condição
em que apenas 57% da população tinha acesso a
água tratada, 33% estava ligada a rede de esgoto
e havia um índice de 19,5 óbitos entre mil nasci-
dos vivos. Nesse cenário, 44,5% da população
desfrutavam da renda familiar na média de 0 a 8
salários mínimos. Os punk oriundos do bairro do
Limão (Zona Norte de São Paulo) também citados
na reportagem, estavam em uma situação um
pouco melhor, pois 92% dos moradores tinham
acesso a água, 87% usufruíam de esgoto, mas a
mortalidade infantil chegava a 49,6 óbitos para
cada mil nascimentos.8 Notamos, no entrecruzar
dessas documentações, como as manifestações
punks interagiam e ressoavam das experiência
nos cortiços, favelas e moradias populares. Com
os dados analisados pela equipe de pesquisa-
doras/es é possível traçar a essas informações
algumas linhas e pontos que mostrem os sentidos
da movimentação punk pelo tecido urbano.

Em outro canto da metrópole, na cidade de São


Caetano do Sul, o menor município das três ci-
dades que conurbavam o ABC paulista (Santo
André, São Bernardo do Campo e São Caetano
do Sul), por onde também andavam os punk, pas-
sava um exponencial desenvolvimento urbano
combinado com políticas públicas interessadas
no favorecimento da instalação de indústrias e
empresas ligadas ao ramo de serviços. O estudo
de Milton Santos (2009), “Metrópole Corporativa e
Fragmentada”, revela que “desde de o decênio de
1970, o investimento social era mais elevado na
sub-região do ABC do que na Região Metropolitana
como um todo” (SANTOS, 2009, p. 116). Conside-
rando os indicadores socioeconômicos como:
despesa por habitante, renda, leito hospitalar,
acesso a serviço de água e esgoto, alfabetização e
gastos públicos, a região desfrutava de melhores
condições que outras partes da metrópole e São
Caetano, em especial, despontava em alguns des-
ses percentuais. Ademais, constata o geógrafo:

16º SHCU
8. PREFEITURA DE SÃO PAULO & SECRETARIA DE PLA-
30 anos . Atualização Crítica
NEJAMENTO. São Paulo: Crise e Mudança. São Paulo:
1420 Brasiliense, 1991, p.67.
Várias razões contribuem para essa evolu- o delegado lotou seis carros policiais com
ção favorável aos municípios do Sudeste, investigadores e um comissário de menores
sobretudo a chamada área do ABC. A pri- e foi ao SBEROC. Entrou no meio do um rock
meira combina os salários relativamente punk. Entreviu, na escuridão, quase duzen-
altos ao fato de que têm mais acesso à tos adolescentes e jovens dançando como
informação, assim como o nível mais ele- se estivessem brigando, confinados por pa-
vado de organização que arregimentam os redes pretas, os vitros tapados por chapas
trabalhadores, sindicatos, comunidades de compensado – cena de uma confusão
de base animadas pela Igreja, associações maluca – e comentou com um investigador:
locais incluindo organizações de morado- “Não dá para entender” […] “punks devida-
res, de locatários etc. Porque as pessoas mente vestidos de grotescos, alguns com
estão próximas umas das outras, há um alfinetes transpassando a pele do rosto ou
melhor entendimento da situação. Em ou- dos braços, muitos com os cabelos tingidos
tras palavras, a densidade da população de amarelo ou roxo – inclusive os pelos do
e dos trabalhadores junto a organizações peito, exibidos por extensos rombos nas
sociais oferece a possibilidade de transfor- camisetas (SANCHEZ, 1979).
mar “quantidade em qualidade”. (SANTOS,
Por outro ponto vista, vemos jovens, filhos da
2009, p. 119)
classes trabalhadora, organizando sua própria
Isso comprova como o Clube da Sociedade Be- festa em um salão comunitário alugado; cantan-
do suas angústias aos berros com sonoridades
neficente Esportiva e Recreativa Oswaldo Cruz
percussivas e ruídos distorcidos; dançando com
(SBEROC), onde ocorriam alguns encontros punk,
pulos, socos e pontapés; vestidos com roupas de
era fruto de um contexto de articulação dos movi-
estilo próprio, feitas com remendos e ostentando
mentos sociais emergentes na época, bem como
símbolos da morte. Apesar de incompreensível
estava conectado aos interesses dos trabalhado-
para os guardas, os sons e as imagens relembra-
res/as organizados no processo de democratiza-
vam alvos históricos no processo da civilização
ção do país, bem como nos investimentos públicos
brasileira. Para o poder militar, aqueles corpos
e do bem-estar naquela região. Não por acaso, o
precisavam ser disciplinados.
delegado Cláudio Gobbetti, na época “titular da De-
legacia de São Caetano”, se incumbiu em terminar Com essas informações, o repórter tenta con-
com aquele ponto de encontro. Segundo consta duzir nossas emoções diante dos fatos. Alguns
na reportagem de Vladimir Sanchez, ele “recebeu exageros, criações e pormenores – “nas lutas, as
um abaixo-assinado com 172 assinaturas. Eram correntes passavam de adorno a armas” (IBID.,
os vizinhos do SBEROC, reclamando do barulho, 1979) –, ajudam a comover o leitor dessa ameaça
da sujeira, das brigas e do uso de seus jardins. e oferece uma interpretação que contribuía com
Numa quinta-feira, o delegado mandou um car- o julgamento e a conduta da polícia contra os
ro policial com quatro investigadores para uma bandos que se espalhavam na metrópole. Ao De-
avaliação”(SANCHEZ, 1979). No contexto em que legado Gobbetti, em especial, não faltam elogios
as organizações sociais sofriam com as possíveis e comentários sobre sua atuação para combater
batidas policiais e outros constrangimentos do os “vândalos”. O agente da ordem pública, segun-
regime militar, essas rebeldias juvenis poderiam do consta na notícia, cumprindo os mandos de
complicar a situação, ainda mais quando confun- sua função, esteve, inclusive, na Inglaterra para
diam a compreensão dos mais velhos envolvidos conhecer aquela nova prática cultural. Sua expe-
em sindicatos ou movimentos carismáticos liga- riência no “país de origem” do movimento e suas
dos a teologia da libertação. Não bastando esse investigações atuais comprovam ao repórter “a
preconceitos, o jornalista acrescenta que no local qualidade da imitação dos nossos punks”(IBID.,
encontrou “na fachada inscrições como Punk do 1979). Conforme seu relato, durante a ação policial
Terror, Hitler, Judas e riscos que reproduzem a no SBEROC em Santo André, a garotada vomitava
suástica nazista.” pelos cantos do salão porque haviam ingerido
“leite com limão”. Quer dizer, na sua compreensão
Com a denúncia e o apoio da população local, ele estava diante de uma molecada de desocupa-
EIXO TEMÁTICO 2 dos, mal educados e baderneiros – “Os quase 200
punks, lembra o delegado, acharam muito diverti-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS do irem para a Delegacia” (IBID., 1979). A diversão,
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES vista nas risadas, piadas e empurrões, pode ter
sido a reação ao medo. Afinal, tinham encontrado
durante a revista objetos historicamente estigma-
tizados como elementos da perturbação social:
“correntes, canivetes, um machado indígena,
pílulas anticoncepcionais ou tóxicas e porções
de maconha que, somadas, deram 12 gramas.”
(IBID., 1979). Por esses e outros motivos, aqueles
que tinham maior idade – acima de 18 anos – foram
severamente punidos por toda aquela confusão.
O desfecho dessa história ocorreu no fatídico
dia 7 de Junho de 1979, semanas depois dessa
batida policial.

O DESFECHO FINAL & AS FUGAS PUNKS NAS


TRAMAS DO RESSENTIMENTO EM REVOLTA

Figura 3: Recorte da Folha da Tarde 7 JUN 1979. Acervo


Punk CAIXA 17, Arq. 1, p.60. Centro de documentação e
informação científica (CEDIC) / PUC/SP.

O texto traz, com enfase em detalhes, a rees-


crita das narrativas dos meninos interpolados
durante os inquéritos polícias, na qual vemos uma
percepção das imagens e gestos das cenas do
crime (FIGURA 3). O repórter se debruçou sobre
os punks na tentativa de desvendar as motivações
daquele acontecimento, afinal era obrigado a dar
informações – nome, origem e identidade – sobre
aquele estilo de vida desviante que passava a
atormentar a região metropolitana de São Paulo.
16º SHCU A matéria na capa, com letras em CAIXA ALTA,
30 anos . Atualização Crítica
fotos e pormenores remontam a antiquíssima
1422 estrategia de ação conjunta entre os meios de
comunicação e o poder do Estado na repressão dos punks pendularem entre o terror e a revolta.
dos desajustados – os periódicos rastreavam e Nessas confusões de ideias e nas experiências
noticiavam as figuras indesejosas. Porém, da de violência urbana percebemos os ressentimen-
mesma forma que o conteúdo do artigo cria novos tos como emoções pendulares, pulsando entre
estigmas e alimenta um imaginário dos errantes, o extremo da intolerância às raízes da revolta.
ele explicitava algumas características do contex- Juvenal, servindo o exército, tirava sua farda para
to brasileiro. Dá pistas sobre as práticas culturais cantar e dançar o punk, gritar suas indignações
de jovens rebeldes, oriundos de camadas popu- e se divertir com sua turma, mas as vivências
lares, se misturando aos sentidos e significados degradantes dos conflitos sociais levava seus
do punk que circulavam pelas veias abertas do sentimentos para as intensidades da fúria res-
mundo globalizado na década de 1970. sentida. No fatídico dia da vingança no Lago do
São Bento, segundo consta na reportagem, ele
No Brasil, sob a tutela da Ditadura Militar, não usava “calça com suástica nazista desenhada.
passava alheio, aquela molecada que corria o Tinha uma camiseta com um crânio espetado por
centro da cidade com uma indumentária agres- uma espada, desenhado nas costas, junto com
siva e impactante, tampouco aqueles que eram as inscrições Punk do Terror” (SANCHEZ, 1979).
incorporados nas instituições militares e que
ostentavam símbolos do terror – como é o caso Na tentativa de organizar um discurso coerente
do soldado Juvenal Souza Magalhães, persona- e convincente da ameaça punk, o autor Valdir
gem delatado no confronto. Os mecanismos de Sanches, deixa ver as contradições que afligiam e
controle do Regime Militar, o DOPS-SP e suas movimentavam aquela juventude, como também
ramificações já operavam com bastante violência nos dá pistas sobre a maneira como essas con-
sádica e estratégia de ação militar no espaço ur- vergências de símbolos, adornos e sonoridades
bano contra possíveis subversivos. A cada linha compõem as variações da performance punk na
da notícia, percebemos as heranças coloniais dos cidade. Lemos em seus relatos a confusão de
aparelhos de repressão e seu aperfeiçoamento ideias e o abalo emocional daqueles/as garotos/
no decorrer dos tempos militares que fazem nos- as que incorporavam no seu cotidiano, o ritmo da
sa história. A cada nome citado, idade revelada, sonoridade punk rock e os gestuais das gangues
direção anotada, contato especificados e rela- urbanas, as heranças dos antepassados insurgen-
tos confessionais registrados naquele meio de tes e as revoltas das classes trabalhadores que
comunicação, seguia a lupa dos dispositivos de se reorganizavam naquele contexto. Da mesma
controle e condenação social. forma, notamos também os ressentimentos per-
petuados pelo nazifascismo e da violência que
Desse acontecimento, Juvenal Souza Magalhães, cultivados no regime militar.
na época jovem soldado do Exercito, no dia da
batida policial no SBEROC usava “jeans com a
palavra punk escrita em grandes letras, em am-
bas as pernas” – talvez uma marca de reconhe- CONCLUSÃO
cimento dos membros da turma “Punk do Terror”
de Pirituba, Zona Noroeste de São Paulo, a qual Apesar das ações de vigilância, punição e con-
ele fazia parte. Provavelmente lhes puniram se- trole contra a ameaça punk, os estímulos daque-
veramente nas selas de correção do Exercito, las sonoridades e performances fizeram com
pois as feridas daquelas pancadas ressentiram que jovens dos bairros pobres de São Paulo e de
até sua hemorragia se manifestar semanas de- outras regiões do conurbado, transformassem
pois, quando Juvenal e sua gangue, saíram de seu diferentes pontos da metrópole paulista em espa-
bairro até o Largo do São Bento para acertarem ços de encontro e articulação da movimentação
as contas com os Punk do SBEROC e os outros punk na década de 1980. Como vimos até aqui,
grupos, como a gangue dos Punk Rebelde do ABC alguns percorriam longas distâncias, parte dela
e os Punk do bairro do Limão. em grupos, andando ou em transportes públicos,
para chegar ao Largo São Bento e caminhar até
Os ressentimentos das pancadas da polícia e a PUNK ROCK DISCO e, neste nó, de uma vasta
das brigas entre gangues faziam as emoções rede interconectada, trocavam fanzines, fitas
EIXO TEMÁTICO 2 K-7 e vinis acompanhando as novidades da “global
punk revolution” (PATTON, 2018). Sobre essa loja,
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS a Fanzine Factor Zero nº1 – revista de produção
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES independente e artesanal voltada para os fãs e
adeptos do punk – conta que:

O Fábio do Olho Seco, mantém contato com


um cara na Inglaterra que grava fitas com
grupos de várias partes do mundo e depois
vende. Os grupos destas fitas geralmente
nunca gravaram nada em discos, bem aí o
Fábio entra em cena. Ele mandou um fita
com vários grupos nacionais (M-19, Cólera,
Olho Seco, Anarcoólatras, Condutores de
Cadáver e algo mais), então o inglesinho lá
colocou o Cólera, o Olho Seco e acho que
Condutores de Cadáver junto com grupos
Finlandeses, Italianos, Suecos, Ingleses,
Noruegueses, e até da Sibéria, numa fita e
ela está a venda. Isto é importante além de
animar o pessoal dos grupos ainda muita
gente fica sabendo que aqui tem punk e de
boa qualidade.” (FACTOR ZERO, nº1, 1982 –
CAIXA 37, Arq.14 CEDIC/PUC)

Ao mesmo tempo em que se aproximavam de


outros espaços e temporalidades por meios das
partilhas do sensível nas ondas sonoras do punk
rock, estes indivíduos desencadeavam um pro-
cesso de desvio subjetivo recompondo seu ca-
minhar com uma multiplicidade de existências
ressentidas&revoltadas. Protagonizaram a mo-
vimentação da Arte Punk na metrópole paulista,
radicalizando os sentidos e sentimentos da urbe.
Isso podemos ouvir, por exemplo, no Compacto
Triplo – um Extented Play (EP) com três faixas de
cada lado – “Violência e Sobrevivência” (1982),
da banda Lixomania, a qual fazia o corpo dos
punks dançarem nos show organizados no final
da década de 1970 e começo de 1980. Vendido e
produzidos pelas parcerias arranjadas na Punk
Rock Disco, o qual foi apresentado como o 2º
Disco punk gravado no Brasil (FIGURA 4), suas
gravações retomam as ideias que estimulavam
aquela movimentação.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1424
tanto quanto globalizado como o McDonald’s® e
a Coca-Cola® – na época comandada pelo jovem
Kid Vinil, que tocava os sons dos ingleses Sex
Pistols – “I’m an anarquist!”.9

Estimulados e em contato com essas criações,


os membros da banda Lixomania, produziram
nas movimentações pela metrópole uma sono-
ridade própria que canta e partilha as vivencias
do subterrâneo. Das músicas gravadas, vale a
pena, para fecharmos nossos argumentos, ouvir
a segunda faixa do Lado B, onde eles contam dos
sentimentos que agitam os “Fugitivos”. Composta
em um ritmo lento, dentro da marcação 4/4 do
rock’n’roll, os ruídos dos instrumentos de corda
se harmonizam como rangidos que acompanham
a voz gutural que narra as intensas paixões que
pendulam entre ressentimento e revolta.

Atenção para a história que eu vou contar/


De um cara marcado por não ajudar./ Vive
escondido de certas leis/ Caminha e procura
ser alguém!/ Sua vida é isso e nada mais/ Pois
FIGURA 4: Panfleto do Compacto da Banda Lixomania. vive escondido como animais. (refrão 2x)
Acervo Punk CAIXA 22, Arq. 1, p. 28 CEDI/PUC Pensando algum dia em ser alguém/ Foge
procurando o seu bem/ Mas sabe que um dia
vai mudar/ E espera sua hora de falar./ Sua
O disco fonográfico denuncia, já em sua capa, vida é isso e nada mais/ Pois vive escondido
os crimes hediondos cometidos na metrópole como animais. (refrão 2x).10
lançando mão de recortes de jornais que anun- Ao cantarem as experiências que rementem ao
ciavam: “Enigma da morte da mulher em Suzano””; sujeitos marginalizados, reivindicam seu ponto
“Esfaqueado no ponto de ônibus em Santo Amaro”; de vista na história. Nesse cenário, novamente
“Comerciário esfaqueado”. Nesses recortes e nos aproximamos da óptica daqueles/as que fi-
colagens aparecem as indignações dos jovens: zeram da fuga sua estratégia de combate. Nos
Moreno (vocal), Tikinho (guitarra), Miro (bateria) e meandros da dominação, procuravam fissuras
Adá (baixo), que criados na região do bairro Lauza- que lhe permitissem desviar da ordem à procura
ne Paulista na Zona Norte de São Paulo, cantam: do seu bem-estar, na esperança de que um dia a
LADO A: FAIXA 1: Violência & Sobrevivência, FAIXA situação pudesse mudar. Enquanto correm pelas
2: Massacre Inocente e FAIXA 3: O Punk Rock Não ruas, reagem em busca de uma outra existência,
Morreu; LADO B: FAIXA 1: Zé Ninguém, FAIXA 2: mais próxima dos errantes, no subterrâneo, no
Fugitivo, FAIXA 3: Os Punks Também Amam. submundo e nas vivências como animais. Sobre
isso, Caiafa (1985) nos ajuda a perceber as dispo-
Nessas canções percebemos como suas expe-
sições nessa estratégia, seguindo suas reflexões
riências circulavam com os sentimentos da vida
punk, mas também se encontravam com as ideias
do produtor da banda, o Antônio Bivar, rapaz inte- 9. Interessante notar como a capa dessa emblemática banda
lectualizado, que havia convivido com os punks também foi feita com imagens que remetem a recortes
londrinos e trouxe em suas bagagens as releitu- de revista. Sex Pistols. Anarchy in the UK. Never Mind The
ras políticas processadas naquele meio. Esses Bollocks Here’s The Sex Pistols. LP Labo B, Faixa 2. Lon-
garotos acompanhavam as movimentações na dres: U.K, Virgin, 1977.
Punk Rock Discos e ouviram na Rádio Excelsior, 10. Lixomania. Fugitivo. Violência e Sobrevivência. EP Lado
durante o programa de Rock Sanduíche – algo um B, Faixa 3, São Paulo: Gravodisc, 1982.
EIXO TEMÁTICO 2 percebemos que:

HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS é interessante essa posição, por nos permite
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES pensar numa animalidade enquanto estilo,
enquanto disponibilidade para as estratégias
que se armam a nível de diferentes práticas
em outros lugares e para outros exercícios.
Animalidade por exemplo, como fuga possí-
vel de uma organização humana, reconhecí-
vel, previsível, bem-adaptada; recurso que
está aí para ser usado. (CAIAFA, 1985, p.86)

Não por um acaso, vemos na reportagem a adoção


de apelidos como Tigrão, Índio e Marron. São com-
posições que provocam “um agravamento da dife-
rença, um apagamento da familiaridade reconhe-
cível, por uma fuga aos parâmetros de avaliação.
(CAIAFA, 1985, p. 89), mas que também guardam
sentimentos e memórias de um passado ainda
presente. Da mesma forma, lendo as crônicas de
Daniel Munduruku sobre as suas andanças por São
Paulo, enxergamos na selva de concreto os “luga-
res transformados em caminhos, pontos de en-
contro, rotas de fuga. Nomes que indicam origem,
eventos, emoções de tempos antigos. Nomes
que habitam nossa memória e às vezes caem em
nosso lábios apenas por força do hábito. Palavras
que carregam histórias” (MUNDURUKU, 2001, p.71).

Após esse som avassalador, termino ponderando


que: os entulhos da história não se sedimentam,
pelo contrário, continuam se movimentando e
as vezes, quando violentamente remexidos, se
manifestam de maneira estranha e revelam suas
camadas mais profundas. Pouco tempo depois
da inauguração do Minhocão, da construção das
primeiras linhas subterrâneas de metrô que che-
gariam a Estação São Bento e conjugada a outras
reformas programadas pela EMURB os agentes
da ordem correriam atrás dos garotos de “roupas
sujas e cabelos tingidos, usando correntes, cani-
vetes e machados indígenas”(SANCHEZ, 1979) que
cantavam por aquelas mediações as músicas das
bandas: Restos de Nada, Condutores de Cadáver,
Cólera, Olho Seco e Lixomania. Eram nos cantos
sujos, mal cheirosos, caminhos sinuosos e acin-
zentados da cidade que percorria os sentimentos
punks e dali provocavam os desvios subjetivos
embalados por ressentimento e revolta. Nesse
lugares, cultivados por altas porções de drogas
e músicas eufóricas que aumentavam os estí-
16º SHCU mulos da adrenalina, intensificavam as dores, as
30 anos . Atualização Crítica
angustias ruminadas no cotidiano com os ranços
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Francisco César Filho e Legis Schwartsburd, 1983,
35min.

Rude Boy. Dir. David Mingay e Jack Hazan, 1980, 133


mins.

Loteamento Clandestino. Dir. Eminia Maricato,


Producação: Laboratório Flik,SPECTRUS, 1978,
24min.;

Fim de Semana. Dir. Erminia Maricato, Produção:


Elza Lopez, Erminia Maricato, Renato Tapajós, W.
Racy, 1975, 30min.
EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Caminhar é a forma mais antiga e democrática
de deslocamento. Em São Paulo, dos desloca-
mentos são feitos a pé (Metrô, 2017). Apesar do
vídeo-pôster contexto histórico opressor de circulação das
mulheres e da organização espacial que pouco
incorporou as especificidades para presença
A TRANSFORMAÇÃO DOS ampla e segura dessas, atualmente são as que
mais se deslocam por este modo e transporte
ESPAÇOS DA MOBILIDADE público na cidade. O presente trabalho busca
investigar como São Paulo se organizou para
A PÉ: SÃO PAULO DO a mobilidade a pé ao longo dos anos. Tem por
desafio reconstruir o percurso histórico sobre
SÉCULO XX AO XXI como os espaços da mobilidade e as políticas de
transformação foram sendo construídos, com
foco na região central, desde o final do século
THE TRANSFORMATION OF SPACES FOR FOOT
XIX até dias atuais - e nos impactos que cada
MOBILITY: SÃO PAULO FROM THE 20TH TO THE 21ST
ação traria na conformação da rede de mobili-
CENTURIES
dade a pé. Tais investigações são fundamentais
para entender se as mudanças que acontece-
LA TRANSFORMACIÓN DE ESPACIOS DE MOVILIDAD A ram na cidade considerariam, em alguma medi-
PIE: SÃO PAULO DEL SIGLO XX AL XXI da, a presença e qualidade dos deslocamentos
de pedestres. Para isso, serão utilizadas lite-
PRADO, Nathalie raturas sobre a história do desenvolvimento da
cidade para construção do cenário. Espera-se
Arquiteta e Urbanista e Mestranda em Planejamento Urbano
criar um panorama histórico sobre os espaços
e Regional; Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade de São Paulo (FAUUSP)
da mobilidade a pé para uma futura discussão
nathalieprado@usp.br sobre os impactos desses, tais como foram pla-
nejados, nas diferentes circulações de grupos
diversos de mulheres na cidade.

MOBILIDADE A PÉ PLANEJAMENTO URBANO GÊNERO


POLÍTICAS PÚBLICAS HISTÓRIA

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1430
ABSTRACT RESUMEN

Walking is the oldest and most democratic form Caminar es la forma más antigua y democrática
of displacement. In São Paulo, of the displace- de desplazamiento. En Sao Paulo, un tercio de los
ments are made on foot (Metro, 2017). Despite the desplazamientos se realizan a pie (Metro, 2017).
oppressive historical context of women’s move- A pesar del contexto histórico de opresión en la
ment and the spatial organization that barely in- circulación de las mujeres y de la organización
corporated the specificities for their ample and espacial que poco ha incorporado las especifica-
safe presence, currently they are the ones who ciones para facilitar la presencia segura y amplia
move most by this mode and on public transpor- de las mismas, actualmente son ellas las que más
tation in the city. This paper seeks to investigate se desplazan de esta forma, así como en trans-
how São Paulo has organized itself for foot mobi- porte público. El trabajo que aquí se presenta,
lity over the years. The challenge is to reconstruct promueve la investigación del modo en el que la
the historical path of how mobility spaces and po- ciudad de Sao Paulo ha evolucionado en cuanto al
licies of transformation have been built, with a fo- desplazamiento a lo largo de los años. El desafío
cus on the central region from the end of the 19th es reconstruir el recorrido histórico de cómo se
century to the present day - and on the impacts han desarrollado los espacios de movilidad y las
that each action would have on the shaping of the políticas de transformación, centrándose para
walking mobility network. Such investigations are ello en la región central, desde finales del siglo
fundamental to understand whether the changes XIX hasta la actualidad, así como en el impacto
that took place in the city would consider, to some que cada acción tendría en la conformación de
extent, the presence and quality of pedestrian la red de movilidad a pie. Dichas investigaciones
movements. For this, literature on the history of son fundamentales para comprender si los cam-
the city’s development will be used as the cons- bios que se produjeron en la ciudad tendrían en
truction of the scene. It is expected to create a cuenta, en cierta medida, la presencia y la calidad
historical overview of the spaces of foot mobility de los movimientos de los peatones. Para ello, se
for a future discussion based on the impacts of tomarán escritos sobre el desarrollo histórico de
these, as it was planned, to the different circula- las ciudades dentro del ámbito tratado. Se espera
tions of several groups of women in the city. crear un panorama histórico de los espacios de
movilidad a pie para un futuro debate sobre los
impactos de éstos, según como fueron planea-
MOBILITY ON FOOT URBAN PLANNING GENDER dos, en las diferentes circulaciones de los distin-
PUBLIC POLICIES HISTORY tos grupos de mujeres en la ciudad.

MOVILIDAD A PIE PLANIFICACIÓN URBANA GÉNERO


POLÍTICAS PÚBLICAS HISTORIA
EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
Na história da mobilidade, a caminhada é o pri-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
meiro meio possível de deslocamento. Seja pela
viabilidade e oportunidade de escolha - ou o seu
vídeo-pôster oposto - caminha-se muito mundo afora. As mu-
danças estruturais que alteraram o modo como
as grandes cidades configuraram os espaços de
A TRANSFORMAÇÃO DOS deslocamento deslegitimaram o caminhar como
prática, especialmente através do desequilíbrio
ESPAÇOS DA MOBILIDADE na distribuição espacial entre diferentes modais.
Com um giro recente nos estudos sobre mobili-
A PÉ: SÃO PAULO DO dade urbana (SHELLER; URRY, 2006) e destaque
através da agenda sustentável (ONU, 2015a), o
SÉCULO XX AO XXI andar a pé tem ganhado mais destaque nas dis-
cussões, com reconhecimento como prática
cotidiana e apontado como caminho para um
THE TRANSFORMATION OF SPACES FOR FOOT futuro mais resiliente1 - influenciando cada vez
MOBILITY: SÃO PAULO FROM THE 20TH TO THE 21ST
mais as políticas urbanas atuais. Tal enfoque tam-
CENTURIES
bém tem voltado atenção sobre a configuração
atual desses espaços e seus atores.
LA TRANSFORMACIÓN DE ESPACIOS DE MOVILIDAD A
PIE: SÃO PAULO DEL SIGLO XX AL XXI Mais recente, a noção da escala humana no am-
biente físico na experiência da mobilidade fez
emergir enfoques geralmente marginalizados,
que relacionam as experiências de pedestres
aos trajetos realizados - estudos variados que
vão da análise do meio físico (ANDRADE, LINKE,
2017; SPECK, 2016) às perspectivas subjetivas de
indivíduos durante o percurso (VILLAGRÁN, 2017).
Este olhar para os espaços públicos da mobili-
dade, formado por uma rede ampla que se conecta
através das calçadas, sem se esgotar nessas,
condicionaram a construção e - ou - remodelação
da rede da mobilidade a pé, influenciando a forma
como vivenciamos e nos deslocamos pela cidade
nos dias atuais. Tais espaços revelam, na mesma
medida, desiguais estruturas sobre a mobilidade
a pé ao longo do território e diferentes presenças
sociais nestes - que variaram ao longo do tempo. 

1. “A resiliência foca não apenas na forma como os indivíduos,


comunidades e negócios agem face aos diversos impactos
e pressões, como também na forma que eles identificam
oportunidades para um desenvolvimento transformacio-
nal. Nesse sentido, a resiliência é tanto uma qualidade do
desenvolvimento urbano sustentável quanto um estímulo ao
próprio desenvolvimento. Em nível municipal, a resiliência
16º SHCU
reconhece a área urbana como um dinâmico e complexo
30 anos . Atualização Crítica
sistema que precisa, continuamente, se adaptar a vários
1432 desafios, de forma integrada e global” (ONU, 2015b).
Historicamente, desde que passam a ser contabi- ana das mulheres nos espaços públicos da cidade.
lizados os modos de deslocamentos na cidade,
a Pesquisa Origem e Destino do Metrô de São É preciso ressaltar a parcialidade - de interesses
Paulo tem confirmado que a mobilidade a pé é um ou realizações - que orientaram as intervenções
importante modo de deslocamento na metrópole urbanas na cidade como ação recorrente ao
paulistana, variando em torno de 1/3 dos desloca- longo da discussão. Pautadas por ideais de re-
mentos totais desde os anos 19702. A mobilidade modelação, embelezamento e modernização,
a pé é o modo mais democrático entre todos. as ações ao longo do século determinariam - di-
Entretanto, também é complexa, com questões reta ou indiretamente - quem e como se dariam
que envolvem desde planejamento e produção de as ocupações 3 nestes lugares. Ainda, chama
políticas específicas até gestão e manutenção de atenção o fato de São Paulo tradicionalmente
suas infraestruturas. Ainda, o estigma excludente ter seguido tendências mundiais de modelos de
associado à essa prática, construído a partir da urbanização, mesmo com contextos espaciais e
reorganização da mobilidade urbana pautada socioeconômicos desconexos com muitos desses
no rodoviarismo - com início na década de 1930 locais de inspiração, e de caráter segregador. Tais
e reforçado a partir da década de 1960 -, reforça tentativas de reproduções aconteceram distinta-
o descaso com a produção e manutenção da in- mente dentro da região central da cidade, local
fraestrutura do andar até os dias atuais.  tipicamente mais privilegiado para a mobilidade
a pé, desde então. 
Os espaços para a mobilidade a pé nem sempre
foram os mesmos. Variaram no tempo e com as
alterações que o espaço urbano sofreu. A pavi-
mentação das ruas trouxe nova importância para o Os espaços públicos urbanos e a ausência
caminhar (GIUCCI, 2017), e na medida em que a vida da perspectiva de gênero
pública muda, muda também o espaço público
(YÁZIGI, 2000) e personagens que o ocupam. Para Existe uma crença de que o planejamento urbano
situar a discussão sobre como as transformações é neutro, de que não privilegia raça, classe ou
urbanas afetam - (des/re)constróem - locais para gênero. Diante da perspectiva histórica de dife-
caminhar, São Paulo será interpretada como rentes tipos de opressão das mulheres na socie-
caso em análise a partir de breve reconstrução dade (no espaço privado ou público) e da condição
histórica, com prelúdio no último quartel do sé- estratégica da mobilidade que dá acesso à vida
culo XIX - época que tiveram início as transfor- urbana, a relação das mulheres com o espaço
mações mais significativas no território desde da rua coloca no centro um amplo debate. As
sua fundação, até o momento mais recente. O diversas atividades cotidianas de manutenção da
recorte, as transformações dos espaços para vida - chamadas tarefas de natureza reprodutiva
a mobilidade a pé ao longo do tempo e como a (HARAWAY, 2004) - são culturalmente destinadas
cidade se organizou para tal, será reconstruído e desempenhadas por elas. O tardio acesso ao
a partir da memória das intervenções urbanas, mercado de trabalho e a ainda comum diferen-
algumas políticas de transformação do território ça salarial entre os gêneros são alguns fatores
e possíveis identificações de indivíduos nesses que influenciam na forma em que as mulheres
espaços. Busca-se abrir caminhos, na conjuntura se deslocam. Como resultado desse conjunto,
de aspectos e experiências atuais, para futuras não só as mulheres estão constantemente nos
questões mais amplas sobre a circulação cotidi- espaços públicos, com padrões específicos nos

2. Em 2017, as viagens a pé representam 31,8% dos desloca- 3. Cabe ressaltar aqui uma observação breve e essencial
mentos totais da cidade. Cabe a ressalva de que o número de que as transformações visavam atender uma parcela
é sub contabilizado, dadas as restrições metodológicas específica da população. Desde a fundação da cidade, as
de avaliação. Principal pesquisa de mobilidade na cidade, presenças e circulações são múltiplas – muitas das quais,
a Pesquisa Origem e Destino do Metrô de São Paulo real- invisibilizadas no planejamento ou estigmatizadas até os
iza a cada dez anos um levantamento sobre os hábitos da dias atuais, sentem o reflexo direto dessas ações. Esta é
mobilidade paulistana, com ritmo de atualização a cada uma discussão fundamental a qual se pretende para um
dez anos, desde 1967. futuro trabalho sobre a circulação de mulheres.
EIXO TEMÁTICO 2 deslocamentos, mas são também as que mais
circulam a pé e por transporte público (SVAB,
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS 2016) - que também envolvem trechos a pé. 
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
Nas experiências da mobilidade a pé, as estruturas
urbanas dos espaços de deslocamento refletem
uma ordem patriarcal na cidade. Para o gênero fe-
minino, tal perspectiva se configura em restrições
na mobilidade, especialmente na percepção4 do
espaço - muitas vezes “determinante na capacida-
de das mulheres se moverem nele” (VILLAGRÁN,
2014, p. 208). De forma sintética, um dos entrela-
çamentos da ordem patriarcal no espaço urbano
pode ser caracterizado pela representação de
construções de dicotomias geográficas em seu
desenho, especialmente pela contraposição do
espaço público x privado, produção x reprodu-
ção, assegurando aos homens - figuras sociais
ou planejadores - uma forma de superioridade e
controle. As dicotomias reforçam um contexto de
desigualdade refletido na noção de que o espaço
público urbano não é experienciado da mesma
forma por homens e mulheres (VILLAGRÁN, 2014).
Nesse sentido, o desenho urbano deve cumprir
sua função primordial: dar acesso equânime às
oportunidades da vida urbana. O contexto his-
tórico de formação dos espaços de circulação
busca entender como esses foram se alterando
e afetaram a mobilidade a pé – para estruturar
uma futura discussão sobre os deslocamentos de
mulheres. Esta é a discussão que se apresenta
na sequência.  

UM BREVE PANORAMA DA CONSTRUÇÃO


DOS ESPAÇOS PARA ANDAR EM SÃO PAULO

Do chão batido à circulação organizada


[1885-1930]

Período marcado pelas primeiras e grandes


transformações urbanas, a virada do século XIX
para o século XX representou grandes avanços
na configuração do território paulista: o primeiro

4 A escolha diária dos caminhos das mulheres nos


espaços urbanos também está associada à dominação de
16º SHCU
gênero na cidade relacionado ao medo no espaço público.
30 anos . Atualização Crítica
Villagrán (2012) aponta o medo das mulheres como uma
1434 violência específica de gênero: a violência física.
despertar da vida citadina. Códigos de Posturas de desapropriações da população que residia ao
aparecem, não como primeiros, mas como repre- longo de seu traçado. 
sentativos para o início de uma regulamentação
na cidade, que vai moldando os espaços para Já na virada do século, as primeiras iniciativas
caminhar. É através do Código de 1886 que seria tiveram gênese nas técnicas dedicadas ao sa-
atribuído aos proprietários de lote a incumbên- neamento, obras viárias e ao transporte urbano,
cia pela construção e manutenção das calça- conjunto que comporia a construção de um centro
das, condições que perduram até os dias atuais. urbano de grande porte. Ruas e pontes ampliariam
As reformas higienistas alteram os espaços ao e conectariam o território de vales, símbolos de
mesmo tempo que é marcado pela sequência de novos exemplos da ainda tímida urbanização. Com
desapropriações, alinhadas aos padrões estéti- os bondes chegariam, às vezes, paralelepípedos e
cos da burguesia cafeeira. Os melhoramentos calçadas. O papel do espaço público em transfor-
urbanos reorganizariam a circulação da região mação tem grande importância e influência nas
central da cidade.  atividades cotidianas de sobrevivência pessoal
das mulheres comuns5 (YÁZIGI, 2000, p. 72). Feiras
A pequena vila tivera no pátio do colégio o ponto livres são oficializadas em 1914, em oposição ao
de partida para algumas primeiras vias abertas: comércio ambulante e de tabuleiro, onde figu-
orgânicas e arbitrárias, constituídas de forma a ras como as quitandeiras eram habituais. Com
dar acesso a casas de figuras de prestígio. Outras o código sanitário de 1894, que passaria a orga-
ruas seriam instaladas, e apenas no terceiro sécu- nizar a vida pública, “o passeio6 faz sua aparição
lo de sua fundação, com orientação quadricular. O normativa: ocupará cada um pelo menos a sexta
quadriculado urbano fora imposto sobre morros parte da largura das ruas e ficará 15 cm acima das
e vales, resultando em um cenário caótico de sargetas” (YÁZIGI, 2000, p. 111). 
ladeiras íngremes. As ruas não tinham pavimen-
tação ou separação entre a circulação de pessoas As décadas iniciais do século XX caracterizam
ou veículos tracionados por animais. A cidade uma reorganização espacial de premissas sanita-
passaria a ter alguma infra-estrutura por volta ristas, incorporadas nas justificativas das grandes
de 1790, voltadas à construção e manutenção obras de modernização iniciadas na época, como
de caminhos e pontes para circulação regional as remodelações da Várzea do Carmo e Vale do
(YÁZIGI, 2000). Os espaços começam a organizar Anhangabaú. A intenção estava na resolução do
um novo cotidiano de circulação humana, nos problema de circulação viária na área central,
quais, evidenciam-se assimetrias de imediato: mas também tinha intenção segregadora. Os
das poucas mulheres presentes nas gravuras alargamentos de algumas vias no entorno – e a
de Jean-Baptiste Debret, destacam-se negras sequência de desapropriações que se fizeram
escravizadas.  necessárias - seriam estratégicas nesse sentido.
Assim, tornam-se mais intensas as transforma-
O “programa de modernização” urbanística de ções nas ruas centrais da cidade, que mudam a
João Teodoro (1872-1875), buscava dar ares de
cidade à província: uma nova ordem urbana ne-
5. Subentende-se como mulheres comuns: mulheres de
cessária para a atender a elite que se instalara.
classe baixa, quitandeiras e comerciantes, prostitutas, es-
Importantes obras foram conduzidas, favorecen-
cravas forras e livres, que buscavam auto sustento e, assim,
do a circulação a pé na cidade, como a abertura
circulavam mais pelos espaços públicos da cidade quando
de passeios públicos. A expansão da cidade para comparadas à mulheres da classe burguesa da época.
o setor noroeste-oeste seria caracterizada por
6. De acordo com Yázigi, “o leito carroçável era de terra.
novos loteamentos de prestígio, com calçadas
Quando este passa a ser movimentado, calçado com pedras,
regulares, generosas e arborizadas - caracterís-
o todo recebe a denominação de calçada. A origem da pa-
ticas que traria ares de “europeização” à cidade,
lavra é latina: calcatura, ae , ação de calcar, pisar … donde,
ainda visíveis hoje. O bairro Campos Elíseos seria calcanhar, calçada por sua função de andar. Posteriormente,
o primeiro entre os sucessivos empreendimentos. quando surge a separação entre circulação motora e de
A inauguração do Viaduto do Chá, em 1892, faria pedestres, a calçada passa a ser designada, preponder-
a primeira ligação de porte entre a cidade velha antemente, de passeio público, mas ambas as denomi-
e a cidade nova, implicando em uma sequência nações [calçada e passeio] continuam válidas.” (ibid p. 31)
EIXO TEMÁTICO 2 circulação na região formada pelo triângulo7. Nes-
sa época, passa a ser imperativo transitar pelas
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS ruas (FREHSE, 2000), o que influencia o modo de
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES vivenciar estes espaços. Se por um lado a região
central despertava entusiasmo para circulação
nos passeios públicos, que eram reformulados e
ampliados aos moldes europeus, por outro, de-
senhava-se sobre o novo traçado regularizado a
distinção das presenças sociais nesta porção do
território. No circuito exterior ao centro, enquanto
os novos bairros de características industriais se
esparramavam organicamente com a chegada
do bonde, da população operária e (i)migrante,
eram lançados loteamentos cuidadosamente or-
ganizados a partir de inspirações internacionais:
com calçadas amplas e arborizadas. Tal modelo
implicou na adaptação de ruas mais largas, com
qualificação e valorização das estruturas para
os trajetos a pé. Entretanto, o traçado sinuoso e
exclusivamente residencial, desistimulariam per-
cursos caminháveis, como os bairros Pacaembu
e Jardim América.  

A reorganização da circulação na cidade


[1930-1960]

Por volta da década de 1930, a cidade passaria a


incorporar os reflexos resultados da industria-
lização que ganharia espaço central no desen-
volvimento do país: desse ponto, São Paulo não
seria mais a mesma - nem os seus espaços para
caminhar. Seguindo no ritmo de modernização,
as reformas de embelezamento faziam parte do
ideal de cidade eficiente, que se tornava indis-
cutível à esta altura. Com o Plano de Avenidas,
ganhar-se-ia espaço viário para os automóveis
que, poucas décadas da sua chegada, já competia
com o volume de pedestres. Efetivado em 1945, o
redesenho do espaço geográfico da cidade cria
eixos para deslocamentos cotidianos - casa-tra-
balho8 - que oprimem a possibilidade do pedestre.
Muito embora passeios, praças e jardins tenham

7. Nome dado à configuração do perímetro resultado da


intersecção entre as ruas Direita, XV de Novembro e São
Bento.
16º SHCU
8. Perspectiva produtiva, racional, implicada ao desenho
30 anos . Atualização Crítica
e lógica urbana – muito associada ao deslocamento do
1436 gênero masculino.
recebido atenção, a determinação e implantação não eram compatíveis ao fluxo de pedestres local.
do “Plano de Avenidas” serviu aos interesses ro- Como medida, surge a primeira rua fechada ao
doviaristas, em essência. tráfego motorizado, em 1939. A pedestrianização
da rua Direita tinha, inicialmente, fechamento
Entretanto, a configuração proposta reforçava o operacional apenas durante o dia. A intervenção
abandono aos deslocamentos a pé, ensaiado nos definitiva, também ampliada para outras ruas,
primeiros sinais de expansão da cidade nos anos viria apenas mais tarde, na década de 1970, atra-
anteriores. O espraiamento urbano, estimulado vés da Ação Centro (MALATESTA, 2007). Fora do
ao longo do novo sistema viário radial-perime- centro, apareciam as limitações da prefeitura em
tral, desenhou uma cidade de baixa densidade gerir a mancha urbana que se estendia: descaso
e horizonte ilimitado, alterando e reforçando o com equipamentos elementares, como abrigos de
núcleo central como principal pólo de serviços. ônibus, ruas em lamentável estado de conserva-
A primazia racional do novo traçado não apenas ção, falta de coordenação entre órgãos municipais
traria distâncias desestimuladoras para o a pé, que resultam em calçadas sempre abertas e re-
como também desconsideraria a qualidade para mendadas seriam algumas delas (YÁZIGI, 2000). 
essas infraestruturas. O modelo traria impactos
para a mobilidade das mulheres com a diminui-
ção do raio e possibilidades de deslocamento,
uma vez que atribuições cotidianas familiares e Limitações dos espaços de deslocamento
o contexto histórico de desigualdades salariais [1960-2000]
também incidem nas alternativas de desloca-
mento (HARKOT, 2018). A partir da década de 1960, a cidade industrial
ganha novas fronteiras. Sem outra opção senão
No centro, já expandido, uma certa atmosfera fora o deslocamento para as regiões afastadas da
se redesenhando no esteio do carro: escalona- cidade, a classe trabalhadora passaria a con-
mentos nas edificações das avenidas alargadas formar as periferias com mais intensidade. Os
criam proteção ao percurso de pedestres. O de- loteamentos irregulares e a autoconstrução como
senho do passeio articulado com novos usos do padrão de ocupação periférico conformariam es-
térreo atrai um público de prestígio para compor paços para os deslocamentos a pé com o espaço
o cenário urbano, que florescia como novo centro remanescente dos lotes, sem padronização nas
comercial. Mais uma vez, as medidas estariam dimensões. Estreitas, descontínuas e, por vezes,
focadas em adequações centrais, vinculadas à desniveladas, a circulação nas calçadas seria mais
valorização imobiliária, onde o veículo passa a ser um dos diversos problemas de infraestrutura
o grande atrativo da vez. O Decreto-Lei Municipal urbana dessas regiões. Nesse período, intensi-
nº 41, de 3 de agosto de 1940 (Art. 9º, parágrafo fica-se o fluxo de veículos que circulavam pela
único), concedia privilégios aos prédios da avenida cidade, iniciando um período que perdura até os
Ipiranga que criassem “recuos, galerias, colunas dias atuais, de grandes engarrafamentos.  
ou arcadas, equivalentes a uma ampliação dos
passeios, utilizáveis para mesas de café, bares, Paralelamente, no centro da cidade, seguiam
etc” (SÃO PAULO, 1940). O Decreto apontava nova medidas vigorosas para acompanhar a nova ci-
sugestão de uso ao nível do passeio, muito relacio- dade da produção. Galerias e shoppings centers
nado com o perfil de outro equipamento: as salas passam a integrar o cenário, incorporando par-
cinema que se instalam criam particular relação te do percurso da rua para o interior. A fluidez
do espaço público com novos usos coletivos, de dentro dessas tipologias, e futuramente em es-
forma harmônica (SANTORO, 2005). A cidade cos- tações de metrô, seria facilitada por escadas
mopolita, para um novo público elitizado, ganhara rolantes e elevadores, elementos importantes
seu lugar no centro da cidade. Através do Código para a acessibilidade e conforto da mobilidade a
de Obras Arthur Saboya, seria estipulado para os pé. São consolidados calçadões exclusivos para
passeios a largura de 1/5 em relação à via - en- pedestres, em vias comerciais de alto fluxo, como
quanto o carroçável teria 3/5 do total. a rua XV de novembro na década de 1970. Seria
um período de deslocamentos orientados sob a
Dentro do triângulo, as larguras das calçadas já égide do consumo.
EIXO TEMÁTICO 2 Pela primeira vez na história da São Paulo mod-
erna, os anos 1980-1990 marcam o deslocamento
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS da população de alta renda das regiões centrais
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES para habitar regiões distantes (CALDEIRA, 2003).
A figura do condomínio horizontal fechado ganha
espaço principalmente nas bordas da cidade –
e interfere diretamente no projeto do espaço
público, por sua morfologia característica de
estanqueidade na circulação dos não residentes.
Desta forma, precariza a experiência do pedestre
ao mesmo tempo que legitima o modelo do veículo
individual como principal forma de deslocamen-
to. Os grandes muros provocam - para além da
monotonia - um ambiente estéril e inseguro, e
caracteriza uma grande barreira a ser vencida
por quem caminha no seu perímetro. Pedestres
que circulam no entorno, muitas vezes, são tra-
balhadores que prestam serviços dentro desses
condomínios, grande parte, mulheres que reali-
zam serviços domésticos. 

Na década de 1990, tem início o processo de ur-


banização de favelas na cidade, desenvolvido pela
Secretaria Municipal de Habitação. Com a urban-
ização, medidas mínimas pautadas no tráfego de
veículos oficiais e coletivos passam a orientar
a revisão de algumas vias de circulação. Para
manter as habitações existentes, sempre que
possível, o espaço de circulação de pedestres -
muitas vezes de largura insuficiente ou mesmo
inexistentes - permanecem em segundo plano.

Saturação e inevitável volta da vida às ruas:


um quadro em (re)construção [2000-2019]

A mobilidade a pé chega no novo século com


uma sequência de impasses. As calçadas, ain-
da precárias, passam a ter atenção com maior
frequência a partir das discussões sobre o futu-
ro e desenvolvimento sustentável das cidades.
A tardia regulação permitiu que a cidade fosse
estruturada em uma rede desconexa, irregular
e - por vezes - inviável para o andar a pé. O que
se nota, é um quadro ainda primário, no qual co-
existem o desenvolvimento de noções básicas
- sobre a qualificação elementar da estrutura
das calçadas - com novas percepções sobre um
16º SHCU ambiente mais humanizado e democrático - que
30 anos . Atualização Crítica
avança para muito além delas. A partir desta pri-
1438 meira década, depois de muitas concentradas no
viário, são ensaiadas as primeiras medidas com Paulo, passam a ter ênfase após 2015, estimuladas
foco na segurança, acessibilidade e conforto de tanto por organizações internacionais de atuação
pedestres. Neste curto período, as medidas ainda local, em convênio técnico com o poder público,
são pontuais e percebidas com maior frequência ou ainda organizações da sociedade civil, que
na região central. É a partir deste período que realizaram ações ativistas e de advocacy com
ganham fôlego as discussões relacionadas à se- esse contexto. Essa nova agenda trata de ativar
gurança de mulheres em seus deslocamentos.  a mobilidade a pé em locais onde esta acontecia
de forma precária ou qualificam trajetos a partir
O Estatuto da Cidade (2001) e a criação do então de soluções complementares que viabilizam a
extinto Ministério das Cidades9 (2003), marcam mobilidade a pé.
um período de incentivo a planos e regulações
que seriam efetivados anos depois, favorecendo De liderança destas organizações internaciona-
a mobilidade a pé. Até a década seguinte, pouco is11, a requalificação e ampliação de superfícies
seria realizado nos espaços da caminhada. A am- caminháveis aparecem em projetos de redesenho
pliação de noções sobre mobilidade como direito viário, definidos sob critérios de segurança ao
urbano e a acessibilidade universal passam a ter pedestre. Ainda mais atual, surge um projeto pi-
ênfase. Contudo, o cenário acessível e conectado loto encabeçado pela Companhia de Engenharia
através de estruturas da mobilidade a pé é pouco de Tráfego (CET): as rotas escolares testam a
otimista na uniformização do território - salvo remodelação do espaço viário para trazer segu-
algumas adequações feitas e previstas em rotas rança à crianças e adolescentes em percursos do
estabelecidas pelo Plano Emergencial de Calça- entorno de escolas. Organizações da sociedade
das, criado em 2008. Em bairros assentados sobre civil12 que atuam por cidades mais caminháveis
a topografia acidentada, muito comuns, quais ti- também somam na transformação desses es-
veram ou não parcelamento do solo e espaços ga- paços. Em conjunto, as medidas, ainda pulveriza-
rantidos para a circulação humana, as dimensões das e não estruturadas, aos poucos trazem novas
de calçadas - talvez apropriadas - pouco garantem perspectivas para tornar possível a mobilidade a
a presença de pessoas caminhando. São regiões pé com segurança e qualidade na cidade, atentas
que apresentam acentuadas inclinações que de- à multiplicidade de atores presentes nos espaços
safiam as regulações e intervenções possíveis públicos urbanos. 
em adequá-las para o caminhar. 
O enfoque à escala humana, através das noções de
Por Decreto10, a largura de faixa livre estabeleci- renovação urbana, também é incorporado ao novo
da em 1,20 metros mínimos, é sequer viável em Plano Diretor Estratégico do Município de São Pau-
mais de 41% das calçadas em São Paulo (LOBEL; lo (PDE), de 2014. As diretrizes do Plano buscam
MARIANI, 2019), com situações que beiram - quan- uma reversão do modelo de mobilidade urbana
do não - a inexistência dessas. Nesse sentido, para tratar com mais atenção a integração e ar-
algumas das intervenções de caráter piloto e ticulação entre diferentes meios de transportes.
temporário tomam palco, intencionando qual- O Plano está alinhado com a Política Nacional de
ificar e evidenciar novas possibilidades para a Mobilidade Urbana, de 2012, e decorrente Plano
circulação de pedestres. São iniciativas, sob um de Mobilidade Urbana (PlanMob) do município, de
olhar mais resiliente, que predominam nas dis- 2015. O PlanMob prevê até o horizonte de 2030
cussões relacionadas à saturação de grandes a inclusão de diretrizes para mobilidade a pé,
cidades no cenário internacional, apoiadas em
novas propostas para renovação urbana. Em São
11. Bloomberg para Segurança Viária Global (BIGRS), Instituto
de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP Brasil),
9.  O Ministério das Cidades foi extinto no primeiro mês de WRI Cidades Sustentáveis, Vital Strategies Brasil - para
governo do atual Presidente Jair Bolsonaro, em janeiro de citar as de atuações mais constantes. (Re)pensando a rua
2019. Foi incorporado na fusão com o Ministério da Inte- em Santana, Ruas Completas, São Miguel mais humana,
gração Nacional, transformados, juntos, no Ministério do Conviver Sub Penha são alguns dos projetos realizados
Desenvolvimento Regional.  na cidade.

10. Decreto nº 45.904, de 19 de maio de 2005, referente à pa- 12. Cidade Ativa, SampaPé!, Cidadeapé, Corrida Amiga, para
dronização de passeios públicos do município de São Paulo. citar algumas de atuações expressivas.
EIXO TEMÁTICO 2 ferramenta que legitima o desenvolvimento de
uma cidade mais caminhável e confortável para
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS os pedestres (COMO ANDA, 2017).
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
Os incentivos urbanísticos e diretrizes estrutur-
antes do PDE trazem princípios que corroboram
para a construção de espaços públicos camin-
háveis, estão conectados com os princípios
dos Transit Oriented Development Strategies.
Em linhas gerais, os DOTS reafirmam espaços
urbanos desenhados de forma satisfatória para
caminhadas - integrados a outros meios de de-
slocamento. Já mencionado, o padrão de des-
locamento multiescalar das mulheres, relacio-
nados com as atividades familiares cotidianas
(HARKOT, 2018; SVAB, 2016), maior público nos
transportes coletivo e a pé (METRÔ, 2017; SMDU,
2016), é diretamente beneficiado dentro desta per-
spectiva - sem isentar medidas complementares
necessárias focadas nesse público específico.
A Lei nº16.490/2016, que autoriza mulheres em
transporte coletivo descerem fora do ponto de
ônibus entre 22 horas às 5 horas do dia seguinte,
tem impacto de grandes proporções na mobili-
dade das mulheres, que usualmente caminham
apreensivas - especialmente em horários no-
turnos. A Lei da importunação sexual, de 2018,
também soma às medidas complementares que
reiteram a presença e segurança das mulheres
na rua ou em transportes coletivos.   

Entre atuações da municipalidade e CET, out-


ros dispositivos passam a figurar os espaços da
mobilidade a pé a partir de 2017, trazendo outras
mudanças espaciais. No bairro da Liberdade,
em caráter piloto, a superfície para circulação
exclusiva de pedestres é ampliada através de
demarcação de faixa em via. Um novo modelo de
travessia é implantado, inspirado nos modelos de
Tóquio: as travessias em «X» permitem a redução
do trajeto de duas etapas em uma única, de forma
rápida e segura, pela diagonal da via. As Travessias
de Pedestres Iluminadas, programa desenvolvido
pela CET desde 1996, chegariam a dezenas de
implantações. Como um dos (diversos) disposi-
tivos do chamado traffic calming13 (vias calmas),
as travessias elevadas buscam melhorar a aces-

13. Vias calmas é o conjunto de medidas de planejamento


16º SHCU
urbano e de tráfego que visam a redução da velocidade do
30 anos . Atualização Crítica
tráfego de veículos motorizados, para aumentar a segurança
1440 de pedestres e ciclistas na área. 
sibilidade e segurança de pedestres durante a penetráveis e desenham percursos estéreis ao
travessia da via: ficam em nível com a calçada, longo dos extensos muros. Os deslocamentos
oficializadas em 2014, após uma série de apli- pendulares trabalho-moradia, de grandes dis-
cações piloto (MALATESTA, 2018). Apesar da am- tâncias e possíveis nos transportes motorizados,
pliação recente de espaços e apoio à mobilidade desconfiguram a atenção e manutenção com os
a pé - maior do que fora aqui apresentado, e ainda locais do caminhar. 
ínfima diante dos diversos desafios - há ainda
um extenso caminho para dar corpo à espaços De forma tímida, assiste-se a lenta aparição mais
adequados e nova realidade para a mobilidade. expressiva de mulheres na vida pública, espaços
sumariamente organizados por perfis específicos
e de interesses bem definidos que permearam
toda a história. O estudo sobre as transformações
CONSIDERAÇÕES FINAIS dos espaços da mobilidade a pé revela certa in-
capacidade de incorporar aspectos específicos à
Investigar a perspectiva temporal da construção circulação de mulheres nas propostas desenvolvi-
dos espaços da mobilidade a pé é uma tarefa ne- das, bem como uma maior diversidade de públicos
cessária para entender como o campo do plane- de classes, raça e idades variadas. De acordo com
jamento urbano é intrínseco às políticas públicas. a SMDU (2016), dos deslocamentos das mulheres
E nesse sentido, fica evidente a necessidade de mais pobres, 50% são feitos caminhando. Dentre
um novo olhar - integrado - para ambos que con- uma série de discussões e hipóteses que abre,
sidere, entre outras, a urgência da perspectiva de o trabalho aponta uma frente a ser trabalhada,
gênero. Ao passo que a vida pública em seus con- sobre a complexa relação de opressão de gênero
textos históricos vai se transformando, o espaço na cidade que é escondida por trás do tradicional
modelo de planejamento desses espaços urbanos. 
público segue a mesma dinâmica. A trajetória
desde o último quartel do século XIX da cidade
São Paulo é uma cidade que se construiu à luz de
de São Paulo revela uma sequência de períodos
diferenças sem, contudo, legitimá-las. Apesar
que se sobrepuseram em ritmo acelerado, sob a dos novos planos e políticas específicas apon-
justificativa de uma modernização que implicava, tarem um horizonte de diretrizes que idealizam
em muitos casos, no ocultamento e negação do a cidade a partir da escala do pedestre, através
contexto urbano anterior - e descaracterização do incentivo à novas centralidades e maior inter-
dos variados sujeitos sociais que coexistem na conexão com outros modais de deslocamento, o
cidade. A figura do pedestre, anterior a qualquer espaço físico do andar ainda precisa de volume,
outra, seria atropelada nesse processo - mas se adequação e qualificação muito mais ampla e
manteria. Seus espaços, seguem como a grande urgente ao que tem-se assistido. As políticas dos
questão. últimos anos ainda não foram capazes de trazer
um novo quadro para o andar na cidade - com
Na medida que o espaço central se altera, expan-
questões desafiadoras para a construção de uma
dindo-se sobre antigos locais outrora periféricos,
rede articulada desses espaços. Mesmo ainda
a região incorporada passa a ter calçamento,
muito escasso e repleto de críticas, os espaços e o
destinada ao trânsito do novo público de elite,
debate sobre a mobilidade a pé ainda é restrito ao
revisando novamente as presenças sociais. Os
centro - e inquestionavelmente mais estruturado
bairros planejados do começo do século XIX são
que nas regiões mais periféricas. 
propostos a partir de amplos espaços verdes e de
calçadas, com características ainda preservadas
nos dias atuais - e que certamente caracteriza-
ria seu público até hoje. A partir do vertiginoso
espraiamento urbano, estimulado no Plano de
Avenidas, os espaços da circulação a pé sofrem
sérias interrupções: nas periferias, anterior à
alguma noção de regulação, faltaria superfície
adequada para andar. Também nas bordas da
cidade, condomínios-parque criam barreiras im-
EIXO TEMÁTICO 2 REFERÊNCIAS
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ção Nacional dos Transportes Públicos – ANTP,
2018. Disponível em: <http://www.antp.org.br/noti-
EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES A produção espacial urbana em Salvador (Bahia)
é o objeto de pesquisa, cujo teste se dá em seu
litoral. O cotejo dos dados para a construção
vídeo-pôster da análise reflexiva ocorre sob uma perspecti-
va metodológica experimental e exploratória,
cuja empiria é realizada de corpo presente no
BORDEJO PELA PRODUÇÃO espaço urbano. Assim, buscamos dar visibilida-
de às escalas diversas, trazendo, sobretudo, os
ESPACIAL URBANA EM registros e discursos que pouco circulam sobre
os territórios. Neste texto, abordaremos aspec-
SALVADOR (BA) tos da cidade no seu cotidiano, onde agentes
variados coexistem e disputam a produção do
espaço como expressão dos diversos interes-
NAVIGATE THE URBAN SPACE PRODUCTION IN ses implicados. Desde o final do século XX, ob-
SALVADOR (BA) serva-se obras públicas realizadas pelo poder
público para a atração e fortalecimento dos cir-
NAVEGAR POR LA PRODUCCIÓN DEL ESPACIO URBANO cuitos econômicos, sobretudo o turístico, que
EN SALVADOR (BA) comumente desarticulam dinâmicas sociais. Ao
observar a cidade no cotidiano, práticas reve-
lam tessituras sociais onde a relação mar-cida-
LISIAK, Janaína
de emerge como um componente da condição
Arquiteta e urbanista; Mestranda na Universidade Federal urbana soteropolitana.
de Minas Gerais
janalisiak@gmail.com

PRODUÇÃO DO ESPAÇO COTIDIANO PRÁTICAS


URBANISMO

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1444
ABSTRACT RESUMEN

Urban spatial production in Salvador (Bahia) is the La producción espacial urbana en Salvador
object of research, which is tested on its coast. (Bahía) es objeto de investigación, cuyo ensayo se
The collation of data for the construction of re- lleva a cabo en su costa. El cotejo de datos para
flective analysis takes place under an experimen- la construcción del análisis reflexivo se da des-
tal and exploratory methodological perspective, de una perspectiva metodológica experimental y
whose empiricism occurs through the presence exploratoria, cuyo empirismo se realiza mediante
in the urban space. Thus, we seek to give visi- cuerpo presente en el espacio urbano. Así, busca-
bility to different scales, bringing, above all, the mos dar visibilidad a diferentes escalas, trayen-
speeches that circulate little over the territories. do, sobre todo, los registros y discursos que poco
In this text, we will approach aspects of the city circulan por los territorios. En este texto aborda-
in its daily life, where different agents coexist and remos aspectos de la ciudad en su cotidianeidad,
dispute the production of space as an expression donde diferentes agentes conviven y disputan la
of the various interests involved. Since the end of producción del espacio como expresión de los
the twentieth century, public construction have diversos intereses involucrados. Desde fines del
been carried out by the government to attract and siglo XX, el gobierno ha realizado obras públicas
strengthen economic circuits, especially tourism, para atraer y fortalecer los circuitos económicos,
which commonly disrupt social dynamics. When especialmente el turismo, que comúnmente tras-
observing the city on a daily basis, practices re- tocan la dinámica social. Al observar la ciudad a
veal social fabric where the sea-city relationship diario, las prácticas revelan un tejido social donde
emerges as a component of the urban condition la relación mar-ciudad emerge como componen-
of Salvador. te de la condición urbana de Salvador.

SPACE PRODUCTION EVERYDAY URBANISM PRODUCCIÓN DEL ESPACIO COTIDIANO PRACTICAS


URBANISMO
EIXO TEMÁTICO 2 bordejo
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
Tomo de empréstimo um vocabulário náutico para
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
iniciar esse texto e navegar por questões que
atravessam uma pesquisa acadêmica. Bordejo
vídeo-pôster constitui o ato de navegar em ziguezague, amu-
rado ora em um bordo, ora em outro, consoante
a direção do vento. Convido-os a percorrer por
BORDEJO PELA PRODUÇÃO reflexões sobre a produção do espaço urbano,
tendo como norte as relações que a cidade de
ESPACIAL URBANA EM Salvador constitui com o mar no cotidiano.

SALVADOR (BA) Encontram-se aqui formulações sobre o litoral


soteropolitano que buscam complexificar leitu-
ras sobre esse território, escapando de visões
NAVIGATE THE URBAN SPACE PRODUCTION IN herméticas e deterministas. É de nosso interesse
SALVADOR (BA) pensar o espaço a partir de suas estrias, dando
relevo à aspectos e elementos que se encontram
NAVEGAR POR LA PRODUCCIÓN DEL ESPACIO URBANO no cotidiano urbano. Para tal, buscou-se
EN SALVADOR (BA)
analisar as práticas microbianas, singulares
e plurais, que um sistema urbanístico deve-
ria administrar ou suprimir e que sobrevivem
a seu perecimento; seguir o pulular desses
procedimentos que, muito longe de ser con-
trolados ou eliminados pela administração
panóptica, se reforçaram em uma prolifera-
ção ilegitimada, desenvolvidos e insinuados
nas redes de vigilância, combinados segun-
do táticas ilegíveis, mas estáveis a tal ponto
que constituem regulações cotidianas e
criatividades sub-reptícias que se ocul-
tam somente graças aos dispositivos e aos
discursos, hoje atravancados, da organiza-
ção observadora (CERTEAU, 2014, p. 162).

As práticas1 no espaço são um elemento central,

1. Entende-se por “prática” toda e qualquer ação no espaço


que se articula em prol da vida em comum, portanto mobi-
lizada politicamente. Na esteira do trabalho do sociólogo
francês Henri Lefebvre (1980), a prática social (ou práxis) é
uma das categorias centrais para a análise da vida cotidia-
na. Em sua obra, Lefebvre elenca outras onze categorias
específicas (totalidade; realidade; alienação; o vivido e o
viver; espontâneo; ambiguidade; desafio e desconfiança;
espaço social, tempo social; logos, lógica, dialética; lógica
e caracterologia; campo total), que se articulam dialetica-
mente, sendo de igual importância para analisar o fenômeno
16º SHCU
da vida cotidiana. Para os fins deste texto, a prática é tida
30 anos . Atualização Crítica
como elemento central da análise do cotidiano, sem, con-
1446 tudo, desconsiderar as demais categorias.
cuja apreensão se dá através do corpo presente
na cidade. É por meio da observação do (e no)
espaço onde múltiplos aspectos do cotidiano
emergem e se revelam. Foram realizadas uma
série de incursões no litoral de Salvador, de modo
a observar como a cidade se realizava no dia a dia.
Esse procedimento foi realizado sem a pretensão
de esgotar os entendimentos possíveis, almejando
pensar e refletir sobre a produção do espaço para
além do viés institucional - mais precisamente,
para além do Estado.

A questão urbana é pensada a partir do cotidiano


onde a produção do espaço é fruto de um amál-
gama denso e complexo de dinâmicas, relações
e práticas. Estas evidenciam uma pluralidade de
elementos no âmbito econômico, político, material
e social, revelando a presença de diversos agentes
implicados. O cotidiano confere espessura para
o urbano, permitindo pensar a cidade para além
das abordagens hegemônicas, ou seja, àquelas
associadas às instituições de poder. De corpo
presente no dia a dia, observamos a permanência
de atividades constituídas em relação ao mar que
não possuem necessariamente uma associação
à reformulação espacial promovida pelo Estado,
ou mesmo sem possuir um caráter laboral ou
econômico - essas atividades são, como práxis,
uma manifestação do social.

Desde 2013, uma série de obras públicas são rea-


lizadas na orla de Salvador. Na escala municipal,
destaca-se a implementação do Programa de Re-
qualificação Urbano-Ambiental da Orla Marítima
de Salvador, realizada na gestão do então prefeito
Antônio Carlos Magalhães Neto (2013-atual). Va-
lendo-se da ideia de planejamento estratégico,
desenvolve-se uma reestruturação formal ho-
mogênea em diversos trechos da orla da cidade,
onde se privilegiou a porção que margeia o Oceano
Atlântico, mas também alcançou a Baía de Todos
os Santos em alguns pontos. As diversas obras
públicas mobilizam não somente uma homoge-
neização visual, mas também operam processos
de desarticulação (chegando, em determinados
casos, à expulsão) dos sujeitos cujas práticas
escapam as diretrizes do projeto (RAMOS, 2020,
no prelo). Diante desse cenário, questiona-se
como e em que medida o espaço urbano no litoral
de Salvador é produzido para além desse circuito
de obras públicas.
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

Figura 1: Mapa de Salvador indica a Península de Itapagipe e


as obras públicas realizadas na última década. Os pontos 2
a 11 assinalam as obras executadas no âmbito do Programa
de Requalificação Urbano-Ambiental da Orla Marítima de
Salvador. Fonte: SOUZA (2017). Elaborada pelo(a) autor(a).

Delimitações iniciais

De modo a dar um direcionamento à este bordejo,


primeiro destaco que a relação constituída junto
16º SHCU ao litoral se torna ponto central de investigação
30 anos . Atualização Crítica
uma vez que Salvador se torna cidade através
1448 do mar. Concebida no século XVI como sede do
projeto colonial português, é organizada enquanto micos3, altas taxas de criminalidade4 e à rede de
cidade fortaleza pelas suas configurações na- infraestrutura urbana insuficiente, tal como em
turais, de modo que a nucleação inicial ocupa a muitos territórios brasileiros. Nessa esteira, vale
falha geológica entre Cidade Alta e Cidade Baixa, destacar que Pedra Furada é uma Zona Especial de
voltada para a Baía de Todos os Santos, formando Interesse Social (ZEIS), enquadrada como assen-
o seu espaço de vigília do território2. tamento precário pelo Plano Diretor de Desenvol-
vimento Urbano (PDDU). É comum discursos que
De cidade-fortaleza para sede de uma região me- apresentam a localidade somente pelos aspectos
tropolitana, temos uma distância temporal maior da ilegalidade, informalidade e precariedade.
que 400 anos. Hoje, Salvador já não é mais uma
O trabalho de campo indica, contudo, a existência
cidade fortaleza, nem mesmo mercantil portuária,
de práticas realizadas com o mar que nos permite
mas um centro urbano que expandiu a malha de
apontar para urbanidades5 que complexificam os
ocupação na direção nordeste, alcançando uma
extensão litorânea que supera 130 km (SOUZA,
2014). Devido à dimensão territorial e a longevi- 3. Os bairros são agrupados pela municipalidade através da
categoria prefeitura-bairro, e aquela referente à Península
dade de Salvador, faz-se necessário construir
de Itapagipe é denominada Cidade Baixa, comportando:
um recorte. Para tal, desenvolve-se um percurso Calçada, Mares, Roma, Boa Viagem, Monte Serrat, Bonfim,
exploratório em vários locais do litoral soteropo- Ribeira, Lobato, Santa Luzia, Uruguai, Caminho de Areia,
litano de modo a observar a produção espacial Jardim Cruzeiro/Vila Ruy Barbosa, Massaranduba, Man-
gueira. Segundo dados censitários de 2010 (CONDER, 2016),
para além das operações urbanas indicadas an-
a região abriga 6,7% da população soteropolitana, onde a
teriormente. O assentamento desta pesquisa se maioria se autointitula preta ou parda (83,87%). O rendimento
dá em Pedra Furada e seu entorno, localizada na médio dos responsáveis pelos domicílios é de R$1.604,70,
Península de Itapagipe. Nesta localidade, a pro- de forma que 39,6% da população ganha entre 0 a 1 salário
dução espacial toma formas particulares, onde mínimo. A maior taxa de escolaridade dos responsáveis
pelos domicílios é de 30,18%, correspondente ao período
observa-se atuação do Estado, mas também dos
de 4 a 7 anos de instrução. Ao que concerne às condições
sujeitos que, por meio de suas práticas no coti- e tipologias domiciliares, esta região abriga 5,63% dos
diano, produzem espacialidades que escapam domicílios em situação subnormais (categoria cunhada
os processos tecnocráticos das instituições de pelo IBGE que designa domicílios que ocupam terrenos
poder. de maneira ilegal e quando há precariedade de serviços
públicos essenciais) da cidade, assim como apresenta uma
densidade demográfica de 222,58 hab/ha. Podemos con-
A Península de Itapagipe abrigou as primeiras
cluir brevemente que a região é densamente ocupada, com
investidas industriais da cidade no final do século população majoritariamente não-branca e com acesso a
XIX (CARDOSO, 2004), posto o fácil acesso à linha pouco mais de um salário mínimo.
férrea e ao porto, à margem da ocupação central 4. Segundos dados da Secretaria de Segurança Pública do
da cidade. Hoje, essa região se encontra integrada Estado da Bahia (BAHIA, 2020), no ano de 2019, registra-se
à malha urbana, contudo permanece uma menção na região do Bonfim a ocorrência de 7,7% dos homicídios
à ideia de marginalidade, como se esta se encon- dolosos da cidade e 7% de apreensões de uso (ou porte)
de substâncias entorpecentes. Para a SSP, esta região
trasse periférica à cidade. Isso ocorre, em certa
comporta quatorze bairros (além dos bairros citados an-
medida, devido aos baixos índices socioeconô- teriormente, inclui o Comércio) e ocupa uma área de 8 km2
(2,62% da área total da cidade).

2. A escolha do sítio “responde à necessidade concreta 5. O entendimento desse termo se aproxima da perspectiva
de se reunir ‘fortaleza e povoação’ num mesmo locus, fa- filosófica construída por Netto (2012). Considera-se urba-
cilitando a um só tempo as tarefas de defesa, instalações nidade a convergência das condições sociais e materiais
portuárias (exportação, importação), penetração no terri- que toma forma na cidade através do encontro, ou seja,
tório e expansões futuras” (SAMPAIO, 2015, p.45). A capital daquilo que é vivido e partilhado com o outro na qualidade
baiana se estabelece, então, como ponto estratégico de da expressão e convergência das diferentes formas de vida.
patrulhamento da costa, assim como de comunicação e Justamente pela interação e construção com os muitos
de comércio com a metrópole portuguesa. outros, as diferenças coexistem, o que imprimiria à urba-
EIXO TEMÁTICO 2 entendimentos possíveis sobre essa localidade
e sobre Salvador. Assim, buscamos contribuir
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS para outras compreensões sobre a cidade, tendo
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES o mar, suas práticas e saberes cotidianos como
aportes reflexivos, críticos e políticos.

Salvador e o circuito global capitalista

As operações urbanas realizadas na orla sotero-


politana, citadas anteriormente, seguem o modelo
de planejamento estratégico (VAINER, 2013) e,
desta forma, apontam para uma inserção e manu-
tenção de Salvador no circuito atual do capitalis-
mo. À nível global, novos desdobramentos tomam
corpo nos centros urbanos do mundo desde o final
do século XX, agenciando uma formação espacial
fragmentada, metropolitana e globalizada (SOJA,
2000) nos moldes da lógica capitalista neoliberal.

O processo de expansão dos centros urbanos


que se inicia no século XX remete às operações
conjugadas entre industrialização e urbaniza-
ção que, na realidade brasileira, ocorre de for-
ma predatória e espoliativa (KOWARICK, 2009).
O grande contingente populacional que migrou
para as cidades, de modo a compor o corpo de
trabalhadores, associado à ausência de políticas
públicas efetivas para inclusão dessa população
no espaço urbano, gera uma crise habitacional
que toma corpo através das ocupações populares
(favelas, mocambos, bairros populares, assenta-
mentos informais, entre outras terminologias).
Tais espacialidades, frutos da segregação so-
cial, direcionam os estudos urbanos para pares
conceituais como informal-formal, centro-peri-
feria6, onde a cidade informal, aquela que está à
margem (seja física, seja socioeconomicamente)

nidade um sentido não somente agregador, mas também


segregativo. A diferenciação entre qualquer experiência
urbana e urbanidade se daria, portanto, no entendimento
de que o segundo agrega uma orientação ética: “o potencial
pleno de relação social e sua pulsação como bem-vir e
comunicação; como emancipação das realidades de into-
lerância e coerção” (ibid., p. 55).

6. Dado os limites do texto, destaco o panorama analítico-


-crítico que Rosa (2008) desenvolve no primeiro capítulo
16º SHCU
de sua dissertação sobre os conceitos operacionalizados
30 anos . Atualização Crítica
nos estudos urbanos ao abordar os territórios ocupados
1450 pelas populações pobres.
da cidade formal, aglutina diversos aspectos da MODOS DE FAZER UMA PESQUISA URBANA
precariedade sócio-espacial, tais como ausência
de infraestrutura urbana, baixos índices socioe-
conômicos e altas taxas de criminalidade.
Aproximações teórico-conceituais:
como pensar a história?
Longe de negar esses aspectos, é possível pensar
essas localidades para além dessas noções? A Buscamos evidenciar narrativas sobre o urbano
constituição, consolidação e eventual expansão que emergem das mais diversas fontes, seja pe-
dessas espacialidades são tomadas por proces- los documentos acessados nos acervos institu-
sos complexos, onde atuam redes diversas de cionais, seja pelos dados obtidos no trabalho de
sujeitos e instituições, operando as mais variadas campo. Para tal, mobiliza-se uma postura experi-
dinâmicas7. De corpo presente no espaço, pen- mental e exploratória, articulando contribuições
samos ser possível problematizar as narrativas de fontes diversas (documentos, iconografias e
sobre esses espaços urbanos e questionar quais interlocuções), a fim de elaborar um texto crítico
fatos, informações e dados são elencados para a sobre o urbano, valendo-se de “uma nova inter-
construção dos discursos sobre um determinado pretação, o exercício de métodos novos, a elabo-
território. ração de outras pertinências, um deslocamento
da definição e do uso do documento, um modo
Aproximando superficialmente 8 a noção de
de organização característico, etc” (CERTEAU,
segregação sócio-espacial à periferia, para nos
1982, p. 71).
valer de uma colocação de Pereira (2019):
A cidade no presente é o objeto de observação
Enquanto objeto, a periferia é abordada com
e análise, mas não somente. A atualidade se ar-
frequência pelos estudos científicos. No
ticula com o passado e com o futuro, conforme
entanto, o que se coloca em xeque é o seu
Walter Benjamin (2012) nos permite refletir a partir
deslocamento: de objeto para lócus de pro-
do seu pensamento. Por meio desse horizonte
dução de conhecimento. (...) Os discursos
filosófico, o qual visa nada menos que uma nova
sobre a cidade tendem por reservar às peri-
compreensão da história humana (LOWY, 2002),
ferias o lugar de escassez e da ausência, en-
propomos dar visibilidade para narrativas outras,
quanto deixam passar a complexa teia que
a fim de tensionar os discursos existentes sobre
se tece nesses espaços construídos mais
os territórios investigados. Quais são os discursos
pelo acúmulo do que pela falta (ibid., p. 44).
que circundam determinados territórios? Até que
Tanto Pedra Furada quanto a Península de Ita- ponto estas falas coincidem com a realidade?
pagipe são comumente apresentados como Existe algo para além destas? O que seriam?
localidades periféricas, seja por sua condição
física - onde Itapagipe é uma península dentro Aproximando-se das teses benjaminianas pre-
de uma península - seja por sua situação socioe- sentes no texto “Sobre o conceito da história”,
conômica, vide os dados censitários ou o enqua- somos confrontados com os acontecimentos
dramento de Pedra Furada como uma ZEIS. Se que se tornam objeto da história (uma vez que
vamos, então, olhar essas localidades conside- estão representados, contados, registrados) e
rando-as “marginais”, que o façamos pela via dos aqueles cujos registros não circulam, pois sequer
acúmulos, tendo o mar, suas práticas e saberes são ditos. Benjamin (2012) nos convida ouvir mais
cotidianos como aportes reflexivos, críticos e atentamente, pois “não existem, nas vozes a que
políticos para análise crítica da produção do es- agora damos ouvidos, ecos de vozes que emude-
paço em Salvador. ceram?” (ibid., p. 242)

Para o autor, urge para aqueles que tomam para si


7. Entre os diversos trabalhos que abordam as complexas o papel de contar a história, a tarefa de escova-la
dinâmicas dos espaços urbanos segregados (favelas, perife- à contrapelo. Devemos pensar a transmissão das
rias, etc), cito alguns: RIZEK (2006), JACQUES (2007), ROSA narrativas para além dos documentos produzidos
(2008), ESPINHEIRA (2008), FELTRAN (2008) e TELLES (2011). pelos “grandes gênios” que narram a História.
8. Devido às limitações do texto. Esse material, que registra a barbárie, nos induz
EIXO TEMÁTICO 2 investigar os acontecimentos a partir dos silen-
ciamentos, que agregam os vestígios da servidão
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS anônima de muitos.
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
O progresso se encontra sustentado pelo reper-
tório técnico e econômico capitalista e, portanto,
associado à perspectiva da classe dominante,
que, para Benjamin, é o vencedor da história. Na
ótica do vencido, o progresso é a sua derrota, a
sua catástrofe, posto que é a tempestade que
“acumula incansavelmente ruína sobre ruínas e
as arremessa a seus pés” (ibid., p. 246).

A “história dos vencedores” é entendida enquan-


to historicismo, cujo conjunto de documentos e
discursos fazem circular e apresentam os acon-
tecimentos sob à ótica da elite sócio-econômica.
Lowy (2002, p. 203) nos esclarece, por fim:

O historicismo se identifica empaticamente


(Einfühlung) com as classes dominantes. Ele
vê a história como uma sucessão gloriosa
de altos fatos políticos e militares. Fazendo
o elogio dos dirigentes e prestando-lhes
homenagem, confere-lhes o estatuto de
“herdeiros” da história passada. Em outros
termos, participa — como essas pessoas
que levantam a coroa de louros acima da
cabeça do vencedor — de um “cortejo triun-
fal em que os senhores de hoje caminham
por sobre o corpo dos vencidos” (Tese VII).

O corpo como ferramenta de pesquisa

Ancorada nesse arcabouço teórico, procedimen-


tos são realizados de modo a cotejar registros
sobre o urbano para além dos atos gloriosos e
grandes acontecimentos, mas sem se descolar
destes. Busca-se, portanto, as “vozes mudas”9 que
se manifestam próximas (ou dentro) dos grandes
eventos urbanos. Conforme indicado anterior-
mente, esta pesquisa explorou territórios do li-
toral soteropolitano fora do circuito de obras do
Programa de Requalificação Urbano-Ambiental
da Orla Marítima, cujo assentamento se dá na em
Pedra Furada. Ali, constatou-se, em outubro de
2018, a construção de uma via de borda marítima
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
9. “Não existem, nas vozes a que agora damos ouvidos,
1452 ecos de vozes que emudeceram?” (BENJAMIN, 2012, p. 242)
que liga a localidade até a Marina do Bonfim. Tal presente, a “apreender as práticas urbanas que
como as demais propostas de requalificação no conferem vida e movimento ao espaço citadino
litoral, essa obra aplica um princípio do progresso e, assim, explanam o confronto com as estraté-
tecnocrático, desarticulando as dinâmicas só- gias do poder que são expressas pelo controle
cio-espaciais cotidianas. Contudo, vislumbrando urbanístico, constantemente intensificador da
desvios à essa lógica, me proponho, de corpo segregação social” (LIMA, 2015, p. 162).

Figura 2: Mapa de uma parte da Península de Itapagipe, demarcando a Zona Especial de Interesse Social (ZEIS) da Pedra
Furada e indicando os equipamentos (religiosos, turísticos e institucionais) do seu entorno. O recorte da imagem engloba
parcelas dos bairros Monte Serrat e Bonfim. Em amarelo, a via de borda marítima, realizada por meio de um aterro sobre o
mar, ligando Pedra Furada à Marina do Bonfim. Fonte: Google Earth (2019) e SALVADOR (2016). Elaborada pelo(a) autor(a).

O trabalho de campo se dá por meio de diversas as relações sociais, bem como as tessituras que
incursões realizadas no espaço, entre janeiro e estas constroem no cotidiano, observando os
março de 2019, para o cotejo de dados e informa- seus desdobramentos no espaço11. É necessário
ções. No litoral da Península de Itapagipe, foram se colocar aberta ao sensível e se deixar conta-
realizadas caminhadas entre a Ponta de Humaitá minar pelo o que a cidade, com todas as suas
e a Marina do Bonfim10, com vistas de me inserir e complexidades, apresenta. Ao fazê-lo, tentamos
me aproximar do entorno imediato onde foi reali-
zado a obra. Esse movimento se deu com vistas
a apreender as práticas, as dinâmicas urbanas e 11. “As relações sociais são atingidas a partir do sensível;
elas não se reduzem a esse mundo sensível e no entanto
não flutuam no ar, não fogem na transcendência. Se a rea-
10. Esse “recorte territorial” não foi seguido de forma her- lidade social implica formas e relações, se ela não pode ser
mética, de modo que algumas incursões foram em direção concebida de maneira homóloga ao objeto isolado, sensível
à Ribeira. Contudo, ao longo da pesquisa de campo, a região ou técnico, ela não subsiste sem ligações, sem se apegar
entre Pedra Furada e a Marina do Bonfim ganha espessura. aos objetos, às coisas” (LEFEBVRE, 2008, p. 54).
EIXO TEMÁTICO 2 criar meios de desestabilizar qualquer certeza
que tínhamos sobre os territórios frequentados.
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES A caminhada em si não é o único procedimento
realizado, pois busquei permanecer em deter-
minados espaços em determinado período de
tempo impreciso. A ausência de um certo rigor
nesse aspecto não ocorre por descuido, mas
sim porque cada situação que se apresentava,
demandava uma permanência maior ou menor.
Nesse sentido, o ritmo de caminhada também
é operacionalizado por elementos externos: os
espaços de ocupação mais densos demandam
passos mais lentos, para apreensão das diversas
informações que se apresentam; as localidades
mais expostas ao sol imprimem um ritmo mais
acelerado, em uma tentativa de fugir do calor ou
de buscar alguma sombra.

A caminhada afirma, lança suspeita, arrisca,


transgride, respeita etc. as trajetórias que
“fala”. Todas as modalidades entram aí em
jogo, mudando a cada passo, e repartidas
em proporções, sucessões, e com intensi-
dades que variam conforme os momentos,
os percursos, os caminhantes. (CERTEAU,
2014, p. 166)

Temos consciência de que não estamos aparta-


dos do entorno – somos também um agente que
contribui para os fenômenos que ocorrem no
momento. A nossa presença determina a forma
que os outros sujeitos agem. Contudo, conforme
Lima (2015) indica, a presença nem a nossa ação
se constituem enquanto uma prática daquele es-
paço. Imbricada à prática, a presença se associa
à experiência através da apreensão:

Experiência e prática do espaço (...) se dis-


tinguem entre si pelo sujeito da ação: pela
via da experiência, o pesquisador se coloca
em campo e assume sua presença - e con-
sequente posição endógena na produção
do seu pensamento sobre a cidade - em
relação imbricada à prática dos muitos ou-
tros urbanos, dos sujeitos ordinários que
espacializam e significam o território por
meio de suas ações (ibid., p. 161, grifo meu).

Tentamos aproveitar essa capacidade de ser-


16º SHCU mos externos para, por meio do estranhamen-
30 anos . Atualização Crítica
to, nos aproximar e “armar” interlocuções. Não
1454 concebemos o material produzido no âmbito da
pesquisa de campo enquanto entrevistas, pelo dados institucionais, pois estes são registrados,
fato das interlocuções não terem sido realizadas normalmente, em bases quantitativas (tais como
usando este protocolo. Encontra-se ausente um os censitários). As práticas apresentam um cunho
certo rigor que a entrevista demanda, tais como qualitativo e nos permitem construir outros enten-
roteiro, apresentação da intenção de entrevis- dimentos sobre Salvador pois, por meio destas,
tas, gravação (ou outras formas de registro), etc. os sujeitos produzem as suas condições de vida
Claro que existiam temas, ou melhor, assuntos de e, consequentemente, o espaço que ocupam.
interesse, bem como nos posicionávamos como
pesquisadores ao iniciar as conversas. Contudo, As práticas do espaço tecem com efeito as
não havia roteiro e nem registramos em ato as condições determinantes da vida social (...)
atividades - salvo uma única vez, conversando alguns procedimentos – multiformes, resis-
com um senhor à beira-mar em Pedra Furada. tentes, astuciosos, teimosos – que escapam
à disciplina sem ficarem mesmo assim fora
Com as interlocuções, almejava-se cotejar, tal do campo onde se exerce, e que deveriam
como as deambulações, fragmentos do urbano levar a uma teoria (CERTEAU, 2014, p. 162).
- informações e as memórias sobre a cidade que
emergem por meio da conversa. A abordagem As práticas à beira-mar evocam dinâmicas e rela-
se construiu no instante, como um misto de in- ções a partir da vivência do corpo, onde os saberes
tuição e captura de sinais de abertura - ou seja, físicos assume, por vezes, caráter histórico12. A
fruto da observação. Quase podemos dizer que a pesca ou a navegação são atividades que acumu-
conversa se instituiu no banal do cotidiano, não lam técnicas de outros tempos, reinventando-se
fosse a estratégia que desenvolvemos na maioria no agora e sendo, porventura, difundida para os
das interlocuções - aproximava-nos de algum mais jovens. As práticas agregam, portanto, sabe-
comerciante e desatavámos a falar. Em certa res, experiências, ações associadas ao arcabouço
medida, as interlocuções foram atravessadas pela cultural histórico brasileiro, onde os “pescadores
monetarização da relação (ou da aproximação), ou transportadores de bens, conhecem as inúme-
pois sempre comprávamos algo. ras riquezas de sua terra e sabem das traições de
suas águas, de seus céus. Vivem do ritmo próprio
Os dados obtidos em campo se decantam em dessas terras internas das quais conhecem a
documentos como anotações, fotografias, diário imensidão e as necessidades (MATTOSO, 1978, p.
de campo, e nos permitiram ver aquela localidade 61 apud ARAÚJO, 2011, p. 60, grifo nosso). Associa-
para além das precariedades ou dos altos índices dos aos saberes populares e tradicionais, apontam
de violência, recorrentes nos veículos de imprensa
para urbanidades realizadas no cotidiano que não
local. Frequentamos um território urbano que se
operam pela lógica capitalista do mercado finan-
constrói junto ao mar cotidianamente, por meio
ceiro globalizado. Ao tecer uma relação contínua
dos sujeitos que ali convivem. Conforme a maré
entre o mar e a cidade, essas práticas também
opera, a presença de homens aumenta ou dimi-
“contestam e abalam as simplificações e redu-
nui; os sujeitos, que ali pescam, partilham iscas,
ções das operações historiográficas e também
peixes e frutos do mar entre os frequentadores.
patrimoniais sobre os processos de urbanização”
As estruturas concebidas para conter o mar são
(JACQUES et al, 2017, p. 335).
subvertidas pela ação desses sujeitos: a conten-
ção de pedra que sustenta a ocupação de Pedra A construção da pista de borda entre a locali-
Furada se torna apoio para o senhor limpe o peixe.

12. Por conta de uma associação aos ofícios marítimos


(ou seja, a pesca, mariscagem e navegação), não se
PRÁTICAS ESPACIAIS E PRODUÇÃO DO leva em conta aqui práticas como banho de mar e sol.
Não obstante, estas são igualmente relevantes para o
ESPAÇO MARÍTIMO
entendimento do litoral (não somente soteropolitano),
uma vez que as atividades de lazer e recreação se
Ao longo do campo, observou-se a existência de intensificam nessas regiões após a segunda metade
práticas junto ao mar que extrapolam não so- do século XX em todo Brasil, conforme nos indica
mente o planejamento urbano, mas também os Azevedo (2016) e Souza (2014).
EIXO TEMÁTICO 2 dade da Pedra Furada e Marina do Bonfim, cuja
obra pública aterrou o mar para construir uma
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS via pública, vimos também sujeitos ali presentes
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES buscando suas embarcações para navegar. Em
janeiro de 2019, acompanhamos a finalização de
outra obra pública nas vésperas da maior festa
religiosa soteropolitana: a Lavagem do Bonfim13.
Não somente o entorno da Igreja do Bonfim es-
tava finalizando as obras, mas também um tre-
cho próximo ao mar: a pista de borda observada
em outubro de 2018. São obras que correm sob
instâncias estatais diversas – a pista de borda
é obra do Estado da Bahia e a da Igreja é gerida
pelo município. O que nos interessa aqui não ne-
cessariamente é o gestor do empreendimento,
mas como cada uma, à sua maneira, corrobora
para ordenamento espacial do urbano que visa,
no seu fim, à lógica capitalista, entre as quais
se destaca o circuito turístico. Na prática, são
realizadas obras públicas nos pontos de atração
turística, enquanto o processo de regularização
urbanística da ZEIS nunca foi iniciado.

Na proximidade de Pedra Furada, encontram-


-se equipamentos religiosos e militares, entre
os quais eu destaco, além da Igreja do Bonfim,
aqueles localizados na Ponta de Humaitá: Quartel
do Exército, Igreja da Nossa Senhora de Monte
Serrat, Forte de Nossa Senhora de Monte Serrat.
Esses equipamentos seculares – do século XVI e
XVII respectivamente, segundo Cardoso (2004)
– estão indicados pelo circuito turístico da cida-
de, mas a localidade não mobiliza somente essa
atividade. A Ponta de Humaitá é também local
onde soteropolitanos (moradores na região ou
não) vão para ver o pôr-do-sol ou apreciar a vista
panorâmica da cidade.

Próximo à Igreja da Nossa Senhora de Monte


Serrat, encontra-se também um píer flutuante,
construído no escopo do projeto da Via Náutica.
Tal empreendimento, idealizado na gestão mu-
nicipal de Antônio Imbassahy (1997-2005), visava

13. Festa realizada dentro do calendário religioso sotero-


politano em prol do Senhor do Bonfim, cujo paralelo com
as religiões de matriz africana é o orixá Oxalá. A Lavagem
constitui, portanto, a celebração de repertórios simbólicos
diversos, porém não tão distintos. A festividade é também
16º SHCU
comumente narrada enquanto um espaço de manifestações
30 anos . Atualização Crítica
de cunho sagrado e profano. Para uma análise mais detida,
1456 ver SERRA (2009).
construir um roteiro turístico náutico pela Baía de sa, dois homens comentam sobre os melhores
Todos os Santos (BAHIA; SALVADOR, 2000). Con- locais para se ir pescar mergulhando, mesmo
tudo, a ausência de recursos para a continuação com o risco da pesca de bomba. A balaustrada
do projeto levou à construção de somente um dos da Avenida Constelação serve também de mesa
cais. Posteriormente, na gestão municipal de João para os homens limparem as vísceras e tratarem
Henrique Carneiro (2005-2013), é retomada a pau- os peixes. A via possui uma caixa de rua estreita
ta, mas a implementação permaneceu paralisada. e, segundo as normas, está longe de ser uma ave-
Em conversa com um senhor comerciante local, nida. Não é somente nesse sentido que a avenida
percebe-se que sua fala se aproxima da falência manifesta seus desvios: por vezes, assume função
anunciado pela mídia (BRITO, 2011): “o píer não de atracadouro, onde os homens limpam a sua
serve para nada”. embarcação depois de retornar ao mar. Outros
momentos, serve de estaleiro, no qual os homens
Esse discurso entra em choque com as percep- consertam barcos e canoas. Tais ações realizadas
ções do campo, pois todos os dias que por lá es- no cotidiano apontam para a produção espacial
tive, havia uma aglomeração de pescadores - uns por meio da sociabilidade, conforme Ribeiro (2005)
dias mais que outros. A presença maior ou menor nos permite pensar:
de homens - eram sempre homens - pescando
não parecia ser operada pelos dias de sema- A sociabilidade obriga o pesquisador a lidar
na, mas pela maré. A presença e permanência com diagnósticos da totalidade social e,
está vinculada às condições naturais. Conforme simultaneamente, a observar o muito pe-
anunciou o comerciante de outrora, maré subindo queno, o detalhe, o sintoma que emerge no
“não presta. Joga linha [quando] tá vazando… ou gesto aparentemente insignificante. Esse
quando [a água] fica parada”. Senhor este que não gesto pode abrigar valores culturais essen-
sabia pescar, mas que entendia as condições das ciais, antigas regras básicas de convívio
atividades ali realizadas pelas conversas feitas e esforços de comunicação (ibid., p. 415).
com os usuários do espaço.
As distintas práticas realizadas nessa localidade
Observa-se que existem conhecimentos espe- podem parecer, a princípio, distintas entre si,
cíficos atrelados aos sujeitos que frequentam mas se aproximam por meio da sociabilidade e
aquele território onde as práticas com o mar ope- evocam urbanidades que ocorrem de forma re-
ram. Saberes que possuem vocabulário próprio, lacional com o mar. Ainda, estas são entendidas
desconhecido das pessoas que frequentam a enquanto insurrecionais uma vez que, conforme
Ponta de Humaitá - pelo menos, estranho à nós. indicado anteriormente, subvertem a lógica pro-
Não é somente pela observação que se apreende gramática do espaço, realizando ações outras
os modos de vida atrelado ao mar. É também não planejadas.
pelas interlocuções que, mesmo descontínuas,
(...) de tudo o que se trata numa insurreição
apresentam os aspectos cotidianos daquela
é, sem qualquer dúvida, dos corpos trafe-
região, seja no píer da Via Náutica na Ponta de
gando pelos lugares, corpos experimen-
Humaitá, seja na balaustrada de pedra da Avenida
tando espaços desviados de suas funções
Constelação, em Pedra Furada.
primárias, em usos corpóreos dos lugares
Na contenção de pedra, o espaço ganha outras ca- que não raro serão extrapolações de atri-
madas para além da função técnica. Ali, é possível buição programática (ou funcional), de um
vislumbrar a tessitura de redes de sociabilidade lugar (VELLOSO, 2017, p. 45).
e trocas de saberes entre os agentes presen-
É também em diálogo com locais que surge o
tes naquele espaço. Emerge um espaço onde os
histórico da produção espacial institucional.
usuários partilham não somente pescados (“Com
A ocupação continental de Pedra Furada é
essa lagosta aqui, vou fazer uma moqueca com os
determinada por uma contenção de pedra, cuja
‘cara’ mais tarde”), mas também histórias (“Fulano
execução se deu em dois momentos distintos14,
voltou com 40kg de tainha”) e saberes. Certo dia
um senhor ficou horas a explicar e mostrar cada
um dos pescados e mariscos; em outra conver- 14. Essa informação foi fornecida por um morador,
EIXO TEMÁTICO 2 elevando o nível da via (a Avenida Constelação) e
consequentemente das casas em relação ao mar.
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS Hoje, a estrutura realizada para conter o avanço
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES popular sobre o mar é onde os sujeitos limpam os
peixes e os mariscos, retirando vísceras e esca-
mas, bem como higienizam e armazenam suas
embarcações e equipamentos de pesca.

O avanço da terra sobre o mar se apresenta como


uma das condutas do planejamento urbano. Esta
ação ocorre por meio de aterros que sustentam
pistas de borda, contendo a ocupação sobre o mar.
Segundo relato de moradores, construções em
palafita foram retiradas para a posterior constru-
ção da via que conecta Pedra Furada à Marina do
Bonfim. A pista de borda entre Pedra Furada e a
Marina do Bonfim cria um espaço árido, comum ao
padrão construtivo que os poderes públicos vêm
desenvolvendo na região litorânea de Salvador
desde 2013. Segundo matéria do jornal, o aterro
foi realizado sobre uma pequena faixa de areia
onde os moradores frequentavam e realizavam
atividades cotidianas de lazer (PACHECO; LAHIRI,
2014). O circuito de obras públicas revela o seu
caráter destrutivo, cujo lema é “criar espaço; ape-
nas uma atividade: esvaziar. A sua necessidade
de ar puro e espaço livre é maior do que qualquer
ódio” (BENJAMIN, 2017, p. 97). Essas obras que
garantem visibilidade da existência do poder pú-
blico, uma vez que “o destruidor tem sempre de
estar rodeado de gente, de testemunhas da sua
eficácia” (ibid., p. 98).

A pista não possui qualquer equipamento que


promove sombra e o sol à pino causa, porventu-
ra, desconforto. O corpo fica suado, a vontade é
de entrar no mar; os olhos correm para algumas
escadas que dão acesso ao mar. Para sustentar
essa via de aterro, temos um muro de arrimo em
pedra cuja execução é muito grosseira – para não
dizer precária, com parte da malha de contenção
exposta. São previstas – e executadas – duas qua-
dras de futebol na extensão da via, mas não vimos
crianças utilizando-as, muito menos adultos. O
piso em bloco de concreto retém o calor, que não

durante uma conversa informal. Segundo o mesmo,


na gestão municipal de Mário Kertész (1979-1981), foi
realizada a última obra de contenção e aumento de
16º SHCU
nível da rua. Ainda não foram encontrados, nos arqui-
30 anos . Atualização Crítica
vos públicos, informações ou registros acerca dessas
1458 obras públicas.
ajuda a permanência; mesmo com o mar próximo, Gozavam o prazer de lançar a linha, fazendo leitura
não existe desejo de contemplá-lo. das condições do mar e do vento, conversando
com os seus comuns, partilhando cervejas e as
A ausência de sombra não parece ser um problema iscas. Durante as estadias de campo, não vimos
na plataforma flutuante da Via Náutica, na Ponta nenhuma grande pesca. Quando puxadas, as linhas
de Humaitá. Talvez por ser um cais e estar sobre traziam somente “piabinhas” (peixes pequenos
o mar, o calor não castigue tanto quem esteja ali. utilizados normalmente para a confecção de
Lá, vemos jovens meninos apoiados no gradil da iscas). Aquele que conseguia pescar alguma,
estrutura, discutindo estratégias do salto. Pare- cortava-a e deixava expostas, no próprio chão
ce haver uma disputa para ver quem salta mais para usufruto de quem viesse necessitar.
alto, ou fazendo maior quantidade de giros. A
performance dos jovens ocorre em paralelo com Parecia haver um status simbólico partilhado na
a atividade da pesca, e entre essas práticas tão plataforma flutuante: somente quem tinha moline-
distintas parece que o mar é a linha que as costura. te se encontrava presente. Ao me deter em outros
espaços do entorno, consegui visualizar, em deter-
minado dia, um senhor lançando linha na mão, sem
vara, em cima de uma pedra. Estava muito com-
penetrado, não queria conversa. Será que esse
senhor isolado queria garantir, quem sabe, sua
refeição? As piabas podem não ser grandes, mas
em quantidade rendem. É provável também que
houvessem peixes de pequeno porte por ali, pois
não somente o senhor estava lançando linha sobre
a pedra, onde os peixes costumam se abrigar, mas
ali havia também a presença de um mergulhador.

Figura 3: No píer flutuante na Ponta de Humaitá, homens


das mais diversas idades coexistem: enquanto uns pes-
cam, outros saltam do topo da estrutura. Fonte: Acervo
pessoal.

Os senhores que lançam linha com seus moline-


tes15 não parecem se importar com a brincadeira
dos rapazes. Provavelmente deverem lembrar
dos gracejos que faziam quando jovens. Ainda,
ninguém ali parecia pescar como atividade laboral.
Figura 4: Por vezes, é possível perceber a existência de
homens lançando linha em cima das pedras. Fonte: Acervo
15. Molinete é um instrumento comum na pesca à li- pessoal.
nha que tracionar e enrolar um cabo, uma linha ou fio
através de uma roldana.
EIXO TEMÁTICO 2 Podemos estar ficcionalizando algumas conside-
rações, mas se vamos fazê-lo, podemos pensar
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS que o senhor só queria fazer a sua pesca em paz,
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES de forma mais solitária, sem a interação com os
jovens que frequentam a plataforma. O desafio
entre eles era espalhafatoso: a cada salto, um
mais ousado que o outro, os jovens urravam de
alegria. A água chegava atingir quem estivesse na
borda da plataforma, sobretudo quando alguém
resolver escalá-la e saltar do seu topo. Nesse
momento, era comum ouvir especulações, se
eles saltariam de fato. Alguns desistiam, mas
normalmente havia um corajoso decidido a dar
o pulo final na profundidade dessas águas.

Na plataforma flutuante, vemos a co-existência


de atividades junto ao mar que reformulam novos
usos ao “equipamento obsoleto”. A atuação dos
poderes públicos, criando “atrações turísticas”
e “novos circuitos do turismo”, se mostra desar-
ticulada com as práticas cotidianas, sobretudo
no que tange à relação da cidade com o mar. O
cotidiano nos mostra que há algo que permanece
mesmo diante das investidas de transformação
sócio-espacial, uma vez que a produção do espaço
não se dá somente pelas agências das grandes
instituições; ocorre também através dos sujeitos
presentes e ativos nos territórios. Uma série de
ações são desenvolvidas no espaço, apropriações
e subversões às propostas realizadas pelos agen-
tes do poder hegemônico. São tecidas dinâmicas
próprias de sociabilidades que apontam, sobre-
tudo, para uma série de complexidades16, entre
as quais destaco as disputas veladas, indiretas,
entre os agentes implicados nas mais diversas
formas de produzir o espaço urbano.

Horizontes

A partir do exposto elaborado ao longo desse


texto, apresentei considerações sobre o material

16. “Ainda o trabalho com a complexidade (Cuervo González,


2003) tem permitido questionar a reificação de escalas da
vida coletiva, que estimula a compreensão do cotidiano e
do lugar como realidades híbridas, na medida em que, no
micro, é possível reconhecer diferentes manifestações do
16º SHCU
macro: decisões relativas à aplicação dos recursos públicos,
30 anos . Atualização Crítica
influências institucionais, orientações culturais, interesses
1460 econômicos e políticos” (RIBEIRO, 2005, p. 412).
cotejado com as ferramentas que possuo e com ções populares. O cotidiano mostra, a partir da
os acessos que obtive. Buscou-se conjugar dados, prática, os seus aspectos subversivos, onde a
documentos, saberes, informações, impressões produção espacial escapa o calculado e a forma.
e reflexões, articuladas de modo a refletir sobre o O espaço é produzido também pelas ações e inte-
campo da Arquitetura e do Urbanismo, contribuin- rações que os sujeitos realizam na materialidade
do para o seu tensionamento através de reflexões existente, bem como as relações e dinâmicas
analíticas e críticas. O trabalho de campo forneceu construídas entre os sujeitos inseridos no espaço.
uma série de fragmentos que nos permitem ten- A avenida de Pedra Furada escapa a sua função
sionar alguns discursos e narrativas existentes. normativa e se torna também um estaleiro, no qual
homens fazem manutenção de suas embarcações
Todas as deambulações e interlocuções foram
e limpam a sua pesca.
realizadas em espaço terrestre, ou melhor, em um
espaço limiar entre mar e terra. Não possuíamos No embate entre as práticas realizadas pelos
os meios para estar em alto mar, nem consegui- sujeitos e o espaço concebido pelas vias tecno-
mos um interlocutor que nos levasse. Será que
cráticas, o cotidiano ganha relevo e centralidade
estar em alto mar seria necessário? Quais são
pela subversão dos usos. A constatação dessa
as contribuições que esta pesquisa realizada na
disputa se faz por meio do corpo presente, onde
terra traz para pensar essa cidade que se faz, em
vislumbramos uma cidade que se faz para além
parte, com mar?
da governança e dos discursos postos sobre os
O espaço terrestre é o meio para acessar o maríti- territórios investigados. A presença física nos
mo: de lá, eu vi e mantive os olhos no mar; observei possibilita acessar e explorar o sensível, onde o
pescadores saindo (ou regressando) com seus dia a dia nos permite refletir como e o que se olha
barcos. Também vislumbrei homens que lançam do espaço urbano.
linha, na intenção de obter alguns pescados, ou
mesmo passar o tempo. É a partir dos sujeitos, Não se pretendeu aqui chegar a conclusões her-
que ocupam esse limiar entre a terra e o mar, méticas e sim apontar leituras possíveis sobre
que podemos pensar como o território marítimo dinâmicas urbanas, sociabilidades e territoria-
transborda os seus limites e invade a terra, em lidades em Salvador. A trajetória investigativa,
um movimento contrário aos tecnocratas que reflexiva e crítica busca visibilizar outras formas
afastam o mar da terra ao realizarem aterros e de vida urbana que ocorrem nos territórios (ditos)
pistas de borda. precários, ilegais e informais. Pedra Furada é
categorizada, pelo PDDU, enquanto uma ZEIS
Existe, portanto, um espaço urbano que é produzi- de assentamento informal, e encontra-se numa
do por essa invasão do mar por meio das práticas, região cuja população responde por baixos índices
que podemos chamar de marítimas. Para toda e sócio-econômicos. Porém, a localidade parece
qualquer ação que vem no sentido de conter essa nos apontar para caminho além desta definição
relação com o mar (seja por meio de contenções, institucional onde esta se apresenta enquanto um
seja por pistas de borda), existem contracondutas; vetor de resistência de práticas com – e a partir
atos insurgentes de permanência que agenciam de – o mar, apesar das imposições da lógica ca-
a construção da cidade com o seu litoral. A partir pitalista na atual produção do espaço urbano. Os
de Pedra Furada (e o seu entorno), vislumbramos sujeitos ali presentes constituem territorialidades
a produção do espaço que abarcam as interações a partir das suas ações cotidianas, atravessados
corpóreas dos sujeitos com as materialidades, em
por saberes e partilhas construídos a partir e
prol de atividades e ações com o mar. Ainda, por
com o mar.
meio da sociabilidade que emerge nesse território,
o espaço ganha outros usos - a balaustrada serve
de estaleiro aos homens, de mesa para tratamento
dos peixes, além de serem locais onde ocorrem
trocas sobre as pescas.

Observamos a concomitância entre as condutas


das instituições governamentais e as apropria-
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16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1464
1465
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES A configuração urbana da atual cidade de São
Paulo credita ao período de expansão propor-
cionado pelo capitalismo agrário exportador
vídeo-pôster cafeeiro da primeira República, alguns de seus
principais fundamentos. A política de imigração,
responsável pela substituição do trabalho servil
CAFÉ, PODER E SALUBRIDADE pelo trabalho livre em forma de colonato nas fa-
zendas do interior, permitiu um alargamento do
NO INÍCIO DO SÉCULO XX comércio internacional e com isso a geração de
capital excedente, investido no sistema bancá-
rio e nas parcerias de obras urbanas, na cria-
COFFEE, POWER AND HEALTH IN THE EARLY 20TH ção de estabelecimentos diversos e em novos
CENTURY projetos de edificações. Por outro lado, foram
criadas oportunidades para a oferta de trabalho
CAFÉ, PODER Y SALUD A PRINCIPIOS DEL SIGLO XX nas lavouras e nas cidades, o que em São Paulo
aprofundou as dificuldades sanitárias experi-
mentadas pela incipiente infra-estrutura e as
CARDACHEVSKI, Ana Maria
recorrentes epidemias de peste bubônica, cóle-
Doutoranda, PPGAU- PUC Campinas ra morbo, varíola e febre amarela, demandando
anacardachevski@gmail.com
investimentos privados e posteriormente pú-
blicos em obras e intervenções de engenharia
SANTOS JUNIOR, Wilson Ribeiro sanitária, higiene pública, desinfecção e polícia
Prof. Dr. PPGAU – PUC Campinas médica. Como tecnologia, na gênese das disci-
wilsoncaracol@gmail.com plinas dedicadas às cidades, a medicina social
do século XVIII e início do XIX convertida em
medicina urbana emprestaria, por meio de seus
modelos de quarentena e manuais de higiene,
práticas e repertórios necessários ao contro-
le das condições de salubridade nas cidades e,
em São Paulo, criaria um modelo de operação
por muito tempo atuante e linha política de in-
tervenções, exemplar, para os demais estados
federativos e o próprio governo federal.

REFORMAS URBANAS IMIGRAÇÃO OLIGARQUIAS


POLÍTICA HIGIENE PÚBLICA

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1466
ABSTRACT RESUMEN

The urban configuration of the current city of São La configuración urbana de la actual ciudad de
Paulo credits the period of expansion provided São Paulo acredita el período de expansión pro-
by coffee exporting agrarian capitalism of the porcionado por el capitalismo agrario exportador
first Republic, some of its main foundations. The de café de la Primera República, algunos de sus
immigration policy, responsible for the substitu- principales cimientos. La política de inmigración,
tion of servile labor for free labor in the form of responsable de la sustitución de mano de obra
settlements on farms in the interior, allowed an servil por mano de obra libre en forma de asen-
expansion of international trade and, with that, tamientos en fincas del interior, permitió una ex-
the generation of surplus capital, invested in the pansión del comercio internacional y, con ello, la
banking system and in the partnerships of ur- generación de capital excedente, invertido en el
ban works, in creation of various establishments sistema bancario y en las alianzas de obras urba-
and in new building projects. On the other hand, nas, en creación de diversos establecimientos y
opportunities were created for the supply of work en proyectos de obra nueva. Por otro lado, se cre-
in crops and cities, which in São Paulo deepened aron oportunidades para la oferta de trabajo en
the sanitary difficulties experienced by the inci- cultivos y ciudades, lo que en São Paulo profundi-
pient infrastructure and the recurrent epidemics zó las dificultades sanitarias experimentadas por
of bubonic plague, cholera, smallpox and yellow la incipiente infraestructura y las recurrentes epi-
fever, demanding private and subsequently public demias de peste bubónica, cólera, viruela y fiebre
investments in works and interventions in sani- amarilla, demandando inversiones privadas y
tary engineering, public hygiene, disinfection and posteriormente públicas en obras e interven-
medical police. As technology, in the genesis of ciones en ingeniería sanitaria, higiene pública,
the disciplines dedicated to cities, social medici- desinfección y policía médica. Como tecnolo-
ne in the 18th and early 19th centuries converted gía, en la génesis de las disciplinas dedicadas a
into urban medicine would lend, through its qua- las ciudades, la medicina social del siglo XVIII y
rantine models and hygiene manuals, practices principios del XIX convertida en medicina urbana
and repertoires necessary to control health con- prestaría, a través de sus modelos de cuarente-
ditions in cities and, in São Paulo, would create a na y manuales de higiene, prácticas y repertorios
long-standing operating model and political line necesarios para controlar las condiciones de sa-
of interventions, exemplary, for the other federal lud en ciudades y, en São Paulo, crearía un mode-
states and the federal government itself. lo operativo de larga data y una línea política de
intervención, ejemplar, para los demás estados
federales y el propio gobierno federal.
URBAN REFORMS IMMIGRATION OLIGARCHIES
POLICY PUBLIC HYGIENE
REFORMAS URBANAS INMIGRACIÓN OLIGARQUÍAS
POLÍTICA HIGIENE PUBLICA
EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
Às vésperas do golpe militar que instituiu o Estado
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
Republicano em 1889, prosseguia em São Paulo
a política de imigração ou de “povoamento” com
trabalhadores livres, num sistema de colonato já
vídeo-pôster
alterado1, para a vinda de europeus em vista dos
investimentos para a produção e exportação de

CAFÉ, PODER E SALUBRIDADE café. Liderada pela Sociedade Promotora de Imi-


gração, a política apresentava uma lógica opera-
NO INÍCIO DO SÉCULO XX cional diferente dos padrões adotados à imigração
durante o regime servil. Dentre algumas implica-
ções com a vinda de imigrantes para as lavouras,
COFFEE, POWER AND HEALTH IN THE EARLY 20TH há, primeiramente, uma mudança na composição
CENTURY étnica da população da província2. Segundo dados
do censo de 1872 e das pesquisas posteriormente
CAFÉ, PODER Y SALUD A PRINCIPIOS DEL SIGLO XX desenvolvidas3, na década de 1870, a população de
afro-brasileiros correspondia a 45% da população
estadual paulista. Em 1890, decresceu para 30% e
em 1920 já equivalia a 10% da população. Mas es-
ses números são dados menos pelo deslocamento
do negro, o que ocorreria décadas depois; e mais
pelo aumento da população branca que ocorreria
na ordem de um quinto, entre 1872 a 1886. Quanto
ao deslocamento de negros no pós-abolição, “o
estoque racial branco converte-se no contingente
populacional que deveria fornecer o grosso da
mão-de-obra, em um sistema de produção em
que o trabalho escravo seria eliminado pelo tra-
balho livre” (Fernandes, 2007, p.161). Com isso, no
entanto, não apenas o africano, ou escravizado,
como os libertos pardos, se ressentiriam da falta
do trabalho, cujo agente passou a ser o imigrante.
Além dos aspectos configurados pela República
e pelo pós-abolição, a cidade também fora ob-
jeto de uma série de reformas, particularmente
empreendidas com a instalação das ferrovias a
partir de 1869. A circulação e uma nova escala de
mobilidade contribuiriam para um grande aden-

1. Durante o Império núcleos de colonos imigrantes foram


formados, com outra escala, em diversos estados brasi-
leiros.

2. Viotti da Costa (2008) e Beiguelman (1978) ilustram entre


mudanças no cenário econômico internacional, o avanço do
capitalismo e a Revolução industrial inglesa, como causas
e efeitos para o fim do modelo escravocrata na economia
agrário exportadora paulista.
16º SHCU
3. Samuel Lowrie e Horace Davis - As pesquisas sobre o
30 anos . Atualização Crítica
padrão de vida dos trabalhadores da cidade de São Paulo,
1468 Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo
samento populacional nas últimas décadas do expressão da Belle Époque francesa, a partir da
século XIX e início do XX. difusão e influência dos planos de Haussmann e
do higienismo sanitário em Paris e outros centros
São marcos no calendário das reformas princi- europeus. Em São Paulo, como em outras cidades
piadas pela gestão do professor da Academia de latino-americanas, com aumento da população
Direito, João Theodoro Xavier, algumas interven- e sua diversificação houve uma substituição das
ções expressivas, como a iluminação pública a características e vínculos religiosos comunitários
gás, o arruamento das margens do Tamandua- para formas de sociabilidades caracterizadas
tehy na altura do Mercado da rua 25 de Março e pelos espaços novos ou reformados, diferentes
a criação da Ilha dos Amores, na altura do antigo instituições e associações que agregariam inte-
Mercado de Peixes e Almoxarifado (Toledo, 2004; resses políticos e identitários laicos, recreativos
p.80). Também voltado às melhorias da face leste ou mesmo de ajuda mútua. Nesse período, ainda,
da Cidade, criar-se-ia a ligação da Rua do Hospício Prado perseguiu os vestígios da cidade colonial,
até a Ponte da Mooca; a abertura da Rua General substituindo, como o seria por décadas e bem
Glicério com 982 metros de extensão e 13 metros lembrado por Benedito Toledo (2004; p.91), todas
de largura, além dos melhoramentos nas Ruas do as edificações de taipa por novas edificações
Pari e do Gasômetro com um extenso aterramento em tijolos. A expansão voltou-se à face oeste
da várzea de 2000 metros de comprimento e 12 da cidade na direção do Centro novo, e primou
metros de largura, unificando essa área com o pelo “embelezamento” de praças; pelo projeto e
Centro da Cidade. Contudo, o que deu notabilidade início das obras do Teatro Municipal, do escritório
à gestão de Xavier, no entanto, seriam os cuidados Ramos de Azevedo; além de ser responsável pela
de “embelezamento” do Jardim Público da Luz, concessão de serviços de eletricidade para o
um prenúncio de que o paisagismo, a estética e transporte dos bondes, sempre voltando-se aos
os lugares para o lazer ganhariam cada vez maior ideais da cidade europeia como modelo.
prestígio. Tais esforços revelados pelo gestor que
governara de 1870 a 1874 eram parte da estratégia Embora o grande contingente de imigrantes
para atrair a elite de maneira permanente para a estivesse de passagem, pois o destino eram as
Capital da província, com todos os negócios daí lavouras de café, uma parcela significativa era
decorrentes. No fim dessa década e nas seguin- atraída pelas oportunidades da cidade, obrigando
tes, com investimentos de capital de empresas ao acúmulo de trabalhadores e suas famílias em
estrangeiras, teríamos a implantação do siste- cômodos nas regiões de Santa Ifigênia, Brás,
ma canalizado de água da Companhia Cantareira Mooca e Bela Vista. A cidade que em 1874 possuía
em 1877; a luz elétrica pela Companhia Paulista 23.352 habitantes passaria em 1894 a 154.000 e
de eletricidade em 1888; o viaduto do chá, com em 1900 a 260.000 habitantes (Santos,1998;p.32).
projeto de Jules Martin, inaugurado em 1892 e Ainda assim, foram necessárias outras medidas
substituído apenas em 1938, pelo atual. Contudo, de higiene, visto que entre 1882 e 1914, entra-
a cidade sofreria com a falta de infra-estrutura ram em São Paulo 1.553.000 imigrantes e saí-
e as habitações coletivas se converteriam em ram 687.000 (Kowarick apud Hall, M.op.cit.1987,
solução temporária para acomodar as famílias de p.165). É também desse período a expansão dos
trabalhadores, que por diferentes motivos, entre empregos urbano-industriais e mesmo a saída
oportunidades de trabalho urbano acabaram na dos imigrantes insatisfeitos com as condições,
Capital se fixando. sem que tivesse faltado mão-de-obra na cidade
e nas lavouras.
Já na gestão republicana de Antonio da Silva Prado
de 1899 à1910, do PRP (Partido Republicano Paulis- Ainda que a economia prosperasse e criasse um
ta) pertencente à elite produtora de café da região modelo de exportação importante, garantindo
oeste (Ribeirão Preto), banqueiro e herdeiro de uma “enxurrada” de negócios faltavam diferentes
inúmeros imóveis e ainda industrial proprietário insumos, o que acabava obrigando a um bom saldo
da Vidraria Santa Marina e da Companhia Paulista de importações. Além disso, havia uma franca
de Estradas de Ferro, São Paulo receberia um oscilação do preço do café na balança comercial,
novo pacote de intervenções sanitárias e urba- em vários momentos, durante o último quinquênio
nas voltadas a conferir modernidade, segundo a do século XIX e primeiras décadas do XX. Com
EIXO TEMÁTICO 2 isso, houve um afluxo migratório do meio rural
para o urbano, fenômeno observado em diferentes
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS municípios do Estado, além da Capital. Devido à
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES superprodução, e às tentativas de conter a que-
da do preço do café, como lembra Caio Prado
Jr. (1984; p.221) passa a haver uma restrição ao
trabalho nas lavouras o que provocaria êxodo das
fazendas para as cidades

”Em 1896 o café brasileiro enfrenta sua pri-


meira dificuldade comercial: os preços de-
clinam, estoques invendáveis começaram
a se acumular. Estava-se diante de uma
situação nova e inteiramente insuspeitada
no passado: a superprodução”.

Essa, entre outras instabilidades na oferta da


produção, obrigou, muitas vezes, a queda em até
50% do valor original do café, trazendo benefí-
cios apenas aos intermediários e obrigando os
fazendeiros a rebaixar o valor pago pelo trabalho
da cultura aos imigrantes. A deterioração das
condições de trabalho, por sua vez, contribuiu
para a promulgação do Decreto Prinetti, de 1902
(Beiguelman, 1978; p.91), por meio do qual o Co-
missariado de emigração italiana, juntamente ao
Ministério dos Negócios Estrangeiros de Roma,
proibiu a emigração subsidiada, sem impedir, no
entanto, que os interessados arcassem com o
próprio custeio da viagem. Mas a questão que aqui
mais interessa é o fato que as instabilidades eco-
nômicas, em diferentes circunstâncias, acabavam
por preterir o trabalho nas lavouras, estimulando
a vinda de parte dos imigrantes para as cidades,
à procura de outras formas de trabalho.

Dados do último decênio dos oitocentos, pós-abo-


lição e no início da República indicam já uma forte
presença de estrangeiros na Capital, representan-
do 55% dos residentes, que ocupavam 84% das
atividades manufatureiras, do setor da produção
fabril; 81% no ramo de transportes e 72% nas ativi-
dades comerciais. No início dos novecentos, 92%
dos trabalhadores na indústria eram estrangeiros
ou filho de estrangeiros, os quais incorporaram o
manuseio e operação das máquinas, de ambos os
sexos, sem contar crianças, conjunto o qual não
contava sequer com 10% de integrantes nacionais.
(Kowarick, 1987, apud Bandeira Jr., p.103). Vale
16º SHCU reiterar, no entanto, que ao contrário da acepção
30 anos . Atualização Crítica
de maior qualificação para a indústria, a maior
1470 parte dos imigrantes nesse período tinha a qua-
lificação artesanal para a prestação de serviços. lhadores fossem trazidos pela ferrovia, a Inglesa,
Sapateiros, ferreiros, pedreiros, padeiros, agri- de Santos para a Hospedaria de Imigrantes na
cultores, tal e qual os serviços tradicionalmente Mooca. Para lá se dirigiam os responsáveis para
prestados pelos nacionais. A diferença estava a contratação das famílias levadas às colônias
na forma como o imigrante, ávido por tarefas e nas lavouras.
expedientes de trabalho, se lançava à busca de
empreitadas. (Beiguelman, 1978; p.118) Dizem os diferentes estudos históricos (Luz, 1982;
Mehry,1987, Cordeiro et al,2010) que as epidemias
Mas é em decorrência da política de imigração as- de febre amarela, cólera-morbo, peste bubônica,
sumida em São Paulo, o crescimento da população varíola e malária que invariavelmente circulavam
e necessidades advindas das transformações do por São Paulo, Santos e Campinas desde os últi-
contexto social e econômico que a implantação mos decênios do século XIX, foram responsáveis
de serviços sanitários se deu, primeiramente por práticas sanitárias e medidas para a saúde
como empreendimento privado dos fazendeiros pública 4, simultâneas. Tais iniciativas visavam
paulistas (Mehry,1985; Beiguelman,1978; Kowa- impedir a restrição ao fluxo de imigrantes estran-
rick,1987; Hochman,2011). Já premidos pela sus- geiros e de migrantes brasileiros de outras regiões
pensão da imigração italiana pelos órgãos de e, sobretudo, garantir que as condições de insalu-
controle, em função de baixos salários e pelas bridade não colocassem em risco a circulação e a
péssimas condições de salubridade dos centros economia estadual em seus ramos de localização
urbanos, os fazendeiros do oeste paulista foram essencial. Parece importante destacar, mesmo
“empurrados” à atuar no protagonismo sanitário, que não se possa detalhar, que a constituição de
até porque parte de seus interesses iam muito uma política de valorização do café manteve um
além das lavouras de café, alcançando também permanente estímulo à ampliação de novos cafe-
as oportunidades geradas nas cidades. O grupo zais e à expansão dos latifúndios no Estado de São
responsável por decisões estratégicas estava Paulo sempre acompanhados por novos ramais
representado, ou ocupava cargos no Governo ferroviários. Segundo os investimentos feitos e a
da província ou do país, tornando a relação entre ascensão política dos segmentos oligárquicos em
os interesses privados e as facilidades obtidas cujo contexto estava incluída a imigração, como
pelas posições na estrutura republicana e suas um fator dinâmico, operava-se ao mesmo tempo
deliberações, consequentes umas das outras. a expansão do setor agrário, o fortalecimento de
Nesse circuito político econômico, a elite cafeeira um mercado interno, dado pelo adensamento
também estava presente nos empreendimentos gerado pelos próprios imigrantes em seu neces-
industriais, na direção das ferrovias, dos bancos; sário consumo, além do desenvolvimento do setor
além, é claro, da política imigratória e seus cri- industrial urbano e todos os aparatos de cuidados
térios adotados, nesse caso pela Sociedade Pro- higiênicos e reformas com melhoramentos para
motora de Imigração, contrária ao que propunha a vida nas cidades no início do século XX, em São
a Sociedade Central de Imigração, representa- Paulo, e demais cidades do sistema econômico.
da por André Rebouças e Alfredo D’Escragnolle Do ponto de vista dos segmentos sociais, a ten-
Taunay, cujos interesses estavam definidos pela sa distribuição de forças contava de um lado,
formação e distribuição de diversos núcleos co- com parte da alta burguesia vinculada à parcela
loniais e pequenas propriedades produtoras de agroexportadora da economia e com o latifúndio;
alimentos. Com a proibição da imigração italiana, e de outro lado, a burguesia voltada a fortalecer
outros grupos acabam por substituí-la, como os as atividades de um incipiente mercado interno,
de portugueses, de espanhóis e de japoneses.
4. Nesse período há uma distinção entre serviços de sane-
No empreendimento e percurso imigratório, duas
amento e serviços de saúde pública, ficando a cargo dos
cidades eram destinos obrigatórios dos trabalha-
primeiros as obras e infraestrutura para abastecimento
dores que vinham em vapores da Europa, prin- de água e coleta e tratamento de esgotos. Já os serviços
cipalmente na terceira classe, com passagens de saúde pública estão objetivados por práticas médicas
subsidiadas, juntamente às suas famílias: Santos como a obrigatoriedade das medidas de vacinação, o po-
e São Paulo. Parte dos imigrantes podia ser con- liciamento e a vigilância das condições de salubridade de
vocada já no Porto, mas o usual era que os traba- estabelecimentos, transportes e habitações.
EIXO TEMÁTICO 2 que por proximidade de interesses estava mais
ligada à classe média e ao proletariado, força de
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS trabalho e habitantes principais do crescente
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES cenário da vida urbana (Beiguelman, 1973; p.90).

A SAÚDE E A SALUBRIDADE

A partir da Independência e durante o período


imperial, a questão da saúde emerge como fun-
damento das relações econômicas e sociais, par-
ticularmente inserida no trato com o mercado
externo. Ao longo das décadas, a ordem médica
implantaria modelos e projetos institucionais em
associação ao Estado para infundir, por meio de
dispositivos 5 de dominação, inspeção e controle
médico, o conjunto social. Segundo Luz (1982;
p.33), a medicina proporá, por meio de agentes,
“os médicos”, “uma terapia, uma resposta, uma
explicação para cada situação, principalmente
quando a ordem social estiver em jogo”. A partir
dos anos 1870, com a crise do regime de trabalho
servil e a expansão da economia cafeeira, dotando
de expressão a região sudeste, a presença médica
se fará em todas as manifestações políticas, por
meio de institutos e associações sempre molda-
das pelos discursos de apologia da modernização
e da transformação social.

Com o advento republicano e o impacto das mu-


danças sociais, econômicas e políticas do final
do século XIX em diferentes contextos, cidades
latino-americanas, europeias e particularmente
brasileiras, elencariam propostas médicas de in-
tervenção sobre o espaço urbano, com o propósito
de saneá-lo e, segundo princípios médicos e tam-
bém “morais” para a salubridade, cujo significado
implicaria um conjunto de requisitos adequados
à saúde coletiva, segundo fundamentos da teoria

5. A partir do campo filosófico político de Michel Foucault,


segundo o qual “dispositivo” tem sempre um desempenho
estratégico concreto e se insere numa relação de poder.
Pode ser identificado a um conjunto de coisas heterogê-
neas como discursos, instituições, edifícios, leis, normas,
medidas, proposições teóricas sendo “dispositivo” a rede
tecida entre esses elementos integrantes. Também deve-
mos, nessa perspectiva entender “dispositivo” com aquilo
16º SHCU
que possui a capacidade de orientar, modelar, controlar,
30 anos . Atualização Crítica
e capturar gestos, condutas e opiniões num determinado
1472 contexto e, ou episteme.
miasmática e posteriormente, com as diretrizes Para ordenação e controle dos espaços da cida-
da teoria microbiológica e a configuração teórica e de, foi muito difundido no século XIX, o manual
prática da área de higiene pública e da engenharia sobre polícia médica do autor alemão Johann
sanitária. Desse momento em diante, pode-se Peter Frank “Sistema de Polícia Médica Geral”
considerar que “o nascimento de um movimen- (Jori, 2013). Dos assuntos tratados, destacam-se a
to a favor do urbanismo é diretamente ligado a importância da estatística, a configuração de hos-
uma sensibilidade generalizada para questões pitais militares, as doenças epidêmicas, as mo-
de higiene pública” (Calabi,2012; p.81).. E ainda, na léstias infecciosas, entre outros. No manual fica
direção da tarefa de criar as condições sanitárias também patente que as normativas são de ordem
urbanas necessárias à manutenção da saúde “(...) geral e reúnem indicações sobre as condições de
O desafio é poder aperfeiçoar uma legislação que higiene das moradias, localização física, insta-
permita planejar um futuro no qual os “males” lações de edifícios e necessidade de circulação
urbanos possam ser debelados.”(Ibidem). Nesse do ar, além das dimensões ideais para o interior
sentido, compreender as injunções históricas e os das casas. Com grande capilaridade, esse entre
princípios políticos de ordenação da vida urbana outros manuais difundiram-se na consolidação
e sob quais práticas foram criadas as especiali- de uma relação entre saúde e sociedade por meio
dades de projeto e gestão na nascente República, das noções da polícia médica. O conhecimento ou
se destacam na rede de sentidos dessa parte do “ciência da polícia médica” normatizou práticas
trabalho. diversas como indústrias poluentes, matadouros,
lixo nas ruas e animais mortos, mas também sobre
Ainda no Governo Provisório, a Constituição de a prática de costumes, eventos religiosos, higiene
1891 orientou a descentralização das ações sanitá- individual, comércio, segurança, manufaturas,
rias terrestres levando para a gestão dos governos que posteriormente deram corpo às diferentes
regionais, o fato doravante inédito da autonomia especialidades, seus conteúdos, repertórios e
das práticas de saúde pública e saneamento, pos- operações sobre a vida urbana, o governo e a
sibilitando a criação e capacitação de órgãos, população. No contexto nacional e especialmente
institutos e departamentos para as estratégias paulista, a Polícia Sanitária foi criada em fins do
de higiene e para enfrentamentos sanitários em século XIX com o objetivo principal de detectar o
casos de epidemias. O teor constitucional for- inadequado e insalubre. Sob a responsabilidade
malizaria o que seriam as práticas sanitárias no municipal tinha como agentes os inspetores sa-
Brasil durante a primeira República ou República nitários que agiam indicando possíveis focos de
velha. Assim, fica evidente a organização de uma doenças, recaindo as ações de intervenção em
estrutura administrativa para práticas sanitárias, habitações, estabelecimentos de comércio, ce-
de competência estadual, ou em alguns casos mitérios em Igrejas e, principalmente os cortiços.
municipal, expressando a dinâmica do complexo Sob os princípios miasmáticos e bacteriológicos,
político em diferentes arranjos da oligarquia. Na esses que já integravam parte dos discursos e
última década dos oitocentos, o investimento práticas médico sociais, a polícia sanitária no ano
em Saúde Pública correspondeu a 23% do Orça- de 1894, segundo relato de Silva Pinto, realizou
mento Estadual, tendo decrescido até 1920, em 57.088 visitas domiciliares e 12.265 vacinações
cada decênio a ordem de 8% e 10%. A justificativa (Mastromauro,2010, p.58). Além disso, tal atuação
dada por Mehry (1987) para o decréscimo está se dava em parceria com o Desinfectório Central,
desenhada pelo efeito posterior à implantação que havia sido criado em 1893 com a finalidade de
de determinadas ações, de manutenção, aco- higienizar ambientes em que houvesse a suspeita
modação e não mais de criação (mais oneroso) ou confirmação das moléstias, pelas equipes de
do aparato sanitário. De outra forma, também desinfectores, policiais e fiscais.

“os gastos com a organização do aparelho Em 1892, criou-se o Instituto Vacinogênico e a


militar do Estado mostram, que as questões Comissão de Vigilância Epidemiológica para a
sociais eram tratadas, fundamentalmente, zona urbana paulista; em 1893, regulamentou-
como questões de polícia, mesmo quando -se o Laboratório Bacteriológico e o Serviço de
se efetivassem outras propostas de política Desinfecção, redigindo-se o primeiro Código
social.” (idem, p.71) Sanitário Estadual em 1894, e no mesmo ano re-
EIXO TEMÁTICO 2 gulamentando-se o funcionamento do Hospital
de Isolamento, para os casos em que as quaren-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS tenas ou cordões sanitários não pudessem ser
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES aplicados. O Instituto Butantã foi criado em 1901,
e em 1903, o Instituto Pasteur. (Merhy, 1987; p. 48).
Acompanhando os Institutos, toda uma circulação
de saberes e conteúdos profiláticos circulariam
por meio de Boletins, Revistas e relatos em Pe-
riódicos, consolidando a normalização médica e
disciplinar em meio urbano, principalmente com
apoio da imprensa diária.

Com a República, um conjunto de iniciativas den-


tre as quais a institucionalização das normas e
práticas sanitárias, muitas das quais atribuições
da província, passaram para o controle do poder
municipal. Em 1892, é criada a Intendência de
Obras Municipais, que passaria a contar com uma
Comissão de Melhoramentos da Cidade. Essa
tinha como atribuição, de forma inédita e aí está
o mérito segundo Leme (Ribeiro e Pechman,1996,
p.247), da organização do plano geral da Cidade,
sendo a Comissão que vincularia “pela primeira vez
a execução de obras, edificações, melhoramentos
e embelezamentos à organização de planos ou
projetos urbanos”. Ainda, são do campo profissio-
nal da engenharia sanitária, os primeiros projetos
e planos urbanos com sua expressão maior, Fran-
cisco Saturnino de Brito que levaria à prática, as
diferentes influências do higienismo de Charles
Barde com o manual “Salubrité des habitations et
hygiène des villes” e também do plano como ferra-
menta de saneamento, do francês Jules Rochard
co-autor da “Encyclopedie d’higiène et de méde-
cine publique” ambos dedicados à sistematizar o
conhecimento sobre a cidade, sua construção,
edifícios públicos, habitações etc, demonstran-
do o interesse da medicina e da engenharia por
processos científicos de intervenções e trans-
formações urbanas. (Bertoni, 2015; p.76). A visão
orgânica da cidade, aliada ao plano estético per-
mitiu que as intervenções trouxessem soluções
pensadas como complementos às demais partes
características da cidade, segundo um organis-
mo vivo, com o relevo, o clima e sua topografia;
garantindo assim diretrizes para a expansão com
elementos restaurados do passado. Como exem-
plo, o sistema de canais de fluxão e drenagem das
águas concebido e realizado entre 1905 e 1910
16º SHCU por Saturnino de Brito, acabou por definir para
30 anos . Atualização Crítica
o futuro de Santos toda a estrutura do sistema
1474 viário das áreas de futura expansão da cidade.
A febre amarela, a cólera morbo e a peste bubô- arquitetura, da engenharia urbana, dentre outras
nica em cidades do interior, São Paulo e Santos, e consolidar-se-ia entre meados do século XIX na
orientaram autoridades médicas para programas Europa e entre nós, até o início da década de 1920,
de visitas domiciliares em “áreas” para as quais as tendo sempre como meio de trocas e informações
aglomerações em habitações coletivas de traba- a “Sociedade Urbanística Internacional” (Ibidem,
lhadores despertavam a atenção. Em São Paulo, p.32) a realização de Congressos de habitação, as
localizavam-se nos distritos da Sé, Consolação Exposições Internacionais, os Códigos de Higiene,
e Santa Ifigênia. No ano de 1893 a Intendência Posturas e Obras particularmente obtidos para o
Municipal, sob a influência dos segmentos sociais controle das grandes populações urbanas.
e políticos, cria a “Comissão de exame e inspeção
das habitações operárias e cortiços no distrito de O engenheiro português Victor da Silva Freire com
Santa Ephigênia” constituída de especialistas para formação em prestigiada escola francesa, atuou
avaliar as condições de higiene mais afetadas pela por vinte e seis anos à frente do Departamento de
febre amarela. O relatório revela em detalhes a obras da Prefeitura de São Paulo, sendo consi-
situação interpretada pelos inspetores e analistas derado grande responsável e crítico de projetos
que adentravam os imóveis e seus cômodos para e obras, códigos e, da formação da engenharia
conferir a vida íntima desses trabalhadores e a paulista daquele período, contribuindo na conso-
responsabilidade de proprietários pela situação lidação do “urbanismo” como especialidade e nas
oferecida aos inquilinos. As propostas disso ad- configurações urbanas do período. Exerceu suas
vindas indicavam desde a demolição ou reforma funções, primeiro na Superintendência de Obras
dos edifícios até a construção de “habitações Públicas no início da República e na gestão de An-
operárias de caráter urbano” (Cordeiro et al 2010; tonio Prado, assumindo posições na Diretoria de
Bresciani, p.21). Duas plantas são indicadas, uma obras públicas. Em 1911, na publicação da Revista
com características aceitáveis para construção da Escola Politécnica, Victor da Silva Freire assu-
na cidade e outra, com características de vilas me o discurso da arquitetura ideal para habitação,
operárias para que fossem implantadas fora dos com as indicações testadas em outros países para
perímetros urbanos, nos subúrbios ou periferia. a melhoria da iluminação e ventilação internas.
Quanto às plantas das vilas operárias é destaca- Voltando-se para a abordagem mais adequada das
da a importância de lotes com saneamento e de residências e sua tipologia, reforça padrões de
acordo com a distância, à proximidade de ramais aberturas e alturas e sua aplicabilidade, segundo
ferroviários como transporte. Dos terrenos nos a geografia, o clima e as condições ambientais,
limites centrais são sugeridas as áreas desocu- elementos com ajustes socioculturais que deviam
padas nos distritos do Pary, Mooca, Cambuci, ser respeitados sob pena da perda dos princípios
Pacaembu e Bexiga. para a “salubridade”. (Leme in Ribeiro e Pechman,
1996; 251). Foi professor da Escola Politécnica,
O significado da palavra “melhoramento” era em- responsável por um manual de projetos e obras,
pregado para qualquer intervenção, com ou sem enriquecido com atividades e novas experiên-
plano até, aproximadamente a década de 1940. A cias advindas de congressos e viagens. Trouxe
expressão “urbanismo” teria sido incorporada do para o âmbito municipal a título de inovações,
francês urbanisme em publicação no Boletim do parte das soluções e ideias inovadoras à época;
Instituto de Engenharia, em 1918, por Victor da contudo, manteve por muito tempo uma relação
Silva Freire, e pode ser entendida também como de interesses que mesclavam público e privado,
expressão da consolidação desse saber especiali- com a “Companhia City of São Paulo” reforçando
zado que a partir da segunda década do século XX o perfil de negócios privilegiados comuns à elite
distingue-se dos higienistas, gestores públicos, naqueles anos de República (Bertoni,2015; p.76).
ainda que os pressupostos do higienismo-sanita-
rismo tenham permanecido ativos mesmo depois Parte das atitudes institucionais para o controle
de estabelecido o campo profissional do “urbanis- da salubridade que marcaria a atuação do urba-
ta” (Fapesp:Bresciani,2010). Para a configuração nismo para a higiene em São Paulo nesse início do
desse “saber pragmático e operativo” (Calabi,2012) século XX estaria evidente na imprensa diária, no
contou com a convergência de competências código sanitário e de posturas, nos boletins de as-
da higiene pública, da química, da medicina, da sociações e institutos, nas revistas. No encontro
EIXO TEMÁTICO 2 desses conhecimentos técnicos, configurar-se-ia
a cidade como objeto de intervenção e reforma
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS no início do século XX. Nesse contexto, a adesão
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES às causas técnicas na transformação da cidade
reuniria desde cientistas sociais à médicos, en-
genheiros e higienistas (Bertoni, idem, p.78). A
escala de observação e intervenção vai se am-
pliando, da arquitetura passa-se às ruas, praças
e às cidades. Criam-se órgãos de representação
para os saberes e práticas sobre o urbano.

Com certa frequência podemos ler ou ouvir que


foram as grandes epidemias e até certas ende-
mias, as responsáveis pelo aparecimento dos
“urbanistas”. Para Guido Zucconi (2001), no entan-
to, todas as grandes cidades ao longo da história
foram marcadas por grandes desastres sanitá-
rios, desde a peste negra, varíola até as gripes.
O que mudaria no século XX seria a abordagem
do problema atestando a necessidade de uma
profilaxia sanitária como forma preventiva nas
patologias ambientais e que, além das condu-
tas de quarentena ou restrições sanitárias, seria
possível remediar tais problemas de contágio e
tramsmissão, “com remédios estruturais, como
instalações de defluxo, habitações salubres e
espaços verdes (Zucconi, 2001, p.84) seguindo-se
novos manuais e condutas preventivas. Mas essa
consciência foi possível com o desenvolvimento
de instrumentos e tecnologias, destacando-se
entre outras a “topografia médico-estatística”.
Após as descobertas da microbiologia de Pasteur
e de Koch sobre a origem bactérica das doenças,
há uma maior compreensão sobre causa e efeito
e das operações do corpo vivo em interações
com a natureza. No início do século XX, o discur-
so médico já estaria marcado pela bacteriologia
(Czeresnia,1997, 71) e a visão de eliminar os males
ou as patologias ambientais com essa abordagem
positiva corroboraria na atualização da medi-
cina urbana e do urbanismo. A cidade passa a
ser também um organismo vivo a requerer para
a “boa saúde”, a prevenção, o saneamento e a
salubridade.

TECNOLOGIAS PARA A CIDADE

16º SHCU De todos os discursos científicos, o discurso mé-


30 anos . Atualização Crítica
dico, no final do século XIX e início do século XX,
1476 foi o que adquiriu maior notoriedade entre a vida
social e política em transformação. No Brasil, em uma tecnologia instrumentalizada sobre o “corpo”
especial, já estava presente desde a Colônia e o social e somente um entre seus diversos aspectos
Império (Costa;1979) (Machado;1978) como saber é “individualista” e valoriza as relações médico-pa-
primordial para as condutas da vida social e fami- ciente. Segundo a hipótese de Foucault (1998), no
liar. Nesse sentido, Roberto Machado situa a im- capitalismo o que se vê não é a passagem de uma
portância da investigação histórica da medicina, medicina coletiva para uma medicina privada, mas
pois ao contrário de outros estudos, a medicina justamente o contrário. Como exemplo, temos os
social não nasce na atualidade e tampouco é re- códigos sanitários nos quais podem ser interpre-
sultado da emergência de outras tecnologias no tadas as inversões. O Código Sanitário de 1894 em
capitalismo e assim também, não é característica São Paulo, que sucede o de 1882 (Lei nº43 de 18
da teoria e prática médica universal. Antes do de julho) dispõe majoritariamente sobre o corpo
século XIX não se encontraria a relação que se coletivo da cidade e não mais prioritariamente
estabeleceria entre vida social e salubridade. Os sobre condutas, regulamentos e hábitos pesso-
princípios para a gestão dos núcleos coloniais ais. “Desaparecem as normas para cuidados com
estabeleciam - evitar a morte como objetivo prin- criados, amas de leite e cocheiros, com o sossego
cipal, pois não era a doença que configurava o público e sobre injúrias e ofensas à moral mas sur-
perigo a ser prevenido com medidas de garantias gem 76 artigos no Capítulo II dedicado às “Habita-
para a saúde, como veríamos no início do século ções em geral” (Cordeiro et al 2010;Bresciani,p.21).
XX, era, no entanto, tão somente, a morte. Além das habitações coletivas, integradas por
prisões, quarteis, internatos e hospitais, chama
Em países europeus e também o Brasil do XIX,
a atenção os capítulos que tratam em destaque
uns nas primeiras décadas e outros nas últimas,
das “habitações de classes pobres e habitações
o processo de transformações político-econô-
insalubres” demonstrando como os preceitos
micas alcança saberes e práticas da medicina
higienistas e a partir das funções exercitadas
configurando uma tecnologia que se integra à so-
pelas comissões e inspeções de verificação das
ciedade e “que incorpora o meio urbano como alvo
condições de salubridade configuraram sabe-
da reflexão e da prática médica, e a situação da
res e normas que rapidamente investiram sobre
medicina como apoio científico indispensável ao
as populações criando dispositivos em nome da
exercício de poder do Estado” (Machado, 1978;155).
sanidade pública.
Importa também afirmar que o projeto político da
A esse propósito, foi no biológico, no somático,
medicina passa a ser a saúde e nesse sentido sua
no corporal que, antes de tudo, investiu a socie-
ação será dificultar por completo o aparecimento
dade capitalista em configuração. O corpo é uma
e disseminação da doença, impedindo as causas
realidade política e nesse sentido a medicina se
e os demais aspectos que dificultam o bem-estar
da população. tornou uma estratégia política.

“A inserção do indivíduo no social, a neces- A exemplo da influência que o Brasil recebeu da


sidade de conhecer o meio e agir para pro- França e como o modelo da medicina urbana se
teger o indivíduo de um perigo ao mesmo propagou entre os profissionais em São Paulo,
tempo médico e político não significa porém considero aqui uma breve ontologia do modelo de
que a medicina saia de seu campo prévio intervenção nas cidades (Foucault, 1998) que ao
de ação. Se a sociedade, por sua desorga- contrário do modelo alemão possui característi-
nização e mal funcionamento, é causa de cas que nos aproximam, visto que, tanto a medi-
doença, a medicina deve refletir e atuar cina social francesa como a brasileira possuem
sobre seus componentes naturais, urbanís- a urbanização como suporte, embora o modelo
ticos e institucionais, visando a neutralizar da medicina social inglesa tenha elementos aos
todo perigo possível. Nasce o controle das quais poderíamos traçar analogias, num outro
virtualidades; nasce a periculosidade e com momento. Dito isso, recuperamos que a medicina
ela a prevenção.” (Ibidem) social surge como mediação entre as dificuldades
enfrentadas ainda no século XVIII, para a criação
A medicina moderna, portanto, é uma matéria de uma unidade territorial inexistente, diante de
que tem na sua origem o desenvolvimento de inúmeros interesses conflitantes nos povoados e
EIXO TEMÁTICO 2 cidades. Tais disputas se davam entre os poderes
exercidos pela Igreja e suas diferentes ordens re-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS ligiosas, por corporações de ofícios, comunidades
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES senhoriais de leigos, cada qual com suas regras
e normas, além da força dos representantes do
Rei, como a polícia e os parlamentares.

A questão do papel da unificação do poder urbano


que se tornaria o futuro desempenho do Estado
teve, a princípio nas cidades maiores francesas,
a missão de organizar o corpo urbano por meio de
códigos e regulamentação centralizada. Há, na hi-
pótese de Foucault (1998), dois motivos principais
para isso: Motivos econômicos – à medida que a
vida comercial e seus mercados arregimentavam
relações locais, regionais e nacionais, passava a
ser impossível operar com múltiplas leis e regras
no âmbito diverso de cada uma das instituições e
entidades. Adicionado a isso, o início da indústria
requisita também soluções para a cidade não
apenas como lugar, requerido para o comércio,
mas também de produção, com regras coerentes,
específicas e não conflitantes.

Outros motivos são os políticos e respondem


ao adensamento das cidades europeias como
Londres e Paris no início do século XIX, com o
surgimento da população operária que iria trans-
formar-se no proletariado, cujas relações com a
burguesia desenrolam-se de forma tensa e com
conflitos urbanos. O que eram as diferenças de
ofícios se transforma numa cisão entre pobres e
ricos. As revoltas de subsistência, consequência
da alta de preços ou queda de salários conduzi-
ria às sublevações, saques e no limite à própria
Revolução Francesa. De certa forma, as revoltas
urbanas tornam-se alvo do poder político em suas
estratégias de perscrutar e controlar a população.

Além dos motivos, um aspecto em destaque surge


pelo medo da cidade e dos males que represen-
tava. As aglomerações, a sujeira, as doenças,
os miasmas e cemitérios constituíam focos de
pânico. Para dominar esses fenômenos médi-
cos e políticos, pelo clamor da burguesia, cria-
ram-se soluções baseadas no antigo modelo da
quarentena e no seu regulamento de urgência.
Em resumo, o regulamento obrigava as pessoas
a permanecerem em suas casas; a cidade devia
16º SHCU ser dividida em bairros e os inspetores deviam
30 anos . Atualização Crítica
vigiar diariamente as casas para posteriormente
1478 informarem em seus relatos, o número de vivos
e mortos. A limpeza e purificação das casas e de ambientes internos. Daí que as grandes avenidas
ambientes “doentes” era feita com a queima de tornar-se-iam alvos tão perseguidos nas reformas
diferentes ervas e uso de perfumes. O segundo urbanas, diante da crença que ajudariam a airar e
modelo utilizado para as “doenças” na cidade ad- manter a saúde pública. No caso da água, também
veio da lepra e caracterizava-se pela exclusão. era importante permitir sua circulação e fluidez.
O doente era expulso para um local distante, um Não se podia represá-la, no caso dos rios, o que
hospital de isolamento e a purificação da cidade costumava condensar umidade às margens tra-
era, então, garantida. Foucault (1998) lembra que zendo prejuízo ao ar. Diante dessa crença, eram
medicalizar alguém era expulsá-lo da cidade, por- demolidas e proibidas a construção de casas
que a medicina consistia numa prática de exclusão nas pontes e às suas margens, entendendo que
de doentes, loucos, mendigos e criminosos. Já impedindo a circulação do rio, impediam que se
no esquema estabelecido pela medicina contra levasse e lavassem os miasmas para purificação
a peste, a solução estava em distribuir os indiví- da cidade. Eis o importante aspecto original do
duos, isolá-los, vigiá-los e constatar o estado de que viria a ser um campo de atuação da enge-
saúde de cada um, esquadrinhando os espaços nharia sanitária. O outro aspecto apontado por
internos e externos Foucault diz respeito à organização dos espa-
ços segundo “distribuições e sequências” (idem,
“E o esquema suscitado pela peste; não p.91) de elementos para a vida na cidade como a
mais a exclusão, mas o internamento; não posição das fontes para abastecimento de água
mais o agrupamento no exterior da cidade, limpa separadamente do sistema de esgotos de
mas ao contrário, a análise minuciosa da modo a impedir a contaminação. Essa desordem
cidade, a análise individualizante, o registro teria sido responsável pelas principais doenças
permanente; não mais um modelo religio- epidêmicas das cidades europeias. Vai daí que em
so, mas militar. É a revista militar e não a meados do século XVIII já havia sido elaborado o
purificação religiosa que serve, fundamen- primeiro plano hidrográfico da cidade de Paris,
talmente, de modelo longínquo para esta em que era possível identificar os pontos corretos
organização político-médica.” (Foucault em que se podia dragar água não contaminada
1998, p.89) pelos esgotos.
Nessa direção, ainda, a medicina urbana que A medicalização da cidade foi de extrema impor-
emerge na França na segunda metade do sécu- tância pois conseguiu reunir diferentes especia-
lo XVIII e início do XIX, é um aperfeiçoamento do lidades técnicas e científicas avançando de um
esquema político-médico da quarentena medie- conhecimento sobre o individual para o coletivo.
val. Também a higiene pública é uma variação de A medicina urbana configurou-se como uma me-
um dos temas da quarentena, segundo Foucault dicina intermediária, por assim dizer. Não sendo
(1998, idem) derivando daí a medicina urbana que uma medicina de organismos humanos, mas uma
tinha três grandes objetivos: Analisar os lugares medicina das condições de vida, ajudou a criar a
de aglomerações no espaço urbano, antecipando consciência do meio ambiente.
a formação de epidemias ou endemias, também
pela proximidade de cemitérios e a forma como ”A relação entre organismo e meio será feita
os corpos eram enterrados. Nesse sentido trans- simultaneamente na ordem das ciências
forma-se o trato dos mortos em função das de- naturais e da medicina, por intermédio da
terminações político-sanitárias. Os cemitérios medicina urbana. Não se passou da análise
mudam-se para as periferias. No nosso caso, do organismo à análise do meio ambiente.
deixam as Igrejas para ocupar áreas públicas com A medicina passou da análise do meio à
sepulturas individualizadas. Outro objetivo seria dos efeitos do meio sobre o organismo e
uma nova atenção à circulação, não de indivíduos, finalmente à análise do próprio organismo.”
mas de coisas como a água e o ar. Pensava-se o (Idem, p.93)
ar na teoria dos miasmas como um agente de do-
enças que por ação mecânica, agia pressionando A noção de meio ambiente também será impres-
os corpos. Para fazer com que o ar fosse sadio era cindível à medicina social na sua concepção de
necessário não bloqueá-lo entre muros, casas e salubridade e é com relação a essa que decorrerá
EIXO TEMÁTICO 2 a noção de higiene pública. Todo o desenvolvimen-
to operativo para controle e transformação das
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS condições de vida na cidade que poderão colocar
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES em risco a saúde, sofrerão as ações da higiene
pública, pois o controle “político-cientifico” terá
a salubridade como objetivo, sendo essencial no
quadro das diferentes especialidades da cidade,
cuja mediação será da medicina urbana.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O federalismo que advêm da República na prá-


tica, acaba ultrapassado pelo poder central das
oligarquias regionais, que se sobrepõe. Aos gru-
pos oligárquicos bastaria apenas que o poder
central se ocupasse do controle fiscal e militar.
De todo modo, na política dos governadores, os
gastos para o saneamento do espaço social eram
altos, pois dependiam de outros investimentos de
infra estrutura, logo era importante que a alian-
ça com o poder executivo fosse feita. No caso
paulista, há diferenças significativas apontadas
pela emergência dos problemas decorrentes da
falta de políticas de higiene e saúde na província,
capazes de permitir, em caráter mínimo, a vinda
de imigrantes para o trabalho no sistema agroex-
portador cafeeiro, o que garantiu o protagonismo
no modelo criado em política de higiene e saúde.
De modo geral, a medicina e a higiene pública
institucionalizaram-se conjuntamente ao Estado
republicano brasileiro numa mesma ordenação
política cuja capilaridade estaria evidente no Cam-
panhismo6 médico e no processo de urbanização
dos espaços e de alteração de comportamentos
individuais e coletivos na cidade, sendo necessá-
rio para tanto, agir sobre os corpos dos indivíduos,
substituindo a ordem jurídica pelos dispositivos
de normas e censura às posturas inaceitáveis.
Ao conjunto das exigências o ideal era atingir as
condições de salubridade por meio da higiene.
Ao abandonar antigas práticas e com os novos
estatutos da microbiologia, a engenharia sanitária
avançaria a passos largos, juntamente à higiene
médica no controle das populações, criando es-

6. As políticas de saúde estiveram segmentadas por aten-


16º SHCU
dimentos às populações urbanas e de ações voltadas à
30 anos . Atualização Crítica
interiorização no Brasil rural no combate às endemias,
1480 também conhecido por “Campanhas” de combate à doenças.
paços de habitação e trabalho mais adequados REFERÊNCIAS
e, um conjunto de especialidades profissionais
com repertório de soluções testadas em cidades BEIGUELMAN, P. A Formação do Povo no Complexo
europeias, a princípio. Cafeeiro: Aspectos Políticos. São Paulo: Livraria
Pioneira Editora, 1978.
Além de considerar os pressupostos sanitários
como campo de investimentos do capital pri- ---------------------------Pequenos Estudos de Ciên-
vado paulista, desde o final do século XIX até os cia Política. São Paulo: Ed.Livraria Pioneira, 1973.
primeiros quinquênios do XX (Hochman, 2013;
p.201), seria possível também considerar que BERTONI, A. “A engenharia sanitária a serviço do
além da intensa circulação de experiências tra- urbanismo: a contribuição de Saturnino de Brito e
zidas de outros contextos europeus, o urbanismo Victor da Silva Freire para a construção dos saberes
sanitarista em São Paulo no período assinalado urbanos”. Revista RISCO de Pesquisa em arquite-
demonstra, diante da autonomia política e do con- tura e urbanismo IAU USP. São Paulo: 22| 2| 2015.pp
trole decisório da elite para assuntos de higiene, (74-83).
saúde e salubridade; como o poder do capital
também privado em São Paulo, foi responsável BRESCIANI, M. S. e HAAG, C. ”A Cidade dos Enge-
na configuração urbana dos diferentes espaços, nheiros”. Revista Pesquisa FAPESP. São Paulo: nº
públicos e privados da cidade. São os projetos e 178, 12|06|2010.
obras dos especialistas urbanos, somados aos
empreendimentos de companhias privadas apli- CALABI, D. História do Urbanismo Europeu: Ques-
cados tanto na Capital quanto no interior de São tões, Instrumentos, Casos Exemplares. São Paulo:
Paulo, em paralelo ao traçado das ferrovias, que Perspectiva Editores, 2008
coordenaram as escolhas feitas e até tornaram-se
responsáveis por assemelhadas feições, paisa- CORDEIRO, L. C. (Org) Os cortiços de Santa
gens e soluções urbanas adotadas no período Ifigênia: sanitarismo e urbanização (1893),
(Fapesp:Bresciani;2010). São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo|Arquivo Público do Estado de São Paulo,
Por fim, ainda que as diferenças possam ser 2010.
justificadas pela consolidação do poder político
oligárquico e inclusive reiterado pela autonomia COSTA, J.F. Ordem Médica e Norma Familiar .
assumida na descentralização, há aspectos po- Rio de Janeiro: Graal Edições, 1979.
líticos e econômicos da ordem do capitalismo, da
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formação do mercado interno e da consolidação
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do mercado internacional, como forças direta-
mente vinculadas ao liberalismo, às formas de CZERESNIA, D. Do Contágio à Transmissão:
governo e instituições, cujos princípios passam a Ciência e Cultura na Gênese do Conhecimento
determinar o valor de bens e serviços, a estrutura Epidemiológico. Rio de Janeiro: Editora Fio-
da sociedade e até comportamentos, verdades, Cruz, 1997.
crime e morte presentes no mundo urbano do sé-
culo XX; porém, mesmo extensivos à parte dessa FERNANDES, F. O negro no mundo dos bran-
pesquisa, tais aspectos, por ora, são intenções cos. São Paulo: Global Editora, 2ª. Edição,
sobre as quais haverá futuramente uma apresen- 2007..
tação quando a reflexão sobre poderes e políticas
no contexto indicado, for também oportuna FOUCAULT, M. Em Defesa da Sociedade. São
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30 anos . Atualização Crítica

1482
1483
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES A ocupação da cidade responde aos ditames do
capital. Como fruto da própria dinâmica segre-
gante do sistema, o espaço urbano se vê refém
vídeo-pôster de uma lógica perversa, que fragmenta os espa-
ços e que privilegia os abastados em desfavor
dos excluídos. Ademais, o próprio preconceito
CARTOGRAFIAS DA de classe e a observação do diferente como su-
balterno dão margem para a criação de redutos
EXCLUSÃO: A SEGREGAÇÃO urbanos, caracterizando certas áreas da cidade
de acordo com o poder aquisitivo do grupo so-
SOCIOESPACIAL NARRA A cial que se assenta sobre ela. Essa necessidade
de diferenciação social cria a necessidade de
HISTÓRIA DA CONFORMAÇÃO separação espacial, e as leis urbanísticas mer-
cantis contribuem muito nesse aspecto. Dentro
URBANA DE PONTA GROSSA-PR dessa lógica, o que se pretende estudar neste
trabalho é localização de três tipos de empre-
endimentos (conjuntos habitacionais populares,
EXCLUSION MAPS: SOCIO-SPATIAL SEGREGATION
condomínios-clube e condomínios fechados de
TELLS THE STORY OF THE URBAN SPACE IN PONTA
luxo) no tecido urbano da cidade de Ponta Gros-
GROSSA-PR
sa-PR, especialmente entre os anos de 1990 e
2010. Para isso, abre-se mão da análise carto-
CARTOGRAFÍAS DE EXCLUSIÓN: LA SEGREGACIÓN
gráfica como método principal. Os resultados
SOCIOESPACIAL CUENTA LA HISTORIA DE LA
gráficos advindos da produção dos mapas con-
CONFORMACIÓN URBANA EN PONTA GROSSA-PR
firmam aquilo que a literatura do espaço urbano
periférico há tempos reitera: o afastamento das
COMIN, Bianca Paola populações menos favorecidas para as franjas
da cidade, privando-as da participação efetiva
Doutoranda em Urbanismo; Programa de Pós-Graduação
em Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro
na dinâmica urbana; a ocupação dos vazios pela
(PROURB - UFRJ) classe média e o enclausuramento das classes
bianca.comin@fau.ufrj.br abastadas em zonas da cidade consideradas re-
duto das elites.

SEGREGAÇÃO SOCIOESPACIAL CIDADE FRAGMENTADA


URBANISMO DE MERCADO

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1484
ABSTRACT RESUMEN

The occupation of urban space responds to the lo- La ocupación del espacio urbano responde a los
gical of capital. As a result of the system’s own se- dictados del capital. Como resultado de la propia
gregating dynamics, the urban space finds itself dinámica segreadora del sistema, el espacio ur-
a hostage to a perverse logic, which fragments bano se encuentra rehén de una lógica perversa
spaces and privileges the rich ones over the poor que fragmenta los espacios y privilegia a los ricos
people. Furthermore, the prejudice of class and sobre los excluidos. Además, el prejuicio de clase
the perception of the different as a subordinate y la observación del diferente como subordina-
give scope for the creation of urban strongholds, do dan lugar a la creación de reductos urbanos,
characterizing certain areas of the city according caracterizando determinadas zonas de la ciudad
to the purchasing power of the social group that según el poder adquisitivo del grupo social que en
rests on it. The need for social differentiation cre- ella se apoya. La necesidad de diferenciación so-
ates the need for spatial separation, and urban cial crea la necesidad de separación espacial, y
market laws contribute in this regard. Within this las leyes del mercado urbano contribuyen mucho
logic, what we intend to study in this work is the en este sentido. Dentro de esta lógica, lo que pre-
location of three types of constructions (popular tendemos estudiar en este trabajo es la ubicación
housing, club-condominiums and luxury closed de tres tipos de desarrollos (urbanizaciones popu-
condominiums) in Ponta Grossa-PR, especially lares, condominios club y condominios cerrados
between the 1990s and 2010. For that, cartogra- de lujo) en el tejido urbano de la ciudad de Ponta
phic analysis is used as the main method. The Grossa-PR, especialmente entre los años 1990 y
resulting maps confirm what the literature of pe- 2010. Para esto, se abandona el análisis cartográ-
ripheral urban space has long said: the removal of fico como método principal. Los resultados gráfi-
the less favored populations towards the fringes cos de la elaboración de mapas confirman lo que
of the city, depriving them of effective partici- la literatura del espacio urbano periférico viene
pation in urban dynamics; the occupation of the reiterando desde hace mucho tiempo: el despla-
voids by the middle class and the confinement of zamiento de las poblaciones menos favorecidas
the wealthy classes in areas of the city conside- hacia las periferias de la ciudad, privándolas de
red the strongholds of the elites. una participación efectiva en la dinámica urbana;
la ocupación de los vacíos por parte de la clase
media y el encierro de las clases pudientes en
SOCIO-SPATIAL SEGREGATION FRAGMENTED CITY zonas de la ciudad consideradas baluarte de las
URBAN MARKET élites.

SEGREACIÓN SOCIO-ESPACIAL CIUDAD FRAGMENTADA


URBANISMO DE MERCADO
EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
A cidade contemporânea é uma colcha de reta-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
lhos. A ocupação dos territórios urbanos se dá
em função de razões históricas, sociais e eco-
nômicas. A cidade do capital reproduz a lógica
vídeo-pôster
segregante do sistema em suas ruas, bairros e
edifícios, onde as condições dignas de moradia

CARTOGRAFIAS DA e de acesso à cidade ficam restritas à parcela da


população que pode pagar por elas. O direito à ci-
EXCLUSÃO: A SEGREGAÇÃO dade, de fato, só existe para alguns privilegiados,
já que a população carente, nessa lógica, também
SOCIOESPACIAL NARRA A se vê desprovida de dignidade urbana.

HISTÓRIA DA CONFORMAÇÃO A desatenção do poder público para essa questão


inviabiliza uma mudança de paradigma. Enquanto
URBANA DE PONTA GROSSA-PR as gestões urbanas cedem aos desejos do capital,
o que se vê é a reprodução de espaços fragmenta-
dos, que negam a convivência e o espírito coletivo
EXCLUSION MAPS: SOCIO-SPATIAL SEGREGATION inerente ao conceito basal de cidade, e que en-
TELLS THE STORY OF THE URBAN SPACE IN PONTA carceram os estratos da sociedade em modelos
GROSSA-PR específicos de moradia. A proliferação dos condo-
mínios fechados de luxo e dos empreendimentos
CARTOGRAFÍAS DE EXCLUSIÓN: LA SEGREGACIÓN erigidos sob o conceito de clube-condomínio são
SOCIOESPACIAL CUENTA LA HISTORIA DE LA exemplos de uma cidade retalhada, composta de
CONFORMACIÓN URBANA EN PONTA GROSSA-PR grupos visivelmente heterogêneos.

Ao localizar tais ocupações cartograficamente e


organizá-las por categorias temporais, é possível
perceber o quanto essas tendências segregantes
se perpetuam ao longo da vida da cidade: mesmo
com uma quantidade imensa de vazios urbanos, a
população pobre é afastada da dinâmica urbana,
e os vazios pericentrais são preenchidos pelas
classes média e alta, que se julgam superiores em
diversos quesitos. A geografia da conquista tem
um caráter simbólico bastante relevante, e revela
a perversidade com que o direito à propriedade
suplanta o direito à moradia quando inseridos na
dinâmica do sistema econômico vigente.

Assim, o objetivo deste artigo é usar a cartografia


da exclusão para corroborar com o estudo da
segregação socioespacial urbana, que é assunto
de diversas reflexões teóricas contundentes.
Acredita-se que esta possa ser uma forma de
abordagem (geo)gráfica satisfatória para se ana-
lisar a história da habitação e da ocupação dos
espaços urbanos. Para isso, aloca-se esta análise
16º SHCU no cenário da cidade de Ponta Grossa-PR. Ao es-
30 anos . Atualização Crítica
tudar o perfil histórico de ocupação da cidade e
1486 mapeá-la segundo empreendimentos específicos,
é possível visualizar as dinâmicas que se perpe- tem um preço; portanto, quem pode pagar por ele
tuam até hoje nos espaços citadinos. No escopo usufrui das benesses do produto. A cidade, mais
desta pesquisa, busca-se analisar a distribuição do que um espaço de coletividade, é encarada
espacial dos conjuntos habitacionais populares, como um produto parcelado em diversas porções:
dos clubes-condomínio e dos condomínios fe- umas maiores, outras nem tanto; umas mais es-
chados de luxo, aliando a ocupação do espaço truturadas, outras nem tanto; umas mais centrais,
às características econômicas dos grupos que outras nem tanto – e acaba que as melhores fatias
nele atuam historicamente. do território urbano estão nas mãos de quem
consegue pagar por elas. O problema central aqui
é confusão que se estabelece entre o direito à pro-
priedade e o direito à moradia (MARICATO, 2014).
conjuntos habitacionais e condomínios
urbanos: uma experiência de classes Morar dignamente não é apenas ter um teto para
se abrigar; antes, é preciso que o entorno da re-
Cada homem vale pelo lugar onde está: sidência ofereça as condições necessárias de
o seu valor como produtor, consumidor, ambientalidade e sobrevivência, de modo que
cidadão, depende de sua localização no o acesso aos serviços urbanos seja garantido
território. Seu valor vai mudando, inces- a essas populações. Assim, o direito à moradia
santemente, para melhor ou para pior, em inclui também o direito à cidade. Do contrário,
função das diferenças de acessibilidade fornecer o teto sem a estrutura nada mais é que
(tempo, frequência, preço), independentes um simulacro de um pretenso auxílio àqueles que
de sua própria condição. [...] Por isso, a pos- o sistema classifica como desafortunados. Exem-
sibilidade de ser mais ou menos cidadão de- plo claro desse tipo de situação é a localização
pende, em larga proporção, do ponto do ter- dos loteamentos sociais em regiões muito afas-
ritório onde se está. (SANTOS, 1987, p. 107) tadas do centro da cidade – discussão esta que
já é cara de autores consagrados como Maricato
A distribuição socioespacial da cidade e a segre- (2014), Rolnik (2015) e Santos (2013) – enquanto
gação que a caracteriza são, de fato, reflexos do que os vazios urbanos das regiões centrais ou
sistema econômico que a sustenta (MARICATO, semicentrais permanecem como tal em virtude
2014). Um sistema que se baseia na dominação e da especulação imobiliária a que se sujeitam.
que proclama na exploração o seu triunfo, só po-
deria se deleitar num espaço com características E mais: fornecer um teto sem a urbanidade que ele
segregantes e que reservam as melhores parcelas pressupõe é, sob a lógica do sistema, alimentar as
do solo aos mais afortunados; aos excluídos des- grandes bocas com o preço da desnutrição dos
tinam-se as horas a mais nos transportes de casa explorados. Subsidiado por programas do gover-
ao trabalho e a reduzida qualidade urbanística de no, o mercado da construção civil há tempos tem
porções do território urbano apartadas das dinâ- estendido seus tentáculos sobre a construção de
micas dos centros – isso para citar as questões grandes conjuntos habitacionais populares com o
mais emergentes. Ademais, as leis urbanísticas objetivo de lucrar por meio do superfaturamento
e as gestões municipais de cunho mercantil cor- das obras e do uso de materiais de construção
roboram, direta ou indiretamente, para que esta de segunda linha, por exemplo (ROLNIK, 2015).
prática seja comum na configuração do espaço. Além disso, a falta de critério urbanístico para a
implantação desses conjuntos, com vistas apenas
Essa é uma realidade comum a muitas cidades, a suprir a demanda por habitação clamada pela
especialmente às dos países periféricos. O modelo população de baixa renda, dá origem a grandes
de dominação se reflete no território de maneira ilhas no tecido urbano. Com a prerrogativa de que
a tornar indubitável que a elite se concentra nas “para pobre qualquer coisa é melhor que nada”, es-
regiões mais ricas em urbanidade, enquanto que a sas populações realizam o sonho da casa própria
maioria da população carece da atenção do poder sob condições pouco citadinas (ou cidadãs, quem
público naquilo que se refere ao direito à moradia sabe), sujeitas à ação de poderes paralelos porque
e, como consequência, ao direito à cidade (MA- vazias de urbanidade (MARICATO, 2014). Dessa
RICATO, 2014). Isso porque a estrutura da cidade forma reproduz-se um ciclo onde as intenções
EIXO TEMÁTICO 2 são louváveis, mas as ações que as concretizam
moldam o fato urbano à forma do sistema: desu-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS mano, perverso e meritocrata.
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
A localização desses conjuntos habitacionais
populares nas franjas da cidade traz ainda outra
questão que beneficia as áreas semicentrais em
função das regiões suburbanas. A necessidade
legal de prover os conjuntos habitacionais popu-
lares com o mínimo de estrutura urbana (energia,
asfaltamento, rede de água e esgoto) traz em seu
seio a necessidade de levá-la até esses pontos.
Este não seria o ponto central se as áreas inter-
mediárias – entre o centro e as regiões afastadas
dele – também não fossem beneficiadas com esse
advento. Assim, a especulação imobiliária age,
usufruindo de uma estrutura pública em favor do
capital privado (MARICATO, 2014) (e em desfavor
de uma cidade inclusiva).

Ainda no tocante a esse assunto, há que se con-


siderar que o valor do cidadão está atrelado à
sua localização no espaço, conforme comen-
tado por Santos (1987) no trecho da epígrafe. A
localização das moradias é também sinônimo de
status, já que, conforme explanado, as parcelas
do território urbano são adquiríveis, e, assim,
são representativas do poder aquisitivo do grupo
que nele habita. É sob a ação dessa lógica que o
estrato mais abastado da população fortifica suas
moradias em áreas da cidade cuja imagem de
prestígio já está consolidada ou, num outro extre-
mo, afastam-se das regiões centrais (que julgam
degradadas, devido à mixórdia que as caracteriza)
para se enclausurar no grupo seleto de pessoas
semelhantes que constituem os condomínios
fechados. Há uma relação de alteridade bastante
presente nessa situação, e que é comentada por
Bauman (2009, p. 42):

a intenção desses espaços vetados é cla-


ramente dividir, segregar, excluir; e não de
criar pontes, convivências agradáveis e lo-
cais de encontro, facilitar as comunicações
e reunir os habitantes da cidade.

Os condomínios fechados, estrategicamente


localizados em áreas de fácil acesso ao centro,
afastam-se geográfica e fisicamente das áreas
caóticas, cujas quais são desprovidas de ordem e
16º SHCU estrutura, mas repletas de pluralidade. Os muros
30 anos . Atualização Crítica
que os cercam são verdadeiros representantes da
1488 distinção que se faz entre os que estão incluídos
e os excluídos. Ao se afastarem, criam também público-alvo de empreendimentos privados que
um hiato ideológico entre uns e outros (BAUMAN, mesclam a lógica segregatória do condomínio
2009): os que têm e os que não têm. Condomí- fechado e a densificação dos conjuntos popula-
nios residenciais de luxo constituem-se como res: trata-se do conceito de clube condomínio.
um exemplo expoente de ações desse gênero.
Estes, além de reforçarem a segregação e a priva- O mercado para esse tipo de empreendimento é
tização de algumas parcelas do espaço, acabam fruto de diversos fatores. No Brasil, especifica-
por criar paisagens hostis e pouco convidativas mente, a ascensão da classe média trabalhadora
para quem os observa do exterior. Reforçam o a partir dos anos 2000 é explicada pelo aumento
medo por acreditarem guardar no interior de suas do seu poder de compra. Vê-se nessa década
muralhas aquilo que diferencia os que ali estão alguma redução desigualdades sociais no país,
dos que moram do lado de fora: o poder aquisi- com a ampliação do número de oportunidades de
tivo (BAUMAN, 2009). Eis a ação da especulação trabalho e elevação do poder aquisitivo da popu-
sobre certos espaços supervalorizados que se lação. Destaca-se também a predominância dos
mostram mais providos de infraestrutura urbana postos de trabalho com remuneração mensal de
que aquelas regiões de desordem e de alta densi- até 1,5 salário mínimo. Entretanto, levantamentos
dade demográfica nas proximidades de locais já do IPEA (2012) apontam que entre os anos de 2002
estruturados, com é o caso de muitas ocupações e 2012, a renda per capita das famílias cresceu
próximas ao centro. Trata-se da criação de uma 3,65% e seu consumo per capita aumentou em
cidade não-cidade, a qual nega a coletividade ao 3,15%. Pochmann (2012) considera que esse fe-
reproduzir a segregação geográfica e socioeco- nômeno de mobilidade social incorporou outros
nômica. A privatização do público não é apenas elementos além do aumento de renda, tais como
representada pela criação de espaços da elite grau de escolaridade, posse de propriedade, mo-
(BAUMAN, 2009) caracterizados pelo medo da in- radia e bens de consumo.
vasão (muros altos margeados de cercas elétricas
e câmeras de vigilância), mas chega ao ponto de Assim, a classe trabalhadora, de posse de mais
privatizar ruas e vias públicas no sentido de se- recursos financeiros, se torna também consumi-
lecionar aqueles que podem ou não ter acesso a dora. Desse modo, desconstrói-se o estereótipo
elas e aos “lugares dos escolhidos”. Eis uma ação de que pessoas sem grandes recursos financeiros
que vai de encontro à própria legislação urbana, não conseguem ter acesso a uma moradia aos
mas que é aceita porque responde aos ditames moldes dos condomínios de luxo, com segurança,
do mercado e à ideia de diferenciação do eu (mais) qualidade de vida e opções de lazer. Os programas
para com o outro (menos). sociais do Governo Federal, com destaque para o
Programa Minha Casa Minha Vida e todas as suas
faixas de abrangência, facilitam o acesso dessa
parcela da população a esses empreendimentos,
a classe média e o réquiem da experiência e o mercado da construção civil se vê, mais uma
urbana coletiva vez, grandemente beneficiado.

O consumo é o grande emoliente, produtor Contudo, apesar da parcial inclusão social que
ou encorajador de imobilismos. Ele é, tam- viveu a classe média brasileira, há muito que se
bém, um veículo de narcisismos, por meio avançar para que a totalidade da população bra-
dos seus estímulos estéticos, morais, so- sileira possa, de fato, se dizer incluída. Em termos
ciais; e aparece como o grande fundamen- de cidade, os condomínios populares continuam a
talismo do nosso tempo, porque alcança e ser implantados em zonas afastadas da dinâmica
envolve toda gente”. (SANTOS, 2001, p. 25) urbana – isso para uma população que, com suas
condições financeiras reduzidas, vê também re-
Entre a experiência dos conjuntos habitacionais duzido o seu direito à cidade e, em consequência,
para as classes populares e a dos condomínios as suas condições de mobilidade – enquanto que
fechados de luxo para as classes mais abastadas, as classes médias, em seus condomínios-clube,
encontra-se a classe média. Transitando entre ocupam as regiões pericentrais, que até então
um ambiente e outro, a classe média tem sido o eram alvo da especulação imobiliária. A questão
EIXO TEMÁTICO 2 que permanece aqui é: se há terras para abrigar a
classe média em regiões mais próximas ao centro,
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS por que as classes menos favorecidas precisam
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES ser empurradas para as franjas da cidade?

Para responder essa questão, é quase que im-


prescindível recorrer a um argumento histórico.
Como postula Ribeiro (1995, p. 447): “nunca houve
aqui um conceito de povo, englobando todos os
trabalhadores e atribuindo-lhes direitos. Nem
mesmo o direito elementar de trabalhar para
nutrir-se, vestir e morar.” A rememoração óbvia
que se faz aqui é a clássica divisão efetivada por
Gilberto Freyre: na casa grande, moradia oficial,
residem as pessoas de ascendência europeia,
privilegiadas pelos rumos de nossa política, seja
no período colonial, no imperial ou no republicano;
na senzala, estão os excluídos e marginalizados,
sempre prontos a fornecer labor para a casa gran-
de, sem qualquer contrapartida desta última.

Vale enfatizar que a crítica que fazemos aqui não


é relacionada ao acesso da classe média a esses
empreendimentos – do contrário, ressaltamos o
apelo ao morar de qualidade para qualquer cida-
dão. A questão central que permeia a presente
discussão é a reprodução de um modelo de morar
que, pautado numa mímese dos empreendimentos
de luxo, combinado com o adensamento carac-
terístico dos conjuntos habitacionais populares,
acaba por negar a cidade como ambiente da di-
versidade e do convívio por diversos motivos.

O primeiro deles é que, como explicitado anterior-


mente, a própria lógica urbana mercantil afasta as
populações de baixa renda do acesso à cidade1,
relegando-as a um status de semicidadania. De
certo modo, isso é fruto da própria especulação
imobiliária, que acaba por fazê-lo em virtude
do preço da terra nas áreas mais centrais. Por
outro lado, há a questão da segregação social
e do afastamento dessas populações das áreas
mais nobres do tecido urbano, numa estratégia

1. Ressalta-se aqui a diferença entre acesso à cidade e aces-


so à urbanidade. Entende-se por acesso à cidade aquele que
envolve todas as benesses do fato urbano: o convívio, a plu-
ralidade e os serviços oferecidos pela comunidade – ou seja,
o conceito de civitas. Por acesso à urbanidade compreen-
16º SHCU
dem-se as questões de infraestrutura urbana, as quais são,
30 anos . Atualização Crítica
ainda que de forma às vezes precária, garantidas pelos con-
1490 juntos habitacionais populares – ou seja, o conceito de urbe.
de gentrificação do espaço. dos Campos Gerais desde a segunda metade do
século XIX, concentrando-se como o principal
Outro ponto é que o encarceiramento de gru- centro econômico da região (GOMES, 2009).
pos sociais com características semelhantes
tende a negar a pluralidade do espaço urbano. O início do desenvolvimento urbano de Ponta
Uma porque há uma separação física eviden- Grossa é datado do final do século XIX e início do
te que privatiza certas áreas da cidade; outra XX, fruto do desenvolvimento da ferrovia, num
porque as questões ideológicas e simbólicas período em que este era o principal meio de trans-
que permeiam tais empreendimentos refletem porte de cargas e de pessoas. A cidade era um
o desejo de certos estratos da sociedade de se ponto de passagem estratégico no escoamento
isolarem em um território que difere do contexto da erva-mate. Assim, o núcleo urbano central se
citadino. Isso porque, ao invés de proporcionar a desenvolveu em torno das atividades ferroviárias:
soma por meio da convergência das diversidades, oficinas, pátios e trilhos constituíam a paisagem
essa situação prolifera um modelo de exclusão, da cidade (GOMES, 2009).
onde padrões semelhantes são reproduzidos e
mantidos afastados conjunto urbano. Há uma Contudo, há que se considerar que Ponta Grossa é
separação evidente dos que possuem, daqueles uma cidade com um relevo fortemente acidenta-
que não possuem; dos invejados e dos invejosos, do. Como a construção de ferrovias necessita de
cujo muro é o símbolo prepotente. E essa é uma traçados com baixa inclinação, a alternativa en-
percepção válida tanto para os condomínios-clube contrada foi localizar os trilhos sobre os espigões.
quanto para os condomínios de luxo. Uma vez que os primeiros assentamentos urbanos
estavam situados nas proximidades dos trilhos, é
O que resta então é uma cidade pouco convidativa, possível afirmar que tanto o traçado da ferrovia
que resiste em meio a um conjunto de pequenos quanto o próprio relevo da cidade contribuíram
feudos. Áreas interessantes da cidade, com zonas para que as primeiras habitações estivessem
verdes e de lazer, são particulares e fechadas, orientadas segundo eixos específicos (MONAS-
relegando o espaço público a uma condição de TIRSKY, 1997). Tal característica se fez presente
subserviência diante da ocupação privada do mesmo após a substituição das ferrovias pelas
espaço. O muro separa o público do privado, o rodovias, e orientou o crescimento da cidade de
que tem qualidade daquilo que não tem, o igual maneira tentacular e espraiada.
do diferente, e acaba por isolar essas pessoas da
própria experiência urbana coletiva. A reprodu- Logicamente, a localização das moradias mais
ção cada vez maior desse modelo de moradia na privilegiadas era (e ainda é) nas proximidades dos
cidade é, de fato, o réquiem da cidade enquanto espigões. É ao longo desses eixos que se concen-
ambiente da coletividade e do diverso. tram as atividades dinamizadoras do ambiente
urbano, tendência que se acentuou com o passar
dos anos (GOMES, 2009). A partir dos espigões, o
relevo acidentado dificulta a construção e desva-
a história da cidade enquanto história loriza o terreno. Historicamente, as populações
da segregação com mais recursos assentaram-se sobre as áreas
mais planas, enquanto que os menos favorecidos
É sabido que a ocupação do espaço urbano é ocuparam as encostas. Para Monastirsky (1997),
um processo histórico. Portanto, a segregação esse é um modelo de ocupação da cidade que
socioespacial que o caracteriza tem suas raízes no não preocupa o poder público, já que a parcela
próprio processo de tomada do espaço mediante decadente da ocupação tende a ficar escondida
as leis urbanísticas de ordenamento do território. da paisagem e dos olhares principais.
Tratemos aqui, especificamente, do caso da
cidade de Ponta Grossa – PR. Ponta Grossa é uma Igualmente, o Modelo Clássico de Gradientes2
cidade de porte médio, localizada a pouco mais
de 100 km da capital paranaense, Curitiba. Ape- 2. O Modelo Clássico de Gradientes desenvolvido por Lich-
sar dessa proximidade, a Princesa dos Campos tenberger (apud LÖWEN SAHR, 2001, p. 15) explica a distri-
ocupa posição representativa na região agrária buição da população no território iniciando por uma maior
EIXO TEMÁTICO 2 ditou o crescimento da cidade até meados dos
anos 70. O núcleo urbano central, localizado no
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS entorno do edifício religioso, foi se expandindo
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES concentricamente, e valorizando as regiões próxi-
mas a ele (LÖWEN SAHR, 2001). Aliado ao modelo
tentacular e às questões geomorfológicas, essas
duas tendências de ocupação do espaço foram
geradoras de áreas de maior ou menor interesse
pelo território da cidade, abrindo margem para a
especulação. Assim, os bairros pericentrais e os
terrenos localizados próximos aos espigões são
aqueles dotados de maior status urbano, tanto
por questões de centralidade geográfica ou pela
facilidade de acesso ao centro da cidade.

O mapa da Figura 1 representa a distribuição da


cidade e sua orientação de crescimento segundo
cinco eixos principais. Os bairros a que a ocupa-
ção do entorno desses eixos deu origem e sua
atual conformação enquanto avenidas principais
constam na Tabela 1.

Nº do Avenida Bairros circundantes


eixo
1 Carlos Cavalcanti Uvaranas, Neves
2 Visconde de Mauá Oficinas, Olarias
3 Visconde de Taunay Ronda, Contorno
4 Ernesto Vilela Nova Rússia
5 Monteiro Lobato Órfãs, Neves

Tabela 1: Eixos de crescimento e respectivas vias e bairros a que


deram origem. Fonte e elaboração: A autora.

16º SHCU
concentração na área central e uma redução gradativa
30 anos . Atualização Crítica
da densidade demográfica na medida em que se afasta
1492 desse centro.
ferência da Prefeitura e da Câmara Municipal para
seus arredores, além de outros serviços impor-
Figura 1: Eixos principais de orientação do crescimento
tantes, como a rodoviária e o edifício da Receita
urbano de Ponta Grossa. Fonte: IPLAN (2020). Elaboração:
A autora.
Estadual (GOMES, 2009). Na década de 70, a im-
plantação do conjunto habitacional Santa Paula,
Os eixos 1 e 2 foram os primeiros a se desenvol- no bairro Contorno, veio a conferir características
ver na cidade. O eixo 1, que conduz ao bairro de residenciais à região (GOMES, 2009). A avenida Vis-
Uvaranas, continha (e ainda contém) edificações conde de Taunay é uma importante via de ligação
importantes relacionadas à vida dos trabalhado- entre a zona oeste e a zona central da cidade, já
res das ferrovias, como o hospital, o jóquei clube que os conjuntos habitacionais localizados nessa
e um quartel (GOMES, 2009). Hoje é um centro região, quando da sua implantação, estavam sig-
educacional importante, pois abriga dois campi nificativamente afastados do centro da cidade.
universitários. Já o eixo 2 conduz aos bairros
de Oficinas e Olarias, que abrigavam diversas O eixo 4 compreende a região do bairro da Nova
instalações de oficinas para reparação de itens Rússia, sob a influência da avenida Ernesto Vilela.
ferroviárias e também as residências dos traba- O bairro leva esse nome devido aos imigrantes
lhadores ligados a essas atividades (GOMES, 2009). russo-alemães que se instalaram na região. Na
Hoje, os bairros perderam essa característica, década de 60, passou a abrigar uma importante
mas seus nomes perpetuam a situação passada indústria metalúrgica que ainda está em opera-
a que estiveram vinculados. ção na cidade, fixando-se como um importante
vetor de densificação populacional (GOMES, 2009).
O eixo 3 corresponde à região do entorno da ave- Desde a formação de Ponta Grossa, esse bairro
nida Visconde de Taunay. A maior dinamicidade tem um apelo fortemente comercial, e atualmente
dessa região surgiu após os anos 60, com a trans- se configura como um centro secundário, pois
EIXO TEMÁTICO 2 possui toda a estrutura de comércio e serviços
do centro tradicional.
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES O eixo 5, na zona norte da cidade, orientou a forma-
ção de uma região fortemente residencial. Nessa
área estão localizados importantes condomínios
residenciais de luxo, além de outros condomínios
residenciais destinados à classe média. É uma
zona privilegiada da cidade devido ao ambiente
urbano que encerra e às facilidades de acesso à
região central (GOMES, 2009).

Por essa análise, é perceptível que a forma tenta-


cular de crescimento (GOMES, 2009) da cidade deu
origem a regiões com características bastante
diversas dentro do tecido urbano. Esses eixos
podem ser compreendidos como verdadeiros
vetores do crescimento ponta-grossense e são,
em certo grau, origem de regiões mais ou menos
valorizadas. Habitar a região norte da cidade, por
exemplo, significa estar munido de uma condição
de urbanidade bastante satisfatória, pois a carac-
terística essencialmente residencial do bairro e
a inexistência de um indutor de crescimento na
região conferiu a ele uma característica pacata
e afastada dos burburinhos da vida urbana, por
exemplo, ideal para o repouso e para a vida re-
sidencial.

No que tange à qualidade urbanística das regiões


de Ponta Grossa, o trabalho de Nascimento (2008)
traz uma contribuição significativa. Ao mapear a
inclusão/exclusão social com base na qualidade
domiciliar na cidade, o autor chegou aos resul-
tados mostrados pelo mapa da Figura 2. Embora
a análise seja dos anos 2000 e não considere os
dados mais atuais, a configuração ainda se asse-
melha muito às características contemporâneas
do território ponta-grossense.

Pela análise da Figura 2, é possível perceber o


que fora afirmado anteriormente: as residências
de maior qualidade domiciliar são aquelas locali-
zadas próximas às regiões centrais, espraiadas
para a direção norte da cidade. Percebe-se que
quanto mais afastadas do centro, menor é a qua-
lidade domiciliar dessas residências. Vale lem-
brar que, a exemplo do que acontece na maioria
das cidades brasileiras, essa é a localização dos
principais conjuntos habitacionais populares em
16º SHCU
Ponta Grossa.
30 anos . Atualização Crítica

1494
Figura 2: Mapa representativo da qualidade domiciliar em Ponta Grossa. Fonte e elaboração: Nascimento (2008).

Pela análise desses pontos, pode-se perceber populares às franjas da cidade, enquanto que os
o quanto as questões históricas influenciam no terrenos pericentrais são constantemente des-
desenvolvimento da cidade, podendo ser elemen- tinados às populações das classes média e alta.
tos de inclusão ou de segregação espacial. Para Os terrenos próximos ao centro existem, mas a
o caso de Ponta Grossa, o crescimento conforme sua utilização para fins de habitação social se vê
o Modelo Clássico de Gradientes associado aos impedida na lógica da cidade excludente. Deste
eixos de indução do espraiamento, contribuiu modo, ao cruzar tais dados, é possível utilizar a
para a formação de bolsões da elite, enquanto que cartografia como método para compreender a
as populações com menos recursos financeiros história e as condições a que se destinaram as
são enviadas, quando não ocupam as regiões cidades atuais, fazendo um comparativo entre
das encostas e vales, para regiões distantes do as regiões ocupadas, historicamente, pelos con-
centro, por meio dos programas habitacionais. juntos habitacionais populares, pelos condomí-
A perpetuação desse modelo contribui para a nios-clube da classe média e pelos condomínios
formação de uma cidade desigual e excludente, fechados de luxo.
que vê no poder aquisitivo e na diferenciação
Assim, o método que se seguiu para o mapea-
social os seus principais motores.
mento dessas regiões somou-se ao estudo das
questões históricas que orientaram o crescimento
da cidade. Para isso, este estudo dividiu-se nas
metodologia etapas apresentadas em forma de esquema pela
Figura 3.
O objetivo deste artigo é o estudo associado das
condições históricas e sociais que determina-
ram a expulsão dos condomínios habitacionais
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

Figura 3: Etapas de trabalho para apresentação dos resul-


tados do presente artigo. Fonte e elaboração: A autora.

O apanhado histórico dos eixos orientadores do


desenvolvimento urbano de Ponta Grossa, somado
à consulta aos anos de inauguração dos conjuntos
habitacionais populares, dos clubes-condomínio
e dos condomínios de luxo (realizados em buscas
nas leis municipais, e nos sites das construtoras e
dos programas municipais orientados à produção
e distribuição de moradias populares – especifi-
camente, a PROLAR3) deu origem a uma listagem
de empreendimentos executados ano a ano em
Ponta Grossa. De posse desses dados, a loca-
lização desses empreendimentos foi mapeada
por décadas, desde aos anos 50 até os anos 10,
segundo a classe de empreendimento (conjuntos
habitacionais populares, clubes-condomínio ou
condomínios fechados de luxo). A análise com-
parativa desses mapas permite-nos realizar in-
ferências bastante contundentes relacionadas à
segregação socioespacial que demonstrou ser
questão presente no desenvolvimento urbano
de Ponta Grossa.

16º SHCU
3. A PROLAR, em Ponta Grossa, é o órgão municipal res-
30 anos . Atualização Crítica
ponsável pela gestão dos recursos e da distribuição das
1496 moradias populares na cidade desde os anos 90.
resultados e discussões localização. Os círculos na cor azul representam
os conjuntos habitacionais populares (CHP); os
Os resultados deste estudo compreendem, es- círculos em amarelo representam os clubes-con-
domínio (CC) e os círculos na cor roxa representam
sencialmente, uma diversidade de mapas, aos
a localização dos condomínios fechados de luxo
quais demos o nome de “cartografias da exclusão”.
(CFL) para a década considerada. O tamanho do
Devido à restrição de apresentação de imagens
círculo tem relação com a quantidade de unidades
neste artigo, ficamos um pouco limitados a apre-
de cada empreendimento.
sentar todos os resultados gráficos encontrados.
Tentamos aperfeiçoar a sua apresentação, a fim A Figura 4 mostra os resultados para a década
de que a exposição dos resultados não ficasse de 1990. Pela análise desse mapa, percebe-se
tão prejudicada. Também, reduzimos o recorte que não havia na cidade empreendimentos do
temporal de estudo. tipo clube-condomínio nos anos 1990. No que
tange aos condomínios habitacionais populares,
Para fins de análise e discussão, selecionamos os percebe-se sua forte concentração nas franjas
mapas das décadas de 90, 00 e 2010, que julgamos urbanas, tanto em décadas passadas quanto para
serem os mais representativos para a análise a década considerada. Já para os condomínios
pretendida. Os círculos sombreados representam fechados de luxo, uma pequena concentração
empreendimentos de décadas passadas e sua destes é visualizada na região norte da cidade.

Figura 4: Empreendimentos realizados na década de 90. Fonte: PROLAR (2020). Elaboração: A autora.
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

Figura 5: Empreendimentos realizados na década de 00.


Fonte: PROLAR (2020). Elaboração: A autora.

O mapa representativo dos anos 2000 está pre-


sente na Figura 5.

Aqui, percebe-se uma proliferação dos condo-


mínios fechados de luxo ainda na região norte
da cidade, e uma presença pouco expressiva dos
clubes-condomínio em todo o território urbano.
Há também uma concentração de condomínios de
luxo na região sudoste da cidade; esta, assim como
a região norte, é uma área de intensa valorização
imobiliária, dado o alto padrão das residências
que ali se encontram. Trata-se da vila chamada
Jardim América, no bairro Oficinas. Os conjuntos
habitacionais populares, como de praxe, estão
localizados nas extremidades do tecido urbano.
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
Para os anos 10, a Figura 6 é representativa, con-
1498 forme segue.
Figura 6: Empreendimentos realizados na década de 10. Fonte: PROLAR (2020). Elaboração: A autora.

Na década de 2010, outra dinâmica é percebida classes abastadas concentram-se em redutos


sobre o território: os clubes-condomínio atuam bastante específicos, ou na zona norte da cidade,
com muito mais força no espaço urbano. Tal fenô- ou na zona sul, sem se espalhar pelo tecido urbano.
meno pode estar associado à ascensão da classe
média e as facilidades que os programas de as-
sistência social do Governo Federal promoveram
no tangente ao acesso à moradia. Ao comparar a considerações fInais
localização desses empreendimentos com a dos
conjuntos habitacionais populares, percebe-se A realização dessas análises permitiu inferir e
que os clubes-condomínio ocupam espaços mui- visualizar alguns fatos que já eram colocados
to mais próximos ao centro. Nota-se ainda que em pauta pelos apontamentos teóricos sobre o
alguns empreendimentos da categoria popular tema. Primeiramente, o fato de que, na maioria
são tão afastados do centro que, ao localizá-los das cidades suburbanas, a dinâmica do capital
no mapa, encontram-se fora do traçado das ruas penetra pelo tecido urbano e acaba por deter-
contido na base cartográfica do município, atua- minar um ambiente altamente segragante e dis-
lizada, pelo última vez, em 2012. criminatório devido à separação espacial das
classes. O contexto histórico também influen-
Percebe-se que estudar tais conformações do cia grandemente nessa determinação, porém o
espaço pela ferramenta dos mapas é de intensa seu caráter contínuo e perverso tem raízes nas
valia para inferir sobre a expulsão, cada vez maior, próprias ações das gestões urbanas de cunho
da população de baixa renda das áreas dinâmicas mercantil (que enxergam a questão mas, ao invés
da cidade, enquanto que a classe média consegue de solucioná-la, escondem-na, porque afastam o
ocupar os vazios das áreas pericentrais. Já as “problema” para regiões desprovidas da dinâmica
EIXO TEMÁTICO 2 urbana) que, por respeitarem o poder do capital,
permitem que ele tome conta da cidade, negando
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS o seu caráter coletivo.
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
A proliferação dos empreendimentos do tipo clu-
be-condomínio é outro ponto que corrobora para a
construção de uma cidade fragmentada. Ao alojar
determinadas parcelas da sociedade, fornece
uma experiência urbana privada para grupos de
pessoas com características semelhantes. As-
sim, a cidade como espaço de convivência com
o diferente e a própria relação de trocas se vê
prejudicada. Ademais, a classe média acaba por
se inflitrar nos vazios urbanos por meio desses
empreendimentos; vazios estes que poderiam
servir para a aproximação das classes populares
da centralidade das cidades, mas isso é impedido
pela ação da especulação sobre o espaço e pelo
próprio preconceito de classe.

Nessa lógica de formação de redutos, a cidade


tende a encarcerar os seus pares e ver-se, cada
vez mais, como um quebra-cabeça onde as peças
não se encaixam. A classe menos favorecida é
empurrada para as franjas; a classe média enclau-
sura-se em experiências de priva-cidade em seus
clube-condomínios e, por fim, as classes abas-
tadas também se escondem em suas fortalezas,
localizadas em pontos nobres do tecido urbano.
A cidade é estratificada: convivem nela diversos
grupos sociais que não interagem entre si, dada
essa tendência de apartamento geográfico.

A análise localizada na cidade de Ponta Grossa-


-PR foi capaz de ilustrar com precisão a ação
dos diferentes atores sobre o território urbano.
Ao alocar os conjuntos habitacionais populares
nas áreas afastadas da circunscrição central da
cidade, tais populações acabam sendo apartadas
da dinâmica urbana, tendo seu direito à cidade
violado. Questões como a qualidade ambiental e
urbanística desses conjuntos também valem ser
pontuadas já que, por tais construções serem
direcionadas às classes baixas, estas se veem
carentes não apenas de urbanidade no sentido
imaterial (civitas), mas também de uma estrutura
de habitação digna (urbe).

No caso analisado, é perceptível a proliferação


do modelo de habitação denominado aqui de clu-
16º SHCU be-condomínio na última década. A ascensão da
30 anos . Atualização Crítica
classe média no Brasil e os programas sociais
1500 destinados à facilitação do acesso à moradia
certamente possuem uma forte relação com a REFERÊNCIAS
multiplicação desse modelo. Contudo, a crítica
colocada aqui vai ao encontro da semelhança que BAUMAN, Z. Confiança e medo na cidade. Rio
apresentam para com os condomínios fechados de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
de luxo, tanto no sentido ideológico e simbólico
quanto no urbanístico: encarcera-se um grupo GOMES, E. M. Evolução urbana de Ponta Gros-
de semelhantes, os quais podem pagar por uma sa – PR: Uma análise entre as décadas de 1860
experiência urbana que a cidade em si não oferece e 2000. Dissertação (Mestrado em Geografia) –
(ou oferece, mas de maneira pouco satisfatória UFSC. Florianópolis, 2009.
aos olhos desses grupos), criando uma cidade
privada dentro da cidade. Geralmente localizados INSTITUTO DE PESQUISA (IPEA). Pobreza e
em porções semicentrais, esses condomínios desigualdade: Duas décadas de superação.
negam a experiência da coletividade e da multi- Primeiras análises IPEA da PNAD 2012. Dispo-
plicidade promovida pelo espaço da cidade. Eis nível em: <http://www.ipea.gov.br/agencia/
a classe média: numa posição social e financeira images/stories/PDFs/comunicado/131001_co-
intermediária entre a classe abastada e a classe municadoipea159_apresentacao.pdf>. Acesso
menos favorecida, e que se reflete numa posição em 30 de outubro de 2015.
geográfica também intermediária entre o centro
e o subúrbio. LÖWEN SAHR, C. L. Estrutura interna e di-
nâmica social na cidade de Ponta Grossa. In:
Para Ponta Grossa, é possível concluir que as DITZEL, C. de H. M.; LÖWEN SAHR, C. L. (orgs.).
classes mais altas estão alojadas nos redutos ur- Espaço e cultura: Ponta Grossa e os Campos
banos dos condomínios fechados de luxo, os quais Gerais. Ponta Grossa, UEPG, 2001, pp. 13-36.
oferecem a possibilidade de minimizar o contato
com a cidade e com todos os problemas que ela MARICATO, E. O impasse da política urbana no
aloja. Embalados por uma pretensa superioridade, Brasil. Petrópolis: Vozes, 2014.
os habitantes desses condomínios colocam-se
MONASTIRSKY, L. B. A mitificação da ferro-
acima das questões urbanas contemporâneas,
via em Ponta Grossa. In: DITZEL, C. de H. M.;
vivendo em suas fortalezas isoladas, as quais
LÖWEN SAHR, C. L. (orgs.). Espaço e cultura:
não estão espalhadas pelo tecido urbano, mas
Ponta Grossa e os Campos Gerais. Ponta Gros-
concentradas em zonas nobres e estratégicas
sa, UEPG, 2001, pp. 37-51.
da cidade (por se afastarem geograficamente da
mixórdia do centro, mas que proporcionam acesso NASCIMENTO, E. Espaço e desigualdades: Ma-
rápido a ele por meio de ruas a avenidas de trânsito peamento e análise da dinâmica de exclusão/
rápido). Para o recorte analisado, percebe-se a inclusão social na cidade de Ponta Grossa (PR).
concentração desse modelo de habitação em Dissertação (Mestrado em Gestão do Território)
áreas historicamente valorizadas, como a região – UEPG. Ponta Grossa, 2008.
norte e sudoeste da cidade.
POCHMANN, M. Nova classe média?: O traba-
Por fim, deixa-se aqui uma avaliação positiva no lho na base da pirâmide social brasileira. São
uso da cartografia como método para estudo da Paulo: Boitempo, 2012.
segregação socioespacial urbana. A visualização
da ação desses grupos sobre o espaço é facilitada PROLAR – COMPANHIA DE HABITAÇÃO DE PON-
pela utilização do elemento gráfico, e tende a TA GROSSA. Programas sociais. Disponível
auxiliar a tomada de inferências. A ferramenta em: <http://prolarpmpg.com.br/programas-
das cartografias da exclusão é capaz de retratar -sociais>. Acesso em 17 de setembro de 2020.
a ocupação do tecido urbano ao longo do tempo,
e perceber a ação de grupos específicos sobre ROLNIK, R. Guerra dos lugares: A colonização
determinadas parcelas do território de maneira da terra e da moradia na era das finanças. São
mais direta. Paulo: Boitempo, 2015.

RIBEIRO, D. O povo brasileiro: a formação e o


EIXO TEMÁTICO 2 sentido do Brasil. São Paulo: Cia das Letras,
1995.
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES SANTOS, M. A urbanização brasileira. São Paulo:
Edusp, 2013.

_____. O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel,


1987.

_____. Por uma outra globalização: Do pensamen-


to único à consciência universal. Rio de Janeiro:
Record, 2001.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1502
1503
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Este artigo busca flagrar, a partir de crônicas
de Manuel Bandeira reunidas no livro Crônicas
da província do Brasil, publicado em 1937, os
vídeo-pôster conflitos e as formas de representação entre o
provinciano e o moderno construídas pelo au-
tor, na tentativa de compreender como se deu
CIDADE MODERNA E CIDADE esse processo de modernização das cidades
brasileiras e de produção de suas narrativas. As
PROVINCIANA NAS CRÔNICAS definições e característica atribuídas pelo autor
para a cidade provinciana e a cidade moderna
DE MANUEL BANDEIRA serão confrontadas com aquilo que era regis-
trado por ele próprio a partir de suas experiên-
cias urbanas cotidianas e em sua associação
MODERN CITY AND PRONCIAN CITY IN MANUEL com o movimento moderno brasileiro. As crôni-
BANDEIRAS’S CHRONICLES cas de Bandeira são lidas portanto, como fonte
documental privilegiada na escrita da história
CIUDAD MODERNA Y CIUDAD PROVINCIAL EN LAS urbana, se debruçando assim, sobre práticas
CRÓNICAS DE MANUEL BANDEIRA multidisciplinares nessa produção.

LEITE, Brenda Regina Braz PROVÍNCIA MODERNO HISTÓRIA URBANA CRÔNICAS


Historiadora FFLCH/USP; Mestranda em História e
MANUEL BANDEIRA
Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo FAU/USP
brenda.regina.leite@usp.br

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1504
ABSTRACT RESUMEN

This article seeks, based on chronicles by Manuel Este artículo busca, basándose en las crónicas de
Bandeira gathered in the book “Crônicas da pro- Manuel Bandeira reunidas en el libro “Cônicas da
víncia do Brasil”, published in 1937, the conflicts província do Brasil”, publicado en 1937, los conflic-
and forms of representation between the provin- tos y las formas de representación entre lo pro-
cial and the modern constructed by the author, vincial y lo moderno construido por el autor, en un
in an attempt to understand how this happened intento por comprender cómo sucedió esto. pro-
modernization process of Brazilian cities and ceso de modernización de ciudades brasileñas y
production of their narratives. The definitions producción de sus narrativas. Las definiciones y
and characteristics attributed by the author to características atribuidas por el autor a la ciudad
the provincial city and the modern city will be provincial y a la ciudad moderna se enfrentarán
confronted with what was recorded by him from con lo que él registró de sus experiencias urba-
his daily urban experiences and in his association nas diarias y en su asociación con el movimiento
with the modern Brazilian movement. The Ban- brasileño moderno. Por lo tanto, las crónicas de
deira chronicles are therefore read as a privileged Bandeira se leen como una fuente documental
documentary source in the writing of urban his- privilegiada en la escritura de la historia urbana,
tory, thus focusing on multidisciplinary practices centrándose así en las prácticas multidisciplina-
in this production. rias en esta producción.

PROVINCE MODERN URBAN HISTORY CHRONICLES PROVINCIA MODERNO HISTORIA URBANA CRÓNICAS
MANUEL BANDEIRA MANUEL BANDEIRA
EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
Parte de uma pesquisa de mestrado ainda no iní-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
cio, este artigo propõe reflexões sobre as cidades
brasileiras durante o processo de modernização
que o país enfrentava nas primeiras décadas do
vídeo-pôster
século XX. A escolha do livro Crônicas da provín-
cia do Brasil, de Manuel Bandeira, como fonte

CIDADE MODERNA E CIDADE principal tanto da pesquisa, quanto do artigo, se


deu pelo caráter ambivalente e, de certo modo,

PROVINCIANA NAS CRÔNICAS contraditório que a obra, já a partir do seu título,


apresenta. Trata-se de uma compilação de crô-
DE MANUEL BANDEIRA nicas escritas por um escritor moderno, que vivia
em umas das cidades brasileiras mais afetadas
pela modernização na época: o Rio de Janeiro;
MODERN CITY AND PRONCIAN CITY IN MANUEL mas que evocava com alguma nostalgia uma alma
BANDEIRAS’S CHRONICLES provinciana tanto nas cidades, quanto na cultura
brasileira. O movimento moderno não se restringiu
CIUDAD MODERNA Y CIUDAD PROVINCIAL EN LAS a literatura: nossas cidades também passavam
CRÓNICAS DE MANUEL BANDEIRA por um processo de transformação baseado na
modernidade e no progresso. São os conflitos,
as contradições e as relações entre o moderno e
o provinciano, a tradição e o progresso, tanto na
cidade simbólica, representada por Bandeira - de
acordo com suas memórias -, quanto na cidade
física - material de suas vivências - que serão
analisados nas crônicas do autor.

Inicio com a apresentação do livro Crônicas da


província do Brasil, expondo suas potencialidades
como documento histórico capaz de contribuir
para a construção da historiografia da cidade e
do urbanismo. Não se trata de um resumo do livro
de Bandeira, mas da exposição e sistematização
das crônicas que compõem a obra, trazendo para
a discussão elementos que dificilmente são
percebidos apenas com a leitura dos escritos
separadamente, como as escolhas envolvidas na
estruturação da obra, e o conjunto formado pelo
todo. Ou seja, alternamos com isso as diferentes
escalas do olhar para o documento, em busca de
diferentes elementos e características de sua
narrativa e da cidade.

A partir disso situo obra e autor dentro da socie-


dade brasileira do século XX e do próprio mo-
vimento moderno, para então compreender as
crônicas de Bandeira nesse contexto. Com isso,
trechos de algumas crônicas são analisados a fim
16º SHCU de levantar questões e reflexões sobre a narrativa
30 anos . Atualização Crítica
montada pelo autor oscilante entre o Brasil de
1506 cidades provincianas e modernas. A percepção
de Bandeira é de que a cidade moderna começava ticipou da seleção e edição dos textos do próprio
a se sobrepor sobre a cidade provinciana, des- livro (GUIMARÃES, 2006). Bandeira colaborou com
truindo assim, junto com os espaços da cidade a imprensa nacional por meio de suas crônicas de
as tradições nacionais, conformando-se em um 1917 1 até 1968, ano de sua morte; ou seja, durante
processo contrário ao pregado pelo moderno en- toda sua trajetória como poeta também escreveu
quanto cultura, enquanto movimento intelectual. crônicas, dedicando-se a produção desse gê-
O provinciano e o moderno, portanto, conviviam nero por mais de 50 anos (ANAN, 2006). O livro é
na sociedade e nas cidades brasileiras em meio a composto por 47 crônicas escritas de 1927 a 1936,
conflitos e contradições que tentaremos compre- tendo o recorte temporal de quase uma década.
ender a partir das crônicas de Manuel Bandeira. Para destrinchar essas informações, dei início a
uma tabulação das crônicas, que permite captar
  e perceber aspectos da obra não informados por
meio apenas da leitura (Tabela 01): das 47 crônicas
CRÔNICAS DA PROVÍNCIA DO BRASIL do livro, vinte - quase metade - foram escritas
entre 1929 e 1930, quando Bandeira publicou Li-
Primeiro livro em prosa de Manuel Bandeira, Crô- bertinagem, obra que recolheu a parte mais radical
nicas da província do Brasil foi publicado em 1937 de sua poesia modernista (CANDIDO, 1999). Ou
a partir de uma homenagem da editora Civilização seja, seu maior empenho no movimento moderno
Brasileira ao aniversário de 50 anos do autor, já coincidiu com a maioria das crônicas escritas
consagrado  como um dos grandes nomes da po- “de um provinciano para a província” (BANDEIRA,
esia moderna no país (CANDIDO, 1999), e que par- 2006, p. 12).

Ano Total % Crônicas


1927 1 2,13% Bahia.
A festa de N. S. da Glória do Oiteiro; O heroísmo de Carlito; As Câmaras Municipais no Brasil; O “nosso”
1928 9 19,15% Saint-Hilaire; Um purista do estilo colonial; Velhas Igrejas; Impressões de um cristão-novo do regionalismo;
Recife.
Um grande artista pernambucano; Os que marcam rendez-vous com a morte; O que era o Pernambuco de
1929 10 21,28% 1821; Poesia do Sertão; De Vila Rica de Albuquerque a Ouro Preto dos estudantes; Fala brasileira; Tarsila
Antropófoga; O sonho de França Júnior; Fragmentos; Na câmara-ardente de José do Patrocínio Filho.

1930 10 21,28% Arquitetura brasileira; Carlos Drummond de Andrade; Guilherme de Almeida; O enterro de Sinhô; Augusto
Frederico Schmidt; Reis vagabundos; Sambistas; Golpe do chapéu; Presente!; No mundo de Proust.
Mário de Andrade; Graça Aranha; Lenine; Casanova; Candomblé; A Nova Gnomonia; Elizabeth Barrett
1931 7 14,89%
Browning.
1932 2 4,26% Crônica de 1880; A trinca do Curvelo.
1933 6 12,77% Leituras de mocinhas; O coração inumerável; Pequenino; Romance do beco; Portinari; O místico.
1936 1 2,13% Velórios.
Não
2,13%
consta 1 Raul de Leoni.

Tabela 01: Crônicas organizadas de acordo com o ano de publicação. Fonte: A autora (2020)

As crônicas foram extraídas de oito periódicos alerta que também deve ser levado em conta as
diferentes que circulavam por quatro capitais demandas e exigências dos diferentes editores
brasileiras: Rio de Janeiro (O Jornal, Revista Souza (LUCA, 2008), e como isso se relaciona com as
Cruz, Boletim de Ariel, Revista Bazar e Ilustração pautas que estavam no cotidiano daquelas cida-
Brasileira); Recife (A Província); Belo Horizonte des e sociedade, algo a ser explorado no desen-
(Estado de Minas); e São Paulo (Diário Nacional). volvimento da pesquisa.
Essa diversidade de periódicos demonstra como
as crônicas de Bandeira circularam por diferentes 1. Ano de publicação da sua primeira obra de poesia A Cinza
espaços e camadas da sociedade brasileira. Mas das Horas.
EIXO TEMÁTICO 2 Todas as crônicas de Crônicas da província do Bra-
sil foram escritas do Rio de Janeiro, capital fede-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS ral, mas circularam em sua maioria nas cidades de
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES São Paulo e Recife (Tabela 02). Essas três cidades
eram - e ainda são - grandes cidades brasileiras,
capitais carregadas de história, com séculos de
existência, passando por um processo de moder-
nização que vinha desde o início do século XX;
além da jovem Belo Horizonte - onde os textos
também circularam - fundada em 1897, fruto de
um processo de modernização empregado pelas
elites mineiras, que optaram por deixar para trás a
velha Ouro Preto. Isso nos mostra cidades onde o
provinciano e o moderno conviviam, e certamente
os conflitos desta relação eram vivenciados por
Bandeira, compondo suas experiências culturais
e urbanas cotidianas.

Cidade Total % Periódico Crônicas


O Jornal Bahia; De Vila Rica de Albuquerque a Ouro Preto dos estudantes.
Ilustração
Brasileira O Aleijadinho.
Rio de Revista Souza
10 21,28% Cruz Sambistas; Crônica de 1880; A trinca do Curvelo; Leitura de mocinhas.
Janeiro
Bazar Casanova; Elizabeth Barrett Browning.
Boletim de Ariel. Velórios.
A festa de N. S. da Glória do Oiteiro; O heroísmo de Carlito; As Câmaras
Municipais no Brasil; O “nosso” Saint-Hilaire; Um purista do estilo colonial;
Velhas Igrejas; Impressões de um cristão-novo do regionalismo; Recife; Um
Recife 18 38,30% A Província. grande artista pernambucano; Os que marcam rendez-vous com a morte; O que
era o Pernambuco de 1821; Poesia do Sertão; Fala brasileira; Tarsila Antropófoga;
O sonho de França Júnior; Fragmentos; Na câmara-ardente de José do Patrocínio
Filho; Arquitetura brasileira.
Carlos Drummond de Andrade; Guilherme de Almeida; O enterro de Sinhô;
Augusto Frederico Schmidt; Reis vagabundos; Golpe do chapéu; Presente!; No
São Paulo 13 27,66% Diário Nacional.
mundo de Proust; Mário de Andrade; Graça Aranha; Lenine; Candomblé; A Nova
Gnomonia.
Belo
5 10,64% Estado de Minas.
Horizonte O coração inumerável; Pequenino; Romance do beco; Portinari; O místico.
Sem
1 2,13% -
informação Raul de Leoni

Tabela 02: cidades e periódicos onde circularam as crônicas.


Fonte: A autora (2020).

Os temas abordados por Bandeira em suas crôni-


cas são o que formam e caracterizam seu Brasil
provinciano (Tabela 03). Neles aparecem cidades
como Ouro Preto, Rio de Janeiro, Recife, Salvador
e Olinda, cidades essas que desempenharam um
papel importante na formação do país, localizadas
16º SHCU no nordeste e sudeste brasileiros. Aparecem tam-
30 anos . Atualização Crítica bém os artistas e intelectuais brasileiros ligados,
1508 majoritariamente, ao movimento moderno, como
Tarsila do Amaral, Carlos Drummond de Andrade, um dos elementos que compunham a definição de
Mário de Andrade, Graça Aranha, Villa Lobos, en- cidade provinciana de Bandeira. O autor coloca
tre outros. Os bairros cariocas da Lapa e Santa essas “cidades provincianas” em conflito com a
Teresa, representando o cotidiano do autor e da modernidade, onde o moderno ameaça constan-
cidade, o samba e o candomblé, ou seja, mani- temente o provinciano, o Patrimônio Histórico, a
festações culturais diversas, igualmente fazem exaltação do Barroco como estilo verdadeiramen-
parte do livro de Bandeira. Somente as últimas te brasileiro e as igrejas barrocas, compõem esse
cinco crônicas da obra, intituladas de Outras Crô-
universo das crônicas iniciais da obra. Bandeira
nicas não dizem respeitos a aspectos nacionais,
então parte para elementos culturais, tanto no
tratando de poetas e artistas internacionais. 
que se refere à produção cultural modernista, com
A obra se inicia com crônicas que abordam prin- seus principais intelectuais e artistas, quanto a
cipalmente aspectos urbanos e arquitetônicos cultura vivida cotidianamente nos bairros dessas
pertencentes a cidade provinciana, a escolha de cidades, expondo o que seria certa idiossincrasia
um estilo arquitetônico – o barroco - portanto, era brasileira em toda sua diversidade.

Ordem
Temas Gerais %
livro Crônicas
Crítica ao Neocolonial; De Vila Rica de Albuquerque a Ouro Preto dos estudantes; Bahia; Fala brasileira; O
Conflitos tradição x
01 a 11 23,40% Aleijadinho; Um purista do estilo colonial; As Câmaras Municipais no Brasil; Velhas
modernidade; Barroco; Igrejas; O que era o Pernambuco de 1821; A festa de N. S. da Glória do Oiteiro;
Igrejas, Patrimônio. Arquitetura brasileira; Crônica de 1880.

Arte nacional; Outros Na câmara-ardente de José do Patrocínio Filho; O enterro de Sinhô; Pequenino; Um
poetas modernos; 12 a 26 31,91% grande artista pernambucano; Recife; O sonho de França Júnior; Presente!; Graça
Idiossincrasia brasileira. Aranha; Carlos Drummond de Andrade; Augusto Frederico Schmidt; Guilherme de
Almeida; Mário de Andrade; Raul de Leoni; Poesia do Sertão; O místico.
A trinca do Curvelo; Sambistas; A Nova Gnomonia; Reis vagabundos; Golpe do
Bairros cariocas; Cotidiano;
27 a 42 31,91% chapéu; Romance do beco; Candomblé; Lenine; Os que marcam rendez-vous com
Regionalismo. a morte; Leituras de mocinhas; Impressões de um cristão-novo do regionalismo;
Portinari; Tarsila Antropófoga; O “nosso” Saint-Hilaire; Velórios;Fragmentos.
Poetas e artistas Casanova; O heroísmo de Carlito; Elizabeth Barrett Browning; O coração inumerável;
43 a 47 12,77%
internacionais. No mundo de Proust.

Tabela 03: Tema geral das crônicas de acordo com a ordem da obra. Fonte: A autora (2020).

A sistematização das crônicas e sua organização PROVINCIANO E MODERNO


em tabelas propõe outra leitura para elas, agora
como documento, como fonte histórica que nos
Embora Bandeira seja conhecido como um poe-
permite vislumbrar a obra de Bandeira a partir de
ta modernista, não parece possível reduzir este
diferentes prismas e escalas em busca do nosso
aspecto moderno de Bandeira - ou do próprio
objeto histórico: a cidade, tentando compreender
movimento - à literatura, como se isso pouco se
as ambivalências da modernização e contribuindo
para a compreensão da cidade num momento associasse com a cidade e a forma como esta
chave de construção do Brasil moderno. Suas era apreendida e representada pelo autor. Mais
crônicas descrevem cidades de temporalidades do que um movimento literário, o modernismo
plurais, às vezes provincianas, às vezes modernas; foi um movimento cultural (CANDIDO, 1999), di-
assim há conflitos entre a cidade como repre- retamente ligado à cidade. A literatura moder-
sentação e memória, e a cidade física e material, nista - reconhecendo suas especificidades, seu
vivida cotidianamente pelo autor que a percebia caráter internacional e diverso - foi classificada
e registrava suas transformações.  por Malcolm Bradbury (1989, p. 76) como uma “arte
de cidades”, imbuída em uma atmosfera urbana.
Bradbury em seu texto As cidades do modernismo
(1989) usa o conceito de “capitais culturais” para
EIXO TEMÁTICO 2 classificar cidades como Paris, Londres e Nova
York, que seriam essas “cidades do modernismo”,
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS locais que atraíam escritores e intelectuais de
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES diversas partes do mundo, se conformando em
“pontos centrais da comunidade intelectual” (1989,
p.77). O artista moderno estava assim, imerso na
cidade. A vida urbana era portanto, uma condição
para ser moderno. A própria cidade se tornou
cultura, passando a ter múltiplas funções, como
a de um museu: que registra, guarda e preserva;
ao mesmo tempo que é moderna, espaço das
novidades. São cidades que, simultaneamente,
conservam tradições e lançam novidades (BRA-
DBURY, 1989). 

Bradbury limitou sua análise a cidades europeias


e estadunidenses, mas o Rio de Janeiro e São
Paulo também podem ser consideradas “cidades
do modernismo”, capitais culturais onde artistas
e intelectuais nacionais se encaminharam, bem
como Recife, Salvador ou Belo Horizonte2. No livro
Das vanguardas a Brasília, Adrián Gorelik (2005)
pesquisou os diferentes aspectos das experi-
ências vanguardistas nas cidades latino-ameri-
canas, explicando como esta se auto atribuiu a
missão de construir uma tradição, afastando-se
da definição clássica de vanguarda, associada
ao rompimento com as tradições e o internacio-
nalismo. Essa aproximação com a tradição foi,
entretanto, ambivalente (ANDRADE, 2004), já que
a modernidade foi usada como meio de condução
do desenvolvimento pelo Estado, privilegiando a
cidade como um caminho para se chegar a uma
sociedade moderna (GORELIK, 2005). As crôni-
cas de Bandeira selecionadas para Crônicas da
província do Brasil fazem parte deste contexto
de construção de uma cultura urbana e de uma
tradição nacional; porém, trazem consigo as es-
pecificidades desse sujeito que, ao mesmo tempo
em que estava envolvido com o projeto intelectual
modernista, vive a cidade cotidianamente, per-
cebendo suas transformações. A cidade física
- e consequentemente a simbólica - tinha seus
espaços “modernizados”, destruídos, e junto com
eles, a alma provinciana:

Há muita gente ingênua para quem o pro-


gresso urbano é avenida e arranha-céu.

16º SHCU
2. Não à toa, há outras pesquisas que buscam discutir o
30 anos . Atualização Crítica
modernismo nessas cidades, entre as quais destacamos
1510 ANDRADE, 2004.
Modernidade - asfalto e cimento armado. Nota-se que na apresentação de Crônicas da
Pois eu estou pronto a sustentar para es- província do Brasil o provinciano não foi usado
sas sensibilidades modernas, que os tais como sinônimos de atraso, no sentido pejorativo
arranha-céus cariocas não passam de ca- que a modernidade as vezes costuma olhar para
sarões passadistas de muitos andares, ao o passado. Foi essa modernidade em processo
passo que os velhos sobradões de duas que evidenciou na narrativa de Bandeira cidades
água da Bahia, com três, quatro andares e provincianas. O autor escreveu em um momen-
sotéias, obedecem à estética despojada, to de efervescência nacional no campo social,
linear, sintética dos legítimos arranha-céus. cultural, urbano, econômico e político. Com a
(BANDEIRA, 2006, p. 34) 3 chegada de Getúlio Vargas ao poder, em 1930,
o país passava por um processo de moderniza-
Na visão de Manuel Bandeira o progresso urbano ção das instituições nacionais que respondia a
não era aquele desempenhado pelo Estado, com anseios de transformação dos setores médios
novas avenidas, novos edifícios e novas matérias- em ascensão nas cidades. As crônicas - nesse
-primas. Logo, Bandeira parece se afastar, pelo recorte temporal de apenas nove anos - circula-
menos em sua narrativa, do projeto moderno pen- ram pela República Velha, o Governo Provisório e
sado materialmente para as cidades - ou estava o Estado Novo; além disso, os fluxos migratórios,
ciente dos riscos que ele carregava4. Ao registrar a decadência da economia cafeeira, o incipiente
o cotidiano de transformações e modernidade, processo de industrialização e modernização das
as crônicas de Bandeira se conformam em um grandes cidades brasileiras, afetavam concomi-
índice potente para entender o que foi “sacrifi- tantemente, em suas diferentes escalas, o coti-
cado” quando o moderno se instalou. O autor nos diano nacional (FAUSTO, 2013). Em meio a todas
auxilia a compreender essa modernidade, o que essas histórias há a necessidade de olhar para a
era valorizado neste processo, as permanências cidade como objeto histórico, e não como plano
e perdas urbanas, cotejadas com o que era valo- de fundo de todos esses acontecimentos, afinal,
rizado e criticado em sua narrativa.  como o próprio Bandeira percebeu e registrou,
estas se modificavam.
A maioria destes artigos de jornal foram es-
critos às pressas para A Província do Recife, Queria encontrá-la [Recife] como a deixei
Diário Nacional de São Paulo, e O Estado de menino. Egoisticamente, queria a mesma
Minas de Belo Horizonte. Eram crônicas de cidade da minha infância. Por isso diante
um provinciano para a província. Aliás este do novo Recife, das suas avenidas orgu-
mesmo Rio de Janeiro de nós todos não lhosamente modernas, sem nenhum sa-
guarda, até hoje, uma alma de província? O bor provinciano, não pude reprimir o mau
Brasil todo é ainda província. Deus o con- humor que me causava o desaparecimen-
serve assim por muitos anos! (BANDEIRA, to do outro Recife, o Recife velho, com a
2006, p. 12) 5 inesquecível Lingüeta, o Corpo Santo, o
Arco da Conceição, os becos coloniais...
(BANDEIRA, 2019, p. 109)
3. Trecho retirado da crônica Bahia publicada em abril de
1927 na edição especial de O Jornal dedicada a Bahia, com
A crônica Recife publicada em 1928 no jornal A
o título original Impressões da Bahia.
Província6 descreve aspectos da cidade contem-
4. Esse é um dos caminhos de desenvolvimento dessa pes- porânea, onde os conflitos entre o moderno e o
quisa, que vai buscar compreender os sentidos da moder- provinciano se evidenciam balizadas por suas
nização pelos olhos de Bandeira, se aproximando dessa
experiência urbana ao mesmo tempo positiva - no que ela
teve de construtiva, progressiva, includente - e negativa do Brasil.
- nas consequências violentas e excludentes. Uma obra
6. Recife foi o título dado ao texto do livro. Originalmente,
que pode ajudar esse caminho de reflexão aqui apenas
na publicação em periódico, a crônica foi intitulada Urba-
indicado é o recente livro de Luís Eduardo Soares, O Brasil
nistas, cuidado! o Recife é uma cidade magra. Em Crônicas
e seu duplo (SOARES, 2019).
da província do Brasil esse texto foi dividido em dois e sua
5. O trecho reproduzido se refere a “Advertência” - título segunda metade deu origem a outra crônica da obra Um
dado por Bandeira - que abre o livro Crônicas da província grande artista pernambucano. Ver Bandeira, 2006, p, 105.
EIXO TEMÁTICO 2 memórias. Nota-se com Bandeira que a cidade
moderna - que se instalava - e a cidade provinciana
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS - de suas lembranças de menino - não convivem:
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES conforme o moderno se expande, o provinciano
desaparece. A complexidade da cidade como
artefato onde se implicam fenômenos e tempo-
ralidades distintas, com suas múltiplas camadas
de tempo em funcionamento, é reduzida a um
movimento excludente de destruição e constru-
ção (LEPETIT, 2001). As memórias de Bandeira,
portanto, se ancoravam num mundo que ele cha-
mava de “provinciano” - visto como superado,
mas recorrente como memória -, enquanto suas
crônicas registravam o processo moderno e seus
conflitos com este provinciano, permitindo que a
cidade seja pensada assim, como um campo de
mediação entre memória, tradição e “progresso”.

Manuel Bandeira nasceu no Recife, mas ainda


menino, aos 10 anos de idade, mudou-se com a
família para o Rio de Janeiro. Quando se formou
no Colégio Pedro II foi para São Paulo, em 1904,
fazer o curso de engenheiro-arquiteto na Escola
Politécnica, que precisou interromper devido
ao agravamento do seu quadro de tuberculose.
Bandeira viajou para diferentes lugares do Bra-
sil em busca de “bons ares” para sua saúde e,
em 1913, foi para a Suíça se tratar, porém com
a eclosão da I Guerra Mundial em 1914 retornou
ao Rio de Janeiro, onde residiu até sua morte
(GUIMARÃES, 2006). Bandeira, portanto, passou
a maior parte da sua vida na maior cidade do país
naquela época: o Rio de Janeiro: a capital federal
era sua cidade de referência, de suas vivências
e de seu cotidiano. O repertório de cidades de
Manuel Bandeira, entretanto, não se restringiu
a essas onde morou, o autor viajou muito pelo
território brasileiro, buscando conhecer mais
o interior do país7. Em carta escrita a Mário de
Andrade em janeiro de 1927, Bandeira informava
o amigo de uma viagem que iniciaria:   

Estou cansado à bessa, mas tenho medo


se não lhe escrevo agora, de só lhe escre-

7. Em viagem à Minas Gerais em 1924, Mário de Andrade,


Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, entre outros inte-
lectuais modernistas, objetivavam conhecer as tradições
nacionais. Oswald batizou a excursão como “Viagem de
16º SHCU
descoberta do Brasil”. Bandeira não participou dessa pri-
30 anos . Atualização Crítica
meira viagem, entretanto, fez outras sozinho pelo interior
1512 brasileiro (NATAL, 2016).
ver de bordo do Manaus que largará do Rio Bandeira já tinha uma impressão de Salvador, uma
sexta-feira, 7. [...] Vou daqui a Bahia, paro. ideia pré-concebida sobre a cidade, reproduzindo
O tempo de arranjar o correspondente para assim, um discurso de seu tempo - a visão de
a Agência. Depois Pernambuco. Paraíba. quem vivia no Rio de Janeiro, a capital federal que
Natal. Fortaleza (Deus m’a tirou, Deus m’a pouco anos antes, em 1906, havia sofrido obras
dê!). S. Luís. Belém do Pará. De volta tirarei de “modernização” em sua área central calcadas
pelo menos uns dez dias pro Recife. (MORA- em um discurso higienista - onde modernização
ES, 2000, p.331) e higienização eram praticamente sinônimos. O
autor detectou a falta de saneamento de Salvador
Em 1928 Bandeira anuncia à Mário outra viagem, como um problema da cidade, porém, ele foi mini-
mas desta vez por “cidades velhas” mineiras, ci- mizado por Bandeira, que os vê como necessário,
dades hoje, consideradas históricas, algumas mas com ressalvas por estar inserido nesse ideal
tombadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico de modernização, criticando mais uma vez o que
e Artístico Nacional (IPHAN): via no Rio de Janeiro moderno, e os princípios que
regiam a construção de uma cidade moderna. Na
Amanhã parto pelo noturno para Belo Hori- continuação da crônica, Bandeira acrescenta:
zonte. Vou, eu também, gozar da jovialidade
O que ninguém lhes poderia dar é aquele
do friozinho. Passarei lá uns quatro ou cinco
aspecto tradicional, tão diferente dos das
dias, depois voltarei parando nas cidades
velhas cidades mineiras, porque na Bahia
velhas: Sabará, Ouro Preto, Mariana, etc.
a tradição está viva, integrada no presente
Pretendo me demorar ao todo uns quinze
mais atual, dominando estupendamente o
dias, depois do que seguirei, sem voltar ao
progressismo apressado, sovina e tapeador
Rio, para Pouso Alto, onde ficarei um mês
que tem desfigurado as nossas cidades
com o Ribeiro Couto. (MORAES, 2000, p.380) litorâneas, que estragou completamente o
meu Recife. (BANDEIRA, 2006, p. 33).
Essas viagens fizeram com que o autor conhe-
cesse diferentes realidades urbanas do Brasil. Salvador é descrita como a cidade ideal de Bandei-
Ao voltar para Recife, Bandeira tinha a cidade de ra, onde a tradição (viva) se sobrepõe ao moderno,
sua infância na memória, porém não foi isso que ao progresso. Uma das formas de conservação
encontrou, sua expectativa foi quebrada quando desta tradição, viva e integrada ao presente, está,
se deparou com o “novo Recife, das suas avenidas para o autor, nas permanências materiais da ci-
orgulhosamente moderna, sem nenhum sabor dade, o que é percebido conforme continua seu
provinciano” (Bandeira, 2006, p. 109). Quando se texto:
dirigiu para Salvador, entretanto, teve uma reação
diferente diante do que se deparou, uma cidade Há muita gente ingênua para quem pro-
que, ao contrário de Recife, ainda não conhecia:  gresso urbano é avenida e arranha-céu.
Modernidade - asfalto e cimento armado.
Um espírito amargo me foi logo advertindo Pois eu estou pronto a sustentar para es-
à minha chegada: sas sensibilidades modernas, que os tais
arranha-céus cariocas não passam de ca-
— Vai ter uma péssima impressão disto aqui. sarões passadistas de muitos andares, ao
Cidade sem higiene, sem água, sem esgo- passo que os velhos sobradões de duas
tos, sem iluminação. águas da Bahia, com três, quatro andares
e sotéias, obedecem à estética despojada,
Que bem me importava tudo isso! Estou
linear, sintética dos legítimos arranha-céus.
farto de tanta luz crua voltaica. Um dia virá
(BANDEIRA, 2006, p. 34)
e, que um governador bem-nascido dará aos
baianos todos esses bens preciosos. Não Bandeira expôs o que - segundo ele - era a ideia
lhes dê, porem, luz demais, como fizeram a geral daquele momento de moderno e de pro-
este Rio de Janeiro, que parece automóvel gresso, e como isso não era o que ele julgava
noturno de novo rico. (BANDEIRA, 2006, como tal.  As “sensibilidades modernas” do autor
p. 33) não estavam nesse processo de destruição e
EIXO TEMÁTICO 2 substituição dos edifícios e espaços da cidade.
O moderno, para Bandeira, a cidade moderna do
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS autor estava na própria cidade descrita por ele
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES como provinciana, com seus casarões do século
XVII e XVIII, onde predominavam os conjuntos
arquitetônicos coloniais do barroco. Na crônica
De Vila Rica de Albuquerque a Ouro Preto dos es-
tudantes, escrita em 1929 para O Jornal - fruto
da viagem do autor para essa cidade - Bandeira
escreveu: “Para nós, brasileiros, o que tem força
de nos comover são justamente esses sobradões
pesados, essas frontarias barrocas, onde alguma
coisa de nosso começou a se fixar.” (2006. p. 16) 8.
Na mesma crônica o autor continua:

As duas outras cidades que se lhe imanam


nessa feição tradicionalista estão fadadas
a uma renovação sem cura: Bahia e Olinda.
Em ambas ainda é bem forte a emoção es-
pecial ligada aos vestígios dos séculos de-
funtos. Mas Olinda é cada vez mais arrabalde
do Recife. A capital acabará fatalmente por
absorvê-la. Quanto à cidade do Salvador, o
progresso, que tudo renova, fará com ela
o que fez com o velho Rio e o velho Recife.
Nem poderia ser de outro modo. (BANDEI-
RA, 2006, p. 16)

A convivência entre a tradição e o progresso,


o provinciano e o moderno, eram, aos olhos de
Bandeira, cada vez menos possíveis pois o pro-
gresso do início do século XX era representado
como destruidor, e não sob o discurso de me-
lhorias urbanas que acarretaria a formação de
uma sociedade moderna. As cidades do Nordeste
abrigavam ainda características tradicionais,
mais do que a capital federal, tão antiga quanto,
mas já tomada pelo “progresso”. A cidade como
representação de Bandeira diz muito sobre o pro-
cesso de modernização da cidade como artefa-
to material, afinal, em poucos anos9, as cidades

8. A valorização do barroco por Bandeira está diretamente


associada aos desdobramentos do movimento moderno
na criação do SPHAN (Serviço do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional), Bandeira foi, inclusive, membro do
conselho consultivo do órgão criado em 1937, mesmo ano da
publicação de Crônicas da província do Brasil. Os primeiros
tombamentos do SPHAN foram determinados segundo
16º SHCU critérios estilístico, neste caso o barroco colonial. Ver:
30 anos . Atualização Crítica MOTTA, 1987.

1514 9. Bandeira viveu em Recife até 1896 e voltou para a cidade 30


brasileiras estavam se modificando em uma ve- que possam ser confrontados com o discurso de
locidade e poder transformador não vividos até Bandeira, e contribuir com a compreensão de sua
então, tornando esse processo irreversível - e obra dentro desse contexto moderno.
com consequências que valem ser pensadas. As
crônicas de Bandeira apresentam certa narrativa Não basta olhar para a literatura em busca de
do modernismo sobre as cidades, porém, quando elementos e aspectos urbanos óbvios, como des-
são confrontadas com o projeto moderno que crições de bairros, por exemplo. As crônicas não
agia na cidade física, evidencia contradições e devem ser interpretadas como mero reflexo da
tensões entre a cidade como símbolo e a cidade realidade, como prova daquilo que já fora compro-
material, vivida cotidianamente.  vado por outras fontes, mas sim como elemento
capaz de gerar reflexões sobre novos meios de
se pensar a cidade e produzir novas narrativas
sobre ela. Essa leitura nos leva a pensar a rela-
CONSIDERAÇÕES FINAIS ção do indivíduo e de grupos com a cidade, tanto
em sua materialidade, quanto em sua dimensão
Crônicas da província do Brasil surgiu dentro deste simbólica, ou seja, aquela que percebemos coti-
quadro de interesses culturais e viagens, desta dianamente, que assimilamos, e que nos fazem
rede de relações entre os intentos modernos e pensar sobre ela, e sobre as incidências em sua
o território brasileiro por Bandeira. Todo esse tecido e sociedade. Desse modo, busquei lançar
contexto atribui certa singularidade a obra ana- questões e reflexões sobre esse momento da
lisada, e demonstra o envolvimento do autor com história nacional enfatizando nossas cidades,
a produção cultural de sua época (GUIMARÃES, e como essas são - ainda hoje, se quisermos -
2006), enquanto, ao mesmo tempo, criticava o mo- percebidas cotidianamente e confrontadas com
derno como sinônimo de progresso urbano. O que nossas memórias, principalmente quando duas
este artigo propôs foi perceber através dessas temporalidades - a provinciana e a moderna -
crônicas - que evocavam um Brasil com cidades
como mostra Bandeira olhando para o Brasil,
e tradições provincianas - o que Bandeira tinha
estão em conflito.
a dizer e registrar sobre esse processo transfor-
mador de modernização das cidades brasileiras. 

Este artigo apresentou apenas alguns trechos


de crônicas e apontamentos sobre as questões
que as permeiam, vislumbrando a construção
da modernidade tanto nas cidades, quanto na
cultura nacional, nas décadas de 1920 e 1930. Há
ainda outros aspectos a analisar e a aprofundar.
A pesquisa pretende analisar as outras crônicas
de Manuel Bandeira escritas entre 1927 e 1936
- recorte temporal daquelas selecionadas para
o livro - a fim de compreender melhor não só a
seleção para Crônicas da província do Brasil, mas
também conhecer o que mais o autor produziu
nesse período, e como isso dialoga com nosso
objeto de análise. A historiografia geral do pro-
cesso de modernização das cidades brasileiras
- pelo menos aquelas associadas ao livro - como
Rio de Janeiro, Recife, Salvador e São Paulo tam-
bém será aprofundada, em busca de elementos

anos depois, em 1927, se deparando com uma cidade nova,


já não reconhecia a cidade de sua infância. Em apenas três
décadas o “velho Recife” já havia dado lugar ao “novo Recife”.
EIXO TEMÁTICO 2 REFERÊNCIAS
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EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES A cidade quando pensada a partir de sua mul-
tiplicidade de coexistências e sendo percebida
por meio das relações que são mediadas em seu
vídeo-pôster habitar, permite que diferentes formas de ex-
plorar seu viver citadino sejam oportunizadas
através das experimentações que são produ-
CIDADE-SENSÍVEL: zidas em seu espaço heterogêneo, polifônico,
múltiplo, incessantemente atravessado por es-
NARRATIVAS E EXPERIÊNCIAS tímulos e provocações. Nesse sentido, investi-
gar quais relações podem ser construídas com
URBANAS INSPIRADAS NOS a cidade de modo a potencializar o sensível das
experiências que permeiam seus itinerários e
SITUACIONISTAS espaços de vida, utilizando uma metodologia
de análise inspirada nas práticas situacionistas
para compreensão dos espaços urbanos atra-
SENSITIVE CITY: NARRATIVES AND URBAN
vés da construção de um caderno de campo
EXPERIENCES INSPIRED BY SITUATIONISTS
como possibilidade de proporcionar outras nar-
rativas e sensações a serem experienciadas, é o
CIUDAD SENSIBLE: NARRATIVAS Y EXPERIENCIAS objetivo deste artigo. Essa técnica baseia-se na
URBANAS INSPIRADAS POR SITUACIONISTAS psicogeografia, construção de situações e na
teoria da deriva, abrangendo as principais fer-
PIMENTA, Gustavo ramentas utilizadas pelo grupo da Internacional
Situacionista (IS) para entender o espaço urbano
Doutorando em Arquitetura e Urbanismo; Universidade de São
como um campo a se decifrar a partir da experi-
Paulo (FAUUSP); Bolsista CAPES
gustavopimenta@usp.br ência. Além disso, utiliza como recorte espacial
o bairro Centro do município de Viana (ES) para
ocorrência das práticas e construção do cader-
no de campo que será composto por três cama-
das, sendo elas: o relato de campo, o mapa po-
lifônico afetivo e o epílogo sensível, entendidos
como produtos gerados a partir da proposta de
lançamento à deriva. Dessa maneira, esta pes-
quisa busca evidenciar a importância das expe-
riências citadinas, reforçando essa espécie de
flâneur ativa e trazendo novas reflexões sobre
como essa dimensão urbana cotidiana pode ser
discutida a partir de uma perspectiva sensível.

CIDADE EXPERIÊNCIA CAMADAS SENSÍVEL


SITUACIONISTAS

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1518
ABSTRACT RESUMEN

The city, when thought from its multiplicity of co- La ciudad cuando se piensa en su multiplicidad
existences and being perceived through the rela- de coexistencias, permite que diferentes formas
tions that are mediated in its inhabitance, allows de explorar su vida tengan oportunidades a tra-
different ways to explore its city living to be given vés de los experimentos que se producen en su
opportunities through the experiments that are espacio múltiple, polifónico y heterogéneo, ince-
produced in its heterogeneous, polyphonic, mul- santemente atravesado por estímulos y provoca-
tiple space , incessantly crossed by stimuli and ciones. En este sentido, investigar qué relaciones
provocations. In this sense, to investigate which se pueden construir con la ciudad para mejorar la
relationships can be built with the city in order sensibilidad de las experiencias que impregnan
to enhance the sensibility of the experiences sus itinerarios y espacios de vida, utilizando una
that permeate its itineraries and living spaces, metodología de análisis inspirada en prácticas
using an analysis methodology inspired by situ- situacionistas para comprender los espacios ur-
ationist practices to understand urban spaces banos a través de la construcción de un cuaderno
through the construction of a notebook. field, is campo, es el propósito de este artículo. Brindando
the purpose of this article. Providing opportu- oportunidades para que otras narrativas y sensa-
nities for other narratives and sensations to be ciones se experimenten en la ciudad, esta técnica
experienced in the city, this technique is based se basa en la psicogeografía, la construcción de
on psychogeography, construction of situations situaciones y la teoría de la deriva, cubriendo las
and drift theory, covering the main tools used principales herramientas utilizadas por el grupo
by the Situationist International (IS) group to un- Situationist International (IS) para entender el es-
derstand urban space as a field to be deciphered pacio urbano como un campo que se descifrará
from experience. In addition, it uses the Centro de la experiencia. Además, utiliza el barrio Centro
neighborhood in the municipality of Viana (ES) as en municipio de Viana (ES) como un recorte espa-
a spatial cutout for the occurrence of practices cial para la ocurrencia de prácticas y construcci-
and construction of the field notebook that will ón del cuaderno de campo que constará de tres
consist of three layers, namely: field reports, the capas, a saber: informes de campo, mapa polifó-
affective polyphonic map and the sensitive epilo- nico afectivo y epílogo sensible, entendido como
gue , understood as products generated from the productos generados a partir de la propuesta de
drift launch proposal. In this way, this research lanzamiento a la deriva. De esta manera, esta in-
seeks to highlight the importance of city expe- vestigación busca resaltar la importancia de las
riences, reinforcing this kind of active flâneur and experiencias de la ciudad, reforzando este tipo de
bringing new reflections on how this everyday ur- flâneur activo y trayendo nuevas reflexiones so-
ban dimension can be discussed from a sensitive bre cómo esta dimensión urbana cotidiana puede
perspective. ser discutida desde una perspectiva sensible.

CITY EXPERIENCE LAYERS SENSITIVE CIUDAD EXPERIENCIA CAPAS SENSIBLE


SITUATIONISTS SITUACIONISTAS
EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
Buscar compreender a potência sensível da cidade
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
para este artigo, requer-nos inicialmente pré-de-
finir que o entendimento desta cidade ao qual
será experienciada, característica do primeiro
vídeo-pôster
movimento ao qual chamaremos de pré-campo,
refere-se ao modo de pensar o “espaço” segundo a

CIDADE-SENSÍVEL: geógrafa inglesa Doreen Massey (2008), entenden-


do-o a partir de sua coexistência de trajetórias,
NARRATIVAS E EXPERIÊNCIAS ou seja, a multiplicidade presente em um espaço
que se encontra em constante construção e sendo
URBANAS INSPIRADAS NOS mediado pelas relações a serem estabelecidas ou
não, entre seus indivíduos.
SITUACIONISTAS Dessa forma, “narrativas e experiências urbanas
inspiradas nos situacionistas” faz correlação a
SENSITIVE CITY: NARRATIVES AND URBAN postura a ser adotada para entender o segundo
EXPERIENCES INSPIRED BY SITUATIONISTS movimento, na qual corresponde a ida ao campo.
Nesse sentido, a técnica da deriva ao qual será
CIUDAD SENSIBLE: NARRATIVAS Y EXPERIENCIAS utilizada, surge como um dos métodos alternati-
URBANAS INSPIRADAS POR SITUACIONISTAS vos para discutir as relações da vida cotidiana em
geral, principalmente voltadas a arte, arquitetura e
urbanismo, criados pelo grupo da Internacional Si-
tuacionista (IS) fundado pelo filósofo Guy Debord.

O termo “situacionismo”, segundo eles, está as-


sociado as maneiras de como indivíduo deve criar
suas próprias situações de vida, explorando seu
potencial ao máximo. Suas ideias abordavam
reflexões a serem desenvolvidos a respeito do
Urbanismo Unitário (UU), propondo alternâncias
para a percepção da arquitetura e urbanismo,
aproximando-a cada vez mais do cotidiano dos
cidadãos, buscando assim, estimular as emoções
relacionadas à forma de como compreender a
cidade (JACQUES, 2003).

Práticas com ênfase em mobilizar o olhar e a sen-


sibilidade crítica sobre o espaço urbano, eram
alguns de seus objetivos, que proporcionavam
como resultados: extratos de ambientes, unida-
des e atmosferas. Por meio de técnicas como a
própria deriva, a psicogeografia e a construção
de situações, modos alternativos de exploração
eram produzidos, uma vez que o indivíduo deixa-
va-se levar pela cidade através de seus encontros,
passagens, solicitações e determinismos do lugar.

16º SHCU No que tange a experiência, a pesquisa abordará a


30 anos . Atualização Crítica
perspectiva do filósofo Jorge Larrosa que a defini
1520 como: “o que nos passa, o que nos toca. Não o
que se passa, não o que acontece, ou o que toca” traduz numa “não captura pela palavra engaveta-
(LARROSA, 2002, p. 21). Por isso, o lançamento da. Aquela que não pode mudar de lugar” (QUEIROZ
à deriva na cidade atravessado pela experiência, FILHO, 2016 apud BARROS, 2010, p. 43). Ou seja,
suscitará que elementos e subjetividades sejam é através dos percursos experienciados no viver
emergidos, intensificando essa produção da sen- citadino que pensados como elementos indutores
sibilidade urbana. propiciarão que afetos sejam suscitados pela
experiência em campo, reforçado ainda mais pelo
Por isso, investigar quais relações podem ser autor, quando ele diz:
construídas com a cidade de modo a potencia-
lizar o sensível das experiências que permeiam É na intimidade da linguagem e no envie-
seus itinerários e espaços de vida, utilizando uma samento da sensibilidade que surge uma
metodologia de análise inspirada nas práticas “cidade como potência menor”, cidade in-
situacionistas para compreensão dos espaços tensiva, que faz proliferar a vida enquanto
urbanos através da construção de um caderno de encontro de palavras, imagens e afetos,
campo como possibilidade de proporcionar outras enquanto esperança e resistência. Uma
narrativas e sensações a serem experienciadas, cidade-personagem, feita de encontros: ci-
é o objetivo deste artigo. dade-texto, cidade-poesia, cidade-música,
cidade-arte, todas misturadas, dobradas
O sociólogo francês Jean Thibaud (2012) e o fi-
entre si, uma dizendo da outra, sendo todas,
lósofo Jean Augoyard (1979) nos levam a refle-
a mesma. Cidade inventada para não mais
tir sobre esse contexto, ao dizer que as cidades
caber no gesto repetido de um modo único
contemporâneas em meio às variadas transfor-
de dizer-cidade (QUEIROZ FILHO, 2016, p. 9).
mações que vêm sofrendo, estão redesenhando
sua aparência e emergindo dela novos contextos O terceiro e último movimento, denominado pós-
de sensibilidade. Se valer destes preceitos para -campo, é destinado a debater a metodologia
redefinir um pensamento de mundo que se cons- utilizada junto dos dados obtidos, de forma a re-
trói a nossa volta é questionar o imaginário social alizar discussões a respeito das construções dos
dado e tornar propício um novo modo de perceber produtos gerados pelo campo, fazendo análises
a cidade, através da experiência, permitindo que das percepções dos fluxos que cada um pode
outras histórias sejam contadas e dando potência promover a partir da experiência no local, além
ao poder afetivo dos lugares a partir dos seus de, uma correlação entre todos eles.
sentidos.
Por conseguinte, foi utilizado como recorte espa-
Influenciado por trechos do artigo A Cidade e a cial o bairro centro do município de Viana (ES), com
Fabricação do Sensível na Sobremodernidade,
intuito de pôr em prática todos os delineamentos
para adensar essa categoria do sensível adotada,
apresentados, escolhida por ser o lugar na qual eu
o geógrafo Queiroz Filho nos questiona sobre a
– corpo vetor de atuação – residi e, também, por
imaginação como sendo o ponto de partida para
me inspirar a querer assumir essa nova postura
a ativação da sensibilidade e nossa capacidade
de análise para entendimento da cidade.
de agir, trazendo reflexões como “[...] o que se po-
deria dizer de uma [...] poética da cidade? De uma
imaginação espacial feita da poesia?” (QUEIROZ
FILHO, 2016, p. 2). PLURALIDADES URBANAS: ALGUMAS REFLEXÕES
Inspirar-se por essas premissas dadas pelo autor, SOBRE A CIDADE
permite-nos entender que “o olhar percorre as
ruas como se fossem páginas escritas: a cidade É ao iniciar os caminhos que nos levam a
diz tudo o que você deve pensar” QUEIROZ FI- compreender a cidade que se percebe as
LHO (2016, p. 13). Desse modo, é amparado nes- diferentes entradas das quais ela nos permite
ses apoios que utilizo tanto a poética quanto a a experienciar e criar algum tipo de conexão ou
sensibilidade como apoios potencializadores na vínculo. Nesta perspectiva, também é possível
produção dos sentidos da escrita. Um “fazer-ci- entendê-la através de sua “possibilidade de
dade-poema” de QUEIROZ FILHO (2016, p. 13) se existência da multiplicidade, no sentido da
EIXO TEMÁTICO 2 pluralidade contemporânea” (MASSEY, 2008, p.
29), que por sua vez, reflete as distintas varieda-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS des de trajetórias urbanas e coexistências que
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES se entrelaçam dentro do mesmo espaço urbano.

Utilizando o conceito abordado pelos sociólogos


Telles e Cabanes (2006) para trajetória urbana, é
no curso de suas vidas quando o sujeito atravessa
diferentes espaços urbanos interpolados entre
distintos códigos que seus traçados podem nos
informar sobre a tessitura do mundo urbano e os
bloqueios gerados pela experiência no cenário.

Desse modo, ao trazer esse conceito como um dos


apoios para as reflexões, correlaciono-o com a
citação da geógrafa Doreen Massey sobre James
Donald para dizer “não como vivemos na cidade,
mas como vivemos junto a ela” (DONALD, 1999
apud MASSEY, 2012, p. 221), e assim, mostrar como
o espaço urbano dentro das relações de multipli-
cidade viabiliza que o social possa ser construído.

Complementado pelos pensamentos da antro-


póloga Janice Caiafa (2005), essa coetaneidade
intrínseca que está presente em suas variadas
configurações reafirma a diversidade no expe-
rienciar citadino, constituído por seu espaço de
comunicação singular, atravessados pela expe-
riência do estranhamento e o inesperado que a
exposição a diferenças nos impõe.

Nesse sentido, torna-se também importante abor-


dar o entendimento para a escala de análise local
na qual utiliza a categoria de lugar trazida por Mas-
sey, para assim, associarmos que a cidade para a
contextura aqui trabalhada poderia se aproximar
ao espaço entendido como uma “simultaneidade
estórias-até-então” (MASSEY, 2008, p. 190), e os
locais que a integram poderiam ser vistos como
uma “coleção dessas estórias” (MASSEY, 2008,
p. 190). Consequentemente, cada um ao perfazer
seu próprio conjunto de estórias, permite que a
partir de agenciamentos, pontos de conexões,
trajetórias e encontros sejam suscitados.

O geógrafo Queiroz Filho (2010) nos permite re-


lacionar essas coleções ao entendermos o lugar
sempre como uma versão, para dizer que pensa-
mos e agimos nele através das imagens e ideias
que vão sendo construídas ao longo do tempo,
16º SHCU pois ele não existe apenas por si só e também não
30 anos . Atualização Crítica
chega pronto, é somente através dessa conjuntura
1522 que construímos seu conceito.
Assim, o lugar “deixa de ser estabilidade para ser ferenças, sociabilidades dentre muitos outros. Sa-
tarefa inacabada” (QUEIROZ FILHO, 2010, p. 43), ou lienta-se que para sua melhor percepção, faz-se
seja, um produto em constante construção dos necessário tornar-se mercê de seus componentes
“não-encontros, das desconexões, das relações heterogêneos, oportunizando que o imprevisível
não estabelecidas, das exclusões” (MASSEY, 2008, dos espaços abertos possibilite criar e despertar
p. 190). Entender essas experiências que acon- provocações (CAIAFA, 2003).
tecem na esfera local é conhecer suas estórias,
é poder mover-se entre coleções de trajetórias Dentro desta perspectiva, a autora se apropria
e inseri-las dentro de nossas construções rela- dos pensamentos do filósofo alemão Walter Ben-
cionais. jamin para assimilar o desenvolvimento de alguns
modos que são característicos do experienciar
É a partir dessas negociações, mediadas pela do espaço urbano ao qual é representado pelo
intencionalidade da forma de olhar a cidade, que se “choque”, sendo descrito como o resultado de
observa a possibilidade de entendê-la como este uma nova forma de complexidade que nos inter-
lugar de encontros e produtos de “intersecções” cepta por meio da colisão (BENJAMIN, 1995 apud
(QUEIROZ FILHO, 2010, p. 43), de coleções em CAIAFA, 2003).
processo, ou seja, uma constelação particular,
aberta, enviesada por uma eventualidade espa- “Deixar-se afetar por estranhos é de certa forma
ço-temporal. já mudar ou sair um pouco de si” (CAIAFA, 2003,
p. 96). A movimentação pelo trânsito e entre as
Quando a autora cita que “os lugares colocam, de massas urbanas reforça essa dinâmica subjetiva
forma particular, a questão do nosso viver juntos” do choque, fortalece o ritmo construído pela al-
(MASSEY, 2012, p. 216). Cria-se então, a possibi- teridade das cidades e envolve o agente por meio
lidade para compreender que as negociações dessas experiências subjetivas que se contrastam
acontecem no movimento entre os sujeitos em com os meios fechados.
meio ao seu frenesi, propiciando a formação do
caráter elusivo do lugar, por meio de trajetórias Em Comunicação e Expressão nas Viagens de
que se articulam em diferentes ritmos e pulsam Ônibus (2005), Caiafa nos mostra que a cidade
em diferentes compassos. constitui um espaço de descontinuidades, car-
regadas de estímulos que constantemente nos
Janice Caiafa (2003) também contribui nesse provoca, sua grande diversidade e trocas de
contexto, ao trazer que por meio das experiências experiências com desconhecidos permite criar
urbanas são possíveis que sejam despertados condições para que o diálogo exista, resultan-
processos criativos voltados a subjetividade, do em uma situação especial de comunicação a
acrescentando que essas por dispersarem re- partir dessa intensidade gerada pela experiência
corrências do familiar e focos de entidade, intro- urbana. É devido a essa intensidade que se per-
duzem variações nos seus processos, e reforça cebe como a cidade consegue ao mesmo tempo
seu sentido ao dizer que: afastar – devido sua heterogeneidade, excesso de
estímulos, oportunidades e ameaças, e também
Entende-se aqui a subjetividade como atrair – por seu movimento, sua diversidade que
produção, sendo o sujeito apenas um mo- abarca tantos estrangeiros permitindo-a ser de
mento dos fluxos subjetivos em que esses todos ao mesmo tempo.
processos se cristalizam numa identidade
pessoal. Mas mesmo o sujeito é um episódio Nesse sentido, apoiado através dos pensamentos
dessa subjetividade processual, que não é das antropólogas urbanas Cornélia Eckert e Ana
nunca resultado, mas constante, processo Luiza Rocha, para entender a cidade é necessário
(CAIAFA, 2003, p. 92). torna-se parte dela, de seus ritmos, é se perder
na multidão, fundir-se aos espaços, localizar-se
Dessa maneira, a subjetividade aqui atribuída é em meio as prosas citadinas locais, é aprender a
composta pelos mais diversos elementos, como pertencer ao território como sua própria mora-
por exemplo, a experiência com o cruzamento de da, lugar de intimidade e também acomodação,
pessoas estranhas nas ruas que pode ocasionar inteirar e vivenciar o itinerário com afetividade
estímulos modelizados em afetos, empatias, indi- através dos momentos de repouso, é também
EIXO TEMÁTICO 2 experienciar a ambiência e sentir as sensações
e estímulos que são provocados cujos caminhos,
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS cores, cheiros e ruídos nos fazer sugerir percorrer
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES distintas direções e sentidos que se configuram
em seu espaço (ECKERT; ROCHA, 2001).

Portanto, assumir estas premissas para o enten-


dimento da cidade sensível é poder olhá-la a partir
de suas pluralidades e relações construcionais
que viabilizam diferentes maneiras do viver ci-
tadino quando produzidos a partir da experimen-
tação, observação, comunicação e tantos outros
fatores que são proporcionados por seu espaço
aberto e produtor de exterioridade. Entender que
é por meio da categoria de lugar que versões de
histórias podem ser concebidas, ajuda a pensá-
-la em suas vinculações e subjetividades com o
estranhamento e a imprevisibilidade causados
devido a exposição às diferenças a qual está é
incessantemente atravessada.

INSPIRAÇÕES SITUACIONISTAS PARA


DELINEAMENTOS METODOLÓGICOS

A construção da metodologia para este artigo


foi desenvolvida procurando utilizar uma forma
clara de apresentação de todas as impressões e
dados que fossem coletados através das ocor-
rências observadas durante o período de imersão
no campo. Dessa maneira, a Teoria da Deriva,
a Psicogeografia e a Construção de Situações
foram empregadas como eixos balizadores e ins-
piradores para produção do Caderno de Campo
que será utilizado como método para investigar
os espaços de vida urbanos quando vinculados
com as experiências proporcionadas por estes
devires.

Os apoios centrais destes delineamentos são


embasados, primeiramente pela Arquiteta Pa-
ola Jacques, na qual retoma que o movimen-
to da Internacional Situacionista já anunciava
pensamentos voltados para a psicogeografia,
à deriva e a construção de situações. “Sabe-se
que no princípio os situacionistas pretendiam, no
mínimo, construir cidades, o ambiente apropriado
para o despertar ilimitado de novas paixões.
16º SHCU Porém, como isso evidentemente não era tão fácil,
30 anos . Atualização Crítica
vimo-nos forçados a fazer muito mais” (JACQUES,
1524 2003, p. 18).
Dessa maneira, o conceito utilizado para com- A experiência, a possibilidade de que algo
preender a deriva, baseia-se por se tratar de uma nos aconteça ou nos toque, requer um gesto
postura de passagem rápida por variados lugares de interrupção, um gesto que é quase im-
que se mistura com a influência do cenário, enten- possível nos tempos que correm: requer
dendo o espaço como um campo a se decifrar a parar para pensar, parar para olhar, parar
partir da experiência, pois aqueles que se permi- para escutar, pensar mais devagar, parar
tem percorrer por seu trajeto possuem como fi- para sentir, sentir mais devagar, demorar-se
nalidade emergir deles elementos ao caso. Assim, nos detalhes, [...] abrir os olhos e os ouvidos,
o andar da deriva demanda que seus indivíduos falar sobre o que nos acontece, aprender a
estejam abertos ao reconhecimento dos efeitos lentidão, escutar os outros, cultivar a arte do
da natureza psicogeográfica e à afirmação de um encontro, calar muito, ter paciência e dar-se
comportamento lúdico-construtivo. tempo e espaço (LARROSA, 2002, p. 24).

Para chegar a este cenário, os situacionistas Debruçado também pelos pensamentos do geó-
verificaram que a psicogeografia estava direta- grafo Marandola Jr. para corroborar com os apon-
mente ligada à deriva, sendo aqui definida como tamentos realizados e poder perceber ainda mais
um “estudo dos efeitos exatos do meio geográfi- o campo “optei por caminhar e ouvir a cidade,
co conscientemente planejado ou não, que age deixando-me, tanto quanto possível aberto a ou-
diretamente sobre o comportamento afetivo dos vir sua revelação” (MARANDOLA JR., 2008, p. 1).
indivíduos” (JACQUES, 2003, p. 22). Podendo as- O autor ainda complementa seu pensamento da
sim, ser entendida como uma geografia afetiva, seguinte maneira:
subjetiva, que tem como fim a busca por uma
cartografia dessas ambiências psíquicas ema- Busquei nos encontros e na prática de um
nadas através dos lançares à deriva. andarilho, andando e contemplando inqui-
rindo dos ambientas e das paisagens, as
A autora faz uma relação de ambos em seu livro diversas “londrinas”, ou seja, as diversas
Apologia da Deriva, ao dizer que “a psicogeografia experiências e existências da e na cidade
estuda o ambiente urbano, sobretudo os espaços (MARANDOLA JR., 2008, p. 2).
públicos, através das derivas e tentava mapear os
diversos comportamentos afetivos diante dessa Dessa maneira, seja como território de passagem,
ação básica do caminhar pela cidade” (JACQUES, chegada ou algo ainda para acontecer, o sujeito
2003, p. 22). da experiência se define por sua passividade,
receptividade e disponibilidade, por sua abertura
Por conseguinte, a construção de situações é (LARROSA, 2002). Com isso, os efeitos psicogeo-
apresentada como uma realização continua que gráficos encontram maiores ascendências para
surge através das passagens de um ambiente para serem exteriorizados pelos espaços da cidade,
o outro, bem como os comportamentos provoca- tornando este sujeito “ex-posto”, e também mais
dos e alterados que eles podem criar. O pensa- propício as vulnerabilidades presentes, comple-
mento situacionista estaria então embasado na mentando ao citar que:
ideia de construção de situações entendendo-a
como “um momento da vida, concreta e delibe- Por isso é incapaz de experiência aquele
radamente construída pela organização coletiva que se põe, ou se opõe, ou se impõe, ou se
de uma ambiência unitária e de um jogo de acon- propõe, mas não se ex-põe. É incapaz de
tecimentos” (JACQUES, 2003, p. 21). experiência aquele a quem nada lhe passa,
a quem nada lhe aconteça, a quem nada lhe
No que diz respeito ao entendimento para a for- sucede, a quem nada o toca, nada lhe che-
ma com que a “experiência” será adotada para a ga, nada o afeta, a quem nada o ameaça, a
realização de tais práticas, é assumido os pensa- quem nada ocorre (LARROSA, 2002, p. 25).
mentos do filósofo Larrosa, ao qual compreende
que “a experiência é o que nos passa, o que nos Marandola Jr. explica que as diferentes londrinas
toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou são criadas pela forma com que cada indivíduo
o que toca” (LARROSA, 2002, p. 21). Acrescentando permite que as infinitas experiências da cidade o
ainda, como mostra o trecho abaixo: interpelem. Assim, correlacionando com o saber
EIXO TEMÁTICO 2 da experiência tratada por Larrosa, temos que
este “é um saber que não pode separar-se do in-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS divíduo concreto em quem encarna” (LARROSA,
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES 2002, p. 27), ou seja, as diferentes londrinas que
existem são frutos das várias experiências e subje-
tividades registradas da cidade por cada indivíduo.

Por essa razão, os caminhos a serem percorri-


dos terão a experiência como carga adquirida
através do trajeto realizado, inspirado por eixos
situacionistas, como fruto dessa vivência que
será revelada pelos rumos que a deriva tomará
para o descobrimento da “minha Viana”. Dessa
forma, o Caderno de Campo será constituído por
três camadas que irão compor todo o seu corpo
de análise, sendo entendido aqui como:

Camada 01 – Relatos De Campo

Descreverão inicialmente as experiências e ob-


servações auferidas pelo pesquisador durante
o caminho trilhado na deriva, afetado pela sen-
sibilidade psicogeográfica que as situações ao
acaso propiciarão a aflorar. As narrativas que
serão geradas configurarão os frutos poéticos
dos desvelamentos percebidos no espaço urbano
que terá o corpo como agenciador.

A ideia de engajamento desse corpo por meio


do percurso aqui tratado pretende colocá-lo em
um jogo onde sua presença é quem o legitima na
busca por essas geografias intersticiais, que são
reconhecidas por um território que não se encerra
em medidas métricas, mas sim permite que a cor-
poreidade no devir de seu movimento a reinvente.
O processo de imersão terá um ponto de partida
já pré-estabelecido que servirá de marco inicial
para a aplicação dos dispositivos propostos, por
conseguinte, as formas de análise para o caderno
terão como base as seguintes premissas:

I - Um lançamento à deriva tendo duração míni-


ma de duas horas com seu trajeto mapeado pelo
aplicativo Runtastic;

O uso do aplicativo tem o intuito de servir como um


marcador do espaço-tempo durante o caminho a
16º SHCU ser trilhado, dessa forma, enquanto a rota acon-
30 anos . Atualização Crítica
tecerá mediante protocolos já pré-determinados,
1526 todo o percurso do trajeto, assim como o tempo
de duração, ficarão registrados como dados para Este mapa terá como forma a representação
posteriormente serem transpassados para um do trajeto realizado e mapeado pelo aplicativo
mapa escalonado em tamanho adequado. Runtastic e sua elaboração será através de uma
linha tracejada que corresponde ao início do
II - O lançamento será realizado através do an- lançamento proposto e seu respectivo horário,
dar a partir do contrafluxo da grande massa que bem como, para o seu término. O tamanho das
estiver se locomovendo na cidade, categorizado palavras descritas ao longo desse percurso indi-
aqui como “deriva do contrafluxo”; cará a intensidade das quais elas serão sentidas e
emergidas em meio aos diferentes fluxos urbanos
O fundamento para a escolha deste protocolo se perpassados.
dá pela procura no olhar de um trajeto que vai de
confronto ao que a maioria das pessoas esta- Dessa forma, Rolnik (2006, p. 23) compreende
rão realizando no momento. Assim, em meio ao que esta maneira de direcionamento metodo-
vai e vem diário, perpassado pelos movimentos lógico exige que o indivíduo “esteja mergulhado
efêmeros que caracterizam o espaço urbano, é nas intensidades de seu tempo e que, atento às
utilizando o corpo como um vetor de ativação linguagens que encontra, devore as que lhe pa-
que modifica e ressignifica o espaço, que vejo no recerem elementos possíveis para a composição
contrafluxo uma oportunidade de ver outros mo- das cartografias que se fazem necessárias”. A
vimentos presentes nele que caracterizam suas maneira como a autora descreve as caracte-
relações diárias de uso e ocupação dos espaços rísticas da subjetividade serão utilizados como
de vida, pois “são as apropriações e improvisações instrumentos de estímulo para a produção deste
dos espaços que legitimam ou não aquilo que foi mapa fundamentado em três grandes movimen-
projetado, ou seja, são essas experiências do tos, sendo eles:
espaço pelos habitantes, passantes ou errantes
que reinventam esses espaços em seu cotidiano” I - Movimento I: no encontro, os corpos afetam
(JACQUES, 2008, p. 2). e são afetados, da mesma forma como atraem e
se repelem, esses efeitos terão como resultante
uma mistura de afetos;

Camada 02 – Mapa Polifônico Afetivo II - Movimento II: corpo vibrátil, caracterizados


pelas intensidades da qual aquele corpo busca
formar uma máscara para se apresentar ou ex-
Terão como base a forma de entendimento da psi-
teriorizar;
canalista Suely Rolnik para representar as marcas
deixadas por esses percursos em meio à exposi- II - Movimento III: no desejo, processos de simu-
ção do observador, ou seja, a corpografia subjetiva lação que são correlacionados a territorialização
alcançada. A metodologia de desenvolvimento e desterritorialização, vistos aqui como respec-
para sua aplicação neste trabalho entende-o tivamente, o nascimento de mundos e mundos
como um conjunto de caminhos a serem percorri- que se acabam.
dos, pois sua construção será realizada mediante
os agenciamentos que a “ex-posição” à deriva Por isso, a produção do mapeamento afetivo será
propuser a incitar, permitindo que os elementos construída mediante o encontro desses três mo-
pelo campo aflorem e possibilitem representá-lo. vimentos que suscitarão em seus caminhos as
subjetividades manifestadas pelo caminhar a
O mapa será fruto da decorrência das experi- ex-posição proporcionado pela deriva.
ências ocorridas na cidade sendo permeadas
pelas sensações do lançamento proposto, ten-
do como resultado um registro afetivo por meio
das palavras que mais forem percebidas tanto Camada 03 – Epílogo Sensível
pelas pessoas que trafegam os espaços de vida
percorridos, quanto para o próprio pesquisador A criação da “Minha Viana” será realizada ao final
e suas percepções a respeito dessa imersão à da deriva proposta no caderno de campo junta-
deriva urbana. mente com um poema. O intento deste processo é
EIXO TEMÁTICO 2 que ao final dele, surja uma imagem que se apre-
sente como epílogo do protocolo de experiência
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS construído durante o percurso.
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
São composições livres, utilizando apenas inspi-
rações com estéticas croquizadas em suas elabo-
rações. As escolhas dos poemas terão inspirações
no poeta Manoel de Barros, por sua sensibilidade
e simplicidade na maneira de olhar e permitir que
novos mundos pudessem ser recriados a partir
da forma como os desejava vê-los.

CADERNO DE CAMPO (NOTAS E EXPERIMENTAÇÕES)

Camada 01 – Relato De Campo

A gente descobre que o tamanho das coisas


há de ser medido pela intimidade que temos
com as coisas. Há de ser como acontece
com o amor. Assim, as pedrinhas do nosso
quintal são sempre maiores do que as ou-
tras pedras do mundo. Justo pelo motivo
da intimidade (BARROS, 2015, pag. 124).

Inspirado por esse trecho do poema do escritor


Manoel de Barros, retirado de seu livro Memórias
Inventadas – As Infâncias, introduzo esse mo-
vimento com um olhar singelo, estando aberto
para ver e sentir essa alteridade urbana ao qual
me propus a conhecer, encontrar nesse grande
quintal pedaços de intimidade que ainda não me
foram apresentados e que agora, somente depois
de grande pude me permitir começar a brincar.

Assim, o primeiro lançamento categorizado como


Deriva do contrafluxo aconteceu numa terça-feira,
por volta das dezoito horas e trinta minutos, com
uma duração total de aproximadamente duas ho-
ras. Chegando ao marco inicial pré-estabelecido
comumente também chamado de “pracinha”, liguei
o marcador do aplicativo Runtastic para registro
do tempo e esperei alguns segundos para inicia-lo.

Nesse momento, o local ao qual eu me encontrava


situava-se próximo a um ponto ônibus que estava
um pouco cheio, nele duas mulheres sentadas
conversavam e riam muito descontraídas, gesti-
16º SHCU culavam durante as falas e em alguns momentos,
30 anos . Atualização Crítica
eu mesmo sem saber sobre qual assunto estava
1528 sendo tratado, acabava dando algumas peque-
nas risadas, pois o assunto parecia estar muito ao ouvir de longe alguns ruídos que a cada passo
divertido. que dava tornavam-se mais familiarizados.

Começando o trajeto, sigo reto contra o fluxo de Devagarzinho, mas aumentando continuamente,
uma quantidade considerável de pessoas que se logo fui interpelado por barulhos de buzina, e com
deslocam em direção ao ponto de ônibus. Ainda ele: gritos de crianças, cadeiras sendo arrastadas,
na pracinha, vejo um ambulante que começará a pessoas rindo alto e conversando, vários sons de
finalizar a montagem de seu carro de churrasqui- celulares que me deixavam perdido, motocicletas
nho e dispor suas mesas para melhor acomodação acelerando e assim por diante... Então, de repente,
daqueles que gostariam de se resguardar um deparei-me com o fato de que estava passando
tempo ali. Nesse curto intervalo de tempo, uma pela Rua Principal.
pequena aglomeração de pessoas começava a
aparecer; estavam curiosas, falavam inicialmente “registros urbanos dois”
baixinho e depois mais à vontade, sentavam-se
à mesa. — Onomatopeia I: FUM! FUM!

“registros urbanos um” — Onomatopeia II: BLAH! BLAH! BLAH!

— Cliente I: “Gato” o churrasquinho já está — Onomatopeia III: TRIM! TRIM! (...) TRIM!
pronto? Aproveita e traz aquela gelada, por TRIM!
que hoje já vai começar o aquecimento;
— Onomatopeia IV: HAHAHAHAHA
— Comerciante: Tá quase, daqui 5 minuti-
Nesse momento as possibilidades para seguir
nhos eu levo aê, pode ser a barrigudinha?
um novo percurso eram muito variadas, então,
— Cliente I: Tá ótimo, valeu! ao descer pela esquerda, logo percebi em como
as configurações eram diferentes, seja pelas se-
— Cliente II: “Gato” tem churrasquinho de quências das luzes dos postes ou das casas, o
frango? silêncio era alto e praticamente sem ninguém. As
ruas estavam um pouco mais escuras e desertas
— Comerciante: Tem sim, minha flor; se comparadas com as anteriores, contudo, de
repente, ouço um som de longe, paro e espero um
— Cliente II: Quanto custa?
instante. Apesar deu não ter entendido nada do
— Comerciante: Esse é só três reais; que estava sendo ressoado, aquele som que aos
poucos foi identificado como de uma conversa me
— Cliente II: Me vê um então, por favor! Pra trouxe alívio, era o suficiente para fazer com que
levar tá! eu me sentisse seguro em meio àquela escuridão.

Diante disso e seguindo caminho, o dia começou a Ao fim desta parte, desci um declive seguindo o
anoitecer e as atividades pendulares já não se for- contrafluxo dos carros e pessoas, e logo, senti
mavam mais com tanta frequência, o movimento uma outra grande mudança nos ambientes. Pois,
da rua após sair da pracinha já não se apresentava enquanto a última fazia eu me sentir enclausurado,
tão denso, estava solitário, as casas com seus a de agora já me deixava mais livre; tinham muitos
logradouros grudados na rua mantinham suas sons, pessoas descendo e subindo, apesar do
janelas fechadas e apenas os barulhos das rajadas tráfego bem congestionado.
de vento predominavam este curto percurso.
Desci-o todo e cheguei em uma rua na qual me
Logo em seguida, virei à direita para subida de um surpreendi ao ver a quantidade de crianças que se
morro praticamente acompanhado pelos pontos divertiam por lá. Elas corriam por todos os lados,
de luzes dos postes que davam a impressão de eram ligeiras, estavam brincando de pique-pega.
estarem me guiando a algum lugar. Assistido so- Olhavam-me com curiosidade, mas não deixavam
mente pelo meu silêncio e meu corpo em meio à de se concentrar na partida, as mães conversavam
cidade, senti isso sendo amenizado aos poucos umas com as outras sentadas nos banquinhos de
EIXO TEMÁTICO 2 madeira, algumas de longe ficavam no celular, um
pagode alto saia de uma das casas, a rua estava
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS animada.
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
“registros urbanos três”

Não era amor, ôh, ôh


Não era
Não era amor, era cilada cilada cilada cilada

Canção de Molejo - Cilada

Passando por ela e chegando até a rua mais pró-


xima do rio, senti drasticamente uma nova dis-
tinção entre ambas. Pois, além do clima que já
parecia estar mais frio devido à proximidade com
a água corrente, o caminho era quieto, apenas
os sons dos grilos e da água sussurravam por
todo o percurso. E ao seu final, um caso muito
interessante aconteceu, pois eu tinha a opção
de voltar ou seguir dando a volta pelo lado mais
escuro do rio que passava por debaixo da ponte
usada pelo trem. Nesse exato momento, duas
pessoas saíram deste caminho, ele era totalmente
deserto, escuro e assustador. Pensei em relutar,
mas decidi seguir a trajetória à qual a deriva me
fazia lançar.

Rapidamente saindo, já fui seguindo em direção


até o local das quadras poliesportivas, era muito
visível o contraste entre os caminhos. A aglo-
meração das pessoas aqui aumentava de uma
maneira tão grande que era impossível entender
exatamente quais os diálogos que se formavam,
por que os ecos emitidos das quadras tomavam
conta de todo o lugar.

“registros urbanos quatro”

— Criança: Joga a bola lá no meio pro Caio


fazer o gol

— Mãe: Marquinhos cadê a sua bola? Vai


procurar agora!

(Barulhos de crianças correndo e gritando


pela quadra)

— Mãe: Marcos você achou?

— Pai: Não dá pra perder pra esse time não!


16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
Durante aquele trajeto, uma rua em especial me
1530 chamou a atenção, apesar de estreita e apertada,
ela configurava vários pontos afetivos do seu referente a construção de situações propostas
início ao fim. Nela duas mulheres conversavam pelo contrafluxo.
sobre o dia, varriam a calçada e interagiam, uma
menina uniformizada sentada em uma cadeira de Durante o trajeto conforme o mapa registrado
madeira estudava a matéria aprendida na escola, pelo aplicativo, verificou-se que o corpo vetor se
e mais a frente, outra senhora lavava sua varanda movimentou numa velocidade mediana com picos
e cantava seu forró eletrônico. de aceleração. Percebeu-se que a maioria dos
caminhos em vermelhos eram acompanhados
Por fim, após determinado tempo perpassando pelas sensações de medo, escuridão e silêncio,
diversas passagens, a deriva me retomou a Rua diferentemente das outras que mostravam am-
Principal ao qual eu havia passado logo no início. biências mais sociáveis, aonde o caminhar da-
Chegando ao fim da proposta pretendida por volta va-se com mais calma e tranquilidade, devido a
das vinte horas e trinta e três minutos, desliguei presença de uma aglomeração considerável de
o marcador de tempo do aplicativo, como mostra pessoas, conversas e deslocamentos.
a Figura 01, em que é possível ver o mapeamento

Figura 01 – Percurso Runtastic da deriva do contrafluxo. Fonte: (Runtastic, 2019)

Dessa maneira, foi criado um mapeamento dessas


trajetórias baseados na cartografia do Centro de
Viana (Figura 02), com intuído de permitir que o ca-
minho traçado seja melhor delineado e analisado.
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

Figura 02 – Mapeamento das trajetórias com base na car-


tografia do Centro. Fonte: Elaborado pelo autor (2019)

Após realizadas as relações do percurso da deriva


do contrafluxo com as informações fornecidas pelo
aplicativo, foi criado o mapa de polifonias afetivas
(Figura 03), a partir das variâncias entre os ambien-
tes e a maneira como se apresentavam por meio da
minha experiência como corpo de mediação, assu-
mindo uma essa nova postura como pesquisador.

Assim, mergulhado nesta malha afetiva, identifi-


16º SHCU quei sensações que caracterizavam as relações
30 anos . Atualização Crítica
construídas advindas dos vínculos formados pelas
1532 práticas de sociabilidade e por vezes, momentos
de impessoalidade e inquietude como alguma das medo, insegurança, silêncio e solidão fossem forte-
impressões captadas pelas práticas voltadas para mente manifestadas nos percursos aonde o número
o convívio com a indiferença. de pessoas na rua era reduzido, ou com pouca ilu-
minação, ou desconhecidos e distantes do habitual.
Dessa forma, lugares como, por exemplo: a bar-
raca de churrasquinho da praça, o grande mo- Por isso, ao final deste processo, criei uma com-
vimento de pessoas e os variados sons da Rua posição artística ao qual denominei de epílogo
sensível do contrafluxo (Figura 04), como essa
Principal, as atividades de recreações e conversas
versão da Minha Viana surgida em meio as minhas
configuravam espaços com ambiências dotadas
experiências na cidade, conjuntamente com as
de diálogos, segurança e calmaria. Essa multipli-
impressões obtidas pelos cenários.
cidade de vozes urbanas pelo qual a cidade se co-
municava, permitia que a configuração dos seus A ilustração traduz os movimentos de convergên-
espaços de vidas fosse investigada em meio às cia e divergência entre as descidas e subidas das
trajetórias urbanas realizadas naqueles instantes. ruas, o frenesi presente nos encontros e desen-
contros suscitados pelos diferentes choques e
Contudo, a sensação de vagar pela deriva tendo alteridades urbanas. Além disso, também busca
como aporte a ex-posição, também suscitou em refletir na experiência de um sujeito imerso em
ambiências das quais sentimentos carregados de camadas de escritas e sonoridades sobrepostas.

Figura 03 – Camada 02: Mapa Polifônico Afetivo do Contrafluxo. Fonte: Elaborado pelo autor (2019)
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

Figura 04 – Camada 03: Epílogo Sensível do contrafluxo.


Fonte: Elaborado pelo autor (2019). Conteúdo: BARROS,
2005, p. 31.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1534
Algumas notas e suas REVERBERAÇÕES

Assim, inspirado pelas palavras de Queiroz Filho,


quando ele diz que “interessa-me, portanto, aquilo
que escapa” (QUEIROZ FILHO, 2015, p. 2), este
artigo se propôs a investigar como se dão as cons-
truções relacionais dos espaços de vida urbanos
a partir de sua multiplicidade inspirados por uma
construção metodológica apoiada por métodos
situacionistas. Nesse sentido, é utilizando esse
flâneur ativo, que tem como finalidade recriar o
cotidiano de forma mais sensível que novas re-
flexões sobre a cidade passam a ser discutidas
e experienciadas.

Dessa maneira, a produção do Caderno de Campo


atravessado experiência pode ser entendida pelo
modo como Canevacci aborda sobre o estrangeiro
e o familiar, buscando a partir da análise etnográ-
fica, revelar o que está mascarado. É ao se distan-
ciar do habitual, utilizando uma perspectiva oblí-
qua e polifônica, que surge a arte de interpretar e
“estranhar toda a familiaridade possível com a ci-
dade, e ao mesmo tempo, familiarizar-se com suas
múltiplas diferenças” (CANEVACCI, 2004, p. 30).

Assim, é adotando essa “observação observadora”


(CANEVACCI, 2004, p. 31) que vê a si próprio como
sujeito que observa o contexto, dotado de um
olhar oblíquo que tem o poder de sobrevoar além
da impassível frontalidade do que se está anali-
sando que compreendemos os Cadernos como
essa força para desviarmos o olhar do familiar e
emergir deles novas reflexões das relações que
ocorrem em seu espaço.

A construção de suas camadas, como mostra a Fi-


gura 05, retoma conceitualmente a maneira como
Massey (2008) nos aponta sobre o “aqui” e o “agora”,
aonde aquele é visto onde as narrativas espaciais
se encontram, conjunturas de trajetórias que têm
suas próprias temporalidades. E este, como essa
sucessão de encontros, acumulações das tramas
que formam uma história, e consequentemente
gerando os retornos que são determinados pela
forma como afetamos e somos afetados pelo
outro, ou seja, essa camada com acréscimo de
novas passagens. Nesse sentido, tencionadas por
esses “aqui’s” e “agora’s” as camadas propiciam a
possibilidade desses retornos dotados de afeta-
mentos e sensibilidades.
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

Figura 05 – Sobreposição das Camadas 01, 02 e 03. Fonte:


Elaborado pelo autor (2019).

Dessa forma, após os dados coletados e o caderno


produzido, observou-se que as dinâmicas refe-
rentes à construção da deriva, suscitavam enten-
dimentos divergentes do modo como seu espaço
urbano era ocupado. Assim, entendeu-se que:

16º SHCU Na Deriva do contrafluxo, foram observados lu-


30 anos . Atualização Crítica
gares com grande movimento de pessoas e sons,
1536 como a barraca de churrasquinho na praça, a rua
principal com seus comércios e as atividades de de quantidade de encontros, passagens, relatos,
recreação ao decorrer do trajeto, constituindo subjetividades, alteridades e histórias. As expe-
ambiências com multiplicidade de vozes e en- riências realizadas a partir da construção dos
contros pela cidade, proporcionando a sensação Cadernos de Campo inspiradas pelas práticas
de segurança e calmaria. Todavia, alguns pontos dos situacionistas foram necessárias para nos
também suscitaram impressões carregadas de dizer sobre o campo e trazer elementos novos
inquietude e medo, como o trajeto pela ponte, e a para discussão, fazendo-nos refletir sobre as
saída das quadras poliesportivas, principalmente distintas maneiras de perceber a cidade de Viana,
por haver menos aglomeração de pessoas, baixa criando, assim, a “Minha Viana” como fruto do
iluminação e ausência de elementos que tornas- lançamento proposto.
sem aqueles cenários mais sociáveis.
O método utilizado foi de grande importância
Ao analisar esta deriva, percebe-se como a praça, para o resultado, pois permitiu adentrar-se ao
serviu como um grande ponto integrador de vá- conhecimento da cidade a partir de um novo olhar,
rias relações que podem ser estabelecidas entre não usando de versões midiáticas e predetermi-
seus agentes, reforçando essa característica de nações estabelecidas locais para influenciar no
política de inter-relações e permitindo que o social comprometimento com o estudo da pesquisa e
possa ser construído, a partir dos balizamentos e seu desenvolvimento.
apoios conceituais trazidos pela geografa Massey.
Além disso, cessada por promover alteridades, Apesar dos percalços, a metodologia foi potente
são nos encontros e exposições que Janice Caiafa no sentido de criar uma análise e composição do
também nos aponta em como essas mediações centro urbano de Viana inspirada pelos situacio-
tornam-se mais fortes durante o seu decorrer. nistas, ajudando a propor uma versão para esse
bairro e proporcionando o contato com diversas
Este lançamento à deriva provocou, principal- vozes que narram a experiência do lugar e, a partir
mente pelas surpresas que cada caminhar pode dele, recriam seus itinerários.
suscitar e devido a intensidade como se apresen-
tava, fazendo-me ser atravessados por diversas Reforço que as experiências realizadas caracteri-
mediações que ocorriam constantemente em seu zam aquele momento no qual a deriva me propor-
espaço aberto e polifônico. cionou, assim como Paola Jacques nos remete
a ideia do arquiteto errante que descobre nos
Verificou-se que no início do trajeto enquanto desvios aquelas histórias que não são facilmente
várias pessoas saiam para suas casas, a praça reveladas pela cidade. Não sendo uma taxonomia
permanecia cheia, as pessoas do ponto de ôni- de como o lugar se apresenta, pois cada pessoa
bus sentiam-se atraídas pelo churrasquinho. O que percorrer os mesmos trajetos, seja nos mes-
céu começava a escurecer e nesse momento um mos horários ou distintos, irá captar distintas
intenso fluxo começava a ser aglomerar. interpelações no seu corpo vetor.

Muitas atividades pendulares que ocorriam dentro A forma de apresentação dos resultados deste
do município, finalizavam-se por volta das dezoito trabalho foi pensada de modo que, primeiramente,
horas, atestando esse intenso esgarçamento pudesse ter, a partir do relato de campo atraves-
das atividades e serviços prestados por agentes sado pela experiência uma narrativa mais afetiva
não-locais dentro do bairro. Já ao passar pela e permeada de sentidos e sensações, envolvendo
Rua Principal, o adensamento de carros mistu- as pessoas e os sons que faziam parte da compo-
rava-se com as construções dos prédios mistos sição dos trajetos, o que constituiu os registros
que cerceavam todo seu trajeto, envolvidos por urbanos.
todas aquelas “vozes”, como aponta Canevacci
(2004), que remetiam a essa polifonia urbana, ou Depois disso, o mapa polifônico afetivo e o epílogo
seja, sua multiplicidade de sons. sensível, afetados pelas impressões emergidas do
relato de campo, possibilitou uma maior aproxima-
Dessa maneira, essa metodologia serviu para ção para esse conhecimento qualitativo fornecido
assumir uma nova postura frente às vivências pelo recorte espacial analítico escolhido. Sendo
realizadas, tendo como reverberações uma gran- assim, compreendeu-se que esses dados permi-
EIXO TEMÁTICO 2 tiram que uma versão variante de Viana – à qual
denominei de “Minha Viana” – pudesse ser criada
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS como fruto de tais experimentações na cidade.
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
Assim, este trabalho possibilitou uma nova cons-
trução relacional com a cidade, criando uma nova
visão, mais polifônica e aberta a possibilidades,
aos acasos, às pluralidades, aos encontros, aos
desencontros, às passagens, às “ex-posições” e
a aproveitar mais daquilo que muitas vezes pode
nos passar despercebido.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1538
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imaginário e experiência urbana. Geografia, v.
EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Este artigo discute a representação literária da
cidade de Curitiba em obras do escritor Dalton
Trevisan, sua relação com transformações ur-
vídeo-pôster banísticas nessa cidade e a eventual apropria-
ção dessa simbiose por grupos políticos locais.
São analisados seis livros de Trevisan: Novelas
CURITIBA ANOS 1950 - 1990: nada Exemplares, Cemitério de Elefantes, O
Vampiro de Curitiba, Mistérios de Curitiba, Pão
REPRESENTAÇÃO LITERÁRIA e Sangue e Em Busca de Curitiba Perdida, per-
mitindo uma discussão por décadas entre 1950
E APROPRIAÇÕES DA GESTÃO e 1990. As conclusões sugerem: duas versões
da mesma cidade, a Curitiba de marginais e pro-
PÚBLICA blemas sociais de Trevisan e “Curitiba modelo”,
feita de modernidade, de planejamento e solu-
ções inovadoras; e uma apropriação política da
CURITIBA IN THE 1950’S THROUGH 1990’S:
narrativa literária que não corresponde àquilo
LITERARY REPRESENTATION AND POLITICAL
intencionado pelo autor em suas narrativas.
INTERESTS

CURITIBA EAÑOS 1950 - 1990: REPRESENTACIÓN LITERATURA E CIDADE CURITIBA DALTON TREVISAN
LITERARIA Y INTERESES POLITICOS

Jazar, Manoela Massuchetto


Programa de Pós-Graduação em Gestão Urbana, Pontifícia
Universidade Católica do Paraná
manoelamj.arq@gmail.com

Ultramari, Clovis
Programa de Pós-Graduação em Gestão Urbana, Pontifícia
Universidade Católica do Paraná
ultramari@yahoo.com

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1540
ABSTRACT RESUMEN

This article discusses the literary representation Este artículo analiza la representación literaria
of the city of Curitiba based on the literary works de la ciudad de Curitiba basada en las obras lite-
of Dalton Trevisan. It seeks to establish a compa- rarias de Dalton Trevisan. Busca establecer una
rison between the urban and social characteristi- comparación entre las características urbanas y
cs presented by this author and the urban trans- sociales presentadas por este autor y las trans-
formations faced by the city. Six Trevisan books formaciones urbanas que enfrenta la ciudad. Se
are analyzed: Novelas nada Exemplares, Cemi- analizan seis libros de Trevisan: Novelas, nada
tério de Elefantes, O Vampiro de Curitiba, Misté- Ejemplar, Cementerio de elefantes, El vampiro
rios de Curitiba, Pão e Sangue, and Em Busca de de Curitiba, Misterios de Curitiba, Pan y sangre
Curitiba Perdida, allowing a discussion for deca- y En busca de Curitiba Perdida, permitiendo una
des between 1950 and 1990. Conclusions suggest discusión durante décadas entre 1950 y 1990. Las
the existence of two versions of the same city, the conclusiones sugieren la construcción de dos
Curitiba of Trevisan’s marginalized people and the versiones de la misma ciudad: el Curitiba de Tre-
Curitiba as a “city model”, planned, well resolved; visan es marginal y problemático, mientras que el
and an unproper political appropriation of literary “modelo Curitiba” es moderno, planificado y bien
narratives. resuelto; y una apropiación política indebida de la
narrativa literaria.

LITERATURE AND CITY CURITIBA DALTON TREVISAN


LITERATURA Y CIUDAD CURITIBA DALTON TREVISAN
EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
Dalton Trevisan (1925 - ), considerado um dos mais
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
importantes contistas brasileiros contemporâ-
neos, com linguagem coloquial e concisa, cria
personagens de significado universal a partir
vídeo-pôster
de retratos de sua cidade, Curitiba. Sua crítica
apurada se revela por meio de cenários urbanos

CURITIBA ANOS 1950 - 1990: onde transitam personagens em cotidiano pre-


enchido por conflitos e problemas pessoais e
REPRESENTAÇÃO LITERÁRIA sociais. “Dalton devora a Curitiba moderna para,
através de suas narrativas, digerir sua alma. Para
E APROPRIAÇÕES DA GESTÃO entender Dalton Trevisan, é preciso entender Curi-
tiba” (CASTELLO, 2012, p. 8). Da mesma forma,
PÚBLICA na tomada da literatura como fonte alternativa
e complementar para se entender a cidade, ou,
minimamente, provocar um debate sobre ela, é
CURITIBA IN THE 1950’S THROUGH 1990’S: possível afirmar que o retrato de Curitiba fica mais
LITERARY REPRESENTATION AND POLITICAL completo se considerada a percepção literária
INTERESTS desse autor (ULTRAMARI; JAZAR; PEREIRA, 2018).

CURITIBA EAÑOS 1950 - 1990: REPRESENTACIÓN Raras vezes seus textos fazem incursões por
LITERARIA Y INTERESES POLITICOS outros cenários que não aqueles diretamente
relacionados com essa cidade; Trevisan é um
observador anônimo e perspicaz, fazendo-se
invisível no cenário urbano que narra. O objeto
de sua literatura também é invisível: ele vê uma
cidade que ninguém vê, e a reinventa. Para Comitti
(1996, p. 81), Trevisan estabeleceu “uma relação
quase metonímica entre o autor, a obra e Curitiba”.

A cidade representada por Dalton Trevisan é um


território cruel, difícil de morar, frio, provinciano,
repleto de problemas e moradores angustiantes
que sofrem as consequências de uma realidade
urbana perversa. Cria-se um mito tendencial-
mente distópico sobre a capital paranaense,
cujo objetivo aparenta ser chamar atenção para
questões sociais pouco reconhecidas, e criticar
aqueles que poderiam ser considerados direta ou
indiretamente responsáveis por essas situações
(ULTRAMARI; JAZAR; PEREIRA, 2018). Sem dúvida,
Dalton Trevisan não fala das grandes carências
sociais, mas, sim, das dificuldades pessoais num
meio urbano específico.

Cenários e personagens se repetem numa prosa


lapidada pelo minimalismo, seco e direto. O re-
sultado dessa escrita revela um contraste entre
16º SHCU aquilo que é idealizado para a cidade e aquilo que
30 anos . Atualização Crítica
apenas observadores mais atentos podem enxer-
1542 gar. A cidade “organizada, modelo, dos shoppings
e das férias, de repente, vira uma cidade escura, contraditória de “primeiro mundo” e “quarto mun-
hermética, violenta, permeada de vampiros no- dinho”: “Curitiba toda catita do primeiro mundo,
tívagos, de encontros furtivos, de pontes sem rio com essa população de quarto mundinho? Curiti-
por baixo e de lambaris do rabo dourado” (SILVA, ba, essa grande favela do primeiro mundo. Curitiba
2015, para. 13). O que Trevisan retrata são as partes é uma boa cidade se você for a barata leprosa e
de um urbano intencionalmente não reveladas pálida de medo” (TREVISAN, 2002, apud VIEIRA,
por discursos políticos ou mesmo não levadas 2013, p. 151).
em consideração pelo seu planejamento oficial.
Esse paradoxo revela um propósito trevisaniano
A preferência por personagens controversos e de dar “voz e visibilidade aos esquecidos” e de-
problemáticos que revelam questionamentos monstrar “como o projeto da modernidade para
urbanos ganha mais força quando considerado o esses seres falhou por causa de mitos e ilusões
contexto oposicionista dessa crítica: uma cidade urbanos” (VIEIRA, 2013, p. 152). É nesse contexto
que cresceu e se urbanizou há dois séculos após que o presente artigo busca entender o pensa-
se tornar capital do Paraná, apenas. Concomitan- mento de Dalton Trevisan, contextualizando sua
temente ao momento em que a produção literária vida, sua produção literária e assimilação dessa
de Trevisan se faz mais intensa e mais conhecida, pela classe política local. No item a seguir, tais ob-
observa-se a transformação da cidade, com a pri- jetivos são desenvolvidos em uma linha do tempo,
meira gestão do prefeito Jaime Lerner (1937 - ). na Curitiba entre os anos de 1950 e 1990, com a
Em 1971, é implementando o ainda hoje conhecido leitura de seis obras selecionadas: Novelas nada
e grande parte ainda válido Plano Diretor Municipal Exemplares, Cemitério de Elefantes, O Vampiro
de 1965, e inaugurando o Instituto de Pesquisa e de Curitiba, Mistérios de Curitiba, Pão e Sangue
Planejamento Urbano de Curitiba (IPPUC). Curitiba e Em Busca de Curitiba Perdida.
submete-se a mudanças de planejamento, de
gestão e a intervenções que a fariam conhecida
internacionalmente, reinventando-se e transfor-
mando-se, para uns se constituindo em “cidade
NARRATIVA LITERÁRIA E A CIDADE
modelo”, para outros em “produto de marketing”. DE DALTON TREVISAN

[...] Curitiba guarda, com grande recato, Dalton Trevisan, segundo Macedo (2018, p. 257),
o espírito d[e um] passado longínquo, em teria se feito universal a partir de “achaques,
que foi uma rota de fuga, mas também de grandezas e mesquinharias da aldeia curitiba-
conquistas, para mercadores, traficantes, na”, inspirando-se em moradores da cidade para
fugitivos e almas penadas. Essas caracte- personagens e situações “em que as tramas psi-
rísticas sobrevivem, submersas, na moder- cológicas e os costumes são recriados através da
na Curitiba dos longos ônibus biarticulados, linguagem concisa e popular, expressões de um
dos jardins impecáveis e das estações de cotidiano sofrido e angustiante”. Com produção
cristal. Sobrevivem, mas são visíveis ape- vasta, a partir da década de 1960, dedica-se gran-
nas aos olhos clínicos de Dalton, o grande demente a representar a sociedade curitibana
miniaturista. Dalton as fisgas com uma (ROSALINO, 2002). Vários procedimentos e códi-
escrita, ela também, cada vez mais avara, gos adotados nas obras subvertem os sentidos
mais contida, mais desconfiada, em que dos textos, permitindo que o criador também
as palavras se poupam com a mesquinhez seja refletido em personagens centrais da cidade
de um agiota. Seus personagens experi- “ficcional” ao mesmo tempo em que descreve as
mentam sofrimentos que não conseguem transformações de Curitiba (GUTIERREZ, 2010).
expor. Sofrem de dilemas internos a que
não conseguem dar um nome (CASTELLO, Numa longa trajetória, Dalton Trevisan tem reve-
2012, para. 9-10). lado setores sociais desfavorecidos no panorama
urbano brasileiro (ULTRAMARI; JAZAR; PEREI-
Nessa mesma perspectiva, Vieira (2013) argumen- RA, 2018). Tal panorama é repleto de criminosos,
ta que as narrativas de Trevisan retratam “Marias mendigos, favelados, viciados, traficantes, entre
e Joões” vivendo numa Curitiba com a reputação outros grupos marginalizados em uma sociedade
EIXO TEMÁTICO 2 tida como moderna (WALDMAN, 2007; 2014). Por
meio de uma linguagem coloquial, sintética e que
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS eventualmente beira o obsceno, o autor constan-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES temente retrata ‘’cenas domésticas cotidianas,
banais, ousadas, chocantes, horríveis, brutais,
tristes, eróticas, cruéis ou perversas’’ (VIEIRA,
2013, p. 161).

A dura forma de representar uma realidade urbana


explica, em parte, a obra de Dalton ser aclamada,
ainda que comumente mal interpretado pelo leitor
de sua própria cidade (VIEIRA, 2013). A “penúria
econômica, as relações escabrosas, a injustiça
social e o perigos urbanos’’ (op. cit., p. 153) com-
põem uma “Curitiba esquecida” e a representação
de um cenário com dilemas de personagens con-
turbados revela críticas à cidade, especialmente
no que tange as zonas precarizadas e as condi-
ções de vida proporcionadas a “subcidadãos”.

De fato, chama atenção o contraste entre a ima-


gem idealizada de Curitiba e a cidade controversa,
problemática e caótica exposta pela escrita do
vampiro. A Curitiba eleita por Trevisan possui
áreas, centrais e periféricas, corroídas pela de-
gradação moral, e coexiste com a “Curitiba ofi-
cial”, moderna, limpa, planejada. Para Gutierrez
(2010, p. 37), a cidade de Dalton está “localizada
num território limítrofe entre o real e a ficção”,
observada por meio de uma “relação dialógica,
(auto)reflexiva, labiríntica”.

As histórias pessoais são fundidas às da própria


cidade, e Curitiba passa a ser, na dinâmica daquele
processo dialógico, a matriz para a produção de
signos a serem interpretados. É nessa cidade
paradoxal e labiríntica – “província, cárcere, lar”
(TREVISAN, 1992, p. 9) – que a Curitiba de Dalton
(re)encontra a Curitiba oficial (GUTIERREZ, 2010).
Nesse contexto, torna-se relevante entender as
prioridades e critérios que guiaram o urbanismo
e a gestão dessa cidade, caracterizando seu pro-
cesso evolutivo principalmente durante quarenta
anos. O próximo item apresenta o panorama his-
tórico de Curitiba destacando acontecimentos
mais importantes no âmbito do planejamento,
e comparando, a partir de excertos das obras
selecionadas de Trevisan, como o autor se posi-
cionava frente a essas mudanças.
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1544
NARRATIVA LITERÁRIA E CIDADE e ilusões; o passado, como espaço que
EM LINHA DE TEMPO contém as respostas a todos os problemas
existenciais, pois é nele que se estruturam
quaisquer ideais de vida (GOMES; VECHI,
Este item, estruturado em quatro partes, inicia
1981, p. 93).
no final da década de 1950, com a obra Novelas
Nada Exemplares, trabalho muito próximo da- No mesmo sentido, Mugiatti (2012) aponta que é
queles realizados na década 1960, para a qual possível relacionar o percurso literário do Vampiro
selecionamos duas obras Cemitério de Elefantes de Curitiba ao crescimento demográfico da cida-
e O Vampiro de Curitiba. A partir desse período de: “A Curitiba inicial de Dalton podia ser atraves-
que anuncia a relação entre o autor e sua cidade, sada a pé e, no raio de um quilômetro a partir do
prosseguimos com década de 1970, com Mistérios centro, as ruas pavimentadas se transformavam
de Curitiba, década de 1980 com Pão e Sangue, em caminhos lamacentos”, e ao longo de sete dé-
e, finalmente para os anos 1990, com Em Busca cadas, a Região Metropolitana de Curitiba (RMC)
de Curitiba Perdida. cresceu, contando hoje com “[...] 26 municípios
que, numa visão daltesca, se assemelhariam a 26
pragas bíblicas do inchaço urbano”.
Final de 1950 e década de 1960 Curitiba se mostra em consonância com o ce-
nário nacional, vivendo um crescente processo
Na década de 1960, quando o Brasil efetivamente de urbanização e aumento da área urbana, cir-
acelera seu processo industrial, inaugura-se um cunstâncias que explicam substituição da busca
processo social que conduz à estratificação de da “cidade bela” pela “cidade eficiente” (JAZAR;
duas classes: o proletariado – que cresce gra- ULTRAMARI, 2018). É a partir desse decênio que
ças às migrações campo-cidade impulsionadas a cidade vivencia suas novas práticas de planeja-
pelo surto industrial – e a classe média urbana –, mento urbano, fato que iria estabelecer o binômio
fortalecida pela sua capacidade de consumo e central de nossa discussão: é neste momento que
atuando decisivamente no processo econômico. a Curitiba oficial e a Curitiba de Dalton Trevisan
Esse período passa a ser conhecido como “cul- passam a se contrapor de forma mais evidente.
tural turn”, pelas mudanças de paradigmas que
o caracterizam; alterou-se o pensamento sobre O marco principal desse período é o ano de 1966,
as cidades, que passavam a se destacar como quando o primeiro Plano Diretor Municipal (PDM)
potenciais produtoras de negócios e lucros (CAR- de Curitiba entra em vigor, dando alguns passos
VALHO, 2013). De fato, surgem novos contrastes em direção à “Cidade Ecológica” que se realizaria
sociais, intensificam-se os problemas urbanos. apenas décadas depois (SANTOS; SEREZA, 2018).
A proposta dos anos 1960 consideraria as diretri-
É nesse amplo cenário que a obra Novelas nada zes do anterior Plano Agache, ainda dos anos 1940,
Exemplares é publicada, em 1959, consolidando, e que já havia contado com grande impacto na
para Curitiba, o retrato de uma cidade provinciana paisagem curitibana (OLIVEIRA, 2000; DUDEQUE,
periférica em relação às outras capitais do país e 2010; MACEDO, 2018; IPPUC, s/d).
isolada do resto do mundo (SANCHEZ NETO, 1996).
Tal realidade urbana seria fixada pelo contista ao As diretrizes para o novo pensamento urbanístico
longo de toda sua produção; o provincianismo de de Curitiba estavam focadas em três funções bá-
seus personagens reflete um período que ante- sicas: uso do solo, transporte coletivo e sistema
cede a industrialização propriamente dita, e a viário. Exemplos destas diretrizes são a hierar-
ficção de Dalton se torna um retrato das décadas quização do sistema viário, o zoneamento de uso
pré-industriais (1940-1950), prevendo as questões do solo, a regulamentação dos loteamentos, a
e problemas trazidas pelas décadas seguintes renovação urbana, a preservação e revitalização
(GOMES; VECHI, 1981): dos setores históricos tradicionais e a oferta de
serviços públicos e equipamentos comunitários
O autor cria uma relação dialética entre (IPPUC, s/d). As propostas compreendiam um
presente e passado: o presente se afigura modelo linear de crescimento, descentralizado
como aparente concretização dos sonhos e preocupado com a manutenção e controle da
EIXO TEMÁTICO 2 expansão na região central, onde novos eixos
norte-sul – servidos por linhas de transporte co-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS letivo – passariam a ordenar o crescimento da
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES cidade (CARVALHO, 2010; DE BONI, 2011; MACEDO,
2018). Muito da especificidade das propostas e
de suas implementações seriam explicadas pela
constituição de um corpo técnico vinculado à
administração pública, porém desvinculado da
administração direta do município. Criado por lei
municipal no final de 1965, o Instituto de Pesquisa
e Planejamento Urbano de Curitiba / IPPUC ganha
autonomia frente a outras secretarias e torna-se
responsável pela implementação do Plano Diretor
recém aprovado.

Se nos anos 1950, Dalton Trevisan retratava uma


Curitiba provinciana, úmida, com rios ameaçado-
res e de pessoas sofridas, num discurso reativo
da capital paranaense frente ao cenário de de-
senvolvimento nacional; nos anos seguintes sua
representação ganha novas proporções e signi-
ficados. Nesse novo cenário de transformação
curitibana, as problemáticas da cidade se inten-
sificam e não passam despercebidas pelo olhar
ácido do vampiro, que, dessa vez, denuncia uma
Curitiba que nega a si própria (SANCHES NETO,
1998). Fazem parte desse período dos anos 1960,
as obras Cemitério de Elefantes e O Vampiro de
Curitiba.

Em Cemitério de Elefantes, a deterioração do am-


biente urbano é retratada a partir setores sociais
marginalizados e seus dramas sociais e urbanos:
roubos, estupros e outras formas de violência.
O cotidiano de personagens simplórios, que não
usufruem plenamente das melhorias idealizadas
para a cidade, evidencia políticas públicas não
inclusivas e infraestruturas urbanas deficientes,
indo de encontro aos discursos iniciados pela
gestão naquele período.

Incapazes de assumir o mundo e de en-


frentar a realidade, destroem-se numa vida
apagada, sem horizontes, repetitiva, onde
o sonho se esgota no instante mesmo de
sua consecução, revelando a miséria do
cotidiano. Seres cinzentos, desprovidos de
consciência, tais personagens acabam por
se afirmar naquilo que mais as degrada, ou
16º SHCU seja: os vícios ocultos, a negação do próxi-
30 anos . Atualização Crítica
mo, a tirania gratuita com os mais fracos. E
1546 mesmo os inocentes, - as crianças e os do-
entes mentais – não escapam deste destino Década de 1970
vazio; ao contrário, a eles está reservado
também vagar pelo espaço limitado que as Nesta década, a cidade passa a desfrutar de gran-
oprime e ignora (GOMES; VECHI, 1981, p. 11). de prestígio por suas medidas de planejamento
e gestão urbanas, tornando-se referencial no
Em o O Vampiro de Curitiba, tem-se um persona-
panorama latino-americano (MATIAS, 2013). A
gem-eixo, em torno do qual se desenvolvem quase
implementação do urbanismo curitibano tem
todas as histórias. Nelsinho, o herói que peregrina
seu momento de ascensão na primeira gestão
pela cidade de Curitiba, tem uma vivência marca- do prefeito, arquiteto e urbanista, Jaime Ler-
da pela falta de perspectivas pessoais e sociais, ner, iniciada em 1971 – ainda durante o período
bem como pela resignação e impotência diante da ditadura militar brasileira –, além, claro, do
de injustiças sofridas ao longo da vida. fortalecimento do IPPUC. Durante essa década,
destacam-se intervenções de cunho cultural,
No contexto da cidade real, o pensamento urbano
além de soluções para o zoneamento e o trânsito
está alinhado a conceitos neoliberais impulsio-
(GARCIA, 1997a, b); as políticas de ações admi-
nados pela introdução da indústria moderna; a
nistrativas estão voltadas à implementação de
cidade cresce em ritmo acelerado (STROHER,
infraestruturas e serviços urbanos, sendo ainda
2014), e essa explosão demográfica desencadeia
marcadas pela disponibilidade de recursos do
problemas de políticas públicas, má distribuição
governo federal (ULTRAMARI; FIRKOWSKI, 2012;
de renda e infraestruturas, periferizações etc. A
JAZAR; ULTRAMARI, 2018).
odisseia urbana de Dalton é repleta de menções
que frequentemente fogem da imagem ideali- É nesta década que o Plano Diretor de 1965/66
zada por urbanistas e administradores públicos começa a ser efetivamente implementado, con-
de Curitiba. Conforme Nicolato (2004, p. 129), o solidando as transformações mais significativas
autor retrata uma “Curitiba, muitas vezes, cenário da história da cidade. No que tange o transpor-
de dilemas urbanos pouco revelados pela prática te, citam-se: hierarquização de vias; criação da
da gestão urbana ou motivo de seu planejamento Rede Integrada de Transportes (RIT); aplicação
e políticas públicas”. Santos e Sereza (2018, p. 77) do primeiro sistema BRT (Bus Rapid Transit) do
também reforçam essa dicotomia: mundo, e; implementação de canaletas exclusivas
para ônibus expressos, integrando eixos norte e
[...] enquanto a Curitiba da década de 1960, sul ao Centro a partir de um Sistema Trinário de
em um contexto midiático e político, aponta transporte.
para uma cidade planejada para “o futuro”,
Dalton Trevisan parece se esgueirar nas No âmbito do zoneamento, pode-se citar a cria-
sombras, observando o que acontece por ção, em 1971, da Fundação Cultural de Curitiba,
cada ruela, das mazelas aos defeitos de dando início a uma série de propostas para os
uma cidade cinza, descrevendo lutas de espaços históricos da cidade transformando-os
uma classe desafortunada e desamparada, em centros de cultura. Além de tornar a região
sem adocicar ou amaciar suas palavras. central mais acessível aos pedestres, busca-se
consolidá-la como uma área de preservação de
Ao final desta década, Dalton Trevisan ganha des- antigas construções; delimita-se, assim, o Setor
taque nacional, com reconhecimento de público Histórico de Curitiba (CARVALHO, 2013; IPPUC,
e crítica ao final dessa década, quando vence o s/d). Um dos projetos mais representativos desse
I Concurso Nacional de Contos (COMITTI, 1996). período é o fechamento da Rua XV de Novembro,
Tal visibilidade seria a causa e o efeito de um as- possivelmente a primeira grande via pública exclu-
sumido engajamento de Trevisan para escrever siva para pedestres do Brasil, inaugurada em 1972.
sobre sua cidade, com uma narrativa expressiva
em relatos dela, e de um desejo de grupos políticos É também desta época o incentivo à ocupação
locais de terem esse autor ao seu lado na crítica de áreas próximas aos setores estruturais, dando
e na apologia do urbano vivido. diretrizes de ocupação para comércio e serviços.
Alinhadamente ao “Milagre Econômico” brasileiro,
cria-se, em 1973, a Cidade Industrial de Curitiba,
EIXO TEMÁTICO 2 feito importante voltado à atração de capital e
investimentos para a cidade (CARVALHO, 2013).
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Além disso, estabelece-se legislação específica
para criação de Áreas de Proteção Ambiental
(APAs), definindo a preservação dos fundos de
vale, com a futura implantação de parques li-
neares e praças. As preocupações ambientais
– que marcariam o discurso ecológico das ges-
tões posteriores – começaram a surgir quando a
cidade transforma várias de suas áreas florestais
nativas em parques: Parque Barigui (1972), Parque
São Lourenço (1972), Parque Iguaçu (1976) (CAR-
VALHO, 2008; IPPUC, s/d). Pode-se listar ainda,
segundo IPPUC (s/d), “investimentos públicos
em saúde, educação, assistência à infância e à
adolescência e programas de abastecimento e
habitação”. Em 1973, por lei federal, é instituída a
Região Metropolitana de Curitiba (RMC) composta,
na época, por 14 municípios, e, institucionalizando
um fenômeno urbano ainda pouco compreendido
pelo município polo e mesmo por seus habitantes.

A Curitiba reinventada nessa década, no entanto,


ainda não é encontrada na produção de Dalton
Trevisan; ao contrário, o autor passa a adotar um
tom predominantemente melancólico. Trevisan
passa a enaltecer a Curitiba em que viveu sua
juventude, insistindo na cenarização de pontos
tradicionais da cidade – majoritariamente na Re-
gional Matriz ou em porções urbanas que, à época,
eram pouco priorizadas nos projetos e propostas
que marcaram os anos 70. Nesse sentido, Comitti
(1996, p. 82) comenta:

Nesta época, durante a primeira adminis-


tração do urbanista Jaime Lerner, Curitiba
também tinha os olhos da intelectualidade
brasileira voltados para si, motivados pelo
arrojado projeto urbanístico que aí se de-
senvolvia, o cenário de cartão postal, rapi-
damente executado e largamente divulgado
pela mídia, acabava, assim, por se colar ao
autor. Criava-se, dessa maneira, mais uma
ficção trevisiana, pois a Curitiba cada vez
mais próxima de uma concepção urbana
pós-moderna não apresentava muitos tra-
ços do cenário de Novelas nada exemplares
ou mesmo dos livros escritos e publicados
na década de 70.
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
O autor faz menções literais aos espaços transfor-
1548 mados, mas não deixa de demonstrar seu descon-
tentamento e seu pessimismo frente ao discurso selecionado para análise neste artigo. Nele, Tre-
desenvolvimentista – que culmina num processo visan reforça as discrepâncias entre os discursos
de gentrificação dos eixos de transporte e perife- e a realidade, e critica os esforços dessa cidade
rização de populações economicamente desfa- que começa a se espetacularizar e esquece de
vorecidas (CARVALHO, 2013). Deve-se perceber, sua população mais vulnerável: “Curitiba, que não
contudo, que a crítica veiculada por Dalton nunca tem pinheiros, essa Curitiba eu canto. Curitiba,
se direciona nominalmente a uma ou outra gestão onde o céu azul não é azul, Curitiba que canto. Não
específica, mas demonstra uma desaprovação a Curitiba para turista ver, Curitiba me encanta”
generalizada àquilo que está sendo idealizado (TREVISAN, [1968] 1979, p. 87).
pelo urbanismo curitibano – obviamente, numa
perspectiva pessoal de ver a cidade (ULTRAMARI;
JAZAR; PEREIRA, 2018).
Década de 1980
A obra Mistérios de Curitiba é considerada a
representante desse decênio; o quarto livro de No contexto municipal, por escolha do então go-
Trevisan retoma temas já apresentados anterior- vernador de estado, Jaime Lerner é nomeado
mente, introduzindo uma narrativa mais curta e prefeito pela segunda vez, em 1979, e mantém
imprimindo ainda mais sua visão sobre Curitiba seus ideais para o urbanismo de Curitiba (MACE-
e sua sociedade, sempre com possíveis refe- DO, 2018). A partir da década de 1980, no entan-
rências indiretas àquilo que seu planejamento to, Oliveira (2000, p. 57) destaca que, uma vez já
oficial propunha e implementava. As histórias implementado e consolidado o PDM na realidade
são independentes, mas o direcionamento me- curitibana, “pouco restou a ser feito com relação
lancólico lhes é comum. No conto “Lamentações ao espaço físico da cidade”.
de Curitiba”, por exemplo, o autor retrata a sua
visão acerca do juízo final em Curitiba em tom Nesse período, conhecido como “a década perdi-
profético e retórico: da” no âmbito econômico, reduzem-se os recursos
voltados aos municípios, passando a priorizar uma
Ai, ai de Curitiba, o seu lugar não será acha- visão mais social do espaço urbano, com ações
do daqui a uma hora. e programas de combate à pauperização, ao de-
Gemerei por Curitiba; sim, apregoarei por semprego e à violência (ULTRAMARI; FIRKOWSKI,
toda a Curitiba a nuvem que vem pelo céu, 2012; JAZAR; ULTRAMARI, 2018). Em Curitiba,
o grito dos infantes a anuncia; porque o apesar de permanecerem as preocupações com o
Senhor o disse. transporte, com a criação de áreas verdes, e com
a orientação do crescimento da cidade a partir dos
[…]
eixos de transporte coletivo, busca-se também
Ó Curitiba Curitiba Curitiba, escuta o grito reverter as práticas anteriores de esquecimen-
do Senhor feito um martelo que enterra os to dos bairros em detrimento de zonas centrais
pregos. Teu próprio nome será um provér- (CARVALHO, 2013). Começa a valer, assim, um
bio, uma maldição, uma vergonha eterna. novo estilo administrativo, marcado pelo ape-
[...] lo social e composto por políticas setoriais não
necessariamente de ordem física.
A espada veio sobre Curitiba, e Curitiba
foi, não é mais. Na metade da década, com a redemocratização
Não tremas, ó cidadão de São José dos Pi- do país, esse novo estilo administrativo ganha
nhais, nem tu, pacato munícipe de Colombo, força. Em 1985, a eleição de Roberto Requião
a besta baterá voo no degrau de tuas por- sobre Jaime Lerner teve pouca margem de van-
tas. Até aqui o juízo de Curitiba (TREVISAN, tagem. Nesse período, destaca-se uma alteração
[1968] 1979, p. 8-10, grifo nosso). no planejamento, sendo elaborado o Plano Mu-
nicipal de Desenvolvimento Urbano (PMDU), um
Outro texto importante é “Em busca de Curitiba diagnóstico socioeconômico e físico-territorial
perdida” – que, nos anos de 1990, vira título de da cidade que traça diretrizes para o desenvol-
outro livro de contos do autor e que também é vimento da cidade. Cria-se, ainda, a Secretaria
EIXO TEMÁTICO 2 Municipal do Meio Ambiente, que passa a pla-
nejar, executar e fiscalizar a política ambiental
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS do município, monitorando o mapeamento das
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES áreas verdes – servindo de instrumento para a
legislação de uso do solo. Preparava-se o caminho
para as grandes intervenções e práticas urbanas
de caráter ambiental que dariam ainda mais visi-
bilidade a Curitiba e a colocaria como inspiração
para críticas e apologias.

Se nos anos de 1970, há um projeto urbano –


principalmente marcado pelo ônibus expresso
e pelo Plano Diretor –, a partir dos anos de 1980,
percebe-se a imagem da cidade se torna mais
importante que o projeto urbano em si, inclusive
confundindo-se com ele. Ou seja, constrói-se um
projeto de imagem, em que o desejo da gestão é
que Curitiba pareça com uma cidade de “primeiro
mundo”, e não o contrário, onde mudanças de fato
consigam alterar seu estado de desenvolvimento.

Essa postura administrativa não passa desper-


cebida na obra de Dalton Trevisan, que continua
a abordar condições e características socioe-
conômicas da cidade. Em Pão e Sangue, obra
selecionada para representar a década, Sanches
Neto (1996) destaca que a abordagem de Dalton
está voltada à banalização da violência. O texto
intitulado “Canção do Exílio” traz um tom carrega-
do de ironias e que explicita o desgosto do autor
com a Curitiba contemporânea. É possível notar
certo descrédito frente ao poder legislativo e ao
discurso político da época:

Não permita Deus que eu morra


sem que daqui me vá
sem que diga adeus ao pinheiro
onde já não canta o sabiá
morrer ó supremo desfrute
em Curitiba é que não dá
[...]
em Curitiba a morte não é séria
um vereador gaiato já te muda em nome
de rua
[...]
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica tudo faça para não morrer
1550 em último caso
que seja longe de Curitiba Década de 1990
[...]
Para a década de 1990, portanto, enquanto ainda
Castigo bastante é viver em Curitiba [...]
se consolidava um planejamento e uma gestão
(TREVISAN, 1988, p. 26).
mais democráticos, as questões ambientais de-
finiam uma agenda pública, seja pelas evidências
Pão e Sangue é uma referência ao fascínio que,
de uma crise socioambiental nas grandes cidades
segundo Sanches Neto (1996, p. 118) “casos de
do país, seja pela imposição de prioridades com
assassinatos, roubos e perversões exercem sobre
o meio ambiente definidas internacionalmente
a população fazendo dos programas policiais e
(JAZAR, ULTRAMARI, 2018). Continuam os investi-
dos jornais vermelhos num sucesso de público”.
mentos nas áreas de transporte, habitação, saúde,
Em sua cidade transposta para a literatura, Tre-
educação e geração de emprego e renda, mas o
visan demonstra que não há bons ou maus, mas
meio ambiente passa a ocupar papel central no
personagens que vivem e cometem atrocidades,
planejamento. O discurso do “moderno e huma-
sem se darem conta disso.
no” dando lugar ao “ecológico e pós-moderno”,
Araújo (2010) evidencia que a violência – ainda não alinhando-se às correntes ecológicas do país que
assimilada pela administração pública municipal receberia a Eco 92 (CARVALHO, 2013).
como uma responsabilidade a ser assumida - é
Nesse período, a criação de parques passa a
normal, pois, as pessoas estariam acostumadas compor uma estratégia para contenção de en-
a ela, num cotidiano de brutalidade e degrada- chentes, proteção das nascentes dos rios e evitar
ção, condições que também são refletidas no ocupação urbana em áreas de risco (CARVALHO,
espaço urbano. O escritor percebe as histórias e 2013). Esses novos elementos se espalham pela
estruturas narrativas da sociedade, lhes confere cidade simbolizando um novo aspecto de Curitiba,
novas interpretações e reconstrói seus sentidos, direcionada pela sustentabilidade; somam-se 30
reproduzindo-as. Para Waldman (1982), Trevisan parques, ao final da década. Em 1992, é criada a
constrói um discurso sociolinguístico, Universidade Livre do Meio Ambiente, em meio a
parque que viria a ser um dos destinos turísticos
Numa atitude que quebra o ilusionismo da
mais buscados da cidade, explicitando mais um
representação, o autor traz para a literatura
dos grandes ícones urbanos da cidade, e institu-
linguagens já elaboradas (jornal, revista, ídas Áreas de Preservação Ambiental, as quais
rádio, TV), linguagens elas próprias formas igualmente contribuiriam para a construção de
do oco e do vazio. Com isso, em vez de ofe- um todo imaginado. Na sequência, inauguram-se
recer uma visão do objeto, ele oferece seu o Jardim Botânico e novos parques e bosques,
próprio elemento. Em vez de signos, partes todos eles concorrendo para a construção de
da realidade (WALDMAN, 1982, p. 27). uma imagem da cidade difundida entre seus habi-
tantes, entre os que a visitam e, não raro, mesmo
É nesse cenário que, ao final da década, tem-se
entre aqueles de sua região metropolitana que
um novo pleito eleitoral, dando início à terceira
buscam e podem compartilhar a imagem de uma
gestão Lerner, em 1988 (MACEDO, 2018). Este
cidade “moderna”..
mandato foi responsável pela consolidação da
cidade como uma marca, utilizando-se dos slo- É dessa época, a adoção do conceito de “acu-
gans “Capital Ecológica” e “Capital de Primeiro puntura urbana”, o qual Jaime Lerner toma para
Mundo” num processo de reformatação da ja ́ si (LERNER, 2003) e que seria sustentado ain-
prestigiosa imagem de Curitiba, intensificando da com mais evidência por seu sucessor, Rafa-
sua fama em âmbito nacional e internacional el Greca de Macedo, com mandato entre 1993 e
(CARVALHO, 2013). A partir de então, deixa-se 1996. A proposta consiste em intervenções em
em segundo plano os discursos e práticas de pla- determinados pontos da cidade que resultam em
nejamento urbano, e enfatizam-se “realizações de melhorias para todo o entorno (CARVALHO, 2013).
ordem estética e uma política de caráter setorial: A partir de então, a cidade se reafirma como mito
aquela voltada para o meio ambiente” (OLIVEIRA, de vanguarda urbanística, reforçando também
2000, p. 59). sua vocação turística.
EIXO TEMÁTICO 2 Com todas essas iniciativas socioambientais,
Curitiba passa a explorar ao máximo o marketing
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS urbano e propagando sua imagem como marca
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES do urbanismo sustentável. Todo seu esforço ad-
ministrativo voltado a políticas ecológicas rendeu
grandes dividendos, “ainda que seus resultados
concretos sejam bastante discutíveis” (OLIVEIRA,
2000, p. 60). O fato é que as principais mudanças
estruturais de Curitiba foram acompanhadas de
campanhas publicitárias profissionais, que au-
xiliaram na construção de uma expressão e um
ideário urbano que legitimaram sua identidade.

Temos, até aqui, um bom projeto urbano


vinculado a um apurado senso publicitá-
rio, que não só propagandeava a boa nova,
como lhe dava uma cara gráfica, imediata-
mente identificável, em Curitiba e fora dela.
E, afinal, o produto às vezes correspondia,
pelo menos em parte, à propaganda. Mas
há outros fatores importantes a considerar
nesse processo. Um deles é o fato de que a
implantação do projeto se fez a partir de go-
vernos impostos pela ditadura militar. Isto
é, Jaime Lerner foi prefeito indicado duas
vezes. E, naqueles anos tecnocráticos, ele
gostava de alardear que “não era político”,
e não ser político soava (ainda hoje aliás)
como uma grande qualidade (Tezza, 2003).

A evidência da cidade por meio de ícones arquite-


tônicos e urbanísticos torna-se referencial básico
para críticas e apologias. Dalton Trevisan questio-
na a fama da cidade desse período, mostrando-se
avesso à “cidade espetáculo” (GARCIA, 1997a). Na
obra Em Busca de Curitiba Perdida, publicada em
1992, traz 23 contos relacionados em diferentes
aspectos diretamente à capital paranaense. Ape-
sar de muitos desses textos terem sido publica-
dos em obras anteriores ou serem republicados
posteriormente, entende-se relevante sua análise
no contexto da Curitiba da década de 1990 devido
a uma característica bastante importante da es-
crita de Trevisan: sua produção literária assume
significados diferentes de acordo com o contexto
vivido pelo autor.

É possível apontar que o fato de esses contos te-


rem sido publicados anteriormente é uma questão
16º SHCU inexorável do processo, podendo ser usados como
30 anos . Atualização Crítica
base de uma crítica, sem necessariamente essa
1552 intenção. Nesse caso, tem-se que Dalton não faz
crítica ao projeto urbano, nem ao seu autor – pelo de Curitiba perdida” e, segundo Nicolato (2002, p.
menos, não de forma prioritária. A preocupação 16), a sua leitura se dá através de dois movimentos:
desse autor parece estar voltada a uma “cidade
do futuro” que, independentemente de uma ou O primeiro, e que é predominante na narra-
outra característica projetual, estava fadada a tiva, está relacionado diretamente ao ponto
pôr em risco e corromper a imagem nostálgica de vista artístico e literário de conceber
e afetiva concebida por ele para Curitiba. Tal op- a cidade e a própria arte; o outro, com as
ção de narrativa nos leva a duvidar da real crítica republicações do texto em momentos his-
que esse autor teria feito ao projeto da chamada tóricos importantes, tem um caráter de
Curitiba Modelo; intencionava esse autor, sem resistência contra as inovações de uma
dúvida, referir-se precipuamente à sua cidade cidade que está em rápido processo de
do passado, aquela que não poderia jamais ter crescimento e mudanças.
mudado, seja por projeto, seja pelo uso e com-
preensão de novas gerações. Waldman (2007, p. 5) justifica que “para alcançar
a condensação, o autor subtrai, ‘enxuga’ frases,
O extenso e minucioso trabalho analítico de Nico- trechos de contos, reescritos algumas vezes em
lato (2002; 2004) sobre a obra de Trevisan permite novas edições”. Em 1992, o afastamento com a
destacar que cidade contemporânea não apenas permanece,
mas se aprofunda por meio de um lamento que
Em Dalton Trevisan, o espaço da cidade sofre pelo desaparecimento daquela cidade da sua
tanto pode estar presente, mesmo que de memória. Aqui fica evidente a concepção urbana
forma velada, nos contos de costumes [...], proposta por Trevisan como aquela do tempo pas-
como demarcado e inventariado na via- sado, idealizado e arruinado pela modernidade. É
gem em que o narrador faz no texto “minha na memória que o autor se dedica a manter viva
cidade”, uma espécie de crônica poética a sua “Curitiba perdida”, uma cidade pequena,
sobre Curitiba publicada pela primeira vez provinciana, que ainda não deixou contaminar
na Revista Joaquim (NICOLATO, 2002, p. 11). pelo progresso, povoada de personagens simples,
ordinários e problemáticos (NICOLATO, 2004).
“Minha cidade” é publicada pela Revista Joaquim
em 1946, e passa por várias reformulações desde Em “Curitiba revisitada” (TREVISAN, 1992, p. 85-
então; a primeira ocorre em 1953, por ocasião das 90), conto que compõe a obra Em Busca de Curiti-
comemorações do I Centenário de Emancipação ba Perdida, observa-se um autor que se manifesta
do Paraná (NICOLATO, 2002; 2004). É apenas em de forma rancorosa – e desaforada – contra à
1992 que o texto recebe sua versão final, durante idealização urbana proposta pelos planejadores
os preparativos do aniversário dos 300 anos de do período (ZANELLA, 2012). É possível apontar, no
Curitiba – que aconteceria no ano seguinte (NI- quadro a seguir algumas das características mais
COLATO, 2002; 2014; MUGGIATI, 2012; MACEDO, marcantes desse texto, permitindo a inferência
2018). O conto passa a receber o título “Em busca de algumas opiniões do autor acerca da cidade.

Quadro 1 - Posicionamentos de Dalton Trevisan inferidas a partir de seus textos

Posicionamento Trecho Destacado


“Que fim ó Cara você deu à minha cidade
a outra sem casas demais sem carros demais sem gente demais”
Críticas sobre a violência, “ó cidade sem lei
injustiças sociais e problemas capital mundial de assassinos no volante”
urbanos causados pela moder-
nização da cidade “apostam na corrida de rato dos malditos carros
suprimindo o sinal e a vez do pedestre”
“povo felicíssimo sem rosto sem direito sem pão”
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

“nesse teu calçadão de muito efeito na foto colorida


Críticas a projetos implementa- não se dá um passo sem escorregar” (Rua XV de Novembro)
dos na cidade nos últimos anos
“nada com a tua Curitiba oficial enjoadinha narcisista
e que se tornaram marcos da
toda de acrílico azul para turista ver” (Ópera de Arame/ Estações Tubo)
gestão urbana de Curitiba
“ópera bufa de nuvem fraude arame” (Ópera de Arame)
“uma das três cidades do mundo de melhor qualidade de vida
depois ou antes de Roma?
Contestações à fama de Curi- segundo uma comissão da ONU
tiba ora o que significa uma comissão da ONU
não me façam rir curitibocas
nem sejamos a esse ponto desfrutáveis”
“cinquenta metros quadrados de verde por pessoa
Desdém às causas ecológicas – de que te servem”
tidas como questões irrelevan-
“não me venham de terrorismo ecológico”
tes por Trevisan
“verde? não quero”

Fonte: Elaborado pelos autores, a partir de Trevisan (1992,


p. 85-90).

CONCLUSÃO

Para Nicolato (2002; 2004), Trevisan busca con-


tinuamente reforçar a imagem de Curitiba como
uma cidade provinciana, valorizando o tempo
passado em um universo de memórias. O retrato
curitibano construído por Trevisan, portanto, re-
siste às mudanças e evidencia as problemáticas
resultantes das grandes transformações espa-
ciais. Dalton, naquele que poderia ser considerado
um dos trechos mais reveladores e coléricos em
relação às transformações sofridas por Curitiba
nas últimas décadas, continua “Curitiba revisitada”
denunciando o city marketing como uma estra-
tégia para dissimular os problemas da realidade,
e reforçando sua nostalgia pela cidade passada
e seu descontentamento diante daquilo que via
na “nova” cidade:

[...]
essa é a cidade irreal da propaganda
ninguém viu não sabe onde fica
falso produto de marketing político
16º SHCU [...]
30 anos . Atualização Crítica cidade alegríssima de mentirinha
1554 [...]
dessa Curitiba não me ufano ton Trevisan traz “formas de contar à sociedade
não Curitiba não é uma festa liberal de arremedo o que o chamado capitalismo
os dias da ira nas ruas vêm aí tardiamente avançado produziu no Brasil e, quem
[...] sabe, em outros países que passaram e passam
ai da cólera que espuma teus urbanistas por processos de desenvolvimento mais ou menos
[...] semelhantes” (WALDMAN, 1982, p. 128). O autor,
não te reconheço Curitiba a mim já não portanto, demonstra com suas obras que o de-
conheço senvolvimento e a evolução do espaço urbano de
a mesma não é outro eu sou Curitiba não correspondem necessariamente à
nosso caso passional morreu de mala- qualidade de vida de todos os seus habitantes,
morte denunciando injustiças sociais, iniquidades eco-
[...] nômicas, crimes, más condições de habitação,
não me toca essa glória dos fogos de baixa escolaridade, etc. (MATIAS, 2019).
artifício
só o que vejo é tua alminha violada e A imagem da cidade de Curitiba nos anos 90 exibe
estripada ruas limpas, povo ordeiro, baixos índices de cri-
a curra de teu coração arrancado pelas minalidade e ônibus no horário; a representação
costas do autor vai na contramão disso, explorando “a
[...] rotina e a vivência de minorias excluídas, que por
me recuso a ajoelhar no templo das mu- razões monetárias ou étnicas, não se encaixam
sas pernetas na concepção de identidade idealizada pelas eli-
aqui pardal aos teus panacas honorários tes” (SANTOS; SEREZA, 2018, p. 79). A Curitiba de
e babacas beneméritos Dalton é um contraponto à imagem de “cidade
essa tua cidade não é minha sorriso” e “cidade ecológica” que transborda nos
bicho daqui não sou comerciais. Em outras palavras, pode-se afirmar
[...] que há duas “Curitibas”, a convencional e a margi-
Curitiba é apenas um assobio com dois nal: “Dalton Trevisan declararia viajar a primeira
dedos na língua e ser viajado pela segunda. Estrangeiro o autor
Curitiba foi não é mais (TREVISAN, 1992, em sua terra, os textos lamentariam uma cidade
p. 85-90) que se perdeu nas malhas do discurso oficial”
(MONTEIRO, 2012, p. 106).
Nota-se que, ora o autor estabelece críticas di-
retas às transformações urbanas, ora faz uso de A “geografia pessoal” de Trevisan para a cidade
figuras de linguagem para depreciar os marcos revela “estruturas sociais e simbólicas inscritas
da “Curitiba moderna”; Trevisan enaltece a todo num inventário pessoal, em que tem prevalên-
tempo aquela cidade que permanece viva em sua cia o juízo de valor, sob a forma da antítese do
memória (ZANELLA, 2012). Há ainda críticas não sim e do não, da cidade que se afirma e se nega”
explícitas à diretrizes urbanas, nesses casos “o (NICOLATO, 2004, p. 126). No processo de inte-
não dito pode, também, ser tomado como uma riorização dessa “cidade espetáculo” por seus
veemência” (ULTRAMARI et al, 2018, p. 123). habitantes a mídia sempre exerceu o seu papel,
buscando reforçar na população, pelo discurso
É possível apontar, portanto, que as realizações oficial, o sentimento de orgulho e pertencimento
da gestão e do planejamento urbanos amparam à cidade, obscurecendo – pelas supostas virtudes
grande parte do discurso que se instaurou para dessa política ufanista que envolve arquitetura,
a consolidação da imagem contemporânea de transporte coletivo, sustentabilidade ambiental,
Curitiba embrionariamente nas décadas de 1960 ambientes culturais e de lazer – a segregação
e 1970 – cujos empreendimentos possibilitaram a socioespacial das camadas menos abastadas e
consolidação da imagem da capital na década de outras possíveis leituras e projetos para a cidade.
1990. Essa imagem da cidade modelo – cultivada O cenário de uma Curitiba obscura, suja, esqueci-
até os dias de hoje pelas gestões municipais – é da, “imoral” e criminosa criado por Dalton Trevisan
confrontada pela leitura das seis obras selecio- é inteiramente excluído daquilo que é idealizado e
nadas para este artigo. O posicionamento de Dal- disseminado por planejadores urbanos e gover-
EIXO TEMÁTICO 2 nantes. Os questionamentos são feitos sempre
pela representação narrativa de grupos sociais
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS normalmente excluídos e ignorados, que pouco
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES usufruem de todo este desenvolvimento que tanto
foi exaltado nas últimas década.

Não se discute aqui qual a Curitiba, revelada ou


vista de uma ou de outra maneira, é a representa-
ção da verdade; ao contrário, rejeita-se tomá-la
como única, e não a entender por suas partes
complementares, e não visualizá-la com mais ou
com menos otimismo, júbilo, crítica e ceticismo.
O que se pode entender é que “a imagem do drama
ontológico dos curitibanos dramatizados na obra
trevisaniana parece desmentir o sucesso desse
planejamento modernizante” (VIEIRA, 2013, p. 152).
Há, pois, uma distinção entre uma Curitiba ide-
alizada, uma Curitiba real, uma Curitiba descrita
por Dalton Trevisan e uma Curitiba que grupos
políticos desejaram ver nas suas obras.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1556
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EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES O processo de urbanização do Brasil, datado ex-
pressivamente após década de 1970, é acompa-
nhado pelo surgimento de áreas de favelização
vídeo-pôster e assentamentos precários nas cidades. Este
artigo, dentro desse contexto, se debruça so-
bre a comunidade ribeirinha Vila Xurupita, an-
DE VILA PAPELÃO À VILA tiga Vila Papelão, situada no centro da cidade
de Barreiras, Bahia, há pelo menos cinquenta
XURUPITA: LUTA, AUSÊNCIA anos. Nesse sentido, o presente artigo trata-se
de um compilado de dados acerca da comuni-
E CONFLITOS dade, baseado em referências de produção
locais (jornais, poemas e legislação urbana),
além de entrevistas com moradores da cidade.
FROM VILA PAPELÃO TO VILA XURUPITA: STRUGGLE, Apresentaremos o resgate temporal do proces-
ABSENCE AND CONFLICTS so de formação da comunidade, bem como seu
contexto histórico de vulnerabilidade social e
DE VILA PAPELÃO A VILA XURUPITA: LUCHA, deficiências urbanas, abordando os conflitos e
AUSENCIA E CONFLICTOS ausências, aspectos relacionados à regulariza-
ção urbana, a falta de infraestrutura e questões
acerca da estigmatização do perfil dos mora-
MOL, Natália Aguiar
dores associado à violência e à ideia de “malfei-
Doutora em Planejamento Urbano e Professora Adjunta, Depto.
tores” em potencial. Assim, abordaremos uma
Urbanismo/ UFMG
natalia.aguiarmol@gmail.com
perspectiva crítica acerca da invisibilidade e
negação da Vila pelo Poder Público Municipal ao
longo dos anos.
OLIVEIRA, Lorena J. Coelho
Graduanda em Arquitetura e Urbanismo/UFMG
lorenacoelhoo@hotmail.com VILA XURUPITA VILA PAPELÃO BARREIRAS-BA
URBANIZAÇÃO REGULARIZAÇÃO URBANA
PASSOS, Rogério Lucas Gonçalves
Arquiteto Urbanista, Mestrando no IGC/UFMG
rogergpassos@gmail.com

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1560
ABSTRACT RESUMEN

The process of urbanization in Brazil, dated signi- El proceso de urbanización en Brasil, fechado
ficantly after the 1970s, was accompanied by the significativamente después de la década de 1970,
appearence of favelization areas and precarious va acompañado de la aparición de zonas de fave-
settlements on the cities. Within this contexto, lización y asentamientos precarios en las ciuda-
this article focuses on the riverside community of des. Este artículo, en este contexto, se centra en
Vila Xurupita, also named Vila Papelão, located in la comunidad ribereña Vila Xurupita, antigua Vila
the center of the city of Barreiras, Bahia, for at le- Papelão, situada en el centro de la ciudad de Bar-
ast fifty years. In this sense, this article is a com- reiras, Bahía, durante al menos cincuenta años.
pilation of data about the community based on En este sentido, este artículo es una recopilación
local production references (newspapers, poems de datos sobre la comunidad, basados en refe-
and urban legislation), and also interviews with rencias de producción local (periódicos, poemas
residents of the city. We will present the temporal y legislación urbana), así como entrevistas con
rescue of the community formation process as residentes de la ciudad. Presentaremos el res-
well as its historical context of social vulnerabi- cate temporal del proceso de formación comuni-
lity and urban deficiencies, addressing conflicts taria, así como su contexto histórico de vulnera-
and absences, aspects related to the issue of ur- bilidad social y deficiencias urbanas, abordando
ban regularization, the lack of infrastructure and conflictos y ausencias, aspectos relacionados
questions about the stigmatization of the profi- con el tema de la regularización urbana, la falta
le of residents associated with violence and the de infraestructura y preguntas sobre la estigma-
idea of potential “evildoers”. Thus, we will approa- tización del perfil de los residentes asociados a
ch a critical perspective about the invisibility and la violencia y la idea de posibles “malhechores”.
denial of the village by the Municipal Public Power Así, abordaremos una perspectiva crítica sobre la
over the years. invisibilidad y negación de la aldea por parte del
Poder Público Municipal a lo largo de los años.

VILA XURUPITA VILA PAPELÃO BARREIRAS-BA


URBANIZATION URBAN REGULARIZATION VILA XURUPITA VILA PAPELÃO BA-BARRERAS
URBANIZACIÓN REGULARIZACIÓN URBANA
EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
O presente trabalho originou-se de uma pesquisa
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
de extensão cujo objeto principal seria uma leitura
urbana da Vila Xurupita, situada no município de
vídeo-pôster Barreiras, Bahia, iniciado em 2018, com propostas
urbanísticas para a ocupação, cuja infraestrutura
se apresenta extremamente precária. A etapa
DE VILA PAPELÃO À VILA inicial consistia em um levantamento de dados
históricos e atuais, legislação e estudos existen-
XURUPITA: LUTA, AUSÊNCIA tes sobre a vila.

E CONFLITOS Apesar dos quase cinquenta anos de sua existên-


cia, não há quase ou nenhum registro histórico e/
ou atual em documentos (estudos, leis e dados)
FROM VILA PAPELÃO TO VILA XURUPITA: STRUGGLE, que tratem sobre a história da Vila, sobre conflitos
ABSENCE AND CONFLICTS vividos, sobre seus moradores ou mesmo sua exis-
tência, fazendo-nos sugerir que a Vila passa(ou)
DE VILA PAPELÃO A VILA XURUPITA: LUCHA, por um processo de “invisibilidade” socio-espacial
AUSENCIA E CONFLICTOS por parte de diversos atores desde sua formação.
Trataremos dessa denominação a seguir.

Sendo assim, busca-se no presente artigo, em


primeiro lugar, dar visibilidade à Vila Xurupita,
compreendendo seu processo de ocupação, me-
diante o resgate histórico de seu processo de
adensamento e ocupação, permeado por lutas,
conflitos, invisibilidade e ausências de ações,
principalmente do poder público. Acredita-se,
além disso, que possamos contribuir sobrema-
neira na lacuna existente sobre estudos, dados
e conhecimento sobre a Vila, seus habitantes e
seus anseios.

A metodologia adotada para elaboração desse


trabalho contemplou uma análise de documentos
da literatura local, legislação urbana do município
de Barreiras, reportagens de mídias, além de in-
cluir algumas entrevistas realizadas com atores
de Barreiras, como moradores da área de estudo
e técnicos da Prefeitura Municipal.

RESGATE HISTÓRICO DA VILA XURUPITA: PROCESSO


DE OCUPAÇÃO DE UM TERRITÓRIO INVISÍVEL

Processo de Urbanização
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
Em muitas cidades brasileiras o processo de
1562 urbanização é datado expressivamente após a
década de 1970; ano em que, segundo o IBGE, série de problemáticas urbanas, a exemplo do
pela primeira vez o Censo evidenciou que o nú- crescimento desordenado e sem planejamento
mero de habitantes das cidades era maior que das cidades, desencadeando a formação de pe-
o do meio rural. Esse processo, inicializado no riferias e aglomerados informais insalubres, com
Brasil no século XIX e intensificado a partir de acentuação intensiva das desigualdades sociais
1920, é motivado por uma série de fatores, entre no Brasil ao longo dos anos.
esses a implantação de indústrias nas cidades,
a mecanização do campo e a concentração fun- Nesse contexto, a cidade de Barreiras, localizada
diária. Com isso, o êxodo rural, entendido como a no extremo oeste do Estado da Bahia, é exemplo
migração da população do campo para as cidades, do aumento populacional expressivo pós déca-
se torna latente, e acarreta, consequentemente, da de 1970. O gráfico abaixo mostra a evolução
um intensivo e repentino aumento populacional populacional urbana e rural em Barreiras entre
dos centros urbanos, bem como a demanda por
os períodos de 1940 e 1980, em que se percebe
infraestrutura, moradia, emprego e serviços es-
uma primeira aproximação entre os percentuais
senciais.
quantitativos de moradores do meio rural e urbano
Como consequência desse processo, houve sig- na década de 1970 (52% rural e 48% urbana), e um
nificativos desenvolvimentos nacionais, princi- salto expressivo já na década de 1980, quando
palmente nas redes tecnológicas de transporte mais da metade da população é moradora do meio
e comunicação. Todavia, acarretou também uma urbano (27,5% rural e 72,5% urbana).

Gráfico 1: Evolução Populacional urbana e rural de Barreiras-BA (1940-1980). Fonte: Plano Diretor Urbano de Barreiras,
1990/2005

Essa fase é marcada por períodos migratórios, viário entre o Norte, Nordeste e o Centro-Oeste do
em um primeiro momento com atração de nor- país (GUEDES; PORTELLA, 2010, p. 09). O segundo
tistas em função da implantação do 4ª Batalhão momento é constituído de agricultores pioneiros
de Engenharia e Construção em Barreiras (1973), principalmente vindos do sul do Brasil, atraídos
incentivado pelo Governo Federal com programas
pelos baixos preços das terras do cerrado, facil-
de investimentos em infraestrutura, estradas,
energia, tecnologia e apoio financeiro, que veio a mente adaptáveis ao cultivo de grãos (PDU, 2004),
construir a BR 020 (Barreiras-Brasília) e o trecho comprovado a partir dos estudos desenvolvidos
da BR 242 (Barreiras-Ibotirama-Salvador), tornan- pela EMBRAPA – Empresa Brasileira de Pesquisa
do a cidade um importante entroncamento rodo- Agropecuária, nos anos 70.
EIXO TEMÁTICO 2 Esse processo imigratório foi se expandindo, à
medida que novos agricultores chegavam, atra-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS ídos sobretudo pela grande disponibilidade de
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES terras com topografia favorável à agricultura me-
canizada, clima adequado ao cultivo e expressi-
vo potencial hídrico (GUEDES; PORTELLA, 2010,
p.07). Dessa forma, este cenário é acompanha-
do pelo surgimento de áreas de favelização na
cidade, neste artigo sendo exemplificada pela
comunidade ribeirinha Vila Xurupita, objeto de
estudo em questão.

A Vila Xurupita, antiga Vila Papelão

A Vila está situada no Centro de Barreiras, às mar-


gens do Rio Grande - importante curso d’água na
cidade e afluente do Rio São Francisco -, em frente
ao Parque de Exposições (Figura 1), pelo menos
desde meados dos anos 1970; e ainda hoje se en-
contra em estado de grande vulnerabilidade social.

16º SHCU
Figura 1: a) Localização de Barreiras no Estado da Bahia; b)
30 anos . Atualização Crítica
Localização da Vila Xurupita na cidade de Barreiras. Fonte:
1564 Elaborado pelos autores a partir de base do Google Earth, 2020
Embora a Vila Xurupita tenha registros de ocupa-
ção há pelo menos 50 anos e esteja localizada em
área privilegiada da cidade, há uma defasagem de
informações documentadas acerca não só do seu
processo de surgimento, como também de dados
qualitativos e/ou quantitativos de sua evolução
e perfil dos moradores. Isso, constatado através
de busca sem resultados na Prefeitura Municipal,
no Museu e na Universidade Federal do Oeste da
Bahia (UFOB), evidenciou os primeiros indícios de
negação do lugar, comprovados posteriormente
em diversas outras questões, que serão aborda-
Figura 2: Primeiras ocupações da Vila Xurupita, território demar-
das posteriormente.
cado na imagem em linha tracejada branca, data não informada
Fonte: Portal da Memória do Oeste da Bahia, s/d (Adaptada
Nas primeiras décadas de ocupação da Vila, as
pelos autores)
moradias foram autoconstruídas em papelão, pau-
-a-pique e madeira, fato postergado até depois dos
anos 2000, segundo relato de morador1, que narra
a predominância desse tipo de edificações quando Segundo morador entrevistado, a área da Vila
se mudou para a Xurupita, em busca de emprego originou-se do que “sobrou” de um loteamento
no setor agrícola em Barreiras. Essas moradias, aprovado na prefeitura, onde as pessoas foram
por não terem estabilidade estrutural, comumente “invadindo”, ocupando e aterrando aos poucos:
foram devastadas pela água em épocas de fortes
chuvas e cheias do rio. A transcrição abaixo, reti- “Porque quando isso aqui foi construído
rada do jornal “Folha de Barreiras - O Jornal do São como loteamento, ele descartou isso aqui
Francisco”, publicada em 1985, relata os primeiros como área manancial. (...). E aí não tinha
indícios de ocupação da Vila, assim como os proble- valor comercial porque enchia de água aqui.
mas com enchentes enfrentados pelos moradores: Então pra eles não era satisfatório investir
nessa área, nesse quadrado. Mas aí o pes-
Dona Diva Rodrigues de Souza, natural de
soal foi invadindo, e foi colocando aterro,
Barra e residente na Vila Papelão desde
aterro, aterro... E virou o que é hoje, né.”
1974, conta-nos que no início eram apenas
duas casas - barracos feitos de papelão (informação verbal) 2
vindo daí o nome da vila - e aos poucos as
No decorrer dos anos, a Vila Xurupita veio sendo
pessoas muito pobres que não tinham para
retratada na mídia local, a exemplo principalmente
onde ir, como por exemplo, retirantes das
de jornais, reportagens e poemas da região, como
secas, desempregados, etcs, foram se
juntando e construindo seus barracos e a uma área de grande vulnerabilidade social na cida-
invasão cresceu e hoje é uma vila com cujo de de Barreiras, marcada por fome, miséria, do-
destino as autoridades e os diversos seg- enças, insalubridade urbana e assuntos similares.
mentos sociais devem se preocupar imedia- A Figura 3, mostra um recorte de manchetes de
tamente para evitar problemas futuros (...) jornais em dois momentos distintos (1985 e 2011),
No período das chuvas o transtorno dessa um intervalo de 26 anos, em que a abordagem
pobre gente aumenta. O rio sobe e as águas acerca da Vila ainda permeia a vulnerabilidade
invadem e derrubam as casas, provocando social e a falta de atuação do Poder Público no
risco de vida, além de prejuízos materiais. local, fato postergado até hoje, cinco décadas
(O JORNAL DO SÃO FRANCISCO, 1985). desde sua formação.

A Figura 2, disposta abaixo, mostra as primeiras


ocupações da Vila: 2. Entrevista concedida por morador da Vila Xurupita ao
grupo de pesquisa em nome da Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG) e Instituto Federal da Bahia (IFBA),
1. Entrevista realizada em dezembro de 2019. em dezembro de 2019.
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

Figura 3: Manchetes de jornais retratando a Vila


Xurupita, antiga Vila Papelão, em 1985 (a) e 2011 (b)
Fonte: Portal da Memória do Oeste da Bahia3, 1985/2011
(Adaptado pelos autores)

O poema “Relatório Poético” de Clerbet Luiz do


Nascimento, publicado em 1985 no livro “Barreiras:
um salto poético”, relata a condição das moradias
feitas de papelão, assim como casos de enchen-
tes, na ainda então chamada Vila Papelão:

Nossa poesia chega


como a viagem de uma coisa
viajando sobre outra coisa
que chega:
como quando chega a fome
no homem que chega
para a Vila Papelão;
como quando a tarde mal-cheira
naqueles barracos
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
3. Disponível em https://centrodememoria.ufob.edu.br/,
1566 acesso em 17/09/2020.
para apodrece-los na escuridão área de lazer para a cidade, sobre área de mata
(...) ciliar na curva do Rio Grande, próximo à Vila. Esse
As vezes chega fato teria posteriormente potencializado o asso-
(a dita poesia) reamento do leito do Rio Grande, em razão das
em tempo impróprio: agressivas obras ao meio ambiente realizadas
como nosso inverno (retirada da mata ciliar, seguida de terraplenagem
arquivado em gavetas de forno, e compactação do solo). Assim,
e mais dura:
Com a chegada das chuvas, todas as par-
quando o frio de junho
tículas sólidas, principalmente a areia uti-
desabrocha
lizada na construção da área de lazer seria
de uma neblina de fogo
lixiviada para o corpo hídrico. Como conse-
e flagelada: quência desse assoreamento, a altura do
quando uma cheia engorda nível freático diminuiu consideravelmente,
um magro rio pois praticamente inexistiram serviços de
com um gorduroso manutenção desde sua implantação. (CAR-
lago de lodo VALHO et. al., 2010)
(como a de 1967),
E, segundo relato do morador,
onde rolaram árvores, bois,
crianças, “É aquele sentido: ele atirou no que viu e
e quase todo um bairro acertou no que não viu. Ele abriu a Baía de
corroído numa curva do rio Guanabara para fazer uma área de lazer,
com suas casas de flande né, e desafogou isso aqui do rio. (...) Tirou
rolando aquele barro e abriu. Aquela água... Então
feito um brilhante aquela água não invadia mais nem aqui, nem
peixe ‘dourado’ aquele baixo ali da Vila Dulce, próximo do
em desbotadas marés, rio. Então ele não beneficiou aqui por conta
sob um sol fechado: própria. Ele beneficiou lá. É o que eu “tô”
portas e chaminés
falando: ele atirou no que viu, acertou no
(...)
que não viu. Entendeu?” (informação verbal) 5
quando uma mulher de uma vila
abafa brigas de família
entre paredes de papelão
e ainda tem voz pra cantar Cenário atual
“salve, salve” na missa
(...) Hoje, as aproximadamente 60 residências da Vila
Nossa cidade Xurupita são predominantemente em bloco ce-
que é parte da riqueza râmico e de concreto, estando, portanto, mais
de um país estáveis estruturalmente e menos passíveis a des-
e parte das favelas truição por enchentes6. Esses “barracos”, como
que ninguém quis são comumente chamados por alguns moradores,
(NASCIMENTO, 1985) (grifos nossos) construídos sem acompanhamento técnico de
profissionais da construção civil, possuem uma
A situação de enchentes na área foi melhorada,
de maneira indireta, quando entre os anos de 1993
5. Entrevista concedida por morador da Vila Xurupita ao
e 1994, na primeira gestão do então prefeito4, foi grupo de pesquisa em nome da Universidade Federal de
construída a polêmica Baía de Guanabara: uma Minas Gerais (UFMG) e Instituto Federal da Bahia (IFBA),
em dezembro de 2019.

4. O médico Saulo Pedrosa foi prefeito de Barreiras por 6. Embora, segundo relatos, ainda haja casos recentes de
duas gestões não consecutivas, a primeira de 1993 a 1996, acúmulo de água nas residências decorrente de períodos
e a segunda de 2005 a 2008. chuvosos, a altura de um metro do chão.
EIXO TEMÁTICO 2 série de características que evidenciam condi-
ções de insalubridade vivenciadas pela população,
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS como falta de ventilação e iluminação, problemas
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES com umidade, dentre outros.

A Vila conta com o serviço de abastecimento


de água e fornecimento de energia elétrica por
parte das concessionárias Estaduais (EMBASA e
COELBA, respectivamente) desde os anos 2000.
Segundo morador, esses foram conquistados, na
época, pela Associação de moradores. Contudo,
o local ainda não possui sistema de esgotamento
sanitário, o que, segundo opinião de um morador
não é demanda possível, em razão das altas taxas
de impostos cobradas pelo serviço no município,
inviabilizando o pagamento. Assim, cada morador
possui dentro do seu lote sistemas individuais de
coleta do esgoto, fossas sépticas ou rudimenta-
res. Essa situação de “desabastecimento” foi rela-
tada em Barreiras no diagnóstico geral da cidade
realizado no “Plano Diretor Urbano 1990/2005”,
conforme transcrito abaixo, e ainda é uma reali-
dade vivenciada nos dias atuais na Vila Xurupita.

A cidade de Barreiras não possui siste-


ma, em rede, de esgotamento sanitário. A
população busca suas próprias soluções,
em geral deficiente, lançando os dejetos
livremente a céu aberto e em muitos casos
são lançados diretamente ao longo do rio.
Uma parte da população usa fossa para o
esgotamento primário e as águas servidas
(esgoto secundário) são lançados na sarjeta
e alas de ruas. (BARREIRAS,1990/2005)

Além disso, vários moradores possuem hábitos


costumeiros de pesca e lazer no Rio Grande, tendo
contato direto com essa água, possibilitando a vei-
culação de doenças. Como foi relatado por um mo-
rador, parte do território que hoje é sua residência
era (anteriormente aos anos 2000), um “percurso
de esgoto a céu aberto”, que ocasionava uma série
de problemas de saúde para a população local,
principalmente nas crianças, que, segundo o mes-
mo, “andavam com a barriga desse tamanho [gesti-
culação com as mãos], cheias de lombrigas”; pos-
sivelmente diagnosticadas com “barriga d’água”
(esquistossomose), em que há contaminação
pelo contato com a água doce contaminada por
animais infectados e fezes ou urina de humanos.
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
A falta de pavimentação viária e de um sistema
1568 de drenagem foram constantemente relatados
nas visitas a campo, em razão principalmente da de mobilidade. Essa situação pode ser observada
poeira, acúmulo de água pluvial nas vias, alaga- na Figura 4 abaixo, compartilhada por moradora
mento das casas em dias chuvosos e dificuldades em 2020.

Figura 4: Cenário atual da Vila Xurupita: moradias precárias, falta de infraestrutura urbana, pavimentação viária e sistema de drena-
gem. Fonte: Acervo pessoal, 2020
EIXO TEMÁTICO 2 Seja pela ausência de demarcação de zoneamento
urbanístico adequado à vilas e favelas na cidade
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS (Zonas Especiais de Interesse Social - ZEIS), seja
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES pela falta de infraestrutura urbana básica no lo-
cal, a Vila Xurupita vem sendo negligenciada pelo
Poder Público desde sua formação. Esse fato,
somado ao não reconhecimento e atendimento
da maior parte das reivindicações já feitas pelos
moradores por melhorias urbanas ao longo dos
anos, evidencia a negação da Vila pela cidade.
Além do seu não reconhecimento enquanto parte
integrante de Barreiras, a Vila se configura como
um recorte de exceção no contexto em que está
inserida: em meio a quadras e lotes regulares
da cidade formal. Esse enredo se torna ainda
mais problemático quando somado à crescente
valorização territorial da área central, que, pela
proximidade (menos de 1km de distância), expõe
a Vila ao interesse imobiliário, que já tem o seu
entorno imediato sendo desde 2010 expressiva-
mente ocupado por empreendimentos multifa-
miliares verticalizados, com padrão tipológico e
econômico destoante do entorno.

Resgate Temporal do Processo de Ocupação


da Vila Xurupita

A fim de se fazer um resgate histórico do processo


de ocupação da Vila Xurupita e entorno imediato,
bem como entender quais impactos surgiram na
paisagem e no contexto urbano, por meio das
imagens históricas disponibilizadas pelo Google
Earth identificamos três períodos principais para
sistematização dessas informações, divididos em:
ocupação até 2004; 2005 a 2009; e 2010 a 2018.

Observou-se que o processo de consolidação da


Vila e do bairro em que está inserida (Vila Dulce)
ocorreu expressivamente até o ano de 2004, (ano
da primeira imagem disponibilizada para consulta
pelo Google), caracterizado por edificações predo-
minantemente residenciais, de até dois pavimen-
tos, tipologia predominante no bairro até os dias
atuais. Além disso, pontuamos três edificações
no entorno imediato da Vila já nesse período, com
tipologia distinta do restante do bairro, sendo
16º SHCU
elas: Associação de Proteção às Crianças Pobres7
30 anos . Atualização Crítica

1570 7. A Associação de Proteção às Crianças Pobres, atual Cre-


(atual Creche Tia Clarice), Garagem da Prefeitura
Municipal (atual Guarda Municipal) e a Salgadeira
Araújo Couros8 (demolida em 2012).

O segundo período considerado, de 2005 a 2009,


é marcado essencialmente por acréscimos de
edificações, além de novas construções com
tipologia similar à já observada; não se configu-
rando, portanto, como atípico na área em ques-
tão. Já o período demarcado entre 2010 e 2018 é
identificado como singular, já que as novas cons-
truções rompem com a tipologia apresentada
no bairro; se consolidando predominantemente
como empreendimentos multifamiliares vertica-
lizados, que evidenciam um interesse imobiliário
na área em questão. Essas novas edificações
são: Edificio Residencial Rio Grande (prédio de
6 pavimentos com construção em 2010), Con-
domínio Residencial Farroupilha (1 prédio de 18
pavimentos e 15 sobrados, com construção de
2011 a 2014), Memorial Dom Ricardo (espaço físi-
co e apoio organizacional para ações pastorais,
culturais, formativas e festivas, com construção
de 2013 a 2016) e o Residencial Beira Rio (17 pré-
dios de 4 pavimentos com construção de 2014 a
2018). Essas informações estão sistematizadas
na Figura 5, disposta abaixo.

che Tia Clarice, foi fundada em abril de 1950 por iniciativa


de Clarice Fernandes Borges e atua como uma institui-
ção sem fins lucrativos. Em 1981 mudou-se para o prédio
atual, e passou a atender crianças carentes de 1 a 3 anos.
Mesmo nesse contexto social, nunca houve vínculo entre
a Creche e a Vila Xurupita, ou um número significativo de
crianças matriculadas, fato constatado em conversas com
a coordenação da Creche e com os moradores da Vila, em
dezembro de 2019.

8. Até o momento de desenvolvimento da pesquisa em


questão, pouco se tem conhecimento sobre a fundação da
Salgadeira Araújo Couros, situada lindeira ao território da
Vila Xurupita. Sabe-se, através de conversas com morado-
res, que a edificação funcionava como pequena indústria de
processamento de couros de animais, e empregava alguns
moradores da Vila. Em 2012 houve a demolição do curtume
por parte do Grupo Senadinho (grupo que desde 2011 atua em
projetos sociais na cidade), sob denúncia de insalubridade
sanitária e de uso da edificação por usuários de drogas que
causavam insegurança aos moradores da Vila.
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
Figura 5: Processo de ocupação da Vila Xurupita e do seu
1572 entorno imediato. Fonte: Elaborado pelos autores, 2020.
HISTÓRIA DE CONFLITOS E O RECONHECIMENTO [...] a apropriação desigual do espaço está,
PELA AUSÊNCIA em última instância, associada ao valor
da terra, ou seja, as áreas que possuem
maior valor estão inseridas em locais com
Ao longo da história, o contexto da Vila Xurupita
condições privilegiadas, possuem maior
é permeado por uma série de atributos comuns
potencial construtivo e despertam interes-
entre si, os quais são todos caracterizados por au-
se pelo investimento. Elas têm, portanto,
sências: de infraestrutura, regularidade na ocupa-
maior valorização no mercado imobiliário
ção, reconhecimento legislativo, documentação
(ALVARENGA, 2005, p. 20)
comprobatória de propriedade, moradia digna ou
mesmo de história. A Vila não é reconhecida pelas Os conflitos gerados a partir da apropriação do
cartografias oficiais ou pelo Poder Público, sendo espaço urbano são decorrentes da atuação dos
essa invisibilidade refletida na falta de elementos. diferentes atores que interferem em sua produ-
ção, representando o jogo de interesses de cada
De acordo com Alvarenga (2005), o espaço ur-
um desses. A exclusão proveniente desse pro-
bano da cidade é condicionado pelo Estado, por cesso é acarretada quando o Estado reafirma os
meio do planejamento e da gestão urbana. Essas interesses do mercado imobiliário (ALVARENGA,
condicionantes podem ser percebidas em vários 2005), seja pela promulgação de leis específicas
casos, como na elaboração e aplicação da legisla- que o beneficie, a implementação de infraestru-
ção urbanística, na localização da infraestrutura tura urbana em áreas específicas da cidade ou
urbana e na valorização de determinados espaços mesmo ao desconsiderar a existência a história
privilegiados. Segundo Harvey (2006), o Estado dos grupos minoritário existentes.
tem participação na estrutura de sustentação
das elites ao defender seus interesses de forma Desse modo, nesta seção abordaremos os confli-
velada e supostamente imparcial. tos existentes na Vila Xurupita em quatro âmbitos:
1) legislação urbanística, 2) regularização fundi-
Nesse processo, a atuação do Estado pode ária, 3) infraestrutura urbana, e 4) criminalidade
continuar refletindo o jogo de interesses de e estigma. Ressaltamos, contudo, que, apesar
alguns agentes e incorporando privilégios, da abordagem em categorias distintas, essas
ou pode significar um momento de ruptura e dimensões a todo tempo se interseccionam.
avanço na busca de maior justiça e inclusão
social. Em outras palavras, a atuação do
Estado pode contribuir para o processo de
exclusão ou, pelo oposto, de inclusão social Legislação urbanística
(ALVARENGA, 2005, p. 25)
A legislação urbanística é um fator que contri-
Devido à manutenção e à perpetuação de um pa- bui para a estruturação dos espaços da cidade.
drão excludente, as desigualdades e pobrezas se Mais que simples normas, esses instrumentos
acentuam, uma vez que os mais pobres continuam participam do processo de singularização e hie-
vivendo em espaços inadequados, sem moradia rarquização dos espaços a partir de definições
digna e acesso à cidade, e, em contraponto, os referentes ao parcelamento, uso e ocupação do
mais ricos seguem acumulando cada vez mais solo urbano. A partir dos estudos dos Planos Di-
riquezas e vantagens urbanas. Com a lógica de retores Urbanos (PDUs) de Barreiras, é possível
que o poder está associado ao capital, os confli- perceber que a Vila nunca foi representada nos
tos na produção do espaço urbano se agravam, mapas legislativos. Mais que uma invisibilização,
e consequentemente, acarretam o aumento dos é possível perceber uma negação da existência
índices de violência, segregação, exclusão so- desse espaço na cidade.
cioespacial, crescimento da cidade ilegal e das
periferias (ALVARENGA, 2005). A partir desse Maricato (2000) aponta sobre a importância de os
fenômeno temos a divisão socioespacial entre espaços ilegais serem primeiramente conhecidos,
os incluídos e os excluídos, os que possuem e os havendo a necessidade de realização de estudos
que não possuem (HAMNET, 1998) que considerem a realidade própria e individual
EIXO TEMÁTICO 2 do lugar. Caso não haja esse movimento inicial,
as leis sempre estarão deslocadas da realidade.
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS Para o caso em estudo, acrescentamos ainda a
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES necessidade de a Vila Xurupita ser, de antemão,
reconhecida. Isso porque não é possível conhecer
um espaço uma vez que ele sequer é reconhe-
cido pelo Estado. Esse movimento é de suma
importância, uma vez que somente após o reco-
nhecimento do assentamento como local con-
solidado pelo poder público, surgem os projetos
de urbanização e implantação de infraestrutura.
Ressaltamos ainda a necessidade de cuidado e
atenção na elaboração desses planos, uma vez
que, em grande maioria, esses são realizados
seguindo os moldes e padrões utilizados para
a “cidade formal”, desconsiderando a realidade
de ocupação e relações sociais estabelecidos
no espaço.

De acordo com Rolnik (1997), a ordem jurídico-ur-


banística se encarrega de explicitar a rejeição dos
assentamentos informais, demarcando-os como
territórios desviantes por meio da categoria “sub-
normal”, presente na linguagem do planejamento
urbano e proveniente da não-inserção desses
espaços nas legislações de parcelamento, uso
e ocupação do solo em vigor. A autora destaca
que a condição de irregularidade desses espaços
não se refere a uma configuração espacial, mas
a múltiplas.

De acordo com o Plano Diretor Urbano (PDU) de


Barreiras (2004), sua elaboração tinha dentre
seus objetivos normatizar o crescimento de for-
ma a reduzir as desigualdades existentes entre
as diferentes camadas da população e zonas do
município, promovendo assim a equidade e com-
batendo exclusões (BARREIRAS, 2004). Ainda
assim, apesar do discurso voltado à inclusão e
reconhecimento dos assentamentos informais, a
Vila Xurupita teve seu zoneamento definido como
Zona Central (ZC) e não Zona Especial de Interesse
Social (ZEIS), mesmo essa última sendo defini-
da para as “áreas em condições precárias que
necessitam atenção especial do poder público”
(BARREIRAS, 2004).

De modo similar, em 2019 foi aprovado o Novo


Plano Diretor de Barreiras, onde outras áreas do
16º SHCU município foram definidas como ZEIS ao longo
30 anos . Atualização Crítica
do perímetro urbano. Contudo, de maneira simi-
1574 lar à legislação anterior, a Vila Xurupita teve sua
existência desconsiderada. Uma vez mais sua de infraestrutura e serviços e pela produção e
área foi definida como ZC. A partir de uma análise existência de sistema de transporte, por exem-
das legislações relacionadas ao ordenamento plo. Mais ainda, essa classe é responsável pela
territorial do município de Barreiras é possível produção de ideias dominantes a respeito desse
perceber a inexistência da Vila Xurupita para o espaço, sendo possível perceber a existência de
poder público, uma vez que esse espaço sequer um caráter ideológico no planejamento.
é abordado nesses instrumentos. De acordo com
Fernandes (2008), é necessário compreender o Ressalta ainda que a legislação não define ape-
papel da legislação para além de um entendi- nas os territórios da riqueza. Simultaneamente a
mento simplista de “instrumento técnico” e fonte esse movimento, é definido também os territórios
de resolução de conflitos e problemas. Para o destinados à instalação da pobreza, baseados na
autor, esse movimento se faz necessário uma vez distância, precariedade e falta de interesse do
que a ordem jurídica é um dos principais fatores mercado imobiliário, destinando as margens à
responsáveis na determinação de muitos dos população mais pobre. Desse modo, como explica
problemas urbanos, sociais e ambientais que as Maricato (2003), a população pobre vai se instalar
políticas públicas tentam enfrentar, começando nas áreas desprezadas pelo mercado imobiliário:
com o fenômeno da ilegalidade urbana. áreas ambientalmente frágeis, cuja ocupação
possui legislação proibitiva, em áreas públicas,
Uma vez que é negada à Vila Xurupita o reconheci- encostas de morros, beira de córregos, áreas de
mento pelo Poder Público, sucessivas outras ne- mangue, áreas de proteção aos mananciais ou
gações perpassam a história de sua existência. A destinadas à preservação ambiental.
partir da falta de reconhecimento, há a impossibi-
lidade de qualquer melhoria, seja na infraestrutura
urbana, nas condições das moradias ou a respeito
da segurança da posse dos lotes. Desse modo, a Regularização fundiária
partir da escolha pelo não reconhecimento, são
propagadas ideologias e valores sociais de grupos O primeiro episódio de tentativa de expulsão da
específicos, com características e atributos bem comunidade do local se deu por volta dos primei-
definidos. ros anos da década de 1990, em que há relatos
de doação de lotes por Paulo Braga9 na região do
É possível perceber que a lei organiza, classifica e município conhecida como Cascalheira, relatada
coleciona territórios urbanos, agindo assim como pelos moradores como local “no pé da serra”, “mui-
“marco delimitador de fronteiras de poder” (Rolnik, to longe”. Apesar da repressão policial e do cer-
1997, p. 13) e privilegiando os grupos que estiveram camento da Vila com arame farpado na ocasião,
mais envolvidos em seu processo de formulação. conforme relatos, houve grande resistência por
Desse modo, a autora explica que a legislação grande parte dos moradores, que em sua maioria
funciona como um molde da cidade ideal ou permaneceu no local. Aqueles que se mudaram
desejável, não considerando, necessariamente, para os lotes doados e não retornaram, formaram
a cidade real. Isso pode ser comprovado uma na cidade a então conhecida “Xurupita de Cima”.
vez que o conteúdo das legislações analisado
demonstra um viés específico pautado em um Outro episódio de tentativa de expulsão da co-
modelo higienista, segregador e excludente, munidade foi constatado em conversa com in-
garantindo uma proteção dos espaços da elite tegrante da Prefeitura de Barreiras, que relatou
(ROLNIK, 1997).
9. Paulo Braga foi o prefeito de Barreiras de 1989 a 1992,
Como bem pontua Villaça (2011), ao ser atribuída
antecessor do primeiro mandato de Saulo Pedrosa. Em 2004
à classe dominante o comando referente à pro-
(ano em que, segundo integrante da prefeitura municipal,
dução do espaço, essa não se restringe apenas houve tentativa de reintegração de posse das terras pelos
à sua produção material e direta, seu valor e seu proprietários), Paulo Braga tenta reeleição, sem sucesso.
preço. O comando se estende às ações do Es- Moradores relatam que as terras da Vila Xurupita, lotea-
tado sobre esse mesmo espaço, por meio das mento “Braga e Cia”, é de propriedade de Edgar Braga, fato
legislações urbanísticas, pela implementação não comprovado até o presente momento da Pesquisa.
EIXO TEMÁTICO 2 a tentativa de reintegração de posse das terras
do então loteamento “Braga e Cia” por parte dos
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS proprietários em 2004, sem procedências em
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES razão, novamente, da resistência dos moradores.
Nesse mesmo ano, o Plano Diretor Urbano PDU da
cidade foi aprovado, revogando o “Plano Diretor
Urbano de Barreiras 1990/2005”, e a Vila Xurupita
enquadrada em zoneamento definido como Zona
Central (ZC), novamente não sendo reconhecida
enquanto zona de interesse social10. Esse fato é
postergado até hoje no novo Plano Diretor vigen-
te, “Planejamento Participativo Barreiras 2030”,
aprovado em dezembro de 2019.

Uma vez que não há uma tentativa de resolução


de problemas relacionadas à questão da proprie-
dade imobiliária e da estrutura fundiária nesses
espaços, os planos urbanísticos acabam sendo
apropriados pelas forças do mercado, servindo,
desse modo, como instrumento para um forte
processo de geração de novas formas de acu-
mulação de capital nas cidades e de consequente
segregação sócio-espacial da população que não
detentora de recursos.

A ausência de propostas de regularização fundiá-


ria para a Vila Xurupita é pautada na dualidade le-
gal/extralegal, permitindo assim uma preservação
do território da elite evitando usos indesejados e
degradantes, visando a manutenção do valor de
mercado dessas áreas. Contudo, Maricato (2003)
explica que essa extralegalidade (ou ilegalidade)
não é produzida por um desapego à lei ou por
lideranças que querem afrontá-la, mas sim pela
falta de alternativas.

A essência das ocupações ilegais e da


produção dessa cidade informal está na
ausência de uma política que abranja a

10. O “Plano Diretor Urbano de Barreiras 1990/2005” foi o


primeiro plano diretor aprovado na cidade e único docu-
mento legal em que houve uma leitura da Vila Xurupita
(antiga Vila Papelão, como é mencionada no documento)
como “registro de concentração de habitações precárias”.
Contudo, mesmo com reconhecimento da realidade do local,
não houve formulação de projetos para a área em questão.
Os próximos planos aprovados, “Plano Diretor Urbano PDU”
de 2004 e o “Planejamento Participativo Barreiras 2030” (vi-
gente) não reconhecem a Vila como zoneamento destinado
16º SHCU
a vilas e favelas (Zona Especial de Interesse Social-ZEIS) e
30 anos . Atualização Crítica
a enquadram como Zona Central (ZC) e Zona Central I (ZCI),
1576 respectivamente.
ampliação do mercado legal privado (em Ao tratar desses assentamentos, Milano (2008, p.
outras palavras, é preciso baratear o pro- 1262) aponta que as relações desses espaços com
duto), prevendo a participação de agentes o conjunto da cidade “são marcadas por vínculos
lucrativos e não lucrativos e a promoção ambíguos de pertencimento e exclusão, no plano
pública subsidiada para as famílias cujas simbólico e material”, uma vez que esses espaços
rendas estejam abaixo dos cinco salários “mantêm vínculos permanentes de trocas polí-
mínimos. Em outras palavras, as favelas ticas, econômicas, e culturais com a totalidade
e os loteamentos ilegais continuarão a se da cidade, inclusive em relação aos territórios
reproduzir enquanto o mercado privado e incorporados ao plano da formalidade e regulari-
os governos não apresentarem alternativas dade jurídico-urbanística”. De acordo com Martins
habitacionais (MARICATO, 2003, p. 82) (1999), a oposição entre a cidade legal e a cidade
ilegal é apenas relacionada à questão da formali-
Podemos entender então que a questão da ilega- dade, uma vez que a primeira se nutre da segunda.
lidade e da falta de alternativas habitacionais en- Isso é decorrente do fato de que a dita cidade
quadradas no padrão de legalidade estabelecido ilegal é produzida pela mesma lógica capitalista
são reflexos da ausência de políticas urbanas que de mercado da cidade legal, a diferença é base-
visem o atendimento da população mais pobre ada no fato de que uma fica excluída de direitos.
das cidades. É possível notar o entendimento de Nesse processo, além do Estado contribuir com
uma possível efemeridade dos assentamentos os processos de exclusão, por meio da elabora-
informais, pautada em um conceito de preca- ção de leis inaplicáveis, por exemplo, ele ainda é
riedade, em contraposição a solidez da cidade responsável pela distribuição dos investimentos
formal, onde apenas a essa última são destinados e benefícios urbanos de maneira diferenciadas,
direitos e privilégios (ROLNIK, 1997). privilegiando uma vez mais os setores de maior
renda da sociedade (ALVARENGA, 2005).
É importante notar que essa ausência de
perspectiva relaciona à possibilidade de A falta de políticas públicas para melhoria das
regularização fundiária reflete um movimento áreas de assentamento ilegal por parte do Poder
cíclico, pois os moradores, quando podem, não Público é baseada na ideia de que os assentamen-
se dedicam a investir em melhorias em suas tos informais são provisórios e que, portanto, de-
residências. Isso uma vez que convivem com a saparecerão de onde estão um dia. Essa posição
constante possibilidade de remoção. Desse modo, de provisoriedade e efemeridade “funciona como
a análise do local a partir de uma perspectiva justificativa para o não-investimento público, o
estética pré-estabelecida reforça mais ainda que acaba forçando a precariedade urbanística
a visão de precariedade e necessidade de e, sobretudo, acentuando as diferenças em rela-
intervenções higienistas nesses espaços. ção ao setor da cidade onde houve investimento”
(ROLNIK, 1999, p. 183). A diferença é agravada
ainda mais devido à falta de melhorias nessas
áreas por parte dos moradores, que, na maioria
Infraestrutura urbana das vezes, não possuem os recursos para fazê-lo.
Mesmo que sobrem e/ou existam recursos para
A produção do espaço das cidades brasileiras se- a realização de melhorias, muitas das vezes os
guiu (e ainda segue), ao longo dos anos, um padrão moradores optam por não fazê-lo, devido à inse-
de profunda segregação socioespacial, com uma gurança na posse e as possibilidades de despejo
grande concentração de serviços, equipamentos, sempre iminentes. Esse fato é justificado uma
benefícios e oportunidades em poucas áreas da vez que “o potencial e o entusiasmos das famílias
cidade. Essa urbanização segregadora no Brasil de baixa renda para melhorar suas condições
deu-se, em grande parte, por meio de processos habitacionais depende, [...] em grande parte, não
informais de acesso ao solo e à moradia nas cida- somente de seguridade da posse, mas também
des. Com isso, grande parcela da população ainda da percepção de que a permanência nos assen-
vive sem acesso ao solo urbano, à moradia ou ao tamentos seja segura” (DOEBELE, 1994; GILBERT,
saneamento básico. A partir desses processos de 1994; UNCHS, 1987 apud SOUZA, 2004, p. 131-132).
segregação surgem os assentamentos informais. Com isso, a população permanece em um contex-
EIXO TEMÁTICO 2 to de vulnerabilidade social, com precariedade
na disponibilidade de infraestrutura urbana e de
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS condições adequadas para moradia, remetendo
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES à ideia de “injustiça ambiental” 11.

Criminalidade e estigma

O mito da criminalidade seguido do estigma não


está restrito ao contexto do Vila Xurupita, estan-
do amplamente difundido junto à imagem dos
assentamentos informais pelo Brasil, criando a
estereotipada relação entre violência e periferia/
vila/favela. Chalhoub (2017) explica que historica-
mente houve uma construção da noção de que
“classes pobres” e “classes perigosas” descre-
viam basicamente uma mesma realidade. A partir
dessa construção, entende-se que a pobreza
de um indivíduo é fato suficiente para torná-lo
um “malfeitor em potencial”, criando assim uma
“teoria” da suspeição generalizada. A partir dessa
fundamentação histórica, onde certos indivíduos
eram potencialmente suspeitos, fundamentou-se
uma estratégia de repressão contínua por parte
do poder público, principalmente no âmbito da
segurança pública por meio de forças policiais.
Tais atos são justificados mediante argumento da
manutenção da ordem e proteção da sociedade
como um todo.

Com a caracterização dos assentamentos in-


formais como “antro de suspeito”, inicia-se um
processo de perseguição aos moradores desses
locais. De acordo com Chalhoub (2017), esses
espaços eram ainda caracterizados como pos-
síveis focos de doenças contagiosas, onde as
habitações, muitas vezes coletivas, seriam foco
de irradiação de epidemias. A partir da defini-
ção de uma imagem de espaço sujo, propício à
proliferação de doenças e habitado por sujeitos
potencialmente suspeitos, fez-se possível jus-
tificar as ações higienistas (quando existentes)
nesses espaços. Por meio de conceitos basea-
dos em ações “saneadoras” busca-se erradicar
a “desordem” e “sujeira”, sejam estas de ordem

11. Pode ser definida como a condição de maior exposição


de grupos pobres e socialmente discriminados a riscos
16º SHCU
ambientais. Ler mais em “Justiça ambiental e cidadania”
30 anos . Atualização Crítica
(Acselrad, Herculano e Acselrad, 2004) e “ O que é justiça
1578 ambiental”, (Mello e Bezerra, 2009)
física ou social, uma vez que a imagem desses Chalhoub (2017) explica que esse imaginário criado
espaços é construída a partir desses atributos. tem contribuída muito, em nossa história, para a
No caso da Vila Xurupita, ao serem realizadas pes- inibição do exercício da cidadania dos moradores
quisas referentes ao local12, os resultados fazem desses espaços, quando não para o genocídio
referência à notícias de assassinatos, prisões, dessa população. Isso porque o entendimento
questões relacionadas ao tráfico de drogas e uma da pobreza de um indivíduo muita das vezes é
reportagem denunciando o reflexo do “apartheid” atrelado à figura do malfeitor em potencial, como
social no centro de Barreiras, como já apresen- já dito. Desse modo, a atuação policial nas gran-
tado anteriormente13. des cidades brasileiras, desde pelo menos as
primeiras décadas do século XX, é baseada no
Nesse contexto, a Vila Xurupita está comumente pressuposto da suspeição generalizada. Com isso,
reduzida no linguajar da população como “inva- parte-se da premissa que todo cidadão é suspeito.
são”, “boca de fumo” e local passível de “desapro-
priação”. Essas palavras chaves, sinalizadas em Contudo, a partir de características específicas
conversas com moradores de Barreiras, ainda e bem determinadas, alguns cidadãos tornam-se
associadas às questões da criminalidade, trá- mais suspeitos que outros. É posto que a submis-
fico de drogas e presença constante da Polícia, são da política à técnica, imaginada de uma forma
compõem a imagem estigmatizada da Vila e a “científica” de gestão dos problemas da cidade e
generalização do perfil de seus moradores. Em das diferenças sociais existentes, supostamente
entrevista realizada, um morador relata a discri- estaria acima de interesses particulares e dos
minação14: conflitos sociais em geral, uma vez que esta seria
“neutra”.
Já teve uma época que eu tava subindo, ai,
eu tava ali próximo ali ao pão de ló, aí (sic) a
mulher falou assim “ah vai descer um pesso-
al aqui pro rio” né, o pessoal que usa droga, CONSIDERAÇÕES FINAIS
usuário. Aí ela falou assim “essas porcarias
vai tudo pra Xurupita, lá só tem ladrão”.Aí eu Diante do apresentado, a falta de demarcação
disse “não, a senhora ta (sic) enganada, lá só urbanística ZEIS no processo de construção das
tem morador, ladrão não, esse pessoal que leis urbanísticas, a ausência de reconhecimento
desce ai não é de lá não, vai pra beira do rio, e atuação por parte do Poder Público, a falta de
você não pode empatar eles pra beira do rio informações documentadas acerca da história
não, a senhora ta enganada, se a senhora do lugar e os dados quantitativos em relação
conhecer mais a comunidade a senhora vai aos moradores (número de famílias, faixa etária,
ver, lá todo mundo lá todo mundo trabalha, perfil socioeconômico, etc.), além do crescente
que eu saiba não tem nenhum ladrão não. interesse imobiliário no território em questão,
compõem a problemática da Vila Xurupita na ci-
Em outras palavras, embora na Vila haja crianças, dade de Barreiras-BA.
adolescentes, jovens, homens, mulheres, idosos,
ou seja, os mais variados perfis de moradores tal Ademais, a falta de pavimentação viária e de um
como se observa em todo e qualquer bairro da ci- sistema de drenagem foram constantemente
dade formal, há a generalização e a personificação relatados nas visitas a campo, em razão princi-
do morador, sendo sempre associado ao estigma. palmente da poeira, acúmulo de água pluvial nas
vias, alagamento das casas em dias chuvosos e
dificuldades de mobilidade. Desse modo, todo
12. Buscas realizadas a partir do site Google. esse contexto reforça a necessidade de elabora-
13. Ler mais em: http://www.novoeste.com/index.php?pa- ção de projetos de políticas públicas condizentes
ge=destaque&op=readNews&id=1357 à realidade do local, assim como o resgate da
14. Entrevista concedida por morador da Vila Xurupita ao História e o reconhecimento de seus moradores,
grupo de pesquisa em nome da Universidade Federal de junto à Prefeitura Municipal e à Universidade, na
Minas Gerais (UFMG) e Instituto Federal da Bahia (IFBA), elaboração de conteúdo, informativos e melhorias
em dezembro de 2019. para a Vila.
EIXO TEMÁTICO 2 Com isso, é possível perceber que há um histó-
rico legislativo de reafirmação da inexistência
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS da Vila Xurupita para o poder público onde essa
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES é constantemente desconsiderada em diversos
âmbitos: político, histórico, legislativo e social.
Essa sucessão de leis contribuiu para a formação
de uma geografia social definindo muros para a
cidade: na parte de dentro, a cidade legal, dese-
jada, idealizada e destinada à moradia da elite; e,
para fora, a habitação popular, a irregularidade, a
precariedade e a ausência, configurando, assim,
regiões de plena cidadania e regiões de cidadania
limitada (ROLNIK, 1997).

É possível perceber que o reconhecimento da


Vila Xurupita é caracterizado pela ausência: de
regularidade fundiária, de políticas públicas, de
infraestrutura, de possibilidade de cidadania e
de Estado. Desse modo, “a atuação do Estado no
espaço urbano reafirma os interesses do mercado
imobiliário” (ALVARENGA, 2005, p. 25). Maricato
(2003) explica que essa exclusão ocorre em todos
os âmbitos: social, econômico, ambiental, jurídica
e cultural.

Assim, compreende-se a relevância da Pesquisa


em questão, que inicia um estudo necessário a
respeito da Vila, servindo de base para outras
que poderão vir a ser incrementadas a partir dos
levantamentos ora desenvolvidos.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1580
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EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Neste texto analisamos as margens e margina-
lizações em um acontecimento contemporâneo
em Barreiras (Bahia) na segunda metade do sé-
vídeo-pôster culo XX a partir da expansão do agronegócio na
região do antigo além São Francisco reorganiza-
da como Oeste da Bahia e suas consequências
DIANTE DA FRONTEIRA, A para o mundo urbano. Nas margens urbanas da
nova fronteira agrícola examinamos a expansão
CIDADE BARREIRAS NAS do Estado Brasileiro com novas conformações
políticas de governamentaliade, biopoder, bio-
MARGENS O SENTIDO DA política e a hipótese do racismo como compo-
nente dessa mentalidade de exercício de poder.
BIOPOLÍTICA E O NECROPODER O caráter ensaístico e não definitivo do texto
nos permitiu incursões por alguns conceitos e
(1988-1993) hipóteses e a sustentação dos argumentos a
partir de referenciais e documentos no decor-
rer da pesquisa. Neste interim consideramos
CORRÊA, Diego Carvalho
a pobreza, óbitos, necropolítica, favelização,
Mestre em História; Instituto Federal de Educação, Ciência e dentre outros aspectos, vinculados na nossa in-
Tecnologia da Bahia – Barreiras
terpretação para as novas dinâmicas de ascen-
dccfsa@gmail.com
são de grupos sociais, migrações, colonialismo
e discursos sobre os sujeitos e a cidade como
REIS, Andressa Sousa
ordenativos de sujeição. A cidade se apresentou
Graduanda em arquitetura e Urbanismo; Instituto Federal de como espaço crucial de absorção da desterrito-
Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia – Barreiras
rialização de parte das pessoas do campo para
andressa.sreis292@gmail.com
uma (re)territorialização de formas novas de
exercício de poder no campo/cidade sob o im-
LIMA, Igor de Moraes perativo de uma economia-política caracteriza-
Graduanda em arquitetura e Urbanismo; Instituto Federal de da pelo predomínio da organização da dinâmica
Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia – Barreiras do agronegócio. Apontamos grupos excluídos e
igor_morais9@hotmail.com
a formação de uma nova fração de classe domi-
nante na região bem como a emergência de uma
democracia após o regime ditatorial repercuti-
da num planejamento da cidade com ascensão
de um campo de saber urbano. Ainda que com
o fim do regime político de exceção, interpreta-
mos a continuidade de um estado de exceção
permanente.

BARREIRAS CIDADE AGRONEGÓCIO BIOPOLÍTICA


NECROPOLÍTICA

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1582
ABSTRACT RESUMEN

In this text we analyze the margins and margi- En este texto, analizamos los márgenes y la mar-
nalizations in a contemporary event in Barreiras ginación en un evento contemporáneo en la ciu-
(Bahia) in the second half of the 20th century dad de Barreiras (Bahía) en la segunda mitad del
from the expansion of agribusiness in the region siglo XX y sus consecuencias para el mundo urba-
of the old beyond São Francisco River reorgani- no a partir de la expansión de los agronegocios en
zed as West Bahia and its consequences for the la región otrora nombrada San Francisco y reor-
urban world. On the urban margins of the new ganizada como Oeste de Bahía. En los márgenes
agricultural frontier we examined the expansion urbanos de la nueva frontera agrícola, examina-
of the Brazilian state with new political confor- mos la expansión del Estado brasileño con nuevas
mations of governmental, biopower, biopolitics conformaciones políticas de gubernamentalidad,
and the hypothesis of racism as a component of biopoder, biopolítica y la hipótesis del racismo
this mentality of exercising power. The essayistic como componente de esa mentalidad que ejerce
and not definitive character of the text allowed us el poder. El carácter ensayístico y no definitivo
to incur into some concepts and hypotheses and del texto nos permitió utilizar algunos conceptos
to support the arguments from references and e hipótesis y apoyar los argumentos basados en
documents in the course of the research. In the referencias y documentos. En ese proceso, con-
meantime, we consider poverty, death, necropo- sideramos la pobreza, las muertes, la necropolíti-
litics, slums, among other aspects, linked in our ca, los barrios marginales, entre otros aspectos,
interpretation to the new dynamics of ascension vinculados a las nuevas dinámicas del surgimien-
of social groups, migrations, colonialism and dis- to de grupos sociales, migraciones, colonialismo
courses on subjects and the city as ordinances y discursos sobre los sujetos y la ciudad como
of submission.The city presented itself as a cru- ordenadores de la sujeción. La ciudad se presen-
cial space for absorbing the deterritorialization tó como un espacio crucial para absorber la des-
of part of the people of the countryside towards territorialización de parte de la población rural
a (re)territorialisation of new forms of exercise para una (re) territorialización de nuevas formas
of power in the countryside/city under the im- de ejercicio del poder en el campo/ ciudad bajo
perative of a political economy characterised by el imperativo de una economía política caracte-
the predominance of the organisation of agribu- rizada por el predominio de la organización de la
siness dynamics. We point out excluded groups dinámica de los agronegocios. Señalamos grupos
and the formation of a new dominant class frac- excluidos y la formación de una nueva fracción de
tion in the region as well as the emergence of a la clase dominante en la región, así como el surgi-
democracy after the dictatorial regime reflected miento de una democracia después del régimen
in city planning with the rise of an urban field of dictatorial reflejado en una planificación urbana
knowledge. Even with the end of the political re- con el surgimiento de un campo del saber urbano.
gime of exception, we interpret the continuity of a Incluso con el fin del régimen de excepción políti-
permanent state of exception. ca, interpretamos la continuidad de un Estado de
excepción permanente.

BARREIRAS CITY AGRIBUSINESS BIOPOLITICS


NECROPOLITICS BARREIRAS CIUDAD BIPOLITICA NECROPOLITICA
EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
Planejamento ou falta dele? / As barreiras
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
que impedem ou dão passagem? / Planejar
o quê? / Pra quem? / Bloquear o quê?/De
vídeo-pôster quem?”Andressa Sousa Reis1

A margem pode ser compreendida enquanto “faixa

DIANTE DA FRONTEIRA, A exterior que circunda algo”, também podemos


considerar “espaço livre entre uma coisa e ou-

CIDADE BARREIRAS NAS tra”2. As duas definições permitem compreender


e elaborar/reelaborar3 acontecimentos da cidade
MARGENS O SENTIDO DA de Barreiras em sua história quando da grande
concentração urbana diante da nova fronteira
BIOPOLÍTICA E O NECROPODER agrícola.

(1988-1993) A nova fronteira como expansão de um modelo


capitalista de agronegócio delimitou e constituiu
os sujeitos que protagonizariam o processo, im-
plicando na invenção/reinvenção de um território
através de uma operação de marginalização/su-
balternização de moradores do município e região
perante a função de dirigir o projeto. Criou-se um
sujeito novo e forasteiro, migrantes, sobretudo do
sul do país, que seriam os difusores de um pro-
gresso, desenvolvimento e civilização através da
nova prática agrícola amparados numa concepção
de colonialismo que já encontrava receptividade
em narrativas e discursos de sujeição em Bar-
reiras onde representava-se o sujeito condutor
(CORRÊA, 2018).

Espaços “livres” em parte situaram-se na descida


do Vale onde se localizava a sede do munícipio e
que foi intensamente ocupado pela migração de
pessoas oriundas de varias regiões do nordeste,
sul do país e também do Oeste da Bahia, soman-
do-se a peculiar migração cearense caracterizada

1. REIS, Andressa Sousa. A história que o rio conta


(Poesia). Trecho publicado originalmente neste artigo.
2. Dicionário Online de Português. Disponível em: ht-
tps://www.dicio.com.br/margem/ Acesso em: 15 de
mar de 2020.
3. Referimo-nos a fontes documentais analisadas
para a pesquisa “História, Arquitetura e Urbanismo:
análises de Barreiras na segunda metade do século
XX” coordenada pelo professor Diego Carvalho Corrêa,
16º SHCU
atualmente vinculada ao grupo de pesquisa Estudo
30 anos . Atualização Crítica
Aplicados em Arquitetura e Urbanismo/EAAU do IFBA
1584 campus Barreiras.
em linhas gerais por outros acontecimentos como aparecimentos, acontecimentos e contingências
a construção da BR 241. onde podem brotar fenômenos importantes da
constituição da Barreiras enquanto cidade e sua
Neste texto não fizemos uma apreciação densa integração nacional.
e merecida das práticas urbanas vista de baixo,
pelos usurários, consumidores, como sugere Michael de Certeau assinalou a produção de um
Certeau (1998). Optamos por dar publicidade a saber sobre a cidade que constitui em grande
problemas que emergiram e foram anunciados medida as condutas de dirigentes e dirigidos, as
e debatidos numa rede midiática local e pelos suas formas organizativas;
representantes políticos concernentes ao cres-
cimento urbano e razões que elevaram situações A atopia-utopia do saber ótico leva consigo
de precariedade urbana através do tempo, numa há muito tempo o projeto de superar e arti-
interpretação que vincula as transformações ao cular as contradições nascidas da aglome-
emergente do modelo de agronegócios adotada na ração urbana. Trata-se de gerir um aumento
década de 1970 em diante com uma forte ligação da coleção ou acumulo humano. “A cidade
e herança da obre de Haesbaert(1997). Buscamos é um grande mosteiro” dizia Erasmo. Vista
compreender a construção de discursos urbanos perspectiva e vista prospectiva constituem
e sobre o urbano que definiam o sujeito desta a dupla projeção de um passado opaco e de
condição até o momento aparição de discursos um futuro incerto numa superfície tratá-
urbanísticos disciplinares oriundos do campos vel. Elas inauguram (desde o século XVI?) a
transformação do fato urbano em conceito
de saberes coordenados para um planejamento
de cidade. Muito antes do conceito destacar
mais totalizante da cidade.
uma figura histórica, ele supõe que este fato
Apesar de um aparecimento menos fortuito e seja tratável com uma unidade que depende
disperso, o Plano de Desenvolvimento Urbano de uma racionalidade urbanística. A aliança
(PDU,1989) 4 ancorado no Governo do Estado da da cidade e do conceito jamais os identifica
Bahia, foi ocasião em que ciências que se volta- mas joga com sua progressiva simbiose:
riam para a cidade não se tornariam hegemônica planejar a cidade é ao mesmo tempo pensar
enquanto disciplinas de planejamento, portanto, a própria pluralidade do real e dar efetivida-
outros saberes coordenaram as atividades cor- de a este pensamento do plural: é saber e
relatas a organização da cidade. poder articular (CERTEAU, 1998, pág. 172).

Reelaboramos e reconstituímos como institui- Saber ótico, que vê de fora ou a distância a cida-
ções, jornais, PDU, representações do mundo ur- de, que se eleva ao instituí-la enquanto objeto
bano de Barreiras narraram a cidade e município, de compreensão em seu conjunto, é ao tempo
abarcaram suas condições de desenvolvimento um saber disciplinar, que coordena e constitui
urbano e seus problemas, a ausência de soluções sujeitos do mundo urbano, que exerce poder.
que permitissem uma vida equitativa entre os di- Vendo o passado e futuro, se supõe organizar
ferentes grupos. Os problemas urbanos apresen- uma superfície tratável, como um objeto. O fato
urbano coordenado, tutelado, organizado como
tam uma possibilidade de compreender como as
uma unidade, uma coesão de elementos que for-
formações discursivas, a organização de grupos
mam uma totalidade a ser examina em seu pas-
dominantes e a constituição de espaços topogra-
sado e destinada em seu futuro a partir de uma
fados de exercício de poder, revelam, através de
razão, compreensão, análise e prospecção que
campos materiais e não materiais/materializados
se baseiem em um conhecimento resultante do
nas relações de força, uma estrutura que foi estru-
próprio fenômeno urbano.
turada e que delimitou comportamentos, ações e
saberes. Procuramos compreender emergências, Como condição de aparecimento de uma tec-
nologia de poder disciplinar, ao tempo que um
4. O PDU referenda, neste texto, a possibilidades de poder positivo e negativo, que nega e afirma um
análise de biopoder e necropoder uma vez que denun- sujeito, apresenta, delimita, classifica e funda, é
cia e projeta soluções para ampliação da vida como um um poder/saber, saber/poder (FOUCAULT, 1986).
todo, sem recortes de classe, gênero, região ou raça. Considerando que a materialidade do poder se
EIXO TEMÁTICO 2 verifica nas relações e que um saber altera es-
sas, influência, delimita, normatiza, normaliza,
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS constitui comportamentos, práticas, contingen-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES ciamentos, estes são indissociáveis do poder
na sua materialidade na medida em que não se
subtrai a produção de conhecimento na relação
com o objeto do exercício de poder e vice versa.

Na cidade, por ocasião de um amplo crescimento


migratório e aumento da densidade populacional
e consequente desemprego, más condições de
moradia, de urbanização, precariedade na saú-
de dentre outros efeitos, até o início da década
de1980, vimos à elaboração de um conjunto de
discursos urbanísticos.

Partimos de uma perspectiva que para analisar o


crescimento e desenvolvimento urbano a partir da
expansão do capitalismo, sobretudo, do agrone-
gócio vinculado a um discurso pelo qual se luta e
como se luta que teve por conteúdo, um enuncia-
do (dito) de progresso econômico e civilizacional,
que não explicitava o acontecimento a sua volta
no município. A cidade se torna a localidade onde
o exercício da política e o discurso difundido en-
contram empiria de seus efeitos contraditórios.
Desviar o foco para cidade, inverter o discurso, é
escrutinar o “progresso” controvertido por este de-
senvolvimento, apresentar seus limites e compre-
endê-lo como o esforço de um exercício de poder
que se estabelecia pela mobilização de uma série
de mecanismos, instituições e dispositivos que em
sua finalidade última assegurava novas dinâmicas
de conduta. Aqui apresentamos parte de nossas
incursões sobre a história de Barreiras que segue
em outros textos e os que virão. Não deixa de ser
uma análise da produção dos saberes como efeitos
e meios de lutas para sobreposição de concepções
e constituição de hegemonias sobre as formas
de interpretar, organizar e legitimar esquemas e
representações do urbano delimitando as signi-
ficações que este poderia ter, portanto estamos
descrevendo lutas de posições, assimetrias, hierar-
quias que definiram e dirigiram o desenvolvimento.

Desterritorialização

16º SHCU O exame que apresentamos aqui, se vincula com


30 anos . Atualização Crítica
transformações expressivas e impactantes nas
1586 dinâmicas regionais e local, sobretudo em virtude
de rearranjos econômicos-políticos que consti- suramento topográfico na cidade delimitava as
tuíram uma nova fronteira agrícola. O novo front, formas de existir, mitigava grupos e ornava todos
associou vários setores organizados e que foram num único povo tratável pelo Estado e governo,
organizando-se no desenrolar do processo atra- uma população, que na sua representação máxi-
vés do aparelho estatal e grupos privados, o que ma não deveria evidenciar, pluralidades, grupos,
carece de uma análise ainda profunda e que está conflitos, e discriminação, ocultavam assimetrias.
por vir, mas que aqui apenas apontaremos algu-
mas das interpretações já operadas por outros Por outro lado, a grande migração e predomínio
autores e autoras e algumas incursões nossas. econômico sulista na região e na cidade de Bar-
reiras como local frequente de moradia e centro
Os caminhos interpretativos sobre o Oeste da econômico, administrativo e político da região,
Bahia estabelecem consensos sobre uma região apresentava novas relações sociais e de cisão
de um tipo de vida econômica, cultural e política regionalizada num imaginário da superioridade
pouco integrada com o conjunto do estado e da através do protagonismo e prioridades observa-
União, extensões de terras pouco ocupadas e de das no acontecimento das novas transformações,
uma dinâmica de rentabilidade reduzida para as pois, “Serão sobretudo personagens extralocais
possibilidades e potencialidades que tinha (RO- que aparecerão como os portadores das transfor-
CHA, 2004). Propriedades fundiárias assinaladas mações da região: gaúchos e japoneses em Bar-
por pecuária extensiva e ocupada por muitos e reiras” (KRAYCHETE; COMERFORD, 2012b, p. 99);
muitas posseiras e posseiros que estabeleceram
modos de vida rural diversos, constituindo comu- Num primeiro momento, a grilagem, a ex-
nidades hoje lidas como tradicionais em contra- propriação camponesa, a especulação de
posição a um modelo de capitalismo urbano, rural terras, as empresas de reflorestamento, a
mecanizado, em que a terra e as fronteiras da abertura de estradas e a pecuária tangendo
propriedade são marcadas pela delimitação com a pequena produção aparecem como face
cercas, por exemplo. As cidades na região, até a visível nesse processo. Num segundo mo-
década de 1980 e 1990 que teriam se desenvolvido mento, a paisagem regional se remodela,
mais, foram entrepostos e portos comerciais com a expansão da moderna agricultura de
(SANTOS FILHO, 1989) que se ligavam a outras grãos do cerrado, aprofundando o processo
regiões da Bahia e de outros estados como Goiás. de diferenciação social em curso.

Os impactos somados sobre a população local Estado, vinculado ao capital internacional num
que vivia no campo, desarticularam modos de capitalismo dependente, foi um mecanismo fun-
vidas tradicionais da produção na terra redefinida damental para estímulo a expropriação de terras e
pela capitalização e ausência de possibilidade apropriação de recursos como águas e proletari-
de apresentação de títulos sobre esta e mesmo zação de trabalhadores, mesmo que com sujeitos
a sua aquisição, muitos e muitas se tornaram predominantemente exógenos, este teve crucial
irrelevantes para projeto de colonização. O atra- importância na formação de um grupo hegemô-
tivo dos baixos custos de terra, sobretudo para nico e também na operacionalização de frações
sulistas (SANTOS, 1989) e também a fascinação de de classe social dominante e subalternizada, des-
um modo de vida urbano e a possível empregabi- ruralizando pessoas e conformando os distintos
lidade para outros e outras, fizeram de Barreiras grupos sociais. Um Estado que neste momento
essa aglomeração urbana de muitas culturas, estava em um regime de exceção, a ditadura civil/
modos de viver e ver distintos regionalizados e militar (FICO, 2005), mas que após o fim deste,
que uns sobrepunham-se sobre outro. continuou a produzir a exceção como regra num
Estado de direito. Desestabilizando e desfazendo
As migrações do campo para cidade destituíram relações sociais anteriores que poderia se consti-
laços tradicionais na dispersão das comunidades tuir, na terra, em parâmetros de honra e lealdade
e suas formas de vida que se tornaram objeto de não apenas situado nos sentidos econômicos
poder, desvinculava e estabelecia novos elos de entre camponeses e latifundiários (KRAYCHETE;
ligação social baseado em outros parâmetros de COMERFORD, 2012b, p. 98), promovendo a redução
identidade urbana (HAESBAERT, 19997); o enclau- a um modelo de atividade econômica no campo
EIXO TEMÁTICO 2 e aumentando expressivamente as atividades
urbanas (KRAYCHETE; COMERFORD, 2012b, p. 134)
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

Territorialização

Os efeitos sobre a cidade da desagregação do re-


lações no campo e ampla migração, foram emer-
gindo como acontecimentos, por vezes aleatórios
que não discerniam ou tinha consciência sobre
a racialização dos espaços da cidade e do cam-
po. As implicações como acesso a cuidados de
saúde, qualidade de vida, acesso a um conjunto
de cuidados a que outros teriam, como uma vida
material mais abastada, surgiram na contramão
da afirmação do desenvolvimento e progresso.
Escrutinamos suas emergências e processo de
consolidação, não como algo dito, mas objetivo
no acontecimento a sua volta, o destino de vidas
súditas da arte de governar, a população.

Assim, em Barreiras, expressam-se o destino do


progresso, o predomínio dos melhores adaptados
contra a submissão dos nativos insuficientemen-
te preparados para tal. Com direção estatal e
aumento da burocracia e instituições, saberes
técnicos e outros que condicionaram o desenvol-
vimento, ainda que transformada em polo regional
e centro de relações comerciais e administrativas
dos negócios do campo, Barreiras passou em
sua aglomeração urbana a apresentar inúmeros
problemas de exclusão social, ou seleção, luta
pela vida do mais forte no front, territorializa-
ção de relações poder, que resultam numa topo-
grafização de grupos sociais subalternizados e
dominantes enquanto que “(...) pólo dinâmico da
região, o campo com sua agricultura moderna,
está subordinado a cidades localizadas em outras
regiões e países. Em segundo lugar, a estrutura e
as transformações por que passa a rede urbana
local são determinadas pela penetração da agri-
cultura capitalista no campo” (SANTOS FILHO,
1989, p. 37).

Num território de nova fronteira, de avanço de uma


colonização que agora incorpora o território pela
formação de uma população a qual incidirá seu
poder, controle, na qual um grupo estabelecerá
16º SHCU formalmente contratos de ação e terá consequen-
30 anos . Atualização Crítica
temente preservação, segurança no cuidado e
1588 vantagens sobre os outros na extensão da vida,
os outros serão deixados, sobretudo na cidade de em uma hegemonia, produzida como uma cir-
Barreiras, sem o conjunto do apoio do governo e cunstância de predomínio em que haveria uma
Estado, sem garantia de propriedade, a própria direção política, intelectual e moral associada
sorte, desfortunados que constituem virtudes a dominação política através aparelho público,
para sobrevivência, mas que ainda estão sob o um Estado moderno se expandindo na região,
governo. um Estado de hegemonia tipicamente ocidental
numa concepção de Gramsci (2000). A extensão
A constituição do Estado brasileiro já era debitaria do Estado brasileiro que ofuscava e silenciava,
da constituição de uma enunciação e prática de matava e deixava morrer, preservava em contra-
uma luta de raças e posteriormente do racismo, partida a vida de alguns, estendia, fenômeno que
assim a invenção de territórios regionais, bem foi se constituindo desde a obliteração de grupos
como das regiões centrais se insurge como um sociais nativos e escravizados enraizados diante
caminho para suprimir e mitigar a adaptação ina- do colonizador, gerando tradições, revitalizações
dequada, intransigente quanto a supremacia racial e manutenções de práticas sobre a vida, contu-
como no nordeste (JR. ALBUQUERQUE, 2011), e nas do “o que desaparece nessa feroz luz do poder
esferas centrais do território nacional (SHWARCZ, não é senão a menor imagem ou lampejo de con-
1993). Há um controle para apropriação social de trapoder”(DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 91), e aqui a
um discurso de raça que apresentava condições cidade vai se tornando desde então formidável
favoráveis para supremacia (CORRÊA, 2018). mensageira das contradições que manisfesta
as consequências do biopoder e biopolítica, de-
A regularidade com que os discursos de pionei-
sigualdade no destino da vida, que,
rismo, colonização, civilizadores, progresso, de-
senvolvimento se apresentaram, despontavam (...) trata-se de um conjunto de processos
o caráter de ordem e controle, disciplina como como a proporção dos nascimentos e dos
produtividade econômica associado a uma deli- óbitos, a taxa de reprodução, a fecundi-
mitação da recepção e apropriação social que o
dade de uma população, etc. São esses
conjunto das pessoas deveriam subjetivar e legiti-
processos de natalidade, de mortalidade,
mar como nova ordenação de sujeição política. O
de longevidade que, justamente na segunda
exercício de biopoder organizado numa biopolítica
metade do século XVIII, juntamente com
que de um lado assegurava uma reprodução da
uma porção de problemas econômicos e
vida através de organização pública e privada
políticos (os quais não retorno agora), cons-
para grupos sociais que se constituiriam como
tituíram, acho eu, os primeiros objetos de
dominantes e dirigentes ao tempo que deixava
saber e os primeiros alvos de controle dessa
a sorte a vida de grupos sociais distintos que te-
biopolítica (FOUCAULT, 1999, p. 289-290).
riam a possibilidade de morrer, de fome, doenças,
pauperização e da violência nas disputas de terra Se a territorialização da moderna agricultura
e grilagem e também na cidade. implicou na desterritorialização de anteriores
modos de viver e implica nos controles descritos,
A associação entre grupos privados e agentes
na cidade era o momento de territorializar, tam-
públicos, sobretudo apontados através da buro-
bém, novas tecnologias de poder, instituições,
cracia estatal direcionava holofotes para o pro-
dispositivos, técnicas e saberes onde a maior con-
gresso, assim é que
centração populacional se instalava, a produção
Os grandes “portadores” da modernidade de novos sujeitos era um critério importante de
são os agricultores médios e grandes, or- reescalonamento do Estado e do capitalismo. O
ganizados em cooperativas, as empresas direito do Estado colonizar e seus agentes serem
agropecuárias, comerciais e, ainda, gran- estimuladores a tomar-lhes as culturas e as so-
des bancos e colonizadoras e imobilizarias, breporem em nome de um progresso econômico
além do Estado (SANTOS FILHO, 1989, p. 37). e civilizacional, ao tempo que a vida no front, na
política como expressão da guerra, pode ser justa
Em sentido amplo, a formação de uma sociedade desde que confiada a razão e aos agentes que
civil e aparelhos públicos conformariam os gru- subtraem vidas não humanas, selvagens, desbra-
pos sociais dominantes dirigentes e dominados vam uma cultura tida como inferior, repercussão
EIXO TEMÁTICO 2 e revitalização de paradigmas coloniais que mo-
vimentam personagens em torno de um saber
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS produzido sobre a região, o lugar, o território.
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
Para a cidade vão conjuntos e resíduos de mo-
dos de vidas fragmentados, e suas chegadas se
destinou a ambiente muito menos sofisticados
por técnicas, menos assegurados por trabalho e
assistência do Estado ou outras instituições pri-
vadas em relação aos migrantes sulistas. Assim,
na cidade relegada aos grupos sociais oriundos
de variadas situações, mas na condição de subal-
ternidade, vão se conformados bairros, becos,
ruas, favelas, precariedades e uma vida insalubre.

Se, por um lado, a configuração do municí-


pio apontava para o avanço tecnológico e
científico, a formação dos grandes commo-
dities, a implantação de indústrias para o
desenvolvimento do modelo de agricultura
capitalista, por outro lado, o cenário edu-
cacional apresentava situações contradi-
tórias a esse desenvolvimento (MARTINS,
2016, p.123).

A educação refletia aspectos de assimetrias


decorrentes do fenômeno do desenvolvimento,
que silenciava os acontecimentos em torno do
discurso da modernização, concorrendo a ausên-
cia instituições e “(...) falta de material escolar, e
de limpeza nos prédios(...)” 5, ainda que o mesmo
vereador Antomar Machado corroborasse com os
sentidos discursivos do progresso e desenvolvi-
mento de Barreiras e ainda apontasse fechamen-
to de Escola Agrotécnica (...) por competência de
Waldir Pires(...) 6 por não pagar professores muito
mais como não subsidiário do desenvolvimento.
Evidenciaram-se distinções entre quem acessava
serviços públicos precários e aqueles que eram
preteridos aos grupos subalternos.

O aumento das instituições privadas an-


cora-se nessa realidade, pois os filhos
dos sulistas, agora os detentores do poder
econômico local, precisavam de escolas
que atendessem o status que possuíam
na cidade. As escolas públicas estavam

5. Câmara Municipal de Barreiras. Ata da 30ª Sessão


16º SHCU do primeiro período legislativo, realizado no dia 06 de
30 anos . Atualização Crítica abril de 1988, pág. 109.
1590 6. Idem, ibidem, pag. 109.
longe dessa realidade. Assim como outros roborando com as razões e referências moder-
municípios do Brasil, Barreiras não estava nas de uma economia-política eficiente para a
fora dos padrões educacionais do restante constituição e retroalimentação do capitalismo.
do país no que diz respeito à ampliação do
setor privado. De vinte novas instituições Na cidade ganhou notoriedade nas páginas de
escolares no período de 1980 a 1990, seis jornais as manchetes de problemas urbanos. Coin-
são particulares, representando um per- cide o período com o maior fluxo migratório dos
centual de 30%. O aumento desse setor é sulistas para a região e o município. Esgotos ao
diretamente proporcional à chegada dos centro da cidade, no cais, e “Drasticamente, na
grupos de sulistas que vinham para o muni- beira do rio, as lavadeiras, sem parecer ter noção
cípio como os desbravadores dos cerrados, do esgoto que entra diretamente no local onde
as pessoas que teriam chegado para tirar lavam suas roupas, (...)” 10, e continuam serenas,
Barreiras do atraso, tornando-a uma cidade segundo a matéria, sem dar-se conta do perigo
urbanizada (MARTINS, 2016, p.121). exposto. O rio contaminado era o “Grande”, impor-
tante afluente da São Francisco por onde fluxos
A precoce urbanização acelerada ocasionava comerciais através da navegação ligaram a cidade
pouco planejamento e grande ocupação, seto- a outras regiões e impactou no crescimento ur-
res emergentes se constituíam e especulavam bano anterior a este que examinamos (SANTOS
sobre terras na cidade, empresas organizavam FILHO, 1989, p. 125). Vez por outra surgiam cheias
negócios e lucravam, o ambiente ia se tornando que transbordavam no centro, o que justificava
mais insalubre e sem infraestrutura. Conjuntos aterramento do rio por empresas11 enquanto o
habitacionais projetados disputavam lugar com a rio de ondas era loteado e vendidas chácaras12. A
precariedade, o “conjunto Habitacional Rio Gran- chuvas frequentes anualmente, transformavam
de: um oásis na Vila Brasil” 7 assegurava na imagem a cidade em um “lodaçal” 13, derrubando casas,
representada um projeto que mudaria a cidade deixando desabrigados, levando veículos, que
pela forma propostas das casas, ruas e urbanis- somados a problemas sanitários e de higiene14
mo, mas como singularidade significava, acima apresentavam aqueles e aquelas que estariam
do hostil e desagradável na cidade. mais suscetíveis a doenças e maiores índices de
mortalidade. O PDU (1989) apontou que a redu-
A candidatura de Luiz da Economia confrontava
esse imaginário da cidade, como candidato a pre-
feito sugeria “Uma Barreiras pronta para virada do 10. “Rio de esgoto”. Jornal Novoeste. Ano II, Nº 80,
século. Um pólo agrícola, industrial, tecnológico, Barreiras, BA. 05 de fevereiro de 1993, pág.04
turístico e de qualidade de vida”8, na contramão 11. “Aterro Urgente.” Jornal Novoeste. Ano III, Nº 6,
da implantação de um distrito industrial ou Par- Barreiras, BA. 23 de janeiro de 1992, pág.05
que industrial, o candidato deveria referir-se a 12. Publicidade da Divisa Imobiliária vendendo lotes
agroindústria, uma vez que em período recente de chácaras na margem do rio de Ondas. Jornal No-
a matéria, o vereador Geraldo Nunes indicava ao voeste. Ano III, Nº 66, Barreiras, BA. 23 de janeiro de
governador a implantação deste distrito, além do 1992, pág.05
Complexo Policial e a Penitenciária Regional.9As
13. “Chuva ameaça a cidade” Jornal Novoeste. Ano I,
necessidades do vereador conjeturavam o cres- Nº 28, Barreiras, BA. 29 de janeiro de 1992, pág.01/03
cimento urbano e a necessidades do controle e
14. A vereadora Ignêz Pitta sugere uma campanha
disciplina social, produtividade e sujeição, cor-
de limpeza urbana por que a prefeitura estava “(...)
deixando a desejar(...)”, muito desorganizada. Câmara
7. Jornal Novoeste. Ano I, Nº 34, Barreiras, BA. 14 de Municipal de Barreiras. Ata da 9ª Sessão ordinária do
maio de 1992, pág.04 primeiro período legislativo, realizado no dia 11 de maio
de 1988, pág. 121. Em outra sessão o vereador Jaime
8. Jornal Novoeste. Ano I, Nº 34, Barreiras, BA. 14 de
Pimentel de Souza afirmou que aos garis tinham um
maio de 1992, pág.08
“salário de miséria”, mas ao menos recebiam toda
9. Câmara Municipal de Barreiras. Ata da 16ª Sessão sexta-feira. Câmara Municipal de Barreiras. Ata da
do primeiro período legislativo, realizado no dia 0e de 11ª Sessão ordinária do primeiro período legislativo,
agosto de 1988, pág. 151. realizado no dia 25 de maio de 1988, pág. 126.
EIXO TEMÁTICO 2 ção dos índices, melhoria na qualidade de vida,
deveriam ser impulsionado pela por ações de
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS “aprimoramento do abastecimento de água, na
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES coleta e destino dos esgotos sanitários e resíduos
sólidos, buscando uma maior integração entre os
serviços de saúde e saneamento” (PDU, 1989, p. 91).

As crianças em situação de rua na cidade tam-


bém se tornam questões que irão surgir como
objeto de um controle, de uma ação moderna e
pedagógica (governo das crianças), estas nem
mesmo “local para serem detidas como pequenos
ladrões, pequenos marginais, a cidade oferece”,
bem como locais dignos, “(...) elas moram nas
vilas, periferias. Moram na rua da lama, na Vila
do Papelão, na Invasão do Bueiro.” 15Os problemas
invadem a cidade e com eles as formas impera-
tivas e moderna de biopoder vem junto, e assim
que também houve cobranças de providências
quanto aos “(...) doentes mentais soltos pelas ruas
de nossa cidade” 16.

Em 1984, o maior número de óbitos por problemas


de saúde na cidade, estaria registrado como do-
enças infecto intestinais, e sugere-se que ligadas
as más condições de vida urbana (PDU, 1989, p.
91). Além de poucas instituições de saúde que
atendiam as partes mais empobrecidas, as ati-
vidades poderiam ser interrompidas por motivos
diversos como condições de trabalho, material
e pagamentos de vencimentos. Em 1988 se co-
menta na Câmara Municipal de manifestação de
médicos da cidade devido as péssimas condições
e na mesma sessão em que aparece um convênio
com a Superintendência do Desenvolvimento do
Nordeste (SUDENE) para serviços de drenagem,
aterros e etc. 17, e com outro órgão para constru-
ção de casas populares, o PDU (1989) noticiava um
déficit em torno de 5 mil habitações.

A urbe comportava desabrigados oriundos de


outras regiões do nordeste e norte do país, bem

15.“Criança: uma manhã sem futuro”. Jornal Novoeste.


Ano I, Nº 13, Barreiras, BA. 16 de outubro de 1991, pág.02
16. Controle da degeneração do corpo social. Todos
os portadores de perigos são apresentados em enun-
ciados discurso sobre a população.
16º SHCU
17. Câmara Municipal de Barreiras. Ata da 3ª Sessão
30 anos . Atualização Crítica
ordinária do primeiro período legislativo, realizado no
1592 dia 16 de março de 1988, pág. 101.
como constituía suas favelas e ocupações de A cidade comportava e tentava conformar di-
moradores. A Vila Papelão18 por vezes ganhou versos tipos de conflitos e adequá-los ao con-
manchetes em jornais. Localizada no centro da trole, surgiam novas demandas urbanas como
cidade, a beira do rio Grande, esta anualmente transporte, e autorizada criação do transporte
era acometida por enchentes quando as chuvas urbano21, em poucos anos viria o inédito, a greve
eram recorrentes, com águas pluviais e fluviais do transporte e a prisão de grevistas22.
que se misturavam ao esgoto destinado ao rio. Os
Reclames de ausência de segurança surgiam e o
moradores e moradoras reclamavam de falta de
modelo de resposta era vigilante e punitivo. Soli-
assistência, precariedade e quando muitos foram
citações de policiais para a feira em razão de rou-
transferidos para a Cascalheira, outros resistiram
bos, ou o gradeamento e fechamento com portão
e permaneceram na Vila Papelão e enfrentavam a
de praça para delimitar o horário de trânsito eram
prefeitura para ter a posse da terra. Os que foram
soluções imediatas dos dirigentes municipais23, “A
para a Cascalheira, reclamavam dos custos e pre-
criminalidade, antes quase restrita aos crimes de
cariedade do transporte, falta de água, e outros
mando e grilagens, hoje se intensifica em relação
problemas urbanos19. Além da ocupação do centro
ao patrimônio e agressões por desentendimentos
e a emergência da favelização na cidade como
pessoais”(PDU, 1989, p.96), acompanhada de im-
na Vila Papelão, outras ocupações se emergiam punidade segundo jornais24. A prostituição e seus
como a do Frigorífico Industrial (FRIGOMAP), mais espaços começaram a despertar curiosidade e
tarde doada pela Divisa Imobiliária a Prefeitura e também foram objetos de saber e poder 25, apon-
esta distribuindo posse dos terrenos aos morado- tando a capilarização dos temas euro/modernos
res no período em que se iniciava as campanhas e da governamentalidade, condução de condutas
eleitorais para o poder executivo municipal20. (FOUCAULT, 2008), assim como os pioneiros eram
homens fortes e virtuosos investidos de civilidade
18. Nome dado em virtude do material utilizado nas assinalando o vigor e masculinidade, o homem
construções de casa/barracos. Atualmente a Vila é como o promotor do desenvolvimento e regulan-
chamada de Xurupita pelos moradores e moradoras. do as atividades econômica, sociais, políticas e
Estima-se nos jornais locais, que a favela exista desde culturais a partir de uma distinção de gêneros.
de 1987. “Vila Papelão” Jornal Novoeste. Ano I, Nº 28,
Barreiras, BA. 29 de janeiro de 1992, pág.07 As marcas da utopia dessa cidade que se vista
19. “Chuva ameaça a cidade” Jornal Novoeste. Ano
I, Nº 28, Barreiras, BA. 29 de janeiro de 1992, pág.07 Queiroz, que o considerou “réu primário”, apesar de,
20. “Vila Nova”; “Invasão da Frigomap” Jornal Novoeste. na época, a imprensa ter revelado que ele respondia
Ano I, Nº 34, Barreiras, BA. 17 de junho de 1992, pág.01. O a pelo menos 14 processos por crimes tipificados em
prefeito Paulo Braga apoiva para sua sucessão Bataza- diversos artigos do Código Penal.” Dicionário Biográfi-
rino Andrade que já havia eleito prefeito para o período co-Histórico da Bahia. Disponível em: http://dbhb.fpc.
entre 1973-1976. “Encerrado o mandato, foi acusado de ba.gov.br/2019/12/05/baltazarinoandrade/ Acesso
ser o mandante da invasão da Câmara Municipal ocor- em: 30 de jun 2020.
rida em dezembro de 1977 por jagunços armados com a 21. Câmara Municipal de Barreiras. Ata da 12ª Sessão
finalidade de ameaçar dois vereadores oposicionistas, ordinária do segundo período legislativo, realizado no
os quais terminaram sendo cassados de forma irregu- dia 26 de outubro de 1988, pág. 169.
lar. Três anos depois, o deputado estadual Domingos
Leonelli, do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), 22. Jornal Novoeste. Ano I, Nº 34, Barreiras, BA. 17 de
denunciou-o como grileiro, provocando uma tentativa junho de 1992, pág.08
de agressão. Em 5 de outubro daquele ano, durante 23. “ greve nos Ônibus”. Jornal Novoeste. Ano III, Nº 66,
uma convenção partidária em Barreiras, Baltazarino Barreiras, BA. 23 de janeiro de 1992, pág.03
Andrade baleou no tórax Otacílio Monteiro da França,
24. “Intocáveis por que?”. Jornal Novoeste. Ano II, Nº
então prefeito da cidade, seu amigo de infância e cor-
68, Barreiras, BA. 05 de novembro de 1992, pág.05“Im-
religionário, indicado pelo próprio para sucedê-lo no
punidade até quando?”. Jornal Novoeste. Ano II, Nº 31,
cargo, mas com quem passou a se desentender alguns
Barreiras, BA. 19 de fevereiro de 1992, pág.06
meses após a posse, tornando-se inimigos. Poucos
dias depois de preso, terminou sendo libertado pelo 25. “Elas não usam hipocrisia”. Jornal Novoeste. Ano
juiz da Comarca de Barreiras, Raimundo Antônio de II, Nº 71, Barreiras, BA. 24 novembro de 1992, pág.08
EIXO TEMÁTICO 2 do ponto de vista de saberes óticos, operacio-
nalizava as demandas disciplinares que deveriam
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS sobrepor-se a ela organizando-a tecnicamente,
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES como no agronegócio, e em 1989 insurgirá uma
nova proposta de racionalidade e saber técnico,
o Plano Diretor Urbano(1990).

Mesmo diante dos debates de opositores da câma-


ra sobre governo estadual no desenvolvimento da
cidade, no que concerne a extensão do aparelho
de estado na/da Bahia e formação de grupos so-
ciais dominantes e subalternos, teve papel rele-
vante tanto na criação de empresas públicas de
fomento, em estudos técnicos e financiamento
do moderno agronegócio mesmo que o resulta-
do final a época fosse que 96% dos produtores
fossem do “Centro Sul do país e em sua maioria
vindo após 1980” (SANTOS FILHO, 1989, p. 75) 26.

Travessia para o planejamento,


o saber urbanístico

“Esqueceu-se de que uma cidade vive em


classe divididas”

Cléber Luiz Nascimento27

O Estado precisou produzir a sua população pelas


migrações para territorializar o poder, o agro-
negócio e a cidade do controle, o exercício de
bipoder, necropoder. Por meio do Estado e apa-
relhos privados reformulou-se a fração da classe
dominante no campo e na cidade, sociedade civil,
colonizadoras, empresas e etc. Desenvolveu-se,
também, a população da cidade, os súditos urba-
nos como espaço topografado do poder.

Uma nova conjuntura é notada na cidade de Bar-


reiras e, concomitante ao imaginário de progresso
e desenvolvimento, a oportunidade de acréscimo
econômico e melhores condições de vida, atraía
pessoas. Houvera êxodo jovem no Oeste baiano,

26. Aqui Santos Filho aponta o estudo da CAR-Compa-


nhia de desenvolvimento e Ação Regional pertencente
ao estado da Bahia.
16º SHCU
27. Vila Brasil (Poesia) In: NASCIMENTO, Cléber Luiz.
30 anos . Atualização Crítica
Barreiras: um salto poético. Gráfica e Editora Inde-
1594 pendente Ltda: Brasília-DF, 1983, pag. 34.
e Barreiras era representada como possibilidade suficiente fazendo o rio transbordar e a falta de
de qualidade mais afável de sobrevivência, o que infraestrutura ficou ainda mais evidente na cida-
instiga o risco nessa cidade “grande”, mas que ao de: na Vila Rica o trabalho de drenagem estava
chegarem se deparam com problemas como falta incompleto e no Ouro Branco e Sandra Regina as
de lugar para morar, insegurança, desemprego, aberturas de canais para colocação de manilhas
falta de experiência profissional e moléstias da haviam sido iniciados. Os resultados foram lama,
cidade em crescimento28. carros atolados e pessoas impossibilitadas de
trabalhar, casas cheias de água e desabando, mo-
Em 1991, é apresentado pelo vereador Carlos Au- veis estragados e pessoas desabrigadas. Velhos
gusto Barbosa o projeto de lei que institui o PDU, problemas estavam à mercê de um novo cenário
para o período de 1992 a 2007, elaborado pela Fun- que era apresentado.
dação Centro de Projetos e Estudos do Estado da
Bahia. Contudo, neste novo contexto, a realidade A cidade modifica-se como espaço de disputas
vivenciada se contrapunha ao que era difundido territoriais entre classes, publicadas no jornal
e tem implicações em todos os âmbitos. De um Novoeste, como briga de terras na Vila Brasil,
lado o prefeito anuncia obras que visavam dar numa região conhecida como olaria da Mariazinha,
infraestrutura ao distrito industrial, às margens que traz a constatação na reportagem de que “a
da BR 135, e recursos para construção do anel verdade é que há 25 anos aquilo era um bujo rural
viário e melhorias de estradas no interior, proje- afastado que ninguém queria nem de graça. Hoje
tos estes de ampla dimensão. Por outro lado, a com o crescimento da cidade, o local é cercado
população reclama pela melhoria de iluminação, de loteamentos e vale uma pequena fortuna” 31.
do esgoto a céu aberto, a falta de quebra-molas Com a possibilidade do loteamento e a venda dos
na proximidade de uma escola, ou ainda, falta terrenos, o proprietário reapareceu, juntamente
de pontos de ônibus, assuntos mais sensíveis ao com ligações políticas – era braço direito do De-
seu cotidiano. putado Sebastião Ferreira – e passa com trator
de esteira por cima das olarias, que sustentavam
As prioridades da administração municipal mu- as 40 famílias que haviam se apropriado e que há
dam, mas as carências da população se manti- 25 anos viviam no local e pagavam com 25% de
nham. Tal qual ilustra a reportagem intitulada tudo que produziam para o proprietário.
“Reorganizar o centro” 29, em que o presidente da
Associação Comercial e Cultural do Centro Históri- Outras disputas territoriais acontecem na Vila
co de Barreiras diz: “queremos transformar o cen- Papelão32 e na Ocupação do Barreiras I33. No pri-
tro num Shopping Center a céu aberto, marcando meiro caso, os moradores transferidos para a
suas características históricas”. A opinião de Cascalheira com a justificativa das enchentes
reorganizar com o objetivo de atrair os clientes, frequentes do Rio Grande e com a promessa de
reestruturar para que o cais se torne um ponto terem os documentos legalizando os terrenos.
turístico e transformar o local para que seja mais Contudo, o novo assentamento também se en-
agradável, são termos que nesse momento são contrava em circunstância de calamidade, faltava
colocados em pauta. Em contraponto podemos lâmpada nos postes e havia carência de água,
visualizar outras necessidades mais básicas de o fornecimento se dava pelo abastecimento de
infraestrutura após alagamentos, apontada em uma caixa por carros pipas, havia dificuldade de
certos momentos, como durante as chuvas que pegar transporte e as crianças não conseguiam
ocorreram em janeiro de 199230. Serviços de matrículas por falta de vagas nas escolas. E ain-
drenagem do Rêgo que não tinha escoamento da assim, ao tentarem retornar de onde haviam

28. Jornal Novoeste. Ano II, Nº 70, Barreiras, BA. 17 de 31. Jornal Novoeste. Ano II, Nº 70, Barreiras, BA. 17 de
novembro de 1992, pág.03 novembro de 1992, pág.04
29. Jornal Novoeste. Ano I, Nº 33, Barreiras, BA. 04 de 32. Jornal Novoeste. Ano I, Nº 28, Barreiras, BA. 29 de
março de 1992, pág.06 janeiro de 1992, pág.07
30. Jornal Novoeste. Ano I, Nº 28, Barreiras, BA. 29 de 33. Jornal Novoeste. Ano I, Nº 33, Barreiras, BA. 04 de
janeiro de 1992, pág.03 março de 1992, pág.07
EIXO TEMÁTICO 2 sido retirados, encontraram a Vila cercada com
policiais.
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES No segundo caso, trata-se do primeiro conjunto
habitacional da cidade, construído pela Alencar
Empreendimentos Imobiliários com financiamen-
tos da Caixa Econômica Federal, era esperado a
muito tempo principalmente pela população mais
carente que vivia de aluguel, mas que durante
a fase de ocupação os moradores já passavam
por várias dificuldades. A priori pela distância do
centro, que torna o fator transporte fundamental
para a reprodução da vida dos residentes. No
entanto, a promessa de uma linha de ônibus que
passasse dentro do bairro é impedida pelas con-
dições apresentadas nas ruas que dão acesso,
de tal forma que o ponto mais próximo estava a
cerca 400m da entrada do conjunto. Ao somar
essa situação com a escuridão, grande matagal
e lama na entrada do Barreiras I, sair à noite era
exposição ao perigo.

Tempos antes dos relatos acima, emergiu a nova


Constituição do País, pós-ditadura civil/militar, e
no processo as demandas por planejamento urba-
no e consequente mobilização de grupos que irão
disputar protagonismos nesta nova conjuntura e
“(...) a necessidade urgente de fazer de Barreiras
para seu cidadãos” (PDU, 1989, p. 17). Apesar de
não aprofundarmos neste texto a análise do do-
cumento, ficando para outros escritos, apresen-
tamo-lo como significativo estudo sobre a cidade
que alicerça algumas de nossas incursões. O PDU
apontava uma cidade com severos problemas e
identifica novas razões de crescimento a partir
da interpretação do desenvolvimento anterior. O
documento sugere que grande parte dos óbitos
na cidade tem na ausência de saneamento e in-
fraestrutura centralidade e aponta a importância
da saúde e educação corroborarem para melhoria
das condições.

Em virtude dessa nova conjuntura em que se vis-


lumbra a implantação da democracia no país na
contramão do regime político que antecedia, o
PDU (1989), se opera a partir dessa nova situação
e propõe o protagonismo de moradores e mora-
doras do município através de organizações como
associações e outras. O documento de forma
16º SHCU distinta as práticas identificadas anteriormente
30 anos . Atualização Crítica
não fragmentam ações pontuais na cidade, o novo
1596 saber urbano trata a cidade como um objeto único
e totalizante e estimula a fundação da Associação retirados ou voluntariamente migram, e por vezes
dos Arquitetos e Engenheiros de Barreiras que sob pressão e desejo, de territórios e deixados à
segundo seu presidente, própria sorte sem que o Estado assegure a manu-
tenção da vida e por seus princípios econômicos
O plano diretor é um dever constitucional, que centralizam atividades de governos, fora da
pois, as cidades do porte de Barreiras, por classificação distintiva de “pioneiros”(CORRÊA,
lei, devem ter este plano que prevê, através 2018) do agronegócio, resta-lhes a resistência,
de estudos históricos, com antecedência, as vezes negociada, e a integração muitas ve-
os pontos mais adequados para construí- zes proletarizada na margem do progresso como
rem os bairros habitacionais as reservas na- possibilidade de fixação na cidade. A distinções
turais, ou cinturões verdes, por exemplo.34 de raça e “racismo”, termo caro e por vezes trans-
cendental como à necropolítica, sacrifício de si
Ainda que a situação apontasse para uma e do outro, a morte material e/ou materializada,
outra possibilidade de organização urbana, e biopolítica, se (re) apresentaram35 na cidade
aqui não iremos examinar, mas apenas apontar por suas marginalizações diante do modelo de
imediatamente que o PDU ou a sociedade não iria desenvolvimento.
alcançar ainda nos tempos atuais, a resolução
mesmo que não total de problemas antigos como Apesar de lucrativo e da individualização do des-
a especulação, desemprego, mortalidade para tino das pessoas, o que não está explicito, está
os mais pobres, dentre outros, e a superação de no acontecimento a sua volta, lucro, pobres e
um estado de exceção permanente mesmo numa desempregados, trabalho precário e barato para
democracia vigente. o campo e cidade corroboram com a retroalimen-
tação de um modelo de criação de status quo
para um grupo que se apresentou em definições
regionais, de investimentos, de classificação, hie-
Da governamentalidade em Barreiras: rarquias e contemplação econômica. São grupos
a hipótese do racismo como acontecimento restritos ao qual o governo prioritário das coisas
a sua volta econômicas produz.

A restauração, inserção da marginalidade apre-


Uma cidade “racista” é lida como hipótese do bio- senta um saber sobre este exercício do poder,
poder e biopolítica, uma possibilidade de inter- revela seu aparato interno e a empresa da vida
pretarmos o deixar morrer fazer viver, a pobreza condicionada e conduzida por escolhas não de
destinadas a grupos sociais, uma desrazão das leis súditos, mas de sujeitadores, despoja protagonis-
do Estado que se fundamentava na promoção e a tas e os sistemas de significação de uma ordem.
ampliação da vida - de alguns; como expressão Neste jogo de dissimulação da marginalização
e resultado de um processo histórico que tinha através do Estado, se apresentou como problema
na divisão racial seu alicerce e que foi restituído, na cidade de diversas formas, na mídia, Câma-
realimentado, nos conflitos com sulistas e nos ra Municipal, nas expressões artísticas como a
lugares ocupados no desenrolar do chamado mo- literatura, poesia e outras. Ainda há o esforço
derno agronegócio, em que os acontecimentos de contenção, disciplinarização dos lugares de
revelam o que apontamentos para o necropoder e oposição, significação de restrição do campo
necropolítica. Marginais ao projeto e racionalidade de luta, da assistência social como fator de in-
de governo e do capital nacional e internacional, corporação da governamentalidade, governo e
aqueles que não sendo fatores precípuos para o mentalidade para condução de condutas que
progresso e o desenvolvimento eram empurra- ultrapassam a esfera de um poder emanante ex-
dos para marginalidade e muitos foram mortos
no processo de grilagem de terra. Quando são
35. Sugerimos que não é exclusivo deste período uma
interpretação que pode se operacionalizada da biopolí-
34. “Associação dos Arquitetos e Engenheiros de Bar- tica e necropolítica, mas há aqui uma descontinuidade
reiras”. Jornal Novoeste. Ano II, Nº 54, Barreiras, BA. e a emergência de elementos novos e singulares com
31 de julho de 1992, pág.03 o agronegócio.
EIXO TEMÁTICO 2 clusivamente do Estado ou do governo político, o
imperativo das formas e o esforço de delimitação
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS conteúdos exclusivos, a produção dos sujeitos
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES que protagonizam e aqueles que assistem. Tra-
ta-se da expansão do Estado brasileiro por novas
fronteiras sustentado no espectro de um modelo
que revitaliza performances do colonialismo. O
PDU (1989), apontava:

A construção planejada de uma cidade re-


quer explicitação de imagens-objetivo da
cidade em determinados horizontes tem-
porais como um meio de referenciar a tra-
jetória do crescimento segundo tendências
espontâneas manifestas e os ajustamentos
necessários para que a imagem desejada
seja alcançada (p.21).

A cidade se torna o lugar predominante do exer-


cício do biopoder, das mortes, de pessoas en-
clausuradas e sobre fronteiras urbanas antes
desconhecidas, uma produção de um sujeito
moderno na região, na cidade, o governo dos
outros, a vinculação das experiências humanas
ligadas a um projeto de governo e Estado que
movem a população, condicionam suas vidas, uma
utopia de uma cidade de controle e racialmente
dividida, civilizada pelos sulistas, desenvolvida
pelo progresso. Assim, observar-se a “redução
de produtos alimentares básicos”, “inchamento
da cidade a favelização”, “desemprego disfarçado”
(PDU, 1989, p. 36), mortes por doenças endêmicas
características de ausência de saneamento e
doenças infeciosa intestinais como maior res-
ponsável pelos óbitos na cidade (PDU, 1989, p.
91). Soma-se a esta face de uma necropolítica,
soberania sobre a morte (MBEMBE, 2016) do ou-
tro conferida pelo governo através do Estado e
patrocinada por grupos privados como em assas-
sinatos de sindicalistas na região (KRAYCHETE;
COMERFORD, 2012a), motivados por disputas de
terra diretamente ligada a grilagem e ao agro-
negócio. A face da necropolítica se estabeleceu
sobre a conduta de quem pode e deve morre como
inimigo do progresso, mal adaptado a condições
de um governo econômico de si em paridade com
o governo econômico do território do Oeste sob
chancela do moderno agronegócio. Este sujeito
objeto da morte era o contraponto do desenvol-
16º SHCU vido, um empresário de si que na racionalidade
30 anos . Atualização Crítica
instrumental de governo não conseguiu adequar-
1598 -se nos acontecimentos do capitalismo e predo-
minante, em parte, deixaria de existir na cidade. REFERÊNCIAS
Apresentamos aqui, também, uma possibilidade
BAHIA, SEPLANTEC, CPE. Plano de Diretor
interpretativa através da redução da vivacidade
Urbano de Barreiras (1990/2005). Salvador:
pelo silenciamento da memória (morte materiali-
CPE- 1989.
zada), pelo privilégio político e de cuidado da vida a
partir da fonte econômica como a permissividade BARREIRAS. Plano Diretor Urbano de Barrei-
da extensão da vida e do viver dissimulado no que ras.1989/2005. Salvador-CPE: 1989. 2 Vol.
foi projeto amparado pelo Estado que financiou,
regulou, e criou as condições. A materialidade CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: as
da morte social do sujeito e das culturas pelo artes de fazer. Editora Vozes: Petrópolis, 1998.
silenciamento e destituição de modos de viver e
ver, manutenção da vida em estado de exceção e CORRÊA, Diego Carvalho. Uma civilização
integração populacional pela subtração de iden- em desenvolvimento e os desbravadores de
tidades e a morte biofisica, foram faces do ne- uma região: emergência e reminiscências de
cropoder? Sugerimos, portanto uma chance para narrativas históricas colonialistas e os rastros
história, um réquiem tão perto quanto longe, como da reinvenção do Oeste da Bahia, em Barreiras,
subtração das implicações morais da distância na segunda metade do século XX. Revista do
nos afastam de locais cujo os acontecimentos, Coletivo Seconba, v. 2, n. 1, p. 03-16, nov. 2018.
também, se realizam para evitar a sedução de Disponível em: http://www.revistas.uneb.br/
operacionalização cognoscível de racismo que index.php/seconba/article/view/5494/pdf
geralmente se encontra “longe” da gente. Acesso em: 15 mar de 2020.

A cidade é o documento histórico que apresenta DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos


na sua conformação as assimetria que no século vaga-lumes. Belo Horizonte: Editora da UFMG,
XX em Barreiras se reorganiza a partir de uma 2011.
apropriação da lutas de raças de forma binaria,
que contrapõe e conjectura assimetrias para re- FICO, Carlos. O regime militar no Brasil (1964-
estruturação produtiva do capitalismo. 1985). 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.

O silenciamento dissimulante do racismo que FOUCAULT, Michel, 1926-1984. Segurança, ter-


opera na não objetividade explicita das distinções ritório, população: curso dado no Collège de
entre os grupos e a luta de raças se manifestas France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes,
em enunciados discursivos que banalizam a su- 2008.
perioridade e a sobrevivência e desenvolvimento
socioeconômico da e na cidade a partir de grupos FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio
regionais distintos, e portanto a dependência de de Janeiro: Forense Universitária, 1986.
uns em relação aos outros para efeito do pro-
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade:
gresso.
curso no Collège de France (1975- 1976) São
Se a função do projeto de modernização capitalis- Paulo: Martins Fontes. 1999. - (Coleção Tópicos)
ta no século XX na cidade tem por função a seleção
GRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcere.
da superioridade de protagonismo, significa que
Volume 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
deixar a própria sorte da sobrevivência adequa-
2000.
-se a perspectiva de biopolítica. Uma gestão da
população do território.

HAESBAERT, Rogério. Desterritorialização


e identidade: a rede “gaúcha” no Nordeste.
Niterói: EDUFFF, 1997.

JR. ALBUQUERQUE, D. M. A invenção do nor-


deste e outras artes. São Paulo: Cortez, 2011.
EIXO TEMÁTICO 2 KRAYCHETE, Gabriel, COMERFORD, Jhon C.
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lhos e novos caminhos do além São Francisco.
Feira de Santana: UEFS Editora, 2012b.

KRAYCHETE, Gabriel, COMERFORD, Jhon C.


Oeste Baiano: os movimentos sociais face ao
novo cenário regional. Bahia, século XIX. In:
CARIBÉ,C.; VALE, R. (Orgs.) Oeste da Bahia:
trilhando velhos e novos caminhos do além São
Francisco. Feira de Santana: UEFS Editora,
2012a.

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ROCHA, G. O Rio São Francisco: Fator Precípuo


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SHWARCZ, Lília Mortiz. O espetáculo das raças:


cientistas, instituições e a questão racial no Brasil –

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1600
1601
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Neste artigo, desenvolvemos uma análise acer-
ca dos programas e ações de regeneração ur-
bana realizados na cidade de Torres Vedras,
vídeo-pôster Portugal, notadamente as ações vinculadas ao
Programa Encosta de São Vicente. Partimos
da premissa que as referidas ações seguem os
DO CENTRO HISTÓRICO princípios da conservação integrada, e objeti-
vamos mostrar como o seguir estes princípios
À CIDADE HISTÓRICA: apontam para o estabelecimento de práticas
satisfatórias relativas à requalificação da área,
PROGRAMAS, PROJETOS E que evidenciam uma abordagem inclusiva, sob
o ponto de vista histórico – do Centro Histórico
AÇÕES DE REGENERAÇÃO à Cidade Histórica – e social – pautado nas de-
finições de memória social e memória do lugar
URBANA EM TORRES VEDRAS, . Para isto, abordaremos: a noção de alarga-

PORTUGAL
mento do conceito de patrimônio vinculado a
constituição de novos valores e significações
acerca da temática; às questões relacionadas
às possibilidades de viabilização ações de ar-
FROM THE HISTORICAL CENTER TO THE HISTORIC CITY:
ticulação entre políticas de valorização do pa-
URBAN REGENERATION PROGRAMS, PROJECTS AND
trimônio cultural e política urbana, norteadas
ACTIONS IN TORRES VEDRAS, PORTUGAL
pelos princípios da conservação integrada, bus-
cando equilibrar os valores de significação cul-
DEL CENTRO HISTÓRICO A LA CIUDAD HISTÓRICA:
tural às demandas contemporâneas, com espe-
PROGRAMAS DE REGENERACIÓN URBANA, PROYECTOS
cial atenção às demandas sociais identificadas;
Y ACCIONES EN TORRES VEDRAS, PORTUGAL
e a identificação da aplicação prática destes
princípios nos projetos de intervenção urbana
SILVA CAVALCANTE, Eunádia e arquitetônica realizados na área da Encosta
de São Vicente, com o recorte definido pelos
Doutora; Departamento de Arquitetura, UFRN
eunadiacavalcante@gmail.com Projetos “Centro de Artes e Criatividade – CAC”,
“Espaço entre Bairros”, e “Polo Social e Cultural”.
NASCIMENTO, José Clewton do
Doutor; Departamento de Arquitetura, UFRN ENCOSTA DE SÃO VICENTE TORRES VEDRAS PORTUGAL
jotaclewton@gmail.com
PROGRAMAS DE REGENERAÇÃO URBANA

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1602
ABSTRACT RESUMEN

In this article, we developed an analysis of the En este artículo, desarrollamos un análisis sobre
urban regeneration programs and actions im- los programas y acciones de regeneración urba-
plemented in the city of Torres Vedras, Portugal, na llevados a cabo en la ciudad de Torres Vedras,
notably the actions linked to the Encosta de São Portugal, en particular las acciones vinculadas al
Vicente Program. We start from the premise that Programa Encosta de São Vicente. Partimos de la
these actions follow the principles of integrated premisa de que estas acciones siguen los princi-
conservation, and we aim to present how the fact pios de conservación integrada, y nuestro objeti-
of following these princples points to the esta- vo es mostrar cómo seguir estos principios apun-
blishment of satisfactory practices related to the tan al establecimiento de prácticas satisfactorias
requalification of the area, which evidence an in- relacionadas con la recalificación del área, que
clusive approach, under the historical – from the muestran un enfoque inclusivo, desde el punto de
Historic Center to the Historic City – and social vista histórico - del Centro Histórico a la ciudad
points of view – based on the definitions of social histórica - y social - basado en las definiciones de
memory and memory of the place. For this, we will memoria social y local. Para ello, abordaremos: la
address: the notion of widening the concept of noción de ampliar el concepto de patrimonio vin-
heritage linked to the constitution of new values culado a la constitución de nuevos valores y signi-
and meanings about the theme; the issues rela- ficados sobre el tema; a cuestiones relacionadas
ted to the possibilities of making feasible actions con las posibilidades de hacer factible acciones
for articulation between cultural heritage valuing de articulación entre políticas para valorar el pa-
policies and urban policy, guided by the principles trimonio cultural y la política urbana, guiadas por
of integrated conservation, seeking to balance los principios de conservación integrada, buscan-
the values of cultural significance with contem- do equilibrar los valores de importancia cultural
porary demands, with special attention to the con las demandas contemporáneas, con especial
identified social demands; and the identification atención a las demandas sociales identificadas;
of the practical application of these principles y la identificación de la aplicación práctica de es-
in urban and architectural intervention projects tos principios en los proyectos de intervención ur-
carried out in the area of Encosta de São Vicen- bana y arquitectónica llevados a cabo en el área
te, with the outline defined by the “Centro de Artes de Ladera de São Vicente, con el esquema defi-
e Criatividade – CAC”, “Espaço entre Bairros” and nido por el “Centro de Artes e Criatividade - CAC”,
“Polo Social e Cultural” projects. “Espaço entre Barrios” y “Polo Social y cultural “.

HILLSIDE DE SÃO VICENTE TORRES VEDRAS PORTUGAL LADERA DE SÃO VICENTE TORRES VEDRAS PORTUGAL
URBAN REGENERATION PROGRAMS PROGRAMAS DE REGENERACIÓN URBANA
EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO: programas e ações
de regeneração urbana em torres vedras
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
Em uma apresentação sobre as ações de rege-
neração urbana - em projeto, executadas, ou em
vídeo-pôster execução - na cidade de Torres Vedras, Portugal1
, o arquiteto André Duarte Baptista2 finaliza com
a nota: “do Centro Histórico à Cidade Histórica”,
DO CENTRO HISTÓRICO reportando-se à forma contínua e sequencial que
estas vão sendo planejadas e implementadas, de
À CIDADE HISTÓRICA: modo a: estabelecer conexões (física e social),
entre áreas na cidade; a possibilidade de estabe-
PROGRAMAS, PROJETOS E lecer o reconhecimento da significância histórica
(memória social) de áreas ditas à margem deste
AÇÕES DE REGENERAÇÃO processo, no âmbito do alargamento do conceito
de patrimônio, observado a partir dos anos 1970; e
URBANA EM TORRES VEDRAS, por fim, o entendimento de que as ações em áreas
de significação cultural deverão necessariamente
PORTUGAL serem trabalhadas no contexto de uma dinâmica
sociocultural a revelar uma relação intrínseca
FROM THE HISTORICAL CENTER TO THE HISTORIC CITY: entre passado e presente.
URBAN REGENERATION PROGRAMS, PROJECTS AND
À época, estávamos desenvolvendo pesquisas
ACTIONS IN TORRES VEDRAS, PORTUGAL
relacionadas ao Programa de Regeneração
Urbana da Encosta de São Vicente, e observamos
DEL CENTRO HISTÓRICO A LA CIUDAD HISTÓRICA:
que os aspectos levantados na apresentação
PROGRAMAS DE REGENERACIÓN URBANA, PROYECTOS
condiziam com os encaminhamentos das ações
Y ACCIONES EN TORRES VEDRAS, PORTUGAL
desenvolvidas na área, haja vista a intenção de
“cerzir física e socialmente” a Encosta ao centro
histórico da cidade, com o desafio de minimizar
os efeitos decorrentes de um processo de
desenvolvimento urbano desigual, responsável
por uma nítida divisão da região entre dois polos:
a sul, (morro do Castelo) e a norte (encosta de
São Vicente) onde se constatou que, atualmente,
esses dois polos apresentam “dinâmicas socioe-
conómicas, habitacionais e populacionais com-
pletamente distintas entre si” (PEDU, 2015, p. 11).

Partimos do pressuposto de que a abordagem

1. Apresentação realizada na sessão livre “Apreensões e


Apropriações de Espaços de Significação Cultural em Ações
de Requalificação Urbana: diálogos entre experiências no
Brasil e em Portugal, ocorrida no XVIII ENANPUR, maio
de 2019.

2. André Duarte Baptista é arquiteto lotado na divisão de


Planeamento Estratégico e Territorial do Município de Torres
16º SHCU
Vedras, onde coordena vários projetos associados à rege-
30 anos . Atualização Crítica
neração urbana e à promoção, dinamização e salvaguarda
1604 do património cultural. 
seguida pela gestão municipal de Torres Vedras regeneração urbana da Encosta de São Vicente,
demonstra uma nítida relação de alargamento do com o recorte definido pelos Projetos “Centro de
conceito de patrimônio, afastando-se da visão Artes e Criatividade – CAC”, “Espaço entre Bairros”,
predominantemente negativista apresentada e “Polo Social e Cultural”.
por Françoise Choay em “Alegoria do Patrimônio”
(2001), e aproximando-se do entendimento que
nos passa Leonardo Castriota, na obra “Patrimô-
nio Cultural: conceitos, políticas, instrumentos” O ALARGAMENTO DO CONCEITO E A CONSTITUIÇÃO
(2009): DE NOVOS VALORES E SIGNIFICADOS ATRIBUÍDOS
AO PATRIMÔNIO (CULTURAL)
Já em 1996, Françoise Choay, apontava que
ao lado da expansão tipológica, cronoló-
Há uma vasta literatura que aborda a questão
gica e geográfica dos bens patrimoniais,
das motivações, as transformações e os des-
o seu público teria tido um “crescimento
dobramentos relacionados ao alargamento do
exponencial”. Passando o patrimônio de
conceito de patrimônio cultural, o que não nos
“objeto de culto” à “indústria”. (CASTRIOTA,
cabe nesse artigo o aprofundamento nesse as-
2009, p. 104)
sunto. De fato, a retomada desta discussão esta-
rá relacionada ao campo disciplinar da História,
No entanto, a nosso ver, este fenômeno não de-
no qual identificamos que uma nova abordagem
veria ser visto unicamente através dessa faceta
acerca da interpretação dos fatos históricos vai
negativa, podendo-se constatar concomitante-
tomar corpo, estabelecendo um diálogo mais
mente uma eletiva democratização no campo do
aproximado com outros campos das Ciências
patrimônio, na medida em que, em certa medi-
Humanas – sociologia, antropologia, psicologia,
da, esse público não vai ser apenas consumidor
linguística, geografia, economia – que geram a
passivo de produtos culturais, mas atua também
emergência de novas perspectivas de definição
como cidadão em relação ao seu patrimônio. (CAS-
do tema. Castriota aponta que, para além dos as-
TRIOTA, 2009, p. 105)
pectos tradicionais relacionados à macro história,
Nesse sentido, pautamos a elaboração deste ar- o universo patrimonial incorpora novos aspectos,
tigo de modo a vincularmos este entendimento “que vão desde um interesse pela cultura mate-
às concepções sobre os princípios da conserva- rial (alimentação, vestimenta, habitação, entre
ção integrada (numa visão de continuidade e de outros), até um especial interesse pela cultura
atualizações), tomando como estudo de caso às e pelas mentalidades” (CASTRIOTA, 2009, p. 96).
ações do programa Encosta de São Vicente, Tor-
Essa mudança de perspectiva – do deslocamento
res Vedras, Portugal. A intenção é mostrar como
da esfera dos valores históricos e artísticos para a
a articulação entre esses princípios (alargamento
dos valores culturais e urbanos –, no entender de
do patrimônio - conservação integrada) apontam Castriota, vai para além de uma mudança quan-
para o estabelecimento de práticas satisfatórias titativa, ao se adotar uma visão mais ampliada
relativas à requalificação da área. Para isto, abor- do conceito de patrimônio, bem como de sua
daremos: a noção de alargamento do conceito aplicação prática, ou seja, no âmbito de prática
de patrimônio vinculado a constituição de novos de intervenção urbana, essa perspectiva “leva
valores e significações acerca da temática (me- também a uma maneira diferente de se intervir
mória social – memória do lugar); às questões sobre esse patrimônio, que se desloca [...] do pa-
relacionadas às possibilidades de viabilização das radigma da preservação para os da conservação
ações de articulação entre políticas de valorização e reabilitação” (CASTRIOTA, 2009, p. 227).
do patrimônio cultural e política urbana, nortea-
das pelos princípios da conservação integrada, Trazendo a discussão para o âmbito específico
buscando equilibrar os valores de significação da relação entre cidade e patrimônio, Giulio Carlo
cultural às demandas contemporâneas, com es- Argan apontava, nos anos 1980, para a necessida-
pecial atenção às demandas sociais identificadas. de do reconhecimento da significação artística e
Utilizamos como universo empírico de análise os histórica das partes remanescentes de tecidos
projetos desenvolvidos no âmbito do Programa de urbanos antigos, ao mesmo tempo que conclui que
EIXO TEMÁTICO 2 essa significação “ainda depende certamente de
um juízo acerca da historicidade destes”, desta-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS cando que “esse juízo aplica-se a um campo muito
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES dilatado pelas tendências atuais da historiografia
artística com a adoção de metodologias socioló-
gicas ou antropológicas” (ARGAN, 19933 , p. 77).

Castriota reforça a importância da contribuição


decisiva da Antropologia nesse contexto, trazendo
também outro aspecto importante a se destacar:
“os aportes de grupos e segmentos sociais que
se encontravam à margem da história e da cul-
tura dominante” (CASTRIOTA, 2009, p. 85). Nesse
sentido, o autor vai seguir uma argumentação
de que, na atualidade, as políticas de gestão e
as ações decorrentes dessas políticas deverão
levar em consideração a necessidade de se dar
voz a esses segmentos, a partir da instância da
“memória social”, vinculada a “memória do lugar”:

Nada mais apropriado que se estimularem


processos que promovam o encontro entre
história social e história arquitetônica, que
redescubram a “memória do lugar”, identifi-
cando junto com os residentes locais quais
lugares são mais significativos e porquê.
(CASTRIOTA, 2009, p. 129)

Ancorado no pensamento do filósofo Edward


Casey (1987), Castriota reforça o entendimento
da relação intrínseca entre “memória social” e
“memória dos lugares”:

Uma memória alerta e viva se conectaria,


então, a seu ver, espontaneamente com o
lugar, encontrando nele traços que favo-
recem e se desenvolvem paralelamente
às suas próprias atividades, fato que o leva
afirmar que a memória seria “naturalmente
orientada em relação a lugares (place-orien-
ted) ou, pelo menos, suportada por lugares
(place-supported). (CASTRIOTA, 2009, p. 124)

Além destes aspectos elencados cumpre-nos


também destacar, neste conjunto de mudanças
de significação de valor aos bens patrimoniais, o
fato de que a referida valoração é cada vez mais
vinculada não somente ao bem em si, mas à atri-

16º SHCU
3. A edição do livro utilizada neste artigo é de 1993, porém
30 anos . Atualização Crítica
os escritos de Argan relacionados a essa obra remontam
1606 aos meados dos anos 1980.
buição de valor deferida por quem dele, de modos econômico das comunidades. (CASTRIOTA,
diversos, usufrui. Esta atribuição, portanto, extra- 2009, p. 128)
pola o domínio dos especialistas com relação ao
campo disciplinar da História, Argan aponta: “É É de se salientar que estes novos encaminhamentos
comum, de resto, a distinção entre uma história dados à temática foram respaldados peças
externa, que verifica a consistência dos fatos e discussões ocorridas no âmbito das Cartas de
reúne e controla os testemunhos, e uma história Recomendações elaboradas nos anos 1970, e que
interna, que encontra os motivos e os significados tem na gestão das políticas de preservação um
dos fatos na consciência de quem, uma ou de aporte fundamental. É o que será apresentado e
outra, os viveu” (ARGAN, 1993, p. 14). Em outro discutido no item a seguir.
trecho da mesma obra, Argan comenta:

Mas a cidade – dizia Marcílio Ficino – não é


feita de pedras (hoje, teria dito de plástico), OS PRINCÍPIOS DA CONSERVAÇÃO INTEGRADA:
é feita de homens. Não é a dimensão de AS POSSIBILIDADES DE CONSTRUIR AÇÕES QUE
uma função, é a dimensão da existência
PRIMEM PELA ARTICULAÇÃO ENTRE MEMÓRIA
(ARGAN, 1993, p. 223).
SOCIAL E MEMÓRIA DO LUGAR
São os homens que atribuem valor às pe-
dras, e todos os homens, não apenas os ar- Giulio Carlo Argan, no final dos anos 1970, co-
queólogos ou os literatos. Devemos, portan- loca uma importante questão com relação aos
to, levar em conta não o valor em si, mas a direcionamentos a serem dados pelas políticas
atribuição de valor, não importa quem a faça e ações na cidade:
e a que título seja feita (ARGAN, 1993, p. 228).
De que instrumentos dispomos para impedir
Nesse sentido, compreendemos que as ações que a vida da cidade histórica se congele
pensadas para áreas de interesse histórico-cul- na conservação intransigente, se perturbe
tural, deverão ser baseadas em uma história mais numa absurda tentativa de modernizar o
abrangente e inclusiva com relação aos elementos antigo, se entorpeça nos compromissos, se
de significância cultural, que consequentemente empobreça na representação visível exclusi-
constitui uma cidade histórica mais abrangente va da história das grandes instituições ou do
e inclusiva, marcada por uma relação intrínseca poder, descuidando-se ao contrário, com a
entre memória social e memória do lugar. Sobre história das existências humanas transcor-
esse aspecto, Castriota comenta: ridas entre os seus muros, da imagem ainda
bem viva do vivido? (ARGAN, 19934 , p. 82)
A questão que aparece com força em to-
dos esses exemplos é a de como se lidar
Em seguida, amplia o debate ao fazer o questio-
com os lugares, com os traços físicos do
namento acerca de quem são os responsáveis
passado, de forma que a sua preservação
pelo estabelecimento das políticas e das ações:
seja algo mais que a preservação de “con-
tenedores” vazios, que terminam servin- De um lado, temos as repartições ou mu-
do como museus ou centros culturais ou, nicipais praticamente investidas apenas
noutra vertente, como ambientes propícios de uma autoridade de veto ou de limite,
para reconversões que, via de regra, levam sem nenhuma possibilidade de interven-
ao perverso fenômeno da gentrificação. A ção ativa nos processos vitais da cidade.
resposta a esse tipo de desafio parece-nos Do outro, temos os técnicos, urbanistas e
estar em políticas que valorizem a “memória arquitetos, que elaboram projetos a curto
do lugar”, perspectiva que reúne a história
e a longo prazos com uma perspectiva de
social e a preservação urbana e arquitetô-
futuro que é utopista ou mecanicista, como
nica, num processo que “ancora” espacial-
se fosse inevitável o crescimento ilimitado
mente a memória dos diversos grupos. Essa
perspectiva vai ter grande alcance, podendo
mesmo contribuir para o desenvolvimento 4. Texto escrito em 1979.
EIXO TEMÁTICO 2 com base nas premissas atuais. Temos, por
fim, únicas a possuírem um real poder de
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS decisão, as autoridades governamentais e
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES municipais, muitas vezes mais preocupadas
em responder a oportunidades de necessi-
dades contingentes do que em organizar a
passagem histórica do presente ao futuro
da cidade. (ARGAN, 19935 , p. 82).

Ao analisarmos o conjunto de estudos acerca da


construção teórico-conceitual e das aplicações
na prática relacionados aos princípios da Conser-
vação Integrada, podemos observar a importância
dos documentos Declaração de Amsterdã, de
1975, e Declaração de Nairóbi, de 1976, como
partes constituintes de um processo continuado
orientado por uma perspectiva de valorização do
lugar, com ênfase na permanência da população
e a necessidade da utilização de instrumentos
que possibilitem a valorização destes espaços,
a partir destes novos princípios (CURY, 2000).
Portanto, procurando resolver as questões que
estão explícitas na fala de Argan, apresentada
anteriormente.

A partir destes documentos, observamos a


constituição de um conjunto de aspectos que
evidenciam o norte a ser seguido pelas ações de
reconhecimento, preservação e conservação
dos bens patrimoniais, tais como: a integração
entre as políticas de patrimônio e o planejamento
urbano, levando em consideração que o princípio
da conservação - em oposição à ideia de um cres-
cimento ilimitado - deva ser o objetivo principal
da planificação urbana e territorial; o patrimônio
como riqueza social e, portanto, de responsabi-
lidade coletiva; que as municipalidades são as
principais responsáveis pelo desenvolvimento
dos programas e ações de conservação integrada,
estas calcadas em medidas legislativas e admi-
nistrativas eficazes; a necessidade de se incen-
tivar a participação de organizações privadas nas
tarefas da conservação integrada, em parceria
com as instituições públicas; a orientação de
que a recuperação de áreas urbanas degradadas
deve ser realizada sem modificações substanciais
da composição social dos residentes nas áreas
reabilitadas; a necessidade de um diagnóstico
prévio dos espaços a serem alvos de intervenção,
16º SHCU
possibilitando o conhecimento das circunstâncias
30 anos . Atualização Crítica

1608 5. Idem à nota anterior.


sociais, econômicas e culturais desses comple- Vedras, partindo da premissa de que tais ações
xos; a participação dos habitantes, em um âmbito estão pautadas nos princípios da Conservação
geral, e em particular, os que estão vinculados à Integrada e buscam expandir a ideia de tratar as
prática cotidiana desses espaços; a proteção e a áreas de significação cultural, de uma delimitação
restauração devem ser acompanhadas por “uma reduzida a ideia de “centro histórico” para a ideia
ação de revitalização”, crendo-se ser essencial de uma “cidade histórica”.
“manter as funções já existentes” e “criar outras
novas, compatíveis com o contexto econômico
e social, urbano, regional ou nacional em que se
inserem” (CURY, 2000). PROGRAMAS E AÇÕES DESENVOLVIDOS NA CIDADE
DE TORRES VEDRAS (ANOS 2010-2020): do Centro
Castriota aponta que os princípios da Conserva-
Histórico à Cidade Histórica
ção Integrada estão sendo reconhecidos gradati-
vamente por vários órgãos e instituições ao redor
do mundo, fato que está ocasionando mudanças BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO: a cidade, sua
significativas no campo do patrimônio nas últimas história e a política / gestão de
décadas. Desse modo. “através do planejamento reconhecimento, proteção e requalifIcação
compreensivo para a gestão da conservação,
do patrimônio cultural
vêm se desenvolvendo perspectivas integradas
e interdisciplinares para a preservação do meio
ambiente construído que respondem às condi- Em artigo desenvolvido em 2019, tivemos a opor-
ções da sociedade contemporânea” (CASTRIOTA, tunidade de nos reportar a cidade de Torres Ve-
2009, p. 107). dras, traçando uma breve contextualização his-
tórica, sintetizada nos seguintes aspectos: as
Salientamos também a questão relacionada ao origens de sua conformação urbana remontam
uso / função a ser atribuído aos espaços inter- ao período de ocupação romana (séc. III a.C). A
vencionados. Argan discorre sobre a necessidade presença mulçumana também se faz presente na
de se entender que a cidade, enquanto entidade história do lugar, com origem no ano de 711, com
histórica, deve ser tratada como totalidade: “A a ocupação do morro do Castelo. No ano de 1147
cidade é uma entidade histórica absolutamen- dá-se a Reconquista Cristã, e consequentemente
te unitária, e uma das grandes tarefas culturais a presença marcante da Igreja na morfologia do
dos arquitetos é resgatar as periferias de uma lugar, que se consolida como vila medieval a partir
condição de inferioridade ou até mesmo de se- do século XIV. No século XVI, observa-se uma
micidadania” (ARGAN, 1993, p. 249-250). mudança de paradigma que rege as transforma-
ções urbanas, com o processo de afirmação do
A este aspecto, soma-se o entendimento de que Poder Régio (obras no Castelo; Reconstrução de
o foco principal destas ações deva ser priorita- Edifícios: Igrejas; Paços do Concelho; Convento
riamente “a existência humana como existên- Nª Sr.ª da Graça; Chafariz dos Canos; Hospital da
cia social”, e que, por conseguinte o campo de Santa Casa da Misericórdia).
operações da política urbana deverá consistir
em “toda a esfera social e nem só esta porque, Já o século XIX marca o período das transfor-
a rigor, a realidade que a disciplina urbanística mações vinculadas à Revolução Industrial, cujas
assume como estruturável e se propõe estruturar referências materiais podemos observar ainda
é o mundo inteiro considerado oiké, habitação do hoje na cidade, tais como: a construção da Es-
homem” (ARGAN, 1993, p. 212). tação dos Comboios, em 1886, vinculada ao pro-
cesso de implementação de ramais ferroviários
Neste âmbito, retomando a discussão até então na região, que acarreta outras transformações,
apresentada nesse artigo (alargamento do con- como a consolidação de uma zona Industrial e a
junto de bens; memória social e memória do lugar; construção do bairro dos Ferroviários, em áreas
articulação entre política urbana e política de periurbanas.
preservação; uso/ função), buscaremos vincular
esta base teórico conceitual às ações empreen- No século XX, passa-se a investir em atividades
didas pela gestão municipal da cidade de Torres turísticas, com a exploração das praias e de edi-
EIXO TEMÁTICO 2 ficações conhecidas como Termas. Nesse perí-
odo observa-se o surgimento de novas tipologias
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS edilícias, como hotéis e espaços comerciais (ar-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES mazéns). A industria metalúrgica se faz presente,
bem como os armazéns vinícolas.

Também no século XX temos a construção do


Matadouro Municipal, a norte do Rio Sizandro, que
funcionou por cerca de 100 anos, “tornando-se
a principal referência da identidade e memória
coletiva da população daquela zona da cidade”.
(CENTRO DE ARTES, 2015a, p. 28) Vinculado a
este edifício e à sua função, foram construídos
bairros operários na Encosta de São Vicente, entre
as décadas de 1930/40. Segundo o Memorial de
Candidatura - CAC (2015a):

Na verdade, toda esta área desenvolveu-se


essencialmente através da construção de
bairros operários ou de edifícios de rendi-
mento implantados em terrenos com uma
topografia acidentada, “distantes” física e
socialmente do centro da cidade, tornando
o solo mais económico. No fundo, estas ha-
bitações deram resposta à enorme procura
resultante do desenvolvimento industrial do
início do século XX e a consequente criação
de empregos. Assim surgiram os Bairros
Cruz das Almas, Floresta, Reis e Barreto.
(CENTRO DE ARTES, 2015a, p.29).

A partir dos anos 2000, a cidade tem apresentado


um desenvolvimento urbanístico considerável,
com o surgimento de novas áreas urbanas e im-
plementação de novos equipamentos e funções,
ocasionando um natural aumento da população e,
por conseguinte, apontando desafios importantes
ao nível da organização espacial e funcional da
sua estrutura urbana. Segundo o Plano Estraté-
gico de Desenvolvimento Urbano (PEDU 2015), um
destes desafios consiste em minimizar os efeitos
decorrentes de um processo de desenvolvimento
urbano desigual que se verifica entre as duas
colinas que estruturam o centro da cidade: a sul,
o morro do Castelo, um espaço de grande valor
histórico e simbólico para a cidade, estruturado
em torno do Castelo e Igreja de Santa Maria, e ocu-
pado por usos mais nobres (habitação, comércio,
serviços e equipamentos); a norte, a encosta de
16º SHCU São Vicente, desenvolvida em torno do Forte de
30 anos . Atualização Crítica
São Vicente, também elemento de valor histórico
1610 e patrimonial. A esta última passaremos a nos
reportar com mais profundidade adiante, visto social e cultural. Foi elaborado um diagnóstico
que é onde ocorrem os projetos de requalificação conciso, remetendo ao que se compreende na
urbana e arquitetônica que serão analisados neste Conservação Integrada como “análises prévias”,
artigo, e que tem como principais características estas incorporando – além de dados sobre a histó-
ser uma área periférica, ocupada historicamente ria, aspectos sociais, econômicos, culturais – um
por usos menos nobres como fábricas, bairros processo de discussão com sessões participa-
operários, oficinas e armazéns e que se apresenta tivas, envolvendo a sociedade civil em geral. A
urbanisticamente desqualificada. partir desta base de dados foram estabelecidas
estratégias de intervenção que visaram a qualifi-
cação dos espaços públicos e do ambiente urbano,
focados nos desenvolvimentos econômico, social
SOBRE AÇÕES RELACIONADAS A PROTEÇÃO, e cultural do Centro Histórico. (Figura 1)
SALVAGUARDA E REABILITAÇÃO DO PATRIMÔNIO
EM TORRES VEDRAS

As ações de proteção e salvaguarda do patrimônio


edificado na cidade de Torres Vedras remontam
aos anos 1980 com a criação, em 1987, do Gabinete
Técnico Local (GTL), e na sequência, a entrada
em vigor do Plano de Pormenor de Salvaguarda
da Zona Histórica de Torres Vedras (PPSZHTV) –
1992/2010, com a classificação do Centro histórico
como Área Crítica de Recuperação e Reconversão
Urbanística (ACRRU) - 2000.

A partir das diretrizes estabelecidas no PPSZHTV


– 1992/2010, é construído o Programa “Torres ao
Centro – Regeneração Urbana no Centro Histórico
de Torres Vedras”, sendo sua candidatura subme-
tida à seleção para o Programa Polis XXI (Parcerias
para a Regeneração Urbana), com alcance em
toda a Europa, tendo como agente financiador
majoritário o Fundo Europeu de Desenvolvimen-
to Regional (FEDER). O referido programa visou
estabelecer consensos e parcerias, através do
“Protocolo de Parceria Local” entre a Câmara Mu-
nicipal de Torres Vedras e representatividades da
sociedade civil em geral, perspectiva esta que dia-
loga com os princípios da Conservação Integrada,
visto que intenciona-se a construção de pactos
entre atores para que as ações obtenham maior
abrangência possível com relação aos diversos
segmentos da sociedade civil.

As ações relacionadas ao Programa Polis XXI tive-


ram como foco de atuação o Centro Histórico da
cidade, e foram pensadas de modo a se garantir
uma visão partilhada, visando a integração entre
níveis de escala de atuação: nível territorial, âm-
bito nacional e nível local. Neste último, as ações
primaram pela melhoria da qualidade do Centro
Histórico, em suas dimensões urbana, econômica,
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

Figura 1: Algumas Intervenções vinculadas ao programa


16º SHCU Torres ao Centro. 1. Requalificação dos Largos São Pedro
30 anos . Atualização Crítica
e Wellington; 2. Requalificação do Largo Infante Dom
1612 Henrique. Fonte: CMTV.
Ainda vinculado ao Programa Polis XXI, as ações área de entorno requalificação paisagística das
passaram a englobar o Parque do Choupal, espaço margens do rio; inserção de uma ponte pedonal
contíguo à área delimitada pelo Centro Histórico. a ligar as duas margens do rio; Requalificação da
Em 2014, tem início às obras de Requalificação do ermida de Nossa Senhora do Ameal, uma impor-
referido parque, localizado na margem direita do tante referência histórica da cidade em geral, e da
Rio Sizandro, que tiveram por objetivo dirimir pro- Encosta de São Vicente, em particular; e inserção
blemas relacionados ao isolamento e abandono de dois novos equipamentos – Brinquedoteca e
da área em relação ao centro da cidade, e cujas Cafeteria, em margens opostas – , tendo em vista
intervenções consistiram: na recuperação am- potencializar a apropriação da área. (figura 2)
biental e paisagística do jardim do Choupal e sua
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

Figura 2: Intervenções no Parque do Choupal: Vista aérea


do Parque Fonte: BING Maps (2020); Desenhos de apro-
16º SHCU
ximação. Percurso entre o acesso ao parque, a partir do
30 anos . Atualização Crítica
centro histórico e o parque propriamente dito (desenhos
1614 1, 2 e 3. Fonte: desenhos dos autores.
Nestas duas ações, pudemos identificar que se persistem” (CMTV, 2020).
intencionou estabelecer uma prática de continui-
dade às intervenções realizadas no Centro His- Na proposta da candidatura elaborada pela Câ-
tórico e no Parque do Choupal, ou seja, as ações mara Municipal de Torres Vedras, por intermédio
apontam para uma continuidade espacial que do Plano Estratégico de Desenvolvimento Urbano
visou articular as duas áreas, e que tem a passa- (PEDU 2015), observa-se a necessidade do alinha-
rela pedonal como um forte elemento simbólico. mento entre as estratégias de desenvolvimento
urbano sustentável nas esferas local, nacional e
A partir de 2015, inicia-se o processo de candida- europeia:
tura do Programa de Regeneração Urbana da En-
costa de São Vicente, norteadas pelo Plano Estra- a presente operação responde aos desafios,
tégico de Desenvolvimento Urbano - PEDU 2015, a e alinha-se com as estratégias de desen-
ser submetido ao Programa Portugal 2020. Parte- volvimento urbano sustentável nacionais e
-se, portanto, do princípio de que há a necessidade europeias que colocam hoje a regeneração
de alargar o próprio universo do que se entende urbana como instrumento essencial de revi-
como áreas de reconhecido valor patrimonial na talização das cidades, nas suas dimensões
cidade. No caso em questão, a Encosta de São urbana, ambiental, social e económica. A
Vicente deve ser reconhecida como componente priorização desta opção estratégica re-
de um processo histórico relacionado à consolida- flete-se, naturalmente, nos instrumentos
ção do espaço urbano de Torres Vedras, devendo e nos mecanismos financeiros delineados
ser articulada, integrada com as demais áreas já no quadro da Estratégia Europa 2020 e dos
devidamente reconhecidas como representativas respetivos programas nacionais de progra-
deste processo. É necessário, portanto, para mação financeira. (PEDU, 2015, p. 32)
além do reconhecimento e do estabelecimento de
O PEDU 2015 traz como principal desafio do con-
ações para o Centro Histórico, alargar o limite das
junto das ações, minimizar os efeitos decorren-
ações, estas ancoradas na perspectiva da Cidade
tes de um processo de desenvolvimento urbano
Histórica. As análises das ações de regeneração
desigual: a sul, o morro do Castelo; e a norte, a
urbana propostas para a Encosta de São Vicente
encosta de São Vicente, e pretende-se, portanto,
seguirão esse pressuposto.
“‘aproximar socialmente’ e ‘cerzir fisicamente’ os
dois polos que integram o perímetro da cidade de
Torres Vedras, atualmente com dinâmicas socio-
PROGRAMA DE REGENERAÇÃO URBANA DA ENCOSTA económicas, habitacionais e populacionais com-
pletamente distintas entre si” (PEDU, 2015, p. 11).
DE SÃO VICENTE: COESÃO TERRITORIAL E SOCIAL
Este desafio foi definido a partir de um processo
O Programa Portugal 2020, de âmbito nacional, de diagnóstico e planejamento participativo de
cuja aprovação decorreu no ano de 2014, abrange forma a conhecer os problemas e necessidades,
dimensões distintas que se articulam (política de que gerou o documento “Diagnóstico Social da
desenvolvimento econômico, social, ambiental e Encosta de S. Vicente, Choupal, bairro da Floresta,
territorial), em prol de alcançar o objetivo de esti- bairro Reis, bairro Barreto e bairro dos Ameais”
mular o crescimento e a criação de emprego em (PEDU, 2015, p. 63-64). No referido documento
Portugal. Assim como o ocorrido para viabilizar identificou-se a constatação acerca do isolamen-
o Programa Torres ao Centro, trata-se também to social e cultural em que a população local vive, e
de uma parceria entre Portugal e a Comissão em particular, “a inexistência de locais adequados
Europeia, em que “são definidas as prioridades ao desenvolvimento de atividades culturais e de
de financiamento necessárias para promover iniciativas nesse sentido remata um conjunto
o crescimento inteligente, sustentável e inclu- de condições que descaracterizam o território
sivo, em concordância com as metas definidas e não proporcionam ou incentivam a fixação de
no Plano Nacional de Reformas e na Estratégia população” (PEDU, 2015, p. 6). Também nesse do-
Europa 2020”, e cujos fundos de financiamento cumento é apresentado um quadro de carência
deverão “possibilitar o desenvolvimento do país acerca das acessibilidades e mobilidade desta
e a correção das assimetrias regionais que ainda zona da cidade. Segundo o documento:
EIXO TEMÁTICO 2 Esta área apresenta também graves carên-
cias ao nível da conservação do edificado,
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS mas sobretudo ao nível das acessibilidades,
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES tanto na sua estrutura interna, como na
sua relação com a restante cidade, princi-
palmente por esta configurar o cenário da
“porta norte” da cidade de Torres Vedras.
(PEDU, 2015, p. 63)

Essas ações estão estruturadas em três planos:


o Plano de Ação de Mobilidade Urbana Susten-
tável (PAMUS) – que visa implementar ações de
“promoção de estratégias de baixo teor de car-
bono”; o Plano de Ação de Regeneração Urbana
(PARU) - visa a “adoção de medidas destinadas a
melhorar o ambiente urbano”; e o Plano de Ação
Integrada para as Comunidades Desfavorecidas
(PAICD) – visa a “concessão de apoio à regeneração
física, económica e social das comunidades des-
favorecidas”, definidas em 5 eixos estratégicos de
intervenção prosseguidos pelo PEDU, alcançando
vários dos seus objetivos específicos: Coesão Ter-
ritorial, Coesão Social, Sustentabilidade Ambien-
tal e Uso Eficiente dos Recursos, Competitividade
e Valorização Económica da Cidade, Governança
e Comunicação (PEDU, 2015, p. 10-11).

Um aspecto relevante é o destaque dado à cons-


tatação de relações estreitas – funcionais e de
proximidade – entre as ações inscritas nos três
planos – PAMU, PARU e PAICD. Nesse sentido,
podemos observar uma articulação intrínseca
entre os projetos, tais como: Centro de Artes e
Criatividade (PARU.01); Requalificação urbana e
paisagística do espaço público envolvente ao an-
tigo Matadouro Municipal (PARU.02); Núcleo de in-
cubação social, artística e empresarial (PARU.03);
Polo Social e Cultural (PARU.04) e Projeto Somos
Comunidade (PAICD.01). (figura 3)

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1616
Figura 3 – Desenho de trecho da Encosta de São Vicente. Fonte: desenho dos autores; Mapa dos projetos vinculados ao
Programa Encosta de São Vicente. Fonte: CMTV.
EIXO TEMÁTICO 2 Em resumo, podemos identificar os objetivos do
conjunto de ações que será estabelecido:
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Potenciar a reabilitação urbana, através
de intervenções no edificado e em todo o
tecido urbano envolvente, melhorando a
imagem e as vivências da população em
relação ao espaço e tornando o território
mais atrativo; Reforçar a identidade e o
sentimento de pertença das comunidades
locais e dos torrienses, promovendo igual-
mente a coesão territorial pelas vertentes
social e comunitária numa área de maior
vulnerabilidade social e desqualificação
urbanística; Contribuir para o desenvol-
vimento cultural do território através da
inclusão Social (pela arte e comunicação)
e coesão colmatando fragilidades do terri-
tório ao nível dos espaços de lazer/cultura/
apoio à comunidade. (PEDU, 2015, p. 9)

A análise dos documentos que referenciam o


conjunto das propostas projetuais enfatizam, de
maneira significativa, a intenção de reconhecer
os habitantes como protagonistas da referidas
ações, fato identificável na definição dos pro-
gramas (urbanos e arquitetônicos), que buscam
materializar as premissas de coesão territorial e
social, e que, por conseguinte, abrem o campo de
possibilidades para que esta coesão seja ancora-
da na perpectiva do fortalecimento da memória
social, e por conseguinte, da memória de lugar:
do lugar-Encosta de São Vicente.

A seguir, traremos análises de dois projetos, de


escalas distintas, que têm em comum a intenção
de seguir o princípio básico estabelecido pelo
PEDU 2015, “cerzir física e socialmente as áreas do
Centro Histórico e da Encosta de Torres Vedras: O
Centro de Artes e Criatividade, como projeto de re-
conversão de uso do edifício do antigo Matadouro
Público; e os Projetos Espaço entre Bairros e Polo
Social e Cultural, que visa articular física e social-
mente espaços intra-bairros da área da Encosta.

CENTRO DE ARTES E CRIATIVIDADE – CAC

16º SHCU O espaço intervencionado para receber as ati-


30 anos . Atualização Crítica
vidades do Centro de Artes e Criatividades tra-
1618 ta-se do edifício do antigo Matadouro Público,
cujo projeto integra-se ao PARU (Plano de Ação bana da operação (CENTRO DE ARTES, 2015a, p. 7):
de Regeneração Urbana) e ao PEDU (Plano Es-
tratégico de Desenvolvimento Urbano 2015). O 1. Gerar uma nova centralidade urbana, atra-
edifício é um espaço referencial na área, tanto vés da reabilitação de uma antiga unidade
pela sua presença física e funcional, como por industrial, profundamente desqualificada
ter sido um vetor de ocupação, relacionado ao e degradada;
surgimento das habitações operárias no seu en-
2. “Oferecer” à comunidade residente um
torno. Atualmente, o edifício permanece de forma
espaço público urbano (praça), inexistente
marcante na paisagem, no entanto a suspensão
hoje em dia;
das suas atividades ocasionou o seu abandono e
consequente degradação de seu espaço físico,
3. Introduzir usos e funções de âmbito social,
bem como de seu entorno imediato.
económico, cultural e educacional que refor-
çam a identidade e o sentimento de perten-
A sua forte presença na paisagem, bem como
ça das comunidades locais e dos torrienses;
o reconhecimento do seu valor enquanto bem
representativo de um momento histórico, foram
4. Disponibilizar espaços polivalentes, des-
tomados como mote para a utilização do edifício
tinados ao desenvolvimento de ações para
para criação de uma nova centralidade urbana,
e com as comunidades locais;
vinculada à proposta de reconversão de uso, de
modo a promover a remoção das “cicatrizes e es- 5. Promover a coesão territorial, tornando
tigmas urbanos associados ao antigo matadouro a área atratora de visitantes e residentes;
municipal”. Ou seja, prima-se para a perspectiva
que a requalificação física possibilite também uma 6. Garantir um poderoso efeito de alavanca-
ressignificação de valor do edifício, bem como gem sobre outras iniciativas e intervenien-
sua reinserção como elemento catalisador do tes, capaz de multiplicar o efeito da inter-
sentimento de pertença da comunidade, em que venção sobre o tecido urbano envolvente.
se possa estabelecer um vínculo entre memória
social e memória do lugar: Outro aspecto a salientar na proposta é a arti-
culação entre as escalas de abrangência da re-
Para além do físico, propõe-se a interação qualificação do edifício e seu entorno: podemos
física e vivencial com os espaços envolven- identificar a abrangência territorial da proposta,
tes, na perspectiva do reforço à identidade e ao se definir, desde o princípio, a temática do Car-
o sentimento de pertença das comunidades naval como estruturante, haja vista a referência do
locais e que atraiam novos públicos e visi- carnaval de Torres Vedras no contexto das cidades
tantes. (...) De acordo com as suas orienta- portuguesas. Entretanto, conforme o Memorial
ções estratégicas, CAC afirmar-se-á como de Candidatura, houve a necessidade de revisão
um espaço plural e multidisciplinar, como do programa inicial, motivada pelas “dinâmicas
espaço de experimentação e de inovação de regeneração urbana dos últimos anos”, que
e como espaço de tradição e memória. Os demandaram “a inclusão de outras expressões
serviços e respetivas atividades progra- artísticas, bem como o desenvolvimento e o aco-
madas para o novo Centro, orientados para lhimento de outras acções ligadas à inovação, à
diferentes segmentos de público, procuram criatividade e ao empreendedorismo”: “Para além
responder a motivações e aspirações es- da ‘exploração‘ da dimensão histórica do carnaval,
pecíficas de cada um desses segmentos. o programa do CAC prevê a construção de pontes
(CENTRO DE ARTES, 2015a, p. 51) com outras expressões artísticas e conceber
formas de animação cultural que possam conferir
A premissa da coesão social se faz presente em a este equipamento uma visibilidade e atração
todo corpo do texto do “Memorial Descritivo” da permanentes”. (CENTRO DE ARTES, 2015a, p. 11)
proposta, o que nos remete ao entendimento que
a integração física e social é a ideia-força principal Nesse sentido, “o conceito do CAC evoluiu assim
do projeto. Podemos identificar essa perspectiva para um espaço multidisciplinar e plural, cuja ati-
nos objetivos traçados no âmbito da dimensão ur- vidade cruzará a experimentação com a tradição
EIXO TEMÁTICO 2 e a memória” (referência?). Observamos, portanto,
que a intervenção no lugar de memória Matadouro
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS revela, a partir de sua ressignificação e requalifi-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES cação para receber o CAC, a sua condição de lu-
gar-no-mundo, reforçando a intenção de conside-
rar a comunidade como protagonista no processo.

Em termos funcionais, o conjunto edificado se or-


ganiza em três níveis: No piso térreo estão o átrio,
o espaço polivalente, as exposições temporárias e
a loja; no piso superior, localizam-se a área da ex-
posição permanente, os espaços administrativos
e a área de reserva técnica; e em um piso interme-
diário estão localizados por um lado, os espaços
de recepção de serviço, as instalações sanitárias
e vestiários dos funcionários e, por outro, a área
oficinal e a cafeteria, áreas de vivência da praça,
articulados ao final do percurso da visita. É im-
portante salientar que entre o início e o final deste
percurso situam-se um pequeno pátio, ao nível da
rua, que apresenta uma forte relação com a cida-
de e o espaço público, “sendo não só apropriado
como extensão das exposições temporárias, mas
também, quando necessário, como extensão da
área de cafetaria, no piso superior”. (CMTV, 2017)

Em se tratando da área expositiva, o programa


estabelecido gerou duas componentes: uma vin-
culada ao caráter de exposição cuja estrutura
será permanente que, no entanto, “os conteúdos
podem ser temporariamente substituídos ou cicli-
camente renovados, de acordo com os critérios
que se venham a revelar mais convenientes”; e ou-
tra, a funcionar como uma galeria de exposições
temporárias, “cuja vitalidade será devedora da ca-
pacidade de gerar acções de cooperação e inter-
câmbio com outras instituições, no plano nacional
ou internacional. Esta orientação tem tradução
em duas áreas de exposição distintas a locali-
zar” (Centro de Artes e Criatividade, 2015a, p. 21).

No que diz respeito ao espaço polivalente, este


terá como segmentos preferenciais a população
local e a população escolar, e cuja programação
deste espaço terá direcionamento preferencial
à comunidade, abrangendo áreas como cinema/
documentário, vídeo, conferências, espetáculos
ao vivo, trabalho comunitário e networking (CEN-
TRO DE ARTES, 2015a, p. 53).

16º SHCU Finalmente, com relação ao impacto das novas


30 anos . Atualização Crítica
intervenções nas pré-existências, um percurso
1620 realizado pelo entorno do edifício – cujas obras
encontram-se em fase de conclusão – revelam rassem o uso do subsolo como possibilidade. Por
o considerável grau de impacto das inserções. O outro lado, ao se tomar partido da própria encosta,
resultado formal da composição volumétrica res- criando um espaço de praça que funciona como
ponde à uma demanda programática, que gerou elemento integrador entre o edifício e o entorno, a
a necessidade de uma grande área construída. É proposta valorizou a premissa básica do conjunto
oportuno salientar também que a natureza física de intervenções na Encosta de São Vicente: a
do terreno, apresentando formação rochosa, im- integração/coesão física e social. (Figura 4)
possibilitou a utilização de soluções que conside-

Figura 4: Desenhos do Centro de Artes e Criatividade: relações com o entorno e espaço do anfiteatro. Fonte: Desenhos
dos autores.
EIXO TEMÁTICO 2 SOBRE O POLO SOCIAL E CULTURAL, E O ESPAÇO
ENTRE BAIRROS
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
A intervenção em questão é parte integrante do
Plano de Ação de Regeneração Urbana– PARU, e
trata da reabilitação de três edifícios para instala-
ção de um equipamento de utilização coletiva, ad-
quiridos pela Câmara Municipal de Torres Vedras,
para abrigar atividades relacionadas a projetos
de natureza sociocultural, definidos em parceria
entre a CMTV e associações representativas da
vida cultural da cidade. Este encaminhamento,
construído em sessões participativas organizados
pela CMTV, aponta para o ensejo que a comuni-
dade esteja presente nas decisões acerca dos
projetos a serem implementados.

O Memorial de candidatura deste projeto aponta


para a determinação de uma relação funcional
e programática indissociável com a operação
PARU.01 - Centro de Artes e Criatividade – projeto
analisado anteriormente – e coloca em evidência a
atuação das associações em causa nas decisões da
referida operação, que está estruturada enquanto
projeto arquitetônico, em três núcleos edificados.

Cabe-nos identificar, em um primeiro momento, a


intrínseca relação física e funcional deste projeto
com a operação PARU.08 – Espaço entre bairros
(Reabilitação do espaço público envolvente aos
bairros Floresta, Reis e Barreto) , que consiste
em uma unificação, em termos de intervenção
no espaço público, do território situado entre os
três edifícios. Nesta intervenção prima-se por
criar condições de acessibilidade tanto no espaço
público, como nos equipamentos propostos para a
área, que se desenvolve numa encosta de declive
acentuado, aspecto que motivou a decisão proje-
tual de se criar um acesso direto e linear, definido
por um eixo que norteia o percurso em toda a área.

A ligação entre as cotas de nível é definida por


intermédio de uma escadaria e uma rampa que,
partindo da zona mais baixa, conduzem o tran-
seunte a uma praça intermediária, dotada de um
anfiteatro destinado à realização de diversas ati-
vidades ao ar livre, organizadas ou informais, bem
como ao apoio direto ao Polo Social e Cultural.
Salienta-se também que a intervenção cria mais
16º SHCU um espaço de mirante, tão presente nas cidades
30 anos . Atualização Crítica
portuguesas, o qual proporcionará uma ampla
1622 vista sobre a cidade.
Seguindo o percurso, o projeto prevê uma es- binar três espaços e projetos distintos – espaço
cadaria que levará a uma plataforma superior, a expositivo, espaço polivalente e espaço de tra-
desembocar em uma pequena praça, que funcio- balho –, a atenderem uma demanda por uma rede
nará como uma zona de estadia com o plantio de de equipamentos socioculturais de uso partilhado
árvores e a instalação de mesas e bancos. Assim pelas associações parceiras do projeto. Todos os
como a área do anfiteatro, a praça servirá tam- projetos tiveram como uma das premissas – cada
bém de apoio aos vários equipamentos sociais um tratado a partir de suas especificidades – a
existentes nas imediações e que são destinados, preservação das tipologias edilícias e a adequação
notadamente, à população mais idosa da região, ao uso proposto, com as eventuais necessidades
visto que nestes é marcante a presença desse de inserção de novos elementos no existente. A
perfil de habitante. implantação destes espaços, em proximidade uns
dos outros, e reforçado pela proposta de dese-
Da escala do urbano para a escala arquitetônica, nho do espaço urbano, aponta para possibilidade
podemos identificar também a busca pela me- de unificação territorial dos bairros do entorno,
lhoria das acessibilidades entre os três edifícios incentivando assim a coesão social.
em causa. Segundo o Memorial de candidatura
do referido projeto: Tratando de maneira específica cada um dos pro-
jetos, identificamos o espaço expositivo como
Na articulação funcional e programática uma dimensão pública do Polo Social e Cultural. O
que estabelece entre estas duas opera- seu programa arquitetônico prevê uma pequena
ções, releva-se ainda a “apropriação” por galeria de exposições – que possa acomodar in-
parte do Polo Social e Cultural do espaço tervenções que vão das artes plásticas às artes
público oferecido pelo Espaço entre bairros, performativas – a receber exposições e eventos
permitindo a extensão para o exterior das resultantes das atividades desenvolvidas pelas as-
respetivas atividades e funções, reforçan- sociações parceiras. Além desta sala, o programa
do o propósito central de dinamização do
contempla um espaço de recepção, uma copa de
território. (POLO, 2015c, p. 6)
apoio a eventos e um núcleo de instalações sani-
Com relação aos usos, função e programa, há tárias de acesso público; Com relação ao espaço
uma complementaridade nas atividades a serem polivalente, terá lugar em um edifício localizado
desenvolvidas nos três edifícios, atividades es- no vértice norte do triângulo que os três espaços
tas ligadas à temática do carnaval. Ainda neste inscrevem no território, e terá como função rece-
âmbito, será desenvolvida uma programação cul- ber reuniões e ações de formação relacionadas a
tural em articulação com a Comunidade local, de atividades das associações parceiras. Por fim, o
modo a se promover a inclusão social. Conforme espaço de trabalho terá lugar em um edifício a ser
o Memorial de candidatura, reabilitado, em que se buscou como premissa de
projeto o reconhecimento de suas características
o conteúdo programático desta operação tipológicas, e a adequação aos níveis de habita-
prevê ações que promovam a participação bilidade atuais, transformando-o num espaço de
cívica da comunidade, partilha de experi- serviços. Ao edifício existente, será somado um
ências, capacitação e relações interge- novo volume para suprir a demanda da programa-
racionais” (...) “Este projeto assenta numa ção arquitetônica. No que diz respeito à relação
visão integradora, pretendendo desenvolver entre antigo e novo, o Memorial de candidatura
ações articuladas e diversificadas trans- salienta que “a relação entre o volume existente e
versais a todas as idades. Procurar-se-á a área reconvertida, permite acoplar a fluidez do
articular a relação com a população em gesto à logística dos espaços internos privados
situação de exclusão, dando lugar a ativi- e dos espaços externos públicos”. (POLO, 2015c,
dades intergeracionais tendo subjacen- p. 23) (Figuras 5, 6 e 7)
te os princípios da co-responsabilidade,
participação, parceria, sustentabilidade e Salientamos que não houve nas análises desses
inovação. (POLO, 2015c, p. 10-11) projetos, a intenção de nos debruçarmos de for-
ma mais aprofundada nas intervenções em si,
As intervenções foram pensadas de modo a com- sob o ponto de vista das teorias interventivas.
EIXO TEMÁTICO 2 O que nos interessa é a identificação, na base
conceitual e na concretização dessa base sob
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS forma de projeto (urbano/arquitetônico), do reco-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES nhecimento e ênfase do habitante / comunidade
como protagonista das ações, favorecendo assim
a construção de um campo possível de valorização
da memória social e por conseguinte da memória
do lugar – Encosta de São Vicente, aspecto que
podemos identificar em todo corpo dos textos
referentes aos memoriais pesquisados, do qual
este fragmento sobre o Polo Social e Cultural
confirma o que foi observado:

Tendo em conta o perfil destas associações,


os três edifícios que compõe o Polo Social e
Cultural foram desenhados como espaços
“vivos e abertos à comunidade”, onde se
trabalha com as memórias coletivas, proje-
tando-as no futuro de forma criativa e sus-
tentável, contribuindo assim para o reforço
do sentimento de pertença e identidade, e
autoestima desta comunidade. Um espaço
de todos para todos que se afirma enquanto
palco para a realização de um conjunto de
atividades concebidas com e para a comu-
nidade, através de contributos de natureza
material e imaterial, distribuídas por três
áreas de atuação. (POLO, 2015c, p. 11-12)

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1624
Figura 5: Imagens espaço entre bairros e polo social e cultural. Fonte: desenhos dos autores.
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

Figura 6: Imagens espaço entre bairros e polo social e


16º SHCU
cultural. Fonte: desenhos dos autores.
30 anos . Atualização Crítica

1626
Figura 7: Imagens do projetos do espaço entre bairros e do polo social e cultural. Fonte: CMTV.
EIXO TEMÁTICO 2 CONSIDERAÇÕES FINAIS
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
Ao analisarmos os documentos relacionados aos
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
textos justificativos dos dois projetos selecio-
nados como universo empírico para este artigo,
identificamos que os principos da conservação
integrada são utilizados como norteadores das
referidas ações, dos quais salientamos: a pers-
pectiva do alargamento “patrimonial” (do centro
histórico à cidade histórica); a prática inclusiva
(os habitantes como foco das ações, reveladas
na definição dos usos e por conseguinte progra-
mação arquitetônica dos projetos), que nos leva a
inferir o potencial que estas ações tem de possi-
bilitar o reforço ao sentido de pertencimento dos
habitantes com o lugar, através do vínculo entre
memória social e memória de lugar.

Esse encamihamento tem como base uma política


de gestão territorial, articulada a premissas esta-
belecidas pela gestão municipal, esta em diálogo
com a sociedade civil em suas diversas instâncias,
que possibilitam a continuidade das ações, como
podemos observar nas ações desenvolvidas em
sequência nos âmbitos dos Programas Polis XXI
(Torres ao Centro e Requalificação do Parque do
Choupal) e Portugal 2020 (Regeneração Urbana
da Encosta de São Vicente).

No que tange especificamente às ações desen-


volvidas para a Encosta de São Vicente, pode-
mos observar que a partir dos encaminhamentos
apontados no diagnóstico prévio, notadamente a
constatação acerca do isolamento social e cul-
tural em que a população local vive, bem como a
inexistência de locais adequados ao desenvolvi-
mento de atividades culturais, é traçado o objetivo
de se buscar a Integração física e social da área
(nas escalas da cidade e entre bairros formado-
res da Encosta), objetivo esse que se reflete na
definição do quadro de ações e dos projetos em
seus programas urbanos e arquitetônicos, como
pudemos comprovar nas análises dos projetos
desenvolvidos neste artigo: Centro de Artes e
Criatividade (CAC), Espaço entre bairros e Polo
Social e Cultural. Neste sentido, a Encosta de São
Vicente, integrada física e socialmente à cidade,
poderá e deverá ser compreendida como parte
integrante dessa Cidade Histórica.
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
Para finalizar, há de se salientar que atualmente
1628 a Câmara Municipal de Torres Vedras já vem de-
senvolvendo estudos visando o reconhecimento REFERÊNCIAS
das aldeias como parte integrante da memória
social e memória de lugares do território torrien- ARGAN, Giulio Carlo. História da Arte como
se. Estão sendo realizados levantamentos do História da Cidade. São Paulo: Martins Fontes,
património arquitetônico das referidas aldeias, 1993.
no âmbito da revisão do Plano Diretor Municipal
(PDM), tendo em vista a criação de uma grande CÂMARA MUNICIPAL DE TORRES VEDRAS. Tor-
Área de Reabilitação Urbana (ARU do concelho de res ao Centro: regeneração urbana no centro
Torres Vedras) e, posteriormente, a elaboração de histórico de Torres Vedras. Programa de Acção
programas e ações de reabilitação / valorização de Candidatura, 2008 (O documento contém as
destas áreas. “Fichas de Projectos”).

_______. Torres ao Centro: regeneração urba-


na no centro histórico de Torres Vedras, 2010.

_______. Reabilitação e reconversão do antigo


matadouro municipal – CAC. Newsletter, 2017.
Disponível em: http://www.cm-tvedras.pt/
artigos/detalhes/reabilitacao-e-reconversao-
-do-antigo-matadouro-municipal-cac/. Acesso
em: 24 de junho de 2020.

_______. Projetos PT 2020. Newsletter, 2020.


Disponível em: https://www.cm-tvedras.pt/p/
portugal-2020/. Acesso em: 24 de junho de
2020.

_______. Plano Estratégico de Desenvolvi-


mento Urbano, Torres Vedras (PEDU Torres
Vedras). Setembro/2015. Inclui em anexo o
Plano de Ação de Regeneração Urbana (PARU).

CARTA DE LISBOA sobre a Reabilitação Urbana


Integrada, 1995, disponível em https://www.
culturanorte.pt

CASEY, Edward. Remembering. A Phenomeno-


logical Study. Bloomington: Indiana University
Press, 1987.

CASTRIOTA, Leonardo. Patrimônio Cultural:


conceitos, políticas, instrumentos. São Paulo:
Annablume; Belo Horizonte: IEDS, 2009.

CENTRO DE ARTES e Crıatıvıdade (CAC). Me-


morial de Candıdatura. Parte Integrante do
Plano de Ação de Regeneração Urbana (PARU).
Câmara Munıcıpal de Torres Vedras, 2015 (a).

CENTRO DE ESTUDOS Avançados da Conserva-


ção Integrada – CECI. Plano de Gestão da Con-
servação Urbana: Conceitos e Métodos. Norma
Lacerda e Sílvio Mendes Zancheti / Olinda:
EIXO TEMÁTICO 2 Centro de Estudos Avançados da Conservação
Integrada, 2012.
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES CHOAY, Francoise. A Alegoria do Patrimônio.
São Paulo: Estação Liberdade; UNESP, 2001
(Edição francesa: L’alégorie do patrimoine.
Paris: PUF, 1996).

CURY, Isabelle (org.) Cartas Patrimoniais.


Edições do Patrimônio. IPHAN. Rio de Janeiro,
2000.

ESPAÇO entre Baırros: Reabılıtação do espa-


ço envolvente aos baırros da Floresta, Reıs
e Barreto. Memorial de Candıdatura. Parte
integrante do Plano de Ação de Regeneração
Urbana (PARU). Câmara Munıcıpal de Torres
Vedras, 2015 (b).

POLO Socıal e Cultural. Memorial de Candı-


datura. Parte integrante do Plano de Ação de
Regeneração Urbana (PARU). Câmara Munıcıpal
de Torres Vedras, 2015 (c).

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1630
1631
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Esta pesquisa tem como recorte os primeiros
Encontros de Arte Moderna (1969 - 1974) e suas
dimensões urbanas, em especial o VI Encon-
vídeo-pôster tro, cuja temática foi a própria cidade de Curiti-
ba. Os Encontros foram espaços de renovação
das artes no Paraná e introduziram no estado a
ENCONTROS DE ARTE Arte Contemporânea em diversas dimensões:
happenings, performances, antiarte, arte en-
MODERNA DE CURITIBA: gajada, entre outras. O presente trabalho tem
o propósito de analisar o contexto brasileiro e
A DIMENSÃO URBANA DO paranaense, entender como surge e é aplicada
a ideia dos Encontros anuais e, por fim, analisar
6˚ EAM (1974) as relações entre a arte proposta no VI EAM e a
cidade de Curitiba, dentro do contexto repressi-
vo da ditadura militar.
CURITIBA MODERN ART MEETINGS: THE URBAN
DIMENSION OF THE 6TH MAM (1974)
ENCONTROS DE ARTE MODERNA DIMENSÃO URBANA
ENCUENTROS DE ARTE MODERNO DE CURITIBA: LA
ARTES VISUAIS
DIMENSIÓN URBANA DEL 6˚ EAM (1974)

KOENTOPP, Gabriela
Graduanda; UFPR
gabriela.koentopp@gmail.com

JABUR, Rodrigo Sartori


Professor; CAUUFPR
rodrigojabur@ufpr.br

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1632
ABSTRACT RESUMEN

This research has as a cut-off the first Modern Esta pesquisa tiene como recorte los primeros
Art Meetings (1969 - 1974) and their urban dimen- Encuentros de Arte Moderno (1969 - 1974) y sus di-
sions, especially the Sixth Meeting, whose theme mensiones urbanas, en especial el VI Encuentro,
was the city of Curitiba itself. The Meetings were cuya temática fue la propia ciudad de Curitiba.
spaces for the renovation of arts in Paraná and Los Encuentros fueron espacios de renovación
introduced in that state the Contemporary Art in del arte en Paraná e introdujeron en el estado
several dimensions: happenings, performances, el Arte Contemporáneo en varias dimensiones:
anti-art, engaged art, among others. The present happenings, actuaciones, antiarte, arte com-
work aims at analyzing Brazil and Paraná’s con- prometido, entre otros. El presente estudio tiene
texts, understanding how the idea of the annual el propósito de analizar el contexto brasileño y
Meetings comes up and how it’s applied and, fi- paranaense, entender cómo surge y se aplica la
nally, examining the relationship between the idea de los Encuentros y, por fin, analizar las re-
proposed art in the Sixth Meeting and the city of laciones entre el arte propuesto en el VI EAM y la
Curitiba, within the repressive context of military ciudad de Curitiba, dentro del contexto represivo
dictatorship. de la dictadura militar.

MODERN ART MEETINGS URBAN DIMENSION ENCUENTROS DE ARTE MODERNO DIMENSIÓN URBANA
VISUAL ARTS ARTES VISUALES
EIXO TEMÁTICO 2 CONTEXTO BRASILEIRO E SUAS INTERRELAÇÕES
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
No panorama brasileiro, é notória a contribuição
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
dos artistas da chamada vanguarda das artes.
Segundo Otília Arantes (apud REIS, 2006), são
observadas no século XX três vanguardas artís-
vídeo-pôster
ticas brasileiras: o movimento modernista dos
anos 1920/30, os concretistas/abstracionistas

ENCONTROS DE ARTE dos anos 1950 e a Nova Vanguarda dos anos 1960.
No presente trabalho, abordaremos a experimen-
MODERNA DE CURITIBA: tação e a renovação da linguagem artística da
Nova Vanguarda, principalmente, no contexto
A DIMENSÃO URBANA DO paranaense dos anos 1960. Antes de adentrar às
particularidades e especificidades do movimento
6˚ EAM (1974) no Paraná, é preciso compreender o contexto
nacional e as influências regionais. 

CURITIBA MODERN ART MEETINGS: THE URBAN A partir do golpe militar de 1964, o movimento da
DIMENSION OF THE 6TH MAM (1974) Nova Vanguarda vai se estruturando e se delineia
frente ao contexto autoritário da época. Neste
ENCUENTROS DE ARTE MODERNO DE CURITIBA: LA contexto, a figura do artista liga-se à da resistên-
DIMENSIÓN URBANA DEL 6˚ EAM (1974) cia política, sendo que suas obras experimentais
relacionam-se, seja pela efemeridade ou con-
frontamento, com os movimentos de oposição
ao regime (FABRIS, A. apud FREITAS, 2017). 

A primeira manifestação coletiva de artistas plás-


ticos contra o golpe militar foi Opinião 65 (RIBEIRO,
1997 apud MALMACEDA, 2018). Figuras importan-
tes que participaram desta exposição foram Hélio
Oiticica e Waldemar Cordeiro. Ambos extrapola-
ram a discussão construtiva e preconizaram, na
mostra, o fazer artístico da Nova Vanguarda dos
anos 1960. Oiticica apresentou seus parangolés
pela primeira vez e Cordeiro, seus popcretos. 

Oiticica inseriu, neste momento, na arte brasileira


dimensões que seriam fundamentais na Nova
Vanguarda, como o tempo incorporado à obra e a
participação ativa do espectador. Enquanto isso,
Waldemar Cordeiro utilizava-se do princípio dada -
duchampiano de apropriação de objetos de uso co-
tidiano na arte. Além disso, ele questionava o rigor
geométrico do movimento concreto dos anos 1950. 

Dois anos depois, na mostra “Nova Objetividade


Brasileira”, realizada no Museu de Arte Moderna
do Rio de Janeiro (MAM-RJ), a obra de arte passou
a ser denominada objeto, não mais separada por
16º SHCU tipologias específicas, como pintura ou escultu-
30 anos . Atualização Crítica
ra. O objetivo era a abolição dos “ismos” na arte,
1634 levando o status do movimento a aproximar-se
da antiarte (MALMACEDA, 2018). Levantaram-se MACEDA, 2018). Isto demandou um novo posicio-
questões de cunho social e político, mas também namento dos artistas, período que Oiticica chama
em relação ao espaço público: como propor uma de “momento ético”, quando se fundem crítica
arte coletiva enquanto os espaços comuns esta- social e obra (REIS, 2006). A crise política exige
vam sob controle autoritário?  comprometimento também dos críticos de arte,
que reagiram à censura a partir do movimento
Novamente fundamental neste contexto foi o de repúdio internacional da ABCA (Associação
artista Hélio Oiticica, que estrutura um projeto de Brasileira de Críticos de Arte).
vanguarda o qual estabelece uma relação entre
arte, sujeito, sociedade e vivência. Oiticica pontua O crítico Frederico Morais foi figura central neste
o comprometimento do artista com sua história, a momento. Ele escreve seu texto “Contra a arte
superação do cavalete e o entendimento do objeto afluente: O corpo é o motor da obra” apoiado nos
como apreensão conceitual da obra, nunca como escritos de Hélio Oiticica. Contudo, inverte-se a
autônomo dissociado de seu contexto cultural, “tendência para o objeto” para a “proposição de
social e político, como bases da Nova Vanguarda situações”, ou seja, inclui na obra a vivência de
(REIS, 2006). situações na rua, exposição ou galeria (FREITAS,
2014).
Para Hélio Oiticica, os fatores tempo e vivência
eram fundamentais nas obras de arte, além disso, Para Morais, a arte deveria ser cambiante, assim
dever-se-ia juntar pensamento de vanguarda e como o contexto político instável e contraditório,
engajamento político (MALMACEDA, 2018). Outro pois era necessário associar a vida social/política
ponto destacado pelo artista, e de fundamental à experiência estética. Via-se o risco como única
importância para o presente trabalho, foi a visão alternativa para a resistência cultural. O crítico
do espaço público como parte de uma nova arte também traz em seus escritos a presença do cor-
coletiva. Olhar para o espaço urbano tinha como po na obra. Corpo do artista e corpo do espectador
objetivo ampliar as fronteiras das exposições para são corpos de resistência política. Para que isso
a própria cidade. Deveria haver sintonia entre a fosse possível, era necessário retirar o público
produção do artista e realidade local, assim como da passividade. Neste contexto, as obras de arte
a participação do espectador, sujeito da história e seriam como “emboscadas” para o público, sendo
com consciência social. Neste contexto, a criação o artista propositor destas situações.
coletiva é primordial, diferente do posicionamento
do artista como gênio criador (MALMACEDA, 2018). Participar de uma situação artística hoje é
como estar na selva ou na favela. A todo mo-
Muda o papel do artista - de criador para propo- mento pode surgir a emboscada da qual só
sitor. Oiticica ressalta a dualidade entre partici- sai ileso, ou mesmo vivo, quem tomar inicia-
pação do espectador na obra e participação do tivas. E tomar iniciativas é alargar a capa-
artista no espaço coletivo (REIS, 2006). É impor- cidade perceptiva, função primeira da arte
tante ressaltar que a crença na função pedagógica (MORAIS, 1970 apud FREITAS, 2014, p. 168).
da arte permeava os discursos artísticos, assim
como a participação do artista na crítica social. Dentro do contexto de repressão política, foram
Todos estes movimentos tentavam compreender nas exposições de arte que a maior parte das
o “novo cotidiano dos grandes centros urbanos e experimentações formais pode ocorrer. Além das
de uma sociedade cada vez mais midiática” (MAL- citadas anteriormente, outra importante mostra
MACEDA, 2018, p. 80).  foi organizada por Morais em Belo Horizonte (1970).
“Do corpo à terra”, realizada em comemoração
A radicalização do movimento artístico foi para- à Semana da Inconfidência, configura a nova
lela ao crescente cenário autoritário do regime discussão da arte conceitual no Brasil: opera
militar, que culminou no AI-5 (1968), responsável como desmaterialização da obra e propõe um
por institucionalizar a repressão política. (FREI- diálogo entre arte e vida urbana (REIS, 2006). A
TAS, 2014). Após o Ato Institucional, iniciam-se cidade tornou-se o suporte das intervenções,
os “anos de chumbo” da ditadura militar. Direitos sendo a estética do lixo - uso de materiais não
constitucionais foram suprimidos e a censura nobres - uma resposta subdesenvolvida contra
sobre as manifestações culturais aumentou (MAL- a “impessoalidade da máquina, a alienação das
EIXO TEMÁTICO 2 sociedades afluentes e o aparente racionalismo
da relação arte-tecnologia” (FREITAS, 2014, p. 174). 
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Segundo Malmaceda (2018), das tendências ar-
tísticas da década de 1960, foi fundamental o
movimento de arte conceitual na ruptura com
o paradigma da arte “acadêmica” e questionar o
objetivo da arte. A arte conceitualista era mais
processual, imprevisível e de aproximação com
a vida, pois só assim a arte teria sentido. Lucy
Lippard (1973 apud MALMACEDA, 2018) define
que na arte conceitual a materialidade é menos
importante do que a ideia. Sua desmaterialização
também se relaciona com a negação da comer-
cialização, rompe com a dependência da arte à
forma física e possibilita uma aproximação com
a realidade social, política, econômica.

CENÁRIO CULTURAL CURITIBANO E OS


PRIMEIROS EAMs

Como foi visto anteriormente, no final dos anos


1960, vivia-se um momento de inquietação polí-
tica e artística no Brasil. É válido observar que as
importantes ações artísticas estavam ocorrendo
no sudeste brasileiro, em cidades como São Paulo,
Rio de Janeiro e Belo Horizonte. No Paraná, ao
contrário, a calma na cena das artes beirava a
apatia (BINI, 2011). De encontro a este posicio-
namento, além da influência dos movimentos
políticos externos, tanto das guerras como do
maio francês em 1968, os estudantes curitibanos
se revoltaram contra a repressão ditatorial.

O Paraná também queria ser vanguarda. As infor-


mações sobre novas movimentações artísticas
chegavam até Curitiba, como a Nova Figuração,
Nova Objetividade, a arte sensorial, os happenin-
gs, etc. É neste momento (1968) que a professora
Adalice Araújo, figura central para o movimento de
renovação da Arte Contemporânea no Paraná, co-
meça a lecionar a disciplina de História da Arte na
EMBAP (Escola de Música e Belas Artes do Paraná).

A EMBAP, contudo, era uma instituição bastante


tradicional que se mantinha sob a “égide acadêmi-
ca” (BINI, 2011). A fim de combater o academicismo
16º SHCU da escola e atualizar o currículo do curso de Artes
30 anos . Atualização Crítica
Visuais, Adalice Araújo lança, em 1968, o projeto
1636 dos Encontros de Arte Moderna, contando com a
colaboração do então professor de Composição, Agache (1933) tanto por conta dos parâmetros
Ivens Fontoura. A iniciativa não teve apoio oficial, rígidos, quanto do crescimento imprevisível da
mas foi possível graças ao Diretório Acadêmico cidade, foi superado e teria de ser revisto. Decor-
Guido Viaro, que ficou a cargo da execução dos rente disso, os engenheiros e arquitetos públicos
EAMs (FREITAS, 2017, p. 88). enfrentavam os problemas relacionados com o
crescimento urbano desordenado, como os lotea-
O objetivo era realizar na escola uma semana de mentos clandestinos, as inundações no centro da
arte para que os alunos tivessem contato com cidade, o déficit de unidades habitacionais, a rede
as diversas vanguardas artísticas nacionais. viária em mau estado devido ao intenso tráfego
Os Encontros de Arte Moderna introduzem as de veículos e o centro da cidade em deterioração,
linguagens da arte contemporânea no estado e tanto pela circulação de automóveis quanto pelas
complementam o processo de aberturas da arte edificações (OLIVEIRA, 1991, p. 223).
paranaense (ARAÚJO, 2006 apud MALMACEDA,
2018). Nestes encontros ocorrem os primeiros Sentiu-se a necessidade de um novo plano de
happenings e instalações de Curitiba, além de fa- urbanismo que atendesse às demandas da época,
zer da arte experimental um ato político, alargar o o que resultou no Plano Preliminar de Urbanis-
território da arte a partir da negação dos suportes mo (1965). Abriu-se um concurso de concorrên-
tradicionais e abrir espaços institucionais ao ex- cia pública para a elaboração do Plano Diretor e
perimental (BROMBERG; FREITAS; JUSTINO, 2010). venceu a empresa paulista SERETE, associada
ao escritório do arquiteto Jorge Wilheim. O PD
As primeiras edições dos Encontros de Arte Mo- propunha premissas de desenvolvimento urbano,
derna aconteceram entre 1969 e 1973 (primeira transporte público, desenvolvimento industrial,
à quinta edição) e foram pouco expressivas em sistema viário, pedestrianização de parte do Cen-
relação à ocupação do espaço urbano. Vale des- tro Antigo, identidade urbana e meio ambiente
tacar, entretanto, o ato do “Sábado da Criação”, (BENVENUTTI, 2017, p. 03).
no III EAM (1971), proposto por Frederico Morais na
Rodoferroviária de Curitiba, que naquele momen- Uma das maiores inovações, como propunha o
to estava em construção, primeiro ato artístico plano, foi a pedestrianização das áreas centrais
dos EAMs fora de instituições de ensino/espaços vinculada à “revitalização de áreas urbanas his-
fechados (FREITAS, 2017, p. 94).  tóricas” (SOARES, 2017, p. 31), experiência pionei-
ra em nível nacional. Identifica-se a Rua XV de
Os Encontros seguintes a este se desenrolaram Novembro como a mais central de Curitiba, de
em um contexto Dadá-surrealista, que, incluídas a acordo com Wilheim (apud BENVENUTTI, 2017).
dimensão urbana e a linha artística duchampiana, Por este motivo, era o principal ponto de encontro
se dá o VI Encontro de Arte Moderna. Conhecido da população e deveria ser consolidada como área
como o Encontro da cidade, levou em conside- de convívio e lazer. Isso se deu pela restrição do
ração o contexto urbano de Curitiba, a relação tráfego viário e priorização do pedestre. 
arte-vida e o apagamento das fronteiras entre
arte e cotidiano. Desta maneira, este Encontro é No texto final do Plano Diretor de Curitiba (1966)
fundamental para as discussões sobre a relação incluiu-se ainda a criação do Setor Histórico e
arte e cidade no contexto curitibano e, portanto, revitalização de parte do Centro Antigo da cida-
será analisado com mais detalhes. de como patrimônio histórico (SOARES, 2017).
Junto à proposta de revitalizar e integrar estes
espaços centrais à dinâmica urbana, a partir de
medidas de prevenção, classificação das edi-
RELAÇÃO ARTE E CIDADE NO VI ENCONTRO ficações, orientações técnicas, tombamento e
DE ARTE MODERNA (1974) incentivos fiscais, o projeto foi acompanhado
por tentativas de controle das práticas sociais. A
Na década de 1960, em Curitiba, a explosão de- fim de instalar comércios, atrativos turísticos e
mográfica, o crescimento industrial e o aumento de lazer, estabeleceu-se que os usos populares,
do tráfego de veículos demandavam um novo assim como o comércio ambulante, deveriam ser
olhar para a cidade (MALMACEDA, 2018). O Plano proibidos (BENVENUTTI, 2017, p. 6). 
EIXO TEMÁTICO 2 É evidente que as principais ações urbanas do
governo eram, além de autoritárias, voltadas ao
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS city-marketing. A escolha por usos turísticos e de
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES lazer no centro da cidade revelava a preocupação
com o enobrecimento e embelezamento da área, o
que resultou na expulsão das camadas populares
que ali viviam. Além disso, o desenvolvimento ur-
bano da região central contrastava com a situação
dos bairros afastados – em que faltava rede de
água, esgoto, pavimentação, áreas verdes, etc.
(BENVENUTTI, 2017, p. 11). 

O centro está se aperfeiçoando, ficando


cada dia mais bonito, com obras sensacio-
nais; mas os bairros estão abandonados, um
vexame! [...] O problema da Rua Eurípedes
Garcez do Nascimento reflete, na realida-
de, um problema geral, que atinge todos
os bairros da cidade. Quem transita, por
exemplo, pelo Portão, [...]Uberaba e outros,
chega, por vezes, a duvidar da existência de
uma prefeitura. (Gazeta do Povo, 1973 apud
BENVENITTI, 2017, p. 05).

A implantação das propostas do Plano tornou-se


possível devido a um conjunto de fatores eco-
nômicos, políticos e técnicos. Em 1971, assume
a prefeitura de Curitiba o arquiteto e urbanista,
ex-diretor-presidente do IPPUC, ex-membro do
grupo de acompanhamento da SERETE, Jaime
Lerner, nomeado pelo então governador do Esta-
do, Haroldo Leon Peres. Quando Lerner assumiu a
prefeitura, projetos urbanísticos e arquitetônicos,
baseados no Plano Diretor de Curitiba, estavam
prontos para a execução (SOARES, 2017).

Mas o histórico do prefeito não foi o único fator


decisivo para a efetiva implantação do PD - deve-
-se lembrar que o período era o auge do Regime
Militar, sendo assim, o poder executivo tinha certa
autonomia sobre o planejamento urbano, já que
pouco tinha a se preocupar com a oposição na
Câmara de Vereadores (OLIVEIRA, 1991). É impor-
tante ressaltar que, ao contrário da aprovação
em massa dos outros poderes aos projetos do
Plano Diretor, a opinião popular não era sempre
favorável a eles.

Ademais, como citado anteriormente, desde o iní-


cio da década de 1970 contestava-se o isolamento
16º SHCU da arte em circuitos fechados. Com o objetivo de
30 anos . Atualização Crítica
difundir a arte como prática de liberdade, expan-
1638 dindo o circuito para além dos museus e galerias,
artistas passam a ir às ruas e bairros periféricos As propostas do programa do VI Encontro de Arte
a fim de entrar no alcance das massas (NAPOLI- Moderna podem ser resumidas em três grupos de
TANO in EGG, 2014, p. XXVII). ações distintas:

Todos esses fatores culminaram na escolha do 1 - Gincana Ambiental: consistia em um conjunto


tema do VI Encontro de Arte Moderna (23 a 31 de de atividades de percepção e sensibilização ur-
agosto, 1974): a própria cidade. O VI EAM, coorde- bana e pode ser considerada uma adaptação do
nado pela artista Josely Carvalho, juntamente com evento proposto por Josely Carvalho na Univer-
sua irmã pianista Jocy de Oliveira, foi considerado sidade Nacional Autônoma do México. 
o de maior abrangência urbana. Josely Carvalho, 2 - Laboratório de Arte: workshop criativo coor-
nascida no Brasil e residente nos Estados Unidos, denado por Josely Carvalho. Ocorreu na sede da
estava ciente das transformações em Curitiba e EMBAP entre os dias 26 a 30 de agosto, das 9h
percebeu a oportunidade de desenvolver o olhar às 13h, com o objetivo de trabalhar os seguintes
dos estudantes para o espaço urbano (MALMA- elementos - cor, som, movimento, forma e espaço.
CEDA, 2018, p. 250).  Durante as tardes, a artista coordenava um curso
de serigrafia na sede do MAC-PR. 
A artista dividia-se entre gravura, fotografia,
arquitetura e ensino. Como professora, focou 3 - Homenagem a Duchamp: propostas abertas
no processo criativo a partir de ações coletivas e coletivas em diversos espaços do centro de
- quando convidada pela Universidade Nacional Curitiba. Aconteceram ao longo do sábado, dia
Autônoma do México, propôs aos alunos um ha- 31 de agosto, e englobou atividades diversas si-
ppening urbano, com o objetivo de aguçar suas multâneas no centro de Curitiba.
percepções sobre a cidade. Adalice Araújo, orga-
nizadora do evento, enfatiza que a proposta de A primeira ação, Gincana Ambiental, aconteceu ao
Josely Carvalho para o VI EAM seria a primeira longo do primeiro final de semana do 6˚ Encontro e
tomou diversos locais da cidade. Na sexta-feira, dia
experiência de arte pública do Brasil a envolver a
23 de agosto de 1974, às 14h, aconteceu a divisão
“totalidade urbana” (ARAÚJO, 1974 apud FREITAS,
dos participantes em dez grupos e a entrega dos
2017, p. 279). No folder do programa, Josely explica
roteiros individuais por grupo, previamente defini-
a escolha do tema:
dos por Josely. Cada equipe recebia envelopes com
A cidade de Curitiba foi escolhida como espaços de Curitiba e instruções de ações simples
tema central já que seu plano urbanístico é relacionadas às práticas cotidianas, como ouvir
e contar histórias, reproduzir sons do ambiente e
um exemplo vivo de criatividade em proces-
perceber o comportamento das pessoas à volta
so. Vários aspectos da cidade (o psicológi-
(CARVALHO, 1974, sem paginação), todas com obje-
co, o social, o urbanístico, o ecológico) são
tivo de propor experiências sensoriais “desviantes”.
explorados através de exercícios artísticos
de percepção e sensibilização. (CARVALHO, A base desta atividade estava na diluição das
1974, sem paginação). fronteiras entre arte e vida: a arte pública seria
um modo de estar no mundo. Envolver o partici-
A artista enfatizou a importância da arte como pante em seu meio ambiente, visando o processo,
forma de ensino, principalmente a partir da rela- não a materialização de uma obra, era a ideia
ção dos alunos com sua realidade urbana imediata central da atividade (FREITAS, 2017, p. 252). É
(FREITAS, 2017). Josely Carvalho considerava importante ressaltar que os locais da cidade es-
a educação formal um processo de incubação, colhidos eram diversos e não somente ligados ao
em que os estudantes não tinham contato com centro da cidade ou aos lugares de intervenções
a realidade. (CARVALHO, 1974, Folder do 6˚ EAM). públicas urbanas. Os roteiros englobavam tanto
No Encontro, não se pensava somente em formar o centro quanto a periferia. É possível constatar
artistas, mas na arte como processo de humaniza- pelo mapa abaixo que as atividades do evento
ção do indivíduo. Tinha-se como objetivo dialogar foram de grande alcance no território curitiba-
com novos programas artísticos-educativos, as- no, explorando não apenas os locais simbólicos
sim como envolver os estudantes e a comunidade do Plano Diretor, mas também extrapolando os
em geral no processo criativo das artes. limites territoriais de Curitiba.
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

Figura 1: Localização dos eventos da Gincana Ambiental


16º SHCU
em Curitiba, mapa esquemático. Fonte: Elaborado pela
30 anos . Atualização Crítica
autora com base nas informações do MAC-PR (2019, sem
1640 paginação)
Nos lugares selecionados os participantes teriam 2017). Este movimento de vanguarda brasileira,
contato com diferentes classes sociais, religiões, de certa forma, não tinha uma compreensão de
situações de lazer, de trabalho, do cotidiano, etc. “povo” e “popular”, ou seja, não se estabelecia um
A deambulação urbana foi acompanhada por uma pensamento sociológico em relação ao público
equipe de documentação, cujo diretor era o estu- (REIS, 2006, p. 70). Não houve “via de mão du-
dante Fernando Bini, e os relatos entregues pelas pla” entre propostas dos artistas, de terem suas
equipes encontram-se parte no MAC-PR e parte experiências vistas como arte, e aceitação dos
em acervos privados. moradores.

As experiências mais relevantes, e cujos mate- Horas depois, a Equipe 10 partiu para uma das
riais são suficientes para a pesquisa, foram as da experiências mais lembradas da Gincana, que
Equipe 10. No sábado, dia 24 de agosto, a equipe aconteceu no Jardim Schaffer, na região de Curiti-
esteve na Boca Maldita. Esta porção da Rua XV ba, com as já tradicionais corridas de carrinhos de
de Novembro foi escolhida na Gincana por ser o rolimã, realizadas usualmente durante os finais de
símbolo da Curitiba moderna e pedestrianizada, semana. Alguns membros da equipe participaram
parte das intervenções urbanas de Lerner que efetivamente da “brincadeira” e desceram ladeiras
compunham a vanguarda urbanística nacional. em carrinhos de rolimã (filmagem de Fernando
Para os gincaneiros, a Boca Maldita era o local Bini, 1974, cedido à autora). 
principal de todas as atividades de Curitiba, onde
se falava de tudo o que interessa, desde futebol Na maior parte das entrevistas, os participantes
até grandes negócios (Relatos da Equipe 10, 1974, da corrida citaram a supressão do tédio como
acervo do MAC-PR). motivo para disputar. Também consideravam uma
forma de higiene mental, por ser uma atividade
A ida à Boca Maldita propunha a vivência pelos sadia, tomar sol e fazer exercícios. Alguns relatos
participantes da realidade urbana, em especial de dos estudantes incluem a falta de segurança e
um local bastante modificado pelo Plano Diretor, certo nível de crueldade de quem assistia, já que,
a partir do “discurso institucional em defesa do em muitos casos, “quando alguém se acidentava,
fortalecimento do espaço público, dos espaços de todos achavam graça e corriam para ver” (FREI-
convivência entre os cidadãos [...]” (BENVENUTTI, TAS, 2017, p. 296). Era um misto de risco pessoal,
2017, p. 11). Os estudantes perceberam que, apesar entusiasmo e competição.
de dedicado à convivência de todos os cidadãos,
nem todas as classes sociais poderiam desfrutar Como citado anteriormente nesta pesquisa, o
de momentos de lazer, pois o direito a viver o ócio crescimento populacional de Curitiba na década
na cidade era privilégio de um grupo seleto.  de 1970, a propaganda política otimista e o cres-
cimento industrial trouxeram grande fluxo de
Ainda no sábado, a mesma Equipe 10, depois de moradores para a cidade. Também as reformas
sair do almoço na Boca Maldita, partiu em direção urbanas, com a pedestrianização do centro e a
à favela próxima ao Aeroporto Afonso Pena. O in- criação da Cidade Industrial, fizeram de Curitiba
gresso em um território social diferente ocasionou uma capital com ritmo frenético. Em consequ-
um choque de classes, até porque em “ambientes ência deste frenesi urbano, ressurge a figura do
de extrema pobreza, o ócio era uma infração a flâneur, termo cunhado por Charles Baudelaire
ser punida” (FREITAS, 2017, p. 314). No arquivo do e, posteriormente, teorizado por Walter Benja-
MAC-PR, encontram-se desenhos das residên- min para os que andavam pelas ruas de Paris, na
cias, cujos telhados tortos e a fachadas de tábuas multidão, durante as reformas de Haussmann no
revelavam a miséria na “cidade-modelo”, face do século XIX (BENJAMIN, 1991).
capitalismo tecnicista, mas também uma forma
de resistência e subsistência popular a partir da Neste contexto dos anos 1970, a flânerie era um
criatividade.  resgate do ócio: seu contraponto era o mundo da
fábrica. A importância estética da deambulação
Percebe-se, pelos depoimentos dos moradores, urbana parece ter sido levada em consideração
que eles não compreendiam as intenções dos uni- durante a Gincana Ambiental, já que os participan-
versitários, mesmo que estes tentassem entender tes eram provocados a perceberem a cidade com
o mundo dos “socialmente excluídos” (FREITAS, um olhar inusual. Contudo, ao contrário da flânerie
EIXO TEMÁTICO 2 de Benjamin, a proposta da Gincana era não so-
mente vagar e observar, mas também sentir e in-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS teragir com os moradores, entrevistar as pessoas
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES - uma espécie de flâneurs ativos (FREITAS, 2017).

Realizou-se, a partir destas experiências urbanas,


um mapeamento estético da cidade (sensações
subjetivas, relatos de moradores, relatos físicos,
desenhos, etc). Cada mapeamento continha re-
latos das diversas cidades presentes dentro de
Curitiba: dos taxistas, dos bêbados, dos univer-
sitários, dos moradores, dos catadores de papel,
dos empresários, etc. Assim como as histórias
de Marco Polo ao imperador Mongol em Cidades
Invisíveis de Ítalo Calvino (1990), percebe-se na
deambulação urbana do 6˚ Encontro as diferentes
percepções urbanas a partir da vivência pessoal.
A cidade deixa de ser um conceito geográfico
para se tornar símbolo da complexidade humana. 

É importante ressaltar que é nesta época que se


forma o mito da Curitiba planejada e humana. Esta
visão seleciona ângulos, pinça alguns espaços,
omite outros e exclui do campo de visão as
diferenças sociais, como se a modernização ur-
bana tivesse sido dirigida a todos. Cria-se a ideia
do todo a partir de fragmentos da cidade (GAR-
CÍA, sem data). O objetivo da Gincana ambiental
parece ter sido de desenvolver um olhar crítico
frente à imagem de Curitiba, percebendo que os
discursos que a descrevem são diversos e não
somente os apoiados no city-marketing. No jogo
proposto por Josely Carvalho, o que se mostra e
o que se esconde não estava de acordo com os
cartões-postais de Curitiba. 

Como a maior parte dos gincaneiros era estu-


dante de artes, muitas das perguntas durante
as entrevistas foram sobre o entendimento dos
entrevistados por arte e artistas (FREITAS, 2017,
p. 320). No entendimento de muitos deles, arte
deveria ser uma expressão positiva do ser humano
e suas potencialidades, opostas aos problemas
cotidianos da vida. Esta visão revela a dificul-
dade de interpretar a deambulação urbana dos
estudantes como uma forma de fazer artístico. 

Se de um lado a arte pretendeu abraçar a


cidade, percebendo seus contornos e suas
formas de vida particulares, de outro, contu-
16º SHCU do, a cidade não se mostrou disposta a per-
30 anos . Atualização Crítica
ceber a arte, ao menos não nos termos pro-
1642 postos pela Gincana (FREITAS, 2017, p. 323).
A Gincana ambiental, com o objetivo de aproximar destas ações, concentradas em um raio de aproxi-
arte e a vida, assume a forma de jogo coletivo madamente 150m no Centro de Curitiba, conforme
e festivo. Desta forma, a cidade como local da pode-se perceber pelo mapa abaixo.
experiência festiva e a aproximação entre arte e
cotidiano depende da “suspensão temporária do
mundo de necessidade” (FREITAS, 2017, p. 323).
Fato é que nem todos podem se dar o luxo de
abrir mão dos fins utilitários. Pode-se considerar
que a experiência da Gincana foi uma via de mão
única, já que a maior parte dos entrevistados não
viu a atitude dos gincaneiros como uma forma de
arte. Não é uma derrota, pois deve-se entender o
contexto da reprodução ideológica na sociedade
industrial, que não compreende atividades de ócio
gratuito, como o jogo e a festa.

A segunda ação, os Laboratórios de Arte, proposta


no programa do VI EAM por Josely Carvalho, não
será aprofundada nesta pesquisa, visto que o ob-
jetivo é discutir a dimensão urbana do Encontro.
De qualquer forma, é importante ressaltar que
os laboratórios foram espaços de aprendizado
e experiências artísticas abertos ao público e
aconteceram nas sedes da Escola de Música e
Belas Artes do Paraná e na sede do Museu de Arte
Contemporânea do Paraná. 

A terceira proposta, evento de fechamento do 6˚


Encontro de Arte Moderna, aconteceu ao longo do
sábado, dia 31 de agosto de 1974, e consistia em
uma série de performances simultâneas no centro
de Curitiba. A partir do conceito de hibridismo
artístico, o evento misturou performance, mú-
sica e visualidade. Apesar do título, Homenagem
a Duchamp, não é possível entendê-lo somente
como homenagens ao artista, mas um tributo à
história das vanguardas a partir do trio Satie - Du-
champ - Cage. O retorno às premissas dadaístas
tinha como objetivo liberar o homem de todos os
ismos da arte e as performances na rua ampliam
este conceito - libertar o homem de sua rotina
urbana (FREITAS, 2013).

A ação era composta por 5 eventos simultâneos


e interligados, que serão analisados a fundo a
seguir: instalação no MAC-PR em homenagem
ao artista Marcel Duchamp; Peça-pão, nas proxi-
midades do MAC-PR; Leitura do Manifesto Antro-
pofágico, de Oswald de Andrade; Interpretação
de Vexations, de Erik Satie (duração de 18h40min
ininterruptos); Torneio espontâneo de xadrez. É
interessante analisar a localização de cada uma
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

Figura 2: Localização dos eventos de Homenagem a Du-


champ, Centro de Curitiba. Fonte: Elaborado pela autora,
2020

Assim como em outros Encontros de Arte Mo-


derna, algumas situações ocorreram dentro do
Museu de Arte Contemporânea do Paraná. Na
entrada do museu, havia um corredor de guarda-
-chuvas, baseado em um ambiente imaginado por
Duchamp (CARVALHO, 1974, folder do programa VI
EAM). Ainda no MAC, aconteceram projeções de
filmes, slides e gravações montadas por Josely
Carvalho e Jocy de Oliveira, dentre eles, docu-
mentos dadaístas. 

A performance que ocorreu próxima ao Museu


16º SHCU de Arte Contemporânea, Peça-pão, consistia em
30 anos . Atualização Crítica
uma ação que se desenrolava com a participação
1644 do público, ou seja, uma atividade-processo. O
objetivo era viabilizar o contato do público leigo jovens reunidos bradavam conteúdo “ideológico”
com técnicas de modelagem, sendo que o objeto do manifesto (MALMACEDA, 2018).
desenvolvido por cada um, um pão esculpido e
assado, seria comido posteriormente - um ver- [...] Queremos a Revolução Caraíba. Maior
dadeiro ritual de autofagia da matéria (MALMA- que a revolução Francesa. A unificação de
CEDA, 2018). Foram 45 quilos de farinha no total, todas as revoltas eficazes na direção do
de acordo com a declaração do artista e então homem. Sem nós a Europa não teria se-
presidente do Diretório Acadêmico Elvo Benito quer a sua pobre declaração dos direitos
Damo (FREITAS, 2017, p. 226).  do homem. (ANDRADE, 1928).

A proposta foi a mais bem recebida pelo público Ainda durante a tarde de sábado, dia 31 de agos-
dentre as atividades de Homenagem a Duchamp, to de 1974, alguns estudantes da EMBAP dedi-
como expõe o Diário do Paraná “o fabrico e a entre- caram-se à construção de uma cabine preta,
ga de pães à população foi sem dúvida a promoção posteriormente transportada para a Rua XV de
melhor vista” (Diário do Paraná, 1974). Um dos Novembro. Ao lado da entrada, havia os seguin-
maiores conflitos sociais percebidos com esta tes dizeres “Você quer ver uma imagem porno-
atividade foi a diferença entre o jogo e criativi- gráfica?” (FREITAS, 2017, p. 343). Movidos pela
dade dos artistas que participavam da mostra e curiosidade, interessados faziam fila para entrar
o interesse de moradores de rua, que foram até o na cabine. Uma vez dentro, viam somente sua
local atraídos pela notícia de alimentação gratuita.  própria imagem refletida em um pequeno espelho.
Apesar da mistura de constrangimento e euforia,
De acordo com o então participante da mostra foi uma experiência que despertou a curiosidade
e ex-aluno da Belas Artes, Fernando Bini, a Peça e movimentou a Rua XV de Novembro.
Pão foi uma referência ao pensamento de Oswald
de Andrade: “a massa ainda comerá o biscoito Aguardando do lado de fora da cabine, estavam
fino que fabrico” (BINI, 2019). Volta à tona a ideia membros do grupo de teatro, coletando as rea-
dos anos 1940 de democratização da arte, sendo ções dos participantes, que variaram entre “ori-
novamente confrontada com a realidade social ginal”, “maravilhoso” e “horrível”, “imoral”. Fato é
da população e com a noção de que a massa não que a cabine, mais do que uma brincadeira urbana,
participa efetivamente dos processos artísticos, era reflexo de uma sociedade vigiada e de uma
mas sim os consome.  sexualidade cheia de tabus. Indo ao encontro da
contracultura, este evento se valia da subversão,
Ainda em frente ao MAC-PR, ocorreu a leitura do liberdade sexual e desrepressão dos corpos, in-
Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade, serida dentro do próprio espaço público vigiado.
ato que não estava previsto no folder do programa A cabine pornográfica instigou, por meio da curio-
(1974, MAC-PR). Seguindo a tendência cultural sidade, as pessoas a exporem publicamente seu
brasileira, o que mais se viu nesta performance foi próprio desejo.
referências ao Oswald de Andrade antropofágico
dos anos 1920. A leitura do manifesto ocorreu em A poucos metros da Rua XV de Novembro acon-
um palanque montado na entrada do museu por tecia a interpretação da peça Vexations, de Erik
estudantes de arte juntamente com um grupo de Satie. Convidada pela irmã e organizadora do
atores locais.  evento, Jocy de Oliveira propôs a execução em
pleno centro da cidade. Composta em 1893 na
Os jovens atores, fantasiados com máscaras França, a peça é fundamental para a vanguarda
semelhantes à do grupo Secos e Molhados, fize- norte-americana no início do século XX. Com
ram uma leitura pública e performática. A ideia duração de 1min20s, baseia-se na repetição es-
era, assim como o grupo de música, “fazer da tética, já que deve ser tocada 840 vezes de acordo
extravagância visual uma forma de subversão dos com as instruções do compositor, totalizando 18
comportamentos cotidianos” (FREITAS, 2017, p. horas e 40 minutos ininterruptos, o que cria uma
242), o que exigia do espectador e do transeunte sensação anestésica e paralisante. 
urbano, se não uma reflexão, ao menos uma re-
ação. Foi a parte mais delicada do Encontro em Às 6h da manhã do sábado (31/08/1974), em um
relação à possibilidade de repressão, já que os quiosque cedido pelo comerciante João Jacob
EIXO TEMÁTICO 2 Mehl, na rua Voluntários da Pátria, iniciou-se a
execução da peça em um piano conectado a um
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS sistema de alto-falantes espalhados pela Rua XV
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES de Novembro (MALMACEDA, 2018). O objetivo era
ampliar o raio de alcance da performance para
a primeira rua exclusiva de pedestres do país,
que tinha grande fluxo de pessoas e numerosos
comércios, um dos principais símbolos da nova
Curitiba.

Vexations é mais do que uma obra, é uma expe-


riência que transcende a ideia de pintura ou da
interpretação isolada da peça. Seu sentido mais
profundo é o psicológico, a alteração dos estados
de consciência. Quando executada em um espaço
público, atinge um maior número de pessoas e
está suscetível às reações imprevisíveis destes
presentes no espaço urbano. As reações não são
imediatas, mas vão sendo construídas ao longo do
tempo de exposição. Sem mudar o padrão e sem
qualquer encaminhamento para um desfecho,
a peça confronta a ideia de clímax ou moral da
história. É um choque admitir a falta de sentido do
devir, por isso o público é pressionado à reflexão
(FREITAS, 2017). 

A peça de Satie liga-se aos conceitos de vanguar-


da, já que não há condições de neutralidade do
espectador. Ao longo das horas, a performance
incorporou as reações do público. Comerciantes,
trabalhadores, garçons e passantes foram atin-
gidos pelo som. Por este motivo foi o evento que
mais repercutiu na imprensa.

Os frequentadores da Boca Maldita foram


expulsos de seu local de concentração
durante todo o dia de sábado […]. Havia
alto-falantes instalados em toda a Boca
Maldita e até na Praça Zacarias. No início,
todo mundo pensou que fosse uma brin-
cadeira, mas logo […] “começamos a ficar
tensos e ter vontade de ir lá quebrar o piano”.
(Música revoltou a Boca Maldita, Diário do
Paraná, 1974)

Ao mesmo tempo em que era executada a peça, o


público da cidade foi convidado para jogar xadrez
no espaço urbano. Tabuleiros foram espalhados
ao longo de espaços públicos do centro, como a
Praça Generoso Marques, Passeio Público, Rua XV
16º SHCU de Novembro e MAC-PR. É necessário ressaltar
30 anos . Atualização Crítica
que, além de Duchamp ser um exímio jogador de
1646 xadrez, ele considerava o jogo uma forma de arte
(FREITAS, 2017, p. 353). Mas a relação do torneio centro da cidade, estava simplesmente irri-
de xadrez com as demais performances vai além tante e insuportável. Manifestei protesto a
do gosto pessoal do artista homenageado: como alguns amigos. Uma hora depois, senti uma
regra, cada lance deveria durar 1 minuto e 20 se- sensação de indiferença - não mais me in-
gundos, mesmo tempo da composição de Satie. comodei. Uma hora e trinta minutos depois,
O objetivo era que o torneio durasse tanto quanto comecei a gostar. Duas horas depois: a)
Vexations, sem interrupções.  encontro-me calmo, em lugares distantes
- talvez em outros lugares, b) esqueço dos
Durante a performance Homenagem a Duchamp, problemas do dia a dia, c) apresento vontade
estudantes da EMBAP entrevistaram os espec- de me comunicar, d) gosto da música e sen-
tadores. Poucas foram as avaliações positivas: a tiria muito se ela parasse. (WAGNER, 1974). 
maior parte das pessoas sentiu-se irritada depois
de algumas horas. O motivo principal da irritação Inserido no contexto das novas vanguardas de
foi a música, sendo as palavras mais recorren- 1970, Homenagem a Duchamp utiliza o concei-
tes nos depoimentos “tédio, melancolia e sono” to-base dos papiers collés de Braque e Picasso:
(FREITAS, 2017, p. 360). Sabe-se que o objetivo a simultaneidade de performances interligadas,
desta mostra foi integrar a população à atividade, em diferentes espaços do centro da cidade, cria
perceber suas reações e quebrar a barreira entre uma espécie de colagem urbana fragmentada,
arte, vida cotidiana e cidade. simultâneas no tempo e espaço. Os artistas da
contracultura buscavam, tanto quanto os van-
Não foi, contudo, o que grande parte da população
guardista dos anos 1910, combinar diferentes
percebeu. “Se isso é cultura, a gente não entende”
signos na produção experimental. Ao contrário
foi um dos depoimentos presente nos manus-
das colagens cubistas, o pós-guerra radicalizou
critos do MAC-PR (VI Encontro de Arte Moderna,
as formas de fazer arte e a própria ideia de mon-
sem paginação. MAC-PR, 1974). Assim como no
tagem, que se torna mais caótica, fragmentada
evento da Gincana Ambiental, a experiência mos-
e dispersiva. Por este motivo, um dos pilares da
trou as dificuldades da população de perceber
o evento como uma forma de arte. Mesmo sem performance era ideia de choque e aleatoriedade
compreender, as pessoas sentiram o impacto da das reações dos espectadores (FREITAS, 2017).
performance. O acúmulo de notas semelhantes
Estes pilares são a base do movimento de con-
dava um ar de monotonia ao longo do tempo. Para
tracultura, que recusa a sociedade tecnocrática,
um dos entrevistados, esta monotonia também
seja por meio estético, comportamental ou po-
é uma forma de arte, mas deveria ser precedida
lítico. A aversão das novas vanguardas à produ-
por uma “pedagogia estética eficaz” (FREITAS,
ção artística convencional serviu como pretexto
2017, p. 362). 
para propostas urbanas e coletivas. É importante
Apesar da histeria coletiva, um depoimento cha- ressaltar que os artistas perceberam mudanças
mou a atenção dos estudantes e foi considerado urbanas que estavam ocorrendo em Curitiba e
como opinião-padrão pelo jornal Estado do Paraná decidiram ocupar as ruas. Apesar das expulsões
(MILLARCH, 1974) - o caso de Wagner, professor no centro e do não direito à cidade por parcelas
de ciências do Colégio Estadual do Paraná. Rei- da população, os estudantes foram às ruas e in-
terando os objetivos de executar Vexations no comodaram, dançaram, tocaram e fizeram arte
espaço urbano, Wagner percebeu que a peça era em forma de festa. 
uma metáfora dos ruídos da cidade, cujo principal
efeito é a hipnose pela repetição. O que a peça faz Em linhas gerais, o VI Encontro de Arte Moderna
no ambiente urbano é amplificar esta sensação, se propunha a analisar as reações humanas no
torná-la mais real.  contexto do espaço público, sem amarras das
instituições e suas estruturas encapsuladas. A
Não sei os objetivos deste experimento arte se torna elemento da dinâmica urbana, não
que homenageia Duchamp, mas exponho apenas na sua forma participativa, mas tam-
minhas impressões, após duas horas de bém na maneira como se insere nos espaços
audição. Nos primeiros quinze minutos, a simbólicos de Curitiba, como no caso da rua XV
música, para mim, que me encontrava no de Novembro. As propostas foram pensadas a
EIXO TEMÁTICO 2 partir da radicalização da ideia de montagem e
valeram-se do corpo e da coletividade: foi dada
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS ênfase às obras conceitualistas cujos objetivos
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES eram diluir a distância entre vida e arte. Em suma,
o VI EAM fez da cidade seu ambiente poético. Os
acontecimentos sem dúvida mudaram a rotina
urbana e colocaram a discussão da arte contem-
porânea nos meios de comunicação. Cumpriu-se
o objetivo de integrar público paranaense com
realidade artística nacional e divulgar a arte do
Paraná (MALMACEDA, 2018). 

Os eventos seguintes perderam força depois que


Adalice Araújo passou a se dedicar a outras fun-
ções em 1974, como a implantação dos cursos de
Desenho Industrial, Programação Visual e Educa-
ção Artística na Universidade Federal do Paraná
(MALMACEDA, 2018, p. 264). Em 1977, mudou-se
o nome do evento para Encontros de Arte. Na
década de 1980, foi transferido para o litoral do
Paraná, na cidade de Antonina. 

Os Encontros de Arte Moderna influenciaram não


somente a formação de uma geração de artistas
paranaenses, mas também a formação do acervo
do MAC-PR, que hoje reúne uma multiplicidade de
obras conceituais (BINI, 2011). Os Eventos funcio-
naram como espaços de experimentação, desde
investigações do concreto, reação do público e
experiências comportamentais. 

Estes eventos permitiram questionar e subverter a


produção artística, seja por meio da ocupação da
cidade como espaço para e de arte, seja a partir da
dessacralização dos espaços oficiais/museológi-
cos. A “arte política” passou para uma “política da
arte”, que questionava as regras do fazer artístico
institucional, assim como o não posicionamento
dos artistas perante as discussões políticas. Além
disso, a vinda de artistas de vanguarda nacional
foi importante para a renovação do pensamento
artístico curitibano (MALMACEDA, 2018, p. 203).
Para Frederico Morais, “a arte, quando levada
à rua, acaba sempre ganhando uma moldura
política” (MORAIS apud RIBEIRO, 2013, p. 343). O
objetivo deste artigo foi de remexer a memória e
lembrar que os chamados anos do “silêncio das
vanguardas” foram bastante ruidosos.  

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1648
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FREITAS, A. C. de. Festa no vazio: performan-


ce e contracultura nos encontros de arte
EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Para compreender a cidade, sua forma e dinâ-
micas existentes, é necessário decodificá-la.
Cada cidade é lida de forma diferente, dada a
vídeo-pôster conformação de seus inúmeros cenários histó-
ricos, econômicos, culturais e políticos, que se
sobrepõem a malha urbana através dos tempos.
ENSAIO SOBRE O O cenário urbano também testemunha, reflete e
molda a atividade humana neste ambiente cons-
BALLET URBANO: A truído. Assim, ao vivenciar a cidade, cada tran-
seunte gera uma coreografia única e local. Tem
ESPETACULARIZAÇÃO EM se assim, um grande ballet urbano, resultante
do desempenho das atividades humanas no es-
CIDADES DE PEQUENO E paço citadino. Ao projetar espaços, tendo como
guia as leis de uso e ocupação do solo, o arqui-
MÉDIO PORTE teto e urbanista, tal qual um coreógrafo, organi-
za deslocamentos, cadencia ritmos, sincroniza
movimentos, definindo usos e permanências no
ESSAY ON URBAN BALLET: THE SPECTACULARIZATION
espaço. Como articulador das relações entre
IN SMALL AND MEDIUM-SIZED CITIES
homem x espaço o arquiteto e urbanista é figura
central no processo de planejamento. O objetivo
ENSAYO SOBRE EL BALLET URBANO: LA
desta pesquisa é a análise do espetáculo urba-
ESPECTACULARIZACIÓN EN LAS CIUDADES PEQUEÑAS
no de duas cidades distintas: Bauru e Macatu-
Y MEDIANAS
ba, ambas no interior do estado de São Paulo.
A pesquisa se debruça sobre análises multi-
NUNES, Lara disciplinares e transdisciplinares como ferra-
mentas para entendimento do espaço urbano.
Graduanda – Arquitetura e Urbanismo; Centro Universitário
Unisagrado
Buscou-se com isso, entender os espetáculos
lara.f.n@hotmail.com distintos dessas duas cidades. Entender seus
meandros, conhecer seus cenários, dinâmicas
CARVALHO, Tatiana e coreografias, serão aqui ferramentas para en-
tender sua configuração. Espera-se com isso
Mestra – Ambiente Construído; London Southbank University
lê-las e propor diretrizes para cenários futuros
tatiana.carvalhoarquit@gmail.com
para ambas. Para isso, serão realizadas pesqui-
sas exploratórias, bibliográficas documentais
e análise comparativa, assim como estudos de
caso nas cidades escolhidas, que através das
visitas in loco investigam e compreendem a di-
nâmica local existente em cada cenário.

ESPETÁCULO URBANO ARQUITETO E URBANISTA


BALLET URBANO

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1650
ABSTRACT RESUMEN

To understand the city, its shape and existing Para entender la ciudad, su forma y la dinámica
dynamics, it is necessary to decode it. Each city existente, es necesario decodificarla. Cada ciu-
is read differently, given the conformation of its dad se lee de manera diferente, dada la confor-
numerous historical, economic, cultural and po- mación de sus numerosos escenarios históricos,
litical scenarios, which overlap the urban fabric económicos, culturales y políticos, que se super-
through the ages. The urban setting also wit- ponen al tejido urbano a través de los tiempos.
nesses, reflects and shapes human activity in El entorno urbano también es testigo, refleja y
this built environment. Thus, when experiencing da forma a la actividad humana en este entorno
the city, each passer-by generates a unique and construido. Así, al experimentar la ciudad, cada
local choreography. There is thus a great urban transeúnte genera una coreografía única y local.
ballet, resulting from the performance of human Así pues, hay un gran ballet urbano, resultado de
activities in the city space. When designing spa- la realización de actividades humanas en el espa-
ces, having as a guide the laws of land use and cio de la ciudad. Al diseñar los espacios, teniendo
occupation, the architect and urban planner, like como guía las leyes de uso y ocupación del suelo,
a choreographer, organizes displacements, rhy- el arquitecto y el planificador urbano, como un
thms, synchronizes movements, defining uses coreógrafo, organiza los desplazamientos, rit-
and stays in space. As an articulator of the rela- mos, sincroniza los movimientos, definiendo los
tions between man and space, the architect and usos y las estancias en el espacio. Como articu-
planner is a central figure in the planning process. lador de las relaciones entre el hombre y el espa-
The objective of this research is the analysis of cio, el arquitecto y el planificador es una figura
the urban spectacle of two different cities: Bauru central en el proceso de planificación. El objetivo
and Macatuba, both in the interior of the state of de esta investigación es el análisis del espectá-
São Paulo. The research focuses on multidisci- culo urbano de dos ciudades diferentes: Bauru y
plinary and transdisciplinary analysis as tools for Macatuba, ambas en el interior del estado de São
understanding urban space. The aim was to un- Paulo. La investigación se centra en el análisis
derstand the different spectacles of these two ci- multidisciplinario y transdisciplinario como her-
ties. To understand their meanders, to know their ramientas para la comprensión del espacio urba-
sceneries, dynamics and choreographies, will be no. El objetivo era entender los diferentes espec-
here tools to understand their configuration. It is táculos de estas dos ciudades. Para entender sus
hoped to read them and propose guidelines for meandros, conocer sus escenarios, dinámicas y
future sceneries for both. For that, exploratory coreografías, estarán aquí las herramientas para
research, documentary bibliography and compa- entender su configuración. Se espera leerlos y
rative analysis will be carried out, as well as case proponer pautas para futuros escenarios para
studies in the chosen cities, which through on-si- ambos. Para ello se realizarán investigaciones
te visits investigate and understand the local dy- exploratorias, bibliografía documental y análisis
namics existing in each scenario. comparativos, así como estudios de casos en las
ciudades elegidas, que mediante visitas in situ
investiguen y comprendan la dinámica local exis-
URBAN SHOW ARCHITECT AND URBAN PLANNER tente en cada escenario.
URBAN BALLET

ESPECTÁCULO URBANO ARQUITECTO Y URBANISTA


BALLET URBANO
EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
“Planejamento é o processo de preparar um con-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
junto de decisões para ação futura, dirigida à
consecução de objetivos através dos meios pre-
vídeo-pôster feridos” (DROR, 1973, p. 323), Desta forma, para
planejar as cidades e seus futuros cenários, é
necessário primeiramente entender a complexi-
ENSAIO SOBRE O dade, estranheza e beleza existente na dinâmica
local de seus espaços.
BALLET URBANO: A Entender a composição e construção de uma re-
ESPETACULARIZAÇÃO EM gião é fator determinante no processo de consti-
tuição de seu futuro. Somente a partir de profunda
CIDADES DE PEQUENO E análise de sua conformação e entendimento das
dinâmicas locais já existentes em seus espaços
MÉDIO PORTE na atualidade, é que se torna possível intervir e
viabilizar futuros desejáveis para a área. Carlos
(1992), atesta assim, que a dimensão de vários
ESSAY ON URBAN BALLET: THE SPECTACULARIZATION tempos está impregnada na paisagem da cidade.
IN SMALL AND MEDIUM-SIZED CITIES Ou seja, é necessário decodificá-la, entender sua
história e seus processos de desenvolvimento,
ENSAYO SOBRE EL BALLET URBANO: LA para poder assim, atuar numa dinâmica já pré-
ESPECTACULARIZACIÓN EN LAS CIUDADES PEQUEÑAS -estabelecida.
Y MEDIANAS
Se olharmos a história das cidades, pode-se
ver claramente que as estruturas urbanas
e o planejamento influenciam o compor-
tamento humano e as formas de funciona-
mento das cidades. (GEHL, 2014, p. 9)

Com a justaposição de tempos, culturas e costu-


mes, inúmeros cenários emergiram nas cidades.
Ao conjunto destes, dá se o nome de identidade,
ou como melhor define Lynch (2009), a imagem
da cidade. Por essa razão, segundo o autor, cada
espaço urbano apresenta sua própria essência e
é caracterizado de forma singular, refletindo uma
junção de todos os seus aspectos. Conclui-se
assim, que os espaços urbanos e seus cenários
contribuem de maneira única para a composição
da imagem da cidade.

Assume-se desta forma, que cada cidade ao lon-


go de sua história contempla uma pluralidade de
espaços. Estes são o suporte físico necessário
para que os espetáculos urbanos aconteçam.

Ascher (1998, p. 174) se refere aos espaços públi-


16º SHCU cos, como os espaços do “visível, os espaços do
30 anos . Atualização Crítica
espetáculo, o espaço teatral.” Desta forma, o autor
1652 nos diz que o suporte físico, nada mais é do que
palco do grande espetáculo urbano. Lynch (2009, Portanto, da interação entre homem x espaço
p.1) esclarece a composição deste espetáculo: físico surgem as dinâmicas locais, as “corpogra-
fias” singulares de cada área da cidade.
Os elementos móveis da cidade e, em espe-
cial, as pessoas e suas atividades, são tão
importantes quanto as partes físicas esta-
cionárias. Não somos meros observadores A GRAFIA URBANA
desse espetáculo, mas parte dele; com-
partilhamos o mesmo palco com os outros Jacobs (2009) usa o termo “ballet urbano” para
participantes. Na maioria das vezes, nossa descrever as atividades cotidianas das calçadas
percepção da cidade não é abrangente, mas de seu bairro em Nova York: a movimentação das
antes parcial, fragmentária, misturada com pessoas dentro de um contexto específico da
considerações de outra natureza. Quase cidade e de sua própria rua. Desta movimenta-
todos os sentidos estão em operação, e a ção, surge a coreografia, um grande ballet, como
imagem é uma combinação de todos eles. salienta Jacques (2008):
Em consonância com Lynch (2009), Lamas (2004) Numa coreografia, os corpos dos bailari-
atesta que a compreensão dos elementos mor- nos atualizam o projeto de dança o tempo
fológicos, constituintes da forma urbana, possi-
todo, assim como numa cidade, em que
bilita ao pesquisador análise e compreensão da
os habitantes modificam o espaço urbano
evolução do espaço. Ao afirmar que a caracte-
conforme o seu cotidiano.
rização da cidade se estabelece por diferentes
classificações de escalas e dimensões, o autor Jacques (2008): utiliza o termo “corpografias ur-
nos salienta: banas” para designar a grafia da própria cidade
vivida e experienciada pelos corpos humanos,
Esta posição implica aceitar que a constru-
que nada mais é do que o ballet ao qual Jacobs
ção do espaço físico passa necessariamen-
(2009) se refere. Segundo Jacques (2008), essas
te pela arquitectura. Então, a noção de [for-
corpografias podem ser analisadas e mapeadas
ma urbana] corresponderia ao meio urbano
quando da utilização de um espaço, e o estudo
como arquitectura, ou seja, um conjunto
desses padrões corporais proporcionam uma
de objetos arquitectónicos ligados entre si
maior compreensão do espaço urbano, e conse-
por relações espaciais. A arquitectura será
quentemente, do seu espetáculo.
assim a chave da interpretação correcta e
global da cidade como estrutura espacial Uma corpografia urbana é um tipo de car-
(LAMAS, 2004, p. 41).
tografia realizada pelo e no corpo, ou seja,
a memória urbana inscrita no corpo, o re-
É importante ressaltar assim, que o espaço físico
leva em conta toda a constituição de uma cidade. gistro de sua experiência da cidade, uma
Para tanto, considera a geografia, a topografia, espécie de grafia urbana, da própria cida-
a história e a arquitetura em si, como elementos de vivida, que fica inscrita mas também
que compõem cada espaço e caracterizam os configura o corpo de quem a experimenta
mesmos. (JACQUES, 2008, grifo do autor).

Tal qual um espetáculo teatral, a cidade é com- A análise e estudo das “corpografias urbanas” de
posta por cenários, atores, dinâmicas próprias Jacques (2008), ou o ballet urbano, de Jacobs
e um ballet único, resultado da interação do su- (2009), se fazem importante pois, ao explorar a
porte físico da cidade (morfologia urbana) e seus lógica da composição dos cenários que abraçam
transeuntes/habitantes. Certau (2001, p. 202) essas dinâmicas, nota-se claramente o traço e in-
assim nos diz: tenção do Arquiteto e Urbanista. Entende-se como
coreografia portanto, o resultado do projeto pre-
O espaço é um lugar praticado. Assim a rua ge- viamente idealizado pelo profissional, ou seja, os
ometricamente definida por um urbanismo movimentos são projetados e previamente coreo-
é transformada em espaço pelos pedestres. grafados, pelo Arquiteto e Urbanista em sua mente.
EIXO TEMÁTICO 2 Nota-se contudo que no Brasil, assim como em
vários outros lugares do mundo, há a ausência do
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS projetista. O desenvolvimento do local antecedeu
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES o projeto e a organização do Arquiteto e Urbanis-
ta. De maneira corriqueira e natural, as cidades
brasileiras são primeiramente vivenciadas e não
projetadas. Os espetáculos surgem sem prévia
análise, se adequando e se conformando ver-
tiginosamente a paisagem natural, de maneira
aleatória e antes de qualquer estudo prévio. O
que muitas vezes ocasiona inúmeros problemas
locais que demandam intervenções futuras.

OS PRIMÓRDIOS DO ESPETÁCULO URBANO


E A ARQUITETURA DO PODER

A afirmação: “Arquitetura é música petrificada”


de Johann Wolfgang Goethe (1839), nos remete
muito ao ballet urbano.

Ao unir arquitetura e a música, o autor sugere


que a dança é a reação dos corpos no espaço. Ou
seja, frente ao objeto, aqui considerado como as
edificações da cidade, os corpos humanos reagem
e se movimentam. A construção é desta forma, o
fator que determina a movimentação humana. A
Arquitetura é portanto, entendida pelo autor como
a música que produz efeito sobre o corpo. Desta
forma, assume-se que a arquitetura influencia na
grafia e na dinâmica corporal. É isso que vemos
no espaço urbano o tempo todo: o ballet urbano.

A disposição dos objetos arquitetônicos no espaço


urbano, suas saliências e reentrâncias provocam
reações nos transeuntes. Destas reações, nascem
as corpografias. Tais grafias, quando analisadas,
proporcionam maior entendimento do local e da
relação entre espaço x pessoas.

Para entender o processo de desenvolvimento


e formação dos espaços urbanos ao longo do
tempo, é necessário analisar as primeiras cidades
das antigas civilizações. Roma, por exemplo, com
seus aquedutos, anfiteatros e fóruns romanos,
testemunha, reflete e impressiona até os dias
de hoje. A arquitetura da época representava o
poder do imperador. As construções tinham uma
16º SHCU simbologia de autoridade tão importante, que
30 anos . Atualização Crítica
o poder dos imperadores é refletido ainda nos
1654 dias atuais.
Deste modo, construir cidades significa procissões, cortejos e paradas”. Assim, a rua no
também uma forma de escrita. Na histó- Barroco estava voltada a atrair a atenção dos
ria, os dois fenômenos – escrita e cidade transeuntes nas procissões.
– ocorrem quase que simultaneamente,
impulsionados pela necessidade de me- Salgueiro (1992), salienta outro cenário das cida-
morização, medida e gestão do trabalho des. A autora nos chama a atenção para o período
coletivo. (ROLNIK, 2003, p. 16) industrial, onde as cidades se transformaram
devido a concentração da população rural no es-
Quanto maior e mais diversificado fosse o fórum paço urbano. Segundo Salgueiro (1992), emerge
romano, mais poder seria atribuído ao imperador neste momento, a estratificação de classes, ou
que o construiu. Ficou implícito assim, o desejo seja, o resultado da transformação da socieda-
do imperador em perpetuar e eternizar sua au- de e a valorização de cada indivíduo passa a ser
toridade através dos tempos por meio de obras baseada em sua escala social. Nota-se desde
de infraestrutura e arquitetura. Assim, tem-se este período então, a distribuição das classes
até hoje a dimensão da dominação e controle sociais em áreas distintas da cidade. Surge neste
daqueles tempos. momento o centro e a periferia urbana. A cidade,
tal qual a conhecemos na atualidade, teve em seus
Segundo Lamas (2004), no Renascimento o foco
primórdios a fragmentação das classes sociais
principal do espaço urbano foi a rua, que priori-
na cidade industrial.
zou a circulação das pessoas de maneira objeti-
va e racional. Ao adotar ruas retas, que dirigiam
Evidencia-se através desta breve análise, o po-
o transeunte a um ponto focal, valorizou-se a
der de persuasão e perpetuidade que as obras
perspectiva definidora da paisagem simétrica e
arquitetônicas tem em si. Isso faz com que edifi-
harmônica. A cidade foi assim, guiada pela razão,
cações e as obras de infraestrutura sejam reflexo
clareza e objetividade ao definir o trajeto a ser
do poder centralizado, do domínio na gestão de
percorrido pelo transeunte.
uma cidade. Além disso, ambas ainda salientam
A rua, ou o traçado, irá tornar-se um elemen- a importância da Arquitetura e do Urbanismo no
to de grande importância. A rua renascen- planejamento urbano. Rolnik (2003, p. 63) retrata
tista será um percurso rectilíneo que man- a ligação estreita entre a arquitetura e o poder
tém a função de acesso aos edifícios, mas ao salientar: “Daí que demolir casas, sobrados e
será, pela primeira vez, eixo de perspectiva, até implodir edifícios para dar lugar a um grande
traço de união e de valorização entre os projeto de transportes já tenha se tornado abso-
elementos urbanos (LAMAS, 2004, p. 172) lutamente corriqueiro em nossa cidade.”

Já no período Barroco, a rua tornou-se um cená- Desta forma, a autora salienta que as edificações
rio. Por servir como pano de fundo aos edifícios, passam a ser joguetes nas mãos dos gestores da
as construções chamavam muito a atenção dos cidade e chama a atenção para o setor imobiliário
transeuntes. É importante salientar que durante ao afirmar:
o Barroco, a igreja perdia o seu poder perante
os fiéis. assim, o seu poder valorizava muito as Como a valorização ou desvalorização
edificações para que estas atraíssem a atenção de uma região depende dos investimen-
da população, atentando-os para o poder da ins- tos públicos e privados naquele espaço,
tituição. Desta forma, se valendo de curvas e o investimento maciço, representado por
suntuosidade, as igrejas e demais edificações grandes trabalhos de remodelação, alteram
persuadiam seus fiéis a contemplarem cenários substancialmente o mercado imobiliário
eloquentes e apelativos. (ROLNIK, 2003, p.63).

Sobre estes dois momentos distintos da histó- Um exemplo dessa relação da Arquitetura x Poder
ria das cidades, Lamas (2004, p. 174) afirma: “A na cidade pode ser observado na atualidade, ao
rua renascentista será um importante sistema analisar-se os processos temporais da Aveni-
de circulação, até se tornar, no período barroco, da Paulista e a Avenida Engenheiro Luís Carlos
em cenário – corredor para as movimentações, Berrini, em São Paulo.
EIXO TEMÁTICO 2 Segundo o site Cidade de São Paulo (2018), a
Avenida Paulista foi até 1950 uma via de um bairro
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS residencial. A partir de 1970, ela passou a abrigar
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES edifícios sedes de bancos e de grandes empresas.
Em 1990, estes edifícios migraram para a região da
Avenida Berrini, que passou a ser uma alternativa
de região empresarial, por causa dos altos preços
de aluguel nas proximidades da Avenida Paulista.

Desde então, a Avenida Paulista passou a ser


um grande polo cultural com centros culturais e
museus. Essa mudança de cenários verificados
nas duas áreas da cidade de São Paulo, geraram
diferentes experienciações e corpografias aos
transeuntes.

Esta breve análise cronológica da arquitetura e


urbanismo aponta que os elementos essenciais de
organização do espaço urbano, a malha urbana, as
edificações e as pessoas sempre foram delinea-
dos de acordo com os interesses de cada época.
Como consequência, as dinâmicas propostas aos
frequentadores destes locais, sempre foram di-
tadas pelos construtores das cidades (arquitetos
e urbanistas) que, juntamente com os “donos’’ do
poder nas distintas épocas exploradas, moldaram
o espaço urbano.

MORFOLOGIA URBANA E BALLET URBANO

Como visto, a experienciação das cidades produz


de maneira natural e intrínseca o ballet urbano,
ou seja, as corpografias. Desta forma, a partir da
disposição das edificações sobre o território, das
áreas verdes, áreas de trafego intenso, área de
circulação e áreas de permanência, as pessoas
vão, ao utilizarem o espaço urbano, compondo o
o balltet urbano, através de seus deslocamentos.

Segundo Lamas (2004), o caminhar revela que


os espaços urbanos são compostos por facha-
das, ruas, praças e uma malha urbana. Todo esse
conjunto proporciona ao transeunte, diferentes
sensações de acordo com a configuração e orga-
nização proposta. Neste sentido, os autores são
unânimes em salientar a importância do caminhar
para compreensão do espaço urbano. Ao obter
16º SHCU tal compreensão, nota-se portanto, a intenção
30 anos . Atualização Crítica
do Arquiteto e Urbanista, uma vez que este é o
1656 profissional capacitado a ter plena consciência
da complexidade e necessidades humanas e a observador tem uma percepção do entorno de
projetar esses espaços que ainda não existem. maneira clara e objetiva.

Seja como no Barroco, com seus movimentos A pluraridade de cenários nas cidades é possível
lentos que observam os detalhes das edificações, devido à conformação natural da cidade no sitio
ou no Renascimento, que permitiu passos rápi- em que se insere. Os traçados e a disposição das
dos, precisos, cadenciados e repetidos, devido a edificações no espaço permitem corpografias
linearidade de suas ruas, ou ainda por caminhos distintas em cada cenário das cidades.
diversos dada a configuração segregada da ci-
dade industrial, a cidade e o ballet urbano são A cidade de Brasília contrariamente sugere velo-
intrínsecos. Um pertence ao outro. Um só existe cidade aos seus “bailarinos”, uma vez que a apre-
porque o outro também existe. Assim, o ballet ensão do espaço se dá de maneira quase que
urbano acontece e é vivenciado de diferentes instantânea. Os bailarinos de Brasilia – carros -
maneiras, se transformando e se moldando aos conseguem observar à longas distâncias os monu-
diferentes períodos, seguindo sempre a confor- mentos da modernidade, como mostra a Figura 2.
mação espacial de cada local.

Assim foi a descrição da cidade de Viena por Ca-


milo Sitte (1980), onde o autor salienta a dispo-
sição aleatória, e por vezes surpreendente, dos
cenários da cidade. Ao se imaginar percorrendo
essas vias representadas na Figura 1, nota-se que
as edificações surgem proporcionando pontos de
vista distintos ao transeunte observador. A cada
passo, uma nova surpresa.

Ao analisar o desenho da malha de Viena, Sitte


(1980) verifica que a coreografia dos “bailarinos”
acontece lentamente, uma vez que o espaço ofe-
Figura 2: Traçado da cidade de Brasília. Fonte: G1- Globo.
rece reentrâncias e curvas. Propõe-se assim a
Data: 30/01/2020
movimentação calma dos transeuntes no espaço:
passos curtos e máxima atenção às ruas e suas
edificações. Sugere ainda que os bailarinos se Seja na velocidade de Brasília, ou na lentidão de
deleitem com a mudança abrupta que emerge a Viena, a corpografia urbana é experienciada e
cada ponto de vista e a cada esquina. permitida de maneira diferente.

Há na análise de ambas, um intricado de questões


transdisciplinares e multidisciplinares que podem
ser observados e que permitem inúmeras leituras
das cidades. Seja pelo seus aspectos construti-
vos, pelos materiais utilizados, pela traçado de
suas ruas, pela utilização e ocupação das ruas
pelas pessoas ao longo do dia ou pela história
imbricada em ambas disposições espaciais, as
leituras da cidade são diferentes.

Há toda uma bagagem cientifica, cultural e histó-


Figura 1: Traçados da cidade de Viena. Fonte: Sitte (1980, p. 218). rica expressas na paisagem urbana, que juntas,
formulam toda a singularidade de uma cidade.
Diferentemente de Viena, em Brasília, Lucio Costa
e Niemayer propõem uma fácil e rápida apreensão Ao atestar que a compreensão dos elementos
do espaço. Ao observar a Figura 2 e imaginar- morfológicos constituintes da forma urbana pos-
-se percorrendo as vias de Brasília, o transeunte sibilita ao pesquisador analisar e compreender a
EIXO TEMÁTICO 2 evolução do espaço, Lamas (2004), nos diz que a
caracterização da cidade se estabelece por di-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS ferentes classificações de escalas e dimensões.
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
As Figuras 1 e 2 demonstram isso ao proporciona-
rem diferentes experiências aos seus transeun-
tes. As grafias que emergem quando da utilização
destes espaços serão portanto, diferenciadas.

O ballet urbano, ou a corpografia urbana, a escala


que aqui nos interessa, trata da escala do homem,
do corpo humano reagindo no espaço, sendo ele
projetado pelo Arquiteto e Urbanista ou desenvol-
vido de forma aleatória, sem projeto ou intenção.

O objeto desta pesquisa se restringe a análise de


duas cidades distintas do interior de São Paulo:
Bauru e Macatuba. Busca-se através desta, ex-
plorar a conformação de algumas áreas de cada
uma das cidades escolhidas. O estudo de seus
cenários e consequentemente, de seus espetá-
culos e corpografias, serão utilizadas portanto
como ferramentas na construção e entendimento
dos seus espaços urbanos. Intende-se com isso,
propor cenários futuros a estes locais, através da
provisão de diretrizes projetuais adequadas para
cada realidade especifica.

A presente pesquisa contempla pesquisa biblio-


gráfica, para aprofundar os estudos sobre a confi-
guração e funcionamento da cidade e do planeja-
mento; visita in loco e pesquisa iconográfica para
entendimento dos cenários e dinâmicas existen-
tes nas áreas de interesse de ambas as cidades;
e estudos de caso, considerando a configuração
do local e suas dinâmicas próprias (levantamento
da paisagem construída e vivenciada).

Para tanto, esta pesquisa observará a confor-


mação dos espetáculos existentes nas cida-
des de Bauru e Macatuba ao longo do tempo.
É importante ressaltar que ambas as cidades
foram escolhidas devido ao fato de pertencerem
a mesma região de governo e por apresentarem
porte, história, morfologia e consequentemente
conformação, bastante contrastante. Além disso,
a classificação das cidades escolhidas é distinta
devido ao número de habitantes de cada uma.
Bauru é considerada uma cidade de porte mé-
16º SHCU dio, com 337.000 habitantes aproximadamente.
30 anos . Atualização Crítica
Já Macatuba, se classifica como uma cidade de
1658 pequeno porte, com cerca de 17.000 moradores.
Dada a natureza singular e efêmera das corpo- mudança, e, embora se trate de vida, não
grafias urbanas, cada cidade configura-se como de arte, podemos chamá-la, na fantasia,
única, pois cada uma delas possui seus próprios de forma artística da cidade e compará-
espetáculos. Surge assim, a necessidade de ex- -la à dança – não a uma dança mecânica,
plorar cada um desses espetáculos que as dife- com figurantes erguendo a perna ao mesmo
rentes áreas na cidade proporcionam. Esta pes- tempo, rodopiando em sincronia, curvando-
quisa se debruçará na busca das singularidades -se juntos, mas a um balé complexo, em que
de cada cidade escolhida para o estudo. Essas cada indivíduo e os grupos têm todos papéis
características únicas são o que formam essas distintos, que por milagre se reforçam mu-
cidades, e consequentemente, moldam o ballet tuamente e compõem um todo ordenado. O
urbano, o espetáculo. balé da boa calçada urbana nunca se repete
em outro lugar, e em qualquer lugar está
sempre repleto de novas improvisações
(JACOBS, 2009, p. 52).
O ESPETÁCULO DE BALLET
Neste sentido, e no intuito de entender a composi-
Para entender melhor o espetáculo urbano, utiliza- ção do espetáculo urbano, a pesquisa se apropria-
mo-nos da estrutura de um espetáculo de ballet, rá de termos e definições do universo do ballet em
já que o ponto focal é a análise da coreografia e o si, fazendo um paralelo com o espetáculo urbano.
contexto do espetáculo. Sobre a relação da dança
com a cidade, Jacobs (2009) nos diz: De acordo com Monteiro (1998) e Silva (2007), um
espetáculo de Ballet apresenta, de maneira com-
Essa ordem compõe-se de movimento e pilada, a estrutura disposta na Figura 3:

NOMEAÇÃO DESCRIÇÃO

“Um balé é um quadro, a cena é a tela, os movimentos mecânicos dos


ESPETÁCULO
figurantes são as cores;” (MONTEIRO, 1998, p. 185)

“Como se fosse uma pintura onde personagens irão atuar, a arquitetura


CENÁRIO do espaço cênico, da iluminação, bem como a escolha e a manipulação
de objetos e outros recursos” (SILVA, 2007, p. 21)

“O ballet é uma espécie de máquina, mais ou menos complicada, cujos


efeitos variados para tocar e surpreender precisam ser rápidos e múlti-
BALLET plos. Os movimentos se sucedem com rapidez, ..., a harmonia, que reina
nos passos e na sequência: tudo isso não caracteriza da imagem de uma
máquina engenhosamente construída?” (MONTEIRO, 1998, p. 218)

“Os passos, o desembaraço, o brilhantismo dos encadeamentos, ..., eis o


COREOGRAFIA
que chamo de mecanismo da dança;” (MONTEIRO, 1998, p. 197)

“O palco de dança, ..., é essencialmente percebi-


do pela plateia apenas em suas dimensões básicas de altura
PALCO e largura. É exatamente o movimento que vai revelar a presença da
terceira dimensão, dando volume e, consequentemente, dinâmica ao
espaço.” (SILVA, 2007, p.22)
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

“Atores e bailarinos se arrumam no camarim, uma sala com banheiro,


CAMARIM
espelhos e luz.” (REVISTA ABRIL, 2012)

“Formada por cortinas pretas, a coxia fica nas laterais do palco e é para
COXIA onde os atores vão quando saem de cena ou onde aguardam antes de
entrar.” (REVISTA ABRIL, 2012)

“... estabelece o clima, a ambientação psicológica correta para o tema a


ATOS
ser desenvolvido.” (SILVA, 2007, p. 31)

“O público, por sua vez, gosta de viver numa doce ilusão... Aplaude,
PÚBLICO por conseguinte, ..., as cabriolas dos nossos bailarinos e os trejeitos das
bailarinas.” (MONTEIRO, 1998, p. 210)

“A coreógrafa, com sua habilidade, ..., extraía desses objetos suas pro-
COREÓGRAFO
postas fundamentais e, ..., do movimento do dançarino, fazendo-os par-
ticiparem ativamente da coreografia.” (SILVA, 2007, p. 24)

Figura 3: Estrutura de um Espetáculo de Ballet. Fonte:


Elaborado pela autora.

Tal qual o espetáculo de ballet, o espetáculo ur-


bano é impregnado de história e cultura. Cada
cidade é um grande espetáculo único em si e é
composta por espetáculos menores. Cada região
ou bairro da cidade são grandes laboratórios da
vida em sociedade. Se trata de um grande aglo-
merado de experiências e movimentações que
refletem a organização humana neste organismo
vivo e “manufaturado” que é a cidade. Gehl (2014,
p. 195) assim nos diz:

É a cidade experimentada pelas pessoas


que a utilizam ao nível dos olhos. Aqui não
interessam as grandes linhas da cidade ou a
espetacular implantação dos edifícios, mas
a qualidade da paisagem urbana tal como
percebida por aqueles que caminham ou
por aqueles que permanecem na cidade.
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
Desta forma, entender as partes de cada espetá-
1660 culo, entender a coreografia, ou como nos diz Ja-
cques (2008) as “cropografias urbanas”, estaremos ao nível dos olhos das pessoas que vivenciam as
entendendo as cidades. Utilizando-nos da figura diferentes áreas da cidade, são entendidas como
3, que retrata a estruturação de um espetáculo de espetáculos distintos. Contudo, todo espetácu-
ballet, analisaremos a estrutura do ballet urbano. lo urbano possui a seguinte composição como
É importante salientar que cada experimentação mostra a Figura 4:

NOMEAÇÃO DESCRIÇÃO JUSTIFICATIVA/ EXPLANAÇÃO

Será aqui entendido como a intera-


“É a cidade experimentada pelas pes-
ção e experimentação da cidade pe-
soas que a utilizam ao nível dos olhos.
las pessoas que a habitam, ou seja,
Aqui não interessam as grandes linhas
o espetáculo consiste na cidade sen-
da cidade ou a espetacular implantação
do vivenciada por seus habitantes.
ESPETÁCULO dos edifícios, mas a qualidade da pai-
Cada espaço urbano abrange espe-
sagem urbana tal como percebida por
táculos menores em cada bairro e
aqueles que caminham ou por aqueles
rua da cidade, que juntos, formam o
que permanecem na cidade.” (GEHL,
grande espetáculo urbano.
2014, p. 195)
São as fachadas das casas, as ruas,
os vazios, os parques e tudo aquilo
que engloba a cidade e a torna um
lugar de vivência. “...”um espaço convidativo para as pes-
Cada espaço urbano configurado re- soas na cidade. O Objetivo seria o trata-
vela um cenário composto por his- mento total, no qual a cidade se harmo-
tórias próprias e particularidades. nizasse em sua completude – a linha do
O autor elenca desta forma, os ele- horizonte, a implantação dos edifícios e
CENÁRIO
mentos essenciais para cada cenário as proporções do espaço urbano – com-
essencialmente convidativo a expe- binados a partir de um cuidadoso trata-
riência humana: a linha do horizonte mento da sequência de espaços, deta-
que delimita o espaço, a implantação lhes e equipamentos ao nível dos olhos.
do edifício enquanto obra edificada “(GEHL, 2014, p.195)
carregada de simbolismos, histó-
ria, cultura, e a parte que dá supor-
te ao transeunte: o espaço urbano.
“Os praticantes ordinários das cidades
Aqui entendido como a movimenta- atualizam os projetos urbanos e o próprio
ção da população na malha urbana urbanismo, através da prática, vivência
da cidade. ou experiência dos espaços urbanos.
Assim como um corpo de baile em Os urbanistas indicam usos possíveis
uma coreografia, é o que preenche para o espaço projetado, mas são aque-
o espaço. les que o experimentam no cotidiano
BALLET
O ballet é a coreografia que a arqui- que os atualizam. São as apropriações
tetura da cidade induz e sugere ao e improvisações dos espaços que legi-
caminhante. timam ou não aquilo que foi projetado,
É o que movimenta a cidade, res- ou seja, são essas experiências do es-
ponsável pela dinâmica urbana e paço pelos habitantes, passantes ou er-
pelo vigor da mesma. rantes que reinventam esses espaços no
seu cotidiano.” (JACQUES, 2008, p. 3)
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

“No momento da realização de uma co-


Entendida aqui como a movimen- reografia, da mesma forma como ocorre
tação que surge da interação entre com a apropriação do espaço urbano que
os habitantes da cidade e o próprio difere do que foi projetado, os corpos dos
espaço urbano. Esta coreografia sin- bailarinos também atualizam o projeto,
cronizada se atualiza todos os dias ou seja, realizam o que poderíamos cha-
de acordo com os deslocamentos e mar de uma cartografia da coreografia, ao
experiências vividas pela popula- executarem a dança.” (JACQUES, 2008,
ção, de maneira perfeita. Durante o p. 02). “A errância tem uma conotação
dia e ao final deste, a maioria das ontológico -historial. Heidegger enfatiza
COREOGRAFIA
pessoas voltam para os seus postos a situação historial e existencial de er-
numa harmonia perfeita. Há que rância que condiciona a humanidade e o
se falar também sobre os errantes, ser -aí, com o termo “desgarramento”. O
citado por Heidegger (1984) como desgarramento é o nível mais profundo e
aqueles que perambulam pela ci- mais grave da errância que nos ameaça.
dade e que desempenham uma co- “...” Vemos deste modo que o caminhar
reografia peculiar. Estes bailarinos historial do homem é essencialmente er-
e suas coreografias serão tratados rante. Isto se torna compreensível pelo
adiante. caráter ontológico in -sistente ek-sis-
tente do homem.” (BATISTA, 2005)
É considerada aqui como a rua, o
“Há um contato direto entre as pessoas
grande palco do espetáculo urbano
e a comunidade do entorno, o ar fresco,
por muitos autores como Lamas
o estar ao ar livre, os prazeres gratui-
(2004), Gehl (2014) e Jacobs
tos da vida, experiências e informação.
(2009). É nela em que ocorrem to-
PALCO Em essência, caminhar é uma forma es-
das as interações entre população
pecial de comunhão entre pessoas que
e cidade. Onde estão dispostos os
compartilham o espaço público como
cenários. O local do ballet urbano,
uma plataforma e estrutura.” (GEHL,
o espaço das coreografias. O local
2014, p. 19).
onde a mágica se dá.
“Quando se fala em habitar, representa-
-se costumeiramente um comportamento
Será aqui entendido como a resi- que o homem cumpre e realiza em meio a
dência de cada habitante. vários outros modos de comportamento.
É em suas casas que cada bailarino Trabalhamos aqui e habitamos ali. Não
CAMARIM
se prepara, relaxa e se organiza para habitamos simplesmente. Isso soaria até
sair às ruas e dançar a coreografia mesmo como uma preguiça e ócio. Temos
da cidade. uma profissão, fazemos negócios, viaja-
mos e, a meio do caminho, habitamos ora
aqui, ora ali.” (HEIDEGGER, 1951, p. 02).

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1662
No espaço urbano este local será
considerado como os espaços de
transição entre o local público e o
local privado: o espaço intermediá-
A soleira fornece a chave para a tran-
rio: A calçada.
sição e a conexão entre áreas com de-
É a calçada que separa o local
marcações territoriais divergentes e, na
público do local privado, uma linha
qualidade de um lugar por direito pró-
COXIA que demanda atenção, que sinaliza
prio, constitui, essencialmente, a condi-
a mudança de ambiente.
ção espacial para o encontro e o diálogo
Enquanto no espetáculo de ballet a
entre áreas de ordens diferentes (HERT-
coxia é a faixa de transição entre o
ZBERGER, 2010, p. 32).
camarim e o palco, na cidade, a cal-
çada é a faixa de transição para os
últimos arranjos antes de adentar/
sair do espaço público ou privado.

No ballet, esta é a sequência das


ações. Na cidade, os atos serão en-
tendidos como as mudanças dos “O quadro mecânico é um dispositivo
cenários refletidas na cidade. Desta de passagem. Tudo está contido nele.
ATOS forma, a movimentação da pessoas Ali se passa de um tempo a outro, de
durante diferentes horas do dia em uma dimensão a outra.”
tais locais, acontece de forma dife- (PEIXOTO, 2003, p. 95)
rente, ora mais tranquila, ora mais
movimentada.

“A redução da ação urbana, ou seja, o


As pessoas que dão vida ao espetá- empobrecimento da experiência urbana
culo. Ora o público está observando pelo espetáculo leva a uma perda da cor-
a cena, ora está no palco, desempe- poreidade, os espaços urbanos se tornam
nhando a coreografia. Os transeun- simples cenários, sem corpo, espaços de-
PÚBLICO tes e os bailarinos são o público. sencarnados. Os novos espaços públicos
Podem dançar a dança da cidade contemporâneos, cada vez mais privati-
(desempenhando suas atividades zados ou não apropriados, nos levam a
rotineiras), ou observar o espetácu- repensar as relações entre urbanismo e
lo urbano. corpo, entre o corpo urbano e o corpo do
cidadão.” (JACQUES, 2008, p. 01)

“Em resumo, ser arquiteto é ser ordena-


Compreende os Arquitetos e Urba-
dor de ideias, transformador de sentimen-
nistas, que configuram a cidade e
tos, materializador de possibilidades. É
a projetam. Ao definir a disposição
ser o construtor da cidade. Ser arquiteto
e a organização do espaço urbano,
COREOÓGRA- é dar uso aos espaços públicos e priva-
eles definem consequentemente, a
FO dos. Quando você olha crianças brin-
futura movimentação dos habitan-
cando na praça ou pessoas indo e vindo
tes da cidade. A este profissional lhe
nas vias da cidade, ali está o trabalho do
compete ordenar e antever o espetá-
realizador de sonhos – o arquiteto e ur-
culo completo.
banista.” (OLIVEIRA, CAU/RR, 2015).

Figura 4: Estrutura de um Espetáculo Urbano. Fonte: Elaborado pela autora.


EIXO TEMÁTICO 2 O ballet da cidade é arte: apresenta sincronia,
emoção e beleza. A construção no espaço e os
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS movimentos que a arquitetura delineia através
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES de suas linhas e construções ditam a coreografia
que o homem desempenha no espaço. Para Gehl
(2014), primeiramente nós humanos moldamos as
cidades e na sequência, ela nos molda. Ao definir
o traçado das ruas de uma cidade, ao estabelecer
os planos das fachadas das casas, a altura dos
edifícios, o arquiteto constrói o espaço vazio por
onde o homem perambula, e consequentemente,
influencia no funcionamento e desenvolvimento
do espaço urbano.

Estabelecida a estreita relação entre o espetáculo


de ballet e o espetáculo urbano, segue a análise
de dois espetáculos distintos: a cidade de Bauru
e Macatuba.

A IMAGEM DAS CIDADES: BAURU E MACATUBA

Antes de adentrar a análise de cada uma das ci-


dades e explorar seus cenários e espetáculos, se
faz necessário entender, inicialmente, a imagem
de cada uma dessas cidades, ou seja, entendê-las
em um panorama amplo.

Lynch (2009) define a imagem da cidade como a


junção de todos os aspectos do espaço urbano
que a caracterizam. Desta forma, a imagem é
composta por todas as partes da cidade: a rua,
as casas, as fachadas, os comércios, os parques
e inclusive as pessoas vivenciando seus espaços.
Isso faz com que as cidades sejam reconhecidas
de formas distintas pelas pessoas. Portanto, a
imagem de cada cidade é singular.

A cidade com uma imagem marcante sempre


estará presente na memória das pessoas. Ao vi-
venciar a cidade, os transeuntes a possuem e a
entendem por completo. Enxergam suas carac-
terísticas, detalhes e singularidades enquanto
que um observador desatento e com pressa, faz
uma leitura superficial do espaço.

Se olharmos a história das cidades, pode-se


ver claramente que as estruturas urbanas
16º SHCU e o planejamento influenciam o compor-
30 anos . Atualização Crítica
tamento humano e as formas de funcio-
1664 namento das cidades (LYNCH, 2009, p. 21)
Calvino (1990) concorda com Lynch (2009) ao procu-
rar nas cidades suas características invisíveis mas
que provocam repulsa, estranhamento, afeição Em um dos sites, os atrativos apresentados não
e uma sensação de pertencimento nas pessoas. possuíam condiziam com áreas importantes do
município e por esta razão foram descartados.
Calvino utiliza da descrição do viajante Marco
Polo para entender/explicas as cidades. O autor Utilizando-se do mesmo processo para a cidade
entende que todos os espaços se desenvolvem de Bauru, inúmeros sites apareceram. Dentre
igualmente, mas alguns possuem certas singu- eles 5 foram escolhidos de acordo com a ordem
laridades que tornam as cidades únicas. Desta sugerida pelo site de buscas. Em cada site foram
forma, grande atenção é conferida aos detalhes apresentados uma média de 12 pontos turísticos.
e singularidades de cada cidade. Destaca-se entre eles:

A cidade de quem passa sem entrar é uma; a) Avenida Batista de Carvalho


é outra para quem é aprisionado e não sai
b) Catedral do Divino Espírito Santo
mais dali; uma é a cidade à qual se chega
pela primeira vez, outra é a que se abandona
c) Estação Ferroviária
para nunca mais retornar; cada uma merece
um nome diferente (CALVINO, 1990, p. 119) d) Companhia Antárctica Paulista

Calvino (1990) assim convida e inspira novos mo- e) Avenida Getúlio Vargas
dos de olhar e refletir sobre a cidade. Ao conferir
a cada um dos espaços urbanos uma descrição f) Zoológico Municipal
detalhada, o autor induz o leitor a criar imagens
mentais de cada cidade. Desta forma, Calvino g) Jardim Botânico
(1990), tal qual Lynch (2009), recorrem às ima-
h) SESC
gens para descrever as cidades. No livro, Marco
Polo elenca as cidades de acordo com suas ca-
i) Alameda Rodoserv Center
racterísticas singulares. Seguindo este mesma
estrutura, as cidades de Bauru e Macatuba serão j) Bosque da Comunidade
dessa maneira, assim também analisadas, com
o intuito de descobrir suas respectivas imagens. k) Museu Ferroviário

l) Igreja Tenrikyo

RESULTADOS m) Teatro Municipal

n) Parque Vitória Régia


Optou-se inicialmente por realizar pesquisas
em sites de buscas para um levantamento dos o) Horto Florestal
cenários que aparecem nessas cidades. Nos re-
sultados obtidos sobre a cidade de Macatuba, Dentre estes locais elencados, foram selecionados
notou-se que 5 lugares se repetiram em 3 dos 4 somente 5 para serem analisados nesta pesquisa.
sites utilizados. Estes locais são: A seleção para análise se deu de forma a contem-
plar as cidades listadas por Calvino, como segue:
a) Teatro Municipal

b) Matriz Santo Antônio


AS CIDADES E O DESEJO
c) Praça da Matriz Santo Antônio

d) Usininha do Rio Lençóis De acordo com Calvino, compreende a cidade que


possui atrativos que atribuem valor a ela mesma.
e) Avenida Cel. Virgílio Rocha Tais espaços urbanos contribuem para a satisfa-
EIXO TEMÁTICO 2 ção dos desejos dos habitantes. Além disso, faz
com que as pessoas tenham vontade de participar
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS e vivenciar o espaço urbano.
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
A cidade aparece como um todo no qual
nenhum desejo é desperdiçado e do qual
você faz parte, e, uma vez que aqui se goza
tudo e não se goza em outros lugares, não
resta nada além de residir nesse desejo e
se satisfazer. (CALVINO, 1990, p. 17)

AS CIDADES E A MEMÓRIA

Nesta cidade, o autor salienta a importância his-


tórica e de recordação, que concentra a essência
da mesma. São os cenários da cidade que pos-
suem memória para aqueles que o vivenciam/
vivenciaram. O sentimento pode surgir através
de uma imagem, cheiro, som ou toque. Segundo
o autor, “A cidade se embebe como uma esponja
dessa onda que reflui das recordações e se dilata.”
(CALVINO, 1990, p. 15)

AS CIDADES E OS MORTOS

Nesta cidade, Calvino salienta a história escrita


por seus antepassados. Com o passar do tempo,
o espaço urbano vai se reescrevendo e se mol-
dando de acordo com as novas necessidades.
No entanto, essa mudança vai sempre seguir os
primeiros desenvolvimentos.

Anos depois, retorna-se a Melânia e reen-


contra-se a continuação do mesmo diálo-
go...” “A população de Melânia se renova:
os dialogadores morrem um após o outro,
entretanto nascem aqueles que assumirão
os seus lugares no diálogo, uns num papel,
uns em outro. (CALVINO, 1990, p. 78)

AS CIDADES OCULTAS
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
Para Calvino, as cidades ocultas compreendem as
1666 partes escondidas, ou pouquíssimo exploradas de
uma cidade. Apesar disso, tais cidades possuem que pela exposição ou pela pendência ou
as maiores riquezas do espaço urbano: suas sin- pelos cursos de água ou pelos ventos apre-
gularidades. Somente quem realmente vivencia e sentam-se com alguma diferença entre si.
aprecia este espaço possui conhecimento de tal (CALVINO, 1990, p. 64)
característica. “E eis que se torna uma cidade de
tamanho natural, contida na primeira cidade: uma Apropriamo-nos da descrição das cidades de
nova cidade que abre espaço em meio à primeira Calvino para servir como balizadores da análise
cidade e impele-a para fora.” (CALVINO, 1990, p. 124) a ser aqui realizada. Cabe ressaltar que o autor
ainda descreve outras cidades que não foram aqui
ressaltadas por não se encaixarem nas leituras
AS CIDADES E AS TROCAS feitas nos cenários de cada espaço urbano a ser
estudado.
Calvino atribui este nome às cidades onde ocor- Inspirando-se nesta análise das cidades invisíveis,
rem as trocas: de conhecimento, de caminhos,
realizada por Calvino (1990) e valendo-se deste
experiências, ambientes e de arte. São nelas onde
modelo, as cidades de Macatuba e Bauru serão
o verdadeiro ballet da cidade acontece, devido ao
analisadas no intuito de investigar a imagem de
acúmulo de pessoas e a socialização.
ambas. Para tanto, elaborou-se a tabela disposta
Assim as suas vidas se renovam de mu- na Figura 5, no intuito de condensar e facilitar o
dança em mudança, através de cidades entendimento, como segue:

OBJETOS DE OBJETO DE ANÁLISE I: OBJETO DE ANÁLISE II:


ANÁLISE BAURU MACATUBA

CENÁRIO: CALÇADÃO DA CENÁRIO: AVENIDA CEL.


CENÁRIOS
BATISTA DE CARVALHO VIRGÍLIO ROCHA

ESPETÁCULOS

Rua que é referência no comércio Apesar apresentar um comércio


ESPETÁCULO I: da cidade. Ao redor dela, ergueu- com foco em locais mais específi-
AS CIDADES -se o centro comercial, oferecen- cos e distantes entre si, a avenida da
E OS DESEJOS do produtos que suprem os dese- cidade apresenta um grande número
jos da população e os convidam a de lojas que atendem a população
vivenciar o centro urbano. local.
CENÁRIO: CATEDRAL DO CENÁRIO: MATRIZ DE SAN-
DIVINO ESPÍRITO SANTO TO ANTÔNIO

ESPETÁCULO II: Igreja matriz de Bauru, que per- Igreja Matriz de Macatuba, que con-
AS CIDADES mite que a história da cidade seja ta a história da cidade e das pessoas
E A MEMÓRIA revisitada. Traz significado para que ali vivem/ viveram. Nela, en-
aqueles que vivenciam/ vivencia- contram-se pessoas idosas que des-
ram este espaço. de crianças, vivenciam o espaço.
CENÁRIO: ESTAÇÃO FER- CENÁRIO: PRAÇA SANTO AN-
ROVIÁRIA TÔNIO
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

Chafariz na Praça Santo Antônio


Inaugurada em 1939, era ocupada que atualmente, não tem funciona-
ESPETÁCULO III: AS pelo comércio e nos dias atuais, mento. Antigamente, era muito uti-
CIDADES E OS MOR- abriga cultura. O espaço se rein- lizada como local de encontro entre
TOS venta beirando os trilhos do trem. jovens. Atualmente, tornou-se ponto
A plataforma agora é palco para a de convívio entre participantes da
realização de exposições, encon- igreja e idosos, que continuam vi-
tros, eventos, entre outras ativida- venciando o espaço até os dias de
des culturais. hoje.
CENÁRIO: COMPANHIA
ANTARCTICA PAULISTA CENÁRIO: USININHA DO RIO
BAURU LENÇÓIS

Local que era ponto de referência


ESPETÁCULO IV: AS na cidade e foi fechada em 1997. Local de produção de energia elé-
CIDADES OCULTAS Nos dias atuais, o local é consti- trica.É uma área de preservação
tuído pelo Shopping Boulevard ambiental e apresenta um grande
Bauru. No entanto, continua fa- monumento, porém não possui mais
zendo a diferença na imagem da uso nos dias atuais. Ainda assim, é
cidade. um forte cenário da cidade.
CENÁRIO: AVENIDA GETÚ- CENÁRIO: TEATRO MUNICI-
LIO VARGAS PAL

Um dos principais acessos da ci-


dade, é local de socialização, en-
contros e trocas de experiências
ESPETÁCULO V: através do seu comércio, pistas Local de encontro de uma numerosa
AS CIDADES E de caminhada e bares noturnos. parte da população, principalmente
AS TROCAS Além disso, aos domingos, a ave- de pessoas mais idosas. Além disso,
nida é fechada para a circulação fica situada em frente a Av. Cel Vir-
livre da população, tornando-se gílio Rocha o que traz maiores flu-
um dos principais pontos da cida- xos e situações de encontros e trocas
de. para o local.

Figura 5: As Cidades Invisíveis. Fonte: Elaborado pela autora.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1668
Até o momento, foram recolhidos dados bibliográ- REFERÊNCIAS
ficos sobre o assunto e realizada a análise teórica
deste estudo. A partir de agora, iniciou-se o le-
vantamento de dados permitidos pelos estudos ASHER, F. Metápolis. 1° Edição. Celta Editora,
de caso, que permitirão maior compreensão da 1998.
pesquisa, dos cenários que existem em cada cida-
de, como foram formados, e como estes cenários Avenida Berrini. Cidade de São Paulo, 2018.
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16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1670
1671
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Esse trabalho busca resgatar a história do abas-
tecimento de água da cidade do Rio de Janeiro,
a fim de compreender como os mecanismos de
vídeo-pôster cobrança adotados afetam o acesso a este ser-
viço público. A discussão enfoca na evolução
dos modos de distribuição de água na cidade e
EVOLUÇÃO HISTÓRICA busca demonstrar o processo de conversão da
água de um bem comum para um bem público
DA COBRANÇA PELO impuro, especificamente, um bem de clube, no
qual o uso é restrito aos que cumprem com re-
ABASTECIMENTO DE ÁGUA gras de participação pré-definidas. A análise re-
alizada demonstra que a cobrança inicia com a
NO RIO DE JANEIRO implantação de penas d’água, sendo este o mar-
co na transição entre o fornecimento de água
antes gratuito e irrestrito em espaços públicos
HISTORICAL EVOLUTION OF PRINCING WATER SUPPLY
para o atendimento de espaços privados. Em
IN RIO DE JANEIRO
seguida, verifica-se que a relação entre o usu-
ário e o prestador de serviço é alterada com a
EVOLUCIÓN HISTORICA DE LA FACTURACIÓN POR EL introdução de dispositivos de medição individu-
ABASTECIMIENTO DE AGUA EN RIO DE JANEIRO al e, finalmente, as tarifas se consolidam como
a principal fonte de financiamento dos serviços,
ARAUJO, PATRÍCIA FINAMORE sendo estruturadas de modo a equacionar a dis-
tribuição dos custos e garantir a disponibilidade
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Urbanismo da
para todos os membros ‘do clube’. Por fim, cabe
Universidade Federal do Rio de Janeiro (PROURB/FAU/UFRJ)
patrícia.finamore@yahoo.com.br questionar se as regras de entrada vigentes ga-
rantem, de fato, o acesso universal ao serviço,
ou se, ao contrário, impedem, por incapacidade
BRITTO, ANA LUCIA NOGUEIRA DE PAIVA
de pagamento, o acesso da parcela mais pobre
Doutora em Urbanismo pelo Institut D’Urbanisme de Paris -
da população.
Université de Paris XII (Paris-Val-de-Marne). Professora do
Programa de Pós-Graduação em Urbanismo da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (PROURB/FAU/UFRJ)
anabrittoster@gmail.com ABASTECIMENTO DE ÁGUA SERVIÇO PÚBLICO
COBRANÇA MERCANTILIZAÇÃO DA ÁGUA

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1672
ABSTRACT RESUMEN

This paper seeks to recover the history of water Este trabajo tiene como objetivo rescatar la his-
supply in the city of Rio de Janeiro, in order to toria del abastecimiento de agua en la ciudad
understand how the charging, affect access to de Río de Janeiro, para comprender cómo los
this public service. The discussion focuses on the mecanismos de facturación afectan el acceso a
evolution of methods of water supply in the city este servicio público. La discusión se centra en la
and seeks to demonstrate the conversion pro- evolución de las formas de distribución de agua
cess of water from a common good to an impure en la ciudad y busca demostrar el proceso de
public good, specifically club goods, in which the conversión del agua de un bien común a un bien
use is restricted to those whom comply with pre- público impuro, como específicamente, un bien
defined participation rules. The analysis shows de club, en el cual el uso está limitado a aquellos
that the charging starts with the implementation que cumplen con reglas de participación predefi-
of a gauge, which is the milestone in the transi- nidas. El análisis realizado exhibe que la factura-
tion between the water supply as free and unres- ción comienza con la implementación de calibres
tricted in public spaces into the care of private de agua, siendo este un hito en la transición entre
spaces. Then, it appears that the relationship be- la distribución de agua, que antes era gratuita y
tween the user and the service provider is chan- sin restricciones en los espacios públicos, para
ged with the introduction of individual measure- servir espacios privados. En seguida, se verifica
ment devices (hydrometers) and ultimately the que la relación entre el usuario y el proveedor de
tariffs are consolidated as the principal source of servicios cambia durante la introducción de dis-
funding for the services, and structure to equate positivos de medición individuales (hidrómetros)
the distribution of costs and ensure availability to y, finalmente, las tarifas se consolidan como la
all members of the ‘club’. Finally, it is worth ques- principal fuente de financiamiento para los servi-
tioning whether the current entry rules factually cios, y se estructuran para considerar la distribu-
guarantee universal access to the service, or if on ción de costos y garantizar la disponibilidad para
the contrary they prevent due to inability to pay todos los miembros del ‘club’. Finalmente, vale la
the access of the poorest segment of the popu- pena preguntarse si las reglas de entrada actu-
lation. ales garantizan, verdaderamente, el acceso uni-
versal al servicio, o si, por el contrario, impiden,
debido a la incapacidad de pago, su acceso por
WATER SUPPLY PUBLIC SERVICE COLLECTION parte de la población más pobre.
MERCANTILIZATION OF WATER

ABASTECIMIENTO DE AGUA SERVICIO PÚBLICO


FACTURACIÓN MERCANTILIZACIÓN DEL AGUA
EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
O processo histórico de mercantilização da água
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
é intrínseco ao desenvolvimento das técnicas
hidráulicas que possibilitaram, em meados do
século XIX, o acesso domiciliar e a medição
vídeo-pôster
de consumo dos usuários das redes de abas-
tecimento de água (BARRAQUÉ, 2013). Essa

EVOLUÇÃO HISTÓRICA evolução do modo de fornecimento alterou,


definitivamente, o caráter dos serviços públicos
DA COBRANÇA PELO de água, que deixaram de atuar com a distribui-
ção de um bem comum e passam a restringir
ABASTECIMENTO DE ÁGUA seu uso, tornando-o um bem de clube.

NO RIO DE JANEIRO A água para abastecimento não é um bem de


mercado, mas também não é um bem público
puro. De acordo com as teorias econômicas
HISTORICAL EVOLUTION OF PRINCING WATER SUPPLY clássicas, os bens materiais podiam ser divi-
IN RIO DE JANEIRO didos de acordo com preceitos de rivalidade –
quando o uso individual acontece em detrimento
EVOLUCIÓN HISTORICA DE LA FACTURACIÓN POR EL do uso dos demais – e exclusividade – quando,
ABASTECIMIENTO DE AGUA EN RIO DE JANEIRO através da propriedade, é possível impedir o
acesso livre ao recurso. Conforme essa lógica,
os bens se dividiam entre privados, ou seja, rivais
e exclusivos, e públicos, não rivais e não exclusi-
vos. Todavia, como a classificação não era capaz
de compreender todos os bens econômicos
existentes, na década de 70, surgiu uma nova
categorização para abarcar os bens de natureza
mista, na qual incluem-se os bens de clube (club
goods), que compreendem bens exclusivos e,
ao mesmo tempo, não rivais, e bens comuns
(common goods), que são, ao contrário, não
exclusivos, mas rivais (DARDOT; LAVAL, 2017).

A água como um recurso natural está disponível


a todos, sem exclusão, todavia, se tratando de
um bem finito, pode haver rivalidade no seu
uso. A história dos serviços de abastecimento
de água demonstram que, inicialmente, quando
o fornecimento começa a ser feito por conces-
sões particulares, a maioria dos moradores não
queria ou nem poderia aderir ao serviço por
incapacidade de arcar com os custos associa-
dos a ele, sendo um privilégio das classes mais
abastadas. Portanto, extingue-se a rivalidade,
visto que todos aqueles que pagam pelo serviço
são atendidos, mas a água passa a ser passível
de exclusividade, tornando-se um bem restrito a
16º SHCU um clube seleto de usuários (BARRAQUÉ, 2013).
30 anos . Atualização Crítica
Quando da generalização das ligações domici-
1674 liares, a natureza do serviço não se altera, visto
que a água da torneira permanece sendo utiliza- justificado pelo paradigma de auto sustentação
da por todos os pagantes, sem rivalidade entre tarifária defendido por diversos segmentos do
eles. A economia de escala torna o serviço mais setor saneamento, o que as consolidou como a
barato, o acesso é ampliado, mas ele perma- principal fonte de financiamento dos serviços.
nece sendo um bem de clube, pois os usuários
podem ser excluídos por falta de pagamento. O recorte adotado, a despeito de sua amplitude,
se justifica porque foi na década de 1840 que se
Buscando compreender o contexto no qual esse estabeleceu o primeiro regulamento de conces-
processo histórico ocorreu no Rio de Janeiro, são de água a particulares, sendo este o primei-
o estudo foi pautado pelas práticas e políticas ro instrumento de cobrança pelo serviço público
relacionadas à cobrança domiciliar da água na cidade. O fim do período histórico estudado é
entre 1840 e 1975, reunidas em três períodos, marcado pela criação da Companhia Estadual de
cujos marcos iniciais representam inflexões Água e Esgoto (CEDAE), em 1975, e na constru-
que alteraram a dinâmica da cobrança e refle- ção de seu regime tarifário que, com poucas al-
tem mudanças no acesso ao serviço público de terações, permanece vigente até os dias atuais.
abastecimento de água. Cabe ressaltar que os
períodos não são sequenciais, visto que formas Este trabalho apresenta parte dos resultados
variadas de acesso à água coexistem no tem- de pesquisas desenvolvidas no âmbito do La-
po e no espaço da cidade do Rio de Janeiro. A boratório de Estudo de Águas Urbanas da Uni-
introdução de novas formas de distribuição e versidade Federal do Rio de Janeiro (LEAU/
cobrança não excluíam as demais já existen- UFRJ), e de um doutorado cujo objetivo é com-
tes. Há, ainda nos dias de hoje, como na época preender as dimensões sociais do sistema ta-
do império, moradores que são abastecidos por rifário e as desigualdades no acesso à água na
fontes públicas, por poços individuais, outros com Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ)
ligações irregulares diretas da rede, e aqueles decorrentes da cobrança pelos serviços. Am-
ligados à rede que pagam pela água, sendo esta bos partem da premissa de que o acesso não é
micromedida ou tendo o seu consumo estimado. determinado apenas pela presença ou ausência
de infraestruturas, mas também pela inserção
Inicialmente, é apresentada uma contextualiza- dos usuários no sistema formal de cobrança e
ção do serviço antes da introdução do primeiro na sua capacidade de pagamento, visto que é
mecanismo de cobrança. Trata-se da época em reconhecido que mesmo onde as redes técnicas
que a água era obtida diretamente nos rios e, estão presentes, há quem seja impedido do aces-
quando estes foram canalizados, o fornecimen- so em decorrência dos custos associados a ele.
to passou a ser feito nos chafarizes e bicas pú-
blicas espalhados pela cidade. A construção de
grandes equipamentos de infraestrutura, como
aquedutos e chafarizes, possibilitou vislumbrar ANTECEDENTES
o abastecimento domiciliar. O primeiro período
inicia-se com a implantação de penas d’água, Os portugueses, ao chegar à Baía de Guanabara,
que marcaram a transição entre o fornecimento começaram a fazer uso do rio Carioca, gerando
de água antes gratuito e irrestrito em espaços conflitos com a tribo dos Tamoios. Com a chegada
públicos para o atendimento de espaços pri- de Estácio de Sá e a fundação da cidade de São
vados. O segundo período aponta a introdu- Sebastião do Rio de Janeiro, em 1565, foi perfu-
ção de instrumentos de medição individual da rado um poço para garantir o abastecimento. A
água fornecida, que objetivavam, a princípio, água, porém, mostrou-se escassa e o rio Carioca
ampliar o controle do consumo para impedir o imprescindível para o provimento de água (SILVA,
desperdício de um recurso escasso, mas acabou 1965; CEDAG, 1970; SANTA RITTA, 2009). Em 1567,
reconfigurando a relação entre o prestador do Mem de Sá transferiu a cidade para o Morro do
serviço (vendedor) e o usuário (comprador). O Castelo. Com a expansão da cidade, a população
terceiro período trata do uso das tarifas como começou a ocupar a planície compreendida entre
garantia de empréstimos para financiar a am- o Morro do Castelo e os Morros Santo Antônio, São
pliação dos sistemas de abastecimento de água, Bento e da Conceição.
EIXO TEMÁTICO 2 Uma vez que o novo local também não possuía um
bom manancial, os escravos ficaram incumbidos
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS da busca de água no rio Carioca para seus proprie-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES tários e desenvolveu-se na cidade um comércio
do líquido – trazido em potes de cerâmica por
negros escravizados ou libertos e indígenas (CE-
DAG, 1970). A água era vendida nas ruas, de porta
em porta, aos consumidores que não dispunham
de escravos para apanhá-la no rio Carioca a uma
légua da cidade, mas também começaram a ser
cavadas ‘cacimbas’1 nos quintais, complementan-
do o abastecimento. A pequena concentração da
população viabilizava a solução individual como
satisfatória na cidade em formação.

Em 1617 foi proposto um “imposto sobre o vinho”


para fazer obras de abastecimento de água, recla-
madas pela população que já era de cerca de 4.000
habitantes. Seriam cobrados 160 réis sobre cada
“canada” de vinho importado na cidade. No entan-
to, o problema da água se agravaria e continuaria
sem solução, pois o dinheiro arrecadado sumiu
sem ser aplicado para o fim a que era destinado
(SANTA RITTA, 2009).

O primeiro ato visando à adução de água até um


ponto central onde pudesse ser distribuída co-
modamente à população se deu no governo de
Martim Correia de Sá [1623-1632], com a proposta
de captação e canalização do rio Carioca, preven-
do a sua condução até o Campo de Santo Antônio
(SANTA RITTA, 2009). A canalização do rio Carioca
foi colocada como prioridade no início do século
XVII, mas o atraso no início e no andamento das
obras fez com que o Aqueduto da Carioca só fosse
concluído quase 100 anos depois (CEDAG, 1970).

Embora o problema da água continuasse afligindo


a cidade, apenas no governo de João da Silva e
Souza [1669-1674] iniciou-se o encanamento do
rio Carioca, com o “subsídio dos vinhos” e metade
do rendimento das despesas da justiça2. Todavia,
os recursos se revelaram insuficientes, o que de-
terminou a paralisação da obra. Em 1677, as obras
foram retomadas e novamente paralisadas, por
discordância entre o poder municipal e os jesuítas
quanto ao valor pago aos índios que trabalhavam
nas obras. Em 1681, a Câmara instituiu uma taxa de

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica 1. Poço raso de água.

1676 2. Carta Régia de 06 de maio de 1672.


1$200 sobre cada barril de aguardente importada A vertente da Tijuca era formada pelo rio
na capitania, destinando 800 réis às tropas da Maracanã, considerado o seu principal for-
infantaria e 400 réis para a conclusão das obras necedor de águas, pelo rio Comprido, pelo
do Carioca (SANTA RITTA, 2009). Mas os recursos rio São João, pelo rio Trapicheiro, pelo rio
continuaram sendo insuficientes. Assim, a obra Andaraí, pelo riacho da Cascatinha, pelo rio
foi retomada por diversas vezes, mas por razões Gávea Pequena, pelo riacho do Hotel Auro-
distintas – invasões, depredações, desacordos ra e pelo riacho A. Taylor e também pelos
salariais, erros de projeto, imperícia na execução, córregos do Caranguejo, Soberbo, Morcego,
emprego de materiais de má qualidade – vinha Amaral e Machado (ALMEIDA, 2010, p.23).
sendo interrompida.
Embora mais abundante, o rio Maracanã só vem
Em 1719, teve início a construção dos “Arcos da a ser canalizado após a seca de 1943, tendo suas
Carioca” que ligava os Morros de Santa Tereza e obras sido concluídas em 1850. Almeida (2010) res-
Santo Antônio para levar água até o Campo de San- salta a importância que o incremento desta capta-
to Antônio, que passou a chamar-se Largo da Ca- ção teve para a expansão da rede de distribuição
rioca. Os arcos vinham do Morro das Mangueiras, por penas d’agua no decênio de 1850-1860. De
margeavam o Caminho do Desterro até o Campo acordo com relatório do Ministério do Império de
da Ajuda, onde sofriam uma inflexão para alcançar 1851, no referido ano ocorreu um acréscimo de 268
o Largo da Carioca. Além do traçado tortuoso e bicas4 em diversos pontos da cidade. Destas, 141
imperfeito, a imperícia na sua construção resultou eram alimentadas pela vertente da Tijuca, 91 pela
na necessidade de consertos e reparos constan- vertente da Carioca e 35 por outros mananciais.
tes e, em pouco tempo, os arcos começaram a
apresentar indícios de ruir. Em 1723, foi inaugu- Os chafarizes e as bicas públicas se multiplicaram
rado o primeiro chafariz da Carioca 3, que fornecia pela cidade. Segundo Almeida (2010) os chafari-
água através de 16 torneiras de bronze, e cujas zes foram uma alternativa política e econômica
ramificações supriam vários outros chafarizes. encontrada pelos vice-reis em virtude das enor-
mes dificuldades orçamentárias e estruturais
O aqueduto foi substituído inteiramente por um da colônia – e marcam, junto com o aqueduto
novo de traçado mais racional, ligando diretamente da Carioca, a introdução do primeiro aparelho
o Morro do Desterro ao de Santo Antônio. Iniciado destinado a suprir de água a cidade. Este perío-
em 1744, o novo “Arcos da Carioca”, atualmente co- do, conhecido como “fase dos chafarizes”, teve a
nhecido como “Arcos da Lapa”, composto por uma construção do chafariz da Carioca como marco
dupla arcada de 42 arcos, foi concluído em 1750, inicial e a abolição dos escravos em 1888 como
conforme inscrições gravadas no monumento. marco para seu declínio. Embora facilitasse o
acesso à água no espaço urbano, esta estrutura
Esgotadas as nascentes da serra da Carioca, e de distribuição se mostrou muito precária, pois
com a demanda crescente por água, outros ma- uma parte significativa da população que vivia nas
nanciais vizinhos da cidade passaram a ser ex- freguesias urbanas, mas que não contava com o
plorados. Em 1808, com a chegada da família real trabalho de escravos, continuava com enormes
portuguesa e as consequências de mais uma seca dificuldades de acesso à água (ALMEIDA, 2010).
em 1809, a vertente da Tijuca passa a ser incluída
no abastecimento, com a adução das águas do O comércio de água ainda continuou depois que
Rio Comprido até os chafarizes do Lagarto e das se instalaram esses equipamentos. O serviço de
Lavadeiras na freguesia de Santana. Conforme venda d’água, até então empreendido por senho-
descrição de Almeida (2010): res de escravos, passara também a ser realizado
por aguadeiros, não raro portugueses, que se
entregavam ao negócio servindo-se de barris ou
3. O primeiro chafariz da Carioca (“antigo”) foi demolido em
1829, quando foi construído, no mesmo local, um provisório
de madeira, imitando granito, com 40 torneiras, entregue 4. As bicas públicas eram “torneiras de bronze, montadas
à população em 1830. O chafariz “novo”, uma construção em pilastras de pedra e alimentadas por tubulações deri-
monolítica de granito legítimo, foi inaugurado em 1834, e vadas dos encanamentos que abasteciam os chafarizes”
demolido posteriormente em 1925. (SILVA, 1965, p. 10).
EIXO TEMÁTICO 2 de grandes pipas montadas sobre carroças puxa-
das a burro ou mesmo por escravos (SILVA, 1965;
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS CEDAG, 1970; SANTA RITTA, 2009). Embora mer-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES cantilizável, cabe ressaltar que o fornecimento
da água através das fontes era gratuito por parte
do poder público e, portanto, a desigualdade do
acesso não estava pautada na cobrança pelo ser-
viço em si, mas pela sua distribuição no espaço.

IMPLANTAÇÃO DAS PENAS D’ÁGUA

O período do segundo reinado [1840-1889] as-


sinala-se pela difusão das torneiras públicas e
da distribuição de água nos domicílios através
das penas d’água5. Foi através de iniciativas do
governo imperial e da chegada de investimen-
tos, principalmente de origem estrangeira, que
as mudanças nos padrões urbanos e sanitários
no Rio de Janeiro tiveram início. O fim do tráfico
negreiro, a expansão da produção do café, a am-
pliação gradativa do trabalho livre e assalariado, a
criação da Junta de Higiene Pública e da Comissão
de Engenharia também ajudaram a alavancar o
investimento em alguns setores, sobretudo na
infraestrutura da cidade (ALMEIDA, 2010).

Embora tenha sido introduzida na capital do Impé-


rio no início do século XIX, a distribuição de água
para as residências se intensificou após o fim do
tráfico negreiro em 1850 e ganhou novo impulso
em 1861, com a criação do Ministério dos Negó-
cios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas.
Segundo Benchimol (1992), somente quando a mão
de obra para carregar água dos chafarizes até as
residências se tornou escassa, as autoridades
tomaram providências para a implantação de
penas d’água nas residências:

Esse sistema [escravista de distribuição


de água] desagregou-se rapidamente, por
força do encarecimento e da escassez de
mão-de-obra, provocados ela transferência
de escravos urbanos para as fazendas de
café do Vale do Paraíba, bem como pelo re-
crutamento maciço de negros para lutarem
no Paraguai. (BENCHIMOL, 1992, p.66-67)
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
5. A “pena d’água” corresponde à concessão domiciliar de
1678 água.
O sistema de distribuição de água se modernizou manda por água fosse crescente. Esta diferença
com a instalação de uma rede domiciliar pressu- no acesso acentuou as desigualdades entre as
rizada com tubos de ferro, torneiras e aparelhos freguesias urbanas da cidade, visto que confi-
hidráulicos importados da Inglaterra. As penas guravam espaços privilegiados aquelas onde o
d’água consistiam numa abertura que permitia a fornecimento era direto, mesmo que intermitente,
passagem de um volume fixo de água, entre 1.200 enquanto em outras os moradores precisavam
e 1.500 litros diários, para serviço dos prédios. se dirigir a umas das torneiras ou chafarizes es-
Não havia medição do consumo, mas um limite palhados pela cidade, nem sempre próximo das
máximo pré-fixado (BENCHIMOL, 1992). Na década suas residências.
de 1850, o número de penas d’água triplicou e em
1860 havia cerca de 1.900 penas d’água instaladas. Desde o início do século XIX já se podia notar a
Embora represente um grande avanço, numa cida- diferença entre as freguesias do centro, pois ao
de onde estimava-se viver 330 mil pessoas, este abrigar o Paço Real e as repartições mais impor-
montante também evidencia um grande déficit tantes do reino, elas acabaram atraindo as resi-
(BENCHIMOL, 1992; ALMEIDA, 2010). dências das classes dirigentes. Não por acaso, as
residências, os templos religiosos, as repartições
A introdução da água encanada nas residências públicas e os principais estabelecimentos comer-
das freguesias urbanas foi gradual e desigual no ciais das freguesias centrais foram justamente
espaço, coexistindo formas variadas de acesso os primeiros contemplados com as penas d’água
à água tais como poços, bicas, chafarizes, penas (SANTOS, 1946). Em seguida, foram atendidas as
d’água e venda de água porta-a-porta. O acesso à freguesias da Glória e Botafogo.
rede estava restrito àqueles que poderiam pagar
junto ao governo pela concessão, logo o aumento Durante a segunda metade do século XIX, a for-
das penas d’água teve que ser acompanhado de ma de cobrança para o acesso domiciliar à água
um aumento no número de bicas e chafarizes, pois sofreu várias mudanças em relação a critérios
nem todos tinham como arcar com os custos de de concessão e a procedimentos burocráticos
conexão à rede e das penas d’água, embora a de- (Tabela 1).

Tabela 1. Instrumentos relacionados à cobrança de água - segunda metade do século XIX.6

Descrição

Regulamento nº 39/1840 Estabelece a maneira de se concederem águas dos aquedutos públicos, no Município da Corte, para
a serventia das casas, e chácaras dos particulares.
Decreto nº 295/1843 Altera o decreto nº 39 de 15 de janeiro de 1840, ordenando que a concessão d’águas dos aquedutos
públicos para uso das casas e chácaras de particulares só tenha lugar d’ora em diante de arrendamento
anual.
Decreto nº 2.898/1862 Altera os decretos nº 39 de 15 de janeiro de 1840 e nº 295 de 17 de maio de 1943, e estabelece a
maneira de se concederem águas dos aquedutos públicos, no Município da Corte, para a serventia das
casas e chácaras dos particulares.
Decreto nº 3.645/1866 Regula a concessão e distribuição das águas dos depósitos, aquedutos e encanamentos públicos no
município da corte.
Decreto nº 2.639/1875 Autoriza o Governo a despender até a quantia de dezenove mil contos de réis com desapropriações e
obras necessárias ao abastecimento d’água à capital do Império.
Decreto nº 5.141/1882 Regulamenta a arrecadação das taxas de consumo de água.
Lei nº 489/1897 Orça a receita geral da Republica dos Estados Unidos do Brazil para o exercício de 1898, e dá outras
providencias.
Decreto nº 2.794/1898 Dá regulamento para a arrecadação das taxas de consumo de agua na Capital Federal.
Decreto nº 3.056/1898 Aprova o regulamento para a concessão de água dos encanamentos públicos da Capital Federal.

6. Coleção de Leis do Império do Brasil (1808-1889). Coleção de Leis da República do Brasil (1889-2000). Disponível em: https://
www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/colecao-anual-de-leis.
EIXO TEMÁTICO 2 Em 1840, o governo imperial concedeu a particu-
lares a possibilidade de se utilizarem das águas
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS dos aquedutos públicos, canalizando-as para suas
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES casas e chácaras. A concessão era requerida por
interessados à Inspetoria de Obras Pública, órgão
ligado ao Ministério dos Negócios do Império, e
o título passado com o pagamento de um ‘dona-
tivo’, de valor estabelecido em cem mil réis. O
valor serviria para financiar as obras de reparo e
ampliação do sistema. A capacidade financeira
de cada família ou estabelecimento comercial
pautava o acesso, o que tornava a distribuição
desigual mesmo no interior de uma freguesia.
Ao priorizar o atendimento pontual de usuários,
perdia-se em economia de escala, pois seria pos-
sível com a mesma estrutura atender mais gente
e, por conseguinte, ampliar a arrecadação. Logo,
o governo não seguia critérios para ampliação
da rede que garantissem a eficiência do investi-
mento e muito menos buscava a universalização
do acesso, ainda que isso representasse uma
desvantagem no cômputo geral da arrecadação.

A forma de arrecadação do tributo é alterada pelo


Decreto nº 295 de 1843, passando a ser feita por
arrendamento anual. Segundo Almeida (2010), o
governo achava pouca a quantia arrecadada com
as concessões de penas d’água e desejava então
corrigir essa distorção. Neste novo dispositivo,
cada concessionário teria direito, por arrenda-
mento anual, ao preço de vinte quatro mil réis, a
uma pena d’água. O contrato valeria por seis anos
podendo ser prorrogado.

Após a criação do Ministério dos Negócios da


Agricultura, Comércio e Obras Públicas, em 1861,
a estrutura relacionada à Inspetoria de Obras
Públicas passou por inúmeras reformas, e as
instruções para a concessão de penas d’água
também sofreram novas alterações. O Decreto
nº 2.898 de 1862 estabeleceu que, com exceção
dos hospitais e fábricas que poderiam gozar de
até duas penas d’água, o concessionário passaria
a poder explorar para consumo próprio apenas
uma pena d’água, tendo que arcar além de selo,
emolumentos e a contribuição de vinte e quatro
mil réis anuais, com uma taxa de onze mil réis para
a renovação da concessão. O gradativo aumento
16º SHCU nas taxas de concessão indicam que o governo
30 anos . Atualização Crítica
começa a identificar uma importante fonte de
1680 receita nesse tipo de serviço.
Diante de crescentes demandas por água e das das redes de distribuição.
secas constantes e severas, inicia-se além da
busca por novos mananciais, um combate mais Estimava-se, no início da década de 1860, que o
rigoroso ao desperdício. Em 1866, o então ministro volume de água fornecido era em média de 37 L
da Agricultura, Comércio e Obras Públicas apro- diários por habitante, insuficiente para suprir as
vou um novo decreto extinguindo por completo necessidades básicas em uma cidade tropical
toda concessão gratuita a prédios particulares como o Rio de Janeiro (BRASIL, 1864). A perspec-
e determinou um prazo indeterminado para as tiva da Inspetoria de Obra Pública era fornecer a
concessões. O decreto introduziu uma forma mais cada habitante cerca de 150 litros diários de água,
precisa de controle do consumo de água, através quantidade que atenderia às demandas de uma
da utilização de um medidor (hidrômetro), e esta- cidade em expansão e desenvolvimento, mas
beleceu um volume mínimo de uso por pena d’água mais do que isso, a equipararia às demais nações
– de 1.200 litros diários, mediante a contribuição europeias que forneciam este patamar de água a
fixa anual de trinta e seis mil réis, e a cobrança seus habitantes (ALMEIDA, 2010). Para suprir uma
de dez réis por hectolitro excedente. população estimada de 400.000 habitantes, a
Inspetoria deveria conseguir junto aos mananciais
A lei que regulamentava a concessão de penas da cidade 60.000.000 de litros de água por dia.
d’água sofre nova revisão com o Decreto nº 8.775 No entanto, as nascentes da cidade só forneciam
de 1882, cujo objetivo era garantir que o Estado metade do volume necessário, e isto em períodos
pudesse auferir uma renda que aliviasse os en- de chuva.
cargos contraídos para execução das obras de
abastecimento e de sua conservação. A receita O sistema operava por gravidade e de forma in-
gerada pela venda d’água ganha relevância e o termitente, portanto a água era distribuída aos
orçamento geral deixa de ser visto como a única particulares durante certo número de horas por
fonte de investimentos. dia e não chegava em lugares muito elevados
(ALMEIDA, 2010). Logo, a distribuição também
Ao discorrer sobre os diversos decretos que re- passou a ser questionada, cogitando-se a adoção
gulavam o uso da água particular, verifica-se que, de um sistema contínuo7, no qual os encanamen-
inicialmente, a cobrança pela água fornecida pelo tos, sob pressão, estariam sempre cheios, o que
sistema público não estava relacionada ao volume permitiria o abastecimento constante, mesmo das
consumido, mas pela presença ou não do serviço residências localizadas em locais mais altos. To-
de distribuição por pena d’água, sendo autoriza- davia, o modelo contínuo demandaria ainda mais
do o uso indiscriminado do recurso. As medidas água, visto que o atendimento ininterrupto tende
de controle, tanto de consumo quanto de paga- a ampliar o desperdício. Diante do aumento dos
mento, vão se tornando cada vez mais rígidas à padrões de consumo em um cenário de escassez
medida que a escassez de água permanece sendo hídrica, a Inspetoria de Obras Públicas propõe
um problema crônico na cidade e que o governo então a imposição de restrições a utilização das
passa a ver o fornecimento de água como uma águas, evitando assim o abuso do uso, mas sem
importante fonte de receita. impedir as necessidades de higiene e saúde da
população (BRASIL, 1864).

Por determinação do governo, todos os prédios


INTRODUÇÃO DE INSTRUMENTOS DE MEDIÇÃO onde tinham sido concedidas penas d’água pas-
DE CONSUMO DE ÁGUA sam a contar com um aparelho medidor ou re-
gistro destinado a medir a quantidade de água
efetivamente consumida. Assim, embora com
A introdução de medidores de consumo, esta-
acesso ilimitado a água, o usuário teria interesse
belecida pelo Decreto nº 3.645 de 1866, alterou
em limitar seu consumo, uma vez que o pagamen-
profundamente a dinâmica de cobrança e de
to estaria atrelado ao volume consumido e não
fiscalização dos serviços de abastecimento de
a um valor fixo. Acreditava-se ser este o meio
água, e foi fundamental em um contexto onde se
buscava o acesso contínuo e abundante de água,
apesar de esgotadas as captações e da saturação 7. Também conhecido como constant delivery.
EIXO TEMÁTICO 2 mais justo de cobrança, visto que o pagamento
proporcional ao consumo igualaria as condições
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS dos concessionários.
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
Estabeleceu-se ainda um volume mínimo de uso
por pena d’água de 1.200 litros diários, o qual de-
veria ser pago independente do consumo real -
parte fixa -, e a cobrança do consumo excedente.
Considerando o uso diário proposto de 150 litros
por habitante, o volume mínimo de 1.200 L diários
corresponderia ao atendimento de uma residên-
cia com oito indivíduos. Até então, os medidores
não balizavam a cobrança de unidades residen-
ciais, apenas definiam uma faixa do excedente
de consumo.

A definição de um volume mínimo único perma-


nece vigente até os dias atuais e justifica-se por
questões de saúde pública, visto que, em tese,
garantiria o atendimento das necessidades míni-
mas individuais de grupos mais pobres que, para
economizar ou por incapacidade de pagamento,
podem reduzir seu consumo a volumes de água
aquém de suas necessidades mínimas. No en-
tanto, deve-se atentar para as limitações desta
forma de parametrização, pois o consumo mínimo
é variável e depende do número de moradores,
seus usos e necessidades. O estabelecimento
de um consumo mínimo fixo não considera estes
critérios, logo, ao invés de igualar, a medida pode
reforçar desigualdades entre usuários.

Outro aspecto importante refere-se a maior


frequência da cobrança. Quando da introdução
dos medidores, o pagamento da concessão era
realizado anualmente. O decreto determinou a
medição trimestral, nos meses de janeiro, abril,
junho e outubro, mas manteve a cobrança anu-
al. Paulatinamente a frequência de cobrança foi
ampliada, até que chegasse a ser mensal, como é
atualmente. Se, por um lado, o objetivo era fazer
com que o concessionário tivesse maior controle
para verificar desperdícios ou identificar as de-
rivações clandestinas ou desvios de água direto
das tubulações, por outro, períodos mais curtos de
medição impediam que o usuário se beneficiasse
das variações sazonais. O regulamento deixava
claro que “o consumo inferior ao volume mínimo
não habilita o concessionário de indenizar essa
diferença nos períodos anteriores ou posteriores
16º SHCU
em que tenha despendido maior porção”.
30 anos . Atualização Crítica

1682 O início do período republicano [1889-] notabi-


lizou-se pela introdução do concreto armado e gregações civis ou religiosas e casas de saúde,
das bombas centrífugas, que possibilitaram a que não são isentos das taxas de água, bem como
construção de reservatórios e a distribuição de as estalagens, paguem a quantia de 100 réis por
água para as zonas distantes ou acidentadas da metro cúbico, segundo o consumo verificado por
cidade (SANTA RITTA, 2009). No entanto, ao lon- hidrômetro. Já as casas de banho, as cocheiras e
go dos anos, obter água encanada ficou cada outros estabelecimentos em que o consumo seja
vez mais caro. Além do custo da pena d’água e proveniente de uso industrial, a quantia a ser paga
das respectivas taxas, o usuário deveria arcar era de 150 réis por metro cúbico.
com as despesas com a aquisição e instalação
do medidor, bem como com a manutenção do Diante do exposto, observa-se que, a princípio,
dispositivo e o processamento das faturas. Isso os hidrômetros foram introduzidos no sistema de
explica porque a instalação de bicas públicas não distribuição de água com a finalidade de regular o
se extinguiu, mas pelo contrário, foi ampliada para desperdício dos usuários. No entanto, em poucos
anos estes instrumentos de medição passaram
outras regiões da cidade, ou seja, mesmo disponí-
a balizar a arrecadação, relacionando a taxa a
vel, a água encanada diretamente nas residências
volumes graduais de água consumida. Com este
continuava não sendo acessível a todos. De acordo
fim, ele se tornará determinante na composição
com Santa Ritta (2009), havia uma multiplicidade
das estruturas tarifárias modeladas na segunda
de formas de atendimento no Distrito Federal,
metade do século XX.
mesmo entre aqueles abastecidos diretamente
em suas casas. Era um sistema misto, onde cerca
de 60.000 prédios eram abastecidos por penas
d’água e outros por hidrômetros. uso das tarifas para pagamento
No início do período republicano, a cobrança das de empréstimos
residências atendidas pela pena d’água era pauta-
da nos valores dos aluguéis das casas. O Decreto O paradigma da auto-sustentação tarifária
nº 2.794 de 1898 que regulamentava a arrecadação
das taxas de consumo de água na Capital Federal O primeiro mecanismo para financiamento do
definiu que a contribuição da pena d’água cons- setor saneamento no Brasil foi criado através do
tasse de duas taxas, a saber: uma de 54 mil réis Plano de Financiamento de Serviços Municipais
anuais para os prédios de 1ª classe e outra de 36 de Abastecimento de Água, formulado em 1953,
mil réis para os de 2ª classe. Sendo os prédios de durante o segundo Governo Vargas [1951-1954]. Os
1ª classe aqueles cujos aluguéis são superiores a financiamentos existentes eram, até então, dis-
2:400 réis anuais e de 2ª aqueles cujos aluguéis persos e pulverizados. Geralmente eram aplicados
não excedem essa quantia. recursos orçamentários a fundo perdido, sendo
os recursos retornáveis utilizados em apenas
No mesmo ano foi publicado o Decreto nº 3.056 alguns estados. Em nível do Governo Federal,
que aprovava o regulamento para a concessão havia uma multiplicidade de órgãos, mas faltava
de água dos encanamentos públicos da Capital uma política diretiva para o setor (COSTA, 1994).
Federal e regulava a quantidade consumida em
unidades residenciais em 1.200 litros diários. O Plano previa investimentos de Cr$ 800 milhões,
Ressalta-se que a aplicação da taxa de consu- no período de 1953 a 1955. Os órgãos financiadores
mo permaneceu sendo regida pelas condições deste Plano e os montantes previstos foram: (i)
descritas no Decreto nº 2.794 de 1898. Caixa Econômica Federal - Cr$ 200 milhões; (ii)
Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico
Em 1904, os hidrômetros passam a ser utiliza- (BNDE) - Cr$ 100 milhões; (iii) Tesouro Nacional,
dos para balizar a arrecadação, mas apenas de via BNDE - Cr$ 300 milhões; (iv) e Companhias
estabelecimentos comerciais. O Decreto nº 5.141 de Seguros Privados e Capitalização, via BNDE
de 1904 que regulamentava a arrecadação das - Cr$ 200 milhões. A principal fonte de recursos
taxas de consumo de água no Distrito Federal para o setor continuava sendo os recursos or-
definiu que os estabelecimentos de educação, çamentários federais e estaduais. No entanto,
as beneficências e respectivos hospitais, as con- começavam a ser promovidas linhas básicas de
EIXO TEMÁTICO 2 financiamento com recursos retornáveis para in-
vestimentos (FERREIRA, 1954 apud COSTA, 1994).
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS A cobrança pelo serviço, via taxa ou tarifa de água,
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES era elemento fundamental para consolidar os
empréstimos enquanto fonte de financiamento,
visto que possibilitava o retorno do empréstimo,
configurando a autossustentação tarifária do
serviço.

O financiamento dos serviços de água com em-


préstimos retornáveis e a autossustentação por
intermédio de tarifas foram conceitos introduzi-
dos uma década antes, na 1ª Conferência Nacional
de Saúde, realizada em 1941, como uma recomen-
dação do diretor do Serviço Federal de Água e
Esgotos (SFAE), sendo aprovada na assembleia
final (COSTA, 1994).

A questão das tarifas nos serviços de saneamento,


até a década de 50, salvo exceções, era relegada
a um plano secundário, apesar de sua importância
para a qualidade dos serviços. As tarifas eram
geralmente insuficientes, sobretudo porque eram
desviadas para cobrir outros setores dos municí-
pios, prejudicando economicamente os serviços.
Nestes casos, a solução era a subvenção ou as
arrecadações indiretas (COSTA, 1994).

As exigências para empréstimos efetuadas pelo


Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID)
e pelo Banco Nacional de Habitação (BNH) con-
tribuíram para a introdução destes novos para-
digmas em financiamento e gestão empresarial
no Brasil e foram determinantes para a mudança
nos modelos de gestão. Estes agentes reforça-
vam que a autossustentação financeira deveria
se dar via tarifa ou taxa. As tarifas, ou na maioria
das vezes a taxa, até então não eram capazes de
cobrir os custos de operação e de manutenção
dos serviços, mas com a implantação do sistema
de empréstimos, deveriam passar a cobrir não
apenas estes custos, como também amortizar os
empréstimos para implantação e/ou ampliação
dos sistemas.

O BNH foi criado em 1964 com a missão de implan-


tar uma política de desenvolvimento urbano. Em
1967, ele foi encarregado de realizar o diagnóstico
inicial da situação do setor de saneamento, com
ênfase na questão do financiamento dos servi-
16º SHCU ços. O diagnóstico apontou como problemas: a
30 anos . Atualização Crítica
ausência de recursos financeiros, a aplicação de
1684 recursos existentes a fundo perdido e de maneira
pulverizada; a ação descoordenada de múltiplos instalações - e uma taxa de retorno de até 12% ao
órgãos submetidos a interferências políticas e ano, do capital investido. Através deste sistema
burocráticas; a atribuição aos municípios, entes tarifário, as companhias estaduais deveriam ser
mais frágeis da estrutura político-administrativa, capazes de cobrir os custos derivados de amor-
da tarefa de execução de obras de implantação tização e encargos (juros e correção monetá-
e a exploração de redes; a inexistência de um ria), dos empréstimos que o BNH lhes concedia
sistema tarifário adequado condizente com a (BRITTO, 2001).
realidade (BRITTO, 2001).
Em linhas gerais, o plano resultou na canalização
Esse diagnóstico serviu de base para a criação do de grande montante de recursos do FGTS, no
Sistema Financeiro de Saneamento (SFS), inte- aumento na cobertura dos serviços de abasteci-
grado ao Sistema Financeiro de Habitação (SFH), mento de água e na centralização da gestão nas
pelo qual eram repassados para o setor de sanea- companhias estaduais, excluindo o poder local
mento recursos do Fundo de Garantia por Tempo de qualquer participação no processo decisório.
de Serviço (FGTS). Foram criados fundos de água A estrutura montada, muito centralizadora, ca-
e de esgoto estaduais, além de programas esta- racterística do período militar, se mantém sem
duais trienais. O financiamento aos municípios mudanças significativas até hoje, apesar do fim
passou a ser realizado conjuntamente pelo BNH do PLANASA em 1990.
e pelos governos estaduais, com contrapartida
obrigatória dos municípios e com a obrigação de
que estes organizassem os serviços na forma de
autarquia ou de sociedade de economia mista A criação da Companhia Estadual de Água
(BRITTO, 2001). e Esgoto (CEDAE)
O BID também exigia autonomia dos serviços para
Enquanto Distrito Federal [1889-1960], os serviços
a contratação de empréstimos, além de estudo
de abastecimento de água no Rio de Janeiro foram
de viabilidade econômica que previa a amorti-
administrados de forma direta por sucessivas re-
zação destes via tarifas. Buscava-se através de
parâmetros racionais, a eficiência e a alocação partições de obras públicas, que sofreram inúme-
de recursos retornáveis, viabilizando a expansão ras transformações até a década de 60. Em 1910,
da oferta dos serviços. As exigências levaram a foi constituída a Repartição de Águas, Esgotos e
que alguns órgãos transformassem sua forma Obras Públicas, submetida à Inspetoria de Águas
jurídica, para estarem aptos a acessarem estes e Esgotos, vinculada ao Ministério da Viação e
empréstimos. Assim, devido às exigências con- Obras Públicas. Em 1937, criou-se o Serviço de
tratuais para a concessão de financiamentos, Águas e Esgotos (SAE) do Distrito Federal, vincu-
houve a necessidade de mudança na organização lado ao Ministério de Educação e Saúde, sendo
da grande maioria dos serviços (COSTA, 1994). este transformado, em 1941, em Serviço Federal
de Águas e Esgotos (SFAE), e sucedido, em 1945,
Em 1971, foi criado o Plano Nacional de Sanea- pelo Departamento de Águas e Esgotos (DAE) da
mento (PLANASA) que incorporou os valores que Prefeitura do Distrito Federal.
estavam se consolidando desde a década de 50,
como a autossustentação tarifária, o financia- A administração direta dos serviços de sanea-
mento com recursos retornáveis e a autonomia mento era muito criticada por ser uma forma de
dos serviços. Para ter acesso aos recursos os mu- gestão muito suscetível a ingerências políticas.
nicípios deveriam delegar a gestão dos serviços Além disto, a burocratização, a inflexibilidade e
para as Companhias Estaduais de Saneamento, a falta de autonomia das repartições públicas
criadas em cada estado. reduziriam sua capacidade de resposta, o que
torna vulnerável a operação de serviços de caráter
Os critérios para fixação de tarifas foram pre- industrial como os de abastecimento de água.
cisados em 1978, através de Decreto Federal nº Outro aspecto negativo deste tipo de gestão diz
82.587/1978. Este determinava que as tarifas respeito à ausência de arrecadação própria, pois
deveriam cobrir os custos totais - despesas de toda a receita compõe o caixa único do tesouro
exploração, o amortecimento e a depreciação da (COSTA, 1994).
EIXO TEMÁTICO 2 Em relação aos modelos de gestão adotados, Cos-
ta (1994) define diferentes fases pelas quais o setor
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS saneamento do Brasil passou. Segundo o autor, a
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES década de 50 é marcada justamente pela busca
de autonomia dos serviços, o que se deu com a
constituição de órgãos de natureza autárquica,
que possibilitariam a autonomia desejada, tanto
administrativa, quanto financeira aos serviços de
saneamento. As primeiras autarquias a se cons-
tituírem no setor saneamento no Brasil datam de
meados da década de 40, mas é na década de 50
que tomam impulso.

Em 1957, no Distrito Federal, foi criada a autarquia


Superintendência de Urbanização e Saneamento
(SURSAN), diretamente subordinada ao prefeito,
sendo a ela incorporado o Departamento de Águas
e Esgotos da Prefeitura. A SURSAN foi constituída
com o objetivo de executar o Plano de Realizações
de Obras de Urbanização e Saneamento esboçado
na Mensagem nº 77/1956 e ratificado na Mensagem
nº 53/1957, a ser custeado por um Fundo Especial
de Obras Públicas (SANTA RITTA, 2009).

Já a década de 60 é caracterizada pela busca de


maior flexibilidade dos serviços e de uma autono-
mia ainda maior, através de um modelo de gestão
empresarial, com a constituição de sociedades
de economia mista, empresas da administra-
ção indireta, principalmente a nível estadual. As
mudanças no cenário político e financeiro foram
determinantes para a conversão do Departamen-
to de Águas da SURSAN, no Rio de Janeiro, de
autarquia em companhia de economia mista, a
CEDAG. A cidade do Rio de Janeiro permaneceu
com o status de Distrito Federal até 1960, quando
o centro de decisões políticas do Brasil mudou-se
para Brasília. A partir dessa data, seu território
passou a ser o Estado da Guanabara.

No Estado da Guanabara, a Superintendência


de Urbanização e Saneamento (SURSAN), criada
em 1957, passou a incorporar, após uma rees-
truturação administrativa realizada em 1961, o
Departamento de Águas. Em 1965 os serviços de
água foram retirados da SURSAN, sendo criada
a Companhia Estadual de Águas da Guanabara
(CEDAG), empresa pública com autonomia ge-
rencial vinculada à Secretaria de Obras, e regida
16º SHCU pelo direito privado. É criada, ainda, a Empresa de
30 anos . Atualização Crítica
Saneamento da Guanabara (ESAG), para a pres-
1686 tação dos serviços de esgotamento sanitário.
No antigo estado do Rio de Janeiro, até o final de a ser estruturadas buscando equacionar a distri-
1968, os serviços estavam a cargo da Comissão buição dos custos entre os usuários, através do
de Águas e Engenharia Sanitária, subordinada ao modelo de blocos crescentes.
Departamento de Obras Públicas. Nesse mesmo
ano, foi criada a autarquia estadual Superinten- Cabe atentar que o princípio da autossustentação
dência Central de Engenharia Sanitária (SUCESA). tarifária representa uma solução parcial para um
Em 1972, a SUCESA foi transformada na Compa- problema de ordem geral, visto que tende a pri-
nhia de Saneamento do Estado do Rio de Janeiro vilegiar as regiões mais ricas, mais densas e, por
(SANERJ), destinada a prestar serviços de águas conseguinte, com maior arrecadação, capazes
e esgotos no estado. A unificação dos estados de garantir maior retorno financeiro, em detri-
da Guanabara e do Rio de Janeiro, em 1975, de- mento daquelas mais pobres. Ressalta-se que os
terminou a fusão das empresas de saneamen- custos associados à implantação das redes e à
to - CEDAG, ESAG e SANERJ -, dando origem à operação e manutenção dos serviços podem ser
Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio mais altos nas áreas mais pobres, devido à baixa
de Janeiro (CEDAE), que passou a centralizar as urbanização, dificuldade de acesso e complexidade
decisões sobre os sistemas técnicos existentes. do atendimento, expondo uma contradição nesse
arranjo e a necessidade de subvenção cruzada. A
A forma de cobrança da tarifa também sofreu mu- lógica do PLANASA, com a criação de empresas
danças significativas neste período. A taxa d’água, estaduais como a CEDAE, atendendo a diversos
que possuía um valor ínfimo, foi alterada visando municípios com características sócio econômicas,
cobrir os custos reais e garantir a autossustenta- capacidade de pagamento e demandas em termos
ção dos serviços de água. As companhias esta- de infraestrutura diferentes, tinha como base a
duais, criadas no âmbito do PLANASA, passaram possibilidade de viabilizar essa subvenção cruzada.
progressivamente a adotar um modelo tarifário No entanto, nunca houve transparência sobre essa
na forma de blocos crescentes, que subsiste até subvenção e as áreas que possibilitam maior arre-
hoje. Nesse modelo são estabelecidas faixas ou cadação foram privilegiadas nos investimentos.
blocos de quantidade mensal consumida de água,
com tarifas crescentes por m3 consumido, para as A cobrança de um volume mínimo, estabelecida
faixas mais altas. Há a cobrança de um consumo ainda no período do Império, permanece presente
mínimo obrigatório, referente à primeira faixa na estrutura tarifária das companhias estaduais,
de consumo, a qual é, às vezes, de 10 m3, outras ainda que a quantidade tenha sido reduzida no
vezes de 20 m3. Para esse modelo é fundamen- decorrer dos anos, sendo inicialmente de 1.200
tal a existência de hidrômetros, quanto maior o L diários, o que corresponde a 36 m³ mensais,
consumo medido, maior a tarifa. até chegar aos 10 m³ mensais adotados hoje. A
cobrança de um volume mínimo pode ser interpre-
tada como uma taxa de acesso ou de entrada no
sistema, cobrada ao usuário que se liga ao mesmo
CONSIDERAÇÕES FINAIS (ANDRADE, 2009), o que reforça o caráter de bem
de clube do serviço de abastecimento de água.
O resgate da história do abastecimento de água
da cidade do Rio de Janeiro e da cobrança pelos Na ausência de medição, o volume cobrado repre-
serviços mostra o processo através do qual esse senta a estimativa de consumo. Esse consumo é
serviço público se torna um “bem de clube”. Ao geralmente calculado de acordo com as carac-
longo do tempo as formas de cobrança vão sendo terísticas físicas do domicílio, como a sua área,
aperfeiçoadas, excluindo os que não tem capa- ou número de quartos, a quantidade de pontos
cidade de pagamento. A estrutura montada no de consumo, entre outros indicadores. Assim
início da década de 1970, pautada no paradigma da sendo, cabe questionar se as regras de entrada
autossustentação tarifária reforça a necessidade “no clube” vigentes, garantem, de fato, o acesso
de cobrança, buscando aperfeiçoar o modelo universal ao serviço, ou se não acabam impedin-
tarifário. As tarifas, antes relegadas a um papel do, por incapacidade de pagamento, o acesso da
secundário, se consolidaram como a principal parcela mais pobre da população à água, serviço
fonte de financiamento dos serviços, e passaram urbano essencial.
EIXO TEMÁTICO 2 REFERÊNCIAS
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
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DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
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EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Tendo como base a interdisciplinaridade, o pre-
sente artigo refere-se a experiências didático-
-pedagógicas vivenciadas por alunos iniciantes
vídeo-pôster do curso de Arquitetura e Urbanismo. Objetiva
aperfeiçoar os conhecimentos aplicados nos
componentes curriculares, promovendo o ensi-
EXPERIÊNCIAS no de forma mais dinâmica e inovadora no pro-
cesso ensino-aprendizagem, a fim de contribuir
DIDÁTICO-PEDAGÓGICAS para uma melhor capacitação dos alunos, bem
como, melhorar a qualidade do ensino do curso.
INTERDISCIPLINARES Partindo de questionamentos acerca do ensino
de disciplinas teóricas, de grande importância
EM CIDADES BARROCAS e rebatimento em disciplinas práticas, a possi-
bilidade de desenvolver uma atividade em que
BRASILEIRAS os alunos possam se apoiar também em áreas
afins correlatas ao campo da arquitetura e urba-
nismo. Entende-se que a possibilidade do aluno
INTERDISCIPLINARY TEACHING-PEDAGOGICAL
vivenciar, pensar e produzir seu conhecimen-
EXPERIENCES IN BRAZILIAN BAROQUE CITIES
to, é algo que apresenta grandes ganhos para
a promoção da integração buscada e proposta
EXPERIENCIAS DOCENTE-PEDAGÓGICAS
pelo Projeto Pedagógico do curso de Arquitetu-
INTERDISCIPLINARIAS EN CIUDADES BARROCAS
ra e Urbanismo. A interdisciplinaridade assume
BRASILEÑAS
um caráter integrador, e totalizador na constru-
ção do conhecimento e da prática pedagógica
ALBUQUERQUE, Glauce Lilian Alves de promovida. As referidas experiências dizem
respeito às atividades pautadas em viagens de
Doutora; Universidade Federal do Rio Grande do Norte
glauce.lilian@gmail.com
estudos sobre a cidade barroca colonial brasi-
leira. A abordagem metodológica se apoia em
aulas teóricas e discursivas, viagem de estudo
BRASIL, Amiria Bezerra
com professores de vários campos do saber em
Doutora; Universidade Federal do Rio Grande do Norte arquitetura e de áreas afins, registro, observa-
amiriabrasil@gmail.com
ção e análise de cada cidade visitada, asses-
soria aos trabalhos desenvolvidos, ministradas
NASCIMENTO, José Clewton do em conjunto pelos docentes. Essa abordagem
Doutor; Universidade Federal do Rio Grande do Norte proporciona aos discentes uma maior compre-
jotaclewton@gmail.com ensão do trabalho integrado em si, favorecendo
a aplicabilidade dos conteúdos ministrados re-
batidos nos produtos desenvolvidos por eles.

HISTÓRIA DA ARQUITETURA E DO URBANISMO


CIDADE BARROCA BRASILEIRA INTERDISCIPLINARIDADE
INTEGRAÇÃO

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1690
ABSTRACT RESUMEN

Based on interdisciplinarity, this article refers to Basado en la interdisciplinariedad, este artículo


didactic-pedagogical experiences lived by stu- hace referencia a las experiencias didáctico-pe-
dents beginning the Architecture and Urbanism dagógicas vividas por los estudiantes que inician
course. It aims to improve the knowledge applied el curso de Arquitectura y Urbanismo. Objetiva
in the curricular components, promoting teaching mejorar los conocimientos aplicados en los com-
in a more dynamic and innovative way in the tea- ponentes curriculares, promoviendo la enseñan-
ching-learning process, in order to contribute to za de una manera más dinámica e innovadora en
a better qualification of the students, as well as, el proceso de enseñanza-aprendizaje, con el fin
to improve the quality of the teaching of the cou- de contribuir a una mejor calificación de los es-
rse. Starting from questions about the teaching tudiantes, así como, a mejorar la calidad de la en-
of theoretical subjects, of great importance and señanza del curso. Partiendo de cuestiones so-
impact on practical subjects, the possibility of bre la docencia de asignaturas teóricas, de gran
developing an activity in which students can also trascendencia y repercusión en las asignaturas
rely on related areas related to the field of archi- prácticas, se plantea la posibilidad de desar-
tecture and urbanism. It is understood that the rollar una actividad en la que los alumnos puedan
possibility for students to experience, think and apoyarse también en áreas afines. Se entiende
produce their knowledge, is something that pre- que la posibilidad de que los estudiantes experi-
sents great gains for the promotion of the inte- menten, piensen y produzcan sus conocimientos,
gration sought and proposed by the Pedagogical es algo que presenta grandes ganancias para la
Project of the Architecture and Urbanism course. promoción de la integración buscada y propuesta
Interdisciplinarity assumes an integrating and to- por el Proyecto Pedagógico de la asignatura Ar-
talizing character in the construction of knowled- quitectura y Urbanismo. La interdisciplinariedad
ge and the pedagogical practice promoted. The- asume un carácter integrador y totalizador en la
se experiences refer to activities based on study construcción del conocimiento y de la práctica
trips on the Brazilian colonial baroque city. The pedagógica promovida. Estas experiencias se re-
methodological approach is supported by theo- fieren a actividades basadas en viajes de estudio
retical and discursive classes, a study trip with a la ciudad barroca colonial brasileña. El abordaje
professors from various fields of knowledge in ar- metodológico se sustenta en clases teóricas, via-
chitecture and related areas, registration, obser- jes de estudios con docentes de diversos campos
vation and analysis of each city visited, advice on del conocimiento en arquitectura y áreas afines,
the work developed, given jointly by the teachers. registro, observación y análisis de cada ciudad
This approach provides students with a greater visitada, asesoría sobre el trabajo desarrollado.
understanding of the integrated work itself, favo- Este enfoque proporciona al alumno una mayor
ring the applicability of the contents taught in the comprensión del propio trabajo integrado, favo-
products developed by them. reciendo la aplicabilidad de los contenidos impar-
tidos en los productos desarrollados por ellos.

HISTORY OF ARCHITECTURE AND URBANISM


BRAZILIAN BAROQUE CITY INTERDISCIPLINARTY HISTORIA DE LA ARQUITECTURA
INTEGRATION CIUDAD BARROCA BRASILEÑA INTERDISCIPLINARIEDAD
INTEGRACIÓN
EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
O presente artigo trata de várias experiências
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
didático-pedagógicas vivenciadas por alunos
do 3º período do curso. Estas práticas buscam
promover a integração entre os componentes
vídeo-pôster
curriculares: História e Teoria da Arquitetura e
do Urbanismo 01, Projeto e Planejamento Urbano

EXPERIÊNCIAS 01 e Comunicação Visual, da grade curricular do


curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade

DIDÁTICO-PEDAGÓGICAS Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), sendo to-


dos eles componentes obrigatórios. Além desses
INTERDISCIPLINARES componentes, as atividades desenvolvidas com os
alunos, contam com os conhecimentos oriundos
EM CIDADES BARROCAS de outros campos do saber, mas relacionados
com o objeto de estudo.
BRASILEIRAS As atividades desenvolvidas objetivam difundir
um ensino acadêmico que coloca o aluno como
INTERDISCIPLINARY TEACHING-PEDAGOGICAL construtor de seu próprio saber, a partir do aporte
EXPERIENCES IN BRAZILIAN BAROQUE CITIES teórico-prático trabalhado e discutido em sala
de aula. Desta forma, os alunos, desenvolvem um
EXPERIENCIAS DOCENTE-PEDAGÓGICAS trabalho de integração interdisciplinar. Para a rea-
INTERDISCIPLINARIAS EN CIUDADES BARROCAS lização dos trabalhos, se faz necessário, utilizar os
BRASILEÑAS conteúdos que tratam das cidades barrocas, dos
conhecimentos sobre leitura e análise visual de
cidades, bem como, de literatura e música barroca.
Convém ressaltar que a adoção de um trabalho que
integraliza conteúdos de duas ou mais disciplinas,
faz parte da proposta seguida pelo Projeto Pedagó-
gico do curso de Arquitetura e Urbanismo da UFRN,
desde a implantação do currículo A3 em 1990.

Desta forma, a experiência didático-pedagógica


está pautada na seguinte abordagem metodoló-
gica: aulas teóricas seguidas de debates; leitura
de algumas referências bibliográficas; viagem de
campo; registro, observação e análise das cidades
visitadas realizados em uma viagem de estudo;
aulas de assessoria aos trabalhos integrados,
ministradas em conjunto pelos docentes das disci-
plinas obrigatórias, com participação eventual dos
outros professores. As atividades solicitadas no
exercício acadêmico foram desenvolvidas em gru-
pos de 04 alunos. Este número permite uma maior
discussão por parte dos alunos e uma melhor dis-
tribuição do trabalho em equipe. Nesse sentido,
os alunos devem construir seu material, estudá-lo
e defendê-lo. Princípio construtivista, de uma
16º SHCU abordagem cognitivo-interacionista em que os
30 anos . Atualização Crítica
alunos se envolvem com as atividades, não ficando
1692 apenas aos professores o papel de avaliadores.
Para uma maior compreensão deste artigo, este Destaca-se que este mesmo princípio é trabalhado
conteúdo está subdividido em 03 partes: a in- não somente nos componentes tidos como prin-
tegração como base do projeto pedagógico; a cipais para estrutura do curso (disciplinas das
atividade de integração interdisciplinar: as expe- áreas de projeto de arquitetura, - urbanismo e
riências vivenciadas; e as considerações finais. paisagismo), como também em atividades de in-
tegração entre outros componentes curriculares,
como é o caso das experiências que trataremos
neste artigo, que envolvem História e Teoria da
A INTEGRAÇÃO COMO base DO PROJETO Arquitetura e Urbanismo 1, Projeto e Planejamento
PEDAGÓGICO DO CURSO Urbano 01 e Comunicação Visual, referentes ao
terceiro período do Curso.
A Integração e a Estrutura Curricular Se, o ensino parte da compreensão da constitui-
ção do poder na sociedade, da reflexão crítica e
Desde sua elaboração e implantação em 1990, o do comprometimento individual, podemos afirmar
currículo A3 teve por princípio básico a proposta da que o aluno deve ser agente de seu aprendizado.
integração. A partir deste currículo, as atividades O professor assume a tarefa de buscar os recur-
e aulas integradas é o eixo central da metodologia sos necessários e o aluno é elemento ativo do
adotada pelas propostas de projetos pedagógicos processo educativo. Este método se baseia na
seguintes, desenvolvidos e implantados no curso. construção por parte do aluno de seu material
Conforme o texto elaborado para implantação do de ensino-aprendizagem, trabalhando também
Projeto Pedagógico vigente, o A5, este eixo “(...) re- com questões sociais reais.
presentou um significativo salto qualitativo para o
CAU, resultando na melhoria da qualidade dos tra- A abordagem sócio-construtivista trabalha prin-
balhos desenvolvidos pelos alunos e, obviamente, cipalmente a visão comportamental, pois a re-
pelo profissional aqui formado. Até hoje, o seu flexão é base do processo, pois o aprendizado
currículo integrado é indicado como referência vai resultar de uma experiência prática. Assim,
nacional”. (PP A5, p. 7). Neste mesmo documento, enquanto se desenvolve a disciplina, cada con-
um breve histórico apresentado informa que: teúdo é trabalhado buscando permitir ao aluno
tirar suas próprias conclusões.
(...) a integração representou um enorme
avanço em termos pedagógicos e tem de- Para que as atividades interdisciplinares inte-
monstrado ser fundamental no processo de gradas se realizassem de forma satisfatória, a
ensino/aprendizagem ao longo dos anos. adoção de uma abordagem sócio construtivista
Inicialmente, pressupunha que os conteú- se mostra mais adequada. Inerente á profissão
dos das diferentes disciplinas podiam ser do arquiteto, o ato de criar deve estar incluso nas
sempre ministrados em conjunto, de forma atividades desenvolvidas pelos diversos com-
integrada. No entanto, verificou-se, com o ponentes curriculares do curso de arquitetura.
tempo, a necessidade de certa flexibilização Afinal, o estudante de arquitetura deve ser capaz
da integração explicitada e adotada no A-4. de construir caminhos conscientes para o ato de
Todos os procedimentos metodológicos re- criação compositiva espacial, uma vez que todas
lativos à efetivação deste PPP estão direta as disciplinas, sejam práticas ou não, objetivam
ou indiretamente relacionados à integração dar suporte ao processo criativo de projetação.
como meio, respeitando-se as diferenças
entre as especificidades das disciplinas e
atividades do Curso. (PP A5, p. 7)
A Integração de História e Teoria da
Como fora dito anteriormente, o princípio da in-
tegração se mantém no currículo A5, levando-se
arquitetura e do Urbanismo, Projeto e
em consideração a necessidade de se respeitar Planejamento Urbano, e Comunicação Visual
aspectos como o enfoque, o universo de estudo,
o conteúdo de cada unidade das diversas disci- A atividade de integração proposta objetivou unir
plinas, entre outros, para cada semestre letivo. os conteúdos afins das disciplinas em trabalhadas
EIXO TEMÁTICO 2 nessas experiências, sobretudo no que se refere
aos aspectos relacionados às atividades de ob-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS servação e de registro dos elementos específicos
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES das cidades barrocas urbanas.

Com relação ao componente curricular História e


Teoria da Arquitetura e Urbanismo 1, tem-se por
objetivo estudar a produção e a transformação
da arquitetura e das cidades do século XIV ao
século XVIII – considerando a transição da idade
Média do Renascimento, e do Renascimento ao
Barroco e Introduzir ao estudo do ambiente cons-
truído, durante o período de formação territorial
do Brasil-colônia, e procura-se, além da utilização
da metodologia “tradicional” (aulas expositivas,
estudos dirigidos e apresentações de seminários),
acrescentar atividades que trabalhem com inter-
faces entre campos disciplinares e que estimulem
o processo criativo e à prática da observação e
o registro, como processo construtivo de me-
mórias, possibilitando também a utilização de
diversas formas de linguagem no processo de
elaboração dos trabalhos. O tema trabalhado na
3ª unidade é a formação do território no Brasil-
-colônia (espaço e sociedade), conforme indicado
no objetivo. Esta temática nos dá a possibilidade
da realização de atividades desenvolvidas a partir
da viagem de formação, reforçando o observar e
o registrar.

O segundo componente curricular, Planejamento


e Projeto Urbano e Regional 01 (PPUR 01), capacita
o aluno para compreender a realidade social e
ambiental na qual se realiza o trabalho do arquiteto
urbanista, mediante estudo teórico e prático com
levantamento e análise de estudos específicos. A
princípio, discute-se o que é cidade, para ampliar
o conhecimento acerca do conceito, para depois,
abordar o planejamento urbano e como se tem
lidado com as cidades nas últimas décadas no
Brasil. Por fim, trata-se dos agentes produtores
do espaço urbano e dos processos decorrentes
de suas ações na cidade contemporânea, com
destaque para estudo de um caso específico,
uma cidade - ou centro histórico - com relevância
patrimonial.

Com relação ao terceiro componente curricular,


Comunicação Visual, este objetiva promover o
16º SHCU desenvolvimento de elementos de comunica-
30 anos . Atualização Crítica
ção e programação visuais que possibilitem a
1694 compreensão e a leitura do ambiente construído,
explorando a linguagem e usos de materiais que uma maior compreensão do conteúdo dado e
propiciem uma melhor comunicação, além de explorado na atividade.
exercitar a percepção criativa dos alunos, tanto
na investigação e análise do espaço e dos ele- A literatura barroco é sempre trabalhada com uma
mentos que o compõem, como também, busca aula expositiva proferida pela professora Iaçonara
embasar a proposição de projetos que trabalhem Albuquerque do IFRN, que trabalha a ligação direta
a programação visual. No caso específico deste entre os textos barrocos brasileiros e a arquitetura
componente, os trabalhos desenvolvidos pelos da mesma época e estilo. Algumas das edições,
alunos se voltam para a análise de uma fração a professora esteve viajando com o grupo e ao
urbana, sua sinalização e também a sinalização longo dos percursos, costuma declamar poemas
de edificações comerciais presentes no meio de Augusto dos Anjos, correlacionando-os com
urbano visitado, o que os auxiliará na proposição as obras arquitetônicas visitadas (Figura 01).
de ideias e no processo criativo.

Para além dos conteúdos específicos de cada


componente, na terceira unidade de cada semes-
tre letivo, é realizada uma atividade integradora
interdisciplinar tem objetivo de promover a vi-
vencia e o conhecimento, a partir da apreensão
e da leitura visual de cidades barrocas brasilei-
ras, tendo como base uma viagem de estudos.
Por uma questão de logística e gestão do tempo,
as viagens têm ocorrido em cidades barrocas e
coloniais nordestinas, que se situam próximas
ao ponto inicial de partida do grupo. Ao longo de
cerca de cinco anos e meio (onze edições), foram
visitadas as cidades de Olinda (PE), Recife (PE),
Igarassú (PE), e as cidades do Brejo Paraibano
(Bananeiras, Alagoa Grande e Areia).

A Integração com outros saberer: literatura,


música, paisagismo, patrimônio,
representação gráfica e pedagogia

A cada viagem de formação, para finalização da


atividade proposta pelos três componentes curri- Figura 1: Viagem à Recife/PE e Olinda/PE – Momento Poe-
culares, a saber, História e Teoria da Arquitetura e sia, com a Profª Iaçonara Albuquerque declamando poema
barroco de Augusto dos Anjos. Fonte: Autor (2016, p. 08).
Urbanismo 1, Projeto e Planejamento Urbano 01 e
Comunicação Visual, observa-se que a possibili-
dade de buscar um trabalho conjunto com outras
interfaces. Essa possibilidade de acrescentar Então, com o intuito de reforçar a participação
informações e visões diferenciadas do ponto de dessas interfaces, ao final das apresentações dos
vista doe espaço urbano, contribui bastante no trabalhos das equipes como encerramento de
processo criativo dos produtos elaborados pelas cada semestre, o Grupo de Ópera Canto Dell’Ar-
turmas. Tanto a contribuição advinda da literatura te da UFRN, regidos pelo maestro Edson Bruno
barroca, quanto a aquela oriunda da música, apon- Araújo, contempla os alunos e docentes com o que
tam para o êxito da integração interdisciplinar, eles mesmos chama de aula-concerto de música
objetivo buscado pela proposta metodológica barroca (Figura 2), também correlacionando os
do curso. A contribuição de ambos os campos elementos barrocos presentes na arquitetura e
do saber sobre o barroco, permitiu aos alunos no urbanismo com a música.
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

Figura 2: Apresentações de aula e música barroca realiza-


das pelo Grupo de Ópera Canto Dell’arte da UFRN. Fonte:
Autor (2018, p. 08).

Além disso, a contribuição dos professores li-


gados a outros campos da própria arquitetura,
também são buscadas por essa prática didáti-
co-pedagógica. Ao longo das edições, a cada
viagem, contou-se com a participação efetiva
de professores de outros componentes colabo-
16º SHCU raram com o ensino-aprendizagem promovido
30 anos . Atualização Crítica
pela ação integrada e interdisciplinar, como é o
1696 caso do Professor Paulo José Lisboa Nobre, da
área de paisagismo, que estava em Olinda/PE tivos e detalhes específicos presentes nas obras
realizando seu Pós-doutoramento no período em arquitetônicas das cidades barrocas e coloniais
que se realizava uma viagem de campo àquela brasileiras são observados pelos alunos, enquanto
cidade barroca, e acompanhou a turma durante estes percorrem e conhecem as cidades visitadas,
os percursos realizados por todo o grupo. Dado e consequentemente registradas de algum modo.
a sua expertise o professor destacava ao longo A integração interdisciplinar promovida neste
do caminho e das vistas encontradas, o quanto caso advém da área de representação gráfica, de
os “quintais” próprios das habitações conjugadas modo que a presença da professora Eunádia Silva
lateralmente e apenas com os recuos de fundos Cavalcante, responsável pela disciplina Detalhes
como área livre, eram utilizadas como áreas ver- em Arquitetura e Urbanismo, reforça o ensino e
des pela população moradora. A vegetação se a preocupação com o desenho de observação.
incorpora à cidade barroca atual, como elemento A possibilidade de desenhar os espaços, vistas
marcante na paisagem da cidade. e elementos do barroco brasileiro, permite que
o olhar sobre a obra e à cidade barroca seja mais
Outra contribuição destacada em várias ativi- apurado, e consequentemente mais critico. Essa
dades vivenciadas como os alunos iniciantes do contribuição colabora na execução do diário ou
curso de Arquitetura e Urbanismo da UFRN, tem caderno de viagem que vai sendo preenchido
sido promovida pela professora Natália Miranda nesse processo de apreensão espacial (Figura 4).
Vieira de Araújo da UFPE, especialista em pa-
trimônio histórico. A cada visita à Olinda/PE, a
professora acompanha a turma para norteá-los
nos percursos, destacando as possíveis inter-
venções realizadas naquele local. Inegavelmente,
de suma importância para a compreensão dos
alunos quanto à preservação do sítio histórico de
Olinda. Além da professora Natália, a professora
Ruth Maria da Costa Ataíde esteve com o grupo
e, profunda conhecedora das questões ligadas à
cidade e as políticas públicas ligadas a ela, aju-
dou-os a compreender melhor as transformações
da cidade atual. (Figura 3)

Figura 4: Desenho de Observação, pelos alunos. Fonte:


Autor (2017, p. 10).

De fato este é o grande ganho alcançado com as


atividades integradas interdisciplinares: promo-
ver o ensino-aprendizagem mais amplo e mais
completo e, sobretudo, mais reflexivo.

A necessidade da interdisciplinaridade na
produção e na socialização do conhecimen-
to no campo educativo vem sendo discuti-
Figura 3. Aula de campo com Professora Ruth Ataíde. da por vários autores, principalmente por
Fonte: Autor (2018, p. 09). aqueles que pesquisam as teorias curricu-
lares e as epistemologias pedagógicas. De
modo geral, a literatura sobre esse tema
mostra que existe pelo menos uma posição
Os detalhes do barroco são trabalhados com base consensual quanto ao sentido e à finalidade
no conhecimento de outro campo disciplinar: a da interdisciplinaridade: ela busca respon-
representação gráfica. Muitos elementos constru- der à necessidade de superação da visão
EIXO TEMÁTICO 2 fragmentada nos processos de produção
e socialização do conhecimento. Trata-se
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS de um movimento que caminha para novas
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES formas de organização do conhecimento ou
para um novo sistema de sua produção, difu-
são e transferência, como propõem Michael
Gibbons e outros (1997).(THIESEN 2008)

A interdisciplinaridade articula os saberes e fazem


o aluno aguçar o senso crítico, fazem pensar...

Nesse sentido, a interdisciplinaridade será


articuladora do processo de ensino e de
aprendizagem na medida em que se produ-
zir como atitude (Fazenda, 1979), como modo
de pensar (Morin, 2005), como pressuposto
na organização curricular (Japiassu, 1976),
como fundamento para as opções metodo-
lógicas do ensinar (Gadotti, 2004), ou ainda
como elemento orientador na formação dos
profissionais da educação. (THIESEN 2008)

A ATIVIDADE DE INTEGRAÇÃO INTERDISCIPLINAR:


AS EXPERIÊNCIAS VIVENCIADAS

A atividade de integração interdisciplinar apre-


sentada neste artigo, objetiva, portanto, reforçar
o eixo central da integração como proposta me-
todológica do curso. A referida atividade, neste
formato se encontra em sua segunda edição. A
primeira edição teve como universo de estudo
os sítios históricos de João Pessoa (PB) e Olinda
(PE), e foi realizada no final do semestre 2014.2
(Figura 1). Em 2019.2, depois de termos passado
por outras cidades estivemos na cidade de Olinda
(PE) realizando nossa décima primeira edição.

Reiteramos que a metodologia utilizada enfatiza


e reforça a importância das atividades de obser-
vação e registro, como aspectos fundamentais
para a formação do arquiteto e urbanista.

A atividade Integrada Interdisciplinar:


a metodologia adotada

16º SHCU A atividade integradora e interdisciplinar é iniciada


30 anos . Atualização Crítica
com a viagem com duração em média de 03 (três)
1698 dias, às cidades barrocas coloniais, promovendo
uma grande aula de campo, e segue por momentos (Ruas, Quadras, Lotes, Monumentos, Praças);
de assessoria conjunta, até sua conclusão, no dia
da apresentação oral de cada grupo. 2. Baeta, 2012 (Espaço Urbano Barroco):
Imagem e persuasão; Dramaticidade; Foco
Como procedimento metodológico, utilizamos a e percurso; Efeito surpresa; Relação Edi-
estratégia da realização de percursos pela área fício/Entorno;
delimitada como universo de estudo, organizados
da seguinte forma: são realizados três percursos, 3. Del Rio, 1990 (Análise Visual) e Cullen, 1983
sendo dois deles com o grande grupo e pelo menos (Paisagem Urbana): As placas de sinalização
mais um, definido e realizado por cada grupo de e sua relação com os demais elementos da
alunos sozinhos. paisagem; A sinalização e a leitura visual da
cidade barroca;
A partir do início da viagem, as atividades solici-
tadas no exercício acadêmico são desenvolvidas 4. Guia Brasileiro de Sinalização Turística
em grupos de 04 (quatro) componentes, número - IPHAN (http://portal.iphan.gov.br/files/
que permitiu uma maior discussão por parte dos Guia_Embratur/conteudo/Guia/apresenta-
alunos e uma melhor distribuição do trabalho em caonew.html): Padronização e localização
equipe. Nesse sentido, os alunos devem construir de placas de sinalização. Salientamos que
seu material/produto, estudá-lo e defendê-lo: estas referências já foram utilizadas nas
princípio construtivista, de uma abordagem cog- unidades anteriores;
nitivo-interacionista, em um envolvimento total,
não deixando aos docentes a função de avaliado- 5. Spósito, 2004; e 6. Corrêa, 2000: os usos
res, e sim de construtores de todo o saber. Dentro dos espaços urbanos nos dias atuais e mo-
de uma visão de caráter sócio construtivista e bilidade urbana;
integrador, os professores sempre atuam como
Destaca-se observamos a importância da utiliza-
mediadores na atividade, “colaborando na execu-
ção do percurso acompanhado com os alunos, os
ção do trabalho” junto com os alunos. O estímulo
estimulando durante o processo de observação e
à criatividade também foi um ponto definidor
de percepção dos espaços visitados. No caso das
na proposta metodológica, haja vista que o ato
cidades escolhidas para a realização da observa-
de criar é inerente à profissão do arquiteto e,
ção in loco favorece a compreensão do desenho
por conseguinte, deve estar incluso nas ativida-
das cidades coloniais e barrocas brasileiras. Por
des desenvolvidas pelos diversos componentes
isso mesmo, em nesse sentido, solicita-se eu
curriculares do curso de arquitetura, e possam
sejam feitos registros de diversas naturezas (fo-
construir base ao processo criativo de projetação.
tografias, desenhos, relatos, vídeos, etc). Em aula
A atividade integrada interdisciplinar é pensada que antecede a visita, os alunos são orientados a
a partir de questões que são chamadas de orien- montar seu caderno de viagem – adquirido ou con-
tadoras: (a) Podemos identificar, na atualidade, a feccionado pelo próprio discente – e a começar
presença da cidade barroca no quadro urbano da a organizá-lo a partir do material disponibilizado
cidade visitada? (b) A sinalização turística auxilia pelos professores (mapas e textos, por exemplo).
na compreensão/identificação desta cidade bar- Estes registros compõem uma espécie de “diário
roca? (c) Como se configura, na atualidade, essa de viagem” (caderno de anotações e registro) de
cidade barroca? cada um dos discentes, tornando-se o primeiro
produto da atividade.
Para o desenvolvimento dessas atividades inte-
gradas interdisciplinares e buscar as respostas Embora os alunos sejam acompanhados pelos
às questões solicitadas, é utilizado um referencial professores responsáveis pelos componentes su-
teórico-conceitual que se baseia nas seguintes pracitados, a cada viagem são convidados outros
referências básicas: docentes para colaborarem com sua expertise
e visão da(s) cidade(s) visitada(s). A cada edição
1. Lamas, 2004 (Morfologia Urbana): Relação semestral da experiência didático–pedagógica um
entre o Todo e as Partes; Identificação dos convidado especial realiza os percursos também.
elementos constituintes da Forma Urbana Nas onze edições, em nove delas contou com
EIXO TEMÁTICO 2 professor convidado, seja ele da área de literatu-
ra, patrimônio histórico, representação gráfica,
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS desenho ou paisagismo, que muito contribuiu
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES para aquilo que se considera como um resulta-
do positivo da ação integrada e interdisciplinar
almejada pelo grupo.

Ao término da viagem é o momento em que apre-


sentado à turma aquilo que se define por produ-
to final a ser elaborado pelos grupos de alunos,
com o acompanhamento por parte dos docentes.
Esses produtos variam de formato e tipo e meio
de execução. E geral eles (alunos) produzem um
material informativo impresso ou digital/virtual
sobre os espaços urbanos barrocos das referidas
cidades, enfatizando os elementos estruturado-
res do espaço urbano, e como esses elementos
definidores da paisagem se relacionam/articu-
lam. Este material deve realçar a importância
dos conjuntos urbanos barrocos, destacando
suas características e relacionando-as com o
período em que foram implantados, bem como
atentar para a necessidade da preservação do
patrimônio cultural dessas cidades. O caderno/
diário de viagem é fundamental para a compilação
de todos os dados coletados e registrados durante
a vivência no local visitado.

A atividade Integrada Interdisciplinar:


experiências vivenciadas

Durante a viagem utiliza-se a metodologia da aná-


lise serial (CULLEN, 1988), através de percursos, e
apropriando-se das surpresas, próprias da cidade
barroca (BAETA, 2010). São feitos três percursos,
dois com todos os alunos juntos e acompanhados
pelos professores, e um terceiro “alternativo” –
cada equipe definirá seu próprio percurso.

Durante as caminhadas são  realizadas explica-


ções pelos professores sobre o espaço urbano,
e são também feitas paradas em pontos estra-
tégicos, sejam edificações de importância patri-
monial, sejam espaços urbanos com destacadas
características. Os discentes vão fazendo seus
registros. Ao final da viagem os cadernos são
recebidos pelos professores e são avaliados se os
16º SHCU registros dão conta das três questões norteado-
30 anos . Atualização Crítica
ras, ou seja, do conteúdo dos três componentes
1700 curriculares. (Figuras 5 e 6)
Dentre as várias atividades desenvolvidas, em
dois momentos foram trabalhados com os alunos
o conhecimento sobre educação patrimonial, vol-
tado para adolescentes. Fora solicitados que os
alunos criassem produtos para esse público alvo,
com informações relativas ás cidades barrocas
visitadas. No intuito de ajuda-los a entender esse
público, e promover mais uma vez a interdisci-
plinaridade, contou-se com a participação da
psico-pedagoga Anízia Maria Soares Fonseca, que
trabalha com crianças e adolescentes, proferiu
por duas vezes, uma aula-debate sobre o tema.

Oportuno ressaltar que a ideia central a nortear a


elaboração dos produtos produzidos pelos grupos,
além de buscar a articulação entre as atividades
das disciplinas envolvidas na atividade integrada,
também inseriu as questões de valorização da
paisagem urbana de valor patrimonial e cultural,
promovendo o debate sobre preservação deste
patrimônio e agregando conhecimento adicio-
nal ao conteúdo programático de cada uma das
disciplinas.
Figura 5: Viagem à Igarassu/PE. Fonte: Autor (2017, p.14)

considerações fInais

Ao concluirmos as atividades relativas às expe-


riências didáticas desenvolvidas a partir de uma
ação interdisciplinar entre componentes curri-
culares de natureza aparentemente tão distin-
tas, verificamos o quão positivo é a promoção
da integração no ensino de arquitetura e urba-
nismo. Entendemos que a integração não deve
ser trabalhada exclusivamente por componentes
curriculares básicos do curso, ao pelo contrário,
o ensino-aprendizagem promovido por História
e Teoria da Arquitetura e do Urbanismo, Projeto
e Planejamento Urbano, Comunicação Visual,
atrelados ao conhecimento de outras naturezas,
corroboram a crença de que o ensino de arquite-
tura deve e pode atravessar por todas as áreas
do saber. As atividades descritas neste artigo
exemplificam inúmeras possibilidades de inte-
gração entre componentes curriculares diversos.

Também se destaca as viagens de formação como


sendo importantes atividades a serem inclusas
no ensino acadêmico de arquitetura e urbanismo,
Figura 6: Viagem ao Brejo Paraibano. Fonte: Autor (2017, reforçando a possibilidade da realização de per-
p. 14). cursos, observação e registro das visitas, como
EIXO TEMÁTICO 2 elementos fundamentais para o exercício do ar-
quiteto e urbanista.
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Dentro de uma visão sócia construtivista, durante
as atividades descritas por este artigo, os pro-
fessores tiveram o papel de mediadores, “cons-
truindo” o trabalho/produto em conjunto com os
alunos. O resultado da integração são frutos de
vários momentos realizados tanto no ambien-
te da sala de aula tradicional, interdisciplinar é
fruto de vários momentos vividos na prática e
que divergem do ensino convencional. Explorar
cada possibilidade dessas, motivando os alunos
é algo prazeroso tanto para eles quanto para os
professores envolvidos.

Espera-se com estas experiências, fomentar


outras possibilidades inovadoras de ensino na
formação superior, disseminando possibilidades
múltiplas de integração entre diferentes áreas de
conhecimento, podendo ser aplicados na prática
pedagógica, como forma de facilitar a aprendiza-
gem, tornando-a mais dinâmica e atrativa.

AGRADECIMENTOS

Para a realização das atividades previstas nas


atividades integradas interdisciplinares, des-
taca-se a participação significativa da Profes-
sora Iaçonara Miranda de Albuquerque do IFRN,
do Grupo de Ópera da UFRN Canto Dell’Arte, da
Professora Natália Miranda Vieira de Araújo da
UFPE, da Psico-pedagoga Anízia Maria Soares
Fonseca, dos professores efetivos do Departa-
mento de Arquitetura da UFRN, Paulo José Lisboa
Nobre, Eunádia Silva Cavalcante e Ruth Maria da
Costa Ataíde, e ainda daqueles que exerceram a
docência temporária como professores substi-
tutos na UFRN, Francisco da Rocha Bezerra Jr.,
Adriana Carla de Azevedo Borba e Emanuel Ramos
Cavalcanti, aos quais deixamos nossos agrade-
cimentos. Agradecemos também aos diversos
alunos do curso de Arquitetura e Urbanismo da
UFRN que vivenciaram essas experiências, pela
maneira dedicada com que se empenharam para
a realização das atividades.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1702
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[livro]
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2004. Plano Diretor do município de Olinda. Olinda:
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[artigo em revistas e periódicos]

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no-aprendizagem. Revista brasileira de educação,
v. 13, n. 39, p. 545-554, 2008.
EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Os processos de revitalização dos espaços ur-
banos, em específico dos Sítios Históricos Ur-
banos, se adaptam ao longo do tempo, de acor-
vídeo-pôster do com as transformações de valores artísticos
e históricos que os bens culturais enfrentam.
O artigo teve como objeto de análise a Pra-
FETICHIZAÇÃO DA CIDADE ça Anthenor Navarro e o Largo São Frei Pedro
Gonçalves, em João Pessoa, Paraíba, exemplar
HISTÓRICA: PRAÇA ANTHENOR revitalizado na segunda etapa do programa de
cooperação entre os Governos brasileiro e es-
NAVARRO E LARGO SÃO FREI panhol, iniciado no final da década de 1980.
Esse projeto teve como objetivo a revalorização
PEDRO GONÇALVES, JOÃO da área com a requalificação dos espaços pú-
blicos, reestruturação viária, além de interven-
PESSOA / PB ções em edificações e monumentos, que, pro-
gressivamente, se deterioravam por diversos
fatores característicos de muitos dos centros
HISTORIC CITY’S FETISHIZATION: ANTHENOR
históricos de países periféricos, dentre eles
NAVARRO’S SQUARE AND SÃO FREI PEDRO
a migração de serviços e habitantes para no-
GONÇALVES’ SQUARE, JOÃO PESSOA / PB
vas centralidades da cidade. Essa cooperação
priorizou o uso turístico, levando o projeto na
FETISHIZACIÓN DE LA CIUDAD HISTÓRICA: PLAZA
direção dos padrões de revitalização em outros
ANTHENOR NAVARRO Y PLAZA SÃO FREI PEDRO
Estados brasileiros, deturpando o caráter histó-
GONÇALVES, JOÃO PESSOA / PB
rico e identitário, transformado em um cenário
empobrecido e similar a tantos outros. O arti-
PEREGRINO DE ALBUQUERQUE, Mariana go tem como objetivo questionar a construção
inorgânica dos espaços históricos, visando o
Mestranda em Conservação e Restauro; UFBA
marianaperegrino.arq@gmail.com
lucro em detrimento dos habitantes detentores
de memória e história da cidade. Nesse percur-
so, a pesquisa bibliográfica e documental da
ambiência histórica de João Pessoa fez parte
das fontes primárias, além de documentação
patrimonial, como as cartas e recomendações,
e teorias restaurativas para a reflexão de bens
culturais e seu processo de modificação atra-
vés dos séculos. As questões apontadas sobre
a prática preservativa de bens culturais, inten-
ciona um debate sobre os possíveis caminhos
de intervir contemporaneamente.

SÍTIOS HISTÓRICOS URBANOS REVITALIZAÇÃO URBANA


PATRIMÔNIO CENTRO HISTÓRICO BENS CULTURAIS

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1704
ABSTRACT RESUMEN

The revitalization processes of urban spaces, Los procesos de revitalización de los espacios
specifically the Urban Historic Sites, adapt over urbanos, específicamente de los Sitios Históri-
time, according to the transformations of artistic cos Urbanos, se adaptan a lo largo del tiempo, de
and historical values that cultural goods face. The acuerdo con las transformaciones en valores ar-
article has as object of analysis Anthenor Navar- tísticos e históricos que enfrentan los bienes cul-
ro’s Square and São Frei Pedro Gonçalves’ Squa- turales. El artículo tiene como objeto de análisis
re, in João Pessoa, Paraíba, a model revitalized la Praça de Antenor Navarro y la Praça de São Frei
in the second stage of the cooperation program Pedro Gonçalves, en João Pessoa, Paraíba, mo-
between the Brazilian and Spanish Governments, delo revitalizado en la segunda etapa del progra-
which started in the late 1980s. The project aimed ma de cooperación entre los gobiernos brasileño
at revaluing the area with the redevelopment of y español, iniciado a finales de la década de 1980.
public spaces, road restructuring, in addition to El proyecto tuvo como objetivo revalorización de
interventions in buildings and monuments, that la zona con la remodelación de los espacios públi-
progressively deteriorated due to various factors cos, la reestructuración vial, además de interven-
characteristic of many historical centers of pe- ciones en edificios y monumentos, que se dete-
ripheral countries, among them the migration of rioraron gradualmente debido a diversos factores
services and inhabitants to new centralities in the característicos de muchos centros históricos en
city. This cooperation prioritized tourism use, lea- países periféricos, entre ellos la migración de
ding the project towards revitalization standards servicios y habitantes a nuevas centralidades en
in other Brazilian states, distorting the historic la ciudad. Esta cooperación priorizó el uso del
and identity aspect, transformed into an impove- turismo, llevando el proyecto hacia patrones de
rished scenery and similar to so many others. The revitalización en otros estados brasileños, distor-
article aims to discuss the manipulation of the sionando el aspecto histórico e identitario, trans-
historic spaces, aiming at profit to the detriment formado en un escenario empobrecido y similar
of the inhabitants with memory and history of a tantos otros. El artículo tiene como objetivo
the city. Thus, the bibliographical and documen- discutir la manipulación de los espacios históri-
tary research of João Pessoa’s historic ambien- cos, con el objetivo de lucrar en detrimento de los
ce was part of the primary sources, in addition habitantes con memoria e historia de la ciudad.
to heritage documentation, such as letters and Así, la investigación bibliográfica y documental
recommendations, and restoration theories for del entorno histórico de João Pessoa fue parte de
the reflection of cultural goods and their process las fuentes primarias, además de la documenta-
of change through the centuries. The questions ción patrimonial, como cartas y recomendacio-
pointed out about the historic preservation prac- nes, y teorías de restauración para la reflexión de
tices of cultural goods, intends a debate about los bienes culturales y su proceso de cambio a lo
the possible ways of intervening on these days. largo de los siglos. Las preguntas apuntadas so-
bre las prácticas de preservación histórica de los
bienes culturales, pretenden un debate sobre las
URBAN HISTORIC SITIES URBAN REGENERATION posibles formas de intervención en estos días.
HERITAGE CULTURAL HERITAGE HISTORICAL CENTERS

URBAN HISTORIC SITIES URBAN REGENERATION


HERITAGE
EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
As cidades na sua mais ampla dimensão é o pro-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
duto resultante da dinâmica social no espaço
físico dentro de uma relação temporal. Como
organismo vivo nasce e se desenvolve a partir
vídeo-pôster
das premissas vocacionadas pelas necessida-
des dos grupos que a habitam, este elemento é

FETICHIZAÇÃO DA CIDADE o responsável pelo vetor de transformação de


seu espaço dentro da lógica plural de convivência
HISTÓRICA: PRAÇA ANTHENOR social, apropriada a tipologia local, ambiência,
que formata determinantemente o caráter do
NAVARRO E LARGO SÃO FREI lugar, limitadas pelas peculiaridades inerentes
a cada grupo que a integra, associada às suas
PEDRO GONÇALVES, JOÃO características ambientais.

PESSOA / PB Dentro desse contexto, Meneses (2006), demons-


tra a cidade através de três dimensões que se
relacionam entre si, a dimensão do artefato, sendo
HISTORIC CITY’S FETISHIZATION: ANTHENOR o espaço fisicamente construído, a do campo
NAVARRO’S SQUARE AND SÃO FREI PEDRO de forças, ou seja, as tensões envolvidas, tanto
GONÇALVES’ SQUARE, JOÃO PESSOA / PB sociais, políticas, econômicas, e a das significa-
ções, sendo as representações das imagens, as
FETISHIZACIÓN DE LA CIUDAD HISTÓRICA: PLAZA emoções percebidas por cada indivíduo.
ANTHENOR NAVARRO Y PLAZA SÃO FREI PEDRO
GONÇALVES, JOÃO PESSOA / PB Essa relação simultânea indica as práticas sociais
que determinam os sentidos e as transformações
dos espaços, identificando e ressignificando-os
de acordo com os interesses e negociações, “[...]
é, portanto, apenas dentro do campo de forças
e dos padrões segundo os quais elas agem (e va-
lendo-se de suportes materiais de sentidos e
valores), que se pode compreender a gênese e a
prática do patrimônio” (MENESES, 2006, p. 37).

Assim, a relação indissociável das dimensões


citadas faz da cidade um bem cultural, nela res-
guardam elementos substantivos das relações
e da produção social, político, econômico e am-
biental. Se reveste como depositório da identi-
dade material e imaterial da sociedade que nela
habita, revela páginas indissociáveis da vida do
cidadão, é identidade, patrimônio coletivo, é lugar
dos afetos e de memória.

O bem cultural tem matrizes no universo


dos sentidos, da percepção e da cognição,
dos valores, da memória e das identidades,
das ideologias, expectativas, mentalida-
16º SHCU des, etc. [...] o patrimônio ambiental urbano
30 anos . Atualização Crítica
tem matrizes na dimensão física da cidade,
1706 pois é por meio de elementos empíricos do
ambiente urbano que os significados são te específicas e predeterminadas, é necessária
instituídos, criados, circulam, produzem uma análise muito mais complexa, “a importância
efeitos, reciclam-se e se descartam (ME- vem dos significados atribuídos pelos sujeitos,
NESES, 2006, p. 36-37). e não inerentes ao bem ou à matéria, apesar de
se materializarem nas características dos bens
patrimoniais” (HIDAKA, 2011, p. 88).
Bens culturais e conservação urbana Em consequência, a noção de entorno foi aprofun-
de cidades patrimônio cultural dando-se paulatinamente, o cuidado com o bem,
juntamente com a manutenção de sua ambiência,
A conservação de bens culturais está presente preservam valores muito mais amplos, como pode
nas discussões de patrimônio constantemente, ser percebido com o desenvolvimento de algumas
existindo divergências e com adaptações para Cartas Patrimoniais que trazem as primeiras dis-
os diferentes contextos a serem trabalhados, cussões de sítios históricos e entornos de bens
mas ao longo do tempo a ideia de bens culturais patrimoniais. Muitos conjuntos de importância
modificou-se, assim como nas dimensões citadas perdiam-se diante de uma paisagem totalmente
anteriormente, a cidade se entende como um bem transformada e readaptada (FONSECA, 2009).
que deve ser preservado e entendido através de
diversas perspectivas. Essas modificações teóricas atualizam as per-
cepções sobre o bem cultural e inserem novos
Em um mundo tão heterogêneo o estabelecimento diálogos, como o caso de entornos de bens pa-
de valores, de bens que fazem parte de uma comu- trimoniais e sítios históricos urbanos.
nidade, requer reflexões nas abordagens. Portanto,
teorias distintas surgiram como forma de auxiliar Foi em 1931, com a Carta de Atenas, que os primei-
nas atuações de intervenção dos bens culturais. ros pensamentos sobre entornos foram discutidos
internacionalmente, assim, recomenda “respeitar,
Caso das teorias abordadas no livro Teoría con- na construção dos edifícios o caráter e a fisionomia
temporânea de la Restauración, o autor Viñas das cidades, sobretudo nas vizinhanças dos monu-
(2004), discute algumas das Teorias Clássicas, mentos antigos, cuja proximidade deve ser objeto de
representadas por Brandi, Viollet-le-Duc, Ruskin, cuidados especiais” (CARTA DE ATENAS, 1931, p. 14).
Boito etc, cujo foco são os valores estético e his- Além de todo impacto visual gerado por propagan-
tórico do bem material, “também consideram que das, letreiros ou outras perturbações na vizinhança
o significado do bem cultural dizia respeito à pre- do monumento foram pontuados, norteando o
servação das construções que materializassem início do tratamento das vizinhanças (MOTTA, 2010).
os valores de sua relevância àquele momento e
ao seu futuro” (HIDAKA, 2011, p. 85). Essas teorias, Em 1964, a Carta de Veneza, destacava questões
por mais que tentem a defesa dos bens, impactam de conservação e restauração de monumentos
negativamente quando esquecem da necessidade e sítios, demonstrando a importância para se
em atender uma função social, idealizando, prio- compreender um bem isolado o respeito com o
ritariamente, o bem cultural material. entorno. Assim, no art. 1º “A noção de monumento
histórico compreende a criação arquitetônica
Já as Teorias Contemporâneas ampliam a visão isolada, bem como o sítio urbano ou rural que dá
sobre os valores dos bens culturais, “defendem os testemunho de uma civilização particular, de uma
valores simbólicos e funções de comunicação nas evolução significativa ou de um acontecimento
decisões sobre o objeto patrimonial. Ou seja, há histórico [...]” (CARTA DE VENEZA, 1964, p. 92).
uma complexidade enorme de fenômenos do qual No art. 6º da Carta citada:
os bens culturais fazem parte [...] vários olhares e
pontos de vista quanto ao universo em questão” A conservação de um monumento implica
(HIDAKA, 2011, p. 88) não se prende apenas ao a preservação de uma ambiência em sua
objeto, mas a diversidade que o contempla. escala. Enquanto sua ambiência subsistir,
será conservada, e toda construção nova,
O processo conservativo deve abranger outras nu- toda destruição e toda modificação que
ances do objeto, não apenas instâncias puramen- possam alterar as relações de volumes e de
EIXO TEMÁTICO 2 cores serão proibidas (CARTA DE VENEZA,
1964, p. 93).
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES A norma de Quito, assinada em 1967, além de expor
normativas sobre conservação, também trata
de entornos de interesse históricos e artísticos.
Demonstra em suas considerações gerais como
o monumento e o espaço estão intrinsicamen-
te relacionados, cabendo ao Estado um olhar
alargado. Traz o processo desenfreado de de-
senvolver um espaço, muitas vezes, executado
inapropriadamente.

Em 1975, a Declaração de Amsterdã delineia, em


suas considerações, que o “patrimônio compre-
ende não somente as construções isoladas de
um valor excepcional e seu entorno, mas também
os conjuntos, bairros de cidades e aldeias que
apresentem um interesse histórico ou cultural”
(DECLARAÇÃO DE AMSTERDÃ, 1975, p. 200) Coloca
que os problemas da conservação do patrimônio
necessitam de uma de uma percepção físico-ter-
ritorial, planejando de forma adequada as áreas
urbanas, o que torna indispensável o diálogo entre
os conservadores e os urbanistas.

Mas só foi em 1976 que o conceito de ambiência


foi definido na Conferência Geral da Unesco em
Nairobi, é na ambiência onde existe o testemu-
nho dos atos sociais, que englobam “as criações
culturais, religiosas e sociais da humanidade”
(1976, p. 217) sendo necessário salvaguardá-la de
transformações inconsequentes e irregulares,
evitando a padronização dos conjuntos, como
consequência, a perda da identidade do espaço.

Diante dos perigos da uniformização e da


despersonalização que se manifestam cons-
tantemente em nossa época, esses testemu-
nhos vivos de épocas anteriores adquirem
uma importância vital para cada ser humano
e para as nações que neles encontram a ex-
pressão de sua cultura e, ao mesmo tempo,
um dos fundamentos de sua identidade (CON-
FERÊNCIA GERAL DA UNESCO, 1976, p.217).

Além das Cartas citadas anteriormente, a Carta de


Petrópolis, de 1987, traz uma discussão a respeito
da preservação e revitalização de centros históri-
cos, em que declara o sítio histórico urbano como
16º SHCU “o espaço que concentra testemunhos do fazer
30 anos . Atualização Crítica
cultural da cidade em suas diversas manifesta-
1708 ções” (1987, p. 285) desse modo, tem como objetivo
a preservação das potencialidades culturais. tecnologias que se anacronizam, porquanto, subs-
tituídas rapidamente. Esse processo de demanda
Os significados e os valores atribuídos para um de consumo é válido também para questões cul-
bem cultural, muitas vezes, são ressignificados ao turais, reconfigurando, quase que imediatamente,
longo do tempo, aglutinando vários dos antigos e os espaços e, como consequência, as memórias.
perdendo outros. Foi em 1988 com a Constituição “É a presentificação de todo o repertório da huma-
Brasileira, artigo 216, que questões de ordem nidade, mundo de imagens retiradas do sem-fim,
imaterial entraram como patrimônio cultural transformadas em informação, que rapidamente
brasileiro, assim, novos panoramas surgem e se esvaem no consumo imediato de bens e de
transformam os valores declarados na sociedade: lugares” (FERNANDES, 2003, p. 42)

Constituem patrimônio cultural brasileiro A transformação da cultura como arma do de-


os bens de natureza material e imaterial, senvolvimento de mercado, ocorre mediante
tomados individualmente ou em conjunto, a perda ou a readaptação de um passado, com
portadores de referência à identidade, à o intuito de suprir as demandas aceleradas do
ação, à memória dos diferentes grupos for- tempo contemporâneo e midiático. O passado
madores da sociedade brasileira [...] reestruturado, segundo Fernandes, (2003, p.42)
foi resignificado e coloca-se em uma posição
Os valores culturais, a partir da constituição de quase que inesgotável de adaptações, já que a
1988, abrange mais que os bens tombados, em identificação com a sociedade foi “reduzida a
que os valores eram estabelecidos pelo poder objeto de apropriação”
público, mas, também passa a integrar os bens de
ordem imaterial, em que os valores também são O processo de presentificação se dá, então,
determinados pela comunidade. De acordo com em conjunto com uma enorme extensão da
Meneses, (2000, p.34) “O poder público, agora, tem história, ou seja, a ruptura com o passado é
um papel declaratório e lhe compete, sobretudo, o mesmo movimento que, na idade mídia, o
proteção, em colaboração com o produtor de coloca inteiramente à disposição do consu-
valor, a comunidade”. mo no presente, instaurador permanente de
novas demandas de novas inteligibilidades.
Logo, os valores atribuídos aos bens culturais (FERNANDES, 2003, p. 42)
na cidade são selecionados de acordo com as
questões políticas, econômicas e sociais, com a Mas a percepção do patrimônio, de acordo com
busca por uma cidade dinâmica e culturalmente Jeudy (2003), só pode ser reconhecível se a socie-
apropriada e identificada pela comunidade. dade se apropria e se identifica com sua história
e cultura, assim, todo o simbólico da sociedade,
A cidade cultural é determinada pelos sentidos e expresso em objetos, monumentos e espaços
valores atribuídos, pela qualidade oferecida aos são reflexos do caráter patrimonial.
habitantes e também por visitantes, a cidade deve
Contemporaneamente, os valores ocidentais
ser propícia para se viver e reconstruir, Meneses
atribuídos aos símbolos mesclam e confundem-
(2006, p.39) [...] para ser culturalmente qualificada
-se com o valor de mercado. “Esse é o dilema da
como cidade, ela precisa ser boa como cidade,
gestão contemporânea dos patrimônios: se o
precisa de condições de viabilidade econômica,
patrimônio não tem um estatuto à parte, se ele se
infra-estrutura, políticas adequadas de habitação,
torna um valor mercantil como os outros (os bens
transporte, saúde, educação”
culturais), ele perde o seu potencial simbólico”
(JEUDY, 2003, p. 28) essa dicotomia necessita de
um equilíbrio para que a identidade e o desenvol-
A noção de Patrimônio e a cidade histórica vimento cultural não se percam em detrimento
da comercialização.
como espetáculo
“A produção atual de ‘lugares sagrados’ de
A sociedade no período contemporâneo, vive do memória, sítios e monumentos, tende a
fugaz, de processos instantâneos e com novas provar que seu simbolismo é ‘gerenciável’.
EIXO TEMÁTICO 2 Os planejadores do patrimônio podem, as-
sim, acreditar que eles possuem os meios
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS de tratar as representações comuns desses
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES ‘lugares sagrados’ como capital simbólico.
As memórias são ‘postas em exposição’,
para que seja igualmente assegurado o re-
conhecimento de sua singularidade” JEUDY,
2003, p. 30)

Visando a “monetização do passado e da histó-


ria”, agrava-se, de forma geral, o congelamento
de espaços nomeados como representantes da
memória, esse processo denominado de “mu-
seificação” é reflexo do período neoliberal, que
como consequência, também transformou os
conceitos da cultura contemporânea e de seu
patrimônio (JACQUES, 2003).

Como consequência da relação entre cultura e


economia, os centros históricos urbanos passam
por adaptações e as chamadas “requalificações”,
com o intuito de se readequarem ao cenário glo-
bal, no Nordeste, alguns casos foram emblemá-
ticos nas transformações das áreas centrais e
históricas, como o Pelourinho, em Salvador, a
rua do Bom Jesus, em Recife e a Praça Anthe-
nor Navarro, em João Pessoa. A necessidade de
uma adaptação urbana acelerada para cumprir
as demandas especulativas, em detrimento da
população envolvida com os símbolos dos espaços
transformados, mesmo que antes em processo
de degradação, são excluídas, perdendo a relação
existente com seu contexto (SANT’ANNA, 2003;
SCOCUGLIA, 2004)

O modelo das denominadas “cidades-empresa-


-cultural”, de acordo com Scocuglia, (2004, p.
25), veio aos países periféricos depois das trans-
formações em centros históricos nos países eu-
ropeus, “Estes modelos, em geral, excludentes
de revitalização urbana expressam um dilema
central da cultura contemporânea entre preservar
e consumir”.

Essas intervenções carregam como autores


as iniciativas privadas em parceria com o setor
público, readaptando o urbano na tentativa de
transformar a cidade, cada vez mais, em atra-
tiva e supostamente desenvolvida, essas ações
colocam os centros em evidência, repercutindo,
16º SHCU muitas vezes, nas missões eleitorais, a ideia da
30 anos . Atualização Crítica
cidade cultural como mercadoria é incentivada
1710 e glorificada, compreendida como uma neces-
sidade a ser cumprida para a evolução urbana, para a projeção midiática de uma cidade manipu-
segundo a citação de Sanchez (2004): lada, algumas estratégias para elaboração dessa
dinâmica são deturpadas:
Efetivamente, tais projetos vêm sendo ado-
tados por governos locais das mais diversas O elenco de estratégias, que vêm sendo
orientações políticas e pode-se afirmar que, sistematicamente adotadas, parece confir-
afirmando-se como modelos da reestrutu- mar esta comunhão: grandes equipamen-
ração em sua face atual, estão em vias de tos públicos (museus, centros culturais)
canonização urbanística. Porém, na pers- no repertório das políticas culturais para
pectiva crítica, são lidos como instrumentos reativação econômica dos lugares, arqui-
que afirmam ostensivamente a colonização tetura da grandiosidade [...], reabilitação
urbano-cultural pelo reino da mercadoria: de áreas urbanas [...], promoção de me-
inscrevem-se no espaço como morfologia gaeventos ou, até mesmo, preservação de
específica, espetacularizada, para vender edifícios alçados à condição de patrimônio
a cidade. (SÁNCHEZ, 2004, p. 25) e tornados emblemáticos dos programas de
renovação urbana. (SÁNCHEZ, 2004, p. 28)
A denominação de cidades espetáculo é exem-
plificada por Sánchez (2004), como uma cidade Com as dinâmicas naturais que toda cidade passa
produto, totalmente guiada pelos processos da no decurso temporal, é clara a necessidade de
globalização, “Trata-se da expressão urbanística readaptação dos espaços, mesmo as investidas
do chamado empresariamento urbano” (SÁNCHEZ, impostas e visando meramente uma ação externa,
2004, p. 25) ou seja, uma gestão totalmente vol- alheia à realidade habitual da região, e temporá-
tada para o externo, agradando um público pas- ria, seguindo os ciclos turísticos, não funcionam
sageiro, e excluindo seus verdadeiros habitantes. de forma satisfatória, com a velocidade que in-
cham os locais em épocas específicas, também
Uma cidade “espetacularizada”, tanto por conge- esvaziam rapidamente, ocasionando diversas
lamente, como uma forma de proteção radical problemáticas para a população fixa, dentre eles
da memória dos habitantes, ou pela urbanização a desvirtuação da identidade cultural.
generalizada, em que se padronizam aspectos da
cidade rentáveis para o turismo, seguindo mode- Portanto, as cidades se afastam das relações coti-
los homogeneizadores, priorizando, principal- dianas, de forma planejada, para se formarem ce-
mente o turista internacional, conforme Jacques, nários de divulgação, a chamada “espetaculariza-
(2003), classifica, é marcada pela gentrificação, ção mercantil das cidades” (JACQUES, 2003, p.33)
resultado da falta de envolvimento da população
no processo de transformação. Estas operações estratégicas são transfor-
madas em iscas, grandes vitrines publici-
Essa transformação dos espaços centrais, desig- tárias da cidade-espetáculo, que buscam
nado de revitalização, faz com que o solo valorize, consagrar os projetos de cidade e desper-
inviabilizando a permanência das populações tar o espírito cívico, o orgulho, a sensação
originais, logo, a gentrificação torna-se sinto- de pertinência, ao mesmo tempo que se
mática em meio ao desenvolvimento urbano ce- orientam à neutralização dos conflitos, das
nográfico, essas “Representações populistas e diferenças. (SÁNCHEZ, 2004, p. 28)
entusiastas fazem parte do marketing que vende
a revitalização, a face pública da gentrificação, Assim, a grande questão desse cenário construído
como renascimento da cidade, como capaz de é o valor inserido apenas na aparência, a grande
trazer benefícios para todos os habitantes da tela encenada, “[...] Este processo neutraliza o
cidade, sem diferenciação de classe” (SÁNCHEZ, espírito crítico e promove o isolamento social”
2004, p. 30) (SÁNCHEZ, 2004, p. 28), a cidade-espetáculo vira,
meramente, contemplativa, utilizada pelos que
Diante dessa perspectiva, entende-se a cidade- não se relacionam de modo identitário e memorial.
-espetáculo, com suas grandes intervenções,
não para a população local, mas, para cumprir os Geralmente esses espaços de reestruturação
interesses políticos utilizando uma nova imagem urbanística colocam os centros históricos das
EIXO TEMÁTICO 2 cidades como pontos de aglutinação dos servi-
ços midiáticos, readequando-os como uma nova
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS centralidade, Sánchez (2004) ressalta:
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
[...] os programas de renovação urbana in-
cluem a transformação de algumas áreas
nas chamadas novas centralidades, frag-
mentos urbanos transformados em nós de
atividades e fluxos [...] somados aos espa-
ços da chamada oferta cultural, museus e
centros de lazer. Seus locus são os tecidos
urbanos sempre apresentados como de-
gradados, perigosos, desajustados e incô-
modos quando confrontados aos valores
dos atuais projetos de cidade. (SÁNCHEZ,
2004, p.29).

Nos centros históricos, o mesmo processo de


padronização ocorre, já que as normativas in-
ternacionais, quando seguidas, não conseguem,
muitas vezes, se adaptar as especificidades dos
diferentes contextos. “Assim, esse modelo acaba
tornando todas essas áreas – em diferentes países
de culturas das mais diversas – cada vez mais
semelhantes entre si” (JACQUES, 2003, p. 34)

Segundo Jacques, (2003, p. 36) “a problemática


principal, desse momento atual, seria o esva-
ziamento do conceito de cultura do seu caráter
identitário, de diferenças e singularidades da
cultura-étnica, mas também dos valores ditos
universais da cultura-estética, em prol do puro
mercantilismo da cultura-econômica”, é modi-
ficado o singular simbólico para uma grande pa-
dronização lucrativa.

O patrimônio cultural torna-se um mercado com


potencial de exploração, banalizando os aspec-
tos culturais vivenciados pela população, muitas
vezes, explorada e retirada do circuito temático.

Tanto a cultura quanto a cidade passaram


a ser consideradas como mercadorias,
manipuladas como imagens de marca. A
competição entre cidades por turistas ou
empreendedores estrangeiros é acirrada
e as municipalidade se empenham para
melhor vender a imagem de marca da sua
cidade, em detrimento das necessidades
da própria população local, ao privilegiar
16º SHCU basicamente o visitante estrangeiro, atra-
30 anos . Atualização Crítica
vés de seu maior chamariz, o espetáculo
1712 (JACQUES, 2003, p. 34)
No caso de várias cidades brasileiras, como João posto também se evitariam situações pa-
Pessoas, a área urbana central ganha grande visi- radoxais em que bens declarados de valor
bilidade, com um processo, considerando Scocu- universal não são percebidos como tais
glia, (2003, p. 27), de divulgação de marketing tu- pelos habitantes, para quem eles podem
rístico, “[...] tiveram sua imagem transformada, [...] construir apenas ônus e, na maior parte
de degradadas e abandonadas em locais que sim- das vezes, mera oportunidade de negócio.
bolizavam e divulgavam cultura popular, arte alter- Cidades ‘patrimônio da humanidade’, como
nativa, carnaval tradição, entretenimentos [...]”. Veneza ou Ouro Preto, ao se transformarem
em mercadorias para o turismo cultural,
Foi entre os anos de 1980 e 1990 que a revitalização alienaram o habitante, cuja fruição é total-
dos centros históricos, em específico em parte mente instrumentalizada.
das cidades do Nordeste brasileiro, tornou-se am-
plamente discutida, pela necessidade das comu- Muitos dos sítios históricos revitalizados sofrem
nidades fundamentarem suas tradições, assim, o com a perda ou seleção de uma identidade em
meio revitalizado se associa à memória identitá- detrimento do mercado lucrativo, “poderíamos
ria. Como citado anteriormente, essa associação efetivamente pensar em termos de uma ‘indústria
entre o patrimônio cultural urbano e a memória patrimonial’ a partir do momento em que os sítios
dos grupos sociais fizeram parte do mercado urbanos ditos históricos passam a se valorizar cada
turístico e empreendimentos lucrativos entre vez mais, através de uma estreita ligação com a in-
Estado e setores privados. (SCOCUGLIA, 2004) dústria do turismo cultural” (JACQUES, 2003, p.34)

Identifica-se, neste aspecto, que os centros


históricos, a exemplo do centro de João
Pessoa, possuem uma força simbólica As mudanças no Centro histórico
importante na constituição de vínculos de João Pessoa
sociais. Concentram, hoje, novas práticas
culturais e políticas que entrelaçando o
Em 1980, o Centro Histórico da cidade de João
público e o privado (DA MATTA, 1991) por
meio da revalorização de códigos sociais Pessoa sofre, paulatinamente, uma estagnação
da tradição urbana mesclados com práticas de novos investimentos, antes uma área viva eco-
contemporâneas. Apontam para vivências nomicamente, torna-se uma estrutura urbana
nas ruas, para conversas nas praças, nos carente de novas demandas comerciais, mes-
bares, nos shows, nas calçadas e nas festas mo que ainda comporte serviços de instituições
populares. As associações civis e parcerias públicas e de comércios, não atendem mais à
entre órgãos públicos e privados estão aqui população de alta renda, justificando, assim, um
em destaque (SCOCUGLIA, 2004, p. 30) Projeto de Revitalização do Centro Histórico de
João Pessoa, na tentativa de uma revalorização
Esses tipos de projetos de revitalização urbana, em e troca de público da área (SILVA, R., 2016).
específico nos centros históricos, deve-se perceber
com cautela os reflexos sociais que ocasionaram as O Centro Histórico de João Pessoa, de acordo com
transformações. “Uma das maiores interrogações Regina Silva (2016), não perdeu completamente
dessas intervenções diz respeito à manutenção ou sua importância para a capital, pois mesmo com
não da população local nas áreas afetadas e uma a diminuição de suas antigas atividades e a pouca
grande parte dos projetos provoca a gentrifica- atualização de investimentos, ainda abriga uma
ção desses espaços [...]” (JACQUES, 2003, p. 37) diversidade de atividades “o centro representa
ainda uma referência em centralidade urbana,
Muitas vezes, a tentativa da preservação, a todo mantendo, sobretudo, uma importante relação
custo, onde aspectos que não representam mais com as outras localidades que compõem o espaço
os habitantes naquele espaço geram falta de re- intraurbano de João Pessoa” (SILVA, R., 2016, p. 81)
ferência e das relações que poderiam fazer parte
dele. De acordo com Meneses (2006, p. 39) Ainda existe um grande nó de convergência de
pessoas e veículos que percorrem o Centro His-
[...] Com o deslocamento de atenção pro- tórico, é um ponto que faz parte da rota de tran-
EIXO TEMÁTICO 2 sito da população da cidade. Outras formas de
apropriação do espaço são observadas, já que
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS antigas instituições que utilizavam os prédios
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES históricos, como os Correios e alguns setores do
Centro Administrativo, migram para áreas com
largas vias visando ampla circulação e espaços
com estacionamento e infraestrutura urbana.

É impossível não reconhecer que a saída


dessas repartições ocasionou a perda da
dinâmica do centro da cidade. Muitos eram
os funcionários e frequentadores dessas
instituições que se deslocavam para o
centro, a fim de resolver negócios e, nessa
condição, consumiam e frequentavam
esses espaços. (SILVA, R., 2016, p. 82)

O comércio popular prevalece na região, dinami-


zando até certo horário. Ao anoitecer o fluxo de
pessoas diminui significativamente, restando a
sensação de insegurança dos moradores ainda
remanescentes do Centro.

Um dos problemas enfrentados pelos mo-


radores do bairro são as precárias condi-
ções de moradia das camadas de menor
poder aquisitivo. Segundo Scocuglia e Silva
(2012), as vilas e os cortiços formam hoje
parte da moradia no bairro do Varadouro
na Cidade Baixa. [...] as autoras consta-
taram a deterioração desse local, que, na
visão das mesmas, deu-se pelos problemas
econômicos vivenciados pela cidade nas
últimas décadas, levando ao esvaziamento
de imóveis e à degradação dos espaços
públicos (SILVA, R., 2016, p. 85)

Com as mudanças de imagens do Centro His-


tórico de João Pessoa ao longo dos anos e sua
progressiva deterioração fez com que o Projeto
de Revitalização começasse a ser articulado em
1987, de acordo com Regina Silva (2016, p. 87), “o
Centro Histórico passa a ser analisado sob a ótica
do aproveitamento turístico e cultural. Seu patri-
mônio passa a ser entendido numa perspectiva
de exploração econômica”.

Esse processo de revitalização foi entendido se-


gundo Regina Silva (2016, p. 87), pelos gestores,
como a esperança para a revalorização econômica
16º SHCU e cultural da região, “irão se traduzir em projetos
30 anos . Atualização Crítica
de intervenção subsidiados pelo poder público,
1714 com a inserção de Agências Internacionais de Co-
operação, em alguns casos; e, em outros, através recém-historicizada, através da adoção
da iniciativa privada”. Essa condição valorizou, de repertórios plásticos consagrados pelo
principalmente o setor imobiliário e os empre- tempo social” (FERNANDES, 2003, p.42)
sários do setor comercial.
Os motivos principais para que essa cooperação
Uma problemática já discutida ao longo do traba- Brasil e Espanha ocorresse no Centro Histórico
lho é o grande privilégio oferecido as atividades de João Pessoa foi, de acordo com Regina Silva
turísticas nos Centros Históricos das cidades (2016, p. 102), “primeiro, a importância histórica
brasileiras, o mesmo ocorre em João Pessoa, entre as duas nações [...]. Segundo, a importância
colocando a cidade na posição de mercadoria. patrimonial do seu sítio histórico”.
“Essas ações estão muito mais preocupadas em
restabelecer as fachadas dos exemplares arqui- As revitalizações do Centro Histórico ocorre-
tetônicos do que contribuir para o fortalecimento ram em duas fases, privilegiando, no primeiro
da cultura local e do patrimônio imaterial dos mo- momento, os monumentos mais deteriorados e
radores do centro histórico” (SILVA, R., 2016, p. 88) mais representativos para a história da cidade
e a segunda fase, iniciada em 1998, teve foco na
revitalização da Praça Anthenor Navarro e do
Largo de São Frei Pedro Gonçalves, além de ou-
Cooperação Brasil e Espanha no Centro tros pontos do antigo Bairro do Varadouro (Cidade
Histórico de João Pessoa Baixa) (SILVA, R., 2016)

No fim dos anos 1980, a intensa discussão sobre


o desgaste do Centro Histórico da cidade incen-
A revitalização da Praça Anthenor Navarro
tivou a Cooperação Internacional entre o Brasil
e a Espanha, durante os anos de 1987 até 2002
e do Largo de São Frei Pedro Gonçalves
(SCOCUGLIA, 2004).
De acordo com Scocuglia (2004), foi na segunda
Essa cooperação foi formada pelo Governo do metade da década de 1990, na segunda etapa do
Brasil, contando com o apoio do Ministério da processo do programa de cooperação, que surge
Cultura e do Iphan; Governo do Estado da Para- a proposta para a revitalização da Praça Anthe-
íba, mediante o IPHAEP; a Prefeitura Municipal nor Navarro, espaço público, cuja arquitetura de
e o Governo da Espanha, por meio da AECI, cujo seu entorno são características do século XX. O
objetivo era a tentativa de resgatar o patrimônio trabalho com essa imagem do Centro ocasionou
cultural “considerando símbolos das raízes cultu- uma grande movimentação na região.
rais comuns que fortaleciam a identidade cultural
entre o Brasil e a Espanha” (SILVA, R., 2016, p. 99). Houve um marketing voltado para o potencial
turístico da cidade e um movimento de em-
O projeto de revitalização do Centro Histórico presários e artistas locais que evidenciaram-
de João Pessoa buscava a reapropriação dos -no como lugar de cultura e ponto de encontro
habitantes da cidade, sem esquecer o potencial noturno de uma parcela dos jovens e adultos
turístico envolvido para o desenvolvimento da da capital paraibana (SCOCUGLIA, 2004, p. 46)
economia local. De acordo com Fernandes, (2003):
Essa segunda fase de transformação simbólica
[...] Os processos recentes de retomada do Centro histórico foi marcada por novos gru-
de espaços urbanos centrais reinvestidos pos participantes, os comerciantes e empresá-
social, cultural e materialmente mostram rios, artistas e produtores culturais locais, assim
bem esse processo de ‘valorização de es- Scocuglia (2004, p. 46), afirma que “nas entrevis-
paços historicizados, erigidos agora em tas com representantes destes seguimentos,
territórios de evasão’ (FERNANDES, GOMES, diversas narrativas expressaram uma busca de
1993), em cenário onde se pode tomar ou singularidade do local como sendo nascedouro
retomar um contato fugaz com uma reali- e símbolo da história da cidade”. Intensificando
dade densamente povoada de história ou o apelo pela valorização do espaço.
EIXO TEMÁTICO 2 A Praça Anthenor Navarro e seu entorno imediato
foram produtos de reformas urbanísticas ocor-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS ridas no início do século XX, seguindo o exemplo
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES da modernização de algumas cidades brasileiras,
marcada como um símbolo do apogeu comer-
cial do bairro do Varadouro. (SCOCUGLIA, 2004)
foi por meio da ideia das reformas urbanísticas
ocorridas na década de 1920/1930 na região que
o marketing trabalhou, exaltando “a auto-estima
e o orgulho de ser do lugar, apesar de todas as
dificuldades advindas do fato de ser nordestino
[...]” (SCOCUGLIA, 2004, p. 48)

A proposta de revitalização da Praça Anthenor


Navarro e do Largo de São Frei Pedro Gonçalves,
em 1998, foi impulsionada pelos exemplos desen-
volvidos em anos anteriores, como o Pelourinho,
na cidade de Salvador e do Bairro do Recife, em
Recife, “tentava-se repetir, em João Pessoa, o que
havia ocorrido com os centros históricos dessas
metrópoles, ou seja, transformar o patrimônio
cultural em objeto de consumo, lazer e entrete-
nimento” (SILVA, R., 2016, p. 144).

Essa intervenção teve o objetivo de limitar a inten-


sidade de automóveis que transitavam nas imedia-
ções, já que os usos preestabelecidos visavam a
atração turística e atividades de lazer e diversão,
antes, a Praça era ocupada por estacionamentos
e um posto de gasolina (fig.1), assim, transformar
em um espaço de permanência e de circulação de
pedestres era fundamental para o entendimento
do espaço urbano como um lugar público e apro-
priado por diferentes atores (SCOCUGLIA, 2004).

Figura 1: Imagem antes da revitalização da Praça Anthenor


Navarro, em uma das extremidades um posto de gasolina
16º SHCU e em toda a extensão servindo de estacionamento, difi-
30 anos . Atualização Crítica culta a compreensão morfológica da praça e a circula-
ção. Fonte: (Acervo da Comissão Permanente do Centro
1716 Histórico, 1997)
Também, como objetivo, a tentativa de atrair de Revitalização do Patrimônio Cultural, cujo foco
novas atividades comerciais e de serviços que era abranger o caráter educativo de transmitir a
se deslocavam paulatinamente da região. “A sua consciência identitária e de memória tradicional
revitalização é uma estratégia governamental para a comunidade da região, as modificações
de aproveitamento do espaço público, para o en- vindas com a revitalização visavam, sobretudo,
tretenimento e o lazer, mas, sobretudo, serviu a valorização turística, desenvolvendo novos di-
como área de preservação e permanência de álogos “mesmo assim, não conseguiram diminuir
práticas culturais para dinamização da atividade as assimetrias que demarcavam espacialmente
turística” (SILVA, R., 2016, p. 147) além de as desigualdades do lugar, nem seu esvaziamento
representar, supostamente, o marco inicial da noturno” (SILVA, R., 2016, p.158) Paulatinamente os
fundação da cidade, para os desavisados. eventos enfraqueceram-se e as noites voltaram
a ser vazias e perigosas.
A dinâmica da Praça e do Largo revitalizados se
intensificou, e várias atividades culturais foram João Pessoa, diferentemente de algumas outras
promovidas não só por agentes privados, mas cidades do Nordeste ainda está em processo de
também pelo poder público que incentivava e sedimentação para se integrar os roteiros turísti-
produzia atrações, melhorando, assim, a imagem cos, apesar dos esforços do poder público e priva-
do espaço público para o uso (fig.2). do em modificar esse cenário, assim, os eventos
e a demanda turística tornam-se pontuais.
Assim, pouco a pouco, a praça e o largo
foram se transformando em lugar de en- Atualmente, alguns dos usos propostos na época
contro e diversão noturna. Os casarões da revitalização ainda se mantem na Praça Anthe-
restaurados, a presença de pessoas da nor Navarro e no Largo São Frei Pedro Gonçalves,
classe média, o movimento de automóveis contudo o fluxo não é tão intenso pelos visitan-
ao redor da praça e os flanelinhas indicando tes e turistas quanto na época da revitalização,
os locais para estacionar. Esse movimento apenas em ocasiões específicas, “mesmo com o
já indicava o enobrecimento das antigas grau de investimento público e privado na área, o
edificações, estas pareciam ficar mais estigma do abandono e da deterioração continua
distantes do cotidiano dos moradores do forte no discurso dos agentes institucionais e de
centro histórico (SILVA, R., 2016, p.156) grande parte da população que frequenta” (SILVA,
R., 2016, p.172)

Além de que as relações que existiam foram confli-


tantes com o processo de revitalização. Scocuglia
(2004), ressalta as relações de convivência entre
os diferentes grupos na área do Centro Histórico,
uma convivência marcada pelas disputas e assi-
metria das relações:

A Praça e o Largo revitalizados no Centro


Histórico de João Pessoa, se tornaram es-
paços de disputa e passaram a reter uma
dimensão pública, a ponto de que a perma-
nência ou não das pessoas significar uma
Figura 2: Fachadas das edificações pintadas, localizadas forma de pertencer ao bairro e de ter direi-
na Praça Anthenor Navarro, a área foi limitada para aces-
tos reconhecidos. Tornaram-se espaços de
so exclusivo de pedestres. Fonte: (Acervo da Comissão
Permanente do Centro Histórico, 1997) coexistência de lugares e interações sociais
diversas e de singularidade sócio-espacial.
(SCOCUGLIA, 2004, p. 63)

O que se observou como característica desse Esses conflitos são presentes ainda hoje na área
processo foi uma integração com a população do do Centro Histórico, Regina Silva (2016), afirma
Centro. Mesmo com a criação da Oficina Escola que ao passo que a imagem do Centro torna-se
EIXO TEMÁTICO 2 cada vez mais homogênea, ou seja, “valoriza-se
muito mais a forma, a estética, o desenho e as
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS fachadas” apagando a dinâmica cotidiana, a autora
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES observa, “que esses espaços tornam-se ainda
mais seletivos e enobrecidos do ponto de vista
do consumo e da frequência de seus usuários,
voltados principalmente para uma demanda sol-
vente” (SILVA, R., 2016, p. 170).

Assim, esse exemplo de revitalização do Centro


Histórico de João Pessoa, em especial o caso da
Praça Anthenor Navarro e o Largo São Frei Pedro
Gonçalves, demonstra, emblematicamente, como
funciona a articulação política e econômica para
a readequação dos espaços, pouco discutindo
o papel social e das tradições que foram cons-
truídas e resignificadas ao decorrer do tempo.
Mas, também, como a requalificação da Praça
e do Largo foram indispensáveis para resgatar
a espacialidade de uma praça, completamente
tomada por veículos e degradada.

A cultura, como exposto ao longo do texto, faz


parte de planos estratégicos para a economia das
cidades, movimentando direta e indiretamente o
fluxo de capital pelo consumo dos bens simbóli-
cos e materiais de uma comunidade. Mas, esse
assunto ainda passa por constantes revisões e
questionamentos, é, então, possível a recupera-
ção de áreas de valor histórico gerando lucros e
promovendo um diálogo com a população exis-
tente e o desenvolvimento social que mantenha
a memória e as tradições?

Considerações Finais

As transformações socioespaciais vivenciadas en-


tre o final do século XX e início do XXI pelo Centro
Histórico de João Pessoa, demonstra o impacto
das dinâmicas econômicas na organização da ci-
dade, o êxodo das atividades comerciais, de servi-
ços e residenciais, migraram gradativamente para
novos setores antes inexplorados sentido litoral.

A cooperação entre o Governo Federal, a Agen-


cia Espanhola de Cooperação Internacional, o
Governo do Estado e a Prefeitura Municipal de
16º SHCU João Pessoa, originou a Comissão Permanente
30 anos . Atualização Crítica
de Desenvolvimento do Centro Histórico, atuando
1718 por mais de vinte anos no processo de revitaliza-
ção do Centro Histórico de João Pessoa. Essa Referência
instância de gestão cultural não deixou de ser
essencial para a manutenção dos limites da área BRASIL. Constituição (1988). Constituição da Re-
histórica da cidade, visto o processo progressi- pública Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado
vo de descaso e abandono que perduraram por Federal.
décadas a região.
CARLOS, Ana Fani Alessandri. A cidade e a orga-
A Praça Anthenor Navarro e o Largo São Frei Pedro
nização do espaço. Revista do departamento de
Gonçalves, pode-se enquadrar na ideia de cidade
geografia, São Paulo vol. 1, p. 105-111, nov. 2011.
cenário, montada nos moldes de consumo dita-
dos. A cromatização das fachadas, é recorrente, CASTELLS, Manoel; BORJA, Jordi. As cidades como
desfigurando e adulterando documentos frente atores políticos. Novos Estudos, nº45, p. 125-166,
a sua cronologia pictórica, novas fachadas que 1996.
falseiam o histórico e, o mais grave, mutilam
elementos originais de composição do bem, da FERNANDES, Ana. Arquitetura e história: instância
ambiência e/ou do mobiliário urbano substituin- coletiva ou consumo cultural? RUA – Revista de
do-os por novos elementos que remetem sempre urbanismo e arquitetura, Salvador, vol. 6, nº 1, p.
ao falso histórico. 40-43, 2003.

Um ponto válido a refletir é o discurso de susten- FONSECA, Maria Cecília L. O Patrimônio em pro-
tação da “revitalização” da Praça e do Largo para cesso: trajetória da política federal de preservação
o resgate da história, da memória e das tradições no Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009.
da população, que seria incluída em todo o pro-
cesso. O resultado de dinâmica do espaço foi HIDAKA, Lúcia Tone Ferreira. Indicador de avalia-
momentâneo, e a incorporação da população na ção do Estado de Conservação sustentável de
região ocorreu de forma tímida e muito pontual. cidades – Patrimônio Cultural da humanidade:
teoria, metodologia e aplicação. 2011. 228 f. Tese
Assim, esse espaço apropriado sazonalmente pelo (doutorado), UFPE - Universidade Federal de Per-
turismo e que foi retransformado para oferecer ao nambuco, CAC. Desenvolvimento Urbano, Recife,
turista uma realidade modificada cumprindo os
2011.
padrões preestabelecidos pelo desenvolvimento
global do espaço urbano, refletiu na criação de Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Na-
uma nova imagem, tornando um objeto de consu- cional (Brasil). Cartas Patrimoniais. 3ª ed. Rio de
mo momentâneo, obrigando os habitantes a trans- Janeiro: IPHAN, 2004.
formarem suas relações com seu antigo meio.
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16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1720
1721
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES A intensa urbanização da cidade de São Paulo
entre as décadas de 1930 e 1940 produziu pro-
fundas mudanças no espaço físico da cidade
vídeo-pôster que transformaram a dinâmica social vigente
até então, o que gerou a perversa marginaliza-
ção socioespacial que conhecemos hoje. Logo,
IMPRENSA PAULISTANA os meios de comunicação do período veicula-
ram as principais remodelações que modifi-
NAS DÉCADAS DE 1930 E caram a Pauliceia. A figura do engenheiro-ar-
quiteto Francisco Prestes Maia é de extrema
1940: PRESTES MAIA E A importância para a compreensão da dinâmica
urbana e das marginalizações espaciais que fo-
DIVULGAÇÃO MIDIÁTICA DO ram potencializadas nesse período. Além de ela-
borador principal do Plano de Avenidas, Prestes
PLANO DE AVENIDAS Maia foi prefeito de São Paulo entre os anos de
1938 e 1945, período em que liderou as imple-
mentações de seu plano. A grande maioria dos
SÃO PAULO PRESS IN THE DECADES 1930 AND 1940:
periódicos tomou para si, naquele momento, a
PRESTES MAIA AND THE DIVULGATION MEDIA OF THE
responsabilidade de promover as remodelações
AVENUE PLANS
por ele formuladas. Essa narrativa deixou de
lado quaisquer discussões sociais, se alinhava
SANTOS, Patrícia Costa dos a discursos higienistas e elitistas, e contribuiu
no que toca a aceitação por parte da população
Graduanda em História; UNIFESP/Guarulhos
paticosta95@gmail.com das obras de urbanização. Por estes e outros
motivos, serão aqui discutidas as característi-
cas fundamentais que permeiam o discurso mi-
diático hegemônico acerca de Prestes Maia, em
contraste com o discurso contra hegemônico,
além de refletir rapidamente sobre a insuficiên-
cia das informações veiculadas para a compre-
ensão das problemáticas sociais que abrange-
ram o Plano de Avenidas.

CIDADE URBANISMO PRESTES MAIA IMPRENSA


PLANO DE AVENIDAS

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1722
ABSTRACT

The São Paulo’s intense urbanization between the


decades 1930 and 1940, produced deep changes
on the physical space of the city that transformed
the social dynamic valid until then, what genera-
ted the perverse marginalization socio-spatial
that we know today. So, the media of the period
aired the principal’s refurbishments that changed
the Pauliceia. The figure of the engineer-archi-
tect Francisco Prestes Maia it is extremely impor-
tant to the comprehension of the urban dynamics
and of the space marginalization that were po-
tentialized on that period. Besides of being prin-
cipal maker of the Avenue Plan, Prestes Maia was
the mayor of São Paulo between the years 1938 to
1945, period that led his plans’ implementations.
Most of the newspaper took for itself, on that mo-
ment, the responsibility to promote the improve-
ment made by him. This narrative let by side any
social discussion, lined up hygienists and elitists
speeches, and contributed when it comes to the
exception by part of the population of the urban
construction. For these and others motives, here
will be discussed the principal features permea-
te the hegemonic speech mediatic about Prestes
Maia, in contrast with the ant hegemonic speech,
besides reflect quickly about the insufficient of
the information’s aired to the comprehension of
the social problematic that include the Avenue
Plan.

CITY URBANISM PRESTES MAIA PRESS


AVENUE PLANS
EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
A organização da imprensa no Brasil, com a cria-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
ção de A Gazeta do Rio de Janeiro, em 1808 – ou,
por outra perspectiva histórica, mais colonialista,
talvez, com a criação, meses antes, do Correio
vídeo-pôster
Braziliense, com tiragem em Londres e distri-
buição no Brasil – demarcou uma disseminação

IMPRENSA PAULISTANA mais ampla de informações entre os letrados na


América Portuguesa.
NAS DÉCADAS DE 1930 E De suma importância para o desenvolvimento cul-

1940: PRESTES MAIA E A tural, e valiosa no que tange a divulgação de sen-


sações e experiências diversas e controvérsias,
DIVULGAÇÃO MIDIÁTICA DO mesmo que limitada muitas vezes – por repressão
governamental, por exemplo –, a imprensa, desde
PLANO DE AVENIDAS sua criação até os dias atuais, é majoritariamente
controlada pela elite nacional, e “as tensões e ar-
ticulações entre a cultura letrada [...] e a oralidade
SÃO PAULO PRESS IN THE DECADES 1930 AND 1940: constituem dimensão fundamental da formação
PRESTES MAIA AND THE DIVULGATION MEDIA OF THE das culturas urbanas e das relações de poder
AVENUE PLANS na cidade moderna.” (CRUZ, 2013, p. 30). A con-
traposição feita por Cruz entre cultura letrada e
oralidade, entre elite e populações marginaliza-
das, e as disputas de classes que permeiam essa
questão são importantes para a compreensão da
vida moderna. Ainda hoje, é possível articular tal
contraposição acima levantada, já que a cultura
letrada não está disseminada em todo território
nacional e ainda é uma problemática de demar-
cação de desigualdades sociais.

Contudo, a importância da abrangência e disse-


minação de informações através do crescimento
da imprensa, assim como a maior quantidade de
pessoas que tinham acesso a informação não
pode ser descartado, como sugere Cruz:

Independente das reclamações da própria


imprensa e das elites intelectuais paulis-
tanas sobre as dificuldades de difundir as
práticas da leitura, de encontrar ‘o homem
que lê’, o processo de expansão do público
leitor é inegável.” (CRUZ, 2013, p. 85).

Além do objeto imprensa, esta pesquisa perpassa


por um segundo objeto de estudos que se faz impor-
tante de ressaltar, a cidade e “Sendo a cidade esse
objeto aberto e multifacetado, ela recusaria qualquer
16º SHCU intenção de ‘redução teórica’, o que, longe de ser uma
30 anos . Atualização Crítica
‘falha’ ou ‘desvio’, pode ao contrário ser tomado como
1724 uma vantagem metodológica.” (CASTRO, 2016, p. 101).
Dito isso, a imprensa criou – generalizadamente nais de caráter mais combativos que este artigo
– personagens, vendeu propostas como demo- se debruça, enfeixando as discussões acerca da
cráticas e modernizadoras – que, se analisadas a recepção da implementação na cidade de São
fundo, contemplavam uma minoria da população Paulo do Plano de Avenidas, publicado em 1930.
– e despertou posições e verdades absolutas ás
quais formaram, ao passo que a cultura letrada
foi se alastrando pelo território nacional, o que
hoje chamamos de informação massificada e de Remodelações urbanas, Prestes Maia
pouca criticidade e reflexão, por conta do controle e a imprensa
midiático por uma elite, como dito acima, que fazia
pulsar nos jornais e revistas seus ideais e estilo A cidade de São Paulo foi palco de mudanças
de vida, contribuindo tanto para o aumento do urbanísticas de grande importância entre as dé-
consumo capitalista – ao passo que criava tensões cadas de 1930 e 1940, em especial com a cons-
de classe movidas por status financeiro – como trução do chamado Plano de Avenidas e “ foi o
servindo de desinformação, muitas vezes, para documento que orientou a atuação de [...] Fabio
classes menos abastadas. Prado e Francisco Prestes Maia, no período entre
1934-1945, quanto à remodelação e extensão do
Mesmo que controlada e reprimida, como exposto, sistema viário de São Paulo” (LEME, 1990, p.06),
a imprensa refletia realidades que fazem parte desenvolvido na década de 1920 por Francisco
da história. Demonstram as manipulações que Prestes Maia1, que tinha como objetivos embelezar
estavam ali articuladas, possibilita uma visão e melhorar os fluxos entre bairros tradicionais e
sobre os agentes históricos envolvidos, e, como centrais em São Paulo, assim como transformar
geralmente responde às necessidades de quem a cidade numa garden city. Marisa Carpintéro, ao
as controla, permite-nos reconhecer os meca- analisar os discursos sobre urbanismo daquele
nismos os quais são usados para a persuasão. período, ressalta que
Não podemos esquecer, ainda, dos mecanismos
criados por oposições que conseguiram se manter Ao se referir à cidade como um ser orgânico,
no ativas (como o caso que será apresentado no o urbanista se coloca concomitantemente
tópico reservado para reflexão sobre o discurso como um médico na tentativa de elaborar
contra hegemônico). um diagnóstico, para o chamado mal urba-
no. Em sua opinião, o congestionamento,
Nesta breve apresentação da imprensa no Brasil, a aglomeração, as habitações insalubres,
é possível notar sua importância em campos como a inexistência de obras sanitárias, de ilu-
política, economia, cultura, arte, e também no que minação, de água e a falta de esgotos são
concerne à relevância da imprensa e o seu poder elementos incompatíveis com o desenvol-
de persuasão. Não se pode deixar, obviamente, vimento da cidade. Ainda no seu entender
de frisar a importância para a discussão dos sa- esse mal é universal e dele sofrem as gran-
beres técnicos urbanos nela, também. Logo, são des cidades. O urbanista, assim como o
inúmeros os momentos históricos importantes e médico, deverá servir-se da técnica para
decisivos que são narrados pela imprensa. afastar e prevenir os males causados pela
crise do crescimento desordenado. (CAR-
O contraponto a narrativas elitistas é mais comum PINTÉRO, 2007, p. 02)
em jornais de pequeno porte, com afirmações
políticas anarquistas ou marxistas, voltados para Quando Carpintéro ressalta que os urbanistas
o proletariado que se formava em meio ao cresci- tendiam a criar diagnósticos para a resolução
mento da industrialização e da urbanização, e em
alguns casos, em jornais das populações imigran-
1. Francisco Prestes Maia nasceu em Amparo (SP) no ano de
tes – em suma italianos, que flertavam com o fas- 1896. Formou-se engenheiro-arquiteto em 1917 na Univer-
cismo, mas com apelo de classe – que sofriam com sidade de São Paulo e em 1918 já trabalhava como diretor de
as más condições do trabalho industrial brasileiro. Obras Públicas na Secretaria de Viação e Obras Públicas
É sobre esta tensão entre grandes corporações de São Paulo. Em 1938 iniciou seu primeiro mandato como
da imprensa vinculadas a grupos da elite e a jor- Prefeito da cidade de São Paulo e faleceu em 1965.
EIXO TEMÁTICO 2 dos problemas de uma cidade, podemos associar
com os anseios de Prestes Maia, que, segundo
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS a imprensa, transformariam e regenerariam a
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Pauliceia:

Figura 1 - Reportagem retirada do jornal Diário Nacional:


A democracia em Marcha. 1930, Edição 00889, pp. 5

Esse anseio tudo tem a ver, também, com os


discursos midiáticos que anunciavam o quão
benéfico seria para a cidade se os planos urba-
nos fossem implementados, porém, os ideais
sociais, citados pela autora – e que realmente
estavam presentes nos discursos de arquitetos
e engenheiros – são abandonados na prática, e o
distanciamento social é demarcado por mais um
elemento de repressão: o território, que segundo
Ana F. A. Carlos:

O lugar é a base da reprodução da vida e pode ser


analisado pela tríade habitante - identidade - lugar.
A cidade, por exemplo, produz-se e revela-se no
plano da vida e do indivíduo. Este plano é aquele
do local. As relações que os indivíduos mantêm
com os espaços habitados se exprimem todos
os dias nos modos do uso, nas condições mais
banais, no secundário, no acidental. É o espaço
passível de ser sentido, pensado, apropriado e
vivido através do corpo. (CARLOS, 2007, p. 17).

O lugar é de suma importância para a forma-


16º SHCU ção das pessoas, como o trecho acima ex-
30 anos . Atualização Crítica
plicita. As elites desejavam habitar bairros
1726 mais silenciosos e menos movimentados,
mais arborizados e limpos, com cuidados apoio na imprensa:
públicos especiais. Em suma, os bairros
de elite carregam especificidades físicas Longa será a campanha na imprensa, nas
e higiênicas melhores, pois são mais bem associações, nas escolas, para que esse
atendidos pelo Estado. ‘espírito’ se forme e toda uma mentalida-
de se refaça a ponto de prestarem aos
Pela abrangência do Plano de Avenidas e a im- emprehendimentos municipaes e o apoio
portância de Prestes Maia no cenário político e que merecem. Perguntamo-nos mesmo
urbano da cidade entre nas décadas de 1930 e se tanto é possível por força duma simples
1940, seus planos se tornaram alvo de uma grande campanha de urbanismo. Mas convém ob-
parcela da mídia impressa, ganhando notoriedade servar que São Paulo não podia aguardar
e apresentado como a solução modernizadora de inactivo os annos, lustros, quiçá decennios
São Paulo. O que se explica, também, pela vasti- desse esforço para só então iniciar planos
dão do projeto, que abrangia inúmeras áreas da e obras [...]. (MAIA, 1930, p. 06).
cidade, como os bairros República, Liberdade,
Campos Elíseos, Jardim Paulista, dentre outros; e Neste trecho, Prestes Maia expõe que a imprensa
o tempo de duração da implementação do plano, tem como papel convencer a população da cidade
que transcorreu entre as décadas de 1930 e 1940 – que as obras de urbanismo são imprescindíveis,
especialmente quando, em 1937 Francisco Prestes já que não podem esperar mais alguns anos para
Maia assumiu a liderança da implementação de acontecerem, e com isso, sugere que todos de-
suas obras, pois exercia o cargo de Prefeito da vem ser conquistados a todo custo para que o
cidade de São Paulo. empreendimento urbanístico seja realizado. Este
aspecto é chave para refletirmos sobre a posição
O Plano de Avenidas deve ser visto dentro do que da mídia do período em relação a figura de Prestes
colocou Maria Cristina Leme: Maia, assunto que será desdobrado com mais
atento no próximo tópico.
Poderíamos admitir, como o autor, que o
objetivo inicial era apenas a proposta de Portanto, este artigo pretende trazer à luz os dis-
alteração e complementação do sistema cursos hegemônicos sobre a figura de Prestes
viário da cidade, mas na verdade consta- Maia e seus projetos de urbanização para a cidade
tamos que o Plano tem objetivos maiores de São Paulo, priorizando a análise da impren-
[...]. Prestes Maia não se limitou a propor sa paulistana entre os anos de 1930 e 1945, em
um sistema viário, apresentou também consonância com uma reflexão acerca de um
propostas para o sistema de transportes, discurso contra hegemônico do mesmo perío-
e princípios de um zoneamento para a lo- do, curiosamente produzido por um semanário
calização de atividades e para a expansão italiano que flertava com ideais fascistas e era
da cidade. Apresenta uma série de estudos aliado do operariado imigrante. Esse confronto
de conjuntos arquitetônicos para áreas de entre narrativas não é explícito na imprensa, pois
alto valor simbólico e que se constituem na as críticas vindas de um semanário italiano eram
expressão derradeira de um projeto formal de menor escala em termos de tiragem, mas a
de conjunto elaborado, em um plano, para disputa existe e é ponto chave para compreender
São Paulo. (LEME, 1990, p. 19). a abrangência do Plano de Avenidas.

Esse interesse em divulgar as obras propostas Por fim, importante ressaltar que a análise das
por Prestes Maia não era desconhecido do mes- fontes da imprensa é realizada a partir de pres-
mo, primeiro pois este se apropriou do discurso supostos importantes, que combinam imprensa e
hegemônico da imprensa acerca de sua figura em vida urbana, de acordo com Heloisa de Faria Cruz:
seu livro Melhoramentos de São Paulo, publicado
numa primeira edição em 1945, em que o autor Na contramão de abordagens que privile-
muitas vezes transcreve elementos publicados giam o estudo da imprensa como dimensão
anteriormente em canais de comunicação. Em derivada ou paralela dos contextos sociais,
segundo lugar porque Prestes Maia deixa claro ou que a utilizam tão somente como fonte
em sua publicação sobre o Plano de Avenidas seu de informação sobre esses mesmos con-
EIXO TEMÁTICO 2 textos, na reflexão proposta, o periodis-
mo é tratado como dimensão articulada
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS do processo de constituição do espaço
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES urbano e de afirmação e construção de
lugares, sociabilidades e práticas cultu-
rais da cidade. A verticalização da pesquisa
nos diferentes veículos evidencia práticas,
sentidos, ambientes e as redes de comu-
nicação social que articulam os variados
projetos editoriais que dão corpo a esse
periodismo. (CRUZ, 2013, p. 12).

COMPREENDENDO A CRIAÇÃO DE UM DISCURSO


HEGEMÔNICO DA IMPRENSA PAULISTANA

No momento em que Prestes Maia se tornou pre-


feito de São Paulo (1938-1945) o Brasil se encon-
trava no que chamamos de Estado Novo2 que em
1939 criou um de seus aparatos de repressão, o DIP
(Departamento de Imprensa e Propaganda) “[...]
com o objetivo de difundir a ideologia do Estado
Novo junto às camadas populares.” 3 Esta medida
autoritária pretendia unificar as narrativas trans-
mitidas para a população, como forma de controle
social. Desta maneira, é preciso pensar os discur-
sos vinculados na época a partir deste prisma de
homogeneidade midiática sugerida e controla-
da pelo Estado, perigoso pois o jornal impresso,
naquele período, era responsável por informar
uma gama enorme de pessoas letradas, dentre
elas muitas participantes de classes sociais me-
nos abastadas e marginalizadas pela sociedade.

É possível identificar um discurso veiculado em


grande escala acerca da atuação de Francisco
Prestes Maia no empreendimento de urbanização
da cidade de São Paulo, através da implemen-
tação do Plano de Avenidas. Podemos associar
esse movimento de construção de um discurso
midiático com a situação política; num primeiro
olhar porque Prestes Maia era atuante no gover-

2. Período ditatorial da Era Vargas, quando a imprensa


sofria intensa repressão e, ao decidir se posicionar contra
a situação, corria grandes riscos de falência.

3. Informações retiradas do arquivo do CPDOC da Fundação


16º SHCU
Getúlio Vargas. Disponível em https://cpdoc.fgv.br/produ-
30 anos . Atualização Crítica
cao/dossies/AEraVargas1/anos37-45/EducacaoCultura-
1728 Propaganda/DIP. Último acesso em 04/09/2020 às 15:01.
no ditatorial como prefeito de uma das cidades figura de Prestes Maia, assim como os seus planos
mais importantes do país; em segundo, porque de remodelação.
seus planos de embelezamento e melhoramentos
atendiam necessidades de uma elite consolidada e
dominante, majoritariamente. Porém, a oposição
estava em pleno funcionamento, mesmo que com
pouquíssimo alcance ou adesão popular.
Figura 2 - Reportagem retirada do jornal Diário Nacional:
A democracia em marcha. 1930, Edição 00900, p. 05.
Uma análise dos discursos que foram veiculados
e que formam o conjunto de notícias que denomi-
namos de discurso hegemônico é essencial para
a compreensão do funcionamento da imprensa, Acima, o título de uma matéria publicada no jor-
além de propiciar-nos ampla visão desses empre- nal Diário Nacional demonstra com excelência o
endimentos urbanos na cidade de São Paulo, e teor da maior parte das publicações do período
permite, também, identificar uma quase ausência analisado, que associa a figura de Prestes Maia
de narrativas críticas; importante ressaltar que a construção de um futuro próspero e grandioso
as obras aqui discutidas surtiram efeitos diversos – não só a imprensa detinha esse discurso, mas
e contraditórios – pois ao passo que ressaltavam também o próprio Prestes Maia com a publica-
diferenças sociais, possibilitaram, ao menos de ção do Plano de Avenidas e seus autos elogios.
início, uma circulação (através de transportes Aproximadamente 70% das matérias e publica-
individuais) mais desenvolvida. ções em revistas analisadas em minha pesquisa
demonstram aspectos como este da matéria em
Demonstrado em jornais como Diário Nacional: A
questão. Desta forma, denominar como discurso
democracia em Marcha4; Correio Paulistano5 ; e A
hegemônico tais narrativas presentes nesses
Gazeta de São Paulo6 , as publicações vinculadas
jornais, se faz aqui oportuno. Informações como
entre as décadas de 1930 e 1940 enalteceram a
essa são valiosas e nos levam a exemplos coe-
rentes que confirmam a construção de aceitação
4. 10 Lançado em 1927 com vinculação ao Partido Democrá- popular, prevista tanto pelo controle midiático,
tico de São Paulo, fundado pelos diretores Paulo Nogueira como pela extensão e importância inegável dos
Filho, José Adriano Marrey Júnior e Amadeu Amaral. “[...] das planos de Prestes Maia.
oligarquias dominantes, defendeu o voto secreto (edição
de 8/11/1927), tomou posição favorável aos revolucionários Esse discurso disseminado pela imprensa se faz
de 1924, defendendo a sua anistia (23/11/1927), e divulgou e ouvir ainda no século XXI, na segunda edição de Os
promoveu os nomes dos candidatos dos partidos às eleições
Melhoramentos de São Paulo, publicado em 2010
estaduais realizadas em 7 de dezembro de 1927”. (Amélia
pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. O
Cohn/Sedi Hirano, In: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/
diretor-presidente da Imprensa Oficial do Estado,
dicionarios/verbete-tematico/diario-nacional). Rompeu
com o governo varguista em 1932.
Hubert Alquéres, que escreveu a Apresentação
desta segunda edição, recorre a uma narrativa
5. Lançado em 1854 por Joaquim Roberto de Azevedo Mar-
consolidada sobre Prestes Maia:
ques e tinha como redator Pedro Taques de Almeida Alvim.
Era vinculado ao PRP e reportava os ideais oligárquicos.
Homem público dinâmico, engenheiro-ar-
No período varguista se tornou um jornal de oposição ao
quiteto, anteviu os desafios que São Paulo
seu governo, ainda vinculado ao Partido Republicano. (in-
enfrentaria e soube propor medidas que se
formações retiradas do site do CPDOC – último acesso em
08/09/2020 às 23:30). antecipariam como soluções premonitórias
diante do vulto e do ritmo que marcaram o
6. Em circulação pela primeira vez em maio de 1906, o jornal
desenvolvimento urbano. [...] O livro teve uma
foi fundado por Adolfo Campos de Araújo e era um ves-
primeira edição em 1945, data muito próxima
pertino. O jornal foi vendido para Casper Líbero em 1918 e
teve seu auge de tiragens entre os anos de 1920 e 1950. Era
dos eventos que registra. Passada seis déca-
reconhecido por defender as instituições democráticas e das, esta segunda edição [...] evidencia que
foi considerado nacionalista. (informações retiradas do site Prestes Maia, além de administrador com-
da Fundação Casper Líbero – último acesso em 08/09/2020 petente, destacou-se como homem íntegro
às 22:50). e honrado. (MAIA, 2010, p. 01) (grifos meus).
EIXO TEMÁTICO 2 É possível identificar elogios na fala acima, que
já eram muito usados nos periódicos do período
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS em que as obras estavam sendo implementadas,
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES inclusive palavras como dinâmico, íntegro e
honrado aparecem sempre que o nome de Prestes
Maia é citado, até mesmo pela imprensa que de-
marcou o discurso contra hegemônico proposto
neste artigo. Sua filha, Adriana Prestes Maia Fer-
nandes também assume essa postura e sobre seu
pai, afirma que “Como homem público inatacável,
jamais se atribuiu a ele qualquer fato ou ação que
não se amoldasse aos cânones da moral, da razão
e da justiça”. (MAIA, 2010, p. 02).

Tenho a impressão de que as características indi-


viduais de Prestes Maia se sobrepõem a análise de
suas obras urbanísticas, e a tendência visualizada
nessas narrativas é a ausência de uma discussão
mais assertiva sobre os desdobramentos urbanos
característicos das remodelações do Plano de
Avenidas, tanto positivas quanto negativas.

Figura 3 - Reportagem retirada do jornal A Gazeta, 1930.


16º SHCU
Edição 07311, pp. 12
30 anos . Atualização Crítica

1730
A fotografia estampada no noticiário acima re- menos importância do que ele próprio sabia que
trata estudos desenvolvidos para o Viaduto São tinha; Francisco Prestes Maia, que se enquadrava
Francisco e o Paço Municipal, obras associadas ao num discurso acerca da profissão de engenheiro
Plano de Avenidas. A ocasião da matéria foi uma naquele período, decide que precisa participar
visita da imprensa à exposição preparatória dos do crescimento de São Paulo e, por isso, já em
projetos para melhoramentos da cidade, e Prestes seu livro Os Melhoramentos de São Paulo escrito
Maia estava presente no local. Ele foi apresentado de 1945, utiliza um tom de certa superioridade e
aos jornalistas e falou sobre as obras que estavam responsabilidade por modernizar a Capital.
sendo realizadas pela prefeitura – e que eram
de sua autoria –, e sobre estas remodelações, Outra indicação no trecho que demonstra um
afirma o jornal que “A verdade é que ressalta aos caráter de certa elitização do espaço público,
olhos de todos a necessidade de um plano de contida no projeto é a crítica feita por Prestes Maia
urbanismo como o que acaba de concluir-se, para sobre a presença de reclamações em muros e pa-
que o desenvolvimento da nossa Capital de ora redões8, que para ele é inaceitável. Inaceitável pois
em deante prosiga dentro de moldes racionaes.”.7 caracteriza regiões mais pobres, que precisam de
É curiosa a utilização da palavra harmônico para otimização de espaço, já que a monumentalidade
descrever os projetos de Prestes Maia. Essa refle- presente na fotografia e que elucida o futuro da
xão pode ter inúmeros desdobramentos, mas se Capital não tem nada de parecido com a preca-
algo fica explícito nas remodelações de Prestes riedade e a falta de obras públicas em localidades
Maia é que esse projeto estava conformado com com habitações de baixo custo.
um ideário de modernidade que partia do pres-
suposto do crescimento material da sociedade, As regiões habitadas pela população pobre e
e uma ingenuidade da crença de que a pobreza marginalizada que, como sugere o autor, não são
poderia não mais existir: dignas do progresso urbano e presença de áreas
verdes em seu cotidiano, também eram tratadas
Aproximamo-nos das silhuetas norte-ame- com menosprezo por parte da imprensa, como
ricanas após o zoning de 1916, e evitam-se sugere o trecho a seguir: “Os preços absurdos
os paredões laterais nus, tão usados para que a Prefeitura é forçada a pagar em certas de-
pavorosos reclames. Nos bairros foram ou sapropriações: O proprietário de um ‘buraco’, na
estão sendo zoneadas as áreas mais dignas Avenida Anhangabaú pede mil contos de réis pelo
de proteção. Entre elas o Jardim América terreno.” 9 (grifos meus).
o Jardim América, o Pacaembu, o Jardim
Europa e, dentro em pouco, as Avenidas Em 1940, o jornal Correio Paulistano publicava
Paulista, Angélica, Higienópolis, etc. Em uma matéria intitulada As grandes realizações da
leis sucessivas, de disposição simples e municipalidade paulista e dizia que
uniforme, regulamentam-se, assim, desti-
nos, utilizações de áreas, recuos, alturas, As grandes realizações da municipalidade
fecho, etc. (MAIA, 2010, p.24). (grifos meus). paulista, cuidadosamente planejadas e es-
tudadas pelo eminente prefeito da cidade,
O trecho acima muito se relaciona com o que Leme dr. Prestes Maia, fazem-se notar, ainda,
propõe no trecho “As advertências iniciais [...] pelo fato de serem levadas a efeito sem
aparecem como cortina de fumaça que encobre argumento de ônus para os municipais da
as verdadeiras intenções do autor: influir mais
decisivamente no futuro crescimento da cidade.”
8. Concepção que acreditava que elementos como escadas,
(LEME, 1990, p. 20). As advertências sugeridas pela
vidraças, vitrines e portas, nas laterais de prédios ou em
autora fazem referência ao início do Plano de Ave- muros muito altos, não davam a sensação de segurança
nidas, quando Prestes Maia trata seu texto com prevista no Plano de Avenidas.

9. Diário Nacional: A democracia em marcha. 18/10/1931,


7. A Gazeta. 05/06/1930, Edição 07311, p. 12. Disponível em Edição 01267, p. 8. Disponível em http://memoria.bn.br/Do-
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bi- cReader/DocReader.aspx?bib=213829&PagFis=9585&Pes-
b=763900&pesq=%22Prestes%20Maia%22&pasta=ano%20 q=desapropria%c3%a7%c3%b5es. Último acesso em
193. Último acesso em 11/09/2020 às 12:33. 13/09/2020 às 19:52.
EIXO TEMÁTICO 2 capital. Olhando para o futuro, com clara
visão e real conhecimento das necessida-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS des paulistanas, o Prefeito de São Paulo
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES tem realizado uma administração exem-
plarmente voltada à defesa intransigente
do patrimônio coletivo.10 (grifos meus).

Críticas camufLadas

Algumas críticas que se relacionam com Pres-


tes Maia estão presentes nos periódicos acima
citados, porém, sempre desassociadas de sua
figura. Seu nome não é citado, nem sua posição de
prefeito é questionada, apenas fazem referências
a seus projetos, principalmente no que diz respei-
to às desapropriações e o alto valor gasto com
elas. A Revista do Arquivo Municipal de São Paulo11
veiculou a maior parte dessas críticas, além de
levantar questões sobre os problemas sociais que
esses projetos envolvem, em tom de criticidade,
muito ausente nos jornais pesquisados.

As desapropriações eram recurso chave para que


as obras contidas no Plano de Avenidas pudessem
ser implementadas, mas a prefeitura, inicialmen-
te, não regulamentou esse gasto público e não
havia especialistas que pudessem avaliar o valor
real do imóvel:

Verificamos, contudo um fato curioso: os


custos das desapropriações tanto na Ave-
nida S. João como nas outras regiões, ma-
nifesta uma tendência decrescente o que
não quer dizer que o interesse dos poderes
públicos houvesse decrescido, nesse sen-
tido, como nos mostra o aumento sempre
crescente de área desapropriada. Expli-
ca-se; antigamente não havia avaliação de

10. Correio Paulistano. 25 de janeiro de 1940, Edição


25733, p. 6. Disponível em http://memoria.bn.br/DocRe-
ader/DocReader.aspx?bib=090972_09&PagFis=119&Pes-
q=%22Prestes%20Maia%22. Último acesso em 11/09/2020
às 09:44.

11. Criada em 1934 com intuito de trazer à tona a história da


cidade através de documentos antigos e inéditos. Em 1935
se torna órgão do recém criado Departamento de Cultura.
16º SHCU
A revista veiculava as pesquisas que eram realizadas pelo
30 anos . Atualização Crítica
Departamento de Cultura, e tratava de inúmeros assuntos
1732 de teor social, econômico e político.
preço de imóvel, cobrando o proprietário um e que demonstrava sua simpatia pelo fascismo
preço estimativo, em geral, muito superior italiano e
ao valor real do prédio.12
Durante o ano de 1929 houve uma intensificação
A crítica mais severa encontrada nesses parâ- da propaganda fascista no semanário; Ragognetti
metros denunciava um déficit financeiro cor- dedicou-se, inclusive, a realizar uma campanha,
respondente a uma abertura de crédito especial publicando uma série de artigos sob o título “Per-
para obras públicas, inclusive desapropriações, chè il fascismo è mal visto in Brasile”. Os artigos
no exercício de 1942. Nesse ano, Prestes Maia começaram a circular a partir do número 214, em
era prefeito da cidade, e seu nome não foi citado 17 de agosto de 1929, e continuaram até o número
na matéria: 232, de 25 de janeiro de 1930. No primeiro deles,
Ragognetti revela que quando decidiu fundar o
Moscone, em abril de 1925, uma das primeiras
providências tomadas foi procurar o fascismo
local [...]. (RORATO, 2009, p. 1075).

Este é o jornal que vinculou críticas sobre Prestes


Maia, principalmente sobre sua atuação enquanto
prefeito da Capital, que segundo o jornal, negli-
genciava os trabalhadores – tema muito abordado
pelo jornal.

Figura 4 - Retirado de Assembleia Legislativa de São Paulo:


mensagem apresentada pelo Governador Armando de
Salles Oliveira, 1941. Edição 00001, p. 468.

Durante as discussões apresentadas, vê-se


em Prestes Maia o anseio de modificar a
cidade e o claro auxílio da imprensa para
que as obras fossem possíveis. A questão
financeira envolvida nas remodelações não Figura 5 - Reportagem retirado do jornal Il Moscone, 1940.
será aqui desdobrada, porém, um déficit Edição 00597, p. 9.
relacionado ao setor de obras na metade do
mandato do então prefeito deve despertar
dúvidas, ao menos, sobre até que ponto
os elogios como homem de honra devem “Impiedoso” e “radical” versus “dinâmico” e “ele-
ser levados em conta para descrever suas trizante” definem, segundo a publicação acima,
atividades administrativas. a atuação de Prestes Maia na prefeitura de São
Paulo. Em minha opinião, o jornal consegue captar
a essência da atuação de Prestes Maia: ao passo
que a imprensa hegemônica faz repercutir no
AS NARRATIVAS DA OPOSIÇÃO imaginário social que as remodelações realizadas
na Capital são importantes para a glória e a mo-
Semanário italiano fundado em 1925 por um jor- dernização, as desapropriações realizadas, por
nalista e escritor chamado Vicente Ragognetti exemplo, tratavam de higienizar a cidade e enca-
recer/elitizar bairros considerados importantes
naquele contexto (Campos Elíseos, Jardim Euro-
12. Revista do Arquivo Municipal de São Paulo. 1944, Edição
00099, p. 16. Disponível em http://memoria.bn.br/DocRe-
pa, e etc.). Essa reflexão também está presente no
ader/DocReader.aspx?bib=143537&pesq=desapropria%- momento em que o jornal chama Prestes Maia de
C3%A7%C3%B5es&pasta=ano%20193. Último acesso em “bandeirante”, que explora, ocupa e muitas vezes
11/09/2020 às 10:13. massacra as populações presentes no território
EIXO TEMÁTICO 2 desejado em busca de progresso.

HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS A má fama da Rua Timbiras está associada a forte
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES presença de mulheres prostitutas naquela região,
e o jornal traz à tona outro provável anseio de
Prestes Maia: acabar, ou pelo menos esconder
a prostituição que se alastrava e se emaranhava
cada vez mais à Capital. Isso porque no período
da publicação a polícia ganhava força, e

No processo de legitimação do poder de


polícia o Código Penal aprovado em 1940
será de fundamental importância. Unificado
para todo o território nacional, adaptando
desta maneira o sistema jurídico penal ao
novo funcionamento do Estado brasilei-
ro, introduz através da criação da Lei de
Contravenções Penais mecanismos que
concedem maior independência à polícia
em relação ao estatuto judicial. (FELDMAN,
1988, p. 74).

Segundo a autora, o aumento da força policial re-


caiu sobre a prostituição pois, a partir de 1937, sob
o Estado Novo, o trabalho passa a ser essencial
não apenas para sobreviver, mas para colaborar
com a nação e seu funcionamento, como um or-
ganismo – corporativismo; este caso confirma,
naquele imaginário, que a prostituição é um tra-
balho à margem, que não beneficia a nação, sendo
assim, intensamente perseguido.

Último ponto que gostaria de ressaltar sobre a


imagem acima é que o semanário não se indispõe
com a aparente higienização que aconteceu nas
ruas Timbiras e Amador Bueno, já que a prostitui-
ção naquele momento era condenada por todos
os setores da sociedade. Suas críticas são feitas
exclusivamente sobre a figura de Prestes Maia,
muito diferente do que é localizado na imprensa
que consolidou o discurso hegemônico.

Numa sessão chamada Cartas Expressas, Il Mos-


cone aponta nomes importantes da política bra-
sileira e levanta aspectos polêmicos. Abaixo, o
conteúdo exposto pelo jornal sobre Prestes Maia:

PRESTES MAIA – (Pode-se falar nele, ou


a gente acaba na ordem política e social,
como foi da primeira vez que ousamos to-
16º SHCU car no nome dele?) – Demagogia e falatório,
30 anos . Atualização Crítica
mistificações e tapeações representam os
1734 programas dos políticos quando falam no
bem-estar do povo, e dos graúdos quan- Maia neste semanário, porém, é enorme e levanta
do acenam a bem-aventurança dos seus dúvidas sobre a verossimilhança com a realidade
empregados e dos seus operários. Fala o das notícias chamadas de hegemônicas. Nos leva
medo. Não fala a bondade. São inspirados a refletir sobre a construção do discurso midiático
pelo terror. Não são levados pelo amor ao e as dificuldades enfrentadas para romper com
próximo. No dia em que os governos deci- a situação.
direm de enforcar, em plena praça pública,
uma dúzia de tubarões, os que são conside-
rados agora os inatacáveis – ou “intocáveis”?
– os que estão convencidos de que mandam CONCLUSÕES
mais do que o governo, o povo terá a sua
festa. E que festa!13 (grifos meus). Como demonstrado, a atuação de Francisco Pres-
tes Maia era popular na imprensa paulistana nas
O questionamento sobre poder ou não falar de
décadas de 1930 e 1940. A consolidação de uma
Prestes Maia elucida o que foi discutido anterior-
narrativa hegemônica que tendia a supervalorizar
mente acerca da repressão midiática que dificul-
a atuação do engenheiro-arquiteto é nítida. A
tava o acesso da população às contradições do
imprensa aparentemente deixou de lado ques-
governo assim como as críticas a ele. Sustenta,
tões sociais como a problemática da segregação
além disso, a ideia de que falar sobre determi-
espacial, advinda principalmente através das de-
nados assuntos é delicado para a imprensa, e
sapropriações, que muitas vezes eram realizadas
que mais confortável é se associar ao discurso
hegemônico – talvez por este motivo os grandes de forma compulsória.
jornais tomaram esta decisão.
A intenção do artigo não é explicar por que motivos
Ao levantar aspectos importantes sobre a si- essas narrativas foram tecidas naquele período,
tuação política do país que, segundo o jornal, é porém, a relação de Prestes Maia com o governo
permeada por demagogia e falatório, e associar ditatorial do Estado Novo e a amplidão de suas
essas palavras diretamente a figura de Prestes obras são aspectos importantes e que certamen-
Maia, Il Moscone se destaca como o precursor de te contribuíram para que pouquíssimas críticas
uma narrativa contra hegemônica e rompe com sobre ele pudessem surgir na imprensa – em Il
a lógica estabelecida no período, o que deve ser Moscone é possível notar que, aparentemente,
considerado importante – mesmo que o jornal se criticar negativamente a figura de Prestes Maia
vincule aos ideais fascistas italianos. não era fácil.

O Prestes Maia representado neste caso é mais É importante notar que o semanário italiano se
humanizado, pois a narrativa não se faz apenas de posiciona contra a figura de Prestes Maia, e o faz
críticas negativas a ele. Na primeira matéria aqui de maneira humorística/satírica, além de que,
discutida, o jornal contrapõe o que é venerável ao passo que critica, também o elogia. Cheio de
em Prestes Maia, assim como o que é, ao menos, contradições, Il Moscone se faz importante pois é
problemático. Os dois lados da moeda, em minha o único jornal encontrado até o momento que se
opinião, são retratados com menos ingenuidade dispôs a se posicionar mais criticamente sobre
e não se pretende panfletário. as propostas de Prestes Maia para a cidade de
São Paulo.
Mas o repertório de notícias vinculadas com esse
teor é escasso, o que dificulta uma análise mais Já a imprensa que se intitula neste artigo como
aprofundada sobre o tema. A importância de produtora de uma narrativa hegemônica se utili-
acessar os contrapontos da gestão de Prestes zou dos melhores e mais consagrados adjetivos
para, em minha opinião, aguçar os ânimos da
13. Il Moscone. 1946, Edição 00873, p. 10. Disponível em
população e conseguir a aprovação das remode-
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bi- lações para a cidade de São Paulo. Métodos como
b=213535&PagFis=6801&Pesq=Prestes%20Maia. Último esse não são estranhos a nós e são historicamente
acesso em 12/09/2020 às 16:30. longos em nosso país.
EIXO TEMÁTICO 2 Gostaria de ter encontrado uma gama maior de
notícias de um discurso contra hegemônico, para
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS o enriquecimento do debate. Porém, acredito ter
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES sido uma demonstração da oposição, se é que
assim posso chama-lo (o jornal Il Moscone).

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1736
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EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES O estudo e o reconhecimento da cidade e dos
eventos que nela acontecem são fundamen-
tais para pensarmos novas possibilidades para
vídeo-pôster esses espaços. O tratamento da escala huma-
na, como princípio da boa prática urbanística,
tem sido sistematicamente defendido a partir
INCERTOS E AFETOS: UM do momento em que experimentamos, com di-
ficuldade, a cidade composta por malhas viá-
ESTUDO DE HUMANIZAÇÃO rias, automóveis, espaços cercados, enclaves
e in-transposições. Tendo como princípio a
ESPONT NEA EM ESPAÇOS problematização desses territórios, o presente
trabalho se propõe a fazer uma leitura espacial
RESIDUAIS através da vivência corpo-temporal, criando
uma linguagem e metodologia de identificação
e classificação de espaços – que incertos – não
UNCERTAIN AND AFFECTION: A STUDY OF
são compatíveis com a utilização por pedestres,
SPONTANEOUS HUMANIZATION IN RESIDUALS SPACES
e usos – que afetos – hora e outra retomam a di-
nâmica humana desses espaços.
FONSECA, Anne Elly Pereira
Arquiteta e urbanista; Graduação em Arquitetura e EXPERIÊNCIA URBANA DINÂMICA HUMANA DA CIDADE
Urbanismo; Universidade Federal do Estado de Minas Gerais
annefonseca83@gmail.com URBANISMO

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1740
ABSTRACT RESUMEN

The study and recognition of the city and the El estudio y el reconocimiento de la ciudad y los
events that happen in it is fundamental to think eventos que suceden en ella son fundamentales
about new possibilities for these spaces. The para pensar en nuevas posibilidades para estos
treatment of human scale as a principle of good espacios. El tratamiento de la escala humana,
urban practice has been systematically defended como principio de buena práctica urbana, se ha
since we have, with difficulties, experienced the defendido sistemáticamente desde el momento
city composed of road network, cars and enclo- en que experimentamos, con dificultad, la ciudad
sed spaces, enclaves and in-transpositions in compuesta de redes de carreteras, automóviles,
the urban landscape. Having as a principle the espacios cerrados, enclaves y transposiciones.
problematization of these territories, the present Tomando como principio la problematización de
work proposes to make a spatial reading through estos territorios, el presente trabajo propone ha-
its body-temporal experience, creating a langua- cer una lectura espacial a través de su experien-
ge and methodology for the identification and cia cuerpo-temporal, creando un lenguaje y una
classification of spaces - which are uncertain - metodología para la identificación y clasificación
are not compatible with the use by pedestrians, de espacios, que son inciertos, no son compati-
and uses - what affects - time and time again take bles con el uso por parte de los peatones. y utiliza,
up the human dynamics of these spaces. lo que afecta, una y otra vez retoma la dinámica
humana de estos espacios.

URBAN EXPERIENCE HUMAN DYNAMICS OF THE CITY


URBANISM EXPERIENCIA URBANA DINÁMICA HUMANA DE LA CIUDAD
URBANISMO
EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
A pesquisa e a análise propostas neste trabalho
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
se desenvolveram a partir da problematização
de espaços residuais dos sistemas de transporte
e tráfego na relação com a escala do pedestre.
vídeo-pôster
Certas soluções da cidade, aparentemente não
planejadas para pessoas à pé, parecem prever

INCERTOS E AFETOS: UM que elas sejam (tele) transportadas entre seus


destinos (Figura 1). Os espaços que estão entre

ESTUDO DE HUMANIZAÇÃO a casa e a estação de metrô, entre o ponto de


ônibus e a escola, entre um lado e outro da via,
ESPONT NEA EM ESPAÇOS costumam ser negligenciados do ponto de vista
do conforto e segurança da experiência do pedes-
RESIDUAIS tre. A escala e a dinâmica humanas são cada vez
menos contempladas pela dimensão urbana, e dão
espaço para veículos que deverão, sob qualquer
UNCERTAIN AND AFFECTION: A STUDY OF circunstância, fluir.
SPONTANEOUS HUMANIZATION IN RESIDUALS SPACES
Articular escalas de velocidade tão distintas como
a dos carros e a dos pedestres tem acarretado
soluções que contemplam prioritariamente os
veículos automotores. Investigar a relação do
corpo e do espaço pode gerar crítica e discus-
são em que seja possível observar a que tipo de
experiência os planejadores das cidades estão
sujeitando seus usuários pedestres, cotidiana ou
ocasionalmente. Essa dinâmica de observação
possibilita também relacionar e identificar certas
apropriações, usos e presenças que podem alterar
a escala da vivência desses espaços.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1742
Figura 1: Experiência humana em escalas incompatíveis. Fonte: Acervo pessoal. (2020)

TEORIA E CRÍTICA - INCERTOS Os esforços dos gestores e planejadores na re-


qualificação de lugares já urbanizados1, especial-
mente aqueles não centrais, são constantemente
“LEI Nº 9.503, DE 23 DE SETEMBRO DE 1997. direcionados a projetos de alteração ou de manu-
tenção do sistema viário. Tais obras são geralmen-
Art. 1º (...) te divulgadas em placas expositoras, como uma
forma de prestação de contas do investimento de
§ 1º Considera-se trânsito a utilização
verbas públicas, e que frequentemente exibem os
das vias por pessoas, veículos e animais,
temas: recapeamento do asfalto, alargamento da
isolados ou em grupos, conduzidos ou
via, construção de viaduto, construção de alça
não, para fins de circulação, parada,
viária, entre outros exemplos. Toda a escala desse
estacionamento e operação de carga ou
descarga.» (BRASIL, 1997.) tipo de construção está justificada em uma de-
manda de desafogamento do trânsito, que tende
O artigo acima citado é referente à Lei Federal que a priorizar velocidades e manobras incompatíveis
institui o Código de Trânsito Brasileiro. Apesar de com a dimensão do pedestre.
lembrar que o trânsito se refere à utilização das
vias também por pessoas, as soluções de tráfego Vários estudiosos e críticos urbanos escreveram
nas cidades possuem frequentemente um objetivo sobre como a priorização do automóvel afeta
bastante limitado: dar passagem aos carros. A negativamente a experiência humana na cidade.
malha viária, na escala da rota de veículos, tem
recebido cada vez mais investimentos e expan- 1. Atribuo aqui o termo “urbanizado” ao território loteado e
sões, muitas vezes com o pretexto de solução da habitado, cujo sistema viário, e toda infraestrutura (água,
mobilidade nos grandes centros urbanos. esgoto, iluminação pública) estejam consolidados.
EIXO TEMÁTICO 2 JACOBS (2009) atribui ao processo de contínua
requalificação e expansão viária o termo “erosão”
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS da cidade. Segundo a autora, o processo de erosão
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES é incentivado a cada vez que cidade, em seus es-
paços de permanência e atividade, perde espaço,
esse continuadamente “corroído”, para que as
ruas, avenidas e vias deem cada vez mais vazão
ao fluxo de passagem de carros, e que os lotes
vagos sejam destinados para estacionamento de
tantos veículos.

“A erosão das cidades pelos automóveis


provoca uma série de consequências tão
conhecidas que nem é necessário descre-
vê-las. A erosão ocorre como se fossem
garfadas - primeiro, em pequenas porções,
depois uma grande garfada. Por causa do
congestionamento de veículos, alarga-se
uma rua aqui, outra é retificada ali, uma
avenida larga é transformada em via de
mão única, instalam-se sistema de sin-
cronização de semáforos para o trânsito
fluir rápido, duplicam-se pontes quando
sua capacidade se esgota, abre-se uma via
expressa acolá e por fim uma malha de vias
expressas.” (JACOBS, 2009, p.389).

JACOBS (2009), na sequência, utiliza o termo


“retroalimentação positiva” para ilustrar que a
erosão das cidades é resultado de um processo
de soluções de curto prazo que não sustenta o
propósito de fluidez do tráfego de veículos por
muito tempo, e que portanto vai sempre exigir a
sobreposição de obras viárias.

“Na retroalimentação positiva, uma ação


produz uma reação que por sua vez intensi-
fica a situação que originou a primeira ação.
Isso intensifica a necessidade de repetição
da primeira ação, que por sua vez intensifica
a reação e assim por diante, ad infinitum.”
(JACOBS, 2009, p. 389).

Não é coincidência que outros autores e urbanis-


tas defendam que expandir pistas de rolamento
não soluciona os engarrafamentos, tampouco
o desafio da mobilidade. GEHL (2013) defende
a dimensão humana para o planejamento dos
espaços urbanos, e retrata a insustentabilidade
das soluções baseadas na escala de veículos au-
16º SHCU
tomotores em grandes cidades:
30 anos . Atualização Crítica

1744 “Nos esforços para lidar com a maré cres-


cente de automóveis, todo espaço disponí- segurança ou forças paramilitares para as
vel da cidade era simplesmente preenchido tarefas de imposição de limites e controle
com veículos em movimento e estaciona- de acesso”. (GRAHAM, 2016, p. 54).
dos. Cada cidade tinha exatamente tanto
tráfego quanto seu espaço permitia. Em Esse aspecto social em crescimento, firmado nas
todos os casos, a tentativa de construir várias formas de exclusão e de exclusividades,
novas vias e áreas de estacionamento para influencia enormemente na experiência da cidade.
aliviar a pressão do tráfego geraram mais Está contemplado nos espaços de bem-estar
trânsito e congestionamento. O volume do vendidos e consumidos entre seus diferentes
tráfego em quase todo lugar, é mais ou me- clientes, cada vez mais distanciados por grandes
nos arbitrário, dependendo da infraestrutu- muros, o que SECCHI (2012) chama de uma pro-
ra de transporte disponível, porque sempre gressiva privatização do próprio estilo de vida.
encontraremos novas formas de aumentar
o uso do carro; construir vias adicionais é OLIVEIRA (2018) ilustrou e explicou o cenário dessa
um convite direto à aquisição e ao uso de nova sociabilidade:
mais automóveis.” (GEHL, 2013, p.9).
“Inegavelmente a vitória conservadora e a
O processo da retroalimentação positiva é agra- desregulamentação produzida, faces da
vado pelo amplo incentivo do uso do transporte mesma moeda, estão criando uma nova
motorizado particular, pelo mercado e sustentado sociabilidade, que, por mais paradoxal que
pelo próprio governo. Entendemos que o desafio isso seja, se ancora na desregulamentação:
da mobilidade não pode ser superado por ações a permanente instabilidade resolve-se, so-
que incentivam o transporte particular individual, ciologicamente, numa dupla contradição.
mas observa-se também que a ideia da individu- Uma desesperada fuga para a vida privada,
alidade está cada vez mais presente e se contra- cuja mais forte consequência é o medo do
pondo à diversidade de existência das cidades. outro, e uma ânsia de segurança, cujo re-
sultado é a formação do “consenso dos ino-
“O que geralmente tentamos destacar é centes”, do silêncio dos inocentes. Grades,
que a cidade se torna cada vez mais o lugar muros eletrificados, guaritas em ligação
da diferença, cheia de minorias culturais, direta com a polícia, pitbulls e rottweilers,
religiosas, linguísticas, étnicas, níveis de controles eletrônicos sofisticados, “sorria,
renda, estilos de vida, arquitetura e conhe- você está sendo filmado”, câmeras indis-
cimento que tendem a fechar-se, através cretas no interior dos elevadores, sinistras
de complicados processos de inclusão-ex- polícias privadas de segurança, photocharts
clusão, dentro da própria “vila”, enclaves ou nas portarias, até a arcaica forma dos mu-
“fortaleza” (SECCHI, 2012, p. 78). Tradução ros ameaçadoramente eriçados de cacos
própria. de garrafa de alto a baixo na escala social,
dos guetos dos ricos, passando pelos con-
Também GRAHAM (2016) elucidará sobre a di- domínios da classe média, até as moradias
ferenciação, distanciamento e fechamento da mais pobres – em todos esses lugares, o
vida urbana através da admissão de uma forma Outro é a ameaça.” (OLIVEIRA, 2018, p. 95).
de vida cujo objetivo principal é a segurança, em
detrimento do encontro ou do confronto. É possível então considerar que o objeto de bem
estar, sustentado financeiramente em forma de
“A paisagem urbana está hoje povoada por carro, é também fruto desse sistema de distan-
alguns indivíduos abastados, uma classe ciamento do outro, na mesma medida em que o
média muitas vezes precária, e uma massa transporte público coletivo é uma lembrança da
de párias. Em quase toda parte, ao que pa- vida em comunidade, o lugar do encontro. Esse
rece, a riqueza, o poder e os recursos estão último é especialmente sucateado, tratado como
se tornando mais e mais concentrados nas uma questão insolúvel nas cidades. A ineficiência
mãos dos ricos e super ricos, que se isolam do sistema de transporte coletivo nos centros
cada vez mais em casulos urbanos mura- urbanos é tomada como uma verdade irrepará-
dos e implantam seus próprios sistemas de vel, cujo aumento frequente de suas tarifas tem
EIXO TEMÁTICO 2 sido inversamente proporcionais à qualidade do
serviço.
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Naturalmente o transporte coletivo ainda é um
serviço utilizado por uma parcela da população;
entretanto, em função da sua ineficiência, a fração
de uso desse meio no somatório de viagens das
cidades costuma ser aquém do ideal para fins
de mobilidade. Segundo levantamento da Asso-
ciação Nacional de Transportes Públicos - ANTP
apresentado pelo Planmob, utilizando dados de
2012, os deslocamentos por modo de transporte
se distribuiam entre 29% em transporte coletivo,
27% em automóveis, 4% em motocicletas, 4% em
bicicletas e 36% a pé (BRASIL, 2015). Consideran-
do o cenário de vias expressas e avenidas que
se sucedem no trajeto do transporte coletivo e
destacando que frequentemente esses usuários
concluem suas viagens a pé, é possível figurar a
discrepância das escalas de velocidade entre as
faixas de rolamento e a caminhada. Se na teo-
ria constatamos que a solução para mobilidade
nas cidades está voltada para o investimento
e o incentivo ao transporte público, na prática,
estamos impelindo essa população a experiências
de violência.

“[...] os grandes canais da mobilidade, fer-


rovias sobrelevadas e subterrâneas, feixes
de ruas e de viadutos, eixos equipados, as-
sociados a estacionamentos, transformam
de modo evidente as relações espaciais e
estéticas da cidade: construindo barreiras
intransponíveis, obstaculizando ou impe-
dindo relações visuais e percursos consoli-
dados por uma longa tradição, construindo
novos lugares obscuros, no-man lands, que
são apropriadas por práticas à margem da
legalidade, instaurando relações violentas,
ainda que sugestivas, com o entorno. [...]
As estruturas de mobilidade, com dimen-
sões e escalas habitualmente imponentes,
passaram a fazer parte da paisagem urbana
contemporânea: com isso há que se defron-
tar. (SECCHI, 2012, p. 113). Tradução própria.

Na experiência da caminhada, é possível observar


que grande parte das obras viárias projetadas
(rodoviárias e ferroviárias) não propõem transição
16º SHCU para a escala humana. O pedestre é exposto a
30 anos . Atualização Crítica
situações de passagem e até mesmo permanên-
1746 cia em lugares ermos, sem segurança física ou
psicológica – decorrente de presença e atividade escalas, exemplificados por dois grandes equi-
humanas. Caminhar e estar em espaços onde hou- pamentos de uso coletivo, cujas imediações são
ver mudança abrupta de escalas será, na maioria predominantemente habitacionais. Nessas duas
das vezes, uma experiência de estranhamento e conformações espaciais, podendo-se dizer que
insegurança para o pedestre. em tantas outras igualmente, o trajeto casa –
estação de metrô não costuma ser assegurado
A Figura 2 ilustra esses entornos de contraste de – física ou psicologicamente.

Figura 2: Espaços incertos – articulação das malhas viárias e grandes equipamentos; À esquerda a Estãção São Gabriel
e entorno, à direita a Estação Eldorado, ambas em Belo Horizonte. Fonte: Google Maps (2019).

É possivel notar nesses espaços um desenho -Morales endossa a ideia desses lugares serem
expressivo de vias articuladas para manobra estranhos à dinâmica urbana:
de veículos automotores, sendo que em ambos
exemplos há também a presença da linha férrea “São suas margens sem incorporação efeti-
articulando o transporte metroviário. A conjun- va, são ilhas interiores vazias de atividade,
ção desses elementos gera espaços residuais são esquecimentos e restos que permane-
significativos para a dimensão humana, se re- cem fora da dinâmica urbana. Tornando-se
fletirmos, por exemplo, sobre como a vizinhança áreas simplesmente desabitadas, inseguras
acessa esses grandes equipamentos, e como é a e improdutivas. Em suma, lugares estra-
experiência nessa transposição. nhos ao sistema urbano, exteriores mentais
no interior físico da cidade que aparecem
Esses espaços – que Secchi nomeia no-man lands, como uma contraimagem, tanto no sentido
em seus princípios de concepção, não predis- de suas críticas quanto no de sua possível
põem vocação para ocupação pelas pessoas e alternativa.” (MORALES, 1942, p. 188). Tra-
não compoem a dinâmica humana tradicional, dução própria.
considerando as trocas, o encontro, como ex-
periência fundamental da vivência da cidade. Di- BAUMAN (2001) também discorre sobre as carac-
ferentemente de praças ou parques e espaços terísticas desses espaços:
públicos, cuja natureza é serem apropriados pelos
seus usuários das mais diversas formas. “Os espaços vazios [...] são lugares não-
colonizados e lugares que nem os projetistas
Em seu capítulo denominado Terrain Vague, Solà- nem os gerentes dos usuários superficiais
EIXO TEMÁTICO 2 reservam para a colonização. Eles são,
podemos dizer, lugares que “sobram” depois
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS da reestruturação de espaços realmente
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES impor tantes: devem sua presença
fantasmagórica à falta de superposição
entre a elegância da estrutura e a confusão
do mundo ... Mas a família dos espaços
vazios não se limita às sobras dos projetos
arquitetônicos e às margens negligenciadas
das visões do urbanista. Muitos espaços
vazios são, de fato, não apenas resíduos
inevitáveis, mas ingredientes necessários
de outro processo: o de mapear o espaço
partilhado por muitos usuários diferentes.”
(BAUMAN, 2001, p. 121).

BAUMAN (2001) explica que a definição de um


não-lugar, ou espaços vazios, está relacionada
à percepção individual. Cada habitante atribui
sentido aos lugares que vivenciam, mentalizando
uma espécie de mapa da sua cidade. Na percepção
da pessoa que não atribuiu significado ou uso a
um lugar, esse será um vazio no seu mapa men-
tal, invisível e inexistente. Sendo que, para outro
habitante, eventualmente, o mesmo lugar poderá
representar um espaço de significância resultada
de alguma forma de apropriação e afetividade.

A significância e o sentido do lugar também são


atribuídos ao modo de experiência do usuário.
Alguém que viaja sempre com o carro exclui a
experiência ou apresenta outra forma de relação
com o local. Afinal, seu percurso possui início e
fim extremamente delimitados do ponto de vista
localizacional, considerando que, na ação dentro
do automóvel, os níveis corporais (físicos e psico-
lógicos) da experiência são passíveis de “suspen-
são” em relação ao território. Assim como quem
viaja de ônibus passará pela vivência do espaço a
partir do ponto de ônibus, que configura o ponto
de toque com o território, conferindo outro nível
de interação com o lugar.

O afeto, o sentido e a apropriação das pessoas


pelos espaços incertos através da experiência
podem incitar a vida como uma atração urbana
e criar a sensação de segurança simplesmente
pelo fato de haverem pessoas. JACOBS (2009),
e também GEHL (2013), retratam a importância
16º SHCU da presença das pessoas nos espaços como ca-
30 anos . Atualização Crítica
talizadora da dinâmica necessária para a vida
1748 urbana. Jan Gehl também argumenta sobre a
função da presença: “Escolher caminhar por uma não raro em parcerias público-privadas.
rua deserta ou uma rua movimentada, a maioria
das pessoas escolheria a rua cheia de vida e ati- O processo em desconsiderar ou deslegitimar
vidade. A caminhada será mais interessante e esses usos em defesa da melhoria e da quali-
segura.” (GEHL, 2013, p. 25). ficação do espaço físico está profundamente
ligado a um processo de gentrificação. Se por
Incertos e afetos, para fins de observação, são um lado o lugar antes ignorado era passível de
indicadores da indiferença ou da apropriação por alguma forma de sociabilidade por parte de uma
parte de pessoas (escala de velocidade 5km/h) comunidade, trazê-lo à visibilidade em forma de
e também objetos (fixos ou temporários) em es- melhorias arbitrárias (em várias níveis espaciais)
paços gerados pela lógica de desafogamento do pode provocar a expulsão desses usuários ante-
fluxo de veículos (escala de velocidade 60km/h). A riormente estabelecidos e simpatizantes desses
potencial expectativa e usabilidade são aspectos espaços. Em decorrência da chegada do capital,
do vazio fundamentais para a existência ou retor- o investimento em forma de melhoria gera a va-
no da dinâmica humana na cidade, mas também lorização da área investida, consequentemente
refletem e tornam evidentes demandas não con- advém o aumento do custo de vida e perseguição
templadas pelo urbanismo institucional, e por isso de atividades e agentes indesejáveis. O processo
são frequentemente improvisadas informalmente. é concluído com a apropriação por parte de uma
camada da sociedade que esteja disposta a pagar
por esse novo modelo do espaço.

INSPIRAÇÃO - AFETOS A partir de SMITH (2012) podemos entender que:

“A gentrificação anuncia uma conquista


Apesar desse cenário de hegemomia dos automó-
de classe sobre a cidade. Os novos pionei-
veis na cidade, existe, em determinadas soluções,
ros urbanos tentam apagar a geografia e a
uma contraposição àquele modelo de grandes
história da classe trabalhadora da cidade.
vias áridas e espaços sem significado. Consti-
Na medida em que refazem a geografia
tuem doses homeopáticas de melhorias urbanas,
da cidade, reescrevem sua história social
justificadas pelo discurso de uma cidade para como justificativa preventiva para o novo
as pessoas. Essas propostas de requalificação futuro urbano. ” (SMITH, 2012, p. 67). Tra-
do espaços urbanos são certamente voltadas dução própria.
para o pedestre e sua escala humana. Iniciativas
como instalação de mobiliário urbano, ciclovias, Para o autor, uma nova geografia social da cidade
fechamento de rua para trânsito de carros, “aca- está emergindo, mas seria ingênuo pensar que
demia da cidade”, parklets, tem sido cada vez mais é um processo pacífico. “É difícil ser otimista e
comuns como medidas para atrair pessoas para pensar que a próxima onda de gentrificação trará
espaços públicos e ocupação da cidade. Essas uma nova ordem urbana mais civilizada que a
humanizações constituem modelos da cidade anterior.” (SMITH, 2012, p.71). Tradução própria.
formal, de certa forma institucionalizado.
As intervenções urbanas que não observam afetos
A disposição em se identificar afetos – esses usos existentes constituem um processo violento de
e presenças espontâneas, especialmente aqueles descaracterização do espaço e de eventos por
sobrevindos em espaços incertos, é oriunda da motivo especialmente econômico, de interesse
necessidade de atenção à fragilidade dessas ma- de um capital que se apropria de práticas de vi-
nifestações, da importância em dar legitimidade vência da cidade para se sustentar. Considerando
para que se sustentem. Os usos espontâneos dos que o afeto seja uma resposta que reflete as ne-
espaços são constantemente ignorados pelas cessidades e anseios desses usuários, constitui
entidades provedoras dessas melhorias urbanas. em si uma pista legítima de que algo precisa ser
É muito comum que intervenções dessa qualidade revisto. Ignorar sua existência significa varrê-lo,
não contemplem determinados tipos de apro- desprezável e repetidamente, para debaixo dos
priação e presenças existentes e selecionem um tapetes sócio-periféricos da cidade. A maneira
modelo de ocupação de escolha dos investidores, como intervimos no espaço, em se tratando de ur-
EIXO TEMÁTICO 2 banismo, é reflexo da própria organização social,
considerando que o inverso também é verdadeiro.
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS Para Richard Rogers (GEHL, 2013), “Bairros bem
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES planejados inspiram os moradores, ao passo que
comunidades mal planejadas brutalizam seus
cidadãos. [...] Nós moldamos as cidades, e elas
nos moldam.”

Observar a pós-ocupação e a pós-relação das


intervenções nas cidades pelos seus usuários é
fundamental para entender as consequências de
certos tipos de soluções aplicadas pelos planeja-
dores e para identificar aspectos que poderiam
aprimorar a percepção e reconhecimento dessas
áreas e suas potencialidades. Como pensadores,
interventores e entusiastas na criação e formu-
lação de espaços que promovam bem estar nas
cidades, faz-se necessária a atenção à experiên-
cia do espaço, no caso do presente estudo, dos
incertos e afetos voltados à sua vivência sensorial.

PERCEPÇÃO – O CAMPO

A ideia em se analisar e observar eventos de apro-


priações de espaços incertos, identificando-os e
classificando-os, possibilitou a criação um mé-
todo para percepção desses espaços e humani-
zações – incertos e afetos. O fator principal está
na prática sensorial visual, sonora, olfativa, tátil e
psicológica para o reconhecimento de iniciativas
de eventualidades espontâneas desses espaços.
A documentação da vida na cidade pode ser um
importante instrumento para o desenvolvimento
urbano (GEHL, 2013, p.16). A partir de uma leitura
da cidade e da experiência das pessoas com essas
intervenções, é possível oferecer ferramentas
para que se aprimore o desenho dos espaços
públicos.

“Muitas disciplinas agora retornaram à ex-


periência como a principal fonte de conhe-
cimento. É um retorno profundamente mar-
cado pela recuperação do senso comum, de
um sentimento e fala comuns, que afasta
os léxicos, gramáticas e sintaxes típicas do
conhecimento institucionalizado. (...) Para
os planejadores urbanos, isso significava
16º SHCU recuperar olhares antigos e técnicas de
30 anos . Atualização Crítica
observação: voltar a andar na cidade e no
1750 território, conversando, de maneira mais
ou menos fortemente estruturada, com espaço a ser vivenciado poderia ser qualquer um
seus habitantes, estudando relações. Você em que se contemplasse a configuração espacial
desenha entre o mundo dos objetos e o dos comum a grandes equipamentos situados em
sujeitos. Ao reconstruir as características avenidas/rodovias dentro de uma área habitada.
fundamentais da experiência ordenada da
cidade e do território, o planejamento urba- Um aspecto importante nesse estudo se tratou
no redefiniu seu objetivo nos últimos anos.” especialmente da disposição físico presencial
(SECCHI, 2012, p. 141). Tradução própria. no espaço, assim como a intimidade com o lugar
pode facilitar ainda mais o acesso, não somente
espacial, como o de proximidade e identificação
social com os usuários. O fato de eu ser moradora
Reconhecimento do Espaço e do Usuário do município de Betim, Região Metropolitana de
Belo Horizonte, levando em conta a localização da
As soluções viárias e as conformações urbanas minha própria residência e vivência no território,
consequentes dessas são recorrentes e correla- corroborou para a seleção do entorno do Shopping
tivas em territórios urbanizados. Assim sendo, o Monte Carmo – Betim como estudo de caso.

Figura 3: Localização do Monte Carmo Shopping e situação da Av. Marco Tulio Isaac. Fonte: Edição sobre Google Imagens
(2020).

O Monte Carmo Shopping está localizado na Av. cidade que o circundam geram uma quebra de
Marco Tulio Isaac (Figura 3). Sua construção foi escala relacional.
concluída em 2014 numa área já urbanizada, entre
bairros já consolidados. Como fundamento, assim Para esse e a maioria dos shoppings, o usuário
como a maioria dos centros comerciais fechados, padrão é claramente aquele que chega num au-
o Shopping “naturalmente” é constituído de um tomóvel. As entradas externas não facilitam ao
grande objeto arquitetônico, climatizado e seguro, usuário pedonal, havendo uma única entrada cen-
cuja exterioridade (o clima, o tempo, a calçada) tral exclusiva para pedestres, através de escada e
não lhe é de interesse. A expressiva proximida- elevador para a Av. Marco Tulio Isaac, e 02 grandes
de entre os bairros residenciais e a dinâmica de acessos para veículos nas extremidades. Consi-
EIXO TEMÁTICO 2 derando esses aspectos, é raro que um usuário
comum tenha o costume e o hábito de chegar ao
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS Monte Carmo Shopping a pé. Entendendo que a
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES experiência a ser explorada era sempre aquela
da caminhada, direcionei a pesquisa a um perfil
de usuário que frequentemente precisasse ser
pedestre no entorno daquele lugar: os funcio-
nários das lojas.

Tendo então definido o usuário, portanto o perfil


locutor da vivência do espaço, foi possível desen-
volver um roteiro de entrevista feito com 17 fun-
cionários. Primeiramente, a identificação do meio
pelo qual eles chegavam até o local de trabalho: 02
funcionários realizavam o percurso casa-trabalho
com seus veículos particulares; 13 utilizavam o
transporte coletivo, e completavam o percurso
ponto de ônibus-trabalho a pé; os outros 02 fa-
ziam o percurso todo a pé. Além da identificação
do modal de transporte, no desenvolvimento das
entrevistas foi possível identificar as seguintes
informações: a) A origem do trajeto: de que bairro
o funcionário vem até o local de trabalho; b) por
onde ele vem: qual o trajeto que o funcionário faz;
c) qual a sensação em caminhar na área exterior
ao Shopping e adjacências.

As informações “de que bairro” e “como”, deram


origem ao produto Mapa de Origem, que serviu
para caracterização desses usuários. Foi possível
observar que a origem das viagens dos funcioná-
rios era bastante diversificada, alguns inclusive
oriundos de municípios vizinhos. A informação
“por onde” viabilizou a identificação de quatro
percursos diferentes. Essa informação foi es-
sencial para o desenvolvimento dos produtos do
trabalho, relacionados a seguir. Os relatos sobre
a sensação do caminho serviram para qualificar
os trechos de percurso, informação também
utilizada conforme descrição.

A partir da identificação das rotas cotidianas dos


usuários, o próximo passo era o registro da experi-
ência do corpo no território. Para tal, cada trajeto
foi documentado áudio-visualmente e separados,
gravados em tempo real de uma caminhada, em
dia de semana, no horário comercial. Consideran-
do o caráter da experiência do registro, obviamen-
te em 01 viagem (caminhada) não terá sido possível
16º SHCU captar a amplitude da vivência cotidiana que um
30 anos . Atualização Crítica
usuário poderá ter em seus horários diários de ida
1752 e volta, ao caminhar num dia de chuva ou de sol,
ao trabalhar num domingo ou na segunda-feira. Os manuais
Em razão disso, as informações qualitativas for-
necidas pelos entrevistados sobre a sensação da Tendo registrado e visualizado os trajetos dos usu-
caminhada serviu de complemento para o mesmo ários lojistas e utilizando dos termos teóricos, que
registro. Nesse momento do estudo, o material dizem respeito linguístico e conceitual aos afetos
de campo consistia em quatro vídeos.
e incertos, observando e destacando aspectos
e elementos que caracterizaram a experiência
de espaços e seus usos, foi possível a criação de
Breve retorno teórico dois manuais: o Manual de Incertos, e o Manual
de Afetos, que ilustram, através de fotografias,
recortes das filmagens e diagramas, as formas de
Para gerar a narrativa e conceituação do proble-
leitura das experiências de afetos e incertos do
ma, foi explorada a bibliografia, até aqui referen-
ponto de vista do pedestre. A linguagem gráfica e
ciada, que tratavam de aspectos conceituais do
verbal dos conceitos trazidos nos manuais torna
objeto de estudo. A partir da leitura teórica, foram
selecionados termos e expressões que os autores possível um modo de convenção e, paratanto,
utilizaram em cada texto. Após a indicação desses um método, de identificação e caracterização
termos, foi possível traçar linhas de diálogo e dos elementos.
ligação entre as abordagens dos autores. Des-
Os manuais trazem conceitos e elementos ca-
sa forma, destaca-se também, nos termos não
racterizando “enclaves”, “cercamento”, e outras
ligados a outros, o discurso singular tratado por
imagens linguísticas trazidas para a criação de
cada um, portanto direcionamentos diferentes
uma linguagem própria, criando termos como
sobre o mesmo objeto.
“apatia”, “estranhamento” e “vazio”, e suas varia-
A partir de então, para tornar a experiência na ções, para exemplificar e relacionar conjuntos
cidade e dos percursos algo tangível à sua leitura, de elementos e organização do espaço com as
fez-se necessário criar uma espécie de vocabulá- sensações que eles podem provocar (Figura 4).
rio ilustrativo. Algo que convencionasse um enten- Outros elementos de presença descritos como
dimento prévio para tratar das situações vividas “Humanizações” híbrida, de resquício ou formal,
em campo. Termos como “enclave” e “incerto” através dos quais eu identifico e ilustro no que
acabam requerendo um nivelamento primário consistem, sempre exemplificando nas fotogra-
de significado para que o leitor possa fazer uma fias oriundas das gravações do trajeto ou em ou-
imagem mental. tros eventos de observação.

Figura 4: Diagrama exemplo dos manuais. Fonte: Acervo Próprio (2019).

Registro de Experiência gráfica. Os registros chamados de experiência


serviram para análise espacial e temporal da vi-
Após criar a linguagem textual e imagética atra- vência destes espaços. A partir desse material foi
vés dos manuais, a documentação audiovisual possível criar os Mapas Temporais de Percurso,
dos percursos foi lida e traduzida numa leitura que consistem em linhas do tempo com frames de
EIXO TEMÁTICO 2 cada gravação que permite visualizar, no percur-
so, a distribuição do tempo, qualidade do espaço
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS e dos acontecimentos audiovisuais, tais como a
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES presença de pessoas, peças publicitárias, obje-
tos fixos, latidos de cachorros nas casas, etc. Os
mapas foram elaborados com os dados dos vídeos
e relatos dos entrevistados, que descreveram
pontos específicos de seus trajetos. O produto
“Mapa temporal de percurso” (Figura 5), além de
ter sido um instrumento de visualização gráfica
que possibilitou melhor entendimento do tempo
e do espaço durante o processo, é também um
produto diagnóstico com a aplicação da lingua-
gem e conceitos criados nos Manuais.

Figura 5: Mapa Temporal de Percurso. Fonte: Acervo Pró-


prio (2019).

Uma vez tendo distribuído graficamente o tempo


e espaço no mapa temporal (linha do tempo), foi
possível explorar outra dimensão da experiência
com a elaboração de outro produto de análise: o
Gráfico-Relógio (Figura 6). O gráfico criado para
cada percurso possibilitou a visualização da ex-
periência em partes e pelo todo, quantificando o
tipo da experiência no tempo. Significa perceber
por quanto tempo o usuário percorre um gradil
totalmente fechado, ou em quanto por cento do
tempo de seu percurso ele está sujeito à espaços
sem vizinhança imediata.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1754
Figura 6: Gráfico Relógio. Fonte: Acervo próprio (2019).

CONSIDERAÇÕES FINAIS REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

A relação corporal com a cidade e a sensibilidade


à experiência do pedestre são elementos funda- BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio
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16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1756
1757
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES O território da atual Região do Grande ABC, no
setor sudeste da Região Metropolitana de São
Paulo, passou por quase três séculos adorme-
vídeo-pôster cido, mas viveu uma intensa fase de desenvol-
vimento a partir da segunda metade do século
XX. A Região recebeu investimentos industriais,
INDÚSTRIA E TERRITÓRIO NA principalmente a partir de 1950, tornando-se o
maior cluster industrial da América Latina. En-
REGIÃO DO GRANDE ABC NOS tretanto, desde 1970, as cidades industriais no
mundo têm assistido a uma profunda mudança
ÚLTIMOS 70 ANOS: QUESTÕES no paradigma industrial devido às transforma-
ções relacionadas à financeirização da eco-
SOBRE A CRISE DE UM nomia e à reestruturação industrial, levando à
formação de grandes áreas industriais ociosas.
MODELO O modelo de produção em massa nas grandes
cidades industriais tornou-se complexo, dei-
xando muitas perguntas sem respostas. A par-
INDUSTRY AND TERRITORY OF THE GREAT ABC REGION
tir da década de 1990, o Grande ABC começa a
IN THE LAST 70 YEARS: QUESTIONS ABOUT THE
apresentar vários problemas com a saída das
CRISIS OF A MODEL
empresas da Região, colocando em xeque a sua
vocação industrial. Este artigo objetiva apre-
INDUSTRIA Y TERRITORIO EN LA GRAN REGIÓN ABC
sentar as mudanças territoriais ocorridas nas
EN LOS ÚLTIMOS 70 AÑOS: CUESTIONES PREGUNTAS
sete cidades da Região desde o processo de in-
SOBRE LA CRISIS DE UN MODELO
dustrialização até a reestruturação industrial,
buscando analisar as seguintes questões: quais
YAMAUCHI, Gisele foram as transformações e os efeitos que a in-
dústria promoveu nos territórios da Região do
Doutoranda em Arquitetura e Urbanismo, Universidade
Grande ABC nos últimos 70 anos? Como pensar
São Judas
giseleyamauchi@yahoo.com.br as cidades industriais do século XXI? As experi-
ências mostram que os problemas gerados por
TOURINHO, Andréa de Oliveira essas transformações econômicas ganharam
complexidade na medida em que aumentaram
Profa. Dra. no Programa Stricto Senso em Arquitetura e
as crises econômicas e tensões entre os atores
Urbanismo, Universidade São Judas
andrea.tourinho@saojudas.br
sociais. Verifica-se, assim, o enfraquecimento
dos debates institucionais, levando a um hiato
nas discussões regionais sobre a pauta da saída
das indústrias, colocando-se em risco o futuro
da Região.

REGIÃO METROPOLITANA ÁREAS INDUSTRIAIS OCIOSAS


DESENVOLVIMENTO URBANO REGIONAL

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1758
ABSTRACT RESUMEN

The Greater ABC Region went through almost 3 La Gran Región ABC pasó una fase intensa de de-
centuries dormant and had an intense phase of sarrollo desde la segunda mitad del siglo XIX. La
development from the second half of the 19th cen- Región recibió inversiones industriales, princi-
tury. The Region received industrial investments, palmente después de 1950, convirtiéndose en el
mainly after 1950 - becoming the largest industrial clúster industrial más grande de América Latina.
cluster in Latin America. However, since 1970 the Desde 1970, las ciudades industriales del mundo
industrial cities in the world have lived a great pa- han vivido un gran paradigma en relación con las
radigm in relation to the transformations for the transformaciones para la financiarización de la
financialization of the economy and the industrial economía y la reestructuración industrial, lo que
restructuring - leading to the formation of indus- lleva a la formación de áreas industriales inac-
trial void areas. The mass production model in lar- tivas. El modelo de producción en masa en las
ge industrial cities around the world is in contes- grandes ciudades industriales de todo el mundo
tation and there are unanswered questions. Since se ha vuelto complejo y hay preguntas sin res-
the 1990s, the Greater ABC Region has a problem, puesta, como las zonas industriales inactivas
putting the regional industrial vocation in check, desde 1990 en la Región. Este artículo tiene como
as there are records of companies leaving the Re- objetivo presentar los cambios territoriales del
gion. This article aims to present the territorial proceso de industrialización a la reestructuraci-
changes from the industrialization process to the ón industrial en las siete ciudades de la Región y
industrial restructuring and also answer: what responder: ¿cuáles fueron las transformaciones y
were the transformations and the effects that los efectos que la industria ha promovido en los
the industry has promoted in the Greater ABC Re- territorios de la Gran Región ABC en los últimos
gion in the last 70 years? How to think industrial 70 años? ¿Cómo pensar las ciudades industriales
cities in the new paradigm of the 21st century? frente al nuevo paradigma del siglo XXI? Las ex-
Experiences show that the problems generated periencias muestran que los problemas genera-
by these economic changes have become more dos por estos cambios económicos se han vuelto
complex as economic crises and tensions betwe- más complejos a medida que se producen crisis
en social actors have occurred. Consequently, it económicas y tensiones entre los actores socia-
contributed to the weakening of the institutional les. En consecuencia, contribuyó al desgaste de
debates carried out during the 1990s, leading to los debates institucionales durante la década de
a hiatus in regional discussions on the agenda for 1990, lo que condujo a una pausa en las discusio-
the exit of industries putting the future of the Re- nes regionales sobre la agenda para la salida de
gion at risk. las industrias, poniendo en riesgo el futuro de la
Región.

METROPOLITAN REGION INDUSTRIAL VOID AREAS


URBAN AND REGIONAL DEVELOPMENT REGIÓN METROPOLITANA ZONAS INDUSTRIALES INACTIVAS
DESARROLLO URBANO Y REGIONAL
EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
Ao longo do tempo, a humanidade vem testemu-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
nhando várias sobreposições de camadas histó-
ricas no território urbano. Grandes cidades surgi-
ram e caíram em ruínas, outras novas nasceram
vídeo-pôster
sob diversas formas de organização econômica
e social. Desde o século XVIII, com a Revolução

INDÚSTRIA E TERRITÓRIO NA Industrial de 1760, o modelo de desenvolvimento


econômico e social calcado na indústria predomi-

REGIÃO DO GRANDE ABC NOS nou no mundo ocidental. As indústrias passaram


a ocupar o seu espaço, promovendo um conjunto
ÚLTIMOS 70 ANOS: QUESTÕES de transformações sob diversas perspectivas no
tecido urbano, formando assim as grandes cida-
SOBRE A CRISE DE UM des industriais. Entretanto, durante a transição
entre os séculos XX e XXI, devido às alterações na
MODELO forma de acumulação capitalista e nos avanços
tecnológicos da Terceira e da Quarta Revoluções
Industriais, a sociedade passou a transitar de uma
INDUSTRY AND TERRITORY OF THE GREAT ABC REGION economia industrial para uma chamada etapa
IN THE LAST 70 YEARS: QUESTIONS ABOUT THE pós-industrial, relacionada à era da informação.
CRISIS OF A MODEL
Essa transição vem promovendo uma série de
INDUSTRIA Y TERRITORIO EN LA GRAN REGIÓN ABC novas transformações em diversos espaços urba-
EN LOS ÚLTIMOS 70 AÑOS: CUESTIONES PREGUNTAS nos pelo mundo. É nesse contexto que se insere a
SOBRE LA CRISIS DE UN MODELO Região do Grande ABC, situada no setor sudeste
da Região Metropolitana de São Paulo e formada
pelos municípios de Santo André, São Bernardo
do Campo, São Caetano do Sul, Diadema, Mauá,
Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra, sendo co-
nhecida como o segundo maior polo industrial do
país. A Região do Grande ABC se industrializou
entre o período de 1890 a 1989 e passa pelo pro-
cesso de desconcentração industrial desde 1990.
Esta história da indústria na Região é composta
por quatro fases: a) a chegada das indústrias de
produtos não duráveis e de base, com empresas
de capital estatal, privado e estrangeiras; b) os
investimentos das indústrias de produtos durá-
veis, com indústrias multinacionais fordistas de
capital nacional e estrangeiro; c) recebimento de
inversões de indústrias de bens de capital e indús-
trias estatais, objetivando completar o processo
de industrialização com a produção de máquinas
e equipamentos com capital estatal e estrangeiro;
e, d) as mudanças como a financeirização da eco-
nomia e a reestruturação produtiva que levaram
ao processo de saída das empresas, e que pode
ser dividido em duas fases: a primeira, entre 1989
16º SHCU
a 2000 e, a segunda, entre 2001 a 2019.
30 anos . Atualização Crítica

1760 Posto isso, quais são as transformações que a


indústria tem trazido para a Região do Grande portava o café para o Porto de Santos passando
ABC nos últimos 70 anos? O objetivo desse artigo pela Região do Grande ABC, levou a inúmeras
é apresentar as mudanças nas cidades da Região mudanças na paisagem urbana, econômica, so-
do Grande ABC Paulista causadas pela indús- cial na região: o surgimento de comércio, o es-
tria, bem como expor as experiências e lições tabelecimento de escritórios de serviços ligados
aprendidas nas ações acerca da temática e o seu ao transporte do café, a chegada de imigrantes
rebatimento no espaço urbano, que envolvem italianos e de outras nacionalidades, entre outros
aspectos econômicos, urbanos, sociais, entre (LANGENBUCH, 1971; KLINK, 2001; SILVA, 2006).
outros. Este estudo utilizou como metodologia O deslocamento do eixo econômico do Estado do
o levantamento histórico, bibliográfico e pes- Rio de Janeiro para o Estado de São Paulo também
quisa de dados quantitativos sobre a Região. contribuiu para o crescimento e desenvolvimento
Com base nas fases acima indicadas, este ar- da região, que já não era mais apenas um caminho
tigo é composto por quatro partes. A primeira de passagem.
apresenta o desenvolvimento industrial tímido,
que depois ganha força, levando a um processo Entre 1890 e 1940, a Região do Grande ABC usu-
caótico de urbanização sem planejamento e pro- fruiu do processo de formação da grande metró-
movendo efeitos econômicos, sociais e urbanos. pole paulista, cuja expansão industrial ocorreu ao
A segunda parte expõe o paradigma que a Região longo da linha férrea nos núcleos de São Caetano
do Grande ABC viveu a partir do final do século do Sul, São Bernardo (hoje conhecido como a ci-
XX até as duas primeiras décadas do século XXI, dade de Santo André) e Ribeirão Pires (FREITAS,
com as bases industriais fordistas “modernas” 2008; BARROS, 2013). Klink (2001) destaca que
passando por desafios e contestações devidos às esses pequenos povoados-estação passaram
alterações no modo de acumulação capitalista, a nuclear investimentos de pequenas indústrias
aos avanços tecnológicos da terceira e da quarta nacionais e de algumas empresas estrangeiras
revolução industrial, colocando questionamen- de bens de consumo não duráveis.
tos quanto ao futuro da Região. A terceira parte
mostra uma curta retomada nos investimentos No cenário nacional, a partir de 1930, o governo
durante a primeira década do século XXI, embora de Getúlio Vargas iniciou o processo de indus-
continue o problema de saída das empresas da trialização do país, atuando como agente indutor,
Região, levantando a novos desdobramentos dos regulamentador, produtor e financiador por meio
problemas, gerando mais incertezas; enquanto a da criação de empresas estatais – fundando as
última parte deste trabalho apresenta as consi- bases da industrialização no país – na área da
derações finais, em que se indicam os pontos a siderurgia, petróleo, aeronáutica, hidrelétricas,
serem contemplados pelos atores sociais para o entre outras (MARQUES; REGO, 2013). As indústrias
delineamento de planos futuros diante das incer- de base foram fundamentais para a instalação das
tezas que assombram essa importante Região. empresas fordistas que se instalaram no país a
partir da década de 1950. A Região Sudeste, espe-
cialmente a cidade de São Paulo e região, vivia um
período de crescimento industrial e populacional.
CRESCIMENTO, DESENVOLVIMENTO E
DESIGUALDADE ECONÔMICA, SOCIAL E URBANA Langenbuch (1971, p. 142) afirma que, além da
cidade de São Paulo viver uma grande especu-
Entre os anos de 1560 a 1870, o território da atual lação imobiliária, “a faixa São Caetano-Santo
Região do Grande ABC – conhecida como São Ber- André é a única porção dos arredores paulista-
nardo da Borda do Campo (hoje cidade de Santo nos a se transformar em verdadeira zona indus-
André) – possuía importância apenas como “ca- trial urbana” entre 1915 e 1940, atraindo cada vez
minho de passagem” para São Paulo de Piratinin- mais novos moradores, principalmente a classe
ga. Com o estabelecimento e fortalecimento da média”. A linha férrea Santos-Jundiaí favoreceu
economia cafeeira no Brasil, o destino da Região imensamente Santo André, atraindo a instalação
do Grande ABC começou a mudar. das indústrias, e levando às transformações no
território urbano. Assim, ocorreram também a
A partir de 1870, a chegada da ferrovia, que trans- abertura de loteamentos, inaugurando as cons-
EIXO TEMÁTICO 2 truções de bairros residenciais entre 1906 a 1940
(PASSARELLI, 1994; TÍZIO, 2009). A linha férrea
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS não passava pelo município de São Bernardo do
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Campo, fazendo com que o município se desen-
volvesse numa velocidade mais lenta que Santo
André. A cidade também recebeu imigrantes no
início do século XX, entretanto, passou a crescer
mais com a inauguração da Via Anchieta em 1947,
atraindo, investimentos de várias empresas para
a cidade.

A partir da década de 1950 até a década de 1970,


com o lançamento do Plano de Metas, do então
Presidente da República, Juscelino Kubistchek,
o país estava envolto em ideias desenvolvimen-
tistas. O plano era composto de 30 metas nos
setores de energia, transportes, alimentação,
indústrias de base e educação. A cidade de São
Paulo apresentava um esgotamento de terre-
nos disponíveis para a expansão da indústria,
e os espaços disponíveis possuíam valores de
mercado muito altos (LANGENBUCH, 1971). Em
contrapartida, as cidades da Região do Grande
ABC, além de possuírem grandes quantidades de
terrenos disponíveis com preços menores que a
capital, tinham assistido a um processo de migra-
ção interna e externa que possibilitou a formação
de um contingente de mão-de-obra, necessário
para trabalhar nas indústrias.

Com a vinda da indústria automobilística para pro-


duzir automóveis, caminhões e ônibus, a Região
passou também a concentrar massivos investi-
mentos de diversas empresas multinacionais e
nacionais fordistas ligadas ao setor de produção
em massa, encorajando novos investimentos em
outras áreas de produção, como eletroeletrô-
nicos, eletrodomésticos, entre outros tipos de
produtos. Essas empresas se instalaram nas ci-
dades de São Bernardo do Campo e Diadema, ao
longo da malha rodoviária, nas Rodovias Anchieta
e dos Imigrantes, deslocando, assim, o eixo de
expansão industrial da linha ferroviária para a
malha rodoviária.

Langenbuch (1971, p. 194-195) retrata que esse des-


locamento do eixo industrial também promoveu
alterações de mobilidade urbana, como é o caso
do aumento de viagens oferecidas pelos meios de
16º SHCU transporte ferroviário e de linhas de ônibus entre
30 anos . Atualização Crítica
a capital e os municípios da Região do Grande
1762 ABC. Havia, também, um aumento expressivo no
número de automóveis de passageiros na Região, No cenário nacional, nesse período, conformou-
que circulava cada vez mais dentro das cidades -se um importante tripé econômico: empresas
da Região e para a capital paulista. A Rodovia multinacionais com capital estrangeiro; grandes
Anchieta, que passa por São Bernardo do Campo, empresas nacionais fabricantes de produtos e
exerceu grande importância como eixo Rodoviário médias empresas nacionais fornecedoras das
ao Porto de Santos para a instalação dessas novas empresas multinacionais com o capital nacional
empresas multinacionais, especialmente de gran- – ambos os tipos presentes na Região do Grande
de parte das montadoras de veículos e empresas ABC; e, ainda, empresas estatais com capital
da cadeia produtiva (Figura 1). Ao mesmo tempo, estatal (MARQUES; REGO, 2013).
o problema de falta de moradia na Região levou
ao surgimento das favelas. As empresas multinacionais têm as seguintes
características: necessitam de grandes terre-
nos e galpões para produção em massa e grande
contingente de mão-de-obra especializada, maior
importância do custo do trabalho, possuem inten-
sivas ligações dentro da cadeia produtiva, proces-
sos de produção estáveis e produtos com baixa
diferenciação, entre outras. Contudo, os investi-
mentos em inovação e tecnologia se concentram
nos países centrais onde estão suas empresas
matrizes (CONCEIÇÃO, MONEA & YAMAUCHI, 2018).

Langenbuch (1971) afirma que a chegada de


grandes empresas na Região contribuiu para a
emancipação político-econômica de distritos que
antes pertenciam à cidade de Santo André até a
década de 1940, levando aos desmembramentos
municipais durante as décadas de 1950 e 1960
– formando, assim, novas cidades, conforme a
Quadro 1 abaixo:
Figura 1: Vista aérea da fábrica da Volkswagen na Via Anchie-
ta, na década de 1960. Ao fundo, o início da favela do bairro
Montanhão. Foto: Nelson Kon. Fonte: LONGO (2002, p. 60).

1940 1950 1960 1967


Santo André Santo André Santo André Santo André
Mauá Mauá
Ribeirão Pires Ribeirão Pires
Rio Grande da Serra
São Caetano São Caetano São Caetano do Sul
São Bernardo do Campo São Bernardo do Campo São Bernardo do Campo
Diadema Diadema

Quadro 1: Desmembramentos Municipais na Região do Grande ABC 1940 e 1967. Fonte: LANGENBUCH (1971, p. 230).

A intensificação da industrialização no Brasil, no e a chegada de migrantes vindos de várias regi-


período entre 1950 e 1970, promoveu um aumento ões do país. Não havia políticas urbanas no país
no fluxo migratório dentro do território brasileiro voltadas para o saneamento básico, de acesso à
(MARQUES; REGO, 2013). Durante as décadas de luz elétrica e à habitação, levando ao crescimento
1960 e 1970, a Região viveu um de seus períodos de urbano desordenado e excludente.
crescimento populacional, início da verticalização
EIXO TEMÁTICO 2 A Região do Grande ABC vivia um paradoxo: havia
uma grande produção de riquezas e crescimen-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS to econômico, contribuindo diretamente com o
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES crescimento do Produto Interno Bruto Brasileiro
durante o Milagre Econômico (1968-1973) – taxa
de crescimento de 14% em 1973, mas, ao mesmo
tempo, a população vivia sob uma grande desi-
gualdade social (LEITE, 2000; CONCEIÇÃO, 2006).
Eram visíveis os problemas da Região do Grande
ABC, como a falta de acesso ao saneamento bá-
sico, luz elétrica e à habitação, assim, levando à
formação de núcleos residenciais precários – as
favelas, conforme Figura 2.

Figura 2: Favela Tamarutaca, em Santo André, na déca-


da de 1970. Fonte: Movimento de defesa dos direitos de
moradores em núcleos habitacionais, 1970.

O período entre os anos de 1974 a 1980, no ce-


nário nacional, compreendeu a terceira fase da
industrialização brasileira com o adensamento do
parque industrial nacional. O país já estava sob
a ditadura militar, sustentada, pelos militares,
na manutenção do crescimento econômico. O II
Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND) foi
criado em 1974 e buscou completar o processo de
industrialização brasileira, atraindo investimentos
de empresas de bens de capital (produção de má-
quinas e equipamentos). Na Região do Grande ABC
também houve reflexos, como é o caso dos inves-
timentos e instalações de empresas de máquinas
e equipamentos no município de São Bernardo do
Campo e a construção da indústria petroquími-
ca na cidade de Mauá. Ao mesmo tempo, novos
polos industriais - como no caso da Região de
Campinas, com terrenos vazios e mão-de-obra
16º SHCU com menores custos -, surgiram e receberam
30 anos . Atualização Crítica
novos investimentos com fábricas mais moder-
1764 nas, abrindo concorrência em relação à Região
do Grande ABC (KLINK, 2001; CONCEIÇÃO, 2006). nário brasileiro nas décadas de 1980 e 1990 e ga-
nharam força com o alto endividamento interno e
A inauguração da Rodovia dos Imigrantes em 1976, externo, bem como com a alta inflação, tendo que
como uma alternativa à Rodovia Anchieta (ligando recorrer ao Fundo Monetário Internacional (FMI). O
São Paulo ao litoral sul), além de promover maior Consenso de Washington era imposto aos países
adensamento no município de São Bernardo do tomadores do FMI, que pregava o mote do Estado
Campo, inseriu mais ainda, no mapa da industria- mínimo, redução de gastos, abertura financeira
lização, o município de Diadema. Concluindo-se, e comercial, privatização, entre outros. As dire-
assim, o processo de formação e integração ter- trizes do FMI buscaram atender aos interesses
ritorial e econômica da Região do Grande ABC dos credores financeiros dos países centrais e
(KLINK, 2001). isso agudizou os problemas existentes no Brasil
(TAVARES, 1985; MARQUES; REGO, 2013).

As alterações na forma de acumulação capitalis-


O “MODERnO” FORDISTA EM CRISE COLOCA ta para o mercado financeiro, somadas ao acir-
EM DÚVIDA O FUTURO DA REGIÃO ramento da concorrência de internacional e as
mudanças no comportamento do consumidor,
A partir da década de 1970, o cenário mundial obrigaram à alta direção dessas grandes empre-
muda. As ideias keynesianas centradas na par- sas a se ajustarem: a) muitas delas entraram no
ticipação do Estado na economia e no bem-estar mercado financeiro, abrindo seu capital – o valor
social passaram ser atacadas. Atritos no Oriente das ações no mercado e dividendos passavam a
Médio levaram aos sucessivos aumentos no preço determinar os rumos da empresa; b) cobrança de
do barril de petróleo, a concorrência dos produtos resultados, em prol do aumento dos lucros acu-
das indústrias japonesas e alemãs colocaram em mulados – levou a duras cobranças por reduções
xeque o modelo de produção fordista em massa, de custos, principalmente em mão-de-obra em
os crescentes déficits na balança comercial es- países cujos salários se tornaram “caro” sob o
tadunidense, os gastos excessivos com guerras ponto de vista da empresa; c) investimentos em
(como a Guerra do Vietnã e da Coréia) e outros tecnologia cada vez mais centrados em equi-
acontecimentos mudaram a conjuntura inter- pamentos que substituam a mão-de-obra; d) as
nacional (ROSA; REGO, 2013). Assim, instalou- grandes empresas mudaram a sua produção para
-se o cenário de Estado mínimo, globalização e países que possuem leis trabalhistas e ambientais
reestruturação produtiva. A responsabilidade flexíveis por meio da combinação: novas fábricas
social apoiada em causas ambientais (consumo menores, com maior tecnologia e produtividade,
consciente) e sociais (não ao trabalho escravo e menor uso de mão-de-obra; e) nos países periféri-
infantil) passaram a ganhar importância para os cos como o Brasil, as empresas exerceram grande
consumidores no mundo. poder de lobby nos governos pressionando por
reformas nas leis trabalhistas – levando à preca-
O capital financeiro também se fortaleceu. Os pe- rização trabalhista e ao aumento do desemprego
trodólares passaram a circular no mercado finan- e da desigualdade social.
ceiro em busca de melhores e maiores fontes de
acumulação financeira sob a forma especulativa. A Região do Grande ABC sentiu diretamente os
Isso levou a mudanças na forma de acumulação reflexos. Durante a década de 1990, a reestrutu-
capitalista, que, durante a Era Dourada (1945- ração produtiva, a globalização, a financeirização
1970), estava centrada no sistema de produção da economia, a abertura do mercado nacional
fordista (fazendo massivos investimentos em sem proteção às empresas nacionais e a guerra
novas fábricas em lugares que permitiam maior fiscal entre estados e municípios fizeram com
acumulação pelo menor preço de mão-de-obra), que o clima de prosperidade e modernidade da
passando a ser comandada pelo mercado finan- indústria fordista desaparecesse. A Região estava
ceiro – sem passar pela produção, levando à fi- passando por um processo de reestruturação
nanceirização da economia. industrial, de desconcentração industrial e “fuga
das empresas”, conforme pode ser verificado na
Os reflexos dessas mudanças chegaram ao ce- Figura 5. Em seu lugar, surgiu o cenário de crise
EIXO TEMÁTICO 2 que se traduziu em fechamento de fábricas, na
sua transferência e de linhas de produção para
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
lugares (países e estados) cujo preço da mão-de-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
-obra é mais barato (KLINK, 2001; CONCEIÇÃO,
2006). No âmbito urbano começaram a surgir
grandes galpões e plantas inteiras com placas
de “vende-se ou aluga-se” nas sete cidades que
compõem a Região do Grande ABC.

Figura 3. Concentração e desconcentração industrial na


Região do Grande ABC entre 1890 e 1997. Fonte: MEYER;
GROSTEIN; BIDERMAN (2004, p.166-167).

O cenário encontrado na Região do Grande ABC


era dramático durante a década de 1990, de desin-
dustrialização e de “reversão da polarização”, re-
tratada por Cano (2007) e Richardson (1980). A saí-
da das empresas levou à queda no Produto Interno
Bruto da Região, queda na arrecadação fiscal, que
acabou impactando nos serviços públicos. Os
motivos podem ser encontrados tanto no âmbito
econômico - como, por exemplo, no aumento dos
valores dos terrenos, do aluguel dos galpões, dos
salários, entre outros -, quanto no urbano - como
nos problemas de mobilidade urbana (acarretan-
16º SHCU do em problemas de tráfego, falta de transporte
30 anos . Atualização Crítica
público), entre outros (CONCEIÇÃO, 2006). A ta-
1766 bela 1 aponta o saldo das empresas por número
de empregados, destacando-se três pontos: b) entre 1996 e 1999, houve uma continuação da
perda de médias e grandes empresas na Região,
a) entre 1989 e 1990, houve uma perda significa- período em que 85 estabelecimentos de médio
tiva de médias e grandes empresas na Região, porte e 36 estabelecimentos de grande porte
que perdeu, 94 estabelecimentos na categoria foram fechados. Percebe-se, também, o reflexo
de 50 a 249 empregados e 44 estabelecimentos da fragmentação da indústria, pois há um au-
a partir de 250 empregados. Nota-se, ao mesmo mento no número de estabelecimentos entre 10
tempo, o início da reestruturação produtiva, que a 19 empregados;
levou à fragmentação dos estabelecimentos, re-
alizada pelas empresas, com a terceirização e a c) entre 1999 e 2002, verificou-se o aumento dessa
precarização trabalhista, aumentando o núme- fragmentação, havendo um crescimento consi-
ro de estabelecimentos entre 1 empregado e 19 derável dos pequenos estabelecimentos entre 5
empregados; a 49 empregados.

Tamanho do estabelecimento Saldo Saldo Saldo Saldo Saldo Saldo


por nº de empregados 1989-1988 1990-1989 1994-1990 1996-1994 1999-1996 2002-1999

0 empregado - - - - - -
1 a 4 empregados 401 249 132 141 -65 -273
5 a 9 empregados 26 33 38 68 2 112
10 a 19 empregados -19 3 81 38 80 133
20 a 49 empregados 29 19 -33 17 2 120
50 a 99 empregados -8 -44 -55 2 -26 44
100 a 249 empregados 15 -50 9 -52 -59 3
250 a 499 empregados 5 -21 -24 -10 -13 -2
500 a 999 empregados 4 -11 -7 -10 -12 3
1000/mais empregados 1 -12 -4 -9 -11 3
Total 218 166 137 185 -102 410

Tabela 1. Saldo dos estabelecimentos industriais na Região do Grande ABC, por número de empregados, 1988-2002. Fonte: Elaborado
por Yamauchi (2020), com base nos dados da RAIS/CAGED do Ministério da Economia entre os anos de 1988 e 2002.

Além das consequências econômicas, assisti- O principal evento que discutiu soluções para
ram-se a efeitos sociais, como a ampliação da as áreas industriais ociosas foi o “I Seminário
desigualdade pela perda do poder econômico (com Internacional de Desenvolvimento Econômico e
o desemprego e a queda na renda). A aplicação da Social”, realizado nos dias 8 e 9 de maio de 1997
austeridade pelo Estado mínimo acabou restrin- (CONCEIÇÃO, 2006; TOURINHO & YAMAUCHI, 2019).
gindo o acesso aos serviços públicos e reduzindo a O evento contou com vários profissionais reno-
sua qualidade. No campo urbano, houve o aumen- mados do Brasil e do exterior, que expuseram os
to das áreas industriais ociosas (YAMAUCHI, 2020). casos de cidades e regiões industriais que pas-
saram pelo processo de reestruturação produtiva
Durante a década de 1990, os atores sociais da
Região do Grande ABC protagonizaram eventos e de saída das empresas, como: Detroit, Leipizig,
importantes e a criação de suas instituições re- Roterdã, a Região do Norte da Inglaterra, a Região
gionais: o Consórcio Intermunicipal do ABC em da Galícia da Espanha e a Região do Norte da Itá-
1990, a Câmara Setorial Automotiva em 1991, o lia. Desde 1970, essas cidades na Europa e nos
Fórum de Cidadania em 1994, a Câmara Regional Estados Unidos vêm passando por mudanças e
do ABC em 1997, levando à criação da Agência de contestação do modelo de produção em massa
Desenvolvimento Econômico do Grande ABC em fordista. Em face disso, os atores sociais vêm bus-
1997 (CONCEIÇÃO, 2006; BRESCIANI, 2011). cando soluções ao problema das áreas industriais
EIXO TEMÁTICO 2 ociosas das empresas que deixaram as cidades.
A partir desses exemplos internacionais, meses
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS depois, a Câmara Regional realizou votação das
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES prioridades para a Região do Grande ABC diante
do problema da saída das empresas e das áreas
industriais ociosas.

Desses eventos nasceu o Projeto Eixo Taman-


duatehy em Santo André, em que se concebeu
uma proposta calcada numa nova centralidade
regional a partir de novas alternativas no âmbito
da economia, turismo, cultura e alta tecnologia,
de forma que atraísse novos investimentos (PMSA,
2006, p. 7; SAKATA, 2009).

Entre 1997 e 2006, vários projetos no âmbito do


Eixo Tamanduatehy foram executados, sendo
que diversos antigos galpões industriais, então
ociosos, passaram por obras de intervenção
nesse período (MORO JÚNIOR, 2007). O Projeto
Tamanduatehy, embora incompleto, contemplou
três fases, em que as áreas industriais ociosas
foram convertidas em shoppings, centros co-
merciais, igrejas, universidades, conjuntos resi-
denciais, supermercados, entre outros tipos de
estabelecimentos, bem como foram feitas obras
de infraestrutura local. Conceição (2006) também
retrata que, ao mesmo tempo, houve um esforço
hercúleo por parte dos atores sociais objetivan-
do a manutenção das indústrias, na tentativa de
convencer os empresários a continuarem com
suas fábricas na Região.

Moro Júnior (2007) e Teixeira (2010) afirmam que


o referido projeto apresenta fragilidades, poten-
cializadas pela conjuntura econômica neoliberal:
embora o projeto tenha consistido no primeiro
modelo de intervenção urbana para a Região do
Grande ABC, ele acabou atendendo ao mercado
de consumo e imobiliário, levando à gentrificação.

curta RETOMADA, O FECHAMENTO das INDÚSTRIAs


e as incertezas CONTINUAm, e AGORA?

A partir de 2003, a Região do Grande ABC volta


a assistir a uma nova entrada de investimentos
industriais. A economia mundial estava aquecida
16º SHCU pelo consumo e calcada na facilitação de crédito
30 anos . Atualização Crítica
entre os anos de 2003 a 2008. A China exerceu um
1768 importante papel durante esse período, princi-
palmente pelo seu voraz consumo por commodi- sobretudo de confiança, na economia estava alto.
ties, principalmente de países latino-americanos Embora em setembro de 2008 tenha ocorrido a
como o Brasil. A entrada da China na Organização crise financeira internacional do subprime, atin-
Mundial do Comércio (OMC), em 2001, possibilitou gindo fortemente os países centrais desenvolvi-
inúmeros negócios no âmbito internacional. Com dos, os investimentos externos diretos no Brasil
isso, ganhou escala de produção e com baixo aumentaram em decorrência da política econô-
custo da mão-de-obra, acelerando ainda mais o mica aplicada pelo governo na época (YAMAUCHI;
processo de saída das empresas de países locali- MONEA, 2019).
zados em várias partes do mundo, como também
no Brasil (STUENKEL, 2017). Mesmo assim, as áreas industriais ociosas con-
tinuaram a fazer parte da paisagem urbana nas
A economia brasileira estava aquecida, apre- sete cidades da Região do Grande ABC. Em 2011, o
sentando um forte aumento nas exportações, cenário econômico nacional começou a diminuir
facilitação na concessão de crédito de consumo o ritmo, diminuindo o otimismo e confiança no
das famílias por meio da diminuição do depó- governo. A partir de 2014, a instabilidade política
sito compulsório dos bancos no banco central, nacional acabou contribuindo para a evolução de
executando políticas expansionistas (como, por uma crise econômica. O cenário de crise levou ao
exemplo, obras de infraestrutura pelos programas aumento do fechamento de empresas na Região,
de governo, entre outras). O nível de otimismo, conforme pode ser observado na tabela 2.

Tamanho do
Saldo Saldo Saldo Saldo Saldo Saldo Saldo Saldo
estabelecimento
2005-2002 2008-2005 2011-2008 2014-2011 2015-2014 2016-2015 2017-2016 2018-2017
por nº de empregados

0 empregado -1 50 23 22 54 1 -28 40
1 a 4 empregados 91 150 167 183 14 53 -45 -14
5 a 9 empregados 69 119 53 -15 23 -72 -2 13
10 a 19 empregados 94 123 -15 3 -22 -18 -31 -36
20 a 49 empregados 59 140 83 -91 -50 -85 -28 1
50 a 99 empregados 62 56 -9 -49 -25 -38 -16 9
100 a 249 empregados 25 38 4 -12 -21 -31 11 -25
250 a 499 empregados 23 2 -5 -8 -15 0 -10 1
500 a 999 empregados 5 7 -2 -8 -1 -3 0 3
1000/mais empregados 4 7 0 -3 -4 -2 -2 0
Total 431 692 299 22 -47 -195 -151 -8

Tabela 2. Saldo dos estabelecimentos industriais na Região do Grande ABC, por número de empregados, 2002-2018.
Fonte: Elaborado por Yamauchi (2020), com base nos dados da RAIS/CAGED do Ministério da Economia (antigo Ministério
do Trabalho e Emprego) entre os anos de 2002 e 2018.

A partir da tabela 2 pode-se destacar três pontos: b) A partir de 2014, com o clima de desinvestimento
e de crise econômica, nota-se que o saldo das
a) Nos períodos de 2002 e 2008, houve um au- empresas, independentemente do tamanho por
mento geral do número de empresas, reflexo do número de empregados, começa a cair drastica-
clima positivo econômico, acarretando o aumento mente, levando ao aumento das áreas industriais
dos investimentos industriais na Região. Houve, ociosas na Região, principalmente, de empresas
pequenas e médias.
também, uma nova fase da reestruturação pro-
dutiva e da fragmentação das empresas, levando c) A reestruturação produtiva fragmentou o setor
ao aumento do número de estabelecimentos de industrial da Região do Grande ABC durante a
1 a 49 empregados; década de 1990 até 2008 (a Figura 8 mostra essa
EIXO TEMÁTICO 2 fragmentação em 2010), fazendo surgir novas
pequenas e médias empresas. Embora tenha
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS ocorrido uma curta retomada nos investimentos
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES da Região entre 2003 e 2011, a crise político-e-
conômica que instalou no país a partir de 2014
fez com que elevasse o número de fechamento
de empresas.

Figura 4. Desconcentração industrial na Região Metro-


politana de São Paulo, em 2010. Fonte: EMPLASA (2018).

No período compreendido entre setembro de 2006


e setembro de 2017, não houve uma discussão
específica sobre o problema das áreas indus-
triais ociosas, nem das antigas que estão à espera
de soluções desde 1990 ou das novas áreas que
surgiram após 2001. Embora tenham ocorrido
na Região dois eventos - o encontro “Multilevel
Governance em prol do desenvolvimento regional
16º SHCU sustentável nas aglomerações urbanas do Ruhr
30 anos . Atualização Crítica e do ABC Paulista” e o Seminário “Arquitetura e
1770 Cidade: desenvolvimento sustentável e qualidade
do espaço público no Grande ABC” -, que deba-
teram diversos temas de gestão, governança
urbana e desenvolvimento regional -, a temática
das áreas industriais ociosas foi abordada de
forma rápida e sem aprofundamento (TOURINHO;
YAMAUCHI, 2019).

O problema ainda existe, mas não é debatido em


eventos pelos atores sociais da Região do Grande
ABC. O “esquecimento” da discussão, debatida
durante a década de 1990, bem como a falta do
debate sobre a realidade dos problemas da Região
e de temas relevantes ao desenvolvimento estra-
tégico pode agravá-los mais ainda. Além disso, Figura 6: Empresa abandonada às margens da Rodovia Anchieta
a desigualdade social também se agrava. Muitos em São Bernardo do Campo, na altura do km 16.2, sentido São
desempregados perderam a sua renda e algumas Paulo. Fonte: Acervo próprio.
dessas famílias acabam sendo despejadas de seus
lares alugados e passam a viver nos destroços
das fábricas em condições desumanas (Figura
Essa pausa ou “esquecimento” em relação às
5). E, ainda, há galpões que ficam abandonados -
áreas industriais ociosas pode revelar a falta de
podendo vir a gerar problemas de saúde pública -,
acompanhamento por parte dos atores sociais da
devido ao enorme custo de reforma e pagamentos
Região sobre a evolução da problemática, poden-
de débitos para atualizar e poder obter autoriza-
ção de funcionamento, não atraindo locatários ou do agravar ainda mais a situação, potencializando
compradores. Embora sejam imóveis privados, o os problemas que já existiam. Conceição (2006)
ônus acaba ficando com o município, pois esses e Tourinho & Yamauchi (2019) afirmam que o pro-
imóveis deixam de cumprir o seu papel social no blema das áreas industriais ociosas da década de
espaço urbano (Figura 6). 1990 ainda persiste e se agravou, ultrapassando a
esfera urbana: grande parte dessas áreas estão
com problemas jurídicos fiscais, trabalhistas e
com fornecedores, que retardam a aplicação de
medidas que permitam com que estes espaços
voltem a cumprir a sua função social dentro do
município.

Ao mesmo tempo, Lepore (2019) observou que


houve um processo de esvaziamento institucional
regional: Diadema não faz mais parte do Consór-
cio Intermunicipal do ABC e os municípios de São
Caetano do Sul e Rio Grande da Serra votaram
em suas Câmaras Municipais em prol de suas
saídas do Consórcio. Além disso, o protagonismo
Figura 5: Mais de 30 famílias ocupam, em condições insalubres,
da Agência de Desenvolvimento Econômico foi
fábrica desativada em Ribeirão Pires. Fotografia de Fernando
Dantas. Fonte: CONCEIÇÃO (2006, p. 322).
sumindo com a saída dos atores sociais (devido
ao conflito de interesses) até se transformar em
um departamento dentro do Consórcio (LEPORE,
2019). A deterioração no relacionamento entre os
atores sociais regionais prejudica no andamento
do debate sobre a realidade da Região do Grande
ABC em relação às áreas industriais ociosas nas
sete cidades, diante da mudança tecnológica
industrial do século XXI.
EIXO TEMÁTICO 2 Posto isso, enquanto se observa a dura realidade
do problema de fechamento ou transferências de
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS fábricas na Região do Grande ABC, há a urgência
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES da retomada as discussões. A indústria está pre-
sente na Região, mas verifica-se, também, que
ocorreu um curto período de incremento produ-
tivo industrial na Região e, em termos qualitati-
vos – de complexidade tecnológica –, não houve
crescimento de novas alternativas industriais de
produtos de alta complexidade tecnológica na
Região do Grande ABC entre 2007 e 2017 (CON-
CEIÇÃO, MONEA & YAMAUCHI, 2018a).

O valor adicionado da indústria deflacionado (va-


lores base 2017) cresceu durante o período entre
2003 e 2011, com oscilações entre 2004 a 2006 e
2009 e 2011, mas se manteve perto do alto pata-
mar até o ano de 2011. Contudo, a partir de 2011
houve sucessivas quedas no valor adicionado da
indústria, chegando ao patamar inferior ao ano
de 2002.

Conceição, Monea e Yamauchi (2018) analisaram


o grau de complexidade dos produtos exporta-
dos e importados entre os anos de 2007 e 2017
e verificaram que, em 2017, cerca de 49% das
exportações do Grande ABC é classificada como
de “média complexidade tecnológica” 1. No caso
das importações, os autores demonstram pre-
ocupação, pois constatou-se também que os
produtos de média complexidade tecnológica
possuem a maior participação na pauta de im-
portações da região, cerca de 49,38% em 2017.
Evidentemente que isso reflete na diminuição do
valor agregado na indústria, consequentemente
na perda da participação do PIB. Essa queda e a
falta de alternativa de alta complexidade industrial
têm efeito na participação do PIB dos municípios
e da Região do Grande ABC no PIB do Estado de
São Paulo.

Essa retração na indústria, bem como a saída e


transferências de fábricas para outras localidades

1. Os produtos classificados como média complexidade tec-


nológica são: no setor automotivo (veículos de passageiros e
peças, veículos comerciais, motocicletas e peças); bens de
produção (fibras sintéticas, químicos e tintas, fertilizantes,
plásticos, ferro, canos e tubos) e bens de engenharia (moto-
16º SHCU
res em geral, maquinário industrial, bombas, transmissão
30 anos . Atualização Crítica
de rede elétrica, barcos e relógios) (CONCEIÇÃO; MONEA;
1772 YAMAUCHI, 2018, p. 22-23).
contribuiu com a mudança no perfil de emprego Essas mudanças, que somadas ao não acompa-
da indústria para o setor de comércio e serviços nhamento da realidade dos problemas das áreas
nos últimos trinta anos. Houve uma inversão no industriais ociosas e de questões relacionadas ao
números de trabalhadores na indústria e servi- desenvolvimento estratégico econômico da Re-
ços: os empregos, que eram majoritariamente no gião, tendem a acelerar mais ainda o processo de
setor industrial, caíram de 363.333, em 1989, para fechamento das empresas, que não se adaptarem
182.168, em 2017; no setor de serviços em 1989 era às mudanças. Como consequência, surge uma
de 120.613 e passou para 319.657 em 2017; e, no série de dúvidas, impondo incertezas acerca do
setor de comércio em 1989 havia 62.913 empregos futuro da Região do Grande ABC.
e aumentou para 143.281 empregos em 2017 (CON-
CEIÇÃO; MONEA; YAMAUCHI, 2019). Ressalte-se
que os salários no setor da indústria costumam
ser superiores ao setor de comércio e serviços, cONSIDERAÇÕES FINAIS ACERCA
bem como o fato de que o fechamento de fábri- DE UM FUTURO INCERTO
cas gera consequências diretas e indiretas na
cidade e na Região. Isso também contribui para A realidade sobre a Região do Grande ABC é bas-
o aumento das desigualdades sociais, problemas tante desafiadora e difícil, pois, além de abar-
econômicos (queda na arrecadação), impactando car a esfera municipal e regional, também há a
diretamente os serviços públicos, entre outros. necessidade de interação, de cooperação e de
negociação com as esferas estadual e federal.
Um último ponto a ser abordado é a indústria 4.0,
Entretanto, há espaço para a reabertura de uma
que deve ser mais contemplada pela Região, se os
agenda regional, estratégica e voltada para o de-
atores sociais desejam manter a sua vocação in-
senvolvimento regional, envolvendo os atores
dustrial. Desde a década de 1970, com a evolução
sociais e a sociedade civil da Região do Grande
da informática e das telecomunicações, o mundo
ABC. Dessa forma, os atores sociais devem levar
está saindo de uma sociedade industrial para uma
em conta os seguintes pontos:
sociedade da informação e do conhecimento. Es-
sas mudanças colocam dúvidas quanto ao futuro 1) Há perda do diálogo e interação entre os
das cidades industriais no mundo todo e impõem diferentes atores sociais da Região;
novos desafios. Schwab (2016) enfatiza que a quar-
ta revolução industrial2 já vem promovendo mu- 2) A lógica neoliberal aplicada à gestão pú-
danças nas empresas (tendência à digitalização blica não permite que os projetos de cunho
da economia, conectividade e miniaturização e social sejam contemplados;
mudanças tecnológicas), que levam à uma nova
reestruturação produtiva (seja de área ocupada 3) O tempo necessário de recuperação
ou em número de trabalhadores) e no mercado de perante à crise econômica e os limites da
trabalho (extinção e o surgimento de profissões). financeirização da economia precisam ser
discutidos;

2. Essas evoluções tecnológicas ocorreram em várias eta- 4) A indústria está fora da pauta do plane-
pas desde 1760. Entretanto, alguns países encontram-se jamento estratégico da atual gestão do
mais avançados – na vanguarda do processo tecnológico,
governo federal e causa efeitos na Região
enquanto outros estão atrasados. Alguns autores como
do Grande ABC;
Schwab (2016), defendem a ideia de que o processo Quarta
Revolução Industrial ocorre desde 2010, sendo uma junção
5) Há um grande descolamento tecnológico
da terceira e a quarta fase sob a seguinte forma: a terceira
fase contempla os avanços tecnológicos do século XX e XXI
das indústrias (sobretudo as nacionais) da
(como o computador, o fax, a engenharia genética, o celular, Região do Grande ABC nas cadeias globais
etc.), cujas fábricas ocupam áreas menores, pouco estoque de valor dos países desenvolvidos;
e mão-de-obra altamente especializada; e a quarta fase
incorpora a convergência de tecnologias digitais, físicas 6) A Indústria 4.0 já é uma realidade nos
e biológicas (digitalização da economia, miniaturização, países centrais, enquanto isso, o Brasil está
nanotecnologia, armazenamento em nuvem, etc.). atrasado para entrar em novas tecnologias;
EIXO TEMÁTICO 2 7) Inexiste uma forma de financiamento e de
facilitação na concessão de investimentos
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS ou de atualização fabril para as pequenas
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES e médias indústrias;

8) Os setores automotivo e químico, os dois


principais setores produtivos que a Região
concentra, passam por grandes transfor-
mações no comportamento de consumo
e produtivo, que podem trazer desdobra-
mentos para a Região;

9) O percentual da participação do valor


agregado industrial da Região do Grande
ABC vem diminuindo, bem como a partici-
pação no percentual do PIB da Região no
PIB do Estado de São Paulo;

10) Houve mudança no perfil dos empregos


da Região, traduzindo-se numa diminuição
de renda dos trabalhadores, ampliando a
desigualdade social na Região;

11) Houve avanços na questão de planeja-


mento urbano; contudo, há problemas não
resolvidos, tais como: falta de saneamento
básico, falta de habitação, mobilidade ur-
bana, galpões industriais ociosos. Deve-se
considerar que as experiências passadas
podem nortear novas políticas públicas para
a Região.

Considerando a importância da Região do Grande


ABC, existe uma urgência na retomada das discus-
sões estratégicas de desenvolvimento econômico
regional pelo Consórcio Intermunicipal do ABC,
pela Agência de Desenvolvimento Econômico
e pelos atores sociais, principalmente sob um
arranjo participativo da sociedade civil nas discus-
sões, tomadas de decisões e acompanhamento
das ações, diminuindo o efeito do ciclo eleitoral.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1774
REFERÊNCIAS lógica das exportações do Grande ABC Paulis-
ta. Carta de Conjuntura, Universidade Muni-
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EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Este artigo possui como objetivo analisar a con-
dição de formação social e a econômica da ci-
dade de Natal e Parnamirim no Rio Grande do
vídeo-pôster Norte. Para isso, utilizamos como fundamenta-
ção de pesquisa o materialismo histórico dialé-
tico e como metodologia uma pesquisa básica,
INTRODUÇÃO À HISTÓRIA qualitativa de caráter documental e bibliográfi-
co a partir das obras História do Rio Grande do
URBANA POTIGUAR: EPÍTOME Norte e A História de Parnamirim e pesquisa
quantitativa sobre a habitação e as atividades
SOBRE NATAL E PARNAMIRIM econômicas desenvolvidas através de dados do
Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil e
do Observatório de Trabalho Decente nos Muni-
INTRODUCTION TO POTIGUAR URBAN HISTORY: cípios. Esses meios possibilitaram os seguintes
EPITOME ABOUT NATAL AND PARNAMIRIM resultados: conhecimento da estrutura social e
econômica de formação social das cidades de
INTRODUCCIÓN A LA HISTORIA URBANA POTIGUAR: Natal e Parnamirim no Rio Grande do Norte e
EPITOME SOBRE NATAL Y PARNAMIRIM setores econômicos atuais.

FERNANDES, Lenita Maria dos Santos HISTÓRIA SOCIEDADE FORMAÇÃO URBANA


Graduanda de Serviço Social, Universidade Federal do Rio
ESTRUTURA ECONÔMICA RIO GRANDE DO NORTE
Grande do Norte
lenita_msf@hotmail.com

FREIRE, Camila Amaro da Silva


Graduanda de Serviço Social; Universidade Federal do Rio
Grande do Norte
camilaamaro98@gmail.com

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1778
ABSTRACT RESUMEN

This article aims to analyze the condition of so- Este artículo tiene como objetivo analizar la con-
cial and economic formation in the city of Natal dición de la formación social y económica en la
and Parnamirim in Rio Grande do Norte. For that, ciudad de Natal y Parnamirim en Rio Grande do
we used as a research foundation the dialecti- Norte. Para ello, se utilizó como base de inves-
cal historical materialism and as methodology tigación el materialismo histórico dialéctico y
a basic, qualitative research of documental and como metodología una investigación básica, cua-
bibliographic character from the works História litativa de carácter documental y bibliográfico a
do Rio Grande do Norte and A História de Parna- partir de las obras História do Rio Grande do Nor-
mirim and quantitative research on housing and te y A História de Parnamirim y la investigación
economic activities developed through data from cuantitativa sobre la vivienda y las actividades
Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil and económicas. desarrollado a través de datos del
Observatório do Trabalho Decente nos Municí- Atlas de Desenvolvimento Humano no Brasil y el
pios. These means enabled the following results: Observatório do Trabalho Decente nos Municí-
knowledge of the social and economic structure pios. Estos medios permitieron los siguientes re-
of social formation in the cities of Natal and Par- sultados: conocimiento de la estructura social y
namirim in Rio Grande do Norte and current eco- económica de la formación social en las ciudades
nomic sectors. de Natal y Parnamirim en Rio Grande do Norte y
los sectores económicos actuales.

HISTORY SOCIETY URBAN FORMATION


ECONOMIC STRUCTURE RIO GRANDE DO NORTE HISTORIA SOCIEDAD FORMACIÓN URBANA
ESTRUCTURA ECONÓMICA ESTRUCTURA ECONÓMICA
EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
A sociedade, sua formação, composição e carac-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
terísticas a muito fazem parte do desenvolvimen-
to, aprimoramento, foco e estudo do Serviço So-
cial. É impossível desassociar a sociedade dessa
vídeo-pôster
profissão que é correlata a muitas outras áreas
de estudo, por isso é tão importante sempre ter

INTRODUÇÃO À HISTÓRIA em mente a relação do Serviço Social brasileiro


com a história urbana brasileira.

URBANA POTIGUAR: EPÍTOME É comum haver estudos sociais sobre a cidade,

SOBRE NATAL E PARNAMIRIM


seu desenvolvimento e como afeta e é afetada
pelas relações sociais. Em função disso, foi
escolhido como tema desse artigo fazer uma
articulação do urbano com o social, com o objetivo
INTRODUCTION TO POTIGUAR URBAN HISTORY:
de analisar como a formação de uma cidade, sua
EPITOME ABOUT NATAL AND PARNAMIRIM
historicidade está conectada com o coletivo, com
o agrupamento comunitário que nele reside. Por
INTRODUCCIÓN A LA HISTORIA URBANA POTIGUAR:
ser um tema muito amplo, que absorve diversas
EPITOME SOBRE NATAL Y PARNAMIRIM
possibilidades, foi selecionada para compor
este escrito a elaboração de uma analise social
a partir da formação urbana e social das cidades
nordestinas de Natal e Parnamirim, locadas no
Rio Grande do Norte.

São cidades com histórias formativas interligadas


e que possuem em si características que podem
ser pertinentes a todo desenvolvimento territorial
brasileiro assim como são diversas e particulares
de sua própria região.

Para viabilizar a investigação sobre o tema e o ob-


jetivo foi utilizada como metodologia a realização
de uma pesquisa básica qualitativa, documental
e quantitativa, que viabilizasse uma pesquisa de
qualidade. Foram analisados dois livros chave
sobre a história e o desenvolvimento de Natal e
Parnamirim, o primeiro foi História do Rio Grande
do Norte escrito por Marlene da Silva Mariz e Luiz
Eduardo B. Suassuna e o segundo foi A História de
Parnamirim composto por Carlos Peixoto, além
disso, foram utilizados dados estatísticos para
serem analisados, os dados são de 2010 e tratam
a respeito de características da habitação e dos
setores econômicos nas cidades, eles foram re-
tirados do Atlas do Desenvolvimento Humano no
Brasil e do Observatório do Trabalho Decente1.

16º SHCU
1. O Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil e o Obser-
30 anos . Atualização Crítica
vatório do Trabalho Decente são plataformas que podem
1780 ser utilizadas como instrumentos de pesquisa que analisam
O artigo está estruturado em duas partes que Já no inicio do século XIX,
foram subdivididas: contextualização sobre o
com o território [da capitania do Rio Grande
desenvolvimento social e urbano de Natal, al-
guns dados e características de como a cidade do Norte] quase todo povoado, cresciam
está atualmente, como surgiu Parnamirim, quem as culturas de açúcar, algodão, pau-brasil,
constituiu a cidade em seus primeiros dias oficiais tabaco e ainda arroz, milho, feijão e man-
e breve analise sobre sua situação mais recente, dioca, que constituíam as fontes gerais da
atributos domiciliares, contingente populacional economia; além dessas as indústrias da
e setores econômicos de influencia no município. criação de gado, da pesca, da exploração
das salinas e das madeiras de construção.
A maior parte dessas indústrias sofria toda
sorte de dificuldades, afligidas pelo fisco
NATAL: APANHADO HISTÓRICO DE FORMAÇÃO e pelos monopólios, sem contar com os
URBANA E SOCIAL embaraços causados pelos transportes,
terrestres ou marítimos.[...] Para o comér-
cio fora do Brasil, já nos meados do século
O desenvolvimento da urbanização territorial está
XVIII a capitania exportava o pau-brasil, o
ligado à ampliação das relações sociais e econô-
algodão, drogas medicinais e outros. (MA-
micas. Uma sociedade só é reconhecida como tal
RIZ; SUASSUNA, 2005, p. 122).
por meio das relações que nela existem, carac-
terizadas como sociais. Relações firmadas por O crescimento urbano está intrinsecamente re-
meio da necessidade de sobrevivência e também lacionado à expansão econômica. Por meio das
pelo trabalho. O homem se realiza como homem citações acima pode-se perceber que a econo-
por meio do trabalho, da execução de atividades mia foi o estimulante mais importante para que
de transformação. houvesse urbanização no nordeste do brasileiro.

A história do desenvolvimento da sociedade brasi- O período colonial brasileiro foi marcado por
leira tem inicio por meio de relações de exploração intensa exploração humana por parte, princi-
social e econômica conhecida como escravismo. palmente de Portugal, em que os homens que
É por meio da exploração do homem e da terra que aqui estavam eram em sua maioria escravos e
se configura o desenvolvimento urbano brasileiro. onde eles se situavam, em que locais habitavam,
que situações viviam, miséria, escassez, higiene
De acordo com Suassuna e Mariz, sobre a expan- não eram relevantes e sim a produção, apenas
são territorial e o desenvolvimento econômico do a produção. Aqueles que na época da sesmaria
Brasil e da região nordeste no século XVIII, possuíam terras é que eram bem vistos, possuíam
boas condições de moradia e condições ao menos
cronologicamente o Nordeste foi a primeira minimamente dignas de sobrevivência.
área a ser aberta para a pecuária. Com o
prosseguimento contínuo do povoamento A terra sempre foi uma mercadoria de alto valor,
durante o período colonial, por fim toda a que mediava as relações humanas. Aqueles que
região, menos a da faixa litoral, se viu inte- eram donos da terra possuíam melhores condi-
ressada na criação de gado [...] A criação de ções de vida, mas aqueles que não a possuíam
gado na região nordeste está também muito ou que não tinham condições de a explorar eram
ligada ao extrativismo salineiro, desenvol- marginalizados, subalternizados por aqueles que
vido especialmente no litoral da capitania eram os grandes senhores de terras.
do Rio Grande do Norte (MARIZ; SUASSUNA,
A terra servia como moradia, meio de produção
2005, p.107 e 108).
alimentar, possuir uma terra, um lugar, era e é
sinônimo de poder, de ter, de ser alguém.
dados oficiais a partir do que cada uma se propõe, como
por exemplo, analisar o desenvolvimento humano no Brasil No nordeste eles inicialmente eram os senhores
e quais tem sido as características trabalhistas, sanitárias de engenho, escravocratas colonialistas vindos
ou até mesmo econômicas envolvidas com promoção do de Portugal para explorar a terra e retirar suas
trabalho decente nos municípios brasileiros. riquezas, porque os bens da terra é que eram
EIXO TEMÁTICO 2 bens de valor, seja por meio de exportação de
pau-brasil, agricultura e agropecuária, mineração
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS ou qualquer outra atividade que possa cultivar e/
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES ou retirar da terra. Esse foi uma breve introdução
sobre início da formação urbana brasileira.

No que se refere à cidade de Natal, seu desenvol-


vimento é marcado pelas características acima.
Cidade localizada no nordeste brasileiro, de boa
terra e próxima ao mar, o que a favoreceu en-
quanto uma das primeiras capitanias do Brasil.
Sua trajetória urbana e social é marcada pela
exploração humana e terrena, o solo nordestino
foi o primeiro a ser colonizado. A terra sempre
foi colocada como apenas mais um recurso, um
meio para obter riquezas.

Com relação à consolidação da conquista,


uma vez que já estava definida a posse de
terra, era indispensável que fosse inicia-
do o povoamento, e com isso o cultivo do
solo. Quinze dias depois de fundada [em
25 de Dezembro de 1599] Natal ainda esta-
va deserta. [...] Quanto a Natal, pouco era
seu progresso nesses primeiros tempos.
Dos raros concessionários de sesmarias
no sítio da cidade, raros se apossaram de
suas concessões. A Fortaleza [Fortaleza
dos Reis Magos] contava com um efetivo de
200 praças de guarnição, fora os oficiais.
A colônia instalada às margens do Potengi
pode ser classificada como de “plantação”
ou de enquadramento o que significa di-
zer que: “o colono limita-se a explora-la,
a arrancar-lhe a riqueza para a seguir, a
transportar para fora”. (MARIZ; SUASSUNA,
2005, p. 37 e 38).

O processo de urbanização e socialização pas-


sou pelo escravismo, imperialismo e republica. A
expansão industrial brasileira é considerada atra-
sada e carrega consigo diversas consequências.

A região de Natal só recebe atenção para efetiva


expansão e atenção a partir da 2ª Guerra Mundial,
pois, possui uma localização única que auxiliou
os países aliados durante aquele momento. É
nesse período que se vincula a história da cidade
de Natal com a de Parnamirim.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1782
BREVIÁRIO ANALÍTICO DA ATUAL DA CIDADE Com isso, vamos a seguir analisar alguns dados
DE NATAL relacionados à habitação como porcentagem
de domicílios com água encanada, energia elé-
trica e coleta de lixo, sendo os dados retirados
Habitar não tem relação apenas com o ter uma
respectivamente do Atlas do Desenvolvimento
casa, mas também com as condições de bem
Humano e do Observatório do Trabalho Decente,
estar promovidas socialmente, que condicionam
como número de habitantes e sua distribuição por
uma verdadeira urbanização, uma plena conexão
setor econômico, afinal foi o desenvolvimento
do ser humano com o meio em que vive. Para isso,
de atividades econômicas que influenciaram o
é necessário o fornecimento por meio do Estado
desdobramento urbano e social de Natal e de
de um leque de ações e políticas públicas sociais
Parnamirim.
que abranjam a área da educação, renda, empre-
gabilidade, saúde, assistência, boa alimentação
e condições dignas de moradia.

Indicadores de Habitação - Município - Natal - RN


1991 2000 2010
% da população em domicílios com água encanada 85,73 93,65 98,91
% da população em domicílios com energia elétrica 98,25 99,70 99,84
% da população em domicílios com coleta de lixo 88,93 97,23 98,82

Figura 1: Indicadores de Habitação de Natal/RN. Fonte: PNUD, Ipea e FJP

Em 2010, de acordo com o Observatório do Tra-


balho Decente nos Municípios, o município de
Natal possuía 803,7 mil habitantes, desses 350,8
mil entre 18 e 64 anos caracterizados como po-
pulação ocupada.

População ocupada – distribuição nos setores econômicos

2.827
Agricultura 2010
1%
63.804
Indústria 2010
18%
284.203
Serviços, inclusive Administração Pública 2010
81%

Figura 2: Indicadores de Setores econômicos de Natal/RN. Fonte: IBGE, Observatório do Trabalho Decente nos Municípios.

Atualmente, a cidade de Natal é a capital do estado ra, atualmente o maior setor econômico de Natal
do Rio Grande do Norte e um de seus principais é o setor de prestação de serviços, agricultura é
centros urbanos. Em 2010 seu número de habi- o setor que possui o menor índice de atividade.
tantes era 803,7 mil.
De acordo com o Atlas do Desenvolvimento Huma-
Divergente do seu ponto de partida, onde a base da no no Brasil, em 2010 toda a população da cidade
economia eram atividades de pecuária e agricultu- estava em localidade urbana, ou seja, não havia
EIXO TEMÁTICO 2 contingente de população rural em Natal. A par-
tir do agrupamento populacional registrado em
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS 2010, 803,7 mil pessoas, quase 100% dos domicí-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES lios possuíam acesso a água encanada, energia
elétrica e coleta de lixo. Esse dado realmente
representa a realidade vivida pela população da
cidade? Apenas mais pesquisa sobre o assunto
pode revelar isso a fundo.

UM BREVE CONTO SOBRE A HISTÓRIA


DE PARNAMIRIM

Assim como Natal, Parnamirim também teve seu


desenvolvimento urbano e social marcado pelo
interesse de exploração da terra, seja por agricul-
tura, pecuária ou extração de riquezas naturais,
sendo estas características marcantes do período
colonial brasileiro. Segundo Carlos Peixoto, em a
História de Parnamirim (2003, p. 27), as terras que
inicialmente foram denominadas Paranã-mirim,
que significa pequeno rio veloz em tupi, ficaram
por muito tempo “inaproveitadas e despovoadas”.

Quase um século inteiro se passou sem que


a região conhecesse outro modelo de povo-
amento que não fosse esses sítios [divisão
de terra conhecida por Sesmaria], onde os
cultivos eram as lavouras de subsistência e
os povoados ajuntamentos de três ou cinco
casas dos lavradores. (PEIXOTO, 2003, p. 28).

A cidade de Parnamirim têm sua história de des-


dobramento fortemente vinculada a cidade de
Natal, sendo ela considerada por muitos como sua
extensão, apesar de serem gestadas como mu-
nicípios diferentes, estão em muito conectadas,
afinal são cidades vizinhas e como tal possuem
relações comunitárias de aproximação social.

Parnamirim começa a avançar e ser reconhecida


como cidade a partir da 2ª Guerra Mundial que
teve início em 1939.

Com o desenrolar da guerra na Europa, o


governo Vargas se viu forçado a assinar
um acordo de defesa mútua (julho de 1941),
ceder as áreas para a instalação de bases
16º SHCU norte-americanas no Nordeste (outubro de
30 anos . Atualização Crítica
1941), romper relações diplomáticas com a
1784 Alemanha, Itália e Japão (janeiro de 1942) e,
por fim, em 22 de agosto, declarar guerra Os primeiros residentes permanentes de
aos países do Eixo.3 A construção das bases Parnamirim, os verdadeiros pioneiros da
naval e aérea, em Natal, seria fruto des- cidade, foram os operários, vendedores e
ses acordos. A Base Aérea daria o impulso prestadores de serviços atraídos para área
decisivo para o surgimento da cidade de do campo de aviação. Migrantes do interior
Parnamirim. (PEIXOTO, 2003, P. 60). do Rio Grande do Norte e de outros Estados,
que chegaram tangidos pela seca em busca
A base aérea em Parnamirim acolheu e serviu a de trabalho, salários e um pedaço de chão
muitos norte-americanos, ela foi chamada por para erguer uma casa que pudessem con-
eles de Parnamirim Field. Os norte-americanos siderar como própria. [...] Luís da Câmara
na cidade buscaram promover avanços territoriais Cascudo, escrevendo sobre o surgimento
que facilitassem suas vidas, como a construção do povoado à sombra das atividades mili-
de uma nova estrada. tares, observou que ele parecia surgir do
nada, com “a impetuosidade dos fenômenos
A estrada teve um caráter de urgência es-
naturais”. Queria ilustrar, assim, a rapidez e a
tratégica. Foi aberta e pavimentada, com
forma caótica como, no espaço de dois anos
20 Km de extensão, em seis semanas. O
(1942-1944), inúmeras famílias chegaram e
trajeto entre a capital e o antigo campo de
se instalaram em Parnamirim. [...]Quando
aviação, que era feito em três horas por uma
toda essa gente começou a chegar, a partir
estrada de barro, quase uma trilha, passou a
do segundo semestre de 1941 e com maior
ser feito em 20 minutos. Considerada pelos
intensidade a partir de 1942, o povoado não
natalenses “uma obra-prima da tecnologia”
tinha ruas demarcadas ou qualquer infraes-
norte-americana, “a pista”, como ficou co-
trutura urbana. (PEIXOTO, 2003, p. 98 e 104).
nhecida, serviu durante várias décadas ao
tráfego entre Natal e Parnamirim. (PEIXOTO,
2003, P. 65).
EPÍTOME EXPOSIÇÃO SOBRE RECENTE CENÁRIO
A presença dos norte-americanos trouxe mui-
tos avanços e pontos positivos como a geração
URBANO DE PARNAMIRIM
de empregos, construção formal da cidade, re-
conhecimento dela como ponto estratégico no Como já mencionado anteriormente, Parnamirim
envolvimento com a guerra, avanços tecnológi- é uma cidade que demorou, em comparação a
cos, construção de estradas, abertura da base Natal, a ser formada como tal. Passou muitos
aérea, mas também gerou problemas como brigas anos sendo concebida como terra sem valor, até
entre os estrangeiros e os nativos, divisão da base que explodiu como foco urbano e teve que ser
aérea em dois lados um para “povo”, aumento de formada de maneira acelerada para atender as
preço de alimentos. demandas sociais que estavam lhe sendo impos-
tas pelo novo contingente populacional atraído
Enfim, como já é possível observar a formação pelo desenvolvimento da base aérea de Natal e
social e urbana da cidade de Parnamirim foi re- seus frutos.
fém de diversas fases e características. Apesar
de próxima a Natal e ao litoral, suas terras por A seguir veremos quais são na presente época as
muito tempo foram consideradas insignifican- características urbanas e sociais de Parnamirim,
tes para exploração cujo objetivo era exportação, por meio de uma efêmera analise de dados retira-
levar os produtos brasileiros para fora, para que dos respectivamente do Atlas do Desenvolvimento
houvesse obtenção de lucro, a intensão nunca Humano no Brasil e do Observatório do Traba-
foi planejar a formação de um país, mas de uma lho decente, plataformas de consultas de dados
colônia. Parnamirim, assim permaneceu, sem estatísticos sobre a realidade brasileira. Serão
forma, até que foi descoberta como uma terra colocados dados sobre o conjunto populacional
de localização estratégica e que poderia foi tão de Parnamirim, como porcentagem de domicílios
significativa para a história da aviação. com água encanada, energia elétrica e coleta de
lixo, número de habitantes e sua distribuição por
Segundo Peixoto, setor econômico.
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

Indicadores de Habitação - Município - Parnamirim - RN


1991 2000 2010
% da população em domicílios com água encanada 64,68 90,39 98,66
% da população em domicílios com energia elétrica 94,01 99,37 99,89
% da população em domicílios com coleta de lixo 74,69 94,73 98,81

Figura 3: Indicadores de Habitação de Parnamirim/RN. Fonte: PNUD, Ipea e FJP

População ocupada – distribuição nos setores econômicos

962
Agricultura 2010
1%
16.497
Indústria 2010
19%
71.545
Serviços, inclusive Administração Pública 2010
80%

Figura 4: Indicadores de Setores econômicos de Parnamirim/RN.


Fonte: IBGE, Observatório do Trabalho Decente nos Municípios.

Segundo o Atlas do Desenvolvimento Humano no


Brasil em 2010, 100% da população de Parnamirim
morava em área urbana, e quase todos os domi-
cílios possuem acesso a água encanada, energia
elétrica e a coleta de lixo, ou seja, possuem boas
condições urbanas. Será essa a realidade? Como
já mencionado em ponto anterior apenas pesqui-
sas profundas podem revelar.

De acordo com o Observatório do Trabalho De-


cente, em 2010, havia em Parnamirim 202,5 mil
habitantes, 89,0 mil como população ocupada.
Dessa população ocupada à maioria está locada
no setor de movimento econômico dos serviços, e
o menor contingente está ocupado com atividades
de agricultura. Nesse ponto, vale ressaltar que
tanto o Atlas do Desenvolvimento Humano quanto
o Observatório do Trabalho Decente são plata-
formas que tem acesso aos mesmos sistemas
de dados para as formar e informar, a diferença
é o ponto de analise de cada uma.
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
Os dados revelam que o cenário e o modo de for-
1786 mação social e urbano em Natal e em Parnamirim
foram transformados, ainda possui pontos con- REFERÊNCIAS
vergentes com as características de seu inicio,
contudo por mais que algumas atividades e se- ATLAS DO DESENVOLVIMENTO HUMANO NO
tores permaneçam os mesmos, não são execu- BRASIL. Perfil – Natal, RN. Rio de Janeiro,
tados da mesma forma. Natal hoje é um grande PNUD, IPEA, Fundação João Pinheiro, 2013.
centro urbano e Parnamirim hoje está a seguir Disponível em:<http://www.atlasbrasil.org.
seus passos. br/2013/pt/perfil_m/natal_rn>. Acesso em: 16
ago. 2020.

ATLAS DO DESENVOLVIMENTO HUMANO NO


CONSIDERAÇÕES FINAIS BRASIL. Perfil – Parnamirim, RN. Rio de Janei-
ro, PNUD, IPEA, Fundação João Pinheiro, 2013.
A cidade, a formação de um agrupamento comu- Disponível em:<http://www.atlasbrasil.org.
nitário é o principal meio de demonstração da br/2013/pt/perfil_m/parnamirim_rn>. Acesso
força das relações humanas. Cada cidade possui em: 16 ago. 2020.
uma história particular sobre a sua constituição,
cada historia e cidade é permeada e significada MARIZ, Marlene da Silva. História do Rio Gran-
por aqueles que a compõe. Cada centro urbano de do Norte / Marlene da Silva Mariz, Luiz Edu-
possui indivíduos que a dão vida. ardo B. Suassuna. – 2ª ed. Natal [RN]: Marlene
da S. Mariz, 2005.
No caso de Natal aqueles que a deram forma
eram estrangeiros cujo intuito não era dar vida OBSERVATÓRIO DO TRABALHO DECENTE. Natal/
a uma cidade, mas produzir e explorar riquezas RN. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística,
para exportar, ter terras para ser considerado 2010. Disponível em:< https://smartlabbr.org/tra-
alguém. A cidade surgiu em meio aos interesses balhodecente/localidade/2408102>. Acesso em: 7
colonialistas de Portugal. No entanto ela cresceu ago. 2020.
e se desenvolveu hoje não é colônia, mas cida-
de possui nome, tem historia, tem povo próprio, OBSERVATÓRIO DO TRABALHO DECENTE. Parna-
miscigenado e forte. mirim/RN. Instituto Brasileiro de Geografia e Es-
tatística, 2010. Disponível em:<https://smartlabbr.
Em meio ao desenvolvimento de Natal emergiu org/trabalhodecente/localidade/2403251>. Acesso
Parnamirim. Uma terra sem vida, sem muita gente, em: 7 ago. 2020.
mas que entre tantos acontecimentos se tornou
uma cidade, que tem seus habitantes, sua histó- Peixoto, Carlos. A história de Parnamirim. Natal
ria, suas lutas e que caminha para se tornar um (RN) : Z Comunicação, 2003. Disponível em:< http://
grande cetro urbano como Natal. issuu.com/jornaisprefeituraparnamirim/docs/his-
toria>. Acesso em: 20 jul. 2020.
Esses municípios são prova de que são as pes-
soas, os laços sociais que formam a cidade. São
as relações humanas que definem o urbano e que
também são por ele influenciadas, é uma relação
intrínseca entre o homem e o meio, o meio e o
homem que caracteriza a cidade.
EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Esta pesquisa trata da relação das legislações
urbanísticas com a forma urbana da cidade de
São Paulo. Para tanto, os objetos de estudo são
vídeo-pôster leis que incidem diretamente sobre a forma e a
inserção do edifício no lote, sobretudo pós dé-
cada de 70. O Plano Diretor de Desenvolvimento
LEGISLAÇÃO URBANÍSTICA E Integrado de 1971 e a Lei Geral de Zoneamento
de 1972 marcaram a produção da tipologia do
FORMA URBANA. SÃO PAULO edifício isolado no lote, obstando a relação con-
tínua entre edifício e cidade e contribuindo para
NO SÉCULO XXI a progressiva inibição dos usos mistos no lote.
Tal morfologia, considerada deletéria à dinâ-
mica urbana, perdurou por meio de legislações
URBAN REGULATION AND URBAN FORM. SÃO PAULO IN urbanísticas até 2014. Em 2014 e 2016, promul-
THE 21ST CENTURY gou-se, respectivamente, o Plano Diretor Estra-
tégico (PDE) e sua subsequente Lei de Parce-
LEGISLACIÓN URBANA Y FORMA URBANA. SÃO PAULO lamento, Uso e Ocupação do Solo (LPUOS), leis
EN EL SIGLO XXI que implementaram incentivos à fachada ativa,
diretriz que prefigura contestações à tipologia
do edifício isolado no lote. Visto isso, a pesqui-
TELES, Tatiane
sa analisa em que medida a forma do objeto
Ensino Superior Completo; FAUUSP arquitetônico, condicionada pelos parâmetros
tatiroteles@gmail.com
legais, pode ser considerada ou não um avanço
no tocante à estratégia da LPUOS de 2016 de ga-
rantir “[...] qualidade na relação entre os espa-
ços públicos e privados” (SÃO PAULO (Município),
2016, p. 23) e com relação ao objetivo do artigo
27 do PDE 2014 em que é visado “[...] proporcio-
nar a composição de conjuntos urbanos que
superem exclusivamente o lote como unidade
de referência da configuração urbana, sendo
também adotado a quadra como referência de
composição do sistema edificado” (SÃO PAULO
(Município), 2014, p. 54).

CIDADE DE SÃO PAULO LEGISLAÇÕES URBANÍSTICAS


FORMA URBANA EDIFÍCIO ISOLADO NO LOTE
FACHADA ATIVA

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1788
ABSTRACT RESUMEN

This research deals with the relation of urban Esta investigación aborda la relación entre la le-
legislation and the urban form of the city of São gislación urbana y la forma urbana de la ciudad
Paulo. To this end, the objects of study are laws de São Paulo. Con este fin, los objetos de estudio
that directly affect the shape and insertion of the son leyes que afectan directamente la forma y la
building in the lot, especially after the 1970s. The inserción del edificio en el lote, especialmente
1971 Strategic Master Plan and the 1972 General después de la década de 1970. El Plan Maestro
Zoning Law marked the production of the isolated de Desarrollo Integrado de 1971 y la Ley General
building in the lot typology, preventing the conti- de Zonificación de 1972 marcaron la producci-
nuous connexion between building and city and ón de la tipología de edificios aislados en el lote,
contributing to the progressive inhibition of mi- evitando la relación continua entre el edificio y la
xed uses in the lot. Such morphology, considered ciudad y contribuyendo a la inhibición progresiva
harmful to urban dynamics, lasted through urban de los usos mixtos en el lote. Dicha morfología,
legislation until 2014. In 2014 and 2016, the Stra- considerada perjudicial para la dinámica urba-
tegic Master Plan (SMP) and its subsequent Land na, duró a través de la legislación urbana hasta
Installment, Use and Occupation Law (LIUOL) 2014. En 2014 y 2016, se promulgaron, respecti-
were respectively enacted, laws that implemen- vamente, el Plan Maestro Estratégico (PME) y su
ted incentives for the active façade, a guideline posterior Ley de Instalación, Uso y Ocupación de
that prefigures objection to the typology of the Tierras (LIUOT), leyes que implementaron incenti-
isolated building in the lot. In view of this, the re- vos para la fachada activa, una guía que prefigura
search analyzes the extent to which the shape los desafíos a la tipología del edificio aislado en el
of the architectural object, conditioned by legal lote. En vista de esto, la investigación analiza la
parameters, may or may not be considered an medida en que la forma del objeto arquitectóni-
advance in terms of the 2016 LIUOL strategy of co, condicionado por parámetros legales, puede
ensuring “[...] quality in the relationship between considerarse o no un avance en términos de la es-
public and private spaces” (SÃO PAULO (Municipa- trategia de la LIUOT de 2016 de garantizar “[…] la
lity), 2016, p. 23) and in relation to the objective of calidad en la relación entre los espacios públicos
SMP 2014’s article 27, which aims to “[...] provide y privados” (SÃO PAULO (Municipio), 2016, p. 23) y
the composition of urban complexes that exclu- en relación con el objetivo del artículo 27 del PME
sively exceed the lot as a unit of reference of the 2014, que tiene como objetivo “[...]proporcionar la
urban configuration, the square being also used composición de complejos urbanos que excedan
as a reference for the composition of the built exclusivamente el lote como unidad de referen-
system ”(SÃO PAULO (Municipality), 2014, p. 54). cia de la configuración urbana, siendo también el
bloque adoptado como referencia para la compo-
sición del sistema construido”(SÃO PAULO(Muni-
SÃO PAULO CITY URBAN PLANNING REGULATIONS cipio),2014, p. 54).
URBAN FORM ISOLATED BUILDING IN THE LOT
ACTIVE FAÇADE CIUDAD DE SAO PAULO LEGISLACIÓN FORMA URBANA
EDIFICIO AISLADO EN EL LOTE FACHADA ACTIVA
EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
Dentre as pautas recentes da arquitetura e urba-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
nismo, sobretudo após a aprovação da Lei Federal
de política urbana, Estatuto da Cidade1, destaca-
-se o papel determinante das legislações urba-
vídeo-pôster
nísticas enquanto instrumentos de orientação e
mediação dos mais diversos fatores que incidem

LEGISLAÇÃO URBANÍSTICA E na produção do espaço urbano. (FERREIRA; MA-


RICATO, 2001; NOBRE, 2006; ROSSBACH, 2016;

FORMA URBANA. SÃO PAULO MONTANDON, 2016).

NO SÉCULO XXI Embora tal pauta esteja em voga, nota-se um


predomínio histórico no município de São Paulo
no engajamento para aperfeiçoar os Planos Dire-
URBAN REGULATION AND URBAN FORM. SÃO PAULO IN tores sem, contudo, haver mobilização similar ao
THE 21ST CENTURY que concerne ao desenho urbano normatizado,
sobretudo, pelas Leis complementares de Par-
celamento, Uso e Ocupação do Solo, que por sua
LEGISLACIÓN URBANA Y FORMA URBANA. SÃO PAULO
vez incentivaram a tipologia do edifício isolado no
EN EL SIGLO XXI
lote e apresentaram de 1972 até 2014 caracterís-
ticas, ainda vigentes, consideradas deletérias do
ponto de vista da morfologia urbana2 (NAKANO;
GUATELLA, 2015, p.146).

PLANO DIRETOR DE DESENVOLVIMENTO INTEGRADO


DE 1971 E LEI GERAL DE ZONEAMENTO DE 1972

A primazia programática estava evidente em 1971


quando se promulgou o Plano Diretor de Desenvol-
vimento Integrado (PDDI) e em 1972 configurou-se

1. Na década de 80, concomitante à emergência no país de


políticas neoliberais e a luta pela redemocratização, houve
o crescimento dos movimentos sociais e em 1988, momento
de abertura política brasileira, foram inseridos no capítulo
da Política Urbana na Constituição Federal os artigos 182
e 183 que consolidou a aplicação da função social na pro-
priedade rural e urbana. Tal capítulo foi regulamentado
após 13 anos, em 2001, com a promulgação do Estatuto
da Cidade (BRASIL, 2001), Lei Federal nº 10.257, de 10 de
Julho de 2001, que trata dos instrumentos urbanísticos de
desenvolvimento sobre as dinâmicas de produção da cidade
e cuja operatividade é atrelada a elaboração de um Plano
Diretor Municipal (BONDUKI, 2011; FERREIRA; MARICATO,
2001; FERREIRA, 2003; NOBRE, 2006).

2. [...] urban morphology [...] is the study of physical urban


16º SHCU
form and the people and the processes that shape it.” TA-
30 anos . Atualização Crítica
LEN, Emily. City rules: how regulations affect urban form.
1790 Londres: Island Press, 2012, p. 17-18.
a Lei Geral de Zoneamento do Município de São
Paulo, Lei nº 7.805. Tal Zoneamento regulamentou
parâmetros de taxa de ocupação, coeficiente de
aproveitamento, gabaritos de altura e recuos obri-
gatórios que induziram a produção da tipologia
do edifício isolado no lote.

A produção dessa tipologia foi agravada pelo ins-


trumento urbanístico elaborado sob a coorde-
nação de Benjamim Adiron Ribeiro denominado
“fórmula de Adiron” (NAKANO; GUATELLA, 2015,
p.146). Em síntese, tal fórmula consolidada em ne- Figura 01: Desenho esquemático da morfologia urbana
da quadra após aplicação da instituídos pela Lei Geral
gociação com representantes vinculados à produ-
de Uso e Ocupação do Solo do município de São Paulo de
ção imobiliária, em especial o Secovi e Sinduscon, 1972. Fonte: ROLNIK (2015, online).
permitiu um padrão de verticalização baseado
no aumento do coeficiente de aproveitamento
(CA) até o limite de 4 vezes a área do terreno nas
A altura do edifício, por sua vez, influenciava di-
zonas Z3, Z4 e Z5, e, até o limite de 2 na Z2 para
retamente o tamanho dos recuos obrigatórios
a categoria R3 (conjuntos residenciais) com 50
exigidos por lei, pois o Código de Obras do Muni-
habitações ou mais, mediante diminuição da taxa
cípio de 1992, Lei n° 11.228,4 estabelecia faixas de
de ocupação (TO) (FELDMAN, 2005, p. 273-275).
ventilação e iluminação livres que estavam dire-
tamente relacionados com o número de andares
Como decorrência da manutenção dos princípios
da edificação. Essas exigências resultavam em
da fórmula de Adiron por mais de 40 anos, houve
recuos muito mais restritivos que os estabele-
uma multiplicação da tipologia verticalizada e
cidos pelo zoneamento de 1972 e acentuaram a
isolada no lote, dado que o mercado do setor imo-
implantação do edifício no centro do lote.
biliário, em grande medida, opta pelo acréscimo
de área construída em menor área de projeção Essa tipologia, com sua desarticulação espacial e
e consequentemente no aumento da altura dos formal em relação ao tecido urbano, contrastante
edifícios3. com a morfologia urbana de ocupação perimetral
de quadra, contribuiu para a progressiva inibição
da fachada ativa e dos usos mistos nos lotes5, cuja
aproximação entre o campo privado e o público
é essencial (CARVALHO, 2008, p. 58).

Em entrevista a Jorge Pessoa de Carvalho, Adiron


Ribeiro (2015) descreve que houve propostas por
parte dos representantes do Secovi como alter-
nativas para a não aplicação da proporção inversa
entre coeficiente de aproveitamento e taxa de
ocupação. Dentre elas, foi sugerido a contraparti-
da financeira paga à prefeitura do Município a fim
de adquirir potencial construtivo, o que na época
não foi aceito por Adiron ao considerar que “[...]

4. Faixas de ventilação e iluminação já eram exigidas desde o


3. No caso dos lotes contidos na Z2, zona correspondente
Código de Edificações, Lei de nº 8.266 de 1975, denominadas
a aproximadamente 70% da cidade, ao aplicar a fórmula
faixas livres A1 e A2. Em 1992 tal lei é revogada pelo Código
de Adiron, poderia-se duplicar o coeficiente de aprovei-
de Obras do Município, Lei nº 11.228, onde são estabelecidas
tamento, contanto que se diminuísse a TO para 25%, isso
novas regras para faixas de ventilação “A” e iluminação “I”.
resulta em um edifício 4 vezes mais alto do que o que não
aplica a mesma fórmula. 5. Inibição do uso misto no lote, não na quadra.
EIXO TEMÁTICO 2 esbarraria na ética profissional [...]” (CARVALHO,
2008, p.56). A Outorga Onerosa foi usada pela pri-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS meira vez em São Paulo apenas em 1991, limitado
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES a região da Operação Urbana Anhangabaú, Lei n°
11.090. Tal instrumento foi aprovado pelo Estatuto
da Cidade em 2001 e implementado no Município
paulistano por meio do seu Plano Diretor, em 2002.

PLANO DIRETOR ESTRATÉGICO DE 2002 E LEI DE


PARCELAMENTO, USO E OCUPAÇÃO DO SOLO DE 2004

Em 2002, após trinta anos da aprovação da Lei


Geral de Zoneamento do Município de São Paulo,
foi promulgado o Plano Diretor Estratégico (PDE),
Lei nº 13.430, e em 2004 sua subsequente Lei de
Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (LPUOS),
Lei nº 13.885, ambas com base nos instrumentos
urbanísticos determinados no Estatuto da Cidade
em 2001, estes considerados como formatadores
de um novo paradigma de produção espacial.

Se por um lado, o PDE 2002 e a LPUOS 2004, re-


presentaram um aprimoramento no debate de
instrumentos que orientaram o desenvolvimento
da cidade pertinentes aos temas jurídico-econô-
micos e da função social da propriedade – entre
eles: a outorga onerosa; o parcelamento, edifica-
ção ou utilização compulsórios do solo urbano não
edificado e não utilizado; o IPTU progressivo no
tempo – mesmo com a ressalva de possuírem “li-
mitações” (BONDUKI, 2011, p. 27), por outro lado tal
aperfeiçoamento não foi desenvolvido no âmbito
dos estudos morfológicos que problematizassem
as estratégias de inserção do edifício no lote e
sua relação com a cidade (NAKANO; GUATELLA,
2015, p. 143; MONTANDON, 2016, p. 79).

Como explicado por Daniel Montandon, no PDE


2002 o coeficiente de aproveitamento básico
variava de 1 a 2 mediante duas regras, uma delas
com valores absolutos pré-determinados e a outra
com a flexibilidade de majoração de 1 no valor do
coeficiente básico, atingindo 2, sob a condição
de diminuir a taxa de ocupação. Tal permissão,
além de reiterar formas urbanas da legislação de
1972, contradizia a lógica de aplicação da Outorga
Onerosa uma vez que “[...] incidiu em apenas 12,5%
do total dos empreendimentos imobiliários no
16º SHCU período de vigência do PDE” (MONTANDON, 2016,
30 anos . Atualização Crítica
p. 79) e, portanto, diminuiu o arrecadamento com
1792 a valorização imobiliária gerada que deveria ser
destinado ao Fundo de Desenvolvimento Urbano Art. 297 – Nas zonas Z3, Z4, Z5, Z10 e Z12
(Fundurb) e revertido em melhorias à coletividade. [zonas de uso predominantemente resi-
dencial e zonas de uso misto] da legislação
Art. 166 - Nas atuais zonas Z2, Z11, Z13, Z17 e de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo
Z18 [zonas de uso predominantemente re- em vigor, o coeficiente de aproveitamen-
sidencial, sendo permitido comércio e ser- to básico poderá, mediante a redução de
viços de âmbito local e diversificado] e nos taxa de ocupação permitida, segundo a
corredores de uso especial à elas lindeiras, equação expressa no artigo 166 desta lei e
até a revisão da legislação de parcelamento, a manutenção de área permeável equiva-
uso e ocupação do solo, para categoria de lente a no mínimo 15% (quinze por centro) da
uso R3 01 e R3 02 [empreendimentos imobi- área do lote e a reserva de no mínimo 50%
liários residenciais verticais] , o coeficiente (cinquenta por cento) da área não ocupada
de aproveitamento básico poderá ser bene- para jardim, ser beneficiado de acréscimo,
ficiado de acréscimo, limitado a 1,0 (um), sem podendo chegar a: 4,0 (quatro), no exercício
o pagamento de contrapartida, mediante a de 2002; b) 3,0 (três), no exercício de 2003.
redução da taxa de ocupação permitida, (SÃO PAULO (Município), 2002).
segundo a seguinte equação: CAu = TO/
TOu x CAb.6. (SÃO PAULO (Município), 2002).

Figura 02: Áreas onde, segundo o PDE 2002, o coeficiente de


6. CAu = Coeficiente de Aproveitamento a ser utilizado. TOu aproveitamento básico pode majorar mediante diminuição da
= Taxa de Ocupação a ser utilizada. TO = Taxa de Ocupação taxa de ocupação. Fonte: NAKANO; GUATELLA (2016, p.148).
Máxima admitida. CAb = Coeficiente de Aproveitamento
Básico.
EIXO TEMÁTICO 2 É importante observar que a LPUOS de 2004 re-
afirmou incentivos às tipologias de empreendi-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS mentos imobiliários residenciais verticais isolados
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES no lote (Art. 240) ao mesmo tempo em que não
exigiu recuos em quadras que tivessem mais de
50% de sua face com ocupação perimetral (Art.
185). No entanto, a lógica de lucro regulamentada
nos artigos 166 e 297 provavelmente mitigou a
potencialidade do artigo 185:

Art. 185. Não será exigido recuo mínimo de


frente nas zonas ZM-2 e ZM-3, ZMp, ZCP,
ZCL, ZCPp, ZCLp, ZPI e ZEIS quando no
mínimo 50% (cinquenta por cento) da face
da quadra em que se situa o imóvel esteja
ocupada por edificações no alinhamento
do logradouro, no levantamento aero foto-
gráfico do Município de São Paulo, de 2000.
(SÃO PAULO (Município), 2002).

Art. 240. Até a revisão do PDE e PREs, inde-


pendentemente do coeficiente de aprovei-
tamento máximo estabelecido nos planos
estratégicos regionais, fica mantido o in-
centivo à produção habitacional expresso
nas disposições do artigo 166 do PDE para
a categoria de uso R2v7, nos lotes contidos
nas zonas Z2, Z11, Z13, Z17, Z18 e os corre-
dores de usos especiais a elas lindeiros da
legislação anterior ao PDE [...]. (SÃO PAULO
(Município), 2002).

No período entre o PDE 2002 e o PDE 2014, houve


uma conjuntura de crescente politização sobre a
questão urbana, possibilitando a inserção de no-
vas diretrizes no PDE 2014, dentre elas propostas
relativas à qualificação da interface do espaço
privado com o espaço público.

CONCURSO NACIONAL ENSAIOS URBANOS:


DESENHOS PARA O ZONEAMENTO DE SÃO PAULO

Em consequência do reconhecimento de que a


legislação de Uso e Ocupação do Solo vigente
até 2013 possuía “[...] mecanismos limitadores
ou pouco indutores de tipologias edificadas (...)

16º SHCU
7. Art. 151, inciso III. R2v: conjunto com mais de duas unidades
30 anos . Atualização Crítica
habitacionais agrupadas verticalmente – edifícios de aparta-
1794 mentos ou conjuntos residenciais verticais em condomínio.
integradas ao espaço público [...]” (SÃO PAULO OS 2016, Lei nº 16.402, implementaram estratégias
(Município); IAB-SP, 2013, p. 5), a Prefeitura de São e mecanismos jurídicos e morfológicos de orde-
Paulo e o Departamento de São Paulo do Instituto namento territorial que prefiguram contestações
de Arquitetos do Brasil (IAB-SP) promoveram no à tipologia de edifício isolado no lote - fomenta-
final do mesmo ano o “Concurso Nacional Ensaios da pela “formula de Adiron”. Essas Leis utilizam
Urbanos: Desenhos para o Zoneamento de São instrumentos de flexibilização da definição de
Paulo”. O intuito foi explorar morfologias baseadas áreas computáveis de C.A., e consequentemente
nas diretrizes propostas pelo Projeto de Lei do de outorga onerosa, para inibir ou induzir deter-
Plano Diretor (PL 688/13) que pudessem qualificar minadas formas urbanas, como: diminuição de
o desenho urbano e servissem de subsídios para áreas destinadas à vagas de garagem, calçadas
a revisão da Lei nº 13.885 de 2004. (SÃO PAULO mais largas, fruição pública no pavimento térreo e
(Município); IAB-SP, 2013). estímulo à fachada ativa e edifícios de uso misto.

Dos artigos que constam na Lei nº 16.050 refe-


rentes à contestação do edifício isolado no lote,
PLANO DIRETOR ESTRATÉGICO DE 2014 estão:

No ano de 2013 o PDE 2002 já havia completado Art. 23. Os objetivos urbanísticos estraté-
dez anos de vigência, sendo então o momento de gicos a serem cumpridos pelos eixos de
sua revisão segundo o ciclo decenal estabelecido estruturação da transformação urbana são
pelo Estatuto da Cidade. As críticas feitas em os seguintes:
relação ao PDE 2002 serviram de base para a
revisão do PDE 2014, somado ao aprimoramento [...] VIII - orientar a produção imobiliária da
dos instrumentos dispostos no Estatuto da Cidade iniciativa privada de modo a gerar:
e em partes refreados ou apenas indicados tanto
no PDE 2002 quanto na LPUOS 2004. Dentre esses c) fachadas ativas11 no térreo dos edifí-
avanços está a definição de CAb igual a 1 para toda cios; (SÃO PAULO (Município), 2014, p. 53,
a Macrozona de Estruturação e Qualificação Ur- grifo nosso).
bana8 e CAmáx variando de 2 (com gabarito máximo
de 28m e número de pavimentos sendo térreo Art. 27. De acordo com os objetivos e dire-
mais 8) a 49, para respectivamente áreas fora e trizes expressos neste PDE para macrozo-
dentro da influência dos Eixos de Estruturação nas, macroáreas e rede de estruturação da
da Transformação Urbana (EETU10). transformação urbana, a legislação de Par-
celamento, Uso e Ocupação do solo – LPUOS
O PDE 2014, Lei nº 16.050 e posteriormente a LPU- deve ser revista, simplificada e consolidada
segundo as seguintes diretrizes:
8. Na Macrozona de Proteção e Recuperação Ambiental a
[...] IX- proporcionar a composição de con-
lei definiu parâmetros de ocupação mais restritivos do que
Macroárea de Urbanização Consolidada, com coeficientes juntos urbanos que superem exclusivamen-
de aproveitamento que variam entre o CA mín igual a 0,3 e te o lote como unidade de referência da con-
CAmáx igual a 1, entre outros casos em que o CAmáx é igual a figuração urbana, sendo também adotado
1 ou não se aplica. a quadra como referência de composição
9. “Além de coeficientes mais altos, a produção imobiliária do sistema edificado.
nos eixos também foi estimulada por uma outorga onerosa
menor (metade por m2 na mesma região) do que aquela a
11. Como consta no PDE 2014 e é reiterado na LPUOS 2016, o
ser paga nos chamados miolos de bairros, que devem ser
termo fachada ativa refere-se à: “[...] exigência de ocupação
desestimulados, em decorrência da adoção de uma nova
da extensão horizontal da fachada por uso não residencial
fórmula de cálculo.” (BONDUKI; ROSSETTO, 2018, p.233).
com acesso direto e abertura para o logradouro, a fim de
10. Eixos de Estruturação da Transformação Urbana (EETU) evitar a formação de planos fechados na interface entre as
definidos pelo PDE 2014 são as Zona Eixo de Estruturação construções e os logradouros, promovendo a dinamização
da Transformação Urbana (ZEU) na LPUOS 2016, composta dos passeios públicos (SÃO PAULO (Município), 2014, p. 183;
pelas ZEU, ZEUa, ZEUP, ZEUPa. SÃO PAULO (Município), 2016, p. 62).
EIXO TEMÁTICO 2 [...] XII - estimular o comércio e os servi-
ços locais, especificamente os instalados
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS em fachadas ativas, com acesso direto e
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES abertura para o logradouro; (SÃO PAULO
(Município), 2014, p. 54).

Art. 80. Nas áreas de influência dos eixos,


serão consideradas não computáveis:

[...] IV - as áreas construídas no nível da rua


com acesso direto ao logradouro, em lotes
com testada superior a 20m (vinte metros),
até o limite de 50% (cinquenta por cento) da
área do lote, destinadas a usos classificados
nas subcategorias de usos nR1 ou nR212;
(SÃO PAULO (Município), 2014, p. 70).

Art. 176. São objetivos específicos da Polí-


tica de Desenvolvimento Econômico Sus-
tentável:

[...] IV - incentivar o comércio e os serviços


locais, especialmente os instalados em fa-
chadas ativas, junto às ruas; (SÃO PAULO
(Município), 2014, p. 100).

Tais parâmetros prefiguram maior apropriação


coletiva por meio de um território que, diminui
a importância do automóvel, que considera o
conjunto edificado no lote e sua interface com o
logradouro, e que proporciona maior heterogenei-
dade de usos, dentre outras medidas de regulação
do solo que pressupõe uma antítese ao modelo
morfológico segregador induzido pela legislação
vigente desde a década de 70 até a época de sua
revisão (SÃO PAULO (Município), 2016, p. 15).

LEI DE PARCELAMENTO, USO E OCUPAÇÃO


DO SOLO DE 2016

Seguindo as diretrizes do Plano Diretor Estraté-


gico de 2014, a LPUOS 2016 especificou parâme-
tros e mecanismos jurídicos e morfológicos de
ordenamento territorial. Dentre as normativas
há a flexibilização de áreas computáveis de CA,
e consequentemente de outorga onerosa, que
podem inibir ou induzir determinadas formas ur-

16º SHCU
12.  nR1: uso não residencial compatível com a vizinhança
30 anos . Atualização Crítica
residencial; nR2: uso não residencial tolerável à vizinhança
1796 residencial.
banas, como: diminuição de áreas destinadas a respectivas zonas, até o limite de:
vagas de garagem, calçadas mais largas, fruição
pública no pavimento térreo, estímulo à fachada a) 50% (cinquenta por cento) da área do lote
ativa e edifícios de uso misto, inclusive àqueles nas ZEU, ZEUa, ZEUP, ZEUPa, ZEM, ZEMP,
destinado a habitação de interesse social: ZC e ZCa;

Ao que concerne à diretriz de “Qualificar a vida b) 20% (vinte por cento) da área do lote nas
urbana dos bairros”, a LPUOS 2016 reitera: demais zonas; (SÃO PAULO (Município), 2016,
p.64)
O novo zoneamento busca garantir o direito
das pessoas à cidade, proporcionando di-
versidade de usos, disponibilidade de es-
paços verdes e qualidade na relação entre Art. 71. A fachada ativa, ocupada por uso
os espaços públicos e privados. Para isso, não residencial (nR) localizada no nível do
a nova lei orienta como cada lote deve con- logradouro, deverá:
tribuir para uma melhor convivência nos
I - estar contida na faixa de 5m (cinco me-
bairros e na cidade. O atual modelo de pro-
dução imobiliária em São Paulo pouco dialo- tros) a partir do alinhamento do lote, me-
ga com o pedestre. Edifícios com calçadas dida em projeção ortogonal da extensão
estreitas, muros altos em quadras extensas horizontal;
e empenas cegas são exemplos de como a
II - ter aberturas para o logradouro público,
circulação de pedestre é prejudicada, além
tais como portas, janelas e vitrines, com
de gerar desconforto e insegurança. (SÃO
permeabilidade visual, com no mínimo 1
PAULO (Município), 2016, p. 23).
(um) acesso direto ao logradouro a cada
Dos artigos na Lei nº 16.402 referente à fachada 20m (vinte metros) de testada, a fim de evi-
ativa, tem-se: tar a formação de planos fechados sem
permeabilidade visual na interface entre
Art. 57. São parâmetros qualificadores da as construções e o logradouro, de modo a
ocupação, de modo a promover melhor re- dinamizar o passeio público.
lação e proporção entre espaços públicos
e privados: I-fruição pública; II-fachada § 1º O recuo entre a fachada ativa e o
ativa; III-limite de vedação do lote; IV-desti- logradouro público deve estar fisicamente
nação de área para alargamento do passeio integrado ao passeio público, com acesso
público. (SÃO PAULO (Município), 2016, p.62, irrestrito, não podendo ser vedado com
grifo nosso) muros ou grades ao longo de toda a sua
extensão, nem ser ocupado por vagas
Art. 62. São consideradas áreas não com- de garagem ou usado para manobra de
putáveis13: veículos, carga e descarga e embarque e
desembarque de passageiros.
VII - as áreas construídas no nível da rua com
fachada ativa mínima de 25% (vinte e cinco § 2º Nas vias que não possuam faixa
por cento) em cada uma das testadas e de no exclusiva ou corredores de ônibus, o recuo
mínimo 3m (três metros) de extensão, des- entre a fachada ativa e o logradouro público
tinadas a usos classificados na categoria poderá abrigar excepcionalmente vagas
não residencial que sejam permitidos nas de estacionamento de automóveis desde
que limitado a no máximo 20% (vinte por
13. “Art. 62, § 2º A somatória das áreas construídas não cento) da testada do imóvel e autorizado
computáveis referidas nos incisos I a VI do “caput” deste por órgão competente de trânsito. (SÃO
artigo fica limitada a 59% (cinquenta e nove por cento) do PAULO (Município), 2016, p.66-68).
valor correspondente à área construída total da edificação,
excluídas as áreas não computáveis previstas nos incisos Art. 87. Nas ZEU, ZEUa, ZEUP, ZEUPa, ZEM,
VII a XVI.” (SÃO PAULO (Município), 2016, p. 64). ZEMP, ZC e ZCa, quando a área do lote for
EIXO TEMÁTICO 2 superior a 10.000m² (dez mil metros qua-
drados) e menor ou igual a 20.000m² (vinte
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS mil metros quadrados), será obrigatória a
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES adoção dos seguintes parâmetros qualifi-
cadores da ocupação:

I - fruição pública nos empreendimentos


de usos não residenciais permitidos nas
respectivas zonas, em área equivalente a
no mínimo 20% (vinte por cento) da área do
lote, em espaço livre ou edificado;

II - limite de 25% (vinte e cinco por cento)


de vedação da testada do lote com muros;

III - fachada ativa em no mínimo 25% (vinte


e cinco por cento) da testada do lote em
empreendimentos residenciais ou não re-
sidenciais. (SÃO PAULO (Município), 2016,
p.74).

Art. 126. Nos edifícios-garagem não incidirá


contrapartida financeira da outorga onero-
sa de potencial construtivo adicional desde
que as áreas edificadas nos pavimentos de
acesso sejam destinadas a outros usos não
residenciais, que possuam a fachada ativa e
que seja aplicada no mínimo 50% (cinquenta
por cento) de cobertura verde na edificação.
(SÃO PAULO (Município), 2016, p. 92).

Outra diretriz que pode contribuir qualitativa-


mente para o desenho urbano é apresentada
no Art. 66 da LPUOS. Nele, os recuos laterais e
de fundo são dispensados para quase todas as
zonas14 cuja edificação tenha até 10 metros de
altura, ou quando o vizinho já possui edificação
encostada no lote, ou em terrenos com até 250m²
com declividade ou frente até 10m lineares (SÃO
PAULO (Município), 2016, p. 66). Esses parâmetros
possibilitam a tipologia do edifício base-torre, na
qual se admite tanto a necessidade de isolamento
do edifício para aeração e insolação, como tam-
bém o reconhecimento da base, interface entre
o espaço do lote e seu entorno público.

É fundamental perceber que apesar dessa


tipologia base-torre ter sido permitida na LPUOS
2004 para edificações com até 6m de altura (Art.
16º SHCU
186), torna-se uma morfologia com potencialidade
30 anos . Atualização Crítica

1798 14. Exceto para ZPI-1, ZPI-2 e ZDE-2.


reduzida ao existir na mesma Lei incentivos térreo, que por sua vez está diretamente relacio-
financeiramente mais rentáveis e para uma tipo- nada com a interface pública.
logia torre isolada no lote. Dessa forma, compre-
ende-se que o grande progresso da LPUOS 2016 Edificações distantes do limite frontal do lote ou
não foi a possibilidade da tipologia base-torre, com grandes dimensões de recuos laterais tem
mas a não proposição de medidas profusamente maior propensão a não qualificar positivamente
contraditórias à própria estratégia. o passeio público. Por sua vez, o contrário não
é verdade, pois mesmo edificações cujas bases
Por fim, sobre larguras mínimas dos passeios são limítrofes ao lote, podem conter dispositivos
públicos, normatizou-se no Art. 67 15 que: “Em que reiterem o ensimesmamento de enclaves.
ZEU, ZEUa, ZEUP, ZEUPa, ZEM, ZEMP, ZC, ZCa,
ZM e ZEIS, os passeios públicos deverão ter a Deste modo, tanto a tipologia torre, como a base-
largura mínima de 5m” observando os incisos I -torre, podem compor ou não a unidade da quadra,
e II. Nas demais zonas não há dimensão mínima desde que seus recuos laterais e frontais não
para a largura do passeio público, exceto nos ca- tenham dimensões que provoquem uma aeração
sos de projeto de parcelamento do solo, em que no uso do passeio público. Para empreendimen-
devem ser observadas as medidas do Quadro 2B tos com gabaritos de altura maior que 10m, ou
da LPUOS 2016. cujos recuos laterais de grandes dimensões se-
jam compulsórios por lei, a tipologia base-torre
Assim como na LPUOS 2004 (Art. 185), na LPUOS de ocupação perimetral tem a potencialidade
2016 (Art. 69) fica dispensada a exigência de re- de - associada a outras edificações - configurar
cuos de frente para os lotes em que mais de 50% o quarteirão como referência morfológica sem
da face da quadra onde estão localizados tenham se opor aos recuos para ventilação e iluminação
edificações sem recuos em relação ao logradouro. dos volumes verticalizados.

TIPOLOGIAS RECONHECÍVEIS COM FACHADA ATIVA


ANÁLISE DOS PARÂMETROS APLICADOS
Após estudos dos parâmetros de ocupação nas ÀS TIPOLOGIAS TORRE E BASE-TORRE
diversas zonas do município de São Paulo, foram
reconhecidas 2 tipologias: tipologia torre e tipo- Para ambas as tipologias, em ZEU, ZEUa, ZEUP,
logia base-torre. ZEUPa, ZEM, ZEMP, é facultativo a adoção de re-
cuo frontal de até 5m para empreendimentos com
Dado o reconhecimento de tais tipologias, per- fachada ativa (Art. 12 do decreto nº 57.521/16). Nas
cebe-se que a qualificação do espaço urbano é demais zonas, o recuo frontal de 5m é obrigató-
resultado de uma conjunção de variáveis morfoló- rio (Quadro 03 da LPUOS 2016), exceto em casos
gicas, algumas são objeto deste estudo tipológico que atendam o disposto no Art. 69. onde “[...] não
e outras o extrapolam, como: a diversidade de será exigido recuo mínimo de frente quando, no
usos e funções dos empreendimentos, as trans- mínimo, 50% (cinquenta por cento) da face de
parências dos planos, e a posição dos acessos quadra em que se situa o imóvel esteja ocupada
às edificações, cuja frequência e disposição de- por edificações no alinhamento do logradouro
terminam as trocas entre o espaço do lote e o [...]” (SÃO PAULO (Município), 2016, p. 66).
passeio público.
Dessa forma, em ZEU, ZEUa, ZEUP, ZEUPa, ZEM
Ao que concerne somente às tipologias, nota-se e ZEMP16, como consequência dos 5m de largura
que tanto a “torre”, quanto a “base-torre”, apre- exigidos para o passeio público e de até 5m de
sentam possibilidades de qualificação do espaço recuo frontal opcional, pode-se totalizar 10m de
público, dependendo da configuração do nível largura entre o limite do lote e o início do empreen-

15. Soma-se ao artigo 67 complementações sobre a largura 16. Em ZC e ZCa o alargamento do passeio público é obri-
de passeios públicos dispostos no artigo 9º do Decreto gatório somente para lotes com área superior a 2.500m²,
Municipal de São Paulo, n° 57.521, de 2016. conforme inciso II do Art. 67 da LPUOS 2016.
EIXO TEMÁTICO 2 dimento, além dos recuos laterais sem dimensão
máxima definida
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Se por um lado, identifica-se que o maior incentivo
à estratégia de fachada ativa (até 50% da área do
lote) em ZEU, ZEUa, ZEUP, ZEUPa, ZEM, ZEMP,
ZC, ZCa, é coerente com o maior adensamento
populacional que se deseja nessas zonas, atrelado
a requisitos de larguras mínimas de calçada, por
outro, permanece a dúvida sobre a facultatividade
de recuos frontais no lote e sua obrigatoriedade
para as demais zonas.

Extrapolando os estudos tipológicos de inserção


do edifício no lote, o Art. 71 da LPUOS 2016 objetiva
qualificar a fachada ativa. Para além da restrição
de até 5m de recuo frontal desde o alinhamento
do lote (medida em projeção ortogonal da ex-
tensão horizontal), o artigo normatiza a existên-
cia de aberturas para o logradouro, que podem
ser portas, janelas ou vitrines e, no mínimo, um
acesso a cada 20m de testada. Somado a tais
determinações:

§ 1º O recuo entre a fachada ativa e o lo-


gradouro público deve estar fisicamente
integrado ao passeio público, com acesso
irrestrito, não podendo ser vedado com
muros ou grades ao longo de toda a sua
extensão, nem ser ocupado por vagas de
garagem ou usado para manobra de veí-
culos, carga e descarga e embarque e de-
sembarque de passageiros. (SÃO PAULO
(Município), 2016, p. 68).

Entretanto, o que se vê são imagens de lançamen-


tos imobiliários com a apropriação dos incentivos
à fachada ativa, conforme às normativas da LPU-
OS 2016, sem, contudo, estimular apropriação das
calçadas (trocas e encontros). Empreendimentos
cujo projeto vale-se de recuos frontais de grandes
dimensões, de paisagismos, de vidros espessos
ou demais soluções projetuais que sugerem mais
o fechamento e isolamento do que uma fachada
que deveria por essência ser ativa, distanciando
assim a parcela do público considerada indesejada
para aquele espaço.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1800
Figura 03: Fachada ativa do Edifício Luminus Jardins, Jar-
dim Paulista, São Paulo. Fonte: LUMINUSJARDINS (online).

Figura 04: Fachada ativa do Edifício Helbor Wide, Pinhei-


ros, São Paulo. Fonte: HELBOR WIDE SÃO PAULO (online).

Figura 05: Fachada ativa do Edifício Bem Viver General


Jardim, Vila Buarque, São Paulo. Fonte: MAGIK (online).

A constatação dessa potencialidade mitigada


aponta três caminhos que deveriam ser conside-
rados. O primeiro trata de uma avaliação e mo-
nitoramento quantitativo desses exemplares, o
que torna possível compreender se os incentivos
EIXO TEMÁTICO 2 fiscais têm gerado efeito sobre a produção imo-
biliária com empreendimentos de fachada ativa.
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS O segundo é a averiguação qualitativa desses
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES empreendimentos que, embora sigam a Lei, não
qualificam a produção da cidade como almejado.
E o terceiro, com base nos dois primeiros pontos,
entender as potencialidades e as deficiências
dos objetivos.

Esse constante questionamento pela Prefeitura,


parcialmente realizado e de forma ainda limita-
da17, após 5 anos e meio de PDE 2014 e 4 anos de
LPUOS 2016, deve ser progressivamente aperfei-
çoado para que seja possível ter uma avaliação
precisa do cenário existente e então configurar
proposições conscientes da produção da cidade.

Dos encaminhamentos legislativos, deve-se reco-


nhecer o deferimento de artigos da LPUOS 2016,
que se referindo ou não à fachada ativa, contri-
buem para uma possível composição morfológica
e para a contestação de grandes empreendimen-
tos deletérios ao espaço público. São eles: o Art.
69 (permitindo o alinhamento de testadas em
faces de quadra cuja ocupação existente apre-
sente mais de 50% com essa característica); as
diretrizes do Art. 66, (isenção de recuos laterais
e de fundo para empreendimento com até 10m
de altura, ou para lotes com área de até 250m²
e declividade, ou com dimensão frontal inferior
a 10m); e o Art. 87. (compulsoriedade de fachada
ativa para no mínimo 25% da extensão da fachada
em empreendimentos com área entre 10.000m²
e 20.000m²).

Com base nos objetivos de visão da cidade do PDE


2014, Art. 27 de “ [...] proporcionar a composição de
conjuntos urbanos que superem exclusivamente o
lote como unidade de referência da configuração
urbana, sendo também adotado a quadra como
referência de composição do sistema edificado”,
pergunta-se: como a legislação direciona a ação
do mercado para que a quadra seja uma referência
morfológica?

Em um tecido urbano tão complexo como o do


Município de São Paulo, marcado por um panora-

17. Informação fornecida por Rafael Mielnik (2019), membro


16º SHCU
da Prefeitura Municipal de São Paulo (SMDU/PLANURBE) e
30 anos . Atualização Crítica
assessor técnico responsável pelo monitoramento e ava-
1802 liação da implementação do Plano Diretor.
ma em que nos últimos 50 anos compreendeu-se
como usual uma morfologia urbana deletéria à
heterogeneidade e à integração, de que modo a
lei, cujo foco é sobretudo no adensamento cons-
trutivo e populacional, induz que esses novos
empreendimentos qualifiquem o espaço público
junto às frentes dos lotes buscando estimular a
diversidade de usos e a qualificação dos espaços
públicos?

Compreende-se que há uma multiplicidade de


ocupações urbanas que devem ser cuidadosa-
mente analisadas, mas é fundamental que flexi-
bilidades da legislação devam ser propostas para
que cenários diversos sejam considerados e não
para manter morfologias que contribuam para a
segregação socioespacial.

Para tanto, dever-se-ia estabelecer estratégias


mais enfáticas de desenho urbano, como por
exemplo: obrigatoriedade de fachada ativa para
algumas localidades, mesmo em empreendi-
mentos cujo lote tenha área inferior a 10.000 m²;
estipular que novos empreendimentos, e em de-
terminadas zonas, apresentem alargamentos de
passeio públicos desejáveis sem recuos frontais,
independente do seu uso; e normativas mais im-
positivas em relação a elementos que de fato qua-
lifiquem a interface do lote com o passeio público.

Outra proposição factível, descrita por Noto,


intitula-se “Lei de Eventos”, na qual incentivos
fiscais normatizam dentro da unidade da quadra
a “ [...] obrigatoriedade e implantação de número
mínimo de eventos urbanos por frentes de rua [...]”
(NOTO, 2017, p.279) diretamente relacionados ao
espaço público. Tal instrumento viabiliza índices
qualificadores de contato entre o lote e o espaço
público da cidade, estimulando interação nessa
interface, inclusive em usos exclusivamente resi-
Figura 06: Quadro explicativo sobre a Lei de Eventos,
denciais, articulando com coerência a ocupação
proposta na tese de doutorado de Felipe Noto. Fonte:
perimetral independente do uso do térreo. NOTO (2017, p. 280).

Embora os incentivos à fachada ativa suscitem


a contestação de empreendimentos monofun-
cionais isolados no lote, é fato que a legislação
urbanística regulada até o momento – seja pelo
prazo restrito de configuração das leis, pelas suas
escalas de trato com a produção da cidade, ou
ainda por inexistência de leis de ordenamento da
paisagem – é incapaz de superar as limitações in-
EIXO TEMÁTICO 2 dividuais do lote, na qual coloca-se como faculta-
tivas decisões fundamentais de desenho urbano.
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerada uma importante estratégia de po-


lítica urbana, a “fachada ativa” contrapõe-se à
setorização de usos e tem como propósito qua-
lificar a interface do lote com o passeio público
por meio de usos não residenciais no térreo, ins-
talados próximo ou no limite do lote, sem planos
fechados, permitindo a permeabilidade visual
e acesso irrestrito e fisicamente integrado aos
espaços coletivos da cidade.

Se por um lado as virtualidades da “fachada ativa”


são concordantes ao projeto de cidade preconi-
zado pelo PDE 2014, por outro, no detalhamento
da diretriz, apresentado ao longo da LPUOS 2016,
revelou-se uma insuficiência da normativa urba-
nística como orientação à produção do espaço e
cuja potencialidade, já limitada, permite a subver-
são pelo mercado imobiliário. Esse, adaptado a
uma geratriz comum, que nos últimos 50 anos, ao
menos, produziu amplamente tipologias isoladas
no lote. Edificações rarefeitas, monofuncionais,
enclaves ladeados por um extenso muro com
poucos acessos, inibindo qualquer possibilida-
de de apropriação do passeio público e concen-
trando equipamentos de lazer que enfatizam o
ensimesmamento da vida urbana e a segregação
socioespacial.

Tanto a limitação da normativa em si, quanto a da


sua aplicação, estão evidenciadas no descompas-
so entre objetivo (discurso) e resultado. Transgre-
dindo a lógica da função social da propriedade,
em que o direito à propriedade é associado a uma
função social, a legislação que incide sobre a mor-
fologia urbana, como advoga Noto, deveria “[...]
ser entendida não como um entrave à liberdade
projetual, mas como manifestação do interesse
coletivo.” (NOTO, 2017, p. 352), e aqui, poder-se-ia
compreender não só as “fachadas ativas”, mas
expandindo o dever de qualificação do espaço
público aos diversos usos que compõe a cidade,
dentro, é claro, de suas delimitações.

16º SHCU No decurso deste estudo buscou-se compreender


30 anos . Atualização Crítica
em que medida a forma do objeto arquitetônico,
1804 condicionada pelos parâmetros legais pós PDE
2014, em especial pela “fachada ativa”, pode ser de privilégios a uma pequena parte da população
considerada ou não um avanço do ponto de vista (FERREIRA, 2013, online).
de uma cidade heterogênea e não segregadora,
dado o reconhecimento que o PDE 2014 e a LPUOS Em meio a diversas questões, o autor defen-
2016 implementaram instrumentos qualificadores dia a ideia de que, para superar a segregação
de ocupação do solo considerados formatadores socioespacial, o novo plano deveria pautar-se
de um novo paradigma na produção espacial da fundamentalmente não apenas no adensamento
cidade. populacional de algumas regiões, mas também na
garantia de “quem adensa”, referindo-se à inclusão
Defrontando esse questionamento, pode-se di- da parcela de menor renda da população.
zer que reverter o desequilíbrio entre os lugares
residenciais e de trabalho, e equilibrar melhor o Concordando com Ferreira (2013, online) sobre as
adensamento populacional e construtivo, com escassas oportunidades de acesso à terra urbana
multiplicidade de usos e funções, sobretudo, ao pela população mais pobre, soma-se também a
longo dos eixos de transporte coletivo, contri- falta de normativas de ocupação do solo que de
buirá, por certo, para a melhoria da vida urbana. fato contribuam e reconheçam “[...] o vasto tecido
Contudo, a estratégia “fachada ativa” não deve periférico genérico da cidade, que reproduz sobre
ser vista como um fim em si mesma, pois mesmo um parcelamento predominantemente irregular
se implementada de modo a qualificar o espaço – ou tornado regular por ações remediadoras do
público, como estratégia unitária é insuficiente Poder Público – uma ocupação horizontal e de alta
para democratizar a ocupação do espaço urbano. densidade, sem atenção às regras postulativas da
legislação vigente (NOTO, 2017, p. 254).
Um projeto de cidade capaz de agir sobre a segre-
gação socioespacial deve considerar uma relação Sem distender em demasia sobre temas que so-
sistêmica entre um compêndio de instrumentos breexcedem esta pesquisa, vale evidenciar alguns
que possibilitem, não só, o acesso à terra, como instrumentos presentes no PDE 2014 e/ou na LPU-
também, a apropriação das mais diversas funções OS 2016 que, embora não radicalizem a reforma
da cidade, dentro da compreensão dialética do urbana, buscam de algum modo o questionamento
espaço enquanto produto e produtor das relações da segregação socioespacial. Tais considera-
sociais. ções resultam do aperfeiçoamento de debates
advindos da década de 80 ou da necessidade de
No final de 2013, em texto sobre o que na épo-
enfrentamento a demandas contemporâneas,
ca era o projeto de Plano Diretor que viria a ser
resultando em normativas como: a determinação
aprovado em 2014, Ferreira (2013, online), argu-
do CA básico igual a 1 para toda a cidade; desti-
mentou que as políticas “[...] não radicalizam no
nação mínima dos recursos do FUNDURB para
enfrentamento da segregação social, e na prática
habitação social, transporte público e mobilidade
permitem o status quo ”. Dentre outras questões
postas, o autor apresentou a ênfase histórica de ativa; o PEUC18; a ampliação de área destinada à
investimentos por parte do governo no quadrante ZEIS e a correção de suas faixas de atendimento;
sudoeste, resultando em um acentuado desequi- e a Cota de Solidariedade19. Instrumentos, que tal
líbrio do tecido urbano e desconsiderando nessa
equação a parcela informal e mais vulnerável da 18. “Mesmo em São Paulo, após todos esses avanços, no-
cidade de São Paulo. ta-se que, a partir de 2017, a gestão municipal deixou de
dar prioridade ao enfrentamento dessa questão, o que se
Ao inverso da racionalidade de adensamento po- evidencia na desestruturação do departamento respon-
pulacional nas áreas com maior infraestrutura sável e na drástica redução no número de notificações.”
e com concentração das diversas funções es- (BONDUKI; ROSSETTO, 2018, p. 223).
senciais da cidade (serviços, transportes, lazer, 19. A Cota de Solidariedade, nas suas várias propostas,
cultura), tal região constitui-se como o quadrante constituiu-se como um instrumento paradigmático com
de aglutinação da zona exclusivamente residen- potencialidade para contestar a lógica de segregação es-
cial com predominância de lotes de médio porte pacial. Todavia, o modo como foi aprovado e uma análise
(ZER-1), cujos parâmetros de ocupação do solo pormenorizada dos empreendimentos que a utilizaram,
garantem, desde a década de 80, a manutenção evidencia as lacunas e limitação do próprio instrumento.
EIXO TEMÁTICO 2 como a diretriz de fachada ativa, compartilham
de avanços e limitações, teóricos e práticos.
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Por certo ainda não houve êxito no enfrentamento
do impasse disciplinar entre arquitetura e ur-
banismo, em que haja normativas de desenho
urbano que superem a individualidade do lote,
contribuindo para a qualificação do espaço públi-
co e sua apropriação coletiva. Todavia, em meio a
progressos e retrocessos, tal crítica só subsiste
pois nas últimas décadas tem havido uma mudan-
ça de reivindicações por parte da população que
vive na cidade, advindas de uma compreensão
de direito à cidade diferente do formulado nos
anos 1980 e 1990. No livro intitulado “A reforma
urbana no Plano Diretor Estratégico de São Paulo
de 2002 – 2014” Bonduki e Rossetto expõe:

[...] novos temas estão entrando em pauta,


além da tradicional agenda da reforma urba-
na construída no Brasil nos anos 1980 e 1990,
no âmbito da luta por direitos mínimos de
cidadania. Se para os trabalhadores que mi-
graram do campo entre 1940 e 1990 o acesso
à terra, casa própria, infraestrutura (trans-
porte coletivo, água, luz, iluminação pública
e coleta de lixo) e serviços sociais (educação
fundamental, atendimento básico de saú-
de, seguridade social), mesmo precário,
já significava um avanço significativo em
relação ao completo abandono e exploração
que viviam no campo, isso se tornou insufi-
ciente para as novas gerações. O desafio é
imenso porque, apesar dos avanços, o país
chegou ao século XXI sem ter conseguido
responder integralmente a essa agenda
básica do direito à cidade (que continua
sendo necessária), mas, simultaneamen-
te, passou a ser cobrado por uma segunda
pauta. (BONDUKI; ROSSETTO, 2018, p. 248).

A construção da agenda urbana atual passa


pela ampliação do significado do direito à
cidade e pelo questionamento do antigo mo-
delo de desenvolvimento, que se baseava
em elementos como a cultura do automóvel
e a privatização do espaço viário por ele
gerada; a cidade segregada; a mercanti-
lização dos serviços urbanos; a ideologia
16º SHCU de segurança; o desprezo pelo espaço
30 anos . Atualização Crítica
público e pelo meio ambiente; a rejeição
1806 ao compartilhamento de bens, espaços e
serviços urbanos; a cultura do desperdício; para toda a problemática, historicamente ainda
a intolerância às minorias e aos diferentes. existente em nossa sociedade, cuja segregação
(BONDUKI; ROSSETTO, 2018, p. 249). ideológica materializa-se categoricamente na
produção e reprodução do espaço urbano. Como
Como afirmam os autores, as pautas manifesta- afirma Bonduki e Rossetto, na atual conjuntura,
das por essa nova geração já se colocavam muito desconceituar os limitados avanços seria enfati-
presentes nas legislações ao longo da década zar a segregação estrutural, o esfacelamento nas
de 2010 e serviram de base para a formulação políticas públicas e nos direitos civis vividos no
do novo modelo de cidade objetivado pelo PDE país (BONDUKI; ROSSETTO, 2018, p. 252).
2014. Dentre a multiplicidade de reivindicações
- o cuidado com o meio ambiente (agroecologia e
agricultura urbana; preservação da memória e do
patrimônio arquitetônico), a defesa do transporte
coletivo e da mobilidade ativa (não motorizada), o
fomento à pluralidade cultural, a defesa de igual-
dades e liberdades fundamentais (étnicas, de
gênero, sexual, religiosa) - destaca-se o respeito
à diversidade, a sociabilidade, fundamentados no
compartilhamento, na reapropriação e na gestão
do espaço público negado nas década passadas.
(BONDUKI; ROSSETTO, 2018, p. 249-252).

Essas mudanças de perspectivas, que resultaram


na consolidação de artigos inseridos na Consti-
tuição Federal de 1988 e legislações urbanísticas
posteriores, sustentam a afirmação de Maricato
(2000, p.34), de que a inversão do paradigma urba-
no não é possível sem reverter a compreensão das
relações sociais. Ou seja, resultado de diversas
disputas ideológicas, os PDEs e as LPUOSs, tanto
dos anos 2000 quanto de 2010 representam nas
legislações e no espaço as mais diversas concep-
ções dos diferentes segmentos sociais20.

Apesar das legislações urbanísticas, desde a


Constituição Federal de 1988, apontarem avan-
ços possíveis, ainda são insuficientes tanto no
campo da morfologia urbana, quanto nas demais
questões de “[...] dar conta dos problemas gerados
pela urbanização acelerada na segunda metade
do século passado, assim como para responder
às novas demandas do século XXI, vindas de uma
sociedade que há cinco décadas é predominan-
temente urbana e apresenta novas expectativas.
” (BONDUKI; ROSSETTO, 2018, p. 247).

Ainda assim é fundamental não desconsiderar


os avanços obtidos até o momento, mas atentar

20. Tais embates são apresentados no texto “O processo


participativo como instrumento de construção pactuada
do Plano Diretor” (BONDUKI; ROSSETTO, 2018, p.192-230).
EIXO TEMÁTICO 2 REFERÊNCIAS
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
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plina e ordena o Uso e Ocupação do Solo do
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16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1810
1811
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES A história do desenvolvimento urbano do Dis-
trito Federal, DF, é marcada pelos esforços de
preservação da área do Conjunto Urbanístico de
vídeo-pôster Brasília em contraposição a expansão por meio
da criação de núcleos dispersos no território
em que o funcionalismo modernista também
LEI DE USO E OCUPAÇÃO DO foi presente, porém não garantiu as mesmas
qualidades sócio espaciais ao entorno. O plane-
SOLO DO DISTRITO FEDERAL: jamento urbano do DF foi constituído de planos
de ordenamento territorial desde os anos 1970.
ANÁLISE NO CONTEXTO Muito se evoluiu no diagnóstico, caracterização
e sistematização de dados da situação urbana,
HISTÓRICO DISTRITAL porém as ações do planejamento, que em geral
se limitam ao zoneamento, não têm se mostra-
do capazes de dar respostas aos complexos
URBAN USE AND OCCUPATION LAW FROM FEDERAL
problemas da cidade. Esse trabalho dedica-se
DISTRICT – ANALISYS IN DISTRICT’S HISTORICAL
a uma leitura crítica dos objetivos e instrumen-
CONTEXT
tos propostos pela recém publicada Lei de Uso
e Ocupação do Solo do DF (LUOS) os relacionan-
LEY DE USO Y OCUPACIÓN DEL SUELO DEL DISTRITO do à capacidade e as limitações de promoção
FEDERAL: ANÁLISIS EN EL CONTEXTO HISTÓRICO de qualidades pretendidas no próprio texto da
lei. Alguns instrumentos e conceitos da teoria
SAPORI AVELAR, Clarissa da sintaxe espacial são utilizados como aporte
para conduzir a análise crítica, explorando e re-
Arquiteta e Urbanista (UFMG); Mestranda em Planejamento
lacionando a forma que o espaço do DF assumiu
Urbano (FAU/UNB)
clasapori@gmail.com
e as condutas legislativas ao longo dos anos.
Dentro desse recorte buscamos interpretar
evoluções e limitações da LUOS. As estratégias
em seu texto não parecem inovar no enfrenta-
mento de problemas bem conhecidos na dinâ-
mica urbana histórica distrital.

PLANEJAMENTO URBANO LEGISLAÇÃO URBANA


LEI DE USO E OCUPAÇÃO DO SOLO
ZONEAMENTO TERRITORIAL CONFIGURAÇÃO ESPACIAL

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1812
ABSTRACT RESUMEN

The history of urban development in the Federal La historia del desarrollo urbano en el Distrito
District (DF) is marked by the efforts to preserve Federal, DF, es marcada por los esfuerzos para
the Urban Heritage Site of Brasilia and, in con- preservar el área del Complejo Urbano de Brasilia
trast, by the disperse urban sprawl with the cre- en contraposición de la expansión a través de la
ation of distant centralities in it’s territory, where creación de núcleos dispersos en el territorio, en
the modernist functionalism was also present, que el funcionalismo modernista también estaba
but did not guarantee the same socio-spatial presente, pero no garantizaba las mismas cuali-
qualities. Urban planning in the Federal District dades socioespaciales. La planificación urbana
has been constituted by land use Plans since the en el Distrito Federal ha estado constituida por
1970s. The diagnosis, characterization and syste- planes de planificación espacial desde la década
matization of information about the urban situa- de 1970. Mucho ha evolucionado en el diagnóstico,
tion have evolved a lot, but planning actions ge- caracterización y sistematización de datos sobre
nerally were limited to zoning, and it seems to not la situación urbana, pero las acciones de planifi-
have been capable of providing answers to the cación, que en general se limitan a la zonificación,
city’s complex problems. This work is dedicated se han mostrado incapaces de proporcionar res-
to make a critical evaluation of the objectives and puestas a los complejos problemas de la ciudad.
instruments proposed by the recently published Este trabajo está dedicado a una lectura crítica
Land Use and Occupation Law of the DF (LUOS), de los objetivos e instrumentos propuestos por la
relating them to the potentialities and limitations Ley de Uso y Ocupación de Tierras del DF (LUOS)
of promoting the intended qualities of the law. recientemente publicada, relacionándolos con la
Some instruments and concepts of the theory of capacidad y las limitaciones de promover las cua-
spatial syntax are used as inputs to conduct the lidades previstas en el texto de la ley. Algunos ins-
critical analysis, exploring and relating the physi- trumentos y conceptos de la teoría de la sintaxis
cal arrangement that DF’s territory has assumed espacial son utilizados como entrada para llevar
and the legislative procedures over the years. a cabo el análisis crítico, explorar y relacionar la
Within this context, we seek to interpret LUOS’s forma que ha asumido el espacio del DF y las con-
evolutions and limitations. The strategies in its ductas legislativas a lo largo de los años. Dentro
text do not seem to be innovative in addressing de este marco, buscamos interpretar la evolución
well-known problems in the district’s historic ur- y las limitaciones de LUOS. Las estrategias en su
ban dynamics. texto no parecen ser innovadoras para abordar
problemas bien conocidos en la dinámica urbana
histórica del DF.
URBAN PLANNING URBAN LEGISLATION
LAND USE AND OCCUPATION LAW LAND ZONING
PLANIFICACIÓN URBANA LEGISLACIÓN URBANA
SPATIAL CONFIGURATION
USO DE LA TIERRA Y LEY DE OCUPACIÓN
ZONIFICACIÓN TERRITORIAL CONFIGURACIÓN ESPACIAL
EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
“Exceção feita ao zoneamento – o único
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
aspecto do planejamento urbano brasileiro
que tem sido vivo e consequente, embora
sabidamente elitista – o planejamento ur-
vídeo-pôster
bano no Brasil tem sido fundamentalmente
discurso, cumprindo missão ideológica de

LEI DE USO E OCUPAÇÃO DO ocultar os problemas das maiorias urbanas


e os interesses dominantes na produção

SOLO DO DISTRITO FEDERAL: do espaço urbano. Consequentemente, ele


não deve ser estudado na esfera da ação
ANÁLISE NO CONTEXTO do Estado, das políticas públicas, mas sim
da ideologia. (...).” (VILLAÇA, 1999. p.222)
HISTÓRICO DISTRITAL A afirmativa feita há mais de 20 anos ainda pa-
rece ter plena aplicação no contexto brasileiro.
URBAN USE AND OCCUPATION LAW FROM FEDERAL As cidades brasileiras, fruto da ação de agentes
DISTRICT – ANALISYS IN DISTRICT’S HISTORICAL diversos sobre o espaço, permanecem produzindo
CONTEXT e reproduzindo tensões e desigualdades em maior
velocidade do que a implantação de soluções e
LEY DE USO Y OCUPACIÓN DEL SUELO DEL DISTRITO alternativas para problemas já conhecidos.
FEDERAL: ANÁLISIS EN EL CONTEXTO HISTÓRICO
Por planejamento urbano, entende-se a atividade
estatal que visa a organização do espaço e a orien-
tação do desenvolvimento das atividades sociais
e serviços público nas cidades (VILLAÇA,1999).
O Estado que se proponha a operar o interesse
público do bem estar social na cidade, se vê desa-
fiado pela lógica de agentes que ora atuam contra
esse interesse, e ora se apropriam de discursos
para atingir objetivos distintos dos públicos. Por
vezes, o próprio Estado assume lógicas distantes
dos princípios legais que o guiam e compactua
com interesses corporativos ou privados, como
os dos donos de terras, agentes políticos e in-
corporadores imobiliários. O enfrentamento dos
problemas urbanos relacionados à desigualdade
socioespacial dificilmente é consumado tal qual
pensado em planos e diretrizes que pretendem
promover o direito à cidade1.

O aparato legal passou a permear o urbanismo


brasileiro a partir da década de 1940, quando se
intensificaram as críticas aos modelos de planos
urbanos importados da Europa. A quebra do pa-
radigma deu lugar às legislações de zoneamento,

1. O conceito neste trabalho se refere aos direitos ele-


16º SHCU
mentares no espaço urbano como moradia, transporte,
30 anos . Atualização Crítica
educação, trabalho e lazer sem que, contudo, isso esteja
1814 limitado à condição financeira do cidadão.
que se consolidaram com rigidez de inspiração de qualificação da forma que o espaço assume.
racionalista e foram disseminadas pelo país. O parcelamento, a determinação de usos e os
parâmetros de ocupação tem forte relação com
“Assim, o problema urbano se deslocava a morfologia urbana.
da pré-concepção ideológico-formal do
espaço, segundo uma análise funcional do O DF editou diversos normativos para ordenar
organismo ou instrumento “cidade”, para seu território. Brasília apresenta-se como ter-
uma visão da aglomeração urbana centrada ritório peculiar para a análise proposta, visto
na ideia de resolução técnica dos servi- que é uma unidade federativa muito recente e
ços de consumo coletivo que o Estado era constituída majoritariamente por terras públi-
crescentemente chamado a assumir, aliada cas. Curiosamente, a irregularidade fundiária
à tentativa de “ordenação” do espaço em é um dos principais problemas urbanos do seu
expansão pela localização de investimen- território. Os domicílios que se encontram em
tos indutores e legislação apropriada ao situação de irregularidade fundiária chegam a
controle social” (MONTE-MÓR, 1981. p. 15). 24,6%2 segundo a Pesquisa Distrital por Amostra
de Domicílio 2013. Além disso, outros problemas
O zoneamento se consolidou como instrumento de urbanos se intensificaram na capital federal, que
planejamento urbano e, até hoje, vige e é revisado cresceu em ritmo acelerado e assumiu o posto
sob as intenções dos agentes públicos, privados; de terceira maior cidade brasileira em 20193. As
técnicos ou não. Brasília, mesmo tendo sido inau- grandes diferenças sociais entre regiões, as dis-
gurada em 1960, seguiu esses passos de evolução tâncias entre moradia e trabalho, o alto custo do
no seu planejamento. O Plano Piloto, concebido por transporte, a falta de infraestrutura urbana e a
Lúcio Costa, encaixa-se nos perfis progressista eu- segregação espacial são alguns dos problemas.
ropeu e modernista pelo seu determinismo formal.
Brasília aprovou seu primeiro plano de ordenamen- Neste trabalho, faz-se uma análise crítica da pri-
to territorial em 1977, seguindo as grandes cida- meira Lei de Uso e Ocupação do Solo do DF - lei
des brasileiras. A partir daí, questionamos como complementar nº 948/2019, a partir do histórico
essas leis urbanísticas influíram e influenciam a das leis distritais de ordenamento territorial como
organização de Brasília? Feldman (2001) explica instrumentos de planejamento e gestão urba-
que dentro de um sistema legal amplo, a legisla- nos. Buscando entender especialmente os limites
ção urbanística representou os modelos de ges- dessa legislação, pretende-se analisar possíveis
tão que se apoiavam em teorias administrativas. evoluções na concepção e nos instrumentos da
LUOS em relação às leis anteriores. Essa lei estava
“Para se entender o papel que a legislação prevista desde 2007, após edição da emenda nº 49
urbanística assume em cada momento do à Lei Orgânica do Distrito Federal (LODF), todavia
processo de desenvolvimento urbano no só foi aprovada em 2019.
Brasil, é necessário desvendar a lógica
do sistema legal vigente, assim como as Em outras capitais brasileiras, esse tipo de lei
teorias administrativas que informam as vem ditando o zoneamento, o uso a ocupação
estratégias de gestão. É necessário, tam- há muitos anos. No DF, até o início da vigência da
bém, resgatar as instituições que, em cada LUOS, os Planos Diretores Locais (PDLs), editados
momento, participaram da formulação e/ entre 1997 e 2006, estabeleciam critérios para uso
ou assumiram as funções de aplicação e e ocupação para lotes de 8 das 31 regiões adminis-
fiscalização das normas urbanísticas. Por trativas (RAs), como instrumentos complementa-
fim, é necessário desvendar os procedi- res do PDOT previstos na LODF. As demais áreas
mentos adotados, considerando que teorias foram, durante todo esse período, submetidas
administrativas engendram modelos ins- às diretrizes gerais dos Planos Diretores. Além
titucionais que originam práticas que, por disso, um somatório de regras como Normas Ge-
sua vez, se articulam a práticas herdadas
de outros momentos.” (Feldman, 2001. p.40)
2. Domicílios próprios, alugados ou cedidos em terrenos
não legalizados e/ou assentamentos (DF, 2014).
Interessa também a análise de aspectos das nor-
mas que se apresentaram como instrumentos 3. Estimativa populacional do IBGE para 2019.
EIXO TEMÁTICO 2 rais de Gabarito (NGB), Memoriais de Descritivos
de Regularização de Parcelamento (MDE-RP) ou
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS de Programas Habitacionais (MDE-PH) e outras
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES normas - 420 ao todo - tornavam a gestão do uso
e ocupação do solo dispersa e confusa.

Ao ser consolidada, a LUOS representou o esforço


de sintetização e simplificação de várias regras
que vigiam. Somados a isso, há objetivos expostos
no próprio texto legal que são pretendidos com
seus instrumentos. Buscamos então avaliar estes
instrumentos na medida que tenhamos elementos
para contextualizar cada potencial de influência
na forma que a cidade assumirá, com auxílio da
teoria da sintaxe espacial. Estabelecemos as duas
seguintes questões:

• Quais são as pretensões da LUOS e qual


o alcance de suas propostas para atingi-
-las? Como a LUOS pode influenciar nos
aspectos configuracionais resultantes
do processo histórico do planejamento
e da política urbana distrital?

• Há inovações estratégicas da LUOS


como instrumento de planejamento
urbano do DF em relação ao arcabouço
legal pretérito?

Traça-se um panorama de como o ordenamento


territorial distrital foi feito até o início de 2019. Os
autores escolhidos como referência para essa
etapa do trabalho são pesquisadores do Programa
de Pós-Graduação da Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da UNB, cujos trabalhos abordam os
planos de ordenamento territorial do DF sob focos
distintos, em especial, aqueles que trabalham
análises por meio da sintaxe espacial.

Esta é uma teoria que objetiva traçar relações


entre a estrutura espacial - urbana ou edilícia, a
dimensão espacial das estruturas sociais, e va-
riáveis sociais mais amplas, procurando revelar
tanto a lógica social do espaço construído, como
a lógica espacial das sociedades (HOLANDA. p. 92.
2002). Por meio dela, pretende-se estabelecer
uma visão geral dos alcances e problemas da
legislação urbana como elemento que, junto a
outros, conduz a estrutura morfológica da cidade
e qualidades advindas dela. Conceitos trazidos por
16º SHCU Holanda (2010) e Medeiros (2013), e diagnósticos
30 anos . Atualização Crítica
já realizados sobre o DF utilizando a teoria serão
1816 confrontados com o conteúdo da LUOS, dando
enfoque em seus objetivos. O exercício de avaliar pecto marcante da expansão urbana distrital, bem
o desenvolvimento urbano por meio da sinta- como a ausência de moradias próximas ao centro
xe espacial tem se mostrado interessante, pois para imigrantes que trabalharam na construção
suas ferramentas contribuem com a visualização da cidade, cuja presença não estava prevista nas
gráfica de aspectos sociais por meio da relação determinações funcionais do plano original.
que estes têm com a forma que o espaço urbano
assume. Entendendo que toda forma assumida Taguatinga foi criada em 1958 para abrigar esses
pelo espaço é resultado de intenções, buscamos trabalhadores. A NOVACAP5 também determinou
relações entre aquelas presentes nas leis e o de- a estratégia de ocupação da Cidade Livre (atual
senvolvimento territorial do DF. Núcleo Bandeirante); da Velhacap (atual Canda-
golândia) e, das Vilas Planalto e Metropolitana.
Pretende-se fornecer uma leitura sobre a forma Critérios nitidamente discriminatórios, relaciona-
de organização que a LUOS apresenta diante de dos às profissões e condições financeiras deter-
um padrão de evolução espacial encontrado no minaram o local em que as pessoas não desejadas
DF. Em que ela pode ajudar ou dificultar na con- no Plano deveriam ser assentadas (PENNA, 1992).
solidação dos objetivos de planejamento espacial
pretendidos? A conformação da mancha urbanas se deu de
maneira dispersa como política de Estado. A
Arquivos da tramitação legislativa do Projeto de concentração trabalho e serviços no Plano Pi-
Lei Complementar – PLC, que deu origem a LUOS, loto, estabeleceu a relação de dependência das
também são examinados a fim de trazer à luz jus- cidades satélites6 com a centralidade projetada.
tificativas, processos metodológicos e intenções A dinâmica diária da maioria dos moradores dis-
não expostas no texto da lei. Os anexos da Lei são tritais foi e é marcada pelos longos trajetos entre
avaliados ressaltando o contraste com outros casa e trabalho e, casa e serviços.
dados territoriais disponíveis no Geoportal – pla-
taforma digital do Governo do Distrito Federal4. Na década de 1970, surgem as primeiras legisla-
ções urbanísticas que pretendem regular o ter-
A partir desses pressupostos, entende-se que é ritório do DF em geral: o Plano Diretor de Água,
possível tecer um olhar crítico sobre a LUOS, que Esgoto e Controle de Poluição – PLANIDRO (1970)
permita a discussão das questões estabelecidas e o decreto do Plano Estrutural de Organização
nesse trabalho. Territorial – PEOT (1977). O primeiro exerceu efeito
sobre os eixos de desenvolvimento urbano, ao
definir um zoneamento sanitário; e o segundo
delimitou as áreas de ocupação e expansão ur-
LEGISLAÇÃO URBANA DISTRITAL bana, rural e de preservação ambiental (CASTRO,
2015). O eixo sudoeste foi demarcado como vetor
Brasília sempre foi reconhecida pelo Plano Piloto, de expansão. Novas cidades satélites, dignas de
expressão do urbanismo moderno e funcional. As equipamentos urbanos qualitativamente inferio-
regras de ocupação do espaço planejado sempre res, passariam a abrigar a classe de baixa renda
foram rígidas e fieis ao Plano, mesmo antes do em período de intensa migração para a capital
seu tombamento no fim dos anos 1980 em níveis federal.
federal e internacional – UNESCO.
O Plano de Ordenamento Territorial - POT (1985)
As ocupações dos demais espaços do DF, por consolidou as propostas contidas no PEOT, de-
outro lado, passaram por uma dinâmica distinta talhou-o e complementou-o sobretudo por uma
da que houve no perímetro atualmente tombado. A proposta de macrozoneamento. Esse documen-
proteção por parte do poder público dirigida à área
planejada levou a expulsão de trabalhadores em
5. Companhia de Urbanização da Nova Capital – empresa
ocupações no Plano ou próximas a ele. A criação estatal responsável pela construção de Brasília.
de novos e distantes assentamentos foi um as-
6. O uso desse termo oficialmente foi proibido em 1998,
quando a denominação formal passou a ser Regiões Ad-
4. https://www.geoportal.seduh.df.gov.br/ ministrativas.
EIXO TEMÁTICO 2 to, todavia, não foi oficializado e se restringiu a
um instrumento de referência do GDF (FREITAS,
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS 2013). A Resolução nº 31/1986 (regulamentada
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES pelo Decreto nº 12.898/1990) instituiu o Plano de
Ocupação e Uso do Solo – POUSO, que não apre-
sentou grandes modificações nas diretrizes já
estabelecidas. O território foi dividido em seis
zonas e o detalhamento de usos e atividades em
cada categoria foi delegado aos Planos Locais. A
previsão de estudos de impacto ambiental para
intervenções urbanísticas ou parcelamento rural
nas áreas das bacias hidrográficas do Descoberto,
do Paranoá e do São Bartolomeu foi incluída como
forma de restringir os parcelamentos irregulares
já presentes à época, na forma de condomínios
residenciais. Foi uma primeira ação, ainda tími-
da, para combater essa realidade que tornou-se
comum.

A expedição do Decreto nº 10.920/1987, que in-


corporou as diretrizes do documento Brasília
Revisitada, redigido por Lúcio Costa, formalizou
diretrizes divergentes ao POUSO. No texto, o ur-
banista recomenda a ocupação e o adensamento
da área da Bacia do Lago Paranoá pela criação de
novas áreas habitacionais direcionadas especial-
mente à classe média, como os setores Sudoeste
e Noroeste, que seriam consolidados depois. O
adensamento por uso residencial multifamiliar
e a verticalização foram propostos para a Vila
Planalto, setor de Mansões Dom Bosco e outros,
porém não foram efetivados (COELHO, 2017).

Prevaleceram as ocupações na lógica da disper-


são e segregação socioespacial do território. A
Figura 1 permite a visualização desse processo
pelo crescimento da mancha urbana. Após o DF
se tornar uma unidade federativa autônoma pela
CF/88, ocorreu a aprovação da lei nº 353/1992, Pla-
no Diretor de Ordenamento Territorial do Distrito
Federal – PDOT. Além de consolidar os documen-
tos anteriores, ele buscou abranger os princípios
expostos no capítulo sobre Política Urbana da
Constituição: a função social da propriedade e
a participação popular. Por isso, criaram-se ge-
rências de planejamento e conselhos locais em
cada Região Administrativa. As áreas de expansão
urbana foram estendidas, abrangendo áreas re-
gularizadas ou não, em pontos de conurbação já
16º SHCU consolidados. Não houve todavia detalhamento
30 anos . Atualização Crítica
de estratégias de configuração e implementação
1818 das novas centralidades e de espaços públicos.
Uma grande alteração trazida pelo PDOT foi a pos- frequentemente regularizadas. Após a aprovação
sibilidade do parcelamento do solo ser feito pela da LODF (1993), foi estabelecido que o PDOT e os
iniciativa privada; até então, atribuição exclusiva PDLs deveriam ser aprovados por lei complemen-
da Terracap - Companhia Imobiliária de Brasília. tar. Desse modo, leis ordinárias que abrangessem
Contraditoriamente, o poder público, com domínio assuntos tratados nesses instrumentos seriam
total das terras distritais até então, foi incapaz de formalmente inconstitucionais. Mesmo assim,
controlar a intensa expansão irregular da ocupa- algumas leis ordinárias ilegais foram aprovadas
ção do território. Freitas (2013) pontua que, apesar e interferiram no zoneamento, na ocupação e
dessa alteração e da existência de outras leis regularização do solo, muitas vezes premiando
que tratavam sobre irregularidade fundiária, as o mercado ilegal de terras.
ocupações ilegais persistiram e passaram a ser

Figura 1 – Evolução da mancha urbana do DF. Fonte: Distrito Federal, Geoportal.

A Lei Complementar nº 17/1997, consolidou a pri- Uma inovação foi a sugestão de criação da Área
meira revisão do PDOT. O macrozoneamento foi do Centro Regional, em Taguatinga, como cen-
reestruturado com acréscimo do número de zonas tralidade regional alternativa ao Plano Piloto; um
e novas denominações. Os PDLs continuariam a marco simbólico segundo o texto da própria lei
regular os usos de forma detalhada tendo “como incentivando o desenvolvimento do eixo sudoes-
base critérios de incomodidade definidos a par- te (COELHO, 2017). A ampliação dos limites da
tir da análise, dentre outros, de condicionantes mancha urbana ocorreu outra vez, na esteira das
ambientais, da capacidade dos equipamentos flexibilizações anteriores, permitindo a regulari-
públicos urbanos e comunitários e do sistema zação de loteamentos em área rurais. Os eixos su-
viários” (Art. 15, PDOT-DF, 1997). deste – com maior concentração de loteamentos
EIXO TEMÁTICO 2 irregulares, e nordeste, foram oficializados como
novos sentidos de conurbação urbana.
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Em 2009, a LC nº 803 foi promulgada, revisando o
PDOT anterior. A participação popular por meio de
audiências públicas foi uma evolução no processo
de planejamento. O PDOT foi reconfigurado pela
LC nº 854/2012, após os julgamentos de várias
Ações Diretas de Inconstitucionalidade a res-
peito da lei de 2009 considerarem pertinentes
os questionamentos das ADIs.

Mais uma vez, várias ocupações irregulares foram


assumidas formalmente, criando-se setores de
regularização. Diretrizes locais de desenvolvimen-
to foram delegadas à outros documentos legais.
Na última década, novos projetos de parcelamento
ou de regularização, em áreas onde não havia
PDL aprovado, foram regrados pelas Diretrizes
Urbanísticas Gerais – DIUR e Específicas – DIUPE,
elaboradas pelo órgão executivo competente.
São documentos que tratam de áreas pontuais,
a medida que surgem as demandas. Assim, as
DIURs e DIUPEs somaram-se as NGBs, MDEs e
outras normas, tornando ainda maior o rol de
regras urbanísticas do DF (KRONENBERGER &
HOLANDA, 2019).

Na última revisão, o PDOT promoveu adaptações


nos limites das zonas urbanas de uso controlado,
de uso intensivo e de expansão e qualificação. A
Zona de Contenção Urbana foi criada, mais uma
vez na tentativa de restringir expansões irregu-
lares e ter maior controle sobre áreas ambiental-
mente frágeis. Sete estratégias de ordenamento
territorial com suas respectivas ações foram es-
tabelecidas. Dentro das limitações de um Plano
Diretor, que propõe ações, mas não garante exe-
cuções, o PDOT/2009 evoluiu em diagnósticos,
participação popular e proposições em relação
aos anteriores.

Por fim, os instrumentos básicos e complementa-


res de ordenamento territorial passaram a ser de
competência exclusiva do poder executivo, após
a emenda à LODF nº 80/2014. Os demais atores
do processo legislativo podem contribuir e alterar
os textos legais tão somente com emendas aos
projetos do executivo.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1820
Considerações

Os primeiros Planos de Ordenamento foram feitos


por um grupo extremamente limitado de técni-
cos, e nos últimos anos a participação popular
foi ampliada, trazendo à luz prioridades dos ha-
bitantes. O desenvolvimento dos instrumentos de
consolidação de dados, material cartográfico e,
sistemas computacionais também contribuíram
muito para a inclusão de informações e demandas
para o planejamento urbano.

A criação de novos núcleos segregados da área


tombada, justificada pela máxima da preservação
patrimonial, teve consequências problemáticas
para a promoção de serviços públicos, acesso a
habitação, preservação ambiental, e contribuiu
para consolidação de várias ocupações irregu-
lares nos vazios urbanos formados, bem como
conflitos sociais. As diretrizes e os parâmetros de
ocupação específicas de cada região legalmente
estabelecida foram sendo feitos de maneiras dis-
tintas umas das outras e com o viés funcionalista;
rígido. Por outro lado, a difícil compreensão das
numerosas normas tornou comum o seu descum-
primento mesmo em áreas legais.
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

Figura 2 – Evolução da variável NACH; maior potencial de


‘movimento por’. Fonte: COELHO, 2017. p.118.
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1822
Utilizando uma das ferramentas computacionais dentre outros, impedem que os gráficos sejam
de análise da sintaxe espacial, Coelho e Medeiros totalmente fiéis à realidade. Todavia, a evolução
(2019) expõem na Figura 2 a evolução dos poten- dos eixos evidenciam a dispersão da ocupações
ciais de integração do sistema viário distrital entre no território descrita anteriormente e, ainda o fato
os anos de 1964 e 2015. O índice NACH - Escolha
das vias mais acessíveis terem mudado pouco ao
Angular Normalizada - demonstra o potencial
longo do tempo, mesmo com o intenso crescimen-
de escolha de caminhos. Nos mapas, estão os
to populacional. Isso denota que a infraestrutura
percentuais de 10 e 20% de vias com maior poten-
cial de induzir movimento do DF, sobre a mancha principal foi implantada priorizando percursos,
urbana em cinza. Variáveis como o posiciona- em detrimento do atendimento das centralidades,
mento de equipamentos urbanos, existência de onde estão as principais aglomerações popula-
transporte público, qualidade de pavimentação, cionais.

Figura 3 – Mapa axial do DF (integração global Rn). Sem escala. Fonte: COELHO, 2017. p.139.

Na Figura 3, o mapa axial que permite um olhar quão acessível ou permeável é determinada
sobre a rede de vias de acesso do DF; a capaci- linha em uma representação linear. É en-
dade de integração é marcada pelas cores das contrado com base nas conexões existentes
vias. Medeiros explica: na trama viária e nos possíveis percursos
que ali podem ser percorridos segundo o
“Nos mapas axiais colorizados, cada eixo arranjo da malha.
é graficamente representado por uma cor
relacionada ao número correspondente da Uma via de maior valor de integração é
matriz matemática de conexões. O número, aquela, em termos de hierarquia, poten-
dito valor ou potencial de integração, que cialmente mais acessível ou permeável.
aqui denominados de absoluto, traduz o Significa ser mais fácil alcançá-la ou chegar
EIXO TEMÁTICO 2 até ela a partir de qualquer outro ponto da
cidade. Para uma menos integrada, inver-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS te-se a afirmação. (MEDEIROS, 2013. p. 387
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES e 388)

As cores mais quentes indicam maior acessibi-


lidade; as cores frias o inverso. O zoneamento,
que se deu de forma desconectada, bem como a
distribuição e qualidade da infraestrutura, influen-
ciaram no fato dos núcleos das RAs terem grande
variação desse índice que demonstra condições
de segregação social, além de espacial.

Os planos diretores mais recentes buscam diver-


sificar usos e traçar estratégias para enfrentar
esses problemas. Ainda, dentre todos os elemen-
tos que compõem as diretrizes da lei, o que se
mostra mais forte é o zoneamento. Por si só, ele
não parece ser capaz de promover as qualidades
objetivadas nos planos. Há questões de diversas
matizes que condicionam o surgimento de novas
dinâmicas espaciais. A rigidez nos parâmetros de
ocupação nos núcleos urbanos oficiais também
impediram a variedade de tipologias desejada pela
população. Freitas (2013) menciona, por exemplo,
a ausência de oferta de moradia para a classe
média entre os anos 1970 e 1980, e afirma que
isso deu margem à ocupação irregular da Bacia
do São Bartolomeu. Até 1992, a Terracap tinha
monopólio da oferta de lotes urbanos, e não ofe-
receu a quantidade e a variedade de opções que
a capital demandava em período de vertiginoso
crescimento populacional. Não descarta-se, ob-
viamente, a intenção de descumprir a lei em tantos
casos, sabendo-se que a fiscalização é incapaz de
acompanhar todos as edificações e usos. Mas o
parcelamento e zoneamento tal qual foi feito pelo
Estado determinou tanto padrões nas áreas em
que ele alcançou, quanto a falta de padrões nas
áreas ocupadas fora da lei.

Ainda, quando o zoneamento é feito após as ocu-


pações, ele tende a não influir na determinação
da morfologia urbana. Isso ocorre pelo fato das
edificações já existirem e as diretrizes de ocupa-
ção de adaptarem a elas; ou, pelos parâmetros de
ocupação criados no processo de regularização
demandarem grandes intervenções de adaptação
que não são efetivadas pelos ocupantes.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1824
A LUOS A Memória Técnica da Secretaria (2017) também
explicita a escolha por um zoneamento distinto
Os normativos que determinavam o uso e ocupa- da prática da maioria das cidades brasileiras,
ção do solo no DF careciam de simplificação e um que ocorre pela definição por manchas. Na LUOS
esforço de padronização. Segundo informações propõe-se um zoneamento quase lote a lote; isso
disponíveis no website da Secretaria de Desenvol- é justificado pela busca de sucesso na transição
vimento Urbano e Habitação – SEDUH, o principal das bases normativas anteriores para as novas.
objetivo desta primeira LUOS é estabelecer a Entretanto, o zoneamento por manchas poderia
transição da base normativa de uso e ocupação do ser utilizado no mínimo nas área de expansão
solo atual para uma base única. Buscou-se maior urbana, como forma de orientar os possíveis usos
agilidade de procedimentos administrativos e de e capacidades locais.
fiscalização, isonomia de critérios urbanísticos
A Figura 4 demonstra um exemplo da região re-
no território e a redução da discricionariedade na
sidencial do Taquari. A mancha amarelada faz
interpretação das normas e, também, dos erros
parte de Zona Urbana oficialmente. Todavia, as
de interpretação.
definições de usos só foram promovidas nas áre-
O projeto de lei complementar que deu origem à as dos retângulos coloridos. Não há definições
LC nº 948/2019 começou a ser elaborado por meio da LUOS para boa parte da região, que já tem
de processo participativo em 2015. Ocorreram ocupações consolidadas. A memória técnica da
consultas públicas, reuniões técnicas e audiên- Secretaria explicita, sem expor justificativas, as
cias públicas para a elaboração de uma minuta de áreas incluídas e excluídas da LUOS. Ao propor as
lei, que se transformaria no PLC nº 132/2017. Esse condições expressas no artigo a seguir, mantem-
projeto foi entregue à Câmara Legislativa do Dis- -se a lógica não sistêmica na promoção de novos
trito Federal - CLDF, em novembro de 2017. Após parcelamentos.
estudo de um grupo técnico da casa legislativa,
“Art. 43. A elaboração e a aprovação de no-
o Executivo elaborou uma Emenda Substitutiva
vos projetos de parcelamento urbano do
que foi o texto debatido e votado.
solo e de projetos de regularização fundiária
devem obedecer aos critérios estabeleci-
dos nesta Lei Complementar.
Abrangência § 1º Os parâmetros de uso devem ser
classificados em conformidade com as
O PDOT 2009, ao detalhar o instrumento da LUOS, categorias de UOS previstas no art. 5º,
especifica em seu art. 149 que ela deve indicar os parágrafo único, e indicados em mapa de
parâmetros para parcelamento consolidados ou uso do solo.
já aprovados pelo Poder Público (DF, 2009. p. 72);
essa restrição também foi expressa no PLC nº § 2º Os parâmetros de ocupação devem
132/17. Chama atenção, todavia, o fato de haver a ser definidos em quadro de parâmetros de
restrição inicial da LUOS ordenar exclusivamente ocupação do solo:
áreas urbanas já parceladas, registradas em car-
tório ou implantadas e aprovadas pelo poder públi- I - com base nas faixas de áreas previstas
co. Como instrumento de planejamento territorial no Anexo III;
e urbano, que foi sugerido num notório contexto
de ocupações irregulares consolidadas no DF, a II - mediante criação de nova faixa de área
condicionante é questionável. Ela representa uma com agrupamento de lotes ou projeções
barreira na prevenção de novas ocorrências de com características semelhantes quanto
ocupações ilegais. Para isso, seria interessante a dimensões, localizações e tipologias.”
que o instrumento determinasse ao menos um (DF, 2019)
leque de possibilidades de usos e parâmetros de
acordo com a capacidade das áreas urbanas não
parceladas sob aspectos ambientais, de infraes-
trutura, sociais, etc.
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

Figura 4 – Área de Setor Habitacional delimitado pelo PDOT


(mancha amarelada) na região do Taquari contrastando
com áreas de alcance da LUOS – lotes coloridos. Fonte:
www.geoportal.sefuh.gov.br

Apesar de haver diretrizes gerais para as expan-


sões, outra vez, a lógica da definição dos parâme-
tros mínimos se dará caso a caso. Isso potencializa
a manutenção de uma prática em que o Estado
deixa de propor possibilidades para se adaptar
às demandas específicas dos empreendedores
privados. Consequentemente, há maior margem
para o distanciamento dos objetivos pretendidos
com o planejamento urbano de forma geral.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1826
Proposições axial (...). Ocorre que a transformação des-
tes atributos do arranjo da forma-espaço
Expomos aqui alguns dos objetivos da LUOS, que em valores de integração parte da quan-
podem ser comentados à luz do que já foi exposto. tificação da conectividade de cada linha
que posteriormente é classificada por quão
“Art. 4º São objetivos da LUOS: profunda ou rasa é em relação ao sistema
inteiro ou a um terceiro raio, se assim de-
I - propiciar a descentralização da oferta
sejado, no que se chama de profundida-
de emprego e serviços, de habitação e dos
equipamentos de educação, saúde e lazer; de média. Esta última medida esclarece
o grau médio de dificuldade ou facilidade
“II - aumentar a diversidade de usos e ati- para se alcançar um eixo, e o comparativo
vidades para promover a dinâmica urbana para valores médios em sistemas distintos
e a redução de deslocamentos;” (DF, 2019). possibilita o faceamento de cidades a partir
de um maior ou menor efeito labiríntico.
A centralização que pretende ser combatida foi
(MEDEIROS, 2013. p. 414 e 415)
reforçada por anos pelos processos da política
urbana, exposto no histórico dos planos distritais. A partir disso, o resumo de Coelho (2017) na Figura
Para interromper essa lógica, espera-se então que 5, explicita como algumas variáveis não confi-
alguma estratégia que envolva a conexão entre
guracionais podem favorecer e desfavorecer as
áreas esteja expressa no texto da lei.
qualidades de conectividade. Esse diagnóstico
“Sabe-se que há uma vigorosa associação corrobora com o segundo objetivo expresso no
entre a forma de articulação das malhas texto que pretende diversificar usos, atividades
viárias e os potenciais de acessibilidade que acontecem em cada núcleo, a fim de que
encontrados para cada eixo em um mapa menores deslocamentos sejam demandados.

Figura 5 – Tendências das variáveis não configuracionais em relação à conectividade. Fonte: COELHO, 2017. p.173.
EIXO TEMÁTICO 2 Por meio de consulta ao Geoportal e aos mapas
da LUOS, é possível ver que há esforço em diver-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS sificar e flexibilizar os usos, o que potencialmente
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES contribui para a descentralização do território.
Ainda sim há predominância dos usos residencial
exclusivo e obrigatório.

Quadro 1 – Categorias e Subcategorias de Usos LUOS Fonte:


16º SHCU
DF, LC nº 948/2019. Elaboração: Autora
30 anos . Atualização Crítica

1828
Adicionalmente, mesmo que a LUOS seja essen- forma, a efetivação tanto do objetivo disposto na
cialmente um esforço de síntese, não é possível LUOS não é atingida exclusivamente pela imposi-
dizer que seu texto seja de fácil compreensão. A ção ou sugestão legal. As conexões precisam ser
própria nomenclatura (Quadro 1) dada aos usos e tecidas por políticas públicas que confirmem os
suas subdivisões precisam de olhar atento inclu- planos territoriais de maneira sistêmica.
sive de profissionais da área do planejamento,
para que sejam percebidas as diferenças entre O terceiro objetivo da LUOS é: “III - proporcionar
tipos e subtipos. A qualificação “lote a lote” parece melhor integração do espaço público com o pri-
ser a origem dessa complexa divisão, que pode vado (DF, 2019)“ . Nesse ponto, os olhares recaem
comprometer a própria consolidação do território sobre uma escala mais local, e que, na sintaxe
pelos conflitos e barreiras de interpretação. espacial, poderia ser associada à urbanidade.
Holanda define esse atributo a qualidade que
A efetivação da maior conectividade, entretanto, “... se refere à cidade como realidade física, mas
não dependerá apenas dos usos. A forma que as também à qualidade de ‘cortês, afável, relativo à
novas expansões urbanas assumirão são funda- negociação continuada entre interesses” (HOLAN-
mentais para aprimorar e qualidade de conexão DA, 2010. p.41). O autor parte do entendimento de
urbana do DF. Por isso, não incluindo ao menos que espaço é sistema de barreiras e permeabili-
áreas prioritárias de expansão de uso e ocupa- dades que interfere em nossos movimentos sobre
ção, a LUOS perde a oportunidade de conduzir o chão. As calçadas, os acessos aos lotes bem
os aspectos físicos que podem promover mais como os sistemas das aberturas e vedações de
acessibilidade e, consequentemente, mais co- cada edifício influenciam na orientação, no con-
nectividade. forto e na integração que é estabelecida entre
os componentes físicos da cidade.
Ainda por meio do Geoportal, foi possível con-
frontar as novas áreas habitacionais previstas no A LUOS, ao determinar coeficientes de aproveita-
PDOT vigente, com as previsões da LUOS. Com mento, alturas máximas das edificações, taxas de
a limitação da abrangência da LUOS aos lotea- permeabilidade e ocupação máxima, afastamen-
mentos já existentes e regulares, nem mesmo as tos mínimos, vagas para veículos, entre outros,
áreas estratégicas delimitadas pelo PDOT para interfere em aspectos relacionados à qualidade
habitação têm previsão de uso e ocupação. O que de urbanidade. Porém, ainda são parâmetros
parece ser uma contradição, quando há na LUOS o de difícil compreensão, em geral. Condensando
seguinte objetivo: “IV - propiciar a implementação todas as antigas normas no documento único
das estratégias de ordenamento territorial expres- que é a LUOS, permite-se otimizar a reprodução
sas no Plano Diretor de Ordenamento Territorial do entendimento de cada uma das determina-
(...) (DF, 2019).” Dentre elas, há uma referente à ções. Mas é preciso considerar que o limitado
regularização fundiária. A irregularidade fundiária alcance desses regramentos. É muito comum
é um dos problemas urbanos mais graves do DF que modificações sejam feitas nas edificações
e a escolha de não se propor ações sobre essas após expedição de alvarás ou cartas de habite-
áreas pode ser entendida como um lapso. -se tornando irregulares edificações aprovadas
sob os parâmetros legais. São dinâmicas muito
Há, por outro lado, aspectos que fogem ao alcan- difíceis de serem controladas.
ce e competência da LUOS. Além da permissão
de usos variados, há aspectos econômicos, tri- Ainda é importante ponderar com relação aos
butários, por exemplo, que determinam as es- objetivos expostos nos inciso III e “V - promover
colhas e locações de atividades e serviços. Se a manutenção de áreas vegetadas internas às
não houver estímulo ou viabilidade sobre essas propriedades públicas e privadas, com prioridade
outras condicionantes, não haverá expressiva para a arborização; (DF, 2019)” que a LUOS apre-
evolução na instalação de empresas, serviços e, senta uma limitação considerável para o alcance
consequentemente na criação de empregos. O de ambos. Segundo a Memória Técnica do PLC
transporte público, quando aprimorado, contribui nº 132/2017, as áreas públicas urbanas – áreas
para a efetivação da dinâmica desejada, todavia verdes, praças, o sistema viário, etc.; não inte-
não encontra ações específicas nesta lei. Dessa gram o escopo da LUOS. Depende-se então de
EIXO TEMÁTICO 2 outros instrumentos para intervir nas qualidades
físicas dos espaços públicos que possam pro-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS mover os objetivos desejados. Sombreamento,
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES variações entre cheios e vazios, área mínima de
vegetação, mobiliário urbano são alguns exem-
plos que poderiam ser tangidos pela LUOS com o
intuito de promover a integração entre os espaços
públicos desejados.

O sexto objetivo elencado no texto da LC nº


948/2019 registra a tradição mais forte da história
urbana da capital: “VI - preservar os aspectos
da paisagem urbana, do Conjunto Urbanístico
de Brasília e do entorno dos bens tombados in-
dividualmente; (DF, 2019). Mesmo que a Emenda
à Lei Orgânica nº 49/2007 tenha delegado ao
Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico
de Brasília – PPCUB, o desenvolvimento local do
sítio urbano tombado inscrito como Patrimônio
Cultural da Humanidade, a LUOS reafirma esse
objetivo que tem valor simbólico além de patri-
monial para Brasília. Na prática, a LUOS, por meio
do zoneamento, tem o desafio de desenvolver no
restante do território do DF várias qualidades que
se encontram na área preservada. Mesmo com
os limites que aqui apontamos.

O último objetivo que analisamos trata de : “VII -


estimular a utilização do transporte coletivo e dos
modos não motorizados e não poluentes de deslo-
camento; (DF,2019)”. A interação entre uso, ocupa-
ção e transportes é relevante para escolha de es-
tratégias de itinerários relacionados a capacidade
das vias, instalação de equipamentos de apoio
ao usuário do transporte coletivo, bem como os
trajetos e conexões de pedestres e outros modais
de transporte. Uma cidade dinâmica, com varie-
dade de usos e distâncias menores entre origens
e destinos contribui para que trajetos possam ser
feitos com modais alternativos aos automóveis
particulares de maneira eficiente. Mais uma vez,
a abrangência da LUOS limitada a áreas já parce-
ladas e registradas em cartório, impede que haja
previsões a conformação de um planejamento
sistêmico. Inclusive pelo fato do transporte de
qualidade ter o potencial de diminuir os impac-
tos de segregação socioespacial característica
do território e ser eixo orientador da expansão
urbana. As áreas de expansão poderiam receber
16º SHCU previsões de uso e ocupação em acordo com o
30 anos . Atualização Crítica
Plano Diretor de Transporte Urbano e Mobilidade
1830 do Distrito Federal, lei nº 4.566/2011, por exemplo.
Assim como no caso da desejada descentraliza- sido uma potencialidade para condução do de-
ção da oferta de trabalhos e serviços, as formas senvolvimento urbano diversificado, variedade de
de uso e ocupação sozinhas não são capazes de opções habitacionais, garantia de equipamentos e
promover esse objetivo. Elas podem contribuir serviços públicos de qualidade para a população. A
com o sistema de transporte desde que sejam rigidez na condução dos parâmetros de ocupação,
subsidiários do planejamento e das políticas pú- todavia, foi um dos motivos para o surgimento de
blicas voltadas ao tema. ocupações irregulares, em que se consolidaram
formas alternativas de usufruir do território, não
A LUOS prevê penalizações por seu não cum- permitidas nos parcelamentos regulares.
primento. De forma geral, há classificação de
graus de infrações e valores de multas variáveis As estratégias legais para lidar com a irregularida-
de acordo com a área da irregularidade. Há pre- de fundiária são também contestáveis, visto que
visão de cumulatividade em caso de reincidência os Planos de Ordenamento Territorial repetida-
e inscrição na dívida ativa daqueles que não cum- mente ampliaram os limites da mancha urbana,
prirem o pagamento das penalidades. Segundo a mas não regularam aspectos que poderiam inte-
Memória Técnica do PLC, as infrações e penali- grar essas áreas ao restante da cidade. A irregu-
dades administrativas aplicadas a pessoa física laridade fundiária também incidiu, e ainda incide,
ou jurídica que infringir a LUOS estão previstas em perdas arrecadatórias importantes para o
em legislações específicas: a de licenciamento Governo Distrital. Somam-se a esses problemas
de atividade econômica e o código de obras e danos ambientais, incapacidade de atendimento
edificações. A mera previsão de penalidades, do transporte públicos a essas áreas e deficiência
entretanto não é suficiente para o cumprimento de equipamentos urbanos.
da Lei. O histórico de desenvolvimento do DF é
elucidativo quanto as tantas possibilidades de A análise dos objetivos e instrumentos trazidos
se descumprir a lei e fazer a cidade. Novas estra- pela aprovação da primeira Lei de Uso e Ocupação
tégias de monitoramento e promoção do que se do Solo do DF permite contrastá-los com as prá-
propõe são fundamentais para que haja evolução ticas históricas do planejamento urbano distrital
na forma de se fazer a cidade. e elucidar as possibilidades que a lei traz para o
futuro. O primeiro ponto de questionamento levan-
tado neste trabalho, sobre as pretensões da LUOS,
é demonstrado pelos registros da tramitação le-
CONCLUSÃO gislativa, que expõem a urgência da simplificação
das normas que regulavam o uso e a ocupação do
O processo de urbanização distrital consolidou-se solo até então. Nesse sentido, a LUOS representa
com marcante intervenção estatal. Sob a égide da um avanço do planejamento urbano no contexto
proteção do Plano Piloto de Brasília, a expansão distrital. Ainda sim, as denominações dadas às
urbana ocorreu de maneira dispersa e consolidou categorias e subcategorias de usos (Quadro 1)
muitos contrastes entre a área preservada e as ci- não são facilmente compreensíveis. Esforços
dades-satélites em relação a integração, capacida- adicionais no sentido de popularizar o conteúdo
de de conectividade, acesso a serviços e trabalho. da lei poderiam permitir que ela alcance a sim-
plificação almejada.
O aspecto do planejamento urbano mais marcan-
te e perene nas leis que regularam a expansão Outra resposta obtida por meio da análise aqui
urbana distrital foi o zoneamento. Mas as deter- promovida, é que a nova lei é essencialmente um
minações expressas nos Planos por meio desse instrumento de zoneamento, assim como todos os
instrumento e suas diretrizes não se mostraram planos urbanos mais importantes que regularam a
suficientes para regular todo o território e pro- expansão urbana no DF. Há limitações significati-
mover qualidades que configurem o direito do vas em se investir exclusivamente no zoneamento
cidadão à cidade. e não aliá-lo a outras políticas públicas econômi-
cas, fiscais, financeiras, de trabalho, transporte
A peculiaridade do território do DF ser composto e outros serviços essenciais a qualidade de vida
majoritariamente por terras públicas, poderia ter básica que permeia os objetivos legais.
EIXO TEMÁTICO 2 Vimos que os objetivos da LUOS avaliados neste
trabalho têm potencialidades e limitações que
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS podem ser vistas nos aspectos morfológicos dos
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES elementos da cidade em distintas escalas. Esses
aspectos caracterizam os desempenhos almeja-
dos nos objetivos da lei.

A variedade de usos pode contribuir com a des-


centralização de serviços e empregos, por reduzir
a necessidade de longos deslocamentos para
atendimento de demandas do dia-a-dia. Além dis-
so, a obrigatoriedade de afastamentos, aberturas,
marquises e pilotis, dentre outros parâmetros
podem propiciar, na escala local, efeitos sobre
a integração de edificações privadas e espaços
públicos. A taxa de permeabilidade, por sua vez,
permite a implantação de vegetação em áreas in-
ternas dos lotes. E numa escala intermediária en-
tre regiões, poderia ser propostos equipamentos
urbanos que promovessem a costura territorial.

Uma das deficiências mais marcantes da LC nº


948/2019 é a abrangência do território que ela
regula. Áreas urbanas já ocupadas irregularmente,
e áreas urbanas de expansão não foram contem-
pladas. Áreas públicas urbanas igualmente não
integram o escopo da LUOS. Isso representa a
perda da oportunidade de avançar em relação às
leis anteriores. Todas essas áreas são de extrema
importância para o enfrentamento de problemas
urbanos que não obedecem os limites formais
e jurídicos expressos em mapas e documentos
cartoriais.

As pretensões da LUOS são louváveis, porém suas


proposições têm alcance limitado. Não há nela
inovações estratégicas em relação às práticas
passadas que possam encadear melhores prá-
ticas no enfrentamento dos problemas tão bem
identificados nos trabalhos de diagnóstico e com-
preensão do espaço. Ainda enfrentamos desafios
em ser mais criativos e eficientes em proposições
que resultem em transformações positivas na
qualidade de vida urbana. Ainda sim, chamamos
atenção para as limitações políticas impostas
ao planejamento urbano. As propostas inovado-
ras e o potencial transformador devem ir além
dos aspectos técnicos e científicos, e enfrentar
interesses políticos, econômicos e sociais que
16º SHCU vão de encontro a promoção do direito à cidade
30 anos . Atualização Crítica
e acabam permeando a transformação da cidade
1832 com muito mais força que o planejamento urbano.
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EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES O objetivo é analisar a construção e a difusão
da ideia de metrópole regional no território na-
cional identificando suas origens conceituais e
vídeo-pôster institucionais a partir do planejamento federal,
entre 1964 e 1974. Os objetos de estudos são os
planos nacionais de desenvolvimento (Progra-
METRÓPOLE REGIONAL NO ma de Ação Econômica do Govêrno-PAEG, de
1964; Plano Decenal, de 1966; Programa Estra-
BRASIL DO SÉCULO XX tégico de Desenvolvimento-PED, de 1967; I Pla-
no Nacional de Desenvolvimento-I PND, de 1971;
e o II Plano Nacional de Desenvolvimento-II PND,
REGIONAL METROPOLIS IN TWENTIETH CENTURY de 1974), propostos entre 1964 e 1974, que reper-
BRAZIL cutiram na organização territorial nacional. A
análise é feita à luz do referencial teórico de po-
METRÓPOLIS REGIONAL EN SIGLO XX EN BRASIL los de crescimento de F. Perroux e metodologi-
camente baseia-se na compreensão de fontes
primárias e da identificação dos seus elementos
TAVARES, Jeferson
territoriais. As análises apontam para a formu-
Professor Doutor do Instituto de Arquitetura e Urbanismo lação da ideia de metrópole regional que está na
da Universidade de São Paulo (IAU-USP)
base do reconhecimento das primeiras metró-
jctavares@usp.br
poles brasileiras (Belém, Recife, Fortaleza, Sal-
vador, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo,
Curitiba e Porto Alegre). E demonstra seu víncu-
lo com os conceitos de regionalização e hierar-
quia urbana da geografia francesa divulgados
por M. Rochefort sob intermediação do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). As
evidências dos planos comprovam como as re-
percussões da adoção desse modelo ocorreu
no âmbito regional e urbano e, paulatinamente
concentrou atenção e recursos nas regiões me-
tropolitanas. Nossas conclusões apontam para
a hegemonia das metrópoles dentro dos planos
de desenvolvimento e como essa hegemonia
ajuda a explicar o quadro atual do processo bra-
sileiro de urbanização.

METRÓPOLE REGIONAL POLO


PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1834
ABSTRACT RESUMEN

The objective is to analyze the construction and El objetivo es analizar la construcción y difu-
diffusion of the idea of a regional metropolis in sión de la idea de una metrópoli regional en el
the national territory, identifying its conceptu- territorio nacional, identificando sus orígenes
al and institutional origins. The objects of study conceptuales e institucionales. Los objetos de
are the national development plans (Programa de estudio son los planes nacionales de desarrollo
Ação Econômica do Govêrno-PAEG, 1964; Plano (Programa de Ação Econômica do Govêrno-PAEG,
Decenal, 1966; Programa Estratégico de Desen- del 1964; Plano Decenal, del 1966; Programa Es-
volvimento-PED, 1967; I Plano Nacional de De- tratégico de Desenvolvimento-PED, del 1967; I
senvolvimento-I PND, 1971; e o II Plano Nacional Plano Nacional de Desenvolvimento-I PND, del
de Desenvolvimento-II PND, 1974), proposed be- 1971; e o II Plano Nacional de Desenvolvimento-II
tween 1964 and 1974, which had repercussions on PND, del 1974), propuesto entre 1964 y 1974, que
the national territorial organization. The analysis tuvo repercusiones en la organización territorial
is made in the light of F. Perroux’s growth poles nacional. El análisis se realiza a la luz del marco
theoretical framework and methodologically is teórico de los polos de crecimiento de F. Perroux
based on the understanding of primary sources y metodológicamente se basa en la comprensión
and the identification of their territorial elements. de las fuentes primarias y la identificación de sus
The analyzes point to the formulation of the idea elementos territoriales. Los análisis apuntan a la
of a regional metropolis that underlies the recog- formulación de la idea de una metrópolis regional
nition of the first Brazilian metropolises (Belém, que subyace al reconocimiento de las primeras
Recife, Fortaleza, Salvador, Minas Gerais, Rio de metrópolis brasileñas (Belém, Recife, Fortaleza,
Janeiro, São Paulo, Curitiba and Porto Alegre). Salvador, Minas Gerais, Río de Janeiro, São Paulo,
And it demonstrates its link to the concepts of Curitiba y Porto Alegre). Y demuestra su vínculo
regionalization and urban hierarchy of French con los conceptos de regionalización y jerarquía
geography disseminated by M. Rochefort under urbana de la geografía francesa difundidos por
the intermediation of the Instituto Brasileiro de M. Rochefort bajo la intermediación del Instituto
Geografia e Estatística (IBGE). The evidence from Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). La
the plans demonstrates how the repercussions of evidencia de los planes demuestra cómo las re-
adopting this model occurred at the regional and percusiones de la adopción de este modelo ocur-
urban levels and, gradually, concentrated atten- rieron a nivel regional y urbano y, gradualmente,
tion and resources in the metropolitan regions. concentraron la atención y los recursos en las
Our conclusions point to the hegemony of the me- regiones metropolitanas. Nuestras conclusiones
tropolises within the development plans and help apuntan a la hegemonía de las metrópolis dentro
to explain the current situation of the Brazilian de los planes de desarrollo y ayudan a explicar la
urbanization proces situación actual del proceso de urbanización bra-
sileño.

REGIONAL METROPOLIS POLE


URBAN AND REGIONAL PLANNING METRÓPOLIS REGIONAL POLO
PLANIFICACIÓN URBANA Y REGIONAL
EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
A atual rede urbana brasileira está orientada
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
pela hierarquia que se estabelece a partir das
principais metrópoles. A despeito do legado do
processo secular de urbanização, pode-se iden-
vídeo-pôster
tificar um curto período do século XX, durante o
regime militar, em que houve ações incisivas no

METRÓPOLE REGIONAL NO reconhecimento e na definição de elementos que


se configurariam na atual estrutura que tem na
BRASIL DO SÉCULO XX metrópole e na região metropolitana os princi-
pais referenciais. Esse período, aqui estudado,
demonstra o momento da definição conceitual
REGIONAL METROPOLIS IN TWENTIETH CENTURY e institucional da metrópole regional, elemento
BRAZIL central dessa estrutura e sua apropriação ins-
trumentalizada para a reprodução de um modelo.
METRÓPOLIS REGIONAL EN SIGLO XX EN BRASIL
Entre 1964 e 1974 os principais planos federais
de desenvolvimento envolveram os âmbitos re-
gional, urbano e metropolitano como estratégias
econômicas de crescimento de forma contínua
e dentro do sistema de planejamento garantidos
pelo autoritarismo e pela instrumentalização de
sua aplicação.

A partir do Programa de Ação Econômica do


Govêrno (PAEG, 1964), liderado pelo ministro do
Planejamento e Coordenação Econômica Roberto
Campos na gestão do general Castello Branco
(1964-1967), no âmbito urbano constituiu-se um
novo arcabouço institucional pela criação, por
meio da Lei n. 4.380 de 21 de agosto de 1964, o
Banco Nacional da Habitação (BNH), o Fundo Na-
cional da Habitação (FNH) e o Serviço Federal
de Habitação e Urbanismo (SERFHAU) que, por
Decreto n. 59.917 de 30 de dezembro de 1966, foi
regulamentado junto do Fundo de Financiamento
de Planos de Desenvolvimento Local Integrado
com forte impacto no processo de urbanização
por meio da formulação dos planos, projetos e
financiamento de obras habitacionais e urbanís-
ticas nas décadas seguintes.

A política habitacional inseriu-se na política de


contenção de inflação e aceleração do desen-
volvimento econômico e geração de emprego.
Assim o PAEG buscou proporcionar viabilidade
sobre a lei do inquilinato, a lei das incorporações
e estímulos sobre a construção civil buscando
16º SHCU abordar alguns pleitos urbanos (IANNI, 1971, p.
30 anos . Atualização Crítica
232), embora fora do ambiente democrático so-
1836 bre o qual ela se apoiava. E a fim de combater o
déficit habitacional calculado em sete milhões de a infraestrutura (64,45%), com destaque aos
unidades, a política urbana previu 100 mil casas transportes (32,41%); para a habitação (8,21%);
em 1965 e 150 mil em 1966, geração de emprego saneamento (5,35%); e educação e saúde (4,53%)
na ordem de 75 mil diretos e outros 100 mil indi- (MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO E COORDENA-
retos em 1965 e 150 mil em 1966 (MINISTÉRIO DO ÇÃO ECONÔMICA, 1967b, p. 92). Os investimentos
PLANEJAMENTO E COORDENAÇÃO ECONÔMICA, deveriam orientar-se pelas regiões-programa e
1964, p. 87 a 89). Perspectiva ínfima diante da pelos polos de desenvolvimento que eram com-
dimensão do problema nacional. A expectativa preendidos a partir da definição de dois tipos de
por um plano que orientasse territorialmente a regiões: homogêneas e polarizadas. A definição
aplicação do aumento dos recursos previstos dessas regiões foi formulada a pedido do EPEA
levou o governo federal à elaboração de um plano e em caráter preliminar pelo Conselho Nacional
de médio prazo. de Geografia e pelo IBGE em duas publicações
de janeiro de 1967: Esbôço preliminar de divisão
do Brasil em Espaços Polarizados (1967) e Esbô-
ço preliminar de divisão do Brasil nas chamadas
PLANEJAMENTO NACIONAL E AS INSTITUIÇÕES Regiões Homogêneas (1967), sob consultoria do
geógrafo francês Michel Rochefort, cuja vinda
O Plano Decenal (1967-1976) foi o estudo que orien- ao Brasil foi patrocinada pelo EPEA, no mesmo
tou uma regionalização dos investimentos por ano. Nesses estudos, os territórios menos de-
meio do polo como instrumento político, geopo- senvolvidos foram caracterizados como regiões
lítico e econômico em âmbito nacional. Entre a homogêneas pela presença de poucas atividades
elaboração do Programa e Ação Econômica do produtivas com menor dinâmica e os territórios
Governo (PAEG, 1964) e do Programa Estratégi- mais desenvolvidos foram definidos como regiões
co de Desenvolvimento (PED, 1967), em 1966, o polarizadas onde predominava certa diversidade
governo de Castello Branco apresentou o Plano de atividades econômicas e respectiva diversida-
Decenal com a finalidade de dar prosseguimento de de desenvolvimento (IBGE, 1967b, p. 6).
em longo prazo às diretrizes do seu governo. O
Plano Decenal (MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO As regionalizações preconizadas nesse período
E COORDENAÇÃO ECONÔMICA, 1967b, p. 09) foi pelo IBGE, incluindo o documento Subsídios à
elaborado pelo EPEA (Escritório de Pesquisa Eco- regionalização (1968), consolidaram a base da
nômica Aplicada) e pelo Grupo de Coordenação organização territorial, ao menos, nos cinquenta
dentro do Ministério de Planejamento e Coor- anos seguintes. Dentro da conformação urbana e
denação Econômica (ministro Roberto Campos) regional empregada a partir dos planos nacionais e
com representantes interministeriais, estaduais, setoriais de desenvolvimento, esse momento teve
regionais e do setor privado. importância singular ao orientar o debate e con-
solidar uma direção das ações planejadoras pela
O objetivo central do Plano Decenal foi de definir futura implantação institucional das metrópoles
as principais diretrizes da política de desenvol- como polo de primeira categoria na hierarquia da
vimento econômico do Governo Federal para o rede urbana brasileira de então. Com maior ou
período 1967-1976 orientadas pela programação menor evidência nos planos, a metrópole viria a
da produção, do consumo e dos investimentos e se tornar o parâmetro territorial para escalonar as
pela definição de critérios para a ação estatal. demais unidades urbanas e regionais e direcionar
Foi concebido como um planejamento econô- a provisão de recursos.
mico com vistas ao crescimento do produto real,
da absorção de mão-de-obra e da atenuação da
desigualdade distributiva pela reunião de pla-
nos setoriais (MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO A CONCEPÇÃO DA METRÓPOLE REGIONAL
E COORDENAÇÃO ECONÔMICA, 1967b, p. 11 a 14)
objetivando impacto na organização territorial. A vinda de Rochefort, em 1966, foi o marco de
uma parceria que se iniciou na década de 1950 (da
A maior parte dos investimentos do primeiro vinda do geógrafo francês para o XVIII Congresso
quinquênio (1967-1971) estava distribuída para Internacional de Geografia, em 1956; e na Confe-
EIXO TEMÁTICO 2 rência da Associação dos Geógrafos Brasileiros,
em 1957) e se estendeu pelas décadas de 1960 e
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS 1970 (por meio de cursos na Bahia e em Pernam-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES buco, nos anos 1960; e de atuação junto ao Serviço
Federal de Habitação e Urbanismo [SERFHAU] e
à Comissão Nacional de Política Urbana [CNPU],
nos anos 1970) (BOMFIM, 2015, sem página).

Nos estudos do geógrafo francês, a polarização


definida pelo raio de influência de algumas cida-
des reforçava a característica da concentração
territorial pela localização de principais centros
urbanos: no Nordeste (de 1º nível: Salvador, Re-
cife e Fortaleza; de 2º nível: Caruaru e Campina
Grande); e no Sul e Sudeste (1º nível: Porto Alegre,
Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Hori-
zonte; 2º nível: Londrina, Bauru, Niterói, Juiz de
Fora e Vitória). Belém foi o único centro de 1º ní-
vel na região Norte. O restante do território foi
submetido à influência desses polos principais e
secundários (IBGE, 1967a, p. 6). A distribuição das
rodovias que constou na proposta de regionaliza-
ção do IBGE configurava-se por troncos e ramais
concentrados no Nordeste (faixa entre Parnaíba e
Salvador), Sudeste e Sul confirmando a incidência
da polarização dessas áreas, além da intrincada
relação entre os polos e os eixos. Brasília e o esta-
do de São Paulo foram caracterizados pela maior
densidade de troncos rodoviários (FUNDAÇÃO
IBGE, 1968, p. V-6). Esse mapeamento de centros
urbanos e rodovias sintetizava a orientação dos
transportes aéreos, das atividades terciárias, do
adensamento populacional e industrial no ter-
ritório demonstrando a existência de espaços
de permanência de investimentos e atividades
produtivas pela constituição de centralidades
regionais.

Essas centralidades regionais, em especial os


centros de polarização de 1º nível, foram concei-
tuadas como metrópoles regionais (Belém, Recife,
Fortaleza, Salvador, Minas Gerais, Rio de Janeiro,
São Paulo, Curitiba e Porto Alegre) (IBGE, 1967a, p.
6 – mapa 1). O modelo utilizado por Rochefort para
definir essas metrópoles regionais foi tomado de
seus estudos sobre a França (ROCHEFORT, 1967, p.
11 a 15) a partir dos quais se identificava o raio de
influência medido pela presença e qualidade de
seus equipamentos terciários (comercial, finan-
16º SHCU ceiro, administrativos, ensino superior, médicos
30 anos . Atualização Crítica
especialistas, culturais, artísticos, esportivos e
1838 de profissões raras, mas indispensáveis para a
vida regional) em comparação às cidades ao redor, teorias foram desenvolvidas; a minimização da
condição que indicaria a importância funcional de hierarquia das cidades à hierarquia dos serviços;
cada metrópole regional na hierarquia urbana. A e o risco da manutenção da nucleação do territó-
identificação das metrópoles regionais e a defini- rio com concentração do desenvolvimento sem
ção das regiões homogêneas e polarizadas ocor- configurar uma polarização que correspondesse
reram simultânea e reciprocamente (ROCHEFORT, ao equilíbrio das atividades produtivas (BOMFIM,
1967a, p. 2 a 22) e resultou na consolidação dessas 2015, p. 7 a 9), mas nenhuma dessas críticas foi
nove cidades com polarização em 1º nível que se capaz de prever o impacto hegemônico que as me-
tornariam nas primeiras metrópoles brasileiras trópoles regionais assumiriam na formulação de
institucionalizadas entre 1973 e 1974. políticas públicas, na destinação e concentração
de recursos e, principalmente na caracterização
Para Rochefort, a finalidade de identificar os das desigualdades regionais brasileiras. Mesmo
principais polos correspondia à possibilidade de assim, ou até por isso, o regime autoritário ins-
promover ações que minimizassem as altas con- trumentalizou as teorias capilarizando-as nas
centrações e proporcionassem maior equilíbrio formas de provisão de recursos.
territorial (ROCHEFORT, 1967, p. 15). A proposta
de Rochefort ocorreu vinculada ao histórico de Em circular dirigida aos órgãos estaduais de
influência da geografia francesa sobre o IBGE, até planejamento, em 1967, o Ministério do Interior
o final dos anos 1960, e correspondeu aos víncu- orientou os estados sobre a definição dos po-
los teóricos por meio da propagação do modelo los de desenvolvimento e implantação do sis-
de regiões funcionais ou nodais marcada pelas tema nacional de planejamento local integrado.
relações e fluxos entre as cidades numa área de Para os polos de desenvolvimento de interesse
influência, como preconizado pelos estudos de nacional (as metrópoles) seriam destinados os
W. Christaller (1933), A. Losch (1938) e F. Perroux grandes investimentos públicos e privados para
(1955) (BALBIM; CONTEL, 2013). Sedimentou um gerar economias de escala e economias externas
expoente, no Brasil, da Geografia Ativa e da Nova com efeitos multiplicadores. Para São Paulo e
Geografia ao valorizar os aspectos do desenvolvi- Guanabara seria necessário um estudo específico
mento urbano e regional nas propostas de regio- para descentralizar as atividades dos seus polos.
nalização num esforço de organização do espaço Para os polos de desenvolvimento de interesse
(LENCIONI, 2009, p.141-144). Essa construção te- macro-regional (cidades entre 100 mil e 500 mil
órica que se adapta e se materializa na realidade habitantes) seriam destinados investimentos pú-
brasileira via Rochefort marcou um ponto de in- blicos e privados controlados com a finalidade de
flexão do planejamento urbano e regional porque promover um desenvolvimento espacial equilibra-
direcionou as ações e influenciou as tomadas de do das economias regionais (alguns exemplos:
decisões no âmbito do planejamento atribuindo Manaus, Londrina, Vitória, etc.). E para os pontos
à metrópole regional status de parâmetro hege- de equilíbrio seriam destinados investimentos,
mônico de organização territorial. sobretudo nos setores de habitação, saúde e edu-
cação com a finalidade de transformá-las em
Os conceitos estrangeiros foram assimilados na polos de segundo nível (MINISTÉRIO DO INTERIOR.
ideia de metrópole regional e a ideia de metrópole SUPERINTENDÊNCIA DO DESENVOLVIMENTO DA
regional foi instrumentalizada pela administração FRONTEIRA SUDOESTE (SUDESUL), 1967).
pública. O conceito original de polo de cresci-
mento, na complexidade nacional e nas disputas Houve, por assim dizer, um privilégio às metró-
políticas dentro das instituições, foi adaptado poles que colaborou para serem consolidadas
para ganhar maior autonomia na sua aplicação e como ponto de convergência de grandes centros
sobreposição sobre as regionalizações vigentes. industriais e de influência regional ajudando a
configurar uma divisão territorial do trabalho.
A adoção do modelo de regionalização propagado Os estudos do geógrafo Roberto Lobato Correa,
por Rochefort levou os estudos do IBGE a críticas de 1968, sobre os dois tipos de redes urbanas
que apontaram as contradições entre a reali- (as desorganizadas [na Amazônia por Belém, no
dade brasileira (campo de aplicação das teorias Nordeste por Recife, Salvador, Fortaleza e São
francesas) e a realidade dos países onde essas Luís, e em Goiás por Brasília-Goiânia]; e as orga-
EIXO TEMÁTICO 2 nizadas [no Sul e Sudeste: Belo Horizonte, Rio de
Janeiro, São Paulo, Curitiba e Porto Alegre]) de-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS monstravam a hierarquia funcional centrada nas
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES metrópoles regionais que possuíam maior poder
atrativo de atividades comerciais, de serviços,
etc. (FUNDAÇÃO IBGE, 1968, VII-1 e de VII-5 a VII-8)
e, portanto constituíam maior área de influência
determinada pelas relações de interdependência
urbano-regional.

Nesse aspecto, a metrópole regional organizava


uma pirâmide funcional composta – na ordem de-
crescente - pela própria metrópole, pelos outros
polos de desenvolvimento, pelos municípios com
potencial de se transformarem em polo e pelos
demais municípios. E, na estrutura interesca-
lar nacional, resolveu uma importante questão:
resposicionou as práticas de regionalizações tor-
nando-as em ações operativas dentro do sistema
administrativo. Não por mera coincidência essa
lógica foi incorporada pelo Ministério do Interior
para a provisão de recursos que resultou em in-
vestimentos públicos e privados concentrados
garantindo não apenas condições de industria-
lização, mas também o processo de urbanização
do espaço brasileiro como conhecemos.

REPERCUSSÕES NO ÂMBITO REGIONAL

A transição do governo de Castello Branco para o


governo de Costa e Silva (1967-1969) foi marcada
por maior instabilidade social, maiores disputas
políticas e pouco avanço econômico o que levou
o segundo governo militar a substituir o PAEG
pelo Programa Estratégico de Desenvolvimento
(PED, 1968-1970), liderado por Helio Beltrão como
ministro do Planejamento e Coordenação Geral
com apoio do EPEA e de Roberto Campos (man-
tido como ministro extraordinário no período de
sua elaboração). O PED apresentou - com maior
clareza - a transformação do espaço urbano em
estratégia de desenvolvimento econômico ao
promover seletividades locacionais em função
do potencial de retornos econômicos ao setor
público e privado nos âmbitos regional e urbano.
As diretrizes para o desenvolvimento regional,
urbano e habitacional foram tomadas do Plano
16º SHCU
Decenal, de 1966.
30 anos . Atualização Crítica

1840 No desenvolvimento regional, o objetivo foi formar


um mercado nacional integrado pela diferencia- polos industriais de Salvador, Recife e Fortaleza
ção econômica de cada região por meio de pro- (MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO E COORDE-
visão – por parte do Estado - de infraestrutura NAÇÃO ECONÔMICA, 1967c, p. 68). Na década de
básica e social, investimentos em saúde e edu- 1960, a SUDENE desencorajou a concentração de
cação, incentivos fiscais nas “áreas-problemas” novos investimentos nesses estados e incentivou
Norte e Nordeste; direcionamento dos recursos nos estados do Piauí e Maranhão (prioritariamen-
para os polos de cada região e alta prioridade te) e do Rio Grande do Norte e Sergipe (secun-
para os programas de desenvolvimento de áreas dariamente) (MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO
metropolitanas (MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO E COORDENAÇÃO ECONÔMICA, 1967c, p. 75). A
E COORDENAÇÃO GERAL, 1967, p. 146-148; MINIS- concentração de investimentos foi priorizada em
TÉRIO DO PLANEJAMENTO E COORDENAÇÃO áreas que oferecessem melhores condições de
ECONÔMICA, 1967c, p. 17 e 18). O direcionamento desenvolvimento, a rigor áreas já desenvolvidas,
dos recursos foi orientado pela concentração pois a difusão homogênea da atividade econômica
em “espaços econômicos suscetíveis de desen- seria “anti-econômica” incentivando, por exemplo,
volvimento planejado, capazes de induzir o cres- a criação de “ilhas” de desenvolvimento agrícola
cimento de áreas vizinhas”, especialmente nos ao redor dos polos industriais, vinculando a pro-
polos de desenvolvimento: “Fixados esses pólos, o dução de cada estado a suas reservas naturais
Govêrno Federal concentrará seus investimentos (sal-gema no Alagoas, potássio no Sergipe, sal no
neles, e natural será esperar um maior afluxo de Rio Grande do Norte, camarão no Maranhão, etc.)
emprêsas privadas para a área. O que se deve (MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO E COORDENA-
evitar é a disseminação de recursos por diversas ÇÃO ECONÔMICA, 1967c, p. 76, 81 e 82).
áreas.” (MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO E CO-
ORDENAÇÃO GERAL, 1967, p. 150). Nessa diretriz,
reforçava-se a expectativa pela concentração
de recursos nos espaços de permanência, con- CRESCENTE PRIVILÉGIO AO URBANO
trariando as premissas originárias dos polos de E AO METROPOLITANO
desenvolvimento.

Na Amazônia, o exemplo dessa polarização foi No desenvolvimento urbano, o objetivo foi orientá-
a previsão de investimento concentrado nos -lo a partir do papel das cidades no âmbito regional
“pólos de crescimento” Belém (pelo histórico de na definição de regiões-programa e de polos de
desenvolvimento) e Santarém (pelo aproveita- desenvolvimento para concentrar os investimen-
mento energético), além de Manaus, Macapá e tos em áreas com potencial de influência sobre
Cuiabá, tidos como secundários (MINISTÉRIO seus arredores e a necessidade do planejamento
DO PLANEJAMENTO E COORDENAÇÃO GERAL, local integrado a partir de quatro aspectos: o
1967, p. 153). Para a integração e ocupação do econômico, o social, o físico-territorial e o ins-
território da Amazônia, previu-se a colonização titucional (MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO E
e o povoamento com apoio da Superintendência COORDENAÇÃO GERAL, 1967, p. 161, 162; MINIS-
de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) e das TÉRIO DO PLANEJAMENTO E COORDENAÇÃO
Forças Armadas. E entre os planos especiais, a ECONÔMICA, 1967c, p. 109). O planejamento local
criação da Zona Franca de Manaus (MINISTÉRIO deveria ser promovido pelo SERFHAU de manei-
DO PLANEJAMENTO E COORDENAÇÃO GERAL, ra integrada a outras áreas e vinculando-se ao
1967, p. 154 e 155) concebida como um distrito comprehensive planning norte-americano (MI-
industrial de escala continental. NISTÉRIO DO PLANEJAMENTO E COORDENAÇÃO
ECONÔMICA, 1967c, p. 127). As “nove grandes áreas
No Nordeste, no período desenvolvimentista metropolitanas” do Rio de Janeiro, São Paulo,
houve forte investimento em infraestrutura e Porto Alegre, Curitiba, Belo Horizonte, Salvador,
incentivos cambial, fiscal e aporte financeiro para Recife, Fortaleza e Belém foram prioritárias para
possibilitar recursos para a industrialização que aplicação do sistema nacional (MINISTÉRIO DO
aumentaram as taxas de crescimento acima da PLANEJAMENTO E COORDENAÇÃO GERAL, 1967,
média brasileira. Esses investimentos concentra- p. 162). A partir de 1967, o SERFHAU produziu do-
ram-se nos setores químico e petroquímico dos cumentos, debates e cursos sobre as áreas me-
EIXO TEMÁTICO 2 tropolitanas e a necessidade de um planejamento
metropolitano, intensificando-se no início dos
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS anos 1970 e que resultariam, dentre outros es-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES forços, na institucionalização dessas nove áreas
como regiões metropolitanas.

A hierarquização instituída pelos estudos en-


comendados para auxiliar o Plano Decenal (em
áreas metropolitanas, polos de desenvolvimento,
municípios com potencial para se tornar polos
e municípios com população acima de 50.000
habitantes) tornou-se o ponto de partida para a
formulação de política nacional de desenvolvi-
mento urbano buscando privilegiar o polo – cuja
maior representatividade era a metrópole - como
prioridade central dos investimentos, o que justifi-
cava a concentração da maior parte dos recursos
nessas capitais (UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO,
1976, p. 73 e 192).

Mas, houve contradições entre as diretrizes para


o desenvolvimento habitacional do Plano Decenal
e do PED. No Plano Decenal (período 1967-1976),
cerca de 75% da demanda habitacional, do total
de 8,07 milhões de unidades previstas (MINIS-
TÉRIO DO PLANEJAMENTO E COORDENAÇÃO
ECONÔMICA, 1967d, p. 29 e 74), concentrava-se
nas classes de baixa renda (I e II). Contudo, as
faixas intermediárias II e III concentraram 80%
do total previsto a ser investido nas cerca de 3,6
milhões de habitações previstas para o Sudeste
e o Nordeste (MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO E
COORDENAÇÃO ECONÔMICA, 1967d, p. 156-159 e
164). No PED (período 1967-1970), a previsão para
recursos habitacionais para o período 1967/1970
apoiou-se na atuação das Companhias de Habita-
ção (COHAB´s). Esses recursos tinham como foco
não exclusivamente ou prioritariamente o aten-
dimento ao déficit habitacional, mas a geração
de emprego na produção de materiais e constru-
ção de moradias com a finalidade de reaquecer o
mercado e a cadeia produtiva da construção civil
em declínio (MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO
E COORDENAÇÃO GERAL, 1967, p. 139 a 142), o
que justificava a manutenção dos baixos pata-
mares de evolução tecnológica, tendo em vista
empregar “mão-de-obra ociosa, especialmente de
trabalhadores não qualificados” (MINISTÉRIO DO
PLANEJAMENTO E COORDENAÇÃO ECONÔMICA,
16º SHCU 1967d, p. 174). O resultado dessas contradições
30 anos . Atualização Crítica
foi o financiamento de cerca de 4,3 milhões de
1842 unidades habitacionais entre 1964 e 1986 pelo
Banco Nacional de Habitação (BNH) por meio de pela concentração da cadeia produtiva indus-
operacionalização das Companhias de Habitação trial e de diferentes ramos da agroindústria, dos
(COHAB´s) redefinindo os limites urbanos com a conglomerados financeiros e de comércios com
periferização das classes de baixa renda e co- explícita preferência pelas regiões do Grande Rio
laborando na instituição de um novo padrão de e do Grande São Paulo (REPÚBLICA FEDERATIVA
desenvolvimento urbano pelo espraiamento da DO BRASIL, 1971, p. 26). O II PND (1974), por outro
mancha urbana. lado, incentivou a atenuação dos desníveis regio-
nais de desenvolvimento industrial pelo combate
Dos anos 1960 para os 1970, o polo deixou de ser à concentração numa única área metropolitana
uma estratégia exclusivamente da política indus- e privilegiou o triângulo São Paulo-Belo Hori-
trial e de combate ao desequilíbrio regional e se zonte-Rio de Janeiro e os polos industriais do
tornou principal destino de recursos públicos e Sul e do Nordeste por meio de viabilização de
privados nas políticas urbanas pela capacida- descentralização e preservação das economias
de de promover a interligação entre os circuitos de escalas, aglomeração e de produção econô-
nacionais e internacionais de fluxos financeiros mica (REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, 1975,
e mercadorias (EGLER, 1995, p. 214 e 215) com a p. 40). E manteve as políticas de modernização
progressiva instrumentalização do debate técnico da agricultura no Centro-Sul e de colonização e
e político. Na outra ponta desse processo, insti- exploração da agricultura e pecuária ao longo dos
tuições como o IBGE continuaram aprimorando principais eixos rodoviários da Amazônia (REPÚ-
as práticas de regionalização pela instituição de BLICA FEDERATIVA DO BRASIL, 1975, p. 43).
divisões regionais, – como a divisão Norte, Sul,
Nordeste, Centro-Oeste e Sudeste, de 1970 – com Os estudos do II PND reconheceram a tendência
capilaridade na definição das políticas públicas. de “metropolitanização” da sociedade por meio
de formação de grandes aglomerados urbanos
(REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, 1975, p.
CONCLUSÕES 85) e apontou a necessidade de implantar as nove
regiões metropolitanas criadas; definir as funções
Ao passo em que o processo de urbanização das metrópoles nacionais e das metrópoles regio-
encontrou reciprocidade numa regionalização nais; e definir os polos secundários para efetivar
orientada pelo Centro-Sul, pelo Nordeste e pela as políticas de descentralização, principal diretriz
Amazônia Oriental, as instituições de planeja- de desenvolvimento urbano. Colaborou, assim na
mento legitimaram as regiões metropolitanas e configuração da estrutura territorial ainda vigente
consagraram a hegemonia da ideia de metrópole de regiões metropolitanas.
regional. Em 1973, por meio da Lei Complementar
n. 14 de 8 de junho de 1973, foram estabelecidas as
regiões metropolitanas de São Paulo, Belo Hori-
zonte, Porto Alegre, Recife, Salvador, Curitiba, Be-
lém e Fortaleza e em 1974, pela Lei Complementar
n. 20 de 1º de julho de 1974, que foi estabelecida a
Região Metropolitana do Rio de Janeiro. O plano
Metas e bases para ação de governo, de 1971, já
destinava recursos ao Grande Rio e ao Grande
São Paulo como aglomerações metropolitanas
(PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, 1971, p. 235). E as
características dessas regiões foram motivado-
ras das políticas nacionais difundidas pelos I e II
PNDs, embora com divergências notáveis quanto
aos incentivos à concentração e/ou desconcen-
tração das atividades produtivas. O I PND (1971),
ao buscar aumentar o poder de competição da
indústria nacional (REPÚBLICA FEDERATIVA DO
BRASIL, 1971, p. 20-22) consolidou o Centro-Sul
EIXO TEMÁTICO 2 REFERÊNCIAS
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
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16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
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NAÇÃO ECONÔMICA. Plano Decenal de De-
senvolvimento Econômico e Social. Infra-es-
trutura. Tomo III. Volumes 2 e 3 – Transportes.
Comunicações. (Versão Preliminar). Rio de
Janeiro: Serviço Gráfico do IBGE. 1967a.

MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO E COORDE-


NAÇÃO ECONÔMICA. Plano Decenal de Desen-
volvimento Econômico e Social. Visão global.
Tomo I. Estrutura geral e estratégia de desen-
volvimento. (Versão Preliminar). Rio de Janeiro:
Serviço Gráfico do IBGE. 1967b.

MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO E COOR-


DENAÇÃO ECONÔMICA. Programa de Ação
Econômica do Govêrno – 1964-1966. Síntese.
Apresentação de Roberto Campos Documento
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NAÇÃO GERAL. Diretrizes de Govêrno. Pro-
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REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. I PND


– Plano Nacional de Desenvolvimento (1972-
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REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. II PND


- Plano Nacional de Desenvolvimento (1975-
1979). Rio de Janeiro: IBGE. 1975.

ROCHEFORT, Michel. “Um método de pesquisas


das funções características de uma metrópole
EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES A Cidade do México, uma das maiores metrópo-
les da atualidade, tem suas raízes na antiga Mé-
xico-Tenochtitlan, fundada pelo povo mexica em
vídeo-pôster 1325, que foi uma das maiores cidades do mundo
no início do século XVI. A ideologia colonial re-
produzida na historiografia tradicional ociden-
MÉXICO-TENOCHTITLAN: tal, muitas vezes, silenciou os saberes e fazeres
ameríndios que formaram a cidade pré-hispâni-
AS RAÍZES AMERÍNDIAS NA ca e ignorou sua contribuição para a história da
cidade ocidental, tanto em seu traçado e mate-
CIDADE OCIDENTAL rialidade, como na construção de uma imagem
de poder. A partir de estudos mais recentes nos
campos da história indígena, da arqueologia e
MEXICO-TENOCHTITLAN: THE AMERINDIAN ROOTS IN de áreas afins, este trabalho procura descrever
THE WESTERN CITY a formação da cidade mexica dentro da tradição
urbana da Mesoamérica e ressaltar os elemen-
MÉXICO-TENOCHTITLAN: LAS RAÍCES AMERINDIAS EM tos que colaboraram não somente no projeto da
LA CIUDAD OCCIDENTAL Cidade do México no primeiro período colonial,
mas também que passaram a fazer parte da cul-
tura visual das cidades europeias. Propõem-se
SALVAT, Ana Paula dos Santos
uma leitura do texto e da imagem urbanos con-
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação Interunidades siderando a formação do espaço como disputa
em Estética e História da Arte da Universidade de São
de poder e de identidade e uma escrita decolo-
Paulo (PGEHA-USP)
anapaulasalvat@gmail.com nial da história da cidade a partir de uma abor-
dagem transdisciplinar.

MÉXICO-TENOCHTITLAN CIDADE DO MÉXICO


HISTÓRIA DA CIDADE PRAÇA MAIOR CULTURA VISUAL

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1846
ABSTRACT RESUMEN

Mexico City, one of the largest metropolis in the La Ciudad de México, una de las metrópolis más
world today, has its roots in ancient Mexico-Te- grandes del mundo en la actualidad, tiene sus ra-
nochtitlan, founded by the Mexica people in 1325, íces en la antigua México-Tenochtitlan, fundada
which was one of the largest cities in the world at por el pueblo mexica en el año 1325, que fue una
the beginning of the 16th century. The European de las ciudades más grandes del mundo a princi-
colonial ideology that has been reproduced in pios del siglo XVI. La ideología colonial europea
traditional western historiography has often si- que se ha reproducido en la historiografía occi-
lenced the Amerindian knowledge and practices dental tradicional muchas veces ha silenciado
that formed the pre-Hispanic city and has igno- el conocimiento y las prácticas amerindias que
red its contribution to the history of the western formaron la ciudad prehispánica y ha ignorado
city, both in its layout and materiality and in the su contribución a la historia de la ciudad occiden-
construction of an image of power. Based on tal, tanto en su trazado y materialidad, como en
more recent studies in the fields of indigenous la construcción de una imagen de poder. Basado
history, archeology, and related areas, this work en estudios más recientes en los campos de la
seeks to describe the formation of Mexica city historia indígena, arqueología y áreas relaciona-
within the urban tradition of Mesoamerica and hi- das, este trabajo busca describir la formación de
ghlight the elements that collaborated not only in la ciudad mexica dentro de la tradición urbana de
the Mexico City project in the first colonial period Mesoamérica y resaltar los elementos que cola-
but also that they became part of the visual cultu- boraron no solo en el proyecto de la Ciudad de Mé-
re of European cities. A reading of the urban text xico en el primer período colonial, pero también
and image is proposed considering the formation que se convirtieron en parte de la cultura visual
of space as a dispute for power and identity and de las ciudades europeas. Se propone una lectu-
decolonial writing of the history of the city from a ra del texto y de la imagen urbanos considerando
transdisciplinary approach. la formación del espacio como una disputa por
el poder y por la identidad y la escritura descolo-
nial de la historia de la ciudad desde un enfoque
MEXICO-TENOCHTITLAN MEXICO CITY transdisciplinario.
HISTORY OF THE CITY MAIN SQUARE VISUAL CULTURE

MÉXICO-TENOCHTITAN CIUDAD DE MÉXICO


HISTORIA DE LA CIUDAD PLAZA MAYOR
CULTURA VISUAL
EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS A1 chegada dos castelhanos liderados por Hernán
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Cortés (1485-1547) à cidade de México-Tenochti-
tlán e seu encontro com Moctezuma Xocoyotzin
(1466-1520) em 8 de novembro de 1519 é um marco
vídeo-pôster na história da América. As impressões de Cor-
tés a respeito daquele lugar e daquele povo são
narradas em sua Segunda Carta de Relação ao
MÉXICO-TENOCHTITLAN: Imperador Carlos V (1500-1558) 2 em tom de mara-

AS RAÍZES AMERÍNDIAS NA vilhamento. A respeito da arquitetura e do urba-


nismo, assim descreve Cortés a cidade mexica:

CIDADE OCIDENTAL
1
Esta cidade é tão grande como Sevilha ou
Córdoba. As ruas principais são muito lar-
gas e retas. A maioria delas são metade
MEXICO-TENOCHTITLAN: THE AMERINDIAN ROOTS IN
de terra e metade de água, por onde an-
THE WESTERN CITY
dam com canoas (...). Tem muitas praças,
onde há contínuos mercados e pontos de
MÉXICO-TENOCHTITLAN: LAS RAÍCES AMERINDIAS EM
compra e venda. Há uma praça tão grande
LA CIUDAD OCCIDENTAL
que corresponde a duas vezes a cidade de
Salamanca, com pórticos de entrada, onde
há cotidianamente mais de sessenta mil
almas comprando e vendendo3 (...).
Possui esta grande cidade muitas mes-
quitas ou casas de seus ídolos4, todas de
formosos edifícios situados em todos os
bairros5. (...). Há uma mesquita principal
que não existe língua humana que consiga
descrever a sua beleza e as suas particu-
laridades6. Sua área é tão grande que se
poderia fazer ali uma vila de quinhentos
vizinhos. Possui amplas salas, ótimos apo-

1. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coorde-


nação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior –
Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. A doutoranda
tem como orientador o Prof. Dr. Rodrigo Cristiano Queiroz e
como coorientadora a Profª. Drª. Nilce Cristina Aravecchia
Botas (FAU-USP).

2. Carlos V é assim nomeado após ser coroado Sacro Im-


perador Romano e Arquiduque da Áustria em 1519, mas já
era Rei da Espanha desde 1516.

3. Referência à praça do mercado de México-Tlatelolco,


cidade fundada em 1337 e anexada por México-Tenochtitlan
em 1473.

4. Referência aos diversos templos religiosos mexicas.

16º SHCU 5. A cidade era dividida em quatro grandes parcialidades,


30 anos . Atualização Crítica além de uma área central.

1848 6. Refere-se ao Templo Maior.


sentos e quarenta torres muito altas, sendo Novas abordagens têm permitido entender os
que a mais alta é maior que a torre da igreja saberes e fazeres ameríndios na construção de
principal de Sevilha (...). uma cultura múltipla e complexa. O campo da
arqueologia tem trazido os elementos materiais
Pela calçada que chega à cidade vem dois
para a elaboração desses conhecimentos, assim
canos de argamassa, com uma largura de
como a história da arte, a antropologia, a etnolo-
dois passos cada um. Por um deles chega
gia, entre outras ciências, proporcionando uma
a água doce à cidade, da qual todos se ser-
aproximação transdisciplinar.
vem e bebem. O outro serve de alternativa,
com a água sendo desviada por ali quando Com o objetivo de colaborar na desnaturalização
querem limpar o primeiro cano (...) da narrativa eurocêntrica, este trabalho propõe
Dentro da cidade ele [Moctezuma] tinha um olhar atento à formação da cidade de Méxi-
suas casas de aposentos, todas de grande co-Tenochtitlan e como ela se tornou a base da
beleza e conforto que se torna impossível Cidade do México, informando a outros centros
descrever, pois na Espanha não há nada urbanos além-mar sobre a implantação de uma
igual. (CORTÉS, 1986 [1522], p. 45-48) imagem urbana de poder por meio de seus ele-
mentos espaciais.
Durante dois anos, os castelhanos estabeleceram
alianças com outros povos da região que estavam
insatisfeitos com o poder de México-Tenochti-
tlan. A coalizão final reuniu cerca de cinquenta México-tenochtitlan: uma cidade planejada
cidades e diversos grupos, os quais formaram um
exército “de cerca de 20 mil indígenas e de 1 mil México-Tenochtitlan, parte da atual Cidade do
castelhanos – entre os quais estariam contados México, foi fundada por volta de 1325 sobre uma
os escravos negros e os indígenas trazidos do ilha lacustre no Vale do México. Os relatos míti-
Caribe” (SANTOS, 2014, p. 223), que conquistou cos contam que um grupo saiu da ilha de Aztlan8,
México-Tenochtitlan em 13 de agosto de 1521, após guiados por Huitzilopochtli, deus da Guerra, sob
um cerco de três meses. comando de um sacerdote até o local onde deve-
riam se estabelecer, cujo sinal fora a visão de uma
A partir de então, iniciou-se um projeto de cons- águia sobre um cacto nopal. Tal teofania perpe-
trução de uma cidade que se tornaria sede do tuou-se como iconografia identitária dos mexicas,
Vice-Reino da Nova Espanha em 1535 e, a partir e permanece no brasão da bandeira mexicana.
de 1821, capital da nação mexicana. Apesar do Segundo a historiadora María Castañeda de la Paz,
modelo de cidade com uma praça que organize o o mito teria sido criado para unificar a história
espaço e as funções urbanas, especialmente as de uma população diversificada e dar-lhes um
mercantis, ter sido utilizado na Europa desde a passado comum, fortalecendo sua identidade a
Idade Média, é nas colônias hispânicas na América partir de esquemas narrativos mesoamericanos já
que esse desenho ganha destaque. No entanto, existentes com profunda relação com o sagrado9.
México-Tenochtitlan já apresentava um projeto
O povo mexica constituiu um grupo nahua que
ortogonal com uma área central monumental que
adentrou a chamada Cuenca ou Bacia do Méxi-
concentrava as construções representativas das
elites e também grandes avenidas que orientavam
seu traçado e sua distribuição. Assim, surge na 8. O termo “asteca” refere-se ao habitante de Aztlan, mas
América Espanhola, um desenho urbano e uma sua identidade mudou para mexitlin ou mexica ao saírem de
disposição arquitetônica, baseados no encontro lá, de modo que nem os ameríndios nem os colonizadores
utilizaram tal designação. Segundo Miguel Léon-Portilla, o
da configuração indígena e da tradição colonial
termo foi aplicado pela primeira vez na obra de Alexander
hispânica7. No entanto, na elaboração de uma
von Humboldt (1769-1859), intitulada “Vistas das cordilheiras
história europeia dos vencedores, a cultura ame- e monumentos dos povos indígenas da América”, publicada
ríndia foi silenciada ou desconsiderada. em 1810 na França, e generalizou-se a partir do século XX
(Cf. LÉON-PORTILLA, 2000).

7. Cf. ROJAS MIX, 2006. 9. CASTAÑEDA DE LA PAZ, 2002, p. 166.


EIXO TEMÁTICO 2 co por volta do século XII e habitou entre vários
povoados. Desta forma, os mexicas puderam
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS conhecer como se davam as relações de poder
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES e os pactos políticos10 na região da Mesoaméri-
ca11. Finalmente, após sucessivas expulsões de
outros povoados, chegaram a uma das ilhas do
Lago Texcoco e fundaram seu altepetl chamado
México-Tenochtitlan (México: o lugar dos mexicas;
Tenochtitlan: na tuna12 sobre a pedra). Esse grupo
dividiu-se poucos anos depois, fundando outro
altepetl em 1337, denominado México-Tlatelol-
co. As ilhas ocupadas pertenciam ao altepetl de
Azcapotzalco e, portanto, eles deveriam pagar
tributo sobre seu uso e ocupação.

O altepetl mesoamericano

Altepetl é um termo no idioma nahuatl formado


pelas palavras alt (água) e tepetl (montanha), os
dois elementos essenciais para a formação de
um assentamento. Geralmente, essa palavra é
simplesmente traduzida por “cidade” 13. No en-
tanto, em seu contexto original, altepetl era uma
unidade político-administrativa autônoma, cujos
requisitos para sua formação eram a posse de um
território para assentamento, a constituição de
subunidades chamadas calpulli14, um líder (tlatoani)
que governava de seu tecpan (palácio), um teocalli
(templo) principal, um teotl (deus) patrono e um
tianquizco (depois, tianguis, mercado). O histo-
riador James Lockhart (1933-2014) afirma que
Palácio, templo e mercado normalmente estavam

10. Cf. LÓPEZ AUSTIN, LÓPEZ LUJÁN, 2014.

11. O conceito de Mesoamérica refere-se a uma macrorre-


gião cultural e foi definido pelo antropólogo Paul Kirchhoff
(1900-1972) em 1943, quando ele estabeleceu caracterís-
ticas comuns dos povos de uma determinada região. Cf.
KIRCHHOFF, 1943; Cf. KIRCHHOFF, 1960.

12. Tuna é a fruta do cacto nopal.

13. Alonso de Molina (1513-1579), em seu dicionário de nahuatl,


definiu altepetl como “pueblo” (Cf. MOLINA, 1571). No entanto,
Bernardo García Martínez adverte que há duas concepções
de “pueblo”: a tradução para altepetl, e a descrição para con-
gregações ou localidades (Cf. GARCÍA MARTÍNEZ, 2011, p. 71).

14. Calpulli era uma unidade semi-independente do altepetl,


uma organização baseada em parentesco, territorialidade,
16º SHCU
propriedade comum, divisão de trabalho e estratificação
30 anos . Atualização Crítica
social (Cf. LOCKHART, 1992; Cf. MIER Y TERÁN ROCHA, 2005,
1850 p. 93; Cf. SANTOS, 2009, p. 58).
localizados perto uns dos outros, representando Teotihuacan, a cerca de 50 quilômetros da Cidade
uma força significativa de organização nuclear. do México, foi considerada a primeira metrópole
Durante os séculos pré-conquista, um grau extra- da Mesoamérica e contou com uma população de
ordinário de nucleação urbana existiu de fato no cerca de 100 mil habitantes20 em 20 quilômetros
México central, e não apenas nas famosas grandes quadrados de extensão. Estima-se que sua planifi-
cidades de Tenochtitlan e Texcoco15 (LOCKHART, cação monumental tenha se iniciado entre os anos
1992, p. 18-19, tradução nossa). 200 e 250 d.C. A grande via norte-sul, a Calçada
dos Mortos, cruzava-se com outra grande avenida
O primeiro assentamento estruturado com um sig-
dividindo a cidade em quatro partes, conforme a
nificativo centro cerimonial foi Cuicuilco, cuja zona
cosmologia mesoamericana. Eventos ainda incer-
arqueológica localiza-se na região sul da Cidade
tos de prováveis causas político-sociais levaram
do México. Cuicuilco, que teria sido abandonada
a cidade ao seu declínio a partir de 650 d.C. até
por volta do ano 60 d.C. devido às erupções do vul-
seu completo abandono por volta de 750 d.C.21.
cão Xitle, é considerada um exemplo de sociedade
Michael Smith assim define a sua importância:
do período protourbano e deve ter chegado a 20
mil habitantes16. Nesse período, se conformaram As características mais notáveis do dese-
alguns princípios básicos das cidades mesoameri- nho urbano de Teotihuacan – seu tamanho
canas, como explica o arqueólogo Michael Smith: enorme, a disposição ortogonal estrita de
toda a cidade e o uso de uma avenida central
As cidades e vilas mesoamericanas do Pe-
ríodo Pré-Clássico17 adotaram um conjunto como característica estrutural essencial no
comum de características arquitetônicas e desenho espacial – foram inovações radi-
espaciais às quais me refiro como “os prin- cais para a tradição do urbanismo meso-
cípios de planejamento mesoamericano”. americano. Até então, as cidades tinham
Isso inclui tipos de edificações (templos sido assentamentos menores, cujas zonas
piramidais, palácios reais, e campos de centrais estavam cuidadosamente dispos-
bola18), espaços abertos formais (praças) e tas ao redor de uma grande praça, enquanto
uma dicotomia espacial entre a área central que suas zonas residenciais apresentavam
(o epicentro), cuja maior parte da arquite- uma estrutura espacial mais informal22.
tura cívica é organizada com uma configu- (SMITH, 2011, p. 262, tradução nossa)
ração planejada, e as zonas residenciais
ao seu redor, que apresentam pouco ou features that I refer to as ‘the Mesoamerican planning prin-
nenhum planejamento em sua configura- ciples.’ These include types of building (temple-pyramids,
ção.19 (SMITH, 2017, p. 177, tradução nossa) royal palaces, and ballcourts), formal open spaces (plazas),
and a spatial dichotomy between a central area (the epicen-
ter) that contains most of the civic architecture arranged
15. Texto original: “Palace, temple, and market would ordi-
with a planned configuration, and surrounding residential
narily be located near to one another, representing a consi-
zones that exhibit little or no planning in their arrangement”.
derable force toward nucleation. During the pre-conquest
centuries, a formidable degree of urban nucleation in fact 20. Alguns autores estimam até 200 mil habitantes. Cf.
existed in central Mexico and not only in the famous great MANZANILLA, 2001.
cities as Tenochtitlan and Tetzcoco”. 21. A respeito de Teotihuacan: Cf. LEÓN-PORTILLA, 2017;
16. A respeito de Cuicuilco: Cf. LOMBARDO DE RUIZ, 1972; Cf. MANZANILLA, 2001.
Cf. PASTRANA, FOURNIER, 2001. 22. Texto original: “Las características más notables del
17. Os períodos temporais para o estudo da Mesoamérica diseño urbano de Teotihuacan – su enorme tamaño, la
são: Pré-Clássico (2500 a.C a 200 d.C.), Clássico (200 a 650 disposición ortogonal estricta de toda la ciudad y el uso
d.C.), Epiclássico (650 a 900 d.C.) e Pós-Clássico (900 a 1519 de una avenida central como rasgo estructural esencial en
d.C.), cada qual com subdivisões. el diseño espacial – fueron innovaciones radicales para la
tradición del urbanismo mesoamericano. Antes de entonces,
18. Utilizado para o Jogo de Pelota, um esporte com fina-
las ciudades habían sido asentamientos más pequeños,
lidade ritual.
cuyas zonas centrales estaban cuidadosamente dispuestas
19. Texto original: “The cities and towns of Preclassic Meso- alrededor de una gran plaza, mientras que sus zonas resi-
america adopted a common set of architectural and spatial denciales mostraban una estructura espacial más informal”.
EIXO TEMÁTICO 2 A inovação teotihuacana na configuração da ci-
dade ortogonal em grande escala não foi seguida
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS por outras cidades, além de México-Tenochtitlan23.
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
A cidade de Tula ou Tollan, capital do povo tolteca,
localizada a cerca de 80 quilômetros da Cidade
do México, apresentou uma maior rigidez na con-
cepção de sua zona central, com uma enorme
praça quadrangular ao redor da qual estavam as
residências das elites e os principais edifícios
em blocos organizados24. Por volta de 1000-1050
d.C. sua população chegou a 80 mil habitantes
em uma área de 16 quilômetros quadrados, mas
foi destruída em 1165 d.C., adquirindo um caráter
sagrado para os povos da região25.

A cosmogonia mesoamericana e o projeto


da cidade de México-Tenochtitlan

Para os mexicas, entre outros povos mesoame-


ricanos, o espaço era dividido em duas dimen-
sões: a vertical, onde havia três grandes extratos
– Omeyocan, área celeste subdividida em treze
céus; Tlalpan, a superfície da Terra; Mictlan, o
Inframundo, subdividido em nove partes – e a
horizontal, que dividia a superfície terrestre em
um centro e quatro rumos, conforme explica o
historiador Eduardo Natalino dos Santos:

A delimitação do espaço servia para mensu-


rar e marcar as unidades ou ciclos calendá-
rios, tais como o dia, a noite e o ano sazonal:
o tempo estava espacializado. Simultanea-
mente, essas unidades e ciclos calendários
serviam para delimitar e caracterizar as
regiões do espaço, tais como os céus, os in-
framundos e os quatro rumos da superfície
terrestre: o espaço estava temporalizado.
(SANTOS, 2009, p. 234)

23. Algumas cidades maias, como Nixtun-Ch’ich’ e Ujuxte,


já apresentavam ortogonalidade, mas Teotihuacan foi a
primeira que a aplicou em larga escala (Cf. SMITH, 2017, p.
184). Michael Smith (2017) destaca também algumas carac-
terísticas que não foram encontradas em Teotihuacan: o
palácio real, o campo de bola, uma praça central e áreas
periféricas sem planejamento formal.

16º SHCU 24. SMITH, 2008, p. 580.


30 anos . Atualização Crítica
25. Cf. LÓPEZ AUSTIN, LÓPEZ LUJÁN, 2009. A respeito de
1852 Tula: Cf. SMITH, 2011; Cf. MASTACHE, COBEAN, 2011.
Tais concepções influíram diretamente no dese- com 45 metros de altura e mais de 80 metros de
nho das cidades e na disposição dos edifícios, de lado. Grandes estradas partiam do centro ceri-
modo que “as construções teriam sido planejadas monial e ligavam a ilha ao continente, sendo as
para expressar espacialmente o calendário ou, principais: ao norte, a Estrada de Tepeyacac; ao
dito de outro modo, para marcar temporalmente sul, a Estrada de Iztapalapa; a oeste, a Estrada
os conceitos cosmográficos” (SANTOS, 2009, p. de Tlacopan. A leste do recinto cerimonial estava
235). Em México-Tenochtitlan a região central o caminho para o porto de Texcoco. Essas vias
correspondia ao recinto cerimonial, uma área faziam a divisão da cidade em quatro regiões:
Moyotlan, Teopan ou Zoquiapan, Atzacoalco e
delimitada com 400 metros de lado que pode ter
Cuepopan (Figura 1).
contido 78 construções26, das quais a mais impor-
tante era o Templo Maior, um edifício piramidal

Figura 1: Disposição dos elementos principais de México Tenochtitlan. Esquema gráfico da autora sobre mapa atual
da Cidade do México da Agencia Digital de Innovación Pública “Sistema Abierto de Información Geográfica (SIGCDMX)”.

Na extremidade norte da estrada de Iztapalapa, México-Tlatelolco, o maior mercado da região27.


havia uma grande praça, entre os nobres palácios,
que acessava o recinto sagrado pelo sul. É pro- Destacam-se em México-Tenochtitlan elementos
vável também que essa área tivesse um mercado comuns às cidades mesoamericanas, como o
temporário, especialmente pela sua localização templo piramidal, o campo do jogo de pelota, o
ao lado do Canal Real e pela proximidade com as palácio real, a praça central e áreas periféricas
residências das elites. Há também a hipótese de sem planejamento formal. De Teotihuacan foram
que antes da conformação final do recinto cerimo- aproveitadas a monumentalidade da arquitetura
nial, pudesse haver uma praça de mercado maior e a ortogonalidade em larga escala, ao passo que,
e mais próxima ao Templo Maior, como existia em
de Tula, Tenochtitlan serviu-se de um epicentro
formal. Uma inovação de México-Tenochtitlan foi
a delimitação do seu recinto sagrado, fazendo
26. SAHAGÚN, 1829 [1577], p. 197-211. O Programa de Arque- dele seu epicentro urbano em vez de uma praça,
ología Urbana do Instituto Nacional de Arqueología e Historia
tem trabalhado na localização desses edifícios e alguns de-
les já foram identificados. Cf. BARRERA RODRIGUEZ, 2018. 27. Cf. MATOS MOCTEZUMA, 2015.
EIXO TEMÁTICO 2 como era comum na Mesoamérica.

HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS Em 1428, México-Tenochtitlan, Texcoco e Tlacopan


DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES estabeleceram uma Tríplice Aliança que domi-
nou politicamente a região. México-Tenochtitlan
tornou-se a maior das cidades ameríndias com uma
população de 150 mil a 200 mil28 – com autores que
consideram até 300 mil29 – pessoas distribuídas
em 13,5 quilômetros quadrados30, e também uma
das maiores do mundo, considerando que no ano
1500, Paris tinha por volta de 225 mil habitantes,
Nápoles, 125 mil, Veneza, 100 mil e Roma, 55 mil31.

Foi essa proeminente México-Tenochtitlan, des-


crita por Cortés com tanto entusiasmo, que se
tornou modelo de grandeza que, em sua recons-
trução, se tornaria um marco de uma nova era.

CIDADE DO MÉXICO: UMA NOVA TRAZA?

Após a destruição de México-Tenochtitlan Cortés


estabeleceu-se em Coyoacán, mas insistiu para
que a nova cidade fosse erguida sobre a cidade
destruída, com as vantagens da segurança de
uma cidade insular, da associação simbólica na
sobreposição de uma nova ordem e da praticidade
de utilizar os materiais de construção e mão-de-
-obra à disposição32.

O projeto foi encomendado a Alonso García Bravo


(1490-1561) e Bernardino Vázquez de Tapia (1493-
1559) 33 e contemplava a área central destinada
aos espanhóis em um quadrilátero de aproxima-
damente 1100 x 910 metros34. O arquiteto Manuel
Sánchez de Carmona afirma que os limites da
traza (projeto) seriam: ao norte, a Rua República
de Colombia; ao sul, a Rua San Gerónimo; a leste,
a Rua Jesús María; a oeste, a Rua San Juan de

28. MATOS MOCTEZUMA, 2006, p. 117.

29. BARRERA RODRÍGUEZ, 2018, p. 22; LÓPEZ AUSTIN,


LÓPEZ LUJÁN, 2014, p. 213.

30. LÓPEZ AUSTIN, LÓPEZ LUJÁN, 2014, p. 213.

31. BAIROCH, BATEAU, CHÈVRE, 1988, p. 278.

32. Cf. MIER Y TERÁN ROCHA, 2005.


16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica 33. Cf. BENÍTEZ, 1933.

1854 34. MIER TERÁN Y ROCHA, 2005, p. 454.


Letrán, atual Eixo Central Lázaro Cárdenas35. Mapa de Nuremberg39 como “Platea” (Figura 2).
Esse nobre vazio bem menor do que o recinto
As principais estradas que dividiam a cidade em cerimonial tornou-se o centro político, religioso
quatro parcialidades ainda podem ser identifi- e social da nova Cidade do México, a Praça Maior,
cadas: Estrada dos Mistérios, ao norte; Estra- visível no mapa de 1550 (Figura 3). Note-se que
da Tlalpan, ao sul; Rua Tacuba, a oeste; Rua da ambos os mapas estão orientados em direção
Guatemala, a leste36. A denominação das antigas ao oeste geográfico.
regiões pré-hispânicas recebeu o acréscimo de
uma toponímia hagiográfica de acordo com as
igrejas construídas: São João de Moyotlan, São
Paulo de Teopan, São Sebastião de Atzacoalco e
Santa Maria de Cuepopan. Santiago de Tlatelolco
tornou-se a quinta região.

O antigo Palácio de Axayácatl, hospedagem dos


castelhanos em 1519, denominado Casas Viejas
(Casas Velhas), e o de Moctezuma Xocoyotzin,
conhecido como Casas Nuevas (Casas Novas),
ficaram com Cortés, sendo que nas Casas Velhas
funcionou a administração municipal do início de Figura 2: Autor desconhecido. Mapa de Tenochtitlan (deta-
1524 até 1532, quando foi construído um edifício lhe), 1524. Biblioteca Newberry, Chicago, Estados Unidos
específico para o Cabildo (sede da administração (Ayer 655.51.C8 1524b).
municipal), cujo andar térreo foi destinado a lojas
de aluguel para arrecadação de verbas37. Com a
determinação da Cidade do México como sede do
Vice-Reino em 1535, o vice-rei também se instalou
nas Casas Velhas até 1562, quando se mudou para
as Casas Novas, adquiridas de Martín Cortés, filho
de Hernán, pela Coroa. Outro edifício simbólico que
compôs o centro de poder foi a Igreja Maior, cons-
truída por Martín de Sepúlveda entre 1524 e 1532
com as pedras dos edifícios religiosos mexicas, e
demolida posteriormente para dar espaço à nova
catedral que estava em construção desde 157338.

Um novo epicentro Figura 3: Alonso de Santa Cruz (atribuído). Mapa da Cidade


do México (detalhe), c. 1550. Biblioteca da Universidade
de Uppsala, Suécia.
Com a destruição do recinto sagrado mexica,
o epicentro da cidade ameríndia foi deslocado
para a praça entre os palácios, que aparece no
Duas outras praças menores formavam uma linha
diagonal no sentido noroeste-sudeste com a Pra-
35. Cf. SÁNCHEZ DE CARMONA, 1989. ça Maior. No vértice sudeste da Praça Maior estava
36. As primeiras denominações, conforme Atas do Cabildo
a Praça do Volador40, que fora parte do terreno das
eram: Rua Tlatelolco, Rua Iztapalapa, Rua Tacuba e Rua dos Casas Novas mas não foi anexada pelo Palácio dos
Bergantins, respectivamente (Cf. MIER Y TERÁN ROCHA,
2005).
39. Para uma análise desse mapa: cf. MUNDY, 1998.
37. TOUSSAINT, 1983 [1948], p. 5.
40. Referente ao espaço para o Jogo do Volador, um ritual
38. O projeto inicial foi do arquiteto Claudio de Arciniega, no qual os participantes performavam do alto de uma árvore
mas sua finalização só ocorreu em 1813. ou mastro. Cf. CLAVIJERO, 1844 [1778], p. 236-237.
EIXO TEMÁTICO 2 Vice-Reis, enquanto a noroeste estava a Praça do
Marquês, que era delimitada pelas Casas Velhas,
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS ocupadas por Cortés (nomeado Marquês do Vale
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES de Oaxaca) e pela Igreja Maior. Sánchez Carmona
considera a Praça do Marquês a primeira praça co-
lonial que reunia os poderes político e religioso41,
interpretação válida considerando que o edifício
das Casas Velhas foi sede da administração mu-
nicipal e do vice-reino até que cada instituição
fosse deslocada para seus edifícios próprios.
Ao sul da Praça do Marquês, estava o Portal dos
Mercadores, marcando uma região comercial
que foi ampliada com a mudança do Cabildo para
o lado sul da Praça Maior e a destinação de parte
da praça para as tendas comerciais.

Tenochtitlan tinha também outro mercado tão


grande quanto o de Tlatelolco, localizado em
Moyotlan, que se deslocou para o terreno do atual
Palácio de Belas Artes42 logo após a conquista,
mas retornou para o local anterior ficando conhe-
cido como Tianguis de San Juan ou Tianguis de
México, provavelmente o maior mercado aberto do
mundo na época43. Na década de 1540, o vice-rei
Antonio de Mendoza instalou outro mercado ao
norte da Alameda, denominado Tianguis de San
Hipólito. Enquanto tianguis denotava o mercado
indígena, parián designava o mercado voltado
para os espanhóis, no qual se encontravam pro-
dutos trazidos pelos navios44. O Parián instalado
na Praça Maior desde 153345 cresceu devido às
enchentes46, pois outros mercadores se instala-
ram ali em função do piso mais elevado (Figura
4), e, entre 1695 e 1793, foi construído um edifício
fixo projetado por Pedro Jiménez de los Cobos47.

41. SÁNCHEZ DE CARMONA, 1989, p. 61.

42. KUBLER, 2012, p. 120.

43. MUNDY, 2015, p. 88.

44. MUNDY, 2015, p. 85-86.

45. SÁNCHEZ DE CARMONA, 1989, p. 79. O’GORMAN, 1970, p. 109.

46. Algumas grandes enchentes ocorreram em 1553, 1580,


1604 e 1629 (Cf. EZCURRA, 1997, p. 33).

47. Por ordem de Antonio López de Santa Anna em 1843 (Cf.


SANTOS, 2003, p. 21), o mercado foi demolido e transferido
para a Praça do Volador em 1844, em edifício projetado por
Lorenzo de la Hidalga. Esse mercado foi demolido em 1934,
16º SHCU
dando lugar a um jardim, e depois ao edifício da Suprema
30 anos . Atualização Crítica
Corte de Justiça, projeto de Antonio Muñoz, erguido entre
1856 1936 e 1941 (Cf. SUPREMA CORTE DE JUSTICIA, 2016).
Figura 4: Disposição dos elementos principais do centro da Cidade do México no primeiro período colonial. Esquema
gráfico da autora sobre mapa atual da Cidade do México da Agencia Digital de Innovación Pública “Sistema Abierto de
Información Geográfica (SIGCDMX)”.

A experiência europeia 1284, e as terre nuove florentinas51, na Toscana.

Em relação às primeiras colônias hispano-ame-


Criou-se na Cidade do México um epicentro numa
ricanas, o primeiro estabelecimento urbano que
grande praça ladeada por edifícios de poder numa
ainda persiste é a cidade de Santo Domingo, ini-
cidade com vias ortogonais e grandes eixos, confi-
ciada em 1496 por Bartolomé Colón (1437-1514),
guração que se insere dentro da tradição histórica
mas reconstruída em 1502 por Frei Nicolás de
do urbanismo48, desde cidades gregas e romanas,
Ovando (c. 1460-1511) – nomeado governador das
passando pelo Oriente, pela Índia e pela Meso-
Índias em 1501 – em novo local após destruição
américa. Esses aspectos não são encontrados
por furacão. Nas instruções dadas pelos reis a
nas cidades dos muçulmanos, que ocuparam a
Ovando não havia um plano formal de desenho
Península Ibérica por quase 800 anos.
urbano, ficando a escolha a cargo do governante:
No território ibérico, as cidades aragonesas do
Como na Ilha de Espanhola são necessários
século XIII – Mosqueruela (1262), Villareal (1272) –
alguns assentamentos, e não se pode de-
foram fundadas “para repovoar o território a partir
terminar daqui a sua forma, vereis as áreas
de uma praça maior, onde as ruas principais se
e locais dessa ilha e, conforme a qualidade
cruzavam ortogonalmente, as quais alongadas
da terra e regiões e pessoas dos povoados
pelos pequenos proprietários de terras, estrutu-
que já existem, fareis os assentamentos em
ravam o espaço rural circundante”49 (BIELZA DE
quantidade apropriada, em áreas e lugares
ORY, 2002, s.p., tradução nossa). Outras cidades
que te pareçam convenientes52. (INSTRUC-
que se aproximam dessa configuração foram as
CIÓN, 1996, p. 22, tradução nossa)
bastides francesas50, como Septfonds (Tarn-e-
t-Garone), de 1252, ou Monpazier (Dordoña), de
51. NICOLINI, 1997, p. 20 APUD MONETTI, 1979.

48. Cf. BENEVOLO, 2015. 52. Texto original: “Porque en la isla Española son necesarias
de hacer algunas poblaciones, y de acá no se puede dar en
49. Texto original: “para repoblar el territorio a partir de
ello cierta forma, veréis los lugares y sitios de la dicha isla,
una plaza mayor, en la que se cruzaban ortogonalmente
y conforme a la calidad de la tierra y sitios y gente allende
las calles principales, que alargadas por los “quiñoneros”
de los pueblos que agora hay, haréis hacer las poblaciones
estructuraban el espacio rural circundante”.
y del número que os pareciere, y en los sitios y lugares que
50. Cf. BIELZA DE ORY, 2002; Cf. BERNARD, 1993. bien visto vos fuere”.
EIXO TEMÁTICO 2 Alfredo Nicolini chama a atenção para o fato de
que “Ovando tinha participado na campanha mi-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS litar dos Reis Católicos contra Granada e, possi-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES velmente, estava presente quando se projetou
o acampamento, futura cidade, de Santa Fé em
1491” 53 (NICOLINI, 1997, p. 22, tradução nossa), o
que certamente o teria orientado no projeto da
nova cidade de Santo Domingo.

As primeiras instruções mais explícitas quanto


aos assentamentos coloniais teriam sido as Or-
denanzas a Pedrarias Dávila y a los oficiales reales
de 1513, nas quais o Rei Fernando determinou o
estabelecimento de ruas, praça central, prédios
administrativos e igreja, sendo que as residências
próximas à praça seriam reservadas aos mais
nobres cidadãos espanhóis54. Dávila pôde aplicar
essas instruções na Cidade do Panamá juntamen-
te com Alonso García Bravo, que poucos anos
depois, realizaria o traçado da Cidade do México.

As teorias renascentistas não faziam parte das


práticas urbanísticas castelhanas desse período,
uma vez que o tratado de Leon Battista Alberti
encontrou ecos na Península Ibérica anos depois.
Na Espanha, Diego de Sagredo (c.1490-c.1527)
escreveu o primeiro tratado local em 1526, in-
titulado Las medidas del romano, abrangendo
questões referentes à arquitetura e à cidade55.
Apesar do primeiro Vice-Rei da Nova Espanha,
Antonio de Mendoza (1495-1552), ter levado con-
sigo um exemplar do tratado de Alberti para a
Cidade do México em 153556, o traçado da cidade
já estava estabelecido.

Portanto, a traza da Cidade do México foi um pro-


jeto decorrente das experiências dos castelha-
nos, mas também da tradição mesoamericana
que trouxe novos elementos para o ocidente: a
monumentalidade de edifícios, de vias e, princi-
palmente de praças.

53. Texto original: “Ovando había participado en la campaña


militar de los Reyes Católicos contra Granada y, presumi-
blemente había estado presente cuando se trazó el cam-
pamento luego ciudad de Santa Fe en 1491”.

54. Cf. KINSBRUNER, 2005, p. 1-12.


16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica 55. Cf. LOEWEN, 2015.

1858 56. GRUZINSKI, 2004, p. 235.


DA AMÉRICA PARA A EUROPA A pedido do rei, Francisco de Mora executou uma
planta quadrilátera regular em 1608, mas o proje-
Com a transferência da Corte de Felipe II (1527- to final foi realizado em 1617 por Juan Gómez de
1598) de Toledo para Madri em 1561, houve neces- Mora, determinando as dimensões da praça em 152
sidade de expandir a cidade para além de seus x 94 metros. A Praça Maior de Madri foi inaugurada
muros medievais. O principal monumento, que oficialmente em 1620, mas foi concluída apenas
serviria como ícone de poder foi a Praça Maior, em 1622 (Figura 6). No entanto, a cidade celebrou
um espaço de múltiplos usos: atividade comercial seus 400 anos em 2017, comemorando a data do
e cerimonial, corridas de touros, festas, espetá- projeto final.
culos, romarias, execuções públicas e inclusive a
proclamação de Felipe IV como rei em 1621.

Figura 6: Pedro Teixeira e Salomon Savery. Topografia da


Figura 5: Da Lagoa à Praça, s.d. Área Governamental de Cul- cidade de Madri 1656 (folha 13/20). Biblioteca Nacional,
tura, Turismo e Esportes da Prefeitura de Madri, Espanha. Espanha (CC-BY-NC-SA 4.0 bne.es 2020).

Em Madri, não se criou um centro com uma praça Geralmente indica-se a Praça Maior da cidade
ladeada por edifícios de poder, mas se fez da pra- espanhola de Valladolid como o modelo utilizado
ça, em si, um símbolo de poder. O local escolhido para a de Madri. Em Valladolid, a Praça Maior foi
para instalar a Praça Maior era, até meados do construída, com projeto do arquiteto real Fran-
século XV, uma área periférica extramuros que cisco de Salamanca, após um incêndio em 1561
abrigava o Mercado da Plaza del Arrabal, que ficava na antiga praça do mercado do século XIII. No
ao lado da Praça e da Igreja de Santa Cruz sobre entanto, existe em Madri uma intencionalidade
uma lagoa dessecada (Figura 5). Em 1565, o corre- na obtenção do espaço de demonstração de po-
gidor Francisco de Sotomayor enviou um relatório der real na cidade-sede de um Império que se
ao rei, denominado Memoria de las obras de Madrid, conformava com o estabelecimento de colônias
informando sobre a necessidade de demolir edifícios além-mar. No outro lado do Atlântico, a Cidade do
para construir um mercado de carnes (carnicería) e México já projetava sua grandeza simbólica e física
de pães (panadería), o que ocorreu apenas em 158357. há algumas décadas. Portanto, havia urgência em
Juan de Herrera realizou os primeiros projetos da Madri para atingir tal proeminência58.
Praça Maior na década de 1560, mas só executou a
construção da Casa de la Panadería, concluída em Em relação ao impacto da grande praça mexicana
1590. A Casa de la Carnicería foi concluída em data sobre o urbanismo espanhol, Campos Salgado
incerta, mas foi reconstruída após o incêndio de 1631 afirma:
espelhada na arquitetura da Casa de la Panadería.

58. Sobre a comparação entre as Praças Maiores da Cidade


57. Cf. ESCOBAR, 2003. do México e de Madri: cf. SALVAT, 2019.
EIXO TEMÁTICO 2 Em nenhuma parte da Espanha havia uma
praça com essas dimensões. As praças
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS maiores, como tais, não foram criadas até
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES depois do traçado da Nova Espanha, pelo
que é possível concordar com a ideia de Car-
los Chanfón,59 que afirmou que estas tinham
sua origem nos relatos feitos dos grandes
espaços abertos pré-hispânicos.60 (CAM-
POS SALGADO, 2011, p. 159, tradução nossa)

Outra realização a partir da experiência urbana na


América foi o documento conhecido como “Lei das
Índias”, de 1573, que normatizou a ocupação e a
administração das cidades hispano-americanas61.
Nesse documento, a formação da Praça Maior é
abordada como ponto inicial da urbanização das
novas cidades e determinante do crescimento
urbano, cujo formato deveria ser retangular na
proporção mínima 1 x 1,5 com cada esquina posi-
cionada de acordo com os pontos cardeais e de
cujas laterais sairiam as quatro principais ruas da
cidade. Apesar das normas serem destinadas so-
bretudo às cidades colonizadas na América, elas
também foram aplicadas às cidades espanholas62.
Nesse período, as principais cidades da América
já haviam sido fundadas ou reconstruídas pelos
espanhóis.

A configuração da Cidade do México, em especial


de sua Praça Maior, foi constituída a partir da
contribuição de culturas distintas. A antropólo-
ga Setha Low destaca que “essa nova forma, a
praça americana espanhola, mantém elementos
arquitetônicos, espaciais e físicos de ambas as
tradições, de modo que as tensões culturais de
conquista e resistência são simbolicamente co-
dificadas em sua arquitetura”63 (LOW, 1995, p. 759,

59. Carlos Chanfón Olmos (1928-2002) foi arquiteto e pro-


fessor mexicano.

60. Texto original: “En ningún lugar de España existía una


plaza de esas dimensiones. Las plazas mayores como tales
no se crearon hasta después del trazo de la Nueva España,
por lo que se puede coincidir con la idea de Carlos Chan-
fón, quien afirmaba que éstas tuvieron su origen en las
reseñas que se hacían de los grandes espacios abiertos
prehispánicos”.

61. Cf. MINISTERIO DE VIVIENDA, 1976.

16º SHCU 62. Cf. ESCOBAR, 2003, p. 194.


30 anos . Atualização Crítica
63. Texto original: “This new form, the Spanish American
1860 plaza retains architectural, spatial and physical elements
tradução nossa). Portanto, entende-se que as Tal impressão foi transmitida ao rei não apenas
Praças Maiores espanholas são também produto nas longas linhas da carta de Cortés, mas também
da inserção da cultura ameríndia na Europa e que na imagem cartográfica que a acompanhava, uma
igualmente provocaram tensões culturais, por peça publicitária de uma cidade que desafiava o
vezes demonstradas pelo próprio apagamento conceito de superioridade europeia.
histórico de tais influências.
Nessa associação de espaço, imagem e poder,
tornava-se necessário construir a Cidade do Mé-
xico de modo que as imagens dela produzidas
CONSIDERAÇÕES FINAIS fossem associadas à glória de um novo impé-
rio. Tal foi a grandeza da nova cidade marcada
O sociólogo Göran Therborn entende que as cida- pela monumentalidade mesoamericana que seu
des são textos a serem lidos por diversas chaves, epicentro informou a necessidade de buscar a
como o layout espacial, a funcionalidade, o padrão imagem de poder pela constituição de grandes
construtivo, a arquitetura, a monumentalidade e espaços abertos nas teias urbanas medievais
a toponímia64. Pode-se dizer que, além de textos, de uma Europa que procurava, ela mesma, ser o
as cidades são imagens a serem lidas e interpre- epicentro do mundo.
tadas. Percebe-se que a dinâmica da formação
das cidades abordadas, com destaque para seus Na desconstrução da historiografia ocidental
elementos simbólicos, demonstra a relação entre eurocêntrica, que promoveu os apagamentos dos
poder e espaço e a criação de uma cultura visual confiscos culturais realizados, faz-se urgente, no
que expõe os signos dessa conexão e a disputa estudo do espaço como relação entre estrutura e
na construção ou apagamento de identidades e ação66, imagem e poder, novas leituras não apenas
legitimidades. transdisciplinares, mas também transculturais.

A Europa latina do século XV tinha uma posição


periférica no mundo, mas produziu um conceito de
si como herdeira da cultura grega e protagonista
de uma também construída história universal e
homogênea na qual ela se constituía como cen-
tro65. Enquanto o militarismo cumpria a missão
de conquistar geograficamente o mundo após a
reconquista ibérica, o cristianismo justificava a
exploração de corpos e territórios e atuava na
vertente cultural e ideológica.

Do outro lado do Atlântico, os mexicas construí-


ram sua ascensão reivindicando uma prestigiosa
linhagem tolteca e conquistando territórios por
meio do poderio militar. Diante das similaridades
na obstinação imperial das duas culturas, uma das
grandes diferenças era, naquele momento, a cul-
tura visual urbana. A materialização do poder dos
mexicas estava na grandeza de sua cidade-capi-
tal, que impactou profundamente os castelhanos.

from both traditions, such that the cultural tensions of


conquest and resistance are symbolically encoded in its
architecture”.

64. Cf. THERBORN, 2017, p. 12-22.

65. Cf. DUSSEL, 2005. 66. Cf. LÖW, 2013.


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EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES O artigo apresenta os primeiros resultados de
três pesquisas correlatas, sobre a questão da
mulher, a cidade e suas violências. As pesquisas
vídeo-pôster percorrem processos históricos e teóricos, bem
como dados e mapeamentos, para entender a
conexão entre os casos de violência contra as
MULHERES, CIDADES E mulheres, nas ruas, no transporte e na ausência
de políticas claras no amparo e atendimento das
VIOLÊNCIAS: PERCURSO mulheres que sofrem violência no Distrito Fede-
ral, a pesquisa mergulha na questão da opressão
HISTÓRICO, URBANISTICO E aos povos originários, passando pela configu-
ração urbana e as propostas de planejamento.
ESTRUTURAL Tais estudos nos levam a concluir que temas de
abordagem social, como a violência de gênero
são complexos, e devem ser tratados de manei-
WOMEN, CITIES AND VIOLENCE: HISTORICAL, URBAN
ra holística e sistêmica. Várias dessas questões
AND STRUCTURAL ROUTE
decorrem de uma problematização raiz, e, de
acordo com uma racionalidade simples e utó-
MUJERES, CIUDADES Y VIOLENCIA: RUTA HISTÓRICA, pica, seriam resolvidos a partir do ajuste de tal
URBANA Y ESTRUCTURAL problematização. No caso da violência contra a
mulher, a resposta mais simplista seria: respei-
ALIAGA FUENTES, Maribel to às mulheres. Contudo, cada vez mais fica evi-
dente que a estrutura patriarcal e misógina da
Doutora em Arquitetura e Urbanismo; Universidade
sociedade moderna não será ajustada a partir
de Brasília
arqmarialiaga@gmail.com
da simples afirmação que mulheres merecem
respeito.
OLIVEIRA, Larissa Castanon
Graduanda em Arquitetura e Urbanismo; Universidade CIDADES COMUNS URBANISMO NEUTRO
de Brasília
larissa.cast12@gmail.com
OCUPAÇÃO DOS ESPAÇOS
VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES
TAVARES, Gabriela Maria Paiva
Graduanda em Arquitetura e Urbanismo; Universidade
de Brasília
mptgabriela@gmail.com

ZAMPRONHA, Sara Cristina de Carvalho


Graduanda em Arquitetura e Urbanismo; Universidade
de Brasília
sarazampronha@gmail.com

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1866
ABSTRACT RESUMEN

The article presents the first results of three rela- El artículo presenta los primeros resultados de
ted studies on the issue of women, the city and its tres estudios relacionados sobre el tema de la
violence. The research esgoes historical and the- mujer, la ciudad y su violencia. La investigación
oretical processes, as well as data and mappings, sigue de los procesos históricos y teóricos, así
to understand the connection between cases of como los datos y mapeos, para entender la co-
violence against women, in the streets, in trans- nexión entre los casos de violencia contra la mu-
portation and in the absence of clear policies in jer, en las calles, en el transporte y en ausencia
the support and care of women who suffer vio- de políticas claras en el apoyo y cuidado de las
lence in the Federal District, the research dives mujeres que sufren violencia en el Distrito Fe-
into the issue of oppression to the original peo- deral, la investigación profundiza en el tema de
ples, through the urban configuration and plan- la opresión a los pueblos originales, a través de
ning proposals. Such studies lead us to conclude las propuestas de configuración y planificación
that themes of social approach, such as gender urbanas. Estos estudios nos llevan a concluir que
violence are complex, and should be treated ho- los temas de enfoque social, como la violencia de
listically and systemically. Several of these issues género son complejos y deben tratarse holística
stem from a root problematization, and, accor- y sistémicamente. Varias de estas cuestiones se
ding to a simple and utopian rationality, would be derivan de una problemática de la raíz y, según
solved from the adjustment of such problemati- una racionalidad simple y utópica, se resolverían
zation. In the case of violence against women, the a partir del ajuste de tal problematización. En el
most simplistic response would be: respect for caso de la violencia contra las mujeres, la res-
women. However, it is increasingly evident that puesta más simplista sería: el respeto por las mu-
the patriarchal and misogynistic structure of mo- jeres. Sin embargo, cada vez es más evidente que
dern society will not be adjusted from the simple la estructura patriarcal y misógina de la sociedad
statement that women deserve respect. moderna no se ajustará a partir de la simple de-
claración de que las mujeres merecen respeto.

COMMON CITIES NEUTRAL URBANISM


OCCUPATION OF SPACES VIOLENCE AGAINST WOMEN CIUDADES COMUNES URBANISMO NEUTRAL
OCUPACIÓN DE ESPACIOS
VIOLENCIA CONTRA LAS MUJERES
EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
Ao 1 se deslocar pela cidade, ou no simples estar
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
em espaços públicos, as mulheres muitas vezes
vivenciam inseguranças que se manifestam como
barreiras simbólicas, físicas, sociais, e econômi-
vídeo-pôster
cas que são invisíveis aos homens (Kern, 2019).
Por ser mulher criarmos os mapas mentais de

MULHERES, CIDADES E nossos trajetos. Quantas vezes não deixamos de


fazer o caminho mais curto porque ele é ermo e

VIOLÊNCIAS: PERCURSO temos medo, não somente de um assalto, mas


de sermos estupradas ou até mesmo mortas?
HISTÓRICO, URBANISTICO E Quantas vezes não descemos do metrô ou do
ônibus a noite com as chaves de casa entre os
ESTRUTURAL1 dedos, de punho fechado? Com que quantidade
de terror cotidiano lida a mulher periférica que
sai de sua casa ainda de madrugada, no escuro,
WOMEN, CITIES AND VIOLENCE: HISTORICAL, URBAN com as ruas desertas, para pegar o transporte
AND STRUCTURAL ROUTE público e chegar ao seu trabalho pela manhã? O
quanto limitamos nossa liberdade e deixamos de
MUJERES, CIUDADES Y VIOLENCIA: RUTA HISTÓRICA, ir a lugares por medo?
URBANA Y ESTRUCTURAL
Não se tem muito conhecimento sobre o espaço
urbano e construído e o seu impacto com relação
as minorias sexuais e de gênero. Segundo o es-
tudo do Banco Mundial presente no Handbook for
Gender-Inclusive Urban Planning and Design, isto
descrito no ano atual de 2020, sobre uma temá-
tica antiga que já se fazia presente em estudos
realizados por autoras anteriores ao período da
hegemonia masculina com pesquisas e estudos
quanto a construção do gênero ser de origem
cultural e não determinada pelo biológico, como
Margaret Mead em 1949. A problemática existente
nisso pode ser resumida de um posicionamento da
autora Clara Greed (1994) indica que a sociedade,
pelo simples reconhecer que há de fato proble-
máticas na concepção dos espaços urbanos em
relação às necessidades das mulheres, acredi-
ta que já fez o suficiente e o tema não precisa
mais sequer ser debatido. Quando olhamos para

1. As autoras fazem parte do grupo Amarelinha Observa-


tório de estudos feministas em Arquitetura e Urbanismo,
um grupo que busca trabalhar de forma horizontal. Neste
texto são apresentadas na sequencia dos sobrenomes em
ordem alfabética. Suas pesquisas de conclusão de curso
(em andamento) tem os seguintes títulos: “Urbanismo neu-
tro sob um olhar do não neutro”; “Mulheres que andam nos
16º SHCU
trilhos: traçado urbano e segurança das mulheres usuárias
30 anos . Atualização Crítica
do Metrô-DF” e “Rede de proteção a mulher nas regiões
1868 administrativas e sua disposição espacial”.
a sociedade atual com um número crescente em mulheres estão seguras? Como o traçado urbano
feminicídio, estupros de mulheres no transporte é capaz de reduzir ou intensificar a insegurança
público, atravessando calçadas próximas a um que as mulheres vivenciam em seus percursos?
parque, esperando seu ônibus numa parada na Quais são os pontos específicos da cidade que as
frente de uma universidade, de fato não esgota- mulheres evitam e em quais se sentem tranquilas
mos a necessidade de abranger a temática das e confortáveis?
mulheres, sejam elas cisgênero, transgênero, na
intenção de entender qual o nosso papel como
urbanistas e planejadoras para auxiliar numa vi-
vência segura para essas pessoas. um breve histórico da opressão feminina

Os conceitos de público e privado são discutidos


no pensamento ocidental desde os gregos clássi-
VOCÊ SABE O QUE É ASSÉDIO? cos, tendo suas distinções se tornado centrais no
pensamento político desde o século XVII. Entre a
Segundo Vóila B. Cassar (2012, p.913), o assédio multiplicidade de significados, temos a dicotomia
é o termo utilizado para designar toda conduta Estado/sociedade e também doméstico/não do-
que cause constrangimento psicológico ou físico méstico. Desde esses primórdios do liberalismo,
à pessoa. A lei que regia sobre todos os casos de os direitos políticos, privados e de privacidade do
assédio, inclusive sexual, era a Lei nº 10.224/2001. indivíduo são defendidos, mas esses indivíduos
O ato era considerado meramente uma contra- são, não apenas prezumidos, como em diversos
venção penal, punida apenas com multa e pas- momentos explicitamente definidos como adul-
sível de acordo. No entanto, no aniversário de tos, do sexo masculino, chefes de família (OKIN,
12 anos da Lei Maria da Penha, foi promulgada a 2008). Os homens eram vistos como responsáveis
Lei Nº 13.718/2018 que tipifica o crime de impor- pela esfera pública, ou seja, pela vida econômica
tunação sexual, aumentando a gravidade do ato, e política, e às mulheres cabiam se ocupar das
e também sua punição. No caso específico do responsabilidades da esfera privada, ou seja, do-
Distrito Federal, foi recentemente sancionada a méstica. Pensadores importantes como Rous-
Lei nº 6.560/2020 que visa aumentar a seguran- seau legitimaram o poder masculino dentro das
ça especialmente das mulheres no transporte famílias, tratando como natural que mulheres
público, obrigando os funcionários do Sistema fossem excluídas da vida pública e estivessem
de Transporte Público Coletivo a acionarem a submetidas ao pátrio poder, submetidas a seus
polícia imediatamente caso presenciem alguma pais e maridos (OKIN, 2008). Essa separação con-
situação de violência. Nas diretrizes de sua apli- ceitual permitiu por séculos que se ignorasse o
cação, estão previstas atividades educativas para caráter político e ideológico da família, e ignorou
conscientização sobre o assunto. Esta formação por séculos como o gênero tem um forte peso nis-
é de caráter permanente e voltada aos servido- so. Usar o termo “homem público” sempre esteve
res e à população. Um atestado da gravidade do relacionado ao homem político, enquanto “mulher
problema, e também uma pequena vitória das pública” sempre esteve associado às mulheres
mulheres. prostituídas (RAZZUTTI, 2018).

A criação dessas leis demonstra que o Estado A forma como essa opressão cultural se manifesta
vem tentando combater o problema com as cam- estruturalmente na arquitetura está expressa,
panhas de conscientização para evitá-lo, e pro- por exemplo, nos muxarabis, elementos que fo-
messas punitivistas para quem o cometer. O GDF ram amplamente utilizados até o início do século
busca promover aumento da segurança dentro XIX e cuja finalidade era principalmente permitir
dos espaços do transporte público. Mas o trajeto que as mulheres vissem a rua do interior de suas
de quem usa transporte público é composto tam- casas sem serem vistas. Às “mulheres honestas”
bém, em grande parte, pelo percurso percorrido não pertencia o espaço público -não domésti-
a pé. Esse é principal objeto de análise deste tra- co- (RAZZUTTI, 2018). Em uma ideologia de que
balho. Em especial, os trajetos percorridos a pé as “boas mulheres” se guardavam aos espaços
pelas usuárias do Metrô do Distrito Federal. Essas domésticos e aquelas que estavam nos espaços
EIXO TEMÁTICO 2 públicos tinham seus corpos considerados pú-
blicos, inúmeras violências contra estes eram
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS encaradas como justificáveis. Em 1886 após a
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Reforma do Ensino Superior de 1879 quando as
mulheres finalmente passaram a ser permitidas
nas universidades, por exemplo, estas eram de-
sencorajadas aos estudos devido a uma sociedade
brasileira marcada por fundamentalismo religioso,
rigidez de costumes e moralismo sexual, na qual
a “pureza” da mulher branca de classes altas devia
ser preservada, e a constante exposição às ruas,
caso estas se deslocassem cotidianamente para
as universidades a ameaçava.

O ESTERIÓTIPO RACISTA E AS OPRESSÕES


PERIFÉRICAS - A NECESSIDADE
DA INTERSECCIONALIDADE

O padrão colonial moderno o responsável


pela formação dos racismos e sexismo ins-
titucionais contra identidades produzidas
durante a interação das estruturas, que
seguem atravessando os expedientes do
Direito moderno, discriminadas à dignidade
humana e às leis antes discriminação [..]
Sensibilidade analítica - a interseccionali-
dade impede reducionistas de política de
identidade - elucida as articulações das
estruturas modernas coloniais que tornam
a identidade vulnerável, investigando con-
textos de colisões e fluxos entre estruturas,
frequência e tipos de discriminações inter-
seccionais. (CARLA AKOTİRENE, 2019:.59)

Se a opressão da mulher branca partia de uma


ideia desta ser uma propriedade masculina a ser
preservada, desde o início da urbanização em
territórios colonizados como o Brasil, as mulheres
dos povos tradicionais são vistas como ameaça
às transformações urbanas uma vez que seus
corpos geravam aqueles aos quais os coloniza-
dores deviam conter. A desumanização da mulher
indígena tem papel fundamental no processo de
desapropriação e deslocamento dos povos tra-
dicionais, e, consequentemente, no processo de
urbanização (Kern, 2019). O estereótipo racista
do homem negro violento e o racista, mas tam-
16º SHCU bém misógino da mulher negra devassa estão
30 anos . Atualização Crítica
ambos conectados a um pânico moral sobre a
1870 gravidez dessas mulheres, como se elas produzis-
sem crianças propensas ao crime. Assim sendo, divertindo, usando cotidianamente o espaço da
as mulheres racializadas são culpabilizadas por cidade, tentando usufruir de sua liberdade em uma
“atrasarem a revitalização urbana”, reproduzirem sociedade cuja mentalidade permanece a mesma:
a criminalidade, e também pelos processos de mulheres em espaços públicos são públicas, mu-
gentrificação. Nos deparamos com uma moral lheres na rua desacompanhadas de homens são
deturpada em que a simples proximidade a essas entendidas como sexualmente disponíveis a todos
mulheres fosse capaz de intoxicar não apenas os eles. Com isso, os altos números de assédios e
“homens de bem” com a “tentação da depravação”, abusos contra as mulheres acompanhou desde o
como também expunham as mulheres brancas à princípio sua exigência pelo seu direito à cidade,
degradação (Kern, 2019). à liberdade, à vida pública. Mas também, desde
o princípio, estas levantaram os debates sobre
Nos anos 70 e 80 nos Estados Unidos, mulheres segurança e violência sexual (Walkowitz, 1992:13).
negras ativistas feministas começaram a apontar
as especificidades da opressão daquelas que não
eram brancas, heterossexuais, de classe média.
Angela Davis e Audre Lorde foram importantes Urbanismo neutro sob um olhar do não neutro
nomes no movimento das mulheres, levantando
a importância de se considerar à somatória das As cidades são em seu modo mais genérico o
opressões: ser mulher e ser negra; ser mulher espaço onde se vive em coletividade. É no am-
e ser periférica; e Lorde também foi um grande biente construído que há a intersecção entre
nome na defesa específica das mulheres lésbicas, como ocupamos e como vivemos o espaço ur-
que negam em caráter permanente o culturalmen- bano, nossas rotinas e necessidades estão cer-
te legitimado acesso masculino aos corpos femi- cadas pela morfologia urbana, e, por isso, somos
ninos. Em 1989 a acadêmica Kimberlé Crenshaw constantemente influenciados por esta. É neste
cunhou o conceito de interseccionalidade, para espaço que as relações interpessoais aconte-
tratar dessa sobreposição de opressões (Kern, cem e interagem, com um contexto composto
2019). No entanto, de uma forma ou de outra, to- por diferentes tipologias arquitetônicas que se
das as mulheres, independente de etnia, classe, desenvolveram através do tempo em conjunto
e orientação sexual, eram percebidas como “mu- com as interlocuções entre elas, formada por
lheres públicas” ao estarem ou passarem pelos ruas, calçadas, praças, o que se define como
espaços públicos. Mas as cidades em crescimento espaços públicos. São nesses mesmos espaços,
eram os espaços em que as mulheres tinham onde uma pluralidade de sujeitos está inserida,
oportunidade de trabalho, oportunidade de ga- que a vivência urbana acontece todos os dias, se
nhar o próprio salário, de romper com as normas estruturam as desigualdades. O desequilíbrio so-
paroquiais, evitar o casamento heterossexual e cial observado nas cidades pode ser destrinchado
maternidade compulsórios, de seguir carreira. em diversas questões, onde cada uma apresenta
Permitia às mulheres assumir novos papéis na suas complexidades e importâncias num estudo
vida pública. e nas ações, um desses pontos é o que podemos
classificar como a desigualdade de gênero.
O espaço urbano passou então a ser contestado
por mulheres, predominantemente trabalhadoras, A desigualdade por gênero se consolida nas ci-
que se afirmavam parte do público da cidade. No dades, pois o urbanismo na sua grande maioria
entanto, essa inserção das mulheres às respon- se apresenta para as necessidades dos homens
sabilidades econômicas e políticas se deu através cisgêneros, brancos, heterossexuais, não defi-
de uma falsa política de “neutralidade de gênero”, cientes, reflexo da nossa sociedade que institu-
como se bastasse “adicionar as mulheres e mis- cionaliza como inferioridade e vulnerabilidade os
turar”, ignorando toda a significação social que corpos distintos deste padrão e a desconsidera
a diferença sexual carrega, a relação de poder como alguém que se insere nos espaços urbanos.
e dependência milenarmente construída entre É, assim, um urbanismo neutro proposto com
os sexos, ou seja, só funcionaria de fato em uma uma possível objetividade de igualar as pessoas
sociedade sem gênero (Okin, 2008). Dessa for- que ocupam o espaço urbano, mas num contexto
ma, temos mulheres trabalhando, estudando, se em que não há uma igualdade presente. Logo,
EIXO TEMÁTICO 2 presumir que temos as mesmas necessidades
quando equiparamos homens e mulheres é acre-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS ditar que nossa sociedade é homogênea é negar
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES que vivemos a desigualdade de gênero, vivemos
uma desigualdade de gênero com interseccio-
nalidade com as desigualdades sociais, raciais,
financeiras. Antes do período da pandemia do
momento atual que vivemos, por exemplo, uma
pesquisa do Fórum Econômico Mundial previa a
igualdade econômica entre mulheres e homens,
estava prevista para 2079.

O discurso de cidades para todos, com igualdade,


representa o que entendemos como cidades oci-
dentais, cidades que não consideram o indivíduo
e suas necessidades cotidianas, isto porque o
planejamento se apresenta como uma tentativa
de nivelar as pessoas partindo de um princípio que
somos iguais e a cidade funcionaria, assim, para
todos de modo igualitário. Porém, numa socieda-
de dominada pelo masculino, o homem branco,
que possui um emprego fixo e está dentro do
padrão considerado por esta mesma sociedade
como saudável é o que representa o neutro per-
petuado no planejamento das cidades. Isso se
deve ao fato de que quem planeja são homens
em sua grande maioria, homens que vivenciam
uma perspectiva de privilégios herdados por uma
hierarquia estrutural que os coloca acima dos
demais. É deste modo que o planejamento urbano
considera as necessidades que uma sociedade
patriarcal impõe, homens como chefes de família,
com liberdade no espaço público e na posse de
bens como terras, enquanto paralelamente as
mulheres são restringidas ao ambiente privado
de seus domicílios, com o papel de cuidar do lar e
da família e sem a oportunidade de adquirir bens
próprios (Banco Mundial, 2020), e tal dicotomia é
reforçada pelo capitalismo que concentra cerca
de 80% do grupo que é o padrão do urbanismo
dentro do setor privado (Clara Greed, 1994). Este
modo de planejar o ambiente construído foi di-
fundido com a colonização de territórios impondo
parâmetros de gênero que consideram e priorizam
as necessidades masculinas em relação às neces-
sidades femininas e outros grupos classificados
como “vulneráveis”.

A autora Clara Greed em seu livro “Woman and


16º SHCU Planning” cita que “o planejamento muitas vezes
30 anos . Atualização Crítica
projetou uma imagem científica espúria, possivel-
1872 mente para aumentar seu status como profissão
e desviar as críticas de suas políticas” aonde em que objetificam o corpo feminino e até mesmo
conjunto há a referência da autora com o histórico sugerem que mulheres sentem falta da violência
do poder masculino no domínio da natureza, o do homem anterior ao modernista. Esse homem
homem colonizador do outro e ser determinador era esse que era considerado para sua época,
dos espaços como o público e privado. Ou seja, meados dos anos 60, revolucionário demais no
projetamos dentro do aspecto do masculino in- meio acadêmico. É neste mesmo período que
serido em um padrão no qual críticas que surgem eclodiu a uma nova onda do movimento feminista,
em oposição são consideradas como contrárias com pautas que reinvidicavam seus direitos na
a “ciência” do planejamento do homem como uma luta por igualdade. A autora lembra que uma ge-
autoridade no assunto. Ainda que o homem mo- ração de homens, incluindo Freud, firmaram suas
derno possa adotar políticas de igualdades isso carreiras em bases de um modo de olhar o mundo
não reflete como uma preocupação de fato porque por um prisma masculino, com isso sufocaram os
não o afeta, ou seja, se houver problemáticas não primeiros movimentos feministas que defendiam
há culpa já que não reflete em sua vivência. a importância do gênero como um determinante
cultural e não biológico do destino das mulheres.
No que tange a cronologia histórica, Clara Greed
(Clara Greed, 1994)
diz “propositalmente interponho minhas próprias
visões privadas e opinativas sobre as formas pú- Esse modo de planejamento monopolizado por
blicas globais de planejamento em discussão, homens em concepção e em fundamentos, que se
precisamente porque tal planejamento frequente- propõe em buscar um neutro e uma cidade igua-
mente parece impessoal, clínico e menos gente” litária, mas tem como resultado a consideração
ela traz a crítica em cima do planejamento que apenas do corpo masculino como base para o
não pensa as pessoas que estão inseridas no planejar, começa a ser criticado apenas no anos
ambiente urbanos e seu desenvolvimento como 70 por estudos europeus e norte americanos.
processo natural, voltam-se para a definição de Movimentos como o Woman in Development e o
planejamento como uma ciência considerando-o
Woman and Development vão direcionar o olhar
superior a natureza. Essa ciência, com base no
para as mulheres e contestar dados apresentados
iluminismo, reflete a “superioridade” masculina
de que homens e mulheres têm os mesmos pesos
e excludente. Portanto, a nossa base de estudos
dentro do espaço urbano. Tais movimentos
dentro do urbanismo é comumente direcionada
tinham foco estritamente em mulheres, pensadas
para o contexto europeu, porque fomos direta-
isoladamente e como um grupo homogêneo, o
mente influenciados pelas suas práticas urbanas
que levou ao pensamento de um movimento novo,
devido ao processo da colonização. Assim sendo,
Gender and Development, que traz a necessidade
no período anterior à Revolução Industrial as cida-
de se pensar no gênero e a opressão que a mu-
des já eram planejadas por especialistas de áre-
lher sofre dentro do seu contexto de sociedade
as dominadas pelos homens (Clara Greed, 1994),
e cultura que teve sua origem no colonialismo e
reforçando o caráter das sociedades ocidentais
perpetua através dos séculos uma violência contra
patriarcais. E é com a Revolução Industrial que
o corpo feminino inserida no espaço urbano. O
o planejamento moderno evidencia a segrega-
uso da metodologia GAD torna-se inclusivo por
ção impondo traçados urbanos que prevalecem
determinado gênero, raças e classes, impondo não restringir o estudo a uma parcela da popula-
onde deveria ser “o lugar de cada um”. ção e ignorar questões que vão além do gênero,
pois precisamos visualizar a desigualdade por
Ainda assim, se faz importante a ressalva trazida gênero entendendo que o grupo mulheres não
por Clara Greed do entendimento de que até mes- sofre de modo igual ao mesmo tempo que não é
mo na história, o que é contado sobre esta tem o possível culpabilizar todos os homens. Há neste
foco central em homens. O que é demonstrado ponto que se pensar e avaliar a complexidade da
como avanços são em perspectivas masculinas. sociedade que envolve a renda, idade, classe,
No recorte do planejamento urbano e urbanis- etnias, etc, que diferencia as pessoas entre si e
mo, autores como Lewis Mumford, traz em seus hierarquiza todas elas, expondo questões chaves
livros sobre a história do planejamento ou acerca como os privilégios da mulher branca em relação
do desenvolvimento da cidade posicionamentos a mulher negra.
EIXO TEMÁTICO 2 Segundo o Manual do Banco Mundial (Banco Mun-
dial, 2020), o contexto de planejamento urbano em
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS que vivemos está diretamente ligado à falta da
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES presença feminina, de LGBTQIA+ e pessoas com
deficiência no processo de planejar. Os dados do
manual indicam que apenas 10% dos cargos mais
altos em grandes escritórios de arquitetura são
ocupados por mulheres, além disto, é algo comum
as mulheres com formação em arquitetura e ur-
banismo e engenharia desistirem da profissão
ou nem mesmo se inserirem no mercado dentro
dessa área após formadas. As porcentagens de
representatividade entre LGBTQIA+ e pessoas
com deficiência são menores ainda, e isso implica
na não consideração das necessidades dessas
pessoas, perpetuando espaços públicos que afe-
tam o cotidiano desses grupos e os posiciona em
desvantagem social e econômica quando em rela-
ção ao homem padrão do planejamento neutro. O
que remete a uma fala de Clara Greed que, na sua
visão de professora de planejamento na década
de 90, indica a existência de tentativas muitas
vezes frustradas de inserir a mulher planejadora
do meio urbano em equipes com uma maioria mas-
culina onde não é encontrada e dada a liberdade
da fala e expressões do conhecimento do que é
necessário para o corpo feminino. Em conjunto
com isto também não há o incentivo para esse
tipo de política inclusiva, afinal, o objetivo muitas
vezes é restrito a uma urbanização com questões
técnicas, físicas e quantitativas restringindo a
parâmetros definidos por Clara Greed como de
um “planejamento burocrático”.

mulheres nos trilhos e os OS NÚMEROS


DA VIOLÊNCIA no df

Segundo a Pesquisa Distrital por Amostra de Do-


micílios 2015/2016 da CODEPLAN, Ceilândia é a
Região Administrativa (RA) mais populosa do DF
com 489.351 habitantes, Samambaia é segunda RA
mais populosa, com 254.439 habitantes. Brasília
possui a quarta maior população com 220.393.
Percebe-se então a existência de uma correla-
ção entre a maior incidência da violência contra
mulher e essas três regiões de pontos finais do
percurso do metrô.
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
O contexto e dinâmica de Ceilândia e Samambaia
1874 são muito diferentes ao do Plano Piloto. Segundo
a pesquisa de 2014 dos Fluxos Intrametropolitanos sentir confiantes para usar meios e transporte
do Distrito Federal e Regiões Adjacentes da CO- público sem sofrer assédio. Segundo a Secretaria
DEPLAN, na região central do DF se concentram de Estado da Mulher (SMDF), até 2014 estimava-se
cerca de 700,62 mil postos de trabalho, sendo que mais de 90% dos casos de assédio não eram
que apenas em Brasília são 647,11 mil trabalha- reportados à polícia. Estes são apenas alguns dos
dores. Em todo o Distrito Federal apenas 36% muitos dados que explicam a vivência específica
da população trabalha na Região Administrativa que as mulheres têm dos centros urbanos.
em que reside. O maior fluxo de trabalhadores
acontece justamente partindo da região Oeste, O mapa da violência contra a mulher através dos
com Ceilândia liderando, seguida por Samambaia. números oficiais do Ministério Público do Distri-
Isso atesta o caráter de dormitório que estas RAs to Federal e Territórios (MPDFT) contabilizando
possuem, em oposição à Brasília que é onde a inquéritos policiais e termos circunstanciados
maioria dos empregos se concentram. O segundo apresenta uma realidade alarmante. Sabemos
maior fluxo de trabalhadores para fora de sua que os dados de todas as violências contra mulher
RA de residência é da região centro-oeste, com são subnotificadas, pouco se denuncia, e a grande
Taguatinga liderando, seguida por Águas Claras maioria dos dados que possuímos se referem à
e Guará. O metrô possui papel fundamental entre violência doméstica. Considerando o alto grau de
os deslocamentos cotidianos da população, não subnotificação (90%) previsto pela SMDF, e a alta
apenas para trabalho, mas estudo, atendimento porcentagem (97%) de mulheres respondendo a
médico, lazer, todos esses serviços que se con- pesquisa do IPG que já sofreram assédio, enten-
centram na região central.
de-se que os crimes que acometem as mulheres
De acordo com uma pesquisa feita em 2019 pelo em seu livre exercício de usufruto da cidade acon-
Instituto Patrícia Galvão (IPG) e Locomotiva, em tecem de forma assustadoramente corriqueira,
que 1.081 mulheres de todas as regiões do país e que a situação de insegurança das mulheres é
foram entrevistadas, constatou-se que 97% das muito mais alarmante do que demonstra o mapa.
mulheres (acima de 18 anos) brasileiras já sofreram
assédio, sendo elas usuárias tanto do transpor-
te coletivo quanto privado. Ainda nesta mesma
pesquisa, 46% das mulheres afirmaram não se O TRAJETO E A VIOLÊNCIA

Figura 1: Mapa da violência contra a mulher: Inquéritos policiais e termos circunstanciados recebidos pelo MPDFT em 2019
EIXO TEMÁTICO 2 Em um extremo da linha verde do metrô, Ceilân-
dia lidera em número de inquéritos policiais e
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS termos circunstanciados de violência contra a
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES mulher, recebidos pelo MPDFT, com o alto valor
de 2.727 denúncias. No outro extremo, Brasília
ocupa segundo lugar com 1.745 denúncias, quase
mil a menos com Ceilândia. Em terceiro lugar,
Samambaia, que coincide com o final da rota da
linha laranja, registrou 1.341 denúncias.

Esse entendimento de que os serviços todos se


concentram na região central é necessário para
a compreensão de Brasília figurar em segundo
lugar no número de denúncias. Mulheres do Dis-
trito Federal inteiro, e imediações, se deslocam
até Brasília para fazer suas denúncias porque
em Brasília existem mais recursos, o transporte
público do DF inteiro se norteia a partir da ro-
doviária do Plano Piloto, de qualquer lugar da
Periferia é fácil chegar ao Plano, mas ir de uma
RA para outra que não seja Brasília é dificultado
e normalmente exige que se pegue mais de um
transporte público, o que implica que também é
preciso pagar mais. Há, por exemplo, em todo o
DF apenas duas Delegacias Especiais de Aten-
dimento à Mulher (DEAM), estando a primeira em
Brasília, na Asa Sul, e a segunda localizada em
Ceilândia. Mulheres do DF inteiro se deslocam
para prestar suas denúncias em Brasília, onde
também está localizado o Ministério Público. Mas
apenas mulheres moradoras de Ceilândia e região
prestam denúncias lá, e isso é válido para todas as
demais Regiões Administrativas. Assim, devemos
compreender que os números mais baixos das
demais regiões estão diluídos dentro dos dados
de Brasília, que por sua vez aparece com uma
incidência de violência maior do que condiz com
sua realidade.

rede de proteção a mulher nas regiões


administrativas no DF e sua
disposição espacial

O Distrito Federal (DF), onde se encontra Brasília, é


a menor unidade federativa no Brasil, o que facilita
a análise e, ao mesmo tempo, pesa o resultado
encontrado, pois é de se esperar que quanto me-
16º SHCU nor a unidade, mais fácil será a implementação
30 anos . Atualização Crítica
e administração de quaisquer projetos naquela
1876 área. Por essas razões, a análise do DF será usada
para ilustrar como são tratados e distribuídos os to interdisciplinar (social, psicológico, pedagógico
equipamentos voltados para uma rede de prote- e de orientação jurídica) às mulheres em situação
ção as mulheres no contexto pós-agressão. de violência de gênero para promover e assegurar
o fortalecimento da sua autoestima e autonomia, o
De acordo com o site oficial do Senado Federal2, resgate da cidadania e a prevenção, interrupção e
existe no DF uma rede de proteção à mulher que superação das situações de violações de direitos.
foi construída a partir de diversas instituições,
as quais variam entre órgãos governamentais e _Conselho dos Direitos da Mulher do Distrito
organizações não-governamentais (ONGs), tais Federal – CDM/DF, foi criado com a finalidade
como. A medida trouxe mecanismos importantes de assegurar à mulher o exercício pleno de sua
para a representação feminina no parlamento, participação e integração no desenvolvimento
como a presença da Coordenadora dos Direitos econômico, social, político e cultural.
da Mulher (eleita pela Bancada Feminina) nas reu-
niões do Colégio de Líderes, com direito a voz, _Casa Abrigo – Unidade de acolhimento para mu-
voto e a fazer uso do horário de liderança nas lheres, oferta o serviço de acolhimento institucio-
sessões plenárias. nal para mulheres vítimas de violência doméstica,
familiar ou nas relações intimas de afeto com
_Procuradorias do DF: Composta pela Procu- risco de morte, bem como de seus dependentes.
radoria Especial da Mulher do Senado Federal, a
Procuradoria Especial da Mulher na Câmara dos _Delegacias, que são postos policiais distribuídos
Deputados e a Procuradoria Especial da Mulher na por todo o Distrito federal, os quais aceitam as
Câmara Legislativa Distrito Federal. Assim como denúncias de qualquer tipo de agressão, desde
em qualquer outro caso de denúncia de crime, as assédio, importunação sexual, agressões por
procuradorias são as entidades jurídicas respon- gênero, violência doméstica, ciber assedio, dentre
sáveis pela acusação do denunciado ao judiciário. outros. A denúncia pode ser feita em qualquer
posto, não somente na Delegacia Especial de
_Secretaria da Mulher no GDF: Em julho de 2013, Atendimento à Mulher (DEAM). Contudo, a DEAM
os deputados e deputadas federais aprovaram a conta com uma equipe de atendimento especia-
criação da Secretaria da Mulher, por meio da Reso- lizada, melhor preparada para lidar com esse tipo
lução 31/2013. Essa estrutura uniu a Procuradoria de violência e, mais importante, a vítima.
da Mulher, criada em 2009, e a Coordenadoria dos
Direitos da Mulher, que representa a Bancada _PROVID – Prevenção Orientada à Violência Do-
Feminina. méstica e Familiar, regulamentado pela Portaria
PMDF Nº 985/15, consiste em um programa de
_Núcleos de atendimento às famílias e aos autores policiamento orientado ao problema, o qual tem
de violência doméstica - NAFAVD: unidades de por objetivo o enfrentamento da violência domés-
atendimento que realizam acompanhamento in- tica, por meio de ações de prevenção, promoven-
terdisciplinar com homens e mulheres envolvidos/ do a segurança pública e os direitos humanos,
as em situações de violência doméstica e familiar realizando intervenções familiares com vítimas
contra mulheres, tipificadas pela Lei Maria da Pe- e agressores, encaminhando-os aos demais ór-
nha, a partir das perspectivas de gênero e direitos gãos que compõem a rede de apoio e proteção. O
humanos, por meio de espaços de escuta, refle- PROVID possui três eixos orientadores: (i) ações e
xão e empoderamento de mulheres em situação campanhas no âmbito da prevenção primária, em
de violência, e o trabalho de responsabilização, especial, ações educativas voltadas para preven-
reeducação e reflexão com autores de violência ção à violência doméstica e familiar; (ii) ações de
doméstica e familiar contra as mulheres. prevenção secundária, com foco nas famílias em
contexto de violência doméstica e familiar, por
_Centros Especializados de atendimento a mulher
meio do policiamento ostensivo e visitas solidá-
– CEAM: oferecem acolhimento e acompanhamen-
rias; e (iii) articulação com os órgãos que compõe
a rede de enfrentamento à violência doméstica e
2. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/institucio- familiar, bem como entidades não-governamen-
nal/procuradoria/conheca-a-rede-de-protecao-a-mulher tais e sociedade civil.
EIXO TEMÁTICO 2 _Centro de Referência da Assistência Social -
CRAS consiste em unidade pública estatal loca-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS lizada em áreas com maiores índices de vulnera-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES bilidade e risco social, destinada ao atendimento
socioassistencial de famílias. É o lugar que se
estrutura como porta de entrada dos beneficiá-
rios da política de assistência social para a rede
de Proteção Básica, e responsável por possí-
veis encaminhamentos à Proteção Especial. São
considerados serviços de proteção básica de
assistência social aqueles que potencializam a
família como unidade de referência, fortalecendo
seus vínculos internos e externos de solidarieda-
de, através do protagonismo de seus membros
e da oferta de um conjunto de serviços locais
que visam à convivência, à socialização e ao aco-
lhimento, em famílias cujos vínculos familiar e
comunitário não foram rompidos, bem como a
promoção da integração ao mercado de trabalho.

_Centro de Referência Especializado de Assis-


tência Social – CREAS integra o Sistema Único
de Assistência Social – SUAS no nível da Proteção
Social Especial de Média Complexidade. Trata-se
de unidade pública estatal de prestação de servi-
ços especializados e continuados a indivíduos e
famílias com seus direitos violados, promovendo
a integração de esforços, recursos e meios para
enfrentar a dispersão dos serviços e potenciali-
zar a ação para os seus usuários, envolvendo um
conjunto de profissionais e processos de traba-
lhos que devem ofertar apoio e acompanhamento
individualizado especializado. A Tipificação Na-
cional de Serviços Socioassistenciais estabelece
como usuários do CREAS, famílias e indivíduos
que passam por violações de direitos.

A partir do Programa de Pesquisa, Assistência e


Vigilância em Violência (PAV), foi criada a Rede de
Atenção à Violência, chamada de Rede das Flores.
Por ter sido criada a partir da política pública de
saúde, essa rede se instalou em hospitais e criou
uma equipe multiprofissional com profissionais
da saúde. Possui como foco o tratamento para
crianças e adolescentes, mulheres, homens e
idosos em situação de violência. Engloba vítimas,
seus familiares e os autores de violência sexual,
sejam adolescentes ou adultos. Outro ponto im-
portante nessa rede de proteção é o programa de
16º SHCU Interrupção Gestacional previsto em lei. Dentro
30 anos . Atualização Crítica
do programa é possível ter profissionais compe-
1878 tentes que irão ajudar durante o processo, seja
de forma psicológica ou informativa. de oferecer um cuidado à pessoa com transtorno
mental e/ou que faz uso abusivo ou tem dependên-
_Casa de Apoio à Mulher,que consiste em rede cia de substâncias psicoativas, sem que a mesma
organizações não-governamentais que criaram seja privada do convívio com os seus familiares,
ambientes para acolhimento e assistência de
e com a comunidade à qual pertence” (FUNESA,
mulheres vítimas de agressão. Seu trabalho en-
2011) assume papel fundamental na assistência,
volve desde auxílio jurídico a momentos de lazer.
preconizando o cuidado integral, constituído por
Não são abrigos.
equipe multiprofissional, que atua sob a ótica in-
_Os Centros de Atenção Psicossocial - CAPS terdisciplinar. Os CAPS estão definidos por ordem
foram concebidos como a principal estratégia do crescente de porte/complexidade e abrangência
processo de Reforma Psiquiátrica. São “serviços populacional, cumprindo a mesma função no aten-
de base comunitária, abertos, com a finalidade dimento público.

Figura 2: rede de proteção a mulher nas regiões administrativas do DF

O mapa foi desenhado de forma a representar Secretaria de Estado de Segurança Pública do


as localizações da rede de proteção da mulher DF 3 de 2019.
em Brasília, de acordo com o senado. Sem uma
referência urbana no Distrito Federal é quase
que imediato a sensação de afastamento dos
equipamentos e falsa impressão de escassez.
Contudo, ao sobrepor com uma imagem do Google
Earth, é possível identificar que as localidades se
encontram com as manchas urbanas.

A partir de uma avaliação quantitativa, é possível


afirmar que o Plano Piloto possui uma vantagem
as restantes Áreas Administrativas. Essa vanta-
gem não se resume a quantidade, mas também
na variedade. Enquanto regiões como Santa Maria
ou São Sebastião possuem apenas quatro tipos
de instituições, o Plano Piloto possui mais de
dez tipos. Essa distribuição se mostra mais ine- 3. Disponível em: http://www.ssp.df.gov.br/violencia-con-
ficaz quando é avaliado os dados de relatório da tra-a-mulher/
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

Figura 3: Mapa da SSP/DF sobre relação violência do-


méstica no DF

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1880
Figura 4: Mapa da SSP/DF sobre relação de estupro no DF

Entendendo os processos e buscando camente no que toca à utilização da arquitetura e


perspectivas urbanismo de forma inclusiva ao gênero feminino,
podemos dividir mais ainda as frentes de atuação.
Novamente, dependendo da perspectiva sob a
Temas de abordagem social, como a violência
qual se avalia esse tipo de violência, é possível
de gênero, são complexos e devem ser tratados
avaliar a cidade de diversas formas. Por exemplo,
de maneira holística e sistêmica. Várias dessas
é necessário que passagens de pedestres sejam
questões decorrem de uma problematização raiz,
seguras e bem preparadas para que a liberdade
e, de acordo com uma racionalidade simples e
de ir e vir das mulheres não seja comprometida,
utópica, seriam resolvidos a partir do ajuste de
tal problematização. No caso da violência contra algo extremamente comum de ocorrer. Para isso,
a mulher, a resposta mais simplista seria: respeito um novo tipo de urbanismo deve ser incorpora-
às mulheres. Contudo, cada vez mais fica evidente do ao projeto urbano, valorizando passagens e
que a estrutura patriarcal e misógina da sociedade visibilidade das pessoas no ambiente público,
moderna não será ajustada a partir da simples além da utilização de ferramentas de reforcem
afirmação que mulheres merecem respeito. Para a vida em comunidade e proteção mútua. Es-
fins comparativos, seria o mesmo que esperar sas mudanças estão diretamente relacionadas
que não ocorresse mais furtos no momento que à malha da cidade e com físico da parte pública
o Estado criminalizou o ato de roubar, definindo-o no urbanismo. Contudo, ao avaliar a rede urbana
como conduta passível de punição. Identificar o por suas estatísticas de violência, é necessário
problema raiz e mobilizar esforços para mudar ter instrumentos institucionais aptos a socorrer
aquela situação é somente o primeiro passo em e prestar assistência àquelas que por ventura se
uma jornada de redenção. tornem vítimas dessa situação. Essa visão está
muito mais ligada ao planejamento urbano, às
No que diz respeito à violência de gênero, pode- estatísticas do social na área urbana em estudo
mos dividir o tema de diversas formas. Especifi- e à área de abrangência das instituições.
EIXO TEMÁTICO 2 Embora mudanças que tenham o intuito de dimi-
nuir as ocorrências de violência de gênero sejam a
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS frente de batalha da luta feminista, ainda é neces-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES sário implementar instrumentos e ferramentas
de apoio e proteção àquelas que passaram pela
agressão. E, ao contrário do que muitos pen-
sam, isso entra muito mais na camada ampla do
urbanismo do que na privada da arquitetura. Por
exemplo, o estudo das instituições que prestam
assistência a vítimas, e como tais instituições
podem, efetivamente, ajudar a população local.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1882
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EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES A criação de museus em favelas no Rio de Ja-
neiro é parte de um processo de reconhecimen-
to dessas áreas da cidade, e teve inicio com o
vídeo-pôster Museu a Céu Aberto da Providência em 2003.
Além desse museu territorial em 2006 é criado
outro museu de comunidade, o Museu da Maré.
MUSEUS EM COMUNIDADES, Mais tarde, no contexto dos grandes eventos
esportivos na cidade, Copa do Mundo de 2014
TURISMO E CULTURA: e Jogos Olímpicos em 2016, complementando
o movimento crescente do turismo em favelas,
PATRIMÔNIO, IDENTIDADE, surgem em 2008 outros museus territoriais, o
Museu de Favelas (MUF) e o Museu da Rocinha-
MEMÓRIA E PARTICIPAÇÃO -Sankofa. Em um momento pós-eventos foram
criados o Museu das Remoções em 2017 e o pro-
COMUNITÁRIA EM FAVELAS jeto de museu territorial Maré a Céu Aberto em

DO RIO DE JANEIRO
2019. Cada um desses momentos marca novas
relações entre as favelas, suas populações e
políticas públicas, e também diferentes rela-
ções entre a memória, história, patrimônio e
MUSEUMS, TOURISM AND CULTURE IN COMMUNITIES:
identidade nas favelas, incluindo o turismo. Se
HERITAGE, IDENTITY, MEMORY AND COMMUNITY
o Museu da Providência teve vida efêmera, por
PARTICIPATION IN RIO DE JANEIRO’ FAVELAS
sua pouca relação com os moradores locais, os
demais museus, mesmo com todas as dificulda-
MUSEOS EN COMUNIDADES, TURISMO Y CULTURA:
des financeiras, mostram como em diferentes
PATRIMONIO, IDENTIDAD, MEMORIA Y PARTICIPACIÓN
momentos, com maior ou menor apoio de polí-
COMUNITARIA EN FAVELAS DE RÍO DE JANEIRO
ticas públicas, esses empreendimentos vieram
trazer maior visibilidade, possibilidades como a
FAGERLANDE, Sergio Moraes Rego criação de percursos de visitação e de turismo,
gerando renda e visibilidade para a potência da
Doutor em Urbanismo; FAU UFRJ
sfagerlande@gmail.com
cultura dessas comunidades.

FAVELAS TURISMO MUSEUS COMUNITÁRIOS

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1884
ABSTRACT RESUMEN

The creation of museums in Rio de Janeiro’s fa- La creación de museos en favelas en Río de Ja-
velas is part of a process aimed at acknowledging neiro es parte de un proceso de reconocimien-
these areas of the city that started with the ope- to de estas áreas de la ciudad, y comenzó con
ning of the Museu a Céu Aberto da Providência in el “Museu a Céu Aberto da Providência” el 2003.
2003. Apart from the territorial recognition the Además de este museo territorial en 2006 se creó
museum set in place, the year of 2006 saw the otro museo comunitario, el “Museu da Maré”. Más
opening of another community museum, the Mu- tarde, en el contexto de los principales eventos
seu da Maré. On 2008, in the scenario of the ma- deportivos en la ciudad, la Copa Mundial 2014 y los
jor sports events the city would host, namely the Juegos Olímpicos en 2016, complementando el
2014 World Football Cup and and the 2016 Olympic creciente movimiento del turismo en las favelas,
Games, which greatly added to the rising flow of en 2008 aparecieron otros museos territoriales,
tourism in the favelas, other territorial museums el “Museu de Favelas” (MUF) y el “Museu de Roci-
open their doors such as the Museu de Favelas nha-Sankofa”. En un momento posterior a estos
(MUF) and the Museu da Rocinha-Sankofa. The eventos, se creó el “Museu das Remoções” en 2017
post major-event moment saw the opening of the y el proyecto “Maré a Céu Aberto”, en 2019. Cada
Museu das Remoções in 2017 and the project that uno de estos momentos marca nuevas relacio-
would lead to the opening of the projecto Maré a nes entre las favelas, sus poblaciones y políticas
cèu Aberto in 2019. Each of these moments marks públicas, y también diferentes relaciones entre
new relations between the favelas, and their memoria, historia, patrimonio e identidad en las
dwellers, and public policies, as well as sets new favelas, incluido el turismo. Si el “Museu da Pro-
relations between memory, history, heritage, and vidência” tuvo una vida efímera, debido a su poca
identity in the favelas, including tourism. If the relación con los residentes locales, los otros mu-
Museu da Providência was short-lived as a result seos, incluso con todas las dificultades financie-
of its faint relation with the locals, the other mu- ras, muestran cómo en diferentes momentos, con
seums, despite the myriad of financial difficulties mayor o menor apoyo de las políticas públicas,
they face, show how such enterprises brought estas empresas llegaron a dar mayor visibilidad,
about, with little or no support from Government, posibilidades como la creación de visitas y rutas
greater exposure and visibility to allow the imple- turísticas, generando renta y visibilidad para la
menting of visitation paths and tourism tracks, potencia de la cultura de estas comunidades.
and provide income and recognition for the cultu-
re of such communities.
FAVELAS TURISMO MUSEOS COMUNITARIOS

FAVELAS TOURISM COMMUNITARIAN MUSEUMS


EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇãO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Esse artigo busca mostrar um panorama sobre
a relação entre turismo, patrimônio e favelas,
estudando os museus que foram criados em co-
vídeo-pôster munidades do Rio de Janeiro, no período entre
2005 e 2020 e sua relação com a visitação nes-
sas favelas e a participação dos moradores no
MUSEUS EM COMUNIDADES, processo de criação e desenvolvimento de cada
um desses museus comunitários. A importân-
TURISMO E CULTURA: cia das favelas para a cidade e a necessidade de
sua maior integração já aparecia no Programa
PATRIMÔNIO, IDENTIDADE, Favela Bairro, a partir de 1993 durante o governo
do prefeito Cézar Maia, em que a urbanização
MEMÓRIA E PARTICIPAÇÃO das favelas passou a ser política pública (CONDE,

COMUNITÁRIA EM FAVELAS MAGALHÃES, 2004). Não à toa pouco antes, em


1992, a cidade do Rio de Janeiro sediara a Eco 92

DO RIO DE JANEIRO (Rio Conference on Environment and Sustainable


Development), conferencia da ONU em que a sus-
tentabilidade ambiental e social passara a ser uma
MUSEUMS, TOURISM AND CULTURE IN COMMUNITIES: importante questão, e que para as favelas é um
HERITAGE, IDENTITY, MEMORY AND COMMUNITY marco, com o inicio do turismo nessas áreas da
PARTICIPATION IN RIO DE JANEIRO’ FAVELAS cidade (FREIRE-MEDEIROS, 2009).

O interesse pelas favelas não se iniciara nesse


MUSEOS EN COMUNIDADES, TURISMO Y CULTURA:
momento, mas fatos como a visita de Michael
PATRIMONIO, IDENTIDAD, MEMORIA Y PARTICIPACIÓN
Jackson ao Morro Dona Marta para a filmagem
COMUNITARIA EN FAVELAS DE RÍO DE JANEIRO
de clipe em 1996 (RODRIGUES, 2014), mesmo ano
em que a associação entre favela e turismo ainda
era mal vista pelas autoridades estaduais, tiveram
impacto na mídia global, assim como o sucesso do
filme Cidade de Deus, de 2002, num processo que
teria novos contornos como a edição de projeto
de lei de 2006 que tornaria a Favela da Rocinha
um dos pontos turísticos oficiais da cidade do Rio
de Janeiro (FREIRE-MEDEIROS, 2009). Por cer-
to políticas públicas federais, como o interesse
pelas comunidades tradicionais, representadas
pelo edital de Turismo de Base Comunitária do
Ministério do Turismo, de 2008 (SILVA, RAMIRO,
TEIXEIRA, 2009), em que diversos projetos em
favelas cariocas foram contemplados1, trouxe um
novo olhar para o turismo em favelas.

A partir da escolha do Brasil como sede da Copa do


Mundo FIFA de 2014, que ocorreu em 2007, tendo

1. Esse edital lançado pelo Ministério do Turismo contemplou


16º SHCU
50 iniciativas de Turismo de Base Comunitária em todo o
30 anos . Atualização Crítica
país, sendo 08 no estado do Rio de Janeiro e 03 em favelas
1886 cariocas (SILVA, RAMIRO, TEIXEIRA, 2009).
a cidade do Rio de Janeiro como sede da final, e de Janeiro em 1992 foi um polo inovador dessas
logo depois em 2009 com a escolha da cidade atividades. A autora ainda traz uma importante
para sediar os Jogos Olímpicos e Paralímpicos reflexão sobre como a favela pode ser pensada
de 2016, o interesse pelas favelas passou a se como patrimônio, e a importância de museus nes-
refletir não somente na execução de obras liga- se processo (FREIRE-MEDEIROS, 2006). A partir do
das à infraestrutura, e à implantação do projeto que nos fala Urry (2001[1990]), de como a escolha
de segurança representado pelas UPP’s, pela de um determinado local pelo turista está baseado
ocupação social nunca realizada através da UPP na antecipação da experiência, mostra-se como
Social, mas também por ações ligadas ao turismo as imagens que foram criadas por filmes, clipes
e cultura, muitas vezes estimuladas também por e novelas passaram a formar um novo interesse
ações públicas (FAGERLANDE, 2017b). pelas favelas, e de como havia a necessidade de
se formar percursos turísticos nessas favelas.
A ideia de uma ocupação principalmente policial,
mas também social e cultural, passou a fazer Autores como Frenzel, Koens e Steinbrink (2012)
parte da agenda não somente dos governos, em trazem um entendimento de como o turismo em
geral conectada ás suas possibilidades ligadas favelas não é um processo brasileiro somente,
ao turismo, mas também das próprias comuni- e mostra a importância do empoderamento que
dades, que passaram a ver os museus como uma traz às comunidades, além das possibilidades
possibilidade não somente de geração de renda de geração de renda, algo que também nos fala
através do turismo, mas, sobretudo de ser uma Beeton (2006).
nova maneira de trazer visibilidade, identidade e
Autores como Bartholo, Sansolo e Bursztyn
pertencimento aos seus moradores, em um pro-
(2009), Rodrigues (2014) e Silva, Ramiro e Teixei-
cesso de valorização da história desses lugares,
ra (2009) mostram a importância que políticas
de suas culturas, costumes e moradores. Se por
públicas ligadas ao turismo de base comunitária
um lado a UPP Social não teve a ação espera-
influenciaram nesse processo do turismo nas fa-
da, muitas iniciativas culturais desse período,
velas, incluindo o Rio Top Tour, iniciado na Favela
ligadas a ONG’s, conseguiram algum apoio, seja Santa Marta.
como Pontos de Cultura ou outros editais gover-
namentais. A história das favelas e de como elas são parte
importante da história da cidade e do país, contri-
Não à toa em geral passaram a se desenvolver buindo para o entendimento delas como patrimô-
ideias de museus territoriais, em que as próprias nio aparece na obra de Valladares (2005) e Zaluar
comunidades passariam a entender seus territó- e Alvito (2012), em que as origens o processo de
rios como patrimônio, seus e da cidade, em um exclusão dessas áreas pode ser entendido, e como
processo em que o turismo entraria como um de essa compreensão percebe-se como é necessário
seus componentes, com percursos de visitação um novo processo de inclusão, através de obras,
organizados pelos moradores, ligados à ideia de mas, sobretudo de mudança de paradigmas e de
Turismo de Base Comunitária. Dessa maneira como a cultura das favelas pode ser percebida,
diversos museus que passaram a ser organiza- incluindo a questão da representação e dos mu-
dos em favelas do Rio de Janeiro estão ligados seus. A ideia de que a favela não é somente um
a esse processo, mesmo quando diretamente lugar de ausência, mas sobretudo de potência
ligados a ações comunitárias, gerenciados por passa ser importante para que a cultura, o saber
ONG’s locais. Isso nos é mostrado por autores e as vivências sejam valorizadas (FERNANDES;
como Freire-Medeiros (2006a, 2006b, 2009) e SOUZA; BARBOSA, 2018), e os museus e a pre-
Chagas, Assunção e Glas (2014) que mostram a servação do patrimônio dessas comunidades é
importância que a ideia dos museus territoriais importante nesse processo.
e de comunidade passa a ter não somente para
as favelas, mas para a cidade. A ideia de patrimônio e de como podem ser os
museus, como nos fala Choay (2005 [1988]; 2015
O artigo busca em Freire-Medeiros (2006; 2009) [2009]) traz um interessante contraponto com a
um olhar sobre o turismo em favelas a partir da história das favelas e de seus museus. Patrimônio
participação de seus moradores, e de como o Rio é um conceito importante, e na Constituição Fe-
EIXO TEMÁTICO 2 deral aparece como “bens de natureza material ou
imaterial, tomados individualmente ou em conjun-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS to, portadores de referência à identidade, à ação,
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES à memória dos diferentes grupos formadores da
sociedade brasileira” (Brasil, 1988), seguindo o
que fala Choay sobre o mesmo tema (2005[1988]).

A ideia de se criar museus em favelas, iniciada no


Morro da Providência em 2003, através da ação
de Lu Petersen, arquiteta da prefeitura, é des-
crita em entrevista a Freire, Freire Medeiros e
Cavalcanti (2009), além de estudada por Menezes
(2008; 2012), assim como a criação do Museu de
Favela (MUF), no Morro do Cantagalo é descri-
ta por seus criadores (SILVA, PINTO, LOUREIRO,
2012). Ainda são parte da pesquisa o Museu da
Maré, o Museu da Rocinha – Sankofa, o Museu das
Remoções da Vila Autódromo e o recente projeto
Maré a Céu Aberto, um percurso de visitação em
fase de implantação, também como um museu
territorial. Outras iniciativas comunitárias, como
o Museu do Horto, criado em 2010 (MUSEUSBR,
2020) também fazem parte desse movimento
cultural e social em favelas.

O presente trabalho tem como base uma pesquisa


em andamento sobre turismo em favelas, com
base na bibliografia existente, em visitas ao campo
e em contatos com as organizações sociais envol-
vidas no processo. O artigo busca mostrar como
se deu a formação desses museus na cidade do
Rio de Janeiro em três momentos diversos, ini-
cialmente relacionados à implantação do Projeto
Favela-Bairro e ações da prefeitura, como é o caso
do Museu da Providência e outros com estímulo
de novas políticas urbanas e sociais, como o do
Museu da Maré, com apoio federal, depois os casos
relacionados ao momento dos grandes eventos,
com casos como o Museu de Favela, do Cantagalo
e o Museu da Rocinha-Sankofa e finalmente dois
casos pós-eventos, como o Museu das Remoções,
da Vila Autódromo e um projeto de museu terri-
torial que vem sendo implantado no Complexo
da Maré, o Maré a Céu Aberto, com participação
comunitária e apoio da iniciativa privada. Outras
iniciativas comunitárias, como o Museu do Horto,
crido em 2010, mostra-se também como uma
iniciativa de resistência. Esse conjunto de inicia-
tivas mostram diferentes momentos de criação
16º SHCU de museus em favelas cariocas, a relação entre
30 anos . Atualização Crítica
os diferentes agentes, sejam o poder público, os
1888 moradores dessas comunidades e a iniciativa
privada, em ações ligadas a questões sociais, Foi no Rio de Janeiro que surgiu a primeira favela
culturais e ao turismo. do Brasil, ao menos com esse nome. Zaluar e
Alvito (2006, p. 7) falam que “falar de favela é fa-
lar da história do Brasil desde a virada do século
passado”, que no caso já é retrasado, por se tratar
FAVELA E PATRIMÔNIO: OS MUSEUS TERRITORIAIS do século XIX. Nesse momento surge a primeira
favela na cidade, no Morro da Providência. Surgida
Ao falar de questões de patrimônio Choay (2005 oficialmente em 1897 no que depois se chamou
[1988]) fala que patrimônio é algo que se herda, Morro da Favella (VALLADARES, 2005), as favelas
e que pode ser cultural ou natural. São questões surgiram como alternativa possível para alojar
que em geral são relacionadas ao que pode ser populações que passavam a não ter mais espaço
considerado como importante e valorizado para nas áreas centrais da cidade, em um momento de
a sociedade. Até certo momento patrimônio eram grande expansão urbana e transformações. Não
os monumentos históricos ou naturais, edifícios à toa é exatamente nessa favela, por sua impor-
“nobres” na cidade, que a população dominante tância histórica, sua localização junto ao porto, e
considerava como parte de sua história, algo a pelo momento em que a ideia surge, na esteira do
ser considerado. Ao se pensar sobre museus, o Projeto Favela Bairro, do Museu a Céu Aberto do
mesmo pode ser pensado. Choay (2005 [1988]) Morro da Providência, idealizado pela arquiteta e
fala que os museus inicialmente eram os “templos urbanista Lu Petersen (FREIRE-MEDEIROS, 2006;
das musas”. Algo praticamente inacessível, liga- FREIRE, FREIRE-MEDEIROS, CAVALCANTI, 2009).
do aos ideais de beleza, locais até o século XVIII
destinados à busca do saber e das artes (2005
[1988], p. 570). A partir do século XVIII passaram
a ser espaços com coleções de arte ou ciências PRIMEIRA FASE DOS MUSEUS EM FAVELAS
sociais abertas à população em geral. Em países NO RIO DE JANEIRO: PROVIDÊNCIA E MARÉ
como o Brasil foram seguidos também esses prin-
cípios, buscando trazer o saber e as artes para a
população em geral. Mas esse saber e essa arte A ideia de ter favelas urbanizadas e que o turis-
era por certo a europeia, ou ao menos o que se mo tivesse um importante papel nessas áreas
considerava como passível de ser exposto nesses foi um dos estímulos para a criação do Museu a
locais. Céu Aberto da Providência, em 2005, na primei-
ra favela do país, e junto à área portuária, que
Como isso pode ser transposto para áreas que também receberia a Cidade do Samba e a Vila
nem sempre foram, consideradas importantes, Olímpica da Gamboa (FREIRE-MEDEIROS, 2006;
e mesmo parte da cidade e da sociedade: como FREIRE-MEDEIROS, CAVALCANTI, 2009; MENE-
tratar como patrimônio as favelas, áreas que até ZES, 2008, 2012). A ideia de um museu naquele
pouco tempo atrás eram consideradas como lo- local, de acordo com sua criadora, tinha surgido
cais de violência, marginalizadas e mesmo invisí- em 2001 pelo reconhecimento da importância da
veis na cidade? Essa pergunta se relaciona com a história do local, em visitas à favela, reconhecen-
importância que se passa a tratar as populações do aspectos patrimoniais do lugar, com um olhar
sempre excluídas, e também a cultura que é pro- em que pensava no lugar como um museu
duzida nesses lugares, como as favelas.
“Mas isso aqui pode dar um museu !” Três
A importância dos museus pequenos, em comu- edificações e uma escadaria de valores
nidades e territoriais aparece como movimento visivelmente históricos justificavam a ideia,
a partir dos anos 1990, sob a influência do Movi- mas dependia de obras de infraestrutura
mento Internacional da Nova Museologia (MINOM), urbana em toda a favela, justamente pelos
e profissionais brasileiros passaram a se envolver seus fortes vínculos com o desenvolvimen-
nessas questões, trazendo para as favelas esse to urbano daquela área (PETERSEN, apud
novo conceito (FREIRE-MEDEIROS, 2006; CHA- FREIRE, FREIRE-MEDEIROS, CAVALCANTI,
GAS, ASSUNÇÃO, TAS, 2014). 2009, p. 113).
EIXO TEMÁTICO 2 A ideia de se criar um museu, em que o percurso de
visitação aproveitasse os marcos do patrimônio
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS ali existentes e a vista panorâmica, com miran-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES tes. A essas questões da paisagem se ligavam
questões ligadas às origens afro-brasileiras da
cidade, como a casa de Dodô da Portela, antiga
porta-estandarte de uma das primeiras escolas
de samba, a Vizinha Faladeira, criada ali no morro
(FREIRE-MEDEIROS, 2006). Dessa maneira a pa-
trimonialização da favela se ligou à paisagem, a
elementos construídos e ao patrimônio imaterial,
e especial a presença do samba e da história de
sua criação nessa área da cidade.

Figura 1 : Oratório no Morro da Providência. Fonte: https://fo-


rumcomunitariodoporto.wordpress.com/tag/cruzeiro/, 2012

Esse museu à céu aberto, o primeiro da cidade em


uma favela, logo receberia muitas críticas, e sua
pouca conexão com os moradores foi responsável
pelo seu insucesso. A própria autora do projeto
trata das dificuldades de aceitação do projeto
pela comunidade, ficando clara a pouca interação
com os moradores, incluindo os problemas com
a segurança do local entre os problemas a serem
vencidos2 (PETERSEN, apud FREIRE-MEDEIROS,
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
2. O depoimento de Petersen foi dado antes da instalação
1890 da UPP no Morro da Providência, em 2010. Mas mesmo com
CAVALCANTI, 2009). O Museu da Maré foi criado em 2006 integrado
a um projeto social mais amplo, através da ação
A partir desse interesse em se criar políticas pú- do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré
blicas em favelas trouxe também a ideia de maior (CEASM). O museu foi criado a partir da existência
participação de seus moradores em projetos li- de um Ponto de Cultura ali desde 1996, criado
gados à cultura, como ocorre com a criação do pela comunidade com apoio do Programa Cultura
Museu da Maré em 2006. O complexo de favelas Viva, do Ministério da Cultura (MADUREIRA DE
da Maré, formada por dezessete comunidades, se PINHO, 2014).
localiza entre a Avenida Brasil e a Linha Vermelha,
duas das principais vias de acesso da cidade, e que O Museu surgiu como parte de um projeto de edu-
foi construída sobre área de manguezal da baía de cação sobre a herança cultural do lugar, buscando
Guanabara. A área onde surgiu a favela sempre foi preservar práticas diárias do patrimônio tangível
de mangues e praias, de onde veio seu nome. A e intangível das comunidades da Maré, como um
área passou a ser ocupada a partir dos anos 1940, receptor, produtor e organizador dos processos
com a abertura da Avenida Brasil, crescendo em culturais locais, em conjunto com escolas e ins-
direção ao mar com casas em palafitas a partir tituições locais (VIEIRA, SILVA, OLIVEIRA, 20103),
dos anos 1970, barracos de madeira que seriam com apoio financeiro do Ministério da Cultura
sua imagem mais simbólica (FREIRE-MEDEIROS, (FREIRE-MEDEIROS, 2006). A ideia central do
2006). Na década e 1980 Projeto Rio, Banco Na- museu é que preserve a história contada pelos
cional da Habitação, órgão do Governo Federal moradores do lugar, e não seja um museu dos
construiu um aterro que substituiu as palafitas “vencedores”, aqueles que impuseram as transfor-
por novas construções em alvenaria. Mais tarde, mações, nem sempre favoráveis aos moradores,
nos anos 1990, a construção da Linha Vermelha que muitas vezes foram objetos de remoções e
deu a feição atual ao conjunto. modificações impostas às favelas, e que é o caso
do Complexo da Maré, que foi alvo de grandes
obras de urbanização, inclusive modificando a to-
pografia do lugar, que deixou de ser litorânea, com
construções em palafitas, algo que é lembrado
no museu de maneira impactante, com uma ce-
nografia em que uma antiga casa sobre palafitas
é exposta (Figura 2), em uma cenarização da vida
dos hábitos de moradia dos pioneiros da área.

Mesmo tendo sido criado com apoio do Governo


Federal, a forte relação com os moradores faz
com que a iniciativa se mantenha integra, mesmo
passando diversos anos de sua inauguração, com
a realização de iniciativas ligadas à cultura local,
e também uma relação com a visitação turística,
estimulada pela ONG Redes da Maré.

SEGUNDA FASE NO MOMENTO DOS GRANDES


EVENTOS: MUSEU DE FAVELA (MUF) E MUSEU
DA ROCINHA-SANKOFA
Figura 2: Casa em Palafita, Museu da Maré. Fonte: Foto
do autor, 2012 A partir da movimentação turística inicial na Ro-
cinha, outras comunidades passaram a disputar o

essas mudanças em relação à segurança o Museu não teve


a aceitação imaginada pela autora do projeto. 3. Os autores são fundadores do museu.
EIXO TEMÁTICO 2 interesse dos visitantes, lugares como o Morro da
Babilônia, Morro dos Prazeres, Morro do Vidigal,
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS Favela Tavares Bastos, Favela Vila Canoa iniciaram
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES não somente a criação de percursos turísticos de
visitação, mas também a instalação de locais de
hospedagem (FREIRE-MEDEIROS, 2009; FAGER-
LANDE, 2016). Ao mesmo tempo o interesse em
buscar atrair visitantes fez com que houvesse
a necessidade de buscar diferenciais compe-
titivos, com a criação de percursos, por vezes
ligados à paisagem, como percursos ecológicos,
e por outras vezes percursos ligados a elementos
artísticos, em especial o grafite (MORAIS, 2010;
BISSOLI, 2016).

O surgimento de museus nessas comunidades


não pode ser pensado fora desse contexto, como
se pode observar na criação e na atuação do Mu-
seu de Favela (MUF), criado em 2008 e com forte
participação no turismo na Favela do Cantagalo
Pavão Pavãozinho, no Museu da Rocinha-Sanko-
fa, criado também em 2008. Ambos são museus
territoriais, assim como era a proposta do Museu
da Providência, mas com diferentes propostas de
participação comunitária.

O Museu de Favela (MUF) foi criado na Favela do


Cantagalo, localizada entre Ipanema e Copacaba-
na, em meio às obras de infraestrutura que esta-
vam sendo realizadas, como o Elevador Mirante
ligando a favela ao metrô, e obras de vias internas
na favela, que fariam a ligação desse elevado
com a principal via de acesso, a Rua Saint Roman
(IZAGA, PEREIRA, 2014). Esse elevador, com um
mirante em seu topo, obra claramente relacionada
à ideia da importância do turismo foi inaugurado
em 2010, mesmo ano em que foi reinaugurado o
plano inclinado no mesmo conjunto de favelas, no
Pavão Pavãozinho, e um ano após a inauguração
da UPP local (FAGERLANDE, 2016).

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1892
Figura 3: Grupo visitando o Circuito das Casas-tela, no
Morro do Cantagalo. Fonte: Foto do autor, 2014

Em meio a esse contexto houve o incentivo à cria-


ção de uma instituição que tivesse participação
dos moradores locais. Desse modo o MUF surge
como parte do Projeto Pontos de Memória, com
apoio de políticas públicas de inclusão através da
cultura e de reforço da identidade local. Partindo
do conceito de ser um museu territorial, não tendo
um edifício para exposições, somente uma sede
administrativa, mas tendo como conteúdo expo-
Figura 4:Cart6az de percurso guiado oferecido pelo Museu da
sitivo a própria favela, seus edifícios e moradores, Rocinha. Fonte: divulgação Museu da Rocinha Sankofa, 2019.
logo inaugura um percurso, o chamado Circuito
das Casas-tela (Figura 3), em que se patrimonializa
a história do lugar, com grafites que representam Na Rocinha, maior favela do Rio de Janeiro e onde
a história da favela e de seus moradores, sobre surgiu em 1992 o chamado turismo em favelas, foi
as paredes das casas dessas pessoas, que junto criado em 2008 um museu. A ideia de se criar um
com artistas de favelas ajudam a compor o que núcleo de memória já existia entre alguns mora-
irá ser representado nessas “telas” (SILVA, PINTO, dores, e após a realização do Fórum Cultural da
LOUREIRO, 2012). A turistificação ligada a esse Rocinha, em 2007, a ideia de um museu se conso-
processo é evidente, criando uma atração para lidou. A partir de 2011 esse projeto foi considerado
a visitação, que passa a ser o principal elemento como Ponto de Memória pelo Programa Pontos de
de geração de renda para o MUF. Desse modo, ao Memória do Instituto Brasileiro de Museus IBRAM/
lado da observação da paisagem, que é reforçada MinC, mostrando como o apoio governamental foi
pelo outro circuito, o ecológico, reforça a ideia de importante para esse processo de consolidação
ligação entre turismo, museus e a participação de espaços culturais e de memória ligados à par-
comunitária. ticipação comunitária (SEGALA, 2017).

Desde o inicio a visitação é parte importante


desse museu, que não é somente destinado aos
moradores, mas, sobretudo foi criado para mos-
trar a favela para quem não é dela: os visitantes,
turistas, o outro, aquele que muitas vezes nunca
teve contato com a realidade desses lugares, de
seus moradores e de suas histórias.

Por outro lado a ideia de geração de renda está


presente nesse processo, e portanto o turismo
se conecta diretamente, sendo necessário atrair
EIXO TEMÁTICO 2 aqueles que podem pagar pelos passeios. A figura
4 mostra um cartaz que se relaciona com a cena-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS rização da favela, ao comparar a favela à cidade
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES medieval (FAGERLANDE, 2017a). Esse fato pode
ser comprovado com relatos de professores que
fazem trabalhos em favelas levando seus alunos,
muitas vezes estrangeiros, a esses lugares, em
que esse tipo de comentário é comum4.

TERCEIRA FASE PÓS EVENTOS: MUSEU DAS


REMOÇÕES DA VILA AUTÓDROMO, MUSEU
DO HORTO E MARÉ A CEU ABERTO

Para a realização dos Jogos Olímpicos no Rio de


Janeiro em 2016 a prefeitura fez uso de um antigo
instrumento, que desde a criação da primeira
favela persegue seus moradores, a remoção.
O principal espaço destinado à construção dos
estádios para os Jogos foi a área antes utilizada
pelo autódromo de Jacarepaguá, e que estava
sem uso, e que passou a abrigar o centro das
atividades olímpicas. Ao seu lado havia a favela
denominada Vila Autódromo, comunidade situada
junto ao antigo autódromo. Mesmo sem haver a
necessidade de se utilizar a área para o even-
to, a prefeitura preferiu remover a população ali
existente há tempos, em uma “limpeza” do terri-
tório, buscando dissociar a imagem das favelas
do grande evento.

A luta dos moradores contra a expulsão, que se


efetivou pelo menos parcialmente, fez com que os
antigos moradores, muitos que conseguiram se
manter no local, e outros dali expulsos, criassem
um museu para marcar o protesto. A construção
do Museu das Remoções na Vila Autódromo surgiu
assim em três etapas, inicialmente com a concep-
ção de se ter um museu comunitário, depois com
a realização de oficinas de resgate da memória
popular, e finalmente na construção de esculturas
nos lotes que tiveram suas edificações demolidas,
em homenagem aos antigos moradores (BOGADO,
2017). Desse modo se manteve a memória do lu-
gar e de seus moradores, destacando a violência
das remoções tão comuns em toda a história das
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
4. Relato de turma conduzida pelo autor, em disciplina de
1894 campo de estudos em favelas, 2016.
favelas da cidade, e ainda presentes mesmo e relação ancestral com as árvores, em um “Cir-
momento tão recente (Figura 5). cuito das árvores ancestrais”, numa caminhada
ligada aos ancestrais indígenas e negros do lugar
Segundo Chagas (2005, p. 15) “os museus são an- (PATEL, 2018).
tro e entes de: memória, esquecimento, poder,
resistência, combate, conflito, discurso, dicção, Outro museu territorial que vem surgindo no Rio
tradição e contradição”. Nesse contexto o Mu- de Janeiro é o projeto Maré a Céu Aberto, que em
seu das Remoções se torna um excelente exem- 2019 se anunciava como
plo, mostrando como a ideia de um espaço, seja
um edifício ou um território, pode tratar dessas O projeto Maré a Céu Aberto promete trazer
questões, sendo apropriados por seus partici- uma nova perspectivo museológica para a
pantes. A ideia de que os próprios moradores, Favela da Maré, na Zona Norte. Roteiro tu-
e não instituições politico-institucionais devem rístico, instalação de estações de memória
estabelecer como os museus podem e deve ser e arte urbana são alguns dos componentes
das/para as comunidades (VENANCIO, BARROS, do projeto que lembram uma galeria ao ar
TEIXEIRA, 2017). livre dentro da favela ou, ainda, um museu
territorial, de percurso, como denominaria
a museologia social (PEREGRINO, 2019)

Iniciativa de uma ONG local, a Redes de Desen-


volvimento da Maré, sediada ao lado do Museu da
Maré, complementa as atividades desse museu,
ampliando sua relação com a comunidade, tra-
zendo, assim como os demais museus territoriais
estudados nesse artigo, a dimensão do território
da favela como um percurso museológico, bus-
cando aumentar a participação de seus mora-
dores, estimulando também as possibilidades
que o turismo em favela traz (BERNARDO, 2018).
Figura 5:Moradores e ex-moradores na inauguração do O projeto busca criar estações de memória, em
Museu das Remoções. Fonte: www.rioonwatch.org,br
lugares significativos do complexo, como o Par-
que União, Nova Holanda, Baixa do Sapateiro e
Vila do Pinheiro, além do próprio Museu da Maré.
Se o Museu das Remoções, mesmo sendo um mu-
Seguindo exemplos de outros museus territoriais,
seu territorial e ligado a uma comunidade na ver-
como o MUF, seus organizadores trabalham com
dade é muito mais um protesto contra o processo
a ideia de marcar percursos com grafites, além de
de remoções que desde a criação das primeiras
azulejos que marquem os caminhos dos visitantes
favelas, marcando um território de memória e
pela favela (PEREGRINO, 2019).
identidade, seus antigos moradores conseguem
ainda estabelecer esse seu território original,
preservando sua história.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mesmo anterior ao Museu das Remoções, o Mu-
seu do Horto, criado em 2010 pelos moradores
em luta pelo território ocupado. Sua criação foi A ideia de se estudar a relação entre os diferentes
estimulada pelo Programa Pontos de Memória do momentos pelos quais a cidade do Rio de Janeiro
IBRAM, e tem como missão proteger os patrimô- passou desde os anos 1990, em relação às suas
nios materiais e imateriais de uma comunidade favelas, mostra como o turismo e cultura são
tradicional de área do Horto Florestal do Rio de parte de um processo em que pode ser entendido
Janeiro. A ideia de se promover visitas guiadas como essas relações foram sendo desenvolvidas,
por áreas da florestal ocupada por muitos anos
por essa população, em uma demonstração da A partir do estudo da relação das favelas e de
EIXO TEMÁTICO 2 projetos de urbanização dessas áreas da cidade
com seus moradores e a cultura de seus mora-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS dores, através da formação de museus, podemos
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES entender um pouco da história da relação do poder
público, de seus agentes e de como a favela tem
sido vista.

A partir de um olhar inicial sobre aquela que foi


um marco inicial de todas as favelas, a do Morro
da Providência em 2005, e de como o governo
municipal entendeu como deveria ser um museu
que celebrasse essa história, podemos perceber
como essas intervenções, mesmo sendo parte
do celebrado Favela-Bairro, de grandes méritos
urbanísticos, sempre foi descolada da realidade
dos moradores, e do entendimento do que poderia
ser realmente patrimônio para eles. A partir de
uma intervenção de cima para baixo, em que o
que poderia ser definido como patrimônio não
ouviu os moradores, a experiência do Museu a
Céu Aberto da Providência pode certamente ser
considerada um fracasso, pois hoje em dia não
se ouve falar dele, nem pelos moradores do local,
nem pelos processos de visitação, que existe
na favela. A pouca aderência ao projeto, em que
marcos da paisagem foram escolhidos a par-
tir de uma visão de projeto ligado à cenarização
do que seria a favela histórica (FAGERLANDE,
2017a; 2018), não teve respaldo na relação com
os habitantes do local, que não participaram do
processo, e por isso não entendera o que seria
esse museu. O relato de moradores mostra como
muitos achavam que um museu seria um edifício,
e não um percurso, não entendendo o que seria
um museu territorial.

Nesse mesmo momento, mas de forma bastante


diferente, foi criado o Museu da Maré em 2006,
dessa vez com apoio do governo federal. Mesmo
tendo como principal diferença em relação à ini-
ciativa da Providência o fato de ter sido criado por
uma ONG da própria favela, o CEASM, esse projeto
de certa maneira é bastante mais tradicional. Não
se trata de um museu territorial, mas de um museu
de comunidade. Um museu que busca preser-
var a memória de um lugar destruído, em que as
palafitas deram lugar a conjuntos habitacionais,
em que houve um esgarçamento das relações
de vizinhança, desconsideradas no processo de
16º SHCU
formação do lugar.
30 anos . Atualização Crítica

1896 Se vemos nesse artigo diversas iniciativas, bem ou


mal sucedidas de criação de museus territoriais REFERÊNCIAS
e comunitários em favelas do Rio de Janeiro, não
podemos esquecer o que nos falava Venancio,
Barros e Teixeira já em 2017, quando estudavam o BARTHOLO, R.; SANSOLO, D. G.; BURSZTYN, I.
Museu das Remoções, que muitos desse museus (orgs.). Turismo de Base Comunitária: diversi-
vivem sob ameaça de remoção, citando o Museu dade de olhares e experiências brasileiras. Rio
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namental ou de instituições como a igreja, muitas em http://www.ivt-rj.net/ivt/bibli/Livro%20
vezes não se mantém, dificultando a manutenção TBC.pdf. Acesso em: 30 de junho de 2009.
dessas ONG’s. Se o pavilhão em que está instalado
o Museu da Maré parece ter sido definitivamente BERNARDO, A. Projeto pretende criar um mu-
cedido à ONG que mantém o museu, no caso do seu a céu aberto no Complexo da Maré. Cul-
MUF isso não ocorreu, e a saída de sua sede, de tural. São Paulo: Itaú Cultural, 2018. Disponível
propriedade da igreja católica, ocorreu em 2019, em https://www.itaucultural.org.br/secoes/
com prejuízo evidente para o museu. rumos/projeto-pretende-criar-um-museu-a-
-ceu-aberto-no-complexo-da-mare. Acesso
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populações locais, e de se ter maior possibili-
dade de geração de renda (FRENZEL, KOENS< BEETON, S. Community development trough
STEINBRINK, 2012), no caso com estimulo ao tourism. Collingwood, Australia: Landlinks,
turismo e à visitação, se tornam cada vez mais 2006.
importantes, para que essas iniciativas tenham
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maior possibilidade de se manter. O ano de 2020
Graffiti” interrompido. Anais do IV ENANPARQ.
um novo e grave problema para essas iniciativas,
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EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Adentrando em questões de representação e
leitura da imagem fílmica, estrutura-se um de-
bate da dimensão imagética da cidade na rela-
vídeo-pôster ção entre cotidiano e sujeito. Para tal, apresen-
ta-se uma análise da narrativa visual do filme A
casa de Alice (2007), de Chico Teixeira, na pers-
NARRATIVA À DERIVA: UMA pectiva do entender como o espaço da cidade
ali representado é percebido pelo espectador.
ANÁLISE DA DIMENSÃO Tendo como base as aproximações entre cida-
de e cinema, tem-se o entendimento de que o
IMAGÉTICA DO COTIDIANO filme para além de mostrar a materialidade dos
espaços, traz atributos e significados que com-
URBANO NO FILME “A CASA põe um possível imaginário do que está sendo
representado. Deste modo, compreende-se
DE ALICE” que a forma como a narrativa se constrói é de
algum modo reflexo de um possível entender e
ler a cidade real que está ali. Espera-se que, por
DRIFTING NARRATIVE: AN ANALYSIS OF THE IMAGETIC
meio da teorização exposta somada de tópicos
DIMENSION OF URBAN DAILY LIFE IN THE FILM “THE
explicitados pela narrativa visual, seja possível
HOUSE OF ALICE”
um debate da dimensão da representação da
cidade e seus modos de vida, direcionando um
NARRATIVA A LA DERIVA: UN ANÁLISIS DE LA
olhar para corroborar com questões latentes
DIMENSIÓN IMAGINARIA DE LA VIDA URBANA
que o filme traz, bem como constar as ressig-
COTIDIANA EN EL CINE DE ALICE
nificações do que foi proposto como visão da
experiência urbana no centro urbano caracteri-
Santos, Paul Newman dos zado em A casa de Alice.
Mestrando; Universidade de São Paulo, Instituto de
Arquitetura e Urbanismo, IAU-USP, São Carlos, SP, Brasil
COTIDIANO CINEMA EXPERIÊNCIA URBANA
paul.santos@usp.br

Castral, Paulo César


Professor Doutor; Universidade de São Paulo, Instituto de
Arquitetura e Urbanismo, IAU-USP, São Carlos, SP, Brasil
pcastral@sc.usp.br

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1900
ABSTRACT RESUMEN

By entering into questions of representation and Abordando cuestiones de representación y lectu-


interpretation of the filmic image, a debate is ra de la imagen fílmica, se estructura un debate
structured on the imagetic dimension of the city sobre la dimensión imaginativa de la ciudad en la
in the relationship between daily life and the sub- relación entre la vida cotidiana y el sujeto. Para
ject. An analysis of the visual narrative of the film ello, se presenta un análisis de la narración visu-
A casa de Alice (2007), by Chico Teixeira, is pre- al de la película de Chico Teixeira A Casa de Alice
sented in the perspective of understanding how (2007), desde la perspectiva de entender cómo el
the space of the city represented there is percei- espacio de la ciudad allí representado es percibi-
ved by the viewer. Based on the approaches be- do por el espectador. A partir de las aproximacio-
tween city and cinema, there is an understanding nes entre la ciudad y el cine, se entiende que la
that the film, in addition to showing the materiali- película no sólo muestra la materialidad de los es-
ty of spaces, brings attributes and meanings that pacios, sino que también aporta atributos y signi-
make up a possible imaginary of what is being re- ficados que componen un posible imaginario de
presented. In this way, it is realized that the way lo que se está representando. De esta manera, se
the narrative is constructed is somehow a reflec- entiende que la forma en que se construye la nar-
tion of a possible understanding and reading of rativa es de alguna manera un reflejo de una po-
the real city that is there. It is hoped that, throu- sible comprensión y lectura de la ciudad real que
gh the exposed theorization added to the topics está allí. Se espera que a través de la teorización
explained by the visual narrative, it is possible to expuesta sumada a los temas explicitados por la
debate the dimension of the representation of the narrativa visual, sea posible debatir la dimensión
city and its ways of life, directing a look to corro- de la representación de la ciudad y sus formas de
borate with latent issues that the film brings, as vida, orientando una mirada para corroborar con
well as appearing the resignifications of what las cuestiones latentes que la película aporta, así
was proposed as a vision of the urban experien- como para apuntar las resignificaciones de lo que
ce in the urban center characterized in A casa de se propuso como visión de la experiencia urbana
Alice. en el centro urbano caracterizada en A Casa de
Alice.

DAILY LIFE CINEMA URBAN EXPERIENCE


COTIDIANO CINE EXPERIENCIA URBANA
EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
Este artigo se insere em uma pesquisa que traba-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
lha o registro cinematográfico da percepção do
cotidiano urbano1 e que tem como foco discutir
vídeo-pôster a potencialidade das representações urbanas de
filmes ficcionais como instrumentos de debate
para questões relacionadas a imagem historica-
NARRATIVA À DERIVA: UMA mente localizada da cidade. No caso específico
da teorização exposta por este texto, o objetivo
ANÁLISE DA DIMENSÃO é fazer uma análise da narrativa visual do filme A
casa de Alice (2007) de Chico Teixeira, tendo como
IMAGÉTICA DO COTIDIANO perspectiva o entendimento de como o espaço
da cidade ali representado é percebido pelo es-
URBANO NO FILME “A CASA pectador. Busca-se com esse recorte comentar
sobre a relação entre cidade e cinema, explorando
DE ALICE” tópicos relacionados as representações fílmicas
como interpretação de uma realidade.

DRIFTING NARRATIVE: AN ANALYSIS OF THE IMAGETIC A princípio, parte-se do preceito que existe, de
DIMENSION OF URBAN DAILY LIFE IN THE FILM “THE fato, uma relação intrínseca entre cidade e ci-
HOUSE OF ALICE” nema. Nota-se que, desde as primeiras imagens
exibidas pelos irmãos Lumière2, o viver dos corpos
NARRATIVA A LA DERIVA: UN ANÁLISIS DE LA na cidade se apresenta como elemento chave.
DIMENSIÓN IMAGINARIA DE LA VIDA URBANA O que é levado a tela são cortes de retratos da
COTIDIANA EN EL CINE DE ALICE vida urbana, saídas de fábricas, caminhadas na
rua e aglomerados de pessoas. Isto é, o primeiro
olhar sob as lentes do cinema foi a cidade e seus
sujeitos. Uma correlação que é provável de se
fazer, visto que o próprio cinema surge dentro do
desenvolvimento da cidade moderna3, de modo
que os imaginários da cidade e a linguagem ci-
nematográfica irão trilhar caminhos muito próxi-

1. Este artigo se vincula ao conjunto de pesquisas desenvol-


vidas pelo Núcleo de Pesquisa em Estudos de Linguagem
em Arquitetura e Cidade (N.ELAC – IAU.USP), que tem como
contexto o desenvolvimento científico de debates acerca
das lógicas dos meios de representação e de metodologias
de leitura da arquitetura e da cidade.

2. Auguste M. L. N. Lumière e Louis J. Lumière, popular-


mente referenciados como os Irmãos Lumière, são nomi-
nados, apesar de algumas controvérsias históricas, como
os inventores do cinematógrafo (uma máquina de filmagem
e projeção).

3. “Desde seu surgimento em finais do século XIX, o cine-


ma logo se configurou como modo de representação por
excelência urbano. E a metrópole moderna – em seu ritmo
16º SHCU
incessante, infindável movimento, com suas luzes, veículos,
30 anos . Atualização Crítica
cartazes e aglomerados humanos – se transformou rapida-
1902 mente em uma de suas musas favoritas”. (LEZO, 2016, p. 28)
mos. Desde as chamadas Sinfonias Urbanas4 no O filme, o diretor e os anos 2000
começo do século XX, a cidade ou a ideia de uma
vida urbana será fonte matricial para se pensar A casa de Alice, filme ficcional de 2007, narra os
a representação de narrativas em tela. O cinema acontecimentos cotidianos de Alice, uma mãe de
mesmo antes de se colocar como reprodutor de família que vive em um apartamento na cidade
histórias — o cinema ficcional — terá a questão do de São Paulo, com sua mãe, Jacira, seu marido,
urbano e da vida das pessoas como chave cen- Lindomar, além dos seus 3 filhos, Lucas, Edinho e
tral. Filmes como Metrópolis (1927) de Fritz Lang; Junior. Logo nas cenas de início se vê o quão es-
PlayTime (1967) de Jacques Tati; até mais recentes casso é o território dessa família no enquadro dos
como Cidade de Deus (2003) de Fernando Meirelles quartos ao amanhecer: no quarto dos filhos, um
ou O Som ao Redor (2013) de Kleber Mendonça Fi- beliche e um colchão no chão. Além disso, vê-se
lho, terão o viver do sujeito, como essencial para a quem de fato pertence o trabalho doméstico.
as estruturas das suas narrativas. Esses filmes, Dona Jacira, já de manhã, acordada preparando
cada qual com as suas abordagens de cidades, se- o café, enquanto sua filha, genro e netos ainda
jam fictícias ou concretas, fundamentam os seus dormem. Seguindo sua rotina no filme pratica-
discursos através articulações sobre o pensar e mente dentro do apartamento, sempre atarefada
o construir o espaço de um viver representado. e a disposição da família, ela acompanha todos
os casos que acontece na casa, e mesmo cien-
Vale mencionar que a escolha de A casa de Alice
te de certos segredos de cada um, incluindo da
como estudo de caso não se trata de dar a ele um
traição do genro, não se comunica com a filha, na
carácter de mais representativo de um momento
realidade, permanece calada em reação a todos.
histórico. Ele é um entre outros que tem a questão
de representar uma vivência urbana contemporâ- A narrativa a princípio segue Alice que trabalha
nea colocada como estruturadores da sua lógica como manicure em um salão na cidade, enquanto
narrativa. Deste modo, se propõe uma discussão seu marido é taxista. Ela, que tem em torno de 40
onde, por meio da teorização exposta somada de anos, aparenta insatisfação com a vida, mas busca
tais tópicos explicitados por essa narrativa, se de alguma forma mascarar o descontentamento,
direcione um olhar para corroborar com questões mesmo sabendo que seu marido a trai, até porque,
latentes que o filme possa trazer, como conceitos ela também tem um caso extraconjugal com um
de imaginário e deriva urbana. Considerando que amigo de infância, marido de sua cliente Carmem.
não há a intenção de aprofundar em tais con- Alice, que não assume o papel de “mãe e dona de
ceitos, uma vez que são relativamente amplos, casa” que se espera, é trabalhadora, porém com
porém, também não é proposto um esvaziamento seus defeitos. Já o pai, Lindomar, mostra ter uma
de seus significados. Assim, através de uma relação fria com a esposa, passando o dia fora
aproximação com as questões da narrativa do trabalhando ou em um bar. Mesmo sendo ausente
filme, se expõe nesse artigo, alguns comentários de qualquer função da casa, ele tenta manter sua
teóricos sobre: cotidiano representado; cinema pose de autoridade dentro do lar, chegando a ser
e realidade; narrativas visuais; imaginário e a indiferente com os filhos e soberbo na sua rela-
deriva situacionista. Espera-se, com isso, que seja ção pessoal com a mulher e a sogra. Já os filhos,
possível um debate da dimensão da representação pouco se apresentam de suas vidas muito além
da cidade e seus modos de vida, bem como ser dos registros vividos na casa. O mais velho Lucas
possível levantar significados e ressignificações é alistado no exército e faz trabalhos escondidos
do que foi proposto como visão da experiência como michê; tem um temperamento forte e uma
urbana na relação entre cotidiano e sujeito no relação um tanto autoritária com os irmãos. Edi-
centro urbano caracterizado em A casa de Alice. nho, o filho do meio, é um estudante, e apesar de
aparentar ter um caráter tranquilo, se envolve em
4. Sinfonias Urbanas, são obras cinematográficas no início
brigas constantes com o irmão mais velho, além
do século XX que “com suas diversas roupagens factuais de parecer ter uma tendência por furtar dinheiro
e documentais, mas sempre imbuídas de uma linha narra- da avó. O terceiro filho, Junior, é um típico caçula
tiva, retratavam os centros urbanos pelo mundo, com um da família, tem uma clara proximidade com a mãe
fio condutor comum: o imaginário da Metrópole Moderna. e certa admiração pelos irmãos mais velhos, ele
(LEZO, 2016, p.35). é apresentando com uma namorada.
EIXO TEMÁTICO 2 Para além de criar em Alice uma imagem de uma
protagonista com uma jornada a ser cumprida ao
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS longo das cenas, o longa apresenta um conjunto
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES de vivências dos membros da família, de modo a
ser o cotidiano deles o ato central do enredo. O
espaço da casa é onde a narrativa se expande a
princípio, de modo que é nele que o tom do filme
se marca efetivamente, no final trama. Logo após
uma briga entre irmãos, Alice se exalta, o que
leva ao arco final do longa. Alice indo procurar
seu amante na expectativa de sair da sua rea-
lidade enquanto Lindomar segue seu plano de
levar Dona Jacira para um asilo. O filme acaba
assim, sem nenhum fim exato para qualquer um
dos personagens.

Notando que o longa, se construindo numa narra-


tiva que se aproxima muito dos afetos cotidianos,
acaba por se relevar dentro de uma linguagem
quase documental. Algo de se esperar, visto que
este é o primeiro longa-metragem de um diretor
que tinha no seu currículo, curtas e documen-
tários5. Chico Teixeira, apesar de formado em
Economia e ter atuado um tempo na área, tem
seu início de carreira como cineasta um pouco
antes do início dos anos 90 com seu documentário
Favelas de 1988. Além disso, fez mais dois docu-
mentários, Velhice (1991) e Criaturas que Nasciam
em Segredo (1995), ambos curtas que tratam de
personagens e temáticas muito próximas de um
registro um viver humano. O diretor que já acumu-
lava prémios internacionais e nacionais de seus
documentários, se viu reconhecido novamente
pelo drama de ficção, com direito a première mun-
dial e conquistas de prêmios em vários países, em
“A Casa de Alice” (2007). Depois deste, o diretor
contou apenas com mais outro filme ficcional,
“Ausência” (2014), antes de morrer em 2019.

As obras do diretor fundamenta-se na busca de


um registro sensível do que nos certa, de modo
que em uma leitura do seu cinema, a experiência
humana no seu cotidiano é uma base. Isso é algo

5. Segundo a Filme B, uma empresa de conteúdo onli-


ne especializada na coleta e análise de informação sobre
o mercado cinematográfico, Chico Teixeira foi um diretor,
documentarista e roteirista que começou a fazer documen-
tários nos anos 90 como realizador independente. Na sua
16º SHCU
Filmografia constam a direção de quatro documentários e
30 anos . Atualização Crítica
dois longa-metragem, sendo A casa de Alice seu primeiro
1904 longa-metragem de ficção (fonte: filmeb.com.br).
que se torna nítido quando ele argumenta sobre tante pontuar que para além do plano imagético
o filme A casa de Alice, onde coloca a construção de representar as emoções do sujeito, é de se
do personagem e registro da cenas sob um olhar observar que Chico Teixeira trabalha num pla-
que volta mais para a construção de cada sujeito no onde a narrativa é construída da escala do
em tela e suas relações com o mundo. sujeito. Sendo possível imaginar que o urbano
que esse sujeito habita também se representa
“Eu dispensei tripé para que se gravasse no ali na escala do corpo. A cidade que se revela é
ombro mesmo, para que o espectador sen- a cidade de Alice, e de seus familiares. Esse é o
tisse até a respiração de quem estava gra- território que é importante para o diretor. Não se
vando, sentisse que ali tem vida pulsante. trata de falar de São Paulo ou de uma Metrópole,
A câmera vivencia a família, entra naquela mas sim de dar visibilidade ao cotidiano de uma
casa, participa daquele seio familiar. O filme família. Inclusive é se notar que praticamente
é muito de alma.” (TEIXEIRA, 2008a, s.p) não há menções no filme sobre a localidade em
que se passa a vida dos sujeitos, a questão da
É revelador a forma o diretor dizer que o filme
cidade como fato material fica em segundo pla-
é muito de alma, expressando junto a intenção
de ter o registro pelos olhos de um observador no. Para ter a certeza geográfica é necessário
que participa daquele seio familiar. O filme, com recorrer à sinopse ou resenhas. Assim, para além
seus 92 minutos, segue um narrador observador de um registro material da vida, a cidade que se
externo que não se relaciona diretamente com mostra é aquela que se vê pelos gestos de cada
nenhum dos sujeitos representados, ou seja, o personagem. É possível perceber que existe ali
que é apresentado é um puro quadro de obser- a intenção de contar uma história sem extremos,
vação dos acontecimentos sem seguir o pen- onde ninguém é o máximo, ninguém é o mínimo,
samento de nenhum das personagens. Entrega é apenas alguém. O diretor dá protagonismo a
então, uma linguagem onde quem assiste o filme um cotidiano urbano que tem em sua essência a
é um mero expectador da rotina da família, quase banalidade, construindo, assim, um aparato para
como se estivesse ali, observando de perto. Nas dizer que o espaço representado é antes de tudo
suas entrevistas sobre o filme, Chico fala muito um espaço ordinário, de um sujeito qualquer.
da importância do corpo na temática do filme,
bem como na vontade de registrar a relação de Vale destacar que essa construção narrativa, de
entre os personagens. O que se revela é um jogo modo geral revela a preocupação em represen-
de pequeno dramas familiares que constrói uma tar um instante de um mundo vivido, é própria
narrativa que explora a linguagem que perfaz a do momento cultural no qual o filme é realizado.
emoção como método de se expressar. Trata-se do início da década de 2000, marcado
pelo final do que convencionou-se nomear na
A câmera, por exemplo, não segue o es- historiografia do cinema como Retomada. Um
quema plano e contra-plano das novelas período iniciado no ano de 1994 com o filme Carlota
de televisão. Falo isso sem preconceitos, Joaquina, se vinculando a volta de investimentos
pois as novelas têm grandes méritos, mas nas produções culturais após o enfraquecimento
considero mais interessantes as reações da representatividade nacional no cinema no início
dos personagens. Vocês devem ter repara- da década de 19906. Sendo assim, um período na
do que trata-se de um filme muito focado
nas reações; alguém fala, mas o foco não
6. É possível ver que “a produção, que chegara na década
está em quem fala, e sim está em quem
de 1970 a ocupar 35% do mercado interno, diminuiu de
está reagindo. É um filme feito de pequenas média de 80 filmes/ano para poucos títulos. Poucos e sem
ações que vão compondo os personagens. mercado de exibição” (CAETANO, 2007, p. 196). Em geral,
Ninguém é o máximo, ninguém é o mínimo. aponta-se o principal motivo desse decréscimo ao decreto
Não há nenhum bandidão, nenhuma gosto- feito pelo recém-eleito presidente da época, Fernando Collor
sona, todos são pessoas normais, simples. de Mello, que extinguiu os organismos estatais de fomento
(TEIXEIRA, 2008b, s.p.) e fiscalização do cinema brasileiro. Nota-se que tal corte
“teve como consequência direta um período de ressaca
Nesse aspecto, de entender que o longa é mais das produções de longas-metragens no país, pairando
ditado pela reação dos personagens, é impor- um sentimento de “morte do cinema brasileiro” entre os
EIXO TEMÁTICO 2 história do Brasil notado pela criação de políti-
cas de subsídios no campo cultural, como a Lei
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS Rouanet e a Lei do Audiovisual, que influencia-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES ram e ampliaram as possibilidades de produções
artísticas e culturais, de modo a acompanhar a
crenças no poder econômico que vinham desde
a remodelação do novo Real em 1994.

Diferente de outros períodos, como o Cinema


Novo, a Retomada não possuiu clarezas nas te-
máticas e alinhamentos políticos7; mas ele é visto
como um movimento conciso dentro do cinema
brasileiro por reunir produções em torno de uma
questão8, que é a volta de uma identidade dentro
da produção cinematográfica nacional. Nota-se
que também irá existir nesse período uma grande
diversidade de produções, mas num olhar panorâ-
mico, é clara a presença de tentativas diferentes
de atualizar a produção nacional com o debate
internacional9. Tal caráter será marcado desde o

cineastas” (NAKATANI, 2017, p. 16). O retorno de produções


no país se iniciou, dentre outras questões, “pela a volta das
políticas para o setor, com a aprovação em 1993 da Lei n.
8.685, mais conhecida como a Lei do Audiovisual, já com
Itamar Franco na presidência da República” (NAKATANI,
2017, p. 16). Essa lei permitiu que aos poucos o número de
longa metragens nacionais voltasse a crescer e ter em 1995,
após a adoção do plano real e já no governo de Fernando
Henrique, a consolidação do período que seria referenciado
como Retomado do Cinema Brasileiro.

7. Ver CARDOSO e CATELLI (2007); NAKATANI (2017)

8. Ou seja, “ainda que os próprios cineastas não enxerguem


convergências artísticas ou políticas entre si, acredito
haver características próprias ao conjunto de cineastas
que tiveram suas estreias na tela grande nesse período,
que me possibilitam agrupá-los num sentido sociológico
de geração. (NAKATANI, 2017, p. 11)

9. Na Retomada há a volta de fontes históricas nacionais e


de um certo regionalismo, como se vê em Carlota Joaquina
(1995) e Baile perfumado (1996), porém também se tem uma
mirada mais global e midiática. Há um reflexo da confiança
que o Plano Real de fato iria inserir o Brasil no contexto
Mundial, de modo que as produções “parecem acreditar na
inserção do cinema brasileiro no mercado internacional. O
discurso neoliberal, que prega a expansão de mercados,
seduz boa parte dos realizadores” (CAETANO, 2007, p. 199).
A relação dessa visão de produção com o imaginário do es-
tado político e urbano do Brasil é tão intrínseca que o “sonho
16º SHCU
globalizado” que dominou o cinema brasileiro nos primeiros
30 anos . Atualização Crítica
anos da Retomada se fez sentir cada vez mais esmorecido
1906 a medida que a fragilidade da economia se mostrou a partir
início da Retomada pelo resgate de algumas esté- período no qual foram produzidos “filmes que se
ticas de produção e representação de questões voltam para o homem comum, para o ordinário,
sociais que já recorrentes de outros períodos do para o diminuto, mas articulando esses elementos
cinema nacional, entretanto, gradativamente irá de modo a criar uma espécie de poética do detalhe
revelar que: e do cotidiano” (SALVO, 2011, p.6). Ou ainda, “são
filmes que, ao esquadrinharem o espaço/lugar
“É um cinema atento as mentalidades, de homens e mulheres comuns, flagrados em
condutas morais, mas pouco disposto a suas vidas cotidianas, esquadrinham, ao mesmo
explorar conexões entre o nível do compor- tempo, seus projetos subjetivos, jogando peso
tamento visível, trabalhado dramaticamen- sobre a experiência” (SALVO, 2011, p.6).
te, e suas determinações mais mediadas.
Ao contrário do que ocorria nos anos 60, Deste modo, é notável o alinhamento destas
quando o cinema se apressava em interligar questões com o que se conta e a forma como se
ser social, economia e caráter (colocando conta a história de Alice. A narrativa incorpora os
no centro a questão a ideologia), a vontade imaginários da experiência urbana na cidade ali re-
agora é explorar mais os sujeitos no que tem presentada. Nota-se que as histórias transcritas
de singular” (XAVIER, 2000, p.104). em tela pelas personagens são composições de
imagens dos corpos atuando frente aos espaços
Atentando que mesmo que isso seja uma caracte- que se relacionam, de modo que transcrevem um
rística desde o início da Retomada, a exploração registro da percepção do mundo vivido. O que
dos sujeitos no que tem de singular se faz mais se transcreve pelo roteiro do longa é um regis-
enraizado no seu final, já nos anos 2000. Como tro da vida cotidiana, e, fale-se de cotidiano, no
dispõe Salvo (2011), o início da Retomada é bem mais essencial entendimento de Certeau12, que é
marcado por filmes que apresentaram persona- aquilo que nos é dado a cada dia ou que nos cabe
gens um tanto estereotipados, em contraponto a em partilhar.
produções de meados dos anos 2000 que “aponta-
ram para novas possibilidades no cinema de ficção
brasileiro, ao proporem narrativas que primaram
por algo que podemos denominar de estética do Cidade e cinema: representação
comum ou do banal, dando a ver a vida ordinária como interpretação de uma realidade
dos personagens” (SALVO, 2011, p.5).

O que vale dispor é que ao longo dos anos da Re- Propõe-se partir do pensar a gênese de cidade
tomada caminhando para a década de 2000, no numa associação de sua materialidade com suas
desenvolvimento das produções cinematográfi- narrativas e memórias; ou seja, não apenas na
cas nacionais é claro a presença de observação do sua matéria, mas também nas suas dinâmicas
cotidiano das classes populares10. De modo que, fenomenológicas e sociais. Pois, “a cidade não é
houve uma conquista gradativa do sujeito comum,
que foi consolidada na chamada Pós-retomada11, de Deus. Outras questões corroboram essa ideia de fim
de um ciclo de renascimento, como a criação em 2002 da
Agência Nacional do Cinema (ANCINE) e do Prêmio do Ci-
de 1998. Quando se tem a desvalorização do Real, se vê a
nema Brasileiro, ambas questões que estabelecem novos
obrigação de encarar novamente a realidade de um país em
rumos para a produção do Cinema Nacional. Independente
desenvolvimento com seus problemas urbanos. E assim, a
da divergência é claro o reconhecimento do fechamento de
quebra da ilusão de nação do Primeiro Mundo, motivou os
Período em meados dos anos do início da década de 2000,
cineastas a apostar em outro tipo de cinema que “ao invés
o que é produzido desse momento para frente é denomi-
de imitar a matriz (Hollywood) a opção se faz por histórias
nado por alguns; como Salvo (2011), como Pós-Retomada,
mais instigantes e fortes. Ao invés de orçamentos inflados,
um período que tem como propriedade um conjunto de
filmes de baixo custo. Ao invés de tramas sem compromisso,
produções que apanha “o universo do outro sob uma nova
filmes preocupados” (CAETANO, 2007, p. 204).
perspectiva, que, inclusive, atua na linha oposta àquela
10. Ver ESTEVINHO, 2009, p. 126. do grande espetáculo que firmou a estética dos primeiros
anos da retomada” (Salvo, 2011, p.05).
11. Alguns autores como Zanin Oricchio (2003) sugerem que
o final da retomada ocorre em 2002 com o filme Cidade 12. CERTEAU, 1997, p.31
EIXO TEMÁTICO 2 apenas matéria. É formada por fluxos de sociabi-
lidade, de desejos, de esperanças e da memória e
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS dos sonhos de outras cidades presentes na ação
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES de habitantes” (PEREIRA, 2006, p. 140 apud. LEZO,
2016, p. p.25). Nesse contexto, para além de um
fato material, a imagem que se forma da cidade é
resultado das dimensões da percepção e do ima-
ginativo de cada sujeito que habita essa cidade.
De modo que, se os espaços urbanos, como dito
por Sennett (2003), são coerentes e completos à
imagem do próprio homem13, é de se esperar que
as leituras e os registros desses espaços sejam
tantos quantos os homens conseguem imaginar.
Quer dizer, a subjetividade dos corpos que habitam
o espaço da cidade “entrelaçados à concretude
do urbano, compõem-se seus imaginários” (LEZO,
2016, p. 25).

Há de se constar que, no contexto da História


Cultural, define-se imaginário como um “sistema
de ideias e imagens de representação coletiva
que os homens, em todas as épocas, construíram
para si, dando sentido ao mundo” (PESAVENTO,
2005, p. 43). Ter essa noção é, então, dispor que o
imaginário é histórico e datado, visto que homens
agem no ato de dar sentido ao mundo a partir das
construções históricas e sociais dos seus respec-
tivos tempos. É primordial apontar isso, visto que
ao pensar a representação desses imaginários se
faz possível pensar que essa representação pode
expressar ideias e imagens de uma construção
coletiva e histórica. À vista disso, “o imaginário
se torna um conceito central para a análise da
realidade, a traduzir a experiência do vivido e do
não vivido, ou seja, do suposto, do desconhecido,
do desejado, do temido, do intuído” (PESAVENTO,
2005, p. 47).

O traduzir a experiência do vivido refere-se, então,


a uma construção de visão de mundo que é reflexo
do cotidiano da vida dos homens. A representa-
ção do dito real, ou do imaginário urbano de um
certo tempo, traduz, qualquer que seja a lingua-
gem adotada, uma perspectiva concebida em seu
cerne por um corpo coletivo. Assim, investigar a
representação de uma cidade real, é adentrar e
debater a condição híbrida do seu corpo material
e subjetivo; de modo que, se os imaginários se

16º SHCU
13. A cidade tem sido um lócus de poder cujos espaços
30 anos . Atualização Crítica
tornaram-se coerentes e completos à imagem do próprio
1908 homem” (SENNETT, 2003, p. 24)
constroem mutuamente, suas representações Tem-se um posicionamento; uma visão de um
decodificam o urbano real em registros de um artista, que é quem o produz. Então, no repre-
conhecimento cultural, coletivo e social. sentar um imaginário urbano, tem-se ali um olhar
registrado e direcionado. Entretanto, quando se
Claramente, falar de representação de um ima- trata de registrar uma realidade, é evidente que
ginário aqui é falar da representação no campo o que vai à tela estabelece verdadeiros diálogos
cinematográfico. O cinema enquanto linguagem com as cidades de seu tempo, pois as imagens
se pauta numa relação de signos verbais e não cinematográficas de uma cidade real “permitem
verbais, ou seja, se pauta em uma sinestesia de o reconhecimento de cenários urbanos concre-
montagem onde os elementos empregados são tos, mas também a apreensão de ideias, mitos e
percebidos pelo todo e não pela simples junção crenças, todos expressos pela visualidade” (PINTO,
das partes. O filme, nesse sentido sinestésico, se 2013, p.26 apud. LEZO, 2016, p.30)
estabelece como fenômeno dentro de um campo
perceptivo. Como colocado por Merleau-Ponty É válido dizer que a história do cinema, assim
(1996), ele ganha sentido não pela somatória das como qualquer historiografia, é uma prática
imagens projetadas, mas quando percebido como de escolhas e categorização, entretanto, há de
uma forma temporal14. De modo que, se um filme pensar que “o filme produz símbolos, signos e
não é pensado, ele é percebido15. A linguagem imagens que serão projetados e decodificados
cinematográfica se faz intrínseca a um possível pelo público, passando a fazer partes do imaginário
modo de entender a relação corpo e mundo; pois coletivo” (RAMIRES, 1994, p. 7). Ele é um reflexo de
ela é, assim como a própria percepção e registro entendimento de um momento histórico e social,
de mundo, uma experiência, a princípio, fenome- e quando se tem a cidade como fundo ou questão,
nológica. pode-se também a partir dele “reconstruir e
compreender partes dos processos sociais
Posto isso, é de se notar que o cinema se ancora políticos, econômicos e culturas responsáveis
num anseio de tentar representar a vida como ela pela estruturação e reestruturação interna das
é, entretanto, ele é uma mera ilusão que passa cidades em diferentes momentos históricos”
uma impressão de realidade (BERNARDET, 2010, (RAMIRES, 1994, p. 7). Desta forma, é explícito
s.p.); ou seja, o filme não é um mero espelho do que os elementos constitutivos da linguagem
real. Apreender isso é considerar a dimensão cinematográfica são ferramentas potentes para
simbólica que as imagens fílmicas carregam e diálogo com a cidade e seus processos urbanos;
que ela “pode assumir um valor de representa- e diz-se diálogo, pois “a cidade é um discurso e
ção, ou seja, o que vemos na imagem não é o esse discurso é verdadeiramente uma linguagem”
objeto em si, mas apenas uma representação (BARTHES, 1993, p. 260), de tal modo que entender
bidimensional, em uma perspectiva histórica e a cidade pelas suas representações, é perceber
ideologicamente determinada” (AUMONT, 1995, esse discurso, essa linguagem e as reações
p.29–38 apud. SILVA, 2008, p. 91). Com recortes, históricas dentro do campo imagético e das
planos, sequências e montagens, o cinema cria experiências coletivas.
uma linguagem específica; sendo o ato de filmar
Dentro disso, cabe dizer que o cinema se revela um
um ato de apreciação e de síntese da representa-
instrumento oportuno para se debater a imagem
ção de um olhar sobre uma experiência. Notando
histórica da cidade, cabendo aqui destrinchar
que o cinema, ao registrar uma impressão do real,
esse aparato de representação criado para re-
não é neutro. Ele representa um ponto de vista16.
presentar um discurso urbano. Entendendo que
por destrinchar esse aparato, diz-se de tentar
14. MERLEAU-PONTY, 1996, p.69 apud. DIAS, 2015, p.37 compreender a forma como o diretor se apropria
15. MERLEAU-PONTY, 1996, p.74 apud. DIAS, 2015, p.36
da imagem fílmica para contar uma narrativa de
um cotidiano urbano. Assim, reivindica-se o prin-
16. Dizer que o cinema é natural, que ele reproduz a visão
natural, que coloca a própria realidade na tela, é quase como
dizer que a realidade se expressa sozinha na tela. Eliminando fala ou esse cinema, elimina-se também a possibilidade de
a pessoa que fala, ou faz cinema, ou melhor, eliminando a dizer que essa fala ou esse cinema representa um ponto de
classe social ou a parte dessa classe social que produz essa vista. (BERNARDET, 2010, s.p.)
EIXO TEMÁTICO 2 cípio da estrutura de narrativa visual referindo-se
às noções de imagem, atribuindo nela questões
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS relacionadas a representação e interpretação de
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES uma realidade. Valendo nesse ponto, sem tentar
esgotar um conceito tão amplo, contextualizar o
que se diz por interpretação de um filme, chamado
teoricamente de análise fílmica. Se trata de um
processo de crítico que se alinha com a revisão
sobre a crítica que se fundamenta sobre agregar
sentidos ao que se critica, proposta por Susan
Sontag (1964). Em seu texto Contra a interpreta-
ção, de 1964, a autora faz apontamentos sobre o
recorrente processo de interpretação das obras
de arte que visam atribuí-las de significados e
conteúdos, alertando para a necessidade de um
processo de interpretação crítica que se paute no
entendimento do objeto em si; e da necessidade
de captá-lo a partir dele e não de determinações
prescritivas. A autora, atenta que “a função da crí-
tica deveria ser mostrar como é que é, até mesmo
que é que é, e não mostrar o que significa”. (SON-
TAG, 1987, p.23). Posto isso, ao trazer a intenção de
interpretar um filme para entender uma narrativa
urbana, fala-se, nesse artigo, de um método de
análise que visa o meio dos extremos do que se
espera de uma imagem, onde se parte dela para
lhe chegar nela mesma, sem extrapolar os seus
limites de representação. Portanto, atribui-se
a ideia de analisar um filme, para esse debate,
à exploração de um método que questão é a de
interpretar a imagem cinematográfica a partir da
decomposição de sua linguagem, posto que “o fil-
me é o ponto de partida e deve ser o ponto de che-
gada da análise” (AUMONT e MARIE, 2010, p. 44).

Narrativa à deriva

Dentro dos aspectos expostos, cabe dizer que


existe uma infinidade de questões a serem lidas
em um longa-metragem. Entretanto, tendo em
vista que a intenção é explorar a imagem fílmica
como narrativa urbana, pensando na representa-
ção e na interpretação de uma realidade, foca-se
para esse artigo justamente o modo que se dá a
leitura tal narrativa. Aponta-se, então, para en-
tendimento, dois sistemas de imagens, um que diz
respeito ao filme em si, e um outro que é relativo
16º SHCU ao juízo que o próprio espectador forma partindo
30 anos . Atualização Crítica
do ato de ver o filme. O primeiro diz respeito a
1910 montagem da narrativa própria do longa-metra-
gem que é feita pelas imagens gravadas, sendo, aproximações que existem entre a forma que se
portanto, um sistema concreto da narrativa (o constrói essa narrativa visual e a própria constru-
que se está vendo). Já o segundo, diz respeito ção imagética da cidade que esta ali no filme, con-
da imagem mental que é formada pelo sujeito, siderando nisso as potências já expostas de ver o
tendo afinidade com o espectro subjetivo de uma filme como um instrumento de se debater cidade.
narrativa (o que se entende do que está vendo).
Assim, sem querer aprofundar unicamente em Para isso desenvolveu-se uma espécie de dia-
um desses, tem-se um princípio de compreender grama (figura 1) de análise para entender a forma
o espectador como um intermédio entre esses como essas imagens fílmicas se relacionam entre
dois, de modo que a proposta é expor a forma si. Falando, então, de analisar como as imagens
como o primeiro sistemas de imagem se constrói internas do filme, enquanto representações se
para então debater como se dá esse processo de relacionam dentro delas mesma, ou, de maneira
interpretação por parte do sujeito. simplificada, entender como as cenas do filme se
relacionam e se afetam para compor a estrutura
Nessa conformidade, a interpretação se limita, da narrativa visual. Visando entender qual a lógica
neste texto, compreender como o conjunto de que as cenas se organizam, esse processo de aná-
cenas expostas transcrevem a cidade real que lise é importante para compreender como a estru-
está representada, buscando traçar possíveis tura da narrativa se coloca para quem está a vendo.

Figura 1: diagrama das relações entre sequências narrativas do filme A Casa de Alice (2007). Fonte: produção do próprio
autor (2020)

Nesse diagrama (figura 1) em questão separou- dentro do filme e são fragmentos da narrativa
-se o filme em sequências narrativas, que nada total. No caso do filme, A casa de Alice, foram 80
mais são que o conjunto de cenas que possuem sequências separadas por tipos — sequências de
lógicas internas, ou seja, são ações que existem paisagem, sem diálogos e com diálogos — colo-
EIXO TEMÁTICO 2 cadas em um círculo, depois ligadas pensando
nas relações que essas sequências estabeleciam
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS entre si. Classifica-se, também, as relações em
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES três tipos: casualidade, onde as cenas dispõem de
um grau de causa-consequência e estabelecem
uma lógica em comum, como, por exemplo, a
história por trás da traição do marido de Alice; de
sequencialidade, quando as cenas são contínuas
uma das outras, no sentido temporal, num espaço
de tempo praticamente consequente ou muito
próximos; e por fim a que diz sobre referencial,
que é a relação que as cenas se estabelecem entre
eles sem necessariamente ser continua ou causal,
apenar faz a referência, é o mesmo lugar, a mesma
pessoa, mas sem estabelecer verdadeiramente
uma ordem narrativa linear propositiva.

Ao analisar essas reações entre as cenas, nota-se


de primeira que no filme se sobressai naquelas de
caráter referencial, que a princípio é algo esperado
de um filme, visto que a montagem acaba tendo
como foco criar um aspecto de continuidade in-
tencional durante todo o longa, além de se tratar
sempre do mesmo espaço, ou do mesmo persona-
gem, ou do mesmo objeto. Contudo, em um olhar
mais atento, há de se observar três questões.
Primeiro que não existem muitas relações de con-
tinuidade, ou seja, as sequências raramente são
continuadas temporalmente. Segundo, não existe
apenas uma relação de casualidade, há pelo me-
nos três, sendo, nesse sentido, fácil de se observar
que não existe uma linha causal que conduza a
narrativa do começo ao fim. Muitas vezes é de
se esperar que um filme, ao contar uma história,
tenha na sua narrativa um eixo condutor que, mes-
mo que tenha interferências de outras questões,
tenha um proposito minimamente conclusivo. Em
realidade, o que se revela são pequenas linhas de
histórias que são relacionáveis, mas não se con-
cluem. Isso, leva à terceira questão, há sequências
que existem, mas não exercem nenhum tipo de
relação direta entre outra. É interessante notar
que muitas vezes essas sequências de cenas
tem um peso consistente na história, com diálo-
gos e acontecimentos marcantes, mas que são
pouco continuadas ou relacionáveis com outras
cenas do filme. No máximo se passam no mesmo
lugar que um outra cena, porém não estabelece
uma conexão com as narrativas do filme, como
16º SHCU é a história de romance de Alice, ou a traição no
30 anos . Atualização Crítica
marido, ou ainda a questão da cegueira de Jacira.
1912 Em geral, apesar de não se estabelecerem de
modo conjunto as histórias que se contam, são comportamento experimental ligado às condições
essenciais para construção dos personagens, da sociedade urbana: técnica de passagem rápida
apresentando apenas fragmentos desconexos por ambiências variadas [...] 17 ” (INTERNACIONAL
de um todo. Uma lógica narrativa que define o SITUACIONISTA, 1958, s.p). Sem tentar esvaziar
próprio longa-metragem. esse conceito tão debatido do campo dos estu-
dos urbanos, circunscreve-se essa definição por
Nesse sentido, é visível que a narrativa conta entender que não convém tanto para texto aden-
principalmente com múltiplos pontos-chaves trar profundamente nessa questão, mas pensar
que atrai ora a história narrada para um contex- momentaneamente uma possível aproximação
to, ora para outro, ora puxa para algo que não entre este modo de vivenciar a cidade propostas
se relaciona com nada. O espectador ora está pela IS e os recursos narrativos que o longa A
mirando a relação de Alice com o marido, e logo casa de Alice se compõe.
depois os filhos conversando, depois volta para
Alice, logo já se inicia outro relato que pouco tem A Internacional Situacionista (IS) foi um coletivo
a ver com os outros, como é o caso da cegueira formado na Europa por artistas e intelectuais
de dona Jacira, por exemplo. Em outros termos, teóricos políticos. Teve sua atuação entre 1957
é mostrado uma porção de acontecimentos que e 1972, iniciando com o lançamento da revista
geram uma certa expectativa de que tudo se re- n.1 que, com aberta influência de movimentos
solva de alguma forma, mesmo que tragicamente. como Dada e Surrealismo, sustentavam ideia an-
Entretanto, a narrativa nos seus 92 minutos, inicia ticapitalista e contra a alienação social; tendo
uma série de relatos que em nenhum momento se uma aproximação com a experiência coletiva do
conclui, de modo a criar um ritmo de apreciação espaço urbano. Como aponta Jacques, “a crítica
lento, cujos fatos não têm necessariamente uma urbana situacionista teve efetivamente uma base
linearidade comum. teórica, sobretudo de observação e experiência
da cidade existente” (JACQUES, 2003, s.p.). Além
Outro ponto a se observar é que o filme tem uma disso, a autora ainda aponta, ao comentar as pu-
clareza na relação entre as cenas, no sentido que blicações de Guy Debord, um dos fundadores da
é claro o que ele quer estabelecer ali. É a vivência IS, que “a tese central situacionista era a de que,
cotidiana e urbana das personagens que está por meio da construção de situações se chegaria
sendo contada. Entretanto, como se nota pelo à transformação revolucionária da vida cotidia-
diagrama (figura 1), a construção desse caminho a na” (JACQUES, 2003, s.p.). Para tal construção
ser percorrido pelos relatos te convida a percorrer de situações o grupo fundou certos conceitos
a narrativa de uma maneira a ver acontecimentos, e práticas, e uma delas é a que denominou de
mesmo que em uma ordem cronológica linear, sem dérive (deriva).
um rumo específico, apenas sendo guiado pelo
que está aparecendo em tela. Atentando que isso Posto isso, como dito, esse artigo justamente
não significa que o filme seja uma deambulação se aproxima desse conceito mais do que outros
sem sentido por eventos aleatórios na vida de tantos criados pela IS, então, nesse entendimen-
uma família, afinal, existe um claro recorte tem- to, Monte (2015), ao debater sobre a processo
poral, em um período que é seriado, e, como se da deriva situacionista pelas falas de Debord,
nota pelo diagrama, com cenas que estabelecem consta que:
verdadeiras conexões umas com as outras.
A realização da deriva pretende suscitar
Assim, cabe entender que a narrativa, dentro des- hipóteses, e não necessariamente resol-
se sistema de imagem que se constrói no filme, é vê-las (DEBORD, 1975, p. 58). A intenção
feita para que quem a veja seja levado por acasos é percorrer a cidade com a finalidade de
guiados, onde apesar de uma intenção clara, de fazer emergir dela elementos relativos ao
expor vivências urbanas de sujeitos, são constan-
temente tiradas do prumo. Nesse sentido, vale ir 17. Tradução nossa “dérive A mode of experimental behavior
ao encontro do conceito de deriva, e mais espe- linked to the conditions of urban society: a technique of rapid
cificamente na deriva situacionista descrita pela passage through varied ambiances […]” (INTERNACIONAL
revista IS n. 1, em 1958, como sendo “um modo de SITUACIONISTA, 1958, s.p)
EIXO TEMÁTICO 2 acaso do passeio, como a organicidade de
paisagem urbana, as espontâneas situa-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS ções cotidianas e a efervescência própria
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES do trânsito dos indivíduos, ou seja, a vida
citadina em sua forma legítima. A diferença
do trajeto de deriva para o caminhar habi-
tual está na abertura do participante para
as questões da geografia afetiva da cidade,
nesse sentido “os acasos da deriva são fun-
damentalmente diferentes dos do passeio”
[...] (MONTE, 2015, p.xx).

Atentando essa específica diferença que o au-


tor faz entre passeio e deriva, onde a segunda
pressupõe uma relativa interferência das afeti-
vidades do participante com espaço que ele está
percorrendo. Do mesmo modo, a estrutura da
narrativa que se nota no filme A casa de Alice não
se revela com um simples percurso com início,
meio e fim, mas sim uma incursão que convida
a ser afetado pelas situações cotidianas que ali
são mostradas. Tal qual é a deriva situacionista,
a imagem da cidade que Chico Teixeira está
apresentando é senão outra, o urbano que cria
situações e te convida a percorre-las sem uma
finalidade concreta e objetivas; somente pelo
deleite de se fazer emergir dali ressonâncias e
sentimento relativos aos acasos registrados em
tela. Do mesmo modo que a realização da deriva
pretende suscitar hipóteses, e não necessariamen-
te resolvê-las, o cotidiano de Alice não interessa
tanto pela potência das ações se resolverem em
um final, mas pela experiência de vivenciar junto
aos personagens aquela ação.

Nesse aspecto, a narrativa do filme aproximado


aos entendimentos expostos, cria um locus no
período de duração do longa cujo ritmo é de uma
experiência derivante. Se vivencia instantes da
monotonia caótica que é a vida daquelas pessoas
visando não resolver nada, apenas ser inventivo
e imaginar as lacunas daquilo que se registrou.
Isso se faz explícito quando o diretor deixa o final
dos personagens em aberto. Ao ser perguntado
sobre isso, Chico Teixeira diz que as personagens
estão sempre esperando por algo que ainda vai
acontecer:

Não só as personagens, mas a gente tam-


16º SHCU bém está sempre numa espera, sempre
30 anos . Atualização Crítica
em busca do que está por vir. O filme todo
1914 é esse esperar para que as circunstâncias
digam às personagens por onde elas devem não são gratuitamente sobrepostos. Cada cama-
ir. Escrever o começo e o final de uma trama da, parte ou fragmento tem seu sentido de guia.
é sempre muito difícil. O final em aberto Orienta a narrativa para um caminho sem ser ne-
dá margem à imaginação do espectador. cessariamente limitante. O filme possibilita que
Cada dia alguém pode assistir ao filme e o observador chegue em uma imagem de cidade,
imaginar uma coisa diferente. Depende do de um cotidiano urbano, que é próprio de sua
dia, do humor, das dificuldades que a pes- percepção; possibilitando que ele, a partir do seu
soa está passando naquele exato momento universo sensível, derive dentro daquela pequena
em que assiste ao filme. Muitas pessoas fração de registro de tempo e tire disso as suas
se identificam com os dramas familiares, próprias conclusões. A cidade que se tem ali é
que inúmeras vezes estão escondidos na essa, a São Paulo de Alice, de seus filhos e sua
história de cada um de nós, mas que rara- família, mas é também uma São Paulo tocada pelo
mente conversamos com alguém. Vivemos espectador, que adentrando pelo seu universo,
muito na superfície das coisas. (Teixeira, e dentro daquela narrativa visual de uma cidade
2008a, s.p) real, se deixou derivar.

Considerações fInais

Considerando como verdadeira a relação intrín-


seca entre o cinema e o espaço da cidade, as
narrativas estruturadas pela linguagem do cine-
ma se baseia nos fenômenos do viver social; no
vínculo existente entre sujeitos nos espaços que
eles habitam. Em função disso, seja tais espaços
levados em tela relacionados com uma cidade
real ou outra fictícia, é de se notar que o cinema
quando imerge a sua linguagem dentro dessa
tarefa de presentificar um viver real, para além
de mostrar a materialidade dos espaços, traz
atributos e significados que compõe um possível
imaginário do que está sendo representado.

No caso específico de A casa de Alice, a forma


como a narrativa se constrói é de algum modo
reflexo de um possível entender e ler a cidade real
que está ali. Existe uma similitude, mesmo que
não intencional, aliás, claramente não intencional
de levar o processo de apreensão do filme a uma
aproximação de um viver o espaço urbano que
é uma vivência em deriva. Os personagens são
construídos dessa foram, sem um rumo exato,
apenas apreendendo e reagindo aos fluxos. A
narrativa é exatamente assim, pontos-chaves
de atração de sociabilidades que são guiados
por força que é fragmentada e múltipla. O filme
é, tal qual o espaço urbano que ele representada,
para ser apreendido por um tempo lento e guiado
por uma imprevisibilidade que é senão outra a
mesma de uma deriva urbana. A cidade que está
ali representada é um território fragmentado que
EIXO TEMÁTICO 2 REFERÊNCIAS
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EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Neste artigo pretendo analisar a trajetória do
projeto e construção do bairro de Marechal Her-
mes, considerado um dos primeiros bairros pla-
vídeo-pôster nejados do país. Ainda que apresente uma pers-
pectiva linear histórica, optou-se por organizar
metodologicamente este trabalho a partir da
O BAIRRO DE MARECHAL relação entre planos, práticas e representações
exploradas por Lefebvre (2000 [1974]). Desta
HERMES: OÁSIS ENTRE OS forma, na primeira parte, apresenta-se o espa-
ço concebido, que é o idealizado por arquitetos
SUBÚRBIOS CARIOCAS e urbanistas, engenheiros e políticos. Aqui, ana-
lisa-se o período de formação do bairro desde o
lançamento de sua pedra fundamental, no ano
THE NEIGHBORHOOD OF MARECHAL HERMES: OASIS de 1911 até a retomada das obras em 1933 no
ON THE SUBURBS OF RIO DE JANEIRO governo Vargas, através dos Institutos de Pen-
sionistas e Aposentados. Com relação ao espa-
EL BARRIO DE MARECHAL HERMES: OASIS ENTRE LOS ço vivido, que corresponde às práticas urbanas
SUBURBIOS DEL RIO DE JANEIRO vivenciadas, são apresentadas as apropriações
de lazer do bairro e seus conflitos com o progra-
ma Rio Cidade em 2003. Finalmente, a leitura do
OJANA, Jessica
espaço percebido, entendido a partir da apre-
Arquiteta e Urbanista; Mestranda em Sociologia e ensão de sentidos sobre o espaço, apresenta-
Antropologia (PPGSA/UFRJ)
-se alguns apontamentos sobre o patrimônio e
jessica.ojana@gmail.com
a memória social local, cuja análise pretende-se
avançar nas próximas etapas da pesquisa de
mestrado. Articuladas, essas categorias cons-
tituem importantes entradas analíticas que per-
mitem abordar as diferentes escalas e tempora-
lidades da produção do espaço urbano.

URBANISMO BAIRRO MARECHAL HERMES


SUBÚRBIO CARIOCA

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1918
ABSTRACT RESUMEN

In this article, I intend to analyze the path of the En este artículo pretendo analizar la trayectoria
Project and construction of the Marechal Her- del proyecto y construcción del barrio de Mare-
mes neighborhood, considered the first planned chal Hermes, considerado el primer barrio obrero
working-class neighborhood of the country. Alh- planificado de Brasil. Auque presente una pers-
tough it presents a historical linear perspective, pectiva lineal histórica, se optó por organizar me-
this work has been organized methodologically, todológicamente este trabajo a partir de la rela-
observing the relationships between plans, prac- ción entre planes, prácticas y representaciones
tices and representations, explored by Lefeb- exploradas por Lefebvre (2000 [1974]). Así, en la
vre (2000 [1974]). Therefore, in the first part, the primera parte, se presenta el espacio concebido,
conceived space, idealized by architects and que es idealizado por arquitectos y urbanistas, in-
city planners, engineers and politicians, is pre- genieros y políticos. Aquí se analiza el período de
sented. Still in the first part, the period of the formación del barrio, desde la colocación de su
neighborhood’s formation, since the laying of its primera piedra en 1911 hasta la reanudación de las
foundation stone, in 1911, until the resuming of obras en 1933 bajo el gobierno de Vargas, a través
the construction, in 1933 during the Vargas ad- de los Institutos de Pensionados y Retirados. En
ministration through the Instituto of Pensionis- cuanto al espacio vivido, que corresponde a las
tas e Aposentados, is analyzed. Regarding the prácticas urbanas vividas, se presentan las apro-
lived space, corresponding to the urban prac- piaciones de ócio del barrio y sus conflictos con el
tices experienced, the leisure apropriations of programa Rio Cidade en 2003. Finalmente, la lec-
the neighborhood and its conflicts with the Rio tura del espacio percibido, entendido a partir de
Cidade program in 2003, are presented. Lastly, la aprehensión de significados sobre el espacio ,
the reading of the perceived space, understood se presentan algunas notas sobre el patrimonio y
from a perspective of aprehension of the space’s la memoria social local, cuyo análisis se preten-
meaning, presents some notes about heritage de avanzar en las próximas etapas de la investi-
and local social memory, which its analysis are gación del máster. Articuladas, estas categorías
intended to advance in the next stages of resear- son importantes insumos analíticos que permiten
ch of the Master’s degree. These categories, once abordar las diferentes escalas y temporalidades
structured, consist in important analytical input de la producción del espacio urbano.
that allow for addressing the different scales and
temporalities of urban space production.
URBANISMO BARRIO MARECHAL HERMES
SUBURBIO
URBANISM NEIGHBORHOOD MARECHAL HERMES
SUBURBIO
EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
Em abril de 2018, a divulgação de um evento mo-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
vimentou as redes sociais cariocas. A estreia da
Batata de Marechal Hermes em uma lanchonete
de Botafogo, Zona Sul da cidade, gerou polêmi-
vídeo-pôster
ca entre os internautas. A página “Suburbano
da depressão” resumia o debate: de um lado,

O BAIRRO DE MARECHAL moradores suburbanos se perguntavam por que


a galera folgada da Zona Sul não poderia sair um
HERMES: OÁSIS ENTRE OS pouco da sua bolha e pegar o trem para comer a
batata em Marechal. De outro, tal evento servi-
SUBÚRBIOS CARIOCAS ria para mostrar que o Rio também é suburbano.
Dentre os comentários havia desde aqueles que
brincavam que a batata seria gourmetizada até
THE NEIGHBORHOOD OF MARECHAL HERMES: OASIS os que não queriam a presença da zona sul con-
ON THE SUBURBS OF RIO DE JANEIRO taminando o subúrbio.

EL BARRIO DE MARECHAL HERMES: OASIS ENTRE LOS Os termos utilizados nessa discussão trazem à
SUBURBIOS DEL RIO DE JANEIRO tona algumas disputas sobre a produção e re-
presentação urbana do Rio Janeiro. A bolha da
Zona Sul como espaço privilegiado da cidade e
o suburbano, que ao mesmo que tempo que se
apresenta como excluído, é também aquele que
guarda fortes traços culturais constituintes da
identidade carioca. O bairro de Marechal Hermes,
que se apresenta como lócus dessa disputa, é
colocado ali como típico bairro suburbano, fora
do Rio dos cartões postais.

O subúrbio carioca é comumente retratado como


um lugar formado a partir pelas relações entre
proletariado, trem e indústrias (ABREU, 1987),
cuja imagem está associada a áreas degradadas,
abandonadas e perigosas, um espaço à margem
do Estado. Alguns estudos, no entanto, mostram
como a presença estatal foi marcante no final do
século XIX e meados do século XX, sendo os su-
búrbios espaços de experimentação que estavam
nas matrizes da política urbana do Brasil (FER-
NANDES, 2011). O bairro de Marechal Hermes é um
desses espaços, considerado o primeiro bairro im-
plantado como uma “Vila Proletária” (IRPH, 2016).

O artigo aqui apresentado faz parte da pesquisa do


mestrado que se propõe a investigar as relações
entre produção e representação social do espaço
suburbano na cidade do Rio de Janeiro. Neste
exercício, pretendo analisar a trajetória do projeto
16º SHCU e construção do bairro de Marechal Hermes, por
30 anos . Atualização Crítica
meio da análise das intervenções do Estado, a
1920 partir da relação entre planos, práticas e repre-
sentações exploradas por Lefebvre (2000 [1974]). uma dimensão diferenciada que merece uma
análise mais apurada por tratar-se do primeiro
Na primeira parte, apresenta-se o espaço con- grande projeto habitacional planejado com in-
cebido, que é o idealizado por arquitetos e urba- fraestrutura de serviços públicos financiada pelo
nistas, engenheiros e políticos. Aqui, analisa-se Estado2. Nesta trajetória, interessa destacar os
o período de formação do bairro desde o lança- discursos mobilizados, contradições e conflitos de
mento de sua pedra fundamental, no ano de 1911 classe na construção do bairro, mostrando a que
até a retomada das obras em 1933 no governo e a quem serviam essas políticas habitacionais.
Vargas, através dos Institutos de Pensionistas
e Aposentados. Com relação ao espaço vivido, A construção remonta ao período de formação da
que corresponde às práticas urbanas vivencia- República no início do século XX, durante o gover-
das pelos habitantes, são apresentadas as apro- no do Marechal Hermes da Fonseca3.  Ainda que a
priações de lazer do bairro e seus conflitos com pedra fundamental do projeto tenha sido colocada
o programa Rio Cidade em 2003. Finalmente, a em 1º de maio de 1911, o ano de 1913 é considerado
leitura do espaço percebido, entendido a partir da o da fundação do bairro por ser data da inaugu-
apreensão de sentidos sobre o espaço, apresen- ração de sua Estação Ferroviária4 O núcleo do
ta-se alguns apontamentos sobre o patrimônio e bairro ainda preserva muito do desenho original
a memória social local, cuja análise pretende-se projetado pelo tenente-engenheiro Palmyro Serra
avançar nas próximas etapas da pesquisa de mes- Pulcherio, cuja concepção urbanística seguia
trado. Articuladas, essas categorias constituem muito de preceitos do movimento modernista
importantes entradas analíticas que permitem brasileiro: traçado regular, vias e calçadas amplas
abordar as diferentes escalas e temporalidades e arborizadas e edificações de baixo gabarito
da produção do espaço urbano. setorização entre espaços habitacionais, comer-
ciais, equipamentos públicos (escola, posto de
saúde, praças, teatros e cinemas) e áreas de lazer.
O ESPAÇO CONCEBIDO: DE VILA PROLETÁRIA
À CONJUNTO HABITACIONAL que foram erguidas em 1926, no Recife, pela Fundação A
Casa Operaria (1994, p.14)

As origens da habitação social no Brasil remetem 2. Uma outra vila proletária foi projetada neste período, a
à Era Vargas (1930-1954), período no qual pela vila Orsina da Fonseca na Gávea, porém em dimensões bem
primeira vez a questão da moradia foi assumida menores que o projeto da vila Marechal Hermes. Chegou-se a
pelo Estado e pela sociedade como uma questão anunciar a construção de mais uma vila, em Manguinhos, po-
rém o projeto nunca saiu do papel (Fernandes e Oliveira, 2010).
social (BONDUKI, 1994). No período liberal da Re-
pública Velha (1889-1930), a solução habitacional 3. O governo de Marechal Hermes da Fonseca foi instável,
ficava a cargo principalmente da iniciativa privada marcado por uma série de revoltas populares e conflitos
que investia em um mercado de locação para com as oligarquias. Em oposição a campanha civilista de
diferentes perfis e faixas de renda e o Estado se Rui Barbosa, Hermes da Fonseca se lançou à candidatura
mostrava ausente tanto da produção quanto da com a campanha da “política das salvações”, cujo discurso
era o de combater a corrupção e as fraudes eleitorais. Eleito
regulamentação, em especial no controle dos
em 1910, a política das salvações representou a substituição
valores de alugueis.
de oligarquias por interventores ligados ao presidente,
a maioria militares, como forma de ampliar sua base de
Ainda que sejam feitas referências a produção de
governo. Também em seu mandato ocorreu a Revolta da
vilas operárias por iniciativa estatal, poucos estu-
Chibata, liderada por João Cândido, que reivindicava o fim
dos dão ênfase à construção da vila de Marechal dos castigos físicos e melhorias nas condições de trabalho
Hemes1. O projeto desta vila, no entanto, possui dos marinheiros. Apesar de prometer ceder às pautas do
levante, o governo traiu o movimento demitindo ou pren-
dendo muitos dos amotinados, ou ainda enviando-os para
1. Bonduki argumenta que a produção do Estado nesse
campos de trabalho nas plantações de borracha na Região
período foi ínfima e iguala o exemplo da vila de Marechal
Norte do país.
Hermes à outras iniciativas menores, como as 120 unidades
habitacionais da Avenida Salvador de Sá, construídas em 4. A data de 1º de maio continuou mantida como sendo a
1906 por Pereira Passos, no Rio de Janeiro, e as 40 casas de fundação do bairro, em função do dia do trabalhador.
EIXO TEMÁTICO 2 Fundado em meio a uma série de equipamentos e
instalações militares, em terrenos desmembrados
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS do Exército, o bairro foi projetado para abrigar
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES quase 5.000 pessoas, prevendo a construção de
738 edifícios de um ou dois pavimentos e também
imóveis comerciais, institucionais e rurais. Além
das residências, havia uma preocupação com os
equipamentos públicos da vila, em especial de
educação, que seriam localizados no seu centro
geográfico. Assim, a proposta envolvia a constru-
ção de escolas profissionais e primárias (separan-
do em homens e mulheres), correios e telégrafos,
sociedade de tiro, mercado, corpo de bombeiros,
delegacia de polícia, hospital, maternidade, cre-
che, jardim de infância, reservatório de água,
sede para a prefeitura, assistência, biblioteca,
enfermagem e teatro (IRPH, 2016).

Figura 1: Projeto original da vila proletária de Marechal


Hermes, concebido em 1911. Fonte: Biblioteca Nacional.
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1922
Poucos estudos analisam o processo de con- uma falsa questão, uma vez que o problema não
cepção e construção dessa vila, sendo a tese do está simplesmente na disponibilização de imó-
geógrafo Alfredo de Oliveira uma das principais veis. Apontando questões como o endividamento
referências no tema, ao fazer uma análise compa- dos trabalhadores, dependência em relação aos
rativa dos processos de urbanização e habitação patrões e a perda de mobilidade, Engels mostra
no período de Hermes-Vargas. Oliveira (2009) como essas soluções na realidade só mascaravam
aponta que a construção da vila representou um o problema, ao invés de realizarem uma reflexão
movimento de conciliação entre a burguesia e o estrutural da questão.
proletariado da época, como forma de impedir o
conflito entre classes e contando com o apoio dos Na realidade, a burguesia tem apenas um
sindicatos “amarelos” 5 e da imprensa burguesa da método para resolver à sua maneira a ques-
época. Junto ao projeto da Vila, foi elaborado um tão da habitação — isto é, resolvê-la de tal
estatuto aos futuros moradores com uma série forma que a solução produza a questão
de regras de convivência: sempre de novo. Este método chama-se
Uma destas normas impedia qualquer tipo de “Haussmann”. Por «Haussmann» entendo
ofício dentro das residências, o que obrigava o também a prática generalizada de abrir bre-
trabalhador a retirar seus recursos unicamente chas nos bairros operários, especialmente
da venda da sua força de trabalho. Outra era fazer nos de localização central nas nossas gran-
o patrão o fiador do imóvel, o que fazia com que o des cidades, quer essa prática seja seguida
aluguel fosse descontado na fonte. Desta forma, o por considerações de saúde pública e de em-
controle da força de trabalho nas vilas de Hermes belezamento ou devido à procura de grandes
da Fonseca era mais audacioso do que aquele áreas comerciais centralmente localizadas
perpetrado por Getúlio Vargas, pois começava ou por necessidades do trânsito, tais como
dentro da casa dos trabalhadores e estendia até vias-férreas, ruas, etc. O resultado é em toda
a fábrica. (OLIVEIRA, 2009). a parte o mesmo, por mais diverso que seja
o pretexto: as vielas e becos mais escan-
O surgimento das vilas proletárias se dá num con- dalosos desaparecem ante grande auto-
texto de lutas por melhores condições de vida
glorificação da burguesia por esse êxito
para o trabalhador 6. Em resposta, a propaganda
imediato mas... ressuscitam logo de novo
oficial do governo apresentava o projeto da vila
em qualquer lugar e frequentemente na
como solução para a questão habitacional da
vizinhança imediata (ENGELS, 2016 [1872])
época, prometida desde sua campanha eleitoral
(IRPH,2016). De acordo com Engels (2016 [1872]),
Como nos lembra Harvey, a questão que Engels
a escassez da moradia é um produto e uma insti-
descreveu se repete por toda a história. No caso
tuição necessária de manutenção da forma bur-
de Marechal Hermes não foi diferente. Com o
guesa da sociedade. Ao criticar tanto as soluções
fim do governo de Hermes da Fonseca e a crise
reformistas do socialismo burguês, na figura de
econômica antes da Primeira Guerra Mundial,
Proudhon, quanto a solução burguesa para a crise
habitacional, que propunha a transformação do apenas 165 imóveis foram construídos. Durante
trabalhador em proprietário e uma política de o período em que a vila ficou desocupada, um
construção de vilas operárias pelo Estado, En- novo loteamento surgiu na região, formado por
gels aponta que na verdade a falta de moradia é operários que trabalhavam nas áreas militares
e na construção da própria vila proletária7. Cabe
destacar que neste mesmo período ocorriam as
5. Nome dado às lideranças sindicais interessadas na defesa
remoções de moradores do Morro do Castelo e
de seus próprios interesses e não os da classe trabalhadora,
que as habitações da Vila seriam a eles destina-
por adotarem uma posição conciliadora e serem contrários
às greves. das, fato que não ocorreu, sendo os primeiros

6. A formalização dessas lutas se dá no IV Congresso Operá-


rio (de 1912), onde se reivindicaram várias questões sociais, 7. Mais tarde este núcleo ficou conhecido como “Portugal
dentre elas a educação, a moradia operária e a jornada de Pequeno” por conta da forte presença de imigrantes por-
trabalho de oito horas (OLIVEIRA, 2009, p. 35). tugueses (IRPH, 2016).
EIXO TEMÁTICO 2 ocupantes funcionários públicos do governo8.

HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS No governo Vargas, em franco processo de indus-


DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES trialização do país, o domínio da área do terreno
da Vila foi transferido ao Instituto de Previdência
dos Funcionários Públicos da União9, que anunciou
a conclusão das obras das casas abandonadas.
Em 1933, foi lançado um concurso público para
elaboração de um plano de ação habitacional na
Vila, que passou a ser denominada Vila Três de
Outubro). Porém, os dois projetos apresentados
foram recusados pelo júri já que segundo a equipe
avaliadora10 as propostas não inovavam e tampou-
co apresentavam soluções de infraestrutura para
o local (FERNANDES e OLIVEIRA, 2010). Neste
período, realizou-se a construção de um coreto
e de um cinema para “proporcionar aos seus mo-
radores diversões noturnas, e evitar o êxodo da
população para outros centros de diversão, com
grave prejuízo para a vida e o comércio do lugar”
(O Globo, 1934).

Depois de mais dez anos de abandono, em 1944,


o IPASE finalmente recomeçou as obras entre
elas a construção do Teatro Armando Gonzaga,
projeto modernista do arquiteto Affonso Eduardo
Reidy e jardins de Burle Marx, e do coreto da pra-
ça, também de autoria de Reidy. As demais obras
ocorreram principalmente entre as décadas de
1950 e 1960, tendo como foco a produção habita-
cional, inclusive sendo algumas praças e escolas
do projeto original substituídas por mais unidades
habitacionais. No próximo tópico, apresenta-se
algumas considerações a respeito das práticas
desse espaço nos últimos anos, compreendendo
a nível cotidiano de que forma se deram algumas
das disputas com relação às materialidades cons-
truídas na primeira metade do século XX.

8. Interessante assinalar, como mostra Oliveira, a fala do


então idealizador do projeto da vila, o engenheiro Palmyro
Pulcherio: “ ‘Que lucraram os operários? Nada’ (Lobo, 1989,
p. 99). Proferidas meses antes de morrer, em 1914, o dizer de
Pulcherio marca o seu desencanto com o governo de Hermes
da Fonseca, que revela as práticas clientelistas não só deste
governo, mas do Estado brasileiro.” (OLIVEIRA, 2009, p. 90).

9. Fundado em 1927, o Instituto foi transformado em Instituto


de Pensões e Aposentadorias dos Servidores do Estado
(IPASE), em 1938.
16º SHCU
10. A equipe avaliadora incluía Affonso Eduardo Reidy (ar-
30 anos . Atualização Crítica
quiteto), Celso Kelly (presidente dos Artistas Brasileiros),
1924 Atílio Gomes e Saturnino de Brito (engenheiro).
O ESPAÇO VIVIDO: PRÁTICAS DE LAZER inclusive mobilizou moradores para a recolocação
E O PROGRAMA RIO CIDADE do monumento12. Outra intervenção foi a retirada
das duas quadras esportivas da praça, que fez
com que os moradores tenham encontrado outra
A praça XV de Novembro é a principal praça de
Marechal Hermes. Localizada no centro do seu forma de jogar suas partidas, improvisando uma
núcleo projetado, é um espaço frequentado pe- rede de vôlei na praça. Todavia, a intervenção
los moradores como local de encontro, saída de mais questionada foi a retirada do coreto. À épo-
escola e realização de atividades recreativas e ca, a justificativa da Prefeitura era que haveria
culturais. No ano de 1998, o bairro foi selecionado a instalação de outro, no entanto os moradores
para a segunda fase do programa Rio Cidade, ten- defendiam o retorno do coreto antigo, local de re-
do esta praça como principal foco de intervenção. alização de uma série de encontros e festas, como
carnaval, festa junina e natal. Somente dez anos
Implementado de 1993 a 2000 nas gestões de após sua demolição e por conta das frequentes
César Maia e Luiz Paulo Conde, o programa se pressões da associação de moradores, o coreto
estruturou da seguinte forma: escritórios de ar- foi reconstruído em 2013.
quitetura eram selecionados para trabalharem
propostas para determinados eixos comerciais
e centros de bairros da cidade, através de um
concurso público. Tendo como subtítulo “o urba-
nismo de volta às ruas”, defendia qualificação da
cidade já existente, na escala da rua, em oposição
aos princípios do urbanismo moderno e ao plane-
jamento urbano tradicional. No discurso oficial,

evitaram-se, assim, o idealismo e a abstra-


ção, a megalomania e as soluções totalizan-
tes, a falta de sintonia com as forças vivas
da sociedade e as proposições politicamen-
te inviáveis, as rupturas traumáticas, as
grandes “cirurgias” e os altos custos sociais 1957
do “passar a borracha” sobre o existente
para a construção do novo (IPLANRIO, 1996.
p.25).

No caso de Marechal Hermes, no entanto, não


foi bem assim. Entre as transformações11, houve
a criação de uma rótula central da praça - que
originalmente era cortada ao meio pela avenida
principal - gerando conflito com os moradores
por retirar uma série de equipamentos da praça.
Uma delas foi a retirada do busto de Hermes da
Fonseca, considerado o patrono do bairro, o que

11. Em consulta realizada na biblioteca do IPP acerca do 1994


projeto Rio Cidade para Marechal Hermes encontrou-se
apenas um caderno de estudo preliminar com croquis e
desenhos técnicos de autoria do escritório de arquitetura
Cláudio Cavalcanti, datado de março de 1998. Com relação
ao mobiliário, são apenas indicados nos croquis as áreas
para implantação de quiosques de alimentação no centro
da praça e áreas de lazer da população adulta e da popu- 12. A reinauguração ocorreu em 2011 e contou com descen-
lação estudantil. dentes da família do Marechal.
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

2003

2013

Figura 2: Construção-demolição-reconstrução do coreto.


Fonte:http://ashistoriasdosmonumentosdorio.blogspot.
com/

No programa Rio Cidade, os projetos exploravam


ações pontuais em determinado eixo comercial,
demarcadas em poligonais, que servissem de
referência e inspirassem as demais áreas do bair-
ro13. Aqui podemos perceber como a negação do
planejamento e afirmação da ação projetual vai
ao encontro da discussão sobre a fragmentação

13. Como analisa BARANDIER (2015), noções tais como


“metástase urbana”, “contaminação positiva”, “acupun-
tura urbana” (PORTAS, 2000; PINHEIRO MACHADO, 2003;
MOREIRA, 2007), eram utilizadas como arcabouço con-
ceitual das intervenções pontuais do Rio Cidade, que tinha
16º SHCU
como referência a experiência de Barcelona. No entanto,
30 anos . Atualização Crítica
os desdobramentos dessas iniciativas foram praticamente
1926 irrelevantes, principalmente no Rio Cidade II. (ibid, p. 138)
da pós-modernidade. Como nos apresenta Harvey da arquitetura. Ao adotar soluções específicas
(2000 [1992]), no pós-modernismo o tecido urbano e de “embelezamento”, o programa não atentou
passa a ser visto como “palimpsesto” e “colagem”, para questões estruturais e desigualdades no
sendo o projeto urbano encarado como uma peça tratamento da cidade, em especial se olharmos
independente e autônoma em uma crítica a con- para as diferenças entre o design dos mobiliários
cepção modernista. Em Urbanismo em fim de urbanos construídos para bairros da zona norte e
linha (2001 [1998]) no entanto, Otília Arantes, nos bairros da zona sul do Rio de Janeiro. Ademais, na
mostra como a ação de arquitetos e urbanistas contramão da justificativa do discurso oficial do
através desses projetos fragmentados acabariam programa, construía-se, neste mesmo período, a
revelando sua face oculta: a manutenção do status Linha Amarela, um dos principais vetores de ex-
quo de maneira a camuflar conflitos e não atuar pansão da cidade para a Barra da Tijuca, símbolo
no debate sobre a produção de espaços desigual: do modelo modernista e sua lógica rodoviarista
(BARANDIER,2015).
Tudo isso era fruto de um esforço de sal-
vação da cidade e, com ela, da urbanidade,
quem sabe até de uma vida pública perdida,
conduzido discretamente, passo a passo, O ESPAÇO PERCEBIDO: A INSERÇÃO DE MARECHAL
por assim dizer, em migalhas, a partir de
pontos nevrálgicos, escolhidos a dedo, seja
NO IMAGINÁRIO SUBURBANO
por sua deterioração, seja ao contrário, pelo
significado que poderia se revestir para A partir da análise dos conflitos que se estabe-
a população local, servindo de ponto de lecem no nível do cotidiano do bairro e que tem
irradiação (dado origem a uma metásta- relação com seu espaço concebido, é possível
se benigna, na expressão de Bohigas) que organizar algumas questões que se desdobram na
viesse a requalificar o entorno -ipso facto, representação do espaço. No ano do seu cente-
a relação das pessoas com o seu espaço e nário, Marechal Hermes passou a ser reconhecida
entre elas. (ARANTES, 2001, p. 135) pela Prefeitura como patrimônio cultural do Rio
de Janeiro, através da criação de uma Área de
Na literatura contemporânea, uma nova agenda Proteção do Ambiente Cultural (APAC). Segundo
antropológica voltada para a análise das infra- o decreto14 assinado pelo prefeito Eduardo Paes,
estruturas urbanas vem sendo construída e se um dos principais objetivos da criação foi a pre-
propõe a discutir novas possibilidades metodoló- servação dos bens culturais que constituem um
gicas de abordar as materialidades. São estudos “valioso testemunho das várias fases de ocupação
etnográficos que pretendem “pensar as capaci- do bairro” (IRPH, 2016), incluindo a importância
dades metafóricas da infraestrutura junto com do projeto de construção da vila proletária para
suas formas materiais, e pensar essas formas a ocupação do subúrbio carioca
materiais também com suas capacidades de gerar
aspirações e expectativas, esperas e abandonos” Expandindo a análise de Lefebvre, utilizo também
(APPEL, ANAND E GUPTA, 2014). os estudos da antropóloga Setha Low (2017) que
buscam articular as dimensões culturais e espa-
A leitura de Abdou-Maliq Simone faz parte dessa ciais sob a ótica da antropologia, considerando o
agenda e desafia pensar a cidade através de ou- valor da etnografia para compreender os fenôme-
tros sistemas. Em sua definição, a infraestrutura
nos urbanos. Com base numa extensa revisão da
deve ser concebida para além da além dos termos
literatura sobre os conceitos de espaço e lugar
físicos e materiais, considerando que as atividades
a partir da diferentes campos de conhecimento
das pessoas na cidade também são constituidoras
(desde a geografia, a arquitetura, a filosofia, a
do urbano. Assim, as infraestruturas são compre-
antropologia e a arqueologia) e de uma série de
endidas como complexas combinações de obje-
tos, espaços, pessoas e práticas (SIMONE, 2004).
14. Decreto nº 37069, de 29/04/2013, publicado no Diá-
O exemplo de Marechal Hermes nos mostra como rio Oficial do Município do Rio de Janeiro em 30/04/2013.
o desenho urbano dissassociado das práticas e D i s p o n í v e l e m: < h t t p: w w w. r io. r j.g o v. b r/d l s t a -
das relações sociais é uma condição alienante tic/10112/4359002/4107809/Dec.APACM.H..pdf>.
EIXO TEMÁTICO 2 estudos de pesquisas etnográficas, a antropóloga
defende o conceito de espacialização da cultura
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS e organiza metodologicamente seus estudos a
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES partir de em duas frentes: de um lado, a produção
social do espaço, que possui uma ênfase mais
materialista, observando “os fatores - sociais,
econômicos, ideológicos e tecnológicos - que
resultem, ou busquem resultar, na criação física
do material” e de outro lado, a análise da cons-
trução social, com destaque para a experiência
fenomenológica do espaço, permeada por pro-
cessos sociais como troca, conflito e controle.
Nas palavras da autora:

At its core, spatializing culture is a dialogic


process that links the social production of
space and nature and the social development
of the built environment (King 1980, Lefebvre
1991, Low 1996, Smith 1984) with the social
construction of space and place meanings
(Kuper 1972, Lawrence and Low 1990, Rodman
1992, Rotenberg and McDonogh 1993, Pellow
1996, 2002). [...] The materialist emphasis
of social production is useful in defining the
historical emergence and political econo-
mic formation of urban space, while social
construction refers to the transformation of
space through language, social interaction,
memory, representation, behavior and use
into scenes and actions that convey mea-
ning. Both are contested and fought over for
economic, political and ideological reasons
(Low 1996, 2000:8) (LOW, 2016, p. 7).

O campo da antropologia urbana remonta à déca-


da de 1960, principalmente a partir de desenvolvi-
mento de duas escolas: a Escola de Chicago15, que
possui amplo reconhecimento como inauguradora
dos estudos urbanos nesta disciplina e a Escola de
Manchester que também apresentou importantes
contribuições para a análises da vida nas cidades.

15. Em uma conferência realizada no PPGAS/ Museu Nacional


em 1990, Howard Becker afirmou que a Escola de Chicago
se aproximava mais de uma escola de atividade do que de
uma escola de pensamento, definindo a primeira como “um
grupo de pessoas que trabalham em conjunto, não sendo
necessário que os membros da escola de atividade com-
partilhem a mesma teoria” (Becker, 1996: 179). Sinaliza ainda
16º SHCU
que a Escola de Chicago representava um modo próprio de
30 anos . Atualização Crítica
pensar, cuja unidade básica de estudo é a interação social
1928 (ibid.: passim).
Michel Agier (2011 [2009]), reúne essas análises a público para sua construção, por tratar-se de uma
partir do cruzamento da noção de regiões morais iniciativa de relevância nacional. Pretende-se
de Robert Park; a análise situacional e política da ao longo da pesquisa, qualificar a inserção de
dança kalela de Clyde Mitchell (1951) e ainda com Marechal Hermes no imaginário suburbano. Em
a definição de cidade como uma “rede de redes”, uma das páginas de redes sociais que exaltam
elaborada por Ulf Hannerz, (2015 [1980]), no que sua memória local, o bairro é definido com um
ele reivindicou uma antropologia da cidade. Neste oásis entre os subúrbios cariocas.
sentido, a observação de diferentes situações
vivenciadas na cidade por sujeitos que partici- Há exatamente 107 anos, era inaugurada a
pam de diversos grupos sociais é imprescindível Vila Proletária de Marechal Hermes. Bairro
para capturar ao máximo a dimensão relacional projetado para abrigar os trabalhadores, e
e processual da urbe, através de análises entre que aos poucos foi dando lugar aos servi-
espaço, tempo e evento. De acordo com Mariza dores públicos do segundo escalão e aos
Peirano, a etnografia é encarada não tanto como militares de patentes intermediárias. Teve
uma metodologia e sim a própria postura do(a) obras interrompidas, greves e mudança
antropólogo(a) numa “atenção permanente ao de projeto. Aos poucos o bairro virou oá-
contexto e à comparação, construído em cons- sis entre os subúrbios cariocas. O tempo
tante referência às dimensões da cultura e da e os governos posteriores mudaram suas
linguagem” (PEIRANO, 2008, p. 5). prioridades. Seus casarões, cujo projeto
tinha inspiração em construções inglesas,
Para falar da dimensão simbólica torna-se neces- hoje se encontram desfigurados e alguns
sário inserir o bairro dentro da noção de subúrbio em completo abandono. As circunstâncias
carioca, tão presente no imaginário da cidade do econômicas e socais transformaram a pé-
Rio de Janeiro. Segundo a revisão bibliográfica rola do Rio em mais um lugar para se morar.
dos pesquisadores Roberta Guimarães e Frank Apesar disso, ainda mantem o ar de cidade
Davies embora não configure um campo de es- do interior e os níveis de violência abaixo
tudos ou pesquisa próprio a exemplo de outras dos padrões da região. Me orgulho em ser
noções espaciais como “favela” e “periferia, há testemunha de alguns desses 107 anos!
diferentes pesquisas que reivindicam os usos, Parabéns, Marechal! (Página de Facebook
sentidos e significações da categoria subúrbio: Marechal Hermes ontem e hoje, postagem
desde as análises mais geográficas sobre o tema, de 1º de maio de 2020)
cuja produção faz referência a um conjunto de
bairros atravessados pelas linhas de trem até as
polaridades subúrbio x periferia e tradicional x
moderno, bem como as dinâmicas de conflito e CONSIDERAÇÕES FINAIS
estratégias discursivas em torno da categoria.
Para eles, o subúrbio carioca é “um dos tantos A organização metodológica da pesquisa a partir
encontros possíveis entre o factual e o alegórico de Lefebvre abre caminhos para explorar de que
nas escritas etnográficas, um espaço tanto real forma as temporalidades produzidas pelos di-
quanto imaginado, narrado como forma de crítica versos projetos e programas urbanos incidentes
social e guiado pelos desejos de transformação no bairro de Marechal Hermes são disputados e
social” (GUIMARÃES E DAVIES, 2017, p. 471). ressignificadas pelos moradores no seu cotidiano,
fazendo dialogar espaços concebidos, vividos e
A partir da pesquisa em periódicos e redes sociais representados na cidade.
do bairro, observa-se que muitas das representa-
ções sobre o bairro tem relação com o patrimônio A despeito de narrativas homogeneizantes que
e com a história oficial. Uma ideia de tradição é definem o subúrbio pela sua precariedade ou
destacada no discurso dos moradores que se in- carência de serviços urbanos, o trabalho parte
sere na relação do bairro com a noção de subúrbio da análise de uma experiência urbana particular
carioca. Em suas falas, frequentemente reivindi- do início do século XX procurando atentar para
cam o orgulho de ser um bairro com arquitetura a complexidade do processo de urbanização e
“diferenciada” e na “preocupação” dada pelo poder segregação socioespacial na cidade do Rio de
EIXO TEMÁTICO 2 Janeiro. Uma vez que a noção do subúrbio ca-
rioca desloca e borra os limites de discussões
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS frequentemente pautadas em termos dicotômicos
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES como morro x asfalto, centro x periferia é neces-
sário falar dele para além da questão territorial.
O subúrbio, ou subúrbios cariocas por conta de
sua diversidade, envolve diferentes sociabilida-
des, linguagens, identidades culturais, redes de
afeto e solidariedade. Olhares mais sensíveis e
apurados para esses territórios podem trazer ao
debate discussões potentes ao planejamento e
às políticas urbanas.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1930
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EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES O presente trabalho aborda a temática das fave-
las utilizando os conceitos geográficos de pai-
sagem e lugar. O aprofundamento da compreen-
vídeo-pôster são de produção do espaço a partir das práticas
que ocorrem no local, como também os laços de
identidade criados e reproduzidos pelos seus
O LUGAR E A PAISAGEM habitantes. A maneira divergente de se portar e
materializar a urbanidade na sociedade moder-
COMO INSTRUMENTOS DE na, tem sido a algum tempo alvo de modifica-
ções e padronizações espaciais, que tem como
ABORDAGEM DA FAVELA alvo as favelas. O uso destes mecanismos regu-
lares tem promovido uma paisagem modular e
lugar disciplinador, que vem contrastando com
THE PLACE AND THE LANDSCAPE AS INSTRUMENTS OF os modos de vida dos habitantes. Como objeto
APPROACH OF THE FAVELA de estudo, se propõe analisar as modificações
ocorridas em um modelo habitacional, 30 anos
EL LUGAR Y EL PAISAJE COMO INSTRUMENTOS DE após sua construção. O Conjunto São Vicente
APROXIMACIÓN DE LA FAVELA de Paulo, é fruto de uma política habitacional do
início da década de 1980, que visava propor mo-
radias em larga escala, e por meio desta, “intro-
PEREIRA, Rafael Carvalho Fernandes
duzir” os indivíduos na sociedade. A construção
Mestrando em Geografia (UFC); Bacharel em Arquitetura e desconsiderou toda a morfologia e símbolos ur-
Urbanismo (UNI7)
banos que existiam no local, construindo o con-
rcarvalho.fp@gmail.com
junto no mesmo local do assentamento. Atual-
mente, foram criadas e recriadas referências e
SILVEIRA, Rochelle Lima
símbolos espaciais que dotam os moradores de
Mestranda em Arquitetura e Urbanismo (UFC); Especialista uma identidade própria, recuperando assim, al-
em Arquitetura e Projeto Sustentável (UNIFOR); Bacharel
gumas características que comumente seriam
em Arquitetura e Urbanismo (UNIFOR)
rochelle.arq@hotmail.com
reconhecidas como de uma favela.

SILVA, Gleilson Angelo ESPAÇO LUGAR PAISAGEM IDENTIDADE


Doutorando em Geografia (UFC); Mestre em Geografia
PERCEPÇÃO
(UFC); Bacharel em Geografia (UECE)
angelosilva002@gmail.com

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1932
ABSTRACT RESUMEN

The present work approaches the theme of fave- El presente trabajo aborda el tema de las favelas
las using the geographical concepts of landscape utilizando los conceptos geográficos de paisaje y
and place. The deepening of the understanding of lugar. La profundización de la comprensión de la
the production of space from the practices that producción del espacio a partir de las prácticas
occur in the place, as well as the bonds of iden- que se producen en el lugar, así como los lazos
tity created and reproduced by its inhabitants. de identidad creados y reproducidos por sus ha-
The divergent way of behaving and materializing bitantes. La forma divergente de comportarse y
urbanity in modern society has been the target of materializar la urbanidad en la sociedad moder-
spatial modifications and standardizations, whi- na ha sido el objetivo de las modificaciones y es-
ch targets the favelas. The use of these regular tandarizaciones espaciales, que se dirigen a las
mechanisms has promoted a modular landscape favelas. El uso de estos mecanismos regulares
and disciplinary place, which has been contras- ha promovido un paisaje modular y un lugar disci-
ting with the ways of life of the inhabitants. As plinario, que ha ido contrastando con las formas
an object of study, it is proposed to analyze the de vida de los habitantes. Como objeto de estudio,
changes that occurred in a housing model, 30 se propone analizar los cambios que se produje-
years after its construction. The São Vicente de ron en un modelo de vivienda, 30 años después
Paulo Complex is the result of a housing policy of de su construcción. El Complejo de San Vicente
the early 1980s, which aimed to propose large-s- de Paulo es el resultado de una política de vivien-
cale housing, and through this, “introduce” indivi- da de principios de la década de 1980, que tenía
duals into society. The construction disregarded como objetivo proponer viviendas a gran escala, y
all the morphology and urban symbols that exis- a través de esto, “introducir” a los individuos en la
ted on the site, building the set on the same site of sociedad. La construcción no tuvo en cuenta toda
the settlement. Currently, spatial references and la morfología y los símbolos urbanos que existían
symbols have been created and recreated that en el sitio, construyendo el conjunto en el mismo
give residents their own identity, thus recovering sitio del asentamiento. Actualmente, se han cre-
some characteristics that would commonly be re- ado y recreado referencias espaciales y símbolos
cognized as a favela. que dan a los residentes su propia identidad, re-
cuperando así algunas características que co-
múnmente serían reconocidas como una favela.
SPACE PLACE LANDSCAPE IDENTITY
PERCEPTION
ESPACIO LUGAR PAISAJE IDENTIDAD
PERCEPCIÓN
EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES A história de uma cidade pode ser lida de diversas
formas, seja por sua economia, por suas festivi-
dades ou sua forma de expansão. Porém, segundo
vídeo-pôster Landim (2004) é através da paisagem, que nos
deparamos com as principais características da
cidade (elementos culturais, sociais e econômi-
O LUGAR E A PAISAGEM cos), e que podemos reconhecê-la de forma mais
íntegra. Os elementos e objetos urbanos compõem
COMO INSTRUMENTOS DE o que Lefèbvre (2008), cita como “superobjetos”,

ABORDAGEM DA FAVELA
que se detém nos significados das formas (li-
nhas retas, curvas, angulares, etc.) e dos objetos
(ruas, imóveis, pontes, etc.), logo a cidade e seu
THE PLACE AND THE LANDSCAPE AS INSTRUMENTS OF modo de viver é significada a partir de um canal
APPROACH OF THE FAVELA de simbolismo de poder (semiologia do poder).
Estes elementos e objetos que se apresentam
nas paisagens da cidade, possuem significações
EL LUGAR Y EL PAISAJE COMO INSTRUMENTOS DE
APROXIMACIÓN DE LA FAVELA de poder social.

A organização do espaço tem reflexo das razões


dominantes com influências culturais econômicas
e sociais, os quais são facilmente encontrados
nos centros de grande influência (LANDIM, 2004).
Logo, o Estado tem um papel fundamental na
forma de apresentação e organização do espaço
urbano moderno. Pode-se notar este fenômeno
de forma mais clara na área econômica através
do planejamento urbano, promovendo uma maior
expansão territorial do urbano, alcançando as-
sim o nível metropolitano. Onde é movimentado
o mercado de terras com padrões desiguais de
desenvolvimento (LEFÈBVRE, 1973 apud GOTT-
DIENER, 1997).

Esta ação do capital, tem um efeito contínuo de


reformulação das paisagens urbanas (pautadas
por um discurso de progresso), a destruição nor-
malmente ocorre em momentos de crise, onde o
ocorrerão massivos investimentos para produção
de novas paisagens. As reformas periódicas da
cidade estão dentro da lógica de acumulação
adicional do capital criando uma paisagem de
tensão e contradição (onde o novo e antigo co-
abitam em constante disputa de sobrevivência),
e não uma ideia de harmonia e equilíbrio ao qual
se idealizava tradicionalmente (HARVEY, 2005).

16º SHCU Estas mudanças são percebidas de forma sen-


30 anos . Atualização Crítica
sitiva, e modificam a forma com que nos rela-
1934 cionamos com o espaço urbano. A partir dos
nossos corpos que sentimos, construímos e nos paisagem urbana consegue expressar os extra-
apropriamos do espaço, que percebemos e nos tos das relações sociais locais, que se atualizam
relacionamos com as mudanças que ocorrem nas constantemente devido aos novos usos e lugares
cidades, principalmente no âmbito do bairro, em que são adicionados ou modificados (LANDIM,
escalas menores do espaço urbano, mais intimista 2004). A cidade como objeto de identificação e
e que está mais ligado a plano afetivo (CARLOS, identificador do cidadão passa por uma contínua
2008). Por meio dos nossos sentidos reconhe- significação de lugares a partir da relação dos
cemos as transformações e incisões no espaço moradores com o espaço. Geralmente, os modelos
urbano, que se modifica cada vez mais rápido ao econômicos de produção possuem reflexos nes-
tentar responder a uma demanda do capital. A tes espaços, no caso capitalista, a racionalidade
paisagem urbana consegue então, ser um bom da manipulação do espaço e a lógica repetitiva de
meio de observação e aferição destas transfor- elementos (principalmente o habitacional) fazem
mações, se relacionando com os lugares vividos parte da planificação do espaço. Este modelo
e sua representatividade afetiva aos habitantes ‘essencial’ de produção da cidade diminui o poder
locais em meio a este processo. da livre expressão dos moradores, influenciando
em seu processo de identificação com os espaços
Da Matta (1997) demonstra que o espaço se con- (CARLOS, 2007).
funde e é confundido com a própria ordem social,
uma vez que, mesmo não conhecendo a sociedade As diferenças de usos nas cidades e os contrastes
em si os processos pelos quais ela passou são sociais, são elementos que mais chamam a aten-
revelados na paisagem urbana e sua rede de re- ção em sua paisagem. Estes se revelam visual-
lações sociais complexas são atreladas aos fatos mente como o produto do modelo capitalista, logo
que culminaram na cidade espacializada como tal é perceptível que estes modelos comuniquem as
repleta de valores e significados, de modo que, contradições sociais existentes (CARLOS, 2008). A
vários agentes sociais estão envolvidos nestes forma que a paisagem se constitui, vai depender
processos. A própria morfologia urbana é afetada também dos tipos de técnicas construtivas que
quando há uma passagem entre agentes tornando são dominadas, a produção social do trabalho
o tempo como algo concreto refletido na paisa- empregado se materializa espacialmente, e sua
gem. Estes podem ser identificados como novos e importância vai além de sua aparência. As mo-
velhos agentes sociais, uma vez que, podem estar dificações que a paisagem sofre se dá por meio
inseridos dentro de um contexto de ideais puros de duas formas: por elementos culturais (que
ou processos de curta, média ou longa duração. estruturam a percepção) e alteração geométrica
Corrêa (2017, p. 46) afirma que da estrutura urbana (o que reforça a legibilidade
e a imagética da primeira forma) (LANDIM, 2004).
esses agentes sociais [...] bancos, compa- A forma como a cidade se estabelece e a manei-
nhias de seguros, empreiteiras, empresas ra que suas modificações ocorrem, tem como
ferroviárias e de bondes, fábricas têxteis, intuito tanto mudar/ordenar a paisagem, como
firmas comerciais e de serviços, proprietá- direcionar a forma como nos comunicamos e nos
rios fundiários, grupos de previdência priva- reconhecemos com ela.
da, grupos sociais excluídos, indivíduos com
investimentos e ordens religiosas, dentre Segundo Carlos (2007), estas formas diferentes de
outros [...] estão inseridos no processo de viver e ocupar cotidianamente o espaço acabam
produção, circulação e consumo de rique- por gerar uma morfologia espacialmente hierar-
zas no interior de uma sociedade que se quizada e fragmentada, é através do trabalho
caracteriza por ser social e especialmente social e técnico empregado que se transforma o
diferenciada. espaço em lugar, onde se “é produzida a existência
social dos seres humanos.” (p. 20). O Estado busca
Como já observamos, a organização do espaço uma planificação e organização destes lugares
sofre influências das camadas sociais dominan- produzidos, por meios de intervenção no espaço,
tes, e os padrões morfológicos de um modelo de com fins de controle territorial reforçando seu
paisagem valorizam elementos que estão conec- caráter de autoridade hierárquica por meio da
tados a um centro de poder. É desta forma que projetos de planificação e organização do espaço
EIXO TEMÁTICO 2 (ibidem). É comumente típico, encontrar linhas
planificadoras implantadas de forma discordante
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS com a forma orgânica da natureza por meio
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES de uma intervenção, a atuação do homem na
modificação da paisagem na Terra tem tido uma
notável expressão nos últimos anos (MEINIG,
2002). Porém, as intervenções vão além de sua
materialidade, ocorrem também por meio de
códigos de comunicação (reprodução simbólica)
que vão desde seu comportamento social à rituais
e cerimônias (COSGROVE, 1998).

Portanto, se é na paisagem urbana que encon-


tramos estes antagonismos dos processos de
produção do espaço, é onde os fatores sociais de
forças políticas (luta de classes sendo um deles)
se expressam materialmente (CARLOS, 2008). A
paisagem então, passa a estar em uma disputa
de narrativas dos lugares, onde a forma/estéti-
ca do espaço necessita se adequar/refazer aos
princípios dos grupos dominantes (no caso da
paisagem), assim como seus comportamentos
e formas de identificação dos espaços que os
configuram como lugares, acabam por precisar
de ‘certos ajustes’ para o ‘enquadramento social
necessário’ (no caso do lugar).

Compreendemos então, que a forma de produzir


a cidade vai determinar a configuração de sua
paisagem. A atuação do Estado como ferramenta
reguladora das formas da paisagem, direciona
sua imagem para determinados fins, os quais
tenta orientar comportamentos motivados por
pressões políticas e forças econômicas que atu-
am nos mais diversos setores da sociedade. São
estas atividades comportamentais do cotidiano
que fazem a ligação entre o espaço e a memória
afetiva dos habitantes da cidade, nos quais os
conceitos de paisagem e lugar estão intrinseca-
mente relacionados. Para isso, desenvolvemos os
conceitos, e a aplicamos em um objeto de estudo,
o Conjunto São Vicente de Paulo, localizado na
cidade de Fortaleza – Ceará.

LUGAR

O conceito de lugar está relacionado com a repro-


16º SHCU dução da vida, e as relações que o sujeito conserva
30 anos . Atualização Crítica
com o espaço. Neste processo, produz-se e re-
1936 vela-se continuamente o espaço através do pro-
cesso de identificação do habitante com o lugar, rializam (ou não) no espaço e/ou no lugar. “Esses
o qual passa a ser “sentido, pensado, apropriado lugares são relativos uns aos outros no conjunto
e vivido através do corpo” (CARLOS, 2007, p. 17). urbano, o que supõe a existência de um elemento
Besse (2004), inclui que a ideia de lugar é cons- neutro [...], que pode consistir numa ruptura [...]
tituída principalmente por um conjunto de usos, dos lugares justapostos à rua, à praça, ao parque,
acontecimentos e sentimentos. Serpa (2013), ao bairro, ao jardim” (LEFÈBVRE, 1999, p. 43). São
compreende este conceito dentro da perspectiva nestes ambientes que “as dimensões significa-
da cidade global em contexto de metropolização e tivas do lugar [...] são pensadas [...] a partir da
homogeneização, como espaços de “experiências experiência, do habitar, do falar e dos ritmos e
enraizadas na vida cotidiana de cada lugar” (p. transformações” (OLIVEIRA, 2014, p. 18).
171), que se encontram ameaçados pelo avanço
dos processos de descaracterização espacial de Carlos (2007), explica que para o mundo moderno,
determinados projetos. Sobarzo (2006), afirma o lugar se mostra um grande desafio de análises,
que esta nova relação cria conflitos entre modelos devido a sua variedade de conteúdos e formas, e
comportamentais e culturais, relacionados as principalmente em sua dinâmica. A autora explica
relações especificas da vida no lugar e as ligadas que as novas maneiras de apropriação dos lugares
ao mundo e consumo da mercadoria. O conceito se mostram de forma habitual, quase impercep-
de lugar então, vai de encontro a uma proposta de tível, nas pequenas coisas, o que segundo ela,
reconhecimento do ‘ser’ no espaço, que pode ou explica a sociedade urbana dos últimos anos. Em
não sofrer interferências externas, o modificando nosso contexto globalizado de rápidas mudanças,
tanto quanto seu significado simbólico quanto a a ideia de lugar se restabelece dentro das relações
sua materialidade. de uma rede de lugares, onde seu significado
está correlacionado com outros. Isso nos mostra
Esta identificação, entre o sujeito e o espaço, uma ampliação da relação do homem com novos
pode ocorrer na cidade segundo Landim (2004), espaços e a necessidade da significação destes
com a atribuição de significados a edificações, novos lugares.
nos nossos itinerários cotidianos e lugares que
tenham relevância histórica, para a autora estes Desta forma, começa-se a repensar a identidade
podem promover uma conexão entre o sujeito e do lugar, agora dentro de uma lógica mundial,
sua cidade, alterando o espaço urbano em lugar. compartilhando a história de um determinado
Para Lynch (1982, apud LANDIM, 2004), o desenho lugar para além de seus limites, a situação des-
urbano é produtor de imagens citadinas visual- tes lugares é alterada uma vez que o sentido de
mente intensas, tendo efeitos consideráveis na localização é relativizado pelo processo de glo-
vida dos habitantes da cidade. É compreendido balização. O lugar então se constitui dentro des-
então, que o lugar tanto pode ter seu significado ta visão, em uma conexão da “mundialidade em
como fortalecedor de um elo entre o cidadão e constituição e o local enquanto especificidade
sua cidade, quanto a sua forma pode acabar por concreta”, tendo o lugar como palco dos eventos
desestimular a apropriação do sujeito ao espa- concretos, e o mundial como emissor das tendên-
ço. Conforme Sobarzo (2006), a apropriação dos cias e situações (CARLOS, 2007).
espaços e a vida cotidiana tem papel relevante
na construção da identidade dos habitantes e Apesar do lugar apresentar uma multiplicidade
nas experiências de uso do espaço, indo além da de relações, este se mostra ter uma sensibilidade
materialidade, envolvendo aspectos subjetivos em relação a prática social cotidiana (SOBARZO,
e simbólicos, tendo esta grande capacidade de 2006). Onde neste caso, a produção espacial global
transformação e mudança. de modelos, carrega consigo um conteúdo social
de hierarquia, manifestando (ou acrescendo) as-
O lugar e o espaço estão intimamente ligados sim a desigualdade social no lugar (CARLOS, 2007).
por meio de vários elementos que enfatizam a A ampliação da atuação da globalização e suas
relação entre os indivíduos e a cidade. Desta for- implicações nas modificações sociais e concretas
ma, é perceptível que os fatos, acontecimentos, dos lugares, tem modificado a forma com que es-
experiências e vivências são fundamentais para tes lugares têm sido significados e reconhecidos,
identificar estas relações e como elas se mate- a partir dos espaços produzidos/modificados.
EIXO TEMÁTICO 2 O lugar e seu significado também podem se com-
preender nos espaços vazios, estes são deixa-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS dos assim de forma proposital com a intenção de
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES transmitir a monumentalidade de um elemento,
ou seu conjunto. Também pode ocorrer com o
intuito de produzir algum tipo de impeditivo de
contato ou proximidade, mas todos estes com o
mesmo propósito, a transmissão e consolidação
da monumentalidade do poder (CARLOS, 2007).
Este tipo de composição formal urbanística e/
ou arquitetônica é comum estar relacionadas
a empreendimentos governamentais, religioso
ou aqueles que são símbolo de distinção social
econômica.

Uma outra forma de estabelecer esta relação


de lugar, acontece nos bairros mais populares,
onde a situação de pobreza, limitação de acesso
a recursos ou serviços, além da insegurança e
instabilidade faz com que o grupo de moradores
se fortaleça e constituírem um tipo de relação
familiar entre si, para então poder atravessar o
momento difícil de forma mais fácil (FRÉMONT,
1980, apud SERPA, 2013). As formas espaciais pro-
duzidas por estes processos sociais em algumas
vezes, se expressam de forma temporal no espa-
ço, porém uma vez que passam por processos de
‘urbanização’ as suas qualidades e características
são ignoradas durante o processo, perdendo ele-
mentos fundamentais de sua particularidade de
lugar (HARVEY, 2004).

Estas transformações no espaço urbano, mesmo


que não ocorram diretamente nos lugares, tem
suas implicações na dinâmica do cotidiano local.

[...] O urbano, não pensando como tal, mas


atacado de frente e de través, corroído,
roído, perdeu os traços e as características
da obra, da apropriação. Apenas as coações
se projetam sobre a prática, num estado
de deslocação permanente. Do lado da ha-
bitação, a decupagem e a disposição da
vida cotidiana, o uso maciço do automóvel
(meio de transporte ‘privado’), a mobilidade
(aliás freada e insuficiente), a influência das
mass-media separam do lugar e do território
os indivíduos e os grupos (famílias, corpos
organizados). A vizinhança se esfuma, o
16º SHCU bairro se esboroa; as pessoas (os ‘habitan-
30 anos . Atualização Crítica
te’) se deslocam num espaço que tende para
1938 isotopia geométrica, cheia de ordens e de
signos, e onde as diferenças qualitativas PAISAGEM
dos lugares e instantes não tem mais impor-
tância. Processo inevitável de dissolução Em si, a paisagem não é um produto acabado de
das antigas formas sem dúvida, mas que um processo histórico, mas um meio pelo qual
produz o sarcasmo, a miséria mental e so- este processo continua a se reproduzir, e atra-
cial, a pobreza da vida cotidiana a partir do vés de tal, comunica as formas de vida do sujeito
momento em que nada tomou o lugar dos relacionando os novos e antigos modos de vida
símbolos, das apropriações, dos estilos, da sociedade (CARLOS, 2008). E através destes
dos monumentos, dos tempos e ritmos, dos produtos podemos compreender os diferentes
espaços qualificados e diferentes da cidade
tipos de produção das sociedades humanas, que
tradicional. [...] (LEFÈBVRE, 2008, p. 82-83)
ao mesmo tempo são políticos, culturais e eco-
nômicos. Porém, o valor paisagístico não se deve
Estes novos modelos de organização social
trazem consigo uma significativa mudança de ater apenas as questões de valor estético, pois
percepção, compreensão e relação do sujeito os costumes, os saberes, experiências e hábitos
com o urbano, e suas consequências para o lugar também contam (se não mais do que o estético)
estão em constante movimento, na tentativa de na composição da dinâmica da paisagem (BESSE,
preencher vazios de significados que a própria 2014).
mudança criou.
Duncan (1990, apud RIBEIRO, 2007), afirma que a
A partir desta produção social do espaço, são paisagem nunca tem apenas um único significado
lançados olhares para estes lugares gerados, -tendo uma possibilidade de diversas leituras-
com o intuito da definição de paisagens, onde a muito menos sua produção e leitura são inocen-
representação do mundo deste coletivo, se ma- tes. O autor cita que as paisagens são políticas
terializa em um conjunto de materiais produzidos (em um sentido amplo do assunto) e que sua pro-
proporcionando o sentido de lugar (LUCHIARI, dução está conectada “aos interesses materiais
2001). Esta visão requer a compreensão do con- das várias classes e posições de poder dentro da
creto e abstrato de forma interativa, onde não sociedade” (p.23). Logo a paisagem tem um intuito
há uma prioridade. Seu significado tem bases simbólico e seu desenho reflete as intenções
específicas tanto históricas quanto geográficas de uma civilização em relação a construção de
na qualidade de componente da superestrutura sua identidade (ENGLISH; MAYFIELD, 1970, apud
cultural, o qual rege o processo (COSGROVE, 1978, RIBEIRO 2007).
apud MELO, 2001).
Para Cosgrove (1984, apud RIBEIRO, 2007), os
Logo o conceito de lugar se torna importante aspectos simbólicos da paisagem são produzidos
para a compreensão do processo de produção, através dos meios de produção da sociedade.
reprodução e permanência de determinados es- Segundo o autor foram estes novos meios que
paços dentro e fora da conjuntura globalizada consolidaram as novas percepções e visões da
que nos encontramos atualmente. A discussão relação entre a natureza e o homem. A percepção
de identidade e simbologia destes locais, tra- europeia segundo ele, impôs seu olhar de mundo.
zem a reflexão de quais lugares estão tendo mais
importância e por quem são atribuídos, quais [...] a ideia de paisagem representa uma
lugares tem sua significância diminuída ou não forma de olhar — uma forma na qual alguns
reconhecia, por quem e por qual intuito o fazem. A europeus têm representado para si próprios
constante construção do lugar e sua relação com e para os outros o mundo sobre eles e seu
sujeito por meio do cotidiano, tem reflexo direto relacionamento com este. (COSGROVE,
na forma com que este se apresenta na cidade, 1984, p.01 apud RIBEIRO, 2007, p.26).
é a paisagem que comunicará as mensagens e
Conforme Cosgrove (1984, apud RIBEIRO, 2007),
símbolos construídos do lugar para seu contexto.
é importante que a produção cultural seja asso-
ciada a produção material. A contextualização
histórica e teórica das relações humanas para a
produção são de cunho importante para a com-
EIXO TEMÁTICO 2 preensão da produção da paisagem. Para Meinig
(2002), a paisagem não é composta apenas por
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS aquilo que podemos enxergar, mas também por
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES nossos conhecimentos, memórias e bagagens
culturais. Sendo assim, a visão de cada paisagem
terá um significado diferente, dependendo do
sujeito (e sua ‘bagagem’ cognitiva) que a observe
e seu objetivo.

A nossa visão, cria ideias e/ou sistemas de organi-


zação, que são usadas para dar significado ao que
estamos vendo (MEINIG, 2002). Desta forma, se-
gundo o autor, os movimentos feitos pelo homem
na paisagem são tidos como ‘funcionais’, pois são
orientados por motivos racionais, enquanto locais
de habitação, trabalho, compras ou edifício são
‘estação de serviço’ e ‘ponto de transformação’,
sendo estes as expressões dos sistemas sociais
e econômicos.

A paisagem como resultado da acumulação histó-


rica, presume em uma união de funções e formas
em transformação contínua, é onde os aspec-
tos visíveis e os invisíveis materializam em uma
‘aliança’ da sociedade com a paisagem (SANTOS,
1994). Logo a essência da paisagem está em seu
espaço como um todo, tanto o material quanto o
imaterial, transcendem a relação com o concreto
e se conectam com os seus significados que são
observados (SERPA, 2013).

Tendo então diversas possibilidades de leitura,


com significados além do que o olho físico enxer-
ga, e que ainda depende da forma como observa-
mos, compreendemos que a produção da paisa-
gem é intencional com objetivos pré-definidos,
e que estão ligados aos meios de produção que
o grupo domina. Segundo Carlos (2008) e Landim
(2004), os ritmos destas mudanças (produzidas ou
reproduzidas) nas paisagens depende diretamente
do ritmo de desenvolvimento das relações sociais
que ocorrem no meio.

É na paisagem da cidade que conseguimos


caracterizá-la e reconhecê-la, a qual se atualiza
a partir dos processes de usos que são destinados
aos lugares urbanos, tornando a paisagem um
reflexo da configuração espacial da cidade
(LANDIM, 2004).

16º SHCU Revelando-se como uma representação estética


30 anos . Atualização Crítica
da síntese do vínculo entre natureza e vida huma-
1940 na, a paisagem também pode ser compreendida
como elemento de consumo, como conjunto com degeneradas.
intenções de sensações de espetáculo e teatrais,
“ou ainda como paisagem da classe dominante, Conforme Besse (2014), a paisagem política não
paisagem residual, paisagem emergente e paisa- tem a última palavra pra definição da dinâmica ou
gem excluída” (COSGROVE, 1993; 1998; 2006, apud identidade do lugar, pois são as práticas comuns
CORRÊA, 2014, p. 41-42). Sendo dessa forma, a e as criatividades do cotidiano que acabam por
paisagem urbana (como meio de comunicação), definir os hábitos e usos dos espaços, e a inten-
devido a reunião de complexas relações sociais, cionalidade da proposta acaba por se restringir
tem o papel de propagador de ideias e valores, aos planos elaborados. O autor caracteriza como
ao mesmo tempo que moldam estas mesmas uma ‘paisagem vernacular’, aquela que se baseia
perspectivas (CORRÊA, 2014). É notável que o uso no ‘costume’, em um conjunto de hábitos que são
da paisagem tem intuitos específicos no direcio- constantemente criados e adaptados em rela-
namento da forma de atuação no meio urbano. ção ao lugar, o que ele chama de uma “conversa
com o local” (p. 134). Apesar de não tão fácil de se
Melo (2001), explica que estas orientações da pai- identificar no espaço, ainda podemos encontrar
sagem, são feitas em grandes escalas com viés algumas paisagens deste gênero nas capitais e
político, manifestando formas de visão de poder interiores do país.
transmitidas através do espaço compreendido
como homogêneo em contínuo contato com um A paisagem então se torna um meio mais mate-
controle de região. A autora exemplifica utilizando rial, mais palpável, e consequentemente mais
modelos urbanos de grandes e retilíneos eixos concorrido na questão de seu controle. É a par-
propostos a partir de um ponto central (local de tir da relação do homem com o espaço e seus
decisões), resultando em uma geometrização ter- vínculos (ou seja, o lugar) que são dispostas as
ritorial. Como exemplo destes modelos, podemos transformações na paisagem, que reforçaram a
citar as malhas urbanas das cidades de Washing- identidade do grupo. A paisagem, principalmen-
ton D.C. (EUA), Brasília (Brasil), Boa Vista (Brasil) e te a urbana, se torna um campo de disputa de
o plano para a cidade de Chandigarh (Índia). narrativas, o qual são criadas como intermédio
da luta de classes urbanas. Para este estudo em
A percepção de organização espacial dos ambien- específico, é preciso compreender a identidade
tes, é orientada e orientadora por este modelo da favela a partir da conformação de seu próprio
específico (CLAVAL, 2004, apud SERPA, 2013). espaço e da atuação de seus moradores. Com o
Esta nova forma de ocupar e se reconhecer no objetivo de compreender quais narrativas têm
mundo, produzirá novos estilos de vida e paisa- sido criadas sobre esta forma de ocupação dos
gens, ambos distintos dos que anteriormente meios urbanos.
estavam em voga. O que causa um contraste nas
paisagens a partir da materialidade produzida por
esta contradição, que ganha força na semântica FAVELA E IDENTIDADE
social.
Tendo a abolição da escravatura como uma das
Frémont (1980, apud SERPA, 2013), afirma que principais causas do surgimento das favelas no
podem ser criados espaços esteticamente agra- Brasil, Weimer (2012) nos indica que este fenô-
dáveis, porém que não propiciam a apropriação meno apenas tornou a miséria que já existia no
dos habitantes, e que acabam sendo rejeitados interior do país mais visível, concentrando altas
por estes, pois são inóspitos a vida urbana. As- densidades populacionais em áreas ‘periféricas’
sim, como afirma Tuan (1980), compreendemos das cidades. O autor indica que as habitações
as paisagens a partir dos sentimentos que um típicas deste assentamento, são resultado de uma
indivíduo, um grupo ou uma sociedade possui: adaptação do indígena, do escravo ou do europeu,
a topofilia, quando há uma familiaridade com o estes que ainda não tinham conseguido se adaptar
lugar e a topofobia, que é a aversão, o medo ou economicamente ao modelo social local.
a repugnância para com o lugar. Isto acontece
tanto em ambientes naturais, construídos ou que Porém, a nomenclatura “Favela”, vem da seme-
tiveram suas funções totalmente renegadas ou lhança entre o assentamento retratado na obra
EIXO TEMÁTICO 2 de Euclides da Cunha, “Os Sertões”, o qual narra
o episódio da Guerra de Canudos. Para Valladares
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS (2005), a dualidade entre cidade versus sertão
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES descrita no livro, é transposta para cidade versus
favela. Uma vez que diversas características in-
terioranas como falta de infraestrutura e miséria
eram facilmente encontradas nestes espaços que
estavam dentro da capital do país, que no tempo
era a cidade do Rio de Janeiro.

A mídia (principalmente os jornais da época) tinha


um papel fundamental de criar no imaginário co-
letivo da sociedade um caráter de “criminalidade”
e “vagabundagem”, com notícias exageradas foi
formada uma concepção de um espaço contrário
a forma moderna e civilizada que a cidade estava
estabelecendo no tempo. Com isso, ganha-se o
apoio da sociedade, junto ao discurso médico
higienista as intervenções em favelas, pois estes
ocupavam estes locais pelos males que assolavam
as cidades (VALLADARES, 2005).

Logo as ordens higiênicas de iluminação, ven-


tilação, e espaços saudáveis vão de encontro
aos cortiços e favelas. A intervenção espacial,
normatizando propondo regimentos, buscava
tecer pilares fundamentais para o processo de
modernização e inserção do país no mundo civi-
lizado ocidental (VALLADARES, 2005).

Este tipo de pensamento norteou diversas inter-


venções em espaços conhecidos como favelas,
pois não estavam dentro de uma configuração
urbana pré-definida pelo Estado, a qual é utilizada
para vigilância e controle (DAVIS, 2006). Estas
ações no Brasil, acabam por ganhar força no pe-
ríodo da Ditadura Militar (1964-1985), e perdem
o ritmo no final dos anos 1980 (VALLADARES,
2005). Durante a referida época, o uso de con-
juntos habitacionais em módulos repetidos foi a
forma mais utilizada para o reassentamento de
moradores de favelas.

A definição de favela é trabalhada por diversos


autores, com diversas linhas de pensamento
distintas e visões críticas aos modelos sociais
e econômicos. Porém, para este estudo, busca-
remos uma abordagem mais ampla, que não se
fixará a conceitos técnicos já estabelecidos e
trabalhados anteriormente por outros autores.
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
Para Montaner e Muxí (2014), “o informal define-se
1942 como contraposição ao urbanismo entendido e
praticado como projeto e política de planejamento processo de construção da favela, é constituída
de base científica.” (p. 182). Logo não existe uma em sua imagem uma estética dessemelhante do
morfologia específica de assentamento que pos- resto da cidade.
sa se definir como única para a favela, com isso
podemos ter assentamentos em morros, vales, São por motivos desta constante transformação
palafitas, praias e etc, contando que estes tenham da paisagem da favela, por meio do cotidiano dos
características que entrem em contraponto com moradores que aperfeiçoam suas casas cons-
o modelo estatal vigente de urbanização. tantemente que Jacques (2001), afirma que a
arquitetura da favela é um espaço em constante
Segundo Jacques (2001), é através da ocupação movimento. Esta característica de uma certa “ins-
de terrenos pelos favelados, que normalmente tabilidade” ou da “incerteza” do que estar por vir no
ocorre no período da noite (momento o qual a espaço, é uma das mais profundas disparidades
cidade “formal” dorme), que o espírito comunitário que ocorrem entre estes dois modelos espaciais.
faz com que o grupo se reúna para a construção
do espaço coletivo. Esta forma de produzir a fa- Mas a paisagem é uma janela construída a partir
vela a partir da relação dos corpos, do cotidiano de um trabalho (ou hábito) do homem sobre a terra,
e das vivências dos moradores, traz um caráter as interações espaciais que ocorrem na favela,
específico para o local. A favela então é construída tem divergências com as da cidade dita “formal”.
aos poucos, de forma participativa, sem um mapa São as condutas dos moradores que acaba por
ou plano posterior, pois isso só se é produzido criar uma ambiência colaborativa e participativa,
posteriormente. onde a proximidade das habitações e as vielas
estreitas aproximam fisicamente os habitantes
Corrêa (1995) ao citar Firey em seu estudo, afir- maximizando as relações e vínculos no lugar.
ma que sentimentos e símbolos que não este- Estes laços retroalimentam a dinamicidade do
jam vinculado a lógica do mercado -neste caso espaço, no que os filhos e netos que costumam
a produção do espaço urbano para fins de mora- fazer um “puxadinho” para morar próximo aos
dia- tendem a obter uma outra racionalidade de pais, ou por não quererem morar em outro lugar
conformação espacial. Assim, o espaço urbano (JACQUES, 2001; NABOZNY, 2011).
produzido com fins de acumulação ou rentabili-
dade de capital, irá resultar em padrões morfo- Esta dinamicidade de ruas sempre movimentadas,
lógicos e simbólicos diferentes de espaços que com crianças sempre brincando, comércios e
não buscam este fim. diversas atividades ocorrendo ao mesmo tempo,
que os projetos de “revitalização urbana” normal-
A cidade como proposta de mercado, para ser mente propostos pelo Estado não visualizam. E
consumida com facilidade por nossos sentidos, é a partir de uma proposta que não consegue dar
direcionada a uma regularidades morfológica de cabo da realidade, acabam por impedir a continui-
quarteirões (o que também facilita o fluxo intenso) dade da dinâmica espacial do lugar. Desta forma
e uma certa regularidade estética de padrões é impedido tanto o hábito comportamental que
(principalmente durante o movimento moderno), se baseia na materialidade do espaço, quanto a
a que as favelas acabam tendo, quebra toda este dinamicidade do mesmo, ao que em muitos casos,
paradigma. A irregularidade faz com que o espec- a ideia dos projetos é limitar ou impedir a atuação
tador demande de seu tempo para conhecer e se dos moradores no espaço (JACQUES, 2001; 2010).
apropriar do espaço. É perdido desta forma o direito da paisagem (como
visualização de uma materialidade coletiva) e do
Para aprofundar um pouco mais no tema, Jacques lugar (como conjunto de comportamentos e laços
(2001), explicita a diferença do objeto arquitetôni- afetivos com o espaço) que a favela propõe para
co produzido pelo arquiteto (com fins estéticos), seus moradores.
o qual produz algo para ser durável, e o objeto
produzido pelo favelado (com fins de imediata Ainda sobre os espaços que são frutos dessa rela-
moradia), que em seu processo de constante me- ção entre morador e lugar, a autora é mais enfática
lhoria e evolução traz um objeto fragmentado o quando afirma que “o labirinto é um lugar de vida,
qual nunca se encontra em uma forma acabada, de surpresa. O plano impede a surpresa, mata
está sempre em transformação. Devido a este a vida do labirinto, fechando-o numa pirâmide.”
EIXO TEMÁTICO 2 (JACQUES, 2001, p. 91). Para que seja resguardado
a identidade espacial, a autora sugere interven-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS ções mínimas, que acompanhem os fluxos locais
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES já existentes, respeitando o caráter que foi cons-
truído coletivamente. Para se ter este projeto
de um “espaço em movimento” é estritamente
necessária a participação dos moradores, para
que se possa realmente preservar a identidade
da favela, pela favela.

O fortalecimento da identidade representa um di-


álogo provindo das relações sociais do cotidiano.
Segundo Guimarães (2002, p. 22), os moradores da
favela constroem identidades “simbolicamente em
contraste e em confronto com os outros espaços
da cidade e as formas de vida que esta abriga”.
Por meio do discurso, o processo de identificação
cria imagens e significados que perpassam não
somente pelas práticas sociais como também
pela linguagem, uma vez que, são resultados da
construção de uma identidade.

A relação entre os modos de fazer, os modos


de ser e os modos de dizer são que defi-
nem a organização sensível da comunidade,
entre as relações do espaço e as relações
desse fazer entre os sujeitos [...]. Sob essa
perspectiva, as diferentes falas em torno do
significado do termo ‘favelado’, para além
de uma defesa contra a discriminação ou
de uma querela sobre o conteúdo da lingua-
gem, concernem à situação dos seres falan-
tes que reinvidicam um mundocomum que
ainda não existe, isto é, um mundo comum
que deve, a partir de agora, incluir aqueles
que estavam excluídos, pois estes não eram
contemplados pelos termos da linguagem
comum que até então distribuía o que cabia
a uns e outros (GUIMARÃES, 2002, p. 23).

A partir dos elementos pertinentes ao processo


de identificação e as transformações do espaço
e do lugar, observa-se uma série de relações so-
ciais que são resultados de processos externos
e internos que vão culminar numa paisagem ur-
bana típica da favela, possuindo características
particulares e de resistência dentro da cidade. O
Conjunto São Vicente de Paulo entra neste contex-
to como forma de compreensão entre paisagem,
16º SHCU
lugar e identidade.
30 anos . Atualização Crítica

1944
O CONJUNTO SÃO VICENTE DE PAULO nistrativa do poder do capital, e a implantação de
conjuntos habitacionais por meio de remoção das
favelas, foi crucial para a nova lógica (SILVA, 1992).
Fortaleza, capital do estado do Ceará, é marcada
em sua história pela competição urbana, primei- Muitos destes conjuntos se localizavam em tron-
ramente com outras cidades do estado, e atual- cos de conexão metropolitanos, porém afastados
mente entre as capitais do Nordeste. Alavancada do centro urbano. Estratégia esta que busca dotar
pelo transporte de mercadoria e pessoas através espaços longínquos de infraestrutura básica, para
do porto no final do século XVIII, a cidade passou aumento do valor de terrenos, como também a
por consideráveis transformações urbanas com liberação de espaços centrais (por meio de re-
o intuito de adequá-la aos princípios de moder- moção de favelas) para novos empreendimentos
nização e higienização urbana vigentes no início (SILVA, 1992). A estratégia de construção de blo-
do século XIX, como por exemplo o plano de Idel- cos residenciais, era (e ainda é) um resquício das
fonso Albano que eram pautados na proposta de práticas higienistas do século XIX (COSTA, 2006).
Haussmann para Paris (BRASIL, 2013; SILVA, 1992). Porém, este estudo se trata de uma exceção.

Devido a este crescimento econômico e o forta- Segundo Pereira (2018), os moradores datam a
lecimento de infraestruturas de mobilidade entre construção dos primeiros barracos da Favela San-
a capital e os demais locais, a cidade recebeu ta Cecília no ano de 1966, estes usavam o muro do
uma quantidade significativa de migrantes que Colégio Santa Cecília como apoio, na rua General
buscavam melhores condições de subsistência Tertuliano Potiguara (Figura 1).
na capital. Este fluxo representou entre o período
de 1940-1980 o crescimento demográfico sempre Durante a década de 1970 foram implantadas
superior a 60%, porém o setor industrial da época a Região Metropolitana de Fortaleza, e o Plano
não tinha o porte necessário para absorver os tra- Diretor Físico de Fortaleza que propunha uma
balhadores que chegavam à cidade (SILVA,1992). acentuação do esquema viário para acesso e
em 1979, a Lei Nº 5.122-A e suas complementares
A quantidade de favelas cresceu exponencialmen- mudavam os coeficientes construtivos da bairros
te na cidade. Segundo Brasil (2013), os primeiros como Aldeota, Meireles, Varjota e Papicu (COSTA,
assentamentos informais tinham sido identifi- 2009) (os quais tinham expressivas concentrações
cados na Planta de Silva Paulet em 1813, no porto de favelas). Estas medidas administrativas movi-
do Mucuripe, e seu surgimento ocorreu devido as mentaram o mercado imobiliário e aumentaram
atividades do equipamento. Porém Silva (1992), as remoções nestes bairros.
relaciona o aumento do processo de favelização
da cidade, ao deslocamento de lavradores e pe- A grande maioria dos moradores afirma que vie-
quenos proprietários devido a problemas com o ram para a Favela Santa Cecília, expulsos de outras
acesso a terra e outros meios de produção. Por favelas, devido a esta massiva reassentamento
meio deste fenômeno, é disponibilizado na cidade movimentado pelo mercado de terras. Segundo
um grande número de mão de obra, o que regula Braga (1995), foi na tentativa de mudar esta visão
o valor da força de trabalho no mercado. popular de um governo intervencionista, junto
a forte crítica sobre a longínqua localização do
Durante a ditadura militar (1964-1985), o governo conjuntos habitacionais que o governo de Virgí-
encontra formas de maximizar o lucro por meio lio Távora, por meio da Fundação Programa de
da força de trabalho barata. A criação da SUDE- Assistência as Favelas da Região Metropolitana
NE (Superintendência do Desenvolvimento do de Fortaleza - PROAFA, escolheu a Favela Santa
Nordeste), para incentivo de criação de parques Cecília para ser uma espécie de “vitrine”. A ideia
industriais no Nordeste, teve caráter importante era que por meio da construção deste conjunto,
na configuração da cidade. A rápida e profunda fosse passada uma mensagem de que nem todos
mudança nas cidades, recorreram a um modelo de as construções de modelos habitacionais moviam
crescimento e progresso que visava a setorização a população para lugares distantes. Uma vez que
e a rápida circulação de bens e pessoas. A metro- os moradores foram reassentados no mesmo
polização foi um dos instrumentos utilizados para lugar de suas originais residências, porém dentro
se dar força a esse processo de expansão admi- de um modelo estatal de habitação.
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

Figura 1: Esquema de ocupação entre os anos de 1966-1983.


Fonte: Pereira e Almeida (2019, p. 138).

No início dos anos 1980, a proposta do modelo


habitacional (o qual em muito tem influência de
projetos modernistas) desconsiderava toda a di-
nâmica e vivência local. Este quebrava os laços
construídos pelos moradores através do processo
de construção de suas próprias habitações. As
características físicas da diversidade e da mate-
rialidade que o lugar propunha, foram trocados por
uma repetição de módulos habitacionais, bran-
cos e apáticos em uma organização morfológica
rígida e geométrica que em nada se assemelha-
va com a antiga favela. O agrupamento deixa de
se denominar Favela Santa Cecília, e passa a se
chamar Conjunto Habitacional São Vicente de
Paulo, nome devido a paróquia ali próxima a qual
prestava serviços sociais a população da favela.

16º SHCU Não demorou para que os modelos habitacionais


30 anos . Atualização Crítica
fossem paulatinamente modificados e readequa-
1946 dos para o uso dos moradores. Como podemos ver
na Figura 2, antes mesmo do término da constru-
ção do conjunto (1986), as habitações já haviam
sofrido algumas singelas alterações.

Figura 3: Comparação da planta original do conjunto habitacio-


nal (1986), com o levantamento das modificações feitas pelos
moradores (2018): Pereira e Almeida (2019, p. 140).

Figura 2: Moradias antes e depois da construção do Con-


junto Habitacional, e as modificações dos habitantes As modificações causadas pela vivência dos mo-
necessárias para se manter a dinâmica local. Fonte: Diário radores do Conjunto Habitacional, que acabam
do Nordeste, (1981-1982).1 por criar e consolidar sentimentos, memórias e
afetividades, são também base para sustentar
É este modo cotidiano de constante adaptação do novas modificações espaciais promovidas pelos
espaço às suas necessidades, que os moradores habitantes. É onde a paisagem passa a ser um
locais transformam o espaço em lugar. Suas condutor de mensagens simbólicas de identidade,
vivências e intervenções recriam e fortalecem pertencimento, simplicidade e diversidade. A pai-
os laços afetivos com o local de morada. Após 30 sagem como um meio de produção e reprodução
anos de sua construção, o conjunto habitacional da vida, nos mostra a pluralidade materiais, usos
já não consegue transparecer em sua paisagem e de soluções arquitetônicas que as habitações
uma ideia de homogeneidade ou uma ordem diferencialmente acabam por tomar. São estas
estatal anteriormente proposta. Pereira e Almeida as reformas que os moradores fizeram em suas
(2019), trazem um levantamento ao qual propõem a próprias casas que demonstram o lugar se “refa-
visualização da escala de intervenção do morador, zendo” por si próprio, a partir do conhecimento do
transformando o espaço estatal, em lugar de pedreiro e demais profissionais locais. Podemos
relação social (Figura 3). ver a partir da Figura 4, como o cotidiano dos
moradores foi fundamental para a nova imagem
do conjunto.

1. As imagens são parte do acervo fotográfico do Jornal


Diário do Nordeste.
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

Figura 4: Estudo sobre as modificações das habitações


pelos moradores no conjunto. Fonte: Pereira (2018, p. 102).

Apesar do tipo de organização proposta pelo mo-


delo habitacional não promover uma dinamicida-
de, é o constante movimento dos moradores rela-
cionado com suas modificações que torna o lugar
vivo e intenso. Durante todo o tempo é normal
vermos nas ruas crianças brincando, pessoas es-
tendendo roupas nos varais, conversas em calça-
das, vendas de rifas e comidas, bares abertos com
músicas e reuniões religiosas na rua (Figura 5).

Figura 5: Diversidade de atividades exercida na rua. Fonte:


Anie Barreto (2018).2
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1948
A 2 rua torna-se um tipo de complemento do es- preensão da imagem da favela está em muito
paço da casa, um quintal compartilhado, onde os relacionada a forma final gerada (inacabada, fora
moradores se cruzam, compartilham e se reúnem. de padrões) de uma relação ativa e dinâmica do
A própria proximidade das habitações com a rua morador com sua habitação e seu espaço públi-
traz a sensação de passarmos por dentro das co. O lugar e a paisagem são conceitos em que
habitações, partilhamos por alguns segundos de neste estudo se retroalimentam para explicar
algumas ambiências das quais as janelas estavam como um espaço imposto (desenho geométrico
abertas. São estas e outras transformações que e sem relação com os usuários) se transforma em
puderam perpetuar o zeitgeist3 local, onde o cos- um espaço íntimo, diverso e totalmente distante
tume e a vivência se ressignificaram e transfor- de sua proposta inicial. Lugar e paisagem onde
maram a materialidade a seu favor, com o intuito está sendo constantemente reescrita a história
de perpetuar uma relação social próxima ao outro. de um grupo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A forma da favela, é um objeto produzido a par-


tir de sua vivência, significação, aproximação e
autoconstrução em constante movimento, ou
seja, da relação profunda do sujeito com o es-
paço, transformando-o em LUGAR. Apesar da
total destruição do antigo assentamento Favela
Santa Cecília, para a construção do Conjunto
Habitacional São Vicente de Paulo, os morado-
res foram capazes de (re)criar suas relações a
partir da proposta de novas materialidades (re-
formas das residências) aos quais eles mesmos
produziram.
É o conjunto destas formas produzidas por estes
convívios que dão à paisagem uma característica
particular. Sua constante modificação, revela
a dinâmica das relações sociais locais, e ajuda
no processo de reafirmação da identidade do
morador tanto consigo mesmo, quanto diante
da sociedade. A PAISAGEM, então como forma
de comunicar, é um acúmulo histórico de
acontecimentos e momentos que dá ao Conjunto
São Vicente uma imagem “diferente” de outros
conjuntos habitacionais.

Lembrando ao que Meinig fala sobre a leitura da


paisagem estar relacionada a nossa bagagem
cultural. Podemos entender então, que a com-

2. As imagens fazem parte do acervo fotográfico da fotó-


grafe Anie Barreto.

3. Termo alemão cuja tradução significa espírito da época,


espírito do tempo ou sinal dos tempos. Significa, em suma,
o conjunto do clima intelectual e cultural do mundo, numa
certa época, ou as características genéricas de um deter-
minado período de tempo
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HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
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16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1952
1953
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Este trabalho trata da evolução de usos, infra-
estruturas de transporte e centralidades, ao
longo da região a Oeste do centro histórico da
vídeo-pôster cidade de São Paulo, Brasil - no eixo da Rua,
depois Avenida São João, chegando à via ele-
vada de transporte automóvel, construído en-
O MINHOCÃO E A REGIÃO tre 1970 e 1971, popularmente conhecida como
“Minhocão” (antes Elevado Presidente Costa e
DA AVENIDA SÃO JOÃO EM Silva, agora Elevado Presidente João Goulart).
Envolve questões sobre a história urbana e do
SÃO PAULO urbanismo, não apenas da área em si, mas das
centralidades da cidade de maneira geral, vistas
a partir desse contexto. Considera o Minhocão
THE ‘BIG WORM’ AND THE REGION OF SÃO JOÃO como um resumo dos diferentes significados
AVENUE IN SÃO PAULO e funções - complementares e contraditórios,
“nobres” e populares, declarados e submersos,
EL ‘GRAN GUSANO’ Y LA REGIÓN DE LA AVENIDA SÃO de frente e de fundos - que foram atribuídos a
JOÃO EN SÃO PAULO essa região, às vezes simultaneamente, ao lon-
go de seus mais de dois séculos de existência.
Dá especial atenção às transformações efe-
CAMPOS, Candido Malta
tivadas na passagem dos séculos XIX ao XX;
Doutor em Estruturas Ambientais Urbanas; Professor em meados do novecentos; desde a década de
Permanente do Programa de Pós-Graduação em
1970, com a implantação do elevado; e com as
Arquitetura e Urbanismo da FAU / Mackenzie
candido.campos@mackenzie.br propostas de requalificação do Minhocão, e da
região como um todo, nos séculos XX e XXI.

SÃO PAULO CENTRALIDADES HISTÓRIA URBANA


AVENIDA SÃO JOÃO MINHOCÃO

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1954
ABSTRACT RESUMEN

This work deals with the evolution of uses, trans- Este trabajo trata de la evolución de usos, infra-
port infrastructures and centralities, along the estructuras de transporte y centralidades, a lo
region to the West of the historical centre of the largo de la región al oeste del centro histórico de
city of São Paulo, Brazil - in the axis of São João la ciudad de São Paulo, Brasil - por la calle, luego
street, then São João Avenue; culminating in the Avenida São João, llegando a la autopista eleva-
elevated highway, built between 1970 and 1971, da, construida entre 1970 y 1971, conocido popu-
popularly known as the “Minhocão” or “Big Worm” larmente como “Minhocão” o “Gran Gusano” (antes
(formerly known as the President Costa e Silva Elevado Presidente Costa e Silva, ahora Elevado
elevated highway, now as President João Goulart Presidente João Goulart). Hace questiones sobre
elevated highway). Involves questions on urban la historia urbana y el urbanismo, no solo del área
and urban planning history, not only of the area en sí, sino de las centralidades de la ciudad en
itself; but, more broadly, of the city´s centralities, general, vistas desde este contexto. Considera al
seen from within this context. Considers the Big “Gran Gusano” como un resumen de los diferen-
Worm as a summing-up of the different mea- tes significados y funciones - complementarios y
nings and functions - complementary and con- contradictorios, “nobles” y populares, declarados
tradictory, “genteel” and popular, assumed and y sumergidos, de frente y de atrás - que se han
submerged, as the front and as the back of the atribuido a esta región, a veces simultáneamente,
city - that were given to this region, sometimes en sus más de dos siglos de existencia. Se presta
simultaneously, along its more than two centu- especial atención a las transformaciones realiza-
ries of existence. Gives special attention to the das en la transición del siglo XIX al XX; a mediados
transformations effected in the passage from the de los novecientos; desde la década de 1970, con
19th to the 20th century; in the middle of the 20th la implantación de la autopista elevada; y con las
century; since the 1970s, with the implementation propuestas de recalificación del “Gran Gusano”, y
of the elevated highway; and with the proposals de la región en su conjunto, en los siglos XX y XXI.
of its requalification, and of the region as a whole,
in the 20th and 21st centuries.
SÃO PAULO CENTRALIDADES HISTORIA URBANA
AVENIDA SÃO JOÃO ‘GRAN GUSANO’
SÃO PAULO CENTRALITIES URBAN HISTORY
SÃO JOÃO AVENUE ‘BIG WORM’
EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
O elevado é uma duplicação. Uma via sobre a ou-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
tra, multiplicando a capacidade viária, a veloci-
dade dos veículos, a superfície à disposição dos
automóveis; chão artificial de asfalto, solo criado à
vídeo-pôster
disposição dos carros, concretizado como estru-
tura ciclópica, armada no espaço em estruturas

O MINHOCÃO E A REGIÃO de concreto e aço. Repleto de duplos sentidos:


funcional e deselegante, moderno e anacrônico,
DA AVENIDA SÃO JOÃO EM supérfluo e necessário, inútil mas indispensável.

SÃO PAULO Seu tamanho assusta ao revelar a enormidade do


problema que busca resolver: uma cidade que não
cabe em si mesma, um tráfego duplamente engar-
THE ‘BIG WORM’ AND THE REGION OF SÃO JOÃO rafado, uma distância que quanto mais aumenta,
AVENUE IN SÃO PAULO mais é preciso encurtar. Encravado entre prédios,
é um alargamento para cima, um viaduto esticado,
EL ‘GRAN GUSANO’ Y LA REGIÓN DE LA AVENIDA SÃO um túnel no ar. Sua célebre feiúra também é re-
JOÃO EN SÃO PAULO veladora - emblema da tão-falada desumanidade
de São Paulo, resumo de tudo o que não se deseja
ter ao lado, retrato de um mundo onde a estética
urbana parece não encontrar lugar. Grau máximo
de tudo que é incômodo, ofensivo e barulhento na
vida dos paulistanos, tornou-se um ícone às aves-
sas, um anti-símbolo da metrópole paulistana.

O elevado é também uma ocultação: cria uma


zona de sombras, um mundo semi-enterrado,
em que térreos e primeiros andares se perdem
num longo subsolo. Seu próprio apelido evoca
um ser subterrâneo. Nessa área, aparentemente
escondida, surgem elementos e usos que não
ousam se manifestar em locais mais expostos,
sempre com mão dupla: da arte desprezada ou
valorizada das pichações e grafites; a presença às
vezes oculta, às vezes manifesta, dos sem-teto;
ao apelo ambíguo das prostitutas e travestis.

Esse verme urbano sem pé nem cabeça costu-


ma ser apreendido de maneira fragmentada. Por
cima, por baixo, ou como segmento de algo, do
qual não se vislumbra nem o começo nem o fim.
Para motoristas usuários, no dia-a-dia, é sem-
pre trecho de trajeto maior; para transeuntes
de baixios e entornos, são pórticos de concreto
que se sucedem, perdendo-se na distância, e
escondendo o lance seguinte.

16º SHCU Buscando costurar uma rede viária estrangulada,


30 anos . Atualização Crítica
opera um corte radical na paisagem, no tecido
1956 urbano e na própria continuidade das vias locais.
Para permitir uma ligação viária em nível, cria uma este. Nestes, o crescimento imobiliário, que obras
multiplicidade de camadas, no mar de morros de como ele e muitas outras viabilizaram, geraram
São Paulo: mergulhando e emergindo no talude novas centralidades, cada vez mais distantes
sob a Rua da Consolação, passando debaixo dos do centro histórico - as Avenidas Paulista, Faria
andares de concreto da Praça Roosevelt, e tornan- Lima, Luís Carlos Berrini / Chucri Zaidan, Marginal
do-se semi-enterrado do lado oposto, na direção Pinheiros / Nações Unidas, Água Espraiada / Ro-
Leste, não sem antes passar sobre as avenidas berto Marinho. A acessibilidade do novo implica a
Nove de Julho e 23 de Maio e sob outra estrutura desvalorização do velho, um tema recorrente nas
gigante que sustenta a Brigadeiro Luiz Antonio. A grandes cidades.
Oeste, sobre a Avenida Pacaembu, consegue ser
um elevado sobre uma passagem em desnível, A memória da época de sua construção, que coin-
que já existia desde a década de 1940. É como se cidiu com o auge do autoritarismo local - entre
o sonho modernista de uma cidade em múltiplos 1970 e 1971 - joga outros ônus nessa estrutura já
níveis, de tráfegos independentes e desimpedi- tão carregada de maus sentidos. Batizado, inicial-
dos, se desdobrasse em pesadelo. mente, em homenagem ao marechal presidente
Costa e Silva,1 que abriu caminho à radicalização
Paradoxalmente, o complexo viário da metrópole, do jugo militar, seu primeiro nome reforça tais
do qual o elevado faz parte, separa o centro tradi- associações com o período sombrio – o peso dos
cional dos quadrantes da cidade mais valorizados anos de chumbo, a linha dura imposta à força, os
- o vetor Oeste e, particularmente, o vetor Sudo- tenebrosos porões do regime (Figura 1).

Figura 1: Construção e inauguração do Minhocão. (Fontes: O ESTADO DE SÃO PAULO, s.n.p.; IMS, p. 266)

1. Responsável pela indicação do construtor do elevado, o


primeiro prefeito do município de São Paulo indicado pela
ditadura militar, Paulo Maluf, da Arena.
EIXO TEMÁTICO 2 Rebatizado em 2016 como Elevado Presidente
João Goulart,2 o Jango deposto à força pelo gol-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS pe militar de 1964, faz crer que uma das primei-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES ras maquiagens - a do nome - provavelmente se
sucedam outras; para disfarçar as associações
negativas, e revalorizar, em termos imobiliários,
esse território abstruso e incômodo. Algumas
paredes verdes nas empenas de edifícios já estão
a inaugurar essa tendência.

Não obstante, os fechamentos sucessivos à cir-


culações de veículos, desde 1976 (interdição à
noite, inicialmente com o propósito de combater
o barulho, horário ampliado em 1989), passando
por 1996 (fechamento para veículos aos domin-
gos e feriados, já estimulando o uso por parte da
população como área de lazer), 2015 (de sábado
à tarde à manhã de segunda), e 2018 (ampliação
da interdição aos veículos no período da noite,
e por todo o final de semana); já antecipavam o
que aconteceria oficialmente, em 2015: sua nova
designação como Parque Minhocão - mas apenas
nos momentos em que está liberado para o lazer.

Ou seja, surgiu mais um significado atribuído ao


elevado: não seria apenas uma via expressa, mas
também, supostamente, um parque. Progressi-
vamente, desde a década de 1990, a secura do
asfalto foi se tornando uma área de lazer nas horas
vagas; tomada, em primeiro lugar, por moradores
locais e, posteriormente, por metropolitanos mais
distantes. Criou-se mais uma inversão - em horá-
rios diferentes, é verdade; e importante, porque a
atribuição oficial como parque abriu novas formas
de participação comunitária. No entanto, há aí
também várias substituições. Tanto em termos
de jargão - o minhocão, criatura exótica e pau-
listana, tornou-se um parque, figura altamente
positiva no vocabulário urbano - como em outros
significados - o feio torna-se menos feio, o invi-
ável torna-se necessário, e o elevado vem a ser,
novamente, valorizado (Figura 2).

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1958 2. Pelo prefeito Fernando Haddad, do PT (2012-2016).


Figura 2: Paredes verdes, domingo no Parque Minhocão, grafite no pilar. (Fontes: O ESTADO DE SÂO PAULO, 2020, s.n.p.;
QUINTELLA, 2019, s.n.p.)

Antecedentes: O EIXO DA AMBIGUIDADE tada por usos “indesejados” - pensões, quitinetes,


migrantes, tribos excluídas que se encontram,
Aquilo que costumamos chamar de Minhocão por acaso ou não, nos seus arredores. De certa
corresponde à via expressa elevada construída maneira, tornou-se um eixo para tudo aquilo que
a Oeste/Sudoeste da área central de São Pau- os olhares dominantes viam e vêem como o melhor
lo em 1970-1971, como parte do complexo viário e o pior na área central de São Paulo.
Leste-Oeste - o qual também inclui túneis, e algu-
mas partes em trincheira. O apelido costuma ser Retrato e símbolo da decadência do centro, desde
aplicado aos trechos elevados erguidos sobre as a virada dos séculos XX para o XXI tem sido ob-
avenidas São João e sua continuação, a Avenida jeto de constantes propostas de requalificação
General Olímpio da Silveira; e sobre a Rua Amaral - desde uma simples demolição, até a proposta de
Gurgel. um parque linear sobre o mesmo, com diversas
soluções intermediárias. De demolições parciais
Eventualmente, o trecho da ligação que atravessa a coberturas transparentes, várias sugestões
o Bexiga (Via Leste-Oeste e Viaduto Jaceguai) foram propostas em projetos, encomendados
também partilha o mesmo apelido, e há na cida- ou não; e ainda dois concursos oficiais, em 2006
de de São Paulo vários candidatos ao posto de e 2019. Mas, por enquanto, o Minhocão continua
mini-minhocão, como os viadutos 14 Bis e 13 de inalterado em sua estrutura - mas muito alterado
Maio. Mas são os trechos ocidentais do complexo, em seus significados.
o da Rua Amaral Gurgel, e particularmente os das
avenidas São João / General Olímpio da Silveira, Analogamente, a mesma vocação ambígua pode
que adquiriram lugar ímpar no imaginário urbano. ser identificada na formação de toda essa região
a poente do centro histórico. Podemos identificar
Em grande parte, significados e simbolismos hoje aí, ao longo do tempo, uma série de duplicações
associados ao Minhocão nada mais fazem que e inversões de valores. Pobreza e riqueza, frente
exacerbar vocações historicamente atribuídas ao e fundos, modernidade e atraso, mobilidade e
eixo da São João: rua desprezada que se transfor- estagnação. Sua ocupação e travessia sempre
mou em bulevar, ocupada por hotéis de prestígio operaram sucessivas valorizações e desvalori-
e prostíbulos de luxo; área sempre proposta para zações, por vezes simultâneas.
funções que exacerbavam os destinos da metró-
pole - acesso às estações ferroviárias, primeiros
edifícios de apartamentos, vida noturna de bares e
cinemas; e, ao mesmo tempo, sempre reaprovei-
EIXO TEMÁTICO 2 o quadrante menosprezado
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
Desde os tempos de vila até meados do século
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
XIX a vertente ocidental da colina em cujo topo
se implantou o núcleo inicial da cidade, hoje cha-
mado de “centro velho”, era a menos valorizada.
Lado maior do “triângulo” esboçado na acrópole
paulistana, contava de início várias desvantagens.
Como bem lembra José Geraldo Simões Jr. (2005),
tratava-se dos “fundos” duma aglomeração volta-
da para Leste – onde o pachorrento Tamanduateí
era usado para acesso fluvial, abastecimento
de água e alimentos – e para Sul, onde a colina
se ligava por terra ao caminho do mar, ou seja, a
Portugal e aos principais centros de povoamento
na costa brasileira.

A encosta Oeste, menos íngreme, tampouco ofe-


recia as vantagens de localização dos pontos da
colina mais defensáveis, que dominavam visual-
mente o entorno. Neles, olhando para nascente
e com acesso direto ao Tamanduateí, se aboleta-
ram, por ordem de chegada, ordens religiosas de
prestígio: jesuítas pioneiros em 1554, carmelitas
em 1592, beneditinos em 1598. A oeste, surgiu
ainda no século XVI, a Igreja de Nossa Senhora
da Misericórdia, cuja irmandade assistia carentes
e enfermos. A Noroeste, o curso inferior do rio
Anhangabaú não tinha grandes atrativos. Nessa
direção desvalorizada surgiram becos de nomes
reveladores: das Casinhas, da Cachaça, do Inferno
(REIS, 2004).

Não obstante, pelo Anhangabaú cruzavam alguns


dos caminhos principais da vila: o primeiro, a trilha
indígena Peabiru, cujo trecho inicial tornou-se
Rua do Ouvidor, e, depois de atravessar o vale do
Anhangabaú, o caminho de Pinheiros; o caminho
para Lapa e Jundiaí; e o caminho do Guaré, rumo
ao Tietê. Entre eles, no espaço ocidental vago da
colina, traçaram-se no século XVII as ruas de São
Bento e Direita, únicas vias retilíneas e ortogonais
da aglomeração, que se tornaram trajetos das
principais procissões religiosas – e, portanto,
pontos preferenciais para residências urbanas
dos mais ricos. Mas o bandeirismo contribuía para
priorizar outras entradas da cidade: Sul (cami-
nho do mar) e Leste (caminho de Mogi da Cruzes,
Taubaté e das Minas Gerais).
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
No século XVIII, com o aumento do número de
1960 escravos negros, estes formaram a Irmandade
de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos demarcar ruas e numerar casas. Foi assim que,
(1711) que obteve autorização para erguer sua igreja em 24 de junho de 1810, dia de São João Batista
(1720-1730) no quadrante Noroeste do núcleo urba- – orago do príncipe regente, futuro Dom João
no, então menos valorizado (seu sítio corresponde VI - uma procissão marcou a inauguração oficial
à atual Praça Antonio Prado.) Ao longo do tempo da rua do mesmo nome (DICK, 2004). Nos anos
crescia o número de alforriados, que também seguintes a Ponte do Marechal (ou Ponte do Acu,
requeriam sua irmandade; assim, do outro lado riacho curto que ia do Largo do Rosário ao vale)
do Anhangabaú, a capela de Nossa Senhora da sobre o Anhangabaú, unindo os dois trechos da
Conceição tornou-se Igreja de Santa Ifigênia em São João, foi reconstruída pelo engenheiro Da-
1794. Era, portanto, região que centralizava a co- niel Pedro Muller, como bela estrutura em pedra
munidade negra local, cujo crescimento, parado- - marcada em seu ponto intermediário por duas
xalmente, exprimia o enriquecimento de São Paulo exedras semicirculares, que serviam como bel-
no final do século XVIII, a partir do cultivo de cana vederes descortinando o vale (Figura 3).
e das tropas de mulas. Conseqüentemente, os
caminhos para Jundiaí, Campinas Itu e Sorocaba
ganharam importância. Ao longo surgiam casas,
ranchos e comércio rudimentar. Era a Cidade
Nova, hoje bairro de Santa Ifigênia.

A encosta Oeste da colina foi loteada por inicia-


tiva pessoal do governador José Chichorro da
Gama (1786-1788), que abriu a Rua Nova de São
José (depois Líbero Badaró) e construiu a primeira
Ponte do Marechal no eixo da atual São João. Por
ela chegava-se também à Luz e ao Tietê pela Rua
da Alegria (atual Brigadeiro Tobias). Seu sucessor
Bernardo José de Lorena (1788-1797) fez construir
outra ponte de cantaria sobre o Anhangabaú,
acessando os caminhos de Santo Amaro, So-
rocaba, Itu e também o de Jundiaí, pelas atuais
ruas 7 de Abril e Arouche (LEMOS, 2004; DONATO,
2004). Convenientemente escondida entre essas
entradas de “fundos” da cidade, a Rua Nova de São
José tornar-se-ia zona de prostituição, atendendo
a moradores, viajantes e tropeiros.

Era também a Oeste da acrópole original que ha-


via terrenos elevados e mais ou menos planos, Figura 3: Aquarela de Debret representando a Ponte do Ma-
propícios à expansão urbana. No início do século rechal ou do Acu no eixo da São João, 1827; e planta da cida-
de de São Paulo, da Companhia Cantareira, de 1881 (Fontes:
XIX abriu-se caminho para o arruamento desse
BANDEIRA & LAGO, 2013, p. 271; IV CENTENÀRIO, 1954, s.n.p.)
trecho. Em 1806 a Câmara autorizou o Marechal
Arouche a arruar e lotear a área entre o Campo
dos Curros (atual Praça da República) e a Igreja
de Santa Ifigênia, incluindo nova alternativa para Naquele momento engenhos de açúcar e comér-
o caminho de Jundiaí – a atual São João, ligando cio de tropas já eram importantes fontes de rique-
o núcleo urbano à chácara do próprio marechal za, valorizando as terras ao redor dos acessos a
no atual Largo do Arouche, pela qual também Jundiaí e Sorocaba – enquanto a presença ruidosa
passava a fluir o lucrativo tráfego de tropas. das tropas, comércio e estalagens como a do
Bexiga, chafarizes e pequenos açudes usados
Após a chegada da família real portuguesa ao pela população pobre, como o tanque do Zunega
Brasil, em 1808, instituiu-se a décima urbana, (no atual Largo do Paissandu), atraía ocupação
imposto predial para cuja cobrança era preciso mais popular.
EIXO TEMÁTICO 2 Como, para viabilizar sua residência permanente na
cidade, era interessante às famílias ricas a posse
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS de chácaras no entorno imediato da mesma, ser-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES vindo não apenas como moradia, mas como fonte
de abastecimento para sobrados urbanos, áreas a
Oeste e Sudoeste da aglomeração eram adquiri-
das e transformadas em chácaras por potentados
da época: o Brigadeiro Gavião Peixoto, o próprio
Marechal Arouche, Antonio da Silva Prado, depois
feito barão de Iguape, o coronel Francisco Xavier
dos Santos e seu sobrinho, o cadete Santos (depois
barão de Itapetininga) e o Brigadeiro Luiz Antonio
(MOURA, 1998). O filho deste último, Comendador
Souza Barros, fixou residência na São João, em
casarão descrito por sua filha, Maria Paes de Bar-
ros, das primeiras memorialistas de São Paulo,
com seu livro No tempo de dantes (BARROS, 1998).

Mas a cidade continuava voltando-se para Leste


e para Sul, caminhos para Santos e para a Corte
do Rio de Janeiro, focos de atração política e
comercial. A Oeste, a chácara do barão de Ita-
petininga interpunha-se entre as cidades velha e
Nova, o Anhangabaú corria entre plantas de chá,
e as ruas abertas pelo marechal Arouche no início
do Oitocentos continuavam quase vazias meio
século mais tarde. A bela ponte no eixo da São
João foi destruída por tempestade em 1850. Em
1862 a rua de São João sequer mereceu registro
do fotógrafo Militão de Azevedo (no outro álbum,
lançado em 1887, sim) (AZEVEDO, 2012).

Novas frentes urbanas

A expansão cafeeira no Oeste paulista e a con-


seqüente chegada da ferrovia à cidade de São
Paulo entre 1865 (Santos-Jundiaí) e 1875 (Soroca-
bana) inverteram novamente a situação, criando
barreiras adicionais à expansão urbana a Les-
te, junto à várzea do Carmo, e a Norte, no limite
da extensa zona inundável do Tietê. Ao mesmo
tempo, a proximidade das estações da Luz e
Sorocabana (atual Júlio Prestes) passou a ser
atrativa para os enricados do café. Já nos anos
1860 surgiram loteamentos a Oeste da cidade: no
trecho mais próximo do Morro do Chá, terras do
16º SHCU Barão de Itapetininga (em volta da atual rua de
30 anos . Atualização Crítica
mesmo nome); e no atual bairro de Santa Ifigênia
1962 (ruas da Vitória, General Osório, Duque de Caxias).
Na administração do Presidente da Província João A ligação da colina histórica com as áreas de ex-
Teodoro Xavier (1872-1875), uma série de melhora- pansão urbana a poente, assim como o alívio do
mentos beneficiou essa porção da cidade. A partir tráfego nas ruas estreitas do núcleo central, eram
de 1877, a Companhia Cantareira regularizou o problemas já quase seculares. Em 1855 a Câmara
abastecimento de água na capital. Foi em seguida havia forçado a abertura da Rua Formosa na
que os empresários alemães Glette e Nothmann chácara do barão de Itapetininga, ligando o Piques
começaram a lotear a chácara do Redondo - dando à São João; após a morte do barão, em 1876, a
ao empreendimento o nome parisiense de Campos proposta de um viaduto ligando a Rua Direita à
Elíseos. A venda dos terrenos a famílias endinhei- Cidade Nova esbarrou por anos na resistência da
radas gerou enormes lucros e uma febre de lote- viúva e seu novo marido, o barão de Tatuí, vencida
amentos em São Paulo. A partir de 1886, posturas apenas em 1888. O Viaduto do Chá foi inaugurado
municipais impunham largura de 16 metros, para em 1892, mas à sua volta permaneciam o mato do
as ruas que se abriam velozmente nas antigas vale, os casebres e prostíbulos da Líbero Badaró.
chácaras do entorno urbano (CAMPOS, 2004). Com a inauguração do mercado municipal situado
na atual Praça do Correio (1890), a área ganhava
Mas a região de Santa Ifigênia continuava com ares ainda mais populares. Tal incongruência ficou
vocação popular, nela se instalando imigrantes evidente a partir do momento, já no século XX, em
e ex-escravos. Ao raiar da República, epidemias que se elegeu o quadrante Oeste como principal
de cólera alarmaram as autoridades e levaram ao beneficiário dos melhoramentos que mudariam
célebre levantamento dos cortiços do bairro, em a face do centro paulistano.
1893 (CORDEIRO, 2010). A Sudoeste, as grotas do
Saracura, do Bexiga e do Itororó reuniam, desde A remodelação da área central implicava não ape-
antes da Abolição, escravos fugidos e libertos. E, nas substituir seu casario de aspecto colonial por
a despeito das mansões, Campos Elíseos e San- edifícios comerciais em linguagem eclética; e cons-
ta Cecília também abrigavam casas de diversos truir sedes imponentes para as instituições dirigen-
padrões, e alguns cortiços. tes; mas também expulsar ocupantes que não se
adequavam a tal visão: cortiços, negros, prostitu-
Foi no clima gerado pelas epidemias que se tra- tas. Era preciso, ainda, um empreendimento-sím-
çaram loteamentos mais exclusivos em terrenos bolo, um espaço-vitrine, de preferência à imagem
elevados a Sudoeste da cidade: Nothmann e seu de um bulevar parisiense, que, a exemplo da Ave-
novo sócio, Martin Burchard, lançaram, a partir nida Central carioca, resumisse tais aspirações.
de 1891, os “bulevares Bouchard” I e II, logo reba-
tizados como Higienópolis. Afrancesava-se não No início do século XX, tudo isso culminou em in-
apenas o nome mas também o padrão dos lotea- tervenções que atingiam em cheio a área: a retifi-
mentos se europeizava. No mesmo ano, Joaquim cação e alargamento da já valorizada Rua Quinze de
Eugênio de Lima inaugurava a Avenida Paulista Novembro foram acompanhados pela demolição da
como mote de empreendimento similar. Nesses igreja do Rosário, que reunia a comunidade negra,
loteamentos, fora do perímetro urbano, era per- pelo prefeito Antonio Prado (1904), criando-se a
mitido construir casas isoladas no terreno, norma praça do mesmo nome; novo templo seria depois
que garantia a exclusividade do bairro. construído no Largo do Paissandu. A Rua São
João agora originava-se no ponto mais valoriza-
O pêndulo geográfico se invertia novamente. do da cidade. Outras obras de Prado valorizaram
Assim, no momento em que setores dominan- o quadrante Oeste e o futuro “Centro Novo”, com
tes passaram a priorizar a remodelação da área destaque para a construção do Theatro Municipal
central de São Paulo, visando transformá-la em (1903-1911); a reforma do Viaduto do Chá, com novas
núcleo comercial e institucional à altura da ri- cabeceiras em pedra (sua reconstrução viria ape-
queza proporcionada pelo café, atendendo aos nas em 1935); o alargamento da Rua Barão de Itape-
requisitos da visão agroexportadora, a ocupação tininga; e o ajardinamento da Praça da República.
popular e os usos desvalorizados estabelecidos
no quadrante Oeste/Sudoeste, no rumo das áreas Para facilitar o acesso às estações encomendou-
de expansão já preferidas pelos privilegiados, -se o Viaduto Santa Ifigênia. Discussões em torno
tornaram-se sérios obstáculos. dos demais melhoramentos a serem priorizados
EIXO TEMÁTICO 2 envolviam, entre outras propostas, o alargamento
da Líbero Badaró, da própria São João e o apro-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS veitamento do Vale do Anhangabaú, assim como
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES a localização daquela que deveria ser a “avenida
central” paulistana (SOMEKH & CAMPOS, 2008).
Porém, um bulevar que se prezasse - a exemplo
daqueles abertos por Haussmann em Paris, e
admirados pelas elites afrancesadas da época
- deveria ser largo, retilíneo e plano; porém, era
difícil criá-lo na topografia acidentada da cidade.
São Paulo parecia exigir soluções em desnível,
como viadutos e túneis.

Na Prefeitura, o Diretor de Obras municipais Victor


Freire simpatizava com proposta apresentada em
1906 pelo vereador Silva Telles, de ajardinar o Vale
do Anhangabaú, em conjunto com os alargamen-
tos da Líbero Badaró, São João e outros. Trata-
va-se de superar o modelo haussmaniano, e tirar
partido do sítio acidentado e pitoresco, de acordo
com modernos princípios urbanísticos, calcados
nas idéias do arquiteto austríaco Camillo Sitte
(SIMÕES JR., 2005). Mas proprietários do vale,
como o conde de Prates, opunham-se a esquema
que impedia seu aproveitamento imobiliário.

O bairro de Santa Ifigênia, com suas ruas estreitas


e cortiços, também tinha localização estratégica,
entre as estações, o centro e o vetor Oeste/Sudo-
este, sendo alvo de intenções similares de renova-
ção e valorização. Um grupo de potentados locais,
capitaneado por Ramos de Azevedo, subscreveu
proposta nesse sentido; e encomendou, em 1909,
ao jovem arquiteto Alexandre de Albuquerque, um
plano de reconstrução da região em moldes pa-
risienses - conhecido como projeto das “Grandes
Avenidas” por contar com três delas, cruzando-se
numa versão da Place de l’Étoile (ALBUQUERQUE,
1911). Pretendiam obter o direito de desapropriar
a área e revendê-la para edificações de prestígio,
incluindo hotéis e lojas de departamentos. Porém,
contrariando o liberalismo inerente ao modelo
agroexportador, a idéia não vingou.

Em seguida, com a aprovação de verba estadual


de dez mil contos para os tão-sonhados melho-
ramentos de São Paulo, a Prefeitura apresentou
um plano (denominado Freire-Guilhem) que incluía
um parque na Anhangabaú e o alargamento da
16º SHCU São João para inéditos 40 metros, atravessando
30 anos . Atualização Crítica
o vale em viaduto (FREIRE, 1911). Mas o conde de
1964 Prates obteve o aval do Governo do Estado para
outro plano, assinado pelo agrimensor Samuel das não estabelecessem gabarito fixo, assegura-
Neves, que previa um bulevar no fundo do próprio vam certa homogeneidade volumétrica (CAMPOS,
vale. Para reverter o impasse a seu favor, Freire fez 2002). Em 1915 a avenida já chegava ao Largo
chamar em 1911 um consultor francês, Joseph-An- do Paissandu; em 1921, à rua Vitória; em 1923,
toine Bouvard, que formulou proposta conciliató- era a vez do trecho inicial junto à Praça Antonio
ria para o Anhangabaú: um parque pontuado por Prado, abrindo caminho à construção do Edifício
edifícios a serem erguidos pelo conde e alugados Martinellli (HOMEM, 1988); enquanto este ganhava
a bom preço, um deles à própria municipalidade altura, culminando nos 23 andares, inaugurados
(TOLEDO, 1989). Também avalizou a aquisição por em 1930, o prolongamento da Avenida São João
um grupo privado de enormes glebas no vale do atingia a Avenida Angélica.
Rio Pinheiros, depois revendidas à Companhia
City, que nelas implantaria seus bairros-jardim Larga, reta e em grande parte plana, a São João
- consagrando a ocupação do vetor Sudoeste era a melhor candidata local ao posto de avenida
pelas camadas de maior renda (LEME, 1999). central; e nela alinharam-se hotéis e edifícios de
apartamentos de tom francês. Sobre o vale, apro-
O chamado plano Bouvard - que, é importante
veitando a crescente vocação noturna e de lazer da
salientar, não incluía a São João - foi aprovado
pela Câmara em três seções, ainda em 1911. Logo via, surgiu o Cassino Antarctica, importante edifí-
o conde de Prates fazia erguer seus palacetes cio que dava às costas à área do parque Anhanga-
sobre o vale - arquitetos ítalo-brasileiros e seu baú, e onde foi instalado o Cinema Central. O mer-
filho Christiano Stockler das Neves foram os pro- cado foi demolido e em seu lugar abriu-se a Praça
váveis autores dos desenhos. Prolongada, a Líbero Verdi, atual Pedro Lessa; na qual, em 1922, inau-
Badaró ganhava ares europeus. Mas o prefeito gurou-se a nova sede dos Correios e Telégrafos.
sucessor de Antonio Prado, Raymundo Duprat,
nada fez pelo parque. A visão haussmaniana pre- Era o ideal da capital agroexportadora - com bair-
valeceria novamente: e para figurar como “ave- ros residenciais aprazíveis, rodeando um núcleo
nida central” paulistana, jogaram-se as fichas no terciário central, marcado por espaços diferencia-
alargamento da Rua de São João para 30 metros. dos de aparência européia. Estruturada por linhas
Tal medida foi aprovada em 1912 e teve início logo radio-concêntricas de bonde, e acessada pela
depois. Um aterro permitiu aplainar a travessia do ferrovia (CAMPOS, 2002). Pela Avenida São João,
Anhangabaú. Para garantir o caráter parisiense do Largo do Paissandu e Rua Conceição (atual Aveni-
bulevar, construções na nova avenida passaram da Cásper Líbero) chegava-se agora às estações; e
a seguir normas edilícias especiais - que, embora esse era um trajeto que urgia enobrecer (Figura 4).

Figura 4: mapa da região no SARA / Brasil, 1930 (Fonte: CAMPOS, 2002).


EIXO TEMÁTICO 2 Todavia, a mesma proximidade atraía usos de valor
mais ambíguo, entre eles a prostituição. Surgiam
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS estabelecimentos de maior ou menor luxo junto à
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES São João, como o descrito no romance Madame
Pommery (TÁCITO, 1919), cujo personagem-títu-
lo, imigrante polonesa tornada cafetina, satiri-
za os hábitos ocultos da elite cafeeira. Prédios
afrancesados incluíam moradias para solteiros
(garçonnières), novidade escandalosa que abria
caminho para inúmeras transgressões, inclusive a
dos modernistas, que se reuniam no apartamento
de Oswald de Andrade. Em meados do século XX
já se descrevia “o quadrilátero do pecado”, com a
Avenida São João como uma de suas faces (BAR-
BEIRO, 2007, p. 90).

rumo ao minhocão

A partir de 1924, como lembra Sarah Feldman


(1989), a intervenção policial sobre a localização
das chamadas casas de tolerância foi institucio-
nalizada - instrumento logo aplicado na tentativa
de sanear moralmente o entorno da São João;
cujo alargamento, pontuado por belos espaços
públicos como o Largo do Paissandu, a Praça Júlio
Mesquita e a Praça Marechal Deodoro, continuava
a ser, ao longo das décadas de 1920, 1930 e 1940,
um dos maiores investimentos da Prefeitura. O
Perímetro de Irradiação (CINTRA, 1924), construído
na primeira gestão Prestes Maia, de 1938 a 1945,
tendo foco especial na região Oeste/Sudoeste,
contribuiria para colocar a região no foco das
intenções transformadoras (MAIA, 1930). Estru-
turaria ambicioso esquema radial-perimetral, de
circulação automóvel, incentivando o crescimento
horizontal e vertical, e abrindo novas frentes de
ocupação. Era o primeiro de uma série de circui-
tos perimetrais, unindo as principais vias radiais,
que incluíam a São João (CINTRA E MAIA, 1925).

Maia deu continuidade ao prolongamento da São


João até o largo das Perdizes, com viaduto sobre
a Avenida Pacaembu, ligou-a ao Arouche pela
Avenida Vieira de Carvalho, alargou a Rio Branco,
a Barão de Limeira e a Conceição (atual Avenida
Cásper Líbero), e, ao sair da Prefeitura em 1945,
já havia iniciado a abertura do segundo circuito
16º SHCU perimetral, com novo traçado: alargamento das
30 anos . Atualização Crítica
ruas Mauá, Duque de Caxias e Amaral Gurgel, e
1966 pela abertura da Praça Roosevelt (MAIA, 1945).
Figura 5: Obras da primeira gestão Prestes Maia na área central, com detalhe de cinema na Avenida São João. (Fonte:
MAIA, 1945, s.n.p.)

A mesma altura mínima obrigatória de 39 metros as secretarias estaduais. Contudo, a ideia não foi
no alinhamento, imposta nas avenidas Ipiran- adiante. A região entre o Largo do Paissandu e as
ga e São Luís, foi aplicada à Avenida São João Avenidas São João e Ipiranga ganhava cinemas
- enquanto nos demais trechos do Perímetro de luxuosos, e passava a concentrar a vida notur-
Irradiação era de 22 metros. Maia permitiu que na de bares e restaurantes de alto padrão - logo
edifícios em pontos focais escolhidos ultrapas- ganhando o apelido de Cinelândia paulistana (SI-
sassem o teto então vigente de 80 metros de al- MÕES, 1990). E a zona de tolerância da prostituição
tura - a começar pelo edifício do Banco do Estado foi transferida para o Bom Retiro, para além da
(atual Farol Santander) que pontua o eixo da São ferrovia Santos-Jundiaí (FELDMAN, 1989).
João. Visando renovar e valorizar a região dos
Campos Elíseos, propôs em 1942 a implantação No segundo pós-guerra, enquanto o Centro Velho,
de um centro cívico reunindo o Paço Municipal e congestionado e de difícil acesso por automóvel,
EIXO TEMÁTICO 2 perdia atratividade, a centralidade dominante
passou para o Centro Novo. Com a crescente
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS utilização da rede ferroviária como linhas de su-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES búrbio, a afluência da população de menor renda
às estações da Luz e Sorocabana acentuava a
mudança de perfil social dos Campos Elíseos;
acentuando o caráter hoteleiro e de transição da
região - favorecido pela instalação da Estação
Rodoviária na Praça Júlio Prestes (1961). A área
central e suas frentes de expansão, incluindo o
eixo da São João, eram preenchidas por edifícios
de escritórios ou quitinetes que faziam uso da
arquitetura moderna para maximizar o aprovei-
tamento dos terrenos (SAMPAIO, 2002).

Entretanto, as grandes obras viárias dos anos 1940


não tiveram continuidade na década seguinte.
Desde o Relatório Moses (1950) e o programa de
vias de fundo de vale (1953) procurava-se atuali-
zar na Prefeitura as previsões de infra-estrutura
viária do Plano de Avenidas. Entre elas tinha prio-
ridade a proposta da segunda perimetral. Prestes
Maia não perdia oportunidade de salientar a ur-
gência da mesma, destacando uma nova versão
do circuito em seu anteprojeto para a rede de
metrô (MAIA, 1956) e adiantando desapropriações
e decretos de utilidade pública em sua segunda
gestão (1961-1965).

Ao mesmo tempo, uma vez definido o traçado da


diametral Norte-Sul, ganhava força o projeto de
uma ligação Leste-Oeste. Naquele momento, a
principal radial ocidental era o eixo das avenidas
São João, General Olímpio da Silveira e Francisco
Matarazzo (acesso à Rodovia Anhanguera, inau-
gurada em 1948). No lado oriental, para aliviar a
congestionada Celso Garcia, realizou-se a atual
Avenida Alcântara Machado / Radial Leste, a qual
foi aberta em etapas, a partir de 1957. A partir do
Brás, pôde aproveitar a porção livre do leito da
Estrada de Ferro Central do Brasil.

A maneira mais viável de unir os dois lados seria


aproveitando o caminho aberto pelas desapro-
priações e decretos, que visavam originalmente a
criação da segunda perimetral: junto ao Largo do
Arouche, ao longo da Rua Amaral Gurgel, na Praça
Roosevelt e no Bexiga. Também já se cogitava
da hipótese de ampliar a capacidade da Avenida
16º SHCU São João por meio de um elevado, solução viária
30 anos . Atualização Crítica
consagrada anos antes em cidades norte-ame-
1968 ricanas. Em Nova York, a via elevada ao longo do
Rio Hudson foi iniciada já em 1928; no segundo procurada para empreendimentos verticais.
pós-guerra multiplicaram-se as vias rápidas e
expressas elevadas. A abertura da Avenida Faria Lima (1965-1968) e
a renovação da Avenida Paulista (1966-1974) ge-
A partir da gestão Faria Lima (1965-1969) a Prefei- ravam novas centralidades de prestígio no já
tura de São Paulo encetou nova leva de grandes privilegiado vetor Sudoeste, com acesso mais
obras viárias. Mas Faria Lima priorizou o metrô fácil por automóvel, mas desvinculadas do centro
e vias expressas de fundo de vale. O PUB - Plano histórico. Passaram a atrair a verticalização, o
Urbanístico Básico, elaborado sob sua adminis- comércio e os serviços de alto padrão (VILLAÇA,
tração, propôs nova estrutura viária formada por 1998). Tal movimento continua sendo exacerbado
malha ortogonal de vias expressas; na qual o eixo por outras grandes obras viárias (Nova Faria Lima,
Leste-Oeste, mais central, passaria bem ao Sul Avenidas Bandeirantes, Juscelino Kubitshek, Luís
das Avenidas São João e Radial Leste (PMSP, 1969). Carlos Berrini, Vicente Rao, Roque Petroni, Ro-
berto Marinho, alargamento e prolongamento da
Contudo, já havia uma proposta para um elevado Marginal Pinheiros / Avenida Nações Unidas, com
sobre a São João, elaborada por técnicos do múltiplos túneis, viadutos e pontes); e operações
Departamento de Urbanismo da Secretaria de urbanas (Faria Lima, 1995; Água Espraiada, 2000),
Obras, encaminhada ao executivo e à Câmara que consagram o deslocamento da centralida-
Municipal em 1968. Foi o prefeito seguinte, de dominante para a calha do Rio Pinheiros, e o
Paulo Maluf (1969-1971) quem consagraria a menosprezo do centro histórico pelos usuários
transmutação de parte do traçado da segunda de maior renda.
perimetral em ligação diametral, incluindo o
elevado. Em onze meses, feito da engenharia Ao mesmo tempo em que a micro-acessibilidade
nacional, ergueu-se o Elevado Costa e Silva. Ao por automóvel se tornava mais difícil, as redes de
longo dos anos 1970 as administrações seguintes transporte coletivo continuaram desembocando
dariam continuidade à ligação Leste-Oeste, no centro tradicional - metrô, ferrovias, corredo-
completando a Praça Roosevelt e os trechos que res e terminais de ônibus - e na própria São João.
atravessam o Bexiga e a Liberdade; ao longo dos Isso favoreceu sua reocupação por uma popu-
anos 1980 tomaria forma a atual Radial Leste e o lação de menor renda, configurando novo perfil
complexo viário do Glicério, amarrando o conjunto. e outro dinamismo para tais regiões (CAMPOS,
2004). Edifícios considerados obsoletos já haviam
se desvalorizado rapidamente, e sido reaprovei-
tados por usos malvistos, com destaque para o
depois da construção Martinelli. Portanto, a desapropriação e reforma
deste pela Prefeitura, na gestão Olavo Setúbal,
Invertendo novamente os termos do binômio da Arena (1975-1979), sinalizou o início de uma
acessibilidade/ocupação, a criação dessa ma- série de tentativas de reverter a desvalorização
cro-estrutura viária - uma série de vias rápidas simbólica e imobiliária da região central. Ganha-
e expressas, em elevados, viadutos, trincheiras ram corpo novos usos institucionais e recursos
e fundos de vale, que marcou a metrópole pau- como calçadões, centros culturais, reforma de
listana a partir da década de 1960 - acarretou a praças e parques.
superação do papel dominante do centro históri-
co. Ao contrário do Perímetro de Irradiação, que A reforma do Parque Anhangabaú, projetada por
havia aberto a área do Centro Novo e favorecido Jorge Wilheim e Rosa Kliass, objeto de um con-
seu aproveitamento, as novas obras, muitas em curso na década de 1980 - que incluiu o início da
desnível, passaram a tratar a região central como Avenida São João, até o Largo do Paissandu - foi
mero nó de articulação e passagem na estrutu- inaugurado na gestão Luiza Erundina, do PT (1988-
ra viária da cidade, priorizando a circulação em 1992). No entanto, essa intervenção cortou o eixo
grande escala em detrimento das áreas atraves- da Avenida São João na passagem do vale. A nova
sadas. O Minhocão, em particular, resultou numa reforma do Parque Anhangabaú, de Mario Biselli
desvalorização drástica e imediata do entorno, e Arthur Katchaborian, atualmente em realiza-
mesmo situando-se em região até então muito ção (2020), a despeito de uma série de polêmicas
EIXO TEMÁTICO 2 suscitadas, propõe religar o eixo da São João, em
nível, dos dois lados do vale.
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES A requalificação do centro histórico foi reforçado
nos primeiros anos do século XXI, particularmente
nas gestões, também do PT, de Marta Suplicy
(2000-2004), com os programas Ação Centro
e Morar no Centro (COMIN & SOMEKH, 2004); e
Fernando Haddad (2012-2016), com corredores
de ônibus e ciclovias. Novos centros de cultura,
como o Branco do Brasil, Pinacoteca, Sala São
Paulo, Estação Liberdade, Galeria Catavento,
Casa das Retortas, Sesc 24 de Maio, Correios,
Praça das Artes, Galeria Olido e Galeria do Rock
(estes quatro últimos na São João), e as reformas
do Theatro Municipal e da biblioteca Mário de
Andrade, trouxeram uma nova qualidade arqui-
tetônica para a região central. Mas faltava ainda
a qualidade urbanística...

Em 2006, na gestão José Serra, do PSDB, foi


realizado um primeiro concurso público para o
Minhocão (denominado o segundo Prêmio Prestes
Maia). As propostas, segundo as instruções do
próprio edital, evitaram demoli-lo completamente.
Algumas apresentavam demolições parciais, e a
maioria deliberou por transformar o elevado para
dois (ou até três ou quatro) níveis; uma parte pre-
via transformá-lo em corredor de VLT ou ônibus
elétrico. A proposta vencedora, de José Alves e
Juliana Corradini, imaginou que seria mantida a
totalidade da estrutura, com a manutenção do
tráfego de veículos automóveis - com o acrésci-
mo de laterais em vidro, e ventilação, para evitar
a excessiva poluição do ar e sonora provocada
pelo Minhocão; na cobertura seria instalado um
parque linear (Figura 6). Também frisaram que a
intervenção deveria ser parte de uma operação
urbana específica, a exemplo do High Line de
Nova York. A gentrificação - que seria inevitá-
vel, pela maioria das propostas - não chegou a
ser propriamente abordada pelo concurso. Foi
interessante para suscitar o debate, mas nada foi
realizado - a exemplo de outro concurso realizado
em São Paulo dois anos antes, do Bairro Novo na
Água Branca.

A partir de 2017, as gestões João Dória / Bruno


Covas estabeleceram mais propostas de reapro-
16º SHCU veitamento do elevado, com a contratação do
30 anos . Atualização Crítica
urbanista Jaime Lerner como consultor. Em 2019,
1970 foi realizado um novo concurso para estudantes e
recém-formados, numa parceria entre uma ONG, a matográficos, com formas geométricas simples,
Projetar, e a Associação Parque Minhocão. Os três finalizada em 1974. Entre 1997 e 1998, foi realizado
projetos vencedores, um da Centro Universitário um concurso para a pintura nas empenas da pista
Belas-Artes, um da Universidade Estadual de para veículos; os vencedores foram, na empena
Maringá, e um da FAU / Mackenzie, propuseram Norte, Maurício Nogueira Lima, com uma proposta
soluções em dois níveis, com o parque linear na de faixas amarelas diagonais; e, na empena Sul,
cobertura. Sônia von Bruschy, com uma faixa verde contí-
nua e pinturas redondas, como escotilhas. Na
década de 1990, passou a integrar as exposições
Arte na Cidade. Nos anos 2000, abrigou algu-
mas atividades da Virada Cultural; e até blocos
Carnaval passaram por ele - porém, esses usos
foram restritos, porque não havia como oferecer
segurança a grandes concentrações de público.
Surgiu a Associação Parque Minhocão, entidade
aglutinadora estabelecida num apartamento em
frente ao elevado em 2013, reunindo arquitetos,
artistas, moradores e empresários (VELOSO &
POSER, 2015).

E nos trechos atravessados pelo elevado? Pode-se


dizer que seu caráter aberto à transgressão, e
acolhedor da diferença, passou a ganhar um certo
valor com a ascensão do multiculturalismo, do
pluralismo e das identidades alternativas como
traços, de alguma forma definidores, da paulis-
tanidade do século XXI. Aos finais de semana
uma série de tribos urbanas estabeleceu em sua
pistas várias área de lazer, em que se manifesta
a diversidade da ocupação do entorno, e da me-
trópole como um todo (LOIOLA, 2016).

Com o novo século a situação se galvanizou. De


um lado, ressuscitou-se mais uma vez a idéia de
renovar e revalorizar a área de Santa Ifigênia,
transformando a “cracolândia” em Nova Luz (lei
aprovada na gestão Gilberto Kassab, do PSD,
em 2009); de outro, começou-se a pensar em
reaproveitar elementos e situações urbanas até
Figura 6: Proposta vencedora do concurso de 2006, de então desprezados, como o próprio elevado - re-
José Alves e Juliana Corradini; e primeira menção honrosa propondo-os como ponto de partida para outras
do concurso de 2019, da FAU / Mackenzie. (Fontes: ARTI- visões da cidade. Artistas, cineastas, arquitetos e
GAS, MELLO & CASTRO, 2008, p. 91; VOGUE, 2019, s.n.p.) urbanistas lançam olhares que tentam desvendar
essa multiplicidade de sentidos. O Minhocão se-
gue dividindo opiniões, incomodando, revelando
diferenças e invertendo valores.
Voltamos ao elevado. Ficou, de certa maneira, à
margem dessa requalificação, pois não partilha
das qualidades de urbanidade do centro históri-
co. Foi e continua sendo objeto de intervenções
artísticas; a primeira iniciada já no começo dos
anos 1970 por Flávio Motta, que idealizou painéis
nos pilares, como uma sucessão de quadros cine-
EIXO TEMÁTICO 2 REFERÊNCIAS
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EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Os centros históricos das cidades brasileiras
passaram por modificações e alterações suces-
sivas a partir das políticas públicas de revitali-
vídeo-pôster zação na década de 1990. É com a perspectiva
de analisar esses processos e as transforma-
ções nas centralidades tradicionais e em seu
O MORAR NO CENTRO: entorno imediato, que a presente pesquisa dis-
corre sobre o caso da cidade de Campina Gran-
OS CONFLITOS NO CENTRO de, segunda cidade mais populosa do Estado
da Paraiba e importante centro regional. Ape-
HISTÓRICO DE CAMPINA sar do seu centro histórico ainda ser a principal
centralidade da cidade, diferente do que ocorre
GRANDE E EM SEU ENTORNO em muitas outras, o processo de esvaziamento
acontece no setor habitacional, e as transfor-
NO INÍCIO DO SÉCULO XXI mações socioespaciais são evidentes a medida
que avançam para a alteração das espaciali-
dades antigas e modificação da paisagem his-
THE LIVING IN THE CENTER: THE CONFLICTS IN
tórica. Os ideais de modernização levaram ao
THE HISTORICAL CENTER OF CAMPINA GRANDE
surgimento de novas formas de morar em seu
AND ITS SURROUNDINGS IN THE BEGINNING OF
entorno imediato, a partir, principalmente, do
THE 21 CENTURY
processo de verticalização. Assim sendo, a par-
tir da abordagem proposta pela conservação in-
VIVIR EN EL CENTRO: CONFLICTOS EN EL CENTRO
tegrada e da análise das legislações incidentes
HISTÓRICO DE CAMPINA GRANDE Y EN SUS
na área em estudo, procura-se contribuir com a
ALREDEDORES A PRINCIPIOS DEL SIGLO XXI
análise dos diferentes fatores associados a es-
sas transformações.
BOMFIM, Leticia Barbosa
Graduanda em Arquitetura e Urbanismo; Universidade TRANSFORMAÇÕES SOCIOESPACIAIS CENTRO HISTÓRICO
Federal de Campina Grande
lebomfim0@gmail.com MERCADO HABITACIONAL DINÂMICA IMOBILIÁRIA
VERTICALIZAÇÃO
ANJOS, Kainara Lira dos
Doutora em Desenvolvimento Urbano; Professora do Curso
de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de
Campina Grande
kainaraanjos@gmail.com

MINÁ, Ana Lívia Farias


Graduanda em Arquitetura e Urbanismo; Universidade
Federal de Campina Grande
analiviafm@gmail.com

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1974
ABSTRACT RESUMEN

The historic centers of Brazilian cities underwent Los centros históricos de las ciudades brasileñas
successive modifications and alterations based sufrieron sucesivas modificaciones y alteracio-
on public revitalization policies in the 1990s. It is nes basadas en políticas públicas de revitaliza-
with the perspective of analyzing these proces- ción en la década de 1990. Es con la perspectiva
ses and the transformations in traditional centra- de analizar estos procesos y las transformacio-
lities and in their immediate surroundings, that nes en las centralidades tradicionales y en sus
this research discusses the case of the city of alrededores inmediatos, que esta investigación
Campina Grande, the second most populous city discute el caso de la ciudad de Campina Grande,
in the State of Paraiba and an important regional la segunda ciudad más poblada del Estado de
center. Despite the fact that its historic center re- Paraiba y un importante centro regional. A pesar
mains the main centrality of the city, unlike what de que su centro histórico sigue siendo la prin-
happens in many others, the emptying process cipal centralidad de la ciudad, a diferencia de lo
takes place in the housing sector, and socio-s- que sucede en muchas otras, el proceso de va-
patial transformations are evident as they move ciado tiene lugar en el sector de la vivienda, y las
towards the alteration of the old spatialities and transformaciones socioespaciales son evidentes
the modification the landscape historical. The a medida que avanzan hacia la alteración de las
modernization ideals gave rise to the appearance antiguas espacialidades y la modificación del
of new ways of living in their immediate environ- paisaje histórico. Los ideales de modernización
ment, starting, above all, from the verticalization dieron lugar a la aparición de nuevas formas de
process. Therefore, from the approach proposed vivir en su entorno inmediato, a partir, sobre todo,
by integrated conservation and the analysis of desde el proceso de verticalización. Por lo tanto,
the laws on the area under study, we seek to con- a partir del enfoque propuesto por la conservaci-
tribute to the analysis of the different factors as- ón integrada y del análisis de las legislaciones so-
sociated with these transformations. bre el área en estudio, buscamos contribuir con el
análisis de los diferentes factores asociados con
estas transformaciones.
SOCIO-SPATIAL TRANSFORMATIONS HISTORIC CENTER
HOUSING MARKET REAL ESTATE DYNAMICS
TRANSFORMACIONES SOCIOESPACIALES
VERTICALIZATION
CENTRO HISTÓRICO MERCADO DE VIVENDA
DINÁMICA INMOBILIARIA VERTICALIZACIÓN
EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES As centralidades originais do tecido urbano cons-
tituem-se como fonte documental e histórica
quando preservadas. No entanto, a permanência
vídeo-pôster dessas áreas encontra-se ameaçadas tendo em
vista distintos processos aos quais está submeti-
da, ora de desvalorização, ora de valorização. Nas
O MORAR NO CENTRO: grandes cidades brasileiras, a partir da segunda
metade da década de 1970, passa-se a evidenciar
OS CONFLITOS NO CENTRO um gradativo estímulo à criação de novas centra-
lidades urbanas como local de concentração de
HISTÓRICO DE CAMPINA fluxos, comércios e serviços, criando dinâmicas
distintas e contribuindo para o processo de ob-
GRANDE E EM SEU ENTORNO solescência dos seus centros originais (BERNAR-
DINO; LACERDA, 2015).
NO INÍCIO DO SÉCULO XXI
A partir da década de 1990, com o ingresso do
Brasil na lógica de acumulação globalizada e com
THE LIVING IN THE CENTER: THE CONFLICTS IN diversos governos locais aderindo ao modelo de
THE HISTORICAL CENTER OF CAMPINA GRANDE planejamento estratégico das cidades (city marke-
AND ITS SURROUNDINGS IN THE BEGINNING OF ting), os centros históricos, embora degradados,
THE 21 CENTURY passam a ser vistos como potenciais detentores
de atributos locacionais, que os tornavam “espe-
VIVIR EN EL CENTRO: CONFLICTOS EN EL CENTRO ciais”. Isso porque possuíam um conjunto valioso
HISTÓRICO DE CAMPINA GRANDE Y EN SUS de equipamentos, edificações e infraestruturas
ALREDEDORES A PRINCIPIOS DEL SIGLO XXI urbanas, que teriam a possibilidade de receber
novos usos (LACERDA, FERNANDES, 2015).

Nesse novo contexto, iniciam-se processos de


revitalização, como os dos centros históricos do
Rio de Janeiro, Salvador e Recife, consolidados
nos anos 2000, na agenda das políticas públicas.
Sendo assim, essas mudanças passaram a des-
pertar interesse para estudiosos da cidade, com
o objetivo de compreender as novas dinâmicas e
processos de gentrificação e/ou de reconversão
urbana de seu estoque edificado, especialmen-
te para fins de moradia, que passaram a existir
nesses centros.

A confluência de um novo padrão de urba-


nização com os processos de privatização
e a degradação do centro histórico levaram
a valorizar a centralidade histórica e plan-
tear a necessidade de desenvolver novas
metodologias, técnicas e teorias que sus-
tentem a interpretação e atuação sobre
eles. (CARRIÓN, 2000, p. 45)
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
No entanto, embora o centro histórico permane-
1976 cesse como importante objeto de estudo, até o
início da década passada, inexistiam pesquisas Associado a redução do uso habitacional na área
que subsidiassem o entendimento das implica- central, essas dinâmicas também contribuem
ções desses processos sobre o funcionamento para o esvaziamento em seu período de desati-
do mercado imobiliário nesses espaços. E é a vação. Somado a isso, a ausência de parâmetros
partir dessa perspectiva, que em 2012 tem início urbanísticos e fiscalização para o perímetro tom-
a pesquisa em rede acerca do Funcionamento do bado afeta o conjunto urbano preservado por lei
Mercado Imobiliário em Centros Históricos (MICH) (Decreto Estadual n°25.139/2004).
liderada pelo Grupo de Estudos sobre o Mercado
Fundiário e Imobiliário (Gemfi), coordenado pela O objeto de estudo compreende o Centro His-
Professora Titular Norma Lacerda, do Programa tórico estabelecido em 2004 pelo Instituto do
de Pós graduação em Desenvolvimento Urbano Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da
(PPG-MDU) da Universidade Federal de Pernam- Paraíba (IPHAEP), e seu entorno, delimitado para
buco (UFPE). Em sua primeira fase (2012 – 2016), a presente pesquisa como a área restante do
teve como áreas de estudo os Centros Históricos bairro Centro e trechos dos bairros Prata e São
(CH) nas cidades de Recife e Olinda (PE), Belém José (Figura 1). Desse modo, pretende-se com-
(PA), contando com a parceria da Universidade da preender os fatores que levam à valorização de
determinadas áreas centrais e subutilização de
Amazônia (UNAMA), e São Luís (MA), com a parceria
outras, associando às transformações socio-
da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA).
espaciais que ocorrem nos últimos anos. Essas
A partir da segunda fase iniciada em 2017, segui- análises do mercado imobiliário de habitação no
ram-se os estudos nos CHs de Recife (PE), Belém Centro Histórico e no seu entorno à luz da teoria
(PA) e São Luís (MA), com a inclusão de duas novas da Conservação Integrada, nos faz perceber os
áreas: os CHs de João Pessoa (PB), contando com conflitos dessas dinâmicas que contribuem dire-
a parceria da Universidade Federal da Paraíba tamente para o esvaziamento do uso habitacional
(UFPB), e Campina Grande (PB), com a parceria da no CHCG, frente à verticalização intensa do seu
Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). entorno imediato.
Nesse contexto, o presente trabalho traz uma dis-
cussão acerca dos resultados parciais do Projeto
de Iniciação Científica iniciado no ano de 2019,
sob financiamento do CNPq. O Projeto possui o
objetivo de analisar as modificações e transfor-
mações no mercado imobiliário de habitação no
Centro Histórico da cidade de Campina Grande
(CHCG), segunda cidade mais populosa do Estado
da Paraíba e importante centro regional, tendo
como recorte temporal os processos ocorridos
nos últimos 20 anos.

É válido considerar que a cidade de Campina


Grande, não sofreu processo de esvaziamento do
seu centro histórico, que apesar de não contar com
significativo estoque de edificações anteriores
ao século XIX, devido a reforma urbana de 1937,
conta com importante acervo Art Déco (QUEIROZ,
2008). A principal centralidade da cidade ainda é
o seu centro histórico, processo diferente do que
ocorreu na maioria áreas estudadas pela rede
MICH. Devido a isso, os processos identificados
também ocorrem de forma diferenciada, estando
relacionados, principalmente, com as dinâmicas
comerciais que não respeitam, em muitos casos,
os critérios para a conservação das edificações.
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

Figura 1: Mapa de inserção e recorte da área em estudo.


Fonte: MICH-CG, 2018.

Nesse sentido, esse artigo aborda um histórico


sobre o processo de delimitação da Zona de Pre-
servação Rigorosa, demonstrando as relações das
transformações urbanas que ocorreram nas dé-
cadas de 1930-1940, e como também os ideais de
modernização modificaram a ambiência ao longo
das próximas décadas. Após isso, será discutido
sobre a legislação incidente na área em estudo
e, por fim, o resultado dessas transformações,
compreendendo as análises dos submercados
habitacionais e a verticalização da moradia.

O PROCESSO DE FORMAÇÃO DA CIDADE


E A DINÂMICA IMOBILIÁRIA DA ÁREA CENTRAL

Analisando espacialmente a cidade, o geógrafo


Santos (1985) declara que o espaço é uma totali-
dade de cuja essência é social, afirmando que a
economia está no espaço assim como o espaço
está na economia. Desse modo, compreende-se
que as transformações espaciais são reguladas
16º SHCU pela lógica acumulativa do capital, obedecendo
30 anos . Atualização Crítica
às mudanças impostas pelos principais agentes
1978 produtores do espaço (CORREA, 1989). Essas mo-
dificações e alterações, referentes ao processo to e infraestrutura, mas sim também servir como
de densificação das cidades, pode ser notado em ferramentas de distinção, diferenciando a região
seus centros tradicionais, em que os conflitos central e seu entorno mais rico das demais áreas
das antigas e novas espacialidades devem ser da cidade, beneficiando os que possuíam poder
reguladas a fim de abrigar, de forma integrada, aquisitivo para morar nesse setor.
os novos planejamentos da urbe.
Antigas e simples construções foram co-
Acerca da CI, ela tem origem a partir da experiên- locadas abaixo. Abriram espaço para outra
cia de reabilitação do centro histórico da cidade escala de edifício, de diversos pavimentos,
de Bolonha, Itália, iniciada nos últimos anos da com usos e ocupantes selecionados e com
década de 1960, e no urbanismo progressista padrões construtivos e estéticas arquite-
italiano da década de 1970 (ZANCHETI, LAPA, tônicas controladas. Com as restrições de
2016), tendo seus princípios sistematizados na uso e a multiplicação do aproveitamento do
Declaração de Amsterdã de 1975. Desde então a solo em áreas valorizadas pelas obras de
CI tem sido apropriada pelo planejamento urbano infra-estrutura, o capital imobiliário saiu
sob diferentes formas, não apenas para os centros beneficiado. (QUEIROZ, 2008, p.195)
históricos, mas para a cidade como um todo.
A formação de Campina Grande tem origem em
Ao propor estratégias para o planejamento me- suas relações comerciais, inicialmente com o
tropolitano a luz da CI, Lacerda, Zancheti e Diniz comércio de farinha e rapadura, atraindo viajantes
(2000) apontam que a metrópole revela diversos de várias cidades da Paraíba e de Estados vizi-
tempos e, portanto, diversas manifestações cultu- nhos para se “aventurarem” no ramo econômico
rais nas formas dos seus habitantes, devendo ser (ANDRADE, 2014). Em 1790, o povoado é elevado
compreendida como uma unidade espacial, con- à categoria de Vila, sendo chamada de Vila Nova
formando um imenso patrimônio. Sendo assim, ela da Rainha, restringindo-se à duas ruas, algumas
seria decorrente do “acúmulo histórico de práticas casas e uma capela. Em 1864, a Vila, já crescida
urbanizadoras que modelaram um território com o
em casas e com alguns equipamentos, torna-se
uso de processos de estratificação (a arqueologia
cidade, possuindo 1800 habitantes, quatro ruas e
da ocupação urbana) e justaposição dos vários
o mesmo número de largos, onde esses abrigavam
produtos da ação humana de domínio da natu-
as principais relações de trocas, juntamente com
reza” (LACERDA, ZANCHETI, DINIZ, 2000, p.81).
os dois mercados públicos. Também é válido con-
Nesse contexto, o centro histórico é compreen- siderar a construção do primeiro açude da cidade,
dido como “o lugar da máxima estratificação das construído entre 1828 e 1830 pelo governo provin-
práticas urbanizadoras e do acúmulo de signifi- cial paraibano, hoje conhecido como Açude Velho.
cados culturais” (LACERDA, ZANCHETI, DINIZ,
Os principais responsáveis pelo crescimento da
2000, p.82), estando a questão da temporalidade
cidade, segundo Andrade (2014), foram a chegada
associada a dois conceitos: permanência – refe-
do trem em 1907, a Luz elétrica em 1925, o primeiro
rente às parcelas praticamente estáveis; e mu-
sistema de abastecimento de água em 1927 e o
dança – relativa à necessidade de se adaptar às
exigências do mundo contemporâneo. empório do ouro branco, entre 1920-1940, sendo
esse último um dos maiores indutores para as
No caso de Campina Grande, a valorização da transformações do ambiente citadino. Devido a
sua área central pode ser compreendida histo- isso, já nas primeiras décadas do século XX Cam-
ricamente, já que se constituía como principal pina Grande exercia forte influência nas cidades e
foco para os chamados planos de melhoramento estados vizinhos. A chamada “capital do Nordeste”
e embelezamento, presentes nas gestões muni- e “Liverpool Brasileira” (QUEIROZ, 2008) chegou a
cipais entre as décadas de 1930 e 1940 (QUEIROZ, ser a maior distribuidora do mercado algodoeiro
2008). Queiroz (2008) reforça que a criação de do Brasil e a terceira do mundo. No entanto, na
novos eixos viários e o investimento na principal percepção dos governantes e empresários locais,
centralidade da cidade, principalmente após a esses títulos não condiziam com a estética que
conclusão dos serviços de saneamento, visaram a cidade apresentava, pois essa não possuía “um
não apenas atender às novas demandas de trânsi- ar de modernidade”.
EIXO TEMÁTICO 2 De acordo com Somekh (2014), a modernização
corresponde à necessidade constante que o ca-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS pitalismo possui de buscar o aumento da pro-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES dutividade, por meio de avanços tecnológicos e
novas formas de organização da cidade. Dessa
maneira, o processo de modernização passou
a ser associado à verticalização e alteração do
traçado urbano - longas e largas avenidas- ba-
seados nos planos urbanísticos internacionais
(SOMEKH, 2014).

“A localização dessas edificações caracte-


rizou-se, basicamente, pela reprodução de
espaços (concentração) e pela busca de no-
vas fronteiras (expansão). Quanto à sua pro-
dução, constata-se que o espaço urbano não
era entendido como “lugar”, base de repro-
dução do capital, mas como parte integran-
te do processo de acumulação e, portanto,
sujeito às leis do valor. (SOMEKH, 2014, p.29) ”

Tendo em vista esse processo de produção em


áreas históricas e em seu entorno imediato, Veras
(2017) considera que as zonas históricas prote-
gidas por leis, em sua maioria, não consideram
a paisagem como parte do patrimônio, não pre-
servando inteiramente as bordas desse perímetro
histórico e sua relação visual. De acordo com a
autora, a verticalização é a principal responsável
por essas alterações, pois onde antes visualmente
tinha-se como referência as torres das igrejas
como ponto focal desse setor urbano, tem-se
hoje as torres residenciais como principal cartão
postal dessas áreas.

Essa verticalização explica-se principalmente


pela inspiração no código de obras de Chicago,
EUA, que sintetiza as contribuições da Escola
de Chicago1 (Arquitetura) no final do século XIX
e início do século XX, envolvendo a noção de ar-
ranha céu e o vinculando ao progresso urbano.
A essas ideias associa-se às características da
verticalidade: o aproveitamento intensivo da ter-
ra urbana (densidade) e o padrão de desenvolvi-
mento tecnológico do século XX, demonstrando
a relação verticalização versus adensamento

1. Estilo baseado na ruptura com os estilos predominantes


até então nos Estados Unidos da América, numa arquitetura
16º SHCU
nova, numa nova tipologia, numa arquitetura tipo, mesclada
30 anos . Atualização Crítica
a um novo sistema estrutural onde a forma segue a função
1980 e é definida pela estrutura.
(SOMEKH,2014). Relacionando esse processo às verticalização com edifícios de uso misto nas
cidades em “modernização” no interior do país, principais ruas da cidade, sendo esses o Edifício
tem-se a cidade de Campina Grande também Rique, final da década de 1950, Edifício Palomo,
incorporando essas modificações, iniciando a 1962, Edifício Lucas, 1963 (Figura 2).

Figura 2: Verticalização do morar no Centro de Campina Grande, imagem 1: Edifício Rique, final da década de 50, imagem
2: construção do Edifício Lucas, início da década de 60. Fonte: Retalhos Históricos de Campina Grande, disponível em:
cgretalhos.blospot.com

Assim como analisado por Veras (2017) na cidade Parque Parque Vergniaud Warderley, segundo a
de Recife, Campina Grande também passou por Lei Municipal N° 4190 de 2004.
processos de alteração da sua paisagem em torno
dos chamados cartão-postais. O mercado de habi-
tação verticalizado passou a buscar novas áreas já
consolidadas de infraestrutura e valorizadas pela
presença de equipamentos públicos, construindo
um novo vetor de valorização na região central.

Nessa perspectiva, Santos (2018) comparou a


verticalização na área entorno do Açude Velho
nos anos 2000 e 2010 (Figura 3). O estudo revela
a sobreposição visual de elementos verticais ao
norte do Açude Velho, região que abriga a Área de
Preservação Rigorosa- mostrando a mudança na
paisagem ao longo dos anos devido à modificação
da moradia. É válido considerar que o Conjunto da
área do Açude Velho também é tombado indivi-
dualmente pelo IPHAEP (2001) e delimitado como
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

Figura 3: Mapa da Verticalização no entorno do Açude


Velho, imagem 1: verticalização em 2000, imagem 2: ver-
ticalização em 2010. Fonte: SANTOS (2018)

Ao olhar para o Açude Velho histórico pode-


-se ver uma predominância dos elementos
naturais e industriais na composição da sua
paisagem, enquanto que na atualidade a pai-
sagem urbana da área possui um forte con-
traste entre sua paisagem natural, composta
principalmente pelo corpo d´agua do açude,
juntamente com a verticalização dos edifí-
cios implantado no local (SANTOS, 2018, p.96).

Em 1990, a área central próxima do Açude Velho


já se encontrava ocupada e valorizada devido a
transformação desse espaço para atividades de
lazer, inauguração do Parque da Criança e tam-
bém a chegada de empreendimentos gastronô-
micos em seu entorno (SANTOS, 2018). Devido a
isso, as demolições na área são intensificadas,
substituindo as antigas residências - chalés e
casas modernistas - e componentes industriais
por novos condomínios habitacionais, trocando
a moradia unifamiliar pela mulltifamiliar através
da verticalização (SANTOS, 2018).

Em relação às essas modificações no tecido


urbano nota-se a dificuldade de “harmonizar” as
16º SHCU novas edificações com as já existentes, assim
30 anos . Atualização Crítica
como em obedecer a legislação de tombamento
1982 e preservação da paisagem. Uma das grandes
questões levantadas pelos teóricos e práticos urbano do município. Na lei orgânica municipal é
da Conservação Integrada é como manter um imposto no art.265 uma comissão executiva per-
processo de transformação do território que manente do patrimônio histórico campinense, que
não cancele a herança deixada anteriormente, seria melhor discutido em decretos posteriores,
incluindo a ‘harmonia’ do ponto de vista da cultura, todavia, não aborda posteriormente sobre essa
do ambiente, das tradições construtivas e da questão. Na lei complementar sobre as atribui-
forma (ZANCHETI, LAPA, 2012). ções das secretarias, a questão patrimonial (sua
fiscalização, manutenção e designação) não é
imposta diretamente a nenhuma delas. Apesar
da legislação afirmar que a secretaria de cultural
O PATRIMÔNIO HISTÓRICO: A LEGISLAÇÃO é responsável pela preservação do patrimônio
PATRIMONIAL NO ESPAÇO E NA GESTÃO cultural, as suas gerências são estabelecidas
apenas para teatros e museus. Sendo assim, po-
de-se perceber que embora o patrimônio histórico
Quanto a sua delimitação os sítios históricos podem esteja disposto em muitas legislações munici-
ser regidos por legislações federais, estaduais e/ pais, essas não compreendem a sua totalidade e
ou municipais. No caso estudado os órgãos res- constituem-se vagas quanto à real preservação
ponsáveis são o Instituto de Patrimônio Histórico do conjunto arquitetônico e urbano.
e Artístico Nacional (IPHAN), IPHAEP e a Prefeitura
Municipal de Campina Grande (PMCG), respectiva-
mente. O IPHAN é responsável pelo tombamento
e delimitação de centralidades históricas rela-
cionadas ao período colonial e barroco, alusivo à
formação das primeiras cidades brasileiras. Sen-
do assim, o IPHAN não possui sítio tombado pelo
conjunto material em Campina Grande, mas sim
pelo conjunto imaterial correspondente à Feira
Central da cidade (figura 4), sendo importante a
preservação dos bens materiais para a continuação
das manifestações artísticas e culturais no local.
O IPHAEP possui como peculiaridade a delimita-
ção de centralidades históricas importantes no
Estado, delimitando uma Zona de Preservação
Rigorosa e uma Zona de Preservação do Entorno
(Figura 4), além do tombamento isolado de imóveis.

Em âmbito municipal há projetos e decretos que


delimitam uma área preservação, como a Lei Mu-
nicipal n°3721/1999 que define a Zona de Preserva-
ção 1. O Plano Diretor de 2006 também estabelece
uma Zona Especial de Interesse Cultural (ZEIC),
conforme o art. 45 e art.46 da Lei Complementar
n° 003 (Figura 4). No entanto, é importante desta-
car que os documentos referentes à preservação
da área histórica, leis estaduais e municipais,
deixam em aberto os instrumentos e normativas
referentes à preservação.

Ainda sobre o Plano Diretor, o artigo que trata da


ZEIC discorre que os índices urbanísticos de uso
e ocupação do solo dessa área serão definidos
pelo órgão responsável sobre o planejamento
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

Figura 4: Legislação Patrimonial e recorte adotado. Fonte:


BOMFIM, 2020.

O IPHAEP, criado a partir do decreto 5.225 de


1971, foi fundado com o objetivo de legislar sobre
o patrimônio histórico, artístico e paisagístico do
estado (OLIVEIRA,2009). No entanto, inicialmente
as políticas do instituto eram voltadas mais pre-
cisamente para a capital do estado, distanciando
das problemáticas patrimoniais do interior. Fato
esse que pode ser relacionado com a grande se-
melhança das diretrizes do IPHAEP com as do
IPHAN, restringindo suas ações para os centros
barrocos e/ou coloniais. Quanto aos critérios de
tombamento a legislação de 1978 declara:

I- Construções e obras de arte de notá-


vel qualidade estética ou particularmente
representativa de determinada época ou
estilo;
16º SHCU II- Edifícios, monumentos, documentos
30 anos . Atualização Crítica
e objetos intimamente vinculados a fatos
1984 memoráveis da História Local ou a pessoa
de excepcional notoriedade; vas protecionistas são tímidas ou inexistentes e
III- Monumentos naturais, sítios e paisa- as transformações são paulatinamente maiores
gens, inclusive os agenciados pela indústria na paisagem e no tecido urbano histórico, o que
humana, que possuam especial atrativo ou difere das políticas internacionais de preservação.
sirvam de ‘habitat’ a espécies interessantes
da flora e da fauna locais;
IV- Bibliotecas e arquivos de acentuado A TRANSFORMAÇÃO DO MORAR: VERTICALIZAR
valor cultural; PARA RENDER MAIS
V- Ruas, logradouros, praças, largos, tudo
enfim que possa caracterizar o ambiente
histórico-arquitetônico, de quaisquer ci- Acerca da preservação dos sítios e centros his-
dades do Estado. tóricos, a Carta Patrimonial de Veneza (1964) re-
presentou um marco introduzindo o conceito de
(Lei n°7.819, 24/10/78, publicado no D.O. salvaguarda não somente do monumento, como
Estado em 26/10/78, p.3-5) também do meio em que se situa, sendo esse
imprescindível para o testemunho arquitetônico,
Algumas problemáticas surgiram ao longo da con-
histórico e urbano. A partir disso, reconhece-se o
solidação do IPHAEP, sendo uma delas a ausên-
valor tanto das edificações patrimoniais quanto
cia de uma legislação estadual que trata sobre o
das obras que foram incorporadas ao longo do
instrumento de tombamento, dificultando assim,
a sua implementação por parte do IPHAEP (OLI- tempo e adquiriram significação cultural.
VEIRA, 2009). Na cidade em estudo, o reconhe-
No entanto, quanto ao mercado de habitação nas
cimento do patrimônio histórico iniciou-se com
áreas históricas, Bernadino (2019) afirma que as
o tombamento de alguns imóveis isolados, sendo
áreas urbanas, ao passarem por processos re-
esses o edifício n°718, em 1997, o Cine Capitólio,
pentinos de intensificação da produção de novas
2000 e o conjunto da área do Açude Velho, Museu
espacialidades residenciais; sofrem muitas vezes
Histórico de Campina Grande, Casa Inglesa, Câ-
com a chegada de empreendimentos imobiliários
mara municipal (atual biblioteca municipal), sede
com tipologias e padrões construtivos diferentes
da Prefeitura Municipal e a Catedral de Nossa
da realidade local. Ainda de acordo com a autora,
Senhora da Conceição, todos no ano de 2001.
esses novos empreendimentos constituem-se
Somente a partir de 2002 o IPHAEP passa a abrigar como novas formas de morar, contrapondo-se
o interior do estado em suas políticas preser- ao estoque produtivo anterior, fato que pode ser
vacionistas de delimitação do centro histórico. notado no entorno do Centro Histórico de Campi-
Sendo assim, em 2004 é delimitado a Área de na Grande, principalmente ao redor do principal
Preservação Rigorosa (APR) de Campina Grande, cartão postal da cidade: o Açude Velho.
constituindo as edificações, ruas, largos e praças
como objetos de conservação. Em 2013 é criado Com o objetivo de entender espacialmente essas
a Área de Preservação do Entorno (APE) com o dinâmicas urbanas, foi realizado o mapeamen-
objetivo de ser uma zona de amortecimento da to e síntese dos dados do universo dos Censos
ambiência entre a APR e as zonas limítrofes. Demográficos realizado pelo IBGE (2000 e 2010)
buscando-se compreender espacialmente os
Contudo, a falta de fiscalização e detalhamento dados obtidos por Sousa e Anjos (2018). Primei-
da legislação do CHCG coloca em cheque a sua ramente, utilizou-se de mapas com as divisões
preservação devido a ausência de instrumentos setoriais, através das ferramentas google Earth e
e parâmetros específicos que definem a ocupa- software qgis, visualizando os aspectos referen-
ção no local. Em vista disso, o setor imobiliário tes à condição de ocupação – Próprio ou Alugado
avança cada vez mais na APE, sem zoneamento - e ao tipo de Domicílio Particular Permanente
e/ou índices urbanísticos específicos, afetando a (DPP) - Casa, Cômodo e Apartamento. Esses da-
relação com a paisagem e transformando social- dos foram escolhidos devido serem importantes
mente a área, através da intensa valorização da para a questão habitacional, permitindo observar
terra para habitação de alta renda. As normati- alterações no modo de morar no centro histórico
EIXO TEMÁTICO 2 e no seu entorno. Sendo assim, para cada um dos
Censos foi elaborado um mapa com os dados de
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS cada setor, sobrepondo sobre esses resultados
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES de mapas já realizados pelas pesquisas anteriores
do MICH-CG, como os de morfologia e pesquisa
de preços (RIBEIRO, ANJOS,2019).

Analisando os dados do Censo 2000, observa-se


a predominância da tipologia casa e da moradia
própria. Os setores 07, 13 e 23 (figura 5), respec-
tivamente, possuíam aproximadamente 83%,
62% e 77% de casas -registrando as maiores
concentrações dessa tipologia em toda a área
de estudo- com predominância de lotes médios
e grandes, com 4 recuos. Já no Censo 2010, as
transformações espaciais e a valorização do en-
torno do açude velho – setores 07 e 13 – são inten-
sificadas para a moradia multifamiliar diminuindo
o número de casas, que caem para 31% e 45%,
ao passo que a tipologia apartamento tornou-se
a mais predominante na área. Válido considerar
que esses setores antes eram conhecidos pelas
fábricas às margens do açude velho e pelos chalés
e residências modernistas em seus lotes maiores
ao norte, próximo a Área de Preservação Rigorosa.

O setor 23 apesar de possuir também casas em


lotes grandes, permaneceu com poucas mudan-
ças no intervalo analisado. Um dos fatores contri-
buintes é por esse setor encontrar-se próximo à
área de clínicas e serviços médicos do bairro da
Prata, havendo uma valorização maior para esse
uso, em que muitos edifícios com tipologia casa
não possuem ocupação para moradia.

Nesses três setores mencionados a prevalência


de imóveis próprios ainda continuam, reforçando
que devido ao alto preço nesses novos edifícios
a prevalência são pela aquisição de uma moradia
permanente, em que o morar seguro está bastante
associado às torres habitacionais. Esse processo
ainda é reforçado pelo mercado imobiliário, em
que o entorno do Açude Velho continua a ser o
mais valorizado para venda de imóveis (RIBEIRO,
ANJOS, 2019).

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1986
Figura 5: Mapa dos setores censitários e transformação da paisagem entorno do Açude Velho nas últimas duas décadas.
Fonte: CAD SEPLAN, 2016. Mapa: BOMFIM, 2020. Imagem 1990: Retalhos Históricos de Campina Grande (disponível em:
cgretalhos.blospot.com). Imagem 2020: BOMFIM, 2020.

Os setores 04, 09 e 05, que abrigam a Zona de tos, principalmente no setor 1. Essas tendências
Preservação 1, possuem poucas transformações apresentadas e que vem sendo reforçadas entre
quanto aos quesitos analisados para a habitação. 2010 e 2020 são consequência da valorização que
Esses setores compreendem a principal área ocorre ao entorno do Açude Velho, a qual busca
comercial da cidade, e também, o núcleo mais cada vez mais a expansão para essas áreas do
forte de proteção patrimonial (setor 5), incluindo entorno imediato, transformando a paisagem
as históricas ruas Marquês do Herval, Venâncio local (SANTOS, 2018).
Neiva e Maciel Pinheiro. É válido considerar ainda,
que na visita em locus foi observado nessa área Os setores 2 e 3 abriga atualmente uma identidade
placas de aluguel para habitação, principalmente heterogênea, possuindo concentração de deter-
de apartamentos no pavimento superior de lojas minados usos e tipologias em certos fragmen-
comerciais. A prevalência observada em todo o tos, como por exemplo o predomínio de edifícios
setor é por anúncios próprios, sendo disponibiliza- misto com 3- 4 pavimentos na Rua 13 de maio e
do número pessoal para contato, não envolvendo na Avenida Floriano Peixoto. Já algumas outras
promotores imobiliários na transação, caracteri- áreas encontram-se vazias e/ou depredadas,
zando um mercado mais informal para habitação. onde algumas edificações já foram demolidas
para abrigarem estacionamentos, devido à grande
Os setores 01 e 06, consistem em áreas de tran- demanda do Parque do Povo, local de eventos da
sição entre a região estritamente comercial e cidade. No entanto, é válido considerar também
a área habitacional, estando localizada no pe- a concentração de casas sem recuos e alguns
rímetro de preservação rigorosa tombado pelo edifícios habitacionais na medida em que es-
IPHAEP (2004). Entre os Censos de 2000 e de 2010 ses dois setores aproximam-se dos setores 1 e
houve o acréscimo do número de apartamentos 7, representando uma extensão do mercado para
e de imóveis alugados, processo que continua habitação multifamiliar.
devido ao aumento do número de edifícios mis-
EIXO TEMÁTICO 2 Em conclusão desses dados, é válido salientar
também as transformações ocorridas no setor 10,
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS onde houve um aumento significativo no número
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES de apartamentos ainda nessa primeira década do
século XXI, 31% em 2000 e 57% em 2010. Esse
processo continua nas análises feitas por RIBEIRO
e ANJOS (2019) revelando uma concentração de
imóveis multifamiliares para aluguel e venda no
setor já próximo do bairro Conceição. O setor 11,
compreendendo mais a parte comercial, possui
uma dinâmica maior para apartamentos e aluguel,
permanecendo sem muitas alterações nas aná-
lises feitas pelo Censo. O setor 12, que abriga o
perímetro da Feira Central, é o único a apresentar
ainda no último Censo a tipologia cômodo com
percentual acima de 10%, revelando uma espe-
cificidade do mercado habitacional nessa área.

Entende-se, portanto, que as dinâmicas ocorri-


das são diretamente associadas aos processos
produtivos dos principais agentes do espaço ur-
bano. As transformações imobiliárias possuem
heterogeneidade quanto à oferta e demanda ha-
bitacional, dependendo de fatores específicos e
sociais, gerando os submercados residenciais.

Os submercados imobiliários são em síntese a


soma de formas específicas e sociais que de-
terminam as interações naquele local, sendo a
edificação o principal produto a ser transacionado
quanto à produção, circulação e consumo (BER-
NADINO,2019). Nas centralidades tradicionais o
fluxo de produção dos novos empreendimentos
habitacionais em seu entorno, como no caso em
estudo, aponta para a necessidade de compre-
ender os impactos da produção dessas novas
unidades sobre a dinâmica de circulação dos imó-
veis mais antigos, denotando uma relação entre
mercado imobiliário de imóveis novos e usados
(BERNADINO, 2019).

Tratando do mercado imobiliário nas áreas cen-


trais tem-se que a valorização da terra e a procura
para investir nesse local não é homogênea. Com
o objetivo de entender as dinâmicas no mercado
imobiliário nos Centros Históricos, Lacerda (2018)
elabora um modelo interpretativo a partir do es-
tudo da cidade de Recife, estabelecendo que no
caso do mercado imobiliário nos centros histó-
16º SHCU ricos, os produtos são materialmente diversos,
30 anos . Atualização Crítica
quanto ao tipo (sobrado, casa, apartamento, sala,
1988 loja, garagem), tamanho, material de construção
e também localização. A autora ainda reforça que residencial, em lotes médios e grandes, predomi-
são também negociados, tanto imóveis em ruína, nância de imóveis próprios.
quanto outros em excelente nível de conservação.
S.4: Tipologia de edificação horizontal (edifícios
Pode-se compreender que as diferenças de preço com 3-4 pavimentos), multifamiliar, uso misto,
não são unicamente relativas ao produto imo- em lotes médios e compridos, predominância de
biliário, mas também ao que se refere às suas imóveis alugados.
diferenças espaciais, às diversas localizações
existentes no centro histórico, como por exemplo, S.5: Tipologia da edificação horizontal (térrea e
a proximidade com espaços públicos, ofertas 2 pavimentos), edificações sem recuos e com 1
de infraestrutura, serviços e concentração de recuo, uso misto, lotes médios e pequenos, perí-
atividades (LACERDA, 2018). metro da Feira Central e região influenciada, com
dinâmica semelhante para habitação.
Utilizando-se da metodologia de Bernadino (2018)
fez-se o estudo da identificação e caracteriza- S.6.1: Tipologia de edificação vertical (>20 pavi-
ção dos submercados habitacionais no CHCG mentos), multifamiliar, uso exclusivo residencial,
e em seu entorno. Desse modo, os submerca- em lotes médios e grandes, predominância de
dos foram identificados a partir da tipologia das imóveis próprios.
edificações, padrões de ocupação e dinâmicas
S.6.2: Tipologia de edificação horizontal (1-2 pavi-
do mercado imobiliário, considerando também
mentos) e vertical (>10 pavimentos), unifamiliar e
todas as análises já apresentadas no recorte
multifamiliar, uso exclusivo residencial, em lotes
temporal dos últimos vinte anos (figura 6). Para
médios e grandes, predominância de imóveis
a classificação da tipologia as edificações foram
próprios.
consideradas horizontais com até 4 pavimentos
e verticais acima de 5, possuindo como critério S.7: Tipologia de edificação horizontal (1-2 pavi-
a obrigatoriedade do elevador. mentos), unifamiliar, em lotes pequenos e médios,
predominância de imóveis alugados
No âmbito da classificação realizada é importante
destacar a subdivisão do submercado habitacional S.8: Tipologias de edificação horizontal (2-3 pa-
6. Esse fato é decorrente da expansão da valori- vimentos) e vertical (até 10 pavimentos), multifa-
zação imobiliária para “Torres Habitacionais” nes- miliar, uso misto e exclusivo residencial, em lotes
se setor, onde já existe uma consolidação maior pequenos e médios, predominância de imóveis
desse processo no Submercado 6.1, ao passo que alugados.
em 6.2 ainda há prevalência de alguns chalés e
de casas modernistas. No entanto, em visita em S.9: Tipologias de edificação horizontal (3-4 pavi-
locus é notório a quantidade de terrenos vazios, mentos) e casas térreas coladas no lote, multifa-
casas e antigos chalés a venda ou depredados em miliar e unifamiliar, uso misto, em lotes pequenos
ambos os setores (figura 6), demonstrando uma e médio, predominância de imóveis alugados.
relação entre as espacialidades antigas e novas,
em que os edifícios antigos são substituídos por S.10: Tipologias de edificação horizontal (3-4
novas tipologias. pavimentos) e casas térreas com 2 e 4 recuos,
multifamiliar e unifamiliar, uso misto nas avenidas,
S.1: Tipologia de edificação horizontal (1-2 pavi- lotes médios, equilíbrio entre imóveis próprios e
mentos), unifamiliar, em lotes médios e grandes, alugados.
com predominância de imóveis próprios.
S.11: Tipologia horizontal (térreo-2 pavimentos),
S.2: Tipologia de edificação horizontal (edifícios edificações sem recuos, lotes pequenos e muito
com 2-3 pavimentos), multifamiliar, uso misto, em pequenos, predomínio de habitação, unifamiliar,
lotes pequenos e muito pequenos, predominância proximidade com instituições públicas.
de imóveis alugados.

S.3: Tipologia de edificação vertical (edifícios


com 6-10 pavimentos), multifamiliar, uso exclusivo
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

Figura 6: Mapa dos Submercados Habitacionais. Fonte:


BOMFIM, 2020.

Os fornecimentos de infraestrutura nas áreas


centrais, historicamente, marcaram a predomi-
nância das habitações de maior status social, no
entanto, o mercado em vista de novos locais inse-
re na dinâmica espacial uma depreciação desses
centros e a formação de novas centralidades para
moradia. Lacerda (2018) afirma que os promotores
imobiliários lançam novas combinações e inova-
ções, em termos de produtos e espacialidades em
benefício dos proprietários fundiários de outras
porções da cidade, em detrimento até mesmo de
antigas espacialidades, que terão seus imóveis
desvalorizados e consequentemente, vendidos
16º SHCU a preços consideravelmente mais baixo. Assim,
30 anos . Atualização Crítica
o entorno dessas centralidades tradicionais são
1990 marcadas pela destruição criativa, que consis-
te na aniquilação de espacialidades existentes desses serviços. Afinal, é a concentração de com-
para abrigar a criação de novos produtos, como pradores de determinados produtos, em certas
observado nos submercados 6.1 e 6.2. áreas e ruas, e a raridade de estabelecimentos
disponíveis para transações que conferem um
Pode-se perceber, somando todas as análises sobrelucro decorrente da localização. Essa situ-
realizadas, que no início dos anos 2000 a verti- ação demonstra risco para as relações espaciais,
calização, no recorte estudado, ainda não pos- sociais, arquitetônicas e paisagísticas nas cen-
suía uma concentração e a moradia horizontal e tralidades de preservação histórica, revelando
unifamiliar compreendiam a predominância do a necessidade de instrumentos e parâmetros
mercado habitacional. Em 2010 já pode ser nota- para a área de preservação rigorosa e área de
do a tendência por conformação de fragmentos, preservação do entorno.
com a aproximação dos novos empreendimen-
tos às áreas próximas ao Açude Velho, formando Pode-se compreender, portanto, que a habitação
concentrações. Esse processo continuou a ser nas áreas centrais é essencial para a permanência
reforçado na última década, com uma confor- da vitalidade urbana e preservação dos imóveis.
mação de fragmento consolidada, e tendendo à No entanto, em muitos casos de revitalização em
sua expansão. Sob essa ótica, é perceptível que centros históricos a gentrificação aconteceu devi-
a paisagem sofreu também alterações ao longo do ao grande investimento do setor imobiliário nas
dessas últimas décadas devido ao incentivo da áreas revitalizadas, comprometendo a população
verticalização da moradia, contrapondo-se à pai- que residia anteriormente e, também as espa-
sagem anterior, final da década de 1990. cialidades já degradas, em que em sua maioria
tornaram-se ruínas e posteriormente torres ha-
O morar no centro, com proximidade ao principal bitacionais. Os processos apresentados revelam
cartão postal da cidade e aos essenciais serviços um conjunto de transformações que ocorreram
e equipamentos públicos, é valorizado para essas nos últimos vintes anos e que são intensificados
novas torres habitacionais, ao passo que outras cada vez mais, trazendo a necessidade de polí-
edificações, que também possuem a mesma ticas que assegurem a efetiva preservação do
vantagem, são deixadas em desvalorização pelo patrimônio edificado, do seu conjunto urbano e
mercado imobiliário; e sem receberem atitudes da sua paisagem.
governamentais capazes de promover a circula-
ção e preservação desses bens na Área Histórica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É possível perceber que a relação entre imóveis


novos e antigos no CHCG é de notável existência.
As dificuldades de permanência das antigas
espacialidades estão em sua maioria nos imóveis
residenciais, que para competir com o uso
comercial utiliza dos índices de aproveitamento
do solo para lucrar no setor habitacional. Em vista
disso, relações formais e informais, espaciais e
sociais acontecem, onde os incorporadores imo-
biliários constituem-se como principais ditadores
das suas modificações.

As análises apresentadas mostram que a desigual-


dade de infraestrutura e equipamentos públicos
de qualidade, entre as áreas, corroboram para
uma valorização maior nos setores detentores
EIXO TEMÁTICO 2 REFERÊNCIAS
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES ANDRADE, J. B. F. Mitologias do progresso na
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BERNADINO, I. L. Submercados residenciais


em áreas centrais tradicionais: Novas espa-
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imobiliária no Recife”. XVIII ENANPUR. Natal,
2019.

BERNADINO, I. L. Mercado Imobiliário residen-


cial em áreas centrais tradicionais: Produção
de novas espacialidades e obsolescência imo-
biliária na definição de submercados residen-
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urbano- Universidade Federal de Pernambuco.
Recife, 2018.

BERNARDINO,I. L; LACERDA, N. Centros his-


tóricos brasileiros: tensões entre a obsoles-
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30 anos . Atualização Crítica
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EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES A pesquisa tem o objetivo de apresentar o
processo histórico de musealização da Manu-
factura Santa Helena, em Jacareí-SP, entre
vídeo-pôster 1985-1990, como uma significativa tentativa de
preservação do patrimônio industrial paulista.
Trata-se de um estudo de caso histórico-docu-
O MUSEU DA INDÚSTRIA mental, que se baseou no Fundo Waldisa Rússio
do arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros
E A MUSEALIZAÇÃO DA da Universidade de São Paulo (IEB-USP). Neste
processo, destaca-se: a atuação da museóloga
MANUFACTURA SANTA HELENA Waldisa Rússio no processo de transformação
da Manufactura em parte do Museu da Indús-
tria, Comércio, Ciência e Tecnologia do Estado
THE MUSEUM OF INDUSTRY AND THE MUSEALIZATION de São Paulo (1979-1987); e o intuito do Museu
OF THE SANTA HELENA MANUFACTURY da Indústria em documentar o processo de in-
dustrialização brasileiro frente a modernização
EL MUSEO DE LA INDUSTRIA Y EL MUSEALIZACIÓN DE do país, definido como Museu-Processo, ‘Obra
LA FABRICACIÓN SANTA HELENA Aberta’, pois preservaria a arquitetura, modos
de fazer, ferramentas e maquinários específi-
cos da artesania empregada.
NOVAES, Sophia
Graduanda em Arquitetura e Urbanismo; FAU USP
sophiadenovaes@usp.br HISTÓRIA DA ARQUITETURA E DO URBANISMO
MUSEOLOGIA PATRIMÔNIO INDUSTRIAL
SARRAF, Viviane
Pesquisadora Colaboradora e Professora do Programa de
Pós Graduação; IEB USP
vsarraf@gmail.com

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

1994
ABSTRACT RESUMEN

The present research has the objective to pre- La presente investigación tiene como objetivo
sent the musealization historical process of the presentar el proceso histórico de musealización
Santa Helena Manufactory, at Jacareí-SP, be- de la Manufactura de Santa Helena, en Jacareí-
tween 1985-1990, as a meaningful attempt of -SP, entre 1985-1990, como un intento significa-
preservate Sao Paulo’s industrial heritage. This is tivo de preservación del patrimonio industrial de
a historical-documental case based at the Insti- São Paulo. Se trata de un caso histórico-docu-
tute of Brazilian Studies at the University of São mental basado en el Fondo Waldisa Rússio del
Paulo (IEB-USP). In this process, staylights: the archivo IEB-USP. En este proceso, destaca: el
museologist Waldisa Russio’s role in the process papel de la museóloga Waldisa Russio en el pro-
of transformation of Santa Helena Manufactory ceso de transformación de la Manufactura Santa
in part of the Museum of Industry, Commerce, Helena en parte del Museo de Industria, Comer-
Science and Technology of the State of Sao Pau- cio, Ciencia y Tecnología del Estado de Sao Paulo
lo (1979-1987); and the purpose of Museum of In- (1979-1987); y el propósito del Museo de Industria
dustry in document the Brazilian industrialization en documentar el proceso de industrialización
process faced of the country modernization, de- brasileño en vista de la modernización del país,
fined as Process-Museum, ‘Open-Piece’, there- definido como Proceso-Museo, ‘Pieza-Abierta’, ya
fore it would preserve the architecture, ways to que preservaría la arquitectura, formas de hacer,
make, tools and specific machinery of the indus- herramientas y maquinaria propias de la artesa-
trys. nía empleada.

HISTORY OF ARCHITECTURE AND URBANISM MUSEOLOGY HISTORIA DE LA ARQUITECTURA Y EL URBANISMO


INDUSTRIAL HERITAGE MUSEOLOGÍA PATRIMONIO INDUSTRIAL
EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES A pesquisa tem como objetivo apresentar o pro-
cesso histórico de musealização da Manufactura
de Tapetes Santa Helena, Jacareí-SP, entre 1985 e
vídeo-pôster 1990, como uma significativa tentativa de preser-
vação do patrimônio industrial paulista. Trata-se
de um estudo de caso histórico-documental, que
O MUSEU DA INDÚSTRIA se baseou no Fundo Waldisa Rússio do arquivo
IEB-USP, com auxílio do Conselho Nacional de
E A MUSEALIZAÇÃO DA Desenvolvimento Científico e Tecnológico-CNPQ1.

MANUFACTURA SANTA HELENA O projeto de musealização foi proposto pelo Museu


da Indústria Comércio, Ciência e Tecnologia do
Estado de São Paulo(1979-1987), sob orientação
THE MUSEUM OF INDUSTRY AND THE MUSEALIZATION da museóloga e professora Waldisa Rússio (1935-
OF THE SANTA HELENA MANUFACTURY 1990). Rússio vislumbrou um museu setorial para
o local, com uma biblioteca específica do campo
EL MUSEO DE LA INDUSTRIA Y EL MUSEALIZACIÓN DE têxtil, um Centro de Criação e Restauro de Tape-
LA FABRICACIÓN SANTA HELENA tes e Tapeçaria, com exposições inéditas sobre o
processo industrial da fábrica e seu maquinário
específico, além de um serviço educativo. A ideia
de Rússio era promover o aspecto científico da
artesania empregada na manufatura, valorizando
os artesãos e criando um sistema de qualificação
em restauro têxtil, que serviria aos museus do
país. Desta forma, a memória do processo indus-
trial envolveria empresários, artesãos e ciência.

Embora não tenha se concretizado efetivamente,


em seus propósitos finais, por motivos discutidos
ao longo da pesquisa, esta empreitada representa
um ponto relevante nas discussões de preserva-
ção do patrimônio industrial no país. De maneira,
que a partir de pressupostos interdisciplinares,
teóricos e metodológicos da história da arquite-
tura e do urbanismo, museologia e preservação
do patrimônio, a pesquisa investiga algumas das
relações entre o projeto do Museu da Indústria
para a Manufactura Santa Helena e a preservação
do patrimônio industrial paulista.

Foram consultados e pesquisados documentos


em fonte primária, que posteriormente foram
catalogados no Sistema de Gerenciamento de
Arquivos-SGA do IEB-USP. Sistematizou-se as
informações coletadas de maneira textual e
iconográfica, à luz de referências bibliográficas
16º SHCU
multidisciplinares em preservação do patrimô-
30 anos . Atualização Crítica

1996 1. Bolsa de iniciação científica.


nio, museologia e história da arquitetura e do técnicas e tecnologias. Para isto, o plano muse-
urbanismo. Percorreu-se a ideia de biografia do ológico do projeto, descrito como “obra aberta”,
objeto, a partir da teoria de que o trabalho com tornaria o museu em Museu-Processo, pois re-
a historiografia é semelhante ao trabalho de um gistraria um objeto também em processo (SICCT,
tecelão, que trama os fragmentos da história 1981, in: Proposta Museológica, sem paginação).
(GINSBURG, 2007, p.7).
Dessa forma, a museóloga sonhava um Museu
da Indústria que se tornasse um “centro voca-
cional, de pesquisa e divulgação científica para
O MUSEU DA INDÚSTRIA ampliação industrial, sem esquecer os sócio-
-diagnósticos da contribuição da Indústria e do
O Museu da Indústria foi um projeto vislumbrado Comércio para os novos modos de viver do ser
em sua totalidade pela museóloga e professora
humano”(Arquivo IEB/USP, Fundo Waldisa Rús-
Waldisa Rússio (1935-1990). Este, nasceu na tese
sio, código WR-MI-0143, p. 11). Um museu que
de doutorado da museóloga, defendida em 1980,
estimularia pesquisas, estudos e vocações para
na Fundação Escola de Sociologia e Política de
São Paulo -FESP SP: “Um Museu da Indústria na um período de muitas transformações urbanas,
cidade de São Paulo”. O projeto foi implantado sociais e econômicas.
como Museu da Indústria Comércio, Ciência e
Segundo relatório de 1979, fora feito naquele ano
Tecnologia do Estado de São Paulo2 (1979-1987),
pela equipe do Museu da Indústria um levantamen-
pela Secretaria de Indústria, Comércio, Ciência
e Tecnologia do Estado de São Paulo, sob a coor- to bibliográfico da história da indústria brasileira,
denação de Rússio, pelo inciso XIII, em 17 de abril assim como a realização de anteprojetos, confe-
de 1979 (Arquivo IEB/USP, Fundo Waldisa Rússio, rências, promoção de estágios e ainda exposições
código WR-MI-0143, p.11). participativas (Arquivo IEB/USP, Fundo Waldisa
Rússio, código WR-MI-0139, p. 1). Demonstrando
A principal ideia do Museu seria musealizar o um ímpeto de estudo da realidade industrial do
processo de industrialização brasileiro frente período.
à modernização do país, sendo polinucleado e
com plurais frentes temáticas. Organizado em Há indícios de que a equipe do Museu, além de
categorias: museus setoriais e museus de fábri- uma pesquisa histórica, vinha realizando e promo-
ca, cada uma destas, teriam diferentes funções vendo diversas visitas à indústrias na época. Em
dentro do projeto. Os primeiros contariam a his- um relatório do Museu, encontra-se a descrição
tória de um segmento específico industrial, e os da visita de alunos da Escola Serviço Nacional de
segundos, teriam como objetivo tratar a história Aprendizagem Industrial -SENAI à fábrica “Coto-
de fábricas, que teriam suas ‘áreas de produção’
nifício Guilherme Giorgi”, no qual, há até mesmo
transformadas em museu (SICCT, 1981, in: Pro-
considerações e análises gerais dos alunos a res-
posta Museológica, sem paginação).
peito da condição dos trabalhadores industriais
A ideia de Rússio era documentar o presente e (Arquivo IEB/USP, Fundo Waldisa Rússio, código
dialogar sobre as perspectivas futuras, portanto, WR-MI-0136, p. 2).
não se tratava de somente documentar o passado
industrial. Desta forma, o museu seria composto Da mesma forma, acredita-se que vinha-se
de objetos-testemunhos como máquinas, objetos desenvolvendo medidas para se constituir um
fabricados, cartazes, catálogos e registros refe- acervo industrial. Em um registro de doação de
rentes às condições de vida dos operários, suas 1981, Rússio descreve que o Lanifício Minerva
(organizações Guilherme Giogi), havia doado uma
máquina de Fiação Platt Brothers & Co.Limite-
2. Existem variações encontradas no nome do Museu ao
d-OLDHAM- 1917, de bom funcionamento e bom
longo da documentação, como por exemplo, Museu da Indús-
tria, Comércio e Tecnologia de São Paulo-SICCT. Portanto, estado de conservação. A museóloga escreve que
ao chamar de Museu da Indústria, a pesquisa faz referência esta máquina “cuja função é produzir fios grossos
direta ao projeto em questão. de lã ou algodão, marca a transição do processo
EIXO TEMÁTICO 2 manual para o totalmente mecanizado” 3, foi a
primeira doação ao acervo do Museu da Indústria
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS (Arquivo IEB/USP, Fundo Waldisa Rússio, código
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES WR-MI-0144-ANE, p. 1).

Rússio entendia que a ideia de Museu da Indústria


não era nova, destacando no exterior museus com
a mesma temática, como:

1974- PARIS- Musée du Conservatoire des


Arts et Métiers; 1903- MUNIQUE- Deusts-
ches Museum (com um departamento de
Indústria). Nos Estados Unidos, além de
inúmeros museus ligados a setores in-
dustriais diferentes, ressalta o seguinte:
1926 - CHICAGO- Museum of Science and
Industry, WASHNGTON - National Museum
of History and Technology. Na ìndia, é notá-
vel o desempenho dos museus de Indústria
e Técnica. (Arquivo IEB/USP, Fundo Waldisa
Rússio, código WR-MI-0143, p. 3 e 4)

Já no Brasil, ressaltava as tentativas de Branco


Ribeiro4 que lançou a ideia pioneira de museus
municipais (1945), na qual propunha um museu
industrial para a cidade de São Paulo: “De certa
forma, consubstanciou-se, esse projeto, no Mu-
seu de Ciência e Técnica5 (fundação municipal)”.
Porém, Rússio acreditava que: “devido à ausência
de uma mentalidade profissional, teve frustra-
do o seu desenvolvimento, além de abandonar a
idéia de enfatizar a indústria” (Arquivo IEB/USP,
Fundo Waldisa Rússio, código WR-MI-0143, p. 3
e 4). Neste sentido, o Museu da Indústria se torna
valioso para a discussão do patrimônio industrial
no Brasil, como um projeto arrojado e singular, em
consonância com discussões de âmbito interna-
cional do período.

O porquê preservar o patrimônio industrial era


uma discussão inovadora no período, uma vez que
a ideia de “arqueologia industrial” passou a ser dis-
cutida na segunda metade do século XX. Embora
no século XVIII alguns autores tenham começado

3.Arquivo IEB/USP, Fundo Waldisa Rússio, código WR-MI-


-0144(ANEXO), p. 1.

4. Eurico Branco Ribeiro (1902-1978) foi um médico formado


pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo,
16º SHCU com grande atuação social.
30 anos . Atualização Crítica
5. Tentativa implantada na cidade de São Paulo entre 1980
1998 e 1990.
a discutir o tema, tendo em vista o crescimento trajes em jeans (Museu São Paulo Alpargatas); e
das cidades em meio à industrialização acelerada, um museu de uma pequena indústria de laminação
foi somente a partir de 1950, diante de demolições de alumínio. Para além disto, o Museu vinha se
de testemunhos arquitetônicos conhecidos pela dedicando a musealização da Manufactura Santa
sociedade, como a Estação Euston e Exchance Helena, projeto abordado então pela presente
Coal na Inglaterra, que o tema ganhou força e pesquisa. (RÚSSIO, 1983, In BRUNO, 2010, p. 157).6
visibilidade (Kuhl, 2018, p.38).

Desta maneira, o fenômeno das demolições tive-


ram como efeito a formação de um campo teórico A MANUFACTURA SANTA HELENA (1923-1992)
que passava a tentar conceituar “bens industriais”
e “arqueologia industrial”, para assim protegê-los. A Manufactura Santa Helena, reconhecida pela
Não obstante, o interesse pela arquitetura indus- produção de tapetes artesanais, com a técnica
trial avançou, como uma forma de preservar bens de nós, foi fundada pelos imigrantes húngaros
arquitetônicos industriais das transformações das Antônio Freedmann e seu irmão Martin Freed-
cidades (Kuhl, 2018, p.42), com forte apelo ao pla- mann, no Bairro Bela Vista, na cidade de São Pau-
nejamento urbano e territorial (Kuhl, 2018, p.22). lo, em 1923. A princípio, a fábrica tinha suas ativi-
dades centralizadas nas técnicas de tecelagem,
Inúmeros documentos internacionais foram lan-
mas a partir de 1951, mudou-se para a cidade de
çados no período, como a Carta de Veneza (1964)
Jacareí, onde pôde expandir sua atuação. Passou
e a Carta de Washington (1987) pelo Conselho
a trabalhar também com tinturaria e fiação, e com
Internacional de Monumentos e Sítios- ICOMOS.
outras técnicas de tapeçaria, em arraiolo e kilim
Documentos que versam sobre a preservação (
(VIDAL, VECCHIO, 1986, p. 126).
de monumentos históricos, sendo de extrema
importância para os fundamentos da preserva- A presença de mulheres artesãs era grande e havia
ção do patrimônio até os dias atuais, ainda que o costume de chamarem a Fábrica de “família”
não tivessem discussões aprofundadas sobre os (VIDAL, VECCHIO, 1986, p. 127). O fundador fazia
aspectos industriais do patrimônio (Kuhl, 2018, visitas semanais e expressava afetividade pelos
p.25 e 26). trabalhadores, tratando-os pelo nome. Assim, o
sentimento de tradição da manufatura se manti-
As ações de proteção na França foram muito
nha e os aspectos de modernização do trabalho
significativas para esta discussão. O caso do
não se faziam como uma preocupação presente
Écomusée du Creusot Montceau-les-Mines,
(VIDAL, VECCHIO, 1986, p. 130). De maneira, que o
fundado em 1974, que transformou um conjunto
diferencial da Fábrica estava em seu processo
industrial em “ecomuseu”, pensando-o enquanto
de fabricação, no saber manual, que passou dos
território, foi um marco (Kuhl, 2018, p.42). Sina-
proprietários imigrantes para os trabalhadores
liza-se que este ecomuseu é importante para a
musealização da Manufactura Santa Helena, pois artesãos.
inúmeros documentos e estudos referentes a este
Observa-se que a falência da fábrica no começo
museu foram encontrados no Fundo Waldisa Rús-
da década de 90, devido à grave crise econômica
sio. Não somente Rússio conhecia a ideia deste
enfrentada pela manufactura, pode ser explicada
museu, como foi visitá-lo, ministrando um curso
pelas mudanças que o setor têxtil sofreu no Brasil
de férias no local e colaborando com projetos do
a partir da segunda metade do século XX, e a falta
museu durante a gestão de Mathilde Bellaigue,
de modernização da Manufactura. Neste período,
na década de 80.
o setor têxtil em âmbito internacional teve como
Assim, esta ideia de Museu-Processo fez com característica a solidificação do sistema da moda,
que Rússio estivesse envolvida com uma série formado por consultores da moda e tendências de
de ante-projetos pelo Estado de São Paulo, que
viriam a constituir o Museu da Indústria. A saber, a 6.Texto “Alguns aspectos do patrimônio cultural: o patrimô-
equipe do Museu já havia assistido tecnicamente nio industrial”, 1983-185. Acervo: Centro de Documentação
um museu de indústria farmacêutica (Memória da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo
Drogasil); um museu de alpargatas e tecidos e (Fesp/SP).
EIXO TEMÁTICO 2 mercado. Para vender precisava ser necessário
harmonia entre estilo e indústria, tendência e
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS produção (RICARD, 1989, p. 47).
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
Graças a essa estratégia e engenheiros -
consultores de moda, as firmas estilistas
franceses assumiram a liderança mundial,
obrigando as empresas dos outros países
a evoluir; e isto ocorreu não só nos países
europeus desenvolvidos, na américa do
norte e no Japão, mas também nos países
em fase de industrialização que passaram
a ter condições de exportar produtos de
boa qualidade, devido ao conceito de cria-
tividade - promoção. (RICARD, 1989, p. 47)

Esta mudança no sistema internacional do mer-


cado da moda impactou a indústria têxtil ampla-
mente. A realidade brasileira encontrou problemas
para se manter no setor, principalmente entre as
décadas de 1950 e 1960, que teve forte recessão,
obsolência e problemas organizacionais na pro-
dução. Com isto, observou-se que na década de
80 a indústria têxtil estagnou. O cenário brasileiro
ganhou altos índices de desemprego e fragili-
dade econômica no setor, pois estava atrasado
tecnologicamente em relação aos outros países
e pouco competitivo frente à globalização e mo-
dernização do mercado (FUJITA e JOERENTE,
2015, p.162-164).

Figura 1: Interior da Manufactura Santa Helena. Visita de


Waldisa Rússio junto a museólogos e alunos de museologia
da FESP-SP. Data presumida entre 1980-1983. Arquivo IEB/
USP, Fundo Waldisa Rússio, código WR-F-SH-031.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

2000
significativa.

Entre 1920 e 1930 o Vale do Paraíba, que compre-


ende a cidade de Jacareí, tornou-se uma região de
grande fertilidade para a indústria têxtil. Enquanto
a região metropolitana de São Paulo começa-
va a diversificar suas indústrias para química e
metalúrgica, a região do Vale passou a oferecer
benefícios para os setores mais tradicionais. Os
investidores encontravam na região um passado
enfraquecido cafeeiro, com facilidade para domi-
nar politicamente e economicamente as cidades
(RICCI, 2003, p.17-18).
Figura 2: Interior da Manufactura Santa Helena. Visita de
Waldisa Rússio junto a museólogos e alunos de museologia As cidades da região ofereciam a oportunidade de
da FESP-SP. Data presumida entre 1980-1983. Arquivo
isenção fiscal e doação de terrenos à muitas in-
IEB/USP, Fundo Waldisa Rússio, código WR-F-SH-033.
dústrias, que então se mudavam para a localidade,
permitindo que estas pudessem reduzir despesas
em suas produções e encontrar abundante mão
de obra disponível (RICCI, 2003, p.20). Neste sen-
tido, a região também oferecia boas condições de
transporte, com uma rodovia e ferrovia que ligava
São Paulo ao Rio de Janeiro. Desta forma, o Vale
se constituía como uma região em processo de
industrialização.

Neste cenário, a Manufactura Santa Helena é


um exemplo de indústria tradicional que deixa a
capital para ocupar o interior, inserindo-se num
urbanismo industrial em meio ao centro histórico
da cidade. A Manufactura compra uma proprie-
Figura 3: Interior da Manufactura Santa Helena. Visita de dade inicial com área total registrada em cartório
Waldisa Rússio junto a museólogos e alunos de museologia de 14.116m², mas após um loteamento em 1961,
da FESP-SP. Data presumida entre 1980-1983. Arquivo reduziu sua área para 5.141,9 m² (Estudo de Tom-
IEB/USP, Fundo Waldisa Rússio, código WR-F-SH-048. bamento 24.090/85) 8.

O edifício e a arquitetura industrial

A Manufactura Santa Helena transferiu-se da


capital do Estado para a cidade de Jacareí entre
1950 e 1951, passando a se localizar no edifício da
Rua Barão de Jacareí, nº 508. Este, foi construí-
do em 1911 para abrigar a Malharia Elvira, em um
momento de efervescência do Vale do Paraíba,
que trocava sua atividade cafeicultura pela in-
dustrial. Assim, o edifício da antiga Malharia faz
parte do processo de industrialização mais antiga dora) e Clotilde M. Daniel (estagiária), 1985. Disponível em:
do Vale7, com uma representação arquitetônica <http://www.infopatrimonio.org>. Acesso em: 03 ag. 2020

8.Estudo de tombamento realizado por Emídio Marques


7.Estudo de tombamento realizado por Tereza Cristina R. (engenheiro e perito judicial). Disponível em: <http://www.
Epitácio Pereira (arquiteta), Edna H. M. Kamide (historia- infopatrimonio.org>. Acesso em: 03 ag. 2020.
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

Figura 4: Localização do Edifício na cidade de Jacareí.


Fachada Oeste, Rua General Olímpio Catão. Google Earth,
2020.

A construção tinha um corpo principal consti-


tuído por dois galpões erguidos em tijolo, que
externamente eram aparentes, e internamente,
rebocados, de largura aproximada de 18m e pé
direito que variava de 4,94 m a 4,3m de altura,
que ao longo do tempo ganhou anexos. Em um
dos galpões havia a presença de pilares de ferro,
que não se sabe o porquê, tendo em vista que
não se faziam necessários como estrutura. Os
pisos eram em cimento, tendo somente uma sala
-antiga sala dos teares- de madeira (Estudo de
Tombamento 24.090/85).9

Por dentro, os grandes teares dificultavam a


entrada de luz natural e a circulação dos tra-
balhadores. Junto à uma iluminação artificial
ineficiente, existia um problema de iluminação
bastante grave. As janelas altas impediam a visão
dos passantes para o interior da fábrica, assim
como dos trabalhadores para o exterior. E por
fora, as fachadas do edifício tinham aspectos
neoclássicos com platibandas, relevos em arga-
massa e arcos plenos das esquadrias (Estudo de
Tombamento 24.090/85).10

A época da construção do edifício fabril encon-


tra-se num período de transição entre o passado

9. Estudo de tombamento realizado por Tereza Cristina R.


Epitácio Pereira (arquiteta), Edna H. M. Kamide (historia-
dora) e Clotilde M. Daniel (estagiária), 1985. Disponível em:
<http://www.infopatrimonio.org>. Acesso em: 03 ag. 2020

10.Estudo de tombamento realizado por Tereza Cristina R.


16º SHCU
Epitácio Pereira (arquiteta), Edna H. M. Kamide (historia-
30 anos . Atualização Crítica
dora) e Clotilde M. Daniel (estagiária), 1985. Disponível em:
2002 <http://www.infopatrimonio.org>. Acesso em: 03 ag. 2020
colonial, marcado pela economia agrária, para (ALMEIDA, 2018).11
um período de início do desenvolvimento indus-
trial. Por isto, carrega características comuns às A primeira indicação da museóloga foi para que
construções da época: “soluções mais ou menos se fosse feita na cidade uma comissão de estudos
rústicas, com edifícios sobre o alinhamento da via para implantação do museu, que veio a se tornar
pública, a revelar em quase todos os detalhes, os o Setor de Pesquisa e Documentação-SEPEDOC,
compromissos de um passado ainda recente com do futuro Museu de Antropologia do Vale do Pa-
o trabalho escravo e com os esquemas rígidos raíba12. A partir do SEPEDOC e do MAV, os estu-
dos tempos coloniais” (REIS FILHO, 2000, p. 54). dos de tombamento da Santa Helena passaram
a acontecer.
As características do edifício são compatíveis
com as típicas construções industriais realizadas Entre 1980 e 1981, Rússio fez visitas regulares para
na primeira metade do século XX no Brasil. Estas negociar e mediar o projeto de musealização da
guardam profunda relação com as preocupações Manufactura junto aos trabalhadores e herdeiros
arquitetônicas residenciais da época, com: ênfase da fábrica. A museóloga entendia que a fábrica
decorativa em janelas, que evitam a vista dos poderia abrigar um museu, de tipologia ecomuseu,
passantes; platibandas avantajadas que torna- a espelho do Ecomusée Le Creusot Montceau Les
vam o edifício um retângulo alongado; tijolos por Mines, na França, e que poderia inaugurar um
revestir; e a continuidade do sentido de “fundos” centro de restauração têxtil que servisse o país,
e “frente” (REIS FILHO, 2000, p. 84-86). como uma cooperativa de artesãos13.

Desta maneira, observa-se que existem duas im- Em 1983, um pedido formal de tombamento foi en-
portâncias patrimoniais industriais sobrepostas caminhado ao Conselho de Defesa do Patrimônio
no local, a importância arquitetônica do edifício Histórico-CONDEPHAAT solicitando um estudo
da antiga Malharia do começo do século XX, que de tombamento do edifício fabril. Este, justifica
ainda guardava as marcas de transformação do que o edifício “[...] por anos a fio vem alojando uma
período colonial para o industrial, e o proces- indústria de tapetes semi-artesanal, ao estilo dos
so de fabricação da Manufactura Santa Helena, tapetes orientais, que é a única em seu gênero
desenvolvido no local a partir de 1950, ambos provavelmente na América do Sul, à exceção de
significativos para a preservação do patrimônio uma similar existente no Perú que trabalha com
lã de lhama”. No mesmo, o autor ressalta que a
industrial.
fábrica tinha seu processo totalmente artesanal,
com apenas uma parcela da produção mecaniza-
da, além de um maquinário do início do século em
O processo de tombamento do edifício bom estado de conservação:

[...] sua construção é típica das fábricas


O processo de tombamento da Manufactura Santa instaladas no início do século. Como carac-
Helena envolveu o esforço da comunidade local terística peculiar apresenta em seu galpão
da cidade de Jacareí e da Secretaria de Indústria, central ‘o maior vão livre, sem colunas, de
Comércio, Ciência e Tecnologia do Estado de São
Paulo, com o apoio da Secretaria de Estado da
Cultura. 11. Informação verbal. Entrevista concedida ao Projeto
Jovem Pesquisador FAPESP O legado teórico de Waldisa
A discussão teria se iniciado em 1977, com um Rússio -IEB USP.
grupo de pessoas de Jacareí, que estavam dis- 12. O Museu Antropológico do Vale do Paraíba-MAV foi inau-
cutindo a instalação de um museu antropológico gurado em 1980, com a participação de Rússio na orientação
regional na cidade. Neste processo, teriam re- da formação dos núcleos do museu: arqueologia, etnologia,
comendado a eles que procurassem por Rússio, museologia e ação educativa, que contou ainda com a ajuda
pois a museóloga, como membro da Secretaria da do professor Ulpiano Bezerra de Meneses.
Indústria, Comércio, Ciência e Tecnologia, poderia 13. Informação verbal. Entrevista concedida ao Projeto
encaminhar e dar andamento a ideia. Quando pro- Jovem Pesquisador FAPESP O legado teórico de Waldisa
curada, imediatamente passou a apoiar o projeto Rússio.
EIXO TEMÁTICO 2 uma construção dessa natureza’, ainda
existente no Brasil. Sua arquitetura asse-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS melha-se às fábricas erigidas por ocasião
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES da Revolução Industrial. (Estudo de Tom-
bamento 24.090/85) 14

Datado de 1983, há uma resposta da Prefeitura


Municipal de Jacareí sinalizando pactuar com a
tentativa de tombamento do edifício pelo CON-
DEPHAAT, assinado pelo então prefeito Thelmo
de Almeida Cruz e enviado para o então presidente
do CONDEPHAAT Aziz Ab’Saber. Demonstrando
que o processo estava caminhando em termos
de trâmites legais. Porém, existe um documento
oficial de 1985 da Secretaria de Estado da Cultu-
ra, que faz indicações para que o processo de
tombamento da Fábrica seja retomado, no qual
explicita que o processo havia sido interrompido,
sem razões explicadas (Estudo de Tombamento
24.090/85).15

Acredita-se que as dificuldades na continuação


do tombamento estavam na falta de interesse dos
herdeiros da Manufactura, pois a fábrica encon-
trava-se em uma grave crise financeira na época,
com um risco de falência proeminente. No en-
tanto, em 1985 os estudos de tombamento foram
retomados e com um pedido assinado por Ulpiano
Bezerra de Meneses, foi aprovado o tombamento
pelo CONDEPHAAT em 1990. Ainda que refutado
pelos herdeiros judicialmente, foi mantido e hoje
permite que o edifício esteja preservado, ainda
que com diversas alterações arquitetônicas (Es-
tudo de Tombamento 24.090/85).16

Apesar dos esforços, o edifício não chegou abrigar


o projeto do Museu da Indústria, tendo como um
dos principais motivos o falecimento de Waldisa
Rússio, em 11 de junho de 1990, e o embargo dos
processos que a museóloga desenvolvia. Des-
de então, o edifício já abrigou supermercados e
estacionamentos17, estando atualmente em um

14.Estudo de tombamento realizado por Eisenhower Alcan-


tara, 1983. Disponível em: <http://www.infopatrimonio.
org>. Acesso em: 03 ag. 2020.

15. Estudo de tombamento. Disponível em: <http://www.


infopatrimonio.org>. Acesso em: 03 ag. 2020.

16º SHCU 16. Estudo de tombamento. Disponível em: <http://www.


30 anos . Atualização Crítica infopatrimonio.org>. Acesso em: 03 ag. 2020.

2004 17. Informação verbal. Entrevista concedida ao Projeto


estado de conservação precário e sem qualquer Neste sentido, desenvolveu o famoso termo “fato
aproveitamento em termos de patrimônio cultural museal”, que seria a relação profunda entre o
(ALMEIDA, 2018). homem – sujeito conhecedor –, e o objeto, parte
da realidade sobre a qual o homem igualmente
atua e pode agir (RÚSSIO, 1989, In BRUNO, 2010,
p. 123).19 De forma, que os museus seriam possi-
A tentativa de musealização da Manufactura bilidades de encontro para trocas e vivências que
Santa Helena valorizam o passado, ao passo que são presente
e futuro, pois podem produzir matéria humana
Há um livro encontrado na Biblioteca pessoal de de seu próprio tempo (RÚSSIO, 1979, In BRUNO,
Rússio18 cujo nome é “A Tecelagem Dos Conflitos 2010, p. 78) 20.
De Classe Na Cidade Das Chaminés” de José Sér-
gio Leite, que conta a história da luta operária na Para Rússio, a museologia ‘musealiza’ os testemu-
indústria têxtil. Chama atenção pela definição da nhos do homem e seu meio, sejam eles objetos,
palavra “Museu”, como um local onde as indústrias paisagens ou cenários. De forma, que o Museu
levavam seus operários militantes para isolá-los permitiria ao Homem ler o Mundo. Assim, Rússio
dos demais trabalhadores, de maneira a evitar entendia que preservar o patrimônio era um fato
levantes grevistas. e um ato político, no qual a memória era discutida
(e não um meio colonizador), na qual era possí-
museu é um local de humilhação, onde fi- vel transmitir a herança de uma geração a outra
cam confinados estes operários, transferi- (RÚSSIO, 1983, In BRUNO, 2010, p. 152).21
dos de suas profissões e sessões de origem
para nada fazerem durante sua jornada de Neste sentido, Rússio projetava o Museu da In-
trabalho, como se fossem velhos trabalha- dústria atrelado às transformações sociais e eco-
dores inúteis e imprestáveis, com o objetivo nômicas que São Paulo vinha passando. A autora
de levá-los ao desespero. A designação entendia que: i) a modernização industrial estava
irônica e auto-irônica de museu refere-se sucateando rapidamente maquinários e técnicas
a este local de confinamento e castigo, em- artesanais, levando estas ao esquecimento; que
bora a CTP tenha se utilizado de mais de um a especulação imobiliária estava fazendo desa-
local característico para onde transferiu
parecer os edifícios industriais; e ii) as lutas dos
certos operários estáveis renitentes a seus
operários estavam sendo suprimidas. Portanto, a
acordos. (LOPES, 1988, p.59)
museóloga desejava propor uma ação efetiva que
É interessante notar que, muito possivelmente, discutisse este cenário, distanciando-se de um
Rússio tenha tido acesso a esta passagem. Neste “fato industrial” por si só, que considerava ser uma
sentido, é possível pensar que a proposta de Mu- visão deformada da história industrial do país:
seu da Indústria é uma antítese ao uso da palavra “não há uma história industrial brasileira”(RÚSSIO,
‘museu’ por estas indústrias no período, se dedi- 1983, In BRUNO, 2010, p. 155).22
cando justamente a história dos trabalhadores e
dos processos manufatureiros industriais. 19.Texto publicado em MuWoP – Museological Working Pa-
pers, n.2.
Rússio acreditava que a base do museu era o ho-
mem e a vida. Os museólogos seriam trabalhado- 20.Texto “Museologia e Museu” publicado em O Estado de
S. Paulo, 1º jul. 1979.
res sociais, de maneira que o espaço do museu
necessitava ser interdisciplinar e comprometido 21.Texto “Alguns aspectos do patrimônio cultural: o patrimô-
com uma ação educativa cultural, para além da nio industrial”, 1983-185. Acervo: Centro de Documentação
preservação arquitetônica e dos objetos isolados. da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo
(Fesp/SP).

22. Texto “Alguns aspectos do patrimônio cultural: o patri-


Jovem Pesquisador FAPESP O legado teórico de Waldisa
mônio industrial”, 1983-185. Acervo: Centro de Documen-
Rússio-IEB USP.
tação da Fundação Escola de Sociologia e Política de São
18. Acervo IEB-USP. Paulo (Fesp/SP).
EIXO TEMÁTICO 2 Portanto, através do Museu da Indústria, Rússio
esteve envolvida diretamente no processo de
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS tombamento da Manufactura, enxergando ali um
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES grande potencial de discussão sobre a manufa-
tura industrial. Logo, realizou visitas à cidade
e inseriu a região no debate da museologia do
período, convidando intelectuais internacionais
e nacionais para conhecer a cidade e a Manufac-
tura. Destaca-se a visita do arquiteto e urbanista
Nestor Goulart Filho e da museológa Maria Tereza
Gomes Ferreira, diretora na época do Museu de
Artes da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lis-
boa (Estudo de Tombamento 24.090/85).23

Figura 5: Visita de Waldisa Rússio junto a museólogos e


alunos de museologia da FESP-SP na Manufactura San-
ta Helena. Destaque para Waldisa (ao centro com bolsa
vermelha) e Maria Teresa Gomes (primeira pessoa do lado
esquerdo, de saia escura). Data presumida entre 1980-
1983. Arquivo IEB/USP, Fundo Waldisa Rússio, código
WR-F-SH-001.

O interesse de Rússio pelos processos manuais se


expressava na ideia de transformar, inicialmente,
a Manufactura Santa Helena em um museu de sítio
industrial (museus de fábrica), com a possibilida-
de de torná-lo Museu da Indústria de tapeçaria e
tapete. O diferencial estaria na ideia de também
criar no local um Centro de Criação e Restauro de
Tapetes e Tapeçarias, que aproveitaria o saber
específico dos artesãos, visando não somente a
conservação e o restauro têxtil, como também um
meio de propagar e transmitir as técnicas têxteis
(Arquivo IEB/USP, Fundo Waldisa Rússio, código
WR-MI-0324-ANE 01, p. 1).
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
23.Reportagens do jornal “O Vale Paraibano”. Disponível em:
2006 <http://www.infopatrimonio.org>. Acesso em: 03 ag. 2020.
Para Rússio, a dificuldade central do Centro de Cria- Rússio, Nemésio vinha produzindo conteúdos a
ção e Restauro de Tapetes e Tapeçarias seria encon- respeito de restauro e fibras têxteis, que seriam
trar um artista tapeceiro que se dispusesse a estar difundidos pelo Museu (Arquivo IEB/USP, Fundo
à frente do projeto, de maneira a consolidar o Centro Waldisa Rússio, código WR-MI-0324-ANE 01, p.1).

A questão fundamental estava em achar- A despeito do desdobramento do Centro sabe-se


-se quem, conhecendo suficientemente que em 2018, em uma visita do Projeto Jovem
história e técnica de tapetes e tapeçarias, Pesquisador FAPESP ao Museu Antropológico
quisesse dedicar sua experiência num do Vale do Paraíba, no qual foi possível conversar
trabalho que nem sempre é dos mais al- com algumas artesãs que trabalharam na Ma-
nufactura Santa Helena, as artesãs relataram,
tamente remunerados. Um artista tape-
informalmente, terem ouvido falar da ideia de
ceiro certamente ganha mais através da
transformar a fábrica em museu e cooperativa
comercialização e venda de suas criações
de artesãos na época, mas que posteriormente
do que dirigindo um setor de restauração.
ao fechamento da Manufactura, não foram mais
(Arquivo IEB/USP, Fundo Waldisa Rússio,
contatadas a respeito do assunto.
código WR-MI-0324-ANE 01, p.1)
No dia, utilizando um antigo tear da fábrica, hoje
Nesta dificuldade é que emerge a figura central alocado no Museu, as artesãs produziram uma
de Nemésio Garcia:24 “[...]visitando a Fábrica pequena tapeçaria, aos moldes da técnica que
Santa Helena, o artista percebeu a potencia- empregavam na fábrica, para um documentário25,
lidade e a extrema viabilidade de se organizar, que visava contar a história da Manufactura Santa
aí, um Centro de Criação e Restauro de Tape- Helena.
tes e Tapeçarias.” Acredita-se que a pedido de

Figura 1: Linha Histórica do projeto de musealização da Manufactura Santa Helena. Fonte: Acervo do autor.

24.Artista tapeceiro que faz parte do projeto de Centro de 25.“Santa Helena: Tecendo Memórias”, Victor Hugo Martins,
Criação e Restauro de Tapetes e Tapeçarias pensado para 2019. Disponível em: <https://vimeo.com/323008921>.
o Museu da Indústria na Manufactura Santa Helena. Acesso em 09 ag. 2020.
EIXO TEMÁTICO 2 As OfIcinas Infantis do Museu da Indústria:
tecelagem
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
As Oficinas Infantis foram exposições que fa-
ziam parte do Museu da Indústria como um amplo
serviço educativo voltado para crianças e ado-
lescentes. A ideia era interligar processo de cria-
ção, de maneira artística, científica e industrial,
considerando que ‘tudo é trabalho do homem’. A
abordagem se basearia na autonomia dos indiví-
duos, com o objetivo de fomentar a criatividade e
o senso crítico dos processos de vida e trabalho
humano, na qual, a equipe envolvida na realização
das oficinas deveria ser plural e com a presen-
ça de museólogos, operários e empregados das
indústrias, psicólogos, professores de educa-
ção artística e estudantes de cursos técnicos
industriais e de artes (SICCT, 1981, in: Proposta
Museológica (sem paginação).

Julgo importante frisar que o termo ‘edu-


cação’ é aqui, usado em seu sentido de
‘aprendizado constante para a vida’ e não
meramente, como ‘ensino acadêmico’ ou
‘educação formal’ e que, portanto, ‘fazer
um serviço educativo de museu’ não po-
derá restringir ao que se convencionou em
nosso país até o momento: programa de
integração Museu/Escola. (SICCT, 1981, in:
Proposta Museológica, sem paginação).

Desta forma, pode-se destacar a exposição Ofici-


nas Infantis realizadas pelo Museu da Indústria em
197926, com a temática voltada para a manufatura
têxtil, no Parque da Água Branca. A exposição ex-
plorou a história da produção dos tecidos, desde
as técnicas desenvolvidas nas fazendas do ciclo
do café, com um filme em 16mm emprestada de
uma indústria, a fim de dar aos visitantes uma
formação sobre a tecelagem e seus processos
de fabricação.27

26.Realizada na Semana da Criança, como parte do calen-


dário oficial do Governo do Estado de SP. Ano proclamado
pelas Nações Unidas como o ano da criança, a fim de cons-
cientizar a população acerca dos problemas que assolavam a
infância. O Museu da Indústria promoveu uma programação
especial voltada para o público infanto-juvenil.
16º SHCU
27. Relatório de Estágio do Museu da Indústria, Comércio
30 anos . Atualização Crítica
e Tecnologia de Wilson Roberto Stanziani de Souza, 19981.
2008 Arquivo IEB/USP, Fundo Waldisa Rússio, documento ainda
Esta ação contou com a participação de 26 es- monstrando assim, engajamento por parte da
tudantes da Faculdade Belas Artes, 18 do Senai- equipe do Museu em unir teoria e prática, com
-Tecelagem e 8 do Curso de Especialização em ações de integração entre público e história in-
Museologia da FESP-SP, que desempenharam dustrial.
diversas funções durante a exposição e foi visita-
da por aproximadamente 21 mil pessoas.28 A partir A partir desta ideia das Oficinas Infantis, a pes-
desta mostra/exposição foi publicado um caderno quisa elabora uma proposta de oficina, de nome:
visual com imagens de registro da atividade em “Desenho e Pintura Têxtil” a ser realizada no Museu
1000 exemplares e um folheto informativo em da Casa Brasileira-MCB, durante o seminário “As
200 exemplares.29 contribuições de Waldisa Rússio para os museus
paulistas” em comemoração aos 50 anos do Mu-
O Museu já realizou até agora as seguin- seu da Casa Brasileira, que pretende abordar a
tes atividades: a) exposição-piloto, três contribuição de Waldisa Rússio para os Museus
preparatórias das Oficinas Infantis sobre Paulistas. O evento deve ocorrer em 2021 e o
tecelagem, cerâmica e desenvolvimento ur- ateliê tem como objetivo apresentar a história
bano e industrial; duas exposições voltadas da musealização da Santa Helena ao público de
prioritariamente para os deficientes físicos; maneira lúdica, através da memória e criação
uma exposição conceitual, sobre o Projeto, têxtil (ANEXO1-PROJETO DE ATELIÊ).
no Metrô São Bento. b) levantamento biblio-
gráfico e início de pesquisa sobre História
Industrial paulista; c) início de linha editorial
própria; seis números da Coleção Museu & CONCLUSÕES
Técnicas, elogiada no Brasil e no Exterior;
d) início de pesquisas museológicas sobre O principal resultado da pesquisa foi a sistemati-
ciências da Conservação (objetivo: acionar zação histórica da musealização da Manufactura
recursos ociosos do IPT para prestação de Santa Helena. Destaca-se: a atuação da museólo-
serviços ao País e à América do Sul); e) início ga Waldisa Rússio no processo de transformação
de assistência a três museus de fábrica da Manufactura Santa Helena em parte do Museu
(Drogasil, São Paulo Alpargatas e Lamina- da Indústria, Comércio, Ciência e Tecnologia do
ção Bianchi); f) contactos com FIESP/CIESP Estado de São Paulo (1979-1987); e o intuito do
e SESI. (Arquivo IEB/USP, Fundo Waldisa Museu da Indústria em documentar o processo de
Rússio, código WR-MI-050, p.1) industrialização brasileiro frente a modernização
do país, definido como Museu-Processo, ‘Obra
Em 1980 também foi pensada uma oficina infantil Aberta’, que registraria este processo (SICCT,
com o tema “Cerâmica- do Indígena Brasileiro à 1981, in: Proposta Museológica).
Indústria atual”, a ser realizada no mesmo local.
Neste mesmo ano, a equipe do Museu desenvolveu Assim, no momento em que grandes glebas in-
um programa chamado “A Fábrica é um Museu”, dustriais passavam a ser disputadas, devido ao
baseado na visitação escolar à indústrias.30 De- crescimento das cidades e à especulação imobi-
liária, de maneira desenfreada (KUHL, 2018, p.22),
o projeto de Waldisa Rússio se mostra alinhado
não cadastrado.
com discussões internacionais sobre arqueologia
28.Relatório do Museu da Indústria, Comércio e Tecnologia industrial, pois preservaria a arquitetura, modos
de Waldisa Rússio, 19/12/1979. Arquivo IEB/USP, Fundo de fazer, ferramentas e maquinários específicos
Waldisa Rússio, documento ainda não cadastrado.
da artesania.
29.Relatório do Museu da Indústria, Comércio e Tecnologia
de Waldisa Rússio, 19/12/1979. Arquivo IEB/USP, Fundo É possível afirmar que: i) os documentos
Waldisa Rússio, documento ainda não cadastrado. analisados, a saber cartas, ofícios, processos e
30.Relatório de Estágio do Museu da Indústria, Comércio correspondências administrativas, apresentam
e Tecnologia de Wilson Roberto Stanziani de Souza, 19981. dados relevantes sobre a realidade industrial do
Arquivo IEB/USP, Fundo Waldisa Rússio, documento ainda período; ii) a observação da abordagem proposta
não cadastrado. pelo Museu da Indústria para a preservação da
EIXO TEMÁTICO 2 Santa Helena adiciona uma perspectiva interes-
sante na compreensão de preservação do patri-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS mônio industrial no país; e iii) a sistematização
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES da história deste processo colabora com novas
iniciativas e pesquisas que visem (re)qualificar e
preservar bens industriais diante das transfor-

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

2010
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EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES O artigo analisa as intervenções urbanísticas do
Programa Monumenta, do governo federal, no
centro da cidade de São Francisco do Sul/SC.
vídeo-pôster O programa desperta interesse pelo fato de ter
ido além da tradicional linha de ação das ações
de restauração de edifícios e sítios urbanos pro-
O PROGRAMA MONUMENTA tegidos, qualificando os espaços públicos des-
tes sítios, financiar a restauração de imóveis
EM SÃO FRANCISCO DO SUL: privados e implantar equipamentos públicos.
Por meio de observação empírica, entrevistas e
PATRIMÔNIO, URBANISMO E pesquisa documental, o propósito deste estudo
é compreender em que medida as intervenções
DESENVOLVIMENTO urbanísticas executadas pelo programa contri-
buíram para alavancar o desenvolvimento local,
compreendido como um processo que vai além
THE MONUMENTA PROGRAM IN SÃO FRANCISCO DO
dos aspectos econômicos, mas refere-se tam-
SUL: HERITAGE, URBANISM AND DEVELOPMENT
bém à melhoria da qualidade de vida do habitan-
te local, ao protagonismo da sociedade civil na
EL PROGRAMA MONUMENTA EN SÃO FRANCISCO DO atividade política e ao fortalecimento das iden-
SUL: PATRIMONIO, URBANISMO Y DESARROLLO tidades culturais. Entre os equívocos e acertos
do programa apontados durante o artigo, consi-
BELLA, Diogo Cavallari deramos que a atuação do Monumenta em São
Francisco do Sul, apesar do excessivo enfoque
Mestrando na área de Paisagem e Ambiente; FAUUSP
no turismo, teve um saldo positivo no que se re-
diogo.bella@usp.br
fere ao avanço do entendimento da preservação
como uma questão urbanística. Deste modo, o
GONÇALVES, Fábio Mariz
Monumenta representa uma importante infle-
Professor Doutor; FAUUSP xão sob o ponto de vista das intervenções no pa-
fabiomgoncalves@usp.br trimônio ao compreender a fruição nos espaços
públicos como elemento atrelado tanto à pre-
servação dos bens culturais quanto à promoção
do desenvolvimento local.

MONUMENTA SÃO FRANCISCO DO SUL URBANISMO


PATRIMÔNIO TURISMO

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

2012
ABSTRACT RESUMEN

The article analyzes the urban interventions of El artículo analiza las intervenciones urbanas del
the Monumenta Program, conceived by the fe- Programa Monumenta, del gobierno federal, en
deral government, in the city center of São Fran- el centro de la ciudad de São Francisco do Sul /
cisco do Sul / SC. The program arouses interest SC. El programa despierta interés porque fue
due to the fact that it went beyond the traditional más allá de la línea de actuación tradicional de
line of action for the restoration of buildings and rehabilitación de edificaciones y espacios urba-
protected urban sites, qualifying the public spa- nos protegidos, habilitando los espacios públicos
ces of these sites, financing the restoration of de estos recintos, financiando la rehabilitación
private properties and implementing public faci- de inmuebles privados e implementando equi-
lities. Through empirical observation, interviews pamientos públicos. A través de la observación
and documentary research, the purpose of this empírica, entrevistas e investigación documen-
study is to understand to what extent the urban tal, el propósito de este estudio es comprender
interventions carried out by the program contri- en qué medida las intervenciones urbanas reali-
buted to leverage local development, understood zadas por el programa contribuyeron a apalancar
as a process that goes beyond economic aspects, el desarrollo local, entendido como un proceso
but also refers to improving the quality of life of que va más allá de los aspectos económicos, pero
the local inhabitant, the role of civil society in po- también se refiere a mejorar la calidad de vida del
litical activity and the strengthening of cultural habitante local, el papel de la sociedad civil en la
identities. Among the mistakes and successes actividad política y el fortalecimiento de las iden-
of the program pointed out during the article, we tidades culturales. Entre los errores y aciertos del
consider that Monumenta’s performance in São programa señalados durante el artículo, conside-
Francisco do Sul, despite the excessive focus ramos que el desempeño de Monumenta en São
on tourism, had a positive balance in terms of Francisco do Sul, a pesar del excesivo enfoque en
advancing the understanding of preservation of el turismo, tuvo un balance positivo en términos
cultural heritage as an urban issue. In this way, de avanzar en la comprensión de la preservación
Monumenta represents an important inflection como un tema urbano. De esta manera, Monu-
from the point of view of interventions in heritage menta representa una inflexión importante desde
in understanding the enjoyment of public spaces el punto de vista de las intervenciones en el patri-
as an element linked both to the preservation of monio en la comprensión del disfrute de los espa-
cultural goods and to the promotion of local de- cios públicos como un elemento vinculado tanto a
velopment. la preservación de los bienes culturales como a la
promoción del desarrollo local.

MONUMENTA SÃO FRANCISCO DO SUL URBANISM


PATRIMONY TOURISM MONUMENTA SÃO FRANCISCO DO SUL URBANISMO
PATRIMONIO TURISMO
EIXO TEMÁTICO 2 O Monumenta foi um programa do Governo Fede-
ral para preservação do patrimônio cultural que
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS atendeu 26 sítios protegidos pelo IPHAN, distri-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES buídos em todas as regiões do país. Concebido no
final da década de 90 e efetivamente iniciado em
2000, o programa foi uma proposta trazida pelo
vídeo-pôster Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID)
ao governo brasileiro, inspirada na experiência
do banco em Quito, capital do Equador, após o
O PROGRAMA MONUMENTA terremoto que assolou o centro da cidade em
1987. Naquela ocasião, o BID apoiou a execução
EM SÃO FRANCISCO DO SUL: de um amplo leque de ações como qualificação
de espaços públicos, melhoria na infraestrutura
PATRIMÔNIO, URBANISMO E urbana e de mobilidade, recuperação de áreas
habitacionais, restaurações e reciclagem de edi-
DESENVOLVIMENTO fícios, etc. (BONDUKI, 2010; DIOGO, 2009).

Seguindo esta linha de referência, o Monumenta


THE MONUMENTA PROGRAM IN SÃO FRANCISCO DO não se constituiu como um programa tradicio-
SUL: HERITAGE, URBANISM AND DEVELOPMENT nal de restauração de edifícios e sítios urbanos
protegidos, mas se apresentou com o objetivo
EL PROGRAMA MONUMENTA EN SÃO FRANCISCO DO de qualificar os espaços públicos destes sítios,
SUL: PATRIMONIO, URBANISMO Y DESARROLLO financiar a restauração de imóveis privados, im-
plantar equipamentos públicos, além de fomentar
atividades relacionadas com a educação e a va-
lorização do patrimônio imaterial, denominadas
ações concorrentes. Desta maneira, o programa
associa o investimento em obras e demais ativida-
des à promoção de processos de desenvolvimento
local capazes de gerar impactos econômicos,
sociais e culturais para garantir a sustentabilidade
do processo de preservação.

A noção de sustentabilidade, neste caso, adquire


diferentes contornos e revela uma tensão con-
ceitual entre duas visões presentes no Programa
Monumenta. Uma mais voltada ao aspecto eco-
nômico, compreendida como a possibilidade de o
município manter o patrimônio sem que o governo
federal precisasse reaplicar, de tempos em tem-
pos, recursos orçamentários nas mesmas áreas,
outra de viés sociocultural, associada à qualidade
de vida e ao reconhecimento e valorização do
patrimônio cultural pela sociedade. Enquanto a
primeira privilegia a lógica do retorno financeiro
das intervenções e entende que o turismo é a
principal atividade capaz de promover desejada
dinamização, a segunda vincula-se mais à função
social e aos usos úteis à população local.
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

2014
Figura 1: Mapa das intervenções do Monumenta e eixos estruturantes do entorno do centro histórico. . Fonte: Elaborado
pelo autor sobre base Google Earth.
EIXO TEMÁTICO 2 Uma importante inovação do programa foi a in-
trodução de uma nova mentalidade na maneira
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS de tratar a reabilitação dos núcleos históricos
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES indo muito além da noção que vigorou no país a
partir da década de 1930 que relacionava a sele-
ção de bens a serem protegidos pelos critérios
de excepcionalidade e autenticidade, valorizando
os monumentos destacados, em detrimento da
conservação do entorno urbano. A valorização
do contexto urbano está bastante presente na
orientação conceitual e no desenho institucional
do Monumenta, coerentemente com o debate pós
70 no campo do patrimônio, sistematizado pela
Declaração de Amsterdam (1975) e pela Reco-
mendação de Nairóbi (1976), nas quais ascende o
interesse pelo entorno urbano dos bens excep-
cionais. A declaração de Amsterdam destaca que
além das construções isoladas, são patrimônios
os “conjuntos, bairros de cidades e aldeias que
apresentam um interesse histórico ou cultural”
(Conselho da Europa, 1975, p.1), enquanto a re-
comendação de Nairóbi assinala a importância
da elaboração de estudos sistemáticos sobre
“aspectos urbanísticos dos conjuntos históricos
tradicionais e de sua ambiência”, assim como
sobre “as interconexões entre salvaguarda, urba-
nismo e planejamento físico-territorial” (UNESCO,
1976, p.12). Neste contexto, além da restauração
dos bens sob proteção federal e do financiamento
de imóveis privados nas áreas protegidas, o Mo-
numenta incorporou como um dos eixos de ação a
melhoria das condições de acesso, permanência
e fruição dos espaços livres públicos, cuidando
desta questão em mais da metade dos municípios
contemplados.

A qualificação dos espaços livres estruturou a


intervenção do Monumenta em São Francisco
do Sul. Esta característica foi salientada pelas
publicações oficiais e reconhecida por mora-
dores e comerciantes do centro, que frequen-
temente citam a transformação na orla como
a mais importante ação feita pelo programa na
cidade. Diversos autores compreendem a orla
de São Francisco como uma das melhores ações
realizadas pelo Monumenta em nível nacional.
Bonduki (2010) destaca que a cidade catarinense
teve o melhor resultado urbanístico dentre as 26
cidades comtempladas, enquanto Érica Diogo
16º SHCU (2009) considera que o projeto realizado em São
30 anos . Atualização Crítica
Francisco é um dos principais exemplos de ação
2016 bem sucedida no âmbito do programa.
Por ser bastante concentrada na orla da Babi- do outro extremo do núcleo histórico, o terminal
tonga, a intervenção do Monumenta é resumi- turístico, o Clube XXIV de Janeiro, o Morro do
da conceitualmente como “de museu a museu”, Hospício e, ao fundo, os navios, as gruas e os
pois se estende ao longo em um eixo de cerca silos do porto. O trapiche é pouco usado para
de 1km que conecta dois extremos do centro atracamento de embarcações, por conta de ter
histórico, o Museu do Mar, ao norte, e o Museu guarda-corpos em quase todo o perímetro, no
Histórico ao sul, percurso que recebeu troca de entanto, é bastante utilizado para o lazer, para
pavimentação, alargamento de vias, mobiliário a pesca recreativa, para mergulhar e fotografar,
urbano e iluminação, reforçando seu caráter de sendo local privilegiado para observar a cidade
espaço preferido de moradores, trabalhadores a partir de um ponto de dentro da água, algo um
e visitantes. Este eixo acompanha a orla desde a pouco mais próximo do que seria a perspectiva
Rua da Babitonga até as ruas Marechal Floriano a partir de uma embarcação que navega na baía.
Peixoto e Comandante Cabo, no extremo sul do
núcleo histórico, área apontada por moradores e Na ação na orla, podemos observar que os espa-
comerciantes entrevistados como uma das que ços públicos urbanos qualificados se tornaram
teve transformação física mais significativa no convidativos à permanência, ao descanso e ao
âmbito do programa. Nesta área, anteriormente, lazer, pela construção dos decks e trapiches de
o leito carroçável da rua terminava diretamente madeira, alargamento de passeios, parquinho de
no muro de arrimo que contém a água e não havia brinquedos infantis, nova iluminação e bancos ins-
calçamento para pedestres junto à baía, de modo talados em locais agradáveis para observação da
que era mínimo o fluxo de pedestres nesse trecho paisagem da baía. O conjunto destas intervenções
da orla. O Monumenta, ao ganhar espaço frente contribui para que este espaço abrigue muitas
ao mar, implantou passeios para pedestres pon- outras funções além da mobilidade e circulação,
tuados com palmeiras, bancos, lixeiras e ilumina- características essenciais segundo Gonçalves
ção, além de um parquinho infantil, provocando (2020) para que determinada rua cumpra de for-
a redescoberta do lugar pelos seus moradores. ma mais eficiente seu papel intrínseco de lugar
De acordo com Lúcia Helena, moradora do centro da vida pública.
histórico, “depois que fizeram a orla nova, todo
mundo passeia, vai pra cá, vai pra lá”.

Figura 3: Píer requalificado pelo Monumenta. Fonte: Autor


(2020).
Figura 2: Orla da Baía da Babitonga requalificada pelo
Monumenta. Fonte: Autor (2020).

Considerando que o foco das ações do programa


é promover o desenvolvimento local, podemos
Próximo à esquina das ruas Marechal Floriano e compreender que o fato de o investimento em
Comandante Cabo, em um dos extremos da curva- espaços livres ter adquirido papel central nas
tura natural da orla que conforma uma espécie de intervenções significa que, de alguma forma, a
enseada, foi implantado pelo Monumenta um píer concepção do Monumenta entende que a trans-
de madeira, local estratégico para observação formação espacial destes lugares públicos con-
EIXO TEMÁTICO 2 tribui para o desenvolvimento nos municípios. No
primeiro momento, estas intervenções teriam
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS a capacidade de gerar certa dinamização eco-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES nômica temporária, mais relevante nas cidades
pequenas, devido ao aquecimento do mercado da
construção civil com geração de empregos diretos
e indiretos. No segundo momento, a qualificação
destes espaços históricos icônicos potencializa
o interesse turístico da área, atraindo, maior nú-
mero de visitantes aptos a consumir produtos e
serviços, gerando assim, certa dinamização eco-
nômica, visão que esteve fortemente presente na
concepção do programa. No entanto, num terceiro
nível de leitura podemos também relacionar a
qualificação dos espaços livres públicos com as
dimensões não-econômicas do desenvolvimento,
como o fortalecimento da consciência histórica
e política e a valorização das identidades cultu-
rais, leitura que nos aproxima dos conceitos de
desenvolvimento local.

Nesta perspectiva, estes espaços, além de se


constituírem como os elementos visíveis e lugres
da ordem política, contribuem para a expressão da
liberdade e da democracia. Constituem-se, assim,
como espaços para o reconhecimento recíproco
dos diferentes grupos da sociedade local, adqui-
rindo papel primordial na representação simbó-
lica e na construção identitária do lugar. Desta
maneira, é possível estabelecer relações entre a
qualificação do sistema de espaços públicos de
determinado recorte espacial e o fortalecimento
da apropriação pública, da inclusão socioespa-
cial e da construção das identidades territoriais,
fatores importantes para o desenvolvimento da
comunidade. Especialmente se considerarmos
que o desenvolvimento não é um processo rela-
cionado exclusivamente às relações econômicas
de produção e troca (FURTADO, 1984, p.12), alheio
às aspirações, à memória e aos valores culturais
próprios dos povos (FURTADO, 1978, p.78).

Assim, se concordamos, por um lado, (1) que o


projeto de desenvolvimento deve ser posto a
serviço do enriquecimento da cultura em suas
múltiplas dimensões com o objetivo de voltar a
capacidade criativa do homem para a descober-
ta dele mesmo (FURTADO, 1978, 1984), (2) que “a
sociedade e o espaço são dimensões gêmeas”
16º SHCU (HAESBAERT, 2007, p.20), ou seja, que não há
30 anos . Atualização Crítica
como definir o indivíduo, a comunidade, o grupo
2018 e a sociedade senão em relação a um contexto
espacial (territorial), e (3) que os lugares públicos quisadores, deve-se tanto à qualidade formal
são os territórios democráticos nos quais os di- da intervenção, quanto ao fato de o espaço ter
ferentes grupos da sociedade se expressam e se mostrado capaz de abrigar práticas sociais
se reconhecem (QUEIROGA, 2012; GONÇALVES, variadas como a pesca com vara, o descanso, a
2020), podemos inferir que o caráter e a qualidade contemplação, o picnic, o namoro e a cerveja. As
dos espaços livres públicos são essenciais para entrevistas realizadas apontaram que o projeto
o desenvolvimento das comunidades. para o orla promoveu o estreitamento dos laços
dos habitantes e comerciantes do centro da ci-
Assim, a qualificação dos espaços livres públi- dade com a orla, traduzido pelo orgulho em poder
cos pode alavancar o desenvolvimento local, desfrutar daquela paisagem no dia a dia. Desse
colocando em primeiro plano as necessidades modo, compreendemos que a intervenção do pro-
da sociedade civil, e não das empresas, como é grama atuou, mesmo com as limitações que serão
de praxe nas concepções de desenvolvimento apontadas adiante, para a promoção do “direito
de viés produtivistas pautadas pela “ideologia do à paisagem”, categoria de direitos diretamente
progresso” (FURTADO, 1978, p.170). Sob esta ótica, relacionada à qualidade de vida, porém muitas
as transformações espaciais estão relacionadas vezes subjugada como secundária diante de di-
à mobilização dos ativos locais para promover a reitos considerados mais elementares como mo-
sociedade a protagonista das transformações radia, educação e saúde (QUEIROGA, 2012, p.213).
políticas e econômicas, alterando tanto os sis-
temas de objetos como os sistemas de ações em Outra relevante ação do programa em espaços li-
suas múltiplas interações (SANTOS, 2009, p.63): vres públicos foi a criação do Parque Ecológico, últi-
ma obra do Monumenta, finalizada apenas em 2014,
“Mais do que novas formas, o que interes- devido ao prolongado processo de desapropriação
sa são as novas relações que estes múlti- da área. Implantado no Morro do Hospício, unidade
plos espaços permitem construir. Nunca de conservação de 16.500m², o parque foi equipado
é demais lembrar o pressuposto básico de com passeios, decks de contemplação, iluminação,
que o território, no sentido relacional com bancos, ilhas de descanso, obras de drenagem,
que trabalhamos, não é simplesmente uma além de um edifício sede de apoio ao receptivo e
‘coisa’ que se possui ou uma forma que se administrativo do parque. O nome atribuído ao mor-
constrói, mas sobretudo uma relação social ro refere-se à antiga existência, em seu cume, da
mediada e moldada na/pela materialidade Capela de São José, inicialmente erguida em 1681,
do espaço” (HAESBAERT, 2007, p. 350). e de uma residência e hospedaria para religiosos,
pois no passado o termo “hospício” além de ser
Neste sentido, consideramos que o êxito do Mo- utilizado para denominar locais onde se tratavam
numenta na qualificação da orla da Babitonga, doentes e necessitados, também para se referir às
reconhecido pelos habitantes, técnicos e pes- residências eclesiásticas (BANDEIRA, 2017, p.60).

Figura 4: Mirante do Parque Ecológico voltado para o centro histórico. Fonte: Autor (2020).
EIXO TEMÁTICO 2 Uma vez iniciada a trilha, somos imersos num per-
curso configurado pela vegetação densa, pontu-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS ado por súbitos alargamentos e decks de madeira
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES que servem de mirantes ora para a baía, ora para
o porto, ora para o próprio núcleo histórico. Nesse
sentido, o percurso de subida ao topo do Morro
do Hospício é um momento privilegiado de obser-
vação dos elementos-chave para construção da
identidade francisquense a partir de pontos de
vista únicos, por meio da inserção criativa de um
novo elemento urbano, o parque, que não existia
na origem dos núcleos históricos brasileiros.

Apesar do caráter inovador da ação, e das be-


líssimas visuais proporcionadas pelos decks de
contemplação a intervenção não demonstrou o
mesmo êxito que a orla no que se refere às pos-
sibilidades de apropriação, sendo frequentado
por moradores ou visitado por turistas. Mesmo
considerando que parques são tipicamente “es-
paços da dispersão, de pequenos encontros, de
isolamento relativo ao entorno urbano” (QUEIRO-
GA, 2012, p.97) constatamos durante nossa visita
de campo a baixa visitação do espaço, mesmo na
alta temporada, em dias ensolarados e aos finais
de semana, situações nas quais tipicamente os
parques são mais utilizados.

Seguindo o raciocínio de Jane Jacobs, podemos


supor que a pouca utilização do parque tem re-
lação com a ausência de usos específicos, visto
que as pessoas geralmente não vão aos parques
pelo seu uso genérico ou por impulso (JACOBS,
2007, p.118) e que “vista magnífica e paisagismo
bonito não funcionam como artigos de primeira
necessidade; talvez ‘devessem’, mas evidente-
mente não funcionam. Podem funcionar apenas
como complemento” (JACOBS, 2007, p. 119). Para
Jacobs, o sucesso dos parques urbanos depende
das atividades menores que podem funcionar
como “artigos de primeira necessidade”, como
locais para alugar e passear de bicicleta, locais
para brinquedos infantis, apresentações musi-
cais, teatro, esportes, etc. No caso do parque
de São Francisco do Sul, no entanto, a possibili-
dade de promoção desta diversidade de usos é
dificultada pela alta declividade do morro, que o
torna pouco propício à prática de esportes como
corrida e bicicleta. Além do fato de ser área de
16º SHCU preservação ambiental densamente vegetada,
30 anos . Atualização Crítica
o que limita a remoção de vegetação e soluções
2020 de terraplanagem para construção de espaços
que abriguem usos mais intensos. guntados sobre o que já haviam visitado e o que
pretendiam visitar), quanto nas entrevistas com
No topo do morro, lugar no qual geralmente se habitantes, que frequentemente destacaram o
espera o clímax do passeio, não há nenhuma vista Museu do Mar como um dos principais legados
para o entorno, e também nenhum uso ou edi- da ação do Monumenta na cidade. De acordo com
ficação de apoio a atividade físicas, lúdicas ou Cláudio Cabral, proprietário de pousada na Rua da
culturais, apenas um deck de madeira elevado do Babitonga, a intervenção do Monumenta no Museu
solo ao centro de uma clareira. Ao lado do deck, do Mar trouxe bastante movimento ao centro: “o
na borda da clareira, as ruínas do antigo hospício, Centro Histórico vive do museu [...] Quando fala
apesar de localizarem-se em sítio arqueológico, que é o maior da América Latina, as pessoas de
estão imersas na vegetação e não receberam fora se interessam. Tudo começou a girar em
nenhum elemento físico ou visual que indique se torno do Museu do Mar”.
tratar de uma construção relevante para a história
da formação do núcleo histórico. Perdeu-se, por- Ao abrigar embarcações artesanais de todas as
tanto, a oportunidade de se utilizar deste potencial regiões do país, reunindo os diferentes modos
local, a ruína, como atrativo de visitantes, sejam de navegar ao longo do extenso e diverso litoral
eles moradores ou turistas, que juntamente com brasileiro com estuários, mangues e lagoas e rios
a oferta de usos para diferentes faixas etárias de feições e características tão variadas, o Museu
poderia fomentar a utilização mais intensa do Nacional do Mar contribui para o reconhecimento
parque. É sintomático neste sentido que o parque da riquíssima cultura naval brasileira, fruto da
se chame “Ecológico”, um adjetivo genérico pre- síntese de tecnologias dos povos indígenas, afri-
sente em muitos nomes de parques no Brasil, em canos e europeus. Neste sentido, o museu cria
vez de “Parque do Hospício” que seria o esperado condições de compreendermos, por meio da ma-
já que o morro é conhecido popularmente como terialidade dos barcos expostos, a construção da
“Morro do Hospício”. Para Bourdieu, nomear as identidade brasileira bastante relacionada ao mar,
coisas é “um poder quase mágico [...] de fazer que resultou ao longo dos séculos, no surgimento
existir pelo poder da nomeação” (BOURDIEU, 1989, de grupos umbilicalmente ligados à navegação
p.142), constituindo-se em uma forma de poder como os jangadeiros no Nordeste, os caiçaras
político. Desta maneira, ao atribuir ao parque uma no Sudeste e os açorianos no Sul. Estes grupos e
designação que não expressa os valores históricos suas práticas sociais estão ali representados por
e culturais do lugar, aquele que nomeia contribui meio de suas criações e nos permite observá-los
também em certa medida para o afastamento não apenas como belos objetos expostos para a
simbólico da população com o parque. fruição estética, mas como objetos de conhe-
cimento (MENESES, 1992, p.4) que possibilitam
Quanto às ações do Monumenta na inserção de ao observador estabelecer relações entre a di-
novos usos em edificações do centro tem grande mensão material apreendida pelos sentidos e a
protagonismo as intervenções em museus com a memória do povo litorâneo e ribeirinho no Brasil,
criação do Museu de Arte Sacra na igreja Matriz da qual o francisquense faz parte.
e o restauro dos museus Histórico e Nacional do
Mar, três museus em um percurso de cerca de um No Museu Histórico, de abrangência local, pode-
quilômetro. O Museu Nacional do Mar, detentor do mos aplicar a crítica de Meneses de que, assim
maior acervo de embarcações brasileiras no país, como a maioria dos “museus de cidade”, o de São
foi instalado no conjunto de depósitos e escritó- Francisco é depositário de vasto acervo icono-
rios da antiga Empresa de Navegação Hoepke, gráfico, mas “não se mostra capaz de mobilizá-lo
construídos no fim do século XVIII. O museu existe para trabalhar a problemática do imaginário [...],
desde 1992, mas adquiriu grande visibilidade após definidos a partir de grupos sociais e práticas
as intervenções do Monumenta que restaurou espaciais específicas” (MENESES, 2003, p.267).
sua estrutura física e o divulgou nacionalmente, Neste sentido, no Museu Histórico de São Fran-
conferindo-lhe o status de “âncora” da intervenção cisco do Sul a coleção de objetos, fotos e quadros,
urbanística realizada em São Francisco (BONDUKI, apesar de despertar curiosidade sobre como era
2010, p.117), fato que pôde ser percebido tanto a cidade antigamente, não chega a problematizar a
partir das entrevistas com turistas (quando per- relação do passado com o presente, bem como,
EIXO TEMÁTICO 2 não induz o observador a se interrogar sobre pos-
sibilidades futuras para o desenvolvimento da
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS cidade. Para Meneses, um museu histórico deve
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES ir além de evocar o passado, deve “organizar-se
para que uma sociedade possa ser entendida
como ela se apresenta, um organismo vivo, sujeito
a mudanças” (MENESES, 1992, p.7). Nesta direção,
uma possibilidade para ir além da representação
de fatos históricos “clássicos”, geralmente re-
presentativos da classe dominante, e aproximar
o museu das práticas sociais dos grupos pode
ser diversificar a exposição com a inserção da
ótica dos grupos sub-representados como as
comunidades indígenas e quilombolas locais, inse-
rindo-os simbolicamente no território do centro.

Os museus, portanto, possuem funções sociais


essenciais, propiciando aos habitantes a tomada
de consciência sobre suas identidades culturais e
colocando-os em contato com sua própria histó-
ria, suas tradições e seus valores. Desta maneira,
os museus têm relevância para a construção da
identidade cultural como esforço de autonomia,
entendida como o “poder de definir os princípios
de definição do mundo social em conformidade
com seus próprios interesses” (BOURDIEU, 1989,
p.125), ou em outras palavras, o que Celso Furtado
e os teóricos do desenvolvimento local chamam
de endogeneidade, característica essencial para
desencadear o desenvolvimento como processo
capaz de voltar a capacidade criativa do homem
para a descoberta dele mesmo (FURTADO, 1984,
p.106). No entanto, o foco tão direcionado do
programa Monumenta em implantar e qualificar
museus no centro em detrimento de outros pro-
gramas tem relação com o objetivo primordial
de impulsionar a atratividade turística da área,
consolidando-a como “polo regional de lazer”,
o que contribui direta ou indiretamente para a
especialização funcional do centro histórico. É
parte deste processo de especialização a pro-
gressiva retirada de usos de interesse público do
centro histórico, promovido pelo governo local a
partir 2009, ano de mudança do grupo político que
estava no poder. Desde então, saíram do centro
o INSS, a agência da Caixa Econômica, a agência
do Banco do Estado de Santa Catarina, agência
dos Correios, além de diversos serviços muni-
cipais de atendimento ao público, anteriormen-
16º SHCU te espalhados pelo centro histórico, que foram
30 anos . Atualização Crítica
concentrados numa única edificação, o Centro
2022 Integrado Multiuso. Os motivos para a transfe-
rência destes serviços para o “novo centro” são para o proponentes (DIOGO, 2009, p.35). Além
justificados pela maior facilidade de acesso e disso, a concentração da propriedade urbana
estacionamento de automóveis, e à ideia de que pesou bastante em São Francisco do Sul: nas
a concentração de diversos serviços num mes- situações em que um mesmo interessado apre-
mo lugar traria aumento da agilidade e eficiência sentava várias propostas “caso o proponente que
nos atendimentos. Contradizendo aqueles que pretenda recuperar mais de um imóvel apresente
creditam ao turismo o aumento da dinamização algum tipo de restrição cadastral ou qualquer
econômica do centro, muitos habitantes e co- outro impedimento, todas as suas propostas são
merciantes entrevistados relacionaram a saída reprovadas” (DIOGO, 2009, p.279).
destes bancos e órgãos públicos ao processo de
diminuição do movimento no centro histórico no A conjunção dos fatores, relacionados: à saída
dia a dia. Para “Santo”, proprietário da peixaria no de órgãos públicos; às limitações para promoção
mercado municipal “eles estão movimentando o de habitação no centro; e à preferência do poder
centro da Barão e matando o Centro Histórico. A público por promover usos de interesse turístico;
quebra aqui do Centro foi só isso aí, as peças chave levaram à crescente separação entre o cotidiano
saíram daqui”. Também os técnicos do IPHAN e da urbano e o turismo, característica frequente-
UEP do Programa Monumenta são unânimes na mente presente nos núcleos urbanos protegidos
crítica à saída destes usos, no entanto, o progra- pelos órgãos de patrimônio. É como se o título
ma não se mostrou capaz de se contrapor a este do tombamento por um lado protegesse os bens
processo bem como não promoveu outros tipos culturais da destruição material promovida pelas
de usos, como os educacionais, de saúde, etc. dinâmicas cotidianas e pelo mercado imobiliário,
mas por outro colaborasse para que considere o
A promoção do uso habitacional também não foi centro como espaço-relíquia (LEITE, 2001), um
uma linha de atuação tão consistente do Monu- ícone do passado, destinado à monofunção do
menta em São Francisco, em comparação com lazer para usufruto do consumidor diferenciado,
outros municípios beneficiados pelo programa. o turista. Desta maneira, apesar de o habitante
(BONDUKI,2010; DIOGO, 2009; GIANNECCHINI, local ser “o principal sujeito da cultura” e estar em
2019) O Financiamento para Recuperação de Imó- condições mais favoráveis para a fruição do patri-
veis Privados, uma das grandes inovações do mônio ambiental urbano (MENESES, 2006, p.39),
Monumenta, não teve aplicação abrangente na frequentemente nos projetos de intervenções
cidade catarinense, atendendo a apenas 17 imó- urbanas o ponto de vista do habitante é negligen-
veis no centro histórico, num total de mais de 400 ciado, e sua fruição instrumentalizada a partir do
(enquanto Natividade/TO teve 58, Lençóis/BA 67 e constrangimento da realização dos atos banais
Goiás /GO 102 imóveis), sem capacidade, portanto da vida cotidiana (CARLOS, 2007, p.90), enfraque-
de reverter o processo de arruinamento pelo qual cendo as relações de vizinhança e a identidade
passam boa parte das edificações do centro. territorial preexistentes.
De uma forma geral, o excesso de burocracia é
apontado como a maior causa de desistências e Exemplo desta lógica na intervenção do Monu-
reprovações no financiamento, em São Francisco menta em São Francisco é o programa definido
70% das propostas de financiamento inscritas em no projeto como “Terminal Marítimo”, que não se
editais não foram contempladas por estes motivos constitui como equipamento que serve à mobi-
(DIOGO, 2009, p.279). Esta baixa eficiência poderia lidade cotidiana, ao invés disto atende apenas
ser contornada com a comunicação mais intensa aos turistas, daí o motivo de o nome escrito na
com a população local, informando-a de forma fachada ser “Terminal Turístico”. No entanto, os
intensa sobre o caráter e os prazos dos editais de barcos turísticos que fazem passeios diários pela
acesso ao crédito, (por meio de rádios e carros de Baía da Babitonga ou que trazem visitantes de
som, por exemplo, como aconteceu nas cidades Joinville, também não utilizam o edifício, pois
de Lençóis e Cachoeira, na Bahia (DIOGO, 2009, atracam no píer localizado em frente ao Clube
p.152), bem como na criação de um canal ativo para XXIV de Janeiro. Isto acontece porque o termi-
assessoria técnica que auxiliasse na obtenção nal não atende todo o tipo de visitante, mas um
das documentações necessárias, no orçamento tipo específico de turista: aquele que chegaria
e no cronograma de obra, grandes obstáculos à cidade em transatlânticos. Na ausência deste
EIXO TEMÁTICO 2 tipo de visitante o terminal permanece fechado.

HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS Durante minha estadia em São Francisco pude
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES observar o terminal aberto em apenas um dia, para
receber turistas alemães, evento para o qual a pre-
feitura mobilizou funcionários públicos fluentes
em inglês, de diversas secretarias, para receber
os estrangeiros. Ao desembarcarem, muitos deles
pegavam taxi e seguiam para as praias ao norte
da ilha, enquanto outra parte dava uma volta pelo
centro e depois seguia para as praias. Os tran-
satlânticos que atracam em São Francisco não
costumam ficar na cidade por mais de um dia, de
modo que os tripulantes embarcam novamente ao
fim da tarde para seguir viagem. Percebe-se, por-
tanto, que há uma superestimação do potencial
de dinamização econômica deste tipo de turista,
que é pouco frequente, permanece pouco tempo
na cidade e menos ainda no centro histórico e,
portanto, consome pouco no comércio local e
não movimenta o setor de hotéis e pousadas,
pois seguem viagem para destinos nos quais a
infraestrutura hoteleira, comercial e de serviços
é mais desenvolvida, como Joinville.

Nesse contexto, parece um contrassenso que o


Terminal Turístico atenda exclusivamente a este
tipo de demanda, sob a expectativa de que a pre-
sença de um turista de poder aquisitivo mais ele-
vado dinamize mais a economia local (expectativa
que não se realiza, conforme as percepções dos
comerciantes e prestadores de serviço do centro),
em vez de funcionar como necessária estrutura de
mobilidade aquaviária para atender diariamente
os habitantes e visitantes de São Francisco que
queiram se deslocar para a Vila da Glória, na por-
ção continental do município ou para as cidades
próximas como Itapoá e Joinville. Hoje, as linhas
aquáticas existentes para a Vila da Glória e Itapoá
atracam no píer central. Até poucos anos atrás
havia uma linha diária para Joinville, no entanto,
o “Marinebus” (como era chamado), não está mais
funcionando. A única forma de ir diretamente de
Joinville para São Francisco pela água é por meio
de barcos turísticos, como o “Barco Príncipe”, que
saem do continente de manhã, percorrem as ilhas
da baía, aportam no centro de São Francisco e
voltam ao final do dia para Joinville. A retomada
desta linha como meio de transporte viável exi-
16º SHCU giria, no entanto, articulações com a prefeitura
30 anos . Atualização Crítica
de Joinville, de modo a garantir que os locais de
2024 atracamento sejam atendidos por linhas de ônibus
frequentes e eficientes, pois o centro da cidade no entanto, não interviu na complexa teia de sig-
está a 10km da Baía da Babitonga. Mediante os nificados e práticas sociais que historicamente
estudos necessários, a abertura desta possibi- alimentaram a vivacidade do edifício, focando
lidade de deslocamento entre as cidades poderia apenas na manutenção física. No âmbito nacional,
amenizar um dos principais problemas de mobi- o IPHAN se mostra bastante ativo na valoriza-
lidade no município apontados pelos habitantes, ção do patrimônio naval brasileiro, um dos mais
que é o engarrafamento da BR-280, rodovia de diversos do mundo, como demostram o projeto
apenas duas faixas que liga a Ilha de São Francisco “Barcos do Brasil”, os inventários de conhecimento
à Joinville e recebe grande fluxo de caminhões e cadastro de embarcações e a própria criação do
que atendem ao porto. Nos finais de semana e Museu Nacional do Mar, em São Francisco. Estas
feriados, o percurso de cerca de 50km chega a ações são de grande relevância, afinal o conheci-
ser percorrido em três, quatro ou até cinco horas. mento e o reconhecimento que o tombamento, o
inventário e o museu trazem são inquestionáveis,
A ideia de um “Terminal Marítimo” que não fosse porém estas iniciativas não incidem de manei-
simplesmente “Turístico” estaria de acordo com a ra consistente sobre as dinâmicas econômicas
valorização da navegação como atividade repre- responsáveis pelo incentivo à produção, uso e
sentativa da cidade e teria potencial para fortale- manutenção destas embarcações.
cer ainda mais a relação de seus habitantes com o
mar. Relação esta que é um dos argumentos para A preservação, portanto, não está ligada apenas
que o processo de tombamento considerasse o à proteção física do patrimônio cultural, como
frontispício voltado para a baía como aquele que por meio do tombamento e da restauração, e da
deveria receber cuidados especiais, afinal é a identificação, documentação e análise dos bens
vista que se tem a partir da água. culturais, mas passa também pela valorização
destes bens pelo uso e pela garantia de fruição
Ora, se o frontispício é o elemento prioritário a social (MENESES, 2006, p.35). Nesse sentido, Me-
ser preservado e se esse skyline só é plenamente neses argumenta que encarar a cidade como bem
apreendido a partir da vista do mar parece evidente cultural pressupõe compreender que a cultura
que o reconhecimento deste patrimônio exige não é um segmento da vida à parte, um universo
que ele seja visto. Desta maneira, ao falarmos autônomo, um adereço, que se manifesta em
em preservação desta fachada para o mar, tão momentos e lugares privilegiados como equipa-
importante quanto a manutenção física das edi- mentos culturais, órgãos culturais, usos cultu-
ficações da orla é a possibilidade de que o maior rais (MENESES, 2006, p.38), mas sim um “centro
número possível de pessoas tenha a oportunidade pulsante” que engloba o cotidiano e o mundo do
de mirar o centro histórico e os morros que o cir- trabalho, afinal, “é o uso que dá sentido à vida” e
cundam a partir de barcos na água durante sua revela o conteúdo da prática socioespacial (CAR-
vivência cotidiana, não apenas como um evento LOS, 2007, p.30), construindo a identidade do
excepcional. Acreditamos que desta maneira a lugar. Nesse sentido, para Meneses não deveria
“paisagem clássica” se configuraria menos como haver oposição entre o valor cultural e o valor
abstração intelectualizada e de difícil acesso para econômico, pelo contrário, encarar o cotidiano
a maioria, para se manifestar como realidade e o universo do trabalho como áreas seminais
concreta, experienciada no dia a dia do habitante da cultura significa defender-se de definições
que se reconhece como parte do patrimônio por de cultura como coisa enobrecida ou excepcional
meio de suas práticas sociais. comuns nas práticas de mercado e compreender
que a melhor forma de assegurar a preservação
Falar da navegação em São Francisco automati- das memórias populares é assegurar que transfor-
camente nos remete à pesca artesanal, atividade mem em vivência, cotidiano (ORTIZ, 2010, p.135).
frequente em muitos bairros no município com
destaque para a Praia do Paulas, Vila da Glória Aplicando o raciocínio ao mercado de São Francis-
e Praia da Enseada. No centro histórico, o lugar co, podemos afirmar que além da requalificação
em que este patrimônio cultural imaterial tradi- física do espaço, o outro elemento necessário
cionalmente se manifesta de maneira intensa é para proporcionar sua vitalidade é o dinamismo
no edifício do mercado. A ação do Monumenta, das atividades econômicas que aí se desenvolvem,
EIXO TEMÁTICO 2 a exemplo de tantos mercados efervescentes
como o da grande cidade de Belém (PA) ou o da
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS pequena Laranjeiras (SE). Sob o viés do desenvol-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES vimento como meio de estabelecer relação dialé-
tica com a preservação, a atividade econômica
que historicamente se entrelaçou com o edifício
do mercado, conferindo-lhe significado social, é
a pesca artesanal. Sendo esta uma atividade hoje
muito praticada em todas as partes do município
e o hábito do consumo de peixes e frutos do mar
bastante presente nos habitantes, a ação de pre-
servação do Monumenta poderia ter se voltado a
tornar o mercado municipal um lugar de articula-
ção e referência para a comercialização e consu-
mo do pescado no município, polarizando a venda
para os habitantes dos bairros ao redor do centro.

Esta ação estratégica passa pela necessidade de


incentivo ao atracamento de barcos pesqueiros na
praça do mercado, e de seu uso também para as
funções produtivas como acontecia anos atrás. De
acordo com Cláudio Cabral, “não é que seja proi-
bido, mas o cara nem vem mais. Aí um diz que não
pode limpar o peixe ali mesmo, que é uma coisa
de saúde e aí acabou”. O projeto implantado pelo
Monumenta, criou um deck de madeira elevado
sobre a água à frente da praça do mercado, com
guarda-corpo em seu perímetro, um belíssimo
lugar de permanência e contemplação da baía, que
aproxima os pedestres da água, contudo afasta
a pesca do espaço urbano ao estabelecer uma
barreira para o atracamento de embarcações na
praça do mercado. Não foi a implantação do deck
que causou o afastamento dos barcos pois trata-
-se de um processo que vem se desenvolvendo há
décadas, no entanto a intervenção do programa
corrobora para o esvaziamento produtivo deste
espaço, que durante semana serve de estaciona-
mento de veículos, e aos fins de semana recebe
atividades relacionadas ao lazer.

Acreditamos que teria sido desejável conciliar


no projeto os inegáveis ganhos do deck e de seu
mobiliário urbano para a contemplação e perma-
nência dos pedestres com a manutenção da pos-
sibilidade de uso da praça do mercado para dinâ-
mica cotidiana das trabalhadoras e trabalhadores
das atividades relacionadas ao mercado, como
acontece nas inúmeras “praças do mercado” espa-
16º SHCU lhadas pelo Brasil. Afinal, a multiplicidade de usos
30 anos . Atualização Crítica
simultâneos não é incompatível com a finalidade
2026 dos espaços públicos, pelo contrário, o trabalho,
o lazer, o convívio e as manifestações que cons- Acreditamos que a presença mais intensiva das
tituem a esfera pública geral e a esfera pública práticas sociais relacionadas ao trabalho, em
política têm como lugar primordial os espaços conjunto com o maior incentivo à habitação, te-
livres de apropriação pública (QUEIROGA, 2012). ria potencializado o sucesso da intervenção na
orla e nos demais espaços livres requalificados
Se é certo que as relações sociais não ocorrem pelo Monumenta, tornando-os mais inclusivos.
apenas nos limites estreitos da produção de mer- Desta maneira, promoveria ao mesmo tempo as
cadorias e do processo de trabalho, mas enfoca a atividades econômicas para geração de emprego
vida em todas as suas dimensões (CARLOS, 2007, e renda e a valorização patrimonial, criando cone-
p.41), também é relevante considerar que “o tra- xões dos usos atuais com os usos e significados
balho construiu, constrói e reconstrói a cidade e do passado, uma vez que estes espaços sempre
seus espaços” (GONÇALVES, 2020, p.78), ou seja, foram, historicamente, lugares multifuncionais
o trabalho molda a cidade e é moldado por ela. onde o trabalho era evidente.
Cidade compreendida aqui tanto como artefato,
objeto construído (ville), quanto como morfologia Este olhar relaciona-se à renovação conceitual
social (cité), constituída pelas práticas sociais dos que ocorreu a partir dos anos 60 na qual o campo
diferentes grupos que a habitam. Desta maneira, do patrimônio deslocou o foco dos bens que se
a ação de evidenciar o trabalho no cotidiano, ao impõe por sua monumentalidade, riqueza, ex-
tornar público, visível, objetivado, dizível aquilo cepcionalidade para a dinâmica de atribuição de
que permanecia em estado de experiência indi- sentidos e valores pelos sujeitos sociais (MOTTA,
vidual representa, segundo Bourdieu, um consi- 2017, p.98). Desta forma, ascendeu a valorização
derável incremento de poder social dos grupos das referências culturais dos diferentes grupos
em questão (BOURDIEU, 1989, p.142). que compõe a sociedade: não apenas edificações,
mas também ofícios, modos de fazer, saberes e
celebrações que se manifestam em determina-
do território. Este novo olhar está presente em
algumas das ações propostas pelo Monumenta,
sobretudo nas denominadas ações concorren-
tes: atividades relacionadas com a educação
e a valorização do patrimônio imaterial como o
apoio e divulgação de processos tradicionais de
criação e produção, como a ourivesaria da cidade
de Natividade/TO ou a peixada de Lima Campos,
na cidade de Icó/CE, no entanto, de acordo com
Ana Clara Giannecchini, apesar destas ações, “o
Figura 5: Atracamento de barcos ao lado do Mercado Mu-
nicipal. Fonte: acervo MHSFS (19--?). uso do patrimônio pelo Monumenta pesa sobre a
materialidade dos bens culturais” (GIANNECCHINI,
2019, p.268). A fragilidade da incorporação do
patrimônio imaterial pelo programa também é
observável em São Francisco, onde houveram
ações como “capacitação de pescadores”, “semi-
nário do patrimônio naval” e “oficina de artesanato
naval”, mas foram pontuais, sem continuidade e
não tiveram relação com a “dinamização destes
saberes no horizonte de um desenvolvimento
sociocultural” (GIANNECCHINI, 2019, p.275).

De acordo com Aldair Carvalho, ex-presidente


da Fundação Cultural da Ilha de São Francisco, a
pouca atenção dada ao aspecto imaterial signi-
Figura 6: Deck implantado pelo Monumenta próximo ao ficou a perda da oportunidade de potencializar o
Mercado Municipal. Fonte: Autor (2020). uso e o reconhecimento pelos diversos grupos
EIXO TEMÁTICO 2 da população francisquense, compreendendo
que a territorialidade do centro histórico não se
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS limita à poligonal de tombamento, mas compre-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES ende pessoas de todos os bairros que tem alguma
ligação com o centro.

“Faltou alguém de São Francisco olhar pra


dentro e dizer assim: mas nós podemos
colocar a população de São Francisco do
Sul. [...] A população negra de São Francis-
co é grande, nós temos uma comunidade
remanescente de Quilombo dentro de São
Francisco do Sul. [...] É a comunidade de
Tapera, que é exatamente dentro de uma
outra unidade de conservação que é um
parque ecológico, então eu não podia ter
feito um diálogo? Sendo que a Tapera toda
a vida abasteceu o centro com a produção
agrícola? [...] Tu tem uma presença libanesa
enorme em São Francisco, se tu for numa
casa dessa gente no Centro Histórico, em
algum momento tu vai comer quibe cru. [...]
Tu tem isso, tu tem isso tudo e tu não quer
dialogar com o Centro Histórico?”

Esta falta de representatividade pode ser atri-


buída a uma característica geral do Programa
Monumenta apontada por Giannecchini (2020), re-
lacionada à escassez de espaços de participação
desde a concepção dos projetos até a conclusão
das intervenções. Apesar de o Regulamento Ope-
rativo do programa prever que o Perfil de Projeto
em cada município fosse desenvolvido a partir
de um processo participativo, que reunisse dife-
rentes segmentos da comunidade local, nenhum
município contou com instancias de participação
permanente da sociedade no acompanhamento
da gestão dos projetos (BONDUKI, 2010, p.45).
Desta maneira, a participação no Monumenta
se mostrou muito limitada (GIANNECCHINI, 2019,
p.267) pois as oficinas participativas, além da cur-
ta duração (três dias), ficaram “perdidas no tempo”,
haja vista o longo intervalo entre as oficinas e
a realização das intervenções (BONDUKI, 2010,
p.45). Tendo em vista estes fatores, Giannecchini
afirma que “não se pode dizer que tenha havido
envolvimento da sociedade nas definições da
política” e que, portanto, “sem considerar seus
16º SHCU anseios, não é possível afirmar que houve lugar
30 anos . Atualização Crítica
para a sustentabilidade sociocultural no desenho
2028 do Monumenta” (GIANNECCHINI, 2019, p.267).
A ideia de que maior participação social nos pro- bens culturais quanto à melhoria da qualidade de
cessos decisórios é fator que garante a sustenta- vida. De modo que podemos chamar o que foi feito
bilidade nos remetem a dois fatores importantes em São Francisco simplesmente de urbanismo,
para o desenvolvimento local. De acordo com os com a particularidade de ter sido concebido para
teóricos do conceito a garantia de sustentabilida- uma cidade protegida.
de no processo de desenvolvimento, sob a ótica
política, está relacionada à capacidade de elabo- Ao intervir no centro histórico, o projeto urbanís-
ração de parâmetros nos quais a sociedade local tico implantado em São Francisco do Sul tem im-
emerja como protagonista (SILVEIRA, 2004, p.49). portante papel, físico e simbólico, de valorização
Desta maneira, a participação política mais ativa de um modelo de cidade compacta, caminhável,
que estabeleça uma governança democrática adequada à escala humana, com edificações mul-
relaciona-se com a ampliação da esfera pública tifuncionais generosamente conectadas com as
e da endogeneidade, ou seja, a potencialização ruas, e que reforçam seu caráter de lugar da vida
dos recursos humanos endógenos, capazes de pública (GONÇALVES, 2020). É o oposto, portanto,
construir seus futuros coletivamente. do modelo de cidade ensimesmada dos shopping
centers e dos condomínios fechados que ofere-
Como se vê, preservação também é questão de cem aos seus moradores a “tranquilidade alie-
políticas de desenvolvimento e de planejamento nante de conviver apenas entre os iguais” (GON-
urbano, afinal, como afirma Ulpiano Meneses, a ÇALVES, 2020, p.381) e ao cidadão os muros, que
problemática do Patrimônio Ambiental Urbano negligencia o papel dos espaços públicos e reduz
é “essencialmente urbanística”. Sob esta ótica, a rua a mera ligação entre pontos, destituindo-a
é essencial que se supere as contradições entre de suas múltiplas funções, como a permanência, o
conservar e ordenar o território e passemos a convívio e a manifestação política. Para o primeiro
compreende-los como elementos de uma relação modelo, ”a cidade é espaço de comunicação públi-
dialética que vai ao encontro do pensamento de ca, de encontro e trocas simbólicas, não simples
Marshall Berman quando afirma que “Os moder- território de produção” (QUEIROGA, 2012, p.249),
nistas não podem jamais romper com o passado: enquanto que o segundo produz “cidadania sem
precisam continuar pra sempre assaltados por convívio, criando cotidianos tão alienados que
ele, desenterrando seus fantasmas, recriando-o reduzem a capacidade dos cidadãos de lidar com
à medida que refazem seu mundo e a si próprios” diferenças, construir empatia e solidariedade com
(BERMAN, 1986, p.329). o que lhes é diferente” (GONÇALVES, 2020, p.381).

Neste sentido, entre os equívocos e acertos que Considerando a intrínseca relação entre socieda-
apontamos durante nosso percurso, considera- de e espaço, esta oposição entre dois paradigmas
mos que a atuação do Monumenta em São Francis- de urbanismo reflete também a adesão a dois
co do Sul teve um saldo positivo no que se refere modelos de desenvolvimento distintos: um que
ao avanço do entendimento da preservação como se volta à qualidade de vida pública, visto sob a
uma questão urbanística, visto que a ação do pro- perspectiva da sociedade, e outro tecnicista, no
grama na cidade catarinense foi bastante além do qual o aspecto econômico e financeiro adquire
restauro de bens imóveis individuais destacados protagonismo sobre as demais dimensões - so-
por sua excepcionalidade, como era de costume cial, cultural, político, visto sobre a perspectiva
nas intervenções em patrimônios protegidos des- da empresa. O projeto do Monumenta em São
de a década de 1930. Assim, apesar de o nome do Francisco do Sul, possui elementos das duas
programa evocar o monumental, o enfoque dado vertentes, no entanto, a nosso ver, o legado que
às intervenções em espaços livres públicos de uso se sobressai é a criação de espaços aptos ao fo-
cotidiano, como a orla, a rua, a praça e o parque, mento das oportunidades de encontro e criação
nos quais foram implantados equipamentos pro- de vínculos pessoais que organizam a vida social,
saicos como bancos, postes de iluminação, vege- tornando o projeto mais próximo ao paradigma
tação, representam uma importante inflexão sob do desenvolvimento local do que da perspectiva
o ponto de vista das intervenções no patrimônio economicista do desenvolvimento, caracterizada
ao compreender a fruição nos espaços públicos pela ideologia que prioriza aspectos econômicos
como elemento atrelado tanto à preservação dos e financeiros.
EIXO TEMÁTICO 2 A insustentabilidade da cidade moderna, caracte-
rizada pela utilização intensiva do automóvel que
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS tornou a vida sedentária, poluiu o meio ambiente
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES e empobreceu a vida pública, assiste desde os
anos 60 ao processo de revalorização da cida-
de tradicional como referência de qualidades
espaciais e de potencial de vida humana. Neste
processo, as cidades antigas vêm sendo ressig-
nificadas e tornam-se exemplo para os projetos
contemporâneos devido às combinações práticas
e simbólicas que proporciona entre o econômico
e o social, entre o produtivo e o ecológico, reve-
lando uma ordem complexa que pode garantir
diversidade, manutenção, segurança e liberdade
(JACOBS, 2007, p.52). A intervenção urbanística
do Monumenta é um bom exemplo desta ponte
entre a valorização do patrimônio e o projeto para
o desenvolvimento futuro, criando a expectativa
de que a experiência adquirida possa referenciar
não apenas a requalificação de sítios protegidos,
mas também a cidade contemporânea. Afinal,
toda cidade é histórica.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

2030
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EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Este artigo pretende demonstrar algumas rela-
ções históricas entre os movimentos de ocupa-
ção urbana recentes, os “Ocupas”, e seus prece-
vídeo-pôster dentes. Para isso, toma como ponto de partida
três acampamentos – o “Ocupa Paulista” (2017),
o “Resistência Paulista” (2016) e o “OcupaSampa”
OCUPA PAULISTA: (2011) – ocorridos na Avenida Paulista, em São
Paulo, em momentos e contextos distintos, para
RELAÇÕES HISTÓRICAS E interrogar na história tanto as condições que
fizeram com que a Avenida se tornasse hoje o
DESDOBRAMENTOS RECENTES foco central das manifestações na capital pau-
lista; quanto as características dos movimentos
A PARTIR DOS MOVIMENTOS que permitiram compreendê-los como parte de
um histórico “Ciclo Global de Lutas”. Ainda, em
DE OCUPAÇÃO NA AVENIDA vista da reprodução viral deste modo de mani-

PAULISTA, SÃO PAULO


festação, pretende-se discutir alguns possíveis
e duvidosos desdobramentos das Jornadas de
Junho de 2013 que tiveram significativa contri-
buição na conjuntura atual política.
OCUPA PAULISTA: HISTORICAL RELATIONS AND
RECENT DEVELOPMENTS FROM OCCUPATION
MOVEMENTS IN THE PAULISTA AVENUE, SÃO PAULO “OCUPAS” AVENIDA PAULISTA JORNADAS DE JUNHO

OCUPA PAULISTA: RELACIONES HISTÓRICAS Y


DESARROLLOS RECIENTES DE LOS MOVIMIENTOS DE
OCUPACIÓN EN AVENIDA PAULISTA, SÃO PAULO

IZELI, Rafaela Lino


Mestre; PPG-AU/UFBA
rafaela.izeli@hotmail.com

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

2032
ABSTRACT RESUMEN

This article aims to demonstrate some historical Este artículo pretende demostrar algunas rela-
relations between the recent urban occupation ciones históricas entre los recientes movimien-
movements, the “Ocupas”, and their precedents. tos de ocupación urbana, los “Ocupas”, y sus pre-
To that end, initially analyzes three camps - “Ocu- cedentes. Para ello, toma como punto de partida
pa Paulista” (2017), “Resistência Paulista” (2016) tres campamentos - “Ocupa Paulista” (2017), “Re-
and “OcupaSampa” (2011) – that occurred at Pau- sistência Paulista” (2016) y “OcupaSampa” (2011) -
lista Avenue, in São Paulo, at different times and que tuvieron lugar en la Avenida Paulista, en São
contexts, to question in history, first, the condi- Paulo, en diferentes ocasiones y contextos, para
tions that placed Avenue as the central focus of interrogar en la historia tanto las condiciones que
the political manifestations today; and, second, hicieron de la Avenida el foco central de mani-
the movements characteristics that made it pos- festaciones hoy; en cuanto a las características
sible to understand them as part of a historic de los movimientos que permitieron entenderlos
“Global Cycle of Revolts”. Moreover, with the viral como parte de un histórico “Ciclo Global de Lu-
reproduction of this manifestation mode, the text chas”. Aún así, ante la reproducción viral de este
aims to discuss some possible and dubious deve- modo de manifestación, se pretende discutir al-
lopments of the “Jornadas de Junho de 2013”, that gunos posibles y dudosos desarrollos de las “Jor-
had a significant contribution to the current situ- nadas de Junho de 2013” que tuvieron un aporte
ation of Brazilian politics. significativo a la situación política brasileña ac-
tual.

“OCUPAS” PAULISTA AVENUE


“JORNADAS DE JUNHO” “OCUPAS” AVENIDA PAULISTA
“JORNADAS DE JUNHO”
EIXO TEMÁTICO 2 CENAS INICIAIS: TRÊS ACAMPAMENTOS 1

HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS


DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Mais de 30 mil pessoas. Uma parte vem do
Largo da Batata. Outra parte da Praça da
República. E nós vamos tomar juntos, agora,
vídeo-pôster a Avenida Paulista.2

Ocupar, resistir e morar aqui. Ou dá a nossa


OCUPA PAULISTA: moradia, ou nós não vamos sair daqui.3

RELAÇÕES HISTÓRICAS E
DESDOBRAMENTOS RECENTES Em 15 de fevereiro de 2017, manifestantes do Mo-
vimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) 4,
A PARTIR DOS MOVIMENTOS coordenados por Guilherme Boulos, saíam do
Largo da Batata e da Praça da República para se
DE OCUPAÇÃO NA AVENIDA encontrarem na Avenida Paulista, em São Paulo,

PAULISTA, SÃO PAULO e, por lá, montarem o que eles chamaram de um


acampamento que duraria 22 dias. Contrários ao
anúncio do então presidente Michel Temer que
OCUPA PAULISTA: HISTORICAL RELATIONS AND previa um corte na faixa 1 do Programa Minha
RECENT DEVELOPMENTS FROM OCCUPATION Casa Minha Vida (MCMV) – que atendia famílias com
MOVEMENTS IN THE PAULISTA AVENUE, SÃO PAULO renda de até 1.800,00 reais –, os manifestantes se
instalaram em barracas de lona preta na calçada
OCUPA PAULISTA: RELACIONES HISTÓRICAS Y entre a Rua Augusta e a Haddock Lobo em frente
DESARROLLOS RECIENTES DE LOS MOVIMIENTOS DE
OCUPACIÓN EN AVENIDA PAULISTA, SÃO PAULO 1. Este texto é parte de uma dissertação de mestrado de-
fendida em 2019 no Programa de Pós-Graduação em Ar-
quitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia
intitulada “Domingos: camadas políticas sobre a Avenida
Paulista” em que foram investigadas, para além dos movi-
mentos de ocupação, as formas de uso e apropriação que
se instauraram recentemente sobre o espaço da Avenida
através do Programa Ruas Abertas.

2. Fala de Guilherme Boulos, líder do MTST no documentário


“Ocupa Paulista – A batalha na AV Paulista”, de 10 de março
de 2017, produzido pela MidiaNinja, disponível em <https://
www.youtube.com/watch?v=uWC00RSC10E> Acesso em:
16 de mai. 2019.

3. Fala de uma das integrantes do MTST no documentário


“Ocupa Paulista – A batalha na AV Paulista”, de 10 de março
de 2017, produzido pela MidiaNinja, disponível em <https://
www.youtube.com/watch?v=uWC00RSC10E> Acesso em:
16 de mai. 2019.

4. Conforme informações em site próprio, o MTST é um mo-


vimento que organiza trabalhadores urbanos que vivem em
bairros periféricos para lutarem não somente pela conquista
de um pedaço de terra, mas contra o capital e o Estado que
16º SHCU
representa os interesses capitalistas. Ver em <https://mtst.
30 anos . Atualização Crítica
org/quem-somos/as-linhas-politicas-do-mtst/> Acesso
2034 em: 24 de ago. 2019.
ao escritório da Presidência da República em São a corrupção e prometia permanecer no local até
Paulo, em uma ocupação que ficou conhecida a queda de Dilma. Foram quase 170 dias de ocu-
como “Ocupa Paulista”. pação até a festa que marcou a saída do grupo
das calçadas da Avenida, quando o impeachment
Contando com o apoio do Levante Popular da Ju- foi finalmente consumado após julgamento no
ventude5 e da Frente de Luta por Moradia6, além de Senado Federal.
políticos, artistas e intelectuais – como Eduardo
Suplicy, Marcelo Freixo, Emicida, Criolo, Raquel O grupo, que se autodenominou de “Resistência
Rolnik, entre outros –, foi montada uma cozinha Paulista”, estampava cartazes com frases como:
coletiva no local e fizeram parte da programação “Eu vim de graça”; “Os princípios estão acima dos
do acampamento aulas públicas, shows, debates partidos”; “Pior do que um político corrupto é um
e assembleias. Moradores e comerciantes locais cidadão que o defende”; “Mexeu com Moro, mexeu
chegaram a fazer um abaixo-assinado pedindo o com a nação”; “Fora PT”; e “Esse impeachment é
fim do protesto, mas não tiveram sucesso. Em 8 meu”; além de faixas com o “Muro da Vergonha”,
de março de 2017, o movimento anunciou sua re- com fotos de senadores que estavam indecisos
tirada da Avenida em função do recuo do governo em relação ao impeachment e deveriam ser pres-
federal que, após negociações, resolveu aderir sionados, e “Os nomes para nunca mais votar”,
suas reivindicações, mantendo o investimento trazendo fotos dos deputados que haviam votado
prometido no Programa MCMV. contra o pedido de saída da ex-presidente. Cha-
mado também de Occupy8 Paulista, alguns orga-
........ nizadores diziam estar usando as ferramentas
de protesto comuns à esquerda, semelhantes ao
O acampamento tem um mote que diz as- Occupy nova-iorquino, mas de maneira civilizada.
sim: Nós vamos ficar aqui até a Dilma cair.7 Outros, rechaçando o termo ocupação, afirma-
vam: “Estamos em um local público, não estamos
Em 16 de março de 2016, após a nomeação do fazendo expropriação, ocupando propriedade
ex-presidente Lula para Ministro da Casa Civil, um particular. É um acampamento horizontal e es-
acampamento pró-impeachment da ex-presidente pontâneo, de resistência pacífica.” 9
Dilma Rousseff foi montado em frente ao prédio da
Federação das Indústrias do Estado de São Paulo ........
(FIESP) na Avenida Paulista. O acampamento, que
afirmava não aceitar nenhum apoio financeiro [...] os movimentos de ocupação que agora
– por considerar que o dinheiro corromperia a acontecem em várias cidades do mundo
ocupação –, teria contado com 40 barracas e também propõem a retomada da possi-
cerca de 138 pessoas, se dizia apartidário, contra bilidade dos cidadãos construírem suas
cidades e interferirem nos rumos de seus
países. Por isso convidamos a tod@s: Venha
5. O Levante Popular da Juventude se diz uma organização [sic] ocupar!10
de jovens militantes voltada para a luta de massas em busca
da transformação da sociedade. “Somos a juventude do
projeto popular, e nos propomos a ser o fermento na massa 8. Em referência ao Occupy, um protesto iniciado em se-
jovem brasileira. Somos um grupo de jovens que não baixam tembro de 2011 com o acampamento de manifestantes no
[sic] a cabeça para as injustiças e desigualdades.” Ver em Zuccotti Park, no distrito financeiro de Wall Street, em Nova
<https://levante.org.br/> Acesso em: 24 de ago. 2019. York, a favor da igualdade social e econômica dos EUA.

6. A Frente de Luta por Moradia (FLM), conforme informações 9. Ver em <https://www.cartacapital.com.br/politica/uma-


disponíveis na internet, é um coletivo formado por represen- -semana-de-2018occupy2019-de-direita-na-avenida-pau-
tantes de movimentos sociais autônomos, cujo objetivo é a lista/> Acesso em: 16 de mai. 2019.
reforma urbana e um desenvolvimento urbano mais justo.
10 Trecho retirado do site do “OcupaSampa” em notí-
7. Fala de Raphael Mello, parte da organização do acampa- cia publicada em 24 de novembro de 2011, intitulada “Ocupar
mento pró-impeachment no documentário “Impeachment: a Av. Paulista para dar visibilidade à Praça d@ Ciclista”. Dis-
Acampamento na FIESP”, de 15 de abril de 2016, produzido ponível em <https://ocupasampa.milharal.org/2011/11/24/
pela 3 pontos, disponível em <https://www.youtube.com/ ocupar-a-av-paulista-para-dar-visibilidade-a-praca-d-ci-
watch?v=gIoxKuamGAg> Acesso em: 16 de mai. 2019. clista/> Acesso em: 24 de ago. 2019.
EIXO TEMÁTICO 2 Iniciada em 15 de outubro de 2011, em resposta a
um chamado global vindo dos Estados Unidos e
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS da Europa que, via Facebook e Twitter, convoca-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES va todos “que se sentiam desconfortáveis com
a situação econômica, política e social de seus
países” (OLIVEIRA, 2014, p. 8) para uma mobiliza-
ção mundial, a ocupação – nomeada a princípio
de “Acampa Sampa” – levou cerca de 250 barra-
cas e 600 jovens para acamparam sob o Viadu-
to do Chá na cidade de São Paulo. O nome logo
se alterou para “OcupaSampa” já que, conforme
Oliveira (2014), os participantes diziam se tratar
não apenas de um “acampamento”, mas de uma
“ocupação” que buscava ressignificar a cidade.

Diretamente relacionado com as ocupações de


âmbito internacional que eclodiram no mesmo
ano – como a Primavera Árabe, o 15M na Espanha
e o Occupy nos Estados Unidos –, o “OcupaSampa”
se definia como “um movimento pacífico, não
violento, plural, horizontal e apartidário, que não
compactuava com hierarquias, lideranças, vota-
ções, preconceitos, violência e representativi-
dade.” (OLIVEIRA, 2014, p.9) Ainda, afirmava uma
“busca pelo consenso em uma democracia onde
não haja líderes e todos participem das tomadas
de decisão.” 11 A ocupação tinha como mote uma
infinidade de pautas que incluíam o combate à
desigualdade social, à homofobia, à violência
contra as mulheres, à especulação imobiliária, à
corrupção, às obras da Copa do Mundo de Futebol,
à construção da Usina de Belo Monte; a reivin-
dicação pela tarifa zero no transporte público,
pela legalização da maconha e do aborto, entre
várias outras.

Os conflitos com os moradores de rua do Vale do


Anhangabaú, com os traficantes locais e os “de-
pendentes de crack que perambulavam pelas ruas
como zumbis” (OLIVEIRA, 2014, p. 11) teriam feito
com que o acampamento se mudasse para a Praça
do Ciclista, na Avenida Paulista. Em site próprio, o
“OcupaSampa” haveria informado em uma nota de
24 de novembro de 2011 que estaria ocupando a
Avenida para dar visibilidade à pauta dos ciclistas,
uma forma de afirmar a Praça como um local de
resistência daqueles que utilizavam a bicicleta
como meio de transporte. Ali, o acampamento

16º SHCU
11. Ver em https://www.redebrasilatual.com.br/cidada-
30 anos . Atualização Crítica
nia/2011/11/ocupa-sampa-completa-um-mes-de-ocupa-
2036 cao-no-centro-de-sao-paulo/ Acesso em: 25 de ago. 2019.
teria durado apenas dois dias, sendo removido violenta e ilegítima, ameaçadora da manutenção
após uma ação violenta da polícia municipal. da propriedade privada.

........ Por fim, a terceira cena nos mostra uma ocupação


de jovens, predominantemente de classe média e
As três cenas que trazemos no início deste texto bastante relacionada aos movimentos que ficaram
nos colocam em meio a distintos protestos de conhecidos como “Ciclo Global de Lutas”. O cresci-
ocupação que, em diferentes momentos e contex- mento exponencial destes modos de organização
tos, nos provocam a compreendê-los pelas suas foi bastante perceptível no início dos anos 2010
relações históricas. Falamos especificamente de e contribuiu significativamente para a ampliação
três episódios ocorridos na Avenida Paulista, em do termo “ocupação”. Essa constatação fica ainda
São Paulo, que, apesar de resguardarem seme- mais evidente com os inúmeros “Ocupas” que se
lhanças entre os modos com que se instalaram
espalharam mundialmente e que tiverem como
e utilizaram do espaço da Avenida, são extrema-
mote a tomada dos espaços públicos, contribuin-
mente díspares quando observados pelas suas
do para a emergência do que foi considerado, por
pautas reivindicadas, pelos seus posicionamentos
diversos pesquisadores, como a “volta às ruas”.
políticos e pelas ideias que dispersaram.
A partir desta breve explanação, procuramos
Primeiro, uma ação atrelada a um movimento
entender estas manifestações como momentos
de luta por moradia surgido no fim da década de
disruptivos na história que, através de uma ação
1990, em que as ocupações de terras urbanas
insurgente que altera a ordem regulatória dos
eram a forma de atuação mais importante des-
espaços da cidade, causam fissuras que expõem
tes grupos, possibilitando pressionar os grandes
contradições e conflitos do próprio campo do
proprietários e o Estado, além de servir como
urbanismo, além de tensionarem a experiência
uma maneira de denunciar o problema social da
moradia e de construir uma organização coletiva cotidiana e fazerem emergir outras subjetivi-
e autônoma dos trabalhadores nos acampamen- dades. Propomos compreender, portanto, a in-
tos. Para Goulart, tais ocupações, sobretudo de trínseca relação entre o ato de ocupar, como um
terrenos destinados à especulação imobiliária, “agir político” (AGIER, 2015), e a história atrelada
cumprem um papel de resistência territorializada à espacialidade urbana em que as ocupações se
e de construção de um espaço coletivo popular. efetivaram de fato, na medida em que a cidade se
“É nas áreas ocupadas que há formação política torna parte ativa destes protestos e não somente
mais intensa, decisões sobre as ações coleti- um palco performático. Ainda, propomos em uma
vas, representação para as outras instâncias do história recente articular discursos e modos de
movimento em níveis estadual e nacional.” Para fazer que permitem relacionar esses protestos
a autora, a “ocupação centraliza as atenções e a ações anteriores, além de procurar questionar
expande a potencialidade de luta, na medida em seus desdobramentos.12
que congrega todo o conjunto de relações sociais
que emergem desta forma de luta pela moradia.” Saber sobre um movimento popular ou um
(GOULART, 2011, p. 75) levante urbano nas configurações em que
se deu, nas representações que dele se
Segundo, um protesto que se dizia valer das for- produziu, implica interrogar, na história dos
mas de ação da esquerda, que usava do acam- acontecimentos-insurreições, a história
pamento como uma prática de pressão e busca das cidades em que essas condições se
de visibilidade, mas que rechaçava os próprios
meios, afirmando-se como uma “ocupação de
12. É importante ressaltarmos que a participação na
direita, pacífica e civilizada”. Nesse caso, apesar
pesquisa coletiva “Cronologia do Pensamento Urbanístico”
de adotarem modos semelhantes de organização, do Laboratório Urbano (PPG-AU/UFBA), em específico
a negação da noção de ocupação fica bastante no campo de debates da participação, contribuiu para
evidente, provavelmente em decorrência desta tecermos estas relações históricas e investigarmos os
ideia estar historicamente associada a grupos de desdobramentos contemporâneos das ocupações, além
extrema esquerda, em um imaginário construído de mobilizarmos uma discussão acerca da participação e
e difundido nacionalmente em torno de uma ação dos ativismos no espaço urbano.
EIXO TEMÁTICO 2 desenrolam e a própria historicidade desse
acontecimento – insurreição. (VELLOSO,
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS et. al., 2019, p. 232)
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

AVENIDA PAULISTA: ALGUNS HOLOFOTES

A primeira questão que Velloso (2019) nos convida


a fazer, nos direciona à tentativa de compreensão,
ainda que brevemente, sobre como a Avenida
Paulista teria se tornado um centro convergente
de visibilidade na cidade de São Paulo, a fim de
abrigar com recorrência esses protestos. Ao tra-
tarmos a Avenida como um local propício para uma
“política na rua” 13 (SCHVARSBERG, 2011) – quando
a rua é escolhida estrategicamente para uma
manifestação em função da sua visibilidade e do
impacto que o protesto poderia causar –, preci-
samos compreender as características que ao
longo do tempo fizeram-na assumir esta posição.

Para Shibaki (2007, p.02) “a Avenida Paulista é


considerada um dos maiores ícones de São Paulo,
pois simboliza uma metrópole que se metamor-
foseou significativamente dentro de um contexto
de expansão urbana único.” O fato de a Avenida ter
passado por diversos processos que colaboraram
para torná-la um espaço simbólico na cidade de
São Paulo, desde sua inauguração em 1891, faz
com que possamos esboçar os motivos pelos
quais a concentração de grande parte das mani-
festações aconteça ali. Dos seus primórdios até
o fim da década de 1930, mesmo sendo marcada
por uma ocupação pouco adensada dos casarões
pertencentes aos fazendeiros produtores de café,
a Avenida Paulista já constituía uma imagem de
prestígio, abrigava o luxuoso corso carnavalesco
das elites e já era vista como um dos principais

13. Para Schvarsberg (2011, p.139), a “política na rua” se di-


fere da “política da rua”, ao passo que considera esta últi-
ma “o exercício político intrínseco às próprias dinâmicas
cotidianas do urbano; aquela prática que permaneceu ao
nível da rua e adaptou-se às mudanças nas formas como
se entrelaçaram as esferas pública e privada na metrópole
contemporânea.” Para o autor, enquanto a “política na rua”
busca reconhecimento e visibilidade, surgindo em espaços
eventuais, causando abalos extraordinários e desequilí-
16º SHCU
brios no andamento da cidade; a “política da rua” é aquela
30 anos . Atualização Crítica
que atuaria num regime de invisibilidade, em um exercício
2038 micropolítico, de forma molecular e ordinária.
“cartões-postais” da cidade. (FRÚGOLI, 2000, p.116) concentravam no centro antigo, contribuindo
para a consolidação, nos anos 1970, de uma nova
Inaugurada em 1891, a Avenida fez parte do setor centralidade em São Paulo.
de expansão Sudoeste da capital paulista, lote-
ado por Joaquim Eugênio de Lima – junto a João Nesse período, a Avenida contava com um boom
Augusto Garcia e José Borges Figueiredo –, para imobiliário relacionado aos investimentos de
a construção de palacetes de uma elite cafeeira capital internacional no Brasil e endossado pe-
(HOMEM, 1996) que deixava o centro antigo para las obras do Projeto Nova Paulista14 (1968 - 1974),
ocupar os terrenos mais altos de São Paulo. Após sendo construídos diversos edifícios para abrigar
a quebra da bolsa de valores de Nova York, em a chegada de grandes empresas na metrópo-
1929, grande parte dos palacetes da Avenida fo- le paulistana – como a Companhia Energética
ram vendidos a investidores interessados nos de São Paulo, Petroquímica União, Grupo Ultra,
terrenos por possuírem grandes dimensões para Duratex, Cacique Café Solúvel, Goodyer, etc. O
a construção de edifícios de alto padrão (D’ALES- crescimento do capital financeiro da Avenida
SIO; SOUKEF; ALBARELLO, 2002, p.53). Somados Paulista foi intensificado pelo estabelecimento
a este processo, o advento e a implantação dos de importantes federações, bancos e estatais
primeiros elevadores junto a um ideário moder- no espaço, como o Serviço Social do Comércio
nista de urbanização da cidade – sobretudo com (SESC), em 1978; o Banco de Desenvolvimento do
as administrações municipais de Anhaia Melo, Estado de São Paulo (BADESP), em 1973; o Fórum
pela regulamentação do Código Sanitário, em da Justiça Federal, em 1974; e a já citada FIESP,
1918, e implantação da Lei de Arruamento, em em 1979, reforçando, assim, uma continuidade
1931; e de Prestes Maia, pelo Plano de Avenidas, do seu prestígio e do seu poder.15
em 1930 (SOMEKH, 1997, p.34) –, fizeram com que
a verticalização da capital paulista, inclusive do Prestígio este que viria ser reiterado com a elei-
“Espigão Central” como a Avenida era chamada, ção da Paulista como “símbolo da cidade” em
fosse intensificada. uma campanha liderada pelo Itaú em parceria
com a Rede Globo, chamada “Eleja São Paulo”
Com isso, nos anos 1950 é iniciada uma ocupação e lançada em comemoração ao centenário da
pelo setor terciário na Avenida Paulista, sendo Avenida. A campanha fazia parte de um projeto
inaugurado o seu primeiro edifício comercial. encabeçado também pelo Itaú chamado “Faça
“Dos empreendimentos que impulsionaram esse São Paulo Melhor”, de 1989, que tinha como ob-
início, sem dúvida um dos marcos foi o Conjunto jetivo estimular o engajamento dos habitantes
Nacional, inaugurado em 1956, projeto do arqui- na cidade e “despertar o sentido humano de São
teto David Libeskind [...] cuja ideia inicial era a Paulo, retratando o cotidiano das pessoas que
‘construção do primeiro shopping center do País’”.
(FRÚGOLI, 2000, p.118) A partir de então, outros
edifícios emblemáticos da arquitetura no país 14. O projeto Nova Paulista (1968 - 1974), formulado durante a
– como o Museu de Arte de São Paulo (MASP), gestão Faria Lima (1965 - 1969) tinha o intuito de propiciar um
maior escoamento de veículos pela Avenida, prevendo uma
projeto de Lina Bo Bardi, inaugurado em 1968, e
via expressa subterrânea e, em um nível ainda mais baixo,
o edifício que abriga a Federação das Indústrias
a implantação do metrô. O projeto contemplava, ainda, um
de São Paulo (FIESP), de Rino Levi, inaugurado grande calçadão com jardins suspensos no nível do chão,
em 1979 – passaram a ocupar aquele espaço que aumentando, assim, a área de circulação e recreação de
se transformava sob uma lógica modernista e pedestres. As obras se iniciaram na região entre a Avenida
rodoviarista. Paulista e a Consolação, sendo esse trecho inaugurado em
1971. Por embates políticos, as obras foram interrompidas
A decadência dos casarões e o início desta ver- e o projeto inicial abandonado, persistindo apenas o alar-
ticalização fizeram com que o simbolismo da gamento da via até 1974.
Avenida Paulista se intensificasse desde a dé- 15. Hoje, a Avenida Paulista conta com uma série de sedes
cada de 1940. A instalação do Conjunto Nacional e agências financeiras, como o Banco Safra, Citibank e
e do MASP antecipou mudanças significativas Daycoval, e diversos espaços culturais e museus como o
no espaço da Avenida, incluindo a migração de Instituto Moreira Sales (IMS), a Casa das Rosas, a Japan
atividades comerciais e culturais que antes se House, o Itaú Cultural e o SESC Paulista.
EIXO TEMÁTICO 2 moram nessa metrópole”, e que procurava eleger
os maiores “símbolos identificadores” da cidade.
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Com 332,4 mil votos, a Avenida Paulista foi a pri-
meira colocada em uma eleição repleta de contro-
vérsias e uma campanha considerada totalmente
manipulada. “Seria ingenuidade pensar que o Itaú
não teria interesses em promover a Paulista, um
forte espaço do capital financeiro, [...] e onde veio,
além da presença de três agências, a investir [...]
posteriormente, com a construção de um centro
cultural.” (FRÚGOLI, 2000, p.136)

Concomitantemente a este simbolismo da Avenida


Paulista, e não por acaso, esse mesmo período
teria marcado um crescente uso do espaço da
rua para manifestações políticas na cidade de
São Paulo, sobretudo por categorias profissionais
como bancários, professores, funcionários pú-
blicos, metroviários, metalúrgicos, entre outros.
Para Shibaki (2007, p.115), algumas características
da Paulista fizeram com que as manifestações
passassem a se concentrar naquele local nos úl-
timos anos. Entre elas estão: a localização; a fácil
acessibilidade devido à farta rede de transporte;
a presença de edifícios culturais; o prestígio; a
simbologia; e a visibilidade, estando rodeada por
transmissores de televisão e rádio.

Esta mesma visibilidade é um dos motivos de


crítica de Olavo Setúbal (em entrevista concedida
a Heitor Frúgoli, em 04 de novembro de 1997),
ex-prefeito de São Paulo (1975 - 1979) e presiden-
te do grupo Itausa (Investimentos Itaú S.A.), às
manifestações na Avenida. Para Setúbal “[...] Da
mesma maneira que o ambulante quer vender lá
porque tem muita gente, a manifestação de massa
quer fazer lá porque tem repercussão no Brasil
inteiro. [...] De modo que isso deve ser impedido,
em benefício da vida da cidade.”

Por mais que as manifestações na Avenida Pau-


lista tenham sido sempre criticadas ao longo dos
anos sobretudo pelo prejuízo ao fluxo do trânsito
local, cada vez mais elas se intensificaram ali e,
aos poucos, foram deixando os antigos espaços
de protesto como a Praça da Sé e o Largo São
Francisco. A Avenida passou a abrigar momen-
tos políticos históricos e decisivos no país como
as passeatas que levaram ao impeachment do
16º SHCU ex-presidente Fernando Collor, em 1992, e, mais
30 anos . Atualização Crítica
recentemente, as Jornadas de Junho de 2013,
2040 além de inúmeras comemorações festivas, como
as festas de Réveillon, a Parada do Orgulho LGBT16 por uma ordem definida como capitalista, opres-
e a Corrida de São Silvestre. siva e homogeneizante.” (GIOVANNI, 2007, p. 111)

As características apontadas pela autora são fa-


MOVIMENTO “OCUPA”: VÁRIAS REPERCUSSÕES cilmente observadas nos protestos mais recentes.
Ao tratarmos dos movimentos de ocupação, os
A segunda indagação que Velloso (2019) nos pro- “Ocupas”, vimos uma ascensão e dispersão destas
voca, sugere que a nossa compreensão dos pro- práticas que tomaram a cena em 2011, em um
testos expostos nas cenas iniciais deste texto contexto de revoltas que “começou no norte da
seja feita a partir de uma relação histórica com África, derrubando ditaduras na Tunísia, no Egito,
outras ações semelhantes. “1848, 1871 e 1968 em na Líbia e no Iêmen; estendeu-se à Europa, com
Paris. 1848: a repercussão dos levantes proletá- ocupações e greves na Espanha e Grécia e revolta
rios em toda Europa; 1968: arquiteturas e cidades nos subúrbios de Londres; eclodiu no Chile e ocu-
do socialismo; e depois, junho de 2013, no Brasil”. pou Wall Street, nos EUA [...]”. (CARNEIRO, 2012,
(VELLOSO, et. al., 2019, p. 268) p. 7) Para Carneiro (2012, p.8), esta “sequência
viral de rebeliões” resguardou uma mesma forma
Apesar de alguns autores tratarem as barrica- de ação: “ocupação de praças, usos de redes de
das de Paris no século XIX, a Comuna de 1871 e comunicação alternativas e articulações políticas
o Maio de 1968 como precedentes importantes que recusavam o espaço institucional tradicional.”
aos movimentos mais recentes – por causarem
momentos disruptivos no curso e na ordem das Houve algo de dionisíaco nos acontecimen-
cidades –, de fato, foi a década de 1990 em diante tos de 2011: uma onda de catarse política
e os movimentos de enfrentamento ao capitalismo protagonizada especialmente pela nova
que teriam instaurado um marco para as práticas geração que sentiu esse processo como
mais contemporâneas. As manifestações de 1999 um despertar coletivo propagado não só
contra a Organização Mundial do Comércio em pela mídia tradicional da TV ou do rádio,
Seattle; as de 2000 contra a reunião do Fundo mas por uma difusão nova, nas redes so-
Monetário Internacional e do Banco Mundial em ciais da internet, em particular o Twitter,
Praga; e as de 2001 contra a reunião do G8 em tomando uma forma de disseminação viral,
Gênova; possuíram algumas características em um boca a boca eletrônico, com mensagens
comum que ainda podemos encontrar nos pro- replicadas a milhares de outros emissores.
testos dos anos 2010 em diante. (CARNEIRO, 2012, p. 9)

Segundo a antropóloga Di Giovanni (2007) os pro- Slavoj Žižek (2013), ao dissertar sobre os acon-
testos desde Seattle apresentam como forma tecimentos de 2011, afirma que “o que unifica
semelhante, principalmente, a ocupação da rua tantos protestos em sua multiplicidade é que
como tática de confronto, além de formas des- são todos reações contra as múltiplas facetas
centralizadas de organização e modos de co- da globalização capitalista” e se colocam como
municação usando tecnologias da informação, um enfrentamento a questões econômicas e po-
o que possibilitou com que estes protestos do lítico-ideológicas, incluindo demandas pela de-
fim do século XX e início do XXI ocorressem si- mocracia. Carneiro (2012, p. 10) nos traz algumas
multaneamente em diversos locais. “Entre eles outras constatações que afirma serem unânimes
estão a chamada ‘ação direta’, percebida como aos protestos. Primeiro, remete a um momento da
expressão comum de um movimento [...] e a ideia política em que “a voz das ruas passou a ocupar o
do protesto como liberação de espaços regulados cenário, deslocando velhos aparatos políticos e
questionando a ordem do capitalismo financeiro”.
Segundo, afirma ser comum às mobilizações uma
16. A sigla LGBT é utilizada para representar “lésbicas, gays,
bissexuais, travestis e transexuais”. No Brasil, por vezes,
falta de definição estratégica, programática e
é utilizada a sigla LGBTI+, em que a letra “I” significa “inter- teórica, mas em busca de uma alternativa polí-
sexual” (Fonte: <https://medium.com/pirata-cultural/o- tica à medida que consideram um momento de
-que-%C3%A9-o-q-de-lgbtq-7556af6d8d6f> Acesso: 26 declínio geral do capitalismo e uma necessária
de abr. 2019) democracia real.
EIXO TEMÁTICO 2 Diversos outros autores se dedicaram à compre-
ensão destes protestos contemporâneos através
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS de divergentes opiniões, mas buscando de algum
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES modo elencar características comuns que permi-
tissem entendê-los de forma totalizante, ainda
que corressem o risco de generalizá-los. Alves
(2012, p. 32), considerando as mobilizações como
“exemplos cadentes da verdadeira globalização
‘dos de baixo’, que hoje se contrapõe à globaliza-
ção dos ‘de cima’”, salienta a constituição densa
e complexa dos movimentos sociais. Já Harvey
(2012, p. 60), sobre o Occupy Wall Street, afirma
serem suas táticas ocupar um espaço público
central e convertê-lo em um espaço político de
iguais.

Ainda, Alves acrescenta à caracterização do que


ele intitula de “novos movimentos sociais” – as-
sim como Gohn (2014a) também o fez ao trazer
o debate para os ativistas brasileiros –, o fato
de serem mobilizações sociais pacíficas que re-
cusam táticas violentas e ilegais a fim de evitar
a criminalização do protesto; de usarem redes
sociais, como Facebook e Twitter para ampliarem
territorialmente a área de intervenção; de serem
capazes de inovar e ter criatividade política na
disseminação de seus propósitos; de exporem
com “notável capacidade de comunicação e vi-
sibilidade, as misérias da ordem burguesa”; e de
reivindicarem a democratização radical contra
uma “farsa democrática dos países capitalistas
centrais.” (ALVES, 2012, p. 33)

Já Castells, ao discorrer sobre o Occupy nova-ior-


quino, enfatiza a rápida difusão das manifesta-
ções como reflexo da sua propagação pelo espaço
online através das mídias sociais. “O movimento
nasceu na internet, difundiu-se pela internet e
manteve sua presença pela internet, já que muitas
ocupações, assim como grupos específicos e
outras redes sociais, criaram seus próprios sites”.
Para o autor, a continuidade das mobilizações no
espaço da internet elimina as fronteiras estrita-
mente definidas, aumentando as chances de par-
ticipação dos manifestantes e descentralizando
as estruturas de organização.17 Entretanto, afirma

17. É importante ressaltar que a internet enquanto legítimo


instrumento democrático passa a ser questionada primei-
16º SHCU
ro, por nos colocar em “bolhas digitais” – quando através
30 anos . Atualização Crítica
da programação algorítmica dos endereços virtuais, os
2042 perfis dos usuários são pautados pelo seu consumo de
ao mesmo tempo a importância da ocupação do ligadas à atuação de coletivos jovens, com certa
espaço público como forma material, em que “os horizontalidade na sua organização, com um uso
manifestantes podiam reunir-se e formar uma amplo das redes sociais na convocação dos atos
comunidade para além de suas diferenças. Um e com uma dinâmica de ocupação das ruas e de
espaço de convivência. Um espaço de debate (…). espaços urbanos.
Em suma, um espaço de autonomia”18 (CASTELLS,
2013, p.128). Em números, entre junho e agosto de 2013, ocor-
reram manifestações em 483 cidades (GOHN,
Ainda, Castells (2013, p.24) afirma que estas “novas 2014b, p. 7), chegando ao total de 250 mil pessoas
vias de mudança social, mediante a capacidade na rua em 17 de junho de 2013 na cidade de São
autônoma de comunicar-se e organizar-se têm Paulo e quase 1 milhão de pessoas na rua em todo
sido descobertas por uma nova geração de ati- o país três dias depois.19 Na capital paulista, estes
vistas, para além do alcance dos métodos usuais protestos se concentraram principalmente na
de controle empresarial e político”. Para o autor, Avenida Paulista, espraiando-se, posteriormente,
tais vias, embora já houvessem precedentes no para o Largo da Batata.
início dos anos 2000, tiveram maior visibilidade
ou alcançaram a “manifestação plena” na Islândia, Esta data de 17 de junho, o quinto ato das Jor-
em 2008, com a Revolução das Panelas em prol nadas, teria marcado o ápice dos protestos em
da construção coletiva de uma Constituição; e na números e alcance midiático. A repressão policial
Tunísia, em 2010, com a Revolução do Jasmim a extremamente violenta dias anteriores haveria
favor de um governo democrático, considerada o causado uma “solidariedade ao movimento” e
estopim para os protestos que ficaram conheci- feito com que outros manifestantes se juntassem
dos como Primavera Árabe e se espalharam por à causa. De acordo com Secco (2013), o ataque
países como Egito, Líbia, Síria, Iêmem e Barein. a um protesto composto aparentemente pela
classe média pode ter facilitado esta adesão.
Quando observados estes protestos no contexto Nesse contexto, “a direita midiática se viu forçada
nacional, é importante pontuarmos as Jornadas a apoiar os manifestantes – mas com sua própria
de Junho de 2013 como parte desta “sequência pauta. Por isso, o decisivo não foi a violência, tão
viral” que marcou os anos 2010. Apesar de terem natural contra trabalhadores organizados, e sim
assumido uma dimensão nacional e tomado outros sua apropriação pela imprensa.” (SECCO, 2013,
espaços de protesto, as Jornadas foram mani- p.74, grifos do autor)
festações que se iniciariam pontualmente em
São Paulo encabeçadas pelo Movimento Passe Para o autor, após esse episódio, uma mudan-
Livre (MPL) contra o aumento municipal da tarifa ça ideológica das manifestações coincidiu com
do transporte público. Segundo Damo e Oliven uma redução significativa no número de mani-
(2014) as Jornadas caracterizaram-se por estarem festantes, passando de um movimento que se
dizia apartidário para, então, se tornar “antipar-
tidário”. Contudo, e sobretudo pela divulgação
informações, o que personaliza as buscas no meio digital dos protestos nas mídias tradicionais e nas redes
para cada pessoa e limita a sua interação (PARISIER, 2012); sociais, as manifestações logo alcançaram um
e segundo, por percebermos a propagação alarmante e
visível aumento de escala, mas acompanhado
crescente de fake news [notícias falsas] no ambiente digital.
por uma fragmentação e individualização dos
Acredita-se que grande parte dos usuários das redes sociais
participantes.
compartilhem notícias sem ao menos ler o seu conteúdo.
“Informações demais, tempo de menos, torcida pela sua
“Passeatas quilométricas foram organizadas em
versão da história (quando alguma ideologia está em jogo)
e, é claro, um pouco de preguiça: está aí o fértil campo
uma cidade cuidadosamente planejada para que
minado da pós-verdade.” (BRANCO, 2017, p.58) o trânsito não sofresse grandes impactos e os

18. O que o autor caracteriza como “espaço de autonomia” é


justamente esta atuação dos manifestantes neste campo 19. Secco (2013, p.73-76) nos apresenta alguns gráficos com o
híbrido entre o online e offline, possibilitando a constituição registro do número de manifestantes na cidade de São Paulo
de uma nova forma de espaço e tempo que, segundo ele, e em todo o restante do país, assim como a quantidade de
amplifica o debate. cidades em que houve protestos no mês de junho de 2013.
EIXO TEMÁTICO 2 manifestantes só tivessem a eles próprios como
debatedores da pauta.” 20 Os desdobramentos
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS destes acontecimentos foram inúmeros e, por-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES tanto, difíceis de defini-los. Apesar de diversos
autores terem se dedicado à análise das Jornadas,
as opiniões ainda são divergentes, tornando a
sua compreensão bastante turva e sem delinea-
mentos precisos. Como repercussão, de maneira
geral e até generalista, o que vimos após o ano de
2013 foram grandes manifestações vestidas de
verde e amarelo tomarem as ruas de todo o país
e principalmente a Avenida Paulista, em atos que
se diziam contra a corrupção e pediam o impea-
chment de Dilma Rousseff.

Tentar compreender o processo de Junho


de 2013 e seus desdobramentos é tarefa
que envolve uma série de dificuldades:
distintas motivações, atores antagônicos
no espectro político-ideológico e pautas
contraditórias. Dos vinte centavos ao des-
contentamento com o governo petista; da
esquerda revolucionária à direita fascis-
toide; do clamor por um Estado mais forte
e poroso à participação popular, ao “fora
todos” e às reivindicações por reforma po-
lítica. Passados cinco anos, já com certo
distanciamento temporal e metodológico,
podemos apontar a inclusão de novos reper-
tórios de protesto, a reorganização ativista
da direita, o aumento das manifestações
em vias públicas – tanto por setores pro-
gressistas quanto conservadores –, e uma
socialização política da juventude, além de
crises institucionais notadamente atribuí-
das ao turbulento Junho. Todavia, há ainda
uma densa neblina que não nos permite
enxergar com total clareza os acontecimen-
tos de Junho de 2013 em sua completude,
observando-os para além das dicotomias
políticas que lhes são inerentes. (REZENDE;
GOMES; BOREL, 2018)

20. Trecho do texto “A pasteurização do protesto” de Renato


Watanabe de Morais, publicado no blog da Boitempo em 28
16º SHCU
de junho de 2013. Ver em <https://blogdaboitempo.com.
30 anos . Atualização Crítica
br/2013/06/28/a-pasteurizacao-do-protesto/>. Acesso
2044 em 04 de jul. 2019.
SEQUÊNCIA VIRAL: DUVIDOSOS DESDOBRAMENTOS “viralização”, a problemática definição estratégica
e o “vazio ideológico” de parte das mobilizações
As relações entre os protestos esboçados são inú- nacionais também teriam contribuído para uma
meras. Não somente podemos notar caracterís- possível banalização de algumas ocupações como
ticas que possibilitam articular as manifestações forma de protesto. A exemplo, vimos ocorrer em
pós 2011 aos movimentos precedentes – como outubro de 2012 uma manifestação em São Paulo
a ocupação da rua, a constituição de redes, a com aproximadamente 10 mil pessoas ocupando
comunicação e a organização descentralizadas a praça Roosevelt, no centro da capital paulista,
e a simultaneidade –; como também podemos em um ato organizado por coletivos ligados à
perceber um encadeamento e uma reprodução cultura chamado “Existe amor em São Paulo”. A
viral desse “modo de fazer”. Apesar de apresenta- manifestação teve como característica a pacifi-
rem modos semelhantes de ocupação do espaço, cidade, não por exigir “mais amor, mais respeito e
é preciso salientar que a possível “viralização” mais solidariedade”, mas por ter sido considerada
destas práticas teria permitido uma atuação de “desengajada” em um contexto em que “protestar
diversos atores com interesses amplos, o que se tornou uma questão estritamente pessoal e o
culminaria em diferenças significativas entre ativismo, a rigor, um estilo de vida” 23.
estes protestos.
Ainda neste clamor pela volta aos espaços pú-
Além dos três movimentos de ocupação que ini- blicos, a campanha “Vem pra rua”, lançada em
ciam esse texto – e que são extremamente distin- maio de 2013 pela montadora de automóveis Fiat,
tos entre si apesar de utilizarem do acampamento convidando pessoas a ocuparem os espaços das
no espaço público como tática de confronto – ruas para uma torcida coletiva pela seleção bra-
foram diversas outras ocupações que eclodiram sileira de futebol na Copa das Confederações,
no Brasil após a aclamada “volta às ruas” de 2013. nos ajuda a tensionar a noção em torno do ato
A título de exemplo, o Ocupe Cocó, em Fortaleza de ocupar. “Gerar engajamento entre os brasilei-
(2013); Ocupe Estelita, em Recife (2014); Ocupa ros, incentivando-os a irem para às ruas torcer
Golfe, no Rio de Janeiro (2014); Ocupa Parque Au- pelo Brasil. Este é o conceito da plataforma de
gusta, em São Paulo (2015); Primavera Secundaris- comunicação Vem pra Rua, lançada pela Fiat na
ta e Ocupa Minc (2016), ambos de escala nacional.21 última semana.” 24 Após virar tema das Jornadas
de Junho de 2013 com a hashtag #vemprarua e
Esta reprodução quase modelar, quando a “noção
tornar-se um dos gritos dos manifestantes mais
de modelo em sua mais corrente acepção, sugere
ligados à direita conservadora, a campanha foi
sua reprodutibilidade: objeto digno de ser repro-
tirada do ar. No ano seguinte, o “Vem pra rua” deu
duzido por imitação” (SÁNCHEZ; MOURA, 1999,
nome a uma organização que se definia como
p.100), estaria muito associada às “best pratices”
“suprapartidária, democrática e plural” e que se
que indicariam maneiras de ser e lições presentes
vestia de verde e amarelo para ir às ruas, princi-
em guias e manuais a fim de reproduzir ou orien-
palmente, à Avenida Paulista, dizendo querer “um
tar a formação dos protestos.22 Somados a esta
Brasil livre da corrupção, com uma política feita

21. Outras ocupações tomaram a cena no país como o Ocupa


para ativistas” do “Greenpeace”; o “Guia de proteção do
Cabral, Ocupa Funai, Ocupa SUS, Ocupa Alckmin, Ocupa
manifestante” do “Protesto.org”; o “Guia para filmar violência
Alemão, Ocupa Câmara, Ocupa a Rede Globo.
policial em protestos” do “Witness”, entre outros. Ver em
22. A “Escola de Ativismo” é um exemplo que procura regis- <https://ativismo.org.br/>. Acesso em: 04 de jun. 2018.
trar conteúdos que “vão desde Roteiros de Aprendizagem
23. Trecho da entrevista de Paulo Arantes em “O futuro que
utilizados para cada processo até a sistematização de co-
passou”, de 22 de junho de 2013 no Estado de São Paulo.
nhecimentos relacionados ao ativismo contemporâneo”,
Disponível em <https://www.estadao.com.br/noticias/
produzindo manuais aos manifestantes que englobam “lis-
geral,o-futuro-que-passou,1045705>. Acesso em 05 de
tagem de ações não-violentas”, “estratégias de campanha”
jul. de 2019.
e “técnicas de como falar com a imprensa”. A proliferação
destes manuais não se restringe à Escola e perpassa por 24. Ver em <https://www.meioemensagem.com.br/home/
diversos outros grupos, como o “Manual para pessoas ma- comunicacao/2013/05/20/fiat-quer-todo-mundo-na-rua.
nifestantes” do coletivo “Urucum”; o “Kit de ferramentas html>. Acesso em 05 de jul. 2019.
EIXO TEMÁTICO 2 com ética e um Estado desinchado e eficiente,
verdadeiramente democrático e justo”.25
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Essa concatenação de acontecimentos e os seus
esgarçamentos e desdobramentos possíveis nos
colocam diante de uma necessária compreen-
são particular, contextualizada e não generalista
destas manifestações. Walter Benjamin nos dirá
que nossa capacidade e faculdade mimética – a
habilidade em perceber e produzir semelhanças
– deve ser contingente à mudança histórica e mu-
tável ao contexto específico do espaço. “Deve-se
refletir ainda que nem as forças miméticas nem
as coisas miméticas, seu objeto, permaneceram
as mesmas no curso do tempo [...].” (BENJAMIN,
2006, p.108)

Aproximar os movimentos de ocupação recentes


aos protestos históricos pode nos permitir tecer
relações e criar redes afins. Contudo, é fundamen-
tal percebermos pontos de inflexão e mudanças
de direção que não nos deixam inseri-los todos
no mesmo caldo, nem atribuirmos características
totalizantes. Dos protestos globais de 2011 – sobre-
tudo a Primavera Árabe, os Indignados na Espanha
e o Occupy nos Estados Unidos – ao Junho de
2013 brasileiro, percebemos uma virada de chave
que nos levou a um encadeamento de fatos ainda
bastante nebulosos. A adoção destas práticas
de ocupação por manifestantes mais ligados à
extrema direita nos mostrou uma reivindicação
repleta de pautas com uma dimensão política que
se distancia das lutas originais em torno das quais
as ocupações se constituíram, abrindo possibi-
lidades para uma ameaça à democracia. Alves
(2012, p.38) irá nos apontar que se por um lado
teríamos um aprofundamento da crise social na
década de 2010, por outro, a falta de estratégia
dos protestos e o extremismo conservador de
determinados partidos políticos nos colocariam
diante de um “caldo ameaçador de fascismo po-
lítico sob o pano de fundo da barbárie social”, do
qual estaríamos colhendo os frutos até então.

Os três acampamentos na Avenida Paulista que


abrem o texto nos mostram as mais distintas situ-
ações – desde um protesto ligado aos movimentos
históricos de ocupação e luta por terra urbana,
a uma onda global e viral de ocupações, até a
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
25. Ver em <https://www.vemprarua.net/>. Acesso em 05
2046 de jul. 2019.
derrocada para uma direita conservadora – que REFERÊNCIAS
poderiam apontar e friccionar relações múltiplas.
Interessa-nos olhar para estas manifestações AGIER, M. “Do direito à cidade ao fazer-cidade:
a partir destas multiplicidades e dissonâncias, o antropólogo, a margem e o centro”. MANA, v.
compreendendo que estes momentos disrupti- 21, n. 3, 2015, p. 483-498.
vos da ordem não só resguardam semelhanças
históricas – que possibilitam inclusive nos levar ALVES, G. Ocupar Wall Street... e depois?. In:
a uma compreensão da história do urbanismo HARVEY, D. (et al.). Occupy: movimentos de
a partir das insurgências26 –, mas evidenciam protestos que tomaram as ruas. São Paulo:
heterogeneidades e tensionam contradições. Boitempo: Carta Maior, 2012, p. 31-38.

Ao tomar a metrópole, as práticas insurre- ARANTES, P. “O futuro que passou”. O Estado


cionais parecem trazer consigo a eviden- de S. Paulo, São Paulo, 22.6.2013.
ciação de um desgaste: os dispositivos que
organizam o uso da cidade não comportam BENJAMIN, W. A modernidade. Lisboa: Assirio
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formas de existência. (VELLOSO, et. al., BRANCO, S. “Fake News e os Caminhos para
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EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Na primeira metade do século XX, a cidade de
Fortaleza, Ceará, passou por lento processo de
substituição da linguagem arquitetônica ecléti-
vídeo-pôster ca por uma arquitetura com linhas modernizan-
tes mais racionalistas, ou por vezes, neocolo-
niais. Tais mudanças podem ser evidenciadas
OS CLUBES SOCIAIS E SEU na arquitetura dos clubes sociais, reunindo em
torno do lazer privado a elite econômica e po-
PAPEL NA SEGREGAÇÃO lítica fortalezense. Enquanto lugar de diverti-
mento da elite local, tais clubes manifestam, no
SOCIOESPACIAL NO PROCESSO espaço citadino uma forma de afastamento dos
setores mais abastados, dos problemas sociais,
DE MODERNIZAÇÃO DE decorrentes do adensamento demográfico, da
industrialização e desenvolvimento comercial
FORTALEZA NAS DÉCADAS nas áreas centrais da capital cearense. Tais es-

DE 1930 E 1940
tabelecimentos foram construídos em zonas de
expansão urbana, quando seu litoral passa a ser
valorizado como opção de lazer para as elites.
Sylvio Jaguaribe Ekman, engenheiro-arqui-
SOCIAL CLUBS AND THEIR ROLE IN SOCIO-SPATIAL
teto paulistano, teve importante contribuição
SEGREGATION DURING THE FORTALEZA CITY PROCESS
na transformação da paisagem urbana de For-
OF MODERNIZING IN THE 1930 AND 1940 DECADES
taleza. Nas décadas de 1930 e 1940, projetou
e construiu quatro destes clubes na cidade:
LOS CLUBES SOCIALES Y SU PAPEL EN LA
Country Club, Jangada Clube, Ideal Clube e Ma-
SEGREGACIÓN SOCIOESPACIAL EN EL PROCESO DE
guary Sport Club. Este artigo tem por objetivo,
MODERNIZACIÓN DE LA CIUDAD DE FORTALEZA EN LAS
caracterizar como este ideal de modernidade
DÉCADAS DE 1930 Y 1940
das elites, se manifestava na arquitetura nes-
tes quatro clubes sociais, ao mesmo tempo que
LOPES, Tiago Farias simbolizavam espaços de segregação socio-
espacial. Utilizou-se para tal, de revisão biblio-
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura,
Urbanismo e Design. Departamento de Arquitetura e
gráfica, pesquisa em documentos oficiais, foto-
Urbanismo e Design. Universidade Federal do Ceará – UFC grafias, jornais e revistas de época, e coleta de
tiago.farias@gmail.com dados em campo. Os resultados obtidos identi-
ficam uma preferência pelo uso de referências
JUCÁ NETO, Clovis Ramiro estrangeiras nos projetos destes clubes sociais,
adaptadas aos condicionantes locais de Forta-
Doutorado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade
Federal da Bahia (2007). Professor Associado do leza-CE, fruto de processos de transculturação.
Departamento de Arquitetura e Urbanismo e Design.
Universidade Federal do Ceará - UFC
clovisjuca@gmail.com CLUBES SOCIAIS FORTALEZA MODERNIZAÇÃO
SEGREGAÇÃO ESPACIAL SYLVIO EKMAN

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

2050
ABSTRACT RESUMEN

In the first half of the twentieth century, the city En la primera mitad del siglo XX, la ciudad de For-
of Fortaleza, Ceará, went through a slow process taleza, Ceará, pasó por un lento proceso de sus-
of replacing the eclectic architectural language titución del lenguaje arquitectónico ecléctico por
into an architecture with more rationalism, or so- una arquitectura de líneas modernizadoras más
metimes neocolonialisms, modernizing it lines. racionalistas, o, a veces, neocoloniales. Tales
Such changes can be seen in the architecture of cambios se pueden ver en la arquitectura de los
social clubs, symbols of the private leisure of the clubes sociales, que reúnen a la élite económica
economic and political elite of Fortaleza. As a pla- y política de Fortaleza para el ocio privado. Como
ce of entertainment for the local elite, such clubs lugar de entretenimiento para la élite local, estés
manifest, in the city space, a way of distancing clubes manifiestan, en el espacio de la ciudad,
themselves from the more affluent sectors, from una forma de distanciarse de los sectores más
social problems, resulting from the demographic acomodados, de los problemas sociales, produc-
density, industrialization and commercial develo- to de la densidad demográfica, industrialización
pment in the central areas of the capital of Ceará. y desarrollo comercial en las zonas centrales de
Such establishments were built in areas of urban la capital cearense. Este tipo de establecimien-
expansion when its coastline becomes valued tos se construyeron en zonas de expansión ur-
as a leisure option for the elite. Sylvio Jaguaribe bana, cuando su litoral pasa a ser valorado como
Ekman, engineer-architect from São Paulo, made una opción de ocio para la élite. Sylvio Jaguaribe
an important contribution to the transformation Ekman, ingeniero-arquitecto de São Paulo, hizo
of the urban landscape of Fortaleza. In the 1930s una importante contribución a la transformación
and 1940s, he designed and built four of these del paisaje urbano de Fortaleza. En las décadas
clubs in the city: Country Club, Jangada Clube, de 1930 y 1940 diseñó y construyó cuatro de estos
Ideal Clube and Maguary Sport Club. This article clubes en la ciudad: Country Club, Jangada Clube,
aims to characterize how this ideal of modernity Ideal Clube y Maguary Sport Club. Este artículo
for the elites was manifested in the architectu- tiene como objetivo caracterizar cómo este ideal
re of these four social clubs, while symbolizing de modernidad para las élites se manifestó en la
spaces of socio-spatial segregation. For this arquitectura de estos cuatro clubes sociales, al
purpose, bibliographic review, research in offi- tiempo que simboliza espacios de segregación
cial documents, photographs, newspapers and socioespacial. Para a realización de este artículo
periodicals, and data collection in the field were se utilizó la revisión bibliográfica, la búsqueda en
used. The results obtained, identify a preference documentos oficiales, fotografías, diarios y publi-
for the use of foreign references in the projects caciones periódicas, y la recolección de datos en
of these social clubs, adapted to the local condi- campo. Los resultados obtenidos identifican una
tions of Fortaleza-CE, result of transculturation preferencia por el uso de referencias extranjeras
processes. en los proyectos de estos clubes sociales, adap-
tados a las condiciones locales de Fortaleza-CE,
resultado de procesos de transculturación.
SOCIAL CLUBS FORTALEZA SYLVIO EKMAN
MODERNIZATION SPATIAL SEGREGATION
CLUBES SOCIALES FORTALEZA
SEGREGACIÓN ESPACIAL MODERNIZACIÓN
SYLVIO EKMAN
EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
No início do século XX, o Ceará passava por um
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
processo de modernização impulsionado, por
um processo de industrialização e rápido cres-
cimento demográfico na sua capital, Fortaleza.
vídeo-pôster
A população saltou de 48 mil habitantes em 1900,
para 180 mil em 1940 (ANDRADE, 2019, p. 151-152).

OS CLUBES SOCIAIS E SEU Andrade (2019, p. 188) identifica enquanto “pro-


cesso de modernização”, uma série de transfor-
PAPEL NA SEGREGAÇÃO mações urbanas na infraestrutura da cidade, ini-

SOCIOESPACIAL NO PROCESSO ciadas no final do século XIX, como a chegada das


linhas de bonde elétrico e do automóvel, da rede

DE MODERNIZAÇÃO DE de esgoto, do fornecimento de energia elétrica em


instalações privadas, a consolidação do centro
FORTALEZA NAS DÉCADAS como espaço de comércio, serviços e, lazer, com
a inauguração dos clubes, cinemas e teatros.
DE 1930 E 1940 Tudo isso manifestando-se em edificações com
novos aspectos morfológicos e tecnológicos, e
por vezes, verticalizadas. Aos poucos, a introdu-
SOCIAL CLUBS AND THEIR ROLE IN SOCIO-SPATIAL ção de uma nova linguagem arquitetônica com
SEGREGATION DURING THE FORTALEZA CITY PROCESS características racionalistas, apesar de ainda
OF MODERNIZING IN THE 1930 AND 1940 DECADES estar carregada de muitas caraterísticas classi-
cistas e historicistas, marcada por uma extrema
LOS CLUBES SOCIALES Y SU PAPEL EN LA ambiguidade, faz-se expressa.
SEGREGACIÓN SOCIOESPACIAL EN EL PROCESO DE
MODERNIZACIÓN DE LA CIUDAD DE FORTALEZA EN LAS Se por um lado inaugura-se no espaço urbano
DÉCADAS DE 1930 Y 1940 a utilização de técnicas construtivas modernas
como o concreto armado; por outro, permane-
cia no fazer arquitetônico o uso de elementos
tradicionais de “ornamentação, transmutada
em diversidade de formas geometrizadas, es-
calonadas, aplicadas ao envoltório dos edifícios
segundo preceitos de composição acadêmica”
(SCHRAMM, 2015, p. 216). Esta ambiguidade evi-
dencia um processo de transformação urbana
não linear, marcado por permanências e rupturas
na construção do espaço.

Como parte do processo de adequação da cidade


à esta nova realidade, Duarte (2018) ressalta que
Fortaleza vai conhecer o seu primeiro código de
obras e posturas em 1932, no qual constava um
capítulo sobre o emprego do concreto armado nas
estruturas e exigia a participação de profissionais
especializados para sua execução.

Neste contexto, o engenheiro-arquiteto 1paulista,


16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
1. Título concedido pelo Mackenzie College de São Paulo,
2052 em 1922.
de ascendência sueca e cearense, Sylvio Jagua- OS CLUBES SOCIAIS COMO ELEMENTOS
ribe Ekman2 (1900-1977) radicou-se em Fortaleza DE SEGREGAÇÃO SOCIOESPACIAL EM FORTALEZA
nas décadas de 1930 e 1940, participando com
destaque deste processo de modernização da
DURANTE SEU PROCESSO DE “MODERNIZAÇÃO”
capital cearense. Sua produção arquitetônica NOS ANOS 1930 E 1940
em Fortaleza, neste período, será marcada pelos
primeiros edifícios comerciais, de 3 a 5 andares, Os clubes sociais constituíam-se, de forma geral,
utilizando o concreto armado, lojas, residências e por espaços fechados, dotados de infraestrutura
os clubes sociais, símbolos do poder econômico, de lazer e convivência, com restaurantes, insta-
político, e no caso dos clubes, também do lazer, lações esportivas e salões de baile, dedicados à
por parte dos setores mais abastados da socie- reunião de sujeitos que compartilhassem simili-
dade. (CASTRO, 1998, p. 27) tudes e interesses. Do ponto de vista jurídico, se
estruturavam de acordo com estatutos e regras
Estas mesmas contradições e ambiguidades, acordadas entre seus sócios, no momento de
marcas deste processo transformação na cidade, sua vinculação. (PONTES, 2005, p. 19). Além dos
serão observadas no espaço urbano, no que diz clubes, entre o final do século XIX e início do XX,
respeito às novas formas de lazer, de aspirações equipamentos destinados ao lazer, como praças,
modernizantes, adotadas pela elite, simbolizadas cinemas e teatros foram implementados em For-
aqui, pela arquitetura dos clubes sociais, símbolos
taleza, como o Passeio Público (1880), o Teatro
do poder, e alienação das mazelas sociais pela
José de Alencar (1910) e o Cine Majestic (1917).
classe dominante fortalezense, e sua relação com
(PONTES, 2005, p. 103).
a cidade no processo de ocupação e segregação
territorial através do espaços destinados ao lazer Pontes (2005, p. 115) aponta que “as práticas de la-
pelas elites, impulsionadas por este processo zer e sociabilidade representadas pelos cinemas,
de modernização ocorrido de forma desigual e pelas conversas de calçada, pelos passeios nas
repleto de contradições. praças, persistiriam, em maior ou menor grau,
ao longo da história de Fortaleza”. Aos poucos,
Este artigo tem por objetivo identificar como
diversões vinculadas à convivência nos espaços
esta segregação socioespacial se dava na cidade,
públicos foram perdendo espaço, à medida que
através das escolhas das áreas de implantação
os usos comerciais e institucionais no centro da
dos então novos clubes sociais, impulsionando
o crescimento da cidade no sentido oposto às cidade iam se intensificando durante a década
áreas mais pobres, e como tais características de 1930.
se materializam na linguagem arquitetônica ado-
Para Santos (1979, p. 10), “O espaço reproduz a
tada para estes clubes, dentro do processo de
totalidade através das transformações determi-
modernização da cidade. Para este estudo, serão
nadas pela sociedade, modos de produção, distri-
utilizados como exemplo deste fenômeno, os clu-
buição da população, entre outras necessidades”
bes projetados pelo Engenheiro-arquiteto Sylvio
Tal afirmação, dialoga diretamente com Pontes
Jaguaribe Ekman
(2005, p. 116) ao afirmar que “um certo sentimento
de individualismo aliado a um desejo de reconhe-
cimento e personalização, características das
sociedades capitalistas estimula a segregação
dos grupos urbanos, baseada principalmente
em fatores de ordem socioeconômica”, quando
2. Embora a maior parte dos projetos arquitetônicos rea-
se refere às ideologias que pautam as práticas
lizados na cidade até então fossem elaborados por leigos,
principalmente desenhistas e alguns engenheiros civis,
de lazer numa sociedade e contribuem para o
havia também os arquitetos “licenciados”, que recebiam processo de ocupação do território na cidade.
o título de arquiteto construtor licenciado, como Clovis
Janja (1882-1975), José Barros Maia, o “Mainha” (1901-1996) Em se tratando de uma sociedade capitalista, é
e Emilio Hinko (1901-2001), que também tiveram importante esperado que determinados grupos elegessem
atuação neste período, juntamente com Sylvio Ekman. para si, territórios delimitados, que os puses-
(ANDRADE;DIOGENES, 2014, p. 103) sem “a salvo” das classes menos favorecidas ou
EIXO TEMÁTICO 2 servissem para afirmá-los enquanto categoria.
Neste cenário, em Fortaleza, começavam a sur-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS gir os clubes de natureza classista, esportiva ou
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES de colônias de cidades interioranas. Nos clubes
eram realizadas atividades de lazer como bailes
de carnaval e formatura, bingos, práticas espor-
tivas, exibição de filmes e reuniões de classes da
sociedade. (PONTES, 2005, p. 117).

Inserido neste contexto, durante as décadas de


1930 e 1940, o engenheiro-arquiteto Sylvio Ekman,
figura de importante contribuição no projeto e
execução da materialização de várias dessas ma-
nifestações da elite, projetou os clubes sociais
Ceará Country Club, Jangada Clube, Ideal Clube
e Maguary Sport Clube, objetos de estudo desta
pesquisa

Os clubes sociais fizeram parte da história da


cidade e representavam, na visão da sociedade
da época, a busca por um padrão de civilidade,
associado à noção de modernização, que corres-
pondia muito mais a uma expressão de segrega-
ção socioespacial, disfarçada de uma aparente e
superficial, ruptura com o passado na qual, “mais
do que nunca esses valores se fizeram presentes
na evidente postura provinciana, impregnada de
controle e preconceito”, componentes da socie-
dade alencarina da época (PONTES, 2005, p. 20).

Tal segregação socioespacial já podia ser percebi-


da no século XIX, conforme relembra Ponte (2014,
p. 37), quando, no Passeio Público, surgido na
década de 1880, local até então conhecido como
Praça dos Mártires, havia 3 planos de espaço de
circulação e permanência: um para o usufruto das
elites, um segundo nível para a classe média e um
terceiro, para os populares. Ou seja, o lazer da elite
deveria estar distante das práticas populares.

Esta mesma lógica de segregação espacial,


também no lazer, será reproduzida nas décadas
seguintes, à medida que novas formas e equipa-
mentos destinados ao divertimento e convívio
social vão sendo adotadas na cidade, como por
exemplo, com a disseminação dos clubes sociais.

Pontes (2005, p. 20) arremata, que na realidade


social da pretensa sociedade modernizada pre-
valeciam estruturas controladoras, valorizando
16º SHCU tanto o aspecto histórico das agremiações, para a
30 anos . Atualização Crítica
qual, os clubes serviam; como, ao separando seus
2054 sócios da ameaça da pobreza citadina.
Breve Histórico sobre a ocupação da Faixa administrativo, comercial e financeiro; a
de Praia de Fortaleza pelos Clubes Sociais zona oeste - Industrial e popular, e a zona
leste - lugar de residência e do lazer das
camadas mais favorecidas. Caracteriza-se
Desde o século XIX, representantes dos setores
então de maneira marcante a segregação
mais abastados, sobretudo ligados à atividade
espacial nas cidades de Fortaleza”.
comercial, iniciaram um processo de ocupação
de espaço urbano, em zonas distantes das áreas Segundo Matos (2011, p. 79), um fator determi-
centrais, onde pudessem se agregar de forma nante para o deslocamento da população para
homogênea, longe dos problemas trazidos com esta área, se deu em 1927, com a instalação da
a aceleração da desigualdade social. As áreas linha de bonde na Rua Tabajara, que conectava
escolhidas por essa elite correspondiam ao que o Centro à Praia de Iracema, contribuindo para
hoje são os bairros Benfica e Jacarecanga (PON- o processo de consolidação como área de lazer
TES, 2005, p. 79). e veraneio daquela zona de praia. E, a partir da
década de 1930, a fim de desfrutar melhor da vista
Nas primeiras décadas do século XX, conforme das jangadas e dos banhos de mar, a elite constrói
afirma Andrade (2019, p. 209-215), (Figura 1), as bangalôs na Praia de Iracema. (MATOS, 2011, p.79)
áreas preferidas pelas elites eram aquelas que
se desenvolviam ao longo das estradas que co-
nectavam Fortaleza às localidades vizinhas. Por
volta de 1930, as elites passaram a migrar para
o lado leste da cidade (atuais bairros Aldeota e
Meireles), em parte, motivadas pelo distancia-
mento de uma vizinhança indesejada que come-
çava a ocupar as margens da linha férrea nas
proximidades do bairro Jacarecanga , a oeste
do centro da cidade. Ainda segundo Andrade,
entre as décadas de 1920 e 1930, a população
mais pobre se estabelecia nas proximidades da
linha férrea nos bairros de Jacarecanga e Farias
Brito, atraídos pela implantação das indústrias
e das vilas operárias. Do mesmo modo, crescia
a ocupação da faixa litorânea próxima a linha do
trem, com a presença de barracos, onde foi se
formando uma das maiores favelas da cidade, o
Pirambu. (ANDRADE, 2019, p. 214)

Durante este mesmo período, Diógenes (2012, p.


76), aponta que a cidade de Fortaleza passa a se
organizar espacialmente com base no novo Có-
digo Urbano, proposto em 1931, o qual disciplinou
o uso e ocupação do solo, período em que a zona
comercial se amplia.

Neste momento, também se inicia a ocupação do


setor leste da cidade, pelas classes mais abasta-
das, o qual, posteriormente formaria o bairro da
Aldeota, conforme demonstra Diógenes (2005,
p. 41):

“Nessa época, se acentuaria espacialmente


a divisão social e funcional da cidade, per-
cebida em três grandes setores: o centro
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

Figura 1: Padrão de ocupação em Fortaleza no início do


século XX. Fonte: Mapa elaborado pelo autor (2019).

Ainda a respeito de mudanças na mobilidade ur-


bana, na década de 1940, com a introdução do
automóvel como meio de transporte por parte das
elites, facilitando os deslocamentos para além das
áreas centrais, e a mudança de perspectiva no uso
do mar para fins turísticos, os clubes começam
a ser implantados na faixa litorânea (Figura 2).

Contudo, as transformações no padrão de ocu-


pação e valorização da região para atividades de
veraneio e lazer, trazidas com a chegada da elite,
acentuaram as desigualdades territoriais, quando
“a permanência da população de baixa renda passa
16º SHCU a ser inviável, devido à especulação imobiliária,
30 anos . Atualização Crítica aumentando o valor do solo naquela área, gerando
2056 expulsão da população pobre”. (MATOS, 2011, p.79)
Ainda, a respeito deste processo de ocupação da ser um reduto de pescadores para ser um
faixa de praia em Fortaleza, deve-se considerar que: balneário para os grupos mais abonados da
cidade. Essa mudança de visão em relação
“Outro importante bairro que surgiu nessa ao bairro também está incutida de outro
década, acompanhando a mudança de há- sentido, a modificação da postura em rela-
bitos e de relação com o meio natural, foi a ção ao banho de mar, antes praticado ape-
Praia de Iracema, assim denominada a par- nas para fins terapêuticos, passando, a par-
tir de 1925. Tal alteração de nomenclatura tir daquele momento, a ser considerado uma
seguiu uma mudança de uso, deixando de nova forma de lazer”. (MIYASAKI, 2020, p.87)

Figura 2: Localização dos clubes sociais em Fortaleza em 1960. (PONTES, 2005). FONTE: Mapa elaborado pelo autor

Os Clubes SOCIAIS projetados por Sylvio da máquina, contudo, sem renegar os valores da
Ekman, ENTRE AS DÉCADAS DE1930 e 1940, cultura clássica.
em Fortaleza Dentro deste contexto o engenheiro-arquiteto
Sylvio Jaguaribe Ekman, recebeu, durante o pe-
Refletindo sobre as transformações urbanas em ríodo em que atuou em Fortaleza, entre 1935 e
cidades brasileiras no alvorecer do século XX, 1947, a atribuição de projetar quatro clubes so-
Segre (1991, p. 109) expõe estas relações entre a ciais na cidade: a sede do Ceará Country Club, a
modernidade e a tradição eclética, asseverando sede do Jangada Clube (1938), e as então, novas
que se fazia necessário criar um novo sistema sedes do Ideal Clube (1939) e do Maguary Sport
de signos com os quais a burguesia se identifi- Club (1946). Entre eles, apenas o Ideal Clube segue
casse, ao mesmo tempo que se introduziam os com a função de clube. A sede do Jangada Clu-
novos parâmetros estabelecidos pela estética be, sucumbindo para a especulação imobiliária,
EIXO TEMÁTICO 2 fora demolida, e as sedes do Country Club e do
Maguary Sport Club, apesar de não funcionarem
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS mais como clubes, continuam ainda parcialmente
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES preservadas em sua autenticidade arquitetônica.

Fundado em 1924, o Ceará Country Club, asso-


ciação que reunia, sobretudo, membros da colô-
nia inglesa que residiam em Fortaleza. Durante
muito tempo, foi um dos locais preferidos pelas
elites para a realização dos bailes de Carnaval
da Segunda-feira Gorda. Tal tradição pode ser
observada em informe publicado no jornal Gazeta
de Notícias, durante o Carnaval de 1957, no qual
lembrava que o clube se encontrava “em febris
atividades visando oferecer aos associados dos
clubes elegantes de Fortaleza, sua tradicional e
concorridíssima noitada de segunda-feira. Uma
Noite em Paris é o título da noitada em apreço
que certamente, alcançará os êxitos passados”
(GAZETA DE NOTÍCIAS, p. 4, 1957)

Situado na Av. Barão de Studart, 825 – no bair-


ro da Aldeota, na sede do Ceará Country Club o
engenheiro-arquiteto Sylvio Jaguaribe Ekman
adotou a referências a arquitetura alemã na lin-
guagem da edificação, com sua coberta íngreme
e ressaltos em argamassa na fachada, fazendo
alusão a enxaiméis, (Figura 3), inspirados em an-
tigas residências medievais da Inglaterra e norte
da França, conforme aponta Castro (1998, p.58)

Atualmente, o terreno encontra-se fracionado,


e, no espaço que corresponde à antiga sede do
clube, funciona um restaurante, ainda mantendo
preservada em seu interior, a maior parte de suas
características originas.

Acerca deste fenômeno relacionado ao tratamen-


to dado as edificações ao se importar referên-
cias culturais historicistas na arquitetura local,
considerando o contexto da América Latina e
Brasil, Waisman (2013, p. 157) o interpreta como
uma espécie de “complexo de falta de raízes”,
onde se expressa um desejo de pertencer a uma
realidade, vista como superior, da qual não faz
parte culturalmente.

Outro exemplar deste “complexo de falta de raízes”


categorizado por Waisman (2013, p.157), pode ser
encontrado na arquitetura da sede do Ideal Clube,
16º SHCU projetada e construída por Sylvio Ekman, em 1939,
30 anos . Atualização Crítica
adotando como linguagem o “Estilo Missões”. Lo-
2058 calizado no Bairro Meireles, esta sede do clube,
segue em atividade desde então. Seu entorno diretos da rua para o salão de dança e o salão de
imediato é caracterizado por atividades de uso jogos, onde acima deste, situava-se a torre, em
turístico e residencial de alto padrão, marcado cujo topo está instalado o reservatório de água.
por um intenso processo de verticalização.
A sede do ideal Clube era inicialmente composta
por três edificações interligadas, sendo a princi-
pal massa edificada situada por toda a extensão
do limite norte do lote, dentre as quais a mais
antiga é aquela situada a oeste e as demais fo-
ram adições posteriores. A maior parte dos três
edifícios desenvolvem-se no mesmo nível da via
de acesso principal, na Av. Monsenhor Tabosa.
(FUNCET-UFC, 2012).

Figura 3: Fotografia com vista da fachada do Ceará Country


Club a partir do interior do lote. Fonte: Revista Acrópole
nº 51, 1942.

O Estilo Missões utilizado no projeto do clube,


(Figura 4) também conhecido como Neocolonial Figura 4: Perspectiva, elaborada por Sylvio Jaguaribe
Californiano, é uma linguagem influenciada pela Ekman, com visão geral do Ideal Clube. Fonte: Revista
arquitetura colonial espanhola das Américas do Acrópole nº 25, 1940.
Sul, Central e do Norte, produzida pelas antigas
missões franciscanas na região, com traços me-
diterrâneos e ibéricos, muito comum na região da Quase todos os arcos são de meia volta e, no que
Califórnia. Teve grande disseminação e sucesso diz respeito aos materiais e revestimentos, Castro
mundial por ter sido amplamente divulgado nos (1998, p. 65) assevera que foram adotados aqueles
anos 1920 e 1930 pelo cinema de Hollywood. (ATI- de melhor qualidade para a época como pisos de
QUE, 2007, p. 287) pedra apicoada nas áreas externas e parquets,
além de tacos de imbuia nos ambientes internos.
Castro (1998, p. 62) conta que Sylvio Ekman, acom-
panhado da diretoria do clube, viajou à Califórnia, A coberta é feita de telha canal aparente. Já as
nos Estados Unidos, com o intuito de conhecer paredes, de reboco grosso, seguindo a linguagem
pessoalmente a arquitetura local e assim, definir do estilo missões, são pintadas de branco, en-
as soluções a serem adotadas para no projeto da quanto os pilares das passarelas são construídos
nova sede. com peças de pedra aparelhadas aparentes, da
mesma forma que a mureta que contorna o ter-
O partido arquitetônico é formado por um bloco reno. Sua construção se deu por etapas, sendo
central que dá acesso a outros dois blocos inter- a ala leste executada inicialmente em 1939 e as
conectados nas laterais, formando um pátio com demais concluídas em 1945. (CASTRO, 1998, p. 66).
piscina e quadras voltado para a praia. “O conjunto
nascia recuado de divisas, evidenciando uma Ao longo de sua história, o clube foi palco de im-
generosidade espacial que contrariava velhos portantes encontros da história da cidade, pal-
hábitos da terra, sempre dirigidos para a com- co de diversos bailes de carnaval, dentre outros
pleta ocupação da gleba” (CASTRO, 1998, p. 65). eventos da sociedade fortalezense e, ainda hoje,
O pavimento térreo é completado com acessos o clube promove eventos culturais, como lan-
EIXO TEMÁTICO 2 çamentos de livros, exposições de arte, shows
musicais e atividades esportivas.
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES O sucesso no projeto do Ideal Clube rendeu ao
engenheiro-arquiteto Sylvio Jaguaribe Ekman, a
tarefa de projetar, em 1946, uma nova sede para
o Maguary Sport Club, conforme ressalta Castro
(1998, p. 67), no Bairro de Fátima, distante da faixa
litorânea, uma vez que sua origem, tem relação
com atividades relacionadas a um time de futebol:
o Maguary.

Conhecido como o “Clube dos Príncipes” 3, o Ma-


guary Sport Club foi fundado em 1924, original-
mente ligado apenas à prática do futebol, tendo
inclusive se sobressaído nos campeonatos cea-
renses da época, acumulando títulos e vitórias.
Entretanto, a partir de 1945, após a extinção de
seu departamento futebolístico, passa a inves-
tir na capitação de sócios e realização de bailes
(PONTES, 2005, p.128).

Embora não possuísse a grandiosidade do Ideal


Clube, a nova sede do Maguary apresentava vá-
rias das premissas adotadas no projeto do Ideal
Clube, como adequação ao clima e linguagem
fortemente influenciada pelo estilo missões ca-
liforniano (Figura 5).

Esta edificação é composta por blocos interco-


nectados através de um bloco central de acesso,
articulados por um pátio central, similar ao par-
tido arquitetônico adotado por Sylvio Ekman no
projeto do Ideal Clube.

No que dizia respeito ao controle do comporta-


mento da juventude, o Maguary era um dos clu-
bes de Fortaleza menos restritivos nas décadas
de 1950 e 1960, certamente devido à frequência
assídua de jovens universitários que viviam nas
repúblicas localizadas em suas proximidades.
(CEARÁ, 2015)

Segundo afirma reportagem publicada no site


do Diário do Nordeste do dia 26 de setembro de
2018, as atividades do Sport Club Maguary foram
encerradas em 1975 e a edificação passou a abri-
gar a sede da Companhia de Energia Elétrica do
Ceará - COELCE, atual Enel Brasil, companhia
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
3. Fazendo referência aos jogadores membros da equipe
2060 de futebol do Maguary Sport Club.
de distribuição de energia elétrica. Atualmente,
segundo informações obtidas no site da Fundação
Coelce de Seguridade Social – FAELCE (2017),
e confirmadas com visita realizada no local, a
edificação encontra-se desocupada e sem uso.

Em levantamento situacional realizado pela Se-


cretaria de Cultura de Fortaleza (2014) acerca do
estado de conservação da edificação, no qual,
os técnicos da prefeitura municipal de Fortaleza
atestam o nível de deterioração de alguns ele-
mentos de revestimento de piso, identificam os
acréscimos feitos com a adição de um novo bloco Figura 6: Fachada do Jangada Clube. Fonte: Revista Acró-
ao conjunto, além de pequenas intervenções e pole, nº 02 - 1938.
substituições com relação ao projeto original.
Contudo, no que diz respeito às suas principais
características arquitetônicos, o mesmo relatório
Sua sede se localizava na Avenida Beira-Mar, 1000
afirma que estas permanecem preservadas.
– Praia de Iracema, e, em um dado momento, suas
paredes internas haviam se convertido em um
grande mural de assinaturas de todas as cele-
bridades que por lá passaram, como o músico
Humberto Teixeira e o diretor de cinema estadu-
nidense, Orson Welles. O qual, na ocasião, esteve
em Fortaleza filmando jangadeiros, para um dos
seguimentos de seu filme, nunca lançado oficial-
mente, “It’s all true” de 1942 (TV BRASIL, 2015).

O Jangada Clube funcionou até o final da década


de 1960 e, atualmente, encontra-se demolido. Em
Figura 5: Foto da sede do Maguary Sport Club, na Rua Barão
seu terreno foi construído um edifício residencial
do Rio Branco. 1946. Fonte: AZEVEDO (Nirez), 2001, p. 340
multifamiliar, de nome Edifício Jangada, fazendo
referência ao antigo clube que lá existiu.

Por fim, conforme descreve Castro (1998, p. 57), o


Jangada Clube, concebido seguindo uma lingua-
gem de características neocoloniais,, aderindo Considerações Finais
ao gosto corrente, “era uma espécie de bangalô
de linhas despojadas, em dois pavimentos, com Os clubes eram palco de uma realidade de encan-
avarandado de frente em arcaria de pedra e com tamento e fantasia, concretizada em atividades
garagem no fundo do lote, cujas portas também notabilizadas pelo aspecto luxuoso e anseio por
se abriam em arcos”. Por fim, o branco de suas diferenciação, típicas de uma elite norteada por
paredes, juntamente com a arcada do avarandado princípios conservadores e segregadores, en-
e a coberta em telha canal, conferiam à obra uma quanto buscava alienar-se da realidade nordes-
certa singeleza (Figura 6). tina de pobreza e miséria (PONTES, 2005), que se
espalhava cada vez mais pelo território da cidade.

Todavia, independente da motivação de seus usu-


ários, estes espaços contam parte da história
de Fortaleza em sua busca por modernização
ocorrido na primeira metade do século XX, ao
serem palco de importantes eventos e materiali-
zarem através da arquitetura, parte das dinâmicas
EIXO TEMÁTICO 2 sociais da época, ao mesmo tempo que estas
obras influenciavam e se deixavam influenciar
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS pelo processo de ocupação e transformação da
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES paisagem urbana da capital.

As transferências de poder, interesses e centra-


lidades no território alteram a leitura da cidade
e resultam na conformação do território. Estas
disputas de interesses, materializadas no proces-
so de produção do espaço, e carregam o tecido
urbano de significados, compreendidos de forma
diferente por cada um dos atores envolvidos em
sua produção.

Mudanças de centralidades ou de interesses


podem transformar áreas da cidade, antes mar-
ginalizadas, em espaços valorizados, símbolos
do poder, sobretudo em função de ideologias
políticas e econômicas das classes dominantes.

No caso de Fortaleza, estas mudanças de inte-


resse, em função de um grupo específico, sobre
determinadas áreas da cidade, podem induzir
vetores de expansão, ao mesmo tempo que de-
sencadeiam processos de gentrificação, como o
ocorrido na praia de Iracema na década de 1930,
quando as elites elegeram esta área da cidade
como espaço de lazer, ao mesmo tempo que pro-
curavam se distanciar e isolar, no espaço dos
clubes sociais, da desigualdade produzida no cen-
tro da cidade e áreas industriais, efeito colateral
da busca por uma certa modernidade por parte
destas elites.

O processo de modernização que ocorreu em


Fortaleza neste período, assim como em outras
cidades do país, não aconteceu de forma homo-
gênea entre as classes sociais. Foi excludente,
repleto de contradições, as custas da exploração
de uma classe trabalhadora, que quase sempre
não podia usufruir do desenvolvimento que aju-
dava a construir na cidade.

No que diz respeito ao lazer, tal processo de exclu-


são, no período, se deu através dos clubes sociais,
nestes espaços de exclusividade, definidos pelas
elites para se reunir e se diferenciar dos demais,
ao mesmo tempo que se alienava da miséria que
se intensificava e espalhava pelas áreas já con-
solidadas da cidade.
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
As referências arquitetônicas adotadas na com-
2062 posição dos clubes caracterizados neste artigo,
sobretudo no Country Club e no Ideal Clube, refle- REFERÊNCIAS
tem o anseio desta elite por fazer parte de outra
história, de uma cultura estrangeira, considerada ALERTA, Foliões! Gazeta de Notícias. Jornal. p.
por ela, como superior, se distanciando de suas 4. Fortaleza, 3 fev. 1957. Fortaleza
raízes sertanejas. A adoção deste tipo de lingua-
gem, baseado em ecletismos, representados por ANDRADE, Margarida Júlia F. S. A Verticali-
colagens, repetições e justaposição de padrões zação e a Origem do Movimento Moderno em
estrangeiros, por parte das elites, tem como ob- Fortaleza. Anais do 3º DOCOMOMO Brasil: A
jetivo fornecer a leitura de uma cidade moderna Permanência do Moderno, São Paulo, 1999.
e de uma sociedade desenvolvida. Contudo, os
resultados chocam-se com as condições locais. ANDRADE, Margarida Júlia F. S. Fortaleza em
perspectiva histórica: Poder público e iniciati-
Atualmente, cada um dos quatro clubes projeta- va privada na apropriação e produção material
dos por Sylvio Jaguaribe Ekman para Fortaleza, da cidade (1810-1933). Fortaleza: Fundação
apresentados neste artigo, encontra-se em um di- Waldemar Alcântara, 2019.
ferente estágio de conservação e, o conhecimento
adquirido a partir da observação destes estudos ANDRADE, M. J. F. S.; DIOGENES, B. . O Mo-
de caso, pode orientar futuras intervenções no dernismo Arquitetônico em Fortaleza. In:
que diz respeito à conservação e registro destes JUCA NETO, C.R; GONÇALVES, A.; BRASIL,
bens ou outros exemplos de patrimônio cultural A.C. (Org.). Arquitetura Moderna Campus do
edificado, na cidade de Fortaleza. Benfica. Fortaleza: UFC, 2014. p. 97-116.APE-
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EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Dentre as contribuições das comissões téc-
nicas realizadas entre meados do século XIX e
início do século XX na região Nordeste desta-
vídeo-pôster ca-se a configuração do território através das
redes de conexões. Incumbidos a solucionarem
o problema das secas os técnicos propuseram
OS ESTUDOS PARA O PORTO DE reformulações de intrínseca importância, em
especial para o desenvolvimento do Rio Grande
MOSSORÓ NO CONTEXTO DE do Norte, por meio da atuação política de inte-
gração territorial. Os estudiosos adentraram
DESENVOLVIMENTO o clima semiárido potiguar atuando a partir da
perspectiva da construção de caminhos terres-
TERRITORIAL DO RIO GRANDE tres, obras de irrigação, açudagem e também
no tocante à estruturação portuária. A reformu-
DO NORTE lação técnica do porto de Mossoró – hoje muni-
cípio de Areia Branca – permitia tanto o fortale-
cimento da interligação entre municípios como
the studies on the port of mossoró in the
a ascensão do comércio e o aprimoramento do
context of territorial development of the
fluxo das cargas de sal, assim como o desloca-
state of rio grande do norte
mento de mercadorias e pessoas entre o litoral
e o sertão pela ferrovia. O objetivo deste estu-
MEDEIROS, Gabriel Leopoldino Paulo de do é compreender, portanto, de que forma as
ações técnicas no âmbito de reestruturação do
Professor Doutor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da
UFERSA – Campus Pau dos Ferros Porto de Mossoró-RN corroboraram o ímpeto de
gabriel.leopoldino@ufersa.edu.br articulação das cidades do Oeste Potiguar, sa-
lientando a importância regional para o desen-
PEREIRA, Manoel Alex França volvimento da economia e atentando para os
contextos político e social do período.
Discente do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFERSA
– Campus Pau dos Ferros
ptt.alex10@hotmail.com
TERRITÓRIO PORTO INTEGRAÇÃO
COMUNICAÇÕES DE TRANSPORTE

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

2066
ABSTRACT RESUMEN

Among the contributions of technical commis- Entre las contribuciones de las comisiones técni-
sions which took place in the final decades of cas realizadas entre mediados del siglo XIX y prin-
the mid-19th century and the first decades of the cipios del siglo XX en la región Noreste de Brasil
20th century in the Brazil’s Northeast region is destacase la configuración del territorio a través
the configuration of the territory through connec- de redes de conexión. A cargo de resolver el pro-
tion networks. In charge of solving the problem blema de las sequías, los técnicos propusieron re-
of droughts the technicians proposed important formulaciones de importancia intrínseca para el
reformulations for the development of Rio Grande desarrollo de Rio Grande do Norte (RN), especial-
do Norte (RN) state, especially towards political mente por la acción política de integración terri-
intervention in territorial integration. Scholars torial. Los académicos ingresaron al clima semi-
entered the semiarid climate of RN with a bold árido del RN en busca de soluciones por medio de
initiative searching solutions regarding the in- la construcción de carreteras, obras de regadío,
terconnection of municipalities considered as embalses y también de estructuración portuaria.
productive zones through the improvement of La reformulación técnica del puerto de Mossoró –
salt economy and the systematic creation of new hoy municipio de Areia Branca – posibilitaba tanto
ports, railways, weirs and dams. The technical el fortalecimiento de la ligación entre municipios
reformulation of Mossoró’s Port – nowadays Areia como la ascensión del comercio y el mejoramien-
Branca Municipality – allowed both to strengthen to del flujo de las cargas de sal, así como el des-
the communication between different cities as to plazamiento de mercancías y personas entre la
improve the trade and to enhance the salt eco- costa y el interior a través del ferrocarril. Es obje-
nomy, as well as to promote the displacement tivo de este estudio comprender, por lo tanto, de
of merchandising, primary products and people qué manera las acciones técnicas en el ámbito de
from the inner land to the coast through the railro- restructuración del Puerto de Mossoró-RN corro-
ad. The objective of this study is to comprehend, boraron el ímpeto de articulación de ciudades en
thus, the way the different technical actions cor- Oeste Potiguar, enfatizando la importancia regio-
roborate the restructuration of Mossoró’s Port nal para el desarrollo de la economía y atentando
articulating the urban network and emphasizing para los contextos político y social del período.
the regional importance to the economic develo-
pment and the political and social contexts.
TERRITORIO PUERTO INTEGRACIÓN
COMUNICACIÓN DE TRANSPORTE
TERRITORY PORT INTEGRATION
TRANSPORT COMMUNICATION
EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Nas últimas décadas do século XIX para o início do
século XX, a reconfiguração das zonas portuárias
na região Nordeste torna-se assunto recorren-
vídeo-pôster te entre as autoridades que detinham poderio
econômico e político, em especial, instigadas
pelos ideais de desenvolvimento das comissões
OS ESTUDOS PARA O PORTO DE técnicas que começavam a atuar no país. Não
obstante, além de serem adeptos do progresso
MOSSORÓ NO CONTEXTO DE pela criação das ferrovias – proposições vigentes
desde o Brasil Império1 – a atuação política dos
DESENVOLVIMENTO engenheiros, pautada no enfrentamento dos pro-
blemas decorrentes do clima na região, introduziu
TERRITORIAL DO RIO GRANDE uma nova sistemática da organização do espaço

DO NORTE regional, que enfatizava a integração das cidades


e dessas com as zonas litorâneas, em especial
com os portos2 (GUERRA, 1915).
the studies on the port of mossoró in the
Dentre as proposições sobre criação de novos
context of territorial development of the
equipamentos para o desenvolvimento da comuni-
state of rio grande do norte
cação territorial do Rio Grande do Norte, especifi-
camente, se encontrava o Porto de Mossoró. Além
da localização estratégica (Mossoró, juntamente
com Natal, era/é uma das cidades mais influentes
do território potiguar), dali também partiria a Es-
trada de Ferro de Mossoró ao São Francisco. Essa
via, de acordo com seu decreto de concessão, Art.
1º, possuía um projeto de penetração no sertão,
notadamente de conexão com o São Francisco:
“do Porto de Mossoró, na vila de Areia Branca,
atravesse em linha mais ou menos reta o Estado
do Rio Grande do Norte [...] e termine no sertão
de Pernambuco, à margem do rio S. Francisco”
(GUERRA, 1915, p. 56). Sobre esta proposta co-
mentava o engenheiro Dr. Crockatt de Sá: “Terá,
pois a Estrada de Mossoró a S. Francisco, além
do caráter social, do caráter econômico, mais o
estratégico” (GUERRA, 1915, p. 57). Dessa forma,

1. Após a Grande Seca de 1877, foi criado ainda no Império


de D. Pedro II, a Comissão Imperial, que tinha como intuito
atenuar os flagelos das secas com criação de medidas, entre
elas o desenvolvimento de ferrovias na região Nordeste do
país, muito embora pouco se tenha feito (BARRETO, 2009).

2. Cf. SIMONINI, Yuri. Portos para o Nordeste: ideias, trans-


formações e conflitos nas províncias do norte do Brasil (For-
taleza, Natal e Parahyba, 1869 - 1934). 2017. Tese (Doutorado
16º SHCU
em História) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
30 anos . Atualização Crítica
da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte,
2068 2017. Orientador: Regina Horta Duarte.
é compreensível que as estratégias utilizadas ECONOMIA E TERRITÓRIO
pelos técnicos estabelecessem metas diversas
de consequentes mudanças nos mais diferentes A discussão sobre um espaço urbano moderno
setores da economia potiguar e sertaneja. e mais dinâmico que integrasse as cidades do
Rio Grande do Norte, formado por uma rede de
Partindo da problemática das discussões técnicas
conexões3, exemplifica a necessidade da época
acerca do território potiguar, é objetivo deste
em fortificar as ligações comerciais do estado
estudo abordar os aspectos técnicos e econô-
com o resto do país. Assim como demais locali-
micos relacionados ao processo histórico de es-
dades próximas consideradas zonas produtivas,
truturação e obras de melhoramento do Porto de
a Região Oeste Potiguar perseguia meios que for-
Mossoró-Areia Branca, enfatizando como essas
talecessem seu desenvolvimento e crescimento
mudanças, nas primeiras décadas do século XX,
econômico. A integração territorial, destarte,
estavam relacionadas à conjuntura dos emergen-
corroborada pela problemática do clima seco,
tes períodos de secas. Além disso, é intrínseco
surgia como demanda fundamental nos discursos
ao longo do estudo compreender a importância
políticos voltados ao desenvolvimento econômi-
política e comercial das obras concluídas ou pre-
co de médios e pequenos núcleos afetados pelo
teridas pelas autoridades, especialmente após a
deficiente contato comercial com os maiores
criação da Inspetoria de Obras Contra as Secas
produtores urbanos: “Um dos principais motivos
(IOCS) em 1909.
apontados para o atraso econômico vivido era a
Esse texto debruça-se, portanto, sobre as dinâ- carência de estrutura básica como portos, estra-
micas de estruturação e redes de conexões/dis- das carroçáveis, estradas de ferro e infraestrutura
cussões acerca da criação do Porto de Mossoró. urbana” (MEDEIROS; FERREIRA; SIMONINI, 2011,
As fontes de dados utilizadas para seu desenvol- p.05). Esse fator intervinha no interesse das ativi-
vimento foram documentos oficiais da Provín- dades que usavam a terra e os recursos naturais,
cia e Estado do RN, amparando-se também em como também, intensificava o debate em torno
trabalhos bibliográficos referentes ao tema. As da inserção de ferrovias no Rio Grande do Norte
fontes históricas aqui, desse modo, são de im- – que permitiriam a interligação entre os núcleos
prescindível valor à produção da cronologia dos urbanos e por vezes a penetração no interior do
fatos tratados pelo texto. território potiguar – outrora comunicadas, com
dificuldade, através da prática comum aos ser-
Primeiramente, discute-se a interferência do co- tanejos do deslocamento de rebanhos, víveres,
mércio como atividade do território, relacionando- matérias-primas e produtos pelas estradas de
-o aos estudos e afirmativas feitas sobre o espaço boiadas.
natural e suas contribuições na economia. Em
seguida, aborda-se a participação dos engenhei- O comércio, sem dúvida, exerceu papel essencial
ros na elaboração de propostas para criação de para elencar as ideias proeminentes nas propos-
novos portos, estradas ferroviárias, entre outros tas políticas durante essas primeiras décadas do
equipamentos. Busca-se, dessa forma, precisar século XX. A criação da Inspetoria de Obras Contra
como se deu o desenvolvimento das comunica- as Secas (IOCS) alterou alguns paradigmas econô-
ções territoriais norte-riograndenses. Posterior- micos relacionados à resolução do problema, cujo
mente, é discutida a influência eminente das secas infortúnio carregava uma problemática de ações
na ampliação do conhecimento científico sobre complexa. As elucidações do assunto deveriam
o território potiguar. Por fim, o planejamento de ser pautadas nas especificidades de cada estado,
obras de desenvolvimento do Porto de Mossoró levando em conta aspectos sociais e econômi-
é discutido como elemento de desenvolvimento
do plano territorial para o estado. 3. O conceito de rede de conexões abarca, de acordo com
Correia (1997, p. 94), um conjunto de centros urbanos fun-
cionalmente articulados entre si: “É, portanto, um tipo
particular de rede na qual os vértices ou nós são os diferen-
tes núcleos de povoamento dotados de funções urbanas,
e os caminhos ou ligações os diversos fluxos entre esses
centros”.
EIXO TEMÁTICO 2 cos. O Diretor Geral da IOCS, engenheiro Miguel
Arrojado Lisboa, assim afirmava no ano de 1913:
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Com efeito, o fenômeno físico da escassez
de chuva influi no homem pela alteração
profunda que dela decorre para as condi-
ções econômicas da região, que por sua
vez se refletem na ordem social. Assim en-
carada a seca é um fenômeno muito vasto
tanto de natureza física quanto econômica
e social. O problema das secas é, portanto,
um problema múltiplo. Verdadeiramente
não há um problema, há problemas (LISBOA,
1984, p.12).

Portanto, como acentua Lisboa, a questão da seca


envolvia diversas variáveis interrelacionadas.
Dessa forma, o estudo do território potiguar – no
que concerne as obras de estradas de ferro, por-
tos e demais execuções para aumento e melhoria
das atividades embasadas no ambiente natural
e sua formação – deu-se por meio de atuação
sistemática, com propósitos bem elaborados e
de práticas que poderiam transmudar a então
situação do estado nas mais diversas ordens.
As atividades das obras adotariam a premissa da
IOCS e passariam a ser analisadas de acordo com
as necessidades do estado e suas intempéries,
buscando o território como agente agregador,
como afirma Amaro Cavalcanti4 (1916, p. 5): “É lei
fundamental da economia política, cuja verdade
não precisa ser demonstrada, que o bem-estar,
o engrandecimento e as riquezas de um Estado
dependem essencialmente dos elementos na-
turais do seu território”. Portanto, o reconheci-
mento adequado das potencialidades territoriais
apontaria o melhor investimento estratégico infra
estrutural. Ainda sobre os aspectos naturais do
território e sobre o estudo das necessidades eco-
nômicas que poderiam vir a ser importantes para
o estado, Cavalcanti destacava que:

Primeiro que tudo, é de mencionar que o


territorio do Estado, para nada faltar-lhe
geologicamente, tem 3 regiões distinctas:
1ª a do littoral, cuja zona contigua é em boa

4. Amaro Cavalcanti foi Senador do Rio Grande do Norte


entre os anos de 1890-1891. Na República, passou a ser
16º SHCU
vice-governador do RN, posteriormente Ministro da Jus-
30 anos . Atualização Crítica
tiça entre os anos de 1905-1906. Também foi o fundador da
2070 Sociedade de Direito Internacional.
parte do chamado Agreste, terra de hu- poderia obter da terra, que é excelente.
mus inesgotável e que, si tivesse sido bem Cria-se algum gado, extrahe-se carnaúba,
aproveitada em toda a sua extensão, como cultiva-se canna e algodoeiro. D’ahi aca-
convinha, para lavoura e mesmo para cre- nhado comercio. [...] Há no estado ricas
ação de gados, seria capaz de, por si só, salinas, que hoje são exploradas. (ALMANAK
constituir uma riqueza especial do Estado; GARNIER, 1904, s/p).
2ª a da serra, não falando do planalto de
Borborema somente, mas de muitas outras Ainda sobre estas afirmativas da terra, Amaro
serras, maiores ou menores ramificações Calvalcanti descrevia que no Rio Grande do Norte
ou contrafortes daquela, ou não, todas ou “[...] sobram-lhe por toda parte terras para todos
quases, além de serem terras fertilissimas, os generos da agricultura [...] No reino vegetal é
verdadeiras celeiros e repositorios de pre- grande a riqueza do Estado, exisitindo em abun-
ciosas madeiras, são ao mesmo tempo de dância madeiras de construção, assim como,
incalculável beneficio para as condições palmeiras, fibrosos, alimenticios e industriaes etc.
climáticas e outras vantagens innumeraveis em diversas partes do territorio” (1916, p. 6). Era
de todo o territorio5 (CAVALCANTI, 1916 p. intuitivo, portanto, as acepções acerca da natu-
9-10). reza do território para salientar sua importância
e aludir às atividades ali realizadas, de forma a
Essa afirmativa acerca da necessidade de reco- propagandear sua magnitude em âmbito nacional.
nhecimento desse território repassa o simples
desejo de progresso, remonta a uma visão de
aproveitamento total das potencialidades ofe-
recidas pelos recursos naturais do estado, com A Economia do sal
destaque para as atividades de extração – entre
elas o comércio do sal de Mossoró, de grande im- O comércio do sal exerceu um papel importante
portância6 – e que, contudo, eram subestimadas na vida das pessoas atingidas pelas secas no Rio
pelo governo, redundando no seu mau aprovei- Grande do Norte, lhes dando uma possibilidade de
tamento. Em 1904, por exemplo, o Almanak Gar- superar as dificuldades alinhavadas (FELIPE,1980,
nier7 destaca alguns aspectos do espaço natural p. 39). Além disso, sua intrínseca participação na
do território e das potencialidades econômicas dinâmica econômica do estado era preponde-
encontradas no Rio Grande do Norte: rante, como se pode comprovar nas palavras de
Felipe Guerra8 (1945, p.9): “Ninguém ignora que o
Sólo desegual, arenoso e baixo perto da sal é mercadoria de primeira necessidade para
costa e mais elevado para o interior, onde consumo industrial”.
se erguem as serras de Borborema (com
grandes ramificações), do João do Valle Como sabemos são riquissimas as salinas
do Martins e do Luiz-Gomes. Os rios princi- do Rio Grande do Norte encravadas, princi-
paes são: Mossoró, Piranhas, Ceará-Mirim palmente, nos municipios de Macau, Mos-
e Potengi: Clima quente e sadio. Os Pro- soró, Areia Branca, Natal, Assú, Cangua-
ductos das industrias pastoril e agricola ratema etc. e em região alguma do mundo
são muito escassos em relação ao que se pode-se extrair o cloreto de sodio em tão
alta e remuneradora porcentagem, como
nesta privilegiada região nordestina (SILVA,
5. As citações dos documentos históricos apresentados 1936, p. 37).
estão escritas exatamente tal qual foram publicadas em
época, portanto com gramática antiga, de forma que o Na Revista Potyguar (1937), Fernandes e Silva
conteúdo dos textos não fossem comprometidos .

6. O sal destacava-se no comércio nacional, produzindo por


8. Felipe Guerra foi deputado contituinte estadual por mais
ano cerca de novecentos milhões de quilogramas.
de uma vez (1891, 1892 e 1895). Também exerceu o juizado em
7. Publicado pela livraria Garnier do Brasil, o Almanaque mais de uma comarca, chegando ao Tribunal de Justiça do
Brasileiro Garnier teve à frente Ramiz Galvão em 1903, ano de Estado, como desembargador e também como procurador
sua fundação, e posteriormente João Ribeiro (DUTRA, 2005). Geral do Estado (GUERRA; ROSADO, 2018 p. 4).
EIXO TEMÁTICO 2 demonstrava insatisfação à maneira como o go-
verno se portava em relação à economia do sal,
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS criticando a forma como as relações de comércio
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES externo (importação do sal do exterior pelo Rio
Grande do Norte) se faziam mais importantes que
o fluxo comercial entre os produtores nacionais,
mesmo que os produtos trazidos do estrangeiro
estivessem presentes em abundância na região.
Como afirmava R. Fernandes e Silva (1937, p. 38),
baseado no estudo de J. Sampaio Fernandes,
então técnico do Insituto de Biologia do Ministério
da Agricultura: “Não há diferença essencial entre
o nosso sal e o de Cadiz. [...] Se vantagens há é ella
decisivamente pelo sal nacional”. Como meio de
solução o autor destacava “facilitar-lhe meios de
transporte faceis e baratos, reduzir [...] todos os
impostos e taxas que oneram o produto, cuidar
do financiamento aos industriaes [...] padrozinar
os produtos, organisar, em fim, um serviço que
oriente e controle, a distribuição nos mercados
de consumo” (FERNANDES E SILVA, 1937, p.38).

De fato, a indústria do sal possuía participação


imprescindível na economia do Rio Grande do
Norte. Nas palavras de Cavalcanti (1916 p. 20),
fosse o governo mais preocupado com o apri-
moramento da indústria e essa atividade, muito
mais cedo, “[...] seria capaz de dar trabalho para
milhares e milhares de operarios, tal é a extensão
e a capacidade conhecida em que a mesma pode
ser largamente explorada”. Criticava também a po-
lítica exercida pelos governantes e empresários,
que segundo ele “visavam, antes de tudo seu lucro
pessoal, e jamais o aperfeiçoamento da própria in-
dústria”. Felipe Guerra (1947) explicita alguns fatos
em relação à taxação sobre a indústria salineira,
afirmando que as salinas de Mossoró e Macau
poderiam ter melhores desempenhos econômi-
cos não fossem os “absurdos impostos e taxas
cobrados” e o desinteresse dos comerciantes
nacionais em comprar o sal devido ao processo
burocrático que, supostamente, não ocorria com
o sal estrangeiro9 (GUERRA, 1947 p. 10).

O governo federal, dessa forma, apenas toma-

9. O sal nacional era encarregado de impostos caros, além


dos processos burocráticos que dificultavam a venda da
mercadoria nacional. Para vender o sal nacional “[...] mesmo
16º SHCU
a retalho, era necessário requerimento, guias, selos, licença.
30 anos . Atualização Crítica
Para venda do sal estrangeiro não havia tanto aborrecimento
2072 com tais formalidades” (GUERRA, 1947 p. 10).
va as vantagens da produção do sal através dos desbravaram as terras do sertão em busca de
impostos e sem nenhum planejamento para dar informações climáticas sobre o desconhecido e
melhoria às obras dessa indústria, tomadas por insólito território. Contudo, somente nas últimas
muito tempo pelo setor privado (GUERRA, 1947, décadas do século XIX e ínicio do século XX com
p.15). Assim, o desempenho negativo do estado e a problemática das secas que as primeiras comi-
da União sobre esse comércio talvez fosse justifi- tivas técnicas de fato elucidaram as necessárias
cado, por vezes, devido à sua baixa lucratividade10. mudanças para o desenvolvimento da região,
convencendo o governo na aplicação de políticas
Dentre as novas obras na região, se pode com- públicas12 contra a fome e a miséria que assolavam
preender o destaque das propostas ferroviárias, a população nordestina.
no que diz respeito à tentativa de criar caminhos
de aproximação entre as cidades potiguares. Com Das proposições sobre o fenômeno das secas e a
os efeitos humanos negativos das secas, era es- atuação do estado em relação a isto se destacam
sencial a aplicação dessas medidas, que em 1915 os escritos de Amaro Cavalcanti (1916) baseados
já haviam sido introduzidas inicialmente com a em estudos prévios, que analisam alguns aspectos
criação da Estrada de Ferro de Mossoró. econômicos do território e apontam:

O Governo da União é autorizado por verbas [...] Em primeiro logar teriamos, nos mares
orçamentárias a dar serviços ás vítimas da piscosos da costa norte-rio-grandense, a
calamidade, entre os quais nomeadamente alimentação facilima e farta. [...] que se
a construção de estradas de ferro, que como podia fazer [...] se a industria da pesca se
ninguem ignora é o empreendimento mais achasse largamente organisada e devida-
capaz de fornecer trabalho e ocupação ao mente aparelhada. Em segundo logar, as
maior número de operários, e um dos mais terras da região do Agreste, que se extende
proveitosos e de ação permanente quer na propriamente desde terras do Municipio de
luta contra as secas, quer para o progresso Touros até quase Nova Cruz. [...] teriam a
da região (EFMS, secas de 1915-, p. 71). capacidade indiscutivel de produzirem por
si sós, a alimentação. [...] tudo dependeria
Como fica claro na citação acima, a estrada de
apenas de que tais terras fossem conve-
ferro além de oferecer a comunicação entre os
nientemente aproveitadas, cada porção
centros urbanos e o território, dinamizando as-
para o genero de cultura apropriada (CA-
sim a economia regional, também era o princi-
VALCANTI, 1916, p. 18-19.)
pal meio empregador de pessoas atingidas pelo
fenômeno climatérico. Em 1915, foi inaugurado Teria assim, as secas, impacto no conhecimento
o primeiro trecho da estrada de ferro, com 38 geral sobre a capacidade do território potiguar,
quilômetros de Mossoró a Areia Branca, grande com as interferências dos governos estaduais
acontecimento para população, bem como para no âmbito de feitoria de obras e a atenção dos
a comunidade técnica do Rio Grande do Norte e estudiosos de áreas diversas para estudo da si-
que, por conseguinte, ajudaram na divulgação
tuação da região.
midiática e política para propaganda do projeto em
sua fase inicial. Os estudos relativos ao espaço e
à questão climática do Nordeste remontam desde Rio Grande do Norte e demais estados nordestinos datam
muito antes do século XX quando, porventura, desde 1583, pelos registros do padre Cristóvão Gouvêa.
durante o período Imperial11, diversos estudiosos Pero Coelho, em 1603, fez trajetória pelo sertão cearen-
se, registrando as secas neste território. Dentre os vários
estudiosos que emplacaram empreitada cientifica para
10. Embora o comércio fosse de extrema importância para estudo das secas, pode-se citar Guilherme de Capanema
a superação da miséria das secas, muito em virtude da (1824-1908), o engenheiro Viriato de Medeiros (1823-1900),
relativa independência aos regimes pluviométricos e com Henrique Beaurepaire-Rohan (1812-1894), entre outros.
a geração de trabalhos, a indústria do sal mostrava-se, por (CAMPOS, 2014)
vezes, pouco lucrativa, carregados com grandes impostos
12. A maioria das políticas públicas praticadas no Nordeste
do Estado e da União.
brasileiro no século passado foi formulada no âmbito do
11. As primeiras notações sobre as secas do estado do combate às secas. (CAMPOS, 2014).
EIXO TEMÁTICO 2 Dentre os profissionais das comissões técnicas
enviadas pelo governo para o combate às secas
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS destacavam-se os engenheiros politécnicos. As
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES ações deste grupo de profissionais ajudaram na
divulgação do pensamento científico em rela-
ção às noções de progresso do território e do
desenvolvimento do comércio na conjuntura lo-
cal. Mesmo que a tentativa de criação de malhas
ferroviárias, portos e estradas carroçáveis tenha
sido herança do Governo Imperial na luta contra a
Grande Seca de 1877-79, a efetiva mudança veio
com a participação dos técnicos nas primeiras
décadas do século passado. Os estudiosos, con-
vocados pelo Instituo Polytecnico – Beaurepaire
Rohan, Guilherme Schuch Capanema, Charles Fre-
derick Hartt, José Bento Ribeiro Sobragy, Zózimo
Bráulio Barroso e João Martins da Silva Coutinho
–, ajudaram nas discussões de propostas em re-
lação ao manuseio de água na região, através de
estudos sobre captação e armazenamento de
água, bem como os efeitos de atividades agríco-
las na paisagem que poderiam afetar o ciclo das
chuvas. Vários estudiosos, dentre os já citados
anteriormente, contribuíram na discussão das
vantagens e desvantagens das obras a serem
realizadas.

Por fim, até meados do século XX, várias obras


foram efetivadas, com a criação da Comissão de
Açudes e Irrigação no inicio da década, (posterior-
mente com implementos de mecanismos mais
eficientes como estações pluviométrias), IOCS
e outras comissões pertinentes. Essa crescente
ajudou a desenvolver as técnicas utilizadas pelos
estudiosos e a detalhar e fazer análises prelimina-
res mais assertivas sobre as condições climáticas
da região. Mapas e instrumentos meteorológicos
foram desenvolvidos, ajudando no processo de
unidade territorial e criação sistemática de novas
estradas, obras hidraúlicas e aperfeiçoamento do
comércio (SIMONINI, 2017). A Estrada de Mossoró
a Sousa, antiga E. F. de Mossoró ao São Francis-
co, por exemplo, teve sua ideia desenvolvida na
prática com a influência dos engenheiros, que,
uma vez integrados nas políticas locais como
agentes políticos participantes das decisões do
estado, puderam influenciar tais mudanças. Entre
eles encontrava-se o engenheiro Dr. Crockatt de
Sá, relator da proposta da Estrada de Ferro no
16º SHCU Conselho Diretor em 1910. Após vários anos de
30 anos . Atualização Crítica
discussões e postulações do governo, em 1915
2074 teve sua efetiva realização com a inauguração de
seu primeiro trecho justamente entre a vila onde Em 1936, Dr. Rafael Fernandes, refere-se à ques-
se situava o porto, Areia Branca, e o principal tão de melhoria dos portos, explicando a sua con-
centro comercial e populacional do município e tribuição futura ao porto e seu comprometimento
região, Mossoró. em relação ao progresso, com o “dever de levar
àquela zona os meios vitais para o seu desenvolvi-
mento” (GUERRA, 1947 p.8). Justificada, segundo
ele pelo desempenho do porto, como declarou
DESENVOLVIMENTO DO PORTO DE MOSSORÓ neste mesmo ano: “Enquanto o Porto de Areia
Branca tem uma tonelagem movimentada de mer-
cadorias, de 200 a 250 mil toneladas, por ano, Na-
Discutida a dinâmica e importância da indústria tal movimentou apenas aproximadamente 40 mil;
do sal e da intercomunicação ferroviária, pode- Fortaleza e Cabedelo, 90 mil, cada um” (GUERRA,
-se dizer que o fluxo das atividades que eram 1947 p. 7). É importante frisar que esse desem-
movimentadas pelo Porto de Mossoró o tornava penho se dava, sobretudo, em virtude das altas
“escoadouro dos produtos da região sertaneja, tonelagens de sal transportadas. A promessa de
não apenas do Rio G. do Norte, como também melhoramento das obras no porto, contudo, não
da Paraíba e do sertão cearense, e ao mesmo foi concluída com a justificativa de altos custos
tempo, o grande distribuidor, para esses sertões, para aprimoramento. Nos anos seguintes, mesmo
das mercadoias importadas” (GUERRA, 1947. p 6). sem o investimento para início das obras de me-
O porto movimentava no ano de 1922 mais mer- lhoramento do porto, as mercadorias exportadas
cadorias que as demais cidades influentes como atingiram 22.913:670$000 e 34.259:886$000, em
Natal, com diferença aproximada de 11.864$. 1940 e 1941, respectivamente (GUERRA, 1947 p.8).

Quadro 01 - Movimento marítimo do porto de Mossoró, 1905-1908 e 1936

ANO Embarcações Tonelagem registrada


1905 205 44.566
1906 175 47.708
1907 183 80.647
1908 193 75.866
1936 - 200/250.000

Fonte: CARVALHO FILHO, 1976, p. 143

Quadro 02 – Exportação em toneladas da produção algodoeira pelos portos do RN

Anos
Porto
1889 1890 1891 1892 1894 1897 1903 1910 1911
Natal 957 1.191 1.445 1.676 681 1.113 1.963 4.233 7.379
Macau 95 238 - 167 748 512 425 2.067 1.445
Areia Branca - 1.027 476 - 140 65 166 4.090 5.023
Fonte: TAKEYA, 1985, p. 88.
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

Quadro 03 – Exportação dos portos potiguares em 1916

Exportação
Em volumes Em Quilos
Mossoró Macau Natal Mossoró Macau Natal
562.053 909.234 71.580 53.541.755 40.236.093 5.073.412
Importação
186.593 57.738 139.291 10.119.712 3.036.787 7.292.045

Fonte: CARVALHO FILHO, 1976, p. 143.

Porto Ilha 13

Em 1933, o engenheiro Francisco Gallotti14 sugeriu


a criação de um porto ilha aos arredores de Areia
Branca; projeto este previamente concedido pelos
estudos do engenheiro Miranda de Carvalho15. O
Porto Ilha teria, dessa forma, cerca de 400 metros
de extensão, para serviço de descarregamento
da mercadoria do produto do sal. Os custos com
o Porto Ilha superariam o valor que seria utilizado
para melhoramento do atual porto. Mesmo com
a orientação técnica do engenheiro, no entanto,
Felipe Guerra criticava o projeto e descrevia as
dificuldades de execução, quando afirmava:

Julgamos que no mundo inteiro não há um


só porto nas condições desse que tratamos,

13. Em 1975 foi construído o Porto-Ilha, 26 km da costa


nordeste de Areia Branca, destinado exclusivamente para
o embarque de sal.

14. Francisco Gallotti, (1895-1961) engenheiro, trabalhou


no Departamento Nacional de Portos, Rios e Canais, fis-
calizando e dirigindo diversos portos em todo o Brasil e,
posteriormente, tornou-se engenheiro do Ministério da
Viação e Obras Públicas. Presidiu a Comissão de Trans-
portes, Comunicações e Obras e fez parte das Comissões
de Finanças e Planos de Obras Contra as Secas (MEMÓRIA
POLÍTICA DE SANTA CATARINA, 2019).
16º SHCU
15. Fernando Viriato de Miranda Carvalho foi engenheiro
30 anos . Atualização Crítica
civil e Diretor Geral do Departamento Nacional de Portos
2076 e Vias Navegáveis.
cuja construção ou melhoramento tenha cia da atuação política das mais diversas esferas,
sido levada a efeito com um artificial por- desde a técnica às autoridades do estado.
to-ilha. Areia Branca marcaria o primeiro.
[...] Quantos anos decorreriam para cons- Uma vez colocados de maneira pragmática e ana-
trução desse fantástico empreendimento? lisados categoricamente, os fatores que interfe-
(GUERRA, Phelipe, 1947 p.11) riram na estruturação do território permitiram a
modernização dos setores e do espaço urbano
À parte a discussão sobre a construção da ilha, o para solucionar os problemas de migração e mi-
problema discutido pelos técnicos sobre as obras sérias devido à falta de água. Portanto, foi preciso
em curso no Porto de Areia Branca/Mossoró16 re- estudar o solo e as condições climáticas do sertão.
metia às dificuldades de desobstrução da barra, As primeiras noções de progresso viriam com a
em virtude do entupimento dos canais. Felipe ideia de inserir conexões entre os municipios,
Guerra, inclusive, se mostrava contrário à pro- ou seja, malhas ferroviárias e estradas vicinais.
posta do Porto-Ilha, descrevendo a proposição O exercício do planejamento pelos profissionais
do engenheiro Gallotti como “Infeliz, desastrosa” estava ligado a dois eixos principais: 1) Integração
(GUERRA, 1947 p.13). Segundo ele, as ações dessa (estradas, ferrovias, portos) e 2) Gestão hídrica
nova obra demorariam tempo suficiente e sua (obras hidráulicas, poços, barragens, represas
realização “significaria decretar o entupimento e açudes).
da barra, completo desaparecimento do porto”
(GUERRA, 1947 p.9). A população sofria, portanto, de um problema de
caráter geográfico – afligida pelas dificuldades
O comércio do sal, anteriormente discutido, teve de se conectar. Propunha-se, portanto, novas
grande participação para o desenvolvimento do maneiras de instigar a movimentação. Proposta
Porto de Mossoró. As salineiras do munícipio es- difícil, porém assertiva, uma vez que a base terri-
tavam entre as que mais produziam e exporta- torial ainda oferecia empecilho ao enfretamento
vam esse produto do estado e o fluxo de cargas da miséria em diversas cidades. Além das vias
mantinha a sua movimentação e importância nas terrestres, inevitavelmente, a navegação nos
décadas que sucederam sua construção. Em 1945, portos permitia a exportação e importação de
o porto possuía uma vasta carga de exportação, vital importância para o Oeste Potiguar, assim
resguardando a União e demais ordens em im- como para o sertão paraibano e cearense, prin-
postos (GUERRA, 1947). cipalmente no que toca às salinas de Mossoró e
outras cidades da região.

A produção do sal, por sua vez, apesar do descaso


CONSIDERAÇÕES FINAIS ao porto mossoroense nas primeiras décadas do
século passado, conseguiu sustentar destaque
importante na economia norte-riograndense com
Pode-se dizer que existiram diversos fatores que
grande parte da demanda nacional sendo abas-
contribuiram grandemente para os estudos do
tecida pelo estado. Atualmente, “A produção e
território potiguar, especialmente a partir da seca
transporte do sal – que se dá pelo Porto Ilha – do
de 1877-79, intensificando-se a partir da ação da
Rio Grande do Norte estão entre os mais moder-
Inspetoria de Obras Contra as Secas, na primeira
nos desse segmento no mundo” (SILVA, 2015 p.
metade do século XX, marcando a geografia do
59). De sua criação, em 1974, o porto ilha de Areia
Nordeste e sua economia. A exportação e impor-
Branca teve como fatores transferência de car-
tação do sal, o escoamento de mercadorias dos
gas de forma sistemática e mais eficaz, servindo
portos e a necessidade de aproximação entre as
cidades foram se consolidando como consequên- como porto de escoamento do sal de todo o Rio
Grande do Norte e de importância estratégica
para o Brasil.
16. Areia Branca foi vila de Mossoró. Em época de sua cons-
trução, o Porto (comumente conhecido como Porto de Mos-
soró) era nessas proximidades. “Ninguém ignora que o porto
de Mossoró é Areia Branca” (GUERRA, Phelipe, 1945, p.3).
EIXO TEMÁTICO 2 REFERÊNCIAS
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EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES O presente artigo analisa os conflitos entre o
Projeto de Estruturação Urbana das Vargens
(PEU–Vargens 2015) no Rio de Janeiro e as ca-
vídeo-pôster racterísticas ambientais e culturais deste ter-
ritório na Zona Oeste da cidade, também reco-
nhecido na historiografia e etnografia como o
OS RETIRANTES: CONFLITOS “sertão carioca”. Recorreremos a passagens
históricas e iconográficas que documentam a
ENTRE O PLANEJAMENTO preexistência de sua ocupação em relação ao
avanço do modo de urbanização que vem atra-
URBANO INSTITUCIONAL, vés da Barra da Tijuca em sua direção e que
produz conflitos e questionamentos. A partir do
A CULTURA E A PARTICIPAÇÃO relato do caso recente do Museu Casa do Pon-
tal, que será obrigado a se mudar do sítio origi-
POPULAR nal de sua fundação devido a implantação de um
condomínio vizinho que provoca frequentes ala-
gamentos no museu, evidenciaremos uma das
THE “RETIRANTES”: CONFLICTS BETWEEN
faces destes conflitos acima citados. Nossa ar-
INSTITUTIONAL URBAN PLANNING, CULTURE AND
ticulação, portanto, correlaciona análises sobre
POPULAR PARTICIPATION
os fundamentos dos Projetos de Estruturação
Urbana (PEU) com o relato de um fato gerado
LOS “RETIRANTES”: CONFLICTOS ENTRE URBANISMO
por sua incorporação pelo mercado imobiliá-
INSTITUCIONAL, CULTURA Y PARTICIPACIÓN POPULAR
rio. Esta modalidade de planejamento (PEU) em
sua gênese é pautada, entre outras diretrizes,
BITENCOURT, Ricardo pela participação comunitária nas decisões e
articulações locais e faremos uma recordação
Arquiteto e urbanista; Mestrando no PROURB – FAU - UFRJ
histórica de sua institucionalização. Mas em al-
bitencourt.rrm@gmail.com
guns casos, como o que abordamos no presente
artigo, o processo e os resultados são opostos
aos seus princípios fundamentais. Ao trazer o
caso do Museu de Arte Popular Casa do Pontal,
o presente artigo identifica os conflitos eviden-
ciados por este modo de produção da cidade e o
uso enviesado do PEU-Vargens que resulta em
expulsão da cultura popular do território ao ig-
norar preexistências históricas, culturais e am-
bientais.

URBANISMO GEOCIÊNCIAS CONFLITO


ARTE POPULAR

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

2080
ABSTRACT RESUMEN

This paper evaluates the conflicts between the Este artículo analiza los conflictos entre el
“Project for Urban Structuring of Varges” (PEU– Proyecto de Estructuración Urbana de Vargens
Vargens, 2015) of Rio de Janeiro and the envi- (PEU - Vargens 2015) en Río de Janeiro y las carac-
ronmental and cultural characteristics of this terísticas ambientales y culturales de este territo-
neighborhood in the city’s West Zone (Zona Oes- rio en la Zona Oeste de la ciudad, también recono-
te), also acknowledged in the historiography and cido en historiografía y etnografía como lo “sertão
ethnography as “sertão carioca”. We will call upon carioca”. Recurriremos a pasajes históricos e ico-
historical passages and iconographies that do- nográficos que documentan la preexistencia de
cument the pre-existence of its occupation in tu ocupación en relación al avance del modo de
relation to the advance of the urbanization sty- urbanización que llega por Barra da Tijuca hacia
le coming from Barra da Tijuca, which produces ti y que produce conflictos y cuestionamientos.
conflicts and questions. From the account on the Del relato del reciente caso del Museo Casa do
recent case of the ‘Museum of Popular Art of Pon- Pontal, que se verá obligado a mudarse del sitio
tal’ (Museu de Arte Popular do Pontal), will be re- original de su fundación debido a la implantación
quired to relocate from the original site of its foun- de un condominio vecino que provoca frecuentes
dation due to the implementation of a neighboring inundaciones en el museo, destacaremos una de
condominium that causes frequent flooding in las caras de estos conflictos mencionados ante-
the museum, we will highlight one of the facets riormente. Nuestra articulación, por tanto, corre-
of these aforementioned conflicts. Therefore our laciona los análisis sobre los fundamentos de los
articulation correlates analyses on fundamentals Proyectos de Estructuración Urbana (PEU) con el
of the ‘Project for Urban Structuring’ (Projetos de reporte de un hecho generado por su incorporaci-
Estruturação Urbana – PEU) with the factual re- ón al mercado inmobiliario. Este tipo de planifica-
port generated by its incorporation into the real ción (PEU) en su génesis está guiada, entre otros
estate market. This planning modality (PEU) in lineamientos, por la participación comunitaria en
its genesis is guided, among other guidelines, by las decisiones y articulaciones locales y haremos
community participation in local decisions and un recordatorio histórico de su institucionaliza-
articulations, and we will make a historical remin- ción. Pero en algunos casos, como el que cubri-
der of its institutionalization. However in some mos en este artículo, el proceso y los resultados
circumstances such as the one we covered in this son opuestos a sus principios fundamentales. Al
article, the process and outcomes are opposite to plantear el caso del Museo de Arte Popular Casa
its fundamental principles. By bringing the case do Pontal, este artículo identifica los conflictos
of the ‘Museum of Popular Art of Pontal’, this arti- que evidencia este modo de producción en la ciu-
cle identifies the conflicts evidenced by this style dad y el uso sesgado de PEU-Vargens que resulta
of development in the city and the skewed use of en la expulsión de la cultura popular del territorio
PEU-Vargens that results in the eviction of po- ignorando preexistencias históricas, culturales y
pular culture from the neighborhood by ignoring ambientales.
pre-existing historical, cultural and environmen-
tal stances.
URBANISMO GEOCIENCIAS CONFLICTO
ARTE POPULAR
URBANISM GEOSCIENCES CONFLICT POPULAR ART
EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS 1 2
Esse artigo se insere e complementa um univer-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
so de estudos sobre a centralidade do urbano na
reprodução das relações de produção. Dentro da
vídeo-pôster estrutura da pesquisa, utilizamos como recorte
para estudos mais aprofundados o território das
Vargens na Zona Oeste do Rio de Janeiro, que se

OS RETIRANTES1: CONFLITOS caracteriza como um santuário ecológico devido


a importância do Parque Estadual do Maciço da
ENTRE O PLANEJAMENTO Pedra Branca e seu manancial, cujos rios descem
do maciço para Baixada de Jacarepaguá. Fare-
URBANO INSTITUCIONAL, mos referência a caracterização geológica des-
sa baixada pois consideramos importante a sua
A CULTURA E A PARTICIPAÇÃO apresentação para um entendimento de nossa
abordagem assim como para compreensão das
POPULAR dimensões dos problemas e conflitos relatados
no caso de referência apresentado.

THE “RETIRANTES”: CONFLICTS BETWEEN Na construção dessa argumentação, passare-


INSTITUTIONAL URBAN PLANNING, CULTURE AND mos a uma breve análise do Projeto de Estrutu-
POPULAR PARTICIPATION ração Urbana das Vargens (PEU-Vargens 2015),
de proposição institucional (Prefeitura-RJ) e do
LOS “RETIRANTES” 2: CONFLICTOS ENTRE URBANISMO Plano Popular das Vargens (PPV-2017), uma ar-
INSTITUCIONAL, CULTURA Y PARTICIPACIÓN POPULAR ticulação “de baixo para cima”, de participação
local com orientação técnica do IPPUR – UFRJ.
As diferenças são estruturais dadas as origens
e os princípios e objetivos destes planos. Nesse
aspecto identificaremos através de pesquisas e
referências históricas sobre as origens dos PEUs,
as contradições e inconsistências em relação a
participação popular, ao interesse social e cul-
tural e a própria matriz natural sobre a qual atua
o plano institucional vigente.

De modo a aproximar a argumentação do artigo


com a proposta do Seminário de História da Cida-
de e do Urbanismo, faremos uma abordagem das
origens históricas e etnográficas da região das
Vargens no Rio de Janeiro apoiada em bibliogra-
fia específica, especialmente na obra “O Sertão
Carioca” (1936) de Armando Magalhães Correia
que documenta além da natureza da região, os
diferentes modos de vida dos trabalhadores e

1. Brazilians displaced by droughts in the Northeast region


who used to migrate to large cities, especially São Paulo
and Rio de Janeiro.
16º SHCU
2. Brasileños desplazados por las sequías en la región Nordes-
30 anos . Atualização Crítica
te que solían emigrar a las grandes ciudades, especialmente
2082 São Paulo y Río de Janeiro.
agricultores locais, um extraordinário acervo rística deste eixo temático que propõe articula-
etnográfico com rica iconografia elaborada em ções com outros campos do conhecimento. As
desenhos do próprio autor3. discussões podem trazer ideias e possibilidades
de superação destes conflitos, onde o urbanismo
Apresentaremos o caso de referência do Museu como ciência da cidade pode construir consen-
Casa do Pontal, de arte popular brasileira, que sos sobre a importância da memória cultural, do
devido a implantação recente de um grande con- respeito às preexistências e do valor de uso dos
domínio vizinho, vem sofrendo com alagamen- equipamentos culturais em bairros periféricos da
tos. A Prefeitura do Rio de Janeiro reconheceu cidade, assim como reflexões sobre o papel dos
o problema em 2017 e se propôs a construir uma planos institucionais e a emergência dos planos
nova sede na Barra da Tijuca. Solução que ex- populares nestas dinâmicas e processos.
põe os processos conflitantes que as formas de
ocupações urbanas regulamentadas são capa-
zes de produzir. Apresentaremos a interessante
história do pintor e colecionador de arte popular A GEOLOGIA DA BAIXADA LITORÂNEA
brasileira Jacques Van de Beuque, que reuniu DE JACAREPAGUÁ
este extraordinário acervo na Casa do Pontal,
adquirida e reformada inicialmente para abrigar
Para aprofundarmos a análise crítica do PEU-
o acervo e depois transformada no museu.
-Vargens e do Plano Popular das Vargens (PPV),
Nessa apresentação o artigo traz as atenções dos precisaremos ir além (e antes) das análises histó-
leitores para este acervo através da história de ricas e urbanas, em uma caracterização natural
vida de um estrangeiro que se apaixonou pela arte ancorada na geologia como ciência que explica a
popular do nordeste do Brasil. Destaca o papel natureza. Além de explicar como se formou essa
que ele teve na mudança de paradigma sobre o natureza singular do Rio de Janeiro, a geologia
valor da arte popular brasileira. Ao abordarmos o nos permite compreender melhor como nos re-
triste desfecho que se aproxima com a compul- lacionamos com esse sítio natural.
sória mudança do museu, propomos reflexões
Um ponto a ser observado é que o tempo geológico
profundas sobre a desatenção do plano institu-
tem uma outra escala na qual nossa existência
cional com as preexistências e equipamentos
histórica é, em geral, insignificante. Mas como
culturais de valor inestimável para o território e
veremos, o tempo das dinâmicas recentes de
que se relacionam com diversos outros conflitos
formação, no caso da Baixada Litorânea de Jaca-
evidentes na cultura e nos modos de vida locais.
repaguá, são poucos milhares de anos e o tempo
O debate que propomos com este artigo é amplo de assoreamento de uma lagoa nesse sistema
e permite uma boa articulação com nossos pares, pode ser de séculos, com a ocupação urbana
uma vez que as questões aqui apresentadas e pode ser ainda menor.
ilustradas terão, provavelmente, semelhanças
e afinidades com outros possíveis exemplos e Por volta de 17 mil anos atrás, no auge da última
casos. A multidisciplinaridade é uma caracte- era glacial o mar estava a baixo do nível atual, e os
sedimentos que formavam a baixada provinham
da erosão do escudo cristalino. Ao final dessa
3. Armando Magalhães Corrêa (1889-1944) era escultor for- última era glacial (15 a 7 mil anos), transição das
mado na Escola Nacional de Belas Artes, onde também le- épocas pleistocênica para holocênica do período
cionou e depois se tornou conservador na seção de História quaternário, com o reaquecimento do planeta, o
Natural do Museu Nacional. No início da década de 1930,
mar subiu aproximadamente 7m de altura indo até
mudou-se com a família para um sítio em Jacarepaguá
a base dos maciços da Tijuca e da Pedra Branca.
onde escreveu uma série de reportagens sobre o estado
O mar cobria, portanto, toda a Baixada de Jacare-
do valioso patrimônio natural local remanescente da Mata
Atlântica, publicadas no Correio da Manhã entre 1932 e paguá. Duas bancadas de restinga se formaram a
1933, as reportagens tornaram-se o livro “O Sertão Carioca” cerca de 5 e 6mil anos atrás respectivamente (em
lançado pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e verde no mapa abaixo). Sobre estas bancadas de
republicado em extraordinária reedição pela editora Con- restinga estão assentadas a atual Av. das Amé-
tracapa com apoio da FAPERJ em 2017. ricas (antiga BR-101) e a Av. Lúcio Costa (praia),
EIXO TEMÁTICO 2 portanto, a futura urbe ocupará e avançará sobre
as estruturas geológicas formadas nas dinâmicas
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS acima descritas (MAIA et al, 1984, p.105-118).
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
Dos últimos 3.500 anos até a atualidade o mar re-
cuou em sucessivos movimentos de inda e vinda,
deixando camadas de sedimentos continentais e
oceânicos intercaladas. Segundo Roncarati e Ne-
ves (1976, p.89.), as regiões paludiais, onde exista
comunicação com o mar, formam depósitos de
mangue e turfa em concordância com a gradação
de salinidade da água salina para salobra/doce e
indicam o estágio final de assoreamento da lagu-
na. As turfas (em marrom no mapa) originam-se
pela colmatagem (decantação) das lagunas e por
detritos de vegetais que crescem em locais de
baixa salinidade das águas. Se caracterizam por
um solo esponjoso e inadequado para ocupação
urbana, comum nos brejos e terrenos alagados
da Baixada de Jacarepaguá (Figura 1).

Figura 1: Estrutura geológica da Baixada de Jacarepaguá-


-RJ a cerca de 3.500 anos, colorido sobre o original (MAIA
et al,1984) e inserida a localização que corresponde a AP4
no município do Rio de Janeiro.
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

2084
Segundo os geólogos, a ocupação urbana dos • Regular a urbanização, assim como o aterra-
brejos lagoas e restingas tem três consequências: mento de brejos e lagoas costeiras. Evitar a
alteração nas dinâmicas dos terrenos alagados impermeabilização da superfície de solo com
provocando assoreamentos e inundações, a di- pavimentação e asfalto.
minuição do transporte de sedimentos e a erosão
costeira. • Manter abertas as barras de comunicação
entre lagoas costeiras e o mar e evitar a po-
Para que haja erosão costeira, deve haver um luição das lagoas com lixo e esgoto. Evitar o
balanço sedimentar negativo, ou seja, mais re- desmatamento e fazer reflorestamento.
tirada do que deposição de sedimentos, ou im-
pedimento do transporte de sedimentos por via
fluvial. Inúmeros fatores, tanto naturais quanto PLANOS E PROJETOS para a baixada
relacionados às intervenções antrópicas, atuam
direta ou indiretamente no balanço sedimentar,
litoRânea de jacarepaguá
A história da cidade do Rio de Janeiro é de uma
determinando as tendências para o comporta-
natureza construída (ANDREATTA, 2006, p.20). Os
mento tanto das lagunas costeiras quanto das
aterros, arrasamento de morros, tuneis, pontes
linhas de costa.
e viadutos constituem “verdadeiras próteses ur-
Dentre as causas naturais e antrópicas principais banas” (SANTOS, 1988, p.97), uma extraordinária
relacionadas aos processos de erosão costeira e concentração de capital fixo no espaço urbano.
assoreamento de lagoas, algumas destas causas Mas há limites para modificar e contrariar a matriz
antrópicas são relacionadas com a ocupação natural e há consequências quando o fazemos
urbana (CABRAL, 1979, P.212): impondo um desenvolvimentismo de mercado. Ao
ignorar a base científica que interpreta e explica
a natureza, o PEU-Vargens se mostrou equivo-
cado quando propôs ocupar e aterrar os brejos
• Urbanização das orlas das praias, com des-
sobre o solo constituído de turfa na Baixada de
truição de dunas, vegetação original e imper-
Jacarepaguá.
meabilização de cordões arenosos.
O Plano Piloto de Lúcio Costa (PPLC-1969) previa
• Aterramentos de áreas de manguezal, pân-
a transferência do centro metropolitano para a
tanos, planícies fluviais e lagunares para as
Barra da Tijuca, representando uma ruptura com
atividades referentes à expansão urbana e
a cidade existente, a mudança da centralidade
por pressões especulativas.
não se realizou. A Barra da Tijuca se concretizou
• Construções irregulares ao longo das vias como eldorado imobiliário e ruptura morfológica
fluviais (bordas dos rios) próximas as desem- em relação aos padrões e formas anteriores da
bocaduras, causando o assoreamento e mu- cidade. Mas no que diz respeito às Vargens, o
danças nos padrões de drenagem dos canais. PPLC não previa sua ocupação urbana, mantendo
características de áreas agrícolas e ocupações
Isto é, construir aterrando brejos, aumentando preexistentes em chácaras e sítios (COSTA, 1995.
a superfície pavimentada e impermeabilizada p.345).
provoca assoreamento das lagoas, desequilibra
as dinâmicas dos terrenos alagados e reduz o A origem dos Projetos de Estruturação Urbana
transporte fluvial de sedimentos que deveria con- (PEUs) está no Plano Urbanístico Básico (PUB-RIO)
tribuir para formação das praias, contribuindo, de 1977, publicado no processo de extinção do
ao contrário, para sua erosão. Ainda segundo os estado da Guanabara, que se tornou a cidade do
geólogos: O que pode ser feito para “ajudar a na- Rio de Janeiro, capital do estado, após a fusão. Os
tureza” em suas dinâmicas, evitando a aceleração PEUs foram incorporados ao Plano Diretor de 1992
de processos de erosão das praias, de assorea- e têm por premissa básica o reconhecimento das
mento de lagoas costeiras e sua transformação diversidades locais nas diferentes Regiões Admi-
em brejos pantanosos? nistrativas assim como nos respectivos bairros
EIXO TEMÁTICO 2 e a participação cidadã (Cardeman, 2014, p.88) 4.

HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS A Primeira versão aprovada do PEU-Vargens foi na


DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Lei Complementar nº 104/2009 sendo depois re-
vista no Projeto de Lei Complementar nº 140/2015,
esta última versão prevê as Operações Urbanas
Consorciadas (OUC) como parcerias público-pri-
vadas. Mas diferente do que previa a gênese dessa
linha de planejamento, o PEU/OUC-Vargens não
faz consulta popular. Neste “consórcio” o público
entra com o investimento e o privado com a ren-
da da terra, na forma de uma mais-valia urbana
colossal, produzida com alterações de índices
construtivos sobre terrenos privados. Os pobres
e favelados no meio dos caminhos traçados por
este plano, serão removidos e não há uma política
para habitação de interesse social.

Figura 2: Mapa de setores e gabaritos máximos (CEPAC) do PEU-


-Vargens 2015. Fonte: Prefeitura - RJ

No mapa de gabaritos do PEU-Vargens 2015 desta-


camos que os maiores índices estão na área sobre
os terrenos alagados onde o solo é turfa e as mo-

4. A tese de doutorado de Rogerio Cardeman (PROARQ-U-


FRJ-2014) ao discorrer sobre origens e objetivos do PEU-
-Vargens, cita entrevista com arq. Armando Abreu que
coordenou a elaboração do PUB-RIO 1977, o primeiro plano
urbanístico a dividir a cidade em Áreas de Planejamento e
16º SHCU
reconhecer as diversidades locais dos diferentes bairros
30 anos . Atualização Crítica
da cidade instituindo o PEU como instrumento de partici-
2086 pação popular.
dificações da versão atual ainda aumentam estes Popular das Vargens (PPV-2017) como um paradig-
gabaritos em alguns setores, através de CEPACs ma de organização política e social para o ques-
(Certificados de Potencial Adicional Construtivo). tionamento, reflexão e proposição de alternativas
Isso se relaciona com a viabilidade financeira para para mudanças nos modos de produção da cidade
incorporação considerando o estaqueamento em e nas formas de ocupação propostas pelo planeja-
profundidade das torres. Mas a ocupação que mento institucional (POEYS, 2019). De sua elabo-
acompanha as edificações, entre acessos, ben- ração participaram a Associação dos Agricultores
feitorias, estacionamentos e parques privados Orgânicos de Vargem Grande (AGROVARGEM),
representa problemas para o meio ambiente e Associação de Moradores e Amigos de Vargem
para a própria ocupação e construção (Figura 2). Grande (AMAVAG) o Colégio Estadual Prof. Teófilo
Moreira da Costa (CEPTMC) entre outros atores so-
Como contraponto a este plano institucional,
ciais, moradores e comerciantes locais5 (Figura 3).
trazemos uma análise da articulação do Plano

Figura 3: Recorte do Mapa Síntese das Propostas do PPV-2017. Destaque para as Unidades de Conservação Campos
Alagados e a identificação de assentamentos populares (em vermelho). Fonte: Plano Popular das Vargens (p. 10).

5. O Plano Popular das Vargens (PPV-2017) recebeu orien-


tação técnica do Núcleo Experimental de Planejamen-
to Conflitual (NEPLAC) do Laboratório Estado, Trabalho,
Território e Natureza (ETTERN) do Instituto de Pesquisa e
Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O PPV foi objeto de es-
tudo da dissertação de mestrado de Gustavo Poeys pelo
IPPUR – UFRJ em 2019.
EIXO TEMÁTICO 2 O Plano Popular fala em garantir a função social
e ambiental da terra, especialmente de grandes
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS terrenos vazios ou subutilizados, em dívida com o
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES poder público ou de origem ilegal, destinando-os
para a moradia social, uso público e para produção
coletiva comunitária de alimentos. Extraímos e
resumimos alguns dos princípios que pautam a
iniciativa do PPV.

Garantia de condições adequadas de circulação


e acessibilidade urbana, principalmente para pe-
destres e transporte não motorizado, com sistema
cicloviário que chegue nas comunidades e forme
uma rede interligada a outros modais.

Conciliar a recuperação dos rios e mananciais


com ocupações preexistentes e moradias popu-
lares, buscando soluções adequadas através da
elaboração de Planos Locais. Garantia de normas
urbanísticas que respeitem e incentivem as for-
mas de vida tradicionais da região, reconhecendo
a agricultura no urbano, nas áreas de moradia,
em espaços coletivos, comunitários e públicos.

Impedir o desmatamento da floresta no Parque


Estadual da Pedra Branca, integrando iniciativas
produtivas agroecológicas com a conservação
ambiental. Reconhecer e valorizar os morado-
res e agricultores que vivem dentro do Parque,
com suas práticas tradicionais, como aliados
na preservação. Reconhecer e demarcar com
certificação as áreas dos quilombos no Parque
e as famílias que nele vivem.

Acesso à água e ao saneamento ambiental como


Direito Social: não tem alimento sadio onde não
há saneamento. Proteger áreas baixas e alaga-
diças que se encontram desocupadas com seus
ecossistemas e seu papel de cisterna natural.

Promover a integração com escolas públicas para


valorização da cultura tradicional agrícola e com
a cultura popular. Pensar formas institucionais
e práticas para resgatar e defender memórias,
vínculos, referências, nomes, símbolos e patri-
mônios históricos e populares, danças típicas
e manifestações da cultura local como coco de
roda, jongo e capoeira.

Essas propostas representam consensos deba-


16º SHCU tidos em fóruns públicos, abertos aos moradores
30 anos . Atualização Crítica
como atores sociais e juntamente a diversas ou-
2088 tras diretrizes dão forma e um forte conteúdo ao
plano, especialmente o de participação popular
e de defesa da cultura local.

O sertão carioca

“A vasta zona de terra denominada Planície


de Jacarepaguá (vale dos jacarés), com-
preendida entre os maciços da Tijuca e da
Pedra Branca, é constituída pelos vales dos
tributários das lagoas da Tijuca e Camorim
e de Marapendi (mar limpo), na Restinga
de Itapeba, pelos Campos de Sernambe-
tiba e pela Restinga de Jacarepaguá, com
suas dunas, a qual é o anteparo do Oceano
Atlântico.” (CORRÊA, 2017, p.55)

“A constituição geológica desses contra-


fortes, Tijuca e Pedra Branca, é formada
gnaisses graníticos associados a rocha
quartzosa, com o qual está estratificado.
Mas a composição de suas rochas é de ori-
gem idêntica, pois se acham separados
pelos lençóis aluvionares. Segundo os ge-
ólogos, na era terciária os atuais maciços
formavam ilhas independentes, resultado
de um movimento crostal de depressão do
continente que submergiu a parte oriental
do Brasil, que no período quaternário se-
guiu-se de uma lenta elevação, fazendo
surgir fundos de mares, hoje em dia pla-
nícies e mesmo ilhas. Estes fenômenos e
a erosão dos maciços são formadores da
grande planície que constitui a baixada de
Jacarepaguá.” (CORRÊA, 2017, p.56)

Armando Magalhães Corrêa descreve o Sertão


Carioca como uma área rural com um raio muito
maior que hoje incluiria do bairro de Realengo à Figura 4: Ilustrações de Armando Magalães Corrêa. Capa
da primeira edição de “O Sertão Carioca” de 1936 e o tendal
Campo Grande e Santa Cruz, ficando mais preser-
das esteireiras. Fonte: (CORREA, 2017, p.132)
vado o recanto oeste da Baixada de Jacarepaguá
(Vargens) devido ao seu isolamento geográfico.
Além da geografia, o autor faz uma etnografia dos
trabalhadores rurais, pescadores, machadeiros,
oleiros, carvoeiros, esteireiras, cesteiros, ba-
naneiros, caçadores além dos agricultores e os
manobreiros de represas, uma contribuição de
relevância para a memória deste sertão incluin-
do desenhos do próprio autor, que era também
escultor, naturalista, escritor e cursou Escola
Nacional de Belas-Artes (Figura 4).
EIXO TEMÁTICO 2 Maria do Carmo Corrêa Galvão6 também se dedica
a caracterização da região de Vargem Grande
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS como “uma planície de piemonte onde se situa
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES o núcleo rural de Vargem Grande e uma baixada
turfosa ou brejo, também chamada de campos de
Sernambetiba” (GALVÃO, 2009, p.192). Comenta
que na planície a estabilidade do povoamento e
a posse da terra é confirmada com habitações
sólidas de tijolo e árvores frutíferas de produção
tardia como mangueiras, jaqueiras e abacatei-
ros. Os bananais ocupam os lavradores que são
brasileiros de origem duas a três vezes por ano e
as roças lhe dão trabalho o ano inteiro, são culti-
vados chuchu, aipim, batata-doce entre outros.

Uma paisagem totalmente diversa é encontrada


no brejo, segundo a autora nele não há nenhuma
instalação permanente e nenhum indício de vin-
culação do homem à terra. Cultivam-se plantas
de curto ciclo vegetativo que permitam uma ro-
tatividade e uso ininterrupto do solo. Aos poucos
os lavradores brasileiros foram substituídos por
lavradores portugueses nessas áreas conquis-
tadas duramente sobre os pântanos com obras
de drenagem. Na ocasião das pesquisas (1963) os
portugueses representavam 90% da população
nos brejos, suas casas eram de material leve e
provisório adequado ao solo em turfa.

Já era identificada pela autora nessa época uma


inicial especulação imobiliária da terra tanto nas
planícies como nos brejos onde grandes áreas
já vinham sendo loteadas e vendidas para pro-
prietários que as arrendavam a agricultores por
um período determinado de modo a aguardar a
valorização fundiária.

Além destas caracterizações e referências his-


tóricas, ainda no âmbito das preexistências cul-
turais, o quilombo de Cafundá Astrogilda que fica
dentro do Parque estadual da Pedra Branca é
outra referência que em 2014 conseguiu reconhe-
cimento junto a fundação Palmares e certificação
como comunidade descendente de quilombolas.
Astrogilda era a grande matriarca e figura impor-

6. O livro “Percursos Geográficos” (2009), organizado pelo


Programa de Pós-Graduação em Geografia PPGG-UFRJ,
traz uma coletânea de textos de Maria do Carmo Corrêa
16º SHCU
Galvão, entre eles o artigo “Aspectos da Geografia Agrária do
30 anos . Atualização Crítica
Sertão Carioca”, produzido em 1963, no Centro de Pesquisas
2090 Geográficas do Brasil (CPGB) da Universidade do Brasil.
tante na região, por volta de 1930 em seu centro Brasil, e em sua trajetória faz um percurso que
espírita, fazia partos, benzia pessoas doentes e contribui determinantemente para a valorização
junto com seu companheiro ajudavam pessoas da arte popular brasileira.
que não tinham acesso a medicina. (Cafundá vem
de cafundó, lugar ermo, distante). O encontro com a arte popular aconteceu em
viagem a trabalho no Recife-PE, Jaques se en-
canta com os bonequinhos feitos de barro pe-
los artistas e artesãos locais. É também neste
A HISTÓRIA DO mUSEU CASA DO pONTAL período inicial que ele conhece o pintor Augusto
Rodrigues, criador da Escolinha de Arte do Brasil
e responsável pela “descoberta” do ceramista
“São Francisco cangaceiro. Lampião-se- Vitalino Pereira dos Santos (Figura 5), o Mestre Vi-
reia. Parteiras do sertão ajudando mulheres talino (1909-1963), “cuja obra viria a chamar a aten-
a parir suas crianças. Navios negreiros. ção para uma peculiar criação em barro, existente
Máscaras e imagens de seres antropozoo- em várias partes do país” (MASCELANI, 1999, p.7) 7.
morfos. Sorveteiros, pipoqueiros, vende-
dores de algodão-doce ou amendoim. Fes- O Brasil passará entre as décadas de 60 e 70, por
tas como o carnaval, o bumba-meu-boi e profundas mudanças nos conceitos sobre arte e
o maracatu. Brincadeiras de crianças na especialmente sobre a valorização de sua arte
rua. O pavão misterioso e sua exuberante popular. Jaques compartilhava uma abordagem
cauda. Naves espaciais. A vida de Cristo que diferenciava arte primitiva, indígena e a arte
contada em cenas movimentadas. Santos popular brasileira e contribuiu muito ao reunir
Dumont e o seu primeiro vôo em volta da o acervo que hoje encontra-se no Museu Casa
Torre Eiffel, em Paris. Estas são algumas do Pontal, integrado por esculturas, máscaras,
das milhares de cenas da vida, cotidiano, xilogravuras, placas cerâmicas e outros objetos
religião, história e fantasias do povo bra- utilizando materiais simples como madeira, barro,
sileiro representadas nas obras de cerca ferro, areia, papel e tecido, além de esculturas
de 200 artistas que integram a coleção de mecânicas articuladas, reunindo uma variedade
arte popular brasileira do Museu Casa do de expressões e técnicas. Um ponto alto dessa
Pontal”. (MASCELANI, 1999, p.1) mudança de paradigma no reconhecimento da
arte popular brasileira é a exposição montada
“Uma coleção que é reconhecida atualmen- por Jacques no MAM em 1976, que consolida um
te como a mais completa do gênero no país movimento iniciado em 1922.
e que foi inteiramente reunida pelo artista
plástico e designer francês Jacques Van “A Semana de 1922, epicentro do movimento
de Beuque. Composta por cerca de 8.000 modernista, por exemplo, permitiu o alarga-
peças recobre a produção feita em toda mento do horizonte artístico ao reivindicar
segunda metade deste século com obras uma nova postura frente à história questio-
representativas das variadas culturas rurais nando a submissão técnica e expressiva aos
e urbanas do Brasil” (MASCELANI, 1999, p.1). valores europeus consagrados”.

A história do museu de arte popular Casa do Pon-


tal é representada a partir da trajetória de vida 7. Angela Mascelani é Doutora em Antropologia Cultural pelo
de Jaques Van de Beuque, pintor e artista plás- Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade
tico francês, que vem ao Rio de Janeiro em 1946 Federal do Rio de Janeiro e Mestre em Antropologia da Arte
pela Escola de Belas Artes da mesma instituição. É Diretora
no pós-guerra, com intenção de passar poucos
do Museu de Arte Popular Brasileira Casa do Pontal. Autora
meses. Seguia uma sugestão do também pintor
do livro “O mundo da arte popular brasileira” (Mauad, 2000).
e amigo Cândido Portinari, para conhecer a be- Utilizamos como referência o seu artigo “A Casa do Pontal
leza da cidade tropical, suas cores e cultura. Ao e suas coleções de arte popular brasileira” publicado na
chegar começou a trabalhar colorindo projetos de Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Nú-
Roberto Burle Marx, a viagem mudaria os rumos mero 28. Rio de Janeiro, IPHAN, 1999. Acessado em www.
de sua vida, Jaques se casa e constitui família no museucasadopontal.com.br em 23 de junho de 2020.
EIXO TEMÁTICO 2 “As décadas de 1960 e 1970 configuram um
período típico de transição quando ganha
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS consistência o conceito do povo autor.
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES São promovidas exposições de arte po-
pular em lugares consagrados: em 1969,
Piero Bardi leva ao Museu de Arte de São
Paulo, SP, “A mão do povo brasileiro”; em
1976, Jacques Van de Beuque ocupa o
Museu de Arte Moderna, no Rio de Janei-
ro, com uma grande mostra de Arte po-
pular brasileira”. (MASCELANI, 1999, p.7)

Inicialmente Jaques comprava as esculturas para


si mesmo. Seu crescente interesse o leva a via-
jar e conhecer melhor o Brasil e aos poucos vai
reunindo uma grande variedade de esculturas,
temas e diferentes artistas em seu escritório em
Botafogo. Na medida em que seu gosto e apreço
pelos objetos torna-se conhecido, ele começa
a ser procurado por outros artistas, donos de
coleções em vias de se desfazer, lojistas ou in-
termediários formando uma rede que somada a
sua crescente paixão lhe permite em poucos anos
reunir uma imensa coleção.

Figura 5: “Os Retirantes”. Escultura de Barro do Mestre


Vitalino, acervo do Museu Casa do Pontal. Fonte: Museu
Casa do Pontal www.museucasadopontal.com.br acesso
em 23 de junho de 2020.

Em 1975 Jaques compra uma chácara de 12 mil


m² na Estrada do Pontal e inicia uma reforma para
adaptá-la para abrigar seu acervo, um percurso
longo e cheio de dificuldades mas profundamente
16º SHCU marcado por sua relação com a coleção e sua
30 anos . Atualização Crítica
exposição. A Casa do Pontal abre como museu ao
2092 público em 1993. “Essa decisão não foi fácil, con-
viver com a perda do espaço privado representada sede para o museu na Barra da Tijuca. A obra da
pela abertura definitiva da coleção, ainda hoje, nova sede ainda não foi concluída e o museu está
configura-se como uma experiência delicada” recorrendo a campanha de financiamento colabo-
(MASCELANI, 1999, p.12). No uso da palavra “casa” rativo complementar para viabilizar sua mudança.
Jaques atende a uma sugestão do seu filho, que
coloca o sentido de intimidade da sua relação
com os objetos, artistas e com a arte popular,
também reforça características de uma produção
cultural que em uma dinâmica centro-periferia,
encontra-se na periferia, muitos artistas popu-
lares têm seus ateliês e oficinas em casa, o que
remete a vida cotidiana.

Mas a história do Museu Casa do Pontal ainda re-


percutiria grandes polêmicas que ultrapassariam
as reflexões sobre arte e cultura e sua valorização
em diferentes segmentos da sociedade em dife-
rentes épocas. O fato de um estrangeiro ajudar a
construir um novo olhar sobre a cultura popular
contribuindo para seu reconhecimento nacional é
emblemático. Antes mesmo de assumir o perfil de
instituição museológica atual ele já era reconhe-
cido como tal, e recentemente vinha abrigando
eventos que reforçavam laços da cultura popular
com o território em que está inserido, sendo um
polo de cultura na região.

Essa história conheceria seu momento trágico a


partir da construção de um grande condomínio de
prédios residenciais no terreno vizinho ao museu,
que durante as obras já demonstrava que provo-
caria distúrbios, problemas de recalque de solo e
inundações gravíssimos. As obras prosseguiram
em meio às denúncias e o empreendimento nos
moldes dos grandes condomínios da Barra da
Tijuca (com 7 prédios de 8 pavimentos cada e
subsolos para garagem) foi viabilizado com as
mudanças na legislação pelo PEU-Vargens. O
empreendimento se impôs fazendo prevalecer
as forças de mercado, respaldados na falta de
interesse por parte da Prefeitura do Rio de Ja-
neiro em analisar o licenciamento de projetos em
relação ao seu entorno, preexistências e possíveis
fragilidades (Figura 6 – mosaico).

Após sucessivos alagamentos em dias de chuva,


colocando em risco o acervo delicado e precioso
do museu, que tem muitos exemplares feitos de
materiais simples e frágeis como madeira ou até
papel e pano como bonecos e fantoches de papel
marchê, a Prefeitura do Rio de Janeiro em 2017
reconheceu o erro e propôs construir uma nova
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

Figura 6 (mosaico): Acima a localização do museu e do


condomínio vizinho sobre foto da Prefeitura - RJ. Abaixo os
alagamentos provocados dentro e fora da sede do museu
pondo em risco o seu acervo. Fonte: Jornal O Globo, www.
g1.com.br , reportagem de 1º de março de 2020, acesso
em 29 de julho de 2020.

os retirantes: reflexões para debate

“O sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão”


(CUNHA, 1984, p.75), nas profecias atribuídas à
Antônio Conselheiro por Euclides da Cunha8, en-

8. Na passagem de “Os Sertões” intitulada “Profecias” Eucli-


des da Cunha cita entre outras as seguintes: “Hade rebanhos
16º SHCU
mil correr da praia para o certão; então o certão virará
30 anos . Atualização Crítica
praia e a praia virará certão (...)”haverá muitos chapéus e
2094 poucas cabeças”. (CUNHA, 1984, p.75). A edição original é
contramos metáforas que fazem a história ecoar, tórico. Nosso objetivo aqui é expor e analisar o
como na paráfrase de Marx sobre Hegel9. conflito entre ideias, representações, modos de
vida e agentes produtores do espaço urbano e da
“Em alguma passagem de suas obras, He- cultura e suas complexas dinâmicas espacializa-
gel comenta que todos os grandes fatos e das em um território.
todos os grandes personagens da história
mundial são encenados, por assim dizer, Ao iniciarmos pela caracterização geológica da
duas vezes. Ele esqueceu de acrescentar: bacia sedimentar de Jacarepaguá, procuramos
a primeira como tragédia e a segunda como evidenciar a importância do conhecimento cien-
farsa”. (MARX, 2011, p.25). tífico sobre a natureza do território e da interdis-
ciplinaridade e multidimensionalidade do espaço
A referência acima, onde Marx previu os desdo- urbano. Procuramos também apresentar os es-
bramentos políticos da França em 1852, através tudos científicos como dados fundamentais que
de sua análise de conjuntura política, é emble- deveriam nortear decisões institucionais sobre
mática e metafórica para o momento político que projetos e planos para o crescimento urbano. Em
atravessa o Brasil, também marcado por uma tempos de crise política, econômica e sanitária
repetição ou recrudescimento de tendências aguda como vivemos hoje no mundo e especial-
fascistas que remetem à ditadura instaurada mente no Brasil, pautada institucionalmente, en-
após o golpe empresarial-militar de 1964. Mas tre outras polêmicas e tendências, pela negação
disfarçados neste discurso nacionalista estão em da ciência e pelo corte de verbas públicas para
curso a privatização e mercadorização de setores pesquisa, este debate adquire importância na
estratégicos nacionais e de recursos naturais sociedade e deve ser fomentado nas universi-
como os mananciais hídricos. Percorremos neste dades públicas.
artigo diferentes abordagens e pontos de vista
de uma mesma realidade. Esta é determinada A Pandemia COVID-19 impõe ao mundo uma sú-
por diferentes condicionantes, sejam ligados ao bita desaceleração nunca antes imaginada como
meio físico natural em que vivemos, à fatores possível da forma radical que nos foi imposta, uma
históricos, culturais e sociais ou às sobredeter- tragédia humana desigual em um mundo marca-
minações político-econômicas, mas só o que do pela desigualdade social abissal e uma greve
existe, existe, e a realidade é composta destas mundial compulsória. Essa crise era aguardada
múltiplas faces de um mesmo objeto real e his- desde a última crise em 2008, pois são inerentes
a espiral dinâmica do sistema capitalista, os ci-
de 1902. A grafia de sertão com “c” foi registrada pelo autor clos com crises agudas cada vez maiores e mais
nas citações do profeta Antônio Conselheiro. frequentes com potencial devastador sobre as
economias, especialmente as periféricas (Har-
Existem controvérsias sobre as polêmicas frases atribuídas vey, 2018).
à Antônio Conselheiro como a que diz “o sertão vai virar
mar”, de que ele nunca teria dito essas profecias, assim As crises tem a característica de aumentarem
como seriam mitos o sebastianismo, o persianismo e o a cada ciclo os processos de concentração e
apoclisismo (profecias de fim do mundo), conforme relata acumulação, assim como seus reflexos como a
o escritor Oleone Fontes autor do livro “Euclides da Cunha
exclusão e a espoliação. Isso é, tanto a crise eco-
e a Bahia” em entrevista ao Jornal Correio. Acessado em:
nômica quanto sua potencialização pela pandemia
www.correio24horas.com.br/noticia/nid/livro-reune-cu-
riosidades-sobre-a-vida-do-escritor-euclides-da-cunha/
reforçam processos de acumulação e concentra-
em 28 de Julho de 2020. ção dos meios de produção e consequentemen-
te aumentam desigualdades. A pandemia vem
9. Em “O 18 de Brumário de Luís Bonaparte”, na sequência
potencializar os efeitos da crise econômica mas
desta paráfrase de abertura, Marx cunhou uma de suas
é também sobredeterminada em sua deflagra-
históricas e icônicas frases: “Os homens fazem sua própria
história; contudo não a fazem de livre e espontânea vontade,
ção por este modo de produção. Este artigo foi
pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as produzido durante o período de quarentena, não
quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim aborda diretamente a questão sobre “COVID-19 e
como se encontram”. (MARX, 2011, p.25). A edição original as cidades” mas ao tratar da cidade como meio de
é de 1852. produção e não apenas reflexo destas relações,
EIXO TEMÁTICO 2 precisa mencionar essa conjuntura atual.

HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS Nas análises dos planos e projetos que atuam so-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES bre a região das Vargens e do Pontal Oceânico no
Rio de Janeiro, procuramos evidenciar as contra-
dições entre a gênese dos Projetos de Estrutura-
ção Urbana e seu modo de utilização institucional
no caso apresentado. Estas evidências ficam
nítidas após a comparação com o Plano Popular
das Vargens (PPV); o plano institucional (PEU)
atende a um sujeito representado pelo mercado
imobiliário e seus “agentes produtores” (CORRÊA,
1989) e o PPV representa as propostas daqueles
sujeitos sociais que no plano institucional são
objetos.

O Professor Roberto Lobato Corrêa em seu livro


“O Espaço Urbano”, caracteriza este como “frag-
mentado e articulado, reflexo e condicionante
social, um conjunto de símbolos e campo de lutas”
(CORRÊA, 1989, p.9). Identifica na sequência quem
o produz: os proprietários fundiários, os promo-
tores imobiliários, o Estado e os grupos sociais
excluídos. Entendendo essa dinâmica dentro de
um marco jurídico que não é neutro e onde os três
primeiros agentes, mesmo com seus eventuais
conflitos, associam-se na produção da “renda
da terra”. Outra importante contribuição neste
campo, é encontrada no trabalho de Flavio Villaça
(1999) “O Espaço Intra-Urbano”, onde a localização
das classes privilegiadas e as infraestruturas
e benfeitorias que as acompanham, constitui
grande determinante de valor do espaço urbano
como mercadoria (valor de troca).

O solo urbano e suas benfeitorias não são merca-


dorias quaisquer, eles não se movimentam, são
indispensáveis na existência, todos precisamos de
localizações no espaço para diferentes funções,
trocam de proprietários com pouca frequência e
são especialmente sujeitos a dimensão do tempo
sob vários aspectos. Embora a troca seja pontual
na linha do tempo, o uso se estende sobre ela. Há
um duplo papel como valor de uso atual e futuro
assim como valor de troca potencial atual, agora
e no futuro (HARVEY, 1973. p.135).

A alteração da legislação e especialmente dos


índices construtivos sobre áreas periféricas ur-
banas, onde existem grandes terrenos caracte-
16º SHCU rizados como reservas fundiárias, provoca uma
30 anos . Atualização Crítica
valorização súbita de terrenos privados que se
2096 converte em uma mais-valia urbana colossal.
Com a qual associamos a referida “renda da terra” as definem idênticos aos encontrados no
anteriormente citada (CORRÊA, 1989). Essa súbita Peru e México, e contemporâneos dos que
valorização também provoca outras dinâmicas Agassiz descobriu no Panamá — todos estes
como a gentrificação e até conflitos diretos como elementos se acolchetam no deduzir-se
o referido caso do Museu Casa do Pontal. que vasto oceano cretáceo rolou as suas
ondas sobre as terras fronteiras das duas
Propomos no título desta seção a reflexão so- Américas, ligando o Atlântico ao Pacífico.
bre o simbolismo da escultura “Os Retirantes” de Cobria, assim, grande parte dos Estados
Mestre Vitalino, que representa o êxodo rural para setentrionais brasileiros, indo bater con-
as grandes metrópoles e que podemos entender tra os terraços superiores dos planaltos,
como parte do contínuo processo de “acumulação onde extensos depósitos sedimentários
primitiva” (MARX, 1867) no Brasil também associa- denunciam idade mais antiga, o paleozoico
do às secas da Região Nordeste. Nessa reflexão médio.” (CUNHA, 1984, p.10).
existe uma metáfora da expulsão compulsória do
próprio Museu Casa do Pontal de seu sítio original A Baixada Litorânea de Jacarepaguá, como vimos,
de fundação. É um processo diferente do êxodo também já foi o fundo do mar, emergiu com o
rural ou da gentrificação urbana gradativa, onde recuo do oceano e conserva características deste
o aumento do valor do solo urbano expulsa para processo como as lagoas costeiras, restingas, o
as bordas da metrópole os mais pobres. No caso brejo e o solo em turfa. Diferente do sertão no
de referência do museu, a expulsão é revestida de interior da Bahia, que se formara na passagem
violência e ignorância mas isso se dá dentro de da era paleozoica para a mesozoica, com fosseis
uma estrutura de produção do espaço baseada cretáceos de 135 milhões de anos, a baixada lito-
na “irracionalidade econômica” (HARVEY, 2018) e rânea carioca é uma formação geológica recente,
respaldada pelo planejamento institucional. Fala- tem cerca de 3.500 anos apenas e tem dinâmicas
mos em violência pela forma como a implantação de assoreamento ou inundação em sua formação
de um empreendimento privado provoca o alaga- que são ainda mais recentes, em constante trans-
mento frequente do seu vizinho independente do formação e sujeitas a ação antrópica.
uso a que se destina seu lote.
O alerta científico deste início de século fala em
O fato deste vizinho ser um polo cultural ampla- mudança climática, aquecimento e aumento do
mente reconhecido no território, amplifica e evi- nível dos oceanos, nesta dinâmica, os terrenos
dencia que não há na lógica (ilógica) de mercado, baixos e alagados tornam-se, obviamente, áreas
que atua nas Vargens e no Recreio dos Bandei- que devem ser reservadas e monitoradas. Como
rantes, nenhum apreço pela cultura. Restando também explica a geologia, as dinâmicas des-
a instituição cultural apenas aceitar a mudança tes processos tem um tempo curto em relação a
compulsória, uma perda inestimável para a comu- escala do tempo geológico, que se aproxima do
nidade local e uma ruptura na história do próprio tempo histórico.
Museu Casa do Pontal.
As articulações possíveis entre os temas entre-
A outra articulação que propomos aqui para refle- cruzados neste artigo permitem diversas abor-
xão e debate se relaciona com a citação no início dagens. Sem estender nossa contribuição e de
desta seção, a profecia atribuída a Antônio Con- modo a ficar dentro dos padrões propostos para
selheiro por Euclides da Cunha adquire diversos o Seminário, acrescentaremos mais uma camada
contornos e que permeiam diferentes campos do de reflexões, mas não a última, pois entendemos
conhecimento. O próprio autor de “Os Sertões” que é um debate amplo, diverso e aberto.
também dedica interessantes passagens de seu
livro a caracterização natural como em um artigo O Plano Popular das Vargens, assim como diver-
intitulado “Um sonho de geólogo”. sas outras experiências no panorama urbano e
social do Brasil atual, mostra que existe a possi-
“As pesquisas de Fred. Hartt, de fato, es- bilidade de uma organização alternativa e parti-
tabelecem, nas terras circunjacentes a cipativa, uma articulação “de baixo para cima”, de
Paulo Afonso, a existência de inegáveis participação popular e com orientação técnica.
bacias cretáceas; e sendo os fósseis que Ele foi inspirado no movimento que o precedeu,
EIXO TEMÁTICO 2 dos moradores da Vila Autódromo, na região de
Jacarepaguá, quando ameaçados de remoção
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS pela Prefeitura para implantação da Vila Olímpi-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES ca RIO-2016. Os conflitos foram às vias de fato e
uma pequena parcela dos moradores conseguiu
permanecer após muita luta. (POEYS, 2019, p.70).

Lícia Valladares (2005), que investiga a fundo as


origem das favelas cariocas, se refere a epopeia
de Canudos nos sertões da Bahia, onde propõe
reflexões sobre conflitos políticos e lutas sociais.
Os combatentes recrutados pelo Exército eram
pobres como aqueles que foram destituir e exter-
minar em sua cruzada republicana. Ao retornarem
de sua campanha, sem soldo e sem ter para onde
ir, ocuparam o Morro da Providência, próximo ao
quartel militar e com a anuência do Ministério da
Guerra (Valladares, 2005, p.29), que a partir daí
passou a se chamar também Morro da Favella10.
Após sofrer duras derrotas e finalmente destruir
uma comuna de “excluídos da nova república”, os
soldados (sem soldo) se viram ao retornar, naque-
las condições contra as quais foram combater,
revelando profundas contradições.

Ficam para o debate algumas questões: a quais


sujeitos atende o planejamento institucional no
caso apresentado do PEU-Vargens? As remo-
ções de assentamentos populares, como aque-
las pesquisadas originalmente por Valladares,
ocorreram antes dos grandes eventos (Copa 2014
e Olimpíadas 2016) e continuam sua marcha na
direção das mais de 40 comunidades11 em situação
de insegurança jurídico-institucional na região

10. As semelhanças e coincidências identificadas por Valla-


dares na literatura deste período sobre Canudos e o Morro
da Providência são muitas, a começar pela própria carac-
terística topográfica, a ocupação de um morro, o ato de
resistência e luta dos pobres contra um Estado opressor,
a relação comunal, ausência de propriedade, o não reco-
nhecimento institucional e até o próprio nome favella, que
em uma das hipóteses pesquisadas pela autora, advém de
uma planta que também existia na colina onde Canudos
resistiu até a última batalha.

11. O Plano Popular das Vargens fez um levantamento e ma-


peamento das comunidades locais em situações diversas
de vulnerabilidade, identificando 43 núcleos na ocasião.
Em seus princípios fundamentais defende a “Não remoção.
16º SHCU
Todas as comunidades devem ter seu direito de permanecer
30 anos . Atualização Crítica
em seu local garantido, e nenhuma família será obrigada a
2098 sair de sua casa.” (PPV, 2017, p.13).
analisada (Jacarepaguá, Vargens e Recreio dos REFERÊNCIAS
Bandeirantes). A brutalidade retratada no caso do
Museu Casa do Pontal aponta para uma ignorân- ANDREATTA, V. Cidades quadradas paraísos
cia com um relicário cultural. E com os pobres e circulares. Rio de Janeiro: Mauad Editora,
excluídos sociais, como se dá essa relação? O que
2006.
hoje é brejo poderá voltar a ser lagoa? “O sertão
carioca vai virar mar?” Continuar a contrariar as CABRAL, S. Mapeamento geológico-geotéc-
dinâmicas da natureza aterrando o brejo para nico da baixada de Jacarepaguá e maciços
criação de solo urbano terá quais consequências? circunvizinhos. Dissertação de Mestrado - Pro-
E aquelas preexistências que ocupavam este ter- grama de Pós-graduação em Geologia, UFRJ.
ritório de outra forma? Como serão impactadas Rio de Janeiro, 1979.
pelos padrões das formas de ocupação atuais, os
aterros e modificações da natureza do território? CARDEMAN, R. A transformação da paisagem
E por fim, como podem se articular os cidadãos em área de expansão urbana: Planejamento
de forma a exercerem sua participação política em Vargem Grande na cidade do Rio de Janeiro.
nas questões urbanas? Os planos e projetos de Doutorado em Arquitetura – PROARQ-FAU-U-
participação popular com orientação técnica e a FRJ. Rio de Janeiro, 2014.
autogestão são uma alternativa viável, mais demo-
crática e cidadã? Ficam aqui algumas questões. CORRÊA, R. O Espaço urbano. Rio de Janeiro:
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bana das Vargens (PEU-Vargens 2015). Projeto
de Lei Complementar nº 140/2015 que substi-
tuiu a Lei Complementar anterior nº 104/2009.
Rio de Janeiro, 2015.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

2100
2101
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES O bairro de Cruz das Almas, localizado no litoral
da cidade de Maceió, capital de Alagoas, tem
passado por um processo de intensa transfor-
vídeo-pôster mação, evidenciado, principalmente, pela inser-
ção de novos padrões construtivos que ocasio-
nam mudanças significativas em sua dinâmica
PELAS BRECHAS DA CIDADE: urbana. O surgimento do bairro, na década de
1960, coincide com a construção do primeiro
EXPERIÊNCIAS E NARRATIVAS conjunto habitacional do estado, localizado em
um terreno distante do centro urbano e precário
DO BAIRRO DE CRUZ DAS em equipamentos e infraestrutura. Durante dé-
cadas, Cruz das Almas caracterizou-se por ser
ALMAS EM MACEIÓ-ALAGOAS um bairro residencial horizontal, com o mar vio-
lento e poluído e frequentado essencialmente
por seus moradores. Nos últimos anos, o setor
CITY GAPS: URBAN EXPERIENCES AND NARRATIVES IN
imobiliário voltou seu olhar para os bairros ao
CRUZ DAS ALMAS’S NEIGHBORHOOD
norte da cidade e, atualmente, Cruz das Almas
encontra-se apropriada pela especulação imo-
LAS BRECHAS DE LA CIUDAD: EXPERIENCIAS Y biliária, seus arranha-céus e shopping centers,
NARRATIVAS URBANAS EN EL BARRIO DE CRUZ DAS enquanto a população do conjunto ainda sofre
ALMAS EM MACEIÓ-AL com a ausência de serviços básicos. Diante
desse contexto, este artigo consiste na apre-
VIANA, MANUELA MIRANDA VASCONCELOS sentação de experiências corporais e narrativas
urbanas como método para uma leitura sensível
Mestranda em arquitetura e urbanismo; Programa de Pós-
da cidade, visando o registro da história do lugar
Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade
Federal de Alagoas
e de seus moradores para a construção de uma
manuelamviana@gmail.com reflexão crítica acerca dos processos atuais do
bairro. A partir das narrativas de quem vive co-
DIAS, JULIANA MICHAELLO MACÊDO tidianamente o espaço urbano, o artigo busca
refletir sobre a lógica tendente do planejamento
Prof. Dra. da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
das cidades para compreender como os proces-
Universidade Federal de Alagoas
juliana.dias@fau.ufal.br sos contemporâneos interferem nas relações
de pertencimento entre os habitantes e o lugar
OLIVEIRA, ROSELINE que habitam e acaba por revelar a importância
da preservação da memória e das referências
Prof. Dra. da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
de uma comunidade.
Universidade Federal de Alagoas
roseline@fau.ufal.br

NARRATIVA URBANA EXPERIÊNCIA URBANA


BAIRRO DE CRUZ DAS ALMAS

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

2102
ABSTRACT RESUMEN

Cruz das Almas is a neighborhood located on the Cruz das Almas es un barrio ubicado en la cos-
coast of the city of Maceió, capital of Alagoas. The ta de la ciudad de Maceió, capital de Alagoas. El
place have been experiencing an intense trans- lugar ha estado experimentando un intenso pro-
formation process evidenced by the insertion of ceso de transformación evidenciado por la in-
new constructive standards that changes its ur- serción de nuevos estándares constructivos que
ban area. The emergence of the neighborhood, cambian su área urbana. La aparición del barrio,
in the 1960s, coincided with the construction of en la década de 1960, coincidió con la construcci-
the first affordable housing complex in the state ón del primer complejo de viviendas sociales en
of Alagoas. It was located on a site far from the el estado de Alagoas. El barrio estaba ubicado
urban center and precarious in terms of equip- en un sitio lejos del centro urbano y precario en
ment and infrastructure. For decades, Cruz das términos de equipamiento e infraestructura. Du-
Almas was characterized by being a horizontal rante décadas, Cruz das Almas se caracterizó por
residential neighborhood and frequented by its ser un barrio residencial horizontal y frecuentado
residents. In recent years, the property sector por sus residentes. En los últimos años, el sector
has been looking at neighborhoods in the north of inmobiliario ha mirado el norte de la ciudad y, ac-
the city and, currently, Cruz das Almas has to deal tualmente, Cruz das Almas tiene que lidiar con la
with the property speculation and gentrification. especulación y la gentrificación de la propiedad.
It is notable the presence of luxury skyscrapers Es notable la presencia de rascacielos de lujo y
and shopping centers while the population living centros comerciales, mientras que la población
in the affordable housing still suffers from the que vive en viviendas sociales aún sufre la falta
absence of basic services. Given this context, this de servicios básicos. Dado este contexto, este ar-
article aims to present urban experiences and tículo tiene como objetivo presentar experiencias
narratives as a method of sensitive perception of y narrativas urbanas como un método de percep-
the city through the registry of the history of the ción sensible de la ciudad a través del registro de
place and its residents. The article seeks to think la historia del lugar y sus residentes. El artículo
over the logic of urban planning to understand discute la lógica de la planificación urbana para
how contemporary processes interfere in the re- comprender cómo los procesos contemporáne-
lations of participation between inhabitants and os interfieren en las relaciones de participación
the place they inhabit based on narratives of tho- entre los habitantes en función de las narracio-
se who live daily the urban space, and ends up re- nes de quienes viven a diario el espacio urbano e
vealing the importance of preserving the memory termina revelando la importancia de preservar la
and references of a community. memoria y las referencias de una comunidad.

URBAN NARRATIVE URBAN EXPERIENCE NARRATIVA URBANA EXPERIENCIA URBANA


CRUZ DAS ALMAS NEIGHBORHOOD BARRIO DE CRUZ DAS ALMAS
EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
O crescimento demográfico, a expansão das ci-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
dades, o desenvolvimento tecnológico, a velo-
cidade e quantidade de informação, a extrema
mercantilização, entre outros fatores marcantes
vídeo-pôster
da sociedade contemporânea, interferem direta-
mente nas relações urbanas, que se mostram cada

PELAS BRECHAS DA CIDADE: vez mais reguladas pela exploração do território


em favor de agentes econômicos e fragilizada na
EXPERIÊNCIAS E NARRATIVAS maneira como o indivíduo se apropria do espaço
e se relaciona com o outro.
DO BAIRRO DE CRUZ DAS Esse processo é evidenciado no tecido urbano pela
ALMAS EM MACEIÓ-ALAGOAS deterioração dos ambientes públicos, pela priva-
tização da vida coletiva e pela segregação dos es-
paços, condições que têm transformado profun-
CITY GAPS: URBAN EXPERIENCES AND NARRATIVES IN damente não só os lugares, mas também os seus
CRUZ DAS ALMAS’S NEIGHBORHOOD habitantes e sua relação com a cidade, a qual se
apresenta cada vez mais fragmentada, descone-
LAS BRECHAS DE LA CIUDAD: EXPERIENCIAS Y xa, com espaços vazios de utilidade e significação.
NARRATIVAS URBANAS EN EL BARRIO DE CRUZ DAS
Para o cidadão metropolitano, as formas
ALMAS EM MACEIÓ-AL
urbanas se transformam em um ritmo alu-
cinante revelando um descompasso entre
os tempos da forma urbana – impresso na
morfologia - e o tempo da vida humana. A
metrópole - em sua visão de grandiosidade
aparece em formas exuberantes - é vista
como o símbolo de um novo mundo, como
idéia do moderno e do triunfo técnico. Tal
fato se traduz, morfologicamente, pelas
formas arquitetônicas grandiosas, pela
construção de amplas avenidas conges-
tionadas e ruidosas que se impõe como
“formas do progresso”. Neste processo de
mudanças rápidas, o espaço se torna instá-
vel, o profundo processo de mutação cria a
destruição dos referenciais que sustentam
a vida cotidiana, jogando o cidadão em meio
à agitação da multidão cada vez mais densa
e amorfa, confrontado com a perda de sua
identidade. (CARLOS, 2007, P.45)

Nesse sentido, os processos da cidade contempo-


rânea são marcados pela perda dos referenciais
urbanos e das marcas que identificam a paisagem,
e pela falta de reconhecimento do bairro pelo
próprio morador. A cidade “se reproduz numa
16º SHCU relação de exterioridade em relação ao cidadão,
30 anos . Atualização Crítica
revelando a alienação percebida na qualidade de
2104 estranhamento” (Carlos, 2007, p.64). As cidades
mudam em um ritmo tão acelerado que são cada de uma busca por diferentes formas de conhecer
vez menos apreendidas pelos habitantes, ao mes- e preservar a história da cidade, nas memórias, no
mo tempo em que são destruídos os referenciais cotidiano, nos saberes e práticas de seus habitan-
da vida cotidiana, definidores dos usos do espaço. tes. Trata-se de fazer uso dos sentidos, do corpo,
Por sua vez, os habitantes são constantemente da escuta e dos movimentos para (re)descobrir
submetidos a transformarem suas formas de vida a cidade que resiste nas brechas do espetáculo.
para adequarem-se à lógica da cidade contempo-
rânea. E é nesse processo que surge a sensação Além disso, o trabalho considera a ideia de ex-
de estranhamento do habitante em relação ao perimentação da cidade proposta por Mıchel de
lugar, comprometendo o seu senso de identidade Certeau, que define os espaços como “lugares
e pertencimento. praticados” (CERTEAU, 1994, p. 171). Ou seja, as
experiências e relações que neles ocorrem nos
Paola Berenstein, em “Errâncias Urbanas: a arte permitem apreender a cidade, através das prá-
de andar pela cidade” discorre sobre alguns fe- ticas cotidianas. Por mais que as vivências e os
nômenos. A autora denomina o processo atual processos de subjetivação sejam individuais, não
das cidades de espetacularização urbana, que se pode ignorar que as dinâmicas e os conflitos
está “diretamente relacionado a uma diminuição inerentes ao espaço urbano surgem das relações
da participação popular, mas também da própria sociais estabelecidas na vida cotidiana. O autor
experiência física urbana enquanto prática coti- também discute que esses lugares praticados são
diana” (JACQUES, 2005, p. 16). Além disso, a espe- como um vocabulário e entender suas práticas
tacularização é o resultado da patrimonialização cotidianas é interpretar os usos que as pessoas
excessiva e/ou da urbanização generalizada, ou fazem desse vocabulário: a maneira como utilizam
seja, o exagero nas propostas de preservação de a praça, a rua, etc. Dessa forma, a observação das
sítios históricos, como forma de atrair turistas; práticas cotidianas dos moradores do bairro pre-
e a expansão da cidade para áreas periféricas, tende compreender como as transformações da
alvos da especulação imobiliária. cidade contemporânea, afetada por movimentos
de consumo, difundem-se interferem na relação
Os projetos urbanos contemporâneos de revita- com a cidade.
lização, surgem com a intenção de produzir uma
imagem singular para as cidades e tendem a seguir
um modelo internacional homogeneizador que
define a “identidade” do lugar, tornando cidades O PERCURSO DO BAIRRO DE CRUZ DAS ALMAS
com culturas distintas cada vez mais semelhan-
tes. Dentro desse modelo, que visa a venda da O bairro de Cruz das Almas localiza-se no litoral de
imagem urbana, a população local muitas vezes Maceió, capital do Estado de Alagoas. Seu surgi-
é ignorada e substituída. Consiste em um fenô- mento está relacionado a um povoado localizado
meno nocivo à medida que atende a demandas nas margens de uma estrada em direção ao norte
do interesse privado e distorce as relações de da cidade. Atualmente, essa estrada corresponde
apropriação com o espaço público. Segundo Be- à Avenida Gustavo Paiva, uma das vias de maiores
renstein, o caminho inverso desse processo seria fluxos da cidade, onde estão localizados grandes
a apropriação popular e participativa do espaço equipamentos como faculdade, shoppings centers
público, o que não diz respeito à requalificação e supermercados.
material do espaço físico em si, mas ao incentivo
a novas formas de apropriação: conflitos, trocas e Até a década de 1960, havia na região apenas esse
encontros, alternativas que levariam a experiência pequeno povoado próximo a uma igreja e gran-
corporal e sensorial na e da cidade. des sítios de coqueiros, quando foi construído
o primeiro conjunto habitacional da Companhia
Nessa perspectiva, este estudo utilizou-se da de Habitação Popular de Alagoas (COHAB/AL),
experiência corporal urbana como metodologia o Conjunto Jardim Beira Mar (Figura 1). Pode-se
para a decifrar o espaço e de narrativas dos mo- considerar que a implantação do conjunto marcou
radores para inserção e imersão na vida cotidiana o surgimento do bairro, já que a partir dali come-
do Bairro de Cruz das Almas, em Maceió. Trata-se çaram a surgir relações sociais, atividades coti-
EIXO TEMÁTICO 2 dianas coletivas e códigos de convivência. Com o
passar dos anos, o bairro expandiu-se para além
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS do conjunto, mantendo essencialmente seu cará-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES ter residencial. Na década de 1980, a orla marítima
foi urbanizada atraindo alguns hotéis de luxo para
região. Nesse período, a Praça Ganga Zumba foi
construída, símbolo importante do bairro e palco
de diversas manifestações culturais e religiosas.

Figura 1: Conjunto da COHAB, Reportagem de 1967 da Revis-


ta Manchete. Fonte: Acervo de Wagner Torres, disponível
no grupo do Facebook Maceió Antigo (2016).

Desde os anos 2010, observa-se em Cruz das Al-


mas o surgimento de novos padrões construtivos,
que estão em desencontro tanto com a legisla-
ção de Maceió, como com a própria paisagem
e dinâmica urbana da cidade. A exemplo disso,
verifica-se a construção recorrente de condo-
mínios verticais que chegam até 20 pavimentos,
completamente desproporcionais com o restante
da orla da cidade. Além da implantação irregular
de um shopping center, muito próxima a um antigo
depósito de lixo. (Figura 2)

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

2106
Figura 2: Cruz das Almas em 2015 à esquerda e em 2017 à direita. Fonte: Google Maps (2017).

Sob alguns aspectos, as mudanças que vem ocor- UMA EXPERIÊNCIA SENSÍVEL
rendo em Cruz das Almas trazem melhorias para
a vida dos moradores no que diz respeito à mo- Paola Berenstein em Corpografias Urbanas, afir-
bilidade, por meio das novas vias de acesso, da ma que “no momento em que a cidade – o cor-
implantação de ciclovia e do aumento de linhas po urbano – é experimentada, esta também se
de ônibus, e à diversidade de serviços oferecidos. inscreve como ação perceptiva e, dessa forma,
Por outro lado, esse processo vem ocorrendo de sobrevive e resiste no corpo de quem a pratica.”
forma muito rápida, sem o envolvimento coletivo (2008, p. 03), Nesse sentido, a aproximação com
dos moradores, gerando graves impactos am- o lugar que deu forma a este trabalho partiu de
bientais e, principalmente, reforçando cenários vivências individuais pelo bairro, da observação
de exclusão e de desigualdade social. de suas práticas e percursos, como também em
experiências coletivas, considerando que o en-
Diante desse cenário que marca um processo de
contro com o outro permite-nos compreender
transformação do bairro, fica evidente a lógica
diferentes leituras de cidade. A autora denomi-
contemporânea do planejamento urbano, que atua
na esse ato de aproximação com o território de
em favor de agentes econômicos, da especulação
imobiliária e da dimensão privada e individual. A errância urbana; um exercício de subjetivação
produção do espaço urbano não caminha junto do espaço, que leva a uma reinvenção poética e
com as dinâmicas sociais, com as lutas coletivas e sensorial da cidade.
com os percursos históricos. O caminho inverso a
Errar, ou seja, a prática da errância, pode
esse processo é o da apropriação popular e parti-
ser um instrumento da experiência urbana,
cipativa do espaço público, o que não diz respeito
uma ferramenta subjetiva e singular, ou
a requalificação material do espaço físico em si,
seja, o contrário de um método ou de um
mas ao incentivo a novas formas de apropria-
diagnóstico tradicional. A errância urbana
ção: conflitos, trocas e encontros, alternativas
é uma apologia da experiência da cidade,
que levariam à experiência corporal e sensorial
que pode ser praticada por qualquer um,
da cidade. Por essa razão, este trabalho buscou
mas que o errante pratica de forma volun-
um olhar atento às relações humanas, às parti-
tária. O errante é então aquele que busca
cularidades e significâncias de Cruz das Almas,
o estado de espírito (ou melhor, de corpo)
às narrativas e histórias de seus moradores, em
errante, que experimenta a cidade através
busca da cidade não alcançada pelas ferramentas
das errâncias, que se preocupa mais com
do planejamento urbano tradicional, a cidade que
as práticas, ações e percursos, do que com
não se encontra nos mapas e nas estatísticas,
as representações, planificações ou proje-
mas no olhar atento, no ouvido aguçado, no
ções. O errante não vê a cidade somente de
corpo presente.
cima, em uma representação do tipo mapa,
mas a experimenta de dentro, sem neces-
sariamente produzir uma representação
qualquer desta experiência além, é claro,
EIXO TEMÁTICO 2 das suas corpografias que já estão incor-
poradas, inscritas em seu próprio corpo.
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS (JACQUES, 2012)
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
As errâncias urbanas foram realizadas em pra-
ticamente todo o limite oficial do bairro de Cruz
das Almas, em diferentes dias e horários. Nesse
processo de imersão foram utilizados um bloco
de anotações e uma câmera fotográfica para re-
gistro das impressões. Porém, por mais sensíveis
que sejam as lentes e por mais evidentes que
sejam as palavras, elas não traduzem as marcas
deixadas no corpo. Com isso, afirma-se que as
experiências vividas não foram completamente
representadas, algumas delas ficarão guardadas
junto das coisas que são mais fáceis de serem
sentidas que expressadas. Entretanto, na ten-
tativa de materializar essas sensações e de fa-
zê-las serem sentidas, o trabalho apresenta uma
narrativa de cidade, ao entendê-la como “outras
formas de se compartilhar experiências ao abrir
outras possibilidades narrativas e, em particular,
de narrativas da experiência urbana nas grandes
cidades”. (JACQUES, 2012b, p. 197)

Assim, a narrativa urbana surge como um meio


de transformar a experiência individual deixada
no corpo em experiência coletiva, compartilhada.
Trata-se da construção de um caminho a partir
do que Walter Benjamim (1985) conceitua como
Erlebnis, a vivência individual, momentânea e
efêmera, em busca da Erfahrung, a experiência
enraizada, acumulada, coletiva.

Percepções a partir da experiência individual

As primeiras errâncias constituiram-se em três


experiências individuais pelo bairro que poste-
riormente foram denomidadas de ritmo, becos e
morros. Esses percursos revelaram três formas
distintas de viver dentro do bairro, influenciadas
principalmente pela geografia e pelo desenho
urbano. O bairro de Cruz das Almas é formado por
uma grande faixa plana paralela ao mar e por trás
dessa faixa existem alguns morros, por entre os
quais abrem-se grotas. A região plana é composta
pelo Conjunto Jardim Beira Mar, que ainda guarda
16º SHCU características da vida em comunidade e das re-
30 anos . Atualização Crítica
lações de vizinhança, a região parece viver num
2108 ritmo dissonante ao da cidade contemporânea.
Ainda na parte plana litorânea, há algumas ruas ção da complexidade de Cruz das Almas, que
atravessadas por becos sem saídas. Essa parte apresenta várias versões de cidade dentro de
do bairro é a mais atingida pela especulação imo- um mesmo bairro, convivendo com problemas
biliária, há muitos terrenos ociosos e anúncios de distintos e com cotidianos divergentes (Figura
construtoras imobiliárias. A região dos morros 3). A partir dessa compreensão, ficou evidente
e grotas é ocupada por construções informais e que não seria possível fazer uma única leitura de
não é provida de infraestrutura urbana formal. Cruz das Almas, o bairro possui várias camadas
espaciais e temporais que apontam para dife-
Essas primeiras errâncias permitiram a percep- rentes caminhos de investigação.

Figura 3: As três versões do bairro de Cruz das Almas percebidas durante as errâncias. Ritmos, à esquerda, becos no
centro e morros à direita. Fonte: Acervo da autora (2017).

A partir das observações provocadas pelas er- Dessa forma, o Conjunto Jardim Beira Mar foi
râncias, percebeu-se que o Conjunto Jardim reconhecido como o lugar das práticas cotidianas
Beira Mar, que corresponde ao local de início da da cidade, da vitalidade e da resistência urbana,
ocupação do bairro, preserva relações não es- por isso decidiu-se olhar para suas brechas em
petaculares com o mesmo, sua história, seus busca da história do bairro e de reflexos de sua
laços de afetividade e seus espaços simbólicos, transformação no cotidiano dos moradores.
representa assim a resistência aos processos
das cidades contemporâneas, a velocidade do
automóvel, a especulação imobiliária, a espeta-
cularização urbana. Seja pela falta de interesse Encontro
dos agentes imobiliários ou pelo próprio senso de
Após a realização e registro narrativo das experi-
comunidade dos moradores, o Conjunto Jardim
ências erráticas individuais e do reconhecimento
Beira Mar preserva-se em ritmo dissonante com o
do Conjunto Jardim Beira Mar, sentiu-se a ne-
da metrópole, é o lugar praticado (CERTEAU, 1994).
cessidade de realizar um encontro com alguns
O conjunto mostra-se como um labirinto, for- moradores1 do bairro em busca de outros olhares
mado por caminhos entrelaçados, que vez ou e vivências desse lugar. Essa etapa consistiu em
outra abrem-se para um grande pátio ou praça. uma conversa coletiva e informal com três mo-
Suas ruas recebem os nomes dos municipios radores do Conjunto e uma moradora de outra
Alagoanos, Rua Santana do Ipanema, Rua Muri- região do bairro, com a intenção de compreender
ci, Avenida Pilar, Rua Arapiraca, etc. É um lugar melhor seus processos históricos, e consequen-
festivo, mesas e cadeiras nas portas das casas, temente, os processos de formação de Cruz das
músicas tocando, vizinhos conversavando entre Almas (Figura 4). O grupo participante do encontro
uma varanda e outra, crianças jogando bola na rua era formado por moradores de diferentes faixas
etárias, que vivenciaram diversos períodos do
ou na quadra. Entre casas reformadas, com mais
bairro. Todos eles moram em Cruz das Almas há
de um pavimento e revestimentos mais sofistica-
dos, algumas que parecem se manter originais,
muitos estabelecimentos comerciais, escolas, 1. Os nomes dos moradores entrevistados são: Aldo Omena,
igrejas, mercadinhos, salões de beleza, etc. Sebastiana Gomes, Walnyce Miranda e Raquel.
EIXO TEMÁTICO 2 pelo menos trinta anos e uma das entrevistadas foi
uma das primeiras moradoras a habitar o Conjunto
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS na década de 1960. A conversa foi registrada em
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES aúdio e vídeo, e além disso, alguns dos partici-
pantes levaram fotografias, artigos de jornais e
atas das primeiras reuniões da Associação dos
Moradores, que contribuiram com a investigação.
Alguns dos textos compartilhados descrevem as
condições de vida dos primeiros moradores do
Conjunto, características das casas e dos espaços
públicos, além das pautas que eram discutidas
nas reuniões.

Figura 4: Encontro com os moradores do Conjunto Jardim


Beira Mar. Da esquerda para a direita: Aldo, Sebastiana,
Walnyce e Raquel. Fonte: Acervo da autora (2017).

Esse encontro foi um exercício de escuta, foram


contadas muitas histórias pessoais e coletivas,
sobre as lutas e conquistas, sobre como era a
vida cotidiana no período de surgimento do Con-
junto Jardim Beira Mar, sobre como era a relação
dos moradores com a cidade e com a paisagem
natural e e sobre como essa relação foi se trans-
formando ao longo do tempo. A história do lugar
era a história das pessoas.

Durante a conversa, ficou notável a intimidade


que esses três moradores têm com o lugar e como
acompanham e são críticos com sua transforma-
ção. Essa experiência permitiu a compreensão
de que pensar, intervir e transformar a cidade
é, antes de tudo, percebê-la através do olhar de
quem a constrói e vive diariamente, de quem a
habita cotidianamente.

O resultado desse encontro com alguns mora-


16º SHCU dores foi sintetizado por meio da criação de um
30 anos . Atualização Crítica
mapa de diálogos, como os trechos abaixo apre-
2110 sentados, agrupados de acordo com os temas
que foram abordados por eles. Em muitos mo- “Agora é um bairro caro por conta desses
mentos observou-se um sentimento nostálgico empreendimentos. Além do custo de vida,
com relação ao passado, lembranças de como o o imposto tá muito caro pra gente.” (Raquel,
bairro era quandos eles chegaram, no mapa esse 2017)
agrupamento foi denominado antes.
Apesar das críticas aos processos de transfor-
“As casas eram cercadas, a gente cerca- mação do bairro, os moradores entrevistados
va com flores. Era lindo, era simples, mas também falaram sobre os sonhos que eles têm
aconchegante, eu tenho saudade (...) as para o bairro e mostraram que há uma articulação
casas eram pequenas, às vezes cercavam comunitária em busca de acesso à infraestrutura
com madeira ou arame, não tinha muro.” e qualidade de vida:
(Raquel, 2017)
“Esse saneamento é o verdadeiro sonho
“A água daquele riacho aqui era tão limpinha,
dourado. Aliás, para mim essa foi a primeira
chega era gostosa. Esse riacho eu tenho
bandeira de luta que eu levantei (...) A minha
saudade, ele era limpo (...) E eu peguei tanta
vida inteira foi batalhar, fiz um abaixo as-
água do Riacho do Ferrugem para trazer
sinado com 800 assinaturas.” (Sebastiana,
aqui para casa, usar na limpeza.” (Sebas-
2017)
tiana, 2017)
“O que tinha aqui era a Igreja São Francisco, “O Edson, ele e a família dele, eram umas das
porque na verdade Cruz das Almas nasceu pessoas aqui, a mãe dele Maria, professora,
lá. Ali tinha uma casinha, outra casinha ali gostava de folclore. Era uma pessoa bem
perto do (supermercado) GBarbosa. Era animada. E foi o Edson que fez o projeto
assim, umas casinhas distantes uma das para fazerem a Praça Ganga Zumba.” (Ra-
outras.” (Aldo, 2017) quel, 2017)

Os moradores também falaram sobre o sentimen- Depois desse exercício de escuta que foi o en-
to de pertencimento, sobre o que os fazem amar contro com os moradores, sentiu-se a necessi-
o bairro e sentirem-se parte dele. Esses diálogos dade de dar corpo àquelas histórias contadas,
foram denominados de raízes. a necessidade de voltar a reconhecer os luga-
res, o cotidiano e as pessoas do bairro de Cruz
“Quando fala assim do bairro da gente, a das Almas. Assim, decidiu-se realizar uma nova
gente chega muda, é nosso sangue né, nasci errância, dessa vez, em forma de um passeio
e me criei aqui. E não é só morar no bairro, acompanhado dos moradores entrevistados,
é viver o bairro. Eu tenho vivido cada mo-
para que o bairro fosse apresentado da maneira
mento.” (Aldo, 2017)
deles, de acordo com os caminhos que fazem,
O outro agrupamento de diálogos foi denominado com os lugares que frequentam e com o que eles
agora, pois os moradores entrevistados também achassem importante mostrar. O objetivo dessa
falaram muito sobre como se sentem diante das próxima etapa foi ampliar as discussões, inserir
transformações do bairro e como isso tem afe- novas histórias e personagens e, principalmente,
tado suas vidas: construir uma narrativa urbana coletiva, fruto de
uma experiência compartilhada.
“A gente não estava preparado para essa
evolução rápida de empreendimento des-
se porte. Então o que acontece, aumenta
o fluxo de carro, para você passar ali na Por uma narrativa de cidade
praia... A gente tá sendo prejudicado por-
que não tem um semáforo de pedestre ali Como narrar a cidade? Como expressar, por meio
(...) vem o empreendimento, mas não vem a de palavras, diálogos e cenas, o cotidiano urba-
infraestrutura que não foi planejada. A gen- no? Essa etapa do processo se voltou para res-
te sofre, sofre pela falta de planejamento, ponder essas questões por meio da vivências de
entendeu?” (Aldo, 2017) situações urbanas, que servisse tanto como um
EIXO TEMÁTICO 2 método de apreensão da cidade, como também
de registro da história e do cotidiano do bairro
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS de Cruz das Almas, sugerindo uma possibilidade
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES de resistência às transformações que o lugar
vem sofrendo. Para Walter Benjamin, a dificul-
dade moderna está em transformar a Erlebnis
(experiência individual) em Erfahrung (experiên-
cia coletiva), ou seja, em transmiti-la em forma
de narrativa. Dessa forma, este trabalho é um
esforço de construção de uma narrativa de ci-
dade a partir de uma mistura de experiências e
de olhares, o olhar da pesquisadora, o olhar das
lentes fotográficas, o olhar dos autores e dos
conceitos estudados e o olhar dos moradores
do Conjunto Jardim Beira Mar.

A narração, em qualquer forma de narrativa


(textual, fotográfica, audiovisual, etc.), não
somente exprime uma prática, uma ação,
nem se contenta em dizer o movimento, ela
já o faz ao narrar. Uma narrativa seria assim
uma prática do espaço, um tipo de ação,
que poderia ser cartografada, mapeada.
Essas cartografias partem de experiências
físicas, corporais. O próprio corpo pode ser
compreendido como um tipo de cartografia
da experiência urbana. (JACQUES, 2013, P.14)

Depois da etapa de encontro, os moradores entre-


vistados foram convidados a realizar um passeio
em grupo. Devido a questões pessoais, apenas o
morador Aldo Omena pôde acompanhar a autora.
O passeio foi realizado de forma livre e informal
pelas ruas do Conjunto Jardim Beira Mar e re-
gistrado em áudio, fotografia e vídeo. Posterior-
mente, as narrativas foram agrupadas em textos,
mapas e imagens de forma que pudessem levantar
questões e provocar uma reflexão crítica sobre a
cidade contemporânea.

Durante o passeio, foi sugerido que Aldo contasse


sobre sua infância no bairro e sobre as dificulda-
des enfrentadas atualmente. A medida que o Aldo
caminhava, outras pessoas2 apareciam e falavam
sobre outras histórias, apresentavam outros pon-
tos de vistas ou indicavam outros lugares a serem

2. Nessa etapa, além do Aldo Omena, que já havia participado


da etapa anterior, foram entrevistados mais 14 moradores
16º SHCU
do Conjunto Jardim Beira-Mar: Sr. Afonso, Sr. Antônio, Dona
30 anos . Atualização Crítica
Nita, Marileide, Marinaldo, William, Felipe, Cleide, Bruna,
2112 Dona Zefinha, Jorge, Sr. Gilmário e Carlinhos.
visitados. O passeio foi seguindo como um jogo cessos do bairro com muita satisfação. Pessoas
imprevisível de ligar os pontos. Na porta de casa, que viveram épocas diferentes e em condições
no banco da praça ou durante o trabalho mesmo diversas, o que trouxe uma grande riqueza para
foram surgindo personagens dispostos a contar a discussão (Figura 5).
suas vivências e suas opiniões acerca dos pro-

Figura 5: Personagens e cenas experienciadas no bairro de Cruz das Almas Fonte: Acervo da autora (2017).

A experiência narrada prefeitura. O poder público não pensa nisso aqui


como um bairro.” O bairro, segundo ele, é a orla
A seguir serão apresentadas alguns registros marítma e a Avenida Gustavo Paiva, é para onde os
narrativos das experiências vividas e comparti- investimentos vão e tem sido assim desde sempre.
lhadas no bairro de Cruz das Almas, construídos
a partir do caminhar junto, da troca de palavras
e olhares, do observar cada brecha.
Dona Nita

Na varanda de sua residência, Dona Nita, que se


Senhor Afonso considera uma das fundadoras do Conjunto Jar-
dim Beira Mar, contou sobre como se deu o pro-
O primeiro lugar que apresentado por Aldo foi cesso de entrega das casas e como era a vida no
a Praça Tenente Madalena. Haviam 6 senhores período de surgimento do bairro. De acordo com
jogando cartas numa mesinha. Após uma con- ela, as casas foram construídas para os morado-
versa rápida com eles foi possível perceber que res de um bairro que havia sofrido uma enchente.
a infraestrutura urbana que tem chegado para Porém, os moradores recusaram-se a ir morar no
o bairro de Cruz das Almas não chega até eles e Conjunto porque ficava muito longe, então as ca-
existe um sentimento de separação entre o que sas foram sorteadas entre funcionários públicos.
é o bairro e o que é o Conjunto. Afonso, morador Ela conta ainda que não havia transporte público,
do conjunto há 43 anos afirma que “a experiência água encanada nem iluminação pública. As casas
com o bairro é que é um lugar abandonado pela eram todas iguais e muito pequenas, não muito
EIXO TEMÁTICO 2 diferentes das casas dos conjuntos habitacionais
atuais, mas o terreno era amplo e permitiu que
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS ao longo do tempo as pessoas expandissem suas
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES residencias, construissem mais pavimentos e até
abrissem negócios.

Quando vim morar aqui nesse bairro, essa


casa foi doada para os moradores da en-
chente lá do Ouricuri, São Sebastião é hoje,
Ouricuri na época. Então, o bairro do Ouri-
curi teve esse problema. Eu não morava lá
não, eu venho do interior. Meu marido era
ferroviário. E aconteceu que os moradores
de lá da São Sebastião não quiseram vir mo-
rar aqui. Que aqui era muito longe, ninguém
queria, não tinha transporte, tá entendendo,
não tinha energia, as ruas era tudo cheia
de buraco, a cheia passava. Tinha muito
pé de manga, muito pé de coqueiro. Nós
não tinha luz nos postes, cada três, quatro
moradores botava uma luz na porta para
poder clarear, água também não tinha, a
gente ia buscar nos cacimbão ao arredor,
nos sítios, puxando a água. Foi o começo da
minha vida aqui. Quando eles não quiseram
as casas, os funcionários da Prefeitura, da
polícia, da rede ferroviária, os engenhei-
ros, o Governador Suruagy fez uma reunião
com eles e perguntou se eles queria dar aos
funcionários. Aí pegou, cada repartição
recebeu uma parte das casas, aí você vai
dar para quem você quiser, aí foi doado para
gente. Na verdade quem foi sorteado foi um
rapaz de União dos Palmares e a mulher dele
disse que não vinha morar aqui e ele deu
para o meu marido (...) A situação da gente
foi assim, agora hoje nós não temos nada
de melhora, que devia ter já saneamento
básico, uma escola de segundo grau, um
posto de saúde para gente. (Dona NIta, 2017)

Na década de 1960, havia uma tendência a des-


centralização das cidades por meio da construção
de conjuntos habitacionais afastados da área
urbana consolidada, levando a um espraiamento
do tecido urbano, processo que acontece até hoje
nas cidades brasileiras. A população mais pobre
é forçada a morar em áreas periféricas, onde os
terrenos são mais baratos e não há infraestrutura,
16º SHCU contribuindo com a segragação espacial e com
30 anos . Atualização Crítica
a especulação imobiliária. Diante do desordena-
2114 mento da expansão das cidades, esses conjuntos
mais afastados acabam sendo incorporados ao Por isso meu filho disse hoje, mainha ali tem
tecido urbano, nem sempre de maneira inclusiva Jardim Beira Mar e Cruz das Almas, usa os
e acompanhados da infraestrutura necessária. dois. Eu disse, meu filho, pelo amor de Deus,
Jardim Beira Mar é o nosso bairro, é aqui e
Na época da construção do Conjunto Jardim Beira Cruz das Almas ela já vem ali da Mangabeiras
Mar, Cruz das Almas era uma região afastada do até ali depois do (supermercado) Gbarbosa.
eixo de crescimento de Maceió. Porém, a cidade A gente já tem essa consciência de saber
cresceu e hoje os bairros localizados ao norte separar o conjunto e o bairro. Quando fala
convivem com processos de especulação imobili- do bairro a gente sabe começa lá embai-
ária e gentrificação urbana. O bairro encontra-se xo vem até aqui, a gente tem essa noção.
marcado pelos anúncios das construtoras, pelos Agora quando fala conjunto, a gente sabe
arranha-céus, pelos empreendimentos de grande que o nosso conjunto é outra coisa. O nosso
porte, enquanto a população que construiu esse conjunto tá carente, o bairro como um todo
lugar é excluída e muitas vezes forçada a sair. tem se desenvolvido. (Dona Marileide, 2017)

Essas transformações que a gente vê aqui, O morador do conjunto não se enxerga nesse pro-
foi que esse bairro cresceu o arredor né? E cesso de expansão de Cruz das Almas porque
dentro do nosso bairro não cresceu nada, não diz respeito à sua história, às suas vivências,
continua quase a mesma coisa. Aqui é um às suas práticas cotidianas. A transformação e
bairro esquecido, tudo que a gente tem aqui o crescimento não é o problema em si, eles fa-
é através dos moradores, que faz aquela zem parte do curso natural dos centros urbanos,
reunião e cada um faz a sua parte. Porque porém, esses processos precisam respeitar as
aqui, aquela igreja católica foi fundada aqui características, os ritmos, os percursos de cada
e a gente não teve ajuda de ninguém, foi a lugar, caso contrário, os moradores perdem suas
comunidade que construiu. Os serventes referências de cidade. Nesse cenário, a comu-
era eu e as minhas amigas, as mulheres, nidade que resiste a esses processos tende a
nós era servente, nós era cozinheira para se apegar ao que lhe é familiar, e assim, não se
cozinhar para os pedreiros para eles faze- reconhecem no ambiente que estão inseridas e
rem e nós saía juntando pedra, tijolo pelas ficam cada vez mais à margem da cidade con-
casas para levar para construir a igreja ca- temporânea.
tólica. Isso foi a coisa que aconteceu aqui
do bairro. (Dona Nita, 2017)

Na fala de Dona Marinita também fica evidente Marinaldo


que há uma noção de separação entre a Cruz das
Sentado em um banco da Praça da Igreja Sagra-
Almas que está se transformando e a Cruz das
do Coração de Jesus, Marinaldo, presidente da
Almas que conserva as características e formas
Associação dos Moradores, conta sobre as lutas
de vida do Conjunto.
e conquistas dos moradores do Conjunto Jar-
dim Beira-Mar, sobre as dificuldades em gerir a
Associação e sobre sua visão diante das trans-
Dona Marileide formações do bairro.

Dona Marileide estava varrendo a calçada e acei- Quando o progresso chega ele vem monta-
tou contar um pouco sobre sua vivência no bairro. do de benefícios e malefícios, né? A época
Ela vive no Conjunto há 48 anos, veio morar ainda da gente aqui era uma época boa, a gente
criança porque seu pai, que era policial civil na brincava por aqui, não existia esses pré-
época, recebeu a casa. Na visão de Dona Marileide, dios aí. Eu tinha uma bicicletinha bmx e ali
Cruz das Almas é um bairro e o Conjunto Jardim tinha umas rampas, a gente pegava e ia
Beira-Mar é outro. para ali pular, era muito bom. Mas assim,
o progresso teve que chegar, né? Para po-
Cruz das Almas para mim é assim, aqui é o der as coisas fluírem mais, se desenvol-
bairro Jardim Beira Mar. Já tá lá né, Aldo? ver. A preocupação do nosso bairro é não
EIXO TEMÁTICO 2 ter saneamento ainda, é algo que a gente
vem brigando (...) na verdade é um descaso
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS muito grande, o bairro cresceu muito, hoje
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES tem muito empreendimento grande. Temos
uma faculdade dentro do bairro, temos um
shopping já dentro do bairro, somos cerca-
dos de hotéis. E a gente não sabe por que
a infraestrutura não funciona. A gente fica
nessa luta, é uma luta, é uma luta, é uma
luta, mas assim a gente não pode desistir
né? (...) o próprio desenvolvimento ele vem
engolindo tudo. Acho que daqui mais uns 20
anos não vai existir mais esse conjunto. Vai
existir sim, mas ele vai crescer para cima.
A tendência é essa, porque não tem como,
eles não vão conseguir, o assédio vai ser
demais, já tá sendo né. (Marinaldo, 2017)

Aos poucos, os lotes ao longo da orla de Cruz das


Almas anunciam a chegada de novos empreendi-
mentos. Hotéis, restaurantes, edifícios multifa-
miliares, ao mesmo tempo que há uma melhoria
na infraestrutura urbana, como a implantação da
ciclovia na orla, a ampliação das linhas de ônibus.
O conflito existente é que os argumentos utiliza-
dos para investir no bairro mencionam o potencial
turístico da área e as vantagens que serão ofere-
cidas para o setor hoteleiro, evidenciando que os
processos de “revitalização urbana” satisfazem
mais os interesses privados que as necessida-
des e qualidade de vida da população local. Os
moradores têm a consciência de que quando
o saneamento básico finalmente chegar, eles
não terão condições de pagar.

O custo de vida aqui vai aumentar muito, já


aumentou, as coisas aqui são muito caras
porque qualquer empreendimento que vem
para aqui a tendência é a situação financeira
aumentar. Por exemplo, todos eles clamam
por esse saneamento, mas esse sanea-
mento é uma coisa cara, é 100%. 100% de
esgoto, 100% de água. Se você gastar 100
de água, você paga 100 de esgoto. E então,
vai afetar muitas pessoas. Isso é uma coi-
sa que vai desalojar muita gente aqui, eles
clamam por isso, mas vai ser muita gente
afetada, muita gente não vai aguentar não.
(Marinaldo, 2017)
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

2116
Aldo exemplo, alguns representantes do setor hoteleiro
já tentaram algumas vezes mudar o nome de Cruz
das Almas, pois, segundo eles, esse nome soa
Durante a caminhada, Aldo contou sobre como como algo macabro e afasta os hóspedes. Essa
eram as casas originais do Conjunto e da neces- produção contemporânea da cidade, voltada para
sidade que foi surgindo ao longo do tempo de a mercantilização dos espaços descarta aspectos
reformar as casas e construir muros, colocar enraizados na cultura e na memória da popula-
cercas e grades. Muros que afastam o morador do ção. O nome do lugar também conta sua história,
bairro, fortalecem a sensação de estranhamento, no caso de Cruz das Almas, a origem do nome é
modificam as relações sociais. incerta. De acordo com o folclorista alagoano
José Maria Tenório Rocha, a nomenclatura faz
Antigamente aqui era um cercadinho, não
referência à existência de uma curva fechada,
tinha muro. Aí as pessoas colocavam aquele
que ocasionava muitos acidentes. A população
portãozinho, aí depois elas começaram a
criou o costume de colocar cruzes nos locais onde
fazer os muros baixos, com a falta de segu-
eles ocorriam, dando origem ao nome do bairro.
rança, as pessoas começaram a aumentar
Independente da veracidade sobre o surgimento,
o muro, quando aumentaram o muro, come-
o mistério em torno do nome desencadeou lendas
çaram a se isolar, quando o muro era baixo
e histórias que fazem parte do imaginário coletivo
as pessoas se comunicavam um com outro,
dos moradores.
conversa na porta, brincava. Mas só que a
onda de violência aumentando, as pessoas Aldo também falou sobre a reforma da Praça
foram aumentando seus muros. (Aldo, 2017) Ganga Zumba, realizada durante um processo
de revitalização do bairro. Porém, sem a devida
O habitante busca por novas formas de se proteger consulta a população, o traçado foi modificado e
e torna-se indiferente ao que acontece ao seu re- o espaço dividido em duas partes com a avenida
dor, incluindo o contato com outras pessoas e com passando no meio. Além disso, a estátua de Gan-
o espaço público. Esse medo leva a uma busca ga Zumba (Figura 6) ficou desaparecida durante
por tudo o que traz segurança e transformou-se 4 anos e foi recolocada em um lugar diferente,
em um objeto de venda, o que Bauman (2009) perdendo seu caráter simbólico de apontar para
chama de “capital do medo”, fator que interfere nas o continente africano.
condições da vida urbana e em como a sociedade
apreende o espaço urbano.

Assim como o dinheiro líquido disponível


para investimentos de todo tipo, o “capital
do medo” pode ser transformado em qual-
quer tipo de lucro político ou comercial. É
isso mesmo. A segurança pessoal tornou-se
muito importante, talvez o argumento de
venda mais necessário para qualquer estra-
tégia de marketing (...) Tudo isso não pode
deixar de incidir sobre as condições da vida
urbana, sobre o modo como percebemos a
existência na cidade e sobre as esperanças
e apreensões que tendemos a associar ao
ambiente urbano, a ponto de distorcê-lo.
(BAUMAN, 2009, p. 55-56)

A sensação de medo e estranhamento do mo-


rador com o lugar, ocasionada pela chegada de
novos moradores, novas formas urbanas, novos
referências, alheias à história e à memória do
bairro desencadeiam outros processos, como por
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

Figura 5: Estátua de Ganga Zumba em 2003. Fonte: Acervo


de Aldo Omena, (2017).

por outras formas de olhar a cidade

Inclinar-se a olhar e questionar a cidade requer


esforço. Demanda um deslocamento das nos-
sas próprias vivências para provocar outras. As
experiências e narrativas apresentadas revelam
que a aproximação subjetiva do território é impor-
tante para a formação de um olhar mais sensível
sobre a cidade, cuja validade reside justamente
em ser livre de justificativa propositiva. Por outro
lado, para o arquiteto, essas experiências podem
ser determinantes nos atos de projetação, pois,
possibilitam alternativas de desvencilharem-se
de modelos normalmente desconectados com
os movimentos do lugar, podendo acarretar em
prejuízos nas relações comunitárias. Ressaltam
a importância da escala do bairro e da experiên-
cia corporal na cidade, como forma de contibuir
16º SHCU para a compressão de fenômenos de produção
30 anos . Atualização Crítica
e transformação urbana. Construiu-se um ca-
2118 minho de apreensão da cidade que leva-nos à
um questionamento sensível acerca de práticas REFERÊNCIAS
e discursos que contribuem para a consolida-
ção dos processos contemporâneos urbanos. ANSELMO, Carolina de Castro. Experiências
Quais lugares são frenquentados, consumidos e urbanas. Ferramentaria. Redobra.Número 10.
valorizados? Que papel os lugares homogêneos Salvador.v.10, p. 163-169. 2012
e espetacularizdos exercem na vida cotidiana
das cidades? E que relevância é dada à troca, à BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na cida-
experiência, ao andar pela cidade? de. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.

“A apreensão e compreensão dos espaços feitas CAVALANTE, J. O. Cruz das Almas. In: Conhe-
a partir da experiência corporal é importante para cendo Alagoas. Maceió. OC.COM, 2009. p. 125
o processo de subjetivação e significação dos -126.
territórios e torna-se ponto crucial para chegar
a um urbanismo sensível” (ANSELMO,2014, p.165). CARLOS, Ana Fani Alessandri. O Espaço Urba-
Assim, esse trabalho foi um exercício de métodos no: Novos escritos sobre a cidade. São Paulo:
de leitura do espaço urbano que abriram espaço FFLCH, 2007.
para refletir sobre processos urbanos que afetam
CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: 1.
o bairro de Cruz das Almas e como eles interferem
Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1998.
nas experiências dos moradores que vivem nas
brechas, que resistem à cidade contemporânea, JACQUES, Paola Bereinstein. “Errâncias Urba-
resguardando a importância da preservação da nas: A Arte de Andar Pela Cidade”. Arqtexto.
memória e das referências de uma comunidade. Rio Grande do Sul: UFRGS, n. 7., 2005, p. 16-25.

____________. Experiência errática. Redobra.


Salvador, n. 9. 2012b, p. 192-204.

____________. Corpografias urbanas. Arqui-


textos, São Paulo, ano 08, n. 093.07, Vitruvius,
fev. 2008
EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Este artigo apresenta a relação do território da
Pequena África, do Patrimônio Material e Ima-
terial, da história da região e do samba como
vídeo-pôster formas de resistência e táticas de subverter à
subjetividade dominante de produção social e
urbana, utilizando a representação da cidade
PEQUENA ÁFRICA E O SAMBA: como forma de apresentar a riqueza da região
e da cultura de matriz africana. Apresenta-se
REPRESENTAÇÃO DA CIDADE, um produto desenvolvido em uma disciplina
do mestrado que tem como objetivo explorar o
PATRIMÔNIO E RESISTÊNCIA samba como forma de resistência, estabelecen-
do um diálogo com fotografias afim de fomentar
a propagação da história da Pequena África e a
PEQUENA ÁFRICA AND SAMBA: CITY REPRESENTATION, Educação Patrimonial através de um porta-co-
HERITAGE AND RESISTENCE po que contém um roteiro turístico com as prin-
cipais edificações e lugares relacionados com a
PEQUENA ÁFRICA Y EL SAMBA: REPRESENTACÍON DE história de Africanos e Afrodescendentes no Rio
LA CIUDADE, PATRIMONIO Y RESISTENCIA de Janeiro, além de conter também músicas de
sambas, que trabalhando em conjunto: música,
fotografia e história, formam o material desse
MAIA, Kélvia Oliveira Alcantra
artigo.
Mestranda no Programa de Pós-graduação em
Urbanismo – PROURB/UFRJ
kelviamaia@gmail.com
CIDADE URBANISMO RESISTÊNCIAS SAMBA
PEQUENA ÁFRICA

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

2120
ABSTRACT RESUMEN

This paper presents the relationship between the Este artículo presenta la relación entre el territó-
territory of Pequena África, material an intangi- rio de la Pequena África, el patrimônio material e
gle heritage, the local history and samba forms of inmaterial, la historia de la región y el samba como
resistance and tatics of subverting the dominant formas de resistência y tácticas para subvertir la
subjectivity of social and urban production, using subjetividade dominante de la producción social y
the city’s representation as a way of presenting urbana, utilizando la representación de la ciudad
the wealth of area and the African matrix culture. como forma de presentacíon la riqueza de la regi-
A product developed in a master´s course is pre- ón y la cultura matricial africana. Se presenta um
sented, which aims to explore samba as a form of produto desarrollado em um curso de maestria,
resistance, establishing a dialogue with photo- que tiene como objetivo explorar el samba como
graphs in order to promote spread of the history forma de resistência estabelecendo um diálogo
of Pequena África and heritage education throu- com fotografias com el fin de promover la pro-
gh a cup holder containing a tourist itinerary with pagación de la história de la Pequena África y la
the main buildings and places related to history educación Patrimonial a través de um portava-
of Africans and afrodescendants in Rio de Janei- sos que contiene um intinerario turístico com los
ro, in addition to also containing sambas musics, principales edifícios y lugares relacionados com
which working together: music, photography and la historia de los africanos y afrodescendentes
history, form the subject of this article. en Rio de Janeiro, además de contener también
sambas que trabajan en conjunto: música, foto-
grafia y história, forman el material de este artí-
CITY URBANISM RESISTANCE SAMBA culo.
PEQUENA ÁFRICA

CIUDAD URBANISMO RESISTÊNCIA SAMBA


PEQUENA ÁFRICA
EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
Este artigo foi elaborado a partir do trabalho final
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
apresentado na disciplina Leituras Gráficas da
Cidade, ministrada pelo Professor Dr. Rodrigo
vídeo-pôster Cury Paraizo, durante o mestrado acadêmico em
Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Ja-
neiro (PROURB-UFRJ). O objetivo da disciplina era

PEQUENA ÁFRICA E O SAMBA: o de fomentar o debate acerca da representação


das cidades ao longo do tempo e como a imagem
REPRESENTAÇÃO DA CIDADE, pode ser um meio de compreensão das cidades
comtemporâneas. A partir do projeto de pesquisa
PATRIMÔNIO E RESISTÊNCIA apresentado na seleção de mestrado acadêmico
2019, que tem como objeto de estudo uma cidade
situada no estado do Ceará e devido à distância
PEQUENA ÁFRICA AND SAMBA: CITY REPRESENTATION, do objeto de pesquisa, procurou-se verificar na
HERITAGE AND RESISTENCE cidade do Rio de Janeiro espaços que pudessem
servir como referência para o estudo.
PEQUENA ÁFRICA Y EL SAMBA: REPRESENTACÍON DE
LA CIUDADE, PATRIMONIO Y RESISTENCIA O projeto de pesquisa tem como tema investigar
a relevância de Africanos e Afrodescendentes na
produção do espaço considerando que as mani-
festações sócio-culturais dessas populações po-
dem ser capazes de configurar e definir territórios
com características particulares. Considerando
que o Rio de Janeiro foi um dos principais portos
de chegada de Africanos escravizados duran-
te os períodos Colonial e Imperial, foi possível
identificar na cidade lugares para desenvolver
o trabalho da disciplina.As primeiras pesquisas
levaram diretamente à região conhecida como
‘’Pequena África’’ 1, localizada na região portuá-
ria do Rio de Janeiro, que segundo o autor Lira
Neto compreende o Cais do Porto e os bairros
da Saúde, Gamboa, Santo Cristo, Cidade Nova e
Estácio (ver figura 1).

Durante todo o período em que o tráfico através

1. Lira Neto é escritor e dedicou parte da sua produção a


escrever biografias, o autor escreveu um livro sobre as
origens do samba e conta como a região da Pequena África
foi o berço do samba na cidade do Rio de Janeiro. Utilizamos
a divisão atual de bairros da cidade do Rio de Janeiro para
facilitar a representação no mapa (ver figura 1), mesmo
entendendo que o limite territorial dos bairros não neces-
sariamente corresponde ao limite da Pequena África, não
sendo totalmente exata e correspondente a sobreposição
de um sobre o outro, mas para facilitar a compreensão foi
16º SHCU
utilizada a divisão político-espacial para representar a re-
30 anos . Atualização Crítica
gião. Ver: NETO, Lira. Uma história do Samba: Volume I (As
2122 Origens). São Paulo: Companhia das Letras, 1a edição, 2017.
do atlântico esteve ativo, só no Cais do Valongo2 cultural da região. A denominação Pequena África
(1774-1843) entraram cerca de 1 milhão de Africa- surgiu com Heitor dos Prazeres3, assim como ele,
nos escravizados no Rio de Janeiro. Após a proi- vários artistas ligados à música e ao nascimento
bição do tráfico internacional, e com a Abolição do Samba como gênero musical estavam relacio-
da Escravidão em 1888, esses bairros receberam nados com essa região, por exemplo: Tia Ciata,
migrações, já na virada do século 19 para o séc. João da Baiana, Pixinguinha, Donga, Clementina
20, de afrodescendentes vindos da Bahia e Vale de Jesus, entre outros.
do Paraíba (SP), que contribuíram para a vida

Figura 1: Mapa do Município do Rio de Janeiro, identificado os bairros compreendidos como Pequena África: 1.Saúde;
2.Gamboa; 3.Santo Cristo; 4.Cidade Nova; e 5.Estácio. Os bairros estão delimitados de acordo com a divisão atual dos
bairros do Rio de Janeiro. Mapas alterados pela autora. Fonte: Diário do Mapa Histórico da Esri, site Data Rio. <http://pcrj.
maps.arcgis.com/apps/MapJournal/index.html?appid=7fe1b0d463e34b3b9ca2fafd50c3df76>. Acesso em 06/06/2020.

2. O cais do Valongo foi construído em 1811, mas desde


1774 era o porto exclusivo para desembarque de africa-
nos escravizados na cidade do Rio de Janeiro. Segundo
a UNESCO, 900 mil pessoas entraram na cidade do Rio de
Janeiro através do Valongo a fim de abastecer o tráfico
colonial de pessoas e o mercado com a mão de obra para
as mais variadas funções, desde agricultura à serviços
domésticos. Reformado em 1843 para receber a Imperatriz
Tereza Cristina, o cais foi aterrado e ao longo do tempo ficou
fora do conhecimento da maioria das pessoas. Em 2017 foi
eleito Patrimônio Mundial da Unesco, após o trabalho de
prospecção realizado por uma equipe de Arqueólogos, o 3. Heitor dos Prazeres foi morador do bairro Cidade Nova, era
engajamento da Comunidade Negra e da candidatura do polidor de móveis e posteriormente viria a ser compositor,
cais para receber o reconhecimento da importância do cantor e pintor. É a ele dada a autoria de ter batizado a região
bem como parte das histórias da cidade e do Brasil, e do da zona portuária e os bairros adjacentes, marcadamente
processo violento de tráfico de africanos para as colônias com presença de afrodescentes, como “Pequena África”.
americanas que merece não ser esquecido e contado para Ver: MOURA, Ribeiro. Tia Ciata e a Pequena África no Rio de
as próximas gerações. Ver site da UNESCO, disponível em: Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura,
https://whc.unesco.org/en/list/1548/. Acesso em: 17 de Dep. Geral de Doc. E Inf. Cultural, Divisão de Editoração,
setembro de 2020. Coleção Biblioteca Carioca, Vol. 32, 2a edição, 1995.
EIXO TEMÁTICO 2 Então, para pensar a produção do espaço, a cria-
ção de territórios como forma de resistência,
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS relacionou-se o território, o patrimônio e música,
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES em uma tentativa de investigar a importância
que Africanos e Afrodescendentes tiveram na
construção de um território com identidade mar-
cadamente afrodescendente no Rio de Janeiro,
seja como cidade onde nasceu o samba e onde
se faz desse gênero musical um espetáculo car-
navalesco capaz de mobilizar a cidade de várias
formas em torno da cultura de herança Africana,
seja no sincretismo religioso cantado, seja nos
barracões das escolas de samba ou nos espaços
das rodas de samba espalhadas por toda a cidade.

O artigo apresenta o resultado do trabalho fi-


nal da disciplina, a pesquisa levantada sobre a
Pequena África e a íntima relação com o nasci-
mento do gênero musical “Samba” com o foco na
representação da cidade através de fotografias e
música. Foi desenvolvido um porta-copo, o qual
tem o objetivo de difundir o Patrimônio Material
e Imaterial da Pequena África. O recorte espacial
escolhido tem como limite o bairro da Saúde, que
na figura 1 está marcado com a numeração “1”.

Este artigo relaciona as resistências e as táticas


de africanos e Afrodescentes através do samba
como base para a cultura material e imaterial, arti-
culando com o estudo do urbanismo, a fim de com-
por o material que objetiva difundir o Patrimônio e
a história da Pequena África. O referencial teórico
em que foi embasado o argumento para discutir o
texto foram: GUATTARI e ROLNIK (1996), CERTEAU
(1998) e ROSSI (2001). Sendo assim, primeiramente
será apresentada a discussão sobre resistên-
cias, representação, subjetividade e tática, para
depois ilustrar o material desenvolvido durante
a disciplina, e por último será feita a conclusão
sobre do produto entregue e seu conteúdo, além
da discussão acerca das formas de resistência.

as formas de singularização, tática


e resistência de afrodescendentes

Entende-se a questão urbana e a produção do


espaço de cidades brasileiras não desassociadas
da discussão sobre o Colonialismo. Compreender
16º SHCU que a estrutura colonial ainda tem reflexos na
30 anos . Atualização Crítica
sociedade contemporânea, e consequentemente
2124 na cidade é o ponto de partida deste artigo. Falar
de atores pouco representados na história das do urbanismo. Uma das formas de controle so-
cidades, neste caso, africanos e afrodescente e cial se dá exatamente pela subjetividade, essa
a contribuição destes para a construção espacial subjetividade que abordamos aqui é ancorada
do Brasil são assuntos urgentes e necessários, em uma ideologia racista que coloca a produção
principlamente em um cenário político e social de Africanos e Afrodescendentes como algo sem
em que a crítica e as discussões acerca de ra- valor, vinculada à ausência de saberes e técnicas,
cismo estão em evidência. Também é necessário intimamente correlata à pobreza e em tom pejo-
abordar o assunto porque ainda existe resistência rativo. Guattari e Rolnik colocam a ideologia como
em falar sobre a escravidão e seus reflexos na produção de subjetividade (1996, p.25), assim, “a
sociedade atual; algumas questões urbanas não representação teórica e ideológica é inseparável
são entendidas como originários de conflitos ra- das de uma práxis social” (1996, 26-27).
ciais, portanto o rebatimento do racismo na cidade
muitas vezes não é visto como abordagem a ser Se pensarmos o tráfico de pessoas através do
estudada na arquitetura e urbanismo. Atlântico como um dos pontos que favoreceram
a efetivação do sistema capitalista moderno, e
Sendo assim, traz-se a teoria de Aldo Rossi que modelador de todo um pensamento de domina-
entende a cidade construção coletiva ao longo do ção baseado em uma hierarquia racial, em que o
tempo, Arquitetura não no sentido de construção “Branco Europeu” é colocado como ser superior
isolada, mas como componente da cidade e como frente a outros povos Africanos e Ameríndios, que
consequência de diversas sociedades que vive- transformou ideologicamente e concretamente,
ram e consolidaram a cidade. A escolha do autor no caso estudado, Africanos em mercadorias,
se dá devido a arquitetura ser colocada como poderemos falar de uma subjetivação que:
algo que não pode ser dissociada da sociedade,
da vida coletiva, da cultura, da ideologia e etc... {...} tudo o que nos chega pela linguagem,
sendo “inseparável da formação da civilização e pela família e pelos equipamentos que nos
é um fato permanente, universal e necessário.” rodeiam – não apenas é uma questão de
(ROSSI, 2001, p.01). ideias, não é apenas uma transmissão de
significados por meio de enunciados sig-
Sendo a cidade consequência de uma coletivi-
nificantes. Tampouco se reduz a modelos
dade e de estruturas sociais, econômicas, existe
de identidade, ou a identificações com pó-
uma dominância de poder nas decisões sobre o
los maternos, paternos, etc. Trata-se de
que deve ser representado ou não, do que deve
sistemas de conexão direta entre grandes
permanecer ou não, do que deve atravessar o
máquinas produtivas, as grandes máquinas
tempo como estrutura arquitetônica e parte de
de controle social e as instâncias psíquicas
um discurso que se deseja afirmar como dominan-
que definem a maneira de perceber o mun-
te, dessa forma, o autor afirma que a história da
do. (GUATTARI E ROLNIK, 1996, 27)
arquitetura é uma história da classe dominante.
Essa grande máquina de controle social, elabora
Afirmo aqui que a história da arquitetura
teorias e “ciências” para provar a inferioridade
e dos fatos urbanos realizados é sempre a
história da arquitetura das classes domi- de Africanos frente ao Europeu, justificando a
nantes. Seria necessário ver de dentro de violência, abusos cometidos sobre vários povos,
que limites e com que sucesso as épocas de inclusive a escravização de pessoas e a apropria-
revolução contrapõem seu modo concreto ção delas como mercadoria e força de trabalho. A
de organizar a cidade.” (ROSSI, 2001, p.5) supressão da língua original, da sociabilidade, da
cultura, da família, da terra original, da condição
Partindo de que existe uma relação de poder na de ser humano fazem parte do que Guattari E
construção e na decisão do que deve ser repre- Rolnik vão chamar de “produção de subjetividade”
sentativo ou não na cultura arquitetônica e na porque ela “não consiste unicamente numa pro-
construção da cidade, já que aqui se entende dução de poder para controlar as relações so-
que as edificações não são isoladas e sim parte ciais e as relações de produção. A produção de
da cidade, procuramos abordar as resistências subjetividade constitui matéria prima de toda e
de Africanos e de Afrodescendentes no campo qualquer produção.” (1996, 27-28)
EIXO TEMÁTICO 2 Essa produção de subjetividade regulamenta todo
um modo de funcionar da sociedade, diferente da
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS ideologia que opera na representação, a subjetivi-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES dade é ativa na coletividade e na individualidade, “ela
diz respeito aos comportamentos, à sensibilidade, à
percepção, à memória, às relações sociais, às rela-
ções sexuais, aos fantasmas imaginários, etc.” (1996,
28) está no psicológico das pessoas e do coletivo.

A subjetividade é abordada aqui para que a dis-


cussão sobre representação avance e possamos
chegar nas formas de resistência. Afinal, o artigo
tenta costurar as formas de resistência de Afri-
canos e Afrodescendentes efetivadas através
do samba associadas à criação de um território,
e por isso significante para o estudo das cida-
des. Entende-se que a cultura imaterial não está
desvinculada de um substrato, de um suporte
físico-espacial, por isso a relevância de estudar
os territórios que foram produzidos, modificados,
ocupados por Africanos e Afrodescendentes, por
que, inclusive, muitos desses territórios são con-
sequência dessas ações de resistência, sendo o
samba um tipo de resistência nascido do contexto
dessas pessoas na cidade do Rio de Janeiro.

A cidade é parte da história da civilização que


a construiu, ou das várias sociedades que a
construiu. Além de materialmente ser parte
desse processo de construção das arquiteturas
e estruturas, a cidade também é “síntese de
uma série de valores. Concerne à imaginação
coletiva” (ROSSI, 2001, p.194). Pensando dessa
forma, por mais que a representação dominante
seja a da classe detentora de poder na história
da arquitetura, existem formas de resistência
na cidade que subverte, para utilizar uma palavra
empregada por Guattari e Rolnik, essa dominância
e consegue através da própria agência produzir
uma identidade própria e singular. O processo de
singularização é:

o que vai caracterizar um processo de sin-


gularização é que ele seja auto modelador.
Isto é, que ele capte as elementos da situ-
ação, que construa seus próprios tipos de
referências práticas e teóricas, sem ficar
nessa posição constante de dependência
em relação ao poder global, a nível econô-
16º SHCU mico, a nível do saber, a nível técnico, a nível
30 anos . Atualização Crítica
das segregações, dos tipos de prestigio
2126 que são difundidos. A partir do momento
em que os grupos adquirem essa liberda- mos aqui que a tática é a arte do subalterno, con-
de de viver seus processos, eles passam ceito trabalhado por Gayatri Chakravorty Spivak4
a ter uma capacidade de ter sua própria a partir de textos de Deleuze e Guattari sobre o
situação e aquilo que se passa em torno sujeito como construção e uma ideia dominante.
deles. Essa capacidade e que vai lhes dar A articulação dos conceitos de singularização e
um mínimo de possibilidade de criação e tática é proposta para tentar entender a natureza
permitir preservar exatamente esse caráter das resistências construídas em solo america-
de autonomia tão importante.” (GUATTARI, no. Essa resistência conformou territórios que
ROLNIK, 1996, p.46) ainda hoje podem ser conectados à cultura de
origem africana. A Pequena África é reduto que
Facilmente podemos listar formas de resistência concentra histórias, conhecimentos e práticas
de africanos e afrodescendentes frente à uma cul- relativas à escravidão, e a conversão do território
tura europeia imposta durante o período em que a de forma criativa em conhecimentos e culturas
escravidão foi vigente, seja na música, na prática
de matriz africana, local berço do samba, onde
religiosa, na alimentação, na dança e etc. Essa re-
diversos artistas relacionados ao surgimento do
sistência também aconteceu na arquitetura, na ci-
samba como estilo musical, além do quilombo
dade e no campo, enquanto construção de territó-
reconhecido pela Fundação Cultural Palmares5
rio e arquitetura, o quilombo é o principal exemplo
e do sítio arqueológico Cais do Valongo, que em
dessa resistência. O fato é que houve adaptação,
2017 recebeu o título de Patrimônio Mundial da
ajustes de conhecimentos e saberes possibilitan-
UNESCO, como foi dito na introdução.
do que símbolos e técnicas fossem preservados,
e a criação de novas manifestações culturais, ar- Assim, pensando nas táticas, compreendeu-se
tísticas e formas de sobrevivência, e aqui citamos que o samba foi uma dessas formas de singulari-
o samba como uma dessas formas de subverter dade para modificar a ordem vigente, de protesto,
a ordem dominante e como forma de resistência. resistir as formas de opressão e formador de
um território que foi denominado como Pequena
Para Michel de Certeau, já pensando em uma parte
mais prática da execução dessas resistências, o África. Pensando nessa resistência, seguimos
autor conceitua estratégias e táticas para discor- para explicar o processo de desenvolvimento do
rer sobre o tema. Para ele, as estratégias “apontam produto desenvolvido na disciplina de Leituras
para a resistência que o estabelecimento de um Gráficas da Cidade.
lugar oferece ao gasto do tempo;” enquanto que
“as táticas apontam para uma hábil utilização do
tempo, das ocasiões que apresenta e também dos o projeto - tática e representação da cidade
jogos que introduz nas fundações de um poder.”
(1998, p.102) No caso das resistências produzidas Como foi dito na introdução, o material apresen-
por negros no Brasil, o conceito de tática é um bom tado na disciplina tem como objetivo a divulgação
conceito para se utilizar, já que, de acordo com do Patrimônio Material e Imaterial da Pequena
o autor “aproveita as “ocasiões” e delas depende, África. Enquanto a região portuária recebeu uma
sem base para estocar benefícios, aumentar a pro- série de investimentos a fim de fomentar o turismo
priedade e prever saídas.” (1998, p. 100) E continua: na região através de obras e da reforma da zona
portuária com a instalação de Museus (do Amanhã
Tem que utilizar, vigilante, as falhas que as e Museu de Arte do Rio), reforma dos galpões e
conjunturas particulares vão abrindo na criação do Boulevard Olímpico, construção de
vigilância do poder proprietário. Aí vai caçar.
Cria ali surpresas. Consegue estar onde
ninguém espera. É astúcia. Em suma, a tática 4. Ver: SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno
é a arte do fraco.” (CERTEAU, 1998, p.101) falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

5. Primeira Instituição criada com a intenção de preservar e


Apesar de compreender o contexto da palavra valorar a cultura e história de influências negras na formação
“fraco” colocado pelo autor, entende-se que essa da sociedade brasileira. É responsável pela certificação e
palavra coloca reproduz uma categorização de reconhecimento dos quilombos no Brasil. Disponível em:
inferioridade aos grupos desprivilegiados. Dize- <http://www.palmares.gov.br/>. Acesso em 18 de julho 2020.
EIXO TEMÁTICO 2 torres comerciais e instalação do VLT Carioca,
conflitos surgiram durante essas obras e muito
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS foi redescoberto, exemplo o cemitério dos Pretos
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Novos6 e o Cais do Valongo. O que se observou foi
uma oportunidade de informar aos turistas que
visitam as instalações do Museu do Amanhã e
do Boulevard Olímpico, que sem compreender a
existência de uma região riquíssima culturalmente
e com uma história relevante não só para o Brasil,
mas também para o mundo como o conhecemos
atualmente que não é evidenciada.

Para fazer a representação da cidade em um su-


porte físico, primeiramente foi pensado em car-
tões postais e a medida que o projeto foi sendo
desenvolvido ele finalizou na proposta do por-
ta-copo. A evolução desse processo se deu em
etapas descritas abaixo:

Desenvolvimento do Projeto

O trabalho se iniciou com visitas à região do en-


torno da Pedra do Sal através de passeios guiados
oferecidos pelo grupo ‘’Revelando o Brasil’’ 7. Os
passeio foram encontrados na rede social Fa-
cebook. Durante as visitas foram feitos vídeos e
fotografias. A primeira visita foi um roteiro pelo
Morro da Conceição, localizado no Bairro Saúde.
O ponto de encontro e saída do passeio foi a Pra-

6. Pretos novos era o nome dado aos escravizados recém


chegados na cidade do Rio de Janeiro. Muitos destes che-
gavam em situação de saúde comprometida e morriam,
sendo enterrados nos arredores do porto. O primeiro ce-
mitério foi próximo ao Largo de Santa Rita, depois com a
transferência do porto de escravos para o Valongo, a região
recebe também um novo cemitério. Durante as obras do VLT
Carioca, foram encontrados uma parte dos restos mortais
desses escravizados. No bairro Gamboa existe o Instituto
dos Pretos Novos (IPN) que desenvolve estudos, pesquisas,
cursos e tem um museu em homenagem à memória e à
história dessas pessoas. Ver: http://pretosnovos.com.br/.
Acesso em: 17 de setembro de 2020.

7. Revelando o Brasil é um grupo que oferece visitas guiadas


com temas diversos sobre a história da cidade do Rio de
Janeiro. Foram feitos dois passeios: Morro da Conceição
- Herança Portuguesa. Disponível em: https://www.face-
16º SHCU
book.com/events/374250299796753/; e Circuito Raízes
30 anos . Atualização Crítica
Africanas. Disponível em: https://www.facebook.com/
2128 events/358419678341773/. Acesso em: 17 de setembro de 2020.
ça Mauá, o percurso seguiu subindo o Morro da Território pode ser relativo tanto a um espa-
Conceição até o Jardim Suspenso do Valongo e ço vivido quanto a um sistema percebido no
finalizado na Igreja de São Francisco da Prainha. seio da qual um sujeito se sente ‘’em casa’’.
A segunda visita foi o roteiro Raízes Africanas, O território é sinônimo de apropriação, de
com início também na Praça Mauá percorrendo subjetivação fechada sobre si mesma.
a Pedra do sal, Cais do Valongo até o Instituto dos GUATTARI e ROLNIK (apud HAESBAERT,
Pretos Novos (IPN). Durante o segundo passeio 2004, p.121)
desenhos (ver figura 2) foram feitos como parte
da primeira atividade da disciplina afim de ter as O território se forma a partir do espaço, é
primeiras representações dos possíveis espaços o resultado de uma ação conduzida por um
a serem trabalhados. ator sintagmático (ator que realiza um pro-
grama) em qualquer nível, ao se apropriar de
um espaço concreto ou abstratamente (por
exemplo, pela representação) o ator ‘’terri-
torializa’’ o espaço.’’ RAFFESTIN (1993, p.144)

Já o conceito de Patrimônio Imaterial foi retirado


do site do Instituto do Patrimônio Histórico e Ar-
tístisco Nacional. Apesar de que aqui entende-se
que não há patrimônio imaterial desassociado
do material, escolheu-se o conceito do IPHAN
por se tratar do orgão que certifica e promove o
tombamento de bens de valor artístico e cultural
no Brasil. Segundo o IPHAN9:

Patrimônio Imaterial é um conceito ado-


tado em muitos países e fóruns interna-
cionais como complementar ao conceito
de patrimônio material na formulação e
condução de políticas de proteção e sal-
vaguarda dos patrimônios culturais, sob a
perspectiva antropológica e relativista de
cultura. Usa-se, também, patrimônio intan-
gível como termo sinônimo para designar
as referências simbólicas dos processos
e dinâmicas socioculturais de invenção,
Figura 2: Desenhos desenvolvidos pela autora durante
transmissão e prática contínua de tradi-
visitas à Pequena África como exercício de prospecção e
ções fundamentais para as identidades
primeiras formas de tentar representar a cidade e o con-
texto desejado. Parte da primeira atividade desenvolvida
de grupos, segmentos sociais, comuni-
na disciplina. Com esses desenhos, a primeira orientação dades, povos e nações. (VIANNA, 2009)
foi a de fazer cartões postais para o trabalho final.
Trabalhando com os dois conceitos de Território e
Patrimônio Imaterial, pensou-se nas diversas ma-
nifestações culturais e artística ligadas a Matriz
O passo seguinte foi buscar conceitos para fun-
damentar o projeto. Os primeiros conceitos foram
de enfoques - material, simbólico e espaço de ação social.
os de Território e Patrimônio Imaterial. Sendo o
In Revista Geografar, v.4, n.1, p.109 e 112, jan./jun. 2009.
de terrítório8:
9. Portal Iphan. Dicionário do Patrimônio Cultural. VIANNA,
Letícia C. R. Verbete Patrimônio Imaterial. Disponível em:
8. Os conceitos de território foram retirados de um artigo http://portal.iphan.gov.br/dicionarioPatrimonioCultural/
que apresenta a várias formulações do termo na Geografia. detalhes/85/patrimonio-imaterial. Acesso em: 17 de se-
Ver: HOLANDA DA SILVA, Carla. Território: uma combinação tembro de 2020.
EIXO TEMÁTICO 2 Africana. Como forma de trabalhar a divulgação
da história de Africanos e Afrodescendentes,
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS utilizando como premissa a Lei 10.639/03 que
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES torna obrigatório o Ensino de História e Cultural
Afrobrasileira, e a Educação Patrimonial com os
visitantes e freqüentadores da Região Portuária,
Gamboa e Saúde principalmente, pensou-se em
produzir algo fácil de encontrar, que estivesse
nos espaços turísticos e de entretenimento, que
estabelecesse relação com as Rodas de Samba
e a história da Pequena África, que também
pudesse representar graficamente a cidade e dar
informações sobre o Patrimônio Histórico relativo
a Africanos e Afroescendentes ali encontrado.
Então, foi elaborado um diagrama da seqüência
de pensamento (ver figura 3).

Figura 3: Diagrama elaborado pela autora com a sequência


de idéias selecionadas para a definição do projeto. Explica
com foi feita a definição e seleção do Samba e da Pequena
África. Parte dos conceitos, seleção da manifestação
da cultura imaterial até a escolha da área trabalhada e
do objeto que servirá de suporte gráfico para a repre-
sentação da cidade através de fotografias e dos sambas
impressos nas letras.

Como foi dito, a primeira ideia era representar


Patrimônio Material e Imaterial em postais com
16º SHCU desenhos feitos à mão-livre, provavelmente fi-
30 anos . Atualização Crítica
nalizados em aquarela. Porém, pensando nas
2130 atividades e no cotidiano do entorno do Largo
São Francisco da Prainha, e após as visitas feitas, lugar. Cada conjunto, que será chamado de par,
e por uma afinidade também com o samba por foi selecionado como um tripé: música, fotogra-
parte da autora, pensou-se em pesquisar sambas fia e história. A música representando através
que falassem sobre a cidade do Rio de Janeiro. das letras a resistência dos negros e negras, e as
Foram selecionadas algumas músicas, entre elas: denúncias feitas através do samba; o lugar, com
“feirinha da pavuna”, cantada por Jovelina Pérola a fotografia das edificações e espaços urbanos,
Negra; “Feitiço da Vila”, Martinho da Vila; “Meu cada lugar com relevância arquitetônica, patrimô-
lugar”, Arlindo Cruz; entre outras. nial e histórica; e por último costurando os dois
anteriores, a história de resistência e luta contra
Entendendo que o Samba rompeu os limites de a escravidão e opressão. Foram esses os partidos
territórios específicos e está distribuído por di- definidores do material apresentado no projeto.
versos bairros da cidade, exemplo é o aplicativo
Rede Carioca de Rodas de Samba10 que localiza as O produto escolhido para ser a base material e
rodas de samba distribuídas na cidade do Rio de física do projeto foi porta-copo ou bolacha de
Janeiro, a Pequena África foi escolhida para ser chope, item comum em bares e que oferece uma
objeto desse estudo por sua importância para a superfície assim como o cartão-postal para expor
história da cidade na perspectiva de Africanos e imagens e o conteúdo desejado de forma mais
Afrodescendentes e para o Samba. Por isso, para concisa e interativa. O cartão postal foi a primeira
facilitar o recorte espacial, a ideia evoluiu para idéia de representação, mas escolheu-se o por-
combinar o roteiro turistíco da Pequena África ta-copo por acreditar que ele seria um item com
disponível no site e no aplicativo “Passados Pre- maior possibilidade de distribuição e alcance de
sentes” 11 com a escolha dos sambas. público em bares, rodas de samba e museus (na
forma de sourvenir) e ter mais relação com o pró-
Para a escolha das músicas, houve uma alteração prio tema. A maneira encontrada de repassar con-
em relação ao diagrama, com o recorte espacial teúdo para os visitantes em um produto físico foi
definido, as fotografias e as músicas passaram através de QR CODE e o site utilizado para gerar os
a ser definidas com um carater mais subjetivo. O códigos foi o https://br.qr-code-generator.com/.
vínculo se estabelece através das letras das mú-
sicas e da imagem do lugar escolhido trabalhando
a história de africanos e afrodescendentes deste
A proposta
10. A rede Carioca de Rodas de Samba é um site que reúne in-
formações diversas sobre a economia produzida pelas rodas O porta-copo
de samba existentes na cidade do Rio de Janeiro. Tem como
objetivo facilitar as informações para o público e também O modelo de Porta-copo escolhido foi o Quadra-
para os músicos, artistas e quem trabalha com música em do de 90x90mm. Esse formato ofereceu melhor
geral. O site deixa evidente como o Samba se espalhou por enquadramento para as fotografias e um melhor
todo o território da cidade, não estando mais presente, so- layout do texto e do QR CODE. O material escolhido
mente nos espaços de maioria afrodescendente, ou como no para o protótipo foi o papel paraná como base. As
passado, em um lugar marginalizado devido a suas origens e Fotografias foram impressas em papel couchê
ao preconceito com a produção artística de matriz africana.
250 gramas e aplicadas com cola branca sobre
11. O site Passados Presentes foi elaborado pelo Laboratório a base. Depois sofreram compressão por 12h pra
e História Oral e Imagem da Universidade Federal Fluminen- garantir a aderência dos materiais. A estética
se – LABHOI/UFF, e o Núcleo de Memória e Documentação da escolhida para as fotografias foi P&B (preta e
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - NUMEM/
branca), além de uma questão de custo, o que
UNIRIO. Ele serviu de base para a visita e escolha dos lugares
poderia baratear o produto e torná-lo mais viável
fotografados, além de ter sido inserido no projeto como o ro-
para a impressão em maior escala, as fotografias
teiro turístico para a visitação e conhecimento da história do
núcleo da Pequena África localizado entre os bairros Saúde e
adquiriram um apelo imagético remetendo ao
Gamboa. O site foi inserido no projeto através de um QR-co- passado as imagens da cidade contemporânea.
de, que o usuário pode acessar e obter informações sobre Os porta-copos formam dois conjuntos com uma
o lugar. Disponível em: http://passadospresentes.com.br/ caixa em papel couchê 250 gramas, cada um com
site/Site/index.php. Acesso em: 17 de setembro de 2020. 6 porta-copos personalizados (ver figuras 5 e 6).
EIXO TEMÁTICO 2 As fotografias

HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS Todas as fotografias utilizadas neste trabalho são
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES da autora do projeto. O equipamento utilizado foi
um celular modelo Asus Zenfone 3 e a edição das
fotografias feita no aplicativo Instagram. O perfil
utilizado para as publicações foi o ‘’entre_pesso-
as_e-paisagens’’, perfil criado anterior ao trabalho
para publicação de fotos da autora como hobby
(ver figura 4). As fotografias estão disponíveis fi-
sicamente (através do porta-copo) e virtualmente
na rede social Instagram. As fotografias tentaram
representar o patrimônio e as manifestações que
se vinculam com a história de africanos e afro-
descendentes e mostram as impressões deixadas
na cidade do Rio de Janeiro, seja na rotina, nas
edificações ou nos espaços no entorno próximo
à Pedra do Sal, ponto central do trabalho.

Figura 4: Tag do perfil do Instagram entre_pessoas_e_pai-


sagens; e o QR-CODE 1 contendo o site Passados Presentes.

Conteúdo virtual e QR-CODE

Foram escolhidas 10 músicas e 2 álbuns com-


pletos para formar os pares com as fotografias.
Diferente do proposto no Diagrama, as músicas
foram relacionadas de forma mais subjetiva, não
sendo explícita a citação de um lugar. A escolha
dos pares relaciona a história do lugar fotografado
com as letras das músicas, cuja explicação será
apresentada individualmente na descrição dos
porta-copos. Cada Porta-Copo possui 02 QR-CO-
DES com dimenões 15x15mm, cada um com cor e
desenho distintos. O QR-CODE 1 (ver figura 4) é de
cor preta, faz par com a fotografia (Capa), carrega
o site ‘’Passados Presentes’’, http://passadospre-
sentes.com.br/site/Site/index.php. Esse código
se repete em todos os porta-copos e o objetivo é
oferecer conhecimento sobre o território e sobre
a história da Pequena África. O QR-CODE 2 é de cor
cinza (contra-capa), carrega vídeos dos sambas
16º SHCU escolhidos, hospedados no Youtube. Nesse caso,
30 anos . Atualização Crítica cada QR-CODE é único e o objetivo é estabelecer
2132 relação entre música e fotografia.
Figura 5: Modelo de porta-copo desenvolvido.

porta-copos desenvolvidos com a descrição da


relação que a autora fez entre música, fotografia
e história. A sequência segue a numeração do
mapa da figura 7, e o QR-CODE entre as imagens é
o que QR-CODE 2 que contém o vídeo hospedado
no Youtube com a música da contra-capa.

Figura 6: Modelo da caixa para os porta-copos.

O produto fInal

Antes de apresentar as imagens dos porta-copos,


segue o mapa com a indicação do local em que as
fotografias foram feitas. Após, seguem todos os
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

Figura 7: Mapa com a indicação dos locais fotografados.


Mapa base retirado do site Passados Presentes e alterado
pela autora. Na sequência: 1. Cais do Valongo; 2. Rua São
Francisco da Prainha; 3. Largo São Francisco da Prainha;
4. Igreja São Francisco da Prainha; 5. Jardins Suspensos
do Valongo; 6. Docas André Rebouças; 7. Rua Argemiro
Bulcão; 8. Largo São Francisco da Prainha; 9. Pedra do
Sal; 10. Escadaria do Morro da Conceição; 11. Cais do Por-
to – Avenida Rodrigues Alves; 12. Largo São Francisco da
Prainha. Mapa disponível em: http://passadospresentes.
com.br/site/Site/index.php/principal/index. Acesso em:
17 de setembro de 2020.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

2134
escolhida para fazer par com o Cais do Valongo
por sua força de cantar as matrizes formadoras da
sociedade brasileira sem romantizar as relações
entre elas. Outra justificativa se deve ao foto do
Cais ter sido remodelado para a chegada da Im-
peratriz Teresa Cristina e por longo período não
ter a história como porto de escravos contada.
Em 2017 foi eleito Patrimônio Mundial da Unesco.

Figura 8: Conjunto 1 – Par 1: Porta-copo: Cais do Valongo


e Canto das três raças.

1.Canto das três Raças12 - 1974 - essa música foi

12. Letras.com. Canto das três raças. Disponível em: <ht-


tps://www.letras.mus.br/paulo-cesar-pinheiro/377164/>.
Acesso em: 08 de junho de 2019. Youtube. Página clara-
dobrasil. Canto das três raças - Clara Nunes. Disponível
em: <https://www.youtube.com/watch?v=dcVKb2ht6BE>. Figura 9: Conjunto 1 – Par 2: Porta-copo: Sobrados e Pelo
Acesso em: 08 de junho de 2019. telefone.
EIXO TEMÁTICO 2 2. Pelo Telefone13 - 1917 - considerada o primeiro
samba gravado, “Pelo telefone” foi escrita por
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS Donga, artista reconhecido e nascido na região da
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Pequena África. Era filho de Tia Amélia, que jun-
tamente com Tia Ciata faziam festejos. Donga fez
trio com Pinxiguinha e João da Baiana. A história
dessa música é cheia de controvérsias, mas tem
importância para a história do samba por ter con-
solidado através da gravação o registro e a poste-
ridade das músicas de matriz folclórica, passadas
através da cultura oral. A imagem forma par com a
música de forma subjetiva, ilustrando os sobrados
típicos da região, local de nascimento de Donga.

13. Letras.com. Pelo telefone. Disponível em: <https://


www.letras.mus.br/martinho-da-vila/287439/>. Acesso
em: 08 de junho de 2019. Youtube. Página valeriabdiniz.
Pelo Telefone - Donga. Disponível em: <https://www.you-
16º SHCU
tube.com/watch?v=X99_DMzHPNg&list=PLsA1uHqcBQl5U-
30 anos . Atualização Crítica
tXKyKn3of5rXGY761y5x&index=14&t=0s>. Acesso em: 08
2136 de junho de 2019.
Pixinguinha, João da Baiana são outros artista que
saíram da Pequena África, à semelhança do par
anterior, o casario apresentado é para remeter ao
lugar de origem desses artistas. Agora foi trazido
um álbum completo fruto da parceria dos três
artistas citados, que são de enorme relevância
para a música Brasileira.

Figura 10: Conjunto 1 – Par 3: Porta-copo: Sobrados e


álbum Gente da Antiga.

3. Gente da Antiga14 - 1968 - Clementina de Jesus,

14. Youtube. Página Leandro do Nascimento. Gente da Antiga


- 1968 Álbum Completo (full album). Disponível em: <https://
www.youtube.com/watch?v=qlY6UrMBwm4&list=PLsA1uH-
qcBQl5UtXKyKn3of5rXGY761y5x&index=12&t=27s>. Acesso Figura 11: Conjunto 1 – Par 4: Porta-copo: Igreja São Fran-
em: 08 de junho de 2019. cisco da Prainha e Festa de Umbanda.
EIXO TEMÁTICO 2 4. Festa de Umbanda15 - 1974 - a relação dessa
música, um pout-pourri de pontos de umbanda
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS cantado por Martinho da Vila, apesar de não ser
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES um samba propriamente, foi relacionada com a
imagem da Igreja de São Francisco da Prainha
para mostrar o sincretismo que as religiões ca-
tólica e de matriz africana sofreram. A escolha
desse música em específico foi intencional que
fugisse do gênero musical do samba, entendendo
que este tem origem nos batuques, no jongo e nas
músicas religiosas de matriz africana.

15. Letras.com. Festa de Umbanda. Disponível em: <https://


www.letras.mus.br/martinho-da-vila/287371/>. Acesso em:
08 de junho de 2019. Youtube. Página prosergiodias. Mar-
16º SHCU
tinho da Vila - Festa de Umbanda. Disponível em: <https://
30 anos . Atualização Crítica
www.youtube.com/watch?v=8EAqazbPiRU>. Acesso em:
2138 08 de junho de 2019.
Valongo olhando para o Morro da Providência. A
música é de Cartola que fala da beleza do alvo-
recer no morro. A subjetividade desse par estar
em ver a beleza partindo do olhar do território
legal, esteticamente projetado para o território
à margem, de crescimento espontâneo e visto
como espaço pejorativo, lugar onde a estética
não reside ou onde não há beleza. É a tentativa de
inverter os olhares. É o contraponto entre visões
de naturezas, a do jardim projetado e da natureza
junto com espaço produzido espontaneamente.

Figura 12: Conjunto 1 – Par 5: Porta-copo: Jardim Suspenso


do Valongo e Alvorada.

5. Alvorada16 - 1974 - foto do Jardim Suspenso do

16. Letras.com. Alvorada. Disponível em: <https://www.


letras.mus.br/cartola/88700/>. Acesso em: 08 de junho de
2019. Youtube. Página Xandi. Cartola - Alvorada. Disponível
em: <https://www.youtube.com/watch?v=QFfwRYf3YzE>.
Acesso em: 08 de junho de 2019.
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

Figura 13: Conjunto 1 – Par 6: Porta-copo: Docas André


Rebouças e Heróis da Liberdade.

6. Heróis da Liberdade17 - 1969 - essa música fala


dos Abolicionistas e de como eles foram importan-

17. Letras.com. Heróis da Liberdade. Disponível em: <ht-


tps://www.letras.mus.br/roberto-ribeiro/898325/>. Acesso
16º SHCU
em: 08 de junho de 2019. Youtube. Página e pontin. He-
30 anos . Atualização Crítica
róis da Liberdade - Jorginho do Império 1973. Disponível
2140 em: <https://www.youtube.com/watch?v=oFO8LzJs-
tes para a campanha do 13 de maio de 1888. A edifi- 7. Marinheiro Só18 - 1969 - os pontos de ancorar os
cação retratada é o Armazém Docas Dom Pedro II, navios ainda estão presentes na lateral da Pedra
obra do engenheiro negro André Rebouças, um abo- do Sal. O mar chegava até esse limite e os traba-
licionista, vindo de família de artistas e intelectuais lhadores negros carregavam o sal, esperavam
negros. Localiza-se ao lado do Cais do Valongo. secar na pedra e depois levavam para os armazéns
ou mercados de venda. Cantar os marinheiros e
os trabalhadores do mar e da Pedra do Sal foi a
relação estabelecida nesse par.

18. Letras.com. Marinheiro Só. Disponível em: <https://


Figura 14: Conjunto 2 – Par 1: Porta-copo: Ancoradouro www.letras.mus.br/clementina-de-jesus/756085/>. Acesso
da Pedra do Sal e Marinheiro só. em: 08 de junho de 2019. Youtube. Página wjmattos1. Cle-
mentina de Jesus Marinheiro Só. Disponível em: <https://
www.youtube.com/watch?v=oTK5furuNIk&list=PLsA1uH-
b-8&list=PLsA1uHqcBQl5UtXKyKn3of5rXGY761y5x&in- qcBQl5UtXKyKn3of5rXGY761y5x&index=19>. Acesso em:
dex=17&t=0s>. Acesso em: 08 de junho de 2019. 08 de junho de 2019.
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

Figura 15: Conjunto 2 – Par 2: Porta-copo: Roda de samba


Moça Prosa e Caxambu.

8. Caxambu19 - 1986 - roda de samba, caxambu,

19. Letras.com. Caxambu. Disponível em: <https://www.le-


tras.mus.br/almir-guineto/44051/>. Acesso em: 08 de junho
16º SHCU
de 2019. Youtube. Página BATUKILIN BRASIL. Almir Guineto
30 anos . Atualização Crítica
- Caxambú. Disponível em: <https://www.youtube.com/
2142 watch?v=zSI9wC25ydY>. Acesso em: 08 de junho de 2019.
jongo, dança, toque de tambor e bater palmas. 9. A voz do Morro20 - 1965/67? - entender que a
Essa fotografia foi feita no Largo da Prainha e a Pequena África é o berço do samba e retratar a
idéia do par é de ver a dança e poder estendê-la Pedra de sal, lugar mais simbólico da região, foi
até o amanhecer, como se ela continuasse em a conexão estabelecida desse par. Dizer que ali
movimento em conjunto com a melodia da música. é o samba, voz do morro e que tem seu valor. A
É uma tentativa também de mostrar a alegria e identidade estabelecida entre o samba e o Rio de
descontração que esses ambientes têm. Janeiro em ser natural da cidade e entender que
essa herança é negra.

20. Letras.com. A voz do Morro. Disponível em: <https://


www.letras.mus.br/neguinho-da-beija-flor/eu-sou-o-sam-
ba/>. Acesso em: 08 de junho de 2019. Youtube. Página
BATUKILIN BRASIL. Zé Kéti - A voz do morro. Disponível
Figura 16: Conjunto 2 – Par 3: Porta-copo: Pedra do Sal e em: <https://www.youtube.com/watch?v=1DHN0O3ObPA>.
A voz do morro. Acesso em: 08 de junho de 2019.
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

Figura 17: Conjunto 2 – Par 4: Porta-copo: Escadaria do


Morro da Conceição e albúm Capoeira de Besouro.

10. Capoeira de Besouro21 - 2010 - o mosaico está

21. Youtube. Página janos6675. Paulo César Pinheiro - Ca-


poeira de Besouro (2010) Álbum Completo - Full Album. Dis-
16º SHCU
ponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=fra75K-
30 anos . Atualização Crítica
TApwc&list=PLsA1uHqcBQl5UtXKyKn3of5rXGY761y5x&in-
2144 dex=19&t=1026s>. Acesso em: 08 de junho de 2019.
localizado na escada de acesso ao Morro da Con-
ceição, arte do Ateliê Cosmonauta. A capoeira é
reconhecida como Patrimônio, é luta e dança ao
mesmo tempo. O álbum escolhido mistura samba
com toques de capoeira e foi feito em homenagem
ao capoerista baiano Besouro. O par trabalha em
conjunto das dimensões materias e imateriais
impressas na cidade representadas na arte da
escadaria, na música e dança/luta objeto retrata-
do. A relação com a Bahia nessa região é íntima,
por isso também a escolha pelas músicas que
falam de Besouro.

Figura 18: Conjunto 2 – Par 5: Porta-copo: Mural Etnias e


Semba dos ancestrais.

11. Semba dos Ancestrais22 - 1985 - a relação des-

22. Letras.com. Semba dos Ancestrais. Disponível em:


<https://www.letras.mus.br/martinho-da-vila/semba-
-dos-ancestrais/>. Acesso em: 08 de junho de 2019. You-
tube. Página Moacir Simpatia. Martinho da Vila - Semba dos
Ancestrais. Disponível em: <https://www.youtube.com/
watch?v=sQRDSyLNcqw>. Acesso em: 08 de junho de 2019.
EIXO TEMÁTICO 2 sa música com o Mural Etnias do artista Kobra,
localizado no Porto Maravilha, foi o de remeter
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS aos ancestrais do continente africano. O Cais do
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Porto foi a entrada dos ancestrais vindos de outro
continente, simboliza a chegada em um novo uni-
verso e a saída do que era conhecido, tudo através
do mar. Mesmo após séculos de distanciamento
a ancestralidade é cantada e sentida.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
Figura 19: Conjunto 2 – Par 6: Porta-copo: Mosaico Dona
2146 Ivone Lara e Um sorriso negro.
12. Um sorriso negro23 - 1981- mosaico também O interessante é pensar que Africanos e Afrodes-
feito pelo Ateliê Cosmonauta ilustra Dona Ivone cendentes têm direito a ter a sua história contada
Lara, a primeira mulher a gravar um samba-enre- e evidenciada, e que essa história é rica e tem
do, foi compositora e tocava cavaquinho. Esse é valor. Através de táticas e resistências afim de
o par que mais diretamente faz relação da figura subverter as subjetividades dominantes, novas
com a música, não propriamente a letra, mas à ar- formas de habitar e se relacionar com a cidade
tista. Dona Ivone Lara é uma das mais respeitadas surgiram. Fica o estímulo de produzir material
referências no mundo do samba. Tamanha é a sua sobre esses lugares e estabelecer parcerias com
importância que está impressa em uma parede o Museus para a divulgação e educação Patri-
no Largo do João da Baiana na Pedra do Sal. moniais.

O samba, nascido na Pequena África é exemplo


das singularidades que as resistências geraram,
Considerações fInais tornando-se, inclusive, um traço definidor da iden-
tidade do carioca e da cidade do Rio de Janeiro.
O desenvolvimento desse projeto ajudou a co- Não se pode pensar na cidade do Rio de Janeiro
nhecer uma parte da história do Rio de Janeiro sem associá-la ao samba, às Escolas de samba
partindo da matriz Africana. Levando em con- e às quadras das comunidades, aos barracões,
sideração o tema que se pretende trabalhar no aos desfiles de carnaval, às rodas de samba. De
mestrado, o entendimento de que a cultura pode forma criativa e astuciosa, no improviso e adap-
provocar alterações no espaço e na paisagem, tação de instrumentos, um novo gênero musical
construir territórios simbólicos e imprimir mar- nasce, considerado de menos valor e virou uma
cas nos lugares provocou o início da pesquisa e das maiores representações do país, apesar de
permitiu fazer um paralelo com o objeto de estudo toda a perseguição e repressão aos artistas e aos
da dissertação. no caso a cidade de Icó, o patri- negros e negras. E como a cultura é determinante
mônio material e imaterial da cidade localizada para o território, a Pequena África, como parte
no Estado do Ceará. da cidade teve a sua delimitação devido aos Afri-
canos e seus descendentes que moldaram toda
Pensando a cidade como memória coletiva e uma cultura de origem africana, ressignificando
cenário de disputa de atores diversos os quais as formas de intervir no espaço.
exercem poder e influência na cidade de formas
diferentes, entender que a cultura é responsável A cidade também foi transformada por essa popu-
por delimitar territórios e produzir expressões lação e não apenas no que se coloca como carga
e modos de interferir na cidade criativamente, depreciativa e pejorativa da pobreza e dos proces-
criando inclusive novos tipos de manifestações sos de favelização. Por isso que a representação
artísticas e apropriações do espaço. Ainda que através das fotos e músicas, com a intenção de
levar a história da matriz africana no território
exista um poder dominante que prevalece e de-
da Pequena África é uma tentativa de conseguir
termina o que deve ser preservado, a estética e
permeabilidade nos espaços das rodas e dos mu-
modelo de cidade construídos, existem formas
seus, afim de levar mais pessoas a conhecerem
de resistência que partem de ações táticas de
a história dos bairros da Saúde e Gamboa, prin-
grupos desprivilegiados e que são subjugados
cipalmente, no entorno da Pedra do Sal.
por toda uma estrutura que rege tanto as rela-
ções sociais, a economia e como consequência
a produção espacial também.

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EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Esse trabalho tem a intenção de discutir as
questões teóricas referentes à introdução das
políticas de planejamento urbano em Presiden-
vídeo-pôster te Prudente, cidade que é usada como objeto
desse estudo em função do porte e poder pola-
rizador regional no extremo oeste do estado de
PLANEJAMENTO E INDÚSTRIA São Paulo, entendendo as relações da atuação
do SERFHAU enquanto órgão de orientação do
NO PERÍODO DO SERFHAU: planejamento nas décadas de 1960 e 1970. As
peças documentais técnicas que orientaram a
UM ESTUDO DO CASO DE introdução dessas políticas no município são:
o “Plano Diretor de Presidente Prudente”, que
PRESIDENTE PRUDENTE/SP contou com metodologia do SERFHAU; e o pro-
jeto do Distrito Industrial – ambos elaborados
pelo CPEU. Desse modo, analisamos a relação
PLANNING AND INDUSTRY IN THE SERFHAU PERIOD: A
entre industrialização e planejamento, con-
CASE STUDY OF PRESIDENTE PRUDENTE- SP
siderando o período de introdução na política
urbana no município. Pretendeu-se investigar
PLANIFICACIÓN E INDUSTRIA EN EL PERÍODO DE e contribuir com o debate do planejamento ur-
SERFHAU: UN ESTUDIO DEL CASO DEL PRESIDENTE bano, a partir do tópico da industrialização, no
PRUDENTE- SP bojo do desenvolvimentismo no estado de São
Paulo na década de 1970, a fim de compreender
SCATALON, Aline Passos as implicações desse aspecto técnico quanto
à conformação material do espaço urbano de
Mestre; IAU-USP
Presidente Prudente, considerando as corres-
alinescatalon@gmail.com
pondências entre suas historiografias.

CUCATO, Janaina Andréa


Mestre; IAU-USP HISTÓRIA PLANEJAMENTO URBANO
jcucato@usp.br
PRESIDENTE PRUDENTE-SP

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

2150
ABSTRACT RESUMEN

This paper has the purpose to discuss theoreti- Este trabajo tiene la intención de discutir las
cal issues on the introduction of urban planning cuestiones teóricas con respecto a la introduc-
policies in the city of Presidente Prudente, which ción de políticas de planificación urbana en Pre-
is the object study because of its size and polari- sidente Prudente, una ciudad que se utiliza como
zing power in the far west of the São Paulo Sta- objeto de este estudio debido al tamaño y el poder
te. In this sense, we investigate the activities of de polarización regional en el extremo oeste del
SERFHAU as the public organization guiding the estado de São Paulo, entendiendo las relaciones
urban planning in the 1960s and 1970s. The te- con respecto al papel de SERFHAU como un or-
chnical documents involved in such policies are ganismo de orientación de planificación en los
the following: the development plan of Presi- años 1960 y 1970. Las piezas documentales técni-
dente Prudente, formulated with SERFHAU me- cas que guiaron la introducción de estas políticas
thods, and the industrial district project - both en el municipio son: el “Plan Maestro Presidente
elaborated by CPEU. We intended to investigate Prudente”, que utilizó la metodología SERFHAU; y
the relation between industrialization and urban el proyecto del Distrito Industrial, ambos elabo-
planning, in view of the period when the introduc- rados por CPEU. Así, analizamos la relación entre
tion of such policies happened in the city. Also, industrialización y planificación considerando el
the idea is to contribute to the debate of urban período de introducción a la política urbana en el
planning from the point of view of industrrializa- municipio. La intención era investigar y contribuir
tion development in the São Paulo State during al debate sobre planificación urbana basado en el
the 1970s. Moreover, we aimed to understand the tema de la industrialización en medio del desar-
implications of such technical aspects as to the rollismo en el estado de São Paulo en la década de
shape of the urban space of Presidente Prudente, 1970, para comprender las implicaciones de este
also considering its corresponding historiogra- aspecto técnico con respecto a la conformación
phy aspects. material del espacio urbano de Presidente Pru-
dente, considerando las correspondencias entre
sus historiografías.
HISTORY URBAN PLANNING
PRESIDENTE PRUDENTE-SP
HISTORIA PLANIFICACIÓN URBANA
PRESIDENTE PRUDENTE-SP
EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
Este texto é uma construção conjunta que reúne o
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
trabalho de mestrado de Scatalon (2019) e de dou-
torado de Cucato1, no qual apresentamos a conver-
gência entre as pesquisas, por meio da abordagem
vídeo-pôster
do planejamento urbano de Presidente Prudente,
entendendo suas relações quanto à participação

PLANEJAMENTO E INDÚSTRIA do SERFHAU (Serviço Federal de Habitação e


Urbanismo) como órgão de orientação do plane-

NO PERÍODO DO SERFHAU: jamento no estado de São Paulo entre as décadas


de 1960 e 1970. O planejamento urbano, entendido
UM ESTUDO DO CASO DE no contexto da introdução da política urbana no
município, será analisado a partir de sua relação
PRESIDENTE PRUDENTE/SP com a industrialização. Com isso, busca-se con-
tribuir com a divulgação da relação entre esses
resultados, bem como abrir espaço para novos
PLANNING AND INDUSTRY IN THE SERFHAU PERIOD: estudos e aprofundamento do objeto de análise.
A CASE STUDY OF PRESIDENTE PRUDENTE-SP
Os processos de desconcentração da indústria me-
PLANIFICACIÓN E INDUSTRIA EN EL PERÍODO DE tropolitana permitiram não apenas o espraiamento
SERFHAU: UN ESTUDIO DEL CASO DEL PRESIDENTE da indústria para regiões interioranas, mas
PRUDENTE-SP também suscitou uma nova conformação física,
econômica e social em áreas inclusive recém
ocupadas, nas chamadas franjas pioneiras,
que até então se apoiavam na cultura cafeeira.

Esse contexto de desconcentração produtiva na-


cional levou à “ascensão” das cidades médias, que,
a partir da década de 1970, têm desempenhado um
papel relevante na dinâmica econômica e espacial
brasileira, em um cenário no qual o país apresentou
um período de desconcentração produtiva regional
que vai alterar significativamente sua estrutura
econômica (CANO, 2008). Este autor define o
período de 1970-80 como de desconcentração
virtuosa - com o PIB de São Paulo (8,1% a.a.) cres-
cendo menos que outras regiões brasileiras (10,2%
a.a.) -, compreendendo dois movimentos: do es-
tado de São Paulo em direção às outras regiões
do país, e da Grande São Paulo e sua Região Me-
tropolitana em direção ao interior paulista.

Uma política desenvolvida pelo Estado no âmbito


federal incentivou um processo de desconcentra-
ção industrial a partir do final da década de 1960,

1. O trabalho de doutorado intitulado “O Planejamento Inte-


grado e a questão da indústria: O SERFHAU/BNH no estado
16º SHCU
de São Paulo de1964 a 1980” ainda está em andamento,
30 anos . Atualização Crítica
tendo sido aprovado em banca de qualificação em 10 de
2152 julho de 2020.
tendo como consequência o crescimento das e uma série de diretrizes, por vezes expressas no
cidades médias e a formação de polos regionais. plano de ação do governo, os quais compunham o
conjunto de peças técnicas que estruturavam os
O atendimento ao capital industrial paulista é um PDDI (Planos Diretores de Desenvolvimento Inte-
fator que contribuiu para o processo de descon- grado). Muitos destes planos, foram elaborados
centração industrial, pois possibilitava o aumento pelo Centro de Pesquisas e Estudos Urbanísticos
da acumulação intensiva e o enfraquecimento do (CPEU) da USP, com financiamento e metodologia
poder dos sindicatos da capital - que estavam se do SERFHAU.
fortalecendo progressivamente, principalmente a
partir de meados da década de 1970 (LUCCHESE, Um destes casos é o Plano Diretor de Presidente
2004). Assim, o crescimento da industrialização foi Prudente, que adotamos neste trabalho para o es-
ensejado pela continuidade da política econômica tudo do processo de planejamento no município,
na década de 1970, o que contou “com financiamen- destacando seus vínculos com a industrialização.
to público de infraestrutura de energia e transporte O “Plano Diretor de Presidente Prudente”, peça
e o desenvolvimento de uma série de subsídios técnica desenvolvida pelo CPEU com metodologia
à atividade industrial” (LUCCHESE, 2004, p. 14). do SERFHAU, compôs o processo de elaboração
do primeiro plano diretor do município - o que
A partir disso, voltamos nossos olhares para o es- pode ser entendido como o marco inicial de seu
tudo desse tema em áreas distantes da metrópole planejamento urbano (SCATALON, 2019). As dis-
paulista, a fim de compreender a importância da cussões para sua elaboração, iniciadas em 1960,
presença da indústria para o estabelecimento só foram concretizadas na década seguinte, com
da expansão econômica em diversas cidades, a aprovação da Lei nº 1.582/1973, na qual o plano
levando à redefinição do espaço urbana, o que é mencionado com a denominação de PDDI.
interferiu no desenho das cidades, permitindo
uma nova “realidade urbano-industrial” (FELDMAN Sendo a implantação do Distrito Industrial um
2010), na qual muitas vezes os efeitos da urba- dos principais fatores para o desenvolvimento
nização foram muito superiores aos da própria desse plano diretor, se evidencia a relação entre
industrialização (OLIVEIRA, 1982). Para Oliveira planejamento e industrialização. Desse modo,
(1982, p. 42) “quando a industrialização começa esse é um caso exemplar da interiorização do
a ser o motor da expansão capitalista no Brasil, desenvolvimento e da indústria no período es-
ela tem que ser simultaneamente urbana porque tudado, na medida em que Presidente Prudente,
não pode apoiar-se em nenhuma pretérita divi- considerada como uma cidade média, teve seu
são social do trabalho no interior das unidades poder polarizador como um dos grandes moti-
agrícolas”. vadores para sua escolha como sede do primeiro
projeto do distrito industrial no estado de São
No contexto da difusão da urbanização contem- Paulo. O desenvolvimento do projeto do distrito
porânea, houve um redesenho da espacialidade industrial estava na base na ideia do desenvolvi-
urbana, com uma mudança que levou à redefinição mento regional a partir da expansão da indústria
do modo de circulação de pessoas, mercadorias, para o interior.
informações, ideias e símbolos, com aspectos
que geram uma inversão no modelo tradicional Metodologicamente trabalhamos com a pesqui-
de cidade contínua ou concentrada (WHITACKER, sa histórica, a partir da leitura direta na fonte
2006). A interiorização das atividades industriais primária, através da base técnico-cientifica que
alterou o contingente demográfico das cidades, compõe o registro documental do planejamento
com mudança no arranjo da estrutura socioes- urbano em Presidente Prudente, compreenden-
pacial. Assim, a inserção dos ideais e práticas do do: seu primeiro plano diretor (PLANO DIRETOR,
planejamento foram incorporados a estes muni- 1968-69) e o Projeto do Distrito Industrial (CIBPU/
cípios através de equipes multidisciplinares de CPEU, 1968?). Também nos amparamos em nar-
consultoria privada de planejamento e, também, rativas que se estruturam pela leitura de fontes
servidores da própria municipalidade, que pas- secundárias, que nos auxiliaram para a compreen-
saram a trabalhar no planejamento municipal são de processos e questões relevantes a serem
organizando o diagnóstico dos problemas urbanos tratadas.
EIXO TEMÁTICO 2 O PAPEL DO SERFHAU NO PLANEJAMENTO INTEGRADO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
Sob a ótica histórica do processo de planejamento
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
que priorizava o caráter integrado, presencia-se,
na década de 1960, sua reorganização institucio-
nal sob a tutela do regime militar instaurado em
1964. Deste momento até o início dos anos 1970
vários municípios, especialmente os menores,
buscam uma organização das suas estruturas
legais e administrativas, o que se efetivou com a
elaboração dos PDDIs. Neste contexto, é criado
o SERFHAU, instituído em 1964, atrelado ao Mi-
nistério do Interior e ao Banco Nacional da Habi-
tação (BNH), cuja regulamentação se efetivou no
ano de 1966, quando foi reconhecido como órgão
administrativo do governo federal.

A criação do SERFHAU, na mesma lei de institui-


ção do BNH, tinha como finalidade a regulamen-
tação da política habitacional e urbana em âmbito
nacional. O órgão devia apoiar o planejamento e o
ordenamento territorial urbano, além de oferecer
apoio e financiamento à elaboração dos PDDIs, de
modo que atuou na construção da metodologia
dos planos para todo o Brasil (BONDUKI, 2014).

Nos 10 anos de atuação do órgão, que foi extinto


em 1974 e liquidado em 1975, cabia ao SERFHAU
a gestão do FIPLAN (Fundo de Financiamento
de Planos de Desenvolvimento Local Integrado),
sendo este o fundo inaugural para elaboração
dos PDDIs no âmbito federal, e a elaboração e
coordenação da política nacional de planejamento
local integrado.

Os PDDIs tiveram uma intensa difusão no território


nacional a partir da década de 1970, passando a
incorporar o planejamento em municípios em
zonas recém ocupadas, em áreas inicialmente
de fronteira agrícola, cuja economia passou a
tramitar entre a agricultura, a agroindústria e a
intensificação do processo de industrialização,
sob os reflexos dos processos de interiorização
da indústria que se desconcentrava a partir da
metrópole - isso com vistas para o caso paulista.

A partir de 1950 foram criados vários organismos


cujo objetivo era planejar as ações do governo
federal, considerando que, no âmbito das admi-
16º SHCU nistrações estaduais, os Estados já tinham uma
30 anos . Atualização Crítica
estrutura para organização dos seus processos
2154 de planejamento como prática administrativa.
Entre as décadas de 1940 e 1950, vários municípios ocasionou uma redefinição do espaço urbano
já mostravam a iminência da assistência técnica (OLIVEIRA, 1982), que mudou de forma incisiva as
com vistas para a institucionalização de novos estruturas das cidades, orientando uma nova reor-
órgãos voltados para o planejamento, como é o ganização que primava pelo planejamento urbano,
caso do CPEU, criado em 1955 sob a direção de a ser aplicado em todos os setores, em especial,
Anhaia Mello. O órgão orientou a elaboração de na organização do solo urbano, demanda por mo-
planos e organizou o setor de planejamento das radias, (re)organização da estrutura viária, criação
administrações com equipes multidisciplinares de espaços livres de uso público, dentre outros.
que compunham um novo quadro de organização
para atender as demandas das cidades. As transformações da sociedade brasileira vincula-
das à indústria e ao processo de planejamento busca-
Entre os anos de 1940 e 1960 tem origem os depar- vam critérios e condições organizacionais para a ex-
tamentos de urbanismo ou similares, de caráter pansão econômica, sob o controle do estado, como
consultivo e estabelecidos pelas comissões de pode ser visto nos estudos de Bielschowsky (2000).
cidade, que denotavam a atuação exclusiva do
urbanista. A partir disso são extintos os depar- a) a industrialização integral é a via de supe-
tamentos de municipalidades, que foram cria- ração da pobreza e do subdesenvolvimento
dos para atender as pequenas cidades, tendo brasileiro; b) não há meios de alcançar uma
em vista que não eram vinculadas a parâmetros industrialização eficiente e racional no Bra-
do planejamento. sil através das forças espontâneas de mer-
cado; por isso, é necessário que o Estado
O golpe da ditadura militar em 1964 influenciou de a planeje; c) o planejamento deve definir a
forma direta a prática do planejamento urbano, expansão desejada dos setores econômi-
que se fortaleceu a partir da criação do SER- cos e os instrumentos de promoção dessa
FHAU (LEME, 1982). Desse modo, na década de expansão; e d) o Estado deve ordenar tam-
1960 “[...] o SERFHAU centraliza essa atividade bém a execução da expansão, captando
envolvendo empresas privadas de consultoria, e orientando recursos financeiros, e pro-
que se fortalece com [...] a ênfase na formação movendo investimentos diretos naqueles
de quadros técnicos internos às administrações setores em que a iniciativa privada seja in-
municipais, que prevalecia desde os anos de 1930, suficiente. (BIELSCHOWSKY, 2000, p.72-73)
se desvanece” (FELDMAN, 2005, p. 223). Este
momento contribuiu para a estruturação da linha Esta nova forma de planejar as cidades rompe
do pensamento urbanístico no Brasil, que se for- com os padrões de planejamento urbano no Bra-
taleceu na década de1970 com a intensificação sil, calcado nos ideais do embelezamento e de
da produção dos PDDIs. cunho higienista, aplicado à população de maior
poder político e de alta renda, padrão este que
Para Villaça (1999, p. 172), “o conceito dominante de vinha se desenvolvendo nas últimas décadas. O
planejamento urbano tem como especificidade a caráter integrado do planejamento versava pelo
organização do espaço urbano e aplica-se à cida- desenvolvimento, também integrado de toda a
de individualmente” e, nesta lógica, podemos ver comunidade a ser atendida e pelas proposições de
que o SERFHAU buscou estimular o planejamento, um conjunto de orientações envolvendo diversos
considerando, em cada plano que financiou as setores do município.
especificidades e potencialidades das cidades
através de diretrizes e planos de ação do gover- Cabe ainda dizer que, mesmo sendo política, a
no, considerando as particularidades de cada decisão de planejar ancorada na produção de
município individualmente, muito embora, em planos se estabeleceu de forma essencialmente
vários deles, este trabalho realizado pelo órgão técnica, na qual as equipes de planejamento bus-
não tenha alcançado o êxito pretendido. caram a continuidade deste processo através da
preparação e designação de cursos voltados para
O incremento demográfico nas áreas urbanas o tema, os quais foram de extrema importância,
na segunda metade do século XX, composto es- não apenas para a implantação, mas também
pecialmente por pessoas que vinham atraídas para tornar contínuo o estabelecimento do pla-
pelas ofertas de trabalho que a indústria oferecia, nejamento no período militar.
EIXO TEMÁTICO 2 HISTÓRICO DO PLANEJAMENTO URBANO
NO MUNICÍPIO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
A produção do espaço, a partir da compreensão
da organização socioespacial, pode ser entendida
“como uma consequência direta das relações en-
tre processos econômicos, políticos e culturais”,
não se limitando, portanto, à estrutura conceitual
das formas espaciais baseadas na cidade (GOT-
TDIENER, 1993, p. 196).

Presidente Prudente possui características im-


portantes que motivaram esse estudo, em função
do porte, aspectos geográficos e regionais. Situa-
do no sudoeste do estado de São Paulo, na região
do Pontal do Paranapanema ou Alta Sorocabana
(Figura 1), é um município de médio porte, que tem
como característica um relevante poder polariza-
dor regional, tendo, em função disso, recebido o tí-
tulo de “capital da Alta Sorocabana” (ABREU, 2001).

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
Figura 1: Localização de Presidente Prudente. Fonte: Pe-
2156 dro (2009, p. 4).
Isso se expressa na medida em que é a única cida- O loteamento implantado por Goulart era conside-
de no Sudoeste paulista, num raio de ao menos 150 rado um empreendimento individual, com inten-
km, a oferecer bens e serviços em níveis suficien- ção de pioneirismo, destinado ao povoamento e
tes para polarizar mais de 50 cidades de menor atração de compradores para as terras dos arre-
tamanho populacional e de menor complexidade dores, enquanto o loteamento de Marcondes apre-
funcional (SPOSITO; GÓES, 2013). Desse modo, sentava caráter mais empresarial3, até mesmo
investigar as características do processo de in- com investimentos em propaganda (SCATALON,
trodução das políticas de planejamento em uma 2019). Essas diferenças propiciaram a ocupação
cidade média, com alto grau de atração regional, da Vila Goulart, que tinha aquisição facilitada,
permite compreender se existem condicionantes por ser mais informal, ter menos burocracias e
específicos em função do porte do aglomerado possuir terrenos mais baratos (SCATALON, 2019).
urbano.

Entender o território como o espaço historica-


mente produzido pela ação social (SANTOS, 2014,
p. 62) reflete os aspectos que são analisados para
estudar o território de Presidente Prudente no
trabalho de Scatalon (2019), no qual a problemáti-
ca foi construída através da interlocução de três
vetores principais: habitação, planejamento e
expansão urbana. Essa análise, pautada em um
ponto de vista histórico, tenta entender a lógica
de sua produção do espaço urbano, ou seja, sua
organização territorial compreendida pela atua-
ção de seus agentes.

Sua origem e constituição regional, que constitui


um aporte importante para a compreensão de sua
urbanização, ocorreu no contexto da expansão
cafeeira na direção do oeste do estado de São
Paulo no início do século XX, após a promulgação
da Lei de Terras de 1850, que consolidou a estru-
tura fundiária por meio da propriedade privada.

O núcleo urbano inicial de Presidente Prudente


(indicado com letras A e C na Figura 2), fundado
em 1917, foi criado com base em um modelo de
urbanização no qual a cidade é um “trampolim”
para a ocupação da zona rural, ou seja, a cidade
é o suporte para a expansão rural, expressando
ação urbanizadora do café no oeste do estado
(ABREU, 1972). Esse núcleo teve como caracte-
rística uma “dupla colonização”, com seus dois
primeiros loteamentos sendo idealizado pelos
coronéis Goulart e Marcondes2.

2. O trabalho de Scatalon (2019) ressaltou a importância


dos agentes sociais na (re)produção material do espaço 3. O caráter empresarial das negociações de terras do Coro-
urbano de Presidente Prudente, o que remonta desde sua nel Marcondes é expresso pelo modo de operacionalização,
fundação, “na medida em que pressionam para que o Es- realizada através uma sociedade especializada na coloni-
tado, com a sua normativa, promova o que lhes interessa” zação de terras, a Companhia Marcondes de Colonização,
(SCATALON, 2019, p. 185). Indústria e Comércio.
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

Figura 2: Estudo da expansão urbana de Presidente Pru-


dente (1917-2001). Fonte: Scatalon (2019, p. 210).

O estudo da urbanização de Presidente Prudente,


analisando suas dinâmicas sociais, econômicas
e políticas, compreendendo todo o processo de
fundação e formação regional, nos auxilia a com-
preender o que culminou na inserção da política
urbana no município, nas décadas de 1960 e 1970,
tanto no âmbito do planejamento4, devido ao es-

4. Scatalon (2019) demonstra que a introdução na política


de planejamento no município, considerando os planos
documentais, aconteceu a partir do desenvolvimento do
seu PDDI, na década de 1960. Antes da aprovação da lei do
plano (nº 1.582/1973), houve o que a autora caracteriza como
16º SHCU
“tentativas pioneiras de elaboração de planos com a função
30 anos . Atualização Crítica
de subsidiar as atividades administrativas no município”
2158 (SCATALON, 2019, p. 66). Durante a gestão de Watal Ishibashi,
tudo e elaboração do primeiro plano diretor e do se plano, que, portanto, trazia em seu bojo uma
plano do distrito industrial, quanto no da habi- correlação entre industrialização e planejamento.
tação, com a implantação do primeiro conjunto
habitacional financiado com recursos públicos A necessidade da existência de um plano diretor
(SCATALON, 2019). Esses fatores compõem um para a regulamentação da implantação do Dis-
quadro de transformação no campo habitacional e trito Industrial merece um especial destaque,
do planejamento em nível federal, a partir do golpe já que foi o que motivou as pressões para que o
militar de 1964, com repercussões no território. processo de elaboração do plano retomasse seu
andamento. O interesse para a elaboração do
Desse modo, o período reflete o cenário de trans- Plano Diretor, neste período, refletiu as políticas
formações institucionais relativos à política urba- de desenvolvimento empreendidas pelo governo
na, compreendendo uma fase de transformação federal e estadual, que se acentuaram nas próxi-
muito significativa na política habitacional brasi- mas décadas, destacando-se a descentralização
leira, marcada pela sua institucionalização, por industrial, o que repercutiu diretamente em Pre-
meio da criação do BNH no marco do Sistema sidente Prudente (MARISCO, 1997, p. 83).
Financeiro de Habitação (SFH), pela ampliação
O propósito da instalação do Distrito Industrial
do caráter massivo da produção habitacional e
no município e seu posicionamento no estado de
pelo financiamento da habitação em longo prazo
São Paulo como sede da capital regional da Alta
(NEGRELOS, 2014).
Sorocabana orientou toda a proposta de concep-
ção urbanística e de políticas de desenvolvimento
A produção de habitação social em Presidente
que constam no plano (MARISCO, 1997, p. 123).
Prudente foi inaugurada por meio da atuação do
BNH, que foi responsável pelo financiamento do Verificou-se na atuação do SERFHAU, cuja me-
primeiro conjunto habitacional público, aprovado todologia serviu como referência ao plano de
em 1967. Além desse marco da política habitacio- Presidente Prudente, o objetivo de estimular o
nal, também se iniciaram na década de 1960 as planejamento urbano no Brasil por meio do incen-
discussões para o desenvolvimento do primeiro tivo da estruturação do zoneamento municipal,
plano diretor da cidade e do projeto do distrito trabalhando com os planos de cada cidade indi-
industrial, o que constituiu o conjunto de planos vidualmente (VILLAÇA, 1999). Essa abrangência
que marcaram a introdução da política urbana. demonstra como o SERFHAU se estabeleceu
como órgão de orientação do planejamento em
Além da obrigatoriedade de elaboração de planos nível federal.
diretores estabelecida na nova lei orgânica dos
Municípios de 1967 (Lei nº 9.842), que trazia uma A partir do princípio de sua atribuição de ordena-
vinculação direta para a concessão de emprés- mento territorial das cidades, o planejamento foi
timos, através do SERFHAU e do governo esta- idealizado como um instrumento para o desen-
dual (MARISCO, 1997), a implantação do Distrito volvimento socioespacial, propiciando o direito
Industrial, relacionado à política de planejamento à cidade, mas existem críticas quanto às suas
regional de criação de polos de desenvolvimento, noções ideológicas como componentes técnicos.
foi o principal fator que motivou a elaboração des- Lefebvre (2008) defende que o urbanismo é uma
ciência ideológica e tecnocrática, que parte da
necessidade de uma disciplina que seja capaz de
foram aprovados dois planos de caráter setorial: O PLAME
organizar esse espaço da produção - capitalista,
(Plano Mínimo de Educação, aprovado pela Lei nº 1153/1966),
por excelência. Como resposta a essa interme-
que teve como objetivo a definição da política educacional
do município, e o Plano Sanitário e de Promoção Social (Lei
diação do urbanismo como ideologia, Lefebvre
1.340/1968), que buscava a promoção de políticas públicas (2008) sugere a participação e auto-gestão da
municipais no atendimento da área de saúde e assistência população, que deveria se apropriar da cidade e
social. Não houve uma implementação efetiva em relação decidir sobre seu espaço de vida.
a ambos os planos, sendo colocadas em prática somente
algumas propostas que se limitaram à gestão em que foram “O planejamento vinculado à elaboração de PDDI
criados, já que não houve continuidade de implementação está demonstrado pelos vários trabalhos que
dos planos com a mudança de administração municipal. analisam municípios com planos desse período
EIXO TEMÁTICO 2 baseados na centralização de poder no Executivo
e na inexistência da participação da sociedade”
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS (NEGRELOS; CUCATO; SCATALON, 2019, p. 8, grifos
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES nossos). A participação da comunidade local no
processo de elaboração do PDDI de Presidente
Prudente, mesmo que de forma elitista, priori-
zando a classe média, configurou uma diferença
metodológica dos outros planos diretores pro-
duzidos no período, sendo uma característica
destacável que podemos observar nas suas fases
de desenvolvimento (SCATALON, 2019).

A partir disso, exploramos o processo de desen-


volvimento do PDDI de Presidente Prudente, o
primeiro plano diretor do município, que nos ofe-
rece uma série de elementos para a compreensão
do tensionamento entre a ideia de planejamento
técnico e as críticas ao seu caráter ideológico,
processo este que será abordado a partir da corre-
lação entre planejamento e industrialização – que
se evidencia pelo fato de que o desenvolvimento
desse plano diretor, marco de inserção da política
urbana na cidade, foi motivado pela implantação
do Distrito Industrial, relacionado à política de
planejamento regional de criação de polos de
desenvolvimento.

PLANEJAMENTO E INDÚSTRIA EM
PRESIDENTE PRUDENTE

O PDDI desenvolvido pelo CPEU


para o município

No trabalho de Scatalon (2019), o quadro de plane-


jamento urbano em Presidente Prudente foi anali-
sado a partir da atuação do poder público munici-
pal quanto às políticas públicas, o que nos auxilia
a compreender o processo de desenvolvimento
do seu plano diretor, que pôde ser analisado por
meio das leis e decretos municipais promulgados
com relação a esse tema5.

Em sua etapa inicial, o plano foi apresentado a


partir de cinco fases de desenvolvimento. A pri-
meira fase (1960-63) corresponde às primeiras

16º SHCU
5. As leis e decretos municipais de Presidente Prudente
30 anos . Atualização Crítica
estão disponíveis na url: <http://www.presidenteprudente.
2160 sp.gov.br/ site/leis_decretos.xhtml>.
discussões, compreendendo: a autorização para se média, restringindo a mobilização da sociedade
contratação, com aprovação de crédito para as local a essa parcela específica da sociedade, que,
despesas de elaboração do plano em junho de enquanto classe dominante, dispunha de estra-
1960; e a instituição da Comissão do Plano Di- tégias de atuação nos processos de elaboração
retor da cidade (Lei nº 621/1961), em março 1961. dos planos diretores, com o propósito de renovar e
A segunda fase compreende: a contratação da reforçar sua ideologia de exercício de dominação
equipe e sua elaboração (1965-1969); a assinatura e manutenção no poder (VILLAÇA, 1999).
do convenio entre CPEU e a prefeitura municipal
(em 1966); a instituição da Comissão do Plano De qualquer forma, a criação do Escritório Técnico
Diretor, entre 1968 e 1969; e conclusão dos estu- possibilitou a existência de uma equipe multidisci-
dos necessários para o PDDI (com a publicação plinar que contava com integrantes da sociedade
do trabalho). local, o que diferia da prática usual de elaboração
de planos diretores nesse período, que por não
Nessa etapa, houve a instituição da comissão do incorporarem processos participativos da socie-
Plano Diretor, através da Lei nº 1.203/1967, com dade, por via de regra, integravam uma equipe
criação de uma comissão que atribui uma carac- técnica sem vivência com as especificidades do
terística participativa ao processo de elaboração município (MARISCO, 1997).
do plano, que integrava a sociedade local e o poder
público. Essa organização, composta por quinze A terceira fase de elaboração compreende uma
membros indicados por entidades de classe e paralização no andamento do plano durante o
associações cívicas ou culturais do município mandato Antônio Sandoval Netto como prefeito,
(art. 2º da Lei nº 1.203/1967), foi uma recomen- entre 1969 e 1973, o que teve como consequên-
dação apresentada pelo CPEU, que propunha cias muitas críticas quanto a esse atraso, que
uma composição de 9 a 15 membros indicados eram noticiadas pelos meios de comunicação
pela Câmara Municipal e associações cívicas e como “engavetamento” do plano, o que incluía uma
de classes (MARISCO, 1997, p. 86). tentativa do prefeito de sua devolução para nova
“apreciação”. A pressão verificada nas notícias de
Nessa mesma lei, houve a criação de um Escritório jornais da época era motivada pela implementa-
Técnico, que se constitui como mais um compo- ção do Distrito Industrial, sendo este o principal
nente integrante do quadro participativo na sua fator para elaboração do plano, como já foi men-
elaboração, sendo responsável pela realização cionado. Essa fase também incluiu: a entrega do
de trabalhos relacionados à elaboração e implan- plano pela equipe do CPEU ao prefeito em 1970;
tação do Plano Diretor, a partir da coordenação uma autorização para contratar sua elaboração,
de um arquiteto ou engenheiro (art. 7º da Lei nº em 1971 (Lei nº 1.456); e novo “engavetamento” até
1.203/1967). Desse modo, a lei apresentava uma fim do mandato de Antônio Sandoval Netto, em
ideia de implementar a mobilização da comuni- 1973. A quarta fase (1973-77) compreende a apro-
dade local quanto ao processo de elaboração do vação da lei do plano diretor em 1973 (Lei 1.582),
Plano Diretor, por meio do estabelecimento de integrando a aprovação do zoneamento urbano
que os trabalhos do Escritório Técnico deveriam (Lei nº 1.583/1973), com implementação durante
ser “desenvolvidos com a colaboração de pessoal o mandato de Walter Soares Lemes (1973-77),
residente no município, especializado em proble- do partido ARENA. Quanto a isso, é destacável
mas relacionados com o planejamento municipal” a necessidade que existia de implementação do
(art. 7º da Lei nº 1.203/1967), recomendando-se Plano Diretor para solicitar recursos para a reur-
a escolha de assessores técnicos que fossem banização do fundo de vale do Córrego do Veado,
agrônomos, sociólogos, advogados e economis- com a construção do Parque do Povo - que se
tas, dentre outros especialistas disponíveis e constituiu como uns dos principais espaços de
convenientes ao processo. lazer na cidade, cujo projeto de implantação do
parque gerou valorização de seu entorno, cul-
Apesar da efetividade dessa esfera participativa, minando em uma transformação do padrão de
através da criação da Comissão e do Escritório ocupação da área que representou uma alteração
Técnico, Marisco (1997) nos lembra a limitação da significativa da estruturação territorial da cidade
esfera participativa na elaboração do plano à clas- e do município.
EIXO TEMÁTICO 2 A quinta fase do plano, de pós implementação,
ocorre no mandato de Paulo Constantino como
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS prefeito (1978-82), compreendendo a criação
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES de órgão específico para tratar de assuntos do
planejamento municipal (Lei nº 1.858/1977 – que
trata do Sistema de Planejamento, Coordenação
e Controle).

Quanto à sua caracterização, o plano continha as


seguintes propostas de políticas e diretrizes de
desenvolvimento: Políticas e diretrizes de desen-
volvimento econômico; Políticas e diretrizes de
desenvolvimento social; Políticas e diretrizes de
desenvolvimento físico-territorial; e Diretrizes do
Plano de Massa (que incluía a expansão urbana,
estrutura urbana, sistema viário, uso e ocupação
do solo, e zoneamento urbano).

Os volumes IV e V apresentam os mapas, plantas,


gráficos e organogramas do município e da cidade.
Destaca-se nesses volumes os mapas com as
“Hipóteses de expansão urbana – prioridades”, o
“Plano de massa (1968-1980)”, e do “Zoneamento
urbano”, que serão abordados e detalhados na
análise a seguir.

O mapa com as hipóteses de expansão urbana


(Figura 3), abordado no volume III do Plano Diretor
(nas páginas 393 e 394), previa uma expansão em
direção às porções oeste, noroeste, sudoeste e
sudeste (indicadas nesta ordem de prioridade
no mapa).

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

2162
Figura 3: Hipóteses de expansão urbana - prioridades. Fonte: PLANO DIRETOR (1968/1969, prancha nº 76).

Quanto à expansão urbana, havia diretrizes pre- sionar a ocupação, promoveu a transformação
conizando o favorecimento do crescimento no e valorização da área do entorno do Parque do
sentido oeste, noroeste e sudoeste, além da Povo (SCATALON, 2019). O Córrego do Veado, an-
ocupação dos fundos de vales dos Córregos do tes de sua reurbanização promovida pelo CURA,
Veado e Ferreirinha. Essas recomendações, es- se constituía como um obstáculo à ocupação
pecialmente quanto às porções 1 e 2, indicadas daquela área, que, mesmo já possuindo alguns
como expansão “prioritária”, tinham a finalidade loteamentos implantados desde o início da década
de promover o crescimento compacto da cidade, de1960, como o Jardim Bongiovani, não alcançava
de modo que propiciasse “a integração do espaço uma ocupação efetiva em função da situação de
de crescimento à área urbana atual, sem uma dis- isolamento, sem infraestrutura urbana - o que
tinção proporcionada do perímetro, conservando, incluía a falta de comércio local.
o mais possível o caráter compacto da cidade”
(PLANO DIRETOR, 1968/1969, p. 393). A segunda área de expansão, situada na porção no-
roeste, é limitada pelo “distrito industrial especiali-
A hipótese de expansão oeste (indicada pelo nú- zado”, que também é proposto no Projeto do Distrito
mero 1 no mapa da Figura 3), com ocupação da Industrial elaborado pelo CIPU/ CPEU, em período
área entre a rodovia Raposo Tavares e Avenida coincidente ao plano diretor. A partir do final da
Manoel Goulart, se efetivou a partir da década década de 1970, essa direção de expansão integrou
de 1970 (como pode ser visto na Figura 2), como uma extensão da malha que ultrapassou essa limi-
reflexo da infraestrutura promovida por meio de tação prevista, tendo como vetor a implantação de
recursos do Programa CURA, que, além de impul- grandes conjuntos habitacionais públicos implan-
EIXO TEMÁTICO 2 tados fora da malha consolidada (como o Bartho-
lomeu Bueno de Miranda e Parque CECAP), con-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS solidando um modelo de crescimento aos saltos.
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
A terceira área de expansão, definida como “com-
plementar” quanto ao crescimento no plano, é
indicada na porção sudoeste da cidade e configu-
rava uma previsão de ocupação que ultrapassaria
a rodovia Raposo Tavares, o que coincide com a
ideia de que as rodovias geralmente se constituem
como barreiras para a expansão urbana. Essa por-
ção foi ocupada a partir da década de 1990, tendo
a implantação de grandes conjuntos públicos
como vetor de crescimento - com destaque para a
inserção do Mário Amato e Ana Jacinta, entre 1990
e 1992, somando um conjunto de 3 mil moradias
implantadas fora da malha urbana consolida-
da, constituindo uma área intersticial que ainda
não foi ocupada inteiramente até os dias atuais.

A quarta área prevista para expansão, indicada


como expansão “alternativa” no plano, na porção
sudeste, não teve sua ocupação consolidada,
refletindo a dificuldade de crescimento que Presi-
dente Prudente apresenta quanto ao lado leste da
linha férrea – o que remonta à constituição original
de sua ocupação, refletindo a diferença entre a
colonização dos coronéis Goulart e Marcondes.

O Plano de Massa (1968-1980) (Figura 4), que integra


as “diretrizes de organização espacial” (item 5.3
do plano), se relaciona com “os princípios, dados
e determinantes urbanísticos expostos nos itens
antecedentes [...] [apresentando] opções e deci-
sões principais que, abrangendo os vários setores
do desenvolvimento urbano, definem a proposi-
ção” (PLANO DIRETOR, 1968/1969, p. 393). O Plano
de Massa (item 5.3.3.4.) envolve proposições e
diretrizes básicas para: o sentido de expansão;
a estrutura urbana; o sistema viário; e para as
áreas de uso residencial, de polarização, verdes,
industriais, de uso especial e de distribuição es-
pacial de equipamentos.

Para tanto, ele apresenta duas funções à


cidade: a função política-administrativa, a
partir da definição de Presidente Prudente
como capital regional, desempenhando sua
função polarizadora; e a função econômica,
com base na implantação do Distrito Indus-
16º SHCU trial, em um contexto de descentralização
30 anos . Atualização Crítica
industrial que era aspirada como política
2164 estadual. (SCATALON, 2019, p. 74)
Figura 4: Plano de massa e estrutura urbana recomendados (1968-1980). Fonte: PLANO DIRETOR (1968/1969, prancha nº 77).

Em relação ao uso e ocupação, o mapa de Zo-


neamento (Figura 5) indica áreas residenciais de
alta densidade de ocupação nas adjacências das
áreas de polarização, de modo que se percebe um
gradiente no sentido do centro para a periferia
quanto às densidades determinadas. Deste modo,
as áreas entre o quadrilátero central e a aveni-
da Manoel Goulart (definidas como áreas de alta
polarização no Plano de Massas, apresentado na
Figura 4), são definidas como de alta densidade,
que vão se tornando gradualmente média e baixa
conforme se faz um movimento de deslocamento
para as regiões mais periféricas.
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

Figura 5: Zoneamento urbano. Fonte: PLANO DIRETOR


(1968/1969, prancha nº 82).

Outro ponto destacável no mapa de zoneamento


do plano é a definição de áreas de caráter indus-
trial, definidas no mapa como “Z13-zonas indus-
triais urbanas”, com delimitação da área espe-
cífica para implantação do Distrito Industrial, o
que tornava possível sua implementação – como
já foi abordado, isso motivou a elaboração de um
plano diretor da cidade.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

2166
A proposta do distrito industrial desenvolvida entregue para a CIBPU em 1954, ano que
pelo CIBPU e CPEU para Presidente Prudente se iniciam as dotações orçamentárias dos
Estados. (CHIQUITO, 2010, p. 13)
O desenvolvimento do projeto do distrito indus- Quanto ao desenvolvimento regional, o Distrito
trial em Presidente Prudente, que estava na base Industrial estava na base na ideia do desenvolvi-
da ideia do desenvolvimento regional a partir da mento regional a partir da expansão da indústria
expansão da indústria para o interior, era uma pro- para o interior, com o objetivo de “proporcionar a
posta de organização regional, que foi o primeiro ampliação dos rendimentos crescentes da indús-
e mais fiel projeto do modelo marshalliano de tria e promover o transbordamento do desenvol-
Distrito Industrial. O desenvolvimento do projeto vimento regional” (TAVARES, 2015, p. 131).
integrava o quadro de inserção da política urbana
no município no âmbito do planejamento, refle- O convênio realizado entre a CIBPU, CPEU e pre-
tindo o movimento de interiorização da atividade feitura municipal resultou em estudos que foram
industrial no estado de São Paulo. A ‘atividade publicados por meio da monografia “Projeto de
industrial’ pode ser utilizada para designar a ati- um Distrito Industrial - Presidente Prudente”,
vidade produtiva vinculada à indústria, direta ou compreendendo análises e a proposta para sua
indiretamente, sem que esteja restrito ao setor implantação no município6.
secundário da economia (TAVARES, 2015).
A presente monografia, procura mostrar a
A escolha para a implementação do primeiro esperiência (sic) internacional em distritos
distrito industrial foi baseada no diagnóstico da industriais e os casos em que esta técnica
CIBPU (Comissão Interestadual da Bacia Paraná- foi empregada no Brasil. Como aplicação
-Uruguai), instituído em 1952 como resultado dos dos conceitos contidos no estudo, reali-
debates instituídos um ano antes na 1ª Conferência zou-se um estudo pilôto para a implantação
dos Governadores do Centro-Sul, reunindo os sete de um distrito industrial na cidade de Presi-
estados que compunham a Bacia do Paraná (São dente Prudente, iniciativa esta que contou
Paulo, Santa Catarina, Paraná, Mato Grosso, Rio não só com a colaboração da Prefeitura e
Grande do Sul, Goiás e Minas Gerais). O estudo da Câmara Municipal, como de tôdas as
apontou cidades com potencial de crescimento. forças representadas daquela comunidade.
(PLANO DIRETOR, 1968/1969, p. 11)
O desenvolvimento da proposta de distrito in-
dustrial para Presidente Prudente partiu desse O trabalho é estruturado em oito partes, contendo
estudo interestadual elaborado pela CIBPU (no seu estudos de caso de distritos industriais no país
Departamento de Planejamento Econômico e So- e no exterior, um estudo sobre a interiorização
cial - DPES), intitulado de Plano de Industrialização industrial, uma apresentação do município de Pre-
Regional, de 1963 (CHIQUITO, 2010), que resultou na sidente Prudente e o contexto regional e, por fim,
escolha de um polo urbano com potencial de de- a apresentação do distrito industrial proposto,
senvolvimento que pudesse atender ao mercado contendo, inclusive, um detalhamento quanto aos
da região metropolitana de São Paulo e às regiões aspectos construtivos referente à pré-fabricação,
subsidiárias de desenvolvimento do estado de São relacionados à industrialização da construção.
Paulo e imediações. Além disso, o plano atribui
A alocação proposta do CPEU para a área do Dis-
importância aos polos e eixos regionais.
trito Industrial (Figura 6) levou em consideração
[...] o CPEU da FAUUSP que em 1968 desen- a direção das massas de vento, preocupando-se
volveu um estudo para um distrito industrial para se evitar a poluição do ar com odores pro-
no município de Presidente Prudente/SP. O venientes das instalações indústrias poluentes.
forte papel do Estado de São Paulo no de-
senvolvimento da região e a articulação do 6. O trabalho não possui uma data especificada na publica-
governo de Lucas Garcez com a SAGMACS ção, já que não possui ficha catalográfica, mas estima-se
se desdobram na realização do estudo “Pro- que a data provável de publicação seja em 1968 (ou antes),
blemas de Desenvolvimento: Necessidades com base na data registrada no carimbo de aquisição da
e Possibilidades do Estado de São Paulo” biblioteca do exemplar consultado.
EIXO TEMÁTICO 2
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES

Figura 6: Levantamento de Presidente Prudente (com im-


plantação do Distrito Industrial proposto). Fonte: Prancha
integrante da monografia “Projeto de um Distrito Industrial:
Presidente Prudente” - CIBPU; CPEU (1968?).

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

2168
A localização desse distrito foi uma exceção, por lecer, em discrepância à ideia que toda a dinâmica
ser o único no extremo oeste do estado, estando econômica e produtiva do interior é conduzida
fora da área de influência direta da capital. Sua im- pela metrópole em um movimento unilateral.
plementação em Presidente Prudente não ocor-
reu aos moldes marshallianos, como havia sido Nesse sentido, concordamos com a abordagem
proposto na monografia elaborada pelo CIBPU de Cano (2008) sobre a descentralização produ-
e CPEU, mas, de fato, na área determinada pela tiva nacional, reconhecendo a importância das
proposta (Figura 6), até porque isso coincide com cidades médias na estrutura econômica nacional,
o que foi determinado no mapa de zoneamento em contraponto à ideia de expansão da metropo-
urbano do PDDI do município (Figura 5). Na área lização para o interior do estado defendida por
determinada pela proposta, que fica localizada Lencioni (2002), na qual destaca-se a importância
às margens da rodovia Raposo Tavares, foram central da capital e da Região Metropolitana de
alocados os seguintes núcleos industriais: Núcleo São Paulo (RMSP) quanto à indústria para todo o
Industrial de Presidente Prudente “Antônio Cre- país, em relação à concentração e centralização
paldi” (NIPP-I) e Núcleo Industrial de Presidente (metropolitana) de investimentos e decisões so-
Prudente II (NIPP-II). bre eles.

A relação que se estabeleceu entre industrializa-


ção e planejamento no município se manifestou
especialmente na medida em que foi “cristalizada”
na figura dos planos desenvolvidos na década
de 1960, que orientaram a introdução da política
urbana no município, registrados em duas pe-
ças técnicas de planejamento: “Plano diretor de
Presidente Prudente” e “Projeto de um distrito
industrial”, ambos elaborados pelo CPEU, sendo
o primeiro com a utilização da metodologia do
SERFHAU e o último em parceria com a CIBPU.
A importância desses projetos esteve firmada
na ideia do desenvolvimento regional a partir da
expansão dos processos de interiorização da
indústria, sendo, a implantação do Distrito In-
dustrial a base deste estímulo em Presidente
Prudente, o que contribui sobremaneira para a
orientação do desenvolvimento e importância dos
polos e eixos regionais, fortalecendo a ideia de
que tais planos e projetos são a expressão clara
que a interiorização da indústria foi acompanhada,
também, pela interiorização do planejamento e
consequentemente do desenvolvimento de regi-
ões recém ocupadas no oeste paulista, no bojo
do desenvolvimentismo no estado de São Paulo
no período estudado.

Como perspectiva disso, as novas dinâmicas in-


dustriais entre o final do século XX e início do XXI,
considerando as análises contemporâneas das
características e tendências da reestruturação
produtiva verificada no interior paulista, indicam
que a metrópole apresentou um movimento de
disjunção produtiva (SPOSITO, 2015), utilizando a
acumulação capitalista do interior para se forta-
EIXO TEMÁTICO 2 REFERÊNCIAS
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EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Este artigo tem por objetivo discutir as relações
contemporâneas entre a produção do espaço
urbano, das sociabilidades urbanas e suas rela-
vídeo-pôster ções com a biopolítica - via política habitacional.
Para tanto, analisamos o funcionamento do Pro-
grama Minha Casa Minha Vida, sua relação com
POLÍTICA HABITACIONAL: a produção do espaço urbano e o público atendi-
do, especialmente os mais pobres (Faixa 1). No-
ENTRE O FAZER VIVER E tamos um direcionamento altamente especiali-
zado e “técnico” que seleciona a população mais
DEIXAR MORRER pobre, usualmente negra, e as conduz para os
bairros localizado nas periferias urbanas, onde
a terra é mais barata e o lucro é maior para as
HOUSING POLICY: BETWEEN MAKING LIVING AND empreiteiras. Como consequência, produz-se
LETTING DIE bairros altamente estigmatizados, produzin-
do, no imaginário social o sujeito preto, pobre,
POLÍTICA DE VIVIENDA: ENTRE HACER QUE VIVIR Y periférico, criminoso e violento. Sob a ótica do
DEJAR MORIR Foucault e Agamben, por meio da biopolítica o
Estado faz viver e deixa morrer. Neste caso, a
produção de um sujeito altamente estigmatiza-
BREDA, Thalles Vichiato
do colaborar para o fazer morrer, para a produ-
Doutorando em Sociologia; Programa de Pós-graduação em ção da vida nua, do sujeito descartável, passível
Sociologia - Universidade Federal de São Carlos - UFSCar
de intervenções estatais e policiais, controle
thallesvbreda@gmail.com
carcerário e execuções sumárias que não inco-
modam a cidade consolidada. Neste contexto, o
Programa Minha Casa Minha Vida Faixa 1 pare-
ce colaborar incisivamente para a produção de
bairros periféricos estigmatizados e, por con-
sequência, a estigmatização e desumanização
de seus moradores.

PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO


PROGRAMA MINHA CASA MINHA VIDA BIOPOLÍTICA
VIDA NUA GESTÃO DA POBREZA

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

2172
ABSTRACT RESUMEN

This article aims to discuss the contemporary re- Este artículo tiene como objetivo discutir las re-
lations between the production of urban space, laciones contemporáneas entre la producción
urban sociability and its relations with biopoliti- del espacio urbano, la sociabilidad urbana y su
cs - via housing policy. To this end, we analyzed relación con la biopolítica, a través de la política
the functioning of the Minha Casa Minha Vida de vivienda. Con este fin, analizamos el funciona-
Program, its relationship with the production of miento del Programa Minha Casa Minha Vida, su
urban space and the public served, especially the relación con la producción del espacio urbano y el
poorest (Group 1). We note a highly specialized público atendido, especialmente los más pobres
and “technical” direction that selects the poorest (Grupo 1). Observamos una dirección altamen-
population, usually black, and leads them to the te especializada y “técnica” que selecciona a la
neighborhoods located in the urban peripheries, población más pobre, generalmente negra, y los
where the land is cheaper and the profit is grea- lleva a los barrios ubicados en las periferias urba-
ter for the contractors. As a consequence, highly nas, donde la tierra es más barata y las ganancias
stigmatized neighborhoods are produced, pro- son mayores para los contratistas. Como conse-
ducing, in the social imaginary, the black, poor, cuencia, se producen barrios altamente estigma-
peripheral, criminal and violent subject. From the tizados, que producen, en el imaginario social, el
perspective of Foucault and Agamben, through sujeto negro, pobre, periférico, criminal y violen-
biopolitics the State makes it live and lets it die. In to. Desde la perspectiva de Foucault y Agamben,
this case, the production of a highly stigmatized a través de la biopolítica, el Estado lo hace vivir y
subject collaborates to make him die, for the pro- lo deja morir. En este caso, la producción de un
duction of naked life, of the disposable subject, sujeto altamente estigmatizado colabora para
subject to state and police interventions, prison hacerlo morir, por la producción de la vida des-
control and summary executions that do not dis- nuda, del sujeto desechable, sujeto a interven-
turb the consolidated city. In this context, the Mi- ciones estatales y policiales, control de prisiones
nha Casa Minha Vida Program Group 1 seems to y ejecuciones sumarias que no perturban la ciu-
collaborate incisively for the production of stig- dad consolidada. En este contexto, el Programa
matized peripheral neighborhoods and, conse- Minha Casa Minha Vida Grupo 1 parece colaborar
quently, the stigmatization and dehumanization incisivamente para la producción de barrios pe-
of its residents. riféricos estigmatizados y, en consecuencia, la
estigmatización y deshumanización de sus resi-
dentes.
URBAN SPACE PRODUCTION
MINHA CASA MINHA VIDA PROGRAM BIOPOLITICS
PRODUCCIÓN DE ESPACIO URBANO
NAKED LIFE POVERTY MANAGEMENT
PROGRAMA MINHA CASA MINHA VIDA BIOPOLÍTICA
VIDA DESNUDA GESTIÓN DE LA POBREZA
EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
Este artigo tem por objetivo discutir as relações
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
contemporâneas entre a produção do espaço
urbano e das sociabilidades urbanas via política
habitacional e suas relações com a biopolítica.
vídeo-pôster
O objeto de análise será o Programa Minha Casa
Minha Vida – Faixa 1 (PMCMV-1), tangenciando o

POLÍTICA HABITACIONAL: caso de São Carlos (SP) – especialmente empre-


endimentos que se localizam na zona sudoeste do

ENTRE O FAZER VIVER E município, conhecido como o “grande território”


de pobreza municipal, com uma população de
DEIXAR MORRER aproximadamente 60 mil pessoas (estimativa
dada pelo atual secretário de Desenvolvimento
Urbano Municipal de São Carlos, em 2019. O mu-
HOUSING POLICY: BETWEEN MAKING LIVING AND nicípio tem uma população de aproximadamente
LETTING DIE 250.000 pessoas).

Este objeto de pesquisa foi minuciosamente anali-


POLÍTICA DE VIVIENDA: ENTRE HACER QUE VIVIR Y
sado em pesquisa anterior (BREDA, 2018) e guarda
DEJAR MORIR
continuidades com a atual pesquisa em desen-
volvimento. Entretanto, busco utilizar de parte
do material produzido anteriormente, porém sob
outra ótica teórica – especificamente a de Fou-
cault e Agamben, mobilizado conceitos tais como
biopolítica, governamentabilidade, racismo de
Estado (Foucault), Estado de exceção, homem nu
(Agamben) para pensar a produção do território
e do sujeito periférico que se constituem a partir
de uma política de Estado – o PMCMV.

O argumento defendido neste artigo é sobre como


a materialidade do Programa Minha Casa Minha
Vida Faixa 1, por meio da produção dos territórios
periféricos aciona o racismo de Estado – nos ter-
mos de Foucault – e a própria vida nua – nos termos
de Agamben. Em outras palavras, a produção do
próprio sujeito matável – aquele que pode ser
morto sem que o ato seja considerado homicídio.

Começo construindo o argumento fazendo breves


apontamentos sobre o funcionamento do Pro-
grama Minha Casa Minha Faixa 1, apontamentos
estes que se encontram de forma mais extensa e
detalhada em minha dissertação (BREDA, 2018),
para em seguida podermos analisar sob a ótica
de Foucault e Agamben.

16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica

2174
BREVES APONTAMENTOS SOBRE O PMCMV-1 o subsídio do Estado pode chegar até 90%
do valor do imóvel, pago em até 120 pres-
É necessário recapitularmos um pouco do tações mensais, de no máximo 270 reais,
funcionamento do programa. O PMCMV foi sem juros;
concebido pelo Ministério da Casa Civil e o Mi-
II) Habitação de Mercado (HM) represen-
nistério da Fazenda, em diálogo com o setor imo-
tado pela Faixa 1,5, incluída em 2016, que
biliário, da construção civil e entidades empresa-
atende famílias com renda de até 2.600
riais, revelando os fortes vínculos com o capital
reais, oferece subsídio do governo de até 45
financeiro e o mercado imobiliário, apontando
mil reais, com 5% de juros ao ano; a Faixa
para a transformação de uma política pública
2, que atende família renda de até 4.000
em um negócio altamente rentável (RIZEK et al.,
reais com subsídio de até 27.500 reais, com
2014; SHIMBO, 2010). Projetos de cunho social
5% de juros ao ano; o Faixa 3, que atende
mais sofisticados desenvolvidos pelo Ministério
famílias com até 9.000 reais, com juros en-
das Cidades e Secretaria Nacional de Habitação
tre 8,16% a 9,16% ao ano. No caso, as faixas
e que garantiriam melhor qualidade e integração
que contemplam a habitação de mercado,
urbana foram deixados de lado, tendo apenas um
o comprador negocia diretamente com a
papel lateral (AMORE, 2015; BONDUKI, 2014).
construtora ou imobiliária, pedindo o fi-
Olhado de fora e sem a devida atenção pode-se nanciamento à Caixa ou Banco do Brasil
imaginar que esta política é produzida pelo Es- (dados de 2019).
tado, mas ao fazermos uma análise minuciosa de
Sabe-se que os subsídios e recursos destinados a
sua cadeia produtiva, constatamos a participação
Faixa 1 tem origem na União pelo Fundo de Arren-
predominante do setor privado e do terceiro setor
damento Residencial (FAR) e devem ser direciona-
no planejamento, execução e trabalho de pós-o-
dos para a produção dos empreendimentos “(...) de
cupação com a população beneficiária nos bairros
acordo com a estimativa do déficit habitacional
Faixa 1 (BREDA, 2018). Esta participação ocorre
para famílias com renda até três salários mínimos,
por meio da privatização do financiamento público
considerando os dados da Pesquisa Nacional por
e da gestão terceirizada dos recursos, caracteri-
Amostra de Domicílios – PNAD, do Instituto Brasi-
zando um planejamento social privado1 minucioso
leiro de Geografia e Estatística – IBGE, referente
por parte da iniciativa privada que redesenha as
ao ano de 2007 e suas atualizações2 ”. Conforme
formas de participação do Estado e sua relação
afirma Furtado, Neto, Krause (2013, p. 02) o déficit
com a população e as políticas públicas. Desta
habitacional “é um indicador que contribui para a
forma, a produção, operação e seus efeitos não
formulação e avaliação da política habitacional,
cabem somente na responsabilidade do Estado,
na medida em que orienta o gestor público na
mas sim nesses emaranhados de atores e sentidos
que produzem a política social. especificação das necessidades de moradia”.

Relembrando, as linhas de financiamentos de Neste contexto, parte da pesquisa de mestrado


habitação urbana, principal eixo do PMCMV, se se debruçou sobre a produção e manipulação
dividem em: técnica destes indicadores e sua aplicação na
cadeia do PMCMV. Não me parece interessante
I) Habitação de Interesse Social (HIS), re- retornar ponto a ponto aquela análise que pode ser
presentada pela a Faixa 1, atendendo fa- encontrada de forma detalhada nos capítulos 1 e
mílias com renda de até 1.800 reais, onde 2 da dissertação, desta forma apresento algumas
considerações que se tornam pertinentes para o
nosso objetivo aqui.
1. Sobre estes conceitos ver a discussão de novas maneiras
de captação de recursos públicos por instituições privadas
observadas inicialmente em São Paulo, refletindo a priva- 2. Portaria nº 93 de 24 de fevereiro de 2010, dispõe sobre o
tização do financiamento e a gestão privada do social, que Programa de Arrendamento Residencial (PAR) e do PMCMV.
se entrelaçaram com outras políticas de terceirização, no Embora esta portaria tenha sido revogada, o sentido per-
caso específico da cultura e da saúde (GEORGES; SANTOS, manece o mesmo nas respectivas Portarias do Ministério
2016; GEORGES, 2014; 2015; RIZEK, 2013; 2016). das Cidades que a sucederam.
EIXO TEMÁTICO 2 O que observamos em nossa análise foi que havia
uma manipulação técnica do indicador habitacio-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS nal por parte das instituições envolvidas na cadeia
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES produtiva do programa. O atendimento que deve-
ria ser para o principal público-alvo proposto por
esta política social, as famílias de baixa renda, se
deslocou em benefício da população com melhor
poder aquisitivo (Faixa 2 e 3), sendo orientada
por uma lógica mercantil da habitação. Consta-
tou-se que o PMCMV juridicamente foi pensado
de modo a enfrentar a questão habitacional, por
meio do indicador de déficit habitacional organi-
zado pela Fundação João Pinheiro. Durante sua
execução, as decisões são filtradas pela Caixa
Econômica Federal (a qual também produz um in-
dicador habitacional), principal órgão financiador
do Programa, responsável por gerir os recursos
provenientes da União voltados para a habitação
social e aprovar os financiamentos para empre-
endimentos de todas as faixas de renda. Ainda,
foi apontado que a Caixa tem um direcionamento
voltado para a dinâmica do mercado imobiliário
e não para a questão social3.

Ao compararmos os índices sobre a necessidade


de provisão das instituições citadas com o número
de unidades contratadas do PMCMV observamos
que as ações do Programa estão em confluência
com as diretrizes apresentadas pela Caixa, isto
é, priorizando o atendimento para as faixas de
incorporação imobiliária e não de habitação de
interesse social. Desta forma, as ações do Pro-
grama são destinadas às populações com melhor
poder aquisitivo em detrimento das populações
mais pobres, onde se concentra majoritariamente
o déficit habitacional brasileiro. Aponta-se para
o papel central que a Caixa tem exercido dentro
dessa engenharia organizacional – na gestão,
produção, acompanhamento e avaliação (BREDA,
2018).

Assim, o próprio formato do Programa permite


que a cadeia produtiva – projeto e execução dos
empreendimentos e do trabalho social – sejam
executadas pela lógica da iniciativa privada. Apon-
ta-se para uma apropriação dos recursos públicos
em prol benefício privado e, consequentemente,
para uma gestão privada do social. Neste caso
o conflito entre o Estado e o mercado se dilui,
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
3. Sobre as práticas da Caixa Econômica Federal e a racio-
2176 nalidade de mercado, ver também Carvalho (2015).
colocando-se primeiro como agenciador e não os primeiros objetos de saber e os primeiros
opositor do mercado. alvos de controle desta biopolítica. É neste
momento, em todo o caso, que lança mão
A materialização destes indicadores tem impac- da medição estatística desses fenômenos
to direto na produção do espaço urbano e nas com as primeiras demografias (grifos meu).
formas de ordenamento social. No caso do PM-
CMV-1, os dois aspectos se misturam. A própria Este fenômeno foi uma espécie de estatização
produção do espaço urbano no caso do Faixa 1, do biológico. Se antes o poder do soberano sobre
tem ocorrido majoritariamente nas periferias das o súdito era o de deixar viver e o de fazer morrer,
cidades, promovendo a segregação socioespacial, ou seja, o soberano tinha o poder de matar e não
o espraiamento do tecido urbano e o desloca- de prolonga a viva. A partir do século XIX há um
mento forçado dos “indesejáveis urbanos” para conjunto de regulamentações onde esta equação
as periferias longínquas da cidade (AMORE et al., é invertida: fazer viver e deixar morrer. Foi propria-
2015; FELTRAN, 2014). Em São Carlos a cena se mente o desenvolvimento de mecanismos sutis,
repete: até o atual momento, três bairros Faixa 1 racionais, de seguro, de poupança individual, o
foram produzidos, somando quase 3 mil unidades cuidado, do fazer viver, de produzir a longevida-
habitacionais. de. Foucault argumenta que os objetivos que se
buscam no fazer viver, tanto da disciplina quanto
Antes de entrarmos propriamente na análise das da regulamentação, é a produção do lucro eco-
relações dos bairros do PMCMV-1 com as socia- nômico e a utilidade política (FOUCAULT, 1999).
bilidades urbanas, apresento os componentes
teóricos que irão nos guiar. A biopolítica, apoiada pela ciência, medicina
e a técnica produz um regime de verdade. Ou
seja, ela nos diz o jeito certo de viver e morrer.
Como aponta Foucault, o poder sempre se exerce
FAZER VIVER, DEIXAR MORRER colocando um saber em prática. A biopolítica,
portanto, lida com a população e têm funções
Biopolítica e Governamentabilidade tais quais: previsões, estimativas estatísticas,
medições globais, intervenções em fenômenos,
em Foucault
estímulo à vida, busca do equilíbrio e da média,
otimização, maximização das forças, mas não
Segundo Foucault, entre os séculos XVII e XVIII através da disciplina e sim da regulamentação
se desenvolveram um conjunto de técnicas de (FOUCAULT, 1999).
poder centradas no corpo individual com proce-
dimentos pelos quais se assegurava a distribuição De modo geral, a biopolítica torna a população
espacial dos corpos – as tecnologias disciplinares tanto alvo quanto instrumento nesta relação de
do trabalho. Em meados do século XVIII começa- poder, permitindo controlá-las por inteira. Em
ram a se desenvolver outras tecnologias, que não uma era onde todo o poder deve ser justificado
necessariamente anularam a anterior, mas que a partir de uma narrativa racional, o biopolítica
seu foco não era mais corporal e individualizante, é usado para dar ênfase na proteção da vida, na
mas sim massificante – o homem-espécie. Para regulação dos corpos, na gestão da saúde, higie-
esse processo, Foucault (1999, p.290) deu o nome ne, sexualidade, natalidade, economia, etc., na
de biopolítica: medida em que se tornem preocupações políticas.
A emergência do biopolítica só se dá a partir da
Conjunto de processos como a proporção firmação da governamentabilidade.
dos nascimentos e dos óbitos, a taxa de
reprodução, a fecundidade de uma popu- Governamentabilidade, nas palavras de Foucault
lação, etc. São estes processos de nata- (1979, p. 171) é:
lidade, de mortalidade, de longevidade
que, justamente na segunda metade do 1 − o conjunto constituído pelas instituições,
século XVIII, justamente com uma porção de procedimentos, análises, reflexões, cál-
problemas econômicos e políticos (os quais culos e táticas que permitem exercer esta
não retomo agora), constituíram, acho eu, forma bastante específica e complexa de
EIXO TEMÁTICO 2 poder, que tem por alvo a população, por
forma principal de saber a economia política
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS e por instrumentos técnicos essenciais os
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES dispositivos de segurança.

2 − a tendência que em todo o Ocidente con-


duziu incessantemente, durante muito tem-
po, à preeminência deste tipo de poder, que
se pode chamar de governo, sobre todos
os outros − soberania, disciplina, etc. − e
levou ao desenvolvimento de uma série de
aparelhos específicos de governo e de um
conjunto de saberes.

3 − resultado do processo através do qual


o Estado de justiça da Idade Média, que se
tornou nos séculos XV e XVI Estado admi-
nistrativo, foi pouco a pouco governamen-
talizado.

Na leitura que Revel faz de Foucault, entende-se


por governamentabilidade uma arte de governar,
uma racionalidade que tem por princípio e campo
de aplicação o funcionamento do Estado – a “razão
de Estado”. A governamentabilidade moderna co-
loca pela primeira vez o problema da “população”
como um objeto construído pela gestão política
global da vida dos indivíduos – a biopolítica. E
esta biopolítica implica não somente uma gestão,
mas também um controle das estratégias que os
indivíduos possam vir a ter em sua liberdade. Des-
ta maneira, concernem também as tecnologias
governamentais a educação, a transformação,
as relações familiares e as instituições (REVEL,
2005; FOUCAULT, 1999).

A segunda parte da equação da biopolítica é o


deixar morrer. Então Foucault se questiona como
exercer o poder da morte em um sistema político
centrado na valorização da vida? Por meio do ra-
cismo de Estado, responde o autor. Para Foucault
não há praticamente nenhum Estado moderno que
opere sem passar pelo racismo. O racismo é, em
primeiro lugar, o corte entre o aquele que deve
morrer e aquele que deve viver. A qualificação
de certas raças como boas e ruins, superiores e
inferiores, hierarquização, uma maneira de frag-
mentar o campo biológico em que o poder está
instalado. Em segundo lugar, o racismo estabele-
ce uma relação de “guerreiro”: é preciso que você
16º SHCU faça morrer se quiser viver – matar o inimigo. A
30 anos . Atualização Crítica
morte do outro deixa a minha vida mais sadia, mais
2178 pura. A eliminação da vida se torna mais do que
legítima, se torna necessária – a necessidade de atua junto com o Estado, como um Estado “dual” e
exercer o direito de matar. Não somente a morte não que para um estar atuando o outro não deveria
direta, mas a indireta também: o ato de expor à existir. Para Agamben, o Estado de exceção não
morte, de multiplicar para algum risco de morte, é um direito especial, ele funciona exatamente
a morte política, a expulsão, a rejeição, dentre na suspensão da ordem jurídica, definindo seu
outros (FOUCAULT, 1999). patamar ou seu conceito limite. Deste modo ele
é o próprio paradigma constitutivo da ordem ju-
Como argumenta Foucault (1999), o racismo não é rídica. O Estado de exceção é incluído no todo a
novo, assim como a relação de guerreiro. A novi- partir da sua exclusão e, a existência do Estado
dade está na maneira de se fazer morrer, alinhada (e da ordem jurídica) só pode existir em relação à
com o exercício biopolítico – não é mais uma morte ele. O Estado de exceção é o exterior constitutivo
militar, é uma morte por critérios biológicos, téc- do Estado. Agamben (2004, p, 93) argumenta:
nicos, médicos, especializados, racionalizados
como observamos no regime nazista. Desta for- Não há, se não uma zona de anomia em que
ma, o racismo moderno está ligado à tecnologia age uma violência sem nenhuma roupa-
da biopolítica. Nesta hierarquização operada pelo gem jurídica. A tentativa do poder estatal
racismo de Estado, por meio da tecnologia da bio- de anexar-se à anomia por meio do Estado
política, produz aqueles que devem se fazer viver de exceção é desmascarada por Benjamim
e os que devem se fazer morrer – o corpo matével. por aquilo que ela é ela: um fctiu iuris por ex-
celência que pretende manter o direito em
sua própria suspensão como força-da-lei4.
[...] O direito parece não poder existir senão
Estado de Exceção e a vida nua em Agamben através de uma captura da anomia. [...] Para
o direito, este espaço vazio é o Estado de
Agamben inicia seu livro Estado de exceção (2004) exceção como dimensão de constituição.
com a máxima de Schmitt, o soberano é aquele
que decide sobre o Estado de exceção. Mas quem O sistema jurídico do ocidente tem uma estru-
é o soberano e o que é o Estado de exceção? A tura dupla – dialética e antagónica. De um lado
passagem a seguir nos dá algumas pistas: o sistema normativo e jurídico e do outro lado o
anômico e o metajúrídico. O Estado de exceção,
[...] a instauração, por meio do Estado de para Agamben (2004), é o dispositivo que deve
exceção, de uma guerra civil legal que per- articular e manter juntos os dois aspectos da
mite a eliminação física não só dos adver- máquina jurídica-política, em última instância,
sários políticos, mas também de categorias instituindo um limiar de indicidibilidade entre
inteiras de cidadãos que, por qualquer ra- anomia e lei. Quando o sistema dual se confunde
zão, pareçam não integráveis ao sistema em uma só figura ou pessoa, se tornando regra,
político. Desde então, a criação voluntária transforma-se em uma máquina letal. Em outras
de um estado de emergência permanente palavras, quando o Estado, dentro de sua aparente
(ainda que, eventualmente, não declarado normalidade, pode matar sem nenhuma conse-
no sentido técnico) tornou-se uma das prá- quência jurídica, ele torna-se uma máquina letal.
ticas essenciais dos Estados contemporâ-
neos, inclusive dos chamados democráticos Para Agamben, a possibilidade entre a distinção
(AGAMBEN, 2004, p.13). sobre a vida e morte é a própria biopolítica. A vida é
um produto da máquina biopolítica, pois cabe a ela
Agamben (2004) demonstra que o Estado de ex- decidir e regular sobre quem vive e quem morre,
ceção exerce ao menos dois papéis, a eliminação
física do inimigo externo, mas também do interno
4. No Estado de exceção a distinção entre o poder legislativo,
– as categorias de cidadãos que não parecem inte- executivo e judiciário é abolida. Assim, o direito desapa-
gráveis ao sistema político. Ainda chama a atenção rece (lei sem força), mas o Estado continua, portanto, há
para o fato de que os Estados contemporâneos se uma ordem no Estado de exceção – a Força-da-Lei – uma
utilizam cotidianamente destas práticas. Neste autoridade que tem força de lei, mas não é lei – decreto,
sentido, o autor aposta que o Estado de exceção atos, etc, (AGAMBEN, 2004) (referência colocada por mim).
EIXO TEMÁTICO 2 inserindo a vida no campo político – separando
a vida qualificável da vida nua5.
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES É justamente o recurso do Estado de exceção,
neste vazio de direitos onde os atos cometidos
escapam de qualquer definição jurídica, nesta
indefinibilidade e neste não-lugar que a força-
-da-lei reina e a vida nua se revela. Logo, pensar
sujeitos matáveis é pensar que eles se inserem,
de alguma forma, dentro de um Estado de exce-
ção – desprovidos de qualquer amparo jurídico,
onde sua morte não será considerada homicídio.
Cabe, portanto, ao

[...] poder soberano de decidir sobre a vida


nua. A “vida indigna de ser vivida” não é, com
toda evidência, um conceito ético, que con-
cerne às expectativas e legítimos desejos
do indivíduo: é, sobretudo, um conceito
político, no qual está em questão a extrema
metamorfose da vida matável [...] (AGAM-
BEN, 2002, p. 148).

Na biopolítica moderna o soberano é aquele que


decide sobre o valor ou o desvalor da vida enquan-
to tal. O Estado moderno coloca uma linha que
assinala o ponto em que a decisão sobre a vida
torna-se a decisão sobre a morte, e a biopolítica
pode, deste modo, converter-se em tanatopolíti-
ca. As zonas já não são mais tão claras e distintas,
se movimentam e se deslocam em várias esferas.
A vida nua, ou o “povo” carrega, assim, desde sem-
pre, em si, a fratura biopolítica fundamental. Ele
nunca poderá ser incluído no todo a qual faz parte
e não pode pertencer ao conjunto no qual já está
desde sempre lá. Ele é aquilo que para ser deve
negar. Deste modo, o soberano necessita produzir
a vida nua como elemento político original e como
conceito limite da existência política qualificável
(AGAMBEN, 2002).

Por fim, Agamben nos traz a ideia de campo vir-


tual, por meio de exemplos das cobaias humanas
utilizadas durante os experimentos nazistas e

5. Para Agamben, a vida nua enquanto elemento político


original, produto do poder soberano, é o limiar de articula-
ção entre natureza e cultura. A vida nua, situada no limiar
entre vida natural e vida politicamente qualificada, resulta
16º SHCU
em uma vida desprovida de proteção jurídica, podendo ser
30 anos . Atualização Crítica
incluída ou excluída no sistema segundo as conveniências
2180 legais e governamentais (AGAMBEN, 2002).
experimentos medicinais nos E.U.A., mostrando A função destes indicadores, como já apon-
como na modernidade o médico e o cientista mo- tado por Furtado, Neto, Krause (2013, p. 02) é
vem-se em direção à soberania, dentro do espaço a de “contribui para a formulação e avaliação
de Exceção, desqualificando as vidas. da política habitacional, na medida em que
orienta o gestor público na especificação das
A essência do campo consiste na mate- necessidades de moradia”, características
rialização do Estado de exceção e na con- de uma biopolítica: conhecer, medir, planejar,
sequente criação de um espaço em que a interferir visando melhorar as condições de vida
vida nua e a norma entram em um limiar de e consequentemente, a longevidade. Uma família
indistinção, deveremos admitir, então, que com melhores condições de habitação, em tese,
nos encontramos virtualmente na presença deverá ter uma vida melhor e mais longa. Lem-
de um campo toda vez que é criado uma brando justamente que o acesso à habitação de
tal estrutura, independente da natureza qualidade deve incluir outros elementos urba-
do crime que aí são cometidos, qualquer nísticos (tais como saneamento, acesso à saúde,
que seja a sua denominação ou topografia educação, transporte, planejamento urbano, etc.)
específica (AGAMBEN, 2002, p. 181). e não somente ao imóvel em questão.

Compreendemos, portanto, que quando a vida nua Após a construção deste indicador técnico, dito
se torna regra por meio do Estado de exceção que neutro, mas que carrega um sentido político e
adquiriu materialidade espacial, estamos diante mercadológico manipulado pelas instituições,
da estrutura virtual de um campo. Em outras pa- o programa também apresenta suas faixas de
lavras, a criação de uma estrutura racionalizada, atendimento, como mencionadas no tópico um
promovida no âmbito de um Estado dual que visa deste ensaio. Relembrando, elas se dividem em
anular a humanidade de certa parte específica quatro faixas e, mais genericamente em duas,
da população, por meio da morte ou da exclusão. Habitação Social e Habitação de Mercado. Nova-
mente, temos outro critério técnico para analisar o
atendimento aos beneficiários, o critério de renda.
Em um primeiro momento este critério pode não
O PROGRAMA MINHA CASA MINHA VIDA parecer um conceito que dialoga com o biológico,
E A PRODUÇÃO DE SUJEITOS MATÁVEIS mas se pensarmos que as condições econômicas
de uma família incide diretamente no seu acesso
Retomando o PMCMV-1 para pensá-lo a partir à saúde, educação, previdência, condições de
da lógica foucaultiana. O primeiro ponto que trabalho, etc. estamos diante de um público espe-
gostaria de tratar é a justificativa do programa – cífico onde as condições econômicas produzem
o déficit habitacional. O indicador normalmente condições precárias de vida, logo é possível ima-
é composto por quatro componentes técnicos ginarmos que a população que acessa a habitação
que dizem respeitos sobre as condições mínimas social é uma população mais preconizada e com
de habitabilidade que um cidadão deveria estar um perfil delimitado. Compreender a formas de
submetido para ter uma vida digna. Já neste pri- atendimento é delimitar o próprio público-alvo
meiro momento vemos a biopolítica agir a partir a qual a biopolítica se dirige – nos revelando as
recenseamento sobre a questão habitacional. facetas da administração da pobreza.
A produção de dados em diversas instituições,
a partir de critérios distintos que podem servir Ainda no contexto brasileiro é importante colo-
a múltiplos interesses, como demonstrado por car a questão da raça. Se pegarmos o caso de
Breda (2018) 6. São Carlos como exemplo7, em 2010 (IBGE), 84%
da população negra tinha rendimento nominal
mensal entre ¼ a 3 salários mínimos, sendo que
6. Foi realizado um levantamento de dois indicadores habi- apenas 40% da população negra tinha acesso
tacionais a nível nacional e três indicadores habitacionais a ao rendimento nominal mensal. E na categoria
nível municipal, com critérios técnicos diferentes. Por fim, entre 3 a 10 salários mínimos, a população negra
foi demonstrado que os indicadores empregados na cadeia
produtiva coincidiram com aqueles que atenderam melhor
a racionalidade de mercado (BREDA, 2018). 7. Ver discussão detalhada em Breda (2018, p 231).
EIXO TEMÁTICO 2 representa apenas 15%. Já a população branca
representava 70% na categoria de renda nominal
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS entre ¼ a 3 salários mínimos, tendo 60% da po-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES pulação acesso ao rendimento nominal mensal,
e 25% entre 3 a 10 salários mínimos. O argumento
central é que negros tem um rendimento mensal
concentrado entre ¼ a 3 salários mínimos e a
população branca tem acesso a melhores rendas,
fenômeno raro para a população negra. Assim, a
população negra tem menor acesso ao próprio
rendimento e acesso precário às melhores rendas.
Deste modo, a Faixa 1, de habitação social, acaba
destinando-se majoritariamente para a população
negra, enquanto que a faixa 2 e 3, de habitação
de mercado, destina-se majoritariamente para a
população branca (BREDA, 2018).

O ponto central é que a política social se apresenta


de forma focalizada, fragmentada, produzindo
público-alvo específico. Em outras palavras, uma
técnica para cada grupo, um resultado para cada
grupo. Uma biopolítica fragmentada por meio de
um racismo de Estado que separa em um gradien-
te o atendimento – na ponta da habitação social
encontram-se os pobres e os negros, e na outra
ponta, a habitação de mercado, que atende as
pessoas com melhor poder aquisitivo, majorita-
riamente brancos. Quais as consequências desta
forma fragmentada de atendimento?

Pegando o caso de São Carlos, todos os empre-


endimentos Faixa 1 estão inseridos na periferia
da cidade, em uma zona marcada pela segrega-
ção socioespacial, por outro lado os empreendi-
mentos 2 e 3 tem melhores inserções urbanos e
localizam-se em áreas de maior valor imobiliário
(BREDA, 2018; SHIMBO, 2014). Em outras pala-
vras, ao pobre e negro, a periferia e o estigma, ao
branco com melhores condições econômicas, o
dito direito à cidade. E é justamente neste mo-
mento que ocorre a produção do sujeito matável
– o preto, pobre, periférico – aquele que pode
morrer e ninguém se importará, não vai sentir
falta, na verdade vai ser até melhor, menos um
bandido no mundo! Não são estas narrativas que
estamos acostumados a ouvir quando parte das
pessoas se referem às nossas periferias urbanas?
Acredito que o componente territorial aqui seja
fundamental, embora ele por si só não explique
toda a equação. Olhando pela ótica de Foucault,
16º SHCU o racismo de Estado produziu isto, fragmentando
30 anos . Atualização Crítica
a biopolítica, produzindo uma raça passível de ser
2182 morta sem ser considerado homicídio.
Outro ponto que gostaria de colocar é sobre o Estamos em face de uma política social que pro-
trabalho de pós-ocupação, política obrigada so- duz todo uma justificativa racional para o seu
mente nos empreendimentos de habitação social. funcionamento (déficit habitacional), produz seu
Observamos parte das diretrizes que a equipe público-alvo específico e, posteriormente, esco-
social tem que trabalhar com os beneficiários: lhe o lugar onde esta população deve morar e, por
fim, ensina ela como se deve viver – fazer viver,
b) Educação Ambiental, abordada pelo inserindo-se em todas as circunstâncias da vida
meio das seguintes ações: pública e privada de cada pessoa.
b.1) difusão de noções sobre higiene, saúde
e doenças individuais e da coletividade; e De modo geral, busquei compreender esta política
b.2) divulgação de informações sobre o uso social na lógica foucaultiana de estratégias de
racional dos recursos naturais, como água poder, isolamento e controle. Onde as instituições
e a energia elétrica; e sobre a preservação concentram mecanismos de disciplina para atuar
e conservação ambiental e manejo de re- sobre os corpos do indivíduo. Pensar a disciplina
síduos sólidos. enquanto organização do espaço, mediação das
tarefas, a distribuição dos indivíduos, classifica-
c) Educação Patrimonial, abordada por ção e hierarquização. Os saberes disciplinares
meio das seguintes ações: existentes nas instituições moldam o indivíduo,
c.1) estímulo à correta apropriação e uso dos define suas condutas e lugares. Dentro da micro-
espaços e equipamentos de uso comum; física do poder, a população aparece como um
c.2) repasse de informações básicas sobre objetivo dos mecanismos econômicos de contro-
manutenção preventiva da moradia e dos le. No meio urbano a biopolítica tem a tecnologia
equipamentos coletivos, e sobre os siste- de poder para dirigir o homem durante sua vida
mas de água, esgoto, coleta de resíduos toda. A população deve ser medida e distribuída
sólidos e de aquecimento solar, quando for em um meio que torne possível aplicar meca-
o caso, e treinamento para o uso adequado nismos de gestão. A população é um problema
desses sistemas. a ser governado, que exige técnicas e saberes,
d) Planejamento e Gestão do Orçamento desembocando na governamentabilidade.
Familiar, abordado por meio das seguintes
Retomemos ao argumento da produção do sujeito
ações:
matável pelo PMCMV-1 uma vez que tal política
d.1) divulgação de informações sobre a or- produz um público-alvo específico e destinando a
ganização e planejamento do orçamento um território específico - a periferia urbana. Sem
familiar, e sobre a racionalização dos gastos entrar em uma discussão profunda, considero de
com moradia; e, d.2) orientação às famí- ponto de partida que a periferia urbana e pobre
lias sobre as tarifas sociais dos serviços usualmente é estigmatizada e a sua população é
públicos. constantemente desumanizada, desqualificada,
e) Geração de Trabalho e Renda, abordada escrachada, matável, digna de intervenção policial
por meio das seguintes ações: constante. Se é verdade que os bairros de habita-
ção social produzidos pelo PMCMV-1 se localizam
e.1) mapeamento de vocação dos benefi- em sua maioria nas periferias e, por meio da se-
ciários e produtivas do entorno do empre- leção técnica racionalizada da política social, são
endimento e região; e.2) encaminhamento os negros e pobres que são destinadas à estes
aos serviços de intermediação de mão de lugares – o programa, portanto, está produzindo
obra por meio dos sistemas de emprego; e a vida nua, nos termos de Agamben, ao combinar
aos serviços de formação de núcleos as- processos de precarização, estigmatização e
sociativos de produção de microcrédito processos de controle técnicos e violentos por
produtivo; e, e.3) promoção de projetos de parte do uso legítimo da violência estatal. Observe
capacitação para o trabalho e de geração que quando me refiro ao programa não me refiro
de trabalho e renda. (Anexo V, item 3. Eta- ao Estado somente. Como argumenta Agamben,
pas e conteúdo mínimo do Projeto, Portaria é a própria biopolítica dizendo quem é vida politi-
465/2011. Destaque do autor) camente qualificável e quem é vida descartável.
EIXO TEMÁTICO 2 Vou exemplificar com algumas falas de um in-
terlocutor que frequentava diariamente o bairro
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS produzido pelo PMCMV-1, em São Carlos, onde
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES realizei meu campo8 :

Genésio:
Tem tacar veneno na caixa d’água do bairro
e exterminar todo mundo.
Esse aqui é Zaváglia [nome do bairro], mes-
mo! Não tem jeito.
Aqui não tem uma raça pura, igual à gen-
te [se referindo a mim e a ele, que somos
brancos de uma suposta origem européia].
Você consegue traçar os seus descenden-
tes, eles não!

Acredito que sobre a ótica de Foucault e Agamben


não há dúvida que os sujeitos daquele bairro, na
visão do meu interlocutor, se tornaram intermi-
náveis. Se apropriando da ideia da superiorida-
de branca, meu interlocutor evocava o tempo
todo o “nós” e os “outros”, produzindo discursos
com conteúdo racista, desvalorizando qualquer
identidade não-branca, ou como se referia, “uma
mistura de raças que não poderia dar certo”. Toda
esta narrativa discriminatória traz característi-
cas típicas do preconceito racial e de classe pelo
qual a periferia pobre e, muitas vezes negra, está
submetida constantemente, o rótulo e o estigma
(BREDA, 2018).

Em uma leitura a partir de Agamben, estes sujeitos


“produzidos” pelos mecanismos do PMCMV – pela
própria máquina da biopolítica – se encontram na
condição de vida nua, despidos de direitos jurídi-
cos, de humanidade, do direito à cidade, de voz,
muitas vezes mortos politicamente. Encontram-
-se em um Estado de exceção, em zonas cinzas,
limiares, lugares de indeterminação9, localizados
em um campo virtual produzido por uma políti-
ca pública. Um campo onde o tráfico e a polícia
podem agir com “violência sem nenhuma roupa-
gem jurídica”, onde mais um corpo negro morto
estendido no asfalto quente não comove a cidade
consolidada, na verdade, alivia: “mais um bandido
morto! Estamos um pouco mais seguros!”.

16º SHCU 8. Ver material empírico completo em Breda (2018, p. 164).


30 anos . Atualização Crítica
9. Sobre estas noções, ver também Rizek (2012), Oliveira
2184 e Rizek (2006).
Assim como a vida nua e o Estado de exceção são morais. A distinção entre Estado, mercado, ini-
incluídos pela exclusão, talvez a periferia também ciativa privada, organização social também se
esteja incluída na cidade pela exclusão, ela marca encontram nestas zonas cinzentas, entre limiares.
o limite do que a cidade consolidada representa e Não é tarefa simples e talvez nem possível sepa-
do que a periferia nunca poderá ser. A produção rá-los em caixinhas mais. Suas racionalidades
de uma só cidade pode significar o extermínio da se misturam e se confundem. Onde começa o
periferia, assim como a produção de uma só raça Estado e termina a iniciativa privada na cadeia
significa o extermínio das demais. produtiva do PMCMV? E aos beneficiários, sobra
alguma soberania?
O enigma do Estado dual se assemelha ao da
cidade e periferia, do Povo e do povo – há uma Em uma mesma política social encontramos este
fratura que não pode ser resolvida – mas assim caráter ambíguo, entre o fazer viver e o fazer mor-
como argumenta Agamben, não são dois blocos rer. A proposta da política se destina a atender
monolíticos, um define o outro e estão em cons- a população pobre a ter melhores condições de
tante contato pelas zonas de indecidibilidade, vida com o acesso à casa própria, por outro lado a
zonas cinzentas, espaços de indeterminação que produção destes bairros prioriza o lucro e o ganho
se movem o tempo todo por meio do poder do político; parte da população pode ter uma melhora
soberano. substancial em sua vida, outra parte pode sentir
que o programa não colaborou, até mesmo piorou.
Parte da população que o PMCMV manejou para a
periferia deveria se encontrar anteriormente em
NOTAS FINAIS: ESTADO, MERCADO E SOCIEDADE outra periferia, talvez mais precária; outra parte
CIVIL - QUEM É O SOBERANO? poderia estar ocupando prédios abandonados nos
centros ou foram desalojados para a construção
de obras públicas ou complexos esportivos, como
Se para Agamben o soberano é aquele que tem
foi o caso do Rio de Janeiro. Esta é uma questão
o poder de decidir sobre o fazer viver e o fazer
que precisa ser analisada com maior cuidado,
morrer, quem é o soberano neste caso? Os res-
observando a trajetória das famílias, as condi-
ponsáveis pela produção dos bairros? A cadeia
cionalidades, o modo de produção do Programa,
produtiva do PMCMV? O Estado? O financiamento
sua localização, seu contexto local, regional, etc.
público? O lucro? Como nos lembra Foucault, a
No caso de São Carlos, o Programa faz alargar
disciplina, a regulação, a exclusão são apenas
a periferia mais isolada, alargando também as
consequências de uma ação que visa o lucro e
áreas de especulação imobiliária, retirando os
os ganhos políticos. No caso de São Carlos, o
pobres e negros das periferias para levar para a
PMCMV-1 foi pensado para aquele território de-
periferia da periferia.
vido um maior retorno financeiro e também um
retorno político eleitoral, a produção da vida nua
foi uma consequência.

O poder soberano transita entre as normativas


do Estado, que produzem o público-alvo, entre
os agentes e instituições públicas municipais
que negociam e redefinem parte do público-al-
vo, negociando também com o poder privado;
o poder privado que tem a capacidade de gerir
os recursos públicos, gerir o projeto, escolher o
lugar do bairro; as assistentes sociais e as ONGs
que prestam serviços sociais e discernem o bom
do mau pobre, aquele que merece um benefício,
uma cesta básica, uma vaga em um projeto, uma
doação. Todos estes filtros e mecanismos que
vão produzindo ou não a vida nua, desde critérios
ditos racionalizados e técnicos até os critérios
EIXO TEMÁTICO 2 BIBLIOGRAFIA
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AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Tra-
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03 de outubro de 2011. Dispõe sobre as diretri-
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no âmbito do Programa Nacional de Habita-
ção Urbana – PNHU, integrante do Programa
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MINISTÉRIO DAS CIDADES. Portaria nº 93, de


24 de fevereiro de 2010. Dispõe sobre a aqui-
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lítica social, gestão e negócio na produção das
cidades: o Programa Minha Casa Minha Vida
EIXO TEMÁTICO 2 RESUMO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Extraído de tese de doutoramento (FAU/USP),
trata de representação cultural (Roger Chartier)
e leitura da morfologia do espaço urbano colo-
vídeo-pôster nial do Recife, a partir da leitura da iconografia e
historiografia referencial de suas etapas cons-
trutivas. Discute influência de posturas identi-
REPRESENTAÇÕES tárias nacionalistas (luso-ibérica, neerlandesa-
-holandesa) e de referenciais técnico-culturais
CULTURAIS E HIBRIDISMO nos modelos urbanísticos investidos nas fases
de distintas dominações e investimentos no
NAS AÇÕES DE TÉCNICOS empreendimento colonial. Discute existência
de sistema de materialização de informações,
E EMPREENDEDORES NA representações (implantadas e extraídas da ci-
dade) com discursos identitários. Em Chartier,
CONSTRUÇÃO DA CIDADE verifica a realidade “construída, pensada, dada

COLONIAL
a ler”. Assim, busca compreender alcance da
análise iconográfica para compreensão de mu-
danças na identidade do ambiente e paisagem
urbana, ligadas à necessidades e objetivos das
CULTURAL REPRESENTATIONS AND HIBRIDISM IN THE
fases construtivas. Contrapondo senso comum
ACTIONS OF TECHNICIANS AND ENTREPRENEURS IN
do transplante identitário nas fases de domina-
THE CONSTRUCTION OF THE COLONIAL CITY
ção, analisa construção da cidade, conforma-
ção e identidade urbana, a partir de arranjos
REPRESENTACIONES CULTURALES E HIBRIDISMO EN
de variáveis de análise (ambiente, interesses
LAS ACCIONES DE TÉCNICOS Y EMPRENDEDORES EN
e investimento de “meios e materiais”), perce-
LA CONSTRUCCIÓN DE LA CIUDAD COLONIAL
bendo formas de investir e identidades urbanas
resultantes da ação de grupos de empreende-
LINS, André Bezerra dores coloniais (coroa luso-ibérica e neerlande-
ses-holandeses da WIC), técnicos, arruadores
Prof. Dr. FAU/USP, ICOMOS-PE
andreblins@alumni.usp.br
e mestres construtores (estrangeiros, brasi-
lianos e africanos). Defende cidade construída
com pragmatismo, na emergência da falta de
recursos financeiros, guerras, falta de “meios”
e “materiais” e hibridismo político-técnico que
inibiu representações identitárias nacionalis-
tas. Elementos culturais, traças, desenhos,
desígnios, forma de implantação de edifícios e
sistemas urbanos, foram transplantados e mis-
cigenados devido necessidades e emergências.
A identidade urbana empreendida consolidou
hibridismo politico e no ambiente construído,
pelo “saber fazer” de técnicos construtores e in-
teresses, objetivos, “meios e materiais” de em-
preendedores.

16º SHCU
URBANA CONSTRUÇÃO IDENTIDADE RECIFE
30 anos . Atualização Crítica REPRESENTAÇÃO
2188
ABSTRACT RESUMEN

Extracted from dissertation (FAU/USP), treat- Extraído de disertación (FAU/USP), tratamiento


ment of cultural representation (Roger Chartier) de la representación cultural (Roger Chartier) y
and reading the morphology of the urban colo- lectura de la morfología del espacio colonial ur-
nial space in Recife, part of the reading of the bano en Recife, parte de la lectura de la icono-
iconography and referential historiography of its grafía e historiografía referencial de sus etapas
constructive stages. Discussion of the influence constructivas. Discusión de la influencia de las
of nationalist identities (Portuguese-Iberian, Du- identidades nacionalistas (portugués-ibérico,
tch-Netherlands) and technical-cultural referen- holandés-países bajos) y referencias técnico-cul-
ces in our urban models invested in the phases turales en nuestros modelos urbanos invertidos
of domination and dominant investments in the en las fases de dominación e inversiones domi-
colonial empire. Discuss the existence of a sys- nantes en el imperio colonial. Discutir la existen-
tem of materialization of information, represen- cia de un sistema de materialización de informa-
tations (implants and city extracts) with identity ción, representaciones (implantes y extractos de
discourses. In Chartier, check the achievement of ciudad) con discursos de identidad. En Chartier,
“built, thought, given to learning”. identity of the compruebe el logro de “construido, pensado, dado
phases of domination, analysis of the construc- al aprendizaje”. identidad de las fases de domi-
tion of the city, conformation and urban identity, nación, análisis de la construcción de la ciudad,
analysis of the analysis variants (environment, conformación e identidad urbana, análisis de las
interests and investment of the “medium and ma- variantes de análisis (entorno, intereses e inver-
terials”), perception of the forms of investment sión del “medio y materiales”), percepción de las
and urban identities of the results of the action formas de inversión e identidades urbanas de los
of entrepreneurs colonial (Iberian and Dutch Du- resultados de la acción de los emprendedores co-
tch luxury), technicians, builders and builders (fo- lonial (lujo ibérico y holandés holandés), técnicos,
reigners, Brazilians and Africans). ”And“ materials constructores y constructores (extranjeros, bra-
”and political-technical hybridism that represent sileños y africanos). Y “materiales” e hibridación
nationalist representations. Cultural elements, político-técnica que representan representacio-
trails, essences, projects, form of implantation nes nacionalistas. Elementos culturales, sende-
of buildings and urban systems, for transplants ros, esencias, proyectos, forma de implantación
and missions according to needs and emergen- de edificios y sistemas urbanos, para trasplantes
cies. The urban identity is a consolidated political y misiones según necesidades y emergencias. La
hybridity and without an environmental environ- identidad urbana es una hibridación política con-
ment, but it “knows” techniques and techniques of solidada y sin un entorno ambiental, pero “cono-
interest, objectives, “materials and materials” of ce” técnicas y técnicas de interés, objetivos, “ma-
the entrepreneurs. teriales y materiales” de los emprendedores.

URBAN CONSTRUCTION IDENTITY RECIFE URBANO CONSTRUCCIÓN IDENTIDAD RECIFE


REPRESENTATION REPRESENTACIÓN
EIXO TEMÁTICO 2 INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
Entender a morfologia urbana como estudo da for-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
ma das cidades, atores e processos que ditam sua
conformação e transformação, da percepção de
conjunto de sinais estruturais, permite sua leitura
vídeo-pôster
como organismo nas diversas escalas (MARETTO,
2013). Em Urban morphology: An Introduction to the

REPRESENTAÇÕES study of the physical form of cities, Oliveira (2016)


mostra diversas abordagens sobre os elementos

CULTURAIS E HIBRIDISMO constituidores do tecido urbano ou paisagem:


histórico-geográfica, tipológica projetual, sintaxe
NAS AÇÕES DE TÉCNICOS espacial e análise espacial. Rossi (2001), mostra
que a conformação morfológica é resultado da
E EMPREENDEDORES NA ocupação e expansão do território, imbuídos em
sensos de época, intenção político-ideológica,
CONSTRUÇÃO DA CIDADE inserção socioeconômica e visão do que já
fora projetado e construído, caracterizando-se
COLONIAL como existência social sobre um espaço. Dessa
forma, as cidades são rebatimentos de questões
relacionadas aos momentos históricos de uma
CULTURAL REPRESENTATIONS AND HIBRIDISM IN THE sociedade, do conhecimento técnico de seus
ACTIONS OF TECHNICIANS AND ENTREPRENEURS IN empreendedores, ao modelo socioeconômico,
THE CONSTRUCTION OF THE COLONIAL CITY valores éticos e morais, relações interpessoais,
tecnologias disponíveis, entendimentos peculiares
REPRESENTACIONES CULTURALES E HIBRIDISMO EN em relação ao meio ambiente e tantas outras
LAS ACCIONES DE TÉCNICOS Y EMPRENDEDORES EN questões que tecem a complexidade da cidade.
LA CONSTRUCCIÓN DE LA CIUDAD COLONIAL
No começo da ocupação do território no Brasil, a
sociedade se mostrou de maneira a ser cogitada
como simples. Seu sistema de espaços livres era
configurado para suprir necessidades de circu-
lação, desenrolar social e comercial, por vezes
de maneira relacionada a um conjunto de tipolo-
gias, limitado e ligado ao saber-fazer e mixagem
adaptativa de saberes técnico-culturais. Tendo
a morfologia urbana inicialmente moldada por
duas vertentes: ocupação de sítios de topogra-
fia elevada e o tabuleiro de xadrez em terrenos
regulares, a sociedade experimentou mudanças,
principalmente a partir do avanço do capitalismo,
de avanços tecnológicos, da globalização da eco-
nomia e da comunicação. Esses valores tiveram
efeito na forma de ocupar, expandir e planejar o
território, chegando à necessidade de mudar o
caráter de cidades coloniais, rasgando-as, inse-
rindo modulações, arborizações e novos modos
de viver, circular e se relacionar, promovendo
mudanças morfológicas nas permanências do
16º SHCU cenário urbano de então. O sistema de espaços
30 anos . Atualização Crítica
livres promovia a articulação entre linearidades
2190 ou serpenteamentos edilícios que culminavam em
espaços majestosos como largos e praças com qualquer espaço vazio entre quatro ruas. Talvez
técnicas de composição que criavam perspec- esta circunstância seja suficiente em termos de
tivas de efeito estético de embelezamento das higiene ou de outras considerações técnicas, mas,
cidades. A partir de estratégias e ideias inovado- sob o ponto de vista artístico, um terreno vazio não
ras, as transformações que os empreendedores é uma praça. [...]” (SITTE, 1992 p. 47).
coloniais traziam para a sociedade nas relações
comerciais, interpessoais, econômicas, de co- A conformação de cidades coloniais, fruto dos
municações e ambientais, os sistema de espaços planejamentos de técnicos, como o “escritório
livres (composição dos elementos vias, praças, do Recife”, no século XVII, e de empreendedores
parques urbanos), podem ser encaradas como distintos por fase de dominação, objetivos e in-
estruturadoras da organização morfológica e vestimentos, revelam estruturações e padrões
composição estética da cidade, também servindo construtivos que demonstram modelos e inte-
à compreensão da sua forma. resses de desenvolvimento de partes distintas
do espaço urbano, permitindo intensificações
Os modus operandi de organização desses ele- de consolidação ou redirecionamentos de áreas
mentos revelam planejamentos ligados a concei- focais, de acordo com interesses e objetivos.
tos arraigados, explicitados por Camillo Sitte, em Aliado a isso, o grau de aplicação de variáveis
“A Construção das cidades segundo seus princí- como objetivos, materiais, mão-de-obra es-
pios artísticos”, e contextualizam com reflexões pecializada e menor tempo de concretização,
de autores sobre a sua obra. O livro de Camillo revelam a relação dessa área de interesse com
Sitte foi direcionado a planificadores do perío- os objetivos dos respectivos empreendedores
do sanitarista (século XIX), defendendo a cidade coloniais daquela temporalidade. Nisso, Murilo
como obra de arte, e não como local que deve- Marx (1980) demostrou que alguns elementos de
ria atender apenas às necessidades técnicas, conformação do espaço urbano na cidade bra-
funcionalidade de espaços com diversidade de sileira revelam o saber fazer de estrangeiros,
lugares, como a soma de fragmentos: “[...] seus adaptados às condições materiais e técnicas na
inúmeros exemplos de plantas de praças, pedaços colônia. Esses elementos estruturadores, rua,
recortados de um tecido urbano mais vasto, em vez lotes, largos, praças, construções civis, militares
de perspectivas em vôo de pássaro, ou as plantas e religiosas, perduram por todo o período colonial.
do conjunto da cidade reunindo dados diversos”
Noutro espectro, Almeida (1996) mostra que áreas
(ANDRADE, 1992 p. 4). Para Sitte, a praça é o ele-
de baixa densidade criam estrutura de espaços
mento mais importante da cidade, como local dos
livres públicos e privados, como fringe belts que
acontecimentos público, mas critica sua função
revelam a organização espacial em cheios, va-
no século XIX, como espaço de circulação de ar e
zios centrais e periféricos, e os adensamentos
luz, da interrupção nos conjuntos construídos, ou
urbanos, a paisagem urbana.
como espaço para maior visibilidade dos edifícios
monumentais. (SITTE, 1992 p. 17). Sitte entende A organização espacial de uma cidade é o
o pitoresco (numa categoria estética do final do resultado da forma diferenciada com que os
século XVIII, ligada à “paisagem natural e repre- agentes apropriam-se do espaço urbano, o
sentada distinto do sublime”) como valorização que a torna fragmentada tanto em função
da assimetria, irregularidade, espontaneidade e dos usos do solo como também em relação
perspectiva. Encara a praça como componente às classes sociais, pois segundo as regras
relevante da conformação da cidade, local de do jogo capitalista, a terra constitui-se
acontecimentos públicos (SITTE, 1992 p. 17). Seu numa mercadoria, e, assim, sua apropriação
pensamento vem de reflexões a cerca dos proble- esta condicionada ao poder aquisitivo dos
mas dos modos de vida impostos pelo movimento diferentes agentes. (ALMEIDA, 1996, p.31)
sanitarista higienista e a adequação da cidade
industrial. Critica a função da praça usada como Nas fases de implantação do sistema produtivo
espaços de circulação de ar e luz, com interrup- e “urbanização” de assentamentos humanos no
ção nos blocos de moradias ou espaço para uma Brasil colônia, nos séculos XVI e XVII, portugueses,
visão mais ampla de um edifício monumental. ibéricos, neerlandeses, holandeses (WIC-Compa-
“Hoje em contrapartida, é designado por praça nhia das Índias Ocidentais) e “brasilianos”, empre-
EIXO TEMÁTICO 2 enderam em terras litorâneas com geografias de
entradas de barras, investindo meios e materiais
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS que produziram conformações com identidades
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES espaciais singulares. Técnicos, como engenheiros
militares, arquitetos, construtores-projetistas,
arruadores, outros práticose colonos, trabalha-
ram na materialização dos desígnios, adaptações
e estruturações de espaços a objetivos e neces-
sidades emergenciais. Cartógrafos, desenhistas,
pintores, cosmógrafos e naturalistas também
captavam e construíam informações (registros
da realidade ou discursos temáticos carregados
de interesses) sobre as ocupações e realizações.
Com a cartografia, ferramenta de precisão “era um
ver do alto, de cima, e mais preciso” (MENEZES,
2003, p.13), capaz de dar visão sobre povoados,
vilas, sistemas de defesa, igrejas, habitantes,
economia, administração e geografia (relevo e
ambiente natural ou construído), com diversos
níveis de detalhamento, precisão e veracidade.
A convergência dessas fontes com relatórios,
normas (como a Carta Foral), crônicas e diários
de viagens, representações e nuances esclarece-
doras, embasa a historiografia (CHARTIER, 1990).
Nessa iconografia sobre o Recife se encontra
representações de construções identitárias, sob
as perspectivas cultural e simbólica, bem como,
seus reflexos nos modelos concebidos ou apro-
priados, para construção urbana nas três fases
distintas de dominação político-técnica.

Este artigo estabelece contraponto à lacuna e


subjetividade de metodologia de análise da cons-
trução da identidade urbana que permiteênfase na
nacionalidade e formação técnica de projetistas,
planejadores e construtores, atribuindo a esses
vestígios, uma possível matriz tipológica a ser
transplantada pelo “saber fazer” e pela formação
técnica, nas práticas de correntes culturais e mo-
delos (matrizes) vivenciados. O entendimento na
tese (LINS, 2011), denominado “cidade necessária”,
demonstra essa análise a partir de variáveis con-
dicionantes, necessidades (objetivos e interesses)
e modelos de investimentos de meios e materiais,
variáveis observadas, recorrentes nos diversos
períodos e ambientes coloniais, extraindo elemen-
tos que demonstram o processo de materialização
da cidade colonial. Nessa análise da construção
da identidade urbana da “cidade necessária”, são
16º SHCU utilizadas variáveis quantificáveis e qualificá-
30 anos . Atualização Crítica
veis, tanto da influência do ambiente natural ou
2192 construído encontrado, quanto do controle do
empreendedor sobre a materialização do espa- Roger Chartier (1990), em “A História cultural: Entre
ço urbano, de acordo com interesses, objetivos, práticas e representações”, explica que há nar-
necessidades e emergências. Para leitura dessas rativas, entendimentos e representações diver-
representações, exige-se exame criterioso da sas acerca da reconstituição da história urbana
produção historiográfica e iconográfica sobre e da construção de figurações. Chartier busca
o período. “identificar o modo como em diferentes lugares
e momentos uma determinada realidade social é
Na materialização da cidade, no ambiente natural, construída, pensada, dada a ler” (1990, p. 16-17).
ou com preexistências (dependendo da fase do Para tanto, discute esquemas intelectuais que
empreendimento), os interesses e objetivos do orientam o entendimento do universo e sobre “as
empreendedor, determinam a forma de investir figuras graças às quais o presente pode adquirir
meios (planejamento ou “saber fazer”, nível técni- sentido, o outro tornar-se inteligível e o espaço
co de mão-de-obra, etc.) e materiais (que geram ser decifrado” (1990, p. 17). Destaca a tarefa de
padrão construtivo). Os aspectos construtivos reconstituir a historicidade do “consumo intelec-
podem também ser visualizados nas represen- tual”. Seguindo Michel de Certeau, trata o texto
tações simbólicas e/ou metafóricas, carregadas de época como “um espaço aberto a múltiplas
de significados e discursos (matrizes tipológicas), leituras” (1990, p. 61). Afirma que todo o escrito
como informações em circulação nas diversas obedece a categorias de pensamento e formas
formas de iconografia produzida (classificações) de apreensão do real que que ao “representarem”
- desde desenhos esquemáticos, ou com rigor dada situação, os textos criam realidades.
geométrico e técnico, produzidos por técnicos
A cartografia produzida desde o final do período
(pintores, desenhistas, cartógrafos e engenhei-
português (de controle filipino), inclusive por ju-
ros) de diferentes nacionalidades e finalidades.
deus e cristãos-novos, gera informações sobre
A junção da leitura historiográfica, estudos de
acessos, traçado e praças fortificadas de Olinda
pesquisadores e leitura de imagens, contribui
e Recife, tornando aquele ambiente menos estra-
no processo de análise, evitando interpretações
nho aos seus futuros ocupantes. O ambiente foi
convencionadas e preconcebidas, ligadas a uma
modelado, não por governantes neerlandeses-
intencionalidade de transculturação (transplan-
-holandeses, mas por intervenções urbanísticas,
te) identitária. Após sistematização e análise do
planos e desígnios de técnicos e construtores
material iconográfico, são analisadas fontes que
que passaram a trabalhar sobre o Recife, cujas
descrevem o processo de mudanças e permanên-
qualidades ambientais, funcionais e estéticas
cias nas fases da construção da cidade colonial passam a diferenciar-se da ocupação anterior.
(materializada).
Cabe indagar, se neerlandeses-holandeses te-
Colocado em prática na análise da construção do riam promovido uma “desespanholização”, ou,
Recife colonial, nas documentações e estudos, se portugueses teriam promovido uma “desneer-
são constantes as descrições sobre a construção landização” do Recife, ao retomarem o domínio.
dos espaços estruturais da cidade colonial sob ne- Contudo observa-se na historiografia que objeti-
cessidades emergenciais, sem foco na imposição vos e investimentos tiveram foco direcionado ao
de marca, nacionalidade, ou matriz de identidade equacionamento de questões bélicas e programa
cultural, mesmo que esta não tenha deixado de de necessidades, onde a afirmação identitária
se consolidar pelo “saber fazer” - confrontação seria algo assessório, com insipientes ocorrências
conceitual que norteou a busca por uma análise e registro. Nesse aspecto, no senso comum, nas
menos subjetiva da construção identitária, através últimas fases de governo colonial, portugueses
de variáveis da denominada “cidade necessária”. A teriam exorcizado influências e marcas mate-
leitura de cada período também pôde ser feita pelo riais e culturais castelhanas e holandesas, num
entendimento das crônicas de engenheiros mili- processo de reimposição da identidade perdida
tares e memorialistas portugueses, espanhóis, ou apagada por neerlandeses e holandeses. Na
flamengos, neerlandeses, holandeses, alemães, verdade, o que se enfrenta é o chamado “medo
ingleses, belgas e franceses, entre outros que do mar”, de novos ataques, e por isso um grande
estiveram no Brasil dos séculos XVI ao XIX. investimento em defesa.
EIXO TEMÁTICO 2 Dessa forma, neste artigo, prevalece o conceito
denominado “cidade necessária”, cuja construção
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS identitária demonstrada pela historiografia e ico-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES nografia, se dá através na prática de convivência,
sobreposição e superposição de modelos pró-
prios, com diferentes padrões de investimentos de
meios e materiais, sobre o ambiente preexistente,
de acordo com necessidades e objetivos distintos.

Entendendo o Recife como espaço de aplicação


de distintos e híbridos modelos político-técnicos,
administrativos, econômicos e urbanísticos, en-
cabeçados pelos governos e empreendedores
privados, a alternância de técnicos contratados
deu à cidade, características urbanas e cultu-
rais singulares, pela sobreposição e agregação
dos processos evolutivos de identidades (saber
fazer) urbanas. Na “cidade necessária” ocorre-
ram aplicações de investimentos de forma dife-
renciada por cada grupo empreendedor. Foram
identificados elementos e variáveis comuns nas
diferentes fases de governo colonial, bem como,
sua relevância – materialização possível fren-
te aos condicionantes do empreendimento. Ao
identificar como esses fatores políticos (invasão
e tomada do controle), administrativos (investi-
mento em comércio e manutenção da produção)
e técnico-urbanísticos (desenvolvimento com
tipologia diferente da encontrada na estrutura
urbana produzida pelo derrotado) que corroboram
para a configuração das ocupações do Recife,
se analisa sua relação com identidades culturais
dos ocupantes, numa expressão e reafirmação
urbana e arquitetônica.

A partir da compreensão da denominada “cidade


necessária”, a maneira de construção da cidade
revela, nos principais elementos de interesse e
investimentos, a consolidação de identidades
urbanas distintas, mas, mantendo elementos pre-
existentes, sem serem, por isso, consideradas,
interessadas em permanências culturais desde
sua concepção, ou de identidade cultural híbrida.
Assim, um modelo adotado pelo técnico-cons-
trutor não poderia ser lido hoje como tipologia,
mesmo que a forma materializada tivesse sua
identidade urbana, não podendo ser classificado
simplesmente com base em uma suposta ma-
triz, fruto de experiências técnicas anteriores
16º SHCU ou posteriores desses técnicos empreendedo-
30 anos . Atualização Crítica
res. Como exemplo, nas realizações holandesas
2194 colocadas em prática em outras colônias, com
meio ambiente e interesses distintos dos encon- Representações na construção da identidade
trados no Brasil, os mesmos modelos, teriam sido
utilizados, mas devido aos interesses diferentes, Roger Chartier (1990) traz a concepção de prá-
outros padrões de meios e materiais teriam sido ticas e representação cultural que vem sendo
utilizados, produzindo resultado com conside- moldada de acordo com corrente historiográfica,
ráveis variações. Constatou-se que a prática de para explicar novas noções de cultura, de acordo
planejamento urbano de uma mesma nação ou com pensamentos, valores, relações e aconteci-
grupo técnico de empreendedor dominador pode mentos na sociedade de cada momento. Chartier
produzir “identidades urbanas” diferentes, de permite duas vertentes de concepções e modos
acordo com as variáveis da “cidade necessária”. de ver, fazer e representar (organizar ou forjar) a
sociedade por grupos. A partir do sentimento de
Assim, como no caso do Recife, a partir da visu- unidade (construção de representações revelando
alização de modelos urbanísticos, ou distintas identidade) e, noutra concepção, a construção
formas de aplicar investimentos e de seus dis- de novas percepções, à medida que comandam
tintos resultados identitários, na historiografia, atos, construindo figuras e identidades socio-
foi possível compreender a função dos elementos culturais a partir de representações e práticas.
que compõem o espaço urbano instalado, em cada Dessa forma, a representação pode ser encarada
período do processo de reelaboração e hierarqui- como instrumento teórico-metodológico que
zação de usos, num contexto de permanências e permite apreender símbolos das disputas de po-
mudanças das características urbanístico-mili- der e domínio entre grupos e suas relações num
tares (traçado, usos, hierarquias, fortificações, determinado campo histórico e sociocultural.
acessos, portas, pontes, etc.). Assim, na construção das identidades do Recife
colonial, o conceito pode servir para apreender
representações, tanto das relações objetivas,
quanto de confrontamentos e oposições, interpre-
O processo de formação da identidade
tações de expressões simbólicas, como mediação
teórico-metodológica (BOURDIER, 1999).
Para compreender o processo de aplicação de
investimentos para construção do espaço urbano Este artigo trata da construção da identidade
do Recife por luso-ibéricos, neerlandês-holande- urbana, somando a materialidade ao modo de
ses e luso-brasilianos, cabe o entendimento dos vida. Assim, seria possível complementar a lei-
interesses implícitos nas intervenções, tanto no tura da construção identitária a partir das bases
planejamento e materialização dos espaços urba- conceituais, inerentes também às identidades
nos e arquitetônicos que os compõem, quanto no sociais, considerando as características comuns
registro dessas informações e representações. de determinados grupos como, por exemplo, usos
Desígnios e discursos são essenciais para en- e costumes das tradições, das estruturas fami-
tender algumas formulações sobre identidade e liares, da miscigenação e dos comportamentos
representações iconográficas dos dominadores, de grupos profissionais e irmandades (MICHELIN,
inclusive, de como a população local e estran- 2008). No entanto, o objetivo não é entender esses
geira assimilaram as ações dos dominantes. As modos de vida, mas os reflexos materiais das
representações de identidade modificam as infor- formas de aplicação de investimentos, a partir
mações sobre as projeções e marcas produzidas desses modos de vida, alterando-os.
nos elementos materializados pelos seus investi-
mentos no espaço urbano, mas, não simplesmen- Então, é indispensável entender as ações desses
te através do transplante cultural de identidades técnicos e empreendedores. O material de análise
urbanas pelas ações dos empreendedores. Se- tem foco na iconografia e historiografia, com
gundo Cordova (2008), é preciso compreender as ênfase nas questões de estruturação, adapta-
ligações de poder nas representações, as produ- ção e usos do espaço urbano nas disputas para
ções historiográficas e as tradições inventadas produção de riquezas comerciais. Nesse campo,
nas construções identitárias. também se considera, além dos fatores humanos e
técnico-culturais, outros condicionantes práticos,
como o ambiente físico geomorfológico, sócio
EIXO TEMÁTICO 2 espacial e demais fenômenos da vida cotidiana,
como os interesses comerciais, sua relação com
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS a terra (a vivência social), a política, a economia e
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES a comunicação (circulação de informações).

Para análise da construção (CHARTIER, 1990) iden-


titária urbana, na primeira fase de afirmação da
identidade não nativa, em ambiente natural pree-
xistente, buscou-se superação de metodologia de
análise convencional que parte da origem(nacio-
nalidade e período) do técnico-projetista-constru-
tor para sugerir uma matriz tipológica. Se adota o
entendimento e aprofundamento da compreensão
sobre os elementos necessários à consolidação
do empreendimento e afirmação identitária, ao
que denominamos variáveis de construção da
“cidade necessária”, as formas e objetivos de in-
vestimentos urbanos sobre o ambiente natural
ou construído e preexistente. Dessa forma, se
sobrepõe compreensão aos questionamentos
sobre mudanças e permanências, no sentido de
sobreposição e oposição de marcas e identida-
des, passando a entendê-los como fatos urbanos
necessários, principalmente em busca de aten-
dimento de necessidades para consolidação da
cidade colonial, em grande parte, emergenciais.
Portanto, entende-se que na construção e na aná-
lise, a principal preocupação na constituição da
forma materializada não é calcada na imposição
de discursos nacionalistas ou culturais, nem na
imposição de modelos e estilos, mas, condicio-
nada pelas referidas variáveis de construção da
“cidade necessária”. Por outro lado, nessa prática
de construção urbana, baseada em modelos men-
tais ou desígnios, mesmo dentro de um período
de governo, se alcança formação identitária com
variações acentuadas nas aplicações de deter-
minado modelo, na maioria dos casos, através do
“saber fazer” dos técnicos e artífices envolvidos,
tanto nos desígnios (ordens, traças e projetos),
quanto nas obras. Desvincula-se a construção
da identidade urbana da adoção de modelo que
transplanta nacionalidade de técnicas e obras,
pois o caráter urbano delineador de identidades
parte dos esforços para atender as necessidades.

Discurso e afirmação político-técnico na cons-


trução identitária
16º SHCU
30 anos . Atualização Crítica
Geralmente, os indivíduos de um determinado
2196 grupo humano constroem seus simbolismos e
representações. Conforme Hall (2003): de sua produção, os propósitos e destinação da
imagem. Na cartografia urbana são representados
A identidade é um lugar em que se assume os espaços e traçados urbanos, ferramentas fun-
uma costura de posição e contexto, e não damentais para a leitura de sua geografia, relevo,
uma essência ou substância a ser examinada. usos, ocupações, construções e vazios. Segun-
do Broek (1941, p. 31), o mapa é uma ferramenta,
Na “cidade necessária”, os instrumentos de pla-
mas, também é a expressão do pensamento ou
nejamento foram voltados ao equacionamento e
do discurso pretendido, revelando investimentos,
controle de necessidades urbanas, na aplicação
planejamentos e tipos de empreendimentos. Para
de investimentos nos ambientes naturais e inter-
Harley (1988), é uma maneira de conceber, articular
venções em ambientes construídos. Nas fases de
e estruturar os espaços de um empreendimento
formação da cidade, a imagem urbana reflete a sua
num contexto, uma linguagem de poder.
situação sociocultural, modificando-se ao agre-
gar modelos de concepção. As transformações Os métodos de representação da cartografia dão
sofridas pela identidade cultural materializada sinais sobre o desenvolvimento técnico e artís-
(espacializada) e representada na iconografia (in- tico de construtores, cartógrafos, geógrafos,
formação) podem ser analisadas considerando os
arquitetos, ou engenheiros militares em épocas
diferentes ambientes, interesses e investimentos
sucessivas, além de expressarem os conceitos
aplicados. Frisando aspectos que contribuem para
e modelos de cidade. Partindo de informações de
essa leitura, as heranças europeias (matrizes e
portugueses, espanhóis, neerlandeses e holande-
discursos), são complementadas pelo interesse
ses, belgas, ingleses, alemãs e turcos, entre ou-
da economia colonial (objetivos), mão-de-obra e
tros, a evolução da cartografia que, inicialmente,
planejamento (meios) e padrão construtivo, den-
desenvolvia cartas náuticas e geográficas, teve
tre outros, levando-se ao entendimento deque os
reflexos na cartografia urbana. A representação
elementos que compõem a cidade atendem aos
da cidade aparece de forma mais sistemática, a
objetivos de uma fase específica do empreendi-
partir do século XVI, expressando a crescente
mento, diferenciando de uma matriz ou modelo.
importância da cidade como centro de poder, na
Europa, ou nas novas terras conquistadas.

Representação e afirmação de identidades A partir do século XVII, a cartografia sofre um


impulso significativo, correspondendo ao desen-
volvimento da engenharia militar. Os técnicos vão
Os trabalhos de Frans Post representaram a di- elaborar grande quantidade de levantamentos
versidade arquitetônica no Brasil “holandês”, com urbanos e desígnios. No século XVIII, o reconhe-
aproximações de padrões tipológicos e cons- cimento, o levantamento e a representação car-
trutivos, entre modelos utilizados de matrizes tográfica de territórios foram importantes instru-
tipológicas, desde o luso-ibérico até a WIC, a mentos político-militares, para delimitações mais
qual Post prestava serviços. O objetivo relevan- precisas de fronteiras e tratados. Foi também
te atribuído aos desenhos e pinturas de Frans grande a presença de viajantes e aventureiros,
Post, elaborados na fase ainda com produção que percorreram as colônias no Brasil. Essas
no Brasil, registrou a riqueza das terras, tendo crônicas têm presença na bibliografia sobre as
engenhos, povoados, vilas e cidades como pano ocupações no Brasil, com relatos dos primeiros
de fundo (LAGO; LAGO, 1999), para um discurso anos, a exemplo dos escritos de Hans Staden
informando sobre uma colônia de harmonia, com
(1557) e Jean de Léry (1574), testemunhos oculares,
relações pacíficas sem escravidão e sem violência
como nas descrições de Roelof Baro (1651) e de
entre colonizado e colonizador. Para incentivar
Ambrosius Richshoffer (1677; 1688).
a vinda dos europeus para as novas terras, essa
representação foi repassada através de desenhos,
pinturas, publicações e documentações. Como o
estudo da imagem está suscetível à base histo-
riográfica, Burke (1992) defende a necessidade
de se entender o momento e contexto histórico
EIXO TEMÁTICO 2 Engenheiros militares na produção de desenhos
e desígnios
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Os desenhos e desígnios elaborados por enge-
nheiros militares [graduados em Portugal e no
Brasil, 1548-1822], instruídos tanto na arquitetura
civil quanto na militar, tiveram papel importante
(REIS FILHO, 2000), executando levantamentos
cartográficos, planejamentos de cidades [fortifi-
cadas] e construções. As representações (regis-
tro de informações), desenhos e desígnios, são
elementos de análise e estudo historiográfico,
um recurso metodológico relevante.

Organização dos espaços urbanos - cartografia


e controle

A dicotomia, que separa as teses sobre desleixo


e ordem, tem início nos anos 1930, com Sérgio
Buarque de Holanda (1930), ao publicar Raízes do
Brasil. Robert Smith (1969) considerou os espa-
nhóis como instruídos para executar um gradeado
regular de ruas que se entrecruzam, com as Leyes
de Índias. Paulo Santos (2001) estabelece compa-
rações com as cidades coloniais brasileiras, para
identificar a busca pela regularidade do traçado.
Interpretação minuciosa coube a Reis Filho (2000),
ao utilizar a iconografia de engenheiros militares
para investigar o processo de urbanização do Bra-
sil. Reis Filho (1968) não apenas se aproxima de
Santos (1968), como elabora uma percepção do
traço regular.

Ao conjunto de técnicos, cartógrafos, engenhei-


ros, arquitetos, desenhistas, além de outros não
nomeados, como arruadores e práticos, podemos
denominar Escritório Técnico do Recife Nasso-
viano (BUENO, 2003). Nesse escritório técnico do
Recife, a cartografia e a iconografia é vastíssima
no período neerlandês-holandês, tanto devido à
vinda de artistas (Frans Post e Albert Eckhout)
e cientistas (Willhelm Piso e Georg Marcgrave),
quanto pela presença dos técnicos especializados
relacionados à materialização da cidade, como
os cartógrafos, engenheiros (Pierre Gondreville,
Cornelis Bastiaanszoon Golijath, Hendrik van Ber-
chem, Tobias Commersteijn, Pieter van Bueren,
Sicke de Groot, Sems, Andrea Drewisch, David
16º SHCU van Orliens,) e arquiteto (Pieter Post) que acompa-
30 anos . Atualização Crítica
nharam Nassau no Brasil. Para divulgação dessa
2198 representação da construção identitária urbana
do Recife, do outro lado do Atlântico, editores e claro que o território português do além-mar era
cartógrafos renomados retratavam o período bastante diferente do espanhol. Entre outras,
holandês no Brasil, como Joan Blaeu, Henricus “havia normas de planejamento determinando que
Hondius, Nicolaes Visscher, Pierre Mortier, etc., as janelas e portas deviam ter a mesma altura, e
além das obras de cunho histórico-geográfico outra na qual as ruas não podiam receber nomes
com documentação cartográfica e iconográfica em tupi” (REIS FILHO, 1968).
publicadas por diversos autores, como Gaspar
Barlaeus, Joannes de Laet, Arnoldus Montanus,
F. Plante, Pieter Van Der Aa e outros. DISCURSOS E DESÍGNIOS LUSO-IBÉRICOS

É possível visualizar a produção de informações,


Análise crítica da iconografia como fonte his- discursos e desígnios, nas fases de investimen-
tórica tos para construção da “cidade necessária”, com
transplante, produção e ressignificação de matri-
“A cartografia holandesa do Recife: estudo dos
zes representativas da(s) identidade(s) urbana(s)
principais mapas da cidade, do período 1631-1648”,
do Recife – luso-ibérico (ante bellum), neerlan-
de Mello (1976), e o “Atlas histórico e cartográfi-
desa-holandesa (post bellum) e pós-neerlandesa
co do Recife” (1948), de Menezes (2000), revelam
o Recife com aprofundamento historiográfico. (restauração). A partir de compreensão e análi-
Seguindo procedimentos de análise iconográfica se historiográfica e leitura detalhada das fontes
da cidade, Menezes (1988), definiu legados portu- iconográficas de representação da construção
gueses e holandeses no planejamento urbano da urbana e identitária nos séculos XVI e XVII, fonte
Mauritstad e do Recife. Indicou a permanência, primária para leitura de informações, discursos e
depois de 1654, de traçado urbano vinculado a um desígnios, é possível alcançar uma compreensão
plano de intervenção, datado de 1639, atribuído sobre os interesses e discursos inseridos nessa
ao Engenheiro Pieter Post. produção de iconografia, de acordo com os ele-
mentos de investimentos geradores da “cidade
No artigo publicado na Revista Oceanos, nº 41, necessária” e da sua identidade urbana. Através
Menezes utilizou a cartografia, com conversões de séries iconográficas, se tem um panorama das
de escala gráfica identificando na cidade atual, principais fases do pensamento urbanístico posto
elementos da cidade do século XVII, através da em prática no Recife, pelos técnicos luso-ibéricos
cartografia de Colijath e Vingboons. Identificou e neerlandeses-holandeses. Numa análise geral,
casarios existentes no Recife português, ocupado os principais eventos representados são: a invasão
pelos neerlandeses, a partir de informações do de 1630, o planejamento e as obras de fortificação
“Inventário das armas e petrechos bélicos que e adensamento no Dorp Reciffo e Mauritstad e
os holandeses deixaram em Pernambuco e dos as obras urbanas na administração de Nassau.
prédios edificados ou reparados até 1654” (INVEN- A sequência das obras mais representadas, na
TÁRIO, 1940). iconografia do período neerlandês-holandês são:
Porto, cidade e povo, palácio e ponte. Conside-
Mesmo que as cidades brasileiras não tenham sido
rando essas informações, representações de
construídas numa busca de afirmações de marcas
discursos e interesses de investimentos de meios
e identidades ligadas a discursos, no século XVIII,
e materiais no ambiente natural ou construído
a necessidade de manter o controle administra-
pré-existente na “cidade necessária”, será possível
tivo e político sugeriu a possibilidade de cuidar
reconhecer traços das identidades urbanas em
da semelhança, ou identificação de elementos
cada fase do empreendimento.
aproximadores entre a colônia e a metrópole.
No entanto, não se quer afirmar a inexistência
da transculturação, pois existiram momentos da
história urbana, como por exemplo, a partir de
1750, conforme afirma Reis (1968), no qual Portugal
decidiu marcar enfaticamente sua presença na
América, quando a arquitetura serviu para deixar
EIXO TEMÁTICO 2 construção das identidades urbanas do Recife
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS
Foram realizadas leituras das atuações dos téc-
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES
nicos contratados por governos e dos reflexos de
mudança de postura, formas de investimentos
de meios e materiais, resultando em identidades
urbanas distintas na “cidade necessária”, possibi-
litando visualizar a consolidação de novas malhas
urbanas no ambiente construído por antecesso-
res, apresentando novas formas de atuação, ou
concepções e resultados, observados principal-
mente através de elementos estruturadores do
ambiente urbano: ruas, quadras, lotes, edifícios,
largos, praças e outros (LAMAS, 1992).

Segundo Pontual (2001), Mello (2001), não tinha a


intenção de fazer um comparativo da experiên-
cia do Recife com os padrões culturais (matrizes
técnicas e tipológicas baseadas na formação e
nacionalidade do projetista) vigentes nos Países
Baixos, e na hipótese da atuação do empreende-
dor ser pautada na forma de transplante. Esse
comparativo teria servido para visualização e
melhor compreensão dessa forma de construir
baseada na necessidade e interesse de imposição
de um modelo técnico e cultural dos empreende-
dores, da metrópole para a colônia, e não baseado
num conjunto de necessidades e condicionantes
técnicos, ambientais, disponibilidade financeira,
mão-de-obra e padrão construtivo, objetivos e
interesse de retorno, neste artigo conceituados
como “cidade necessária”.

No que pese a ênfase dada pela historiografia na


ação do estado na construção da cidade – o que
foi de fato essencial –, em especial a intervenção
urbanística planejada e executada pelo corpo
técnico montado por Nassau, descrito por Beatriz
Bueno (2003) como “Escritório do Recife”, servindo
para fundamentar a discussão sobre a maneira
de usar os elementos práticos de construção da
“cidade necessária”, composto pelas variáveis
“investimento” (meios e materiais) e “ambiente
natural” ou “ambiente construído” (pré-existentes),
confirmando que a prática de construção identitá-
ria e ressignificação da cidade é baseada não em
discurso estético ou nacionalista, mas na neces-
sidade de empreendimentos urbanísticos e milita-
res voltados ao alcance de objetivos racionais. Na
16º SHCU publicação “A cidade na história”, Lewis Mumford
30 anos . Atualização Crítica
(2004) demonstra a relação entre a cidade e a
2200 tecnologia, a prática urbana e o emprego técnico.
Caracterizações de acordo com as variáveis da Reis Filho (1968, p.71), a cidade construída “de
“Cidade Necessária” jacto”, na emergência, como ocorrera com os
primeiros empreendedores coloniais e os holan-
No processo permanente de conformações e deses [em estado de guerra e pouca condição de
ressignificações, a cidade perde e ganha algumas investimentos para o desenvolvimento urbano e
características, e faz permanecer outras, por econômico-financeiro], sem condições consoli-
meio das ações e investimentos, principalmente dação de um modelo de cidade racional, a cons-
de empreendedores portugueses, espanhóis, trução da identidade do Recife se deu baseada não
neerlandeses e holandeses, materializando-se em modelos tradicionais, mas na necessidade e
por meio de seus técnicos projetistas, arruado- objetivos pragmáticos.
res, construtores e artífices, mas também de
sua população, índios, negros, mulatos e outros
contenedores de “saber fazer” vernáculo. Os nú-
cleos urbanos surgem como povoados, com im- “Saber-fazer” de colonos e técnicos luso-ibéricos
plantação irregular, em sítios elevados [o saber
A identidade formal e estrutural dos aglomerados
fazer português, por meio de seus colonos]. Na
urbanos era assegurada pela forma de aplicação
história da urbanização do Recife, a agregação de
de investimentos no ambiente natural, geran-
modificações (permanências e mudanças), revela
do uma tipologia que é hoje vista como fruto de
objetivos de e construção de identidades urbanas
matriz portuguesa [tradição com variedade de
distintas, através das representações sobre o
influências e modelos vernáculos de diferentes
espaço urbano, elaboradas por técnicos, a serviço
momentos históricos] de referência comum a to-
dos empreendedores estatais ou privados, com
dos, mesmo em condições geográficas, materiais,
suas identidades postas em prática nas fases do
culturais, políticas e econômicas no tempo [além
empreendimento colonial, do século XVI ao XVIII.
de elementos preexistentes] que diferenciava
Os lusos, ao contrário dos espanhóis, contaram
cada cidade colonial.
com menos recursos para a construção de vilas
e cidades. Para efetivar a colonização e construir Ao que está convencionado como característi-
os povoados, decidiram que seria necessário con- ca cultural ou tradição portuguesa, na “cidade
trolar e usar a mão-de-obra indígena, mas sendo necessária”, somam-se razões emergenciais,
por fim utilizada outra mão-de-obra escravizada. programáticas e pragmáticas de segurança e
acessibilidade dos níveis e uso consolidados em
diversos núcleos litorâneos pelo Brasil. Os núcleos
iniciais tinham na sua emergência de implantação
ELEMENTOS DE CARACTERIZAÇÃO LUSO-IBÉRICA na aplicação do “saber fazer” e na vida cotidiana
a necessidade de manter viva a religiosidade e a
A Carta Foral, o principal instrumento jurídico, prática comercial. As influências do “saber fazer”
normatizador e modelador do ambiente encontra- se somam ao interesse, à maneira e à capacida-
do, demonstra conhecimento prévio do sítio e dá de de investimento dos colonos envolvidos na
demonstração da “necessidade” de organização e empreitada. Dessa forma, parece desaparecer
planejamento para ordenar a instalação da sede de cena a preocupação consciente de repeti-
da capitania. O planejamento da “cidade neces- ção do modelo português pelos colonos, sem os
sária” de Duarte Coelho, mesmo com aplicação meios [projeto, mão de obra especializada] para
de traçado adaptado ao relevo, irregular, denota realizar. É possível, deste modo, visualizar como
racionalidade, baseado não em modelos de traça- os espaços centrais eram reservados aos usos
do, mas em modelos de investimentos de meios essenciais, as manifestações culturais, religião
e materiais com objetivos claros, baseado em e comércio. De qualquer maneira, a metrópole
necessidade, e não na ânsia de afirmação de uma seria o modelo ideal.
matriz de nacionalidade. Mário Chicó (1956) diz que
“nas cidades construídas de jacto é abandonada Na “cidade necessária”, os investimentos de meios
a tradição e aceita abertamente a cidade ideal”. (projeto) se assemelhariam ao modelo urbano do
Num ponto-chave do estudo da “cidade necessá- porto [privilegiando os interesses no ambiente
ria”, corroborando com a indagação do professor estratégico e elaborando o planejamento para
EIXO TEMÁTICO 2 extrair resultados]. Já os investimentos de ma-
teriais (padrão construtivo) se assemelhariam ao
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS que seria o modelo português. Como, dessa forma
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES seriam possíveis várias formas de aplicação de
investimentos e uso de forma diferenciada da
influência do modelo, se pode afirmar que essa
forma de análise da “cidade necessária” contraria
definitivamente a ideia da replicação indiscrimi-
nada do modelo luso-ibérico, ou neerlandês-ho-
landês, na construção urbana [sem ação basea-
da em investimento no ambiente para alcançar
objetivos práticos, preocupados, por exemplo,
com a segurança, religiosidade, acessibilidade e
habitabilidade, abastecimento d’água, adaptação
sítio e ao seu relevo, etc].

É senso comum que a impressão de uniformidade


da fisionomia dos povoados e vilas coloniais
demonstra um modelo, numa repetição do modo
de ser e se expandir. No entanto, as semelhanças
decorrem tanto de traços de sua essência de con-
cepção, quanto do contexto geográfico, econômi-
co e da aplicação de investimentos, mas a ação do
conjunto das variáveis de implantação e evolução
trata de diferenciá-las das demais.

A determinação de flexibilidade na aplicação das


diretrizes funcionais ou estéticas, dá luz ao presen-
te estudo, onde o discurso (matriz), convencionado
como principal elemento definidor do projeto ou
execução, pode abrir espaço para adaptação aos
elementos da “cidade necessária”, alterando mo-
delos (variáveis), gerando identidades urbanas ou
padrões distintos. De acordo com o relevo e limita-
ções geográficas, as construções eram organiza-
das para a conformação e oclusão do espaço urba-
no, destacando no conjunto urbanístico, igrejas e
edificações oficiais, enfileirando-se inicialmente
criando o arruado inicial, formando a Rua Direita.
No entanto, a paisagem não fez parte da motivação
para eleição dos sítios (OMEGNA, 1961) a serem
ocupados, mas foram motivações as necessidades
práticas, mesmo dentro do limite do “saber fazer.

Identidades e heranças a partir da iconografia

As qualidades [situação geográfica com confor-


mação de “barra” protegida por arrecifes, ideal
16º SHCU para segurança e para atividades portuárias]
30 anos . Atualização Crítica
também atraíram os neerlandeses-holandeses
2202 para esse ancoradouro (MIRANDA, 2003).
Figura 01: Mapa Síntese da ocupação portuguesa sobreposta à futura intervenção holandesa Setorização Urbana – a partir
de Laet (1630), Colijath (1648) e Albernaz (1631). Autor: Alterado de Menezes (2000) por LINS (2011)
EIXO TEMÁTICO 2 As ilustrações publicadas no livro História das
Índias Ocidentais, de Johannes de Laet, data-
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS da de cerca de 1630-31, mostram panoramas de
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES Olinda e Recife, tomados provavelmente a bordo
de embarcações no mar. Trata-se de represen-
tação holandesa que revela a cidade luso-ibérica
encontrada (1630-1631).

Albernaz, em 1631, produz cartografia sobre a


ocupação encontrada pelos holandeses e Goli-
jath, em 1648, elabora cartografia mais precisa
sobre o Recife. A sobreposição dessa informação
informa a estrutura urbana consolidada pelos
luso-ibéricos, mas, que passará por importantes
intervenções fruto do planejamento urbanísti-
co-militar elaborado e executado por técnicos e
construtores neerlandeses-holandeses.

ELEMENTOS DE CARACTERIZAÇÃO
NEERLANDESA-HOLANDESA

No planejamento urbanístico da Mauritstad (1639-


44) o caráter de praça de armas vai influenciar o
grande projeto urbanizador que surgirá em segui-
da, na planta de finais de 1639. Cavalcanti (1977,
p.124) reitera que:

[...] na verdade, Nassau ao sentir melhor a


terra, começou dando vazão ao seu gênio
empreendedor e o pequeno território da
‘Povoação do Recife’, [...] para isso contava
com uma equipe técnica respeitável.

Segundo Mello (1976), o plano de urbanístico da


Ilha de Antônio Vaz pode ter sido elaborado por
Hendrick van Berchem. Como parte da execução
de obras do plano, em 1644 serão inauguradas as
duas pontes, sabendo-se que a primeira, ligan-
do o Recife à Ilha de Antônio Vaz, foi iniciada em
1641. Até essa época a ligação entre o bairro do
Recife e a Ilha de Antônio Vaz se fazia por meio
de balsa. Sobre uso de um modelo urbanístico
e projetual, político e técnico, preestabelecido,
Mello entende que

[...] a Cidade Maurícia foi consolidação de


uma política de distribuição de terras urba-
nas que se identificou com aquele modelo
16º SHCU definido pelos Países Baixos, [...], reflete
30 anos . Atualização Crítica
sem dúvidas um novo método de projetar
2204 (...) (MENEZES, 2001).
No mapa, provavelmente desenhado por Pieter Aparecem na descrição dos espaços a Rua do
Post, a partir de levantamentos cartográficos de Mar (Seestraet), a Rua da Balsa (Pontstraet), a
Colijath, aparece pela primeira vez o planejamento Rua do Carcereiro (Geweldigeratraet), a Rua Nova
da Cidade Maurícia (MELLO, 1956), com o marcante (Nieuwestraet), a Rua do Vinho (Winjstraet), a Rua
caráter do urbanismo do século XVII (tabuleiros do Bode (Bockestraet), a travessa do Mouro (Moria-
geometrizantes e aplicação de conhecimentos
ensteech), entre outras. Para controlar o acesso,
de implantação de construções, uso público e
foram projetadas portas como a Porta da Terra
drenagem em terrenos alagadiços com uso de
canais). Além da implantação de uma trincheira, (Lantpoort), no extremo norte do porto; a Porta
numa área do groot kwartier ao Forte das Cinco da Balsa (Pontpoort), próxima a cabeceira da ponte
Pontas, foram divididos lotes (demonstração de que ligava Recife a Maurícia; a Porta do Mar (Water-
um planejamento racional), que não chegaram a poort), no desembarcadouro de navios; e a Porta
ser completamente construídos. Sul (Zuijtpoort), a única porta na Cidade Maurícia.

Figura 02:Plano do Recife, projeto atribuído a Pieter Post. Detalhe de Carte vande haven van Pharnamboqve met de Stad Movritia
‘t dorp Recciffo,1639, Mapa de Vingboons. Autor: Original manuscrito do atlas atribuído a Johannes Vingboons, IAHGP, Recife.

Fruto de uma estratégia pragmática de investi- No caso do Recife colonial, sendo aplicado um
mentos, no edital de Nassau, de 1641, que proibiu modelo flexível que se altera de acordo com o
novas construções em Olinda, concentra esforços meio, com o interesse de retorno e com o padrão
na cidade Maurícia, focando objetivos e interes- desse investimento, é permitida sua leitura atra-
se nesse ambiente da “cidade necessária”. Já o vés da visualização de tipos específicos de cada
palácio de Friburgo supre a necessidade repre- fase de atuação ou modelo de atuação, através
sentacional, em destaque, assim como as torres de sua materialização e da iconografia produzida
sineiras das igrejas, a casa de sua Excelência e como representação dessa construção identi-
Marcgrave, Friburgo e o Palácio da Boa Vista. tária. Como ocorrido com a Mauritstad, Nassau
EIXO TEMÁTICO 2 comprou terras desocupadas na Ilha de Antônio
Vaz, investimento de Amsterdam/WIC. Nessas
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS áreas, autorizou a construção na parte mais ao
DO CONHECIMENTO SOBRE AS CIDADES norte,dois palácios e na outra, mais ao sul do Forte
Ernesto, seus técnicos alteraram o projeto de
Pieter Post, parcelando e colocando à venda lotes
menores do que os projetados. Sobre as melhorias
na infraestrutura e no desenvolvimento na carta
de Nassau ao Conselho dos XIX, de dois de abril
de 1643, diz:

Além dos benefícios que são de esperar


para o Recife e Maurícia, da construção
de uma ponte, [...], o aluguel das casas é
geralmente tão alto que o povo não pode
suportá-lo com os seus negócios o que é
causa do despovoamento deste lugar (Nas-
sau, 1977, p.126-129) [grifo nosso].

Sobre a possibilidade de transplante, Mello (1976)


afirma que “a ilha de Antônio Vaz, no trecho entre
o Forte Ernesto, o Grande Alojamento e o Forte de
Cinco Pontas, os técnicos de Nassau definiram
parcelamento urbano, “a maneira dos planos da
Nova Amsterdã, de 1590 e 1612. Um longo canal
divide a ilha em dois conjuntos de quadras liga-
dos por pontes. Segundo Breda (2007), o plane-
jamento da Maurícia, “repartida em canais, ruas e
praças com belos edifícios, dotada de armazéns
de mercadorias” (BARLÉUS, 1974, p.153), teve in-
vestimento fundamental em estrutura comercial,
espaços para armazenamento de bens, instalação
de oficinas, escritórios e pontos de venda.

Novo modelo de investimento - transformação


do ambiente

O “Inventário das armas e petrechos bélicos que


os holandeses deixaram em Pernambuco e dos
prédios edificados ou reparados até 1654” (INVEN-
TÁRIO, 1940), contabilizou cento e setenta e seis
edificações, incluindo fortes, redutos, palácios e
casas, o que não significa que existisse apenas
esse número de edificações, havendo inclusive
edificações listada no mesmo item. Grande parte
dos imóveis pertencera a “portugueses” e esta-
va sendo devolvido aos proprietários. Noutros
casos, foram descritas benfeitorias feitas pelos
16º SHCU “holandeses” nos imóveis deixados pelos luso-ibé-
30 anos . Atualização Crítica
ricos. Os novos imóveis construídos são alistados
2206 como “cazas terreiras fronteiras fabricadas por
flamengos”, ou “cazas de sobrado fabricadas por fixar pontos de defesa, entre março de 1630 e fi-
flamengos” (INVENTÁRIO, 1940, p. 172, 273). nais de 1631, finalizaram dez novas fortificações
(MEERKERK, 1988). O preço de uma fortificação
Não ocorrem observações sobre características era influenciado por fatores locais, como quali-
arquitetônicas ou urbanísticas, sugerindo apaga- dade do material de construção, viabilidade dos
mento de elementos ou marcas identitárias luso- transportes destes materiais e da mão-de-obra
-ibéricas, ou neerlandesa-holandesa. A maioria (MIRANDA, 2006).
das edificações estava na Velha Maurícia, pois a
área sul da ilha [São José] não estaria totalmente O plano neerlandês de fortificação de Andreas
ocupada no governo neerlandês- holandês. Ou- Drewisch (1631) trouxe um sistema de defesa exe-
tras obras foram planejadas e executadas na Ilha, cutado na emergência da guerra. De 1630 a 1637,
como a drenagem dos terrenos, canais, diques, Recife e Antônio Vaz haviam sido transformados
palácios, jardins, museu natural, observatório em grandes canteiros de obras para estrutura-
astronômico, e serviços como bombeiros e coleta ção de uma praça-forte com condição de alojar
de lixo. Com a tecnologia hidráulica neerlande- e defender os soldados da Companhia. Tanto a
sa-holandesa, a água foi conduzida ao redor do segurança do porto, quanto a do istmo, foram
perímetro da cidade por canais para os fossos reforçadas com a construção, ainda em 1630,
das fortificações (MELLO, 1976, p.18). do Schans de Bruyn [Forte do Brum], projetado
pelo engenheiro da WIC Tobias Commersteijn,
sob as bases da obra do Forte Diogo Paes. Acres-
centou-se à defesa do Bruyn, um hornaveque,
Praça do Recife (1630-1654)
obra de fortificação avançada e complementar,
O sistema de defesa da “Praça do Recife” (Velha concluída em 1631 (RICHSHOFFER, 1978). Após o
Maurícia, Nova Maurícia e Recife), era seu principal plano de fortificação e defesa da Praça do Recife
posto de posse e defesa no litoral norte do Brasil e Mauritstad], de Andreas Drewish (1631), o plano
(Mello, 1998). Miranda (2006) explica que, depois urbanístico de Pieter Post (1639) agrupou qualida-
de ponderar as vantagens e desvantagens de se des de planejamento, com visão de investimen-
estabelecer em Olinda ou no Recife, o Coman- tos, de acordo com as principais necessidades
do Militar da WIC no Brasil passou a solicitar ao e diferentes padrões de aplicação de meios e
Conselho dos XIX a permissão para destruir a vila recursos, seguindo os objetivos do empreendi-
e concentrar tropas e fortificações no Recife, mento, gerando padrões identitários distintos,
sítio que considerava adequado para construção também diferenciados pelo meio natural e pela
de uma praça-forte. Mas, o príncipe de Orange, geografia do sítio escolhido, na denominada “ci-
chefe-geral das forças armadas neerlandesas, dade necessária”. Outro engenheiro contratado
não deu parecer favorável ao abandono. Deu or- para instaurar os trabalhos de fortificação do
dens para que Olinda, caso houvesse meios, fosse Recife, Pieter van Bueren (WIC), junto a Andreas
fortificada, levando a outros desdobramentos. Drewisch (WIC), executou os planos de Commers-
teijn, o que resultou na constituição do primeiro
Portanto, também a forma de conceber e executar sistema de defesa neerlandês no Recife, que ficou
empreendimentos militares no espaço urbano pronto em 1637.
do Recife reflete a lógica da utilização das vari-
áveis da “cidade necessária”, com construção da Nas construções e amuralhamento, houve prag-
identidade urbana, revelando não um discurso matismo construtivo com uso de taipa, de menor
nacionalista, mas investimentos [meios e recur- resistência, porém, disponível e com mão-de-obra
sos materiais], de acordo com objetivos para o para executá-lo. No entanto, a taipa é capaz de
ambiente natural ou construído. A resistência diminuir o impacto dos disparos bélicos, muito
luso-brasiliana estava fisicamente tão próxima utilizada em construções civis e militares nos
que ocorriam ataques ao istmo, pois, com a maré sistemas de drenagem, córregos e valetas de
baixa, se alcançava o Recife com facilidade. Os terra natural, ou até mesmo em escavações para
próprios oficiais neerlandeses Almirante Lonck e direcionar o curso da água. Quanto à paliçada
Pieter Adrianszoon foram atacados ao passarem de madeira em torno do Recife, construída por
pelo istmo no caminho entre Olinda e Recife. Para ordem de Matias de Albuquerque na preparação
EIXO TEMÁTICO 2 para a invasão, desfez-se, projetando-se outra de
maior dimensão. Em 1638, foi construída uma nova
HISTÓRIA, URBANISMO E OUTROS CAMPOS paliçada.

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