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AÇÕES ARTÍSTICAS EM ESPAÇOS PÚBLICOS: REFLEXÕES SOBRE

EXPERIÊNCIAS DE POLÍTICA UNIVERSITÁRIA DE CULTURA E A


INTERAÇÃO ENTRE ENSINO-PESQUISA-EXTENSÃO

Takna Mendonça Formaggini1

Elis de Araújo Miranda2

RESUMO: Este trabalho apresenta reflexões acerca de políticas públicas culturais associadas
a experiências de ocupação de espaço público por meio de ações artísticas da política cultural
interuniversitária. As articulações em rede, das ações de pesquisa-ensino-extensão, realizadas
no Parque Avellaneda na cidade de Buenos Aires, na Argentina, no Laboratório de Pesquisa em
Planejamento, Cultura e Representações Espaciais (LabCult-UFF) e no Núcleo Cênico Interdisciplinar
de Estudo, Investigação e Criação Cênica (IFF) proporcionaram ações artísticas de ocupação em
espaços públicos. Essas ações visam discutir com pessoas comuns sobre o direito à cidade e sobre
formas de participação popular na elaboração de política pública como parte de uma cultura política,
tendo as universidades como principais agentes articuladores das ações em rede.

PALAVRAS-CHAVE: Arte e cidade, políticas culturais, teatro de rua, universidade.

1 INTRODUÇÃO

Em 2009 foi criado o Laboratório de Pesquisa em Planejamento, Cultura e Representações


Espaciais (LabCULT) da Universidade Federal Fluminense (UFF) em Campos dos Goytacazes.
Durante quatro anos agregando apenas estudantes dos cursos de graduação em Geografia e História
dos recém-criados cursos no Âmbito do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão
das Universidades Federais (REUNI). Com o tempo, ampliaram-se estas articulações com estudantes
dos programas de pós-graduação em Geografia, criado em 2013 e de Desenvolvimento Regional,
Ambiente e Políticas Públicas, criado em 2016, ambos na UFF Campos.

1 Mestranda em Desenvolvimento Regional, Ambiente e Políticas Públicas pela Universidade Federal Fluminense.
Professora do Curso de Licenciatura em Teatro do Instituto Federal Fluminense- IFF. Licenciada em Teatro pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO, Pós-graduada (Lato Sensu) em Arte-Educação pela Universidade
Cândido Mendes. takna.formaggini@gmail.com.
2 Doutora em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ). Professora do Departamento de Geografia e do
Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional, Ambiente e Políticas Públicas da Universidade Federal
Fluminense. elismiranda10@gmail.com.

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A partir de 2015, com a instalação do Fórum Interuniversitário de Cultura (FIC), tendo a
coordenação do Fórum de Ciência e Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) como
principal articulador, proporcionou ao grupo do LabCult a integração com professores dos cursos
de artes do Instituto Federal Fluminense (IFF/Campos) e os grupos de pesquisa e de extensão da
Casa de Cultura Villa Maria, da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF).
Essa articulação a partir do FIC amplificou as ações das três universidades públicas instaladas em
Campos dos Goytacazes (IFF, UENF e UFF) e abriu caminho para que professores/pesquisadores,
estudantes de graduação e de pós-graduação e sujeitos sem vínculos institucionais diretos com essas
universidades, mas com vínculos à cidade, passassem a organizar seminários, produzir livros, se
inserissem nos conselhos municipais de cultura e de patrimônio e assim participarem da vida pública
de Campos dos Goytacazes e a contribuir com a elaboração das políticas públicas de cultura.

Em 2017 ampliaram-se as ações interuniversitárias com a proposição da criação de um


Centro Cultural Universitário da UFF em Campos dos Goytacazes, que abrigaria não apenas grupos
de pesquisa e extensão, mas agregaria artistas dos mais amplos segmentos, coletivos culturais e os
sujeitos ordinários, para ser fiel a uma denominação de Michel de Certeau (1980). A criação do
denominado Galpão Cultural da UFF não obteve êxito. O contexto político em que o Brasil vivia,
associado à falta de apoio institucional necessários para a sua criação inviabilizaram a instalação
do Galpão, mas a concepção deste projeto não foi morar no fundo de uma gaveta com traças, ao
contrário, renasceu em outro lugar, com novos ares, novos sujeitos e em novas estruturas.

No ano de 2019, passaram a acontecer na Casa de Cultura Villa Maria, da Uenf, os Encontros
de Pesquisa em Teatro de Rua, articulando a pesquisa da pós graduação UFF, na proposta de projeto de
pesquisa e extensão do Instituto Federal Fluminense a partir do projeto de pesquisa e extensão Núcleo
Cênico Interdisciplinar de Estudo, Investigação e Criação Cênica3, tendo como foco a encenação em
espaços não convencionais no contexto da pesquisa das relações entre arte (teatro) e cidade. O projeto
desenvolve processos cênicos que pretendem analisar as relações arte-sociedade-espaço público
urbano a partir de ações de ocupação de espaços da cidade pelo teatro, buscando a aproximação do
trabalho do ator com a rua dentro de construções artísticas que se entrelaçam com a estrutura de um
teatro que acontece fora do palco convencional.

3 O projeto de pesquisa e extensão Núcleo Cênico Interdisciplinar de Estudo, Investigação e Criação Cênica é
coordenado por Takna Formaggini, professora de Teatro do Instituto Federal Fluminense e mestranda do programa de
Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional, Ambiente e Políticas Públicas da UFF) sob orientação da professora
Elis Miranda.

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Em 2020, a partir de uma demanda da nova gestão da UENF4 foi criado um Grupo
InterUniversitário de Cultura5, com a integração de quatro universidades6 instaladas em Campos dos
Goytacazes e articulação com o Fórum InterUniversitário de Cultura (FIC) que continua a agir de
forma integrada na elaboração de editais de pesquisa para atender às demandas dos estudos culturais.

O Grupo InterUniversitário de Campos se articulou para fins de ocupação dos equipamentos


culturais universitários com a implementação de ações artísticas e culturais que envolvam: conversas
com autores, montagens de exposições, organização de festivais de artes cênicas, visuais, literários,
musicais e ações práticas que dialoguem com a diversidade cultural brasileira e regional.

As articulações do Grupo InterUniversitárias se realizam a partir de redes sociotécnicas7, o que


nos possibilitou participar de reuniões em Buenos Aires, com o grupo de gestão associada do Parque
Avellaneda; no Rio de Janeiro com o Grupo de pesquisa em Políticas Públicas do Estado do Rio de
Janeiro, em Belém, com o grupo de pesquisa em planejamento, cultura e turismo do NAEA/UFPA
e em municípios adjacentes a Campos apenas com o uso de um smartphone, sem custos financeiros
e físicos com deslocamentos. Lembrando que todas essas ações acontecem concomitantemente às
nossas atividades docentes e na gestão de cursos de graduação e pós-graduação.

Após apresentarmos um breve histórico da articulação em prol das políticas culturais


universitárias, apresentaremos a seguir, reflexões sobre o efeito destas articulações interuniversitárias
de ocupação de equipamentos culturais universitários, de realização de ações artísticas em espaços
públicos com a participação de pessoas com as mais diferentes gruas de envolvimento com as
universidades instaladas em Campos dos Goytacazes, possibilitando a discussão do direito à cidade a
partir do que Marilena Chauí denominou de cidadania cultural.

2 REFLEXÕES SOBRE AS AÇÕES INTERINSTITUCIONAIS ARTICULADAS E AS


RELAÇÕES ENTRE ARTE E CIDADE COMO UMA CULTURA POLÍTICA

Campos dos Goytacazes, assim como outras cidades de médio porte, vem sendo afetada nos
últimos anos com a problemática de políticas públicas de cultura que deem conta de seus espaços

4 Reitor Raul Palácio, Vice-Reitora Rosana Rodrigues, Pró-Reitor de Extensão Olnei Motta e Assessora Cultural
Priscila Castro.
5 O Grupo InterUniversitário de Cultura é composto por representações de Universidades e integram estudantes
de graduação, pós-graduação e extensionistas da UENF, do IFF e da Universidade Aberta. E Seus principais articuladores
são: Elis Miranda (UFF); Leonardo Vasconcellos, Raquel Fernandes e Aline Portilho (IFF); Priscila Castro (UENF) e
Rodrigo Lira e Carol Poesia (Candido Mendes).
6 UENF, IFF, UFF e Candido Mendes.
7 Desde 2013 temos participado das seguintes Redes de Pesquisa e de Ações: Rede de Políticas Públicas do
Estado do Rio de Janeiro; Fórum InterUniversitário de Cultura; RedLatinoamericana de Participação Popular em
Políticas Culturais; Rede Internacional em Estudos Culturais.

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públicos de convivência, seu conjunto histórico arquitetônico, seus acervos de história e de memória,
assim como a realidade de ruas caóticas, sujas, sem calçamento e com uma violência urbana cada
vez mais cotidiana. Esse conjunto de elementos faz com que moradores da cidade alimentem uma
relação de distanciamento e mesmo de desprezo pelos espaços públicos e pelas questões públicas, que
se torna ainda mais despotencializado, no esvaziamento de encontros, das experiências e de criação
de afeto pela cidade, por sua história e por possibilidades de vivências, observações e aprendizados,
destituindo pouco a pouco os sujeitos ordinários (CERTEAU, 1980) das experiências coletivas de
cidadania.

Parte-se desta reflexão para levantar a importância e o lugar da autonomia da instituição pública
universitária na gestão concreta de promoção de políticas abrangentes da tríade ensino-pesquisa-
extensão no desenvolvimento de políticas culturais para ocupação dos espaços públicos. A partir da
proposição de ações de extensão e enquanto permanência das metodologias de ensino de graduação
e pós-graduação e de experiências institucionais de realização de ações artísticas e culturais nestes
espaços públicos como forma de continuidade de pesquisa, na contribuição da promoção do direito
a cidade.

A articulação entre ensino de graduação e pós-graduação, pesquisa e extensão como parte de


um projeto institucional de universidade pública que incluam experiências de arte e cultura no âmbito
do espaço público, são possíveis de acontecer estando estas instituições fortes e autônomas, pois do
contrário o prejuízo para a realização destas políticas torna-se sobremaneira preocupante.

É necessária a reflexão e debate relativos a ideia de direito à cidadania, pois em sua essência,
antes de tudo, ter o direito a cidade é ter acesso ao direito de participação e de decisão. Cidadania
que pensa suas políticas públicas a partir de uma participação coletiva que vem da percepção de
pertencimento social no que se refere ao espaço urbano e que precisa ser percebida e refletida para
que possa ser efetivada, exercida e praticada.

As conexões integradas na construção de pertencimento entre o urbano e a sociedade observadas


a partir de ações artísticas teatrais que penetram a cidade ao mesmo tempo em que permitem à
cidade estar presente nesta ação dinâmica de constante interferência e reflexão, potencializam aos
sujeitos reconhecerem-se neste equacionamento onde as relações de categorias de ação coletiva são
recapturadas na base de seu contexto de sentidos. Uma cidade que mantenha em seu espaço público
intervenções artísticas inseridas em sua rotina cotidiana, vem abrir, dessa forma, perspectivas de
construção cultural e afetiva no que se refere a relação que as pessoas têm em seu cotidiano com a
cidade, adquirindo expectativas que permitem o olhar para o espaço em suas diversas possibilidades
de experiências/vivências/sensorialidades.

É essa política de gestão universitária de cultura que tem promovido ações no espaço público
através do teatro de rua a partir da experiência de um curso de graduação em Licenciatura em Teatro

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do Instituto Federal Fluminense e que desenvolve pesquisa no âmbito do desenvolvimento regional
de políticas públicas e que articula sua pesquisa a um projeto de extensão que envolve não apenas
estudantes universitários mas também pessoas, não vinculadas ao ambiente universitário a ter uma
experiência do teatro desenvolvido e realizado a partir de um projeto de extensão em um espaços
públicos na cidade de Campos dos Goytacazes.

A rotina em que se inserem os passantes no cotidiano de uma cidade, acaba por produzir-
lhes um olhar acostumado a este ambiente, o qual ao ser modificado a partir de uma interferência
artística urbana produz significados novos, despertando e aguçando a percepção desses transeuntes,
que podem se permitir olhar para este espaço, como um ambiente ainda não percebido em todas as
suas possibilidades e relações de coexistência. Na rotina de uma cidade, os contatos estabelecidos
que poderiam ser face a face, são, obstante, impessoais, superficiais, transitórios e segmentários,
onde cada dia mais é ampliada a ausência de produções de relações de afetação e conexão entre
estes contatos. A reserva e a indiferença cada vez mais manifestadas por parte dos habitantes das
cidades em suas relações poderiam talvez ser encaradas como instrumentos para se imunizarem
contra exigências pessoais e expectativas de outros. Essas experiências despotencializadas em relação
a cidade e suas relações de afetividade, acabam por estabelecer uma relação de distanciamento para
com a problemática urbana, refletindo na noção de decisão da participação cidadã, tão necessária para
um pensamento efetivo desta participação para um pensamento participativo e político.

O sociólogo Klaus Frey (2000), comenta sobre as transformações dos padrões de comportamento
político por parte dos atores sociais envolvidos, enquanto resultados, pelo menos em parte, dessas
pressões político-sociais exercidas pelos movimentos sociais e pela sociedade civil em geral que
pretende um pensamento social participativo:
Sociedades instáveis que se encontram em um processo de transformação, em geral,
são caracterizadas por tensões entre os padrões individuais de comportamento e
aqueles que transcendem as ações individuais. Devido a mudanças em relação aos
valores sociais, interesses e objetivos de ação, surgem atores, particularmente em
tempos de rupturas sociais e políticas, que se empenham a favor de modificações
dos estilos de comportamento político. (FREY, 2000, p.236)

Vista como bem cultural – a Arte inserida no contexto da vida social urbana – contribui no
processo de construção de modos específicos do fazer, pensar e perceber. Discutindo e fomentando as
relações entre processos pessoais e grupais de elaboração e exercícios de narrativas e a constituição
de identidades, a partir de uma perspectiva histórica, política e cultural. A relação estabelecida por
esses sujeitos sociais ao vivenciarem a cena teatral que se dá em espaços públicos não convencionais,
deflagram pontos geradores de reflexões acerca dessa ressignificação afetiva que considera que a
demarcação espacial destinada à cena teatral, em fusão com o espaço urbano traduz-se nesse novo
ambiente ainda não percebido no despertar do olhar sobre a rua neste contexto de espaço público,
possibilitando à comunidade que passe a compreender este espaço como lugar de convívio e de

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encontro, tornando possível a representação teatro-vida e vida-teatro enquanto acontecimentos
urbanos e portanto de debate e percepção de sujeitos históricos incluídos e pertencentes a este espaço
urbano.

Essa reflexão encontra-se inserida em um pensamento das relações culturais que são construídas
a partir da arte, de forma híbrida. O espaço que se constrói a partir de sua sociedade, assim como a
sociedade se constrói a partir desse espaço e que, ao incluirmos o teatro realizado nos espaços abertos
da cidade, realiza-se também a partir da construção cultural e social dos espaços e de seus sujeitos.
Continuamos, dessa maneira, o diálogo com Klaus Frey sobre a relação entre política cultural e
cultura política:
Do mesmo modo, no meu entender, a cultura política não determina a performance
governamental e o estilo político. Se fosse assim, não seria compreensível a
variedade de estilos políticos, por exemplo, nos governos estaduais ou municipais,
que podemos observar na realidade política e que condiciona também as realizações
materiais das políticas públicas concretas. Isso significa que estilos específicos de
política são influenciados por uma variedade de fatores como as tradições nacionais
e regionais, as estruturas políticas, o grau de desenvolvimento econômico, as
ideologias, o treinamento cívico [Rennó Jr., 1997, p. 240] e a própria experiência
da prática política, etc. Portanto, a abordagem da cultura política dificilmente pode
nos fornecer explicações satisfatórias e definitivas dos estilos políticos. (FREY,
2000, p. 238)

A relação que se dá entre cidadãos e suas relações entre si e o espaço urbano tem sido discutida
por diversas perspectivas que incluem também a apreensão entre as relações sujeito e objeto enquanto
relações de complementação de sentidos, onde não se encontrariam como um campo puro na
compreensão da ciência, mas sim como campos complementares. Política, Cultura, Arte, Espaço não
devem ser pensados isolados em seus campos disciplinares, mas em relação. Observamos cada vez
mais que as disciplinas se fecham e não se comunicam umas com as outras. Os fenômenos são cada
vez mais fragmentados, e não se consegue conceber a sua unidade, o que interfere na percepção do
pensamento de políticas públicas a partir de um conceito mais global e transdisciplinar.

O pensador e sociólogo francês Edgar Morin (1998), observa que a ciência nunca teria sido
ciência se não tivesse sido transdisciplinar, e que os princípios transdisciplinares fundamentais
da ciência, a matematização, a formalização são precisamente os que permitiram desenvolver o
enclausuramento disciplinar. “É, portanto, necessário enraizar o conhecimento físico, e igualmente
biológico, numa cultura, numa sociedade, numa história, numa humanidade. (...) e a ciência
transdisciplinar é a que poderá desenvolver-se a partir dessas comunicações (...)” (MORIN, 1998,
136).

Tomamos então emprestada esta ideia, considerando o conflito existente entre espaço público
e espaço urbano, que, antes compreendido como lugar de individualismo e privativismo, incentivaria
o despertar de reflexões para políticas públicas a partir desse contato entre a arte e os sujeitos no

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espaço urbano (dos sujeitos na/da cidade), possibilitando um ponto de partida para que haja uma
comunhão de reflexões e ações políticas acerca da compreensão do caráter híbrido de pertencimento
nas relações entre sociedade e natureza urbana em suas relações a partir da experiência estética que
se dá tendo como ponto de partida o acontecimento artístico.

Nessa linha de pensamento, ao considerar a interferência cênica urbana realizada em locais


marcados por registros emocionais e de significados histórico-afetivos, no caso específico da linguagem
teatral, a partir do momento em que se promove o contato das pessoas com a cena no espaço da
cidade, cria-se uma experiência ampliada desse público nestes espaços de forma ressignificada, onde
seria possível reconhecer seu pertencimento à cidade, a partir da reflexão política e crítica no contexto
gerado pela experiência artística teatral. Neste caminho de compreensão da transcendência entre as
formações “natureza” e “sociedade”, entende que a ideia de desenvolvimento urbano baseadas apenas
na função econômica reduz a cidade ideologicamente a uma função de rentabilidade e acumulação.
Para Henry Léfèbvre (2002), filósofo e sociólogo francês, em seus estudos que discutem o direito
a cidade, esse pensamento exclui outras dimensões qualitativas do desenvolvimento, que para ele
deveria justamente incluir o aumento da trama das relações, ou seja, as trocas de enriquecimento
humano, pois a forma econômica responsável pelo desenvolvimento - crescimento econômico -,
essencialmente, exclui as outras dimensões humanas como a troca, a diferença e o encontro. Para
Léfèbvre, a possibilidades de troca e encontro é que seriam o real direito à cidade.

Estas reflexões nos permitem pensar a cidade e o processo urbano como uma rede de processos
entrelaçados, compreendendo que na cidade, não há nada “puramente” natural ou social, pois a cidade
é como uma coisa híbrida social-natural, carregada de tensões e conflitos.

Nesse sentido, dentro de em uma perspectiva pragmatista, para o estudo da ação coletiva, o
antropólogo Daniel Cefaï (2009) nos traz uma análise fundamental do lugar da afetividade nesse
processo, que segundo ele foi negligenciada durante muito tempo e retorna muito recentemente com
força para o ambiente das pesquisas. Para ele, durante muito tempo, as críticas da análise racional e
da análise estrutural foram limitadas à defesa das temáticas da “cultura” e da “identidade”. Porém,
as emoções da ação coletiva foram ainda mais negligenciadas (GOODWIN et al., 2001 apud CEFAÏ,
2009). A questão que se coloca então é a problemática entre cidade, sociedade e suas relações de
afetividade, e que, devido a cotidianidade urbana, em sua inquietação, está cada vez mais se tornando
despercebida e despotencializada: um cotidiano urbano onde os passantes não conseguem mais
perceber a cidade dentro da reflexão de auto- pertencimento, e que se dá nesta construção híbrida.

Nesse ponto, a arte inserida entre essas relações, enquanto articuladora de percepções entre
homem e cidade, traz a possibilidade da transformação destas relações, ressignificando e ampliando
esse olhar sobre os espaços urbanos, na compreensão de que somos culturalmente construídos a
partir do meio em que vivemos, assim como este meio carrega também com ele todos os significados

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simbólicos em sua estrutura como parte do meio urbano, em um mundo de relações construídas entre
a cidade e o social, com todos os significados e afetividades que estas redes carregam. Nas palavras
de Daniel Cefaï:
Mais radicalmente, não se trata simplesmente de reabilitar um “objeto” até então
negligenciado pela pesquisa ou pela análise, mas de transformar a definição da ação
coletiva. A afetividade não é um tema entre outros. Ela é o que faz com que haja
experiência, tanto perceptiva quanto cognitiva ou moral. Não é uma coloração de
estados de fato ou de estados de consciência. Ela é o que garante nosso contato com
os outros e com as coisas, e o que mantém unidas as situações nos situando nelas.
A ação coletiva não está toda no agir, mas também no sofrer e no compartilhar. Ela
tem uma dimensão de afeição e paixão coletiva. Mais do que serem propulsados
em direção a um ponto estratégico, os membros que se engajam são afetados por
situações em que contribuem para definir e dominar; eles são “passíveis”, expostos a
eventos que os abalam e os tiram da rota, remanejando seus critérios de compreensão
e reorganizando seus horizontes de inteligibilidade. Aquém das estratégias racionais
ou das determinações estruturais, a ação coletiva se deixa abalar pelos eventos, que
por vezes só afetam particulares, mas podem ganhar outra amplitude e concernir
a pessoas bem distantes daquelas que são diretamente tocadas (DEWEY, 2003),
levando-as a formar uma experiência comum, a se indignarem em conjunto e a se
mobilizarem em público. (CEFAÏ, 2009. p 32, grifo meu)

Para analisarmos a contribuição do Teatro nesse contexto de acontecimentos híbridos,


recorremos a Flavio Desgranges em suas pesquisas sobre os fenômenos de mediação entre cena teatral
e plateia, onde o autor considera que “o caráter estético-reflexivo do fato artístico está diretamente
relacionado com sua proposição dialógica, com a efetiva participação do receptor enquanto co-criador
do evento, e aqui talvez esteja inscrito o caráter educacional da experiência artística” (DESGRANGES,
2006).

A discussão sobre estas experiências coletivas e de acontecimentos de atos de publicização


a partir de atitudes pragmáticas, abordadas por Cefaï, considera a importância da ação coletiva para
uma construção de “arena pública”. Para ele, nesses processos de publicização, os indivíduos são
com frequência separados dos papéis, dos estatutos, das opiniões e das convicções que normalmente
têm, possibilitando que as lógicas de ação ultrapassem os mercados, os campos ou os setores em que
estão geralmente contidas, passando por cima de suas fronteiras por meio de um fenômeno que as
teorias do comportamento coletivo qualificavam de contágio ou propagação (CEFAÏ, 2009. p 16).
No caso, o fato artístico solicita que o indivíduo espectador formule interpretações próprias acerca
das provocações estéticas feitas pelo artista, elaborando um ato que é também autoral. Assim “o
contemplador, para desempenhar o papel que lhe cabe no evento, precisa colocar-se enquanto sujeito,
que age, pois a contemplação é algo ativo, e que cria, pois a sua atuação é necessariamente artística”
(DESGRANGES, 2006).

Observa-se, portanto, que essa dimensão experiencial, indissociavelmente afetiva, cognitiva e


formativa, se dá de forma ancorada no presente, mas possibilita a abertura de horizontes com relações

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de passado e presente, em que convicções “pessoais” vão se formar, se reforçar e se exprimir em um
processo de “coletivização” e de “publicização” de um caso, de um problema ou de uma causa. A
experiência coletiva e pública decorrente desse acontecimento, não é a soma ou integração de uma
série de experiências individuais e privadas. O próprio de uma mobilização não totalmente rotineira é
que ela abala o consenso presumido da experiência do senso comum e põe à prova a atitude natural dos
indivíduos que a compõem (CEFAÏ, 2009. P. 27). A cientista política Celina Souza (2006), comenta
sobre o conceito de políticas públicas, descentralizando a ideia do papel exclusivo do governo nas
elaborações de políticas públicas, sem deixar de considerar as relações que definem decisões e análises
sobre elas, e que implicam, de acordo com Laswell responder às seguintes questões: quem ganha o
quê, por quê e que diferença faz. Souza nos traz a análise de que indivíduos, instituições, interações,
ideologia e interesses contam para a ideia de definição de políticas públicas.
Não existe uma única, nem melhor, definição sobre o que seja política pública. Mead
(1995) a define como um campo dentro do estudo da política que analisa o governo
à luz de grandes questões públicas e Lynn (1980), como um conjunto de ações do
governo que irão produzir efeitos específicos. Peters (1986) segue o mesmo veio:
política pública é a soma das atividades dos governos, que agem diretamente ou
através de delegação, e que influenciam a vida dos cidadãos. Dye (1984) sintetiza a
definição de política pública como “o que o governo escolhe fazer ou não fazer”. A
definição mais conhecida continua sendo a de Laswell, ou seja, decisões e análises
sobre política pública implicam responder às seguintes questões: quem ganha o
quê, por quê e que diferença faz. Outras definições enfatizam o papel da política
pública na solução de problemas. (...) Apesar de optar por abordagens diferentes,
as definições de políticas públicas assumem, em geral, uma visão holística do tema,
uma perspectiva de que o todo é mais importante do que a soma das partes e que
indivíduos, instituições, interações, ideologia e interesses contam, mesmo que
existam diferenças sobre a importância relativa destes fatores. (SOUZA, Celina,
2006, p. 24,25, grifo meu)

Ideia que se complementa, ainda de acordo com Cefaï, na constituição de um desafio de


mobilização, de protesto e de conflito que acompanha a articulação de uma arena pública, para onde
apontam os atores coletivos e onde emergem novos universos de sentido – senso comum, mesmo se
controverso.

Portanto, nesse universo que circunda a multidimensionalidade do homem em suas relações


sociais e o espaço que habita, cabe a análise que inclui o acontecimento artístico teatral como fator
de exploração entre a tensão da semântica própria de cada lugar e a proposta cênica que tanto pode
se relacionar, quanto colocar-se em contradição ao significado histórico daqueles lugares, ampliando
a significação do discurso e da experiência social. A fragmentação entre coisas/sujeitos presentes nas
relações locais- globais presentes nas redes de relação existentes na cidade estão relacionadas neste
rizoma onde a arte pode também estar presente enquanto disparadora da percepção destas conexões
híbridas e onde os sujeitos possam se reconhecer neste constante equacionamento de suas questões,
sendo estas experiências de engajamento, categorias de ação coletiva que são recapturadas em seu
contexto base de sentidos a partir destas relações.

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As novas redes de governança, nas quais as comunidades, as associações da
sociedade e as empresas privadas desempenham papel cada vez mais decisivo,
desafiam não apenas os governos e a maneira de governar, mas exigem também
uma reorientação do pesquisador de políticas públicas. (FREY, 2000, p.252).

Política pública deve ser uma política elaborada pelo público. Essa elaboração deve ter uma
preparação para que o sujeito possa conhecer/perceber sua cidade, os espaços públicos. A partir das
ações do teatro tornando sujeitos da ação todos os envolvidos no acontecimento artístico teatral,
enquanto sujeitos diversos da ação, em níveis e compreensão distintas, enquanto formas distintas
de compreensão do mundo que articulam esse pensamento. O trabalho se propõe a levantar estes
questionamentos. Não como resultados, mas parte de um processo de questionamento.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A relação entre ARTE-CIDADE se realiza enquanto uma experiência concreta articulada na


interação entre pesquisa-ensino-extensão em perspectiva interinstitucional nos levou a refletir sobre
as formas de elaboração e implementação de políticas públicas de cultura. A elaboração de políticas
públicas não cabe apenas aos agentes governamentais, mas caberia a cidadãos que teriam ampliadas
sua percepção sensível e política a partir de experiências estéticas presentes em espaços públicos
diversos.

Alcançar uma cidadania cultural que planejamos e queremos, passa por reflexões de sujeitos
sociais presentes enquanto espectadores ativos da vida urbana, ou seja, que percebam e reflitam sobre
essas copresenças enquanto pertencentes ativos deste meio urbano.

No contexto dessa análise, a experiência com o Teatro, contribui para a luta e engajamento
necessários e permanentes, que entende a participação popular como único caminho para o real direito
a cidade que nos fala Léfèbvre, na possibilidade de a cidade ter a forma dos que habitam nela e, para
que isto possa acontecer, é preciso que os que a habitam possam ampliar sua percepção destes espaços
públicos a partir das relações de afeto e pertencimento que podem ser ressignificadas e ampliadas
através de ações artísticas teatrais realizadas no contexto urbano.

Por fim, acreditamos que essas reflexões se formulam e são potencializadas a partir do ambiente
institucional universitário. É na Universidade que exercemos nosso pleno direito ao pensamento
crítico, inclusivo e em respeito a diversidade do mundo em que vivemos no século XXI.

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REFERÊNCIAS

CEFAÏ, Daniel. Como nos mobilizamos? A contribuição de uma abordagem pragmatista para a sociologia
da ação coletiva. Tradução de Bruno Cardoso. Dilemas, 2009.

CERTEAU, Michel de. A Invenção da vida cotidiana: as artes do fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.

DESGRANGES, Flávio. A Radicalização da autoria proposta ao espectador: aspectos pedagógicos  da


estética teatral contemporânea. In . A Pedagogia do Teatro: provocação e dialogismo. São Paulo, Editora
Hucitec: Edições Mandacaru, 2006.

FREY, Klaus. Políticas Públicas: um debate conceitual e reflexões referentes à prática da análise de políticas
públicas no Brasil. PLANEJAMENTO E POLÍTICAS PÚBLICAS No 21, Jun 2000, p. 211-259

LÉFÈBVRE, Henri. A Revolução Urbana. Tradução Sérgio Martins, Belo Horizonte, Ed. Humanitas, 2002

LÉFÈBVRE, Henri. A Vida Cotidiana no Mundo Moderno. Tradução de Alcides João de Barros. São Paulo:
Ática, 1991.

MORIN, Edgar. Para a Ciência. In: . Ciência com Consciência. Tradução de Maria D. Alexandre e Maria
Alice Sampaio Dória. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.

SOUZA, Celina. Políticas Públicas: uma revisão da literatura. SOCIOLOGIAS, Porto Alegre, ano 8, nº 16,
jul/dez 2006, p. 20-45.

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