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Laboratório para Geração de Novas Utopias: Ativismo digital comunitário como ferramenta
de efetivação de Direitos Sociais e criação de redes de comunicação no Litoral do Paraná
e_mail: ibirae@gmail.com
Matinhos, 2020
Laboratório para Geração de Novas Utopias: Ativismo Digital Comunitário como
ferramenta de efetivação de Direitos Sociais e criação de redes de comunicação no Litoral do
Paraná
Lab.Utopia
Laboratório para Geração de Novas Utopias: Ativismo digital Comunitário como ferramenta
de efetivação de Direitos Sociais e criação de redes de comunicação no Litoral do Paraná
A partir de uma longa vivencia na planície costeira e nas regiões estuarinas do litoral do
Paraná, observa-se a utilização disseminada do rádio nas vilas mais distantes da região. A título de
exemplo, na Barra do Ararapira, vila com 160 habitantes na divisa dos estados do Paraná e São
Paulo, existe apenas uma TV que funciona das 19:00 as 22:00hrs, mas durante o dia, o rádio está
ligado. No local, enquanto a TV torna-se um ritual público, o rádio é familiar e restrito as casas com
uma presença cotidiana, ininterrupta.
No dia 20 de abril de 1923. Na sala de física da Escola Politécnica, no Largo de São
Francisco, Roquette-Pinto e um grupo de cientistas liga, pela primeira vez, o transmissor da Rádio
Sociedade do Rio de Janeiro e lança um ideal: o Rádio é um formidável instrumento para a
educação popular e deve ser usado “pela cultura dos que vivem em nossa terra”.
Em estudos recentes sobre o “educomunicador”, Geneviève Jacquinot (2003, p.2) lembra
que não se pode mais negligenciar o fato de que os alunos de hoje são impregnados de uma “cultura
midiática”, e a atitude dos professores tem sido ignorar a influência dos meios de comunicação,
mantendo a tradição da escola, cujo modelo de mediação é exposição oral e valorização da escrita.
Levando-se em conta que os modos de apropriação do saber mudaram, o que deveria ser pensado,
na prática pedagógica, é uma verdadeira aproximação da escola com os meios de comunicação, uma
vez que os dois têm pontos comuns e o que se aprende na escola pode ajudar a compreender a mídia
e vice-versa.
O reconhecimento da força de persuasão do rádio e de suas possibilidades de uso político,
desde seu surgimento, determinou a concentração de concessões pelo Estado, que atendeu,
sobretudo, os interesses de empresários do setor. As emissoras estatais de caráter educativo
receberam poucos incentivos tornando-se quase inexpressivas diante da expansão dos grandes
meios privados de comunicação. No início o rádio era inspirado no modelo europeu, de linha
cultural e educativa, diferenciando-se daquele apenas por não ter caráter estatal, e dependia do
apoio da comunidade. Mas, pouco tempo depois, adotou o padrão americano, mais barato,
dinâmico, variado e bem sucedido comercialmente, que passou a servir de modelo para as rádios
existentes e as que vieram posteriormente.
A introdução de mensagens comerciais transfigura imediatamente o veículo que, de
“erudito”, “educativo” e “cultural”, transforma-se em “popular”, voltado ao lazer e à diversão. A
radiodifusão brasileira tem se configurado apenas como um canal distribuidor de informação,
gerando, neste processo, um distanciamento emissor/receptor, uma vez que, na difusão para as
massas, reverte-se a função principal da comunicação que é a relação dinâmica entre eles, a “dupla
mão de direção” preconizada por Bertold Brecht nos anos 1920.
Contudo, desde o final dos anos 70, a história do rádio no Brasil tem sido alterada com o
surgimento de várias experiências locais em comunicação popular, como as rádios universitárias,
livres e comunitárias. Trazendo a marca do idealismo de seus protagonistas, elas demonstram a
conquista de um direito fundamental do cidadão: o direito de comunicar. Apesar da modernização
das cidades e da evolução tecnológica, os excluídos da grande mídia, nos dias atuais, têm se
organizado em associações, passando a utilizar estes sistemas radiofônicos alternativos.
Os movimentos sociais estão construindo algo de “novo”, expressando interesses coletivos
que trazem em seu interior um esforço pela autonomia e por um “quefazer” democrático, num novo
espaço de ação política. Vários estudos têm contribuído para aprofundar a temática da comunicação
comunitária, ora considerando as experiências bem-sucedidas, ora constatando as dificuldades da
participação popular para a continuidade dos modelos de comunicação educativa voltada ao
envolvimento social local.
Porém, diante da importância do veículo, que vem subvertendo o modelo linear de
comunicação, transformando o receptor em sujeito e permitindo-o atuar enquanto emissor-produtor
de mensagens no meio de comunicação de seu próprio bairro, cidade e região, faz-se necessário
avaliar os diversos aspectos que incrementam essas iniciativas cidadãs, ampliando sua escuta.
O educador Paulo Freire (FREIRE, 2014, p.120) encara os grandes grupos de mídia como
instrumentos da comunicação vertical e alienante, encarregados de auxiliar na subjugação dos
oprimidos, através da difusão de mitos, normas e valores de minorias oligárquicas. A proposta de
uma Educação para a Libertação, capaz de alterar o processo educativo do tipo bancário, que
promove a submissão e a passividade, segundo Paulo Freire, passava pela comunicação e não
deveria ser tratada fora da estrutura econômica, política e cultural da sociedade (BELTRAN, 1981,
p. 28). Foi dessa forma que o movimento de Cultura Popular da Ação Popular, no início dos anos
1960, encontrou principalmente no rádio e no teatro instrumentos poderosos para alterar tanto as
relações de poder como a educação no Brasil (FÁVERO, 1983, p. 9).
Mas, se por um lado tem sido fundamental a luta pelo funcionamento das rádios
comunitárias, por outro é primordial buscar modelos educativos a serem divulgados. Esta meta
educativo-cultural faz parte da história do veículo desde seus primórdios e foi oficializada a partir
de 1936, com a doação da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro ao Ministério da Educação e Cultura.
As várias experiências registradas desde então, como a proposta do educador Anísio Teixeira, nos
anos 30, ou do Movimento de Educação de Base (MEB), nos anos 60, lançaram a pedra
fundamental da comunicação comunitária.
Na década de oitenta, aparecem as primeiras experiências de uso do rádio em ambiente
escolar. Embora tenham sido desativadas, elas foram importantes do ponto de vista do aprendizado
e da integração dos alunos nas escolas. Rádios escolares como a Radioteca Jovem, o projeto
RádioVisão, e a Rádio Vanguarda Educativa de Campos, no Rio de Janeiro, fizeram parte de um
projeto da Secretaria Estadual de Educação daquele Estado. Em São Paulo, a Rádio RM 2.002,
surgida em 1989 no Colégio Regina Mundi, a partir de uma idéia de rádio itinerante. Em Curitiba,
no Paraná, a Rádio Interna Vila Verde, funcionou de 1989 a 1991 na Escola Municipal de 1º grau
Vila Verde, com apoio de estagiários da PUC-PR, que ajudaram a incrementar a produção de jornais
e a Radiorecreio, que esteve ativa de 1992 a 1994, agregou escolas de 1º e 2º graus da rede pública
estadual. Os programas gravados por alunos eram ainda retransmitidos pela Radio Paraná Educativa
FM.
As iniciativas relatadas demonstram que a radiodifusão no Brasil assume importância social
à medida que o rádio figura como único meio de levar a escola e a informação até os habitantes de
várias regiões que não têm acesso à educação ou às mídias locais, considerando-se diversas razões
de ordem geográfica, econômica ou culturais. Elas apontam ainda para a possibilidade de se buscar
modelos educativos para as programações a partir da escola.
Como uma das sonoridades do rádio é justamente a oralidade, e que a palavra geradora da
dialogicidade impõe um novo sentido às relações sociais, pois “o mundo pronunciado, por sua vez,
se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar” (FREIRE,
1980, p. 92), o jovem vai se conscientizando de seu próprio papel na sociedade.
Assim, o Laboratório para Geração de Novas Utopias, cujo embrião surge, nos idos do ano
2010 como Rádio Educativa Litoral FM, faz parte de um programa que integra os diversos níveis
escolares a partir da produção de mídia educacional pelas comunidades civis e escolares do litoral
do Paraná e Vale do Ribeira, servindo a escola como recurso didático mas extensivo a todos. Esta
idéia fora colocada pelo educador Paulo Freire, que propunha “fundamentar na comunicação toda
ação educativa, para reabilitar a palavra, o diálogo ação-reflexão, num reconhecimento crítico da
situação opressora, primeiro passo para a humanização e conseqüentemente para a libertação”
(FREIRE, 1980, p. 35).
Paralelo a esse processo e a partir das reflexões adquiridas e do histórico do banco de dados
já existente foi possível agrupar estilos e padrões. Experiências criativas em gravura,
transformaram-se em arte urbana. Um conjunto delas e trechos radiofonicos transcritos compuseram
um funzzine, impresso em mimiógrafo dimensionou sua reprodutibilidade e foi distribuido na
Universidade Federal do Paraná, Setor Litoral induzindo um movimento ativista que possibilitou
associativismos e formação de diversos centros acadêmicos, ausentes no Setor até então. Paralelo a
arte mural, as gravuras passaram a ser reproduzidas nas paredes do Setor, antes brancas,
desencadeando um processo de fala, escuta e exigência de direitos a partir das paredes. É possível
acompanhar uma narrativa visual e polifônica horizontal e não hierárquica dessa arte mural,
gravuras, poesia, textos e palavras de ordem possibilitando o empoderamento e dando voz a grupos
e segmentos presentes na universidade que tradicionalmente eram invisibilizados e oprimidos.
Esse movimento descrito acima começõu a ser desenvolvido a partir de 2011. A observação
e o registro tem sido reunido e também compõe o banco de dados do Laboratório. A divulgação, o
envolvimento da comunidade e sua mensuração passou a ocorrer a partir do estabelecimento de
bancos de dados públicos acessiveis nas plataformas de compartilhamento no cyberespaço e que
começam a se constituir como redes reativas que crescem em envolvimento, numero de
participantes e complexidade.
Esse movimento descrito acima começõu a ser desenvolvido a partir de 2011. A observação
e o registro tem sido reunido e também compõe o banco de dados do Laboratório. A divulgação, o
envolvimento da comunidade e sua mensuração passou a ocorrer a partir do estabelecimento de
bancos de dados públicos acessiveis nas plataformas de compartilhamento no cyberespaço e que
começam a se constituir como redes reativas que crescem em envolvimento, numero de
participantes e complexidade.
Inicialmente constituiu-se uma página no www.Facebook.com nominada RádioLivreLitoral
e um Grupo na mesma plataforma (www.facebook.com/radiolivreLitoral). Nessa plataforma é
compartilhada parte da produção do Laboratório. O repositório do banco de dados registrado em
audio, encontra-se parcialmente compartilhado na plataforma www.SoundCloud.com
(https://m.soundcloud.com/ichradiolivre) com diversos nomes e layouts. Seriam eles
Laboratório Para Geração de Novas Utopias; Rádio UFPR Litoral; A Escola do Mundo ao Avesso;
Jacques Ranciere- o mestre ignorante e as cinco lições sobre emancipação intelectual; Botânica
Fantástica; Apocalipse Motorizado; Sobre Flores e Diamantes; Série Biografias e Banditismo
Social; Biografias e Outras Viagens; Biografias e Mais Sabotágens; Mitológicas. O repositório
visual do banco de dados encontra-se parcialmente compartilhado na plataforma
www.Instagram.com com o nome UtopicLab (www.Instagram.com/utopiclab). Por fim as
experiências audio visuais e filmicas de curta metragem são compartilhados na plataforma
www.Youtube.com com o nome Lab Utopia (www.Youtube.com/LabUtopia ).
Como breve historico e portfolio do Laboratório, que na época ainda não havia sido
denominado dessa forma, a equipe foi contemplada com três prêmios de abrangência nacional. O
Edital Nossa Onda, financiado pela ARPUB, Associação de Radios Públicas do Brasil selecionou
dois projetos idealizados e produzidos pela equipe. Ambos encontram-se em anexo.
Anexo I: Lendas Caiçara, a Piragui e o Pai do Mato (https://m.soundcloud.com/user-
100529914/lendas-caicara-final).
Anexo II: William Michaud: o Superagui em 7 cartas (https://m.soundcloud.com/radio-
livre-847954791/william-michaud-superagui-em-7-cartas).
O terceiro edital, organizado tambem pela ARPUB, Associação de Radios Públicas do
Brasil, financiado pela Petrobras com apoio do Ministério da Cultura contemplou o projeto Mar
Aberto: mergulhe em ideias. Uma sequencia de doze capítulos com 30minutos cada que abordam o
reconhecimento, história, cultura, paisagens, geografia, caminhos antigos, fauna, flora, musica e
gentes do litoral do Paraná. Porém por motivos diversos não teve sua produção concluida.
Enfrentando um processo histórico de invisibilidade, o litoral do Paraná, apresenta
idiossincrasias simbólicas que a partir de uma observação acurada, registro e divulgação, gerariam
processos de empoderamento dessas populações com relação aos seus próprios modos de vida,
ampliando sua visibilidade e a compreensão/estruturação das identidades locais. Sendo os
municípios do litoral do Paraná e Vale do Ribeira a área de abrangência da UFPR-Litoral, é onde
projetos da instituição possibilitam a criação de redes de comunicação. As webrádios são
mecanismos inovadores e descentralizadores, amplamente utilizados para a disseminação de
conhecimento, arte e cultura, com grande potencial para divulgar as expressões locais. Ele permite
grande abrangência geográfica via web e pode ser inserido na programação de rádios FM e AM
locais.
O projeto prevê o município de Matinhos como ponto de partida com cinco escolas onde
inicialmente o projeto poderia ser implementado devido a contatos prévios já efetivados, (Escola
Municipal Wallace Thadeu de Melo e Silva, Complexo Educacional Francisco dos Santos Junior,
Colégio Estadual Gabriel de Lara, Escola Municipal Monteiro Lobato e Escola Municipal Pastor
Elias Abrahão) e se estende em parceria com os projetos da UFPR nos municípios de Guaratuba,
Pontal do Paraná, Morretes, Antonina, Guaraqueçaba, Adrianópolis, Dr. Ulisses.
A partir de programas em áudio produzidos a partir das demandas locais relacionadas a
direitos sociais e temas sobre Educação Ambiental, Estatuto da Criança e Adolescente, Estatuto do
Idoso, Direitos das Mulheres, Direitos Humanos, Observatórios da Cidadania, Organizações
comunitárias, Cooperativismo, alternativas de geração de renda, economia solidaria, idealização e
monitoramento de políticas públicas, o Projeto se integra tanto a escolas como as demais instâncias
do poder público e da sociedade civil da região na elaboração, produção e divulgação de seus
modos de vida, identidades, demandas, reivindicações e problemas locais a partir da criação de
redes de comunicação que sejam espaços de utilidade pública e que por isso mesmo criem
condições alternativas de envolvimento da população com seu próprio território
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FÁVERO, Osmar (org). Cultura Popular, educação popular: memórias dos anos 60. Rio de
Janeiro: Edições Graal Ltda., 1983.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 8. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
MUSSOLINI, Gioconda. Ensaios de Antropologia Indígena e Caiçara. Paz e Terra, RJ, 1980.
SILVA, Luiz Geraldo. Caiçaras e Jangadeiros: cultura marítima e modernização no Brasil. Centro de
Culturas Marítimas, 1993.
_______. A festa, a Faina e o Rito: uma etnografia histórica sobre as gentes do mar, sécs.XVII ao
XIX. Coleção Textos do Tempo. Papirus Ed. Universidade de Michigan. 2001.
ANEXO 1
Rádioconto -
Lendas Caiçara – Piragui e Pai do Mato
Justificativa
O litoral do Paraná é uma das primeiras regiões colonizadas da costa brasileira, com
influências indígena, européia e afro-descendente, e por isso histórica e culturalmente rica. Ele está
localizado no setor sudeste da costa brasileira, que, entre Cabo Frio (ES) e o Cabo de Santa Marta
(SC), concentra remanescentes de Floresta Tropical Atlântica, atualmente uma das mais importantes
Reservas da Biosfera da América do Sul, incluída como um dos 25 hotspots de biodiversidade do
mundo, e por isso também um valioso patrimônio natural.
Lenda do Piragui
Em uma antiga lenda, Nhãnderu, deus dos índios guarani, havia prometido paraísos
guardados a seus filhos caçulas. Em um determinado momento, então, esses guaranis, que
viviam no interior, começaram a andar em direção ao oceano, guiados pela crença de que se
caminhassem para onde o sol nasce, encontrariam a terra sem mal.
Andaram durante muito tempo, até que chegaram ao litoral, e lá, bem perto do mar,
enfim avistaram as ilhas cercadas pelo oceano. Entenderam que afinal tinham chegado ao
paraíso. Assim, embriagados pela fé que estimulava a possibilidade do cumprimento de uma
promessa divina, os escolhidos começaram a travessia.
Passaram por Jacutinga (Ilha da Cotinga), por Ieretã (Ilha doMel) e, quando estavam
indo à Ilha de Superagüi (Ju Piragüi), foram apanhados por uma tempestade. Uma mulher já
bem velha e por isso muito fraca, não suportou as provações da travessia, seu corpo foi
“comprado” pelo mal e o mar a levou. Piragui, como era chamada, ficou então temida pela
redondeza. Ela aparecia nos rios e não gostava que as pessoas desrespeitassem o mar.
Um dia um homem estava tentando pescar e não conseguia pegar nada, quando,
revoltado, resolveu fazer cocô na água do rio para provocar Piragui. Ela apareceu, bateu na
bunda do pescador e disse: “Por que você está fazendo isso?”. O homem então reclamou da
falta de peixes. E Piragui fez uma proposta a ele: “Tenho observado a aldeia onde mora e vi
que sua mulher está grávida. Vamos fazer assim: eu lhe dou agora todos os peixes que você
puder levar e quando seu filho nascer, você o dará para mim.”
O homem chegou em casa com muitos, mas muitos peixes e disse à sua mulher: “Já
pesquei tanto neste rio que nunca mais quero pescar por lá de novo”. E nunca mais voltou!
Mas seu filho cresceu e um dia foi pescar. Quando entrou no rio, Piragui, que não havia se
esquecido do trato, estava lá, esperando por ele. Então, ela o enrolou com seus longos
cabelos e o levou para o fundo do mar. Os pais do rapaz o procuraram por todos os lugares e
não o encontraram. Foi quando seu pai, apavorado, lembrou-se do antigo acordo: ele tinha
trocado o seu próprio filho com Piragui.
Sem saber o que fazer, levou o caso a um grande Pajé. O Pajé mandou construir uma casa de
reza no local onde viram o rapaz pela última vez. Cantaram e dançaram por três dias inteiros
chamando por Piragui. No final do terceiro dia, Piragui apareceu, dançando
e cantando. Ela trazia o rapaz enrolado em seus longos cabelos. Piragui dançou e bebeu a
cachaça que lhe foi oferecida durante a noite inteira, e quando estava amanhecendo o dia, ela
acabou adormecendo embriagada. O rapaz aproveitou-se e se desenrolou de seus cabelos e
quando Piragui acordou não tinha mais nada a fazer a não ser voltar sozinha para o rio.
Piragui é uma espécie de sereia que habita os estuários da região de Paranaguá a Cananéia,
cuidando e controlando os estoques de peixes, camarões e outros seres marinhos.
A lenda de Piragui nos conta mais do que a história de um personagem, conta a história de
um tempo, de uma época. Conta a chegada dos guarani mbiá no paraíso prometido por Nhãnderu,
seu deus. As pessoas temiam Piragui e isso era muito importante para que também a respeitassem.
Piragui podia cantar e arrastar embarcações para bancos de pedra a fim de afundá-las. Mas como
toda a cultura oral, estas lendas eram passadas em histórias para crianças com a finalidade de impor
limites e respeito. “Piragui pega as crianças que ficam sozinhas na beira do rio”, e quando a criança
cresce, traz como marca de sua cultura estes cuidados com a natureza, sabendo que poderá ser
punido se desrespeitar estas leis.
A lenda de Piragui, assim como a do Pai do Mato, são lendas indígenas absorvidas quase de
forma integral pela cultura caiçara do município de Guaraqueçaba, no litoral do Paraná. Estas
lendas nos mostram o respeito, o medo e o cuidado que estas culturas tinham em preservar seus
ecossistemas, e nos dão uma mostra de como se dava essa relação com o ambiente. Na leitura
dessas duas lendas percebemos que desde há muito tempo o homem já elaborava formas de regular
sua relação com a natureza. Na cultura caiçara, foram as lendas, contadas de pai para filho, que
sempre tiveram esse papel. Conforme o tempo foi passando e o número de pessoas que habitam o
planeta aumentando, as tradições culturais passaram naturalmente a se misturar, a se fundirem.
Muitas delas acabaram simplesmente se perdendo. Ou ainda estão circulando por aí, com outros
nomes, basta achá-las!
ANEXO 2
Radio documentário – William Michaud: Superagui em seis cartas
Justificativa
O litoral do Paraná é uma das primeiras regiões colonizadas da costa brasileira, com
influências indígena, européia e afro-descendente, e por isso histórica e culturalmente rica. Ele
concentra remanescentes de Floresta Tropical Atlântica, atualmente uma das mais importantes
Reservas da Biosfera da América do Sul, e por isso também um valioso patrimônio natural.
A vida de William Michaud no Superagui e sua visão de mundo foram por ele retratadas em
pinturas e cartas enviadas para a irmã na Suíça.... Michaud, logo na sua chegada encontrou
Custódia, um grande amor com a qual teve oito filhos.
O inicio dos anos 1800 foram difíceis na Europa, Em Vevy, na Suíça não era raro que alguém saísse
pelo mundo afora. No ano de 1801, 17 famílias tinham imigrado para a America do Norte,
fundaram New Vevey, no Kentucky. Não foram poucos os que tentaram a sorte no Brasil.
No Brasil havia o programa de imigração e colonização de Charles Perret Gentil, cônsul Suíço que
fundou a Colônia Particular Suíça em Superagui. Nesta empreitada vieram 13 famílias européias, 13
homens adultos, 10 mulheres adultas, 7 filhos e 3 filhas, no total de 33 pessoas. Havia mais um
casal brasileiro que se juntou ao grupo e mais toda uma população nativa que vivia nas
vizinhanças. Naquela época a colônia do Superagui tinha quase 400 habitantes.....
Minha cara irmã Emma, você não pode fazer idéia da beleza, da exuberância e da riqueza da
vegetação, vê-se por toda parte [arvores gigantescas cobertas de cipós, trepadeiras com flores mais
belas, coqueiros, bananeiras, bambus e nogueiras da Índia... Magnífico.
Os homens, vivendo nas bordas da baia, conservam em si uma grande ingenuidade, uma magnífica
simplicidade. Entre eles, a gente encontra figuras nobres, elegantes e com graça natural.
Orgulhosos, desfrutam de uma liberdade ilimitada, são moderados na comida e na bebida, limpos
no vestuário e sem preconceitos com relação aos estrangeiros. Os homens ocupam-se das pescarias,
as mulheres, das crianças e serviços da casa e do campo.
Emma, tu sabes que sou mestre-escola desde marco de 1883, tenho atualmente, uma quarentena de
rapazes e mocas entre 8 e 15 anos. Todo o ensino e dado em língua portuguesa... Eu desejo criar um
novo mundo, algo que se retenha e não possa ser destruído por um simples carnaval iconoclasta...
Ensino meus filhos durante a noite, José me ajuda na escola, Robert, o mais velho ajuda nos
trabalhos rurais junto com sua mãe. Leocádia casou-se a pouco, Elisa devera casar-se dentro de dois
ou três meses. Julia esta noiva e ainda assim me restarão, Maria com 17 anos ,Antonia com 11 e
Ana com 8. Nos costumávamos chamar as duas ultimas de As duas pequenas.
Musica- Musica - instrumental técnico europeu com detalhes de musicas locais – do violino a
rabeca
Emma, meu amigo Louis Duriel enviara a sua irmã Louise um saco de café. Eu remeto 10 quilos
que ela te entregara e tu repartiras com Cecile, mais tarde, se o paladar e o aroma lhe agradarem,
poderei enviar o quanto queiras. Também enviarei vistas das paisagens que reproduzo
eventualmente....
Outrora a vida era muito fácil no Superagui, hoje não e mais a mesma coisa...o aumento da
população, a escassez de produtos, a falta de dinheiro, o preço crescente dos objetos de primeira
necessidade, o aumento dos impostos,... a Republica e um governo mal versador de dinheiro e tem
muitos amigos com apetites a satisfazer... a vida e difícil e cara. Não temos como outrora, a
abundancia de pescados, ostras, caça. Há muita gente, as terras boas começam a faltar e eu me
pergunto o que será do Superagui dentro de uma dúzia de ano?
Musica- Musica - instrumental técnico europeu com detalhes de musicas locais – do violino a
rabeca
Musica- Musica - instrumental técnico de musicas locais com detalhes europeus – predomínio da
rabeca
A vida no Superagui e cada vez mais difícil, nossos produtos não tem nenhum valor, o café, arroz,
bananas e laranjas apodrecem no chão e não vale a pena recolhe-las. Já não temos agencia postal no
Superagui, foi fechada pelo governo federal, bem como aquela de Guaraquecaba...o titular pediu
demissão uma vez que o pagamento era uma miséria/ de modo que não posso escrever-lhe a não ser
quando houver uma boa ocasião para remeter as cartas por Paranaguá, e não sabemos como, nem
por quem, receberemos as suas, o que e deveras muito triste..
Os conhecidos e amigos que se vão nos advertem de que estamos prestes a ir também...Mas a
questão não e morrer, e saber como e de que vamos morrer. Seria preferível não pensar nisso...Não
tenho estado apenas indisposto, mas muito doente, com febre, e tenho passado noites horríveis
numa espécie de delírio indescritível. No final de abril, meu amigo Sigwalt conseguiu cortar a febre
com medicamentos homeopáticos que continuo tomando, porem, estou muito enfraquecido, porque
não tenho comido quase nada, de vez em quando, um caldo de galinha, porque não posso suportar
nenhum alimento
Musica- Musica - instrumental técnico de musicas locais– predomínio da rabeca, adufo, pandeiro e
viola
Narrador - No dia 7 de setembro de 1902, William Michaud faleceu, aos 73 anos, rodeado por
todos os filhos e netos, como era costume no Brasil.