Você está na página 1de 194

Organização

Maria das Dores Pimentel Nogueira

VALE DO
JEQUITINHONHA
Cultura e Desenvolvimento
VALE DO JEQUITINHONHA
Cultura e Desenvolvimento
Organização
Maria das Dores Pimentel Nogueira

VALE DO JEQUITINHONHA
Cultura e Desenvolvimento

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS - UFMG


PRÓ-REITORIA DE EXTENSÃO | PROEX-UFMG
PROGRAMA POLO DE INTEGRAÇÃO DA UFMG NO VALE DO JEQUITINHONHA
BELO HORIZONTE, 2012
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

Reitor: Clélio Campolina Diniz


Vice-Reitora: Rocksane de Carvalho Norton
Pró-Reitora de Extensão: Efigênia Ferreira e Ferreira
Pró-Reitora Adjunta de Extensão: Maria das Dores Pimentel Nogueira

Programa Polo de Integração da UFMG no Vale do Jequitinhonha


Coordenadora: Maria das Dores Pimentel Nogueira

Projeto: Visões do Vale


Coordenador: João Valdir Alves de Souza

©2012
Este livro foi publicado com recursos da Pró-Reitoria de Extensão da UFMG

V149 Vale do Jequitinhonha: Cultura e desenvolvimento. / Maria das


Dores Pimentel Nogueira [org.] – Belo Horizonte:
UFMG/PROEX, 2012.
190 p. : il. ; 23 cm.

1. Arte popular - Jequitinhonha, Rio, Vale [MG E BA]. 2. Artesanato -


Jequitinhonha, Rio, Vale [MG E BA]. 3. Minas Gerais – Cultura.

I. Nogueira, Maria das Dores Pimentel. II. Universidade Federal de Minas


Gerais, Pró-Reitoria de Extensão.

CDD- 306.098151

Produção editorial: Roseli Raquel de Aguiar


Assistente de produção: Dulcinéa Teixeira Magalhães
Revisão e normalização de texto: Lílian de Oliveira
Projeto gráfico: Andrea Estanislau
Diagramação: Andrea Estanislau / Mateus Sá / Eloah Roberta
Capa: Presépio de Helena Siqueira Torres em São Gonçalo do Rio das Pedras / Vale do
Jequitinhonha / Minas Gerais. Foto: Lori Figueiró
Aberturas de capítulos: Fotos de Lori Figueiró
Produção executiva: Gaia Cultural [Cultura e Meio ambiente]
SUMÁRIO
7 Apresentação

9 Prólogo - Os papéis da cultura e da extensão universitária


Alberto Ferreira da Rocha Junior

IDENTIDADE E PATRIMÔNIO CULTURAL


22 Vale do Jequitinhonha: a emergência de uma região
Mateus de Moraes Servilha
51 A municipalização da proteção do patrimônio cultural de Minas Gerais
Carlos Henrique Rangel
64 Patrimônio material e imaterial no Vale do Jequitinhonha
José Pereira dos Santos

ARTESANATO, ECONOMIA E CULTURA


72 Arte e vida no Vale: a prontidão dos homens lentos
Maria Teresa Franco Ribeiro
82 Artesanato e políticas públicas
Maria Dorotéa de Aguiar Barros Naddeo
94 Artesanato e cultura no Vale
Ulisses Mendes
99 Associativismo: uma possibilidade de fomento ao artesanato
do Vale do Jequitinhonha
Renata Vieira Delgado
Naiane do Santos Mendes

AS MÚLTIPLAS EXPRESSÕES DO VALE


110 Histórias orais: linguagem de desejos
Vera Felício
123 Jequitinhonha – música e vida
Rubinho do Vale
143 Uma visão teatral do Vale
Fernando Limoeiro

A CONSTRUÇÃO DE UM MOVIMENTO CULTURAL


148 Geraes: uma história do Jequitinhonha
Tadeu Martins
169 As mudanças de rumo na trajetória do Festivale ao longo do período
1985-2006
Luís Carlos Mendes Santiago
177 Arte e mobilização social: celebração da cultura popular e da
identidade do Vale do Jequitinhonha
Márcio Simeone Henriques
APRESENTAÇÃO

O Programa Polo de Integração da UFMG no Vale do Jequitinhonha


completa, em 2012, 16 anos de atuação na Região Nordeste mineira. Conce-
bido como um programa de desenvolvimento regional com forte articulação
interdisciplinar com a população da região, hoje ultrapassa o número de 120
ações realizadas, entre programas, projetos, cursos e eventos. Organizado
em seis áreas de atuação – desenvolvimento regional e geração de ocupa-
ção e renda, cultura, comunicação, meio ambiente, educação e saúde –, o
programa demonstra o compromisso da UFMG com o desenvolvimento eco-
nômico, social e cultural do país, enfrentando os desafios de atuar em uma
região com tão graves desigualdades. Para cumprir esse compromisso, que é
intransferível, o Programa Polo mobilizou dezenas de professores, técnicos e
centenas de estudantes com o conhecimento, a capacidade, a disposição e o
comprometimento numa ação que integrou a extensão, a pesquisa e o ensino
com resultados extremamente efetivos e positivos.
As equipes consolidam em sua atuação as diretrizes que orientam o
programa: a necessidade da incorporação do conjunto da população do Vale
na condição de potenciais promotores, indutores e beneficiários do desen-
volvimento econômico, social e humano. Desse modo, a população para a
qual o programa se destina interfere efetivamente nos rumos do processo,
redefinindo metas, participando, criticando. Ou seja, a população do Vale
não é um sujeito passivo, é um sujeito que a cada momento nos ensina. E,
nesse confronto entre saberes acadêmico e popular, todos aprendem um
novo conhecimento, tanto os acadêmicos quanto a população.
Busca-se apreender a realidade em sua totalidade, assim a inter e a
transdisciplinaridade ocorrem de fato, integrando profissionais e alunos de
diferentes áreas do conhecimento na abordagem dessa realidade.
A diretriz constitucional de indissociabilidade entre ensino, extensão e
pesquisa torna-se aqui uma estratégia, pois na articulação entre extensão e
pesquisa procura-se viabilizar a relação transformadora entre universidade
e sociedade. Em sua atuação o Programa Polo vem buscando contribuir
para a autonomia dos municípios, promovendo a qualificação dos recursos
humanos locais e disponibilizando para as comunidades os conhecimentos,
as técnicas e as metodologias que a Universidade detém.
“Assim, o laço que une e articula as diversas intervenções na e sobre
a região, é a explícita tentativa de dotar a sociedade local de instrumentos

7
conceituais e materiais que permitam a essa mesma sociedade afirmar
sua dignidade e identificar suas possibilidades emancipatórias” (Relatório
FINEP, 2002).
Na área da cultura e comunicação, em especial, que são objetos desta
publicação, o Programa Polo Jequitinhonha vem trabalhando articulado
ao movimento cultural do Vale, qualificando jovens na área das mídias, os
artesões na organização e gestão de seus processos criativos e de venda de
seus objetos de arte; no suporte aos grupos culturais e às organizações não
governamentais; na realização de eventos; nas questões ligadas ao patrimônio
material e imaterial, na proposição e discussão de políticas públicas.
É nesse contexto que a Pró-Reitoria de Extensão da Universidade
Federal de Minas Gerais, por meio do Programa Polo de Integração da
UFMG no Vale do Jequitinhonha, tem a satisfação de apresentar o livro
Vale do Jequitinhonha: Cultura e Desenvolvimento. Trata-se do tercei-
ro volume da coleção que reúne os conhecimentos apresentados e discu-
tidos no evento anual Visões do Vale, com o objetivo de ampliar a visibili-
dade, a reflexão, o debate, o questionamento e a divulgação de múltiplos
olhares e leituras sobre a cultura do Vale do Jequitinhonha.
O livro traz em seu prólogo uma reflexão sobre extensão universitária
e cultura e está estruturado em quatro partes, que abordam respectiva-
mente a questão da identidade e do patrimônio cultural; o artesanato, a
economia e a cultura; as expressões culturais do Vale por meio dos relatos
orais, das músicas e do teatro; o rico processo ímpar de construção de
um movimento cultural popular. Os textos aqui reunidos, mesclados pela
ciência e pela emoção, são de professores, extensionistas e pesquisadores
de várias universidades e instituições públicas; de artistas-músicos, arte-
sãos, contadores de histórias e cientistas da região. Fascinantes, os textos
mostram que se pode fazer ciência e produzir conhecimento por meio da
extensão, com rigor científico e paixão.

Maria das Dores Pimentel Nogueira

8
PRÓLOGO
Os papéis da cultura e da extensão universitária
Alberto Ferreira da Rocha Junior

Este texto é dedicado a Edison Corrêa, Eunice Nodari, Lúcia Guerra,


Marizinha Nogueira, Ney Cristina de Oliveira, Targino Araújo Filho e a dois
grandes amigos: Isabel Azevedo e Gustavo Vidigal.

Preâmbulo

Minha avó materna – a pernambucana Odila de Sousa – gostava de


contar e inventar estórias e adivinhas. Aprendi com ela a gostar de ouvir e
de contar estórias.
Durante quatro anos – de agosto de 2004 a julho de 2008 –,
exerci o cargo de Pró-Reitor de Extensão e de Assuntos Comunitários da
Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), o que implicava, na época,
acumular a coordenação geral do Inverno Cultural da UFSJ, cujas 18ª, 19ª,
20ª e 21ª edições estiveram sob minha responsabilidade.1
Em julho de 2007, para a realização da 20ª edição do festival,
quando homenageamos a própria cidade de São João del-Rei, que fora
eleita Capital Brasileira da Cultura, foi construída uma ampla tenda
sobre o Córrego do Lenheiro, que atravessa o centro da cidade. Nessa
tenda aconteciam eventos variados: palestras com escritores (o falecido
Moacyr Scliar nos deu a honra de sua presença e de sua palavra, tendo,
para isso, de enfrentar um gigantesco caos aéreo na época), espetáculos
de música, apresentações teatrais, atividades lúdicas para crianças,
etc. Considerando-se que o maior afluxo de público ocorria no período
noturno, o controle da entrada de pessoas no espaço era realizado apenas
à noite, enquanto no período diurno tínhamos um serviço de segurança
apenas dentro da Tenda.
Numa tarde daquele Inverno agitado, parado à entrada da Tenda, com
o crachá de coordenador geral do evento pendurado no pescoço, observava

1 -   Também ocupei o cargo de Pró-Reitor de Extensão da UFSJ de 30 de março a 6 de junho de 2011,
quando fui o responsável pela coordenação geral do 24º Inverno Cultural da UFSJ.

9
uma apresentação do Projeto Movimento Hip Hop del-Rei,2 com algo em
torno de duzentos espectadores acompanhando o evento, quando uma se-
nhora me perguntou se ela poderia entrar. Respondi que sim e aproveitei
para dizer que todos os eventos do Inverno Cultural eram gratuitos e que
ela poderia assistir a qualquer um desde que a lotação não estivesse esgo-
tada. A pergunta, no entanto, me marcou. Claro que eu poderia ter dado
a impressão de que estava ali vigiando a entrada e saída de pessoas, mas
como não havia grades, não havia nenhum tipo de segurança, considerava
tratar-se de um evento que não possuía nenhuma característica de elitiza-
ção. Jamais imaginei, portanto, que alguém pudesse se sentir impedido de
entrar na Tenda. E é por esse sentimento que quero começar.

O desafio de romper uma barreira simbólica

Identifico o ocorrido à entrada da Tenda como uma barreira simbólica.


Creio que nesse momento importa menos estabelecer responsabilidades e
culpar indivíduos ou instituições e mais criar estratégias para uma trans-
formação da realidade universitária e social.
É preciso criar frestas nessas barreiras que impedem pessoas em geral
de frequentar os espaços da universidade pública, teatros, monumentos
históricos, museus e outros espaços considerados impróprios para grupos
sociais de baixo poder financeiro. É preciso perceber que não é apenas a
universidade que se constrói segundo a velha imagem da torre de marfim,
mas que, como numa espécie de círculo vicioso e pernicioso, a população
das periferias e de baixo poder econômico possui dentro de si uma barreira
simbólica que a impede de frequentar e de apropriar-se de espaços públicos
considerados inadequados para e por ela mesma.
Em 2008, também durante o Inverno Cultural, uma exposição com
curadoria da artista plástica Liliane Dardot exibiu, graças à gentileza do
Instituto Cultural Clara Nunes, objetos pessoais da cantora. A exposição,
longe de ser a exibição rígida de itens museológicos, convidava o visitante a
deixar suas marcas, ainda que efêmeras, num elemento fundamental para
São João del-Rei, para Clara Nunes e para Liliane Dardot: a areia – a dos
tapetes das ruas, a do mar e a da obra de arte passageira respectivamente.

2 -   O projeto apresentou o grupo de dança de rua Ritmo em Rua e o grupo de rap IDP (Ideologia da Paz).
GUIA de eventos do 20º Inverno Cultural da UFSJ, 2007.

10
Para visitar a exposição, todos devíamos tirar os sapatos. E o que signi-
ficava esse gesto? O estar descalço trazia à lembrança a notícia de um
tempo em que possuir sapatos e calçá-los não era possível para qualquer
pessoa: apenas aquelas de grandes posses poderiam fazê-lo, e andar des-
calço era sinônimo de barbárie, de falta de civilidade.3
De certa forma, o simbolismo dos sapatos e dos pés descalços fala
sobre essa barreira. Para alguns grupos sociais, seria necessário ter um
calçado mais caro para entrar no Teatro Municipal de São João del-Rei,
num museu, na universidade.
A extensão universitária tem um papel fundamental nesse contexto,
pois, por meio de sua atuação, pode-se paulatinamente desconstruir essa
barreira simbólica e simultaneamente criar um espaço de construção do
conhecimento tecido pela diversidade, pelo rigor e pela dispersão. Diversi-
dade fundamental do ponto de vista da necessidade do defrontar-se com o
outro e com nossa finitude radical; rigor acadêmico no modo de produzir
conhecimento e no conteúdo produzido, substituindo assim a noção de
objetividade científica;4 e dispersão no sentido da disseminação e da difu-
são do saber, ou seja, ação de permitir que o saber, enquanto curiosidade,
prazer, desejo de transformação, capacidade de imaginação, convívio com
o incompreendido, possa espraiar-se.
Antes de prosseguir, é importante observar que, diferentemente do que
alguns defensores da extensão universitária propõem, creio ser totalmente
indesejável uma situação limite em que a extensão desapareceria. Em de-
fesa de tal desaparecimento, muitos invocam afirmações de Boaventura de
Sousa Santos, imaginando uma universidade em que a extensão universi-
tária seria desnecessária, pois as ações acadêmicas seriam realizadas com
a incorporação natural dos princípios norteadores da extensão (SANTOS;
ALMEIDA FILHO, 2008).
Creio que essa opinião ilustra uma visão que acredita e deseja um
mundo harmonioso, uno, homogêneo, paradisíaco talvez. Não se trata aqui
de condenar uma utopia. Trata-se antes de não desejar uma universidade

3 -   Lembro aqui um trecho do livro de VELLOSO (1988, p. 24): “para impor o seu modelo civilizatório ao res-
tante da sociedade brasileira, as nossas elites não hesitam em lançar mão do aparato repressivo do Estado. É
criada, então, uma lei que obriga a todos os cidadãos o uso do paletó e sapatos. Argumenta-se ser essa a úni-
ca maneira de acabar com o abuso e o despudor dos que ‘andavam de pés no chão e em mangas de camisa’”.
4 -   Trata-se aqui de observar que o conhecimento é sempre produzido em situação e nunca de modo impar-
cial e ingênuo. Não se trata de uma defesa do subjetivismo na produção do conhecimento, mas do reconhe-
cimento de que, por estarmos sempre em situação, a produção do saber não conseguiria estar desligada do
mundo dos valores nem das lutas de poder.

11
com esse perfil. Como já disse em outras oportunidades, a universidade
deve estar fundamentada no princípio da indissociabilidade entre extensão,
ensino e pesquisa (ROCHA JUNIOR, 2008). Enfatizo geralmente a ideia de
que não estamos assentados em três pilares e, sim, num único princípio,
que é o da indissociabilidade. Contudo, isso não é sinônimo de apagamento
das diferenças entre esses três tipos de produção de conhecimento em âm-
bito universitário: o ensino, a pesquisa e a extensão. A indissociabilidade
não deve ser uma etapa de um processo cuja finalidade longínqua seria a
fusão dos três. É justamente no embate entre esses três tipos de produção
de conhecimento que a universidade se fortalece. Portanto, há que se pre-
servar os três e guardar suas diferenças. É o próprio Boaventura quem diz:

[...] a área de extensão vai ter num futuro próximo um


significado muito especial. No momento em que o capita-
lismo global pretende funcionalizar a universidade e, de
fato, transformá-la numa vasta agência de extensão ao seu
serviço, a reforma da universidade deve conferir uma nova
centralidade às atividades de extensão (com implicações
no curriculum e nas carreiras dos docentes) e concebê-las
de modo alternativo ao capitalismo global, atribuindo às
universidades uma participação ativa na construção da
coesão social, no aprofundamento da democracia, na luta
contra a exclusão social e a degradação ambiental, na de-
fesa da diversidade cultural. (SANTOS; ALMEIDA FILHO,
2008, p. 52, grifos nossos)

Enfatizo aqui a expressão utilizada por Boaventura: nova centralidade.


Não é meu intuito comprovar que o cientista social português mudou de
opinião ou foi mal interpretado anteriormente. Apenas reitero que não é
desejável o desaparecimento da extensão universitária em prol de uma
espécie de cena paradisíaca em que tudo será perfeito e harmônico.
Não defenderei aqui a necessidade da centralidade da extensão uni-
versitária. Parece-me, no momento, mais desafiador pensar a universidade
como ambiente de formação,5 no qual a produção de conhecimento se dá
no embate da pesquisa, da extensão e do ensino.
O que é, pois, a extensão universitária?

5 -   Sobre a ideia de universidade enquanto “ambiente de formação”, refletirei mais adiante.

12
Extensão universitária

Até o presente momento, a definição que tem sido utilizada com


pequenas modificações, a depender do caráter do documento de que consta,
é a definição resultante do I Encontro de Pró-reitores de Extensão das
Universidades Públicas Brasileiras, realizado em Brasília nos dias 4 e 5 de
novembro de 1987:

A extensão universitária é o processo educativo, cultural


e científico que articula o ensino e a pesquisa de forma
indissociável e viabiliza a relação transformadora entre a
universidade e a sociedade.
A extensão é uma via de mão-dupla, com trânsito assegu-
rado à comunidade acadêmica, que encontrará na socieda-
de, a oportunidade da elaboração da práxis de um conhe-
cimento acadêmico. No retorno à universidade, docentes
e discentes trarão um aprendizado que, submetido à re-
flexão teórica, será acrescido àquele conhecimento. Este
fluxo, que estabelece a troca de saberes sistematizados/
acadêmico e popular, terá como consequência: a produção
de conhecimento resultante do confronto com a realidade
brasileira e regional; e a democratização do conhecimento
acadêmico e a participação efetiva da comunidade na atua-
ção da universidade.
Além de instrumentalizadora deste processo dialético de teo-
ria/prática, a extensão é um trabalho interdisciplinar que
favorece a visão integrada do social.6

Para além das discussões certamente necessárias acerca de termos


e de conceitos utilizados na definição, como “via de mão-dupla”, “exten-
são como articuladora de ensino e pesquisa” e a relação entre práxis e
teoria, parece-nos claro que é preciso enfatizar o caráter de produção
de conhecimento da extensão universitária. Se, por definição, a exten-
são é um processo que solicita a participação da comunidade externa à
universidade, sua finalidade última não é transformar a sociedade, mas

6 -   Esta definição pode ser encontrada no link “Documentos” na página da Rede Nacional de Extensão
Universitária (www.renex.org.br) e também em NOGUEIRA (2000, p. 11).

13
produzir conhecimento, formar alunos, cuja atuação na sociedade como
um todo, incluindo-se aí sua atuação profissional, traga em si alguns prin-
cípios como o respeito à diversidade, a sistematização rigorosa e crítica
do conhecimento e a consciência do papel social que pode desempenhar
enquanto disseminadora desse conhecimento.
Um aspecto a ser enfatizado a partir da definição básica de extensão uni-
versitária é a produção de conhecimento com a comunidade. As noções de “via
de mão-dupla”, de “relação bilateral com os outros setores da sociedade”7
e de “relação multilateral com os outros setores da sociedade”8 trazem a
extensão universitária para a proximidade do lugar do antropólogo. Se com-
parada ao ensino e à pesquisa, é a extensão universitária que traz em sua
própria definição a relação com o diferente, com o outro, em suma, a rela-
ção com a alteridade.9
É no ambiente da extensão universitária que podem ser realizados pro-
jetos e programas em que a produção de conhecimento é feita juntamente
com a comunidade. Com isso, quero sublinhar a ideia pouco enfatizada
de que existem, novamente de acordo com as diretrizes estabelecidas pelo
Fórum de Pró-reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras
(FORPROEX), cinco diferentes tipos de ação extensionista: programas, pro-
jetos, cursos, eventos e prestação de serviços.10
Se cursos, eventos e a prestação de serviços podem ser considerados
ações extensionistas, quando lidam necessariamente com um público que
não pertence ao espaço da academia, é, em geral, no âmbito dos projetos e

7 -   Esta expressão foi bastante utilizada durante algum tempo e figurou em alguns editais lançados pelo
MEC, como no item 9 do edital PROEXT 2009. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/
editalproext2_2009_6.pdf>. Acesso em: 14 mar. 2012.
8 -   Esta expressão aparece pela primeira vez no edital PROEXT 2011, publicado pelo MEC, e que
pode ser acessado em <http://portal.mec.gov.br/index.php?Itemid=490&id=12243&option=com_
content&view=article>. Acesso em: 14 mar. 2012.
9 -   É evidente que a relação com a alteridade também pode estar presente no ambiente de pesquisa e de
ensino, mas talvez seja justamente na extensão que essa relação pode propiciar experiências mais férteis.
10 -   Existe aqui uma pequena divergência em relação a alguns documentos produzidos pelo
próprio FORPROEX. Os documentos mais antigos, como o segundo volume da Coleção Extensão
Universitária, intitulado Sistema de dados e publicado em 2001, apresentam seis ações de extensão,
sendo a última delas a “produção e publicação”. Posteriormente, o volume seis da mesma coleção,
intitulado Extensão universitária: organização e sistematização, publicado em 2007, afirma: “embora
não sejam consideradas ações de extensão – na realidade, o processo de sua produção é parte da
implementação da ação de extensão, gerando-as como resultado – as publicações e outros produtos
acadêmicos de extensão devem ser registradas e relatadas” (FÓRUM, 2001, v. 2, p. 43). No portal da
Rede Nacional de Extensão (www.renex.org.br), o segundo volume da Coleção Extensão Universitária
não está disponível por ter sido substituído justamente pelo volume seis. A informação consta do
próprio Portal. Acesso em: 01 set. 2011.

14
dos programas que o conhecimento é construído de modo multilateral.11 É
fundamentalmente nesse âmbito que se pode vivenciar a alteridade. Ou seja,
é quando nos defrontamos com o saber produzido pelos diferentes grupos so-
ciais e, consequentemente, com os valores que são atribuídos ao que o grupo
produz ou possui que o conhecimento produzido em âmbito universitário pode
abrir-se a certo descentramento do poder.12

Extensão e cultura

Pequena digressão. A partir da gestão do então ministro da Cultura


Gilberto Gil e durante a gestão de seu sucessor Juca Ferreira, o Brasil pôde
construir uma política nacional de cultura que transpirava uma visão mais
democrática e acolhedora das diferenças e divergências.
Um exemplo bastante eloquente é o da própria organização adminis-
trativa do Ministério da Cultura, que, antes da gestão de Gilberto Gil, era
dividido em secretarias relacionadas às diferentes linguagens artísticas e
posteriormente passou a abrigar secretarias como a da Cidadania Cultural
e a da Identidade e Diversidade. Houve, pois, uma guinada na própria con-
cepção de cultura, que deixou de ser sinônimo de arte e passou a acolher
as mais diferentes manifestações expressivas, transpirando uma visão an-
tropológica de cultura. Passaram a ser valorizadas, fomentadas, protegidas
e incentivadas manifestações de grupos indígenas, quilombolas, ciganos,
da população LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e
Transgêneros), de idosos, de pessoas com sofrimento mental, etc.
Considerando-se que a extensão universitária, diferentemente da pes-
quisa, divide-se em oito áreas temáticas,13 e não em disciplinas ou áreas e

11 -   Há na própria prática da extensão universitária uma hierarquia entre os cinco tipos de ação extensio-
nista, que coloca no topo da escala os programas e talvez os eventos e, sobretudo, as prestações de serviço
na base da escala. Essa hierarquia não é defendida em nenhum texto, mas aparece de modo sub-reptício.
Efetivamente, os programas, pelo seu caráter multidisciplinar, pela sua sistematização e abrangência,
têm, com frequência, um efeito acadêmico mais potente. Não se deve menosprezar, porém, os efeitos de
formação intelectual e cultural dos eventos e das prestações de serviço. Neste último caso, no FORPROEX
já houve discussões acerca do caráter extensionista (ou não) da prestação de serviços.
12 -   Certamente, é ilusório imaginar que haverá uma situação da qual esteja ausente todo e qualquer tipo
de hierarquia ou de relação desigual entre grupos sociais. Apenas chamo a atenção para a possibilidade
de um ambiente (o dos projetos e programas de extensão universitária) em que os diferentes grupos
e/ou indivíduos estejam conscientes de que o saber ali produzido não é necessariamente a verdade
a ser repetida por todos.
13 -   As oito áreas são: educação, trabalho, meio ambiente, saúde, tecnologia e produção, direitos humanos
e justiça, comunicação, cultura.

15
subáreas de conhecimento, creio que é justamente a área da cultura que
oferece um campo fértil para a extensão universitária. As áreas temáticas
da extensão foram pensadas justamente como territórios que necessitam
da interdisciplinaridade para serem devidamente compreendidos. No en-
tanto, parece-me que a cultura pode ser compreendida enquanto um eixo
transversal em relação às outras áreas. Ao estudar a cultura de um grupo
social, seja ele da dimensão que for, as ações desenvolvidas por qualquer
uma das áreas temáticas podem ser mais eficazes.
De modo muito geral, chamo aqui de cultura os valores atribuídos pelos
grupos sociais a produtos gerados pelos seres humanos ou a aspectos natu-
rais e fisiológicos. Assim, ao estudar a cultura de um grupo, deparamo-nos
com questões conflitantes como identidade, tradição, preservação, contem-
poraneidade, poder, diferenças, desigualdades.
O primeiro desafio que um estudioso da cultura enfrenta, sobre-
tudo se não estiver nos grandes centros urbanos, é tratar da cultura
sem deixar-se enquadrar nos dois estereótipos mais comuns e que não
deixam de se transformar numa espécie de barreira simbólica entre a
população: cultura como sinônimo de arte e cultura como sinônimo de
manifestação tradicional. Em suma, quando se pensa em cultura, a as-
sociação mais frequente é com a arte. Ou seja, um pequeno município
do interior de Minas Gerais só terá cultura se tiver manifestações de lin-
guagens artísticas como teatro, música, dança, literatura, etc. Ou então
se possuir algum tipo de produto ou evento tradicional: artesanato em
tecido, em cerâmica, madeira, ou festas que remontam a períodos há
muito passados – caráter de ancianidade –, tanto algo que se preserva
há muitas gerações quanto algo que havia se perdido e que a população
retoma no presente.
É necessário enfatizar que a cultura, como a própria palavra diz, está
relacionada ao cultivo e que não é possível a cultura florescer sem um cuida-
do cotidiano. Nesse sentido, a infraestrutura e o aspecto material como um
todo são de fundamental importância para a cultura: desde os barracões de
uma escola de samba até as tintas e lápis de cor, desde um teatro equipado
até o material reciclável, desde uma sala para exposições até um violino ou
um tambor confeccionados com perícia.
A cultura trabalha com a imaginação e, como diria Sartre, sem a ima-
ginação viveríamos imersos no mundo tal como ele se nos apresenta. É jus-
tamente a imaginação, portanto, a cultura como um todo, que nos permite
desejar e sonhar um mundo diferente daquele em que vivemos.

16
Êxodo

A extensão deve ser compreendida como um ambiente de formação


do aluno. Aqui a ideia de ambiente contrapõe-se à ideia de espaço. Em vez
de pensarmos a situação de aprendizagem como um lugar vazio que será
preenchido com atores sociais, conteúdos e ações, de pensarmos a situação
de aprendizagem como um espaço abstrato que possui certos elementos de
pano de fundo, podemos compreender essa situação enquanto ambiente,
aproximando-nos da ideia de que estamos sempre em situação, ou seja, há
uma relação de interdependência entre os elementos presentes no ambiente,
sem que um esteja em primeiro plano e outros como pano de fundo.
Além disso, considerar que há uma formação dos integrantes de um
projeto de extensão significa reconhecer que o fundamental não está na aqui-
sição de conteúdos que, por princípio, devem ser questionados e podem ser
superados. Com isso não pretendemos desmerecer a aquisição de conteúdos
que é seguramente parte necessária da produção de conhecimento e imprescin-
dível em época tão dinâmica e veloz como a nossa. Apenas reiteramos a ideia
de que a tarefa daqueles que trabalham em uma universidade é formar indi-
víduos e a formação é sinônimo de cultivo de atitudes e de posturas, trata-se
de cultivar modos de se situar na sociedade, nos grupos sociais.
Há ainda grandes desafios no âmbito da extensão e da cultura. No
horizonte da política educacional e da organização institucional, destaca-
-se indubitavelmente a necessidade de uma interlocução no Ministério da
Educação (MEC) que não esteja submetida aos valores defendidos pelos
ocupantes dos cargos de coordenadores e secretários. Ou seja, por mais
que nas universidades a extensão universitária esteja consolidada, falta
ainda no MEC a institucionalização desse eixo de formação que é a exten-
são. Esse lugar torna-se imprescindível para o avanço das conquistas da
extensão universitária. A ideia, defendida por muitos, de uma agência de
fomento à extensão universitária, seja ela resultado de uma transformação
das agências de fomento à pesquisa seja resultado da criação de um novo
órgão de governo, é importante sobretudo pelo que representa em termos de
necessidade de construção conjunta de uma cultura extensionista.
A criação de uma instância reguladora da extensão universitária su-
perior às Instituições de Ensino Superior (IES), e não apenas financiadora,
estimulará os próprios extensionistas a pensar a extensão e a estabelecer
parâmetros, critérios e práticas avaliativas em consonância com as carac-
terísticas da extensão universitária.

17
Assim, vislumbramos o desafio da criação de parâmetros apropriados
para que a extensão universitária possa fazer parte de planilhas de distri-
buição orçamentária tanto em cada instituição quanto no MEC.
Por fim, indicamos aqui, apenas a título de exemplo, uma experiência
ainda inicial, mas que demonstra bem o terreno fértil em que se encontra
a extensão universitária. Trata-se da necessidade de se pensar um modo
próprio de avaliação das ações de extensão.
Mergulhados em questionários, gráficos e tabelas, cuja importância
não questiono aqui, esquecemos que talvez nossos instrumentos de ava-
liação estejam solicitando uma nova postura de nossa parte. Como identi-
ficar – e o que interessa identificar – os resultados a respeito de uma ação
extensionista na comunidade? Em que medida um questionário elaborado
pela equipe do programa/projeto permite um contato com os resultados
obtidos? E o que pode ser obtido?
Na Universidade Federal de Ouro Preto, existe um projeto intitulado
Mambembe – música e teatro itinerante, coordenado pela profa. Neide
Bortolini,14 que tem investido, ainda que timidamente, na avaliação do
resultado de suas apresentações teatrais com novas intervenções teatrais
nas comunidades. A proposta parece-me corresponder às exigências de um
projeto de extensão da área de cultura: para avaliar uma experiência teatral
num grupo social, nada melhor que uma nova produção teatral nesse mesmo
grupo. Se isso nos deixa sem um parâmetro objetivo que nos permitiria
avaliar em nível nacional a produção de caráter extensionista, é também
verdade que nos incita a uma atitude investigativa que percebe como cada
instrumento utilizado re-vela sentidos inesperados.

Referências

FÓRUM de Pró-reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras.


Sistemas de dados e informações. Base operacional de acordo com o Plano
Nacional de Extensão. Rio de Janeiro: NAPE/UERJ, 2001. (Coleção Extensão
Universitária, v. 2.)

GUIA de eventos do 20º Inverno Cultural da UFSJ, 2007.

14 -   O projeto conta com duas publicações sobre suas experiências. No caso, referimo-nos a texto pu-
blicado pela aluna Manuela Pereira (2009) que relata o retorno à comunidade como forma de avaliação
dos resultados do projeto.

18
NOGUEIRA, Maria das Dores Pimentel (Org.). Extensão universitária: dire-
trizes conceituais e políticas. Belo Horizonte: PROEX/UFMG; Fórum Nacional
de Pró-reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras, 2000.

PEREIRA, Manuela. Reflexões sobre o Teatro de Rua: Mambembe, em “O barão


nas árvores”. In: BORTOLINI, Neide das Graças de Souza (Org.). Recriações:
a trajetória do Mambembe – música e teatro itinerante. Ouro Preto: Editora da
UFOP, 2009. p. 227-244.

ROCHA JUNIOR, Alberto F. da. Cultura: valores da diversidade. In: ROCHA


JUNIOR, Alberto F. da (Org.). Cultura e extensão universitária: a produ-
ção de conhecimento comprometida com o desenvolvimento social. São João
del-Rei, MG: Malta, 2008. p. 6-13.

SANTOS, Boaventura de Sousa; ALMEIDA FILHO, Naomar. A universidade


no século XXI: para uma universidade nova. Coimbra: Almedina, 2008.

VELLOSO, Mônica Pimenta. As tradições populares na ‘belle époque’


carioca. Rio de Janeiro: FUNARTE; Instituto Nacional do Folclore, 1988.

Alberto Ferreira da Rocha Junior, ou Alberto Tibaji, é professor da


Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) desde 1993. Doutor em
Artes pela Universidade de São Paulo desde 2002, é docente do Programa de
Pós-Graduação em Letras da UFSJ, no qual orienta projetos sobre Teatro,
Acervos e Patrimônio. Foi pró-reitor de extensão de 2004 a 2008 e em 2011.
Coordenou projetos de pesquisa financiados pela Fapemig e pela Finep e
coordenou dois editais nacionais de extensão e cultura com financiamento
da Petrobras e do Ministério da Cultura. Foi representante da Andifes no
Conselho Nacional de Políticas Culturais do Ministério da Cultura (MinC).

19
Jorge de Souza Silva e família, comunidade de Tamanduá, Jenipapo de Minas.

IDENTIDADE E PATRIMÔNIO CULTURAL


Vale do Jequitinhonha:
a emergência de uma região
Mateus de Moraes Servilha

Introdução

Ao receber o convite para a produção deste trabalho, iniciei, como de


praxe, as primeiras reflexões que balizariam os recortes temáticos e teóricos
que me possibilitariam contribuir minimamente com o debate acerca das
perspectivas atuais do movimento cultural do Vale do Jequitinhonha. Tema
amplo, de difícil abordagem, a partir do qual muitos caminhos poderiam
ser trilhados, tanto quanto os objetivos a serem alcançados.
Muito temos produzido acerca do Vale do Jequitinhonha. E quando digo
“nós”, falo de muitos, refiro-me a acadêmicos, artistas, militantes socioculturais,
jornalistas, políticos partidários. Tantos somos os que estamos, apesar de
certas vezes discordantes, “num mesmo barco”, debruçados ao objetivo de,
mais do que tudo, compreendermos, afinal, o Vale do Jequitinhonha.
Esse caminho coletivo nos é aqui a referência, o ponto inicial, certos
momentos como pano de fundo, que permeará as reflexões presentes neste
artigo. Como primeiro passo a ser dado, escolhemos um duplo questiona-
mento, que pretende, ao final das análises apresentadas, tornar-se uma
única questão, um pensamento não fragmentável.

O que é o Vale do Jequitinhonha?


Quem são os produtores de uma busca constante por respos-
tas e esclarecimentos acerca do Vale do Jequitinhonha?

Analisar o Movimento Cultural do Vale do Jequitinhonha significa,


acima de tudo, na perspectiva deste trabalho, a busca pelo entendimento
acerca da “emergência de uma região”. Um espaço, uma determinada área
da superfície terrestre, que, ao longo de um conjunto de processos sociais,
se torna uma região. Não falamos aqui de um espaço natural, uma bacia
hidrográfica, a bacia do Rio Jequitinhonha, mas de uma região produzida
a partir de constructos sociais, um espaço geográfico.
Hoje, depois de tanto sobre essa região dizermos, naturalizou-se aos
nossos ouvidos o discurso de sua existência. Alguns questionamentos tor-
nam-se aqui imprescindíveis. Que especificidades do Vale do Jequitinhonha

22
fizeram/fazem dele uma região? Que fronteiras, ao dividirem o espaço, produ-
zem a separação entre o Vale do Jequitinhonha e outros espaços? Perguntamo-
-nos, em questionamento basilar: “O Vale do Jequitinhonha sempre existiu?”.

Condições históricas para a “emergência” de uma região

A região, enquanto conceito acadêmico, esteve/está presente na vida e na


produção da geografia, percorrendo uma trajetória teórica, conceitual, episte-
mológica e metodológica cujo surgimento se inicia concomitantemente com o
início do pensamento geográfico enquanto conhecimento científico moderno.
A região esteve/está no cerne da produção geográfica, muitas vezes vista
como seu tema e objeto central, outras como um conceito a ser superado. O
que define a região? Sabemos ser esta uma pergunta com muitas respostas.

Relação entre a parte e o todo, o particular e o geral, o singu-


lar e o universal, o idiográfico e o nomotético ou, em outros
termos, num enfoque mais empírico, entre o central e o peri-
férico, o moderno-cosmopolita e o tradicional provinciano, o
global e o local... são muitas as relações passíveis de serem
trabalhadas por trás daquilo que comumente denominamos
questão ou abordagem “regional” (HAESBAERT, 2010, p. 9).

O debate acerca do conceito de região está presente em diversas áreas


do saber, podendo ser abordado de diferentes, certas vezes complementa-
res, formas. Ao que tange as perspectivas geográficas, o conceito de região
historicamente se relaciona à compreensão acerca das diferenciações entre
áreas, partes diferenciadas de um todo do espaço geográfico.
A compreensão acerca dos processos que delimitam fronteiras no es-
paço nos obriga a análise de semelhanças e diferenças segundo duas ques-
tões, entendidas aqui como centrais. Semelhanças e diferenças são catego-
rias carregadas de subjetividade, cujas delimitações não podem prescindir
do olhar de um observador. Independentemente do método utilizado para
encontrarmos diferenças e semelhanças e, por conseguinte, delimitarmos as
partes de um todo, diferentes pontos de vista produzirão diferentes regiões.
Como nos aponta Hartshorne (1978, p. 18), nesse caso, “similaridade
não é oposto de ‘diferença’, mas uma simples generalização na qual as di-
ferenças consideradas de menor relevância são postas de lado, e realçadas
as que forem julgadas de maior importância”.

23
Um segundo ponto: não podemos compreender identidades sem,
simultaneamente, ou por vezes anteriormente, analisarmos alteridades.
Não podemos compreender uma parte do todo sem analisarmos outras
partes do mesmo e, em muitos casos, o mesmo. Isso nos exige, ao bus-
carmos a compreensão de uma área no espaço geográfico, uma análise
multiescalar, em outras palavras, um olhar para além da “região” que
buscamos delimitar, caracterizar ou conhecer. “É preciso ir mais longe
e reconhecer que nenhuma parte da Terra possui em si mesma a sua
explicação. O jogo das condições locais só se descobre com alguma cla-
reza à medida que a observação se eleva acima delas” (LA BLACHE apud
BAULIG, 1982, p. 70).
Para debatermos o Movimento Cultural do Vale do Jequitinhonha,
faz-se necessária uma análise que não se limite à “fronteira” regional,
assim como à temática cultural. Cabe-nos analisar uma região, uma
parte do espaço geográfico, que, ao se diferenciar e/ou ser diferenciada,
se revelou resultado da ação de atores socioespaciais determinados, assim
como de arranjos e contextos socioculturais específicos. Compreendermos
a história da “emergência” do Vale do Jequitinhonha enquanto “região” é
fundamental para, se desejarmos, refletirmos sobre o seu futuro.
Até meados do século XX, o Brasil, assim como Minas Gerais, ca-
racterizava-se por uma ocupação dispersa do território, produzindo, dessa
forma, diferenciações socioespaciais marcadas por, entre outras questões,
distâncias locacionais, dificuldades de locomoção e contatos e pelo desen-
volvimento de centros urbanos que se potencializavam como centros de
poder político e social.
O projeto estatal brasileiro de modernização, iniciado nos anos 1930,
potencializa-se ao longo das décadas de 1950 e 60, trazendo Minas Gerais
como um dos centros propulsores desse novo modelo social. João Pinheiro,
na primeira metade do século XX, e Juscelino Kubitschek e Israel Pinheiro,
em meados, estão entre aqueles que se dedicaram ao “sonho” de uma Minas
e um Brasil modernos, urbanos e industrializados (CHACON, 2005).
Um país, pensava-se, de olhos para o futuro, de costas para um pas-
sado marcado, em especial, pela colonização, pelo atraso, pela necessidade
de progresso. Um país em processo histórico, ainda, de construção de ele-
mentos, simbólicos e narrativos, em busca de sua unidade nacional.
Unidade socioespacial, seja esta nacional, seja regional, pressupõe a
necessidade de dois processos concomitantes: 1. Integração/coesão territo-
rial; e 2. Identidade/sentimento de pertencimento coletivo. Ambos processos
complexos, imersos em conflitos e relações de poder.

24
Desde sua independência, o Brasil busca os caminhos para a cons-
trução e difusão de uma identidade nacional. Como nos alerta Ortiz (2003,
p. 9), “a luta pela definição do que seria uma identidade autêntica é uma
forma de se delimitar as fronteiras de uma política que procura se impor
como legítima”. Interesses do Estado e de determinados setores/grupos so-
ciais serão estampados na busca pela construção/invenção do “brasileiro”,
através do trabalho, em especial, de artistas e intelectuais.
Áreas emergentes como centros de poder (político e simbólico) passam
a incorporar o restante do país a partir de suas interpretações, marcadas
pelos interesses de específicos grupos sociais, assim como pelos seus pro-
jetos de civilização e nação. Historicamente, constrói-se uma dicotomia no
Brasil entre Sul e Norte, em que ao primeiro caberia o papel de direcionar os
rumos políticos do país, tendo em vista seu potencial civilizador; diferente
do segundo, adjetivado (pelo primeiro) enquanto atrasado, mestiço, bárbaro,
indolente e inerte (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011).
O Norte brasileiro (por muito tempo englobando o que hoje conhe-
cemos como Nordeste) passa a ser significado e estereotipado a partir
de temas e imagens como a seca, o cangaço, as revoltas messiânicas, a
miséria, o passado. O sertão brasileiro torna-se tema de intelectuais e
artistas de abrangência nacional. Alguns nele visualizaram o futuro que
não se quer, um popular marcado pelo “antimoderno”, um contraespe-
lho, a alteridade referência cuja superação seria imprescindível para a
conquista de uma nova nação, um Brasil moderno. Outros enxergavam
no sertão a essência do povo brasileiro, uma área afastada e, consequen-
temente, protegida das influências litorâneas europeias. Olhar para seu
interior na busca pelo “verdadeiro país”, pela alma nacional, pelas es-
sências e raízes de nossa identidade constituía-se no encontro do Brasil
consigo próprio. O sertanejo torna-se, a partir dessa perspectiva, o “herói
nacional” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011).

A categoria “sertão” está profundamente arraigada na cul-


tura brasileira, seja no senso comum, seja no pensamento
social ou ainda no imaginário do povo. Referência espacial
e mítica, o sertão tem se constituído em categoria essencial
para se pensar a nação brasileira (ALENCAR, 2000, p. 1).

O que podemos apontar de mais relevante nesse debate para este


trabalho é o processo/mecanismo sociocultural coletivo de estigmatização
do “outro” para a construção de “minha” valorização social. A primeira

25
“geoidentidade” da modernidade, segundo Quijano (2005), foi a “Americana”,
construída pelos colonizadores como representação do primitivo e selva-
gem para, a partir dessa, a invenção da identidade “Europeia”, marcada
pela ideia de civilização. Segundo Albuquerque Júnior (2011), as repre-
sentações negativas acerca do Norte brasileiro são produzidas por grupos
sociais do Sul para, a partir destas, produzir o discurso de São Paulo
enquanto o centro civilizador brasileiro.
O estado de Minas Gerais viveu, a partir da década de 1950, a intensi-
ficação de seu processo de integração e modernização. João Camilo Penna,
integrante do grupo que trabalhou com o governador do estado Israel Pinheiro
durante seu governo (1966-71), relata-nos:

Em Minas Gerais, um estado com vários recursos naturais,


vivia um povo pobre. A paisagem era desoladora, isolada em
regiões ilhadas, e o mineiro, morando entre montanhas, ou-
vindo dizer que ao longe havia o mar; vocacionando para
a liberdade a buscava em seu isolamento. Dr. Israel quis
quebrar esse círculo e trabalhou para romper solidões com
estradas e comunicações (PENNA, 2005, p. 293).

A integração territorial do estado passava a se tornar elemento central


da política e da busca pela “modernidade” de Minas Gerais. Como já dis-
semos aqui, a busca pela unidade socioespacial pressupõe dois processos
centrais indissociáveis: a coesão territorial e a identidade coletiva. Neces-
sitava Minas, portanto, da articulação de políticas que materializassem a
integração de suas áreas mais distantes, pensadas a partir de um centro
articulador, a capital, associadas à construção de um sentimento de per-
tencimento de sua população às expectativas de um novo estado, uma
Minas moderna. A capital, Belo Horizonte, torna-se o espaço referência do
futuro que se quer, enquanto regiões marcadamente rurais tornam-se o
espaço referência de um passado a ser superado.
O sertão mineiro deveria ser incorporado a uma nova política. Quan-
do utilizamos tal conceito, referimo-nos a uma área delimitada no espaço?
Onde está o sertão? Se para Guimarães Rosa (2005), o “sertão é dentro da
gente”, para os projetos políticos civilizatórios produzidos pelos centros de
poder, onde se encontra o sertão? O termo sertão não se refere, historica-
mente, a espaços bem determinados, a uma área com fronteiras e caracte-
rísticas geográficas bem definidas, trata-se de uma “ideologia geográfica”.

26
Na verdade, o sertão não é um lugar, mas uma condição
atribuída a variados e diferenciados lugares. Trata-se de um
símbolo imposto – em certos contextos históricos – a determi-
nadas condições locacionais, que acaba por atuar como um
qualificativo local básico no processo de sua valoração. Enfim,
o sertão não é uma materialidade da superfície terrestre, mas
uma realidade simbólica: uma ideologia geográfica. Trata-se
de um discurso valorativo referente ao espaço, que qualifica
os lugares segundo a mentalidade reinante e os interesses
vigentes neste processo. O objetivo empírico desta qualifica-
ção varia espacialmente, assim como variam as áreas sobre
as quais incide tal denominação. Em todos os casos, trata-se
da construção de uma imagem, à qual se associam valores
culturais geralmente – mas não necessariamente – negativos,
os quais introduzem objetivos práticos de ocupação ou reo-
cupação dos espaços enfocados. Nesse sentido, a adjetivação
sertaneja expressa uma forma preliminar de apropriação sim-
bólica de um dado lugar (MORAES, 2002-2003, p. 13).

Um projeto modernizador de Minas Gerais significava, entre outras


coisas, a apropriação simbólica e material do “sertão mineiro”, a ser ocu-
pado por novas práticas socioespaciais para fins de sua incorporação a
um processo de reordenamento do território do estado, em construção.
À luz dos processos vividos pelo estado a partir da metade do século
XX, podemos dizer que na história de Minas Gerais, nunca antes o esta-
do havia possuído condições materiais, científicas e técnicas, através da
realização de diagnósticos e planejamentos, assim como da capilarização
de órgãos e instituições públicas, para almejar, concretamente, o controle
de seu território. Tecnologias e técnicos estavam “disponíveis” para que o
estado pudesse, enfim, colocar em prática um projeto de produção de uma
unidade territorial.
De acordo com Côrrea (1986, p. 49),

[...] no capitalismo as desigualdades regionais constituem,


mais do que em outros modos de produção, um elemento
fundamental de organização social. Em muitos casos, a
ação decorrente do planejamento regional proporcionou
um relativo progresso e uma maior integração da região

27
ao modo de produção capitalista, quer dizer, a região sob
intervenção planejadora passa a ficar sob maior controle
do capital e de seus proprietários.

As diferenças socioespaciais estariam, segundo muitos, ameaçadas


pela homogeneização fruto da globalização capitalista. O que vemos é
o contrário. Há um aprofundamento de diferenças e desigualdades re-
gionais, segundo novas lógicas, interesses e mecanismos de controle e
integração territorial.
Através do conhecimento sistematizado, produto, em especial, do
avanço da cartografia, de diagnósticos e de métodos quantitativos (sen-
sos mais eficientes, por exemplo), intervenções do Estado (ou legitimadas
pelo Estado) buscam a incorporação de regiões a interesses estaduais,
nacionais e/ou internacionais. Regiões passam a cumprir novos papéis
em uma divisão territorial do trabalho em processo de reordenamento,
passando, dessa forma, a serem inseridas de forma sistêmica a relações
em novas escalas.

Como se diz, hoje, que o tempo apagou o espaço, também


se afirma, nas mesmas condições, que a expansão do
capital hegemônico em todo o planeta teria eliminado as
diferenciações regionais e, até mesmo, proibido de prosseguir
pensando que a região existe [...] ao contrário, pensamos que
[...] o espaço se torna mundial, o ecúmeno se redefine, com a
extensão a todo ele do fenômeno da região. As regiões são o
suporte e a condição de relações globais que de outra forma
não se realizariam (SANTOS apud HAESBART, 2010, p. 58).

O espaço, pensado e incorporado segundo a lógica de centros de poder,


recebe novas diferenciações, novos recortes regionais. Como controlar e incor-
porar áreas que não conhecemos? Em Minas Gerais, diagnósticos são produ-
zidos por órgãos estatais (em especial, o Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística – IBGE e, a partir de 1969, a Fundação João Pinheiro – FJP) para
que a totalidade do território do estado seja conhecido e novas áreas possam
“revelar” seus potenciais econômicos (lê-se recursos naturais e humanos) a
serem incorporados a uma política de desenvolvimento estadual.
O que nos vale refletir aqui como questão central é o processo de
unificação do mercado intra e inter-regional que, apesar de discursiva-
mente homogeneizador, em vez de abolir particularismos, produziu, como

28
alerta Bourdieu (2007), estigmas negativos. Regiões distantes (não apenas
geograficamente)1 dos centros econômicos e políticos sofrem ao longo dos
processos de integração socioespacial um processo de valoração social,
quase sempre negativa, e, muitas vezes, com o objetivo de adequação das
realidades regionais à divisão territorial do trabalho, planejada por grupos
hegemônicos via Estado.
Para que uma integração seja possível, espaços, enfatizaremos aqui
aqueles adjetivados como “sertão mineiro”, devem ser estigmatizados
para fins de que, por alteridade, a capital e os novos centros urbanos se
legitimem como o modelo sociopolítico por excelência. Para que eclodam
novos sentimentos de pertencimento regional/nacional, uma nova “rela-
ção entre olhar e espaço trazida pela modernidade e pela sociabilidade
burguesa, urbana e de massas” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011, p. 46)
fundamenta-se. Para que uma Minas moderna floresça, novas regiões
devem ser, e serão, produzidas.

O Vale do Jequitinhonha: a “emergência” de uma região

Assim como o Nordeste brasileiro, o termo Vale do Jequitinhonha,


enquanto uma região geográfica, é instituído a partir da criação de um órgão
estatal.2 Em 1964, é criada a Comissão de Desenvolvimento do Vale do
Jequitinhonha (Codevale). Não é raro encontrarmos produções bibliográficas
que negritam tal período como a “redescoberta” do Vale do Jequitinhonha,
região que teria permanecido “esquecida” e isolada do restante do estado
desde a decadência da mineração e, posteriormente, do algodão.
Ribeiro (1993; 2008), em sua importante análise acerca desse período
de “esquecimento”, questiona, de forma enfática, o que classifica como o
“mito do isolamento”, ou o “mito do feio adormecido”.

Como pensar uma região sem história por quase um século e


meio, estagnada e fechada em si mesma? Nesse período, não

1 -  O conceito de perto e longe não se resume a uma distância física, assume um significado político:
perto é o que se encontra bem consolidado pelo poder e longe é o “vir a ser”. Sobre o tema sugerimos a
leitura de Corrêa e Rosendahl (2004) e Geiger (2004).
2 -  “O termo Nordeste é usado inicialmente para designar a área de atuação da Inspetoria Federal de
Obras Contra as Secas (IFOCS), criada em 1919. Neste discurso institucional, o Nordeste surge como a
parte do Norte sujeita às estiagens e, por essa razão, merecedora de especial atenção do poder público
federal. O Nordeste é, em grande medida, filho das secas” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011, p. 81).

29
ocorreram transformações, não houve momentos de maior
ou menor contato com regiões vizinhas? O Vale vivia autar-
quicamente? Não necessitava comprar nada, não dispunha
de produtos para comercializar? (RIBEIRO, 2008, p. 88)

Tais reflexões foram de suma importância para a produção deste tra-


balho. Tentaremos ir além. Defenderemos aqui a necessidade de novas in-
dagações a partir das acima elencadas. O Vale existia antes da criação da
Codevale? O que particularizava e individualizava o Vale do Jequitinhonha
para que possamos considerá-lo, no século XIX, uma região? A superação
do “mito do isolamento” do Vale do Jequitinhonha não nos permite a pon-
deração de que se encontrava inserido numa teia de relações econômicas,
sociais e culturais com outros espaços, inclusive não somente do estado
de Minas Gerais? Uma bacia hidrográfica, a bacia do Rio Jequitinhonha,
permite-nos classificá-la enquanto uma região geográfica a priori? Em
suma, o Vale do Jequitinhonha, enquanto região governamental e região
identitária (temas analisados à frente), pode ser considerado uma região
antes mesmo de que tais processos sociais e políticos ocorram?
Tratamos aqui, antes de tudo, da emergência de uma região. Não
debatemos aqui as transformações que levaram essa região a ser nova-
mente visibilizada, tampouco analisamos aqui uma região que sofre modi-
ficações o longo do processo de modernização do estado de Minas, sequer
uma região que, após ser descoberta por diagnósticos estatais e meios de
comunicação, torna-se nacionalmente conhecida por sua miséria. Deba-
temos aqui a emergência de um novo recorte regional. Analisamos aqui a
“invenção” de uma região.

Fragmentações de uma região natural:


a bacia do Rio Jequitinhonha

Historicamente, a bacia do Rio Jequitinhonha foi, por séculos, ocu-


pada por populações indígenas. Podemos afirmar aqui, com convicção, e
com os poucos argumentos que as páginas deste trabalho nos possibilitam,
que tal área, tal bacia, se subdividia em diferentes territórios, habitados e
vividos por povos com diferentes costumes, valores e práticas sociais. Não
podemos encontrar, nesse período, uma unidade entre as áreas que com-
punham a bacia do Rio Jequitinhonha. Sequer a unidade identitária, hoje
nomeada por nós “indígena”, existia no Brasil pré-colonial. A identidade

30
“Índio” é uma generalização, um conceito homogeneizador de alteridades
produzido por colonizadores com objetivos de dominar diferentes povos a
partir de um olhar eurocêntrico que se buscava superior (QUIJANO, 2005).
A chegada de portugueses à bacia do Jequitinhonha produziu uma
fragmentação, ainda maior, dessa área. Após a descoberta de diamantes, o
Distrito Diamantino é criado e isolado do restante do país. Estabelece-se ali
uma diferenciação geográfica a partir da instituição, por parte do Império
português, de um território bastante definido. O Distrito Diamantino se
particulariza em relação à parte significativa da bacia, tendo em vista o iso-
lamento produzido pela Coroa. Paralelamente, encontramos similaridades,
sob a ótica do garimpo de diamantes, entre muitas localidades distribuídas
ao longo da Serra do Espinhaço.3
Parte considerável da bacia do Rio Jequitinhonha permaneceu por longo
tempo “protegida” de projetos portugueses. O território dos boruns resistiu
ao avanço das bandeiras, somente sendo “conquistado” com o decreto da
“Guerra Justa” de D. João VI, em 1808 (MORENO, 1999; SOARES, 2010).
Podemos afirmar que, ao longo da bacia do Rio Jequitinhonha no século
XVIII, coexistiram dois territórios distintos: um ainda controlado por povos
indígenas e outro sob o controle do Estado português. O norte da bacia do
Jequitinhonha estava, nesse período, inserido em trocas socioeconômicas
com parte da bacia do São Francisco com o sul do estado da Bahia.4
Podemos encontrar algum elo entre as áreas acima citadas? Sem dúvidas
sim. Os rios, principalmente o Jequitinhonha, tiveram grande importância
e papel no processo de ocupação humana no Vale, nos mais diferentes mo-
mentos, principalmente a partir do século XIX (SERVILHA, 2006).
Através dos “caminhos que andam” (QUEIRÓZ, 1999), certa inte-
gração da bacia do Rio Jequitinhonha se fez. Bandeiras se interiorizaram
pelas águas e, após a sedentarização de muitos, canoeiros se tornaram os
principais transportadores, ao longo do rio, de mercadorias, informações,
notícias e saberes. Povoamentos e aglomerados urbanos em formação en-
contraram no Rio Jequitinhonha (também no Araçuaí) a possibilidade

3 -   “A Serra do Espinhaço é uma cadeia montanhosa localizada no planalto Atlântico, estendendo-se
pelos estados da Bahia e Minas Gerais”. Fonte: www.wikipedia.com.br.
4 -   No início do século XVIII, parte significativa da bacia do Jequitinhonha pertencia ao estado da Bahia.
“A mineração dos diamantes alcançava colossal importância. Isso concorreu para que, pela Resolução
Ultramarina de 13 de maio de 1757, se incorporasse Minas Novas à Comarca de Serro e ao Governo
de Minas, ou melhor, o distrito diamantino, compreendendo, então, desde Serro até Minas Novas, para
policiar melhor a cobrança dos quintos, alargando assim o âmbito da derrama nas Minas Gerais. A
incorporação se deu pelo decreto de 26 de agosto de 1760” (JARDIM, 1998, p. 72).

31
de trocas “interlocais”. Podemos dizer que nesse momento um binômio é
produzido, o “canoeiro-tropeiro”.
A bacia do Rio Jequitinhonha é uma área de grande extensão, o
que nos faz inferir que as canoas que circulavam pelos rios maiores, em
especial o Jequitinhonha e o Araçuaí, não eram suficientes para atender
as demandas e necessidades de superação do isolamento local existentes
em inúmeras comunidades.
As tropas se constituíram, então, no mecanismo que articularia a
bacia, produzindo trocas, contatos, entre diferentes localidades. Em deter-
minados momentos, tropas e canoas eram parte de um mesmo processo.
Tropeiros oriundos de incontáveis povoados da bacia se deslocavam para
a beira do Rio Jequitinhonha para, com canoeiros, trocar seus produtos.
Tal binômio possibilitou, entre outras coisas, a circulação de mercadorias
produzidas ao longo da bacia a grandes distâncias.
Apesar de afirmarmos aqui a presença do Rio Jequitinhonha como
um vetor de integração da bacia, em especial a partir do binômio apre-
sentado, constatamos que esta não se demonstrou tão significativa para a
organização espacial da bacia quanto as fragmentações produzidas pelas
dificuldades de locomoção e contatos entre localidades distantes. Temos,
dessa forma, uma bacia recortada por relações em escala local, que en-
contravam, no rio, seu principal mecanismo de articulação de distantes
povoamentos ao longo da bacia.
Somado a isso, temos a abstração de uma divisão entre bacias hi-
drográficas que não necessariamente corresponde a fronteiras culturais,
sociais e econômicas bem definidas. Tropas não se limitavam a percorrer
áreas exclusivamente pertencentes à bacia do Jequitinhonha, pelo contrá-
rio, nas áreas mais distantes ao Rio Jequitinhonha, definiam seus trajetos
segundo a posição dos centros urbanos mais próximos e influentes. Parte
da bacia a oeste das margens do rio se relacionava com a bacia do Rio São
Francisco e parte da bacia a leste, com as do Rio Mucuri e/ou Rio Doce.
Após o declínio da mineração, e em seguida do algodão, poucos re-
latos temos de processos e arranjos socioeconômicos e socioculturais que
relacionem a bacia do Jequitinhonha a outras áreas do país.5 Isso produziu

5 -   Fontes mostram o surgimento e desenvolvimento, nesse período, de cidades como Araçuaí,
Jequitinhonha e Almenara, assim como processo de migração ao longo da bacia do Jequitinhonha.
Parte da população migra das áreas de mineração decadente à procura de novas descobertas mine-
rarias ou de outras oportunidades de renda, seja nos povoamentos em desenvolvimento, seja na agri-
cultura e/ou pecuária. O norte da bacia recebe descendentes de mineradores, assim como migrantes
da Bahia à procura de terras propícias à pecuária (RIBEIRO, 1993; SILVA, 2007).

32
o discurso de seu isolamento, que, posteriormente, reforçou, por sua vez,
a compreensão de certa homogeneidade e coesão regional.
Segundo Ribeiro (2008, p. 88),

[...] com o fim do período de exportação do algodão, o Jequi-


tinhonha passa a enviar sua produção agropecuária para
os mercados vizinhos, perdendo assim o fluxo comercial
mais significativo com os grandes centros econômicos do
país e do exterior. Seria em grande parte este processo que
alimentou a concepção de isolamento e estagnação do Vale,
que faz sentido do ponto de vista de quem o enxerga a par-
tir daqueles centros. Durante toda a segunda metade do
século XIX e primeira do segundo, sua tropas se dirigiam
para os centros de comércio das regiões vizinhas em Minas
ou para cidades baiana próximas.

Uma bacia isolada e homogênea, ao olhar dos centros econômicos,


era, na verdade, fragmentada por diversas áreas cujas relações se estabe-
leciam com diferentes espaços vizinhos.6 Quando imaginamos que a região
é redescoberta a partir da criação de Codevale o fazemos a partir da ilusão
de sua preexistência.
Albuquerque Júnior (2011, p. 89) nos alerta, ao debater a história do
Nordeste brasileiro, que a

[...] história regional retrospectiva busca dar à região um


estatuto, ao mesmo tempo universal e histórico. Ela seria
restituição de uma verdade num desenvolvimento histórico
contínuo [...]. A região é inscrita no passado como uma pro-
messa não realizada, ou não percebida; como um conjunto
de indícios que já denunciavam sua existência ou a prenun-
ciavam. Olha-se para o passado e alinha-se uma série de fa-
tos, para demonstrar que a identidade regional já estava lá.

O que buscamos aqui refletir é a existência ou não da região do


Vale do Jequitinhonha antes de sua delimitação e institucionalização a
partir do recorte geográfico proposto pela criação da Codevale, seja em

6 -   Sobre esse tema recomenda-se Ribeiro (1993), em que um levantamento histórico apresenta tais
relações com profundidade e detalhamento.

33
função de uma possível coesão/integração espacial regional, seja pela
existência de uma consciência regional.
Não, a chamada história do Vale do Jequitinhonha não existe, en-
quanto particularidade, antes do surgimento de tal órgão estatal e dos pro-
cessos desencadeados por ele. A literatura já produzida acerca da “história
do Vale do Jequitinhonha” aborda processos históricos que não nos per-
mitem a compreensão de um recorte regional a priori, mas sim, e muitos
autores contribuíram muito para isso, o entendimento de elementos que,
no decorrer do tempo, possibilitaram a emergência de uma nova região.7

Nasce uma região administrativa

Em meados do século XX, destaca-se a atuação do Instituto


Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), fundado em 1938, no trabalho
de conhecer, diagnosticar e mapear as diferenças socioespaciais do
território brasileiro. De acordo com Penha, a criação do IBGE refletia dois
aspectos principais:

De um lado a importância que os levantamentos estatís-


ticos e a pesquisa geográfica poderiam desempenhar na
administração do imenso território brasileiro em proces-
so de integração socioespacial; e de outro, a necessidade
de atender às demandas por uma rigorosa sistematização
de informações geográficas do território brasileiro, exigida
para o desenvolvimento industrial. (PENHA apud BATELLA;
DINIZ, 2005, p. 63)

A busca de unidade revela fragmentações, visibiliza diferenças, aponta


obstáculos para uma integração desejada. “Descobrir” o Brasil perpassava,
nesse sentido, pela compreensão da diversidade socioespacial brasileira,
tanto quanto pela sua sistematização de forma a propiciar condições reais
para a construção de um projeto nacional.
Na primeira divisão do território brasileiro em microrregiões, as “zonas fi-
siográficas”, Minas Gerais vê nascer, em 1941, um recorte espacial institucional.

7 -   Destacamos aqui os relevantes levantamentos históricos produzidos Luis Santiago (1999), Maria
Nelly Lages Jardim (1998) e Ricardo Ribeiro (1993).

34
01 - Baixo Médio Jequitinhonha
14 02 - Zona Parnaíba – Rio Grande
08 03 - Urucua
01 04 - Médio Jequitinhonha
16 04 05 - Triângulo Mineiro
03 06 - Rio Doce
09 07 - Mata
17 08 - Itaçambira
15
09 - Alto Jequitinhonha
02 06 10 - Metalúrgica
05 11 - Campos da Mantiqueira Mineira
13 10 12 - Sul
13 - Oeste
14 - Alto Médio São Francisco
0 100 200 11 07 15 - Alto São Francisco
12 16 - Montes Claros
Quilômetro
17 - Mucuri

Figura 1 – Zonas fisiográficas de Minas Gerais segundo o IBGE - 1941


Fonte: BATELLA; DINIZ, 2005.

As zonas fisiográficas eram definidas com base em critérios socioeco-


nômicos e, entre as 17 produzidas pelo IBGE no estado de Minas Gerais,
encontramos, pela primeira vez, as microrregiões do “Alto Jequitinhonha”,
do “Médio Jequitinhonha” e do “Baixo Médio Jequitinhonha”. Não há, ainda
nesse momento, a “revelação” do Vale do Jequitinhonha enquanto região
diagnosticada, pelo contrário, a sua bacia é apresentada fragmentada em cinco
diferentes zonas no estudo. Além das três referidas acima, áreas da bacia se
inserem na zona fisiográfica “Montes Claros”, assim como na “Itacambira”.
Na década de 1950, uma crise devasta rebanhos bovinos de um boi
conhecido como tipo Jequitinhonha, chamando a atenção do governo esta-
dual, em período administrado por Bias Fortes. Em 1957, em decorrência
desse fato, um grupo de pesquisadores é criado para realizar um estudo
geográfico da área atingida, publicado, em 1960, com o título de “Estudo
Geográfico do Vale do Médio Jequitinhonha” (GUIMARÃES, 1960).8
Tal diagnóstico apresenta uma vasta gama de problemas ambientais,
sociais e, em especial, econômicos e influencia a apresentação, por parte

8 -   Interessante analisarmos o recorte espacial de Guimarães (1960), cujo estudo engloba os municípios
presentes no “Médio Jequitinhonha” e no “Médio Baixo Jequitinhonha” – “zonas fisiográficas” delimita-
das pelo IBGE em 1941, já citadas.

35
de Murilo Badaró,9 da Emenda Constitucional na Assembleia Legislativa,
em fevereiro de 1964, que cria a Comissão de Desenvolvimento do Vale do
Jequitinhonha – Codevale (SILVA, 2007).
Assim, estudos e análises acerca de um problema específico – a crise
bovina do começo da década de 1950 – tornam-se subsídio, científico e polí-
tico, para a criação de uma agência de desenvolvimento regional.
A bacia do Vale do Jequitinhonha torna-se uma região delimitada polí-
tica e administrativamente, com características analisadas segundo interes-
ses estatais (nem sempre públicos). Uma “região-devir” (HAESBAERT, 2010),
uma “região-plano” (CASTRO, 1992), uma articulação proposta a partir de
atores e racionalidades específicas que buscam, via políticas estatais, a regio-
nalização do território nacional. Estava criada uma “região-problema”. Estava
criada aí, e em especial a partir daí, a região do Vale do Jequitinhonha.
Novos diagnósticos acerca da “região” são produzidos. “O Vale do
Jequitinhonha é uma das regiões mais pobres de todo o Estado, apesar
das possibilidades em recursos naturais que apresenta” (Codevale apud
RIBEIRO, 2008, p. 93). Um novo plano de desenvolvimento (II Plano Mi-
neiro de Desenvolvimento Econômico e Social) apresenta novamente a
região como pobre e, ressaltamos aqui, como homogênea em sua pobreza.
“A região VII [Vale do Jequitinhonha] é caracterizada como ‘área problema’
em Minas Gerais, ‘bolsão de pobreza’ do Estado mineiro” (Codevale/Incra
apud RIBEIRO, 2008, p. 93-94).
Apesar da profunda heterogeneidade encontrada na bacia do Rio Je-
quitinhonha (diferenças nos processos históricos de ocupação, na vegeta-
ção, no clima, nos arranjos econômicos, tanto quanto socioculturais) e das
semelhanças entre áreas da bacia e outras áreas do estado (como bacia do
Mucuri e São Francisco), o Vale é visto como uma região, uma especifici-
dade no espaço, um recorte no mapa. E qual seria a especificidade a repre-
sentar e legitimar tal invenção? A pobreza.
Ao questionarmos, com razão, a associação entre o Vale do Jequiti-
nhonha e a pobreza, precisamos ter clara aqui a indissociabilidade entre
espaço e miséria presente nos discursos que inventaram a região.
Ainda em 1969, ano em que a Codevale já havia sido criada, o IBGE
publica uma nova regionalização do país, apontando, novamente, a diver-
sidade socioespacial da bacia do Rio Jequitinhonha.

9 -   Murilo Badaró foi “presidente do Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais BDMG [...]. Ex-deputado,
ex-senador, autor do Projeto de Emenda que criou a Comissão de Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha
– Codevale, em 1964. Nasceu em Minas Novas, no dia 13 de setembro de 1931” (SILVA, 2007).

36
01 02
03

09
06 07
04 05 08

12 13
11
10
15 18 19
14 20
16 17
25
29
21 22 23 27 28
24 26
30
32 33
31
35
36
38 34 37
39 40
0 100 200 45
Quilômetro 41 43 44
42

46
01 - Sanfranciscana de Janúaria 17 - Três Marias 32 - Mata de Ponta Nova
02 - Serra Geral de Minas 18 - Bacia do Suaçuí 33 - Vertente Ocidental do Caparaó
03 - Alto Rio Pardo 19 - Governador Valadares 34 - Furnas
04 - Chapadões do Paracatu 20 - Mantena 35 - Formiga
05 - Alto Médio São Francisco 21 - Pontal do Triângulo Mineiro 36 - Mata de Viçosa
06 - Montes Claros 22 - Uberaba 37 - Mata do Muriaé
07 - Mineradora do Alto Jequitinhonha 23 - Planalto de Araxá 38 - Mogiana Mingina
08 - Pastoral de Pedra Azul 24 - Alto São Francisco 39 - Campos da Mantiqueira
09 - Pastoral de Almenara 25 - Calcário de Sete Lagoas 40 - Mata de Ubá
10 - Médio Rio das Velhas 26 - Belo Horizonte 41 - Planalto de Poços de Caldas
11 - Mineradora de Diamantina 27 - Siderúrgica 42 - Planalto Rio Grande
12 - Teófilo Otoni 28 - Mata da Caratinga 43 - Alto Rio Grande
13 - Pastoral de Nanuque 29 - Bacia do Manhuaçu 44 - Juiz de Fora
14 - Liberlândia 30 - Divinópolis 45 - Mata de Cataguases
15 - Alto Parnaíba 31 - Espinhaço Meridional 46 - Alto Mantiqueira
16 - Mata da Corda

Figura 2 – Microrregiões homogêneas de Minas Gerais segundo o IBGE - 1969


Fonte: BATELLA; DINIZ, 2005

37
Em tal recorte regional, surgem, na bacia analisada, as regiões:
“Mineradora do Alto Jequitinhonha (7)”, “Pastoral de Pedra Azul (8)”,
Pastoral de Almenara (9)”, “Mineradora de Diamantina” (11) e “Alto Rio
Pardo (3)”. Apesar de haver se tornado uma região atendida por uma
agência de desenvolvimento criada exclusivamente para delimitá-la e
“desenvolvê-la”, o recorte “Vale do Jequitinhonha” ainda não estava de-
vidamente naturalizado. Somente em 1973, um estudo de regionalização,
produzido pela Fundação João Pinheiro, criada em 1969, aponta o Vale
do Jequitinhonha como uma das regiões para fins de planejamento de
Minas Gerais (BATELLA; DINIZ, 2005).

02
03
01 - Triângulo/Alto Paraíba
02 - Noroeste
03 - Jequitinhonha
06 04 - Alto São Francisco
04 05 - Metalúrgica Campos das Vertente
01 06 - Rio Doce
05 07 - Zona da Mata
08 - Sul de Minas

07
0 100 200 08
Quilômetro

Figura 3 – Regiões para fins de planejamento de Minas Gerais segundo a Fundação João Pinheiro - 1973
Fonte: BATELLA; DINIZ, 2005.

Não nos é suficiente aqui a compreensão dos processos administra-


tivos estatais que produziram recortes espaciais no estado institucionali-
zando regiões, mas, em especial, como estas foram, ou não, incorporadas
à vida da população do estado como uma escala de vivência, significação
e identidade. Para compreendermos o processo histórico que emergiu e
consolidou o Vale do Jequitinhonha enquanto uma invenção espacial, é
necessária a análise dos processos que o produziram e difundiram en-
quanto uma consciência regional.

38
Do orgulho sertanejo à consciência regional

O Vale do Jequitinhonha é o produto de uma divisão, di-visão


(BOURDIEU, 2007), tornando-se um espaço caracterizado, em especial, por
elevados índices de pobreza e pela seca. Trata-se de uma região “inventada”
a partir da “descoberta” de sua pobreza e, concomitantemente, do discurso
de sua superação, produzido e articulado, em especial, pelo Estado.
Discursava-se sobre o fim da pobreza regional, mas não sobre o modelo
socioespacial produtor de tais condições.
O Vale do Jequitinhonha emerge enquanto uma região distante dos
grandes centros e adquire uma caracterização valorativa negativa com a qual
“aprende” a conviver ao longo de décadas. O projeto de uma “Minas moderna”,
para conquistar unidade, legitimidade e dizibilidade sociais, necessita de es-
paços e práticas sociais que, à luz de novas teorias, representem o indesejável.
Para que o “novo” floresça, é preciso estabelecer o “velho”. Para que um novo
futuro se vislumbre, é preciso (re)delimitar/(re)inventar o passado, ou melhor,
um presente associado, diretamente, ao passado. Para que determinados es-
paços, grupos e perspectivas sociais se tornem a representação do positivo, é
necessário, em contraposição, a produção de referenciais negativos basilares.
Apontaremos aqui quatro classificações valorativas negativas centrais
a partir das quais o Vale do Jequitinhonha é inventado e significado.10
1. Uma região tipicamente rural, que sofre o estigma “urbano etno-
cêntrico” que a qualifica enquanto atrasada, atraso, resíduo a ser superado
pelo desenvolvimento e progresso.
2. Uma região inserida (em parte) no semiárido nordestino brasileiro,
que recebe a valoração de “sertão”, estigmatizada socialmente negativamen-
te (por uma característica natural) enquanto área a ser dominada, trans-
formada e agregada.
3. Uma região interiorana, que sofre, simultaneamente, todas as valora-
ções produzidas pelo processo de ocupação territorial brasileiro, que possui
como uma de suas marcas centrais a litoralização do poder político em detri-
mento do interior do país (que se estruturou em grande parte através de elites
oligarquias regionais), espaços antagônicos aparentemente desarticulados,
mas partes de um mesmo sistema econômico, político e cultural.11

10 -   Sobre o conceito de “estigma” recomenda-se Goffman (2008).


11 -   “No modelo litoral/interior, ou litoral/sertão, a dialética não é propriamente a da rivalidade de
pretendentes, uma vez que as duas partes contêm semelhanças e desigualdades, são ‘contrários’ numa
unidade: a nação brasileira” (GEIGER, 2004, p. 173).

39
A produção de estigmas regionais no Brasil é uma das peças de um
sistema, construído a partir de alianças entre elites regionais e centrais,
com o propósito central de expropriação das potencialidades regionais
(humanas e naturais) canalizadas para projetos políticos interessantes a
poucos (CASTRO, 1992; OLIVEIRA, 1981). O processo de emergência do
Vale do Jequitinhonha enquanto região não foi diferente.

A insistência com que a questão social do Vale do Jequitinhonha


centralizada na elevação dos níveis de renda evidencia como
uma aliança entre rótulos e números quer imputar atributos
negativos a uma sociedade, tais como ausência de ativi-
dade econômica significativa, fraco dinamismo dos ato-
res envolvidos, tradicionalismo, de modo que a expansão
de atividades fundadas no lucro capitalista se tornem o
remédio par excellence para o desenvolvimento, trazendo
enfim, vida para onde supostamente existem apenas um
povo moribundo e uma terra agonizante. (MOURA, 1988,
p. 5, grifos do autor)

4. Chegamos aqui ao quarto, último, e mais significativo, estigma


valorativo negativo diferenciador/criador/qualificador da região analisa-
do (vale ressaltar a transversalidade e complementaridade de todos). Na
década de 1970, o Vale do Jequitinhonha recebe um “adjetivo regional”. O
título “Vale da Miséria”, utilizado, ainda hoje, por muitos para caracterizar
a região, foi-lhe atribuído, no que se tem registro, em 1974 pela Organi-
zação das Nações Unidas (ONU).12 Porém, mais do que apontar uma data
para a invenção de um título, cabe-nos a análise dos processos e meca-
nismos por meio dos quais tal adjetivação foi difundida e (re)significada.
Muitas foram as regiões produzidas por diagnósticos e regionali-
zações estatais em Minas Gerais. O que fez do Vale do Jequitinhonha
uma região apropriada por grupos sociais, como poucas no país, que
perceberam nela uma escala central de sua vida social coletiva? Quais as
particularidades dos processos que fizeram dessa região administrativa
uma identidade coletiva?

12 -   Informação de João Valdir Alves de Souza, bacharel-licenciado em Ciências Sociais, mestre e
doutor em Educação, professor de Sociologia da Educação na Faculdade de Educação da Universi-
dade Federal de Minas Gerais e pesquisador da história cultural do Vale do Jequitinhonha, extraída
do site www.onhas.com.br.

40
Segundo Bourdieu (2007, p. 125), “o estigma produz a revolta contra o
estigma. [...] É, com efeito, o estigma que dá à revolta regionalista ou nacio-
nalista, não só as suas determinantes simbólicas mas também os seus fun-
damentos econômicos e sociais, princípios de unificação do grupo e pontos
de apoio objectivos da acção de mobilização”. Racionalidades produzem con-
trarracionalidades. Estigmas produzem “contraestigmas”. Esse raciocínio
é vital para caminharmos na direção da compreensão do(s) movimento(s)
percorrido(s) pela(s) identidade(s) regional(is) do Vale do Jequitinhonha e de
seu(s) processo(s) de (re)significação. Refletimos aqui uma luta pelo “direito
à identidade”, em outras palavras, a disputa entre diferentes interesses e
grupos sociais referentes à produção simbólica de identidades sociocultu-
rais e socioespaciais coletivas.
Disputas por significação de “si” e do “outro”, imersas em relações verti-
calizadas de poder. Centros de poder político possuem o poder de poder dizer
(BOURDIEU, 2007), nas palavras de Silva (2009), o poder de incluir/excluir
(estes pertencem, aqueles não pertencem); de demarcar fronteiras (nós e eles);
de classificar (bons e maus, puros e impuros, desenvolvidos e primitivos, ra-
cionais e irracionais); de normalizar (nós somos normais, eles são anormais).
Na primeira metade do século XX, um sentimento contraestigma já
podia ser percebido em intelectuais/escritores naturais do Norte do estado
de Minas Gerais, em resposta ao estigma de “sertão” e “sertanejo” enquanto,
respectivamente, um espaço e um povo avesso ao progresso.
Em texto de Otacílio Lisboa, que viveu em diferentes localidades da
bacia do Rio Jequitinhonha, escrito em 1932, percebemos uma unidade em
torno da ideia de questionamento dos elementos estabelecidos arbitraria-
mente ao sertão e ao povo sertanejo.

A maioria daqueles que não conhecem o sertão supõe


que o Norte de Minas é uma região quase deserta, es-
téril, povoada de animais ferozes e alguns milhares de
tabaréus, sem a menor idéia de progresso e civilização.
Entretanto, essa parcela setentrional de Minas, embora
humilde e silenciosa, está desmentindo com fatos e alga-
rismos bastante positivos em nossos trabalhos de esta-
tística estadual, esse baixo conceito, essa chinesice que
dela fazem aqueles que não a conhecem ou que, muito
da indústria, procuram aviltá-la e reduzi-la à condição de
simples glebas dos tempos coloniais.

41
O sertão mineiro dispõe, felizmente, de todos os recursos
com que se amassam e amoldam os múltiplos aspectos
do engrandecimento de um povo, e mais alguma cousa
que vale incalculável tesouro: sinceridade de convicções e
esse elevado e pouco excedido sentimento de probidade tão
comuns à quase totalidade da gente sertaneja. (LISBOA
apud RIBEIRO, 2008, p. 93, grifos do autor)

Ressalta-se aqui a consciência regional de Lisboa a partir da qual ainda


não podemos perceber a distinção do Vale do Jequitinhonha do restante do
Norte de Minas. Não há, nesse período, uma identidade “jequitinhonhense”,
mas uma compreensão da unidade do “Norte” e da “gente do sertão”.
Percebe-se, nesse momento, a potencialização de uma dicotomização
entre Norte e Sul do Brasil, onde o Nordeste surge, a partir de 1910, como
uma nova região, diferenciando-se do Norte a partir da ideia de seca, mi-
séria e atraso. Tal dicotomização (Norte/Sul) desloca-se para Nordeste/
Sudeste, imprimindo um novo “mapa” político para o país.
Afirmamos aqui que o sertão, área geograficamente indefinível, se tor-
na uma consciência identitária para uma parcela significativa da população
brasileira. Em Minas Gerais não foi diferente. Uma consciência construída
em torno do Norte de Minas e do sertão enquanto espaço afetivo será con-
solidada e, posteriormente, fragmentada possibilitando a emergência uma
nova dicotomia: Centro/Vale do Jequitinhonha.13
De sertão a Vale do Jequitinhonha? Não seria bem esse o percurso cons-
truído. O Vale do Jequitinhonha passa a se tornar uma diferenciação espacial,
mas ainda parte de um sertão. Torna-se uma região referência na visibilidade
e dizibilidade dos aspectos negativos do sertão, um instrumento didático e
eficaz na difusão social dos males produzidos pela ausência da modernidade.
Ao longo do tempo, o recorte estatal produzido a partir da criação da
Codevale é descoberto e incorporado enquanto um elemento discursivo
e imagético estratégico. Meios de comunicação, em especial jornais im-
pressos, se debruçarão na aventura jornalística de “divulgação” de uma
região.14 Políticos, sejam estes oriundos de municípios inseridos na região
delimitada ou não, constroem discursos em torno da ideia de superação
de sua miséria, angariando adeptos, apoiadores e, em especial, votos a

13 -   A cidade de Belo Horizonte está localizada na região estatal “Central” na maioria das regionalizações
produzidas no estado de Minas Gerais.
14 -   Sobre essa temática recomenda-se ler Silva (2007).

42
partir da tão proclamada “redenção do Vale”.15 A ideia de um vale de misé-
rias atrai incontáveis pesquisadores em busca de uma realidade regional
unitária e particular a ser desvelada. Diagnósticos estatais, reportagens
midiáticas, discursos políticos, pesquisas científicas, diferentes mecanis-
mos sociais articulam ideias, fatos, estatísticas e imagens em torno da
produção de uma diferenciação socioespacial.
Atraso e miséria tornam-se marcas históricas de uma região que aca-
bara de surgir. Uma bacia onde encontramos diferentes biomas naturais
(cerrado, caatinga e mata atlântica) e uma enorme diversidade de realidades
socioespaciais, socioculturais e socioeconômicas torna-se homogênea aos
nossos olhos, representada pela repetição de imagens da seca, de notícias
da fome e de índices de pobreza.

Cabe ao pensamento lembrar aos homens que muito da


credibilidade de certas noções deriva apenas da repetição, e
que os estereótipos e as categorias redutoras que emergem
das verdades naturalizadas nos limitam ao invés de nos
favorecer (AGRA DO Ó, 2011, p. 27).

Uma região, assim como sua população, é estereotipada.


Se, de um lado, diagnósticos, pesquisas científicas e reportagens jor-
nalísticas imprimiram discursos e imagens que se tornaram a “verdade”
sobre um espaço, diferenciando-o a partir de seus males e homogeneizan-
do-o a partir de um olhar míope, surgem, de outro, discursos, imagens e
perspectivas destoantes.
Estigmatizado, tenho de me descobrir, me reinventar, me dizer. “So-
mos pobres como nos dizem?” “Não há riquezas no Vale do Jequitinhonha?”
“Somos exclusivamente miseráveis?”
A pobreza tratada como valor intrínseco e absoluto se reflete na qualifica-
ção da região como tal, vista como isolada e característica e homogeneamente
pobre. Preferimos aqui uma visão relacional da pobreza. Como nos aponta
Sahlins (1974, p. 42), “a pobreza não é uma certa relação de bens, nem
simples relação entre meios e fins; acima de tudo é relação entre pessoas.
A pobreza é um estatuto social, invenção da civilização”.
O discurso da “pobreza jequitinhonhense” se torna alicerce na histó-
ria da região para duas racionalidades (e práticas a partir delas) centrais.

15 -   Nesse momento, a região recebe, concomitantemente ao título de “Vale da Miséria”, o adjetivo,
produzido em especial por discursos políticos, de “Vale da Esperança” (SILVA, 2007).

43
Uma, construída por alguns grupos socioeconômicos (não apenas da re-
gião) que, a partir do discurso regional, angariam recursos governamen-
tais para investimentos, por vezes em forma de isenções via Estado, em
empreendimentos produtivos. Outra, construída a partir dos interesses
desses grupos (e utilizadas por eles estrategicamente), caracterizada pela
produção de uma baixa estima social, pessoal e coletiva na “população
regional” (populações locais), que legitima projetos de intervenção desen-
volvidos “de cima para baixo”.
“Somos ‘sertanejos’, ‘rurais’, ‘interioranos’ e ‘pobres’ (os mais pobres do
Brasil!), não possuímos, portanto, capacidade, qualificação e saberes para re-
solver nossos problemas e modificar nossa tão discursada pobreza material.”
Artistas e militantes socioculturais não satisfeitos com os estigmas
sofridos historicamente pelo sertão, assim como pela recém-associação de
sua região natal (nesse momento já uma região estatal) exclusivamente a
uma pobreza absoluta, passam a se organizar coletivamente em busca da
construção e difusão de um “contradiscurso”, de um novo olhar para o Vale
do Jequitinhonha, de novas significações e adjetivações regionais.16
Novos fatos, ideias e imagens são acionados por novos atores sociais
para fins de autorreconhecimento e legitimação de diferentes qualificações
valorativas da região, de mostrar “outros Vales”. O Vale da religiosidade e
da cultura populares, o Vale da cultura afro-brasileira, o Vale da cultura
indígena, o Vale das folias de reis, do congado, da viola, das benzedeiras e
rezadeiras, dos canoeiros, da oralidade, do “sentimento de comunidade”,
dos cantos de domínio público, das lavadeiras, dos boiadeiros, dos muti-
rões, das festas nas ruas, da viola, do artesanato.
A partir do recorte espacial definido pela bacia do Rio Jequitinhonha,
artistas, grupos de cultura popular e militantes socioculturais se articulam
em torno de um movimento em escala regional ressignificando, valorizando
e fomentando trocas e intercâmbios entre grupos e vivências populares,
produzindo, através de uma “realocação escalar”, a regionalização de manifes-
tações até então vividas e percebidas como locais/municipais/comunitárias.
Surge uma região identitária, significada pela arte e pela articulação
de movimentos e entidades culturais. Emerge, a partir da construção e
difusão de novos olhares para o Vale do Jequitinhonha, uma consciência
regional: o “Vale da Cultura”.

16 -   Não nos será possível aqui, infelizmente, o aprofundamento merecido acerca da história do movi-
mento cultural do Vale do Jequitinhonha. Sabemos, entretanto, que outros artigos o farão neste livro
com enorme propriedade e relevância.

44
A arte de se reinventar

“Precisamos inventar o Brasil que queremos”


Darcy Ribeiro

O termo “Vale do Jequitinhonha” refere-se, simultaneamente, a uma re-


gião natural: o vale da bacia do Rio Jequitinhonha; uma região estatal; o Vale
do Jequitinhonha institucionalizado a partir da criação da Codevale; e uma
região identitária: o Vale significado por um movimento cultural regional.
O processo histórico de emergência de uma região está imerso em
disputas, materiais e simbólicas, que envolvem, concomitantemente, dife-
rentes mentalidades, representações e práticas sociais produtos/produtoras
de recortes espaciais.
Não analisamos, neste trabalho, diferentes espaços geográficos, mas um
espaço recortado e significado a partir de diferentes, certas vezes contradi-
tórios, certas vezes complementares, atores sociais. Não há neste trabalho o
objetivo de “desconstrução” do Vale do Jequitinhonha enquanto região, mas
da desnaturalização de sua existência a priori, assim como da visibilização de
conflitos em torno de sua delimitação/significação/adjetivação.
O que é o Vale do Jequitinhonha? Quem são os produtores de uma busca
constante por respostas e esclarecimentos acerca do Vale do Jequitinhonha?
Olhando para o passado da região, percebemos ser impossível respondermos
tais indagações senão de forma complementar. O Vale do Jequitinhonha são
muitos, tantos quantos são os diferentes olhares, representações e com-
preensões de seus diferentes atores sociais; tantos quantos somos nós em
busca de respostas.
Não buscamos aqui uma resposta única e não nos aflige tal impossi-
bilidade. Nosso objetivo aqui é outro, o levantamento de uma reflexão, um
desafio identitário.
Como, a partir de um sentimento de pertencimento comum, determi-
nados grupos sociais podem se conhecer, se compreender, se transformar,
se emancipar e determinar seu futuro?
Disputas em torno da delimitação de uma identidade envolvem mais
do que uma “simples” construção afetiva parece nos sugerir.

A identidade, tal como a diferença, é uma revelação social.


Isso significa que sua definição – discursiva e lingüística – está
sujeita a vetores de força, a relações de poder. [...] Elas não

45
convivem harmoniosamente, lado a lado, em um campo sem
hierarquias; elas são disputadas. Não se trata, entretanto,
apenas do fato de que a definição da identidade e da diferença
seja objeto de disputa entre grupos sociais assimetricamente
situados relativamente ao poder. Na disputa pela identidade
está envolvida uma disputa mais ampla por outros recursos
simbólicos e materiais da sociedade. A afirmação da identidade
e a enunciação da diferença traduzem o desejo dos diferentes
grupos sociais, assimetricamente situados, de garantir o
acesso privilegiado aos bens sociais (SILVA, 2009, p. 81).

Dedico este trabalho àqueles que, com enorme mérito, se coletivizaram


e, após quatro décadas de mobilização, foram capazes de produzir novos
olhares, perspectivas e sensibilidades acerca do Vale do Jequitinhonha para
além de discursos homogeneizadores da região a partir do signo da miséria.
Poucos foram os espaços geográficos estigmatizados no Brasil cuja
consciência regional, fruto, muitas vezes, de arbitrária construção ideo-
lógica, resultou na organização de tantos em torno de um desejo comum
sonhado e, em especial, vivenciado: o “redizer minha terra natal”.
Entretanto, não podemos aqui nos furtar a uma última consideração.
Como nos alerta Albuquerque Júnior (2011, p. 31),

[...] não se combate a discriminação simplesmente tentando


inverter de direção o discurso discriminatório. Não é procu-
rando mostrar quem mente e quem diz a verdade, pois se
passa a formular um discurso que parte da premissa que
o discriminado tem uma verdade a ser revelada. [...] Tentar
superar este discurso, estes estereótipos imagéticos e dis-
cursivos [...], passa pela procura das relações de poder e
de saber que produziram estas imagens e estes enunciados
clichês [...]. Pois tanto o discriminado como o discriminador
são produtos de efeitos de verdade, emersos de uma luta e
mostram os rastros dela.

A história da emergência do Vale do Jequitinhonha enquanto região ainda


está para ser contada. Esperamos contribuir aqui com apontamentos iniciais
para que possamos, coletivamente, ampliar nossa compreensão da realidade.
Não há passado que nos impeça de repensarmos nosso futuro. Pelo
contrário, cabe a todos nós o direito de reinventarmos nossa história, de

46
encontrarmos incertezas no antes “já certo”, de redescobrirmos o novo
no antes velho, de desnaturalizarmos o presente para, só assim, rein-
ventarmos o futuro.
Sonharmos um novo Vale, para além de fronteiras impostas, como
muitos o têm feito, nos possibilita sonhar um mundo novo. Desnaturali-
zando fronteiras podemos redescobrir o espaço, o mundo, nossa região,
nosso lugar no mundo, “nosso Vale do Jequitinhonha”. Somente desna-
turalizando existências, ideias e conclusões herdadas podemos inventar,
segundo novas regras e horizontes, o mundo que queremos.
Precisamos inventar o Vale do Jequitinhonha que queremos.

Referências

AGRA DO Ó, Alarcon. Apresentação à 4ª edição. In: ALBUQUERQUE


JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do nordeste e outras artes de lá.
São Paulo: Cortez, 2011.

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do nordeste e


outras artes de lá. São Paulo: Cortez, 2011.

ALENCAR, Maria Amélia Garcia de. Cultura e identidade nos sertões do Brasil:
representações na música popular. In: CONGRESO LATINOAMERICANO
DE LA ASSOCIACIÓN INTERNACIONAL PARA EL ESTUDIO DE LA MÚSICA
POPULAR, 3., Bogotá, Colômbia, 2000. Actas... Bogotá: IASPM, 2000.
Disponível em: <http://www.uc.cl/historia/iaspm/pdf/Garciamaria.pdf>.
Acesso em: 20 jul. 2005.

ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem


e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

BATELLA, Wagner Barbosa; DINIZ, Alexandre Magno Alves. O estado de


Minas Gerais e suas regiões: um resgate histórico das principais propostas
oficiais de regionalização. Sociedade & Natureza, Uberlândia, v. 17, n. 33,
p. 59-77, dez. 2005.

BAULIG, Henri. A geografia é uma ciência? In: CHRISTOFOLETTI, Antonio


(Org.). Perspectivas da geografia. São Paulo: Difel, 1982. p. 59-70.

47
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. São Paulo: Ática, 2007.

CASTRO, Iná Elias de. O mito da necessidade. Rio de Janeiro: Bertrand


Brasil, 1992.

CHACON, Vamireh. A genealogia do nacional-desenvolvimentismo


brasileiro: João Pinheiro, Vargas, JK e Israel Pinheiro. In: GOMES, Ângela
de Castro (Org.). Minas e os fundamentos do Brasil moderno. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2005. p. 193-215.

CÔRREA, Roberto Lobato. Região e organização espacial. São Paulo:


Ática, 1986.

CORRÊA, Roberto Lobato; ROSENDAHL, Zeny. Paisagem, textos e identidade:


uma apresentação. In: CORRÊA, Roberto Lobato, ROSENDAHL, Zeny. (Org.).
Paisagens, textos e identidade. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2004. p. 7-12.

GEIGER, Pedro Pinchas. Litoralização e interiorização no Brasil. In:


CORRÊA, Roberto Lobato, ROSENDAHL, Zeny (Org.). Paisagem, imaginário
e espaço. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2004. p. 163-181.

GOFFMAN, Erving. Estigma: nota sobre a manipulação da identidade dete-


riorada. Rio de Janeiro: LTC, 2008.

GUIMARÃES, Alisson P. Estudo geográfico do Vale do Médio Jequitinhonha.


Belo Horizonte: Imprensa Oficial de Minas Gerais, 1960.

HAESBAERT, Rogério. Regional-Global: dilemas da região e da regionali-


zação na geografia contemporânea. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.

HARTSHORNE, Richard. Propósitos e natureza da geografia. São Paulo:


Hucitec, 1978.

JARDIM, Maria Nelly Lages. O Vale e a vida: História do Jequitinhonha.


Belo Horizonte: Armazém de Ideias, 1998.

MORAES, Antônio Carlos Robert. O sertão: um “outro” geográfico. Terra


Brasilis – Revista de História do pensamento geográfico no Brasil, Rio
de Janeiro, v. III-IV, n. 4-5, p. 11-23, 2002-2003.

48
MORENO, César. A colonização e o povoamento do Baixo Jequitinhonha
em Minas Gerais, no século XIX: a “guerra justa” contra os índios. Belo
Horizonte: Canoa das Letras, 1999.

MOURA, Margarida Maria. Os deserdados da terra: a lógica costumeira e


judicial dos processos de expulsão e invasão da terra no sertão de Minas
Gerais. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988.

OLIVEIRA, Francisco de. Elegia para uma re(li)gião: SUDENE, Nordeste,


planejamento e conflitos de classes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.

ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo:


Brasiliense, 2003.

PENNA, João Camilo. Israel Pinheiro e o desenvolvimento de Minas Gerais.


In: GOMES, Ângela de Castro (Org.). Minas e os fundamentos do Brasil
moderno. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. p. 288-332.

QUEIRÓZ, Renato. Caminhos que andam: os rios e a cultura brasileira. In:


BRAGA et al. (Org.). Águas doces no Brasil: capital ecológico, uso e conser-
vação. São Paulo: Escrituras, 1999. p. 671-688.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina.


In: LANDRE, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e
ciências sociais. Buenos Aires: CLACSO, 2005. p. 227-278.

RIBEIRO, Ricardo. Campesinato: resistência e mudança - o caso dos


atingidos por barragens do Vale do Jequitinhonha. Dissertação (Mestrado
em Sociologia), Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade
Federal de Minas Gerais, 1993.

RIBEIRO, Ricardo. Mudando para continuar sendo: a organização de


movimentos de atingidos por barragens no Vale do Jequitinhonha. In:
ROTHMAN, Franklin Daniel (Org.). Vidas alagadas: conflitos socioambientais,
licenciamento e barragens. Viçosa: Editora UFV, 2008. p. 85-121.

ROCHA, Sônia. Pobreza no Brasil: afinal, de que se trata? Rio de Janeiro:


FGV, 2006.

49
ROSA, Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.

SAHLINS, Marshall. A primeira sociedade da afluência. In: CARVALHO,


Edgard Assis. (Org.). Antropologia econômica. São Paulo: Livraria Editora
Ciências Humanas, 1978. p. 7-44.

SERVILHA, Mateus de Moraes. O Vale (en)cantado: música, identidade


e espaço no Jequitinhonha. Monografia de fim de curso em Geografia,
Universidade Federal de Viçosa, Viçosa, 2006.

SILVA, Dalva Maria de Oliveira. A arte de viver: riqueza e pobreza no médio


Jequitinhonha – Minas Gerais – de 1970 a 1990. São Paulo: EDUC, 2007.

SILVA, Tomaz Tadeu. A produção social da identidade e da diferença. In:


SILVA, Tomaz Tadeu (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos es-
tudos culturais. Petrópolis, Vozes, 2009. p. 73-102.

SOARES, Geralda Chaves. Na trilha guerreira dos Borun. Belo Horizonte:


Núcleo de Publicação do Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix, 2010.

Sites
ONHAS. Disponível em: <www.onhas.com.br>. Acesso em: 19 set. 2005.

WIKIPÉDIA. Disponível em: <www.wikipedia.com.br>. Acesso em: 14 nov. 2011.

Mateus de Moraes Servilha é bacharel e licenciado em Geografia pela


Universidade Federal de Viçosa (UFV), mestre em Extensão Rural pela
mesma instituição, doutorando em Geografia pela Universidade Federal
Fluminense (UFF), professor de Geografia Humana na Universidade
Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM) e autor dos livros
O vôo de Lelo (infantil) (Editora UFV, 2006) e Arte que nem sei (poesia)
(Editora Multifoco/Selo Terceira Margem, 2010).

50
A municipalização da proteção do patrimônio
cultural de Minas Gerais
Carlos Henrique Rangel

Minas Gerais desponta no país com a implementação de políticas


visando à preservação do patrimônio cultural, passando pela criação, em
1971, do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (IEPHA-MG) até
a redefinição dos critérios do repasse da cota-parte do ICMS aos municípios
mineiros definidos a partir de 28 de dezembro de 1995, com a criação da
Lei nº 12.040/95.
Essa lei determinou, de fato, a descentralização das políticas públicas,
já que, por meio dela, o município que investe em educação, meio ambiente,
agricultura, saúde e patrimônio cultural, entre outros critérios, recebe
repasse financeiro referente a cada um desses itens separadamente.
A Lei nº 12.040/95, modificada pela Lei n° 13.803/2000 e pela Lei
n°18.030/2009, completou 16 anos de existência e nesse percurso tem
realizado e despertado um grande interesse e uma participação maior da
comunidade local nas políticas implantadas pelo poder público municipal,
favorável à preservação e à conservação do seu patrimônio cultural.

Precursores da proteção do patrimônio cultural

A preocupação com a proteção do patrimônio cultural em nosso país


remonta aos tempos coloniais, quando em 1742 o conde das Galveias,
D. André de Melo e Castro, manifestava-se contra a transformação do Pa-
lácio das Duas Torres, construído pelos invasores holandeses na cidade do
Recife, em um quartel, além de denunciar outras decisões prejudiciais ao
patrimônio cultural de Pernambuco.
No século seguinte, o conselheiro Luís Pedreira do Couto, ministro
do Império, ordenou aos presidentes das províncias que tivessem cuida-
dos especiais na restauração dos monumentos, protegendo as inscrições
neles gravadas.
A partir dos primeiros anos do século XX, ocorreram várias manifes-
tações em defesa do patrimônio cultural. Em 1914, o engenheiro português
Ricardo Severo e seu grupo, adeptos da arquitetura neocolonial, realizaram

51
visitas às cidades com reminiscências coloniais, colhendo material para
seus documentos.
Já em 1916, os intelectuais Alceu Amoroso Lima e Rodrigo de Melo
Franco conheceram o Barroco Mineiro e perceberam a necessidade de
proteger esse valioso patrimônio colonial. Alceu Amoroso Lima, em
matéria publicada na Revista do Brasil, edição de setembro/outubro de
1916 (“pelo passado nacional”) alertou sobre a necessidade de preservar
o patrimônio das antigas cidades coloniais mineiras então em situação
deplorável devido à descaracterização e ruína.
Em viagens realizadas a Minas Gerais em 1919 e 1924, os mo-
dernistas, acompanhados do poeta Blaise Cendrars, tiveram o primeiro
contato com a arte colonial e com os modernistas mineiros. Com exce-
ção de Mário de Andrade, que já visitara Mariana em 1919, os outros
modernistas não conheciam Minas Gerais. Vieram para Minas: Blaise
Cendrars, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Dona Olívia Guedes
Penteado, Tarsila do Amaral, entre outros.
Em 1920, Mário de Andrade publicou na Revista do Brasil textos em
defesa do patrimônio mineiro. A arte colonial mineira passou a ser vista
pela vanguarda intelectual carioca, paulista e mineira como primeira
manifestação cultural tipicamente brasileira.
O conservador de antiguidades clássicas Alberto Childe, em 1920,
elaborou, a pedido do professor Bruno Lobo, presidente da Sociedade
Brasileira de Belas Artes, um anteprojeto de lei em defesa do patrimô-
nio artístico nacional. Sua preocupação maior, no entanto, era com os
bens arqueológicos.
Em 3 de dezembro de 1923, o deputado pernambucano Luis Cedro
apresentou um projeto que visava organizar a proteção dos monumentos
artísticos. Em 20 de maio de 1924, Dona Olívia Penteado, preocupada
com os roubos, vendas do acervo das igrejas mineiras e com o estado
de conservação desses bens culturais, criou em Tiradentes a Sociedade
dos Monumentos Históricos do Brasil. A primeira reunião contou com a
presença de René Thiollier, do presidente de Estado Carlos Campos, de
José Carlos de Macedo Soares, Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade,
Paulo Prado e Cendrars.
Cendrars é encarregado de redigir os estatutos da Sociedade dos
Monumentos Históricos do Brasil, cuja finalidade era “A proteção e a
conservação dos monumentos históricos do Brasil: Igrejas, palácios,
mansões e casas particulares dignas de interesse (móveis, objetos e
obras de arte, pinturas, estátuas, livros e arquivos, prataria, etc.)”.

52
No seu artigo III diz:

Fazer decretar uma lei para a Classificação e a Conservação


dos Monumentos Históricos:
a) Classificação dos monumentos históricos;
b) Inventário dos monumentos históricos (móveis, objetos,
obras de arte, pinturas, estátuas, livros e arquivos);
c) Interdição absoluta de exportar os objetos que constarem
do Inventário dos Monumentos Históricos; [...]
e) Conservação dos Monumentos Históricos;
f) Interdição absoluta de efetuar qualquer trabalho de
reconstrução, reparação, de transformação ou restauração
nos monumentos históricos classificados;
g) Qualquer trabalho de reconstrução, reparação, transforma-
ção ou restauração a se efetuar num Monumento Histórico
classificado será objeto de uma solicitação por escrito;
[...]
Art. V. Ação do Comitê de Iniciativa em cada Estado: [...]
d) Ocupar-se igualmente da arte popular sob todas as suas
formas: pinturas, esculturas, arte da mobília e caseira, mú-
sicas, canções e danças;
e) Organizar festas populares tradicionais nos diferentes
estados (carnaval, festas religiosas);
f) Arte culinária;
g) Interessar-se particularmente pelos vestígios da arte indí-
gena e por todas as manifestações dos negros;
h) Colecionar tudo o que concerne à Pré-História. [...] (CALIL,
2006, p. 77-88)

A Sociedade não vingou.


Ainda em 1924, o poeta Augusto de Lima apresentou algumas
propostas ao Congresso em defesa do patrimônio cultural nacional, mas
não foram aprovadas. O jurista mineiro Jair Lins, em 1925, organizou
um anteprojeto com o mesmo propósito, também não aprovado pelo
Congresso, mas que posteriormente serviria de base para o Decreto-lei
nº 25, de 30 de novembro de 1937, elaborado por Rodrigo de Melo Franco.
Em 1926, Oswald de Andrade preparou, para a Presidência da Re-
pública, um esboço para a criação de uma repartição destinada à prote-
ção do patrimônio cultural:

53
DEDEPAB – Departamento de Organização e Defesa do
Patrimônio Artístico do Brasil
Finalidade:
Salvar, inventariar e tombar o patrimônio nacional,
riquezas artísticas espalhadas pelo território brasileiro.
“Considerar monumentos públicos e proteger como tais
as principais realizações arquitetônicas da Colônia e os
sambaquis, necrópoles e demais vestígios da nossa pré-
-história.” (CALIL, 2006, p. 77-90).

Nos anos de 1926, 1927 e 1928, foram criadas Inspetorias Estaduais de


Monumentos Históricos em Minas Gerais, Bahia e Pernambuco respectivamente.
Convidado pelo ministro da Educação Gustavo Capanema, Mário de
Andrade elaborou uma proposta de projeto, datada de 24 de março de 1936,
para a criação de um serviço de patrimônio artístico nacional. O documento
reúne um único conceito: arte, manifestações eruditas e populares.
Infelizmente, tais inovações não foram consideradas, mais tarde, na
preparação do Decreto-Lei n° 25 de 1937, que vai efetuar a proteção ao
patrimônio cultural nacional. Como foi relatado, é perceptível a influência do
patrimônio cultural existente em Minas Gerais na tentativa de implantação
de políticas públicas favoráveis à proteção do patrimônio cultural brasileiro.

A criação da proteção do patrimônio cultural em nível nacional


e em Minas Gerais

Os intelectuais modernistas, fascinados com a homogeneidade das


cidades do período colonial que preservavam praticamente intacto o seu
acervo arquitetônico e artístico do século XVIII, abraçaram a causa da
preservação. Graças ao empenho desses expoentes da intelectualidade
brasileira dos anos 1920, foi instituído, em 1936, o Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), por meio de ato do presidente Getúlio
Vargas de 13 de abril daquele ano, que estabelecia sua criação provisória.
O SPHAN foi criado definitivamente pela Lei Federal nº 378 de 13 de
janeiro de 1937.

Art. 46. Fica creado o Serviço do Patrimonio Historico e


Artístico Nacional, com a finalidade de promover, em todo o
Paiz e de modo permanente, o tombamento, a conservação,

54
o enriquecimento e o conhecimento do patrimonio historico
e artístico nacional.
§ 1º O Serviço do Patrimonio Historico e Artístico Nacional
terá, além de outros orgãos que se tornarem necessarios ao
seu funccionamento, o Conselho Consultivo.
§ 2º O Conselho Consultivo se constituirá do director do
Serviço do Patrimonio Historico e Artistico Nacional, dos
directores dos museus nacionaes de coisas históricas
ou artísticas, e de mais dez membros, nomeados pelo
Presidente da República. (BRASIL, 1937)

O atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)


foi regulamentado pelo Decreto-lei nº 25 de 30 de novembro de 1937.
Este órgão de proteção, sustentado pelo Instituto do Tombamento e sob a
direção do Dr. Rodrigo Melo Franco de Andrade, empreenderá a proteção
dos grandes núcleos históricos e dos monumentos mais expressivos de
nossa cultura até os anos 1970, superando dificuldades e se consolidando.
Em abril de 1970, o encontro de governadores realizado em Brasília
definiu que estados e municípios deveriam compartilhar a proteção do
patrimônio de expressão local, criando os seus órgãos de preservação:

1- Reconhecem a inadiável necessidade de ação supletiva


dos Estados e Municípios à atuação federal no que se refere
à proteção dos bens culturais de valor “nacional”.
2- Aos Estados e Municípios também compete, com a orien-
tação técnica da DPHAN, a proteção dos bens culturais de
valor regional.
3- Para a obtenção dos resultados em vista, serão criados onde
ainda não existir órgãos estaduais e municipais adequados,
articulados e devidamente com os Conselhos Estaduais de
Cultura e com a DPHAN, para fins de uniformidade da legis-
lação em vista, atendido o que dispõe o art. 23 do Decreto-
-Lei 25, de 1937. (COSTA, 1970)

Em Minas Gerais, a proteção do rico acervo do estado coube ao


IEPHA-MG, fundação integrante do Sistema Estadual de Cultura criada em
1971 com atribuição básica de “preservar o patrimônio cultural do Estado”,
empreendendo a identificação, o registro, a fiscalização e a restauração dos
bens culturais tangíveis e, a partir de 2002, dos bens imateriais.

55
Ao longo dos seus quarenta anos de existência, o IEPHA-MG cumpre com
relativa desenvoltura as suas funções de proteger, gerenciar e estudar/pesqui-
sar o patrimônio cultural de Minas Gerais. No entanto, o número reduzido do
seu corpo técnico e a grande extensão territorial do estado, aliada à diversidade
do seu acervo cultural, cedo demonstraram a necessidade de parcerias para o
desenvolvimento dos trabalhos.
Em 1983, foi criado pela instituição o programa Política de Atuação com as
Comunidades (PAC), cujo principal objetivo é romper com o paternalismo estatal.
A política de atuação do PAC partia do pressuposto de que todo bem
cultural é “uma referência histórica necessária à formulação e realização
do projeto humano de existência”.

A condição necessária, para que este modo de atuação


funcione plenamente, é a de que as comunidades locais
possam se assenhorar, não apenas de seus valores cul-
turais, mas também, dos tributos que lhes escapam das
mãos [...]. Deste modo, a criação e o desenvolvimento de
entidades locais, encarregadas pelo patrimônio local e
sustentadas pelas próprias comunidades, aparece como
variável estratégica, capaz de equacionar o problema da
deterioração do acervo cultural de Minas. Uma das me-
tas fundamentais da Política de Atuação com as comu-
nidades do Iepha/MG é, precisamente, a de fomentar a
criação e o desenvolvimento daquelas entidades. Neste
sentido, cumpre-lhe oferecer às comunidades locais sub-
sídios para que possam se organizar de modo adequado.
(IEPHA-MG, 1983)

Ainda nos anos 1980, foi criada a Superintendência de Desenvolvimento


e Promoção (SDP) do IEPHA-MG, que, entre outras atribuições, responsabi-
lizou-se pelas ações comunitárias e assessoria aos municípios.
Entretanto, os trabalhos desenvolvidos pela SDP, como a criação
de um Caderno Técnico com conceitos e diretrizes para a proteção do
patrimônio cultural e uma Cartilha do Patrimônio Cultural, por exemplo,
atingiram resultados insatisfatórios.
Na década seguinte, em 1994, o IEPHA-MG criou o Projeto Educação,
Memória e Patrimônio e um ano depois desenvolveu o projeto Memória de
Minas. Contudo, essas iniciativas não passaram de pilotos e novamente
não surtiram o efeito desejado.

56
Nos anos seguintes, ações isoladas foram empreendidas em trabalhos
de pesquisa para tombamento, inventário e restauração de imóveis protegidos
pelo tombamento. No entanto, essas ações não se traduziam em projetos
efetivos da instituição, refletindo muito mais a disposição de alguns técnicos.
Quanto à criação de instituições locais de proteção do patrimônio
cultural, a situação continuou basicamente a mesma até o final de 1995,
quando o governo estadual, seguindo orientação da Constituição Brasileira
de 1988, criou mecanismos de incentivos aos municípios que promovessem
a proteção do seu patrimônio cultural.

O ICMS Patrimônio Cultural

A Constituição Federal determina que 75% do Imposto sobre a Circulação


de Mercadoria e Serviços (ICMS) dos estados devem ser repassados aos
municípios de acordo com o volume de arrecadação e que os 25% restantes
devem ser repassados conforme regulamentação aprovada por lei estadual.
Em 28 de dezembro de 1995, o governo mineiro sancionou a Lei
nº 12.040/95, que estabeleceu a redistribuição do ICMS com novos cri-
térios. São considerados os seguintes itens: população, área territorial e
receita própria de cada município, investimentos em educação, saúde, agri-
cultura, preservação do meio ambiente e do patrimônio cultural.
No caso da variável patrimônio cultural, coube ao IEPHA/MG a elaboração
e implantação dos critérios para o repasse dos recursos do ICMS aos municípios.
No texto da Lei nº 12.040/95 (depois 13.803/2000), em seu anexo III,
foi publicada a tabela de pontuação que define como critérios básicos ações
e políticas culturais como a criação de Conselho Municipal do Patrimônio
Cultural, de um departamento ou órgão afim para cuidar do patrimônio
cultural local e, principalmente, a proteção dos bens culturais por meio do
instituto do tombamento nas categorias Núcleos Históricos (NH), Conjuntos
Paisagísticos (CP), Bens Imóveis (BI) e Bens Móveis (BM), nos três níveis: fe-
deral, estadual e municipal, sendo que os bens tombados pelo IPHAN e pelo
IEPHA-MG recebem uma pontuação maior de acordo com sua categoria.
Outras ações também foram valorizadas e aprimoradas ao longo dos
anos, como o planejamento e a realização de inventário de proteção do
acervo cultural local e projetos de educação patrimonial, a proteção dos
bens culturais imateriais e a criação de fundos municipais de proteção
do patrimônio cultural. Todas essas exigências legais e técnicas deveriam
seguir as normas e metodologias criadas e utilizadas pelo IEPHA-MG.

57
O Conselho Curador do IEPHA-MG e depois o Conselho Estadual do
Patrimônio Cultural (CONEP) procuraram sempre aprimorar as normas
relativas à distribuição do ICMS e ao longo dos anos aprovaram nove
resoluções/deliberações, modificando os critérios de repasse da cota – parte
do ICMS cultural aos municípios mineiros.
Para a formação e orientação técnica dos agentes culturais muni-
cipais, foram produzidos manuais e apostilas, distribuídos em cursos de
formação que se tornaram rotina da instituição.
Em 12 de janeiro de 2009, foi aprovada pela Assembleia Legislativa de
Minas Gerais a Lei n.º 18.030, que dispõe sobre a distribuição da parcela
da receita do produto da arrecadação do ICMS pertencente aos municípios,
substituindo a Lei n.º 13.803.
Pela nova lei, em seu anexo II, novos critérios foram determinados
para o ICMS Patrimônio Cultural, contemplando, além dos itens já consa-
grados, a proteção do patrimônio imaterial e a criação do Fundo Municipal
de Preservação do Patrimônio Cultural e sua utilização.
O resultado dessa política de redistribuição de recursos e municipali-
zação da proteção do patrimônio cultural é que, a partir de 1996, os muni-
cípios passaram a ter uma motivação a mais para preservarem o patrimônio
local. Se antes havia poucos Conselhos Municipais de Proteção do Patrimô-
nio Cultural e o governo estadual não tinha a noção exata de quantos bens
protegidos existiam, a situação se reverteu a tal ponto que hoje são mais de
700 conselhos e mais de 3.500 bens culturais tombados e registrados, além
de outros 30.000 bens inventariados.
Seguindo a legislação, metodologia e os critérios adotados pelo IEPHA-
-MG, os municípios estão implantando, de maneira gradual, uma política
de preservação do patrimônio cultural adequada às características de cada
comunidade, compartilhando as responsabilidades com o estado e a União.
Essa padronização da metodologia da proteção dos acervos do estado,
se, por um lado, facilita a análise do material apresentado ao IEPHA-MG,
por outro, inibe a tendência (bastante insipiente existente anteriormente
nos poucos municípios que possuíam proteção local) de simplificarem a
legislação e os trabalhos técnicos, quando existem.
A tão sonhada parceria municipal na proteção do patrimônio cultural
finalmente se efetivou e está se consolidando em todo o estado, até mesmo
nas regiões mais pobres. O IEPHA-MG passou, de fato, a atuar em todo
o território mineiro – alcance inimaginável nos anos anteriores a 1995 –,
divulgando, ensinando seus trabalhos e dividindo sua experiência.

58
Se antes o atrativo era o recurso que o município receberia se participasse
do ICMS Patrimônio Cultural, percebeu-se que gradativamente os conselhos
e as equipes técnicas começaram a atuar com determinação na valorização e
proteção do seu acervo cultural, criando um marketing próprio de divulgação:
cartilhas, fôlderes, banners, cartões-postais, leis de incentivo, fundos do patri-
mônio, visitas orientadas, promoção de cursos, palestras e seminários.
Paralelamente, o campo de trabalho aberto favoreceu o surgimento
de dezenas de empresas de consultoria técnica que vêm atuando junto às
prefeituras visando ao atendimento das exigências das deliberações. Se
por um lado essas empresas prestam um grande serviço de divulgação da
política do ICMS Patrimônio Cultural, por outro, elas adiam a autossu-
ficiência dos municípios para promoção e desenvolvimento da gestão do
seu patrimônio cultural. Importante frisar que essas empresas estão se
especializando cada vez mais e no futuro poderão atuar na proteção do
patrimônio cultural em todo o país.
Devido ao ICMS Patrimônio Cultural, o IEPHA-MG possui atualmente
informações históricas e arquitetônicas com fotografias e plantas sobre mais
de 3.500 bens protegidos pelos municípios nas categorias Núcleos Históri-
cos, Conjuntos Arquitetônicos e Paisagísticos, Bens Imóveis, Bens Móveis e
Bens Imateriais, e mais de 30.000 fichas de bens inventariados, algo impen-
sável 17 anos atrás. A continuidade desse processo de criação e operação
das estruturas municipais de proteção do patrimônio tem um grande efeito
multiplicador, permitindo a preservação do rico acervo cultural do estado e
servindo ao mesmo tempo de estímulo financeiro aos municípios.

Referências

BRASIL. Decreto-lei nº 25, de 30 de novembro de 1937. Organiza a proteção


do patrimônio histórico e artístico nacional. Disponível em: <http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del0025.htm>. Acesso em: 7 maio 2012.

CALIL, Carlos Augusto Machado. Sob o signo do Aleijadinho – Blaise


Cendrars precursor do patrimônio histórico. In: MORI, Victor Hugo; SOUZA,
Marise Campos de; BASTOS, Rossano Lopes; GALLO, Haroldo (Org.).
Patrimônio: atualizando o debate. São Paulo: 9ª Superintendência Regional/
IPHAN, 2006. CASTRO, Sônia Rabello de. O estado na preservação de bens
culturais: o tombamento. Rio de Janeiro: Renovar, 1991.

59
CHAUI, M. S. Política cultural, cultura política e patrimônio histórico. In:
DEPARTAMENTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO/SMC (Org.). O direito à
memória: patrimônio histórico e cidadania. 1. ed. São Paulo: Departamento
Histórico da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, 1992. p. 37-46.

CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Estações Liber-


dade; UNESP, 2001.

COSTA, Lygia Martins. Arte e políticas de patrimônio. Rio de Janeiro:


IPHAN, 2002. (Edições do Patrimônio).

COSTA, Lucio. Compromisso de Brasília. Carta redigida ao fim do 1º


Encontro dos Governadores de Estado, Secretários Estaduais da Área
Cultural, Prefeitos de Municípios Interessados, Presidentes e Representantes
de Instituições Culturais, abril de 1970. Disponível em: <http://portal.iphan.
gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=240>. Acesso em: 7 maio 2012.

FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em processo: trajetó-


ria da política federal de preservação no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ;
IPHAN. 1997.

INSTITUTO ESTADUAL DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO DE


MINAS GERAIS. Política de ação com as comunidades (PAC): documento
básico. Belo Horizonte, 3 out. 1983.

INSTITUTO ESTADUAL DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO DE


MINAS GERAIS. Cartilha do patrimônio histórico e artístico de Minas
Gerais. Belo Horizonte: Secretaria de Estado da Cultura de Minas
Gerais, 1989.

INSTITUTO ESTADUAL DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO DE


MINAS GERAIS. Suplemento Especial IEPHA 20 anos. Belo Horizonte,
novembro de 1991.

INSTITUTO ESTADUAL DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO DE


MINAS GERAIS. Arquivos da Superintendência de Desenvolvimento
e Promoção.

60
INSTITUTO ESTADUAL DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO DE
MINAS GERAIS. Preservação e comunidade. Belo Horizonte: 1990. 87 p.
(Caderno Técnico, 1).

MAGALHÃES, Aloísio. E Triunfo?: a questão dos bens culturais no Brasil.


Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

MINAS GERAIS. Secretaria de Estado de Educação. Reflexões e contribuições


para educação patrimonial. Belo Horizonte: SEE, 2002. (Lições de Minas, 23).

MORI, Victor Hugo; SOUZA, Marise Campos de; BASTOS, Rossano Lopes;
GALLO, Haroldo (Org.). Patrimônio: atualizando o debate. São Paulo: 9ª
Superintendência Regional/IPHAN, 2006.

PIRES, Maria Coeli Simões. Da proteção cultural: o tombamento como prin-


cipal instituto. Belo Horizonte: Del Rey, 1994.

SOUZA FILHO, Carlos Frederico Mares de. Bens culturais e proteção jurídica.
Porto Alegre: Unidade Editorial, 1997.

Historiador, Carlos Henrique Rangel começou sua carreira no


IEPHA-MG no Setor de Pesquisa em 1984. De 2004 a 2007, dirigiu a
Superintendência de Desenvolvimento e Promoção, desenvolvendo a
política de municipalização através do ICMS Patrimônio Cultural.

De 2007 a 2010, foi diretor de promoção, onde deu continuidade aos


trabalhos de municipalização, promoção e difusão do patrimônio
cultural, realizados no período em que ficou à frente da antiga
Superintendência de Desenvolvimento e Promoção.

61
Anexos

Tabela 1

Pontuação dos municípios desde o surgimento


do ICMS Patrimônio Cultural

(1996-2011)

Ano Municípios
1996 106

1997 122

1998 167

1999 233

2000 186

2001 218

2002 335

2003 351

2004 457

2005 392

2006 586

2007 630

2008 660

2009 645

2010 705

Fonte: Fundação João Pinheiro

62
Tabela 2

ICMS PATRIMÔNIO CULTURAL

Valores repassados aos municípios

(1997-2010)

Exercício Total do Repasse


1997 R$ 9.030.781,46

1998 R$ 13.059.563,00

1999 R$ 14.131.825,60

2000 R$ 16.859.334,35

2001 R$ 18.364.967,00

2002 R$ 20.954.460,89

2003 R$ 24.321.056,15

2004 R$ 28.749.378,53

2005 R$ 33.962.569,30

2006 R$ 37.065166,48

2007 R$ 41.184.964,07

2008 R$ 48.634.751,46

2009 R$ 45.420.055,12

2010 R$ 55.324.160,17

Fonte: Fundação João Pinheiro

63
Patrimônio material e imaterial
no Vale do Jequitinhonha
José Pereira dos Santos

O patrimônio histórico e cultural do Vale do Jequitinhonha destaca-


-se por sua diversidade e singularidade e engloba cidades históricas como
Diamantina, Minas Novas, Chapada do Norte, entre outras, além de monu-
mentos, tradições, festas, música, dança e artesanato.
Esse patrimônio configura um conjunto de manifestações que cons-
titui uma das expressões mais ricas da cultura mineira e brasileira. Sabe-
mos, entretanto, que apenas Diamantina é declarada Patrimônio Cultural
da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a
Ciência e a Cultura (Unesco). É ela quem dá ao Vale do Jequitinhonha esse
reconhecimento de história e de patrimônio.
Durante nove anos, estive à frente da Secretaria Municipal de Cultura de
Araçuaí (quando ainda era secretaria); ocupei também o cargo de presidente
do Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural. Por diversas vezes, estive à
frente de lutas importantes para a preservação do que restou do patrimônio
cultural da nossa cidade, envidando esforços para que edificações importantes
não fossem ao chão, tombadas literalmente, como aconteceu. Travamos uma
luta com o poder econômico, com empresas de médio e grande portes, e con-
fesso que estas jogaram abaixo grande parte da nossa história.
O trabalho do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de
Minas Gerais (IEPHA-MG) é exemplar com relação à Lei Robin Hood (lei de
retomada de um novo processo de redistribuição mais justa dos recursos do
ICMS nos municípios mineiros); entretanto, os prefeitos do Vale ainda não
têm o mesmo respeito e carinho com o nosso patrimônio. Hoje, se fizermos
um levantamento junto às prefeituras, podemos observar que alguns pre-
feitos autorizam gastos com verba do ICMS Cultural para a realização de
micaretas e outros eventos tidos como “culturais”, alegando investimentos
em eventos do aniversário da cidade, e infelizmente deixando para trás a
preservação de seus acervos, de suas ruas históricas, de suas demandas
para com o patrimônio (que não são pequenas).
Como secretário de Cultura, sempre imaginei uma forma de o Estado
determinar aos prefeitos como utilizar os recursos da Lei Robin Hood, fa-
zendo com que houvesse apenas investimentos no patrimônio cultural, mais

64
precisamente com restauração de imóveis, imagens, com educação patrimo-
nial e outras ações. Sonho com uma lei realmente exclusiva para este fim.
Temos um potencial fantástico no Vale do Jequitinhonha quanto ao
nosso patrimônio histórico. Fico muito feliz quando vou a municípios como
Jequitinhonha e Minas Novas e encontro uma situação completamente di-
ferente de Araçuaí. Isso prova que existem políticas de preservação sim,
em cidades que fazem uma leitura diferente quanto ao patrimônio cultural.
O que hoje vejo é que, além deste patrimônio material, o Vale produz
uma riqueza sem fim, e que é passada de geração para geração. O artesa-
nato, por exemplo, é uma forma de se manter acesa a chama de uma he-
rança do nosso valioso patrimônio imaterial. Hoje vemos que cada região do
Jequitinhonha tem uma característica diferente, peculiar de cada mestre, e
que é passada por pais e avós.
Quando o Festival de Cultural Popular do Vale do Jequitinhonha (Fes-
tivale) surgiu na região – e o primeiro aconteceu em Itaobim, em 1980 –, o
evento era para ser um momento da música. Mas, no ano seguinte, uma
das primeiras manifestações populares a acontecer no Festivale foi a feira
de artesanato. A proposta do Festivale era atuar política e culturalmente,
visando transformar a realidade. E por aí foi: música, artesanato, literatura,
teatro, grupos de Congado, fazendo a arte brotar através do povo.
Em Araçuaí, quando Frei Chico chegou ao Vale, foi morar no Palácio
Episcopal. Segundo ele, naquela época (na década de 1970), as paredes do
seu quarto eram vizinhas com as da cozinha.
Havia uma cozinheira que se chamava Maria Filomena de Jesus,
a popular “Filó”. Dizia Frei Chico que, enquanto Filó fazia o almoço,
cantava algumas músicas que ele admirava muito. Uma das primeiras
canções que ouviu foi a “Tirana da Rosa” e pediu que ela cantasse de novo e
perguntou de quem eram aquelas músicas. Segundo ele, Filó dizia: “Pra
quê, Frei? Estas músicas são feias. Estas músicas quem me ensinou foi
minha mãe, ela aprendeu com minha avó...”. E Filó cantava a música
para Frei Chico:

Subi no pé da roseira, ô rosa tirana


Para ver se te avistava, a há
Ô rosa...
A rosa pra ser cheirosa, ô rosa
É de ser de Alexandria, a há
Ô rosa...

65
Segundo Frei Chico, a partir dali ele começou a pesquisar, com a aju-
da de Filó, um conjunto de músicas da nossa cultura popular, que mais
tarde vieram a fazer parte do grande repertório do Coral Trovadores do Vale.
A grande amiga e colega do Frei Chico, e também responsável por
grande parte do nosso patrimônio imaterial do Vale do Jequitinhonha, foi
Lira Marques. A Lira, em parceria com o Frei, catalogou centenas de músi-
cas, rezas e outros saberes da nossa cultura popular. Ainda tomei conhe-
cimento de que, quando o Coral Trovadores do Vale foi fundado, alguns
integrantes queriam cantar músicas do Roberto Carlos e da Wanderléa,
que faziam sucesso naquela época, na década de 1970. Porém, o Frei Chico
dizia: “Nós vamos cantar aquilo que verdadeiramente é nosso”.
Todo o Vale tem um encanto diferente e peculiar, cada região tem uma
particularidade com relação ao nosso patrimônio cultural material e imate-
rial. Em certa ocasião, uma psiquiatra francesa veio ao Brasil para realiza-
ção de várias palestras no Rio de Janeiro, São Paulo e em Belo Horizonte, e
segundo fiquei sabendo ela exigiu da organização dos eventos que fretassem
um avião para que fosse a Araçuaí... Tudo porque ela queria conhecer uma
grande artista chamada Noemisa Batista.
Naquela época, uma jornalista da Rede Globo Minas entrou em con-
tato comigo para que eu pudesse levá-la a Santo Antônio de Caraí, zona
rural da cidade de Caraí, onde mora a Noemisa e onde também morava
um dos grandes Ulisses do Jequitinhonha, o Ulisses Pereira. No Vale eram
dois grandes Ulisses: o Pereira, de Caraí, que já se encontra fazendo es-
culturas no andar de cima, e o Mendes, de Itinga, que felizmente ainda se
encontra entre nós.
Quando conheci a psiquiatra dra. Christine, ela mostrou-me um gran-
de catálogo de arte de Paris que apresentava os artistas do sertão do Vale
Ulisses Pereira e Noemisa Batista. Ficamos um dia inteiro naquela região
conhecendo as obras desses artistas que em suas particularidades encan-
tavam pessoas de cidades europeias e outras partes do planeta, demons-
travam muita simplicidade e encantavam seus visitantes.
Existe por aqui uma diversidade de valores do nosso patrimônio
que deveria realmente ser tombada pelo IEPHA-MG e pelo Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), mas há que se ter muito
tempo para se conhecer tanto...
Sei que o tombamento de festas como a de Nossa Senhora do Rosário
dos Homens Pretos de Chapada do Norte, proposto pelo IEPHA, servirá como
grande exemplo para que as Irmandades do Rosário das cidades do Vale

66
do Jequitinhonha repensem as suas festas para que possam preservá-las
e mantê-las livres da intromissão de eventos que nada têm a ver com elas.
Também defendo que a nossa música seja tombada como patrimônio
imaterial. E neste sentido devo admitir que os Trovadores do Vale precisam
passar por esse processo de tombamento, pois reconheço que todos os
grupos e corais que gravam cantigas da cultura popular do Jequitinhonha
acabam bebendo na fonte desse grande coral parafolclórico.
Eu particularmente produzi a gravação de dois discos com o Coral Nossa
Senhora do Rosário e o Coral Araras Grandes, ambos de Araçuaí. Algum tempo
depois, o Coral Meninos de Araçuaí, com a coordenação do grupo Ponto de
Partida e a participação de Milton Nascimento, encantaram a Europa com
algumas dessas canções do Jequitinhonha pesquisadas pelos Trovadores.
Certa vez, conheci um maestro do Rio de Janeiro que tem o grande
sonho de escrever partituras para todas as músicas pesquisadas por Frei
Chico e Maria Lira Marques. O acervo é imenso, e sei que um grande projeto
foi desenvolvido para essa finalidade.
Quando participei do projeto Vale, Vozes e Visões, da Secretaria de
Estado de Cultura de Minas Gerais, a convite da ex-secretária Eleonora
Santa Rosa, pude perceber no Palácio das Artes um evento que valorizou
de fato artistas como Zefa, Lira, D. Isabel, os dois Ulisses e todo o Vale de
uma maneira geral. Foi a primeira vez que vi uma equipe inteira da Cultura
do Estado aproximar-se daqueles que fazem cultura no Vale.
Sabemos que a nossa riqueza material e imaterial existe sem mesmo acon-
tecer a participação do Estado. É por esta razão que o Jequitinhonha é imortal
quando se fala de arte popular, de patrimônio cultural imaterial. Apenas soli-
citamos a atenção do Estado no que diz respeito às políticas de preservação do
nosso patrimônio e da cultura de forma geral. Penso que elas têm de ser cons-
truídas conosco, lá no Vale, para que possam realmente surtir efeito positivo.
Em 1994, participei de um projeto muito interessante que foi a pro-
dução de um espetáculo teatral que falava do Vale do Jequitinhonha, e que
mostrava ao país as mazelas da nossa região e as nossas riquezas. Desse
processo nasceu o espetáculo cênico-musical chamado Jequiticanta. Durante
quase 10 anos viajamos o Brasil e alguns países latino-americanos mostran-
do, de fato, o Vale do Jequitinhonha.
O espetáculo mostrava os cantares, os saberes, os costumes, as rezas
que fazem parte do nosso cotidiano. Recebemos dezenas de prêmios em vários
festivais de teatro, nacionais e internacionais. A peça denunciava os falsos po-
líticos, que aparecem por lá angariando votos e desaparecem após as eleições,

67
e mostrava a nossa riqueza através dos brinquedos e das brincadeiras, do
congado, do artesanato e da simplicidade do povo do Vale, que é peculiar.
Quando montamos o espetáculo, fizemos uma apresentação inicial
para Frei Chico e Lira, e estes diziam-nos que tinham a certeza de que
mostraríamos ao país inteiro os êxtases e as mazelas do Vale do Jequiti-
nhonha. Na verdade, o espetáculo era nós mesmos. Nós contávamos ao povo
a nossa história, a história de cidadãos do Jequitinhonha. Por isso éramos
tão reais e tão perfeitos. Em uma cena que falava das viúvas de maridos vi-
vos, por exemplo, usávamos uma música que foi gravada no primeiro disco
dos Trovadores. Uma lavadeira cantava: “o dinheiro de São Paulo é dinheiro
excomungada, foi o dinheiro de São Paulo, minha nega, que levou meu na-
morado”. E a outra respondia: “o garimpo do berilo é também excomungado,
foi o garimpo do berilo minha nega que levou seu marido”.
A música, passada de geração para geração, de domínio público, en-
canta e conta a nossa história. Num dos momentos mais lindos do espe-
táculo, cantamos uma outra cantiga pesquisada por Lira e Frei Chico, que
fala da pobreza de uma forma tão encantadora que resolvemos inseri-la no
espetáculo. Cantávamos assim:

Ô vida triste é a vida da pobreza,


Ó vida alegre é a vida da riqueza
Nas horas certas,
tem a cama e tem a mesa
Eu quero dormir um sono
No colo de uma princesa, ai, ai.

Toda esta riqueza do nosso patrimônio imaterial é mantida e preser-


vada pelos Trovadores do Vale e outros corais, bem como por grandes artis-
tas como Lira, Zefa, Dona Isabel, Ulisses Mendes, Zezinha e tantos outros
que ainda se encontram no anonimato. A todos nós, cabe a grata tarefa de
orientar e cuidar, com zelo e carinho.
Neste sentido, o Centro Cultural Luz da Lua está na sua quinta edição
do K-iau em Cena: o Festival Nacional de Teatro de Araçuaí. Todos os anos
temos a apresentação de peças teatrais do Brasil e do exterior, e junto a tal
programação também mostramos aos grupos que vêm de fora a força da
nossa rica cultura popular, da riqueza do nosso patrimônio imaterial. São
apresentações dos Tamborzeiros do Rosário, do Coral Trovadores do Vale,
Nossa Senhora do Rosário e outros, além dos grupos de Congado da região.

68
Aproveito também o ensejo para comunicar que o nosso querido Frei
Chico está organizando a publicação de um dicionário que contém mais de
cinco mil verbetes dedicados à cultura imaterial do Vale do Jequitinhonha,
que brevemente será lançado.
Quero dizer também que a tarefa do Programa Polo de Integração da
UFMG no Vale do Jequitinhonha é muito sublime e que não poupa esforços
para divulgar e fazer crescer a cultura do Vale do Jequitinhonha.
Obrigado à grande amiga Marizinha, ao Márcio Simeone e a todos
que, como eu, carregam o Jequitinhonha no coração e que são defensores
imediatos desta cultura.
Amigos, existem coisas que às vezes passam despercebidas e que a
gente não consegue expressar no papel, às vezes nem verbalmente. É o meu
caso quando falo do Vale. Desculpem-me se estou deixando algo para trás.
Obrigado pela oportunidade de estar aqui e falar em nome do Jequitinhonha.

José Pereira dos Santos é coordenador, idealizador e fundador do


Centro Cultural Luz da Lua, Cineclube Luz da Lua e Teatro Noêmia
Santos/Araçuaí-MG, ator e diretor teatral; fundador do Grupo Teatral
Vozes; produtor cultural, oficineiro e palestrante especializado na área
cultural, assessor cultural, produtor musical. É idealizador e coordenador
do Projeto Cinema no Sertão – premiado pela Funarte e pelo Ministério da
Cultura – e coordenador do Projeto K-iau em Cena: Festival Nacional de
Teatro de Araçuaí-MG.

69
Bonecas de Adriana Gomes Xavier, comunidade Coqueiro Campo.

ARTESANATO, ECONOMIA E CULTURA


Arte e vida no Vale:
a prontidão dos homens lentos1
Maria Teresa Franco Ribeiro

As visões do Vale: possibilidades de caminhos

Visões do Vale: o título do evento levou-me a refletir sobre os sentidos


do encontro e os sentidos da palavra “visões”. Título que nos convida a no-
vas percepções do mundo, a novas ou a diferentes representações que as-
somam aos olhos e aos espíritos e, ainda, a conexões com diversos futuros
possíveis, imagináveis ou não. O título já nos propõe mais de uma questão:
o que é o Vale do Jequitinhonha para aqueles que ali experimentam o exer-
cício do cotidiano, do labor, da arte, da seca, do sertão, da vida integrada
à “natureza”? O que é o Vale para aqueles que o veem como um objeto de
estudo, como territórios a serem transformados em realidades tão distantes
da almejada pelas populações locais?
Foi a partir dessas questões e das lembranças, com todos os seus sig-
nificados, da minha vida de estudante de Economia da Universidade Fede-
ral de Minas Gerais (UFMG), turma de 1977, que construí algumas reflexões
sobre a economia do artesanato como possibilidade de desenvolvimento.
O Vale, para a minha geração, foi um espaço de encantamento: Dia-
mantina, as serestas, os cantos de viola, as “Marias” de barro: um lugar
de fortalecimento da alma, da criatividade. O Vale é o coração de Minas,
território da diversidade, de “opinião” e “sabença”. Compreender a sua com-
plexidade exige a compreensão do modo como esse espaço foi incorporado,
submetido e subjugado à lógica hegemônica do desenvolvimento capitalista.
O espaço não é “reflexo da sociedade”, ele é a sociedade. As formas
espaciais hão de ser produzidas, portanto, como o são todos os outros ob-
jetos, pela ação humana (CASTELLS, 1983, p. 23). O desenvolvimento, ou
os desenvolvimentos, o que seriam? Que significados teriam e para quem?
Karl Marx (2011) afirmou que o capitalismo é uma fo ma histórica,
datada, ou seja, nunca existiu anteriormete e, além disso, não é a última
forma de experiência social, econômica e política, como nos quer fazer
crer o discurso neoliberal. Para Marx, o capitalismo é a pré-história do

1 -   Agradeço a Cristina Borges pela cuidadosa revisão e as discussões e leitura poética de Adriana Melo.

72
desenvolvimento. O desenvolvimento seria uma experiência em que os
homens seriam livres para desenvolver sua criatividade, suas potenciali-
dades. Uma experiência de vida em que a riqueza não seria um fim em si
mesmo, mas um meio para produzir bons cidadãos. O conceito de desen-
volvimento precisa estar, portanto, totalmente alinhado à compreensão
da ética como inclusão e à consciência da importância da formação de
sujeitos críticos e participativos.
Num momento em que, comandado pelo capital financeiro, o capitalis-
mo passa por uma de suas mais desafiadoras crises, o “velho filósofo” ainda
nos inspira, apontando-nos a importância da autorreflexão da humanidade
sobre as suas circunstâncias, sobre a sua história. É momento de refletir
sobre as nossas próprias práticas, essas que nos fazem sentir menos, que
nos fazem sentir solitários e desencantados e que muitas vezes nos cegam
em relação aos outros e ao que convencionamos chamar natureza. Essas
práticas e sentimentos carecem de utopia e de esperança.
É dessa perspectiva que a minha leitura sobre a economia do ar-
tesanato do Vale do Jequitinhonha me anima a olhar para caminhos de
esperança, para a humanização da vida, para o espaço da poesia. Possi-
bilidades que nos permitem ver e reconhecer a diversidade cultural, so-
cial, política e econômica dos lugares e que nos trazem a perspectiva de
outras economias, de outras trajetórias de desenvolvimentos, diversas,
específicas, particulares.
Assim é que trago reflexões sobre a natureza do artesanato e das re-
lações sociais que ele estimula e tece. Inquietações sobre as possibilidades
que essas economias podem representar para a construção de espaços mais
dignos cujas relações sejam mais afetuosas, mais criativas e mais solidárias.

Economia do artesanato: sentidos socioespaciais da vida

O que seria a economia do artesanato senão o conjunto de práticas e


ações articuladas à arte em um determinado espaço-tempo? Pensar isso não
envolveria a história, a geografia, a antropologia, as artes em geral? A ciên-
cia moderna fragmentou os saberes, como se as disciplinas pudessem dar
conta da complexidade das relações sociais, políticas e econômicas. Como
se a compreensão dos processos pudesse se dar sem a compreensão de sua
complexidade, sem a completude das relações humanas em seus espaços, no
lugar em que a vida é tecida e transformada. No espaço do cotidiano.

73
Para que a ciência seja permanentemente reinventada, de modo a
construir o exercício da democracia e da liberdade, transformando os seus
limites disciplinares em fronteiras a conhecer, é necessário, também, que
sejam reinventados os próprios sujeitos do saber: “[...] a ampliação das fron-
teiras do saber estimula a reflexão acerca da própria formação dos sujeitos
do saber” (HISSA, 2011, p. 44-48). Nesse sentido, o desafio não está apenas
nos conteúdos dos conhecimentos, mas também nos sujeitos do conheci-
mento. É preciso religar o que foi fragmentado, apreender a complexidade
dos processos de desenvolvimento, acolher as “sabenças” do Vale e de todos
os espaços, indistintamente. É preciso acolher os saberes destituídos de
“cientificidade”. Saberes e espaços repletos de sabedorias e significados.
Assim, cada espaço terá uma trajetória específica de desenvolvimento, fruto
da sua história, das relações que os homens estabeleceram e estabelecem
com a “natureza” e entre si.
O artesanato, assim como todas as outras expressões da arte e da
cultura do Vale, é também uma expressão da economia, do movimento
da vida em sua materialidade e espiritualidade. Todas essas são expe-
riências que podem nos ajudar a construir outras economias, outros
sentidos de desenvolvimento.
Cada modo de produção tem seu espaço particular. Nas sociedades
primitivas, por exemplo, o espaço e seu uso (mítico e material) são indis-
tinguíveis enquanto espaço social e físico. Assim como esses espaços, o
espaço, o território do Vale do Jequitinhonha, é produto e produtor de
suas materialidades, das expressões das suas artes e de seus ofícios e das
diversas histórias, tantas vezes sequer registradas nas cartografias oficiais.
O artesão exerce uma arte ou um ofício manual por sua conta,
sozinho ou auxiliado por membros da sua família e por um número
restrito de companheiros ou aprendizes. Com a ajuda de ferramentas e
mecanismos caseiros, visa produzir peças utilitárias, artísticas, recrea-
tivas, instrumentos de trabalho – com ou sem fim comercial. O artesão
estabelece assim uma relação bastante próxima com o que designamos
“natureza”, uma relação de cumplicidade.
Com o advento do capitalismo, as fábricas, inicialmente espaços
de arte, transformam-se em espaços de produção de mercadorias, e os
trabalhadores perdem o controle dos meios de trabalho. O capital, como
sistema totalizante, produz as alienações, as fetichizações e os estra-
nhamentos tanto na esfera da produção quanto na esfera do consumo.
Produção e consumo, intermediados pela distribuição, são momentos
distintos de um mesmo processo.

74
O acirramento da velocidade dos processos de produção e de consumo
impostos pela radicalização da modernidade, sob a égide do capital finan-
ceiro, produz “cegueiras”, invisibilidades. Já não percebemos o outro como
parceiro, mas como uma ameaça, como um competidor, um rival. O que
importa é a produção de valor de troca, que move o consumo exacerbado.
Os artesãos do Vale são, portanto, símbolos de resistência, símbo-
los da prática de uma outra economia, a expressão de toda uma vida de
relações, teimosa e tenaz, que se opõe à abstração exigida pela operação
sistêmica da concepção hegemônica mercantil. O homem do presente e sua
concepção de humanismo são confrontados pelo “homem lento”, que realiza,
de maneira irreversível, a defesa da cidadania e da democracia social em
direção ao cotidiano e aos lugares do Outro (RIBEIRO, 2005).

Os homens lentos do Vale: a tradução da “sabença”

Para Henri Lefebvre, apenas o valor de uso pode transformar as lutas


de apropriação em caminhos para a transformação do território em construto
coletivo (LEFEBVRE, 1969). No mesmo sentido, Pierre Bordieu afirma que
apenas a vida de relações, de interações solidárias, pode resistir à volatilidade
dos investimentos, uma vez que a troca por elas gerida é simbólica e, por-
tanto, sustentada em linguagens e valores (BORDIEU, 1994). Nessas trocas,
através da experiência concreta do compartilhamento, o valor de uso predo-
mina sobre o valor de troca. É o valor de uso que orienta a ação do “homem
lento” – categoria político-filosófica construída pelo geógrafo Milton Santos.
O “homem lento” é aquele que desvenda os recursos indispensáveis à vida.
A partir desses sujeitos, homens lentos, surgem as potencialidades me-
diadoras do território e uma compreensão renovada da própria política. É a
partir deles que se potencializa uma outra globalização. Para Milton Santos,
a cidade é o palco dos mais diversos atores: homens, firmas, instituições que
nela vivem e trabalham conjuntamente (SANTOS; SILVEIRA, 2001). Alguns
desses atores movimentam-se segundo tempos rápidos e outros, segundo
tempos lentos, de tal maneira que a materialidade, muitas vezes aparente-
mente unívoca, revela-se múltipla a um olhar mais minucioso, uma vez que
é atravessada por todos esses atores e as suas diferentes lógicas, os seus
diferentes tempos e ritmos. Tempo rápido é o tempo das firmas, dos indiví-
duos e das instituições hegemônicas. E tempo lento é o tempo das firmas, dos
indivíduos e das instituições hegemonizadas. Como ressalta Milton Santos,
economia pobre trabalha nas áreas onde as velocidades são lentas. Quem

75
necessita de velocidades rápidas é a economia hegemônica, são as firmas
hegemônicas comandadas pela lógica da reprodução do capital.
O espaço é considerado uma instância da sociedade, assim como a
instância econômica e a instância cultural-ideológica. Isso significa que,
como instância, ele contém e é contido pelas demais instâncias, assim
como cada uma delas o contém e é por ele contida. As empresas mais
poderosas escolhem os pontos do espaço que consideram instrumentais
para a sua existência produtiva, para o exercício da sua racionalidade.
Trata-se de uma modalidade de exercício do seu poder. O resto do terri-
tório torna-se, então, o espaço concedido às empresas menos poderosas.
Os primeiros seriam, do ponto de vista da produtividade, da competitivi-
dade, “espaços luminosos”, enquanto o resto do território seria composto
por “espaços opacos”. Os espaços luminosos do Vale são, por exemplo,
aqueles vinculados às atividades agropecuárias e florestais, às atividades
que fazem parte da cadeia produtiva das indústrias, às atividades de mi-
neração, siderurgia, metalurgia, indústria de maquinário, construção de
fábricas de automóveis – além de outros setores que utilizam ferro/aço
como matéria-prima. São atividades que alimentam a lógica mercantil e o
modelo de desenvolvimento vigente.
Mas, como nos lembram Laschefski e Zhouri, existem também no
Vale sujeitos e grupos sociais que não aderem e não se alinham a esse
modelo, que se sentem ameaçados pelas obras do chamado “desenvolvi-
mento” e não desejam a transformação abrupta dos seus modos de vida,
enraizados e entrelaçados às condições ecológicas locais (LASCHEFSKI;
ZHOURI, 2011). Esses grupos não são necessariamente contrários ao de-
senvolvimento vigente, como apontam esses autores, mas almejam um
desenvolvimento que abrigue as condições do lugar, os desejos e as expec-
tativas próprios de suas comunidades. Desejam e precisam resguardar o
seu tempo e as suas racionalidades. Eles sabem que, no bojo dos interes-
ses e conflitos, os “espaços opacos” tendem a se transformar em espaços
invisibilizados ou capturados pela lógica mercantil.
Ao fazer sobressair o valor de troca das mercadorias em detrimento
do seu valor de uso, o modelo hegemônico de desenvolvimento subor-
dina, de forma destrutiva, as relações homem-natureza, indivíduo-so-
ciedade e mercado-solidariedade. A tecnologia passa a definir a forma
de apropriação da natureza, as relações de solidariedade se diluem no
contexto da valorização da competição e do individualismo. E o merca-
do, ícone da racionalidade moderna, transforma-se na instituição mais
forte, no discurso da mídia. Discurso que não se sustenta diante de uma

76
análise cuidadosa do domínio das trocas inter e entre empresas e do
suporte dado pelos Estados ao grande capital.
A expansão desse modelo de desenvolvimento produz novas cartogra-
fias, com redes de lugares, empresas, fluxos crescentes de capitais e sujei-
tos, e, simultaneamente, produz espaços de exclusão, territórios invisíveis,
“cartografias omissas”. Adriana Melo, em sua leitura dos lugares sertão,
afirma que essas cartografias de lugares omitidos, invisibilizados, põem
em xeque um modelo de desenvolvimento e de produção do conhecimento
que simplifica e fragmenta a compreensão das dinâmicas socioespaciais e
humanas contemporâneas (MELO, 2011).
A leitura dessas novas cartografias não pode ser feita a partir dos
modelos dicotômicos de conhecimento que traduzem os espaços e lugares
como desenvolvido/subdesenvolvido, moderno/atrasado, Norte/Sul, etc. Es-
sas categorias precisam ser reinterpretadas à luz das novas dinâmicas dos
sentidos dos movimentos dos tempos-espaços. Espaços opacos, omitidos ou
invisibilizados proliferam-se nas periferias, nas encostas, nas margens dos
“espaços luminosos”. O capital incorpora e/ou exclui relações e territórios
de quaisquer naturezas segundo as suas necessidades.
Olhar para o sertão do Vale através da sua cultura popular nos faz
ver diversos contrapontos às “ausências” e “carências” ali presentes. O ar-
tesanato representa o cerne das identidades, das relações e articulações
políticas e dos diversos processos de socialização dos conhecimentos, dos
saberes. Essas expressões de criatividade evidenciam as formas de se rela-
cionar com a “natureza” e com o sagrado.
A expansão da forma mercantil hegemônica produz, por um lado, a
destruição e/ou a precarização da força de trabalho, a degradação crescente
do meio ambiente na relação metabólica entre homem-natureza, a exacer-
bação do consumo, do egoísmo, o abandono da solidariedade e da ética (a
degradação dos valores e das instituições). Por outro lado, produz também
espaços de resistência, como esse da economia do artesanato do Vale, que
se revela através da valorização do valor de uso e de toda a sua carga de
subjetividade. Esses espaços ultrapassam o pensamento dicotômico pobre-
za/riqueza e servem de referência a novas formas de viver.
O artesanato do Vale sinaliza a necessidade de acolhermos outras
formas de apropriação do lugar onde vivemos, outras formas de refletir
sobre esse lugar e sobre estar e atuar nele, ser. Esse é o sentido do
desenvolvimento. Para Marx, a verdadeira riqueza seria alcançada através
da universalidade das capacidades, dos gozos, da realização absoluta das
aptidões criadoras dos indivíduos (MARX, 2011).

77
Os olhares do Vale: de fora e de dentro

Para os que estão “de fora do Vale”, cuja visão é amalgamada pela
lógica mercantil, o Vale é o espaço da pobreza, lugar opaco a ser trans-
formado. Espaço de “amarras, censuras, ausência de liberdade, rotas
retas, trilhos que nos levam para lugares já conhecidos, metodologias
ou caminhos de pesquisa que antecipam resultados ou que recolhem os
dados necessários à corroboração de resultados previamente antecipa-
dos” (HISSA, 2011, p. 44-48). Esse olhar de fora não reflete, necessaria-
mente, os significados dessas comunidades. O lugar e a condição social
dos sujeitos do Vale associam-se a outros valores, como o parentesco, a
ancestralidade, os laços de afetividade, e não apenas às condições ma-
teriais. O ser é mais importante que o ter.
A riqueza dos que estão “embaixo” é a prontidão dos sentidos. É
essa prontidão que, ao lado da busca dos bens materiais finitos, cultiva
a procura de bens infinitos, como a solidariedade e a liberdade (SANTOS,
1998). É na esfera das contrarracionalidades hegemônicas, chamadas de
irracionalidades, produzidas pelos que estão “embaixo”, que se consegue
escapar ao totalitarismo da racionalidade dominante. Os que escapam
são aqueles que, conectados com suas histórias e com suas utopias,
resistem e insistem em transformar o barro e outros materiais em ex-
pressão de arte e de “sabença”. Essas experiências constituem para nós
um campo fértil, capaz de potencializar a construção de uma ciência li-
bertadora, uma ciência-saber, como aponta Cássio Hissa (2011, p. 25). A
ciência-saber realizaria a incorporação das vivências e experimentações
de mundo pelos sujeitos do conhecimento. Ciência-saber possibilitada
pela ecologia dos saberes, pelo diálogo entre diferentes racionalidades.

A economia do Vale pelos sujeitos do Vale

A maneira de levar a vida, a maneira de lidar com o outro, define um


medo, uma ameaça ou uma possibilidade. Segundo Milton Santos, “os futu-
ros são muitos... dependerão dos arranjos diferentes, segundo nosso grau de
consciência, entre o reino das possibilidades e da vontade” (SANTOS, 1998).
Buscando compreender melhor o modo de vida do Vale, deparei-me
com outros artesãos, os artesãos da palavra. E do contexto rico e diversi-
ficado da poesia do Vale, escolhi um texto que expressa o valor e a riqueza

78
poética da economia dessa região. A poesia do Vale é a expressão da sua
economia e do diálogo da palavra com todas as formas de expressão cul-
tural, simbólica, social e política.

Jequitinhonha
Branco Di Fátima

Eu sou da terra do Jequitinhonha


de homens fortes e corajosos,
melindrosos na arte de viver.
Eu sou da terra de lavradores e lavadeiras
do Bicho da Fortaleza. Terra Rubinho do Vale.
Eu sou da onde cantam os tambores
a dança do Fanado. Da terra do Congado
da Taquara Banda do povo suado
de Deus João do povo do Rosário.
Eu sou da terra de homens de garra
de casas de pau a pique
das noites de lua cheia
de poesia e cantoria.
Eu sou do mundo das águas
da rua São José, do largo do Amparo,
da praça da Matriz.
Sou da terra de feiticeiros
da garapa e rapadura
das lendas de onças pintadas
dos causos a beira da fogueira
das Vesperatas e poetas do muro.
Eu sou da terra do Bom Sucesso
das Folias de Reis, das cordas que falam
das roupas de crochê, do artesanato de barro.
Eu sou mineiro, das calças amarradas com imbira,
das mãos calejadas pela labuta da vida,
do pó da poeira, do Vale da vida...
“do verde, verso e viola”.2

2 -   Extraído de: <http://lecampolal.blogspot.com.br/>. Acesso em: 20 out. 2011.

79
Referências

BORDIEU, Pierre. Raisons pratiques: sur la théorie de l´action. Paris:


Éditions du Seuil, 1994.

CASTELLS, Manuel. The infomational economy. In: TREND, David (Org.).


Reading digital culture. Oxford: Blackwell Publishers, 1983.

DI FÁTIMA, Branco. Jequitinhonha. Poetas do Vale. Disponível em:


<http://www.asminasgerais.com.br/?item=ALBUM&codAlbum=1467>.
Acesso em: 21 out. 2011.

HISSA, Cássio Eduardo Viana. Diálogos sem Fronteira, entrevista à revista


da FAPEMIG. Minas faz ciência, Belo Horizonte, Revista comemorativa
dos 25 anos da FAPEMIG, out. 2011. Disponível em: <http://fapemig.
wordpress.com/category/entrevista-2>. Acesso em: 30 out. 2011.

LASCHEFSKI, Klemens; ZHOURI, Andréa. Desenvolvimento, água e


mudança social: experiências no Vale do Jequitinhonha. In: SOUSA,
João Valdir Alves; NOGUEIRA, Maria das Dores Pimentel (Org.). Vale
do Jequitinhonha: desenvolvimento e sustentabilidade. Belo Horizonte:
UFMG/PROEX, 2011.

LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. Tradução de T. C. Netto. São Paulo:


Editora Documentos, 1969.

MARX, Karl. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858; Esboços


da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro:
Editora da UFRJ, 2011.

MELO, Adriana Ferreira de. Sertões do mundo, uma epistemologia [ma-


nuscrito]: uma cosmologia do sertão. 2v. 2011. 219 f. Tese (Doutorado
em Geografia) – Instituto de Geociências, Universidade Federal de Minas
Gerais, Belo Horizonte, 2011.

RIBEIRO, Ana Clara Torres. Território usado e humanismo concreto: o mer-


cado socialmente necessário. In: ENCONTRO DE GEOGRAFIA DA AMÉRICA
LATINA, 10., 2005, São Paulo. Anais... São Paulo: Universidade de São
Paulo, 2005.

80
SANTOS, Milton; SILVEIRA, Maria Laura. O Brasil: território e sociedade
no início do século XXI. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2001.

SANTOS, Milton. Técnica, espaço, tempo: globalização e meio-técnico


científico-Informacional. 4. ed. São Paulo: Hucitec, 1998.

Maria Teresa Franco Ribeiro é graduada em Economia pela Universidade


Federal de Minas Gerais (UFMG), mestre em Desenvolvimento Rural pelo
Centro de Pós-Graduação em Desenvolvimento Agrícola da Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ) e doutora em Economia
pelo Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ). Fez o pós-doutorado em Paris III – Institut des Hautes Études de
l’Amérique Latine (IHEAL) no campo da Geografia. É professora associada III
na Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia (UFBA), ensina
e pesquisa na área de Desenvolvimento, Território e Ciência e Tecnologia.

81
Artesanato e políticas públicas
Maria Dorotéa de Aguiar Barros Naddeo

Contextualização

Os primeiros registros sobre políticas públicas para o setor artesanal


no Brasil são da década de 1950, quando foi realizado o primeiro estudo
quantitativo de artesãos no Nordeste, com o objetivo de transformar o
artesanato em atividade profissional. Nos anos 1960, outros estudos foram
realizados, identificando que os artesãos do Ceará e da Bahia apresentavam
maior capacidade produtiva e, consequentemente, a comercialização dos
produtos ultrapassava os limites locais da produção.1
Na década seguinte, o governo federal, sob o regime militar, por
meio do Decreto n° 80.098,2 de 8 de agosto de 1977, instituiu o Programa
Nacional de Desenvolvimento do Artesanato (PNDA), sob a supervisão do
Ministério do Trabalho, “com a finalidade de coordenar as iniciativas que
visem à promoção do artesão e a produção e comercialização do artesanato
brasileiro”. Dois anos depois foi publicado o Decreto n° 83.290,3 de 13 de
março de 1979, que estabelecia a Classificação de Produtos Artesanais e
Identificação Profissional do Artesão.
O PNDA tinha como objetivos:4

I. promover, estimular, desenvolver, orientar e coordenar a ativi-


dade artesanal em nível nacional;
II. propiciar ao artesão condições de desenvolvimento e autossus-
tentação por meio da atividade artesanal;

1 -   BRASIL. Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. O Dia do Artesão. Brasília:
Programa do Artesanato Brasileiro, 2008. Disponível em <http://www.mdic.gov.br/sitio/interna/
interna.php?area=4&menu=2047>. Acesso em: 30 out. 2011.
2 -   BRASIL. Decreto n° 80.098, de 08 de agosto de 1977. Institui o Programa Nacional de
Desenvolvimento do Artesanato e dá outras providências. Diário Oficial [da República Federativa
do Brasil], Brasília, DF, 9 ago. 1977.
3 -   BRASIL. Decreto n° 83.290, de 13 de março de 1979. Dispõe sobre a Classificação de Produtos
Artesanais e Identificação Profissional do Artesão e dá a outras providências. Diário Oficial [da República
Federativa do Brasil], Brasília, DF, 14 ago. 1979.
4 
-   BRASIL. Decreto n° 80.098, de 08 de agosto de 1977. Institui o Programa Nacional de
Desenvolvimento do Artesanato e dá outras providências. Diário Oficial [da República Federativa do
Brasil], Brasília, DF, 9 ago. 1977.

82
III. orientar a formação de mão de obra artesanal;
IV. estimular e/ou promover a criação e organização de sistemas de
produção e comercialização do artesanato;
V. incentivar a preservação do artesanato em suas formas da ex-
pressão da cultura popular;
VI. estudar e propor formas que definam a situação jurídica do artesão;
VII. propor a criação de mecanismos fiscais e financeiros de incentivo
à produção artesanal;
VIII. promover estudos e pesquisas visando à manutenção de infor-
mações atualizadas para o setor.

Além disso, previa uma Comissão Consultiva do Artesanato, composta


por representantes de dez órgãos do governo federal que tinham interface
com o artesanato, que deveriam “programar, em seus orçamentos anuais,
os recursos necessários à organização, implantação e desenvolvimento do
Programa Nacional de Desenvolvimento do Artesanato, de acordo com as
respectivas atividades setoriais”.5
Nos anos 1980, em decorrência das políticas públicas inspiradas nas
questões trabalhistas, foram criadas organizações de artesãos em todo o
país, surgindo os sindicatos entre as associações e grupos informais. Um
destaque nesse processo foi a valorização dos aspectos culturais. Nesse
período foram iniciados programas de qualificação do artesão e de comer-
cialização do produto artesanal, associados à elaboração e divulgação de
calendário de eventos do setor.6
No governo Collor, por meio de um decreto7 sem número, de 21 de
março de 1991, foram revogados o Decreto n° 80.098/77 e os artigos 1º, 2º,
3º, 5º e 8º do Decreto n° 83.290/79, bem como foi instituído o Programa
do Artesanato Brasileiro (PAB), no âmbito do extinto Ministério da Ação
Social, sob a supervisão da Secretaria Nacional de Promoção Social, “com a
finalidade de coordenar e desenvolver atividades que visem valorizar o artesão
brasileiro, elevando o seu nível cultural, profissional, social e econômico, bem
assim desenvolver e promover o artesanato e a empresa artesanal”. O PAB
contava com “recursos provenientes do orçamento do Ministério da Ação

5 -   Artigos 5º e 6º do Decreto n° 80.098/77.


6 -   (MDIC/PAB, 2008).
7 -   BRASIL. Decreto de 21 de Março de 1991. Dispõe sobre a Classificação de Produtos Artesanais e
Identificação Profissional do Artesão e dá a outras providências. Diário Oficial [da República Federativa
do Brasil], Brasília, DF, 22 mar. 1991.

83
Social e de outras fontes alternativas”. Possuindo cinco artigos, no 3º estava
previsto que o Ministério da Ação Social expediria as instruções necessárias
à execução do disposto no decreto, sem prever nenhuma outra diretriz.
A mudança repentina da finalidade do decreto que estabeleceu as
diretrizes para o setor artesanal entre 1991 e 1995 gerou uma série de
impactos que repercutem até hoje. Analisando o conteúdo da legislação
que vigorou durante o regime militar e a que foi instituída pelo governo civil
que o sucedeu, percebem-se um empobrecimento e a inclusão da expressão
empresa artesanal sem uma definição do seu significado. Além de associar
a atividade artesanal à assistência social, perdeu-se a possibilidade de
aprimoramento dos objetivos do PNDA que, ainda hoje, contemplariam as
principais necessidades demandadas pelos artesãos.
No governo FHC foi publicado o Decreto n° 1.508,8 de 31 de maio de
1995, transferindo a subordinação do PAB para o Ministério da Indústria,
do Comércio e do Turismo, que foi sucedido, em sua competência, pelo
Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC). O
teor do decreto foi mantido, sendo que a única alteração feita foi a trans-
ferência da subordinação do programa.
Três anos depois, no âmbito do Programa Comunidade Solidária,9 que
tinha “por objeto coordenar as ações governamentais voltadas para o aten-
dimento da parcela da população que não dispõe de meios para prover suas
necessidades básicas e, em especial, o combate à fome e à pobreza”, foi cria-
do o projeto Artesanato Solidário. O projeto tinha como objetivo incentivar o
artesanato de tradição em comunidades de baixa renda. No início, foram exe-
cutados seis programas emergenciais de desenvolvimento local para combater
a pobreza em regiões afetadas pela seca. Depois de 42 ações em diferentes
comunidades da Região Nordeste e do Norte de Minas Gerais, passou a ser
uma organização da sociedade civil em 2002, após a mudança do governo.10
Apesar disso, não havia um trabalho compartilhado entre o projeto Artesa-
nato Solidário/Programa Comunidade Solidária e o PAB/MDIC.

8 -   BRASIL. Decreto n° 1.508, de 31 de maio de 1995. Dispõe sobre a subordinação do Programa de
Artesanato Brasileiro, e dá outras providências. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil],
Brasília, DF, 1º jun. 1995.
9 -   BRASIL. Decreto Nº 1.366, de 12 de janeiro de 1995. Dispõe sobre o Programa Comunidade Solidária
e dá outras providências. Câmara dos Deputados, Legislação Informatizada, Publicação Original.
Disponível em: <http://www2.camara.gov.br/legin/fed/decret/1995/decreto-1366-12-janeiro-1995-
426118-publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 30 out. 2011.
10 -  Artesanato Solidário: tradição e desenvolvimento. Disponível em: <http://amaivos.uol.com.br/
amaivos09/noticia/noticia.asp?cod_noticia=7204&cod_canal=39>. Acesso em: 30 out. 2011.

84
Em 1997 foi criado o programa de artesanato no Sebrae, que devido
à sua grande capilaridade e disponibilidade de recursos consolidou a sua
atuação no setor, abrangendo comunidades em todo o país com defini-
ção de estratégias e diretrizes próprias de atuação. Um dos marcos dessa
atuação foi a publicação do Termo de Referência do Programa Sebrae de
Artesanato,11 em 2004, com lançamento no Palácio do Planalto. Em 2010 o
Termo de Referência foi reeditado.12
Nos governos Lula e Dilma, o PAB foi mantido sem alterações na sua
fundamentação legal, trazendo como única novidade a sua transformação,
em 2006, em programa orçamentário: Programa 1016 Artesanato Brasileiro.
Percebe-se, no entanto, que o enfoque empresarial dado ao setor artesanal
durante o governo Collor permaneceu.
Nos últimos 12 anos ocorreram inúmeras discussões entre as insti-
tuições sobre qual seria a melhor posição do artesanato: permanecer no
Desenvolvimento Econômico? Ou retorná-lo para o Trabalho? Transferi-lo
para a Cultura? Ou para o Turismo? Ou seguir para a Secretaria da Micro e
Pequena Empresa, caso seja criada? O fato é que ainda hoje não se chegou
a um resultado, e os defensores de cada corrente contribuíram para a pro-
liferação de iniciativas de atendimento do setor, em diversos órgãos, sem o
estabelecimento de uma coordenação central. Reflexo disso são as interven-
ções realizadas sem articulação entre si, sobrepondo-se em diversos pontos
do país, sem gerar resultados satisfatórios aos seus beneficiários.
Pode-se concluir que alguns problemas dificultaram a implantação
de ações que consolidassem o setor artesanal enquanto segmento econô-
mico presente em todo o território nacional. Entre outros, destacam-se:
i) a falta de informações atualizadas sobre o setor, em âmbito nacional; ii) a
inexistência de uma base conceitual; iii) a falta de marco legal; e iv) a falta
de uniformidade das estruturas administrativas e gerenciais para atendi-
mento do setor artesanal mantidas pelos governos estaduais, associada à
descontinuidade das ações.
Visando criar as bases necessárias para o desenvolvimento de
políticas públicas adequadas para o setor artesanal, os gestores do PAB

11 -   A primeira edição do Termo de Referência do Programa Sebrae de Artesanato foi o resultado do
trabalho de uma equipe organizada pelo Sebrae Nacional composta por: Durcelice Mascêne, Edson
Fermann, Eduardo Barroso Neto, Maria Angélica Monteiro dos Santos, Maria Dorotéa de Aguiar Barros
Naddêo, Patrícia Salamoni,Vinícius Nobre Lages e Wanessa Nemer.
12 -   SEBRAE. Termo de Referência: atuação do Sistema SEBRAE no Artesanato. Brasília: Serviço Brasileiro
de Apoio às Micro e Pequenas Empresas, 2010. Disponível em: <http://www.sebrae.com.br/setor/
artesanato/acesse/biblioteca-on-line/termo-de-referencia-artesanato-2010>. Acesso em: 31 out. 2010.

85
(que integravam o Departamento de Micro, Pequenas e Médias Empresas),
no período de 2007 a 2009, empreenderam as seguintes ações:

I. Implementação do Sistema de Informações Cadastrais do


Artesanato Brasileiro – foi desenvolvido para agregar uma base
nacional de dados do setor artesanal: dados dos artesãos, de
suas organizações, das instituições que apoiam o setor, dos
resultados das atividades de comercialização de produtos, do
registro de produtos por tipologia, entre outros. O Sistema per-
mitia a transferência das bases preexistentes nos estados, para
atualização no novo perfil. Os dados deveriam ser coletados e
inseridos no Sistema pelas Coordenações Estaduais do Artesanato,
indicadas pelos governos estaduais.

II. Elaboração de base conceitual do Artesanato Brasileiro – objetivo


de estabelecer uma nomenclatura para a instituição de legislação
regulamentar do setor e subsidiar o Sistema de Informações
Cadastrais do Artesanato Brasileiro. Pretendia-se, por meio dela,
possibilitar a compreensão e percepção, de forma sistemática,
do comportamento das variáveis do setor, relevantes para a
definição de rumos e estratégias das políticas públicas e criação
de parâmetro para planejamento das ações governamentais no
país e no Mercosul. A base conceitual foi estruturada em sete
seções: i) Conceitos básicos; ii) Tipologias; iii) Classificação; iv)
Características; v) Produtos; vi) Técnicas de produção artesanal;
e vii) Matérias-primas. Até o início de 2010 estava ainda em
processo de construção.

III. Construção do Plano Nacional de Capacitação – iniciativa


técnico-institucional do Programa do Artesanato Brasileiro em
parceria com as Coordenações Estaduais de Artesanato. Além
da capacitação dos técnicos que atuam nos setores responsáveis
pelo setor artesanal nos órgãos governamentais estaduais e fede-
rais, estava prevista a capacitação de multiplicadores em todas
as Unidades Federativas, visando criar as condições necessárias
para o atendimento das demandas dos artesãos. No Plano foram
definidos os fundamentos metodológicos e o ciclo de intervenção,
utilizando a aprendizagem vivencial como referência.

86
IV. Revisão das estratégias de mercado – proposta de consolidação
e ampliação dos canais de comercialização dos produtos artesanais,
visando à geração de novas oportunidades de trabalho e ao
aumento de renda no setor. A elaboração de Nomenclatura Comum
do Mercosul (NCM) para exportação e sua integração no Mercosul
constituíam a pauta das reuniões do PAB com as Coordenações
Estaduais do Artesanato. Por meio da ação “Estruturação de
Núcleos Artesanais”, que permite a construção e/ou reforma
de espaços nos municípios, era, também, alternativa de acesso
ao mercado, disponibilizada às organizações de artesãos. Nos
núcleos, além da produção coletiva e do desenvolvimento de
cursos de capacitação, havia a possibilidade da comercialização
dos produtos dos artesãos do município.

Com a realização dessas ações pretendia-se: i) identificar os artesãos


e criar mecanismos de diálogo entre os governos e suas organizações para
levantar as necessidades do setor e definir as políticas públicas, de forma
participativa; ii) implantar um sistema de informações que permitisse
a permanente atualização de dados sobre o setor para fundamentar as
ações governamentais e institucionais; iii) definir estratégias e diretrizes
nacionais para o fomento do setor, utilizando nomenclatura unificada;
e iv) gerar os fundamentos necessários para a definição de marco legal
adequado ao setor artesanal.
Em processo simultâneo, o Comitê para Gestão da Rede Nacional
para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios,
previsto na Lei Complementar nº 128/2008,13 e vinculado ao Ministério
do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, sob a coordenação da
Secretaria de Comércio e Serviços, tratou da implementação dos processos
referentes ao registro dos empreendedores individuais.
A Lei Complementar nº 128/2008 “cria condições especiais para que o
trabalhador conhecido como informal se torne um Empreendedor Individual
legalizado – EI”. O EI é o empresário individual, a que se refere o artigo
966 do Código Civil, que tenha auferido receita bruta, no ano-calendário

13 -   BRASIL. Lei Complementar nº 128, de 19 de dezembro de 2008. Altera a Lei Complementar nº 123,
de 14 de dezembro de 2006, altera as Leis nº 8.212, de 24 de julho de 1991, nº 8.213, de 24 de julho de
1991, nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil, nº 8.029, de 12 de abril de 1990, e dá outras
providências. Disponível em: <http://www.receita.fazenda.gov.br/legislacao/leiscomplementares/2008/
leicp128.htm>. Acesso em: 30 out. 2011.

87
anterior, até R$ 60.000,00,14 optante pelo Simples Nacional, que tenha até um
empregado, não possuindo mais de um estabelecimento e nem participe de
outra empresa como titular, sócio ou administrador. Entre as 467 atividades
enquadráveis no EI estão:

• artesão de bijuterias;
• artesão em borracha;
• artesão em cerâmica;
• artesão em cimento;
• artesão em cortiça, bambu e afins;
• artesão em couro;
• artesão em gesso;
• artesão em louças, vidro e cristal;
• artesão em madeira;
• artesão em mármore, granito, ardósia e outras pedras;
• artesão em metais;
• artesão em metais preciosos;
• artesão em outros materiais;
• artesão em papel;
• artesão em plástico;
• artesão em vidro.

Partindo do pressuposto de que uma quantidade expressiva dos artesãos


brasileiros exerce suas atividades informalmente, de forma individual, a edição
da lei possibilitará a sua formalização. Esse artesão pagará, mensalmente,
o valor fixo mensal de R$ 32,10 (comércio ou indústria), que será destinado
à Previdência Social e ao ICMS ou ao ISS, e obterá as seguintes vantagens:

(i.) legalização de sua atividade;


(ii.) acesso a crédito, devido à comprovação de renda;
(iii.) possibilidade de emissão de notas fiscais; e
(iv.) acesso aos benefícios previdenciários (salário-maternidade; auxí-
lio-doença, acidente e reclusão; aposentadoria por invalidez, por
idade e especial; e pensão por morte).

14 -   BRASIL. Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Empreendedor Individual,


entenda o que é. Disponível em: <http://www.portaldoempreendedor.gov.br/modulos/entenda/oque.
phpv>. Acesso em: 5 maio 2012.

88
No entanto, muitos artesãos que ao longo dos anos se organizaram em
associações e cooperativas, com o objetivo de instituir uma representação
formal que regularizasse sua produção e consolidasse seus produtos no
mercado de forma profissionalizada, caso optem pelo EI, alterarão suas
relações, substituindo uma estrutura coletiva de trabalho, fundamentada em
ações cooperadas, numa estrutura individual. Além disso, os artesãos com
faturamento anual superior a R$ 60.000,00 não são contemplados pelo EI.
Pelo exposto, o EI configura-se como solução parcial para o setor
artesanal. Dessa forma, é necessária a construção de uma legislação específica
e adequada, que estabeleça condições para o seu fomento, resguardando e
valorizando seus aspectos culturais e sociais.
Após a mudança dos gestores do Departamento de Micro, Pequenas
e Médias Empresas e do PAB, em 2010, foi publicada, através da Portaria
nº 29,15 de 5 de outubro de 2010, “a base conceitual do artesanato brasi-
leiro, na forma do Anexo, para padronizar e estabelecer os parâmetros de
atuação do Programa do Artesanato Brasileiro – PAB em todo o território
nacional”. Cabe esclarecer que o texto não sofreu as correções e os ajustes
necessários para sua publicação.
Atualmente, aguarda-se o resultado da tramitação do Projeto de Lei
nº 865,16 de 31 de março de 2011, que altera a Lei nº 10.683, de 28 de maio
de 2003, e dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos
Ministérios, cria a Secretaria da Micro e Pequena Empresa, cria cargo de
Ministro de Estado e cargos em comissão, e dá outras providências”. Caso
essa secretaria seja criada, conforme artigo 2º do referido projeto de lei,
serão transferidas as seguintes competências:

I. referentes a microempresa, empresa de pequeno porte e arte-


sanato do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio
Exterior para a Secretaria da Micro e Pequena Empresa; e
II. referentes a cooperativismo e associativismo urbanos, do Ministério do
Trabalho e Emprego para a Secretaria da Micro e Pequena Empresa.

15 -  BRASIL. Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior – Secretaria de Comércio e


Serviços. Portaria nº 29, de 5 de outubro de 2010. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil],
Brasília, DF, n. 192, 5 out. 2010. Seção 1, p. 100/102.
16 -   BRASIL. Projeto de Lei nº 865, de 31 de março de 2011. Altera a Lei nº 10.683, de 28 de maio de
2003, que dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios, cria a Secretaria
da Micro e Pequena Empresa, cria cargo de Ministro de Estado e cargos em comissão, e dá outras pro-
vidências. Brasília, DF. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitac
ao?idProposicao=496725>. Acesso em: 30 out. 2011.

89
Este movimento, no entanto, manterá o Programa do Artesanato
Brasileiro no escopo empresarial, como empreendedor individual ou
micro e pequena empresa.
Por outro lado, oito projetos de lei relativos ao setor artesanal tramitaram
no Congresso Nacional, desde os anos 1990. A maioria deles tratou da
“profissão de artesão”, diferentemente do enfoque empresarial mantido pelo
governo federal nos últimos 16 anos.

Projetos sobre a profissão de artesão apresentados ao Congresso

Apesar de prevalecer o entendimento de que seria fundamental envolver


os artesãos e suas organizações nos processos de discussão, grande parte
das instituições deparava-se com a dificuldade de identificar e localizar
o artesão e seus representantes, devido à sua dispersão e à falta de um
cadastro que facilitasse o contato.
No final da década de 1980, até o início da década de 1990, simul-
taneamente à implantação de medidas governamentais para o fomento
do setor, houve uma significativa movimentação dos artesãos, criando
diversas entidades de representação de âmbito estadual, e foi articulada
a União Nacional dos Artesãos.
Até 1995, artesãos de diversos estados se mobilizaram para intervir
na tramitação de projetos de lei no Congresso Nacional. A partir daí as
organizações de artesãos foram perdendo fôlego, em contrapartida ao
avanço da participação dos técnicos das instituições que se tornaram
“porta-vozes” dos seus interesses, construindo uma ampla rede de instrutores,
consultores e prestadores de serviços que passaram a substituir os artesãos
nas discussões e iniciativas de desenvolvimento de políticas públicas para
o setor artesanal.
A partir de 1990, tramitaram e foram arquivados sete projetos de lei
no Congresso Nacional.17 São eles:

1. Projeto de Lei nº 5.580, de 1990, de autoria do deputado Afif


Domingos, que “dispõe sobre o exercício da profissão de artesão
e dá outras providências”. O projeto foi arquivado nos termos do
artigo 105 do Regimento Interno;

17 -   QUEIROZ, Ângelo Azevedo. A legislação existente no Brasil que dispõe sobre a profissão de artesão, e os
projetos sobre a matéria apresentados no Congresso. Brasília: Câmara dos Deputados, 2004. 13 p. fac-símile.

90
2. Projeto de Lei nº 1.089, de 1991, de autoria do deputado Avenir
Rosa, que regulamenta a profissão de artesão. Essa proposição
foi arquivada pelo término da legislatura, embora tenha recebido
parecer favorável do relator da Comissão de Trabalho, Adminis-
tração e Serviço Público;
3. Projeto de Lei nº 1.847, de 1991, de autoria do deputado Samir
Tannus, que “dispõe sobre o exercício da profissão de produtor
artesanal e dá outras providências”. O projeto foi arquivado pelo
término da legislatura;
4. Projeto de Lei nº 3.096, de 1992, de autoria do deputado Clóvis
Assis, que “dispõe sobre as associações ou cooperativas de traba-
lho artesanal e dá outras providências”. O projeto foi arquivado
nos termos do artigo 105 do Regimento Interno;
5. Projeto de Lei nº 1.311, de 1995, de autoria do deputado Paulo
Rocha, que “regulamenta a profissão de artesão e dá outras pro-
vidências”. Esse projeto foi rejeitado pela Comissão de Trabalho,
Administração e Serviço Público e arquivado; e
6. Projeto de Lei nº 3.926,18 de 2004, de autoria do deputado
Eduardo Valverde, que “institui o Estatuto do Artesão, define
a profissão de artesão, a unidade produtiva artesanal, autoriza
o Poder Executivo a criar o Conselho Nacional do Artesanato
e o Serviço Brasileiro de Apoio ao Artesanato e dá outras
providências”. Conforme estudo do consultor legislativo Ângelo
Azevedo Queiroz, tratou-se de um projeto de mais fôlego (possui
21 artigos, distribuídos em quatro capítulos e um anexo que lista
as atividades artesanais).
7. No âmbito do Senado Federal, existiu o Projeto de Lei nº 57, de
2002, que “dispõe sobre a profissão de artesão”. O projeto mereceu
parecer contrário da Comissão de Assuntos Sociais e foi arquivado.

O Projeto de Lei nº 3.926, de 2004, de autoria do deputado Eduardo


Valverde, foi arquivado em 31 de janeiro de 2011. Foi o melhor projeto que
tramitou no Congresso Nacional. Ainda assim, apresentava alguns problemas:
1) o projeto de lei era quase uma cópia do “Decreto nº 41, de 2001,

18 -   BRASIL. Projeto de Lei nº 3926, de 07 de julho de 2004. Institui do Estatuto do Artesão, define a
profissão de artesão, a unidade produtiva artesanal, autoriza o poder executivo a criar o Conselho Na-
cional do Artesanato e o Serviço Brasileiro de Apoio ao Artesanato e dá outras providências. Disponível
em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=260275>. Acesso
em: 30 out. 2011.

91
da Legislação de Portugal, que veio definir o Estatuto do Artesão e da
Unidade de Produção Artesanal, tanto pela sua técnica legislativa, pela
extensão e disposição de seus comandos normativos (capítulos e seções),
como pelos conceitos que adotou”;19 e 2) no projeto de lei não havia
nenhuma referência ao enquadramento do artesão na Previdência Social,
um dos temas de maior interesse dos artesãos.
Em 2006, a deputada Perpétua Almeida apresentou o Projeto de
Lei nº 7.388, de 2006,20 oitavo a ser apresentado, que “dispõe sobre a
regulamentação da profissão de artesão e cria o dia nacional do artesão”.
Ele tramitou simultaneamente ao Projeto de Lei nº 3.926, de 2004.
Comparando os dois textos, verifica-se que o PL nº 7.388/2006 possuía
o mesmo teor do outro, apresentando 14 artigos em contraposição aos 21
artigos do PL nº 3.926/2004, além de conter alguns artigos com redação
idêntica. A diferença entre os dois tratava-se da instituição do Dia Nacional
do Artesão, em 19 de março.
Em 29 de agosto de 2011, a Mesa Diretora da Câmara dos Deputados
remeteu o PL nº 7.388/2006 ao Senado Federal, através do Of. nº 225/11/
PS-GSE. Verifica-se, no entanto, que a redação final apresentada pelo relator
na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, deputado Mauro
Benevides, restringiu-se à instituição do Dia Nacional do Artesão, suprimindo
todos os artigos que definiriam um marco legal para o setor artesanal.

Conclusão

O artesanato está na pauta de discussão de instituições e organizações


de todo o país e é objeto dos seus projetos há mais de 20 anos. No entanto,
esses “são elaborados sem a participação dos artesãos [...]. Mesmo quando
ocorre alguma colaboração no levantamento das necessidades das comuni-
dades artesãs ou na própria elaboração dos projetos incentivados, isto não
necessariamente implicará sua participação decisória”.21

19 -   QUEIROZ, Ângelo Azevedo. A legislação existente no Brasil que dispõe sobre a profissão de artesão, e os
projetos sobre a matéria apresentados no Congresso. Brasília: Câmara dos Deputados, 2004. 13 p. facsims.
20 -   BRASIL. Projeto de Lei nº 7.388, de 1º de agosto de 2006. Dispõe sobre a regulamentação da pro-
fissão de artesão e cria o dia nacional do artesão. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposi-
coesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=331859>. Acesso em: 30 out. 2011.
21 -   FREEMAN, Claire Santanna. A cadeia produtiva da economia do artesanato. Rio de Janeiro: E-
-livre, 2010. Disponível em: <http://www.gestaocultural.org.br/livros-online-economia-da-cultura.asp>.
Acesso em: 30 out. 2011.

92
Tanto no Vale do Jequitinhonha quanto no restante do território nacional,
são realizadas intervenções junto aos artesãos por diversas instituições, sem
articulações entre si, sobrepostas e apresentando resultados pontuais.
Persiste, ainda, a falta de políticas públicas que contribuam de fato para
o fomento da atividade artesanal, levando em consideração suas peculiaridades
e o seu reconhecimento enquanto atividade econômica de base cultural.
Corroborando Freeman, o Estado talvez esteja investindo em ações
parcialmente inclusivas, negando ao artesão a oportunidade de desenvolver
habilidades em gerir e procurar soluções próprias, o que sustenta um
processo dirigido e submisso, que desarticula processos de desenvolvimento
da autogestão entre os artesãos e os mantém lentos e passivos.
Observando os resultados de trabalhos institucionais junto aos artesãos,
percebe-se a uniformização dos produtos, invertendo o processo de criação
para o atendimento das “demandas de mercado”. Cabe esclarecer que hoje pre-
valece o entendimento de que o valor do produto artesanal no mercado se deve
à sua identidade cultural e à sua diferenciação dos produtos em grandes séries.
Depois de todas as experiências e informações acumuladas até aqui,
pode-se concluir que existem diversas alternativas para o fomento do arte-
sanato no país. A articulação e o diálogo entre os diversos atores que atuam
no setor artesanal são necessários para se definir que caminho será trilhado.
Mobilizar o artesão, criando as condições necessárias para que tenha
acesso às informações e possa participar da formulação das políticas públicas
do seu interesse, talvez seja a iniciativa de maior relevância neste momento.
As redes sociais e as tecnologias da informação facilitam processos dessa
natureza e favorecem o desencadeamento de um movimento que promova am-
pla discussão, mais clara e objetiva; a criação de uma plataforma de trabalho
em âmbito nacional que possibilite o reconhecimento da relevância do arte-
sanato e do artesão em todas as suas dimensões: econômica, social, cultural
e ambiental, entre tantos outros aspectos transversais; e dê o impulso neces-
sário para o desenvolvimento e a efetivação de políticas públicas adequadas.

Maria Dorotéa de Aguiar Barros Naddeo é especialista em Desenvolvimento


de Cooperativas, Educação Ambiental e Metodologia do Ensino Superior.
É diretora executiva da Fundação Matutu e diretora da Canela de Ema.
Foi coordenadora-geral de Micro, Pequena e Média Empresa Industrial e
Artesanal e diretora substituta do Departamento de Micro, Pequenas e
Médias Empresas/Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio
Exterior de 2007 a 2010. No Sebrae/MG, entre 2000 e 2005, coordenou
o Programa de Artesanato.

93
Artesanato e cultura no Vale
Palestra Ulisses Mendes

É um prazer estar aqui no grupo, me sinto em família. Como diz Tadeu


Martins, o artista, o artesão, quando se reúne, se encontra, se sente agru-
pado na sua própria família. Nós, artistas e artesãos, a gente goza dos dois
lados, parentescos culturais e também nossa família.
Quando começamos a descobrir a cultura popular do Vale Jequitinhonha,
que já existia há muito e muitos anos, eu fazia o artesanato em Itinga, e
depois comecei a “sair pra fora” pra vender o artesanato. Acreditei que aquilo
dava mesmo para a sobrevivência. E foi dramático até o jeito de eu relatar
esse lado cultural meu, porque eu comecei em 20 de março de 1979; sou
profissional desde essa época, nunca mais eu parei pra fazer outra atividade,
vivo de arte. Mas por que essa data? Porque o Rio Jequitinhonha inundou as
cidades todinhas, Araçuaí e Itaobim, etc.
A enchente foi muito traumática devido a uma seca prolongada que
teve e, quando choveu, choveu demais; e o rio saiu alagando tudo e todas as
cidades. Enquanto o povo chorava, eu me divertia com a beleza das águas
rolando sobre as casas, entortando, pois casa de pau a pique que não caiu,
se envergava, se entortava. E as de adobe caindo.
Enquanto o povo chorava, eu andava com uma canoinha em volta das
ruas e até fiz uma música, na época cantava o próprio costume, a convi-
vência da gente. A cultura da gente é isso, “nós cantamos” nós “mesmos”,
fazemos os versos, fazemos os cantos sobre casos da nossa própria vida.
Então comecei a fazer cabaninhas de pau a pique imitando a lembrança
da inundação de 1979. Em Araçuaí descobri os outros artesãos, aí acreditei
que não estava sozinho, que tinha gente fazendo artesanato igual a mim. Pa-
rece que a natureza manda a gente pra certa missão e você tem que cumprir
aquilo. A partir daí comecei a fazer as esculturas criticando a situação do Vale.
O Vale para mim não era pobre, o Vale era bonito. Aqueles costumes, os
hábitos, o jeito de o homem pobre viver e contar caso sem ter vergonha de nada.
Isso pra mim é riqueza cultural. Também comecei a cantar e fazer músicas fa-
lando da vida do homem do campo. A primeira música que inscrevi no Festivale
tive o prazer de concorrer com Rubinho do Vale, Paulinho Pedra Azul, Tadeu
Franco, só fera da música popular, e lá estava eu com minha violinha. Ô dó!
Então cantei a música “O filho do lavrador”, que é uma crítica social,
pois, naquela época, o homem do campo era jogado de lado, não tinha apoio

94
político, realmente tudo o que eles tinham era como se fala no Vale: só tem
como herança a claridade do sol e da lua”; e criei uma peça baseada nisso.
Retirante da seca foi uma das primeiras peças que criei vendo uma família
que passava com sacos nas costas, a pé. Passou lá perto de casa, acampou, no
outro dia seguiu pra Coronel Murta. E também minha mãe contou uma história
que realmente aquilo me fixou mais a ideia de fazer a peça Retirante da seca.
Minha mãe saiu “mais” minha avó, “mais” meu avô, “mais” outro
irmãozinho de Itinga a Fronteiras dos Vales, que naquela época chamava
Pampam, mais ou menos 180 quilômetros. Então eles fizeram essa caminhada
entrando de Itinga a Ponto dos Volantes, de Ponto dos Volantes a Santana, a
Joaíma, de Joaíma a Felisburgo. Minha mãe conta que quando estava quase
chegando a Itinga deixou uma panelinha de barro cair da cabeça dela.
As mulheres lá têm muito “equilibro” na cabeça, “solta” a trouxa, o
pote na cabeça, uma arte de sobrevivência, aí essa panelinha caiu. Com
isso bolei a Retirante da seca.
Cristo sertanejo é uma peça que montei baseada no bordão das mu-
lheres que “diz”: “Minha vida é cruz que carrego”. Ah, esse filho vivo carre-
gando uma cruz, mas de uma forma alegre, cultural. Depois fiz A mulher do
fogão, uma peça que repercutiu muito. Em seguida fiz a A mulher do marido
vivo, quem já ouviu falar da “Viúva do marido vivo”? A viúva do marido vivo
são mulheres que ficam no Vale pros maridos “ir” pra São Paulo, pro corte
de cana, pra Goiás e Mato Grosso. E naquela época não tinha telefone ce-
lular. O telefone fixo, só alguns. Um dia, o marido da Alzira ligou pra ela, já
tinha três anos que não vinha à cidade.
– Alô, mulher!
– Prepara os quartos que estou indo com quatro amigos.
Ela:
– O quê, marido?
– Prepara os quartos que estou indo com quatro amigos.
Ela:
– O que você está falando, marido?
– Prepara as camas, mulher.

Então é o costume, os quartos são as camas. Esse foi o primeiro tele-


fonema em Itinga no Vale Jequitinhonha.
E também uma peça muito bonita que repercutiu bem foi Tropeiro de
cantiga. O primeiro Festivale que Rubinho ganhou com a música “Juro eu
sou assim tropeiro de catinga que mudou de vida pra ser cantador...”. Aí eu
falei “que peça bonita, uma história bonita dessa não posso perder”. Então

95
bolei o Tropeiro de cantiga, que é um burrinho e um homem sentado na
garupa tocando uma viola. Hoje o caminhão tomou esse espaço do tropeiro,
das canoas, aí o tropeiro foi cantar com saudade. O pessoal inventa seus
próprios cantos através da saudade. O camponês do Vale do Jequitinhonha,
ele se inspira diante da sua convivência. Eu aprendi muito com homem do
campo, sou pesquisador da cultura do homem do campo. Eu preciso ir lá,
o dia que não vou à zona rural eu não trabalho bem.
No Rio de Janeiro, um dia, eu estava expondo num shopping. Me
coloquei todo caipira, cinto de fivelão, bota de couro, camisa xadrezinho e
chapéu de couro na cabeça, no shopping center no Leblon. Uma organização
muito benfeita do pessoal do shopping. E chegou uma família, umas moci-
nhas, olhavam pras peças e olhavam pra mim e eu disfarcei um pouquinho
pra elas ficarem à vontade. Aí uma falou assim: “Olha, mãe, como ele está
do jeitinho das peças dele”. Aí menina vai e arrisca uma pergunta:

– Posso fazer uma pergunta?


Falei:
– Pode.
– Você é de onde?
– Do Vale do Jequitinhonha.
– É longe?
– É longe, daqui lá é longe.
– Como são vocês lá?
Eu falei:
– Lá, menina, nós somos uma população muito grande, tudo assim
mais ou menos do jeito que você está vendo.

Nesse dia saiu uma notícia no Jornal do Brasil, do estado do Rio de


Janeiro. Saiu um destaque falando assim: “Arte que vem da fome”. Isso me
feriu muito, até chamei o pessoal lá da organização; eu falei: “Quero direito
de resposta nisso aí, porque realmente a gente não está pedindo esmola,
nós estamos aqui vendendo arte”. O pessoal disse: “Não, você não tem di-
reito de resposta porque quem deu essa entrevista aí foi o presidente da
Codevale, e vocês, artesãos, não podem dar essa resposta não”.
A vida da gente continuava com os coronéis, chegou um fazendeiro
lá em casa um dia e, vendo lá os caipiras na prateleira, os sertanejos,
disse: “Você tem que fazer aqui, rapaz; é um cavalo bem bonito, imitando
um cavalo de raça com o moço na garupa montado, elegante, de chapéu
social na cabeça, roupa de terno”.

96
Eu falei:
– Vem cá, o senhor vai me comprar essa peça?
– Não, estou te falando porque deve ficar muito bonito.
Aquilo me fez sentir ofendido com meus tropeiros e meus sertanejos
caipiras. Eu falei:
– Tudo bem, vou fazer a peça pro senhor, quer ver?
– E fiz a peça.
O pacto com diabo. Eu fiz o cara social com a maleta na mão, aquele
símbolo do dinheiro na maleta. E o cavalo? A cara do cavalo... nunca vi capeta
na minha vida, mas desenhei o capeta. O pessoal fala que o capeta é chifrudo;
coloquei dois chifres nele. Falam que é bocudo, que é carrancudo, eu falei:
– Vou fazer desse jeito... o pessoal fala que é.
Aí fiz, no lugar da cara do cavalo fiz a cara de uma pessoa, com presas,
com dentes dando aquele sinal que vai levar esse cara pro inferno, e o resto
do corpo era cavalo. Do outro lado fiz um tropeiro com o cavalo com cara de
um anjo. A mulher assim, olhando pro céu, e um sertanejo montado em pelo
no cavalo, com machadinho na mão.
Mas foi muito bonito esse cenário. E chamei o sujeito pra ver a peça.
– Vem cá, já fiz.
– Você já fez?
– Já fiz, vamos lá ver.
Quando ele chegou lá em casa que ele viu as duas peças. O que ele me
pediu apresentado no Pacto com o diabo e a resposta que era o homem do campo
indo pro céu. O burguês indo pro inferno e o sertanejo indo pro céu. Aí ele falou:
– Não é assim que pedi pra você fazer não, rapaz.
Falei assim:
– Quando o senhor pediu “pra eu fazer o burguês dessa forma, eu só
enxerguei esse cenário aí, é assim que enxerguei. Essa peça está no site
“Arte do Vale”, tem lá eu contando esse causo.
Então a cultura do Vale é essa, a gente passou por muita dificuldade
mesmo sobre criticar e consertar o Vale do Jequitinhonha. O Vale do
Jequitinhonha hoje está desenvolvido, mas foi através da música, da
poesia, do artesanato e muita luta mesmo da gente se reunindo pra fazer
os movimentos culturais. Os poetas falando nas suas poesias e nós falando
no barro, e os cantadores na música e com isso estamos fazendo 30 anos
de movimento cultural.
Eu até me orgulho de eu mesmo estar resistindo a esse tanto de
tempo. Pois viver de arte esse tanto de tempo não é brincadeira, porque
muitos colegas meus já desistiram. Eu já pensei em desistir também,

97
quando penso em desistir chega um convite desse aí, como esse semi-
nário. Isso que alimenta a gente. Nasci de uma família de foliões, muitos
foliões contadores de catira pessoal, garimpeiro que viveu lá nas margens
do Rio Jequitinhonha; o meu pai era garimpeiro de diamante e pescador.
E subia rio acima lá pra Coronel Murta, andava 100 quilômetros, 150, 200
quilômetros rio acima e rio abaixo.
Nessa semana passada eu fui a Almenara, de Itinga a Almenara de
moto, lá a gente beira o Rio Jequitinhonha, é bonito, e eu olhando o Rio
Jequitinhonha e pensando assim:
– Meu Deus! Meu pai passou aqui de canoa, o rio dando aquelas voltas.
Só de asfalto 152 quilômetros de ida e volta e esse pessoal vivia essa vida na
maior tranquilidade.
A gente lutou muito pra poder manter essa cultura até onde a gente
está conseguindo trazer hoje. Chamamos vocês, Terezinha e Marizinha, de
anjos da guarda da gente, porque incentiva a manter a arte da gente e a
continuar fazendo e contando esses causos.
Em minha oficina de técnica, a gente conta esses causos interessantes
que aprendemos dos nossos avós.

Ulisses Mendes, “cronista da Cerâmica do Vale do Jequitinhonha”, é


dono de um discurso articulado sobre o papel do artista na sociedade
atual. Líder comunitário atuante, foi um dos fundadores da Federação das
Entidades Culturais e Artísticas do Vale do Jequitinhonha (FECAJE), que
até hoje, junto às entidades associadas, tem sido o elo que mantém vivo
o sonho de se fazer cultura popular no Vale e, acima de tudo, cumpre o
papel de conscientizar a opinião pública sobre os valores e as tradições
da região. Foi também um dos fundadores da Associação Comunitária
de Itinga, sua terra natal, liderando-a por 15 anos e combatendo,
principalmente, o ‘‘coronelismo” em seu município.
Fala com veemência sobre as dificuldades enfrentadas pelos mais pobres
que se dedicam à agricultura. Participa de seminários, ministra palestras
e oficinas de cerâmica divulgando a cultura e o estilo de moldar, pintar
e queimar o barro no Vale Jequitinhonha.

Aprendeu a trabalhar o barro com seus parentes, que à época faziam


potes, bulhões e objetos utilitários. Em sua obra, privilegia as cenas
dramáticas da vida rural. Cada peça tem uma história, cada peça é um
personagem: os retirantes da seca, a parteira, a lavadeira, o caipira,
sertanejo, o caçador, o vaqueiro e os lavradores crucificados. A maneira
peculiar como traduziu o sofrimento dos trabalhadores do campo tornou
seus “crucificados” uma referência da arte do Vale Jequitinhonha.

98
Associativismo: uma possibilidade de fomento ao
artesanato do Vale do Jequitinhonha
Renata Vieira Delgado
Naiane do Santos Mendes

O Programa Polo de Integração da UFMG no Vale do Jequitinhonha,


por intermédio da Pró-Reitoria de Extensão, reafirma, desde 1996, a pre-
sença da Universidade no Vale do Jequitinhonha. O programa trabalha nas
perspectivas interdisciplinar e transdisciplinar, por meio do estabelecimento
de parcerias com instituições de ensino superior do estado e programas go-
vernamentais; da qualificação de recursos humanos locais; do envolvimento
de alunos de diversas graduações e pós-graduações da UFMG no programa;
da integração das atividades de ensino, pesquisa e extensão e da relação
transformadora entre universidade e sociedade.
Os projetos que compõem o programa estão alocados em seis eixos de
atuação: cultura, comunicação, educação, meio ambiente, saúde, desen-
volvimento regional e geração de ocupação e renda. Esta última área e a
cultura têm o artesanato como uma de suas principais bases.
O trabalho com o artesanato do Vale do Jequitinhonha inicia-se como
uma das primeiras ações do Programa Polo Jequitinhonha, em princípio na
busca de conhecimento sobre as manifestações culturais da região, em que,
de imediato, destacam-se as produções do rico artesanato em cerâmica,
tecelagem, bordados, madeira, couro, trançado, entre outros.
Em 2000 foi realizada a primeira Feira de Artesanato do Vale do
Jequitinhonha, durante a realização de evento acadêmico da UFMG hoje
chamado Semana do Conhecimento.
A partir de 2002, a coordenação do Programa decidiu pela realização da
feira na primeira semana de maio, que antecede a comemoração do Dia das
Mães, por ser um período excelente para comercialização do artesanato – em
suas diversas modalidades – e produtos de agroindústria (mel, queijo, doce,
conservas, etc.) da região do Jequitinhonha.
A feira vem sendo realizada ininterruptamente, chegando em 2011 à
sua 12ª edição.
No início da década de 2010, foi realizado o projeto Diagnósticos socio-
econômicos: novo paradigma, coordenado pelo prof. Roberto Nascimento Ro-
drigues, que possibilitou o levantamento das principais dificuldades dos ar-
tesãos. Entre elas, foram identificadas dificuldade: na organização em grupos

99
de produção, associações e cooperativas; em conquistas de locais para venda
de seus artesanatos, incluindo a participação em feiras; na divulgação de
seus trabalhos; e, em algumas comunidades, na obtenção de matéria-prima.
Com base nesse diagnóstico, foi elaborado o projeto Artesanato
Cooperativo: fortalecimento do associativismo para o desenvolvimento da
produção artesanal no Vale do Jequitinhonha, aprovado no Programa de
Extensão Universitária (PROEX) / Cultura 2008.

Projeto Artesanato Cooperativo

O projeto Artesanato Cooperativo, por meio do Programa Polo, desde


2008 vem criando oportunidades para que os artesãos repensem suas
práticas artesanais, busquem opções para a comercialização e obtenção de
matéria-prima, organizem-se em associações ou cooperativas e busquem
oportunidades e alternativas necessárias para melhoria do trabalho e,
consequentemente, da qualidade de vida.
O projeto abrange 44 associações de artesãos de 22 municípios do Baixo,
Médio e Alto Jequitinhonha, envolvendo, aproximadamente, 900 artesãos.
Sempre buscou alcançar seus objetivos através do trabalho conjunto. Sua
proposta de atuação é dividida em duas linhas de ações: uma voltada à Feira
de Artesanato na UFMG, buscando atender às demandas relacionadas a ela;
e a outra voltada às demandas apresentadas pelos artesãos.
Desde seu início, o projeto busca manter proximidade com as associa-
ções e prefeituras municipais. Para facilitar esse vínculo permanente, foram es-
colhidas três cidades, denominadas cidades-polo, que são visitadas pela equipe
do projeto periodicamente. São elas: Itaobim, para atendimento aos municípios
do Baixo e Médio Jequitinhonha; Turmalina e Diamantina, para atendimento
aos municípios do Alto Jequitinhonha. Essa estratégia facilita a locomoção e
o encontro de artesãos das associações participantes, o que favorece a partici-
pação em reuniões da maioria das associações envolvidas no projeto.
As viagens às cidades-polo têm duração de uma semana e, normal-
mente, cumprem as seguintes atividades: os dois primeiros dias são dedi-
cados à cidade-polo, onde ocorre uma reunião geral e visita(s) à prefeitura,
a associação(ões) e artesãos. Nos dias restantes, ocorrem visitas às prefei-
turas, associações e aos artesãos dos municípios mais próximos ao polo.
Depois desses contatos e de uma série de reuniões realizadas, algumas
demandas foram identificadas e a continuidade do projeto tem permitido a

100
sua resolução. Entre as mais significativas estão aquelas relacionadas ao
associativismo e à manutenção das relações interpessoais e administrativas
de uma associação.
Sobre o associativismo, os artesãos demonstram necessitar, principal-
mente, de esclarecimentos sobre: suas funções e benefícios; constituição e
legalização de associações e fortalecimento das associações. Perante dificul-
dades administrativas, eles demandam capacitações em contabilidade, em
planejamento e gestão, na divulgação dos trabalhos e comercialização, na
identificação e preparação de lideranças, na elaboração de projetos para cap-
tação de recursos em diversas fontes de financiamento, no aprimoramento
das técnicas artesanais e na melhoria de qualidade e preço do produto.
Considerando o artesanato um setor fundamental para geração de
renda, o trabalho desenvolvido pelo projeto Artesanato Cooperativo busca
contribuir para a solução dessas demandas por meio do fortalecimento e da
atuação autônoma das associações, capacitando-as para que resolvam os
principais problemas relativos à sua manutenção, produção e à comercia-
lização de seus produtos. Outra meta estabelecida pelo projeto é a prepa-
ração das associações para a busca de recursos nas mais variadas fontes
de financiamento, promovendo, assim, sua capacidade de planejamento,
gestão e estabelecimento de relações com os financiadores.

Associativismo

Um importante objetivo do projeto é, por meio do associativismo, incen-


tivar o fazer artesanal e tem como princípios o exercício da cidadania, o forta-
lecimento do artesanato e a afirmação da identidade cultural dos moradores
do Vale do Jequitinhonha. O Instituto de Desenvolvimento Social de Portugal
criou em abril de 2001 o Guia do Associativismo, que define:

O Associativismo é a expressão organizada da sociedade civil,


apelando à responsabilização e intervenção dos cidadãos em
várias esferas da vida social, e constitui um importante meio
de exercer cidadania. Trata-se de um movimento no qual as
pessoas se agrupam, em torno de interesses comuns, cons-
tituindo associações, entidades com personalidade jurídica
e com objetivos de inter-ajuda e cooperação. (PORTUGAL,
2001, p. 5, apud, LIMA, 2010, p. 22).

101
A organização em associações pode trazer muitas vantagens, que
vão além das relacionadas aos ganhos econômicos, pois visam defender
os interesses de um determinado grupo. Em suma, é uma maneira de for-
malizar a união de pessoas com interesses comuns que buscam melhores
condições de vida e de produção. Além disso, os ganhos eventualmente
obtidos deverão ser investidos na própria associação. No caso de uma
associação de artesãos, podem ser utilizados, por exemplo, na melhoria
ou obtenção de uma sede, na compra de equipamentos, nas despesas
com participações em feiras, em investimentos de cursos de capacitação
para os associados, etc.
Quando reunidos em um grupo fortalecido e bem estruturado, os cida-
dãos podem obter conquistas nos âmbitos político e social, melhorando de
fato sua qualidade de vida com a geração de ocupação e renda. O associati-
vismo promove, ainda, os artesãos, pois, ao adquirirem o status de associa-
dos, tornam-se gestores de suas atividades e dominam o processo produtivo
e econômico de seus artesanatos.

Feira de Artesanato do Vale do Jequitinhonha na UFMG

A Feira de Artesanato do Vale do Jequitinhonha na UFMG, que em


2011 comemorou sua 12ª edição, é realizada sempre no mês de maio, na
semana que antecede o Dia das Mães, na Praça de Serviços do Campus
Pampulha, onde ocorre grande circulação de pessoas. Tem o objetivo de fo-
mentar o artesanato das associações envolvidas no projeto, proporcionando
a elas condições de exposição e comercialização de seus trabalhos.
A partir de 2008, com a implementação do PROEX e atendimento das
demandas dos artesãos, foi desenvolvido um projeto especial para a feira,
que tem contribuído significativamente para seu resultado e consolidação.
Como forma de incentivo ao associativismo e à inclusão de um maior
número de artesãos na feira, foi decidido que, a partir daquele ano, só par-
ticipariam dela associações de artesãos, e não mais artesãos autônomos.
Assim, o layout dos espaços destinados à venda dos artesanatos também
foi reelaborado, organizado por municípios e devidamente identificado com
banners, dando maior destaque às associações.
A programação cultural, realizada pela Diretoria de Ação Cultural/UFMG,
passou a ter parceria com a equipe do projeto Artesanato Cooperativo, que
sugere artistas e representantes da cultura popular do Vale para as apre-
sentações que acontecem durante toda a semana.

102
Várias atividades fazem parte da programação da feira e têm o objetivo de
ampliar a divulgação dos trabalhos artesanais; proporcionar um intercâmbio
entre os saberes acadêmicos e os saberes populares dos artesãos; atuar no
reconhecimento e na valorização do trabalho dos “mestres de ofício” – artesãos
e artesãs que se tornaram referência do fazer artesanal em suas comunidades.
Entre as atividades realizadas, destacamos as oficinas oferecidas para
a comunidade em geral e ministradas pelos artesãos, como a confecção de
peças em cerâmica, trabalhos feitos no tear, bordados, trançados em geral – de
modo a demonstrar as técnicas artesanais utilizadas nos trabalhos expostos
para venda; e oficinas de qualificação e ampliação do conhecimento artesanal
direcionadas aos artesãos, realizadas na Escola de Belas Artes.
As homenagens aos mestres de ofício e seus municípios acontecem
desde 2009. A cada ano, a equipe elege dois municípios para serem des-
taques na feira, sendo que a escolha dos mestres é feita de forma coletiva
entre os organizadores e as associações. Com a colaboração dos patrocina-
dores e apoiadores, tem sido possível criar um espaço especial para home-
nagear os municípios e seus mestres.
Em 2009, foram homenageados o mestre Ulisses Pereira, ceramista
da comunidade de Santo Antônio, município de Caraí, in memoriam, re-
presentado por sua esposa, Dona Maria Alves Silva; e a mestra Nildete
Mendes Maciel (Dona Duquinha), do município de Turmalina. Em 2010,
foram homenageadas a mestra Josefa Alves dos Reis (Zefa), que faz arte-
sanatos em madeira, residente do município de Araçuaí; e a mestra Ana
Fernandes de Souza (Ana do Baú), ceramista do município de Minas Novas.
Em 2011, foram homenageadas Dona Elzi Gonçalves Pereira (Dona Zizi),
paneleira do município de Jequitinhonha, distrito de Guaranilândia; e Dona
Geralda Leite Sena, fiandeira do município de Francisco Badaró. Nem todos
os mestres puderam estar presentes durante todo o período da feira, devido
a debilitações relacionadas à saúde, mas para todos eles foram produzidos
filmes documentais sobre suas trajetórias artesanais. Estes são exibidos
durante toda a semana no estande de seu município de origem, com a
promoção de atividade formal de apresentação dos mestres à comunidade
universitária, exibição de seus documentários e premiação simbólica.
A equipe do projeto acompanha a feira em tempo integral, criando
assim um espaço para observação e diálogo com os artesãos. Além disso,
acontecem dois fóruns de discussão e avaliação com todos os representantes
das associações que participam da feira.
O trabalho de divulgação tem sido ampliado a cada ano. Em 2011,
foi realizada uma parceria com o projeto Suporte de comunicação, também

103
integrante do Programa Polo Jequitinhonha, para concepção da identidade
visual, comunicação e divulgação da feira. Foram realizadas divulgações
em jornais e TV, entrevistas em redes televisivas e de rádio. Foram criadas
várias peças gráficas (banners, flyers, cartazes, pôsteres) e vídeo. A equipe
do projeto acredita que essa parceira contribuiu muito para o aumento sig-
nificativo das vendas de 2011, que alcançaram o valor de R$ 170.000,00.
A Feira de Artesanato do Vale do Jequitinhonha da UFMG é conside-
rada pelos artesãos uma das mais importantes das que participam, tanto
no que se refere à lucratividade quanto à experiência de trocas entre os
artesãos de diversos municípios, a convivência no campus da universidade.
O gasto das associações com a feira na UFMG é baixo ou até inexistente,
uma vez que as articulações do projeto com as prefeituras dos municípios
e patrocinadores permitem viabilizar transporte, alojamento, alimentação
e assistência à saúde dos artesãos durante a estadia destes na capital e no
espaço para exposição e venda de seus trabalhos.

Guias

Em atendimento a solicitações dos artesãos participantes na Feira de


Artesanato, foram elaborados guias para serem distribuídos gratuitamente
às associações com o objetivo de orientá-las.
Em 2009, foi elaborado e distribuído às associações o Guia de
oportunidades para associações e artesãos, do qual constam informações
sobre políticas de financiamento para o artesanato, listagem das instituições
que trabalham na região, feiras e exposições em Minas e no Brasil e editais
de financiamentos.
A partir de 2010, surgiu a proposta de construção do Guia para
associações – roteiro para constituição e legalização de uma associação de
artesãos, o qual passou a ser desenvolvido pelos estudantes de graduação
envolvidos no projeto, por meio de pesquisas teóricas, orientações de
profissionais, consultas periódicas aos artesãos, orientações junto ao
Ministério Público e órgãos governamentais envolvidos no processo de
formalização de associações e cooperativas.
O Guia para associações busca incentivar o associativismo e a eco-
nomia solidária e explicita, principalmente, um conjunto de informações
importantes para constituição, legalização e consolidação de uma associa-
ção. Sua abordagem é clara e objetiva, adequando, na medida do possível,

104
a linguagem e editoração ao público-alvo de leitores, que em sua maioria
possui pouca escolaridade.
O projeto gráfico foi elaborado de forma a valorizar o artesanato e os
artesãos do Vale do Jequitinhonha, utilizando-se cores características dos
trabalhos da região e fotografias que ilustram e enriquecem seu conteúdo,
em sua maioria de artesanatos trazidos à 12ª feira.
O Guia apresenta as principais diferenças, vantagens e desvantagens
entre constituir associações e cooperativas; explicita os princípios do asso-
ciativismo, os direitos e deveres dos associados; as etapas para formação
de uma associação; orientações sobre a elaboração do estatuto social, re-
gimento interno, livros-diário, livro de presença, livro de atas das assem-
bleias, de atas do conselho fiscal, de atas das reuniões da diretoria, de atas
do conselho consultivo.
A primeira versão foi apresentada em reuniões nas três cidades-polo.
As sugestões foram incorporadas e uma nova versão foi apresentada aos
artesãos durante a 12ª Feira, a qual foi analisada e modificada, posterior-
mente, com o acréscimo de algumas sugestões apresentadas por eles.
A elaboração do Guia foi marcada pelo diálogo, proporcionando uma
rica troca de saberes e experiências entre artesãos, técnicos e universitários
de diversas áreas de graduação: Ciências Sociais, Artes Visuais, Pedagogia,
Letras, Cinema de Animação e Artes Digitais. A prática contribuiu consi-
deravelmente para a compreensão das relações sociais, gerando, assim,
reflexões ricas e amadurecimento a todos.
Após o lançamento do Guia para associações – roteiro para constituição
e legalização de uma associação de artesãos no seminário Visões do Vale VI,
em 2011, também está previsto seu lançamento nas cidades-polo, contem-
plando maior participação das comunidades locais.

Conclusão

O referido projeto de extensão tem sido fundamental para ampliar o


entendimento do conceito de associativismo, o fortalecimento das relações
entre artesãos e, consequentemente, a promoção do artesanato do Vale do
Jequitinhonha. Uma de suas metas é o incremento e a consolidação do
caráter cultural identitário do fazer artesanal.
Com questionários aplicados, reuniões realizadas e elaboração de
diagnósticos participativos que relatam a melhoria de alguns problemas

105
enfrentados pelas associações, citados no presente texto, podemos afirmar
que as ações do projeto incentivaram os artesãos a se fortalecerem em um
sistema cooperado de produção e a buscarem alternativas e possibilidades
de comercialização dos produtos e de captação de recursos.
A organização em associações trouxe aos artesãos, além de ganhos
econômicos, uma relação de respeito mútuo e de confiança entre os
associados, pilar de sustentação de uma associação. Entre as associações
envolvidas, observamos que algumas alcançaram avanços significativos
quanto a sua organização no que diz respeito às relações interpessoais,
às relações com órgãos municipais, demais parceiros e até mesmo entre
associações de um mesmo município. Várias delas, hoje, estão capacitadas a
se candidatar e firmar convênios com órgãos públicos e a iniciativa privada.
Algumas que estavam fechadas foram reativadas e outras se encontram em
processo de legalização.
Observamos, portanto, que melhorar essas relações é de extrema impor-
tância para alavancar o movimento associativista, estabelecendo-se contatos
e acordos saudáveis e mútuos também entre associações próximas, unidas
para mudanças e conquistas de resultados como o desenvolvimento econô-
mico regional e social e maior visibilidade da produção artesanal da região.
A relação entre a área econômica da cultura e a extensão universitária
é promissora. Sua continuidade garantirá que os resultados cresçam da
dedicação e esforço da equipe e do investimento direcionado para a ação.

Referências

FRANÇA, Bárbara; BARBOSA, Érica; CASTRO, Rafaelle; SANTOS, Rodrigo.


Guia de economia solidária: ou porque não organizar cooperativas para
populações carentes. 1. ed. Niterói: UFF, 2008.

FURIATI, Terezinha Maria et al. Guia de oportunidades para associações


e artesãos. Disponível em: <www.ufmg.br/polojequitinhonha>. Acesso em:
15 out. 2011.

HENRIQUES, Márcio Simeone. Ativismo, movimentos sociais e relações públi-


cas. In: KUNSCH, Margarida M. K.; KUNSCH, Waldemar L. (Org.). Relações
públicas comunitárias: a comunicação em uma perspectiva dialógica e trans-
formadora. 1. ed. São Paulo: Summus, 2007. p. 92-103.

106
HENRIQUES, Márcio Simeone; MAFRA, Rennan Lanna Martins; BRAGA,
Clara Soares; SILVA, Daniela Brandão do Couto e (Org.). Comunicação e
estratégias de mobilização social. 1. ed. Pará de Minas: Gênesis, 2002. 92 p.

HENRIQUES, Márcio Simeone; WERNECK, Nísia Maria Duarte (Org.). Visões


de futuro: responsabilidade compartilhada e diálogos com a comunidade.
1. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. 112 p.

LISBOA, T. C.; BONASSI, S. A. O associativismo como estratégia competitiva


no varejo: um estudo de caso na AREMAC – AM – Associação Regional
de Material de Construção da Alta Mogiana. Revista Eletrônica da
Administração – Facef, v. 2, n. 3, 2003. Disponível em: <http://www.facef.
br/rea/edicao03/ed03_art03.pdf>. Acesso em: 15 out. 2011.

OLIVEIRA, Claudia Ribeiro. Repercussão do conhecimento adquirido em


oficinas de artesanato nas finanças familiares dos artesãos e artesãs do
Vale Jequitinhonha. 2007. Monografia. Faculdade de Ciências Econômicas/
Centro de Pós-graduação e Pesquisa em Administração, Universidade Federal
de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2007. Disponível em: <http://www.ufmg.br/
proex/documentosdb.php>. Acesso em: 17 out. 2011.

PORTUGAL. Ministério do Trabalho e da Solidariedade. Instituto para o


Desenvolvimento Social. Guia para o associativismo. Lisboa: IDS, 2001.

Renata Vieira Delgado é graduanda em Cinema de Animação e Artes


Digitais pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e em Educação
Artística pela Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). Atua
como bolsista no Programa Polo de Integração da UFMG no Vale do
Jequitinhonha/PROEX-UFMG.
Naiane dos Santos Mendes é graduanda do curso de Pedagogia da UFMG
e bolsista na Diretoria de Ação Cultural/UFMG.

107
Festa do Rosário em São Gonçalo do Rio das Pedras.

AS MÚLTIPLAS EXPRESSÕES DO VALE


Histórias orais: linguagem de desejos
Vera Felício

“A vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda,


e como recorda para contá-la.”
Gabriel García Marquez

Há algum tempo, especificamente, 25 anos atrás, descobri o denso sig-


nificado das histórias orais. Aconteceu quando, a caminhar pelas estradas
então vermelhas e poeirentas do Vale do Jequitinhonha, desejava conhecer
e ouvir os velhos contadores de uma região por muito tempo desconhecida
por suas manifestações de arte, mas bem conhecida pelas questões sociais
e dificuldades. Problemas estes que, herdados do processo de colonização,
permaneceram graves e, atravessados pelo abandono governamental, cas-
tigaram a população no correr do tempo.
O trabalho de pesquisa tinha a intenção de registrar histórias, casos,
adivinhas, provérbios e romances que são contados à beira do fogão de lenha,
no calor das fogueiras de bate-papo, nas reuniões comunitárias e festas
religiosas. O objetivo era obter um corpus da literatura popular da região, a
fim de entender como fora moldado, no inconsciente de inúmeras e diversas
gerações, o histórico espaço-tempo vivenciado e determinado por conflitos
entre os setores dominantes em busca de cargos e privilégios, ou entre estes
e as camadas dominadas: escravos, homens livres e desclassificados sociais.
Buscava-se caracterizar, nos contos orais, como se inscreveram, na memória
do povo, as agruras vividas por seus ascendentes e de que forma foram
transmitidas as experiências, dores, conselhos, advertindo-se quanto às
consequências, presentes ainda no longo sofrimento da região.
Perante a complexidade cultural observada, instigava-me a identidade
daquela gente que se mantinha forte, alegre, receptiva e solidária no enfren-
tamento de inúmeras dificuldades. Pretendia-se compreender e analisar,
nessas histórias, como se contou a distorção social e a recidiva permanente
da concentração de renda. Base sólida, a história do Vale gerou interes-
se, assim como a tradição herdada de avós e bisavós tornou-se motivo de
orgulho e âncora para os grupos populacionais. Aquilo que se ouviu e leu
passou a ser recriado e modificado pela imaginação, permitindo aos des-
cendentes que se lancem, com dignidade e força, no desejo de conquista de
futuro melhor. Os que não tiveram acesso ao ouro, ao diamante e à educação

110
apossaram-se da palavra. E palavra é ato, um ato inicial criador que autoriza
contar o passado a fim de viver desejos, sonhos e, na visão do que foi narra-
do, garimpar a viva esperança de transformar o verbo das novas gerações. A
palavra-ato mescla contos universais com mitos e características históricas,
transmutando as histórias, os casos, as fábulas e lendas conforme o modo
particular de ver, pensar e agir. E estes nunca serão repetidos à letra, como
anteriormente ouvidos, e modificam-se em função de um objetivo e de expe-
riências pessoais do contador.
Ao ouvi-los, conheci muitos narradores: homens e mulheres magros,
de pele enrugada, queimados pelo calor e pelo sol do trabalho diário. Suas
atividades não se resumiam em lavrar a terra seca, plantar, moldar bone-
cas, esculpir figuras míticas, tecer colchas ou bordar toalhas. Trabalhar
é contar, porque no trabalho conjunto partilham-se vivências, histórias
de vida, lembranças de repartir problemas e escutar mágoas de cada dia.
Parceria que brota naturalmente na forma solidária de dividir empecilhos,
conflitos urgentes e questões pessoais. Todos sabem que, quaisquer que
sejam as dificuldades, elas serão pensadas, compartilhadas e resolvidas em
socialização fraterna do grupo.
Contar histórias é reunir amigos e conhecidos em casa e, enquanto
houver lugar, todos que desejam participar são convidados. Nessa relação
existe simetria e igualdade, ali estão os conhecidos, os íntimos, e os
narradores se sentem à vontade. Quando terminam suas histórias, incitam
os ouvintes a assumirem a voz, tomar o centro da reunião e também contar
“Entrou numa perna de pinto, o rei me contou cinco, você me conta quatro”.
Fórmulas vão em busca de cúmplices ao ato de narrar. Estranhos provocam
tensão e dicotomia: gente de fora e gente da terra, língua oral e língua
escrita, iletrado e letrado. O narrador, que se orgulha do lugar que ocupa e
de seu saber, percebe a urgência de determiná-lo. Consciente do papel que
exerce como detentor de reminiscências inscritas no passado, ele se dirige
aos pesquisadores, ao término de sua narrativa: “Essas ocês tem pra levá
pros outro. Sei caso pra disgrama, mas hoje num posso mais, tenho que dá
umas volta por aí.” Visitantes? Amigos? Casos à parte!
Contar histórias é arte e ouvi-las é mergulhar fundo nos contos do
maravilhoso: contos de exemplo, de adivinhação, contos de encanto e
contos escatológicos com a missão única de espantar cansaço e tristeza.
Cantar romanceiros instiga a memória, contar lendas e fábulas faz-se
necessário para a continuidade de uma cadeia de contadores, cujo objetivo
é atar sua comunidade à origem, aos costumes, aos hábitos, às normas
e histórias. Garante-se, assim, que os jovens continuarão a tradição

111
e contando estarão reproduzindo narrativas de seus avós e mantendo
a cadeia de transmissão de valores, a genealogia do grupo no ato de
resguardar o viver dos antepassados, a memória e a tradição do grupo
social. A vida árdua, o espaço que os velhos ocupam através da experiência
e cabedal de conhecimentos sempre é reconhecido e acatado, entretanto, a
sua fragilidade sugere dia a dia a terrível proximidade da morte. A ameaça
confere aos patriarcas um papel respeitado e a indiscutível autoridade.
Aprendi nesta companhia o valor daquele saber adquirido no árduo
trabalho diário e no constante contato, tanto com o bem da natureza quanto
com o significativo desafio de estar frente a frente com uma variedade de
obstáculos e impedimentos sociais. Aprendi a humildade, aprendi mais
ainda o que é ser amigo-companheiro, um amigo fraterno e solidário.
Neste aprendizado de ouvir e saber, deparei-me com as teses de Walter
Benjamin quanto à memória e ao narrador:

A reminiscência funda a cadeia da tradição, que transmite


os acontecimentos de geração em geração. Ela corresponde
à musa épica no sentido mais amplo. Ela inclui todas as
variedades da forma épica. Entre elas, encontra-se em
primeiro lugar a encarnada pelo narrador. Ela tece a rede
que em última instância todas as histórias constituem entre
si. Uma se articula na outra, como demonstraram todos os
outros narradores, principalmente os orientais.1

O Benjamin que nos aponta a impossibilidade de toda experiência


coletiva na modernidade e, consequentemente, de toda tradição e de toda
palavra comum. Não sou especialista, apenas interlocutora do filósofo
naquelas teses que se referem ao narrador clássico e que nos mergulha na
análise dos significados de experiência e vivência, na arte de contar. A mim
fiz estas questões: o que é contar história? O que significa o contar? Serve
isso para alguma coisa? Por que se perde aos poucos a capacidade de reunir
e contar? Busquei respondê-las, no Jequitinhonha, ao observar pessoas
que acreditam em convívio e em longas conversa nas quais experiências são
trocadas. Percebi, então, os fios motivadores que quebram vidas solitárias e
criam relacionamentos fraternos naqueles momentos de contar lembranças,
do falar de trabalho, e de trocar casos e histórias de ensinamento.

1 -   BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 211.

112
Hoje, entendo que, na região natal, garimpei o que me parecia familiar,
coisas de aprendizado do coração: raízes cujas radículas me enraizavam no
largo espaço do Vale do Jequitinhonha, através das histórias que ressoavam
na memória, em um desejo intuitivo de pensar o futuro e cotejá-lo com o
passado a fim de responder aquelas questões: quem sou eu? De onde vim?
Para onde vou? O que faço aqui? Entendi, então, que a “andança” pelo
Vale era o meu aprendizado e se algumas respostas ali houvesse nunca
conseguiria codificá-las. Ali existia diante de meu olhar uma enorme diferença
de realidades e de formas de viver a vida. Formas de um grupo social,
senhor de um entendimento próprio e único de confrontar a existência. A
perplexidade foi minha companheira durante todo o trajeto de pesquisa e
trabalho nas dez cidades da região. Durante cinco anos em que me debrucei
a ler e analisar as narrativas recolhidas, senti, aprendi e amei o Vale.

“O seguinte é esse que segue: falo porque vi e vivi e posso provar.”

Na patente oralidade e no tom incisivo e categórico desta frase frequen-


te, nas falas dos contadores, obriguei-me a entender seus sentidos. Sempre
ouvida nas reuniões de contar, expressa um pensamento moral e determina
à comunidade uma observância de bons costumes e de cumprimento dos de-
veres com o grupo social. O narrador demonstra nela sua autoridade e coloca
seus objetivos: a recordação é base da tradição e todos são responsáveis por
repassá-la geração a geração, devem contar histórias, experiências significa-
tivas e mitos da comunidade. Aquele que detém a voz é memória viva, seu
compromisso fundamenta a unidade, uma vez que “fala porque viu, viveu e
pode provar”. Sua figura faz-se mítica e somente ele determinará o momento
de passar a voz ao elo imediato, ao contador que o segue. A cadeia de narra-
dores permanecerá então contínua, um após o outro, no espaço e no tempo.
O povo do Vale é capaz de expressões culturais vivas, dinâmicas, e
orgulha-se de seu saber, da arte que domina e do papel único que exerce na
comunidade. Sua cultura estruturou-se, há muito tempo, como resistência
à ordem estabelecida. Na atividade mnêmica, preservaram-se histórias a
serem contadas e recontadas que ligam e religam experiências atuais ao
hoje concreto do narrador, naquele momento vivo de contar.
Símbolos estão sempre presentes em narrativas orais que desejam dar
conselhos e lições para o viver. Escolhi duas histórias: “A pedra de ouro”,
contada por Joaquim Soares Ramos, de Minas Novas, e “O mestre do mio”,
contado por Américo Gonçalves, de Turmalina. Os contos têm um conteúdo

113
ideológico e apresentam a reflexão dos que se sentem responsáveis pelos
hábitos e costumes da comunidade. E, enquanto líderes respeitados, procu-
ram adequar o grupo às mudanças sociais e aos novos valores, em um tra-
balho intenso para que não desapareçam os comportamentos da tradição.
Contos orais, no contexto, exercem a função de ensinar jovens, na intenção
de conciliar o muito novo e o extremamente antigo, cujas características
maleáveis permitam, na essência, serem arranjadas e moldadas com os
sistemas da tradição.
Os contos de Seu Joaquim refletem preocupação quanto às mudan-
ças por que passa a organização hierárquica patriarcal. Comportamentos e
outros moldes de uma vida moderna minam, de maneira paulatina, o sis-
tema em que nasceram e ainda tentam viver; por isso buscam adequar-se
e absorver o necessário para admitir algumas novidades e evitar o desapa-
recimento dos seus tradicionais hábitos e valores. Dessa forma procuram
manter o que lhes foi ensinado e evitar a invasão maior de comportamentos
novos, próprios das grandes cidades.
“A pedra de ouro” conta-nos que um pai viúvo muito velho e já sem
forças era amparado pelo respeito e obediência de seus três filhos. Um dia,
um homem bem vestido passa pela roça onde os rapazes trabalhavam, per-
guntando-lhes qual a razão de vida tão dura e sem perspectiva de melho-
ria. Demonstra a eles que, permanecendo presos à velhice de um pai inútil,
nunca iriam obter meios para alcançar poder e riqueza. Influenciados pela
sedução do forasteiro, os filhos largam o pai entregue à própria sorte e saem
juntos, mundo afora, em busca de uma vida melhor. Na estrada encontram
o mesmo homem, que lhes oferece um mundão de ouro e ensina-lhes o lugar
da pedra de ouro. Os irmãos deixam-se dominar por uma enorme ambição
de ter sozinho o tal tesouro e, cada um em separado, tramam a morte um do
outro, para que a pedra tenha um só dono. Assim divididos, terminam por
se destruir, assassinados, por eles mesmos, todos os três.
A narrativa expressa nas funções de seus personagens uma intenção
educativa e moral: o pai, patriarca e autoridade, por ser viúvo, não tem a seu
lado o arrimo natural: a mulher. Os filhos, herdeiros dos seus bens e do poder,
deveriam, em primeiro lugar, cumprir seus deveres filiais; só após a morte do
progenitor teriam direitos. Os três rapazes, ao ouvirem a lábia mentirosa do
capeta, caem em sua cilada e, ao abandonar o velho pai, cometem grave falta.
Castigados, vão pagar o pecado no fogo do inferno. No conto de Seu Joaquim,
configura-se a ideia de que um pai vivo detém, ainda que velho e sem forças,
o legítimo poder e como tal deve ser amado, respeitado, obedecido e cuidado
até o fim de sua existência. Contrariar a norma significa atrair o castigo divino.

114
No Vale, percebe-se a relevância da intertextualidade, os textos con-
tados organizam-se sobre outros, em um jogo de espelhos bastante signifi-
cativo. Os contadores deixam claro que as narrativas se ancoram no saber
estatuído, seu conhecimento é obtido em obras literárias e, mesmo quando
analfabetos, referem-se sempre aos antepassados mais aquinhoados, pro-
prietários de bibliotecas e senhores de “boa leitura.” Recontadas, encontrei
narrativas do maravilhoso universal, contos portugueses, romances, dramas
teatrais, lendas e mitos modificados, invertidos a fim de atender aos objetivos
concretos dos contadores. “A pedra de ouro” assemelha-se no enredo ao conto
“O tesouro”, de Eça de Queiroz, e similares também são as funções dos ele-
mentos do texto: no lugar da pedra de ouro, um cofre de muitas chaves; no
lugar da cachaça do Vale, o vinho, o veneno e o fogo da morte serão substitu-
ídos pelas espadas; e o nome-família dos fidalgos de Medranhos aproxima-se
a Mendanha, distrito de Diamantina.
Os contos de Seu Américo Gonçalves devem ser lidos como forma
encontrada de ensinar às novas gerações os caminhos de resistência, os meios
de transformação do futuro, consequentemente, de mudança social. Na palavra
do contador, as possibilidades de ascensão passam pelo domínio da língua e só
através do conhecimento a comunidade alcançaria o saber necessário a uma
ascensão. Ao iniciar nova história avisa: “Ah! essa história é do mestre do mio,
é de estudo, essa eu aprendi de um livro, né? Ele tá guardado por aí mesmo”.
O mestre do milho é o professor de meios mágicos e sua magia promove a
mutação da pobreza em riqueza. A origem ideológica é base da classificação
social e fica clara a oposição que o contador faz entre Europa e o interior. As
diferenças de cultura e civilização de cidade e campo simbolizam a situação de
superioridade do país colonizador em relação à colônia:

Lá bem longe, lá pás Oropa afora, havia ua cidade e havia


um mestre do incanto qu insinava tudo, todo incanto do
mundo, né? E lá no interiô, La no sito, tinha um home cua
grande famia muito pobre, famia grande, e tinha um minino
muito inteligente, o fio dele, que aprindia tudo quanto há.2

No Hemisfério Norte, reside o mestre, elemento da sociedade civilizada,


culta, senhora do saber, do poder e da palavra; no Sul, a diferença,
o menino esperto, inteligente, afastado do centro, portanto, inculto,

2 -   Na linguagem do contador: do texto “O mestre do mio”.

115
incivilizado. Menino que precisa de mestre para adquirir palavra, ciência e
progresso. Entretanto, o mestre prestidigitador esconde do aluno o sortilégio
que lhe permitiria ter um saber semelhante ao seu. O menino precisa ser
mais esperto do que o mestre, a fim de conseguir roubar do livro, a ele
interditado, a fórmula mágica de ganhar saber, dinheiro e poder.
Aprende-se a importância fundamental da peça de metal usada em
cavalos e encenada como recurso mágico – o freio – que o pai não deveria
vender ao mestre, quando ambos disputam o filho transmutado em belo
cavalo. Essa peça, colocada na boca, torna-se a trava punitiva, símbolo do
jugo e do impedimento à fala e ao uso da palavra. Transgredido o proibido, a
desmedida ambição do pai provoca a sujeição do menino e outros danos que
são causados a ele pelo mestre antagonista. É através de outra criança que
o cavalo herói recebe a ajuda indispensável à salvação. Essa criança tira-lhe
o freio da boca e concede-lhe a oportunidade de utilizar os meios mágicos do
livro roubado ao mestre. Livre para usar a palavra, o protagonista enfrenta
o adversário com as mesmas armas. Metamorfoseia-se em peixe, rola, anel
e bago de milho e assim consegue fugir e ganha guarida e proteção da
donzela. O confronto entre as personagens desenvolve, na trama, um jogo
de sentidos em que a palavra, com a vitalidade de seus símbolos, se impõe.
O milho é a palavra, de saber e de domínio.
Importa-nos ainda o valor confiado à linguagem, mola mestra de contos
e da filosofia de vida do narrador. A palavra significa, em sua óptica, o meio
mágico para mudar a estrutura social. O acesso à linguagem é ameaça às
classes privilegiadas, que, por essa razão, a tornam oculta e encerrada em
livros, palavras de acesso difícil e sempre restritas a um círculo limitado.
A versão do velho e do novo, em suas implicações culturais, questiona a
prevalência, na maioria das vezes conservadora, que contos orais transmi-
tem de geração em geração. O dialogismo inscrito no conto dá a medida de
avaliação dos valores e parece-nos uma proposta de rever antigos conceitos
e imagens, em uma abertura narrativa que permite assimilação de novas
ideias e de valores atuais.
A arte de contar do Vale do Jequitinhonha é uma prática constante.
A produção das narrativas sofre a influência do grupo e do ambiente onde
são contadas. Assim, modificações necessárias são feitas nas histórias de
acordo com o momento vivido e a experiência, os saberes e as habilidades
daquele que narra. Prática de memória, de resistência, os contos traduzem
a intenção de informar e ensinar. O Vale, em sua constante mudança,
possui um encanto e carisma que enlaça os viajantes. Aqueles que passo a
passo o percorrem e o conhecem e, incautos, sorvem o mistério dos contos,

116
o encanto de danças e canções, são fisgados. E assim os nossos dias, os
meses e os anos vão passando, e tudo o que passamos se vai como um
conto que se conta. Tomo, portanto, a liberdade de repetir a fala dos meus
velhos amigos, contadores do Vale do Jequitinhonha: O seguinte é esse que
segue: falo porque vi, ouvi, vivi e posso provar.

Vera Felício é mestre em Letras (Literatura Brasileira) pela Universidade


Federal de Minas Gerais (UFMG) e professora aposentada da PUC Minas.
É autora de O artesão da memória no Vale do Jequitinhonha (Editora
UFMG / Editora PUC Minas); “O Vale vale quanto pesa”, texto publicado
no Suplemento Literário de Minas Gerais (edição especial em homenagem
ao Vale do Jequitinhonha. Belo Horizonte, Secretaria do Estado de
Cultura de Minas Gerais, n. 11, 2006).

117
Anexos

A pedra de ouro

Num vilarejo longínquo vivia um homem viúvo já bastante velho e


sem forças para trabalhar, que tinha três filhos jovens e muito obedientes
que faziam todo o trabalho da família, inclusive a lavoura.
Um dia os rapazes estavam trabalhando na roça, quando apareceu
um homem desconhecido, olhou-os e disse:
– Bom-dia!
– Bom-dia!
– Os meninos estão trabalhando?
– É, a gente tá trabalhando, porque nosso pai tá bastante avançado
na idade, coitado, não pode fazer mais nada. Agora a gente é que cuida dele.
O homem pensou um pouco e disso:
– Vocês são uns trouxas! Saiam pelo mundo, procurem outro trabalho.
Se ficarem junto de seu pai a vida toda, não vão conseguir nada. Depois que
vocês o deixarem, ele dá um jeito. – E despediu-se deles e saiu.
Os rapazes refletiram sobre aquilo:
– Ô rapaz, aquele homem é que tá certo. A gente não vai conseguir
nada se ficar aqui só trabalhando para tratar de nosso pai. Vamos embora.
É como o homem falou: depois que a gente sumir, nosso pai dá um jeito.
E então os três jovens partiram, deixando o velho sozinho. Depois
de muito viajarem, passando por uma mata, lá do fundo ouviram um grito.
– Ôooo! Venham cá, ôooo! Se vocês querem ver o laço do capeta,
venham aqui!
Os rapazes pensaram bastante e decidiram:
– Vamos lá pra ver como é que é esse laço do capeta.
Caminharam bastante no interior da mata, até que, de repente, se
defrontaram com o mesmo homem com o qual haviam conversado na roça.
– Vejam, esta pedra de ouro é para vocês. Se vocês tivessem ficado com
seu pai, teriam conseguido esta fortuna? Nunca! Mas agora, tudo isto é de vocês.
Os rapazes tentaram obstinadamente apanhar a pedra, que estava
presa ao chão. Insistiram, relutantes: inútil; nenhum deles conseguia.
Depois de várias tentativas frustradas, um deles teve uma ideia:
– Ô, rapaz, se a gente bebesse uma cachaça, conseguia pegar essa pedra.

118
– Pois é mesmo, moço. Olha, tem uma venda aqui perto. Vamos em
dois, enquanto um fica aqui vigiando a pedra.
Então, enquanto dois dos rapazes estavam a caminho da venda,
o outro, que ficou vigiando a pedra, engendrava um plano para ficar so-
zinho com a riqueza:
– Quando eles chegarem aqui com a cachaça, boto fogo neles, bebo
a cachaça e fico com a pedra só pra mim.
Perto do botequim, um dos moços sentiu vontade de fazer cocô e,
enquanto este entrou no mato, o outro foi depressa até a venda, comprou
a cachaça e um veneno, que misturou à bebida, voltou e encontrou-se com
o irmão, antes que ele pudesse chegar à venda.
– Uai, cê já foi lá?
– Já, moço, fui lá, já comprei e já tô de volta. Toma aqui um pouco.
E deu a garrafa ao irmão, que, com vontade, a virou garganta abaixo,
caindo morto no mesmo instante. O outro imediatamente apanhou a garra-
fa, pôs a tampa, guardou-a no embornal e seguiu, planejando:
– Chegando lá, dou a cachaça ao outro mano e, quando ele cair, fico
com a pedra.
Enquanto isso, o rapaz que ficou vigiando a pedra pensava a mesma coisa:
– Logo que eles chegarem aqui, deito fogo neles, bebo a cachaça e fico
com a pedra pra mim.
Então, quando o jovem foi chegando com a cachaça, o irmão ateou-
-lhe fogo, matando-o. Em seguida lançou-se sobre o embornal, apanhou a
garrafa e sorveu de um só gole a cachaça envenenada, caindo duro e teso
com a garrafa na mão. Assim, morreram os três, e o laço do capeta perma-
neceu no meio da mata.

Transcriado por Adriana Melo (Oficina de Texto – FALE/UFMG)


a partir de transcrição da narrativa oral “A peda de oro”,
do Vale do Jequitinhonha.

119
O mestre do encanto

Lá bem longe, numa cidade da Europa, vivia o mestre do encanto que


ensinava tudo, todas as magias do mundo. E no interior, em um sítio, vivia
um homem cuja família, muito grande e extremamente pobre, esperava de
um dos filhos, menino de notável inteligência, a solução para aquela vida
miserável que até então levava.
– A gente tá muito pobre, mulher. Vou mandar esse nosso filho, que
é muito inteligente, lá para cidade onde mora o mestre dos encantos, pra
ver se ele aprende alguma coisa que faça nossa vida melhorar.
– Tá bem!
Quando o menino chegou à cidade, hospedou-se na casa do mestre,
que começou a lhe ensinar todos os encantos do mundo. E tudo o que o
mestre ensinava o menino aprendia com muita facilidade. Havia apenas
um livro sobre o qual o mestre não fazia nenhum comentário, tampouco
permitia que seu aluno o folheasse.
Curioso, o menino pensava:
– Meu mestre me ensinou tanto encanto! Por que será que ele não
me ensina o que tem naquele livro?
Um dia, quando o mestre saiu de casa, o menino aproveitou a opor-
tunidade e, ansioso, foi depressa apanhar o livro. E, só de folhear aquele
livro, o menino aprendeu todo o encanto que ele continha. Então, sentiu-se
satisfeito, vislumbrando a possibilidade de voltar para casa:
– Puxa! Descobri uma maneira de meu pai ganhar dinheiro!
E assim que o mestre chegou, o menino disse:
– Mestre, tô com muita saudade de meu pai, por isso quero ir embora.
– Mas você ainda não aprendeu nada!
– O que aprendi é o bastante.
Assim, despediram-se, e o menino partiu, levando a boa notícia
à casa do pai:
– Pai, aprendi um encanto pra fazer o senhor ficar rico! Mas, pra dar
certo, tem de seguir direitinho os passos: vou me transformar num cavalo
já arreado, o senhor monta em mim e vai até a cidade. Chegando lá, meu
mestre vai saber que eu sou o cavalo e vai querer me comprar pra dar cabo
de minha vida. Então, o senhor pede muito dinheiro pelo cavalo, mas o freio
não pode ser vendido por dinheiro nenhum.
É que o encanto estava no freio.
Assim, o menino transformou-se num lindo cavalo marchador. O pai
montou e eles iniciaram viagem. Quando chegaram à cidade, ao passearem

120
pelas ruas, foram vistos pelo mestre, que, reconhecendo o menino no cavalo
encantado, perguntou ao pai:
– O senhor quer me vender este cavalo?
– Não. Não vendo!
– Por favor, vende! Pago bem!
E ofereceu uma grande quantia e foi aumentando a oferta até que o
pai do menino, seduzido por tanto dinheiro, decidiu vender o cavalo.
– Quero o freio também!
– O freio não vendo!
Mas o mestre foi oferecendo cada vez mais dinheiro. O pai, então,
não resistiu: ávido pela riqueza, ignorou o acordo que havia feito com o filho
e vendou o freio. Ao ver aquilo, o cavalo abaixou a cabeça e ficou muito
triste. O pai do menino apanhou o dinheiro e voltou para casa.
O mestre calçou esporas, embora não fosse necessário, e montou no
cavalo. Passeando pelas ruas durante todo o dia, cravava com violência os
calcanhares na barriga do animal, que, dolorosamente ferido, sangrava muito.
Um amigo do mestre, que observava aquela cena, pensou:
– O que será que aconteceu com o mestre? Ele deve estar angustiado.
Como é que pode maltratar um cavalo tão bom como aquele? Vou chamá-lo
para tomar um café, assim o animal poderá descansar.
– Mestre, vem cá. Vamos tomar um café e descansar um pouco.
Cansado, o mestre desceu do cavalo e pediu a um menino que segu-
rasse o animal, enquanto ele tomava o café na casa do amigo.
Observando que o cavalo olhava o tempo todo para um riacho que
passava à porta da casa, o menino pensou:
– Esse cavalo tá com sede! Vou tirar o freio pra ele beber água.
E no instante em que o menino tirou o freio, o cavalo se transformou
em peixe e pulou no riacho, desaparecendo. O mestre, ao perceber o que
tinha acontecido, veio correndo lá de dentro:
– Onde está o cavalo?
Atônito, com o freio na mão, o menino disse:
– Pensei que ele tava com sede, tirei o freio, ele virou peixe e sumiu
no riacho.
O mestre, então, tomou a forma de um mergulhão e pulou no riacho,
perseguindo o peixe que, ao se ver em perigo, transformou-se numa rola e
voou. Imediatamente o mestre virou gavião e perseguiu a rola.
Enquanto isso, num luxuoso sobrado perto dali, uma moça bordava,
com a janela de seu quarto aberta. Então, fugindo do gavião, a rola entrou
pela janela e, na forma de um anel, acomodou-se no dedo da moça, que,

121
percebendo que se tratava de encanto, continuou a bordar. O gavião entrou
em seguida, retomou a forma humana e dirigiu-se à moça:
– Quer me vender esse anel?
– Não posso! Foi presente de meu pai.
– Por favor, vende! – O mestre insistiu.
Temendo que o pai visse aquele homem em seu quarto, a moço cedeu,
com muito pesar. Mas, ao retirar o anel do dedo, deixou-o escorregar e, para
sua surpresa, ele se transformou numa grande quantidade de milho. Então
o mestre tomou a forma de um galo e começou a comer os grãos. Entretanto,
o grão no qual o menino havia se transformado ficou escondido debaixo do
vestido da moça. Depois de ter comido todo o milho do quarto, o galo ainda
olhou ao redor para ver se havia mais. Então, o último grão de milho, que era
o menino, virou uma raposa e comeu o galo, retomando em seguida a forma
humana. Aturdida com tanta magia, a moça exclamou:
– E agora, o que é que eu faço com você aqui?!
– Eu viro uma pedra e você me joga na rua.
Assim que a moça atirou a pedra pela janela, o menino retomou a
forma humana e, ferido, sentindo muitas dores, voltou à casa do pai.
– Pai, olha como estou! O senhor não cumpriu nosso acordo. O mestre
quase me matou!
Assim que se recuperou dos ferimentos, o rapaz voltou para a cidade,
onde algum tempo depois se casou com a viúva do mestre. Hoje ele vive lá,
está rico e é conhecido por todos como o mestre do encanto.

Transcrito e adaptado por Adriana Ferreira de Melo


(Oficina de Texto – FALE/UFMG).

122
Jequitinhonha – música e vida
Rubinho do Vale

Uma riqueza do Jequitinhonha foi descoberta há mais de 250 anos


pelos caçadores de pedras preciosas, ouro e diamante; e o rio ao longo desse
tempo quase morre de sede, como disse o poeta.
Há mais de 150 anos outra riqueza do Jequitinhonha foi descoberta
pelos caçadores de fazendas de gado, derrubadores de matas e persegui-
dores de índios.
Há 50 anos mais uma riqueza do Jequitinhonha foi descoberta pelas
usinas metalúrgicas, as caçadoras de carvão do eucalipto que tomaram
conta de uma imensidão sem fim de chapada.
Há 50 anos a riqueza da mão de obra barata dos pobres do Vale foi
descoberta pelos caçadores de gente, os gatos, compradores do suor se-
miescravo que foi ser derramado nas usinas e plantações de São Paulo e
Mato Grosso.
As riquezas dos rios e das pedras, da terra e do pasto, do carvão e da
mão de obra barata não conseguiram impedir o surgimento das viúvas de
maridos vivos,1 das andorinhas nem de lá nem de cá,2 mas também não
conseguiram conter a verve dos poetas do barro, dos tambores, das violas e
das palavras. Então, há 40 anos uma nova riqueza começa a aflorar, a ser
descoberta e despertada, vindo à tona pelas mãos dos artesãos e trovadores,
em versos, peças, melodias de rezas e batuques.
Índios deixaram suas marcas nas Bandas de Taquaras e dos Coquís,
tão distantes na geografia e tão próximos na história.
Há 200 anos negros de Minas Novas festejam sua fé em Nossa Senhora
do Rosário cantando e tocando tambores pelas ruas da cidade. Assim
também acontece em Araçuaí, Serro e outros lugares.
A música do Vale, como boa parte da música do mundo, tem um forte
traço religioso. Se quem canta seus males espanta, quem canta reza duas
vezes, quem reza busca Deus e, se Deus liberta, então quem canta liberta.

1 -   Viúvas de maridos vivos: mulheres que ficam no Vale enquanto os maridos trabalham nos canaviais
de São Paulo e outros estados.
2 -   As andorinhas nem lá, nem cá: documentário baseado na pesquisa da prof. dra. Maria Aparecida de
Moraes Silva, sobre a situação social dos camponeses migrantes do Vale do Jequitinhonha para o corte
de cana na região de Ribeirão Preto, em São Paulo.

123
Deve ser por isso que modinha e seresta, beira-mar e batuque resistem, sobre-
vivem e se projetam em corais, cantadores e cantadeiras do Vale do Jequitinhonha.
Certamente a arte liberta e o homem nasceu para ser livre e feliz.
Trago comigo uma perplexidade quando procuro entender como a his-
tória de um povo, marcada por agressões, fugas e até mesmo guerras, pode
gerar uma memória tão suave, livre de rancores e uma cultura de paz como
a que reina nas cercanias do Jequitinhonha.
Eis a riqueza do Jequitinhonha que precisa ser mais conhecida e ama-
da, principalmente pelo povo do Vale, divulgada por quem tem acesso aos
meios de divulgação, cultuada por quem compreende a profundidade de
uma obra de arte e mais respeitada por quem deveria protegê-la e, pelo
contrário, tenta amordaçá-la com a fragilidade da sua própria couraça ou
cegá-la com as vendas de uma cultura alienante, massificada e passageira.
Eis a riqueza, para mim, mais bela do Jequitinhonha, abstrata e con-
creta, resistente e frágil, que brota de livre e espontânea vontade, como resul-
tado da mesma mistura que formou a rica diversidade da cultura brasileira.
Riqueza construída por um processo lento, através de séculos, que não
pode ser tratada como mero objeto de decoração, embora muitas vezes seja
decorativa, que deve ser estudada, mas também retribuída por quem tem
o Vale como fonte de pesquisa. Deve haver retribuição ao desprendimento
dos construtores de um saber que muitos querem saber.
A música do Jequitinhonha ou a musicalidade do Jequitinhonha está
inserida nesse movimento antigo e moderno que vem sendo observado por
simpatizantes e pesquisadores. Eu sou um simples observador que vem há
mais de 30 anos viajando pelo Vale, tentando conhecer o indecifrável.
É comum a divulgação da música do Vale focada nos artistas,
compositores e cantores que têm acesso aos meios de comunicação, que
moram em cidades grandes e fazem shows e sucesso.
Prefiro pensar na música do Jequitinhonha voltando meu olhar para o
canto do povo, dos negros do Rosário e dos foliões de Reis, dos corais de Araçuaí,
Itaobim, Itinga, Virgem da Lapa, Veredinha, etc. Estes fazem uma música que
me agrada muito, é coletiva, é de resistência, que denuncia preconceitos e
explorações e chama o povo para se ajuntar porque se não a cultura morre.
E, se morrer, morre parte da história e morre o próprio povo.
Como diz Frei Chico, cultura é vida, canta-se quando nasce, canta-se
para viver e canta-se também para morrer.
A cultura não morre de morte morrida, pois quando morre um mestre
seus ensinamentos ficam. O que mata a cultura é a doença da alienação
que a indústria cultural tenta incutir na mente de todos nós.

124
Mas no Vale tem Lucianos, Tadeus, Liras e tantas pessoas instrumentos
de transformação e instrumentista da cidadania, espalhadas por todos os
lugares, e isso nos dá esperança. Incentiva os novos e dá reconhecimento
aos mais velhos.
A música do Jequitinhonha é uma mistura que vem de portugueses, índios
e africanos, paulistas, mineiros e baianos, tropeiros, canoeiros e vaqueiros.

Avião subiu
Subiu
Avião desceu
Desceu
Veio dar notícia ao Brasil
Que a Alemanha
Perdeu

Quem ensinou esse canto para D. Generosa para ela ensinar ao Frei
Chico? E quem ensinou para quem ensinou D. Generosa?

Aprendi dançar Vilão, aprendi dançar Vilão


Não foi nessa terra não, não foi nessa terra não
Aprendi com a alemoa, aprendi com a alemoa
Da terra dos alemão, da terra dos alemão

Se isso fosse cantado no Sul do Brasil, talvez seria mais compreensível,


mas no Vale... Um detalhe, na região de Teófilo Otoni, Vale do Mucuri, tem
muitos alemães, em Rubim tem uma família descendente de alemães.
É assim, uma cantiga popular viaja o mundo. Ninguém sabe quem
inventou, onde e quando. Alguém inventou, mas não tem dono. É do
mundo, é do povo, é minha, é sua, é de todos e não é de ninguém. Acho
que é de Deus, é da natureza, é como a água, o sol, as estrelas, as flores,
as palavras. E as melodias brotam, brilham, e assim brilha e navega a
cultura do Jequitinhonha.

Beira-mar da Lira
Beira-mar novo, ei, morena
Eu sozinho é quem sabia
Esta lira vai, baiana
Eu sozinho é quem sabia
Esta lira vai, baiana. Ai, ai

125
Aprendi com os canoeiros, ei, morena
Lá no largo da Vigia, esta lira vai, baiana
Lá no largo da Vigia, esta lira vai, baiana. Ai, ai...

Vigia é Almenara, está por ali, e o Ceará?

Samba dos três rapazes


Ai, baiana
Tua despedida é que me fez chorar
Ai, baiana
Tua despedida é que me fez chorar

Bate o pandeiro, violão e a caixa


Agora o samba vai recomeçar
Bate o pandeiro, violão e a caixa
Agora o samba vai recomeçar
É o samba dos três rapazes
Toada do samba do Ceará
É o samba dos três rapazes
Toada do samba do Ceará
(Da pesquisa de Luciano e do coral Araras Grandes de Araçuaí)

Beira-mar
Beira-mar beira-mar novo
Foi só eu é quem cantei o beira-mar
Adeus, dona
Adeus riacho de areia

Rio abaixo, rio acima, tudo isso eu já andei


Ô beira-mar
Adeus, dona; adeus, riacho de areia
Procurando amor de longe que o de perto eu já deixei
Ô beira-mar
Adeus, dona; adeus, riacho de areia
(Da pesquisa de Frei Chico e Lira Marques)

126
Certamente, Frei Chico e Lira Marques aprenderam essa cantiga nos
arredores de Araçuaí. O velho Pinaco, um trovador de Rubim, no Baixo
Jequitinhonha, canta um “Beira-mar” bem parecido com este. Mais adiante
vou falar desse cantador.
O poeta Geovane Figueiredo, conhecido como Nenguinha, um trovador
de Jordânia, cidade do Baixo Jequitinhonha, morreu recentemente e deixou
uma obra musical interessante, forte, lúdica e às vezes triste. Eu tive a
honra de produzir um CD com parte de sua obra, no qual vários cantores
da região interpretaram suas canções. Ele me falou de um canoeiro
afamado que saía de Belmonte e subia até Araçuaí. Levando canoa cheia e
trazendo canoa cheia. Era Tatalô, moço forte, bonito e conquistador.
Veja que pérola ele compôs para descrever Tatalô.

Despedida (Beira-mar de Tatalô)


Geovane Figueiredo

Adeus, morena! Eu vou embora


Adeus, morena! Eu vou embora
Adeus, até outro dia êê

Eu quero ser canoeiro


Vou levar minha canoa lá pras bandas do sequeiro
Se você quiser ir comigo enfrento qualquer perigo
Amor não custa dinheiro Eeeeeeeeeeee

No Vale do Jequitinhonha, no Vale do Jequitinhonha


Onde a canoa gemia
Deslizando mansamente lá pras bandas da Bahia
Belmonte, Canavieira, adeus, morena trigueira!
Adeus, até outro dia Eeeeeeeeeeeeeee

Tatalô na sua canoa, Tatalô na sua canoa


Quando cantava beira-mar
Mulher solteira fugia, as casadas só não ia
Com medo de apanhar Eeeeeeeeee
Belmonte, Canavieira
Adeus, morena trigueira!
Mascote e Jacarandá Eeeeeeeeeeeee

127
É de Geovane a música “Jequitinhonha”, com seu parceiro Carlos Do-
bêla, do Salto da Divisa, que hoje mora em Eunápolis, na Bahia.

Jequitinhonha
Carlos Dobêla e Geovane Figueiredo

Jequitinhonha, eu conheço a sua história


Tá na memória, vou contar pro mundo ouvir
Do olho d’água onde tudo principia
Ligando Minas-Bahia vai descendo por aí
Seu leito é rico, tem imensos cabedais
Seu vale é lindo, tem riquezas e muito mais
As cachoeiras lá no salto da Divisa
Eram lindas maravilhas que ficaram nos anais

Tombo da Regeira, Canta-galo e da Neblina


Jequitinhonha, sua história me fascina
Tombo da Regeira, Canta-galo e da Neblina
Jequitinhonha, cachoeira me fascina

Jequitinhonha dos mistérios e da poesia


Das balsas, das travessias, das lendas e livusias
Havia uma luz que se apagava e se acendia
Vovô disse é cabedal, mistérios, vovó dizia

É livusia Santo-Nego? É cabedal Maria!


Jequitinhonha que fascina e arrepia

Tombo da Regeira, Canta-galo e da Neblina


Jequitinhonha, sua história me fascina
Tombo da Rejeira, Canta-galo e da Neblina
Jequitinhonha, cachoeira me fascina

Jequitinhonha entre vales e colinas


Deslizando entre as campinas
Cidades, vilas e prados
Em cada porto uma lenda, uma história
Que ficará na memória dos lindos anos dourados

128
É livusia Santo-Nego? É cabedal Maria!
Jequitinhonha que fascina e arrepia
Tombo da Regeira, Canta-galo e da Neblina
Jequitinhonha, sua história me fascina
Tombo da Regeira, Canta-galo e da Neblina
Jequitinhonha, cachoeira me fascina

Os tropeiros vieram das regiões das minas, pela Estrada Real, até o
Serro Frio.
Os tropeiros de Itamarandiba, Berilo, cruzavam as chapadas com des-
tino a Diamantina, Montes Claros e Teófilo Otoni.
Outros tropeiros vieram da Bahia, região de Vitória da Conquista,
Jussiape, para Rubim, Almenara, Jacinto e outras paragens. Eu até co-
nheci alguns desses tropeiros, todos viraram boiadeiros e fazendeiros,
compradores e vendedores de gado.
Lembro-me de outros tropeiros da minha infância, tinham poucos
burros, às vezes faziam arrancharia próximo da minha casa.
Deve ser por isso que a cantiga “Tropeiro” cantada pelos Trovadores
do Vale me encantou tanto, cheguei a fazer uns versos para ela.

Tropeiro
Adaptação de Rubinho do Vale

Você me chamou tropeiro


Eu não sou tropeiro não
Sou arrieiro da tropa, Marcolino
O tropeiro é meu patrão

Os tropeiros vêm chegando


Vêm pedindo arrancharia
Chama o dono da fazenda, Marcolino
Pra ouvir nossa cantoria

Mantimentos e tecidos
Nossa tropa vem trazendo
Milho, arroz, feijão, farinha, Marcolino
Sal, açúcar e querosene

129
Nossa tropa pega a estrada
Vai na frente o madrinheiro
O sincerro já cantou, Marcolino
Vamos viajar o dia inteiro

Viva os tropeiros e as tropas


Nos tempos de temporais
Rio cheio é perigoso, Marcolino
Deus proteje os animais

Esse movimento dos tropeiros me remete ao compositor baiano Elo-


mar Figueira de Melo, cuja obra exerce influência em muitos composito-
res do Vale. Há uma grande ligação do linguajar dialetal de Elomar com o
canto e a vida do povo Jequitinhonha. Embora a obra de Elomar use um
palavreado mais arcaico, muito do que relata no seu cancioneiro parece
se passar nas quebradas do Jequitinhonha, no árido sertão de Virgem da
Lapa ou nas parambeiras,3 roças e brejos da minha infância na fazenda
Boa Esperança, Bom Jardim do Jacinto.
Eu não tenho a categoria, catiguria ou cartilogência, como diz
o jequitinhonhês de Tadeu Martins, para discutir a vernaculidade
elomariana, nem conhecimento linguístico para me aprofundar no
universo desse compositor, mas como apreciador e gostador de tudo
que fala do meu sertão, muita coisa da música de Elomar me encanta
e me faz construir uma ponte, uma ligação pequena, um mata-burro
provisório numa estrada Definitiva 4 entre Minas e Bahia, ou passadiço
entre dois quintais de culturas parecidas. É um tanto arriscoso fazer
comparações, mas muita coisa me chama a atenção na obra de Elomar.
Nomes dos vaqueiros, comidas, serviços, crenças, várias passagens me
transportam para o mundo dos violeiros da minha infância.
Quero relatar aqui a ligação de uma música desse compositor com
uma cantiga do velho Pinaco, o trovador de Rubim de que falei ante-
riormente. A música de Elomar fala de um amor e de um cantador que
tem medo de cantar parcela porque é perigosa e o sujeito pode morrer
cantando ela.

3 -   Parambeiras: pirambeiras, perambeiras ou precipícios.


4 -   Definitiva: estrada que liga Diamantina a Salto da Divisa e Porto Seguro (BA).

130
Tropeiro
Elomar

Eu sô cantadô de coco
Eu num canto parcela
Parcela é feiticêra
Eu corro as légua dela
Ai, ai, ai, ai,
Chegano num lugá
Adonde têja ela
Eu vô me adisculpano
E dano nas canela
Daindá, daindá, daindá

Cunhici um cantadô
Distimido e valente
Qui mangava do amô
E zombava a fé dos crentes
Mais um dia ele topô
Nos batente dua jinela
Com o bicho do amô
Mucama pomba e donzela
E o cantadô aos poco
Foi se paxonano pru ela
Inté qui um dia ficô lôco
De tanto cantá parcela
E hoje véve pela istrada
Rismungano qui a culpada
Foi a mucama da jinela
Daindá, daindá, daindá

Eu sô cantadô de coco
Apois quem canta parcela
Corre um risco São Francisco
Morre doido cantano ela
Daindá, daindá, daindá
(Fragmentos do 5º canto: Das Violas da Morte,
do Auto da Catingueira)

131
Certo dia, o velho Pinaco cantou para mim uma cantiga e disse: isso
é uma parcela. E falava da morte.

A morte chegou numa casa


Domínio público - Adaptação Pinaco

Eu vou m’imbora daqui, quero sair avoando


Mas a morte chegou numa casa
Não quero que ninguém fale q’eu saí daqui chorando
Mas a morte chegou numa casa matando sem dá trabai
E eu conheço o ferreira pela pancada do mai
Mas ocês magina e pensa vai doer na consciênça
Que daqui hoje eu não sai
Quem mata os outros vai preso, a morte mata e num vai

Sinhora dona dos ovos, cê me vende ou me dá um


Mas a morte chegou numa casa
Que eu estou de amor novo não posso andar de jejum
Mas a morte chegou numa casa matando sem dá trabaio
Eu conheço o ferreira pela pancada do mai
Mas ocês magina e pensa vai doer na consciênça
Que daqui hoje eu não sai
Quem mata os outros vai preso, a morte mata e num vai
Lá vai uma lá vai duas lá vai três pelas primeira
Mas a morte chegou numa casa
Lá vai quatro lá vai cinco lá vai seis por derradeira
Mas a morte chegou numa casa matando sem dá trabaio
E eu conheço o ferreira pela pancada do mai
Mas ocês magina e pensa vai doer na consciênça
Que daqui hoje eu não sai
Quem mata os outros vai preso, a morte mata e num vai

Tem uma composição de Pinaco em que ele sai da lógica da rima e


da métrica, muda totalmente de assunto, precisa fechar o verso, é um tí-
pico artesão das palavras, e entra quase no surrealismo do mestre Ulisses
Pereira de Caraí.

132
O Col de Mel (O Collor de Mello)
Pinaco

O Col de Mel prometeu se Deus mandasse chuva


Ia fazer um bom salário pra aposentado, pensionista e viúva
A Gameleira é dos Machado, Gira Mundo é Costa Abreu
Mas Col de Mel prometeu se Deus mandasse chuva
Eu correndo um boi preto montado no meu cavalo
Ele ia fazer um bom salário pra aposentado, pensionista e viúva
Se a conversa fosse certa o Brasil ia virar uma uva
O presidente Col de Mel mas é um nobre cidadão
Ele tem uma bala no rife pra atirar na inflação
Mas eu dou o doce depois dou o fel
O presidente Col de Mel é um nobre cidadão
Não pode comprar o boi pelo tamanho do chifre
Pra atirar na inflação ele adotou a miséria e atirou na nação
Col de Mel presidente é home do pé ligeiro
Ele armou uma cilada pra pegar os fazendeiro
Ainda sendo valentão na hora de morrer sente
Col de Mel presidente é home do pé ligeiro
Noite é melhor de que dia pra quem anda de massada
Ele armou uma cilada pra pegar os fazendeiro
E deu uma volta nos banco e bloqueou todo o dinheiro

O credo da cachaça revela com bom humor a proximidade do profano


com o sagrado e uma boa reza ajuda a cachaça a descer melhor.

Credo da cachaça
Pinaco

Eu creio em Deus pai da cachaça feita do pau da cana


Nascida no frio da terra e criada no sol
Padeceu no facão, foi morta no engenho
Sepultada no coxo
Sob os poder da lata desceu ao inferno do alambique
E subiu os céus do capelo
Cachaça! Com oito dia de feita queira receber senhor bucho?
Recebo sim, senhor.
Então entra e sai sem dá trabai

133
Com dinheiro de papel e moeda de prata
Rosa me leva saudade me mata
Feita nessa freguesia de Catajás
Deixando o que Deus fez desmanchado
Judiando com o juízo dos próximos, amém
Pelo sinal do bico real
Só não bebo mais que me faz mal
Com essa mão eu pego no copo, com a outra eu levo na boca
Só não bebo mais que a cachaça é pouca

Quando nasce o povo canta, quando batiza o povo canta


Quando trabalha o povo canta e quando sofre o povo canta
Quando casa o povo canta e quando morre o povo canta

“Meu avô contou pro meu pai que contou pra mim, eu conto pro meu
filho que vai contar pro filho dele”, diz o índio Maxacali. Já ouvi isso na
música de Carlos Farias, Bilora e outros cantadores do Mucuri.
As meninas cantadeiras dos corais também dizem: “Minha bisavó era
índia, pegaram ela no laço e meu bisavô era escravo”.
O canto que canta hoje veio dos seus antepassados e essas cantadeiras
vão deixar para seus filhos, netos e bisnetos.
Os cantos de trabalho estão presentes na hora do trabalho, na hora
da festa e da cantoria. Do boiadeiro, do tropeiro, do canoeiro, etc.

Conoeiro
Cantada pelo coral Trovadores do Vale – de Araçuaí.

Canoeiro, canoeiro
Que que trouxe na canoa
Trouxe ouro e trouxe prata, trouxe muita coisa boa
Quem não me conhece chora, Miquelina ei
Que fará quem me quer bem, Miquelina ei
Sou negociante, sou principiante
Comprador de ouro e diamante
Tanto eu compro ouro como compro gado
Só não dou dinheiro porque não tem trocado

No vale a fé se mistura com a farra. Novamente o profano e o sagrado


juntos. O coral Nossa Senhora do Rosário canta:

134
Levantei de madrugada pra varrer a Conceição
Encontrei Nossa Senhora com seu raminho na mão
Eu pedi ela um raminho, ela me disse que não
Eu tornei a lhe pedir, ela me deu seu cordão...

O mesmo coral também canta:

Ô Dona da casa, que tem pra me dá?


Garrafa de pinga e docim de araçá.

Quando morre alguém na roça, a sentinela é movimentada, princi-


palmente se a família do finado tem um pouco de gado, porco e galinha no
terreiro. Enquanto uns rezam e outros choram dentro de casa, o namoro,
a farofa e a cachaça correm frouxos lá fora.
O dono da casa que receber uma folia deve ter preparado os biscoitos,
café, bolo e até jantar, sem esquecer a oferta, que pode ser desde um pouco
de dinheiro, leitoa, até um bezerro, para o leilão no dia da festa.
Agora, se não tiver algumas rodadas de pinga da boa para os foliões
depois do Reis, ou seja, depois da reza, aí é desfeita das grandes. Mas como
sempre tem algumas rodadas da água que boi não bebe, a folia anima cada
casa e segue sua estrada, cantando para Deus menino, sem perder a fé,
mas de olho na farra também.
Do Vale veio o canto de Déa Trancoso e a viola de Wilson Dias, o canto
de Célia Mara que faz sucesso na Europa e a bossa nova de Wesley Pioest
que pouca gente conhece; ele ficou mais com a poesia. Veio também as
canções engajadas e corajosas de Gonzaga Medeiros como “No Jequi tem
onha” e “Pega a faca, Jesus” – essa do primeiro Festivale e a outra gravada
por mim no meu primeiro LP, em 1982.
Desse poeta registro aqui a música “Sonho de ouro”, da qual sou meio
parceiro e que poderia ter sido feita n’outros tempos em Diamantina.

Sonho de ouro

São pedras são Minas Gerais Diamantinas


São gemas tão raras e joias tão finas
O ouro no ventre do solo
Fortuna no parto das minas
O brilho nos olhos dos homens, faceiras meninas

135
São pedras brotando do ventre do chão
Jorrando das veias de minha ilusão
É o brilho do sol no lençol
Forrando a esperança no meu coração
O mundo debaixo dos pés do garimpeiro-peão

A estrela de ouro brilhando na testa


Luzindo o caminho que ainda me resta
Garimpar pelas minas da vida
Brincos de ouro e diamante
Enfeitar a mulher dos meus sonhos
Meu lindo brilhante

Numa outra vertente, acompanhando a mídia que não era tão agres-
siva quanto hoje, o Vale do Jequitinhonha teve muitos conjuntos de baile
influenciados pela música de sucesso do rádio. Bons instrumentistas e
compositores surgiram desse movimento nos anos 1960.
Quero citar o conjunto Os Caras de Pau, formado por músicos de Alme-
nara, Jequitinhonha e Joaima, do qual fez parte o compositor e produtor mu-
sical Eustáquio Sena, que foi parceiro de Paulo Sérgio, ídolo da Jovem Guarda.
Eustáquio chegou a ser diretor da Som Livre, da Rede Globo. Também foi desse
conjunto um excelente guitarrista, Luizinho, que tocou durante anos nos bares
de Belo Horizonte, ex-funcionário da Escola de Química da UFMG.
Festivais aconteceram nessa época com a roupagem desse tempo.
Em 1972, um grande festival com convidados nacionais aconteceu
em Pedra Azul, organizado por Saulo Muniz, da dupla Tom e Salim. Tom é
Heitor de Pedra Azul, que mora hoje na França; e Salim é Saulo Laranjeira.
No mesmo ano aconteceu em Almenara um importante Festival da
Canção, com participação de Paulinho Morais, hoje Paulinho Pedra Azul.
Jurmel Dutra, da cidade de Rubim, foi o vencedor desse festival. Jurmel foi
para São Paulo tentar a carreira, enfrentou as pressões e dificuldades do
mundo artístico e morreu em 1975 naquela cidade.
Nildo e Foca Sena participaram das bandas Arco-Íris e Os Humildes,
de Almenara, fizeram muitos bailes e belas apresentações na região, mon-
taram o espetáculo Homens do Sol, com projeções de imagens da cultura
do Jequitinhonha e paisagens da região.
Em 1989, aconteceu em Itaobim o encontro de compositores do Vale do
Jequitinhonha, Procurados, dizia Tadeu Martins e outros idealizadores do en-
contro, “eles são procurados porque fazem música no Vale do Jequitinhonha

136
e são desconhecidos do grande público”. Em tempos de ditadura militar, per-
seguição de comunistas e de quem levantasse a voz contra o regime, o cartaz
dos Procurados chamou a atenção e fez de Itaobim uma referência cultural. Lá
aconteceu o primeiro Festivale, o terceiro e vai acontecer o trigésimo em 2012.
O show Onhas do Jequi, no Grande Teatro do Palácio das Artes, em
Belo Horizonte, em 1984, contribuiu para divulgar nomes como Paulinho
Pedra Azul, Saulo Laranjeira, Tadeu Franco, Frei Chico, Lira Marques,
Gonzaga Medeiros e eu.
É marcante a presença do rio e da terra, do trabalho e das lutas, dos
sonhos e esperanças do povo do Vale nas canções dos seus artistas.
Muitos compositores saudaram e continuam saudando o Jequitinhonha
nas suas canções.
Destaco aqui algumas músicas:

• “O rio e o Vale”, de Luciano Camargo, da cidade de Medina, que


morreu recentemente.
• “Despertar”, do letrista e cordelista Tadeu Martins e da qual sou
parceiro.
• “Jequitivale”, de Mark Gladston, Verono, compositor e cantor de
Minas Novas. Esse artista também foi embora antes do combinado,
como diz Rolando Boldrim.
• “No jequi tem onha”, de Gonzaga Medeiros.

Essas canções revelam a intensidade das poesias musicais dos artis-


tas do Vale, pessoas comprometidas com a cultura e com a vida do povo.

O rio e o vale
Luciano Camargo

Jequitinhonha que nasce em Diamantina


Corre pelo vale e chega até o mar
Trazendo esperança ao Vale terra santa, Jequitinhonha

Diamantina, Itaporé, Itinga, Itaobim, Jequitinhonha


Almenara, Salto da Divisa, corta a 101, Jequitinhonha

Ê canoeiro, ê canoa
Vamos navegar

137
Vale do amor, minha paixão
Jequitinhonha, tu és canção
O Rio e o Vale, o Vale e o Rio
Jequitinhonha, tu és Brasil

Ê canoeiro, ê canoa
Vamos navegar

Despertar
Tadeu Martins e Rubinho do Vale

São 52 cidades perdidas no sertão mineiro


Terra esquecida
Terra explorada

Altar da superstição e riquezas, pedras que brotam do chão


Ribuçado de sangue e beleza
De suor, de alegria e tristeza
De esperança, de força e firmeza

Olha um povo trabalhador


Que começa a despertar e sonha
Lutar pela libertação da terra do sol

Acorda, Jequitinhonha

Chá de jalapa pro sangue


Chá de São Caetano pra abortar
Chá de raça e coragem
Pra tornar verdadeiro esse sonho
De liberdade e vida

Jequitivale
Mark Gladston - Verono

Você que anda com o pé rachado


E com a palha atrás da orelha

138
Com a aba do chapéu na testa
E se vira da noite pro dia
Você que banha no Fanado
E que tira ouro de bateia
Que faz da vida uma festa
E adora falar poesia
Desculpe, seu doutor
Mas receba os cumprimentos meus
Eu fico com a filosofia
Do mestre João de Deus
A saudade me maltrata
E me faz olhar no calendário
Pra ver se faltam poucos dias
Pra ouvir o tambor do rosário
Vale que vale cantar
Vale que vale viver
Vale do Jequitinhonha
Vale, eu amo você

No jequi tem onha


Gonzaga Medeiros

Conta, conta, cantador


Conta a história que eu pedi
Dizem que o jequi tem onha
Conta as onhas do jequi

Este vale fedeu biba


No tempo dos coronéis
Era uma vez “Vai Torano”
“Fortaleza” e “Quartéis”
Os dedos caíram todos
Mas ainda vivem os anéis

Sua vó é feiticeira
Passa n’água sem molhar
Quero ver a sua vó
Uma água benta passar

139
Pra curar as chagas mil
Corroendo esse lugar

Justiça no Vale é tanta


Como a carne nos pastéis
Com milhões, gato pingado
E um milhão só tem mil réis
E o povo espera sentado
Pela inversão dos papéis

Aqui tem, dizem todos


Um dente de coelho
Tem cabeça de porco enterrada aqui
No jequi tem um peixe
É o tal peixe-boi
Chifrando, estraçalhando

A taquara do jequi...
Tinhonha
No jequi tem, no jequi tem
No jequi tem onha
No meio das onhas do jequi
Tem muita vergonha

Um importante projeto foi feito recentemente, com o nome de Nosso


canto Vale mais Jequitinhonha, contendo um CD com 300 músicas de 40
artistas, quase todos do Jequitinhonha, uma revista com informações
sobre cada artista, coordenado por Neilton Lima, produção do Vale Mais
– Instituto Sociocultural do Jequitinhonha – através da Lei Estadual de
Incentivo à Cultura, com apoio do Polo Jequitinhonha UFMG.
O projeto encaminhou esse material para muitas rádios da região.
Dos cânticos das Lavadeiras de Almenara e dos corais de Araçuaí ao Saulo
Laranjeira, passando por Zeca Colares, violeiro de Botumirim radicado em
São Paulo; pela sofisticada composição de Arlindo Maciel, de Minas Novas;
o cantor e compositor Dr. Vagner Santos, de Rubim e professor da Escola
de Odontologia da UFMG; até desaguar na bela música contemporânea
de Pedro Morais, de Belo Horizonte, mas que tem um pé em Minas Novas.
Não posso deixar de citar o belo LP Notas de viagem do Jequtitinhonha,
de Leri Faria e Melão, de Uberaba e Belo Horizonte, respectivamente. Esse

140
disco foi feito através do Projeto Jequitinhonha, um grupo de artistas de
várias áreas viajou pelo Jequitinhonha em 1979 e produziu, além desse
disco, filme, telas, livros, com destaque para a participação do poeta Adão
Ventura, da cidade do Serro.
É um tanto quanto complexo escrever sobre a música do Jequitinhonha,
pois importantes movimentos musicais bem anteriores a esses aconteceram
na região, desde a música erudita de orquestra e bandas de Diamantina,
Serro, Minas Novas, dos tempos áureos da mineração, música essencialmente
religiosa, até as serestas que hoje embalam as vesperatas em Diamantina.
Não somente essa parte mais antiga e erudita, como também a músi-
ca popular e folclórica do Jequitinhonha vem sendo estudada por pesqui-
sadores, historiadores, antropólogos e folcloristas, como Frei Chico, prof.
José Moreira de Souza e Tadeu Oliveira.
Quero mergulhar na poesia de Cláudio Bento (Jequitinhonha), Mariana
Botelho (Padre Paraíso), Wesley Pioest (Rubim), no “Fanadês Jequitinhonhês
Minerês” de Carlos Mota (Minas Novas), nos violões de Rubens Espíndola
(Joaíma), Ivo Pereira (Diamantina) e Miguel Mota (Rubim), nos tambores de
Araçuaí, Minas Novas, Serro e outras serras. E, mesmo sem entender, muito
menos querer explicar de onde vem o poder criativo desse povo, poder cantar
melhor e honrar essa terra chamada Jequitinhonha.
E vou, como diz o Geraldo Vandré:

Os amores na mente
As flores no chão
A certeza na frente
A história na mão
Caminhando e cantando
E seguindo a canção
Aprendendo e ensinando
Uma nova lição

Tudo que faço aqui pode ser nada mais que hipóteses e conjecturas.
Datas não são tão corretas e também não posso ser acadêmico. Fui ape-
nas deixando fluir o que vinha na minha memória desses anos dourados,
uns vividos, outros escutados e, como um contador de causos, tentei
contar-lhes algumas histórias.
Agradeço aos amigos e amigas do Polo Jequitinhonha da UFMG pelo
convite para participar deste Visões do Vale e pela oportunidade de me fazer
rememorar, repensar e refletir sobre a minha função de artista e cidadão.

141
Encerro aqui meus riscos e rabiscos com um trecho do poeta Gonzaga
Medeiros, o mesmo que disse “o rio morre de sede” e outras pérolas poéticas:

Nós somos o Vale


Nós valemos mais pelo que somos e menos pelo que temos.
Valendo assim e assim sendo, sempre valeremos.

Belo Horizonte, outubro de 2011

Rubinho do Vale é compositor e cantor da cidade de Rubim. Nasceu na


roça, na região do Bom Jardim, município de Jacinto. Estudou Engenharia
Geológica na Escola de Minas da Universidade Federal de Ouro Preto
(UFOP), mas não concluiu o curso.
Foi estudar sua terra por outros ângulos e aspectos. Gravou o primeiro
LP em 1982 e hoje tem vários discos lançados, sendo alguns dedicados
às crianças. O Vale do Jequitinhonha é sua maior fonte de inspiração.
Em dezembro de 2003, recebeu do ministro da Cultura Gilberto Gil e do
presidente Lula a Medalha da Ordem do Mérito Cultural. Esta é a maior
condecoração do governo brasileiro aos artistas e intelectuais do Brasil
pelo reconhecimento da sua obra.

142
Uma visão teatral do Vale
Fernando Limoeiro

Aos meus alunos e companheiros do Vale.

Mais do que uma análise e uma visão, este texto é um depoimento.


Sempre fui e sempre serei um homem a serviço do teatro e que faz um tea-
tro a serviço do homem e da história. O palco é meu circo mágico e minha
tribuna; o que nele enceno é por necessidade, por cidadania plena, sem
jamais perder a poesia e o crivo da estética. Meus atores estão nas favelas,
nos sertões, nas pequenas cidades do interior do Nordeste, de Minas, do
Brasil. Gente que quer aperfeiçoar a expressividade e tem fome e desejo de
expor sua criatividade, mas não tem acesso ao conhecimento básico das
técnicas de representação. Artistas que precisam tomar consciência de que
é preciso potencializar seu corpo e sua voz, posto que o corpo, a voz e a
energia cotidianos não servem para a arte teatral. Para eles e por eles fui
além das salas de aula da universidade e me tornei professor e aprendiz.
Vim de uma formação de teatro popular de mobilização, buscando instigar
a cidadania plena no agreste de Pernambuco, e até hoje, como coordenador
do Programa Polos de Cidadania, em que dirijo a Trupe a Torto e a Direito,
venho fazendo um teatro com esta função estética e política. Seguindo o
postulado do grande Bertolt Brecht: “educar divertindo e divertir educando”.
Foi este perfil que me levou ao Vale, onde permaneço atuando até hoje.
Minha trajetória como homem de teatro no Vale começou no início
dos anos 1980, nas importantes Jornadas Culturais de Capelinha, aten-
dendo ao convite da agitadora cultural Geralda (Preta), estende-se por
vários Festivales e chega até hoje com a implantação do Teatro de Bonecos
Popular Brasileiro Mamulengo, com o Grupo Murion de Padre Paraíso.
Em todo esse tempo, não fiz outra coisa a não ser trocar e levar meus
conhecimentos como professor de improvisação e interpretação teatral
do Centro Teatro Universitário da Universidade Federal de Minas Gerais
(TU-UFMG) para todos aqueles que usavam o palco como seu meio de ex-
pressão. Sem um mínimo de conhecimento técnico, a manifestação teatral
perde em conteúdo e forma. Minha preocupação central sempre foi a de
conscientizar a necessidade da disciplina, ética e técnicas básicas, para o
florescimento e maior aproveitamento do talento e da criatividade latentes
nos artistas amadores e profissionais de teatro dessa região tão rica em

143
manifestações artísticas e folclóricas. É ideologicamente prazeroso saber
do efeito multiplicador que se pode obter num trabalho desta natureza.
Como homem formador de artistas para o sagrado e árduo ofício te-
atral, sempre fui muito rigoroso nos meus cursos intensivos, extraindo e
obtendo desses jovens o melhor, para não dizer o mais surpreendente re-
sultado. Motivados, muitos desses jovens vieram buscar formação teatral
no TU-UFMG e demais escolas de teatro de Belo Horizonte. Minha fama de
mestre durão e exigente muitas vezes foi confundida com prepotência; é
que o rigor incomoda (a começar pela pontualidade) e toda aprendizagem
verdadeira nos tira da zona de conforto. Meu trabalho é o de lapidação,
de extrair o melhor da expressividade e criatividade de cada aluno. É gra-
tificante sentir nas aulas abertas os resultados da aprendizagem básica
dominada pelos talentosos alunos do Vale em tão curto espaço de tempo,
pois os cursos em sua grande maioria são intensivos (carga horária de 35
horas-aula). Para isso, é necessário trabalho duro e muitas vezes com crí-
ticas quase nunca confortáveis, mas visando sempre ao aperfeiçoamento.
É desastroso para o teatro confundir amadorismo com falta de rigor cênico.
Teatro pode e deve ser feito em qualquer espaço, mas sem nunca perder
o conhecimento, a “artesania”, a criatividade e o rigor estético. Martelava
e insisto nessa tomada de consciência em todos os meus cursos no Vale
e Brasil afora. Só deve fazer teatro quem gosta de mergulhar na condição
humana. Um grupo de teatro deve ser um espaço para cultura, criatividade,
troca de conhecimento, exercício da disciplina e do comprometimento.
Em todos estes anos como possível mestre, dramaturgo e encena-
dor, tenho me movido pelas regiões mais carentes de Minas e do meu
país. A Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal de Minas Gerais
(PROEX-UFMG), através da mestra Maria das Dores Pimentel, companheira
de luta na Campanha de Lixo e Cidadania, reconhece isto. Um trabalho
desafiador com vários grupos de cidades do Vale, em que, partindo de um
esquete básico, adaptávamos o texto para sua realidade e criávamos juntos
um espetáculo de rua. Todos os grupos que participaram deste projeto nos
deram grande retorno, comprovando o já reconhecido potencial criativo do
Vale. Meus ex-alunos, os atuais e os futuros alunos sempre me dão a cer-
teza de que vale a pena investir nesses jovens artistas e artesãos da cena.
Talento e cantares enchem o Vale de poesia, é para eles e com eles
que quero aprender, trocar e ensinar. Sinto que os corais com afinada
musicalidade, com repertório abrangente, mas sem perder as raízes,
adquiriram qualidade e forte teatralidade, assim como os espetáculos de
vários grupos já apresentam um resultado cênico com notada evolução

144
técnica. Diz o poeta que “o artista tem que estar onde o povo está”. É
isso que faço no Vale, enquanto me for permitido e me sentir útil, como
agora, implementando o Teatro Popular de Bonecos, o Mamulengo, com
o Murion. Em troca, vou aprendendo e me deliciando com os poetas,
os demiurgos como mestre Antonio do Tambor, com atores, cantores e
artesãos do Vale, que alimentam minha alma com a supremacia da beleza.
É com eles que troco a aprendizagem do coração. E o que se aprende com
o coração costuma permanecer.

Fernando Limoeiro é professor e diretor do Centro Teatro Universitário


da UFMG e coordenador do Programa Polos de Cidadania da Faculdade
de Direito da UFMG.

145
Rio Jequitinhonha, Coronel Murta /Jequitinhonha

A CONSTRUÇÃO DE UM MOVIMENTO CULTURAL


Geraes : uma história do Jequitinhonha
Tadeu Martins

Quero, em primeiro lugar, agradecer aos professores João Valdir e


Marizinha Nogueira pelo convite para participar do seminário Visões do Vale,
que tive a honra de acompanhar em edições anteriores. Eu sou de Itaobim,
município situado no coração do Vale do Jequitinhonha, e fui convidado para
falar sobre o Geraes, um dos mais importantes veículos de comunicação do
Vale, que ajudou na organização política e cultural do povo da nossa região.
Como sou contador de “causos”, vou começar contando uma pequena história.
Na noite de 10 de abril de 1977, domingo de Páscoa, vários estudan-
tes que foram passar a Semana Santa em Itaobim tentaram viajar para
Belo Horizonte. A empresa Gontijo tinha as linhas Salto da Divisa/Belo Ho-
rizonte e Almenara/Belo Horizonte, insuficientes para atender a demanda
do Médio e Baixo Jequitinhonha.
Nos feriados prolongados como Carnaval, Semana Santa, 7 de Setembro,
Natal e Réveillon, os ônibus saíam lotados das duas cidades e nunca sobravam
lugares para quem estava em Jequitinhonha, Itaobim ou Padre Paraíso.
Viajar dessas três cidades para Belo Horizonte era uma verdadeira maratona.
Tínhamos de fazer um “pinga-pinga” até Teófilo Otoni, de Teófilo Otoni a
Governador Valadares e dali a Belo Horizonte, de ônibus ou de trem. A viagem
podia durar bem mais de 24 horas. Naquela noite, não conseguimos viajar.
Na manhã de segunda-feira, 11 de abril de 1977, Aurélio Silby, José
Alberto e eu viajamos de Itaobim para Teófilo Otoni, almoçamos em Teófilo
Otoni, viajamos à tarde para Governador Valadares e conseguimos viajar de
trem para Belo Horizonte, onde chegamos no dia 12 de abril.
Aurélio Silby estudava Economia na PUC Minas, trabalhava na Caixa
Econômica Federal e era presidente do Diretório Acadêmico de Economia
da PUC Minas. José Alberto, o Zé Lobo, estudava em cursinho pré-vesti-
bular e trabalhava na Construtora M. Roscoe. Eu estudava Engenharia
Química na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), era professor de
Química em cursos pré-vestibulares e militante do movimento estudantil,
com trabalhos prestados ao Grêmio da Engenharia Química, ao Diretório
Acadêmico da Engenharia e ao Diretório Central dos Estudantes da UFMG,
principalmente na área cultural.
Naquela demorada viagem de volta para Belo Horizonte, conversamos
muito sobre a triste realidade do Vale do Jequitinhonha, conhecido

148
apenas como Vale da Miséria, Vale da Fome ou Vale do Marcha a Ré. No
balanço dos ônibus e do trem, foi arquitetada a ideia de se fundar alguma
organização capaz de contribuir para o desenvolvimento do Vale do
Jequitinhonha. Era preciso criar uma forma de melhorar a comunicação
entre as cidades, o que ajudaria a estabelecer instituições populares
organizadas, como associações e sindicatos, e a reforçar o trabalho das
poucas que já existiam, como alguns Sindicatos de Trabalhadores Rurais e
a Associação dos Artesãos de Araçuaí.
Um mês depois, em meados de maio de 1977, o Aurélio me procurou
dizendo que havia conversado com George Abner, um pedra-azulense
estudante de Jornalismo na PUC Minas, e que ele se interessou em conversar
sobre o projeto. Aurélio e George eram militantes de uma organização política
clandestina, o Movimento de Emancipação do Proletariado (MEP).
Em 29 de maio de 1977, um domingo, Aurélio, George e eu nos encon-
tramos na casa do George, no bairro Prado. Ali discutimos a ideia de se criar
um jornal que abordasse a situação política do Vale do Jequitinhonha e que
circulasse em Itaobim e Pedra Azul. Saindo dali, procurei o pernambucano de
Caruaru e filho adotivo de Itaobim Carlos Castilim Figueiredo, estudante de
Sociologia na UFMG. Irrequieto e muito inteligente, Carlos estudou Medicina
na UFMG, abandonou o curso depois de dois anos, passou no vestibular de
Economia, estudou um ano e se transferiu para Sociologia. Anarquista por
natureza, ele preferia descobrir o caminho fazendo a caminhada.
Em junho de 1977, houve uma primeira reunião com os quatro que
seriam os criadores do jornal Geraes, Aurélio, Carlos, George e eu. Era
preciso arregimentar mais pessoas do Vale que estivessem dispostas a co-
laborar naquela caminhada. Convidei mais quatro itaobinenses que se ani-
maram com a ideia: João Lefú, Julinho Soares, Zé Lobo e Jansen Chaves.
Nos cursinhos onde eu lecionava, havia muitos alunos do Vale e consegui
levar alguns deles para o Geraes.
A primeira reunião mais ampla do grupo começou no Bar Veia Poética,
na Rua Guajajaras, quase esquina com a Rua da Bahia, e foi encerrar no
Bar New Hamburger, na Avenida Augusto de Lima com Espírito Santo.
Naquela época, o Brasil vivia sob o regime do medo, uma ditadura
militar implantada em 1º de abril de 1964, dura, cruel e assassina. A
discussão política era proibida, as pessoas tinham medo de se envolver
em qualquer movimento, todos sabiam de casos de prisão, tortura e até
morte de estudantes que ousaram contestar a ditadura militar. Por isso,
a primeira reunião foi aquém da nossa expectativa. Além dos nomes já
citados aqui, outras pessoas participaram da reunião, mas a maioria se

149
comprometeu a colaborar desde que seus nomes não aparecessem em
nenhum lugar no futuro jornal.
Voltamos ao ponto de partida, apenas os quatro seriam os fundadores
do veículo de comunicação e mais os colaboradores João Lefú, Zé Lobo
e Jansen Chaves. Como os sonhos não podiam morrer, aproveitamos a
reunião improdutiva para perceber que pessoas de outras cidades do
Vale ficaram muito animadas com a ideia. Isso nos ajudou a ampliar os
horizontes, sonhando com um jornal que circulasse não só em Itaobim e
Pedra Azul, mas em várias cidades do Vale do Jequitinhonha.
Era preciso escolher um nome para o jornal e cada um ficou de levar
sugestões na reunião seguinte. Ela aconteceu em agosto de 1977 na casa
de Carlos Castilim Figueiredo, no bairro Floresta. Aurélio, Carlos, George,
Zé Lobo, Jansen e eu analisamos uma lista de 19 nomes, que eu e Jansen
anotamos em um guardanapo de cozinha.
Por maioria, foram escolhidos dois nomes para o futuro jornal:
Queimada e O Jagunço.
O George Abner não gostou dos nomes, alegando que “queimada” era
prejudicial à terra e “jagunço” era uma realidade que o jornal lutaria para
fazer sumir da nossa região. Alguns dias depois, inspirado pelo LP de Milton
Nascimento, George sugeriu o nome que foi aceito por todos: Geraes.

Figura 1 – Lista de 19 nomes pensados para o jornal, anotados em um


guardanapo de cozinha por Tadeu Martins e Jansen Chaves

150
A partir de agosto de 1977 existia uma ideia e um nome, mas sem
qualquer estrutura para começar o projeto. Foi assim que Aurélio, Carlos,
George e eu partimos para a luta. Nós queríamos um jornal alternativo,
que mostrasse o Vale do Jequitinhonha e o seu povo, que incentivasse a
sua organização e a sua luta por melhores condições de vida.
Começamos a viajar pelo Vale em busca de parceiros, visitamos
sindicatos de trabalhadores rurais, igrejas, professores, estudantes e
alguns políticos do então Movimento Democrático Brasileiro (MDB).
Poucos aceitaram participar. Todos concordavam com a ideia, mas o
medo da ditadura militar falava mais alto.
Dos quatro, Aurélio Silby era o único que tinha carro, um Passat
branco, que passou a ser a condução para o Vale do Jequitinhonha.
Aurélio e eu, que tínhamos emprego fixo e salário melhor, “patrocinamos”
as primeiras viagens.
Era preciso conhecer o Vale do Jequitinhonha e o seu povo.
Conhecer as poucas organizações populares que existiam. Sair das
generalidades e conhecer de fato as estruturas políticas dominantes,
os políticos picaretas e as instituições dos latifundiários, já que
precisávamos combatê-los. Foi um período fértil de discussões políticas
internas: Aurélio e George, militantes do MEP; Carlos Castilim e eu, que
sonhávamos uma vida melhor para os brasileiros, não éramos filiados
em partidos legais ou clandestinos.
Foi um longo processo de aprendizado. Todo e qualquer assunto
era discutido à exaustão. Nós nos formamos e nos informamos para
futuramente levar informação e formação política para o Vale do
Jequitinhonha. Viajamos muito, sempre com a ideia de conhecer melhor
a realidade e de criar núcleos de sustentação em cada cidade visitada.
O tempo passava e ainda não tínhamos como concretizar o sonho.
Em novembro de 1977, Aurélio, João Lefú e eu viajamos para
Itaobim. Lá havíamos conseguido um grande parceiro para a ideia, o
professor João Pereira dos Santos, meu ex-aluno e amigo.
Aproveitando o feriado, Aurélio e eu viajamos para Pedra Azul,
para conhecer Lodônio Figueiredo, indicado por George para conduzir
os destinos do Geraes em Pedra Azul. Viajamos no carro do Aurélio.
Chegando ao entroncamento de Pedra Azul, paramos em um bar para
um lanche e encontramos um jovem magro e cabeludo, com uma
mochila de lona, que acabara de descer de um ônibus vindo de São
Paulo. Como ele ia para Pedra Azul, resolvemos lhe dar uma carona.

151
Falante, ele disse ser pedra-azulense, morava em São Paulo, onde era
dono de um bar, segundo ele um ponto de encontro de muitos artistas.
Do entroncamento até Pedra Azul, cerca de 15 quilômetros, falamos
de política e cultura. Ele se entusiasmou com a ideia do jornal Geraes.
Depois disso, só fomos reencontrar aquele jovem caronista em Minas
Novas, no Festivale de 1983, quando a semente já havia dado muitos
frutos. O jovem era Saulo Pinto Muniz, conhecido como Saulo Laranjeira,
apelido herdado do seu bar em São Paulo, o Fulô de Laranjeira.
Passamos muitas horas com o Lodônio, que nos mostrou muitas
fotos de Pedra Azul e adjacências. Grande figura, bom fotógrafo, politizado
e impaciente com mudanças lentas, Lodônio acreditava que podíamos
partir para uma organização política, que, se necessário, iria para a luta
armada. No fundo, essa ideia passava pela nossa cabeça, pois era preciso
derrubar a ditadura sangrenta que massacrava o povo brasileiro.
Voltamos mais animados de Pedra Azul. Em Itaobim, Aurélio, João
Lefú e eu nos encontramos no Bar do Araújo, na Praça Afonso Martins,
e redigimos um texto pedindo apoio financeiro para a criação do jornal
Geraes. A maior parte do texto foi do João Lefú, que o escreveu na
primeira página de um livro de ouro. Nascia ali a viabilização do jornal.
Com aquele livro nas mãos, Aurélio, João Lefú e João Pereira visitaram
o empresário José Fernandes Ribeiro, dono do frigorífico Maisa, que
foi o primeiro a colaborar. Conseguimos também apoio do meu avô,
Afonso Martins e depois procuramos outros itaobinenses que também
contribuíram com pequenas quantias.
Em Belo Horizonte, com o livro de ouro nas mãos, Carlos Castilim e eu
procuramos deputados, vereadores, jornalistas e pessoas reconhecidamente
do campo político da esquerda. Com aquelas contribuições tínhamos o
sonho, a ideia e o dinheiro para começar o trabalho. Esse livro de ouro do
Geraes deve estar hoje nos arquivos da Federação das Entidades Culturais
e Artísticas do Vale do Jequitinhonha (Fecaje).
Com a grana arrecadada, partimos para o registro do jornal
Geraes. Para registrá-lo, precisávamos de um endereço, um jornalista
formado e um proprietário para o jornal. George Abner, único jornalista
do grupo, passou a assinar como jornalista responsável e Carlos
Castilim teve a coragem de dar o seu nome como proprietário do jornal
e o seu endereço para ser a sede oficial do Geraes, consciente de todos
os riscos que corria.
Assim, foi registrado no Cartório Jero Oliva, sob número 633 – Livro B-1,
o jornal Geraes, com sede administrativa no bairro Floresta, em Belo Horizonte.

152
Vencida aquela etapa, começamos a discutir as matérias que de-
veriam sair no exemplar número zero do Geraes. Era uma verdadeira
aula de democracia, nenhum dos quatro tinha poder, apenas o poder de
convencimento para emplacar as matérias que indicava. Aprovadas as
indicações, discutimos qual o enfoque deveria ser dado a cada matéria.
Às vezes, uma palavra gerava minutos de discussão. Não estávamos ali
para brincadeiras, tínhamos um sério compromisso com o povo do Vale do
Jequitinhonha, região que passou a ser o norte das nossas vidas.
Naquele momento da história brasileira, os grandes veículos de
comunicação, os mais comprometidos com os destinos do Brasil, como
a Folha de S.Paulo, Estado de São Paulo, revista Veja, O Pasquim e
Jornal Movimento, eram censurados, vigiados e tiveram jornalistas
presos. A grande maioria dos jornais da chamada grande imprensa
fazia o jogo da ditadura militar para sobreviver ou era defensora dos
generais, fazendo o que os ditadores mandavam, buscando assim uma
forma de crescimento. O Brasil estava mergulhado na violência, em
prisões ilegais, torturas, assassinatos de opositores políticos, e nada
era divulgado. Lendo um jornal como o Estado de Minas, a impressão
que se tinha era de que o Brasil andava às mil maravilhas. Para os
militares, era melhor que o povo não soubesse daquelas atrocidades. As
emissoras de televisão eram todas vendidas aos interesses dos militares.
A Rede Globo teve o auge do seu crescimento naquele período, fazendo
concessões, ajudando a promover os governos militares, desde o início
do golpe militar. Tudo era escondido do povo brasileiro.
A ditadura militar havia se instalado no Brasil em 1º de abril de
1964 e teve os seus piores momentos nos governos dos ditadores Costa
e Silva e Emílio Garrastazu Médice. Em 1978, quando nasceu o jornal
Geraes, já havia melhorado um pouco, mas ainda existia a violência
contra quem não concordava com os desmandos da ditadura.
Se a grande imprensa era censurada e se parte dela estava a ser-
viço dos generais, existiam no Brasil os chamados jornais alternativos,
independentes ou da imprensa nanica, que tinham coragem para falar
a verdade, mesmo que fosse nas entrelinhas. Estes foram os modelos
usados para se criar o Geraes: jornais Movimento, O Pasquim, De Fato
e Em Tempo. Esses periódicos sofriam as mais grosseiras perseguições,
seus jornalistas eram presos, torturados, mas continuavam firmes no
princípio de ter compromisso com a verdade e com o povo. Eles contri-
buíram muito para o fim da ditadura militar, que só foi enterrada de
fato em 1984.

153
Quando estávamos às voltas com as matérias para o primeiro
exemplar do Geraes, o jornal Estado de São Paulo publicou uma série
de reportagens sobre o Vale do Jequitinhonha, escritas pelo jornalista
Ricardo Kotscho. Aquelas reportagens foram um ponto de partida, e na
nossa edição de estreia são encontradas várias citações dessa série.
Para criar a logomarca do Geraes, eu e o Carlos Castilim discutimos
uma ideia e a apresentamos ao meu tio Manoel Soares, um dos grandes
artistas plásticos e compositores que o Vale do Jequitinhonha já gerou. Déo
Soares, irmão de João Lefú, não só aceitou criar a logomarca, como passou
a assinar junto com Carlos Castilim a coluna Clic, página cultural, com
charges e textos.
Para ajudar a criar um projeto gráfico para o Geraes, procuramos dois
grandes companheiros, jornalistas, que editavam um jornal alternativo em
Belo Horizonte, o Jornal dos Bairros. Eles eram da diretoria do Sindicato
dos Jornalistas de Minas Gerais e foi lá que receberam Aurélio, George e eu,
para nos ajudar a diagramar e distribuir as matérias nas páginas da edição
número zero. Os dois jornalistas que auxiliaram na escolha de uma cara
apresentável para o Geraes foram José Amaro, o Zinho, que foi chefe da
Assessoria de Comunicação do prefeito Patrus Ananias e que hoje é geren-
te da Rede Globo Minas; e o Nilmário Miranda, que foi deputado estadual,
deputado federal, ministro e candidato a governador de Minas Gerais. Dois
valorosos companheiros, combativos, sérios, que mereceram cada degrau
conquistado na escada da vida.
Com todo o material nas mãos procuramos a Gráfica e Editora
Batangüera, situada na Rua Jacuí, no bairro Floresta, dirigida pelos
jornalistas Miguel Ângelo e Marco Antônio, que foram também pacientes
professores na criação do jornal e cúmplices, quando foi preciso
esconder da Polícia Federal uma edição do Geraes que seria apreendida.
Assim, em março de 1978 chegava ao Vale do Jequitinhonha o jornal
Geraes, o mais importante veículo de comunicação já editado naquela
região, que aos trancos e barrancos ajudou a criar uma identidade para o
Vale, ajudou a elevar a autoestima daquele povo.
O Geraes, jornal tabloide, formato 37 x 27 centímetros, impresso
em preto e branco, com tiragem de três mil exemplares, viveu sete anos:
de março de 1978 a julho de 1985.
Cerca de 180 pessoas fizeram parte dessa história, militantes e
colaboradores de todas as cidades do Vale do Jequitinhonha.

154
Figura 2 – Primeira edição do jornal Geraes, de março de 1978

O Vale do Jequitinhonha

Que região era aquela que tanto nos fascinava, que nos levou a dedicar
uma parte das nossas vidas a estudá-la, compreendê-la e a buscar formas
de organização social capazes de jogar por terra os nomes que ela levava, que
tanto nos entristecia, Vale da Miséria, Vale da Fome ou Vale da Marcha a Ré?
Para nós o Vale era uma região rica, de povo empobrecido pela explo-
ração política.
Na verdade, a exploração política daquela região começou no período em
que Portugal só queria as nossas riquezas. Naquela época, o poder em Minas
Gerais era exercido em Vila Rica (Ouro Preto) e o Vale do Jequitinhonha, com
o seu potencial de garimpos de ouro, diamantes e pedras preciosas, não po-
deria se desenvolver muito, para não oferecer perigo. Cidades como Serro
(1.700), Diamantina (1.713) e Minas Novas (1.730), já eram destaque na
vida do Brasil. Para os governantes de então, a região era importante, mas
não poderia se desenvolver. Para o Vale, eram mandados apenas soldados,
que tinham a tarefa de garantir a proteção de minas e garimpos, impedin-
do o contrabando das riquezas minerais. O Vale foi deixado de lado, era
apenas uma fonte de riquezas para a Coroa portuguesa. De lá tiravam tudo
e nenhum benefício era dado em troca, nem mesmo uma pequena melhoria

155
na infraestrutura. Por outro lado, era uma região tão importante que alguns
inconfidentes, como Padre Rolim e Tiradentes, estiveram ali buscando apoio
para a luta pela libertação do Brasil.
O Vale do Jequitinhonha ocupa quase 15% do território de Minas Gerais
e é a região banhada pelo Rio Jequitinhonha e seus afluentes. O rio nasce no
Pico do Itambé, na cidade do Serro, e deságua no mar na cidade de Belmonte,
na Bahia. Região rica em ouro, diamante, pedras preciosas, granito, estanho,
grafite e vários outros minerais, de terra fértil, com grande vocação para a fru-
ticultura. O êxodo era imenso, os filhos do Jequitinhonha se espalhavam por
outras regiões de Minas Gerais e pelas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo.
Conhecendo tudo isto, era difícil aceitar a pobreza do povo que ali habi-
tava. Havia um grande desequilíbrio social, de um lado uns poucos latifun-
diários, coronéis de terras e de poder eleitoral, e do outro a grande maioria
do povo: lavradores, camponeses, pequenos produtores rurais, pequenos co-
merciantes e trabalhadores, empobrecidos e explorados, que aceitavam como
vontade divina os seus destinos, “assim estamos porque assim Deus quis”.
Em 1978, quando o Geraes nasceu, existia um órgão do Governo de
Minas Gerais, a Comissão de Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha
(Codevale), encarregada de planejar e executar projetos para o seu desen-
volvimento. Apesar da boa vontade e da dedicação dos dirigentes e, prin-
cipalmente, dos funcionários da Codevale, a instituição não tinha dotação
orçamentária para implantar políticas que realmente contribuíssem para
o desenvolvimento da região. O nosso povo, sabiamente, dizia: “Aqui, a
Codevale não acode, nem vale”.
Nas 52 cidades da região, todos os prefeitos e a quase totalidade dos seus
vereadores eram comprometidos com a ditadura militar. Nunca se uniram para
reivindicar propostas concretas que contribuíssem para o desenvolvimento da
região. Só havia pequenas obras, pequenos favores e ausência total de planos
mais ousados para retirar a região do atraso em que vivia.
Coronéis políticos como Hormínio Almeida (Pedra Azul), Epaminondas
Cunha Melo (Jequitinhonha), Afonso Martins (Itaobim), Cunha Peixoto
(Salto da Divisa), João Antunes (Diamantina) e Hugo Lopes (Turmalina)
gastavam o seu dinheiro patrocinando a eleição de deputados, que em
troca lhes davam prestígio e apoio político. Todos se orgulhavam de
serem conhecidos, respeitados e recebidos em Palácio pelos governadores,
quando bem quisessem. Muitos eram humanistas, caridosos, mas todos
eles pagavam muito caro pelo prestígio e poder que tinham. E conseguiam
apenas migalhas para a região, ajudavam muito os seus correligionários

156
políticos e tinham o poder de trocar delegado, transferir policiais e nomear
diretoras de escolas e órgãos públicos locais.
Os coronéis políticos do Vale eram diferentes daqueles de outras re-
giões do Brasil. Numa época em que a corrupção era imensa, em que os
governos militares ajudavam os seus apadrinhados a crescerem financei-
ramente, nenhum dos coronéis do Vale ganhou dinheiro com o exercício
da política. Alguns venderam fazendas e gado para ter prestígio e poder.
Pode-se sugerir aos sociólogos e antropólogos que pesquisem sobre aque-
les coronéis políticos do Vale do Jequitinhonha, que atuaram entre 1950 e
1980. É um assunto com potencial para uma excelente obra. Fica registrada
a sugestão, vale a pena aprofundar-se nesse tema.
A ditadura militar acabou com todos os partidos políticos então exis-
tentes no Brasil. E, para parecer que existia uma democracia no país, cria-
ram dois novos partidos. As eleições no Vale não ofereciam surpresa, ga-
nhavam sempre os candidatos da Arena, partido do governo ditatorial. Na
maioria das cidades nem existia o MDB, o partido de oposição.
O Geraes não foi bem recebido pelos políticos da região. Muitos até ten-
tavam fingir que estavam apoiando a ideia, mas corriam da equipe do jornal
como diabos correm da cruz. Para o Geraes, entrevistá-los era muito difícil,
mas em outros jornais da região eles pagavam para serem entrevistados. A
nossa equipe já foi ameaçada ou expulsa de algumas cidades onde estava
levantando dados e/ou fazendo entrevistas, como aconteceu em Berilo, com
os companheiros George Abner, Clênio Salviano e Guty Antunes.
O povo do Vale do Jequitinhonha nos acolheu muito bem. Povo hospita-
leiro, bom de prosa, bom de causos, criativo e alegre, apesar dos pesares. Com
o decorrer do tempo, a equipe do Geraes, que começou pensando até em luta
armada, percebeu que a cultura era a arma para trabalhar com aquele povo.
Aprendemos muito com o povo do Vale do Jequitinhonha. Entre artesanato,
violas, tambores, sanfonas, batuques e muitos sonhos, plantamos muitas se-
mentes no coração daquele povo e colhemos gratidão e carinho.
Aurélio, Castilim, Jansen e eu brincávamos muito quando viajávamos
pelo Vale, dizendo que estávamos criando a “FÊJILÊ” – Força Jequitinho-
nhense de Libertação – que haveria de implantar a “República Independente
do Jequitinhonha”.
O Geraes ajudou a criar sindicatos, associações de classe (pedreiros,
lavadeiras, artesãos) e muitas entidades culturais no Vale do Jequitinhonha.
Em 3 de novembro de 1979 o Geraes realizou em Itaobim o I Encontro de
Compositores do Vale do Jequitinhonha, evento que reuniu 22 compositores,

157
vindos de 15 cidades da região. O encontro foi um importante passo para
a história cultural do Vale do Jequitinhonha e isso se deveu ao sucesso
do cartaz do evento. Quando pensamos em sua criação, observei um car-
taz que era usado pela ditadura militar para tentar prender os valorosos
brasileiros que lutavam contra a opressão, e que eles chamavam de ter-
roristas. Copiei o cartaz da ditadura, sob o título “Procurados”, e coloca-
mos fotos de alguns compositores que participariam do evento. Quando
afixamos os cartazes em postes, comércio e muros, em Belo Horizonte e
no Vale, o povo não lia o texto, e dizia que nós estávamos sendo procu-
rados pela polícia. A repercussão foi tão grande que fomos entrevistados
por todos os canais de TV de Belo Horizonte e todos os jornais impressos
publicaram matérias sobre o encontro.

Figura 3 – Sob o título “Procurados” e parodiando cartaz usado pela ditadura militar, este foi o
meio de divulgação elaborado para o I Encontro de Compositores do Vale do Jequitinhonha

O evento, que ganhou o nome de “Procurados”, foi o ponto de partida


para a criação do Festival de Cultura Popular do Vale do Jequitinhonha
(Festivale), que nasceu em Itaobim, em julho de 1980, e ajudou a mudar a
história cultural do nosso Vale. O Festivale foi idealizado para ser o ponto
de encontro de todas as áreas do fazer cultural da região. Como autor do
projeto, eu queria que ele acontecesse todos os anos em Itaobim, e defendi
esta tese que, felizmente, foi vencida pela proposta do Aurélio Silby, de que
o evento deveria circular pela região. Assim nasceu o Festivale, que acon-
tece no mês de julho, cada ano em uma cidade do Vale.

158
O Festivale possibilitou o surgimento de novas lideranças e de artistas
como Célia Mara, Gonzaga Medeiros, Paulinho Pedra Azul, Rubinho do Vale,
Saulo Laranjeira, Tadeu Franco e tantos outros que hoje se apresentam
nos palcos do mundo. Só na área musical o Festivale revelou mais de 80
artistas, que hoje têm discos gravados.
O Vale da Miséria se transformou no Vale da Cultura. Jequitinhonha,
o Vale de um povo que aprendeu a fazer da arte o retrato vivo das suas
lutas e esperanças.
O Geraes e o Festivale viraram temas de monografias de graduação,
dissertações de mestrado e teses de doutorado em universidades de Minas
Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Bahia, Pernambuco e
Brasília, o que, sem dúvida alguma, ajudou o Vale do Jequitinhonha a ser
mais conhecido. Eu fui o único a guardar uma coleção completa do Geraes
e era sempre procurado pelos autores desses trabalhos acadêmicos, o que
fez nascer o projeto de disponibilizar em livro todas as edições do periódico.
Em novembro de 2010, 25 anos depois da última edição do Geraes,
Aurélio Silby, Carlos Castilim, George Abner e eu viajamos novamente
pelo Vale, com o objetivo de colher material para uma edição especial
do jornal, que foi lançada em Belo Horizonte, no Restaurante Maria das
Tranças, em 26 de maio de 2011.

Figura 4 – Edição especial do Geraes, elaborada por Aurélio Silby, Carlos Castilim, George Abner
e Tadeu Martins 25 anos após a última publicação, com lançamento em maio de 2011

159
A proposta de lançamento da edição especial do Geraes foi abrir es-
paço para se rediscutir a região e a busca de caminhos para o seu desen-
volvimento. A edição especial foi anexada às demais edições do jornal, para
compor o livro Geraes, a realidade do Jequitinhonha, que foi distribuído
para escolas, bibliotecas, entidades culturais, secretarias municipais de
Cultura e de Educação e sindicatos do Vale do Jequitinhonha, bem como
para os quase 180 companheiros que fizeram parte do Geraes.
Esta é uma história que precisava ser contada. Esperamos que
o livro seja útil para o povo da região e para todos aqueles que querem
conhecer um pouco mais a vida de uma das mais expressivas regiões
de Minas Gerais. Que possa contribuir para uma maior reflexão sobre o
Jequitinhonha e o seu povo, e que ajude os mais jovens a trabalhar para
melhorar a qualidade de vida, o que só acontecerá com uma verdadeira
união do seu povo, em torno de projetos sérios para a região.
As viagens pelo Vale, a edição especial do Geraes e o livro só se via-
bilizaram com projeto aprovado pela Lei Federal de Incentivo à Cultura,
numa parceria que fizemos com a Associação de Desenvolvimento de Pro-
jetos (ADP) e com patrocínio do Banco BMG.

Figura 5 – Capa do livro Geraes, a realidade do Jequitinhonha,


composto por todas as edições do periódico

160
Hoje, quando percorremos o Vale do Jequitinhonha, percebemos
que o Vale passou a ser conhecido e respeitado pelo valor do seu povo e
pela sua cultura; e que, se muito foi feito, ainda existe muito por fazer,
pois o cenário cultural é muito triste, a região desconhece os seus valo-
res culturais, e, só para dar ideia da massificação, predominam o axé,
o breganejo e o funk nos eventos da região, tanto os organizados pelas
prefeituras quanto os organizados pelos produtores culturais.
Podemos afirmar que quatro fatores impedem o real desenvolvimento
da nossa região:

1 – A picaretagem política

O Vale ainda é um verdadeiro laboratório para políticos picaretas,


deputados estaduais e federais que querem ganhar as eleições a qualquer
custo. Viajam para o Vale e compram prefeitos, vereadores e outras lide-
ranças. Infelizmente, no Vale do Jequitinhonha os votos são vendidos por
cabos eleitorais e o povo fica a comer poeira na estrada da democracia,
sem defensores, pois a região vota em centenas de candidatos, de quase
todas as regiões do estado, exceto do próprio Vale.
Os deputados são os verdadeiros condutores da vida política do
Vale, impedindo que os prefeitos se unam, para evitar que surjam lide-
ranças regionais capazes de vencer uma eleição para deputado estadual
ou federal. Essa falta de união dos prefeitos da região é uma tristeza. É
inadmissível, por exemplo, que até hoje não tenha acontecido uma única
reunião entre os prefeitos das cidades ribeirinhas do Rio Jequitinhonha
para discutir os problemas do rio e para buscar soluções através do tra-
balho integrado de todos eles.
Claro que a implantação do voto distrital ajudaria a amenizar
ou mesmo resolver essa triste situação. Os outros problemas são
decorrentes dessa falta de representatividade política da região.

2 – O êxodo

A nossa região vê, a cada censo, uma diminuição da sua população.


Os filhos do Vale se espalham pelo mundo em busca de uma vida mais
digna. Só para se ter uma ideia: as cidades de Teófilo Otoni, Governador
Valadares, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo, juntas, têm hoje
mais filhos do Vale do que a própria região. Oferta de trabalho é o que

161
precisamos para mudar essa triste situação. Ouvindo os vale-jequitinho-
nhenses, muitas são as sugestões para gerar emprego e renda, e aqui
destacamos duas:

1. uma indústria de produção de vidro, capaz de abastecer o merca-


do de Minas e do Brasil. As areias do Jequitinhonha são especiais
e a sua localização facilitaria o escoamento da produção.
2. um trabalho turístico capaz de trazer o desenvolvimento, a partir
de quatro grandes roteiros: cachaça, artesanato, eventos e ecologia.

3 – BR-367: a estrada principal

Juscelino Kubitschek de Oliveira, o JK, nasceu em Diamantina e na


sua trajetória política, entre outros cargos, foi prefeito de Belo Horizonte,
governador de Minas Gerais e presidente da República.
Como presidente do Brasil (1956-1961), ele planejou uma estrada
capaz de alavancar o desenvolvimento da sua região natal e, para justi-
ficar o investimento, que não seria pequeno, ele a defendeu como uma
estrada turística, seguindo ao longo do Rio Jequitinhonha, para unir dois
grandes monumentos turísticos brasileiros. E JK materializou o seu de-
sejo, construindo a estrada que corta o Vale do Jequitinhonha, que hoje
se chama BR-367, ligando Diamantina a Porto Seguro (BA). A rodovia
tem 733 quilômetros de extensão e se divide em 17 trechos:

Trecho Distância
Diamantina – Couto Magalhães de Minas 31 km

Couto Magalhães de Minas – Entroncamento Turmalina 135 km

Entroncamento Turmalina – Turmalina 31 km

Turmalina – Minas Novas 26 km

Minas Novas – Chapada do Norte 20 km

Chapada do Norte – Berilo 21 km

Berilo – Virgem da Lapa 26 km

Virgem da Lapa – Araçuaí 30 km

Araçuaí – Itinga 42 km

162
Trecho Distância
Itinga – Itaobim 30 km

Itaobim – Jequitinhonha 65 km

Jequitinhonha – Almenara 50 km

Almenara – Jacinto 50 km

Jacinto – Salto da Divisa 46 km

Salto da Divisa - Itagimirim (BA) 44 km

Itagimirim – Eunápolis (BA) 23 km

Eunápolis – Porto Seguro (BA) 63 km

Quase 60 anos depois, do sonho de JK, a BR-367 continua inaca-


bada, sem asfalto em mais de 100 quilômetros, com pontes de madeira; e
mesmo o trecho asfaltado, na sua maioria, continua em estado precário.
Isto ocorre no território mineiro, pois a estrada é muito boa no trecho
baiano. A vergonha é tanta que o governo da Bahia, por sua conta e risco,
asfaltou um grande pedaço da estrada em território mineiro. Da divisa da
Bahia até o centro da cidade de Salto da Divisa (MG), inclusive, algumas
ruas da cidade foram asfaltadas pelo governador da Bahia, chamando à
responsabilidade o governo de Minas, para investir naquela importante
rodovia, que une o Vale e dá acesso às praias do sul da Bahia.
No 24º Festivale, na cidade de Araçuaí, no dia 29 de julho de 2006,
mais de mil pessoas, entre artistas, políticos, professores, artesãos,
diretores de várias instituições, e público presente no evento, indignados
com esse descaso político, com a falta de vontade política dos governan-
tes, de desrespeito ao povo do Vale, assinaram a Carta do Jequitinhonha,
que foi encaminhada ao presidente Lula, ao governador Aécio Neves e
ao ex-ministro Nilmário Miranda, então candidato ao Governo de Minas.
Solução que é bom, até hoje “neca de pitibiriba” (“nadinha de nada”,
como diz o nosso povo).

4 – A falta de um mapa

Estamos perdendo a nossa identidade.


Em março de 1978, quando foi criado o jornal Geraes, o Vale do
Jequitinhonha era definido pelas estruturas burocráticas e administrativas

163
do estado de Minas Gerais como uma região composta por 52 municí-
pios, com 71.552 quilômetros quadrados de extensão territorial, ocupan-
do 14,5% do estado. Para se “responsabilizar pelo planejamento e acom-
panhamento de projetos e ações” que ajudariam no desenvolvimento da
região, o governo de Minas, por meio da Lei Constitucional nº 12, de 6
de outubro de 1964, criou a Comissão de Desenvolvimento do Vale do
Jequitinhonha (Codevale).
Para atender aos interesses de políticos locais e de deputados,
foram criados mais 28 municípios no Vale do Jequitinhonha, sendo
quatro em 1992 (Lei nº 10.704, de 27 de abril de 1992) e 24 em 1995
(Lei nº 12.030, de 21 de dezembro de 1995).
Para substituir a Codevale, foi criado em 2002 o Instituto de
Desenvolvimento do Norte e Nordeste de Minas (Idene), e no governo
Aécio Neves mais uma instituição apareceu com os mesmos objetivos das
anteriores, com o pomposo nome de Secretaria de Estado Extraordinária
para o Desenvolvimento dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri e do Norte
de Minas (SEDVAN).
Hoje, o Vale do Jequitinhonha não existe oficialmente. Cada insti-
tuição apresenta um mapa diferente para a região. Só o governo de Minas
tem três mapas diferentes em uso, fazendo a região variar de 53 a 74
municípios, quando na verdade são 80. Pode parecer uma questão menor,
mas não é. Um povo que não conhece a sua terra, não pode contribuir
para o seu desenvolvimento.
A solução desse problema deve ser cobrada também dos políticos
locais, os prefeitos que administram os municípios, pois eles são o pri-
meiro instrumento político-administrativo de ligação com o estado. E
esta solução é necessária, pois, sabendo quais são de fato os municípios
da região, facilitaria uma melhor organização política entre as entidades
da sociedade civil, prefeitos e vereadores para cobrar ações concretas dos
governos estadual e federal.
Essa indefinição, em nossa opinião, é mais um descaso político com
o Vale do Jequitinhonha, que mostra não ser tão importante para o go-
verno de Minas. Se o governo enxergasse o Vale com outros olhos, esta
situação já teria sido resolvida.
Queremos a definição do nosso mapa, pois hoje o Vale tem 80 municípios:

1. Almenara
2. Angelândia*

164
3. Araçuaí
4. Aricanduva*
5. Bandeira
6. Berilo
7. Berizal*
8. Bocaiuva
9. Botumirim
10. Cachoeira de Pajeú
11. Capelinha
12. Caraí
13. Carbonita
14. Chapada do Norte
15. Comercinho
16. Coronel Murta
17. Couto Magalhães de Minas
18. Cristália
19. Datas
20. Diamantina
21. Divisópolis**
22. Felício dos Santos
23. Felisburgo
24. Francisco Badaró
25. Franciscópolis*
26. Fruta de Leite*
27. Grão Mogol
28. Guaraciama*
29. Indaiabira*
30. Itacambira
31. Itamarandiba
32. Itaobim
33. Itinga
34. Jacinto
35. Jenipapo de Minas*
36. Jequitinhonha
37. Joaíma
38. Jordânia
39. José Gonçalves de Minas*
40. Josenópolis*

165
41. Leme do Prado*
42. Malacacheta
43. Mata Verde**
44. Medina
45. Minas Novas
46. Monte Formoso*
47. Montezuma**
48. Nova Porteirinha*
49. Novo Cruzeiro
50. Novorizonte*
51. Olhos D’Água*
52. Padre Carvalho*
53. Padre Paraíso
54. Pai Pedro*
55. Palmópolis**
56. Pedra Azul
57. Ponto dos Volantes*
58. Porteirinha
59. Riacho dos Machados
60. Rio do Prado
61. Rio Pardo de Minas
62. Rio Vermelho
63. Rubelita
64. Rubim
65. Salinas
66. Salto da Divisa
67. Santa Cruz de Salinas*
68. Santa Maria do Salto
69. Santo Antônio do Jacinto
70. Santo Antônio do Retiro*
71. São Gonçalo do Rio Preto
72. Senador Modestino Gonçalves
73. Serranópolis de Minas*
74. Serro
75. Setubinha*
76. Taiobeiras
77. Turmalina
78. Vargem Grande do Rio Pardo*

166
79. Veredinha*
80. Virgem da Lapa

(*) Municípios criados em 1995.


(**) Municípios criados em 1992.
Fonte: Instituto de Geociências Aplicadas(IGA)

Em 1979, o grande menestrel Rubinho do Vale musicou um poema


meu falando do Jequitinhonha, que ainda está valendo para os dias
atuais. A música “Despertar” ganhou alguns festivais e está registrada
em um dos seus discos:

São cinquenta e duas cidades


perdidas no sertão mineiro
terra esquecida, terra explorada
altar da superstição e riqueza
de pedras que brotam do chão
rebuçado de sangue e beleza

É todo um povo acomodado


que começa a despertar e sonha
lutar pela libertação da Terra do Sol
Acorda, Jequitinhonha!
Chá de jalapa pro sangue
Chá de são-caetano para abortar
Chá de raça e coragem
pra tornar verdadeiro
esse sonho de liberdade.

No meu livro O martelo da dominação, defendo a tese da corrente


do desenvolvimento, experiência de vida que aplicamos no Geraes e
no Festivale e precisa ser reaplicada hoje no Vale do Jequitinhonha:
“o desenvolvimento só pode ser conseguido se ele for puxado por uma
corrente que tem quatro elos, e precisam estar dispostos em uma ordem
lógica, conhecer, gostar, defender e divulgar”.
Precisamos fazer com que o povo do Vale conheça a região, a sua
história, suas riquezas, suas potencialidades, suas lendas, seus mitos,
seus valores, pois é só quem conhece que gosta.
É preciso fazer com que o povo goste do Vale do Jequitinhonha, pois
é só quem gosta que defende.

167
É preciso defender uma maior organização social, cultural e política no
nosso Vale, defender os seus valores, pois é só quem defende que divulga.
Precisamos divulgar o Vale do Jequitinhonha para os quatro cantos
do mundo, pois só quem divulga com a razão e o coração é capaz de aju-
dar a desenvolver.
Viva o Vale do Jequitinhonha!

Tadeu Martins, natural de Itaobim, no Vale do Jequitinhonha, foi um dos


fundadores do jornal Geraes e idealizador do Festivale. Produtor cultural,
escritor, contador de causos e folclorista, publicou 84 folhetos de cordel e
tem 10 livros editados, dois deles lançados nos Estados Unidos. Gravou o CD
Causos, cordas e cordéis e percorre o estado de Minas Gerais há oito anos
como apresentador do projeto Causos e Violas das Gerais, do SESC-MG.

168
As mudanças de rumo na trajetória do Festivale
ao longo do período 1985-2006
Luís Carlos Mendes Santiago

Explicações necessárias

O que vou dizer aqui tem um caráter de depoimento, já que sou


filiado à instituição que organiza o Festival de Cultura Popular do Vale do
Jequitinhonha (Festivale), a Federação das Entidades Culturais e Artísticas
do Vale do Jequitinhonha (Fecaje), na qual tenho tido uma participação que,
apesar de secundária, discreta e mesmo esporádica, tem certa constância.
Cheguei inclusive a participar de duas diretorias da entidade, devo confessá-lo,
sem maiores empenhos, devido às dificuldades de transporte, pois as reuniões
acontecem em cidades distintas, algumas delas situadas a centenas de
quilômetros de onde resido, Pedra Azul, mas sempre comprometido e militante.
Com relação aos Festivales dos quais não participei, no período
1986-1991 e um ou outro de 1991 para cá, lançarei mão das informações
contidas em um livro que escrevi, O vale dos boqueirões, volume um, pu-
blicado em 1999, no capítulo intitulado “O movimento cultural”, mesmo
porque não há muita bibliografia sobre o assunto. Também utilizarei a edi-
ção fac-similar do jornal Geraes, lançada em 2011 e que inclui uma 25ª
edição, lançada no mesmo ano, em cujas referências utilizarei o número
de capa da edição citada; bem como algumas fontes da web.
A escolha do formato de depoimento para esta exposição tem duas
causas principais. Primeiro, pelo fato de que estou irremediavelmente iden-
tificado com o Festivale, o que impede um distanciamento crítico do objeto
de estudo. A segunda causa é a falta de bibliografia sobre o evento.
Outra característica do presente trabalho é que não citarei o nome
das pessoas envolvidas na organização do evento, o que obedece também a
duas razões: a primeira é que, quando se menciona alguns nomes, corre-se
sempre o risco de esquecer outros nomes; e a segunda é para não ferir
suscetibilidades. Eventualmente, apenas, mencionarei o nome de algum
artista, cuja apresentação tenha sido significativa, sem desdouro dos
demais, pois muitas vezes não pude assistir aos shows, mesmo estando
presente, pois estava cansado de uma longa jornada de atividades e
precisava acordar cedo no dia seguinte, para outra jornada. Essa escolha
de umas poucas apresentações artísticas que me pareceram significativas

169
não está livre de certa arbitrariedade, já que o que nos parece significativo
depende, no presente caso, de uma série de fatores pessoais, institucionais
e históricos (inclusive da história subsequente do movimento cultural).

O movimento cultural do Vale do Jequitinhonha até 1985

O movimento cultural do Vale do Jequitinhonha surge, em parte,


como movimento de resistência ao regime militar (1964-1985), embora a
história do Vale do Jequitinhonha seja pródiga em movimentos culturais
desde os tempos coloniais, conforme se pode perceber pelo rico patrimônio
material e imaterial de cidades como Serro, Diamantina, Minas Novas,
Grão Mogol e Chapada do Norte. Um movimento cultural autodenominado
“do Vale do Jequitinhonha” vai surgir apenas com o jornal Geraes, embora
uma “cultura do Vale do Jequitinhonha” já tivesse sido detectada por ar-
tistas, antropólogos, jornalistas, colecionadores e marchands (SANTIAGO,
1999, p. 297-298, 326-327 e 335).
Com certeza já havia uma noção de pertencimento ao Vale do
Jequitinhonha, mas, no mais das vezes, pontual, e mesmo latente. Foi o
Geraes que criou uma rede de reportagem e de resistência que envolvia
cidades de todas as regiões do Vale (até hoje relativamente isoladas umas
das outras). Embora todas as edições, desde o número 0 (março de 1978),
tenham sido propriamente editadas em Belo Horizonte, no cabeçalho do jor-
nal, até a edição de nº 15 (julho de 1982), o local que aparecia era sempre
“Vale do Jequitinhonha”.
Foi o jornal Geraes que realizou, em Itaobim, em 3 de novembro de 1979,
o primeiro (e ao que nos parece até hoje único) Encontro de Compositores do
Vale do Jequitinhonha, ao qual se seguiram shows com músicos do Vale e
que tocavam música do Vale na Praça da Liberdade, em Belo Horizonte (9 de
dezembro), Teófilo Otoni (13 de janeiro de 1980), além de shows marcados para
Almenara, Pedra Azul e Diamantina (em fevereiro e março) e um grande festival
marcado para julho, em Itaobim (GERAES, 2011, s.e., n. 8, a. 2, p. 8). Esse
grande festival recebeu o nome de Festivale e foi também um grande sucesso,
sendo até hoje, 31 anos depois, realizado.
As cinco primeiras edições do Festivale aconteceram em Itaobim, Pedra
Azul, novamente em Itaobim, Minas Novas e Araçuaí. Já nessas primeiras
edições, o evento deixara de ser puramente de cunho musical, para inserir
também o artesanato, os grupos de religiosidade popular, além de congregar
artistas de outras áreas.

170
O Festivale de 1985 a 2006

Até 1985, a trajetória do Festivale esteve inextricavelmente ligada


à do jornal Geraes, cujo último número da primeira fase foi publicado
justamente em julho de 1985, sendo que o primeiro número da segunda
fase do Geraes foi publicado, conforme já ficou dito, em 2011, mantendo
boa parte do quadro editorial original. É sintomático que o Geraes tenha
deixado de ser publicado justamente com a instituição de uma nova ordem,
propriamente civil, no país, que foi a “Nova República”. Sintomática nessa
última edição é o poema “Nova República, bom dia!”, de Murilo Antunes, do
qual destacamos os seguintes versos:

Bom dia, República nova, novíssima,


República dos sonhos,
sereníssima República
(ANTUNES, 1985, p. 6)

Com o retorno à democracia, a heroica imprensa nanica dos anos


de chumbo perdeu a sua razão de ser. O caso mais célebre dessa crise na
imprensa nanica é o do jornal O Pasquim, que, mesmo ainda sendo editado
por muito tempo, perdeu a sua verve revolucionária, pois já não precisava
mais digladiar com a censura. Lembrando que, pela sua tiragem, distribuição
e duração (até 1991, com 1.072 edições, conforme se vê no verbete da
Wikipédia), O Pasquim não pode ser considerado propriamente nanico; mas,
como o próprio nome do periódico indica, era baseado em publicações de
cunho não comercial e é, ainda hoje, referência para esse tipo de publicação.
Sem a publicação do Geraes, o Festivale vai paulatinamente
perdendo seu vínculo com a capital mineira. No processo de interiorização
da organização desse evento, que ainda se encontra em andamento,
desempenham importante papel os Encontros de Entidades Culturais do
Vale do Jequitinhonha, ou “Encontrões”, organizados originalmente pelo
Movimento de Cultural Popular do Vale do Jequitinhonha (MCPJ), que tinha
à frente os mesmos editores do jornal Geraes. O primeiro desses encontros
aconteceu entre 28 e 30 de abril 1984, na cidade de Jequitinhonha,1 e esse
evento já teve 63 edições ao longo dos últimos 27 anos (o 63º aconteceu

1 -   GERAES, n. 18, a. 7, fev. 1984, p. 7, onde o encontro é anunciado; lembrando que existe outra
edição de número 18, anterior a essa; certamente nos enganamos ao afirmar que esse primeiro encontro
aconteceu nos mesmos dias (28-30) do mês anterior, março. Cf. SANTIAGO, 1999, p. 346 e 364.

171
em Araçuaí, em 26 e 27 de novembro de 2011).2 A principal função dos
Encontros Regionais tem sido a de envolver as populações locais na
organização do Festivale, mas é inegável que essas dezenas de encontros
têm debatido inúmeros problemas tanto no nível municipal quanto regional,
além de fortalecer a coesão do movimento cultural do Vale, que abarca,
ou tenta abarcar, uma região pouco coesa em outros aspectos, como o
rodoviário, o econômico, o educacional, etc.
Embora já contassem com o patrocínio do governo estadual, o VI e
VII Festivales, de 1985 e 1986, realizados em Salinas e Almenara, ainda
aconteceram em locais fechados, porém o VIII Festivale, realizado no Serro, em
julho de 1987, trouxe importantes inovações, começando pelos shows, agora
realizados ao ar livre e abertos ao público. Outra inovação foram as oficinas, nas
várias áreas do saber artístico, cultural e tradicional; e, talvez devido à realização
das oficinas, a duração do evento também mudou, passando de três ou quatro
dias para uma semana. Essas três inovações – shows gratuitos em espaços
abertos, oficinas e duração de uma semana – desde então, foram incorporadas
a todas edições subsequentes do evento (SANTIAGO, 1999, p. 363).
O IX Festivale aconteceu em Virgem da Lapa (1988) e a décima edição
em Rubim (1989). Porém 1990 (ano do XI Festivale, na cidade de Diamantina)
foi ano eleitoral e os Festivales que acontecem em anos de eleições são
especialmente complicados, pois, por ser evento que necessita do apoio das
esferas municipal e estadual, não faltam autoridades que tentam usar o
palco do Festivale como palanque eleitoral, além das desavenças entre as
facções locais, que durante as campanhas se tornam ainda mais agudas e
acabam (essas rivalidades) interferindo na realização do evento. O certo é que
o nome, ou marca, se preferirem, do Festivale, foi utilizado em campanhas
de diferentes partidos e coligações, em Diamantina, naquele mês de julho de
1990, durante a realização do Festivale (SANTIAGO, 1999, p. 363-364).
Os agentes culturais que participavam do evento, seja na organização seja
na condição de participantes, certamente se indignaram, mas ainda não foi
no XI Festivale que foi criada a Federação das Entidades Culturais e Artísticas
do Vale do Jequitinhonha (Fecaje), e sim no Encontrão, que aconteceu logo
em seguida, na cidade de Taiobeiras, para avaliar o evento. Surge, assim, no
segundo semestre de 1990, a Fecaje, entidade que desde então toma as rédeas,
ou seja, passa a ser a gestora do Festivale. Mas a organização ainda estava
centrada em Belo Horizonte SANTIAGO, 1999, p. 366).

2 -   FREIRE, Ângela Gomes. “Comunicado”. Disponível em: <http://www.fecaje.org/index>. Acesso em:
14dez. 2011.

172
O XII Festivale, na cidade de Jequitinhonha, foi memorável. Quem
participou recorda-se, entre outras coisas, de um concerto para enxadas
regido pelo músico Babilak Bah na praia do rio que dá nome ao Vale e à
cidade SANTIAGO, 1999, p. 364). No XIII Festivale, realizado em Bocaiuva
em 1992, tive a oportunidade de assistir a uma inesquecível apresentação
do mestre Zé Coco do Riachão, na praça em frente à igreja do Bonfim, em
cuja torre se aninhava uma imensa coruja branca, que fazia revoadas
ruidosas durante a apresentação (se me permitem esse rápido devaneio
poético). Assisti também à apresentação de um quinteto, composto, se
bem me lembro, por violão, violino, viola de arco, violoncelo e bandoneón,
executando peças de Johann Sebastian Bach, em primorosos arranjos do
argentino naturalizado mineiro Rufo Herrera.3
A partir do XIV Festivale (Minas Novas, julho de 1993), os conflitos
entre um grupo de Belo Horizonte e um grupo de moradores do Vale co-
meçam a ficar mais evidentes. A partir desse ano, parece-me, as pessoas
do Vale passam a participar da organização do evento de forma mais de-
cidida, porém, o Festivale perde um pouco da sua vocação vanguardista
(SANTIAGO, 1999, p. 370-371).
Se no XIV Festivale a tônica foram os conflitos internos na entidade
e na organização como um todo, o XV Festivale, em Salto da Divisa (1994,
também ano eleitoral), e o XVI, em Carbonita (no ano seguinte), acontecem
sob a égide da política, que, entretanto, perde espaço nas edições seguintes.
Afinal, trata-se de terreno escorregadio, no qual, a cada passo, arrisca-se
suscitar melindres, sobretudo nas pequenas localidades, onde a política é
indissociável da vida pessoal (família, emprego, círculo de amizades, etc.).
O XVII Festivale, de 1996, o segundo realizado na cidade de Jequitinhonha,
já não teve a mesma ênfase política, embora aquele ano fosse de eleições
municipais, talvez por causa disso mesmo (SANTIAGO, 1999, p. 371).
De qualquer forma, as eleições municipais de 1996 geraram um impas-
se que comprometeu a realização do XVIII Festivale, cujas negociações com
as prefeituras para a escolha da cidade que sediaria o evento tiveram início
apenas em outubro, após a apuração dos votos. A prefeita Cacá, de Araçuaí,
prontificou-se a dar o suporte para a realização do Festivale ali, mas o movi-
mento cultural local, alegando que não havia tempo suficiente para preparar
um evento condigno, não aceitou a proposta da Fecaje, inviabilizando a sua
realização SANTIAGO, 1999, p. 373-374).

3 -   SANTIAGO, 1999, p. 367; a partir desse parágrafo, mais informações são, em grande medida,
retiradas da memória, ainda que ancoradas no texto que escrevemos.

173
Portanto, o Festivale não aconteceu em 1997, criando um perigoso
precedente e dando início a uma séria crise que, embora já bastante ate-
nuada, continua até hoje. Em 1998, o XIX Festivale aconteceu em Itinga
e conta-se que foi dos mais memoráveis. Em 1999, o evento aconteceu em
Jordânia e, em 2000, novamente em Bocaiuva.
Em 2001, novos problemas, sobretudo na captação de recursos, impedem,
pela segunda vez, a realização do Festivale. Em 2002, o XXII Festivale é realizado
em Pedra Azul, aos trancos e barrancos, com recursos bastante reduzidos. Em
2003, o Festivale aconteceu em Medina, em condições um pouco melhores. O
de 2004, em Salinas, também depara com problemas financeiros e, em 2005, o
Festivale fica mais uma vez, a terceira, sem acontecer.
Em 2006, o Festivale corre novamente o risco de não acontecer, o que
comprometeria a própria continuidade do festival iniciado 27 anos antes, em
1980. Porém, é nos momentos de crise que se descobre a força e a coesão
dos grupos, e a Fecaje contou ainda com apoios importantes. A empresa
Cria! Cultura conseguiu inserir o Festivale em programa da multinacional
Avon Comésticos; e, faltando apenas 45 dias para o início do evento, a Fecaje
conseguiu o imprescindível apoio da Prefeitura e da Câmara Municipal de
Araçuaí, assim como do bem organizado movimento cultural da cidade, que
nove anos antes (em 1997), se negara a ser correalizador do Festivale.
Foi outro Festivale extraordinário, o de 2006, em Araçuaí, com notável
participação da comunidade, além de um bom nível de engajamento e com-
prometimento por parte dos militantes do movimento cultural do Vale. Mas
o momento que guardo com mais carinho na memória foi uma procissão em
Itira, antigo Pontal (distrito de Araçuaí), formada pelos índios das nações
Pankararu e Pataxó, da vizinha aldeia Cinta Vermelha / Jundiba, pelos
agentes culturais do Festivale e pelos moradores de Itira. Essa procissão
saiu do pequeno porto fluvial da localidade, situado na confluência do Rio
Jequitinhonha com seu principal afluente, o Rio Araçuaí, e subiu a ladeira
em direção à igrejinha do Senhor Jesus da Boa Vida.

Problemas ainda enfrentados pela organização do Festivale


De 2006 para cá, o Festivale tem conseguido uma estabilidade muito
relativa, com o risco de não realização do evento renovado a cada ano. Nesse
atual período, ou fase, de relativa estabilidade, afora a instabilidade relativa,
encontro dois sérios problemas na realização do evento:

174
1) Depois de Araçuaí, temos o XXV Festivale, em Joaíma (2007), o
XXVI, em Capelinha (2008), o XXVII, em Grão Mogol (2009), o XXVIII, em
Padre Paraíso (2010), e o XXIX, que aconteceu em 2011 em Jequitinhonha
(cidade que completa os duzentos anos de sua fundação), sendo que o
XXX Festivale está previsto para julho de 2012, em Itaobim. Se exce-
tuamos Capelinha e Grão Mogol, ambas caracterizadas por uma situação
econômica privilegiada se comparadas com as demais cidades da região
(Capelinha por polarizar uma região progressista e Grão Mogol graças ao
ICMS gerado pela usina de Irapé), temos, em um período de sete anos
(2006-2012), o evento acontecendo em um raio que não chega a duzentos
quilômetros, em um vale que tem mais de mil quilômetros de extensão,
mas dotado de uma rede rodoviária a todas as vistas insuficiente. Isso in-
dica que a participação efetiva na organização do Festivale está centrada
em um só setor do Vale do Jequitinhonha, com um nível de participação
menor das demais regiões.
2) Já vimos que o Festivale, nos últimos anos, perdeu parte de seu
caráter vanguardista. Isso se deve, em parte, à sua popularização, uma vez
que, cada vez mais, recebe os moradores da região, respondendo aos an-
seios desse público. O público do Festivale também é cada vez maior, com
predominância crescente dos mais jovens, para os quais as vanguardas
são pouco palatáveis. Essa popularização chegou a tal ponto que a orga-
nização do evento não pode mais convidar certos artistas da região, que,
em espetáculos a céu aberto, reúnem um público tão reduzido que chega a
ser vergonhoso, gerando uma situação constrangedora tanto para o artista
quanto para a organização e para o próprio público. Os grupos populares de
cultura, os chamados grupos “folclóricos”, também têm sido prejudicados
pelo tratamento preferencial dado aos espetáculos musicais de nomes já
reconhecidos, que atraem grande público.

A título de conclusão: duas propostas

Finalizando o texto, apresentamos duas propostas para a solução dos


problemas acima relatados, mas sem ter como garantir o seu sucesso. Peço
desculpas aos leitores e editores, porque, enquanto integrante do movimento
cultural, não há como dividir, neste ponto, o militante do pesquisador.
Para o primeiro problema apresentado, da centralização da militância
em uma região relativamente reduzida, a solução é que se realizem

175
reuniões, os Encontros de Cultura, ou Encontrões, nessas regiões menos
envolvidas na organização do Festivale.
Com relação ao segundo problema, de uma popularização “pasteuri-
zadora”, minha sugestão é uma redução no formato do Festivale como um
todo, com menos oficinas e, sobretudo, uma redução drástica no número
de grandes espetáculos musicais, para diminuir as proporções do evento e
consequentemente os custos, que têm inviabilizado sua realização, em re-
petidas ocasiões. Há que se dar menos ênfase nos espetáculos dispendiosos
e mais espaço para as manifestações da cultura propriamente popular, que
refletem tradições seculares, bem como para manifestações inovadoras, que
propõem novas releituras da tradição.

Referências

ANTUNES, Murilo. Nova República, bom dia! Geraes – A realidade do Vale


do Jequitinhonha, n. 23, a. 7, p. 6, jul. 1985.

FREIRE, Ângela Gomes. “Comunicado”. Disponível em: <http://www.fecaje.


org/index>. Acesso em: 14 dez. 2011.

GERAES: A REALIDADE DO VALE DO JEQUITINHONHA. Organização de


Aurélio Silbner, George Abner e Tadeu Martins. ed. fac-similar. Belo Horizonte:
Neoplan, 2011.

SANTIAGO, Luís. O vale dos boqueirões: história do Vale do Jequitinhonha.


Almenara: Edição do autor, 1999. v. 1.

WIKIPÉDIA – A enciclopédia livre. “O Pasquim” (verbete). Disponível em: <pt.


wikipedia.org/wiki/O_Pasquim>. Acesso em: 14 dez. 2011.

Luís Carlos Mendes Santiago é mestrando em História pela Universidade


Estadual de Montes Claros (Unimontes), onde trabalha em projeto sobre
o mandonismo, sob a orientação da professora Carla Maria Junho
Anastasia. Tem vários livros publicados, com destaque para a série O
vale dos boqueirões – História do Vale do Jequitinhonha, da qual já foram
editados quatro volumes.

176
Arte e mobilização social: celebração da cultura
popular e da identidade do Vale do Jequitinhonha
Márcio Simeone Henriques

Meu coração bate forte de alegria


Quando vai chegando o dia da folia começar
Eu vou pro Vale passar a semana inteira
Numa festa brasileira de cultura popular
Eu vou de ônibus eu vou de trem, me espera meu bem
O vale é um pouco longe devagar eu chego lá

Estamos no penúltimo fim de semana de julho de 2010 e a movimen-


tação na cidade de Padre Paraíso, Nordeste de Minas Gerais, começa a se
intensificar. Pessoas de várias cidades do Vale do Jequitinhonha ou mesmo
de outras localidades de Minas e do país, jovens em sua maioria, começam
a se instalar nos alojamentos montados em escolas ou nas poucas opções
de acomodação disponíveis. Terá início, no domingo, o 28º Festival de Cultura
Popular do Vale do Jequitinhonha (Festivale).1 Padre Paraíso, em Minas Gerais,
é uma cidade pequena, que conta 18.852 habitantes.2 É cortada pela BR-116,
a Rio-Bahia, distante da capital 542 quilômetros. É um dos lugares por onde
se entra na região do Vale do Jequitinhonha.
O Vale ocupa uma área de 79 mil km2, com população de aproximada-
mente 900 mil habitantes, composto por 52 municípios, na Região Nordeste
do estado. É uma das regiões de menores índices de desenvolvimento eco-
nômico e social de Minas e do Brasil. Por isso tem sido reconhecida muitas
vezes como o “Vale da Miséria”, o que, no entanto, contrasta com suas
riquezas naturais e culturais. Se considerarmos especialmente a cultura
popular, o Vale do Jequitinhonha apresenta ao mesmo tempo uma grande
diversidade de manifestações e uma identidade que vem sendo construída
– e reconhecida – ao longo das últimas décadas, graças a um movimento
cultural atuante que começou a projetar a região no estado e no país.
É nesse cenário que surge o evento que analisaremos neste texto.
Suas características peculiares de mobilização o tornam interessante e,
guardadas as suas proporções, podemos reconhecer o seu grande impacto.

1 -  Trecho da música “Festivale”, de Rubinho do Vale.


2 -   Realizado entre 25 e 31 de julho de 2010.

177
Em Padre Paraíso, por exemplo, estimou-se uma circulação total de
2 mil forasteiros no período de uma semana. Isso significa quase 11% da
população do município, uma população flutuante que demanda serviços
e gera movimentação econômica no local. A organização do evento – a
Federação das Entidades Culturais do Vale do Jequitinhonha (Fecaje) –
contabilizou 510 inscritos em 15 oficinas, 66 músicas concorrentes no
Festival de Música Coral Nossa Senhora do Rosário, 20 poetas e poetisas
concorrentes na Noite Literária Adson da Silva Costa, 78 artesãos de
41 cidades participantes da Feira de Artesanato Mestre Ulisses Mendes,
1.231 pessoas acomodadas nos alojamentos do Festival (com fornecimento
de café da manhã). A logística do evento contou ainda com o fornecimento
de 2.571 refeições diárias.3
Analisar o Festivale em seu caráter mobilizador significa reconhecer
a sua dimensão política. Visto como um movimento popular, sua trajetória
ao longo dos anos acompanha os dilemas políticos vividos pelas entidades e
por seus agentes. Quando se comemoram três décadas de Festivale, várias
questões desafiam o movimento, exigem reposicionamento em relação às
suas causas e a própria redefinição do evento.

Três décadas de mobilização cultural no Jequitinhonha

A movimentação política e cultural que deu origem ao Festivale teve


início ainda no final da década de 1970. Alguns jovens estudantes universi-
tários oriundos do Vale, então residentes em Belo Horizonte, incomodados
com a identidade pejorativa ligada às condições de miséria pela qual era
conhecida a região, iniciaram uma mobilização política para reposicionar o
Jequitinhonha e discutir ideias e estratégias de ação. Em pleno momento
de abertura política, em que o país ainda vivia sob o regime militar, toma
forma um movimento com o objetivo de criar núcleos políticos para a difu-
são da causa que esses jovens vislumbravam.
Em março de 1978, o grupo cria uma publicação, o jornal Geraes,
para ser o porta-voz desse movimento.4 A grande extensão do Vale, as
grandes distâncias entre as cidades e povoações, com dificuldades de acesso
e comunicação, criavam obstáculos à formação de uma rede mobilizada

3 -  Dados do Censo 2010 – IBGE.


4 -   Dados da Fecaje.

178
desses núcleos. Foi necessária uma intensa circulação pela região,
distribuindo o jornal e estabelecendo as discussões pouco a pouco. Dessas
andanças emergiu como fator mais importante de identidade (e essencial à
mobilização) a cultura popular. Poetas e compositores foram se agregando à
rede de contatos do movimento e, não por acaso, descobre-se aí a força da
cultura como resistência popular. A formação histórica do Jequitinhonha
mesclou as inúmeras influências culturais de brancos, negros e índios de
forma bastante peculiar. As manifestações populares, de caráter religioso ou
não, estão enraizadas na vida da população de toda a região.
Dessa primeira mobilização acabou surgindo a iniciativa de realizar
um encontro de compositores, em novembro de 1979, na cidade de
Itaobim. O entusiasmo com a realização desse encontro, que contou com
22 compositores de 15 cidades, fez com que se anunciasse a realização,
naquela mesma cidade, no ano seguinte, de um Festival de Música – ao
qual se denominou Festivale – Festival da Canção Popular do Vale do
Jequitinhonha. O evento logo revelou vários talentos, que se projetaram
no cenário nacional, como Paulinho Pedra Azul, Tadeu Franco, Saulo
Laranjeira e muitos outros.5 Surgiu, com isso, o Centro Cultural do Vale
do Jequitinhonha (CCVJ), responsável pela organização do Festivale. Em
1983, um racha no movimento fez com que surgisse outra entidade, o
Movimento de Cultura Popular do Jequitinhonha (MCPJ), responsável
pela edição do Geraes. Esse movimento promoveu em 1984 o I Encontro
de Entidades Culturais do Vale do Jequitinhonha, na cidade de
Jequitinhonha. Foi um momento importante da mobilização das diversas
associações e movimentos existentes na época. O CCVJ continuaria a
ser o organizador do Festivale até que as duas entidades novamente
se unissem, em 1987. Agora, desaparecido o Geraes, nova entidade,
denominada Centro Cultural e Artístico do Vale do Jequitinhonha
(CCAVJ), encarrega-se da promoção do Festival e do Encontro de
Entidades Culturais. Também nessa ocasião a articulação cultural
tornou-se mais ampla e, em 1987, o festival tomou uma dimensão maior,
incorporando não só o certame musical. Assim, toma a forma que tem
até hoje, em que se congregam as mais diversas manifestações: teatro,
artesanato, dança, literatura, manifestações populares tradicionais. Passa
a ser realizado em sete dias, com a promoção de cursos e oficinas, da

5 -   O jornal era impresso em Belo Horizonte e foi editado até 1985. Respondiam pela sua edição Tadeu
Martins, Aurélio Silby, George Abner e Carlos Albérico Figueiredo e possuía diversos correspondentes
em cidades da região. Tinha uma temática essencialmente política.

179
Noite Literária6 e de uma intensa programação artística com artistas e
grupos do Vale e convidados.7
Em 1990, surge nova entidade que congrega instituições do movimento e
até hoje se encarrega do Festivale: a Federação das Entidades Culturais do Vale
do Jequitinhonha (Fecaje). Até os dias de hoje o Festivale veio se consolidando
como grande evento de cultura popular e como momento principal de
congregação de pessoas e grupos que compõem o movimento cultural do Vale.

A busca dos elementos comuns: a identidade construída

Como vimos, a história de Festivale permite-nos destacar o seu ca-


ráter mobilizador. Entendemos a mobilização social como “uma reunião
de sujeitos que definem objetivos e compartilham sentimentos, conheci-
mentos e responsabilidades para a transformação de uma dada realida-
de, movidos por um acordo em relação a determinada causa de interesse
público” (BRAGA; HENRIQUES; MAFRA, 2004, p. 36). Isso inscreve os
processos de mobilização num terreno essencialmente político.
O ponto de partida do movimento deixava clara a intenção de buscar
interferir nos destinos políticos e econômicos, denunciando a situação de
exclusão e opressão da região, por meio de estratégias para a comunhão da
causa e de uso de recursos de visibilidade. Para isso era necessário criar
fatores capazes de, a um só tempo, gerar possibilidades de identificação e
reconhecimento da própria população – dispersa num vasto território – e
algo que fosse possível projetar para fora do Vale que expressasse essa iden-
tificação. Não obstante as enormes diferenças entre as várias localidades e
microrregiões, era preciso construir uma base comum de entendimento. Os
jovens idealistas que tomaram para si a iniciativa mobilizadora perceberam
a necessidade de denunciar as injustas condições de vida e de inserção da
região no cenário geopolítico de Minas e do Brasil, como ponto forte de iden-
tificação entre as várias localidades e, além disso, uma insatisfação comum
com a visão externa projetada como “Vale da Miséria”.
Era preciso, então, criar as condições para a proposição pública da
causa primeiramente entre a própria população local. No entanto, colocar

6 -   O primeiro Festivale teve duração de três dias, 90 canções inscritas de compositores de 14 cidades.
A música vencedora foi “Ave Cantadeira”, de Paulinho Pedra Azul.
7 -  Momento reservado ao festival de poesia, um concurso no qual os poetas se apresentam e en-
cenam sua obra.

180
em movimento esses públicos locais exigiria maior esforço no sentido de
encontrar ainda outros elementos que justificassem e marcassem sim-
bolicamente essa identidade comum da população. E esta foi alcançada
inicialmente através dos compositores e poetas e, pouco a pouco, expan-
dida com o encontro das diversas manifestações populares. A difusão
inicial da causa, fora do circuito dos meios de comunicação, ocorreu de
forma heroica e os relatos dos pioneiros povoam até hoje o imaginário dos
participantes do movimento. A primeira estratégia de visibilidade, como
dissemos, foi um jornal. Mas mesmo a sua publicação não bastava para
cumprir a meta de coletivização tão ambiciosa, que envolvia todo o Vale e,
fora dele, toda uma parcela de população deslocada pelas migrações para
os grandes centros e ainda públicos sensíveis capazes de compreender as
denúncias, envolver-se com a causa e efetivamente apoiá-la publicamente.
As grandes barreiras em transportes e comunicações nessa época exigi-
ram um esforço do grupo mobilizado em alcançar as várias cidades, tendo
o Geraes como uma carta de apresentação, sensibilizando as pessoas e
recrutando adeptos.8
Segundo Souza (2010, p. 63), o Vale do Jequitinhonha “é uma região
extremamente diversificada, tanto pela historicidade de sua ocupação
quanto pela caracterização do quadro geográfico e das atividades que
aí tiveram lugar”. Não obstante tais diferenciações, é possível entrever
muitos aspectos comuns, ligados às influências de negros e índios, à
religiosidade popular, aos fazeres artesanais, à produção familiar de
subsistência, às formas de sociabilidade comunal. As manifestações de
arte popular, em seu forte cariz de resistência, davam bom suporte à
formação de um terreno comum no qual a própria região pudesse se
reconhecer. Com efeito, a iniciativa de congregar essas manifestações fez
surgir para o próprio Vale uma identidade cultural, que, reflexivamente,
passou também a alimentar os próprios artistas com elementos fortes
do imaginário local.
Pode-se dizer que a estratégia de visibilidade para fora do próprio
Jequitinhonha se completou em seguida através do Festivale. Essa com-
binação entre o movimento político do Geraes e a articulação artística e
cultural, sem dúvida, foi a responsável pela construção identitária que

8 -   Este grupo também se muniu de bastante ousadia para a época. Por exemplo: para percorrer com
um show várias cidades, em 1981, fizeram a divulgação por meio de um cartaz polêmico que, com o
título “Procurados”, apresentava os participantes em uma série de retratos 3 x 4, numa alusão aos
ativistas que, na clandestinidade, eram procurados pelo regime militar.

181
subsistiria até hoje,9 apesar de a unificação como território geopolítico
ter-se dado na década de 1960.10 Ainda como festival de música, o Fes-
tivale começa a obter sucesso em projetar uma nova imagem, buscando
o reposicionamento desejado. Esse desejo, de voltar-se para uma iden-
tificação própria da população local, mas também de busca de reconhe-
cimento externo, estava expresso no projeto inicial, por meio de quatro
elos: “conhecer, gostar, defender, divulgar”.
Daí para frente, a projeção de vários artistas, ao longo do tempo,
servirá para alavancar externamente o movimento: Paulinho Pedra Azul,
Rubinho do Vale, Saulo Laranjeira, Carlos Farias, Pereira da Viola, entre
outros. Consideramos que essa expressão representou um manifesto
difuso, não escrito, que passou, de certo modo, a guiar simbolicamente
o movimento. Desde o slogan que passou a acompanhar o evento – ini-
cialmente, no primeiro Festivale “Vida, vale, verso e viola” e depois modi-
ficado para “Vale, vida, verde, versos e viola” – os exemplos são muitos,
retirados, por exemplo, das músicas dos cantores do Vale, como estas:

Jequitinhonha / Braço do mar / Leva esse canto pra nave-


gar/traz do garimpo / pedra que brilha/mais que a luz do
luar / Jequitinhonha / jequitibarro / mete essa unha, tira
da terra / vida talhada com as mãos.11

Vi muita gente subir / Vi muita gente descer / Metade de um


povo pedir / E um povo inteiro a sofrer / Hoje eu canto pra não
chorar / Tô cansado de esperar / Vi muita gente chegar / Vi
muita gente partir / Trazendo nada de lá / Levando as coisas
daqui / Dizendo pro meu pessoal / Essa terra já virou teima /
De dia tá no jornal e / De noite tá no cinema / Povo vivendo de
teima / Povo teimoso... / Povo que vem lá de fora / Trazendo a
sabedoria / Avisa lá que aqui chora / Vivendo e vendo agonia.12

9 -   Com respeito, especificamente, ao papel do jornal Geraes nessa formação de identidade, sugerimos
a leitura de Ramalho e Doula (2009). As autoras mostram em sua análise que, com efeito, o Geraes
teve um papel preponderante na criação de uma unidade simbólica identificável pela representação
compartilhada do homem do Jequitinhonha, por uma representação política de resistência e, num
segundo momento, pelo reconhecimento da cultura popular como um fator importante a ser explorado.
10 -   Para efeito de atuação da Companhia de Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha (Codevale), foi
delimitado oficialmente em 1966 como sendo constituído à época de 52 municípios (SOUZA, 2010, p. 15).
11 -   Trecho da música “Jequitinhonha”, de Lery Faria e Paulinho Assumpção, popularizada na
interpretação de Paulinho Pedra Azul.
12 -   Trecho da música “Voz do Jequitinhonha”, de Rubinho do Vale.

182
Mas se é possível identificar com clareza a causa que deu origem a tal
mobilização, por certo a persistência do Festivale no tempo – três décadas
– exige uma visão dinâmica da própria causa, ou seja, com as mudanças
sociais, políticas e culturais operadas nesse período, transformam-se também
tanto a causa como as formas de vínculo dos atores que a sustentam. As
condições políticas e econômicas do país e do Vale do Jequitinhonha de
hoje não são, obviamente, as mesmas de quando se iniciou o movimento.
Até porque o próprio sucesso do Festivale como evento mobilizador interferiu
– positivamente – nesse processo e construiu, de fato, novos elementos de
identidade cultural e um imaginário muito forte.
Mais especificamente, podemos destacar dois fatores que têm
interferido no próprio festival, como resultado dos dilemas vividos pelo
movimento que o sustenta. O primeiro é a intensa profissionalização da
produção cultural, um fenômeno que altera as características iniciais de
um evento com maior grau de espontaneidade e improvisação. A captação
de recursos, por exemplo, por meio de leis de incentivo à cultura e de
editais, requer um planejamento e uma estruturação institucional que se
choca com a dinâmica do movimento. O segundo é a mudança rápida da
oferta de comunicação e alteração dos recursos de visibilidade disponíveis.
De meados da década de 1990 para cá, as cidades do Vale começam a ter
acesso mais disseminado à televisão, proliferam as rádios locais, ampliam-
-se as ligações telefônicas e surgem a cobertura de telefonia celular e a
Internet. Isso, por um lado, facilita as conexões do próprio movimento,
mas, por outro, ao quebrar o isolamento, aumenta a oferta informacional,
amplia o acesso a manifestações culturais muito diversificadas e institui um
desafio de integrar as novas gerações – não necessariamente interessadas
na preservação das antigas manifestações populares, mas, elas próprias,
muito ativas e criativas, ao reelaborar suas formas de expressão. Mesmo
assim, o Festivale continua sendo um ponto importante de interseção, ao
congregar o movimento cultural e reafirmar a identidade construída. É
aguardado com expectativa e tratado como algo importante no contexto do
Vale do Jequitinhonha.

Três dimensões da mobilização social no Festivale

Os eventos culturais como ato mobilizador, no sentido que aqui uti-


lizamos, devem-se realizar em três dimensões complementares: festiva,

183
espetacular e argumentativa (MAFRA, 2006).13 Por isso, um evento como o
Festivale não se circunscreve a uma simples celebração ou a um produto
cultural. Precisa ser examinado em relação ao processo comunicativo que
opera com a função de coletivização (posicionar publicamente a causa do
movimento e convocar os sujeitos à participação) e de vinculação (gerar
e manter vínculos dos sujeitos com a causa e com o projeto mobilizador)
(HENRIQUES, 2010).
Por ser um festival, a primeira dimensão é bastante evidente. Seu
objetivo de ser o momento e o espaço de congregação do movimento, reu-
nindo as entidades e os seus geradores, bem como simpatizantes, pretende
reforçar, por meio da celebração, os laços de união dos vários atores já en-
gajados, bem como criar as condições para atrair novos participantes. A fes-
ta é o momento de celebrar os vínculos, reafirmar a importância da união e
de compartilhar sentimentos comuns, “instaurando uma participação mais
livre por convivialidade” (MAFRA, 2006, p. 82). O poema “Traço de união”,
de Gonzaga Medeiros, poeta da região, um “manifesto” sempre presente de
algum modo no contexto do Festivale, explicita essa importância:

Há que se tramar uma nova junta,


há que se juntar os homens
e as mulheres
numa tropa só.

há que se apertar os laços,


há que se laçar os homens
e as mulheres
sem usar o nó.

É preciso traçar o abraço,


é preciso crescer o traço
sem mais demora;
carece juntar as pontas,
carece tramar a união
logo agora.

13 -   Tomamos aqui para análise as três categorias propostas por Rennan Mafra (2006). Recomendamos
leitura mais detalhada sobre as formas de operação das três dimensões apontadas, especialmente no
que diz respeito às formulações estratégicas do projeto mobilizador que o autor analisa, no caso, uma
expedição que percorreu o Rio das Velhas, em Minas Gerais.

184
Antes que se vá o sol,
que se disperse a tropa
e se apague o traço,
que se destroce a junta
e se desfaça o laço,
cedo, sem fazer alarde,
antes que tarde
há que se dar o abraço.14

A dimensão espetacular relaciona-se diretamente à demanda por visi-
bilidade do movimento. Para Mafra (2006, p. 81) Trata-se da “criação de um
âmbito extraordinário, encenação e tentativa de visibilidade pública”. Num
primeiro sentido, o festival pretende gerar uma grande “interferência” na
cidade onde se realiza. As cidades são escolhidas atualmente através da pro-
posição de suas candidaturas à Fecaje. A articulação entre o movimento cul-
tural local e o poder público municipal é, atualmente, fator importante para a
escolha da cidade. Ocorre aqui uma situação proporcionalmente semelhante
à escolha de sedes de Copa do Mundo ou Olimpíadas: uma avaliação acer-
ca das condições de suporte pelo próprio movimento local, a infraestrutura
oferecida pela cidade, a condição que a prefeitura tem de arcar com vários
custos do evento (principalmente provimento de infraestrutura), os equipa-
mentos culturais disponíveis etc. Os próprios municípios veem na realização
do Festivale uma boa oportunidade de alcançar maior visibilidade, de atrair
atenções e de trazer manifestações artísticas e culturais que não são rotinei-
ramente oferecidas à sua população. Essa intervenção, de fato, ocorre com
grande impacto. Dada a pequena dimensão das cidades em que se realiza, o
festival alcança por si só uma grande visibilidade, pela grande movimentação
de pessoas, pela participação de pessoas da cidade nas oficinas e pela grande
variedade de atrações que se realizam nas ruas, principalmente à noite.
Um segundo sentido refere-se à projeção externa desejada. Para alcan-
çar os públicos da própria região do Vale do Jequitinhonha e ainda além, o
evento requer uma presença tanto em mídias locais (das várias cidades da
região) quanto em veículos de alcance estadual e nacional. Isso demanda
uma atenção especial a uma estrutura mais profissionalizada de comunica-
ção que faça circular a informação não apenas na própria cidade que recebe
o festival e entre os seus participantes. No âmbito das mídias locais, é grande

14 -   MEDEIROS, Gonzaga. Traço de união. 1. ed. Belo Horizonte: Arte Quintal, 1991.

185
o desafio, para vencer as distâncias e a dispersão. A maioria das cidades não
conta com veículos de imprensa escrita, há pequena cobertura jornalística
de televisão. Entretanto, a proliferação de emissoras radiofônicas locais des-
de meados da década de 1990 gerou condições para que este se tornasse
um instrumento importante para a divulgação. A partir de 2003, com o 22º
Festivale, o trabalho com as emissoras de rádio da região foi inserido como
elemento importante não apenas para anunciar o evento, mas como cober-
tura, realçando a sua dimensão espetacular. Desde então, uma estrutura
de assessoria de comunicação produz boletins radiofônicos diários durante
a semana do evento. No início eram veiculados por meio de link telefônico,
em cadeia simultânea (no primeiro ano entraram em cadeia 15 emissoras);
em 2009 e 2010 a maioria das emissoras passou a receber o programa pela
Internet (na edição de 2010 participaram da rede 16 emissoras).
Já o desafio de promover uma visibilidade ampliada, para fora do Vale,
requer mostrar o Festivale como um produto cultural, ressaltando seus as-
pectos espetaculares, capazes de despertar a atenção das mídias em âmbito
estadual e nacional. Também sob esse prisma, uma estrutura mais profissio-
nalizada veio se mostrando cada vez mais imprescindível.15 Entretanto, são
reiteradamente observadas a cada edição do Festivale as limitações e dificul-
dades em conquistar esses espaços de visibilidade. A competição por esses
espaços e a demanda de que o evento não seja abordado somente como um
produto/espetáculo, mas também em suas outras dimensões mobilizadoras,
são sempre um grande desafio imposto à comunicação do evento.16
A terceira dimensão, argumentativa, pelo seu caráter político, não
pode em nenhuma hipótese ser desconsiderada. O sentido mobilizador não
se completa se o evento contemplar somente as outras duas dimensões.
Esta dimensão permite uma possibilidade de “instaurar uma relação dia-
lógica entre os sujeitos a partir do debate público” (MAFRA, 2006, p. 82).
Entram em jogo as possibilidades de compartilhamento efetivo de infor-

15 -   No Festivale de 2003, na cidade de Medina, por uma parceria da Fecaje com o Programa Polo
de Integração da UFMG no Vale do Jequitinhonha, da Universidade Federal de Minas Gerais, foi
realizada uma assessoria de comunicação colaborativa: estudantes do curso de Comunicação Social
proporcionaram antecipadamente atividade formativa de jovens da cidade para a realização do trabalho
de comunicação do evento. Durante o Festivale, todo o trabalho de assessoria foi realizado por esses
jovens com o acompanhamento da equipe de universitários. O mesmo processo ocorreu nas edições de
2009 (Grão Mogol) e 2010 (Padre Paraíso). Sobre esse processo, recomendamos a leitura de Henriques
e São Pedro (2004) e Bechelane e Siffert (2010).
16 -   Sem contar, também, que as características do evento (popular, com maior grau de espontaneidade)
e a limitação de recursos não condizem com a contratação de serviços profissionais (que não estão
disponíveis na própria região).

186
mações, de conhecimentos e de responsabilidades em relação aos destinos
do próprio movimento. Observamos que essa dimensão se manifesta no
Festivale de duas formas distintas. A primeira tem a ver com a sustentação
do próprio festival dentro do movimento cultural do Vale. A entidade pro-
motora, sendo uma federação de entidades, realiza a cada ano dois outros
eventos, os chamados “Encontrões”, que possibilitam momentos de troca
argumentativa. Ao reunir essas entidades e os representantes do movimento,
fazem, nesses momentos, o planejamento do festival e a sua avaliação poste-
rior (respectivamente no primeiro e no segundo semestres). Nessas ocasiões,
são discutidas não apenas as questões operacionais do festival, mas são
tomadas importantes decisões de caráter político, como a escolha do tema
determinada edição. Para o 28º Festivale, em Padre Paraíso, foi escolhido o
tema “Juventude, Cidadania e Identidade Cultural”.
A segunda inserção da dimensão argumentativa é a promoção de es-
paços de discussão dentro do próprio evento, com debates e palestras. Em
2009, foram realizados debates sobre educação, cidadania e diversidade,
além de reunião com artesãos. Em 2010, a programação contou com debates
sobre a própria temática escolhida, seguida de passeata pelas ruas da cidade.

Considerações finais: os dilemas do evento mobilizador

Agora nos transportamos para um dia quente de outubro de 2010 na


cidade de Felisburgo, no Baixo Jequitinhonha. Ali se realiza o Encontro das
Entidades Culturais do Vale do Jequitinhonha (o “Encontrão”), promovido
pela Fecaje, que tem entre seus objetivos fazer a avaliação do 28º Festivale.
Nas discussões emergem as muitas contradições vividas na mobilização, as
dificuldades na promoção de um evento desse porte e dessa natureza, seus
impactos nas cidades que o acolhem, as questões próprias aos desdobra-
mentos atuais da causa (ou das causas) do movimento. Ali se vê, de fato,
uma dinâmica que sustenta um evento com caráter mobilizador e daí surgem
os grandes desafios: como pensar a identidade cultural do Vale dentro dessa
dinâmica, como inserir as novas gerações numa causa que se renova, se
reposiciona, como manter os delicados equilíbrios na vinculação com os
públicos (tanto os geradores do movimento como os demais que buscam
envolver), como garantir a sua sustentação financeira, sempre precária.
Importante ponto a ser considerado é a manutenção das características
mobilizadoras do evento, porém dentro de um enquadramento mais contem-
porâneo, que exige, de outro lado, certa profissionalização. Seus promotores

187
são chamados a fazer isso sem deixar de perder os laços de solidariedade,
sem esvaziar de sentido a reafirmação do Jequitinhonha como um lugar de
riqueza artística e cultural e sem perder a memória dos primeiros tempos
de luta. Participar dessa experiência tem-nos proporcionado visualizar a
importância das estratégias de comunicação para mobilização social. Estas
não se limitam à promoção e divulgação: estendem-se a todo um processo de
trocas, negociações de sentido, formulações simbólicas, que compõem a luta
por visibilidade e reconhecimento na arena pública e vão criando e recriando
a representação da identidade do Vale. A necessidade de expressar tudo isso
é o que alimenta, ainda hoje, a criação dos artistas, inspira os poetas da
região – arte do povo simples que busca lugar para existir.

Referências

BECHELANE, Sâmia; SIFFERT, Bráulio. Comunicação colaborativa no Fes-


tival de Cultura Popular do Vale do Jequitinhonha: metodologias em pro-
cesso. In: CONFERÊNCIA BRASILEIRA DE MÍDIA CIDADÃ; CONFERÊNCIA
SUL-AMERICANA DE MÍDIA CIDADÃ, 6.; 1., 2010. Anais... Pato Branco/
PR: Fadep, 2010. Disponível em: <http://www.unicentro.br/redemc/2010/
Relatos/Comunica%C3%A7%C3%A3o%20colaborativa%20no%20Festi-
val%20de%20Cultura%20Popular%20do%20Vale%20do%20Jequitinho-
nha%20-%20metodologias%20e.pdf>. Acesso em: 15 maio 2012.

BRAGA, Clara S.; HENRIQUES, Márcio S.; MAFRA, Rennan L. M. O plane-


jamento da comunicação para a mobilização social: em busca da correspon-
sabilidade. In: HENRIQUES, Márcio S. (Org.). Comunicação e estratégias
de mobilização social. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

HENRIQUES, Márcio S. Comunicação e mobilização social na prática de


polícia comunitária. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.

HENRIQUES, Márcio S.; SÃO PEDRO, Emanuela de A. Comunicação e mo-


bilização para a cultura do Vale do Jequitinhonha. In: ENCONTRO DE
EXTENSÃO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS, 7., 2004.
Anais... Belo Horizonte: UFMG, 2004. Disponível em: <http://www.ufmg.
br/proex/arquivos/7Encontro/Comunica9.pdf>. Acesso em: 1º jun. 2012.

188
MAFRA, Rennan L. M. Entre o espetáculo, a festa e a argumentação: mídia,
comunicação estratégica e mobilização social. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.

RAMALHO, Juliana P.; DOULA, Sheila M. O Jequitinhonha nas páginas do


jornal Geraes: cultura e territorialidade. Contemporâneos - Revista de Artes e
Humanidades, Viçosa, Universidade Federal de Viçosa, n. 4, maio-out. 2009.

SOUZA, João Valdir A. de. Mineração e pecuária na definição do quadro


sociocultural da região do Termo de Minas Novas. In: HENRIQUES, Márcio
S.; SOUZA, João Valdir A. de. Vale do Jequitinhonha: formação histórica,
populações e movimentos. Belo Horizonte: PROEX/UFMG, 2010. p. 25-70.

TORO, Jose Bernardo; WERNECK, Nísia Maria Duarte. Mobilização social:


um modo de construir a democracia e a participação. Belo Horizonte:
Autêntica, 2004.

Márcio Simeone Henriques é doutor em Comunicação Social pela


Universidade Federal de Minas Gerais e professor do Departamento de
Comunicação Social da mesma instituição. Participante do Programa
Polo de Integração da UFMG no Vale do Jequitinhonha como coordenador
da área de comunicação e de várias pesquisas e projetos como Agência
de Comunicação Solidária no Vale do Jequitinhonha, Suporte de
Comunicação do Programa Polo, mapa da mídia do Vale do Jequitinhonha.

189
Impresso em papel Off Set 90g/m²
Imprensa Universitária da UFMG
Setembro de 2012
A movimentação politíca e cultural que deu origem ao Festival de Cultura Popular do
Vale do Jequitinhonha (Festivale) teve iício ainda no final da década de 1970. Alguns
jovensOestudantes
trabalho nãouniversitários
é causa daoriundo do Vale, então
diferenciação entreresisdentes em Belo Horizonte,
homens e mulheres no
incomodados com a identidade pejorativa associada às condições de midéria pela
Vale do Jequitinhonha. Ele apenas reflete essa diferenciação que lhe
qual era conhecida a região, iniciaram uma mobilização política para reposicionar o
preexiste,
Jequitinhonha diferenciação
e discutir ideias e que impregna
estratégias todo Em
de ação. o tecido social, e
um momento denão
abertura
apenas
politíca em que a esfera do trabalho.
o país ainda vivia sobHá, na verdade,
o regime militar, uma
tomauniversalização
forma um movimento
com odessa diferenciação.
objetivo Porpolíticos
de criar núcleos isso, é necessário
para a difusãofrisar que as
da causa relações
que esses jovens
vislumbravam
de gênero . não dizem respeito apenas à esfera doméstica, privada.
E, mais,
Em março não são
de 1978, relações
o grupo quepublicação,
cria uma se prendem a umaGeraes,
o jornal ideologia
paracomo
ser ofalsa
porta-voz
desseconsciência
movimento. A existente apenas do
grande extensão nasVale,
cabeças das pessoas,
as grandes como
distâncias meras
entre as cidades
ideias. com
e povoações, Muitodificuldades
ao contrário. São relações
de acesso presentes
e comunicação, em todas
constituíam as
obstáculos à
formação de uma rede mobilizada desses núcleos. Foi necessária oara
esferas e são imbuídas de elementos pensados e reais, no sentido deintensa circulação
pela região, distribuindo
que refletem o jornal
o real e estabelecendo
e também as discussões pouco a pouco. Dessas
o determinam.
andanças emergiu como fator mais importante de identidade (e essencial à mobilização)
a cultura popular. Poetas e compositores foram se agregando à rede de contatos do
movimento e, não por acaso, descobre-se aí a força da cultura como resistência popular.
Maria Aparecida de Moraes Silva
Esta história é um dos temas abordados neste livro, que teve como ponto de partida o
seminário Visões do Vale VI, realizado em novembro de 2011. Acadêmicos, militantes,
músicos, artesãos, contadores de história, todos se envolveram numa discussão profícua
sobre a questão da cultura e do desenvolvimento no Vale..

Você também pode gostar