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literário do
Jornal A União
Setembro - 2020
Ano LXXI - Nº 7
R$ 6,00
Exemplar encartado no jornal A União apenas para assinantes. Nas bancas e representantes, R$ 6,00
Pelas lentes
do cineclube
A história e as lições
deixadas pelos clubes dos
aficionados por cinema na PB
6 editorial
6 índice
, 21 @ 26 2 28 D 32
romance Campinoigandres ensaio livro
Livro do italiano O jornalista e escritor A escritora Elizabeth Na coluna 'Festas
Domenico Starone, Walter Galvão saúda os 70 Marinheiro leva o leitor Semióticas', Amador
'Laços' ganha análise anos do autor, tradutor e a um passeio lúdico pela Ribeiro Neto disseca
apaixonada - e compositor Braulio Tavares poesia sem fronteiras 'Amoras', estreia na
apaixonante - da escritora com um "exercício de do gaúcho Mário literatura infanto-juvenil do
Ana Adelaide Peixoto. admiração". Quintana. rapper Emicida.
Cineclube:
conversando O Cine Municipal, no Centro
de João Pessoa, foi palco
do Cinema de Arte, sessão
Alexandre Nunes
Especial para o Correio das Artes
O
primeiro cineclube de João Pessoa foi criado em 1953, da Sociedade de Medicina e Ci-
como resultado de um projeto desenvolvido pela Ar- rurgia da Paraíba, na Rua das
quidiocese da Paraíba. O Cineclube João Pessoa tinha Trincheiras, e em seguida, no
como objetivo moralizar o acesso dos fiéis ao cinema. ano de 1955, foi para Rua Du-
Conforme informa o crítico de cinema João Batista de que de Caxias, na então sede da
Brito, o Cineclube João Pessoa foi criado pelo profes- União Nacional dos Estudantes.
sor José Rafael de Menezes. “O primeiro cineclube da A primeira revista sobre cinema
Capital tinha a participação de muitos padres e José publicada na Paraíba, intitulada
Rafael de Menezes, como era muito católico, estava no “Filmagem”, foi de iniciativa des-
meio desses padres”, comenta. se cineclube. Municípios como
O cineclube era de orientação católica e tinha a par- Areia, Campina Grande, Sousa e
ticipação de um grupo de jovens interessados em cine- Cajazeiras também tiveram seus
ma. Havia uma influência da bula papal de 1936 que cineclubes já no início da década
direcionava para a exibição e discussão de filmes hu- de 1960, a partir da influência
manistas. “O primeiro cineclube funcionou na antiga disseminada pelo Cineclube João
sede da Rádio Tabajara, na Rua Rodrigues de Aquino, Pessoa.
e dele participaram Vladimir Carvalho, Wills Leal, Em 1955, uma dissidência de
Linduarte Noronha, Geraldo Carvalho, Wilton Veloso alguns membros do Cineclube
e João Ramiro Melo, entre outros”, exemplifica. João Pessoa resultou na funda- c
Depois, em 1954, as reuniões aconteciam na sede ção da Associação dos Críticos
foto: Divulgação
“
de cinema, e lia sempre a revis- de acesso a filmes na internet,
ta Cinelândia, quando descobri o
cineclube no Liceu, pronto, fui
correndo participar”.
Zezita Matos reconhece que a
importância do cineclube é exa-
tamente criar um público mais “Tenho certeza que Zezita Matos: cineclube
crítico e que saiba apreciar as cria um público mais
obras cinematográficas, ou seja, o cineclube nas crítico
um público que não engole, de cidades interioranas
goela abaixo, os enlatados. “Eu
acho que a fundamentação do ci- será uma fonte de
neclube, com o debate e os filmes conhecimento que
de boa qualidade, estrangeiro ou
servirá para resgatar por meio dos streamings, com
nacional, é exatamente estimular
várias formas de alugar, baixar
o olhar dos jovens a uma posição o gosto pelo cinema. e até assistir gratuitamente. Ela
crítica com relação ao que o filme
E o interessante é que também acredita que o futuro do
se propõe”, comenta.
cineclubismo está chegando e de
A atriz de teatro, televisão e a Paraíba é um dos forma virtual, com as videocon-
cinema é taxativa ao afirmar que,
estados que têm os ferências e lives reunindo pes-
desde cedo, se identificou com o
soas online, em diversos lugares
trabalho desenvolvido nos cine- maiores encontros de e ao mesmo tempo, para debater
clubes e que, agora, como presi-
cinema” cinema. “Recentemente, fizemos
dente da Academia Paraibana de
uma live na Funesc com diversas
Cinema, pretende desenvolver
academias de cinema”, ilustra.
foto: divulgação
Relação
com a sétima arte nos
dias de streaming
Escritor, compositor, tradutor
e cinéfilo, Braulio Tavares, que
participou ativamente do movi-
mento cineclubista de Campina
Grande, acha normal o fato da
garotada de hoje falar sobre ci-
nema através do YouTube, por-
que considera que esse é o meio
mais ao alcance desses jovens,
e é o que ele e seus companhei-
ros de cineclube teriam feito se
houvesse algo parecido em seu
“
aproveitar o lado positivo que blico em meus projetos”, ressalta.
cada mudança que o mercado Atualmente, o comentarista de
nos oferece”, analisa. cinema participa do conselho do
Braulio acredita que existe al- Cineclube “O Homem de Areia”,
ternativa para um novo tipo de da Fundação Casa de José Améri-
cineclube a partir das redes so- co, onde também comenta filmes.
ciais, porque elas possibilitam Cinema é uma forma “Toda primeira quarta-feira do
a criação de grupos fechados mês, antes da pandemia, o cine-
de socialização
ou abertos para a discussão de clube exibia um filme escolhido
assuntos específicos. “Não te- que une as classes por mim e os demais conselheiros.
mos mais os debates presenciais Além dessa quarta-feira, eu pedi a
sociais, porque os
como no cineclube (auditório Rejane Ventura a sala do cineclube
cheio, projeção, discussão após sentimentos de mais um dia, para botar um filme
o filme), mas é o que digo: preci- da minha própria escolha. E co-
ódio ou de amor do
samos aproveitar os aspectos po- meçou a pipocar gente. No míni-
sitivos dos instrumentos atuais. pobre são muito mo tinha 40 pessoas, mas a média
Hoje podemos formar um grupo era de 50 a 60 pessoas. Foi quando
parecidos com os do
de cinéfilos para discutir a sério a OAB resolveu ocupar mais um
filmes do interesse de todos, e os rico. O cinema une dia, também no cineclube da Fun-
participantes podem morar em dação Casa de José Américo, para
classe, faz as pessoas
20 cidades diferentes. Há uma a exibição de filmes sobre questões
perda por um lado, mas temos conversarem. jurídicas, sempre nas primeiras
que aproveitar os ganhos”, com- segundas-feiras dos meses pares”,
plementa. explana.
foto: reprodução
é escolhido por um
conselho
O cineclube proporciona uma
viagem pelo mundo, que encanta
a todos através da arte do cine-
ma. É o que afirma a secretária-
-executiva da Fundação Casa de
José Américo, Rejane Mayer Ven-
tura. Ela se refere ao Cineclube
“O Homem de Areia”, inaugura-
do em 2015 e que é coordenado
por meio de uma gestão compar-
tilhada entre o poder público e
sociedade civil.
“O cineclube funciona em es-
paço próprio para a projeção de
filmes, instalado na Fundação
Casa de José Américo, na praia
do Cabo Branco, em João Pes-
“
soa, e é um ponto de encontro
e de bate-papo das pessoas, que
Vladimir Carvalho (de bigode)
sempre que saem de lá, vão para filma José Américo para
restaurantes ou lanchonetes, mas ‘O Homem de Areia’: filme
o protagonista da noite, nas con- inspirou o cineclube da FCJA
versas, é o filme e o debate que
girou em torno dele”, comenta. “O Homem de Areia”
O nome do cineclube foi es- ciedade. É o objetivo do cineclube
colhido como uma homenagem os últimos momentos temático “Cine OAB”, um projeto
ao cinema paraibano, ao escri- e as memórias de que teve início no mês de abril de
tor José Américo de Almeida e 2016, e que antes das restrições
ao cineasta paraibano Vladimir José Américo. decorrentes da pandemia, se-
Carvalho, que documentou em guia sendo exibido nas primeiras
“O Homem de Areia” os últimos segundas-feiras dos meses pares,
momentos e as memórias de José sempre com entrada gratuita.
Américo. As exibições aconte- O cine OAB é fruto de uma
cem toda primeira quarta-feira res, Andrés Von Dessauer, Alex parceria da Ordem dos Advo-
do mês, às 19h30. Ao terminar Santos, Damião Ramos Caval- gados do Brasil - Seccional da
a exibição, começa o debate com canti, Elizabeth Maia, Fernando Paraíba, através da Comissão de
a apresentação de um comenta- Moura, Francisco de Assis Vilar, Direito, Arte e Cultura, com a
rista, seguida de uma rodada de Henry Krutzen, Luíz Andrade, Fundação Casa de José Américo.
perguntas dos presentes. Manoel Jaime Xavier Filho, Mi- O presidente da Comissão de
O público que comparece a rabeau Dias, Moacir Barbosa, Direito, Arte & Cultura da OAB-
cada exibição é de, em média, Rejane Mayer Ventura e Zezita -PB, Joaquim Campos, explica
100 pessoas. “Como o cineclube Matos. que o cineclube é temático e que
é presencial, fizemos a última “Os filmes selecionados e exi- os filmes exibidos tem a ver com
exibição em março deste ano, por bidos são eleitos pelo conselho. assuntos do universo jurídico.
causa da pandemia, e estamos A gente indica e o conselho elege “Os comentários pós-filme são
em stand by esperando, porque os filmes da edição do ano subse- divididos em duas partes: aspec-
a Fundação Casa de José Amé- quente. A reunião sempre ocor- tos técnicos da película e aspec-
rico é um órgão do Governo do re em novembro ou dezembro. tos jurídicos. Os aspectos técni-
Estado e por isso existe todo um Cada conselheiro pode indicar cos, na grande maioria das vezes,
protocolo para a reabertura das uma quantidade de filmes, que são comentados pelo crítico de
atividades”, explica Rejane. será submetida à escolha do co- cinema Andrés Von Dessauer.
Ela acrescenta que a progra- legiado”, detalha. E os jurídicos são sempre por
mação do Cineclube “O Homem membros da comissão, ou por
de Areia” é decidida através de advogados convidados”, detalha.
um conselho diretor, composto Cineclube Joaquim Campos destaca ain-
por pessoas comprometidas com pode ser temático da que o público presente é bem
a cultura e em oferecer filmes Proporcionar entretenimento variado, incluindo não só advo-
de qualidade para a população. e expansão cultural, bem como gados, como também cinéfilos
A formação atual do conselho é provocar reflexões acerca da im- das mais diversas profissões e
a seguinte: Ana Adelaide Tava- portância da advocacia para a so- faixas etárias.
“
Rocha foi responsável pela intro- católica e o movimento cineclubista” políticas e análises cinematográficas
dução de discussões políticas e
análises cinematográficas.
Braulio Tavares integrava um
grupo de jovens estudantes que
resolveu retomar as atividades
do Cineclube Campina Grande
em 1967, após anos inativo. “Fize-
Exibimos mostras de
mos um curso intensivo de cine- Norman MacLaren,
ma, promovido num colégio, e o
professor Dorivan Marinho, que
com filmes enviados
era um ex-diretor do CCG, re- pela Embaixada do
passou para nós o material (esta-
tutos, documentos, etc.) para que
Canadá, exibimos os
o cineclube voltasse à atividade”, curtas premiados do
relembra.
Após o curso, e com o apoio de
Festival JB-Mesbla,
Dorivan, o cineclube ficou a car- exibimos clássicos
go do grupo de Braulio, que in-
cluía Luís Custódio, José Umbe-
como 'Rocco e Seus
lino Brasil, Jackson Agra, Marcos Irmãos' etc., além Agnaldo Almeida, um dos
Agra, Rômulo Azevedo, Romero
Azevedo, Guilherme Vilar, Pe-
de ciclos do cinema fundadores do Glauber Rocha:
“O cinema tinha bons autores e
dro Quirino, Severino Caluete, paraibano" discutia os temas sociais da época”
Marcos Barbosa, Zélio Furtado,
Antonio Lins e Edmilson Dantas,
entre outros.
Bráulio Tavares explica que
as reuniões eram semanais, aos
domingos de manhã, nas depen- As sessões de filmes, na bitola do Festival JB-Mesbla, exibimos
dências da União dos Moços Ca- de 16 mm, eram custeadas com clássicos como Rocco e Seus Ir-
tólicos, um prédio por trás da Ca- a verba da mensalidade dos só- mãos, de Luchino Visconti, etc.,
tedral de Campina Grande. “Em cios, em parceria com o Cinema além de ciclos do cinema parai-
todo o Nordeste, sempre houve Educativo. Depois, o cineclube bano: Aruanda, Romeiros da Guia,
uma ligação histórica entre a passou a receber filmes cedidos Cajueiro Nordestino, A Cabra na Re-
igreja católica e o movimento gratuitamente por embaixadas. gião Semi Árida etc.”, complemen-
cineclubista, como está registra- “Exibimos mostras de Norman ta Braulio.
do na obra de autores como José MacLaren, com filmes envia- Ele revela que à época foi fir-
Rafael de Menezes (Caminhos do dos pela Embaixada do Canadá, mado convênio com o “Diário da
Cinema, etc.) e outros. exibimos os curtas premiados Borborema” para a publicação
Cineclube
deu origem ao grupo
“Levante”
O Cineclube Glauber Rocha foi
fundado por Cláudio Porto, Ro-
berto França e Agnaldo Almeida,
entre outros. A informação foi
repassada pelo jornalista José
Nêumanne Pinto, que quando
chegou ao cineclube, este já exis-
tia. “O Cineclube Glauber Rocha
aconteceu em um momento mui- Adalberto Ribeiro: “O cinema Cláudio Porto também integrou
to bonito, importante e de muita me ajudou a despertar para a o CEU: “Todo mundo saía com
atividade cultural”, ressalta. vida intelectual”, cara de inteligente”
Os embalos
de sábado
à tarde lfhdl fdlfjd fldj
sd dalkjda ladjf
dalfjsdafsadksda
lsdkj sdlkjsd
flsdj jh jh
N
unca houve um cineclube
como o Charles Chaplin. Em
João Pessoa, pelo menos,
não. Sei da existência de ou-
tros, anteriores e posteriores,
mas nenhum exerceu papel
e influência tão marcantes
na formação de uma cons-
ciência crítica entre espec-
tadores de cinema da cida-
de. Ser um espectador com
esse tipo de consciência,
aliás, ganhou roupagem de
mantra depois de o cine-
clube do Liceu Paraibano
ensinar que cinema tam-
bém se aprende no colégio.
Foi uma grande lição do
professor Pedro Santos e do
aluno Paulo Melo, fundado-
res e primeiros dirigentes da
entidade. E as tardes de sába-
do no Liceu – quando eram exi-
Foto: arquivo pessoal
A reificação do humano
na contística de
Dalton Trevisan
José Mário da Silva
Especial para o Correio Artes
J
á se disse que a biografia de um escritor tem início no visan é considerado quase una-
exato momento em que ele publica a sua primeira obra. nimemente pela crítica literária
A despeito desse aforismo, apanágio da reação da crítica brasileira como um dos melhores
formalista ao biografismo ingênuo caracterizador dos es- contistas brasileiros da atualida-
tudos literários de parte do século 19, seja-nos permitido de.
fazer uma breve apresentação de Dalton Trevisan, um dos Tradutor de clássicos de Gide,
nomes mais significativos da literatura brasileira da atua- Proust, Kafka, dentre outros ex-
lidade. pressivos nomes da literatura
Nascido em Curitiba no já longínquo ano de 1925, mais universal, o seu aparecimento no
precisamente no dia 14 de junho, advogado, Dalton Tre- mundo das letras nacionais dá-
-se com a edição de uma revista
foto: reprodução
intitulada Joaquim. Novelas Nada
Exemplares, publicado em 1959,
assinala a sua primeira publica-
ção. Avesso a entrevistas e bada-
lações típicas do ser/fazer mais
convencional da vida literária, no
melhor estilo de gauche à Carlos
Drummond de Andrade, defende
o primado da obra sobre o autor.
Das notícias policiais, das fra-
ses feitas que integram o vasto
repertório da cultura e das con-
versações populares, das bulas
de remédio, da confidência dos
amigos, da leitura dos clássicos
e do seu agudo senso de obser-
vação da realidade; de todo esse
universo é que Dalton Trevisan
extrai a matéria viva de que está
fartamente impregnada a sua
singular produção literária.
Desconfiado das teorias que
vinculam o processo da criação
literária ao princípio soberano
A obra de Dalton da inspiração, prefere acreditar,
Trevisan é marcada na esteira das postulações racio-
por um tom inequívoco
de crítica social,
nalistas de Paul Valéry, que de
direcionada contra graça os deuses só nos concedem
as multisseculares o primeiro verso, sendo, depois,
formas de opressão necessária conjugação de três ati-
que protagonizam
as desidealizadas
vidades indispensáveis: trabalho,
interações humanas trabalho e trabalho. Por essa ra- c
Laços &
Laços (São Paulo: Todavia:
2017), romance do escritor
italiano Domenico Starnone
(Assombrações, Segredos) conta
Separações
a história de um casal e dois
filhos. Na verdade, o conflito
principal se dá entre o casal. O
marido, Aldo, deixa a casa por-
que se apaixona por outra mu-
lher, mais jovem; experiência
essa que faz com que queira
ir embora. Sua mulher, Vanda,
Ana Adelaide
em desespero, luta por uma
“
Especial para o Correio das Artes
volta, com as armas que lhe
são próprias. Faz chantagem,
escreve cartas (nove), se utiliza
dos filhos pequenos, e mergu-
lha em um ressentimento sem
No mundo civilizado tende-se a pensar que há recursos fim, tornando-se amarga, e
como o psicólogo para arrumar as coisas. O que este livro vingativa.
diz é que nada se arruma. A dor é a dor, e quando não há Esse é a primeira parte do
maneira de contê-la reage-se com raiva.” livro, denominada de “Primei-
(Domenico Starnone) ro Livro”. O ponto de vista de
Vanda; a sua raiva, o seu des-
peito, e todos aqueles senti-
fotos: divulgação
mentos pobres e humanos que
nós mulheres, quase todas, um
dia experimentamos. O aban-
dono. “Sou sua mulher!”, relem-
bra a Aldo, bem como os votos
um dia feitos diante do padre.
“Volte pra casa”, lhe implora!
E o marido, quando convém,
discursa sobre: a família na his-
tória, a família no mundo, sua
origem, e os papéis em que nos
aprisionam ao casar. Engrena-
gens, máquinas desprovidas
de sentidos, repetição. Todo
esse discurso, é muito conve- c
Domenico Starnone e
a capa de ‘Laços’: três
pontos de vista sobre um
mesmo fato, uma crise
conjugal.
Monte Âncora
Cláudio Feldman
Especial para o Correio das Artes
A
cidade de Batel era notória por seu trepidante porto, pela sede do Con-
gresso Internacional de Surdo-Mudos e pelo monte Âncora.
Nesta eminência, defecada por gaivotas, erguia-se o Santuário da
Virgem Oceânica, onde o devoto povo do município procurava a paz
espiritual, coadjuvado por marujos que imploravam proteção em seu
caminho salgado.
Dos 150 metros de altura, desdobrava-se um panorama deslumbran-
te, que abarcava tanto as ilhas do oceano azul quanto a cidade com
suas ruas, praças primaveris, meretrícios e o porto, visitado sem cessar c
por vozes de todo o mundo.
Braulio
Tavares,
70 anos:
Exercício de admiração
Walter Galvão
Especial para o Correio das Artes
A
propósito dos 70 anos de vida do escritor músico
poeta Braulio Tavares, completados neste setembro
de 2020, é na condição de apologista da superinter-
pretação, da replicabilidade dos pseudoduplos, da
intercontextualidade e da heurística estética, que
compartilho no Correio das Artes o seguinte exer-
cício de admiração:
É possível observar na obra multimodal desse
autor paraibano, que um dia se definiu também
filósofo popular, uma cosmogonia arbitrária do
universo imaginativo humano advinda de um do-
mínio artístico da palavra em permanente estado
de excitação criativa.
Mário
são o advento do romantismo
e a manutenção regional. O
romantismo pontuando a líri-
Quintana:
ca e o regionalismo teclando a
memória, o humano e, óbvio, o
campo.
Sendo a infância, motivo
central dos românticos (cf. Ca-
UMA CARTOGRAFIA LÚDICA PARA simiro de Abreu) nada mais
fértil que sua ascensão comun-
A TRANSCEnDÊNCIA LITERÁRIA gando com o regional entre os
escritores sulinos.
Com certo declínio do ro-
mantismo, é a vez dos toques
Elizabeth F. A. Marinheiro
Exclusivo para o Correio das Artes
parnasianos e simbolistas. In-
fluenciados pelos gêneros do
Rio de Janeiro, os gaúchos são
T
endo feito Mestrado e ma estética, a condição hu- de grande importância, até
Doutorado na PUC/RS, mana e a paisagem social. porque não se distanciaram
tivemos oportunidade Embora “nascendo” com muito do “Partenon”. Fontou-
de estudar grandes autores, a poesia no século 19, a lite- ra Xavier com a obra Opalas
a exemplo de Darcy Azam- ratura sulina foi crescendo consolida o Parnasianismo e o
buja, Simões Lopes Neto, admiravelmente, a exemplo Simbolismo vai à frente, atin-
Mário Quintana, Érico Ve- do “Partenon” que extra- gindo o Brasil. Daí, surgem os
ríssimo e outros. polou o universo gaúcho, consagrados nomes de Ola-
Não podemos mais rotu- plantando as sementes da vo Moreyra e Marcelo Gama.
lar a literatura gaúcha de, filantropia e favorecendo Com sua dicção moderna, o
literalmente, regionalista: a vasta produção literária, Simbolismo, de pronto, assu-
ela tem características e dos escritores que defende- miu a modernidade tal qual
individualidade próprias. ram a abolição da escrava- postulou Walter Benjamin, o
Embora alguns textos pare- tura. qual atribuiu aos escritores o
çam destinados, exclusiva- Discípulos do “Parte- combate à massificação coleti-
mente, aos riograndenses, é non” não são apenas Apoli- va, de acordo com a citação de
inegável que essa Literatura nário Porto Alegre, Luciana Luiz Costa Lima (in Teoria da
aparece enfatizando, de for- de Abreu, Lobo da Costa Cultura de Massa). c
“
e com ela os temas do sonho, do cre- farei para levar-vos para o Céu?”
púsculo, do misticismo, da ascese, (Caderno H).
enfim, a primazia do onírico. Não só nas “Canções” (Antologia
Fica claro que essa colcha de re- Poética) mas também em “Sapato
talhos, na qual sobrevivem o realís- Florido” (1948), as coisas simples da
tico-social, o sonetismo metrificado vida diária apresentam um sentido
dos parnasianos, o penumbrismo novo de um despojado lirismo. Daí Ó céus de Porto
simbolista, mesmo com o toque da a musicalidade das cantigas popu-
mansidão em Gilka Machado, é lares, dos ruídos, dos pregões etc. Alegre, como farei
uma abertura para os imitadores de “Pregoeiros. Sinos. Risadas. Si- para levar-vos para
Baudelaire. nos.
No Rio Grande do Sul, Guer- E levada pelos sinos, o Céu?
ra Duval com o verso livre; Mário Toda ventando de sinos,
('Caderno H')
Pederneiras com suas assimetrias; Dança a cidade no ar!” (Antologia
Marcelo Gama com a linha colo- Poética. p. 57).
quialirônica; a diretriz “sério-es- Em “O Outro Mundo” do Cader-
tética” de Alceu Wamosy e Alvaro no H:
Moreira, acrescentando-se a minei- “Por favor, deixa o Outro Mundo
ridade espiritual de Cruz e Sousa em paz! O mistério está aqui.”
formatam a porta aberta para a Mo- Quintana sempre morou um ho- ta; inquestionavelmente, remete ao
dernidade no Brasil. téis e pensões, porém as casas onde desrespeito arquitetônico deste sé-
Nesse contexto, será uma atitude viveu não desaparecem do seu ima- culo 21... A quem caberá uma con-
crítica irresponsável rotular o gê- ginário: “Muita vez me entretenho denação?...
nio Mário Quintana... Mesmo que em reconstruir de memória a nossa A infância das cirandas, das ve-
a revolução estética de 1922 tenha antiga casa paterna”. Sendo a casa lhas, das tias, de Lili, dos cataven-
chegado tardiamente ao sul e Lígia paterna um lugar de passagem, tos, tratados com aquela simplici-
C. de Moraes, em seu Regionalismo torna-se tema recorrente do Poeta, dade, que mais parece um recurso
e Modernismo, afirme que “houve constantemente evocada ao longo retórico, nos dão um tempo mítico,
e não houve Modernismo no Rio de sua obra e, não raro, relacionada onde ser e parecer se fundem pela
Grande do Sul” (1998. p.22), não às alusões a sua própria infância. inteligente desrealização do real. É
aceitamos tais posições porque a Consequentemente, o inconformis- como se a visão infantil da lírica es-
Literatura sulina manterá sons de mo do eu memorialista: tivesse em contraponto ao contexto
outros estilos, mas se firma na mo- “Não pude ser um menino de real.
dernidade. rua... Poemas a exemplo de “O Mapa”
E é Mário Quintana (sem es- Aliás, a casa me assustava mais (in Apontamentos de HS) e “A minha
quecer Augusto Meyer) que, com do que o mundo, lá fora. rua” (in A Vaca e o Hipogrifo) rede-
A Rua dos Cataventos, consolida A casa era maior do que o mun- senham a cidade ora com sotaque
o Modernismo, isento de objetivos do! bandeiriano, ora é a evasão líri-
sociais, voltando-se, prioritaria- E até hoje ca de um andarilho que caminha
mente, à cidade, ao sonho, à criança. – mesmo depois que destruíram por dentro de si mesmo: “Olho
Autor de canções, historietas, ano- a casa grande – o mapa da cidade/Como quem
tações, poemas, sonetos, textos em até hoje eu vivo explorando examinasse/A anatomia de um cor-
prosa, Quintana revelava que ouvia os seus esconderijos...” (in A Casa po...(É nem que fosse o meu corpo!)”
as leituras feitas pelos pais e logo Grande). É neste redesenhar urbano que
cedo começaria a escrever. Não esqueçamos, todavia, o al- sublinhamos algumas dicções de
Comum encontrá-lo caminhan- cance do seu protesto político-so- Quintana: a memorialística, a meta-
do nas ruas portoalegrenses, trans- cial no texto “Instabilidade” (in A linguística e a irônica. Neste trinô-
formando-se no andarilho que olha Vaca e o Hipogrifo): “Reconstruíram mio haverá sempre um denomina-
e vê a cidade em seus mínimos a cidade antiga, mas esqueceram-se dor comum.
detalhes. Reais ou imaginárias, as de reconstruir as nossas almas. Daí, A memorialística está conectada
ruas ocupam o centro da cena e o a instabilidade contemporânea. com sua linhagem autobiográfica
caminhante segue captando fatos, Porque não somos contemporâneos ancorada num território interior,
gestos, esquinas, derramando seus de nós mesmos”. que vivido ou recriado (“Esses pen-
afetos sobre os céus e a terra que, Atualíssimo, o protesto do Poe- samentos que nos chegam de súbi- c
“
ve-se a permanência da “criança”. do tempo: “Estes inquietos ventos
Por outra via, também conside- andarilhos/Passam e dizem: “va-
ramos difícil uma analise da versi- mos caminhar”.
ficação deste Gênio gaúcho porque Sua metapoesia tanto cobre con-
dos primeiros versos aos poemas ceitos literários “Antes de escrever,
modernos é incontestável sua liber- eu olho, assustado,/para a página
E, por todo o dade formal. em branco” (Caderno H) ou “Ser
O solitário andante, com sua poeta não é uma maneira de escre-
sempre, enquanto paixão pelas “coisas”, transforma- ver. É uma maneira de ser” (Viver &
a gente fala, fala, -as em poesia. Vale dizer que não Escrever), como se associa aos con-
apenas a cidade, a infância e outros ceitos de morte: “A morte deveria
fala, topoi são importantes. Ao personi- ser assim:/um céu que pouco a pou-
ficar o banal, Quintana consolida o co anoitecesse/e a gente nem sou-
o silêncio escuta animismo em sua obra: besse que era o fim” (Apontamento
e cala “O banho da luz, tão puro, de HS).
Na paisagem familiar: Com certa ótica, admitimos que
(“Esconderijos do Tempo”)
Meu chão, meu poste, meu muro, o verso “...a poesia é um sintoma do
Meu telhado e a minha nuvem sobrenatural” (Caderno H) desvela
Tudo bem no seu lugar” (“Can- que, ao caminhar entre o sonho e
ção do Primeiro Ano” in Antologia o real, o Poeta apresenta um clima
Poética). E ele mesmo afirma: “Des- denso, onde monstros são huma-
c to/nas ocasiões mais impróprias”), de pequeno tive tendência para nizados (cf. “Bau de Espantos”, in
instaura um jogo de espelhos. A personificar as coisas” (ipsis verbis). A Vaca e o Hipogrifo) sugerindo o
imagem romântica vai perdendo Ouvimos esta afirmação no dia em super-realismo e/ou o fantástico
terreno e a autorreflexão vai ga- que Quintana convidou-me para provocado pela conjugação natural
nhando espaço significativo. contemplar o crepúsculo do “Guaí- x sobrenatural. Daí, procedem o
E se “a imaginação é a memó- ba”. Em lá chegando, perguntou- espanto, o enigma e o silencio que
ria que enlouqueceu”, os poemas -me: “Você já viu crepúsculo mais uma leitura rigorosa provará.
“Confessional” (A Vaca e o Hipogri- bonito que este?”. Respondi-lhe: “E, por todo o sempre, enquanto
fo), “Álbum de Retratos” (Caderno o de Ipanema é mais bonito. Ele a gente fala, fala, fala,
H), “Autobiografia Mágica” (A Rua deu enorme gargalhada e replicou: o silêncio escuta
dos Cataventos), “O Poema” (Caderno ”Que nada, menina, o Guaíba tem e cala” (Esconderijos do Tempo).
H) revelam a diversidade dos quin- o crepúsculo mais belo do mundo”. Se já falamos demais é hora de
tanares. No universo dos espelhos E eu apenas monologuei: bonito e silenciar, diremos nós...
Quintana não se vê como Narciso; bom é estar aprendendo com o Se- Antes do silêncio devemos lem-
pode ver-se como um louco, indaga nhor. brar que ao resgatar a pureza da
a religiosidade, vale dizer, não en- Aliás, o Guaíba integra a cidade criança; ao referendar o olhar e o
contramos um retrato unitário do tão amada e decantada em sua exis- ver; ao criar seu universo tão oní-
Poeta e sim o simbolismo do meni- tência, em sua vasta obra. rico quanto real e tão fantasioso
no e do homem, os quais presentifi- As três linhagens (memorialista, quanto humano, Quintana não tem
cam-se em sua obra. metalinguística, irônica) poderão, o retrato unitário, nem unitária é
“Nós vivemos num mundo de neste estudo, admitir o coloquia- sua obra.
espelhos, lismo enquanto denominador co- Suas constantes andanças, sem-
mas os espelhos roubam a nossa mum. Coloquialismo estético que, pre pensando o outro e o si mesmo,
imagem... em versos curtos, capta o imediato transformam sua Lírica, em que a
Quando eles se partirem numa e o efêmero. Que confere “eternida- gravidade irônica, o coloquialismo, a
afinidade de estilhas de” ao humor. Que é uma reflexão cidade e a criança, confirmam a cons-
seremos apenas pó tapeando a sobre um eu que, focando a cidade, trução de um espaço confluente. (cf.
paisagem” (“Vidas” in Apontamen- questiona a morte com efeito hila- “Confluências”, in Antologia Poética).I
tos de HS).
Entendemos que nessa diversi-
Elizabeth Marinheiro, é uma escritora, crítica literária e professora doutora
dade especular seria muito exaus- brasileira. “Imortal”, ocupa desde 2 de maio de 1980 a cadeira de número
tiva uma abordagem em torno do 20 da Academia Paraibana de Letras - APL, tendo sido a primeira mulher a
humor e da ironia, bases da poética ocupar um de seus assentos.
Quintais
Renata Escarião
Especial para o Correio das Artes
G
osto dos varais... e dos quintais. Do filho desnudo, descalço e despreocupado brin-
cando com a terra do vaso da planta que acabei de mudar, enquanto o perfume da
roupa recém lavada que penduro no varal atravessa para o muro do vizinho de
onde vem cheiro de pão assado e café fresco.
Estendo cada peça com cuidado, mas gosto mesmo é do balé dos lençóis e das
saias ao vento, saias do Terreiro que parecem que ainda giram com a fumaça do
defumador.
Gosto dos sons do meu mundo nessas manhãs. Do balançar dos galhos da goia-
beira que, vindas do outro lado, se debruçam sobre o muro e dão sombra às minhas
plantas (o que me consola quando preciso, em dada época do ano, limpar a infini-
dade de frutas que se espatifam no chão).
Enquanto o vizinho briga com o cachorro, presto atenção aos diálogos fantásti-
cos que meu pequeno trava com as minhocas que encontra na terra.
Levamos a manhã inteira nisso. O barro, as plantas, o vento, o varal. A vida pas-
sando mansa e simples, como tudo que importa.
Depois de tudo feito, com a sombra do muro se estendendo depois que o sol
do meio dia passa, eu volto lá solenemente apenas para observar as roupas quase
prontas de balançar no varal. I
As
pretinhas
são o melhor que há
E
le tem 35 anos. É paulistano da Zona Norte de São uma fusão de “MC” e “homici-
Paulo. Nasceu “em uma casa bem pobrezinha. Sua da”: Emicida.
imaginação foi sua melhor amiga e o fez visitar Uma das maiores revelações do
mundos incríveis, transformando-o em astronau- hip-hop brasileiro da década de
ta, desenhista, guerreiro, pirata, rei, pintor, samu- 2000. Um rapper, compositor e can-
rai e muitas outras coisas”. tor que rapidamente ganhou o re-
Isso quem diz é ele mesmo, Leandro Roque de conhecimento público e da crítica.
Oliveira, pai de duas meninas, uma com nove e Na levada de sua criatividade, logo
outra com dois anos de idade. Devido às suas fa- preencheu de sentido as iniciais de
cilidades em rimar, seus amigos começaram a di- seu nome artístico: Enquanto Mi-
zer que Leandro matava os inimigos nas batalhas nha Imaginação Compuser Insa-
de improvisações. Daí surgiu seu nome artístico, nidades Domino a Arte. c
fotos: divulgação
Emicida, rapper
que se aventurou
na literatura
infanto-juvenil
com ‘Amoras’:
músico que tem
como projeto o
princípio didático
de cidadania
plena
6 conto
Casar
Meu nome é Dolores, Maria Dolores. Para as
amigas, apenas Dolô. Aliás, de amigas estou por
aqui. Uma decepção atrás da outra. Não sei em
quem mais confiar. Minha sorte ou sei lá, talvez
seja uma urucubaca mesmo, é ter me casado com
com homem bonito homem bonito. Bonito? Bota bonito nisso. João
Augusto é tudo de que se pode querer de um ho-
dá nisso
mem, pelo menos fisicamente, porque em se fa-
lando da fidelidade que se espera de alguém com
quem vai dividir casa, ele é um verdadeiro mala
sem alça.
Está fazendo um pouco mais de três anos que
Luiz Augusto Paiva me casei com João Augusto. Conheci essa cria-
Especial para o Correio das Artes
tura quando entramos juntos para o curso de
Direito, no mesmo turno, na mesma sala. Havia
um equilíbrio de gênero nessa turma, metade de
Se eu vou a uma festa sozinha homens e nós mulheres preenchendo a outra me-
Procurando esquecer o meu bem tade. Éramos criaturas absolutamente normais,
algumas bonitas, outras nem tanto. Estou falan-
Nunca falta uma engraçadinha do dos meninos e das meninas. Exceção era João
Perguntando ele hoje não vem Augusto, bonito de morrer.
Desde o primeiro dia de aula foi um alvoro-
Lupicínio Rodrigues ço, quando apareceu aquele deus grego vindo lá c
Prefácios
R
achel de Queiroz costu- do bolo e vão embora à francesa, passando por casas do tipo: “Foi
mava dizer que, quan- quase despercebidos. Outros che- convidado para uma coletânea –
do um livro é bom, ele gam já roubando a cena, fazendo avance uma casa”; “foi convidado
prescinde de prefácio; valer qualquer festa. para escrever uma orelha – avan-
e quando é mau, não há prefácio Um dos textos canônicos so- ce duas casas”; “foi convidado
que o salve. O curioso é que seu bre a crônica (cujo título não por para escrever um prefácio – avan-
primeiro livro de poemas, Man- acaso batiza esta coluna) é um ce três casas”...
dacaru (1928), tinha não apenas prefácio escrito por Antonio Can- Era um livro sobre micronar-
um prefácio como, pasmem, um dido para um dos volumes da rativas e tentei honrar os meus
prefácio assinado pela própria inesquecível coleção Para Gostar mestres, fazendo um breve es-
autora. Inédito até uns anos atrás, de Ler. Quando convidei Braulio tudo sobre o gênero. Pensei em
o livro havia sido doado para Tavares para escrever o prefácio falar algo sobre prefácios, mas
uma amiga que morreu num do meu livro de estreia, Demô- meu grande dilema era que o
acidente de avião, antes de con- nios Domésticos (2017), quis ter de texto estava começando a ficar
seguir publicá-lo. Ironia das iro- volta a sensação deliciosa que eu mais longo que alguns dos mi-
nias: Mandacaru saiu em 2010, no tinha, trabalhando diariamente crocontos. Comecei a me sentir
centenário de Queiroz, com dois como jornalista, de abrir ansio- como a convidada de um casa-
prefácios: o da escritora e o de ou- so o jornal e ler sempre um texto mento querendo ir para a igreja
tra organizadora que enfim con- dele antes de ler os meus. Braulio com uma roupa branca, um véu
seguiu levar o projeto adiante. fez mais por mim: me presen- e um arranjo de flores, e uma
O prefácio é algo como a ore- teou com uma peça que coloco cauda no vestido muito mais
lha do livro, só que com uma no mesmo patamar do ensaio de longa que a da noiva. Ou o mes-
certa pitada de erudição. Claro Candido e que até hoje eu não sei tre de cerimônias que demora
que, em se tratando de orelhas, como agradecer por ser melhor a passar o microfone, e acaba
há vários tipos de cabeças, e para que o meu livro. fazendo um discurso antes da
cada cabeça um leitor: há os que Recentemente me vi no outro cerimônia em si.
as leem antes e os que as leem de- lado do tabuleiro: o de ser convi- Deixei o meu recado: a virtu-
pois de concluir os livros; os que dado para escrever um prefácio. de de toda literatura é dizer em
se recusam a lê-las e até os que Digo do outro lado do tabuleiro algumas linhas o que a teoria le-
as leem no lugar do livro inteiro porque a sensação foi essa mes- varia páginas para explicar. Um-
e já se acham no direito de opi- ma: de estar no meio de um jogo, berto Eco dizia, aliás, que toda
nar. Em se tratando de prefácios, esse jogo que no caso da litera- tese deveria ser escrita como um
porém, costuma haver um só tipo tura seria algo como um Banco romance policial. Um prefácio
de leitor: aquele que pula e vai Imobiliário em que é impossível jamais chegaria a tanto. Mas na
direto para o texto literário. Daí fazer fortuna ou um jogo da vida certa prefácios seriam mais lidos,
a minha teoria de que o prefácio que não te dá o direito a carro. se fossem escritos também como
é algo como aquele convidado Certamente eu estava avançando, literatura.I
da festa que só conhece o dono
da casa e fica por ali no canto da Tiago Germano é escritor, autor do romance “A Mulher Faminta” (Moinhos, 2018)
sala, sem saber como se compor- e do livro de crônicas “ Demônios Domésticos ” (Le Chien, 2017), indicado ao
tar. Alguns ficam só até a hora Prêmio Jabuti. Mora em João Pessoa.
Daniel Az
Pintassilgo
Moeda
Sobrevoavas tu minha coroa Não há dissabor que não se acabe.
de espinhos, e eu ouvia teu lamento A ânsia, a insônia, a insanidade,
a arrancar-me a dor que de meu corpo nada resiste ao instante fatídico
retinha, de me sangue, tuas penas. das vicissitudes do suicídio.
Vejo-te agora, meu pequeno amigo, O tiro, o estampido, o furo, o vício,
entre as mãos de João numa oferenda o instantâneo arroubo do sentido,
sem sacrifícios, medo ou fratricídio. que se instala no coração, abre
Apenas por amar sem penitência. um istmo de nada e se acaba.
Podes cantar, meu doce Pintassilgo, Não há sabor mais doce de vida
estás em bom abrigo, no aconchego que não seja do abraço, do beijo,
dos prados, dos riachos e dos vales. da memória salgada da saliva
Estás em redor do Azul e Vermelho a lembrar um mar sob um veleiro.
da túnica de minha Mãe, que, sagrada, Entrelaçadas, a vida e a morte
sagra-nos à Santíssima Trindade. rodopiam entre o azar e a sorte.
l Azevedo
Ilustração: tonio
Treliças
Diletantes
Acorda e vem comigo, segue meus A sala, meio clara, meio escura,
passos. Embora já noite, vem, segue. acomoda seus quatro visitantes.
Vem que a Lua se espicha contra o breu No espaço turvo, o clima se defuma.
e desfibrila o espesso pez do céu, Com charutos em mãos, os elegantes
que a terra em que pisas é firme e seca, senhores tratam temas diletantes.
nela se refugia o olor de bétulas, Além do azul da fumaça, uma música
a fragrância arenosa da ribeira, se espaçava em silêncios webernianos,
um buquê que se espalha pelas pétalas. até que a sala, se antes era dúbia,
Estende tuas mãos, dá-me as mãos logo. entre sombras e luz, agora vibra
O caminho clareia como um lógico timbres variados, cores profusas,
argumento talhado em chiaroscuro numa melodia do menos quase
numa aurora de estrelas. E, contudo, surda – seus visitantes, aos vapores
como treliças, nossas mãos se trançam azulados do fumo, se entreolham
e entre si o ilumimenso da manhã. na vaga panaroma dos sabores.
Entre
a confissão
e a ficção
E
scrito por Fernanda Torres e publicado pela Com- 20 e das décadas iniciais do sé-
panhia das Letras em 2017, o romance A glória e seu culo 21.
cortejo de horrores conta a história do a tor Mario No caso desse livro de Fernan-
Cardoso, em sua trajetória profissional que alterna da Torres, a motivação para refle-
momentos de glória, reconhecidos pela presença tir sobre “escrita de si” e/ou “au-
nas mídias, pelos convites de trabalho etc., e muitos toficção” decorreu de uma fala
momentos de “horrores”, representados por seus da própria autora quando, em
dessabores, frustrações e perdas. Para esse perso- entrevista ao canal do YouTube
nagem, os altos e baixos transcorridos em sua vida da Revista Época, em novembro
são perfeitamente ilustrados pela imagem expressa de 2017, justificava a sua opção
na frase “Fundo de poço tem mola” (p. 189). por um narrador-protagonista
Segundo a escritora, em entrevistas concedidas masculino pelo fato de, em sen-
para diversas canais midiáticos, por ocasião do do uma personagem e narradora
lançamento do livro, esse título é creditado à sua feminina, poder enunciar a sua
mãe Fernanda Montenegro, de quem ouviu duran- própria história de vida, em seu
te a vida a fatídica frase “a glória e seu cortejo de caráter pessoal, já que se trata de
horrores”. Assim como a mãe, Fernanda Torres é uma história ambientada no uni-
atriz e, assim como a mãe, é, também, reconhecida verso da dramaturgia, do teatro,
pelos seus trabalhos em teatro, cinema e televisão, do cinema e da televisão.
e por meio de diversas premiações. Vejamos o referido depoimen-
O fato de ser protagonizado to da escritora: “o negócio do
por um ator que é, ao mesmo narrador masculino é que logo
tempo, narrador da história você se afasta de você, quanto
faz com que esse livro se mais sendo um ator. Se fosse uma
apresente como um aconte- atriz, era muito colado ou em
cimento literário bastante mim ou na minha mãe. Então... é
interessante para quem se horrível quando é confissão”.
interessa por discussões A questão que se levanta, so-
sobre “escrita de si”, sobre bretudo no trecho em que ela
“autoficção”, tão eferves- declara ser “horrível quando é
centes nos debates sobre confissão” é: a que aspectos da
produções literárias con- confissão a escritora-atriz se re-
temporâneas, das últi- fere? O romance pode levar o
mas décadas do século leitor ao entendimento de que
há algum tipo de confissão, sim.
Portanto, Torres não se livra to-
talmente disso que ela qualifica
Capa de ‘A glória
e seu cortejo de
como “horrível” e que, por isso,
horrores’, romance opta por uma voz narrativa mas-
de Fernanda Torres: culina que também faz a vez de
escrita de si e personagem. O que Torres quali-
autoficção
fica como “horrível” poderíamos c
Ilustração: tonio
Girafa
Modelo de inspiração
De que devemos sonhar alto
Mas manter os pés no chão.
Lua cheia
Beleza em forma de esfera
O abajur de Deus
A luminária da Terra.
Chuva
A tinta incolor
Que Deus usa
Para colorir
O meu jardim.
Bolas de gude
Planetas de vidro
Que se colidem
Nas trajetórias criadas
Por seus deuses-meninos.
O poeta
O poeta é um artesão das palavras Jefferson Araújo de
Sílaba a sílaba cria nas mãos Lima é natural da cidade
de Sapé-PB, tem 24 anos,
Um universo de metáforas é poeta em iniciação e em
devir, e é aluno do curso
de Letras/Português da
O poeta tricota com proeza UFPB, Campus I.
Varrendo
no burro. Talvez na próxima
tenhamos novidades.
Às 11h e meia mais um
toque na campanhia: era o
vendedor de vassouras. Um
Alcalá
e Taperoá:
Ariano e O Final Perfeito de
‘Dom Quixote de La Mancha’
Thélio Queiroz Farias
Especial para o Correio das Artes
O
fotos: reprodução
Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de “...o sonho que
La Mancha, cujo primeiro volume foi converte Alonso
publicado em 1605, do escritor espa- Quijano em Dom
nhol Miguel de Cervantes, é um dos Quixote de La
maiores clássicos do planeta, um dos Mancha não consiste
livros mais importantes de toda a em re-atualizar o
passado, mas em
história, traduzido em mais de 70 lín-
algo ainda muito
guas e com mais de três mil edições.
mais ambicioso:
Em 2002, o Instituto Nobel promoveu realizar o mito,
uma eleição, tendo Quixote vencido o transformar a ficção
título de “maior obra da literatura de em história viva”
todos os tempos”, com mais de 50% (Mário Vargar Llosa,
dos votos. Cervantes, nascido na ci- escritor peruano,
dade de Alcalá de Henares, é consi- premio Nobel de
derado o pai do romance moderno e Literatura/20101).
a obra continua a ser publicada, lida,
debatida e elogiada, mesmo após
mais de 400 anos de sua publicação.
O filósofo Miguel de Unamuno consi- “Dom Quixote é uma obra tão original que
dera Quixote como a “Bíblia espanho- quase quatro séculos depois continua a ser a
la” e que “nosso senhor Dom Quixote obra de ficção em prosa mais avançada que exis-
é um autêntico Cristo”. O crítico lite- te. E mesmo assim é subestimada: é ao mesmo
rário Harold Bloom escreveu sobre o tempo o romance mais legível e, definitivamen-
livro, asseverando: te, o mais difícil.”2 c
1
Citado no texto de Vargas Llosa, publicado como apresentação da Edição do IV Centenário,
intitulado “Uma Novela para el Siglo XXI” (Don Quijote de La Mancha, edición del IV centenário,
ed. Alfaguara, Madri, 2005).
2
In O Cânone Ocidental, Ed. Objetiva, Rio de Janeiro, 2010.
“
so Fiódor Dostoiévski: de El ingenioso Hidalgo don Quijo- A escritora catalã Ana Ma-
te de La Mancha. ria Matute (1925-2014), tercei-
ra mulher a receber o Prêmio
Essa decepção com o final do Cervantes e considerada como
Cavaleiro da Triste Figura é com- uma das maiores romancistas
partilhada por grandes escrito- do pós-guerra, confessor que “o
Não existe nada mais pro- res, como o peruano Mario Var- Quixote foi o primeiro livro com
fundo e poderoso do que este li- gas Llosa, agraciado com o Nobel que chorei, com a morte de Dom
vro. Representa até hoje a mais de Literatura em 2010, como bem Quixote, por tudo o que signifi-
grandiosa e acabada expressão da analisa Eduardo César Maia Fer- ca: deixar a loucura desaparecer.
mente humana. Se o mundo aca- reira Filho: Isso é terrível. O triunfo da sen-
basse e no Além nos perguntas- satez”6 em detrimento da utopia
“
sem: ‘Então, o que você aprendeu de todo o restante do livro.
da vida?’, poderíamos simples- Eu sempre sonhei com o Qui-
mente mostrar o D. Quixote e xote com um final épico, gran-
dizer: ‹Esta é a minha conclu- dioso. Encerrar a leitura do livro
são sobre a vida. E você? O Dom Quixote, mantendo acesa a
que me diz?”3 chama da esperança no sonho e
“A ilusão de Dom Quixote, na utopia. Agora, ao ler Romance
(...) – sua fome de irrealidade – é de Dom Pantero no Palco dos Peca-
Machado de Assis, numa crô- contagiosa e propagou ao seu re- dores7, tal qual a obra de Cervan-
nica de 1876, publicada em His- dor o apetite de ficção” (VARGAS tes, dividida em dois livros: O
tória de Quinze Dias4, escreveu LLOSA, Quixote; XVIII). Não Jumento Sedutor e O Palhaço Tetra-
“
sobre o personagem principal de obstante, o fim dessa ‘loucura’, ou fônico, deparei-me com o escritor
Cervantes: seja, passar a ver a realidade tal paraibano Ariano Vilar Suassuna
qual ela se apresenta para o senso (1927-2014) discordando do final
comum, significou, para o pro- do livro imortal e idealizando
tagonista, a morte. Vargas Llosa um novo deslinde para a história
chega a sugerir que há algo de do Cavaleiro da Triste Figura.
inverossímil no final do livro, no Ariano Suassuna ficou co-
...amos ri de ti, outra vez, ge-
momento em que Alonso Quijano nhecido como o “Dom Quixote
neroso cavalheiro; vamos ri de tua
abandona a fantasia quixotesca, arcaico”, e tinha muito orgulho
sublime dedicação, Tu tens o pior
renunciando à loucura e voltan- de assim ser chamado. Admi-
que pode ter um homem em todos,
do à realidade “quando esta, ao rava profundamente Miguel
sobretudo nesse século – tu és qui-
seu redor, já está mudada, em de Cervantes e considerava as
mérico, tu não vives da nossa vida,
boa parte, em ficção” (VARGAS histórias do fidalgo da Mancha
não és metódico, regular, pacato,
LLOSA, Quixote: XVI).”5 o maior livro de todos os tem-
previdente; tu és Quixote. “
pos, o romance dos romances. c
5
3 No ensaio “Mario Vargas llosa lê Dom
Citado na edição de Dom Quixote da editora 34 (bilíngue), com tradução de Sérgio Molina e Quixote”, publicado em “Perspectivas y
apresentação de Marua Augusto da Costa Vieira (São Paulo, 2016). Análisis sobre Cervantes y el Quijote,
4
Em julho de 1876, Machado iniciava uma série de crônicas quinzenais na Revista Illustração organização de José Alberto Miranda Poza,
Brasileira, para qual deu o título de “História de Quinze Dias”. Escreveu ininterruptamente até ed. Coleção & Letras, edição eletrônica do
abril de 1878, quando mudou de nome para “História de Trinta Dias”. A edição que tive acesso Programa de Pós-Graduação em Letras,
foi publicada pela Editora da UNICAMP, tendo como organizador Leonardo Affonso de Miranda Universidade Federal de Pernambuco,
Pereira (Campinas-SP, 2009). Recife, 2010.
Mulher no
acostamento
S
ão duas da tarde. Uma mulher solitária caminha no acostamento. Carrega
uma mochila esfrangalhada e segue com os pés toscos, numas chinelas em-
poadas. Uma mulher que, olhando para a frente, não vê a montanha que
margeia a estrada. Uma mulher que, vista contra a montanha, é apenas
uma miniatura. Uma rocha de pernas curtas. Pisa brusco nas pedras, edita
poeiras. Tem na cabeça um lenço amarelo - labareda de língua grossa. Tem
uns joelhos de quebrar o sol. O casal que mora no casebre, curioso, a obser-
va. O casal nunca a viu por ali. Ela veio da curva mais distante, onde, à su-
bida, os caminhões fervem fumaça escura. De onde evaporou a mulher que
caminha como quem interroga o fundo da estrada? O casal agora espia os
gravetos do acostamento. Há estalos que faíscam? O casal não sabe, desco-
nhece de que vento a mulher marchou. Mulher que em breve irá sumir na
curva de altas árvores à frente, contornar a sombra da montanha. Mulher
cujo rastro será cama para ínfimos insetos. A mulher irá sumir – e as rochas
desse fim de mundo continuarão rochas, respirando para melhor endure-
cer. E a luz de sangue do casebre, único ali ao pé da montanha, continuará
nas madrugadas sendo lambida pelos morcegos.I
Rinaldo de Fernandes
é escritor, crítico de literatura e professor da Universidade
Federal da Paraíba. Mora em João Pessoa (PB).