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Suplemento

literário do
Jornal A União

Setembro - 2020
Ano LXXI - Nº 7
R$ 6,00
Exemplar encartado no jornal A União apenas para assinantes. Nas bancas e representantes, R$ 6,00

Pelas lentes
do cineclube
A história e as lições
deixadas pelos clubes dos
aficionados por cinema na PB
6 editorial

Cineclube, lugar bom de papo


A edição deste mês resgata Para além de está não só em seu aspecto his-
um capítulo importante, mas tórico, mas também no alcance
por vezes pouco lembrado, da assistir a um territorial da reportagem, uma
história do cinema na Paraíba: vez que João Pessoa e Campina
a atuação dos cineclubes na for-
título, conversar Grande estão bem representa-
mação artística e intelectual de sobre ele em das, tanto nos clubes públicos,
muitos paraibanos. Há quase quanto nos privados, alguns
70 anos, essas associações con- um ambiente que ainda resistem, mesmo em
tribuem para o entendimento tempos de pandemia.
do cinema enquanto arte e, por
coletivo, de A tecnologia provocou mu-
consequência, no entendimento múltiplas danças nas conversas em torno
do mundo que nos cerca. de filmes. Hoje, o streaming
Sob o prisma de diretores, cabeças, é um levou o cinema para dentro de
atores e roteiristas, o comporta- casa e, com ele, milhares de ca-
mento humano é descortinado
aprendizado nais que se propõe a fazer o que
através de uma uma linguagem sem par e os cineclubes de antigamente
única, sensível e abrangente. faziam. Talvez sem o mesmo
Mas, para isso, conversar so- deixa marcas charme. Certamente com uma
bre filmes e decifrar ideias e visão mais mercadológica e me-
propostas são necessários, e os
importantes nos romantizada do passado,
cineclubes sempre tiveram um dirão alguns.
papel fundamental nisso. Mas, efetivamente, a internet
Para além de assistir a um tí- em Campina Grande. É o que ampliou o círculo de debates.
tulo, conversar sobre ele em um fica claro através de uma dúzia Se para o bem, ou para o mal,
ambiente coletivo, de múltiplas de depoimentos que estão gra- espero que o leitor consiga ava-
cabeças, é um aprendizado sem vados nas próximas 12 páginas, liar a partir do nosso pequeno
par e deixa marcas importantes em uma reportagem de fôlego “guia” para entender o cineclu-
na formação de quem um dia já feita com a atenção e o cuidado be. Boa leitura!
integrou um clube seleto, como que são inerentes ao talento do
foram o Charles Chaplin, em repórter Alexandre Nunes. O editor
João Pessoa, e o Glauber Rocha, A abrangência do material editor.correiodasartes@gmail.com

6 índice

, 21 @ 26 2 28 D 32
romance Campinoigandres ensaio livro
Livro do italiano O jornalista e escritor A escritora Elizabeth Na coluna 'Festas
Domenico Starone, Walter Galvão saúda os 70 Marinheiro leva o leitor Semióticas', Amador
'Laços' ganha análise anos do autor, tradutor e a um passeio lúdico pela Ribeiro Neto disseca
apaixonada - e compositor Braulio Tavares poesia sem fronteiras 'Amoras', estreia na
apaixonante - da escritora com um "exercício de do gaúcho Mário literatura infanto-juvenil do
Ana Adelaide Peixoto. admiração". Quintana. rapper Emicida.

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6 capa

Cineclube:
conversando O Cine Municipal, no Centro
de João Pessoa, foi palco
do Cinema de Arte, sessão

sobre cinema promovida pela Associação


dos Críticos Cinematográficos
da Paraíba

A história dos clubes que reuniam cinéfilos,


na Paraíba, que não se contentavam apenas em
assistir a filmes, mas a dissecá-los e venerá-los

Alexandre Nunes
Especial para o Correio das Artes

O
primeiro cineclube de João Pessoa foi criado em 1953, da Sociedade de Medicina e Ci-
como resultado de um projeto desenvolvido pela Ar- rurgia da Paraíba, na Rua das
quidiocese da Paraíba. O Cineclube João Pessoa tinha Trincheiras, e em seguida, no
como objetivo moralizar o acesso dos fiéis ao cinema. ano de 1955, foi para Rua Du-
Conforme informa o crítico de cinema João Batista de que de Caxias, na então sede da
Brito, o Cineclube João Pessoa foi criado pelo profes- União Nacional dos Estudantes.
sor José Rafael de Menezes. “O primeiro cineclube da A primeira revista sobre cinema
Capital tinha a participação de muitos padres e José publicada na Paraíba, intitulada
Rafael de Menezes, como era muito católico, estava no “Filmagem”, foi de iniciativa des-
meio desses padres”, comenta. se cineclube. Municípios como
O cineclube era de orientação católica e tinha a par- Areia, Campina Grande, Sousa e
ticipação de um grupo de jovens interessados em cine- Cajazeiras também tiveram seus
ma. Havia uma influência da bula papal de 1936 que cineclubes já no início da década
direcionava para a exibição e discussão de filmes hu- de 1960, a partir da influência
manistas. “O primeiro cineclube funcionou na antiga disseminada pelo Cineclube João
sede da Rádio Tabajara, na Rua Rodrigues de Aquino, Pessoa.
e dele participaram Vladimir Carvalho, Wills Leal, Em 1955, uma dissidência de
Linduarte Noronha, Geraldo Carvalho, Wilton Veloso alguns membros do Cineclube
e João Ramiro Melo, entre outros”, exemplifica. João Pessoa resultou na funda- c
Depois, em 1954, as reuniões aconteciam na sede ção da Associação dos Críticos

4 | João Pessoa, setembro de 2020 Correio das Artes – A UNIÃO


foto: Arquivo jornal a união

foto: Divulgação

c Cinematográficos da Paraíba ‘As Diabólicas’ acabou


(ACCP). De acordo com infor-
sendo o primeiro filme
mação repassada pelo jornalista do Chaplin, uma vez
Carlos Aranha, o segundo cine- que a cópia de ‘Rififi’
clube fundado em João Pessoa não chegou a tempo
foi o “Linduate Noronha”. Entre- para a inauguração
tanto, há registros de outros ci-
neclubes importantes na Capital,
a exemplo do “Aruanda”, “Frede-
rico Fellini”, “Vigilante Cura” e
“Charles Chaplin”.
João Batista de Brito ressalta
que os cineclubes foram mui-
to importantes para formar um
público mais sofisticado e com
interesse mais artístico no cine-
ma. “Além dessa contribuição
dos cineclubes, tem a atuação
importantíssima da Associação
dos Críticos Cinematográficos da
Paraíba, responsável pela criação
do famoso Cinema de Arte, uma Charles Chaplin: pagar mensalidades para cobrir
as despesas do clube.
sessão que acontecia toda quin-
pioneirismo em JP A iniciativa de criação do Ci-
ta-feira no Cine Municipal, em
João Pessoa”, relata. O Cineclube Charles Chaplin, neclube Charles Chaplin con-
Ele lembra que participou de fundado no início do segundo tou com a participação e apoio
cineclubes como um mero ex- semestre de 1962, por alunos do do maestro Pedro Santos (1919-
pectador, nunca foi da comissão Liceu Paraibano, em João Pes- 1993), que naquela época era pro-
organizadora de nenhum deles. soa, é considerado como um dos fessor de Educação Artística do
“Um dos cineclubes que eu fre- mais atuantes e representativos Liceu Paraibano. Com o objetivo
quentei mais foi o da Associação do movimento cineclubista de de criar condições para despertar
Paraibana de Imprensa (API), João Pessoa. Ele teve como seu nos estudantes o interesse pelo
por volta da segunda metade dos primeiro presidente, Paulo Melo, fenômeno fílmico, o cineclube
anos 1960. O pessoal conseguia então aluno do 2º ano Clássico, priorizou a exibição e debate de
filmes raros, agora como eu não no turno da noite, hoje jornalista filmes clássicos fora do circuito
participava da organização e só e crítico de cinema radicado em comercial e, pouco a pouco, trans-
ia assistir, eu não sei dizer como Brasília (DF). formou-se em um importante
eles faziam. Os filmes eram exi- O nome do cineclube parai- instrumento aglutinador de todo
bidos na própria API”, conta. bano foi inspirado no “Chaplin um ambiente cultural em ebulição.
Club”, um dos primeiros cine-
foto: Arquivo a união foto: Arquivo pessoal
clubes do país, criado no Rio de
Janeiro por Paulo Sussekind, em
1928. De acordo com relato de
Paulo Melo, o cineclube parai-
bano teve uma grande aceitação
por parte dos estudantes, o que
resultou em mais de 500 filiações
de associados, que passaram a

Paulo Melo, o primeiro


presidente do Cineclube
Charles Chaplin, um
dos mais atuantes e
representativos do
movimento cineclubista de
João Pessoa

João Batista de Brito,


sobre o primeiro
cineclube de João Pessoa:
“Foi criado pelo professor
José Rafael de Menezes
e tinha a participação de
muitos padres”

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, setembro de 2020 | 5


“O cineclube foi inaugura-

foto: roberto guedes/a união


do com a exibição do filme As
Diabólicas (Les Diaboliques, 1955),
de Henri-Georges Clouzot, que
substituiu Rififi - exibido poste-
riormente -, de Jules Dassin, cuja
cópia não chegara em tempo. O
debate que se seguiu à exibição
inaugural foi moderado pelo crí-
tico e historiador Wills Leal”, re-
corda Paulo Melo.
O lançamento do cineclube foi
saudado na época pelo crítico de
cinema e cineasta Vladimir Car-
valho que escreveu, em sua colu-
na no Correio da Paraíba, que os
estudantes de curso médio que
acabavam de criar seu próprio
cineclube, recinto recreativo,
alegrado pelos arroubos juvenis,
iriam certamente cuidar do cine-
ma como coisa séria, como uma
expressão de cultura.
Paulo Melo ressalta que as
atividades do Cineclube Char-
les Chaplin não se limitavam à
exibição de filmes, tinha outras
tarefas, a exemplo da promoção
de um curso intensivo, em 14
aulas, de iniciação ao cinema,
ministrado por Wills Leal, de
agosto a setembro de 1963, na
Escola de Formação de Profes-
sores, com o apoio da União Pa-
raibana dos Estudantes Secun-
dários (UPES).
“No jornal mural do Diretório
Estudantil do Liceu, semanal-
mente, era publicada uma coluna
Wills Leal, um cineclubista
editada pelo ‘Charles Chaplin’, de primeira hora, ministrava
com matérias escritas pelos re- aulas sobre cinema
datores do Borrão de Cinema. No
segundo semestre de 1963, o ci- Importância
neclube produziu um programa do cineclubismo
diário de cinema na Rádio Ara- Na opinião de Paulo Melo,
puan, intitulado “Encontro com mais do que qualquer forma de
o cinema”, que, de janeiro a abril expressão, o cinema requer uma
de 1964, ficou sob a minha res- vivência com conhecimentos, téc- ser um privilegiado laboratório
ponsabilidade pessoal”, relata nicas e linguagens que não são de formação, se não intelectual,
Paulo Melo. tão necessários para nenhuma pelo menos cultural. É pouco
Ele acrescenta que o “Char- outra, tanto para quem faz quan- provável você imaginar um ciné-
les Chaplin” também serviu de to para quem assiste. O cinema filo inculto ou ignorante. O que
estímulo para o surgimento de não só necessita, como desperta não quer dizer que o cinema seja
outros cineclubes em educandá- o interesse pela literatura, teatro, imprescindível para você ser cul-
rios de João Pessoa, como o Cine- música, história e política, e agu- to e sábio, para não falar que ain-
clube Humberto Mauro, criado ça a sensibilidade pela plastici- da há quem permaneça em dúvi-
e dirigido pelo jornalista Anco dade das coisas, pelos meandros da se ele é verdadeiramente uma
Márcio, na antiga Academia de da narrativa dramática ou épica arte, mesmo que muitos o consi-
Comércio, futura Faculdade de e pelos labirintos da imaginação. derem como a sétima”, comenta.
Economia da UFPB, em junho de “Pensando dessa maneira, o Sobre o que motivou o inte-
1963. “Na inauguração daquele cineclube, ao promover a exibi- resse por cinema nos jovens de
cineclube, eu proferi uma pales- ção e a discussão de filmes que sua geração, Paulo Melo deixa
tra sobre a “Importância do Ci- pretensamente iam além do en- claro que além do entendimento
neclubismo””, complementa. tretenimento, não deixava de acima manifesto, vários outros

6 | João Pessoa, setembro de 2020 Correio das Artes – A UNIÃO


foto: ortilo antônio/a união


“Pensando dessa
maneira, o cineclube,
ao promover
a exibição e a
discussão de filmes
que pretensamente
iam além do
entretenimento,
não deixava de ser
um privilegiado
laboratório de
formação, se não
intelectual, pelo
menos cultural. É
pouco provável você
imaginar um cinéfilo
inculto ou ignorante.

que fizeram o fim da década


de 1950 e o começo da seguinte
como únicos no século 20”.
No entender de Paulo Melo,
um novo mundo brotava como
resultado e efeito da Segunda
Foi do Liceu Paraibano Grande Guerra. E, na época, o
onde saiu um dos mais
atuantes cineclubes da cinema, no universo artístico,
capital paraibana parecia ser o grande catalisador
fatores podem ter influenciado dessas convergências. “João Pes-
o particular interesse de jovens soa, em particular o Liceu, a sua
da época pelo cinema. Primeiro, vizinha Faculdade de Filosofia,
é que ele já havia se consolidado bem como a imprensa, por meio
como um espetáculo de massas. da atuação efetiva e dinâmica da
“Até por falta de opções, como as associa tudo isso a um floresci- Associação dos Críticos Cinema-
que se tem hoje, todo o mundo ia mento cultural e a uma agitação tográficos da Paraíba (ACCP),
ver filmes, incluindo a matinê de política porque passava o Brasil procurava, de uma forma ou de
sábado do Cine Plaza e a matinal (e também o mundo) da época, outra, se envolver nesse clima de
do domingo do Rex (ou o con- talvez encontre um caminho inquietação e de descobertas. E,
trário, já nem me lembro). Tinha para entender o interesse ao qual como principal referência de toda
uma parte que ia mais para tro- você se refere. O surgimento da essa efervescência, o sucesso do
car gibi, paquerar as mocinhas, bossa nova, do teatro de Arena, filme paraibano Aruanda (1960),
se divertir e encontrar amigos. do Cinema Novo, de universida- o clássico documentário de Lin-
Outra parte, porém, mais sensí- des pelo país inteiro, do governo duarte Noronha. Com esse qua-
vel e mais cuidadosa, em meio JK, da criação de Brasília, bem dro, era difícil não procurar sa-
a essa sociabilidade, buscava como da nouvelle vague, do free ber se existia alguma coisa além
também aprender alguma coisa, cinema, da revolução cubana, do do star system hollywoodiano,
se bem que não eram muitos os curto reinado Camelot dos Ken- mesmo que se reconhecesse nele
filmes que davam margem a essa nedys e da construção do Muro um indissociável estimulante. E
possibilidade”, observa. de Berlim, propiciaram um amál- o cineclube ajudou a satisfazer
E continua: “Agora, se você gama de situações e fenômenos essa curiosidade”, finaliza.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, setembro de 2020 | 7


“O cineclube um trabalho para criação de ci-
neclubes em diversas cidades do

foto: roberto guedes/a união


é uma escola viva” interior da Paraíba.
O cineclube é uma escola viva. Aliás, o projeto estava em seus
A afirmação é da atriz Zezita preparativos iniciais de implan-
Matos, presidente da Academia tação, quando foi adiado por
Paraibana de Cinema. Ela viven- causa da pandemia. “Tenho cer-
ciou a efervescência cultural que teza que o cineclube nas cidades
predominava no Liceu Paraiba- interioranas será uma fonte de
no, entre o final da década de conhecimento que servirá para
1950 e início da década de 1960, resgatar o gosto pelo cinema. E o
tanto em relação ao teatro quan- interessante é que a Paraíba é um
to ao cinema. “A minha expe- dos estados que têm os maiores
riência realmente com cineclube encontros de cinema”, ressalta.
começou no ‘Charles Chaplin’”, Zezita considera como interes-
afirma. “Como eu gostava muito santes as novas e rápidas formas


de cinema, e lia sempre a revis- de acesso a filmes na internet,
ta Cinelândia, quando descobri o
cineclube no Liceu, pronto, fui
correndo participar”.
Zezita Matos reconhece que a
importância do cineclube é exa-
tamente criar um público mais “Tenho certeza que Zezita Matos: cineclube
crítico e que saiba apreciar as cria um público mais
obras cinematográficas, ou seja, o cineclube nas crítico
um público que não engole, de cidades interioranas
goela abaixo, os enlatados. “Eu
acho que a fundamentação do ci- será uma fonte de
neclube, com o debate e os filmes conhecimento que
de boa qualidade, estrangeiro ou
servirá para resgatar por meio dos streamings, com
nacional, é exatamente estimular
várias formas de alugar, baixar
o olhar dos jovens a uma posição o gosto pelo cinema. e até assistir gratuitamente. Ela
crítica com relação ao que o filme
E o interessante é que também acredita que o futuro do
se propõe”, comenta.
cineclubismo está chegando e de
A atriz de teatro, televisão e a Paraíba é um dos forma virtual, com as videocon-
cinema é taxativa ao afirmar que,
estados que têm os ferências e lives reunindo pes-
desde cedo, se identificou com o
soas online, em diversos lugares
trabalho desenvolvido nos cine- maiores encontros de e ao mesmo tempo, para debater
clubes e que, agora, como presi-
cinema” cinema. “Recentemente, fizemos
dente da Academia Paraibana de
uma live na Funesc com diversas
Cinema, pretende desenvolver
academias de cinema”, ilustra.

foto: divulgação

Relação
com a sétima arte nos
dias de streaming
Escritor, compositor, tradutor
e cinéfilo, Braulio Tavares, que
participou ativamente do movi-
mento cineclubista de Campina
Grande, acha normal o fato da
garotada de hoje falar sobre ci-
nema através do YouTube, por-
que considera que esse é o meio
mais ao alcance desses jovens,
e é o que ele e seus companhei-
ros de cineclube teriam feito se
houvesse algo parecido em seu

Pipocando: com mais de 4 milhões


de inscritos, canal no Youtube é novo
formato para falar sobre cinema

8 | João Pessoa, setembro de 2020 Correio das Artes – A UNIÃO


tempo. Braulio afirma que a ex- “Cinema

foto: Evandro pereira/a união


periência de sua geração foi mais
rica no sentido de que tudo que é é uma espécie de igreja”
construído com as próprias mãos Com novas formas de se reunir
proporciona uma experiência para assistir e debater cinema, o
mais rica do que o que é “com- movimento cineclubista vai se re-
prado feito”. inventando. Para o comentarista
“Às vezes, um de nós pegava de cinema Andrés Von Dessauer,
o ônibus pela manhã, em Cam- o cinema é hoje, e foi durante mui-
pina, ia para o Recife, alugava tos anos, o maior transportador
um filme nas distribuidoras de de ideias, de cultura e de costu-
lá, voltava com o filme no fim mes para dentro da educação do
da tarde. Nós exibíamos o filme ser humano. Ele assegura que
à noite, e na manhã seguinte al- não existe outro veículo igual ao
guém pegava o ônibus e ia ao cinema que tenha essa função de
Recife devolver o filme. O inves- transportar cultura e ideias para
timento físico e emocional era dentro do próprio cinema.
maior, e isso nos obrigava a ex- “Cinema é uma espécie de igre-
trair daquele esforço o máximo ja, é um culto. Você se prepara
de resultado possível”, observa. para ir, você bota sua mente para
O escritor também vê com funcionar, ou vai sem mente ne-
Andrés Von Dessauer: cinema
normalidade a febre do “cinema nhuma para o cinema e deixa as é o maior transportador
em casa” a partir dos serviços de imagens influenciarem sua alma de ideias, de cultura e de
streaming. “Acho positivo, por- e seu coração. Além disso, você costumes para dentro da
conversa com pessoas. O cinema educação do ser humano
que hoje, com 70 anos, vou muito
pouco às salas de cinema. Tenho foi feito para as pessoas conver-
dades brasileiras - São Paulo, Rio
em casa uma videoteca com al- sarem. Cinema é uma forma de
de Janeiro e João Pessoa - passa 10
gumas centenas de títulos, e sou socialização que une as classes
dias do mês em cada uma dessas
um espectador habitual de fil- sociais, porque os sentimentos
cidades, onde atua como comen-
mes no YouTube, Vimeo, Netflix, de ódio ou de amor do pobre são
tarista de cinema. Em João Pessoa,
DarkFlix, Belas Artes à La Carte muito parecidos com os do rico. O
ele iniciou suas atividades no Za-
e outros serviços de streaming. cinema une classe, faz as pessoas
rinha Centro de Cultura, que tem
O modo de acesso mudou. Fico conversarem. Entretanto, hoje em
uma pequena sala de 12 lugares.
feliz por ter essa opção de ver os dia, o maior inimigo são as redes
Em seguida, com o séquito que o
filmes em casa, com minha rou- sociais, porque cada um está com
acompanha, foi para o Espaço Cul-
pa caseira, parando na hora que seu celular, e fica lá ouvindo coi-
tural, onde fez umas 10 apresenta-
quero, retomando a sessão no dia sas no aparelho, mas não conversa
ções de filmes, e depois foi para a
e na hora que me convém, e pa- pessoalmente com ninguém. Já o
Estação Ciência, onde existe um
gando muito pouco. A História cinema, não”, esclarece.
cinema. “Só falo de filmes de alta
não se repete. É preciso sempre Andrés, que reside em três ci-
qualidade, por isso sempre dá pú-


aproveitar o lado positivo que blico em meus projetos”, ressalta.
cada mudança que o mercado Atualmente, o comentarista de
nos oferece”, analisa. cinema participa do conselho do
Braulio acredita que existe al- Cineclube “O Homem de Areia”,
ternativa para um novo tipo de da Fundação Casa de José Améri-
cineclube a partir das redes so- co, onde também comenta filmes.
ciais, porque elas possibilitam Cinema é uma forma “Toda primeira quarta-feira do
a criação de grupos fechados mês, antes da pandemia, o cine-
de socialização
ou abertos para a discussão de clube exibia um filme escolhido
assuntos específicos. “Não te- que une as classes por mim e os demais conselheiros.
mos mais os debates presenciais Além dessa quarta-feira, eu pedi a
sociais, porque os
como no cineclube (auditório Rejane Ventura a sala do cineclube
cheio, projeção, discussão após sentimentos de mais um dia, para botar um filme
o filme), mas é o que digo: preci- da minha própria escolha. E co-
ódio ou de amor do
samos aproveitar os aspectos po- meçou a pipocar gente. No míni-
sitivos dos instrumentos atuais. pobre são muito mo tinha 40 pessoas, mas a média
Hoje podemos formar um grupo era de 50 a 60 pessoas. Foi quando
parecidos com os do
de cinéfilos para discutir a sério a OAB resolveu ocupar mais um
filmes do interesse de todos, e os rico. O cinema une dia, também no cineclube da Fun-
participantes podem morar em dação Casa de José Américo, para
classe, faz as pessoas
20 cidades diferentes. Há uma a exibição de filmes sobre questões
perda por um lado, mas temos conversarem. jurídicas, sempre nas primeiras
que aproveitar os ganhos”, com- segundas-feiras dos meses pares”,
plementa. explana.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, setembro de 2020 | 9


Cinema ximo, 16 pessoas convidadas.
“Ninguém paga absolutamente
seus idealizadores, o escritor
e crítico de cinema João Batis-
em casa nada, e a gente se deleita todas ta de Brito. Tudo começou em
O crítico de cinema João Ba- as quintas-feiras com os filmes, fevereiro do ano 2000, quando
tista analisa que, atualmente, o geralmente filmes antigos, esco- João Batista lecionava em um
cineclubismo se reveste de no- lhidos para quem entende e gos- mestrado na UFPB. Na oca-
vas formas, mas com o mesmo ta de cinema. Quem sugeriu que sião, ele conversava com uns
sentido de antigamente, que é fosse dado o meu nome ao cine- amigos na “Praça da alegria”
reunir pessoas para ver um fil- clube foi o nosso saudoso amigo, do CCHLA, quando alguém
me e depois debatê-lo. “Eu sou o jornalista, escritor e crítico de sugeriu que durante o Carna-
uma vez ou outra convidado cinema Will Leal”, ressalta. val eles se encontrassem para
para participar de um grupo A única exigência que Mira- ver filmes juntos.
de pessoas que está vendo fil- beau Dias faz aos convidados O jornalista e crítico de cine-
me em casa e me chama para é que prezem pela pontualida- ma Renato Félix lembra que a
participar e debater. Um exem- de, já que, como numa sala de primeira mostra de cinema do
plo disso é o cineclube de Mi- cinema tradicional, a exibição grupo, com três filmes vistos e
rabeau Dias, que funciona sis- do filme começa exatamente discutidos em três dias de Car-
tematicamente nos moldes dos na hora marcada, às 19 horas, naval, teve como sede a casa do
cineclubes antigos, com uma após o toque da campainha. fotógrafo cinematográfico João
sessão e debate, toda quinta- “Ao terminar a sessão, começa Carlos Beltrão, no bairro dos
-feira, num cinema com 40 lu- o debate sobre o filme. É essa Bancários, em João Pessoa. Ver
gares que ele construiu no pré- atividade que alguns amigos filmes juntos e analisá-los tor-
dio onde funciona o escritório nossos que mexem com cinema nou-se algo regular para esse
de sua empresa”, detalha. consideram como sendo cine- grupo, que contava ainda com
O Cineclube Mirabeau fun- clube, mas há uma diferença, a participação do poeta André
ciona numa sala de cinema porque o cineclube sempre se Ricardo Aguiar e do jornalista
climatizada, com tela grande, constituía como uma sociedade Juneldo Moraes, entre outros.
som excelente e com poltronas envolvendo um grupo de pes- “Na época, éramos estudan-
confortáveis, na Rua Fernan- soas. No nosso caso, trata-se de tes universitários apaixonados
do Luiz Henrique, próximo ao uma coisa meio que privada. É por cinema, por isso ficamos
Retão de Manaíra. O seu idea- quase um exercício meio místi- três dias dedicados à primei-
lizador é o professor aposen- co, isso porque também a gente ra mostra cinematográfica do
tado da Universidade Federal não quer pessoas que não apre- grupo - eram três filmes, um
da Paraíba e doutor em física, ciem o cinema”, observa. em cada dia, e depois fomos
Mirabeau Dias. “O cineclube discutir os filmes. A gente fazia
está em atividade há mais de um debate que às vezes dura-
11 anos e já exibiu mais de 500 Na sala va mais que o filme, mas tudo
filmes, só sendo interrompido de casa, com os muito leve, nada professoral. A
com a pandemia, porque a gen- amigos gente apenas se juntava e ficava
te não pode aglomerar. É um Um grupo que ainda conti- conversando. A gente fez isso
cineclube privado, não é aberto nua ativo e se reunindo para no Carnaval, depois veio a Pás-
ao público”, justifica Mirabeau. assistir e debater cinema é o coa, e decidimos fazer de novo
Segundo informa Mirabeau chamado Cineclube Inomina- e passamos a nos encontrar não
Dias, os filmes são escolhidos do, uma espécie de cineclube periodicamente, mas sempre
por ele e por João Batista de Bri- espontâneo, itinerante e ino- que dava, aos domingos, ou fe-
to e são exibidos para, no má- minado, como afirma um de riadão”, recorda Renato Félix.
foto: reprodução

Mauro Luna, João


Batista, Renato Félix,
Sheila Raposo e João
Carlos Beltrão em
reunião do Inominado

10 | João Pessoa, setembro de 2020 Correio das Artes – A UNIÃO


Filme

foto: reprodução
é escolhido por um
conselho
O cineclube proporciona uma
viagem pelo mundo, que encanta
a todos através da arte do cine-
ma. É o que afirma a secretária-
-executiva da Fundação Casa de
José Américo, Rejane Mayer Ven-
tura. Ela se refere ao Cineclube
“O Homem de Areia”, inaugura-
do em 2015 e que é coordenado
por meio de uma gestão compar-
tilhada entre o poder público e
sociedade civil.
“O cineclube funciona em es-
paço próprio para a projeção de
filmes, instalado na Fundação
Casa de José Américo, na praia
do Cabo Branco, em João Pes-


soa, e é um ponto de encontro
e de bate-papo das pessoas, que
Vladimir Carvalho (de bigode)
sempre que saem de lá, vão para filma José Américo para
restaurantes ou lanchonetes, mas ‘O Homem de Areia’: filme
o protagonista da noite, nas con- inspirou o cineclube da FCJA
versas, é o filme e o debate que
girou em torno dele”, comenta. “O Homem de Areia”
O nome do cineclube foi es- ciedade. É o objetivo do cineclube
colhido como uma homenagem os últimos momentos temático “Cine OAB”, um projeto
ao cinema paraibano, ao escri- e as memórias de que teve início no mês de abril de
tor José Américo de Almeida e 2016, e que antes das restrições
ao cineasta paraibano Vladimir José Américo. decorrentes da pandemia, se-
Carvalho, que documentou em guia sendo exibido nas primeiras
“O Homem de Areia” os últimos segundas-feiras dos meses pares,
momentos e as memórias de José sempre com entrada gratuita.
Américo. As exibições aconte- O cine OAB é fruto de uma
cem toda primeira quarta-feira res, Andrés Von Dessauer, Alex parceria da Ordem dos Advo-
do mês, às 19h30. Ao terminar Santos, Damião Ramos Caval- gados do Brasil - Seccional da
a exibição, começa o debate com canti, Elizabeth Maia, Fernando Paraíba, através da Comissão de
a apresentação de um comenta- Moura, Francisco de Assis Vilar, Direito, Arte e Cultura, com a
rista, seguida de uma rodada de Henry Krutzen, Luíz Andrade, Fundação Casa de José Américo.
perguntas dos presentes. Manoel Jaime Xavier Filho, Mi- O presidente da Comissão de
O público que comparece a rabeau Dias, Moacir Barbosa, Direito, Arte & Cultura da OAB-
cada exibição é de, em média, Rejane Mayer Ventura e Zezita -PB, Joaquim Campos, explica
100 pessoas. “Como o cineclube Matos. que o cineclube é temático e que
é presencial, fizemos a última “Os filmes selecionados e exi- os filmes exibidos tem a ver com
exibição em março deste ano, por bidos são eleitos pelo conselho. assuntos do universo jurídico.
causa da pandemia, e estamos A gente indica e o conselho elege “Os comentários pós-filme são
em stand by esperando, porque os filmes da edição do ano subse- divididos em duas partes: aspec-
a Fundação Casa de José Amé- quente. A reunião sempre ocor- tos técnicos da película e aspec-
rico é um órgão do Governo do re em novembro ou dezembro. tos jurídicos. Os aspectos técni-
Estado e por isso existe todo um Cada conselheiro pode indicar cos, na grande maioria das vezes,
protocolo para a reabertura das uma quantidade de filmes, que são comentados pelo crítico de
atividades”, explica Rejane. será submetida à escolha do co- cinema Andrés Von Dessauer.
Ela acrescenta que a progra- legiado”, detalha. E os jurídicos são sempre por
mação do Cineclube “O Homem membros da comissão, ou por
de Areia” é decidida através de advogados convidados”, detalha.
um conselho diretor, composto Cineclube Joaquim Campos destaca ain-
por pessoas comprometidas com pode ser temático da que o público presente é bem
a cultura e em oferecer filmes Proporcionar entretenimento variado, incluindo não só advo-
de qualidade para a população. e expansão cultural, bem como gados, como também cinéfilos
A formação atual do conselho é provocar reflexões acerca da im- das mais diversas profissões e
a seguinte: Ana Adelaide Tava- portância da advocacia para a so- faixas etárias.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, setembro de 2020 | 11


Em Campina grande,
movimento teve início em plena ditadura fotos: arquivo jornal a união
O movimento cineclubista na
“Rainha da Borborema” teve iní-
cio em 1964, em plena ditadura,
com a criação do Cineclube de
Campina Grande por iniciativa,
entre outros, de Luiz Carlos Vir-
golino e Hamilton Freire. O Cine-
clube de Campina Grande foi o
ponto de partida para a realiza-
ção de sessões de cinema de arte,
em 1966, no Cine Capitólio. Na
época, o cineclube era tido como
uma entidade onde a arte era dis-
cutida pela arte.
Em 1967 aconteceu a criação
do Cineclube Glauber Rocha que,
entre os seus membros contava
com José Nêumanne Pinto, que
depois alcançou renome nacio- Braulio: “Em todo o Nordeste, sempre Nêumanne: Cineclube Glauber Rocha foi
nal como jornalista. O Glauber houve uma ligação histórica entre a igreja responsável pela introdução de discussões


Rocha foi responsável pela intro- católica e o movimento cineclubista” políticas e análises cinematográficas
dução de discussões políticas e
análises cinematográficas.
Braulio Tavares integrava um
grupo de jovens estudantes que
resolveu retomar as atividades
do Cineclube Campina Grande
em 1967, após anos inativo. “Fize-
Exibimos mostras de
mos um curso intensivo de cine- Norman MacLaren,
ma, promovido num colégio, e o
professor Dorivan Marinho, que
com filmes enviados
era um ex-diretor do CCG, re- pela Embaixada do
passou para nós o material (esta-
tutos, documentos, etc.) para que
Canadá, exibimos os
o cineclube voltasse à atividade”, curtas premiados do
relembra.
Após o curso, e com o apoio de
Festival JB-Mesbla,
Dorivan, o cineclube ficou a car- exibimos clássicos
go do grupo de Braulio, que in-
cluía Luís Custódio, José Umbe-
como 'Rocco e Seus
lino Brasil, Jackson Agra, Marcos Irmãos' etc., além Agnaldo Almeida, um dos
Agra, Rômulo Azevedo, Romero
Azevedo, Guilherme Vilar, Pe-
de ciclos do cinema fundadores do Glauber Rocha:
“O cinema tinha bons autores e
dro Quirino, Severino Caluete, paraibano" discutia os temas sociais da época”
Marcos Barbosa, Zélio Furtado,
Antonio Lins e Edmilson Dantas,
entre outros.
Bráulio Tavares explica que
as reuniões eram semanais, aos
domingos de manhã, nas depen- As sessões de filmes, na bitola do Festival JB-Mesbla, exibimos
dências da União dos Moços Ca- de 16 mm, eram custeadas com clássicos como Rocco e Seus Ir-
tólicos, um prédio por trás da Ca- a verba da mensalidade dos só- mãos, de Luchino Visconti, etc.,
tedral de Campina Grande. “Em cios, em parceria com o Cinema além de ciclos do cinema parai-
todo o Nordeste, sempre houve Educativo. Depois, o cineclube bano: Aruanda, Romeiros da Guia,
uma ligação histórica entre a passou a receber filmes cedidos Cajueiro Nordestino, A Cabra na Re-
igreja católica e o movimento gratuitamente por embaixadas. gião Semi Árida etc.”, complemen-
cineclubista, como está registra- “Exibimos mostras de Norman ta Braulio.
do na obra de autores como José MacLaren, com filmes envia- Ele revela que à época foi fir-
Rafael de Menezes (Caminhos do dos pela Embaixada do Canadá, mado convênio com o “Diário da
Cinema, etc.) e outros. exibimos os curtas premiados Borborema” para a publicação

12 | João Pessoa, setembro de 2020 Correio das Artes – A UNIÃO


de críticas dos sócios, e através O jornalista Agnaldo Almeida davam no Colégio Estadual da
de Luís Custódio, o cineclube explica que, como naquela época Prata, onde o Cineclube Glauber
coordenou durante todo o ano não existia internet, o jovem re- Rocha dispunha de uma sali-
de 1968 a programação (sábados corria aos livros e ao cinema para nha para reunião do movimento.
pela manhã) do “Cine Distração”, ter informação cultural. “O cine- “Todos nós éramos estudantes
no Cine Capitólio, com clássicos ma tinha bons autores e discutia secundaristas, gostávamos de ci-
de John Ford, Orson Welles, etc. os temas sociais da época. Então, nema e leitura. Nós tínhamos um
“O Cineclube deixou de fun- foi quando surgiram muitos ci- preparo de leitura bastante azei-
cionar com o AI-5 em dezembro neclubes”, observa. tado, líamos autores brasileiros e
de 1968. Mas a partir de 1971, o Segundo relata Agnaldo, os estrangeiros”.
Museu de Arte da FURNe (atual cineclubes se reuniam em luga- José Nêumanne Pinto lembra
UEPB), dirigido pelo artista plás- res diferentes. No caso específi- que, na época, Luciano Wander-
tico Chico Pereira, iniciou um co do Cineclube Glauber Rocha, ley, que era proprietário dos ci-
trabalho informal com sessões, havia um apreço especial pelo nemas Capitólio e Babilônia, em
debates, cursos de cinema, de Cine Capitólio, localizado na Rua Campina Grande, e Municipal,
que não só eu participei, como Irineu Joffily, no Centro de Cam- em João Pessoa, abriu mão da
vários integrantes do CCG, cita- pina Grande. “Toda quarta-feira, quarta-feira para uma programa-
dos acima”, informa. a gente assistia a uma sessão de ção chamada Cinema de Arte. A
Braulio Tavares revela que a filmes de arte, no Cine Capitó- principal atividade do cineclube
contribuição do cineclube na sua lio, e no domingo pela manhã, a era escolher, entre os filmes dis-
formação intelectual e artística gente se reunia, discutia o filme ponibilizados por Luciano Wan-
foi imensa. “Não discutíamos e fazia uma crítica. Acho que o derley para serem exibidos com
apenas cinema. O Cineclube me Cineclube Campina Grande fazia o carimbo de cinema de arte, o
empurrou para estudar artes o mesmo. Depois da reunião, se que dentre eles merecesse essa
plásticas, teatro, poesia de van- houvesse oportunidade, a gente denominação. “Na minha gestão,
guarda, teoria estética, teoria publicava uma crítica sobre o fil- lembro que selecionamos, por
literária. Foi a primeira grande me em um dos jornais da cidade. exemplo, Deus e o Diabo na Terra
“abertura de janelas intelectuais” (José) Nêumanne mesmo escre- do Sol, de Glauber Rocha, que era
que tive”. veu várias críticas no Diário da o homenageado do nosso cine-
Nos anos de 1969 e 1970, res- Borborema. Também escrevi al- clube”, informa.
pectivamente, os cineclubes gumas”, relembra. O jornalista reconhece que o
Glauber Rocha e Campina Gran- Na época, com 17 anos, Ag- Cineclube Glauber Rocha foi fun-
de encerram suas atividades e naldo e seus companheiros de damental na sua vida. Ele explica
fecham as portas em definitivo. cineclube assistiam e discutiam que a diretoria escolhia os filmes
Porém, o movimento cineclubista os filmes, procuravam conhecer para o Cinema de Arte e o pre-
de Campina Grande se mantém e preencher fichas de anotações sidente da entidade escrevia uma
ativo nos anos seguintes, a partir com o nome dos atores e direto- crítica que justificasse a escolha
de escolas e cursos universitários. res de cinema. “A vida era fazer e que era publicada no diário da
É daí que surgem o Cineclube isso, estudar e jogar bola”, resu- Borborema. “Com 15 anos fui
Humberto Mauro (1974), na esco- me o jornalista. Ele acrescenta eleito presidente do cineclube e
la Pio XI, o Paulo Pontes, no curso que a maioria dos praticantes do por conta disso recebi a incum-
de engenharia da UFPB, e o Onze cineclubismo campinense estu- bência de escrever e publicar a
de Agosto, no curso de medicina
da UFPB (1976). A atividade ci-
neclubista de Campina Grande fotos: arquivo pessoal

também fez surgir o Cineclube


Machado Bittencourt, da Univer-
sidade Estadual da Paraíba.

Cineclube
deu origem ao grupo
“Levante”
O Cineclube Glauber Rocha foi
fundado por Cláudio Porto, Ro-
berto França e Agnaldo Almeida,
entre outros. A informação foi
repassada pelo jornalista José
Nêumanne Pinto, que quando
chegou ao cineclube, este já exis-
tia. “O Cineclube Glauber Rocha
aconteceu em um momento mui- Adalberto Ribeiro: “O cinema Cláudio Porto também integrou
to bonito, importante e de muita me ajudou a despertar para a o CEU: “Todo mundo saía com
atividade cultural”, ressalta. vida intelectual”, cara de inteligente”

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, setembro de 2020 | 13


crítica acerca do filme escolhido.
Foi a primeira vez que eu entrei
numa redação de jornal, ou seja,
comecei a escrever no jornal com
15 anos. Então teve essa conexão
do cineclube com a minha vida
profissional”, afirma.
O Cineclube Glauber Rocha ti-
nha uma ligação importante com
o Instituto Nacional do Cinema
Educativo (INCE), com o apoio
do paraibano João Córdula. “Na
ocasião, o grupo conseguiu o cur-
so de cinema do INCE. Na época,
nós tínhamos contato com Carlos
Aranha, com o secretário de re-
dação de A União, Barreto Neto,
e com o jornalista Martinho Mo-
reira Franco. Eles tinham um ci-
neclube em João Pessoa chamado Iremar Maciel de Brito,
José Adalberto Ribeiro
Charles Chaplin”, comenta. mo em João Pessoa e revela que
e José Nêumanne
Segundo revela José Nêuman- tem aparecido alguns cineclubes Pinto, integrantes do
ne Pinto, o Cineclube Glauber ligados a colégios, entidades cul- movimento cineclubista
Rocha depois se transformou turais e universidades. “O cine- de Campina Grande
em um grupo cultural chamado clube é muito importante, porque
“Levante”, que foi fechado na faz você se sentir pertencendo
ditadura militar. “Eu lembro até a um grupo de pessoas que não
hoje, que nos correspondíamos está atrás de dinheiro, mas de foi o seu contato em primeiro
com o mundo inteiro através de enriquecimento cultural. O ci- grau com o mundo das ideias e
uma caixa postal chamada Postal neclube tem esse viés de levar das artes, e o cinema, no caso,
21, do Correio Central de Campi- pessoas que se interessam por como uma extensão da literatura.
na Grande, e que a caixa postal uma cultura mais ampla, em to- “Eu também estudava no Colé-
foi invadida e a correspondência dos os níveis. Quanto mais você gio Estadual da Prata, o grande
violada na época da ditadura. Foi frequentar, mais crescendo você oráculo da nossa vida e que mar-
do grupo ‘Levante’ que saiu um vai. Hoje os garotos estão numa cou época na vida de todos nós.
movimento de vanguarda cha- ligeireza danada, pensando só O cinema, pelo menos no meu
mado ‘Poema/Processo’”, revela. em ganhar dinheiro. Se algo não caso, foi uma fonte de cultura,
José Nêumanne Pinto diz que dá dinheiro, não interessa”, cons- entretenimento, informação, mas
o cinema hoje é outra coisa. É tata. não cheguei a cultivar o cinema
sinal e imagem de computador. mesmo não, porque derivei para
“Os cinemas são restritos aos o campo do jornalismo político e
shoppings centers, e como na
Despertar da crônica política. O cinema foi
pandemia estão todos fechados, para o mundo das uma experiência mais diletante.
o cinema hoje é na TV. Por isso ideias e da cultura Eu gostava do cinema, cultivava
substitui o cinema pelo futebol”, Ele tinha entre 16 e 17 anos, a arte do cinema, o que me aju-
completa. isso em 1969 e 1970, quando co- dou a despertar para a vida inte-
Sobre o cinema, Agnaldo Al- meçou a despertar para a literatu- lectual, mas não optei por militar
meida é da opinião que, desde ra, para as artes e para o mundo diretamente na área de cinema”,
o surgimento do cinematógrafo das ideias. Trata-se do jornalista esclarece.
desenvolvido pelos irmãos Lu- paraibano, hoje radicado em Re- José Adalberto Ribeiro explica
mière, trata-se de uma arte ca- cife, José Adalberto Ribeiro, um que o cineclube não tinha equi-
tivante. “Você entra numa sala dos participantes do movimento pamento, era feito um grêmio
escura, passa uma hora e meia, e cineclubista de Campina Grande literário, onde os participantes
se transporta para outro mundo, e, especificamente do Cineclube se reuniam informalmente para
com aquele tema que está sendo Glauber Rocha. “Na época, o nos- debater o filme que haviam assis-
exibido. Seja na forma de um dra- so mundo era mais a literatura, tido. “Cultivar a arte do cinema
ma, um romance, ou na forma de a poesia, e o cinema fazia parte e assistir os filmes era a nossa
uma questão social, uma guerra, desse nosso mundo e nos chama- agenda cultural. Não havia uma
você passa uma hora e meia e va a atenção, porque tivemos essa tratativa prévia para que todos
quando sai, é conversando, dis- experiência de cultivar a imagem fossem assistir determinado fil-
cutindo sobre o que vivenciou”, de Glauber Rocha, que se torna- me. O que fazia parte da agen-
analisa. ra o grande e criativo cineasta do da cultural da cidade, na nossa
Agnaldo considera que houve Brasil”, ilustra. época, era acompanhado pelos
um renascimento do cineclubis- Ele considera que o cineclube que faziam parte do cineclube.

14 | João Pessoa, setembro de 2020 Correio das Artes – A UNIÃO


fotos: arquivo pessoal de josé nêumanne pinto
tário e a outra era o clube. Paulo
Henrique foi o presidente do CEU
indicado por nós do Diretório de
Economia, um tempo em que o
CEU foi muito dinâmico. Além de
grandes festas, Paulo Henrique
instalou lá um cineclube. Nesse
cineclube havia uma projeção por
semana”, lembra Cláudio Porto.
Ele revela que, na época, os
participantes do Clube do Estu-
dante Universitário gostavam
muito do cinema francês, mas
também de filmes nacionais.
“Sempre existiu uma rotina de
primeiro se exibir o filme e de-
Da esq. para di.r: Nêumanne pois haver um debate. Era um
Pinto, Agnaldo Almeida, debate muito interessante, mas
Regina Coeli e Stênio Gomes, às vezes meio hermético. Às ve-
integrantes do Glauber Rocha zes, a gente assistia o filme e não
entendia nada, mas todo mundo
saía com cara de inteligente. Isso
A gente sabia quais os filmes que lo, na poesia e na literatura, no foi um ponto muito importante
estavam em cartaz na cidade e que havia de vanguarda, de mais para cultivar o gosto pelo cine-
nacionalmente. Tínhamos essa grandioso na literatura e nas ar- ma, não só para mim, mas para
vivência de ler nos jornais e de tes contemporâneas da época. toda a minha geração”, assegura.
comentar entre nós mesmos, mas Isso tudo foi um fenômeno na Cláudio Porto comenta que
não tínhamos uma agenda fixa nossa vida. Falo desse desper- hoje, com uma revolução tecno-
para assistir uma sequência de tar em pessoas de classe média lógica, como as redes sociais, os
filmes. A comunicação entre nós para as ideias em torno do que streamings, YouTube e outros ca-
era muito espontânea. Quando a havia de mais vanguardista no nais, o gosto pelo cinema e pelos
gente se reunia, aquele filme que Brasil e no mundo. Algum pon- filmes um pouco mais reflexivo
estava em evidência na época na- to fora da curva foi o que levou caiu um bocado. No seu caso
turalmente entrava no centro dos jovens de uma cidade do interior particular, esse gosto pelos bons
debates”, explana. da Paraíba a despertar para esse filmes foi algo despertado na
Ele garante que, na época, a mundo das ideias e da cultura, de época de estudante universitário
partir dos clássicos do cinema uma maneira assim arrebatadora e permanece. “Então, foi uma ex-
nacional, a exemplo dos filmes e que marcou a nossa vida para periência muito legal, muito boa,
de Glauber Rocha, e do cinema sempre”, finaliza. e que durou entre 2 e 3 anos. O
internacional, os cineclubistas cineclube foi muito importante
iam tomando conhecimento, ela- para aquela geração universitá-
borando suas ideias, conversando Cineclube ria”, avalia.
e frequentando um local chama- no espaço Ele acrescenta que o grosso do
do Praça do Capitólio, que ficava universitário público que frequentava o cine-
em frente ao Cine Capitólio. “Os campinense clube era formado por universi-
amigos de geração e de colégio se O economista Cláudio Porto, tários, não só por uma questão
reuniam nos bancos da Praça do paraibano de Campina Grande e de faixa etária, mas porque as
Capitólio e conversavam na saída que mora há mais de 30 anos no pessoas já viviam um processo
do cinema, tendo ou não sessão. Rio de Janeiro, lembra ter partici- de amadurecimento, por conta
Conversávamos sobre o nosso pado de um outro cineclube que dos filmes que passavam no ci-
dia a dia, nossas experiências no funcionou no Clube do Estudan- neclube, que não eram quaisquer
colégio, coisas de cinema mesmo, te Universitário (CEU), no tempo filmes. Eram filmes de Truffaut,
agenda de poesias”, complementa. em que era aluno da Faculdade de de Godard, de grandes diretores
Segundo revela José Adalber- Economia, em Campina Grande. e grandes produtores. “Às vezes
to, a efervescência cultural da “Isso já faz mais de 50 anos, também eram exibidos filmes
época estimulou muita gente a mas recordo que havia, às mar- bem antigos. Então é uma lem-
trilhar bons caminhos. “A nossa gens do Açude Velho, duas edi- brança, embora um pouco vaga
geração era inacreditável, por- ficações - talvez ainda tenha hoje hoje em dia, de algo que foi muito
que a gente sendo de uma cida- -, uma era o restaurante universi- precioso”, conclui.
de como Campina Grande estava
sintonizado com as ideias cultu-
rais da vanguarda nacional. Na Alexandre Nunes é jornalista e escreve sobre política, economia,
verdade, estávamos ligados no cultura e religião. É repórter especial do jornal A União. Mora
que acontecia no Rio e São Pau- em Santa Rita (PB).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, setembro de 2020 | 15


6 Cineclube

Os embalos
de sábado
à tarde lfhdl fdlfjd fldj
sd dalkjda ladjf
dalfjsdafsadksda
lsdkj sdlkjsd
flsdj jh jh

Martinho Moreira Franco


Especial para o Correio das Artes

N
unca houve um cineclube
como o Charles Chaplin. Em
João Pessoa, pelo menos,
não. Sei da existência de ou-
tros, anteriores e posteriores,
mas nenhum exerceu papel
e influência tão marcantes
na formação de uma cons-
ciência crítica entre espec-
tadores de cinema da cida-
de. Ser um espectador com
esse tipo de consciência,
aliás, ganhou roupagem de
mantra depois de o cine-
clube do Liceu Paraibano
ensinar que cinema tam-
bém se aprende no colégio.
Foi uma grande lição do
professor Pedro Santos e do
aluno Paulo Melo, fundado-
res e primeiros dirigentes da
entidade. E as tardes de sába-
do no Liceu – quando eram exi-
Foto: arquivo pessoal

bidos os filmes do CCCC - nunca


mais seriam as mesmas.
Devo ressalvar que pertencer ao
cineclube e assistir às suas exibições
semanais não significava que sócios
e frequentadores das sessões fossem
criaturas de outro mundo. Nada dis-
so. Como associado e membro da
diretoria, posso dizer que éramos os
mais comuns dos mortais. Só com
um certo verniz intelectual, que eu
não teria hoje a cara de pau de negar.
Alguns mais, outros menos. Entre os c

16 | João Pessoa, setembro de 2020 Correio das Artes – A UNIÃO


c redatores da publicação Borrão lazer à militância política. A até espaço no meio piso supe-
de Cinema, por exemplo, havia secretaria do CCCC funcionava rior equivalente ao “balcão” dos
quem levasse jeito de filósofo, lá. No amplo salão, havia espaço cinemas convencionais.  Ficava
como o próprio Paulo e Emma- para jogos de tabuleiro e  mesa lotado a cada sessão semanal.
nuel Ponce de Leon, mas tam- de pingue-pongue, sem contar Como o Charles Chaplin não era
bém os de postura totalmente cavaletes e depósito de material um “clube do Bolinha”, contava
informal, muito à vontade e até destinado a confecção de faixas com alunas do colégio em seus
descontraída, como o locutor para passeatas e outras mani- quadros - e elas davam colorido
que vos fala e José Ismael de festações contra o governo, es- especial à plateia. Algumas na-
Oliveira. pecialmente no regime militar. moravam ou paqueravam com
Claro que a condição de ci- Não faltava toca-discos para se colegas e chegavam a compar-
neclubista favorecia prestígio. ouvir bossa-nova e músicas de tilhar, discretamente, clima de
Professores (alguns, associados protesto. Localizado no térreo, “escurinho do cinema”, sob o
à entidade) distinguiam alunos ao final do corredor acessado olhar vigilante de João Córdula,
da categoria com tratamento di- pela rampa que também dava o severo operador do projetor
ferenciado, especialmente os co- passagem para as salas de aula de fitas de 16mm trazido por ele
laboradores do Borrão, por redi- do Clássico, tinha visão pano- do Serviço de Cinema Educati-
girem acima da média. No meu râmica da Avenida Getúlio Var- vo, do qual era diretor. Carrega-
caso, quando já chegara a colu- gas. O limiar era um mirante va o equipamento nos ombros,
nista do jornal Correio da Paraíba, privilegiado. auxiliado pelo filho Clóvis.
fui certa vez instado a dar uma Outro recinto muito aprecia- Como se vê, apesar de serem
aula de introdução ao cinema - do pelos cineclubistas era a Bi- uma espécie de aula ilustrada
sendo desnecessário dizer que blioteca, de diversificado e bem sobre cinema, pois os especta-
queimei o filme do professor, cuidado acervo. Evidente que dores vinham instruídos por
pois, se tapeava incautos com a estante preferida continha informações técnicas e aprecia-
textos razoáveis, minha didá- livros versando sobre temas ções críticas a respeito do filme
tica era abaixo de zero. Tivesse artísticos, notadamente os títu- em cartaz, as sessões do CCCC
sido cobrado bilhete dos alunos, los relacionados à Sétima Arte. conciliavam esse viés didático-
seria obrigatória a devolução. O A História do Cinema Mundial, -pedagógico (havia debates a
cineclubista também desperta- do francês Georges Sadoul, em cada final de exibição) com a at-
va atração entre alunas do Liceu dois volumes, não chegava para mosfera leve e solta das matinês
para as quais jogava charme de quem queria. O livro mais em- corriqueiras em salas do circui-
“entendido” em cultura geral. blemático para os aprendizes, to comercial. Além de profis-
Fazia parte das relações entre todavia, era, sem dúvida, Ca- sionais da crítica especializada,
rapazes e moças do colégio.   minhos do Cinema, do paraiba- surgiu dali um público que ter-
Atuar na diretoria do Charles no José Rafael de Menezes, um minou por fazer de João Pessoa
Chaplin implicava cumprir fun- dos pioneiros do cineclubismo uma cidade de elevado nível de
ções burocráticas, como ajudar no estado. A obra, editada pela consciência cinematográfica.
na confecção e distribuição de Agir, orientou toda uma gera- Criação do Charles Chaplin, o
ingressos e na produção de ma- ção de futuros cinéfilos, desper- Cinema de Arte, mais tarde in-
terial publicitário. Eu adorava tando o interesse de iniciantes corporado pela Associação dos
desenhar letreiros para cartazes e ensinando-os a “ler” um fil- Críticos Cinematográficos da
em cartolina afixados no mural me, tal o caráter educativo do Paraíba (ACCP) e por empre-
do Diretório Estudantil cha- conteúdo. Tamanha era a sua sas exibidoras da capital, foi a
mando para a exibição do filme procura que terminei desistin- manifestação mais expressiva
da semana. Usava lápis hidro- do do empréstimo no colégio dessa notável evolução. E, em
cor marca Pilot, em várias nuan- e me vali da Biblioteca Pública plenos tempos da brilhantina,
ces cromáticas. Causava o maior Governador Pedro Gondim, em o Liceu deixou gravados em
sucesso, até pelos desenhos em Jaguaribe, para conseguir um sua história e na memória dos
arabesco nas extremidades e pe- exemplar. chaplinianos cineclubistas do
los frisos cercando as fotos. Fi- Nada nem nenhum local se colégio os inesquecíveis emba-
cavam chamativos, desculpem comparava, porém, ao auditó- los culturais de sábado à tarde
a imodéstia. rio, a sala de exibições do CCC, nos anos 1960. I
O Diretório Estudantil do Li- também no andar térreo. Am-
ceu era o território livre no qual plo, com pé direito alto, oferecia
as tribos dos cursos Ginasial,
Clássico e Científico montavam
Martinho Moreira Franco, 74, é jornalista. Trabalhou nas redações de todos os
acampamento para as mais va- jornais diários de João Pessoa e foi correspondente da revista Veja e de O Globo.
riadas formas de atividade, do Mora na capital da Paraíba.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, setembro de 2020 | 17


6 análise

A reificação do humano
na contística de

Dalton Trevisan
José Mário da Silva
Especial para o Correio Artes

J
á se disse que a biografia de um escritor tem início no visan é considerado quase una-
exato momento em que ele publica a sua primeira obra. nimemente pela crítica literária
A despeito desse aforismo, apanágio da reação da crítica brasileira como um dos melhores
formalista ao biografismo ingênuo caracterizador dos es- contistas brasileiros da atualida-
tudos literários de parte do século 19, seja-nos permitido de.
fazer uma breve apresentação de Dalton Trevisan, um dos Tradutor de clássicos de Gide,
nomes mais significativos da literatura brasileira da atua- Proust, Kafka, dentre outros ex-
lidade. pressivos nomes da literatura
Nascido em Curitiba no já longínquo ano de 1925, mais universal, o seu aparecimento no
precisamente no dia 14 de junho, advogado, Dalton Tre- mundo das letras nacionais dá-
-se com a edição de uma revista
foto: reprodução
intitulada Joaquim. Novelas Nada
Exemplares, publicado em 1959,
assinala a sua primeira publica-
ção. Avesso a entrevistas e bada-
lações típicas do ser/fazer mais
convencional da vida literária, no
melhor estilo de gauche à Carlos
Drummond de Andrade, defende
o primado da obra sobre o autor.
Das notícias policiais, das fra-
ses feitas que integram o vasto
repertório da cultura e das con-
versações populares, das bulas
de remédio, da confidência dos
amigos, da leitura dos clássicos
e do seu agudo senso de obser-
vação da realidade; de todo esse
universo é que Dalton Trevisan
extrai a matéria viva de que está
fartamente impregnada a sua
singular produção literária.
Desconfiado das teorias que
vinculam o processo da criação
literária ao princípio soberano
A obra de Dalton da inspiração, prefere acreditar,
Trevisan é marcada na esteira das postulações racio-
por um tom inequívoco
de crítica social,
nalistas de Paul Valéry, que de
direcionada contra graça os deuses só nos concedem
as multisseculares o primeiro verso, sendo, depois,
formas de opressão necessária conjugação de três ati-
que protagonizam
as desidealizadas
vidades indispensáveis: trabalho,
interações humanas trabalho e trabalho. Por essa ra- c

18 | João Pessoa, setembro de 2020 Correio das Artes – A UNIÃO


c zão, afirma Dalton Trevisan, que gência, disse, certa feita, que con- da bondade a provocar suspiros
para escrever o menor dos contos to é tudo aquilo que o autor cha- de compaixão no leitor emotivo.
a vida inteira ainda é curta. mar de conto. Mas, entre o ideal e Não. Isso, no limite, equivaleria
Para o teórico da literatura o real impõem-se, às vezes, abis- a estar cheio de boas intenções e,
Tzvetan Todorov, toda leitura li- mos quase intransponíveis, e, em apesar disso, fazer má literatura,
terária deixa de ser imanente a relação à problemática do conto, conforme Gide.
partir do instante em que se tor- a realidade conceitual distancia- Como acentua o crítico literá-
na presente a indispensável figu- -se um pouco do exacerbado lu- rio Modesto Carone, “em Dalton
ra do leitor. Fora dessa triádica e dismo preconizado pelo criador Trevisan é pela via do desumano
indissociavelmente intersubje- de Macunaíma. que se denuncia a desumanida-
tiva relação leitor-texto-autor, o Caracterizado, essencialmen- de, e não através de uma apologia
que há são traços negros desli- te, dentro da Teoria da Literatu- bem intencionada do oprimido,
zando sobre a face branca do pa- ra como uma narrativa marcada como se nele se encontrasse vir-
pel, conforme as ponderações de pela unicelularidade dramática, tudes, e não as marcas violentas
Jean Paul Sartre. tudo, no conto, deve ser sinôni- que o condenam a ser aquilo que
Desse modo, e dentro da acep- mo de concisão e funcionalidade: ele ainda é”. Funcionários públi-
ção semântica mais rigorosa o tempo, o espaço, o dialogismo, cos, prostitutas, bêbados, malan-
imanente à palavra lúdica, nossa o enredo e a dimensão de incur- dros, solteironas, jogadores, mães
sumária abordagem da contística sionamento pela psicologia das de família, eis alguns dos tipos
de Dalton Trevisan, presentifica- personagens, a fim de se rastrear humanos hegemonicamente re-
da no livro Cemitério de Elefantes, a vida íntima de cada uma delas. correntes na contística de Dalton
tem a finalidade precípua de in- É o que detectamos nas 23 nar- Trevisan.
teragir, dialogar, engendrar refle- rativas presentes no livro Cemi- Em “Angústia de um Viúvo”,
xões sobre o texto, objetivando, tério de Elefantes. Examinadas no temos uma verdadeira obra-
panoramicamente, e sem nenhu- conjunto, as 23 peças de que se -prima. Nesse conto, oferece-nos
ma pretensão verticalizadora, compõe o tabuleiro ficcional de Dalton Trevisan uma perfeita
mapear algumas das principais Cemitério de Elefantes apresentam radiografia de uma existência so-
temáticas cultivadas pelo escri- enredos marcados por um mer- terrada debaixo do peso asfixian-
tor como, por exemplo: a reifica- gulho quase obsessivo do autor te de um cotidiano mesquinho.
ção do ser humano, que aparece no universo estilístico e existen- Do protagonista do conto não se
visceralmente mergulhado num cial das reiterações situacionais diz sequer o nome. Tem-se uma
universo impessoal e dessacra- que denunciam a partir da redu- supressão do código onomástico.
lizado, com a violência se au- plicação do mesmo, a realidade Na ausência propositada de uma
toimpondo como o paradigma trágica da condição humana. identificação singularizadora,
comportamental predileto a ima- Joões e Marias, todos anôni- conhecemo-lo pela inserção num
nentizar o universo das desacer- mos e mergulhados na cinzen- universo existencial marcado por
tadas e infelizes relações amoro- tize vulgar do cotidiano, são as um paradigma comportamen-
sas; a incomunicabilidade entre personagens básicas de Dalton tal rotinizado. A prosa é fluente,
os seres; a sexualidade grosseira; Trevisan, anti-heróis por exce- concisa e impregnada por um
a morte, níveis temáticos que ex- lência, movem-se num mundo ritmo frenético, metáfora da au-
põem uma cosmovisão trágica da dessacralizado e feito mais de tomatização dos gestos.
condição humana. misérias que grandezas, median- Em “Duas Rainhas”, o conto
Uma coisa é escrever contos, te o exercício de uma liberdade se marca por um realismo gros-
circunstancial e episodicamente, precariamente exercida. seiro, não raro cruel, fotografia
fruto de achados que não se pe- É por esse prisma, o da desu- impiedosa de tipos humanos so-
renizam porque não se arraigam manidade crescente e irremediá- cialmente discriminados.
no solo concreto da experiência vel, que ressuma da obra de Dal- Em “O Jantar”, a partir dos es-
maturada de vida e de arte da ton Trevisan um tom inequívoco tereótipos da linguagem cliche-
parte de quem os compõe. Ou- de crítica social, direcionada con- rizada, Dalton Trevisan desvela
tra coisa, diametralmente opos- tra as multisseculares formas de o quadro doloroso de um arre-
ta e radicalmente distinta, é ser opressão que protagonizam as medo de família, protagonizado
contista, trazer jungida à pele, desidealizadas interações huma- por um pai e um filho que têm
ao sangue, aos nervos, enfim, a nas. língua, mas não exibem lingua-
toda personalidade, a arte supre- João e Maria são símbolos inar- gem; falam, mas não dialogam;
ma e o domínio perfeito da tarefa redáveis da precária condição hu- convivem, mas não estabelecem
de recriar, esteticamente, o real, mana. Curitiba, tal qual o sertão entre si, nenhum nível de inter-
dentro dos parâmetros inerentes de Guimarães Rosa, é o mundo. subjetividade mais profunda,
à estrutura da narrativa curta, Eis a dimensão mítico-universal dado que mergulhados, ensimes-
centrada, dentre outras possibi- da obra de Dalton Trevisan. Mas madamente, nos abismos de uma
lidades de compreensão, numa não se pense que Dalton Trevisan radical solidão a dois, em cujo
só célula dramática, conforme as cai no vício comum das narrati- estuário antidialético, o homem
teorizações de Massaud Moisés. vas maniqueístas, que veem no não se essencializa enquanto um
Mário de Andrade, num dos opressor a personificação do mal, ser para o outro, corporificando-
arroubos da sua irrequieta inteli- e, no oprimido, a indelével marca -se, desse modo, a assertiva do c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, setembro de 2020 | 19


foto: divulçação
c mestre Eduardo Portella, segun- num mundo que é todo feito con-
do o qual “fora do diálogo o que tra ele. Por fim, um menino negro
existe é o precipício”. e descalço faz pousar ao lado de
Dentro desse mesmo diapasão, Dario uma vela, atitude que bem
percebe-se que no plano das rela- pode semantizar o único gesto
ções afetivas, não há amor; há um humano a perambular pelo uni-
erotismo grosseiro, animalesco, verso de humilhados e ofendidos
não raro elemento indicador da de que se impregna a ficção de
posse e domínio do mais forte so- Dalton Trevisan. A tudo isso se
bre o mais fraco. acrescente a ironia corrosiva do
No conto “O Primo”, Euzébio, narrador, quando nos afirma que
Santina e Bento configuram o Dario foi pisoteado 17 vezes e co-
famoso triângulo amoroso que locado na porta de uma peixaria
tem no crime, motivado por in- para ser pasto das moscas que lhe
curáveis ciúmes, o seu ponto cul- vieram habitar a face.
minante. Tal como nos contos de Interessante observar que o
Rubem Fonseca, embora com as drama vivido por Dario, agudi-
diferenças peculiares existentes zado até a morte, transforma-se
entre os dois projetos ficcionais, em matéria narrável: ora para o
a violência que preside os atos senhor gordo, personagem citado
das personagens não surge do no segundo parágrafo, ora para
exterior, reside no íntimo de cada a velhinha, que gritou que ele
uma delas. Elas são prisioneiras estava morrendo, ora pela boca
de si mesmas, na feliz expressão Para Modesto Carone, em anônima que, excitada, gritou
de Fábio Lucas, ao reportar-se ao Dalton Trevisan é pela “ele morreu, ele morreu!”. A par-
via do desumano que se
contista criador de Feliz Ano Novo. denuncia a desumanidade,
tir daí, a multidão, que gozava as
O jogo aparência vs. essên- e não através de uma delícias da noite, se dispersou,
cia rivaliza no texto a partir das apologia bem intencionada lembrando, intertextualmente, a
oposições temporais. “De gênio do oprimido multidão que, diante do Cristo e
manso (antes), agora violento e do seu calvário, delirantemente
mau. Na rixa de botequim, agre- gritava: morte, morte, morte.
diu o amigo, arrancou nos den- Por fim, uma notação sobre
tes pedaço da orelha. Divertia-se ausência de solidariedade para a linguagem usada por Dalton
matando corvo a tiro. Noite de com o próximo é explicitada, no Trevisan para a criação do seu
chuva foi a potreiro, malhou no texto, de várias formas: ora atra- mundo ficcional. Econômica ao
cavalo até o estropiar”. vés de motorista de táxi que a sal- extremo, a prosa de Dalton Trevi-
“Uma Vela Para Dario”, eis var uma vida prefere assegurar o san por vezes cruza as fronteiras
mais um texto em que a arte de reles lucro de uma corrida a mais, da crônica, sobretudo pela tensão
compor de Dalton Trevisan atin- ora dos curiosos que, acercando- que esse gênero híbrido da litera-
ge as culminâncias da perfeição. -se do moribundo e fingindo-se tura protagoniza entre o imedia-
Se já se afirmou, e com sobrantes preocupados com a sua sorte, o tismo circunstancial e o apelo à
razões, que a existencialidade que fazem mesmo é assaltá-lo, transcendência, conforme pon-
humana oscila entre a sublimi- levando-lhe o sapato, o alfinete tua Eduardo Portella.
dade e a sordidez, no conto em de pérola na gravata, o relógio Relembrando-nos da lição de
apreço não há senão um retrato de pulso, documentos, o guarda- Clarice Lispector, segundo a qual
patético e trágico do momento -chuva e até o cachimbo que ele “a maior dificuldade do ser hu-
culminante na trajetória de uma trazia em sua boca. mano é ser humano”; e fundin-
personagem: a morte. Vê-se nesse jogo enumerativo do, harmoniosamente, análise
Narrado num estilo seco, o meio caotizado, o itinerário que psicológica com denúncia social,
que, uma vez mais, expõe a cos- vai do irônico ao poético, fazen- Dalton Trevisan erigiu pela va-
movisão do autor, até porque do-se expressão linguística do riedade de tipos humanos e pela
mais do que um mero arranjo autor curitibano uma vigorosa força ética que agencia, uma das
de frases e de outros artifícios, o antiepifania dos corrosivos tem- mais sólidas ficções dentre as
estilo, conforme Roland Barthes pos de uma desumana moderni- muitas que integram o quadro da
constitui-se numa espécie de mi- dade. O endereço presente na car- contemporaneidade literária bra-
tologia secreta do autor, que osci- teira de Dario sinaliza para o fato sileira e mundial. I
la entre a língua e a escritura. de que ele era de outra cidade,
“Uma Vela Para Dario” dá-nos metáfora típica do anti-herói mo-
em tom sóbrio e teatralizado o iti- derno que aspira à sobrevivência
nerário de um homem que, cami-
nhando apressado no solo áspero
de uma cidade qualquer, passa
José Mário da Silva é professor da Universidade Federal de Campina Grande
mal, morre e torna-se espetáculo (UFCG) e membro da Academia Paraibana de Letras (APL) e da Academia de
para os que o rodeiam. A brutal Letras de Campina Grande (ALCG). Mora em Campina Grande (PB).

20 | João Pessoa, setembro de 2020 Correio das Artes – A UNIÃO


6 livros

Laços &
Laços (São Paulo: Todavia:
2017), romance do escritor
italiano Domenico Starnone
(Assombrações, Segredos) conta

Separações
a história de um casal e dois
filhos. Na verdade, o conflito
principal se dá entre o casal. O
marido, Aldo, deixa a casa por-
que se apaixona por outra mu-
lher, mais jovem; experiência
essa que faz com que queira
ir embora. Sua mulher, Vanda,
Ana Adelaide
em desespero, luta por uma


Especial para o Correio das Artes
volta, com as armas que lhe
são próprias. Faz chantagem,
escreve cartas (nove), se utiliza
dos filhos pequenos, e mergu-
lha em um ressentimento sem
No mundo civilizado tende-se a pensar que há recursos fim, tornando-se amarga, e
como o psicólogo para arrumar as coisas. O que este livro vingativa.
diz é que nada se arruma. A dor é a dor, e quando não há Esse é a primeira parte do
maneira de contê-la reage-se com raiva.” livro, denominada de “Primei-
(Domenico Starnone) ro Livro”. O ponto de vista de
Vanda; a sua raiva, o seu des-
peito, e todos aqueles senti-
fotos: divulgação
mentos pobres e humanos que
nós mulheres, quase todas, um
dia experimentamos. O aban-
dono. “Sou sua mulher!”, relem-
bra a Aldo, bem como os votos
um dia feitos diante do padre.
“Volte pra casa”, lhe implora!
E o marido, quando convém,
discursa sobre: a família na his-
tória, a família no mundo, sua
origem, e os papéis em que nos
aprisionam ao casar. Engrena-
gens, máquinas desprovidas
de sentidos, repetição. Todo
esse discurso, é muito conve- c

Domenico Starnone e
a capa de ‘Laços’: três
pontos de vista sobre um
mesmo fato, uma crise
conjugal.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, setembro de 2020 | 21


c niente quando Aldo sai de casa,
o que sua mulher resume: “Ao
destruir nossa vida em comum, na
verdade você estava nos liberando,
a mim e às crianças, e que devería-
mos agradecer por essa sua gene-
rosidade”. Os homens sempre
encontram formas “modernas”
para justificarem seus rompan-
tes e quebras de compromissos.
Sua mulher, tem consciência de
que, “absorvida demais pelas tare-
fas domésticas, pela gestão do di-
nheiro, pelas demandas das crian-
ças. Começa a se olhar no espelho
às escondidas e se pergunta: Como
eu era, o que eu era? Fiquei presa
no meio do caminho..”, diz Vanda
à certa altura. E exige de Aldo:
“...é urgente que me diga ponto
por ponto por que me deixou; você
me deve uma explicação”! Como
se a vida se explicasse fácil as-
sim!
O casamento como uma pri-
são para o casal! É assim que o
autor passeia pelo sofrimento Jumpha Lahiri assina a
introdução do livro, que
de ambos. Se Vanda é ressenti- faz uma crítica à nossa
da, Aldo, morre aos poucos pela necessidade de contenção
culpa e uma certa inadequação e libertação, impulsos
contraditórios que vão
em viver livremente ao lado de interagir em ‘Laços’
Lidia, sua nova paixão; mulher
jovem, bem resolvida, com vida
própria. Sob o ponto de vista
da esposa, entramos em conta- pa, pela sua incapacidade de Se Vanda é
to com todos esses sentimentos lidar com sua ex mulher e com
mesquinhos, vividos por quem os filhos e com a responsabili- ressentida, Aldo,
é abandonada. A raiva, o ran- dade de pai. Normalmente os
cor, a inveja, levando por vezes homens tem essa dificuldade. morre aos poucos
a desejos de destruição , até E para escaparem das artima-
mesmo de suicídio. nhas dessa vida anterior, fogem pela culpa e uma
“O Segundo Livro”, temos o de vez. O que tão pouco resol-
ponto de vista do marido, Aldo. ve. certa inadequação
A sua vida em zona de conforto Pouco a pouco, Aldo vai su-
com a mulher e filhos; a estag- cumbindo à visita arrastada em viver livremente
nação no trabalho; a acomoda- dos filhos, a distância desses fi-
ção de um casamento morno; lhos, e a distância de Lidia que ao lado de Lidia, sua
a relação fria com os filhos e a também vai ficando intranspo-
paixão arrebatadora por Lida; o nível, justamente pela sua ina-
nova paixão; mulher
sair de casa; o deslumbramento bilidade de incorporar os filhos
de viver uma paixão; a alegria jovem, bem resolvida,
à nova vida. Os fantasmas, os
do novo, do rejuvenescimento; ressentimentos, e principal-
as novas descobertas; nada de
com vida própria.
mente a culpa, vão minando
discussões sobre filhos; o do- esse frescor, que ele queria ter
méstico; a família, coisas das com Lida, mas que seus fantas-
prisões subjetivas. Mas, essa mas são mais aprisionadores
nova vida de Aldo não lhe trás do que imagina. E de forma
a felicidade merecida. Ele está quase imperceptível, quando
preso à culpa. Parte dessa cul- dá por si, já voltou a ocupar a c

22 | João Pessoa, setembro de 2020 Correio das Artes – A UNIÃO


c sua casa anterior, e já programa pelos caminhos vida afora. Os per o laço entre marido e mulher.
férias com Vanda. Tudo morno objetos de Laços são: as cartas, Mesmo que romper esse laço talvez
e irreversível, como se uma se- um cubo oco, fotografias, um não signifique muito mais do que
gunda chance não mais existis- dicionário, cadarços, um lar. se mover de um confinamento para
se, nem o fizesse por merecer. Cada objeto aberto, uma caixa outro...a vida é aquilo que trai o
Para o leitor, a tristeza se ins- de pandora se instala e senti- recipiente, aquilo que se derrama”.
tala. Seremos expectadores da mentos dos mais diversos são E conclui: “ Laços é menos sobre
paralisação que por vezes so- instaurados: raiva, ciúme, frus- traição, do que sobre a dor que
mos ludibriados. tração, inveja , lista Lahiri. E ela volta à tona: apesar dos esforços
“O Terceiro Livro”, o ponto afirma que, o Mito de Pandora diligentes para organizar experiên-
de vista é dos filhos. A devasta- é o leitmoti de Laços, as tradi- cias, emoções, memórias, elas não
ção do que é assistir o des-amor cionais caixas chinesas, uma podem ser empacotas, escondidas,
e a desagregação dos pais. Os dentro da outra. Caixas essas reprimidas, arquivadas. ...pois os
caminhos diferentes que cada que, vão sendo abertas, para sonhos tanto contêm quando liber-
um toma dentro e fora do casa- que o leitor possa ver as coisas tam a matéria convulsa da nossa
mento. Quando crianças, esses devidamente nos seus lugares psique, nossa alma.”
sentimentos vem em forma físi- e ordem, mas que os impulsos Como tradutora, Lahiri
ca – fazer xixi na cama, o medo vão ameaçar tal ordem: “...é aponta também para o signifi-
do novo, emoções des-ordena- um romance sobre o que aconte- cado de Italiano, Lacci, que em
das, desejos não completados. ce quando as estruturas – sociais, italiano,significa “cadarços”.
E quando adultos, muito dessa familiares, ideológicas, mentais, fí- Cadarços esses que tem passa-
experiência vai reverberar na sicas, desmoronam...É sobre nossa gem literal (no caso da cena de
forma de cada um ver e viver a necessidade, coletiva e primordial, Aldo com o filho e o jeito esqui-
vida. Impotentes e de uma cer- de ter uma ordem, e sobre nosso sito de amarrar os cadarços dos
ta forma com sentimentos de horror a espaços fechados, que é tão sapatos). Mas Lacci também é
inadequação também, tomam primordial quanto a primeira.” um meio de refrear, de captu-
uma iniciativa possível para As caixas chinesas funcio- rar alguma coisa. E nesse meio
fazer balançar a acomodação nam como um recurso narrati- de frear coisas, ela finaliza: “ A
dos pais, quando esses, já na vo importante, para descrever mensagem inquietante de Laços
meia idade, vão de férias para uma história contida dentro não é tanto que a vida é passageira,
a praia. O gato dos pais, ironi- da outra. Tal recurso presente que estamos sozinhos neste mundo,
camente se chama, Lebos, que também no romance As Horas, que ferimos uns aos outros, que en-
no grego significa destruição. do escritor americano Michael velhecemos e esquecemos, mas sim
Poderia, sim, Lebos se consti- Cunningham, e que desenvol- que nada disso pode ser capturado,
tuir numa metáfora importan- ve histórias de três persona- nem mesmo por meio da literatu-
te, para esse des-arrumar das gens femininas: Mrs Woolf, ra.” E aí já temos os cadarços
relações amorosas. Mrs. Brown e Mrs Dalloway, soltos ou presos, mas como um
A introdução do livro, es- num sem fim de duplicação de elemento simbólico importante
crito pela escritora indiana/ personagens, temas, conflitos e no desenvolvimento do enredo.
inglesa/americana Jumpha La- desfechos. Uma estrutura trí- O final de Laços é surpreen-
hiri (Intérprete dos Males, Terra plice, mas que, também pode dente, original, e ao mesmo
Descansada), é um presente à indicar um número infinito de tempo desconcertante. Por ve-
parte. Tendo morado em Roma aberturas e fechamentos, como zes precisamos do choque, do
por quatro anos, Lahiri é quem sugere Lahiri, para Laços. alvoroço, do susto, que cadarço
também faz a tradução do livro Lahiri também aponta uma nenhum dá conta, para passar
do italiano para o Inglês. No outra estrutura narrativa uti- a limpo algo que nublou den-
texto ela magistralmente faz lizada por Starnone em Laços, tro de nós vida afora. Laços faz
uma crítica importante quanto a da Caixa do mágico; estrutura esse rebuliço. Interrompe um
à nossa necessidade de conten- essa que nos leva a um dos te- passeio aparentemente plácido
ção e libertação, os impulsos mas recorrentes – a de sermos numa praia, para que na volta
contraditórios que vão intera- enganados, traídos. “O adultério ninguém se perca. Ou se perca
gir em Laços. Comenta também neste romance, implica uma trans- de vez. I
sobre a importância dos objetos gressão tanto física quanto moral:
inanimados, recipientes, que pisar fora do lar da família, rom-
contem outros, literal e simbo-
licamente. As coisas armaze-
nadas e as perdidas na vida. E Ana Adelaide Peixoto é professora aposentada do Departamento de Letras
Estrangeiras Modernas (Dlem) da UFPb. É doutora em Teoria da Literatura;
principalmente os rastros que
colunista do jornal A União e tem dois livros publicados: ‘Brincos, Pra Que Te
deixamos, consciente ou não, Quero?’ e ‘De Paisagens e de Outras Tardes’ (2016). Mora em João Pessoa.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, setembro de 2020 | 23


6 conto
ilustrações: tonio

Monte Âncora
Cláudio Feldman
Especial para o Correio das Artes

A
cidade de Batel era notória por seu trepidante porto, pela sede do Con-
gresso Internacional de Surdo-Mudos e pelo monte Âncora.
Nesta eminência, defecada por gaivotas, erguia-se o Santuário da
Virgem Oceânica, onde o devoto povo do município procurava a paz
espiritual, coadjuvado por marujos que imploravam proteção em seu
caminho salgado.
Dos 150 metros de altura, desdobrava-se um panorama deslumbran-
te, que abarcava tanto as ilhas do oceano azul quanto a cidade com
suas ruas, praças primaveris, meretrícios e o porto, visitado sem cessar c
por vozes de todo o mundo.

24 | João Pessoa, setembro de 2020 Correio das Artes – A UNIÃO


c E para atrair turistas ao alto
do monte Âncora, sempre la- 4
vado por brisas refrescantes, O cardeal Luzeiro, chamado
foi edificado um grande cas- para orar pelas vítimas, afir-
sino, com todas as instalações mou, em seu sermão, que Deus
necessárias ao conforto dos resolvera enviar um castigo,
frequentadores, inclusive com pois o monte Âncora, destina-
a construção de uma minifer- do a um santuário, não deveria
rovia funicular, para quem não abrigar um cassino.
quisesse perder o fôlego numa Acentuou que a companhia
escada interminável, cavada na estrangeira, empreendedora
rocha. da construção moderníssima,
sabia que bem próximo estava
um templo, que se sentiria des-
2 respeitado por cabarés, salas de
jogos e outros antros do pecado.
Pois este monte, amado em
Batel tanto por motivos sagra- Mesmo assim, realizou-a,
dos, quanto profanos, foi atin- com o consentimento lucrativo
gido por um acontecimento da Prefeitura, e Deus se zanga-
fatal, que encheu a cidade de ra com a profanação.
horror. Se o cassino continuasse a
Com o verão, o município sua poluição imoral, novos de-
sofreu repetidas chuvas torren- sastres certamente acontece-
ciais, coroados por um tufão. riam, monte abaixo e acima.
Graças a estes flagelos, des- Os donos do “Good Luck”,
prendeu-se, num átimo, um que ouviram o sermão, infla-
enorme pedaço de terra e pe- mado por alto-falantes, não
dra do monte Âncora, levando entenderam nada de seu con-
em seu arremesso de quatro teúdo, pois insistiam em ser es-
milhões de metros cúbicos, um trangeiros, no Brasil.
quarteirão inteiro de habitações O máximo que fizeram foi
portuárias, 17 residências de fa- sorrir do tom tragicômico das
mílias italianas, parte da Santa imprecações do Cardeal.
Casa de Misericórdia, o cine Ex-
Contudo, para prevenir sur-
celsior e uma fábrica de louças,
soterrando os seus usuários sob presas, os bombeiros iniciaram 5
destroços. os trabalhos de desmorona- Um ano depois, o cassino foi
mento artificial, controlado, desativado, não por Deus, mas
por meio de poderosos jatos de por alguém bem menor: o Pre-
3 água nas fendas.
Porém tiveram que parar
sidente Dutra proibiu os jogos
de azar em todo território na-
Após o pânico, que estarre-
ceu os espectadores e alimen- sua iniciativa, pois tanto os do- cional.
tou os jornais, começaram os nos do Cassino “Good Luck”
quanto do Santuário da Virgem
nervosos trabalhos de desentu-
lho, com a esperança de sobre- Oceânica reclamaram que os ja- 6
viventes. tos estavam abalando ambos os Não sou repórter nem histo-
Só um cão latiu, de imediato, estabelecimentos. riador.
vencendo o desmonte. Se as mangueiras não silen- Contei esta tragédia em deta-
De todos os bairros acudiram ciassem, enormes indenizações lhes, porque foi nela que perdi
funcionários da Prefeitura com teriam que ser pagas. meus pais.
mecanismos e caminhões, num Os técnicos apontaram que, Isto modificou radicalmente
dia e noite de esforços, dificulta- além das causas naturais, as es- a minha vida, pois rodei, de pa-
dos pela continuidade das chu- cavações e frequentes explosões rente a parente, até conseguir
vas, que criavam lameiros. de uma pedreira de granito na meu sustento, ainda que precá-
Nas jornadas posteriores, raiz do monte Âncora estavam rio.
quando os operários tiveram minando seu cerne. Hoje, professor de Geografia,
que usar máscaras de gases O proprietário era um de- quando vejo no mapa a palavra
asfixiantes, devido à putrefa- putado, que escapou ileso, em Batel, sinto um mal-estar, rente
ção dos corpos, ainda houve Miami. ao vômito. I
desabamentos menores, que
preludiavam uma possível ava-
lancha mais volumosa, porém
isto não aconteceu como o es- Cláudio Feldman é professor aposentado de Língua & Literatura,autor de 56
perado. livros e membro da Academia de Letras do Brasil,em Brasília.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, setembro de 2020 | 25


6 artigo

Braulio
Tavares,
70 anos:
Exercício de admiração

Walter Galvão
Especial para o Correio das Artes

A
propósito dos 70 anos de vida do escritor músico
poeta Braulio Tavares, completados neste setembro
de 2020, é na condição de apologista da superinter-
pretação, da replicabilidade dos pseudoduplos, da
intercontextualidade e da heurística estética, que
compartilho no Correio das Artes o seguinte exer-
cício de admiração:
É possível observar na obra multimodal desse
autor paraibano, que um dia se definiu também
filósofo popular, uma cosmogonia arbitrária do
universo imaginativo humano advinda de um do-
mínio artístico da palavra em permanente estado
de excitação criativa.

26 | João Pessoa, setembro de 2020 Correio das Artes – A UNIÃO


c Com a posse da palavra, dos berta empreendida em jornadas modernidade do século 20, as
seus níveis de organização, dos épicas plenas de aventura, espan- obras de Ariano Suassuna e de
fundamentos dos gêneros tex- to, transcendência e fantasia. Jorge Luís Borges. Personagens a
tuais, Braulio captura princípios Muitas músicas de Braulio exemplo de Trupizupe (trovador
das estruturas da linguagem e os contemplam o sentido do panfle- anarquista) e o andarilho Ramon
traduz para nós em relatos ficcio- tarismo ontológico do autopro- (outsider pós-hippie) evocam ar-
nais, interpretativos ou descriti- clamado filósofo popular, das quétipos de façanhas clássicas de
vos, entre outros tipos de objetos quais menciono três paradigmá- gestas medievais e renascentistas
artísticos, todos sempre instigan- ticas: “Soberano desprezo”, “Cal- de um mundo ibérico tão caras a
tes e repletos de beleza, harmo- deirão de mitos” e “Nordeste Chicó e a Quaderna, e cuja ma-
nia composicional e coerência independente” (originariamente triz tipológica ressoa no Quixote
estilística e temática. um mote - “Imagina o Brasil ser e antes dele no Pedro Malasarte,
Em Braulio, a linguagem con- dividido e o Nordeste ficar in- este mencionado no Cancioneiro
firma o essencial da condição hu- dependente” - de Braulio, uma da Vaticana já por volta do ano
mana, linguagem que dá sentido estrofe proposta a violeiros re- de 1210.
à expressividade do ser, aos con- pentistas para que desenvolvam Já a Espinha Dorsal da Memó-
teúdos e rotas do entendimento pelejas, prática técnica de origem ria é um caso borgeano quanto
das coisas e das emoções. renascentista e que permanece a referências explícitas e implí-
Com o talento do narrador na atualidade nordestina de vio- citas (intertextualidade) a temas
perspicaz que há décadas con- leiros e violeiras). como o realismo fantástico, pac-
quista público e crítica, ele pra- Na primeira, observa-se um to fáustico, filmografias, Shakes-
tica uma ontologia (filosofia do conjunto interessante de volutas peare, Rolling Stone, Dante, H.
ser) no sentido de uma verifica- morais ativadas por paródia esti- G. Wells, a Bíblia, Dashiel Ham-
ção, através da prática artística, lística ao redor do sentido do ser. met, a Odisseia, as contrafações
de tudo inerente à existência em Na segunda, ele maneja o pers- lógicas, sonho e pesadelo, o para-
sociedade, e o faz garimpando pectivismo do sentido da visão doxo e o enigma, o duplo, o tem-
imagens, sons e sentidos na his- como operação do conhecimen- po...Braulio, a exemplo do gênio
tória e nas criações da arte, da to relativo do real. Na terceira, a argentino - também Braulio foi
ciência e da religião, perfazendo projeção utópica é ressignificada uma criança superdotada como
um corpus especulativo a de- para discutir geopolítica. Borges o foi, o paraibano escre-
sembocar no mar filosófico das A arte de Braulio se expressa veu o primeiro soneto aos sete
perguntas sobre a natureza das na ficção literária - e aqui estou anos; o argentino publicou a pri-
divindades, sobre como funciona referenciando a obra A Espinha meira tradução também aos sete
o pensamento, a origem de tudo, Dorsal da Memória, livro-síntese anos de idade - trabalha territo-
o que é a verdade, os pactos teó- do seu fazer arte, prêmio Cami- rialidades míticas e sensibilidade
ricos definidores do conceito de nho de ficção científica (contos, simbólicas sob a forja do poético
razão, também sobre as possibi- 1989 - Portugal) -, ora enquanto mimetizado em prosa. Diria que
lidades da matéria, as razões do afirmação alegórica permeando o brasileiro Braulio, poeta de
gregarismo comunal, a natureza situações-limites, ora impregna- matriz surpreendente quanto ao
do infinito e a fronteira represen- da do sentido de fábula que a fic- domínio dos maquinismos do
tada pela morte, entre outras. ção científica realiza e dissemina. simbólico e do semântico, está
Trata-se de uma obra energiza- A fábula na ficção científi- para Borges assim como o esta-
da por paixão avassaladora pelo ca, gênero com o qual Braulio dunidense Philip K. Dick.
conhecimento. Seus textos, sejam mais se identifica e se expressa Consta na versão online (deep
as crônicas jornalísticas, blogs na literariamente, é a mistura feliz web) dos Registros Akáshicos o
Internet, letras de música, folhe- de duas expressões: “Era uma seguinte verbete adaptado por
tos de cordel, roteiros (cinema e vez…”, cuja origem foi localizada Astier Basílio do Grande Dicionário
TV), contos, peças, ensaios, ro- no idioma inglês pelos especia- Soviético: “Braulio Tavares, escritor
mances, traduções, são exitosas listas em lexicografia da equipe e sábio de Campinoigandres, cuja
intentações lógico-cabalísticas do Dicionário Oxford no ano obra se caracteriza como perturba-
lapidadas nas fronteiras do realis- de 1380, e presente em muitos ção no campo de realidade no qual
mo idealista e fundamentalmente idiomas a partir do século 14 da um vórtice negentrópico automo-
plenas de imaginação. grande crise europeia, período nitorador espontâneo é formado,
A obra propõe, enraíza e ex- que marca para alguns historia- tendendo progressivamente a sub-
pande universos metafísicos em dores o fim da chamada Idade sumir e incorporar seu ambiente
planos concêntricos onde costu- Média; a outra expressão é “E em combinações de informações.
mes, mitos, ideologias, o maravi- se…”, verdadeira chave de possi- Caracteriza-se ainda por quase-
lhoso e o simbólico, o mistério e bilidades infinitas. -consciência, sentido de finali-
o enigma, o utópico e o onírico, a A literatura de Braulio situa-se dade, inteligência, crescimento e
oralidade e a rememoração, o vi- entre dois marcos referenciais da uma coerência armilar”. I
sível e o invisível, o urbano e o ru-
ral, o arcaico, o contemporâneo e
o futurível secretam uma perma- Walter Galvão é jornalista e escritor paraibano. Mora e
nente atmosfera de busca e desco- trabalha em João Pessoa-PB

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, setembro de 2020 | 27


6 ensaio
etc. Derivados deles, também,

Mário
são o advento do romantismo
e a manutenção regional. O
romantismo pontuando a líri-

Quintana:
ca e o regionalismo teclando a
memória, o humano e, óbvio, o
campo.
Sendo a infância, motivo
central dos românticos (cf. Ca-
UMA CARTOGRAFIA LÚDICA PARA simiro de Abreu) nada mais
fértil que sua ascensão comun-
A TRANSCEnDÊNCIA LITERÁRIA gando com o regional entre os
escritores sulinos.
Com certo declínio do ro-
mantismo, é a vez dos toques
Elizabeth F. A. Marinheiro
Exclusivo para o Correio das Artes
parnasianos e simbolistas. In-
fluenciados pelos gêneros do
Rio de Janeiro, os gaúchos são

T
endo feito Mestrado e ma estética, a condição hu- de grande importância, até
Doutorado na PUC/RS, mana e a paisagem social. porque não se distanciaram
tivemos oportunidade Embora “nascendo” com muito do “Partenon”. Fontou-
de estudar grandes autores, a poesia no século 19, a lite- ra Xavier com a obra Opalas
a exemplo de Darcy Azam- ratura sulina foi crescendo consolida o Parnasianismo e o
buja, Simões Lopes Neto, admiravelmente, a exemplo Simbolismo vai à frente, atin-
Mário Quintana, Érico Ve- do “Partenon” que extra- gindo o Brasil. Daí, surgem os
ríssimo e outros. polou o universo gaúcho, consagrados nomes de Ola-
Não podemos mais rotu- plantando as sementes da vo Moreyra e Marcelo Gama.
lar a literatura gaúcha de, filantropia e favorecendo Com sua dicção moderna, o
literalmente, regionalista: a vasta produção literária, Simbolismo, de pronto, assu-
ela tem características e dos escritores que defende- miu a modernidade tal qual
individualidade próprias. ram a abolição da escrava- postulou Walter Benjamin, o
Embora alguns textos pare- tura. qual atribuiu aos escritores o
çam destinados, exclusiva- Discípulos do “Parte- combate à massificação coleti-
mente, aos riograndenses, é non” não são apenas Apoli- va, de acordo com a citação de
inegável que essa Literatura nário Porto Alegre, Luciana Luiz Costa Lima (in Teoria da
aparece enfatizando, de for- de Abreu, Lobo da Costa Cultura de Massa). c

28 | João Pessoa, setembro de 2020 Correio das Artes – A UNIÃO


c A práxis do eu, revelada nos se- em sua poética, se confundem.
mas, da luz, do calor, da sabedoria, Até mesmo as ruas antigas (rua
confirmam a metáfora do sol, cono- da Praia) estão dentro do moderno,
tando o desejo de grandeza espiri- como se o poeta fosse deixando o
tual dos poetas. É quando o loca- romantismo:
lismo e a dicção social perdem um “Nesta Porto Alegre tão diferen-
pouco sua força. te, basta eu fechar os olhos para me
Já o ideário simbolista, ainda transportar à Porto Alegre antiga.
com tonalidade romântica, man- Porque uma cidade sempre con-
tém o amor telúrico, porém volta-se tem outra dentro de si” (Zero Hora,
ao passado numa atitude de quem 17/11/1985).
perdeu a tranquilidade. Por conse- E mais:
quência, a valorização da infância; “Ó céus de Porto Alegre, como


e com ela os temas do sonho, do cre- farei para levar-vos para o Céu?”
púsculo, do misticismo, da ascese, (Caderno H).
enfim, a primazia do onírico. Não só nas “Canções” (Antologia
Fica claro que essa colcha de re- Poética) mas também em “Sapato
talhos, na qual sobrevivem o realís- Florido” (1948), as coisas simples da
tico-social, o sonetismo metrificado vida diária apresentam um sentido
dos parnasianos, o penumbrismo novo de um despojado lirismo. Daí Ó céus de Porto
simbolista, mesmo com o toque da a musicalidade das cantigas popu-
mansidão em Gilka Machado, é lares, dos ruídos, dos pregões etc. Alegre, como farei
uma abertura para os imitadores de “Pregoeiros. Sinos. Risadas. Si- para levar-vos para
Baudelaire. nos.
No Rio Grande do Sul, Guer- E levada pelos sinos, o Céu?
ra Duval com o verso livre; Mário Toda ventando de sinos,
('Caderno H')
Pederneiras com suas assimetrias; Dança a cidade no ar!” (Antologia
Marcelo Gama com a linha colo- Poética. p. 57).
quialirônica; a diretriz “sério-es- Em “O Outro Mundo” do Cader-
tética” de Alceu Wamosy e Alvaro no H:
Moreira, acrescentando-se a minei- “Por favor, deixa o Outro Mundo
ridade espiritual de Cruz e Sousa em paz! O mistério está aqui.”
formatam a porta aberta para a Mo- Quintana sempre morou um ho- ta; inquestionavelmente, remete ao
dernidade no Brasil. téis e pensões, porém as casas onde desrespeito arquitetônico deste sé-
Nesse contexto, será uma atitude viveu não desaparecem do seu ima- culo 21... A quem caberá uma con-
crítica irresponsável rotular o gê- ginário: “Muita vez me entretenho denação?...
nio Mário Quintana... Mesmo que em reconstruir de memória a nossa A infância das cirandas, das ve-
a revolução estética de 1922 tenha antiga casa paterna”. Sendo a casa lhas, das tias, de Lili, dos cataven-
chegado tardiamente ao sul e Lígia paterna um lugar de passagem, tos, tratados com aquela simplici-
C. de Moraes, em seu Regionalismo torna-se tema recorrente do Poeta, dade, que mais parece um recurso
e Modernismo, afirme que “houve constantemente evocada ao longo retórico, nos dão um tempo mítico,
e não houve Modernismo no Rio de sua obra e, não raro, relacionada onde ser e parecer se fundem pela
Grande do Sul” (1998. p.22), não às alusões a sua própria infância. inteligente desrealização do real. É
aceitamos tais posições porque a Consequentemente, o inconformis- como se a visão infantil da lírica es-
Literatura sulina manterá sons de mo do eu memorialista: tivesse em contraponto ao contexto
outros estilos, mas se firma na mo- “Não pude ser um menino de real.
dernidade. rua... Poemas a exemplo de “O Mapa”
E é Mário Quintana (sem es- Aliás, a casa me assustava mais (in Apontamentos de HS) e “A minha
quecer Augusto Meyer) que, com do que o mundo, lá fora. rua” (in A Vaca e o Hipogrifo) rede-
A Rua dos Cataventos, consolida A casa era maior do que o mun- senham a cidade ora com sotaque
o Modernismo, isento de objetivos do! bandeiriano, ora é a evasão líri-
sociais, voltando-se, prioritaria- E até hoje ca de um andarilho que caminha
mente, à cidade, ao sonho, à criança. – mesmo depois que destruíram por dentro de si mesmo: “Olho
Autor de canções, historietas, ano- a casa grande – o mapa da cidade/Como quem
tações, poemas, sonetos, textos em até hoje eu vivo explorando examinasse/A anatomia de um cor-
prosa, Quintana revelava que ouvia os seus esconderijos...” (in A Casa po...(É nem que fosse o meu corpo!)”
as leituras feitas pelos pais e logo Grande). É neste redesenhar urbano que
cedo começaria a escrever. Não esqueçamos, todavia, o al- sublinhamos algumas dicções de
Comum encontrá-lo caminhan- cance do seu protesto político-so- Quintana: a memorialística, a meta-
do nas ruas portoalegrenses, trans- cial no texto “Instabilidade” (in A linguística e a irônica. Neste trinô-
formando-se no andarilho que olha Vaca e o Hipogrifo): “Reconstruíram mio haverá sempre um denomina-
e vê a cidade em seus mínimos a cidade antiga, mas esqueceram-se dor comum.
detalhes. Reais ou imaginárias, as de reconstruir as nossas almas. Daí, A memorialística está conectada
ruas ocupam o centro da cena e o a instabilidade contemporânea. com sua linhagem autobiográfica
caminhante segue captando fatos, Porque não somos contemporâneos ancorada num território interior,
gestos, esquinas, derramando seus de nós mesmos”. que vivido ou recriado (“Esses pen-
afetos sobre os céus e a terra que, Atualíssimo, o protesto do Poe- samentos que nos chegam de súbi- c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, setembro de 2020 | 29


de Quintana. Veja-se, a exemplo, riante. Tal postura deve-se ao trata-
este “O AUTO-RETRATO”: mento de assuntos sérios, atenuan-
“No retrato que me faço/ – traço do-lhes a gravidade.
a traço –/às vezes me pinto nuvem,/ Sátira, humor, ironia fluem e re-
às vezes me pinto árvore.../às vezes fluem na obra de Quintana como
me pinto coisas/de que nem há mais o tecer das “perdas e ganhos”. E
lembrança.../ou coisas que não exis- assim morte e tempo alinham-se
tem/mas que um dia existirão.../e, na sua poemática. Em “Do Tem-
desta lida, em que busco/– pouco a po” (Sapato Florido) “Nunca se deve
pouco –/minha eterna semelhança,/ consultar o relógio perto de um
no final, que restará?/um desenho defunto”. Em “Perdas e Ganhos” (A
de criança.../Terminado por um lou- Rua dos Cataventos) nuvens e ventos
co!” (in Apontamentos de HS). Obser- são metáforas do passar contínuo


ve-se a permanência da “criança”. do tempo: “Estes inquietos ventos
Por outra via, também conside- andarilhos/Passam e dizem: “va-
ramos difícil uma analise da versi- mos caminhar”.
ficação deste Gênio gaúcho porque Sua metapoesia tanto cobre con-
dos primeiros versos aos poemas ceitos literários “Antes de escrever,
modernos é incontestável sua liber- eu olho, assustado,/para a página
E, por todo o dade formal. em branco” (Caderno H) ou “Ser
O solitário andante, com sua poeta não é uma maneira de escre-
sempre, enquanto paixão pelas “coisas”, transforma- ver. É uma maneira de ser” (Viver &
a gente fala, fala, -as em poesia. Vale dizer que não Escrever), como se associa aos con-
apenas a cidade, a infância e outros ceitos de morte: “A morte deveria
fala, topoi são importantes. Ao personi- ser assim:/um céu que pouco a pou-
ficar o banal, Quintana consolida o co anoitecesse/e a gente nem sou-
o silêncio escuta animismo em sua obra: besse que era o fim” (Apontamento
e cala “O banho da luz, tão puro, de HS).
Na paisagem familiar: Com certa ótica, admitimos que
(“Esconderijos do Tempo”)
Meu chão, meu poste, meu muro, o verso “...a poesia é um sintoma do
Meu telhado e a minha nuvem sobrenatural” (Caderno H) desvela
Tudo bem no seu lugar” (“Can- que, ao caminhar entre o sonho e
ção do Primeiro Ano” in Antologia o real, o Poeta apresenta um clima
Poética). E ele mesmo afirma: “Des- denso, onde monstros são huma-
c to/nas ocasiões mais impróprias”), de pequeno tive tendência para nizados (cf. “Bau de Espantos”, in
instaura um jogo de espelhos. A personificar as coisas” (ipsis verbis). A Vaca e o Hipogrifo) sugerindo o
imagem romântica vai perdendo Ouvimos esta afirmação no dia em super-realismo e/ou o fantástico
terreno e a autorreflexão vai ga- que Quintana convidou-me para provocado pela conjugação natural
nhando espaço significativo. contemplar o crepúsculo do “Guaí- x sobrenatural. Daí, procedem o
E se “a imaginação é a memó- ba”. Em lá chegando, perguntou- espanto, o enigma e o silencio que
ria que enlouqueceu”, os poemas -me: “Você já viu crepúsculo mais uma leitura rigorosa provará.
“Confessional” (A Vaca e o Hipogri- bonito que este?”. Respondi-lhe: “E, por todo o sempre, enquanto
fo), “Álbum de Retratos” (Caderno o de Ipanema é mais bonito. Ele a gente fala, fala, fala,
H), “Autobiografia Mágica” (A Rua deu enorme gargalhada e replicou: o silêncio escuta
dos Cataventos), “O Poema” (Caderno ”Que nada, menina, o Guaíba tem e cala” (Esconderijos do Tempo).
H) revelam a diversidade dos quin- o crepúsculo mais belo do mundo”. Se já falamos demais é hora de
tanares. No universo dos espelhos E eu apenas monologuei: bonito e silenciar, diremos nós...
Quintana não se vê como Narciso; bom é estar aprendendo com o Se- Antes do silêncio devemos lem-
pode ver-se como um louco, indaga nhor. brar que ao resgatar a pureza da
a religiosidade, vale dizer, não en- Aliás, o Guaíba integra a cidade criança; ao referendar o olhar e o
contramos um retrato unitário do tão amada e decantada em sua exis- ver; ao criar seu universo tão oní-
Poeta e sim o simbolismo do meni- tência, em sua vasta obra. rico quanto real e tão fantasioso
no e do homem, os quais presentifi- As três linhagens (memorialista, quanto humano, Quintana não tem
cam-se em sua obra. metalinguística, irônica) poderão, o retrato unitário, nem unitária é
“Nós vivemos num mundo de neste estudo, admitir o coloquia- sua obra.
espelhos, lismo enquanto denominador co- Suas constantes andanças, sem-
mas os espelhos roubam a nossa mum. Coloquialismo estético que, pre pensando o outro e o si mesmo,
imagem... em versos curtos, capta o imediato transformam sua Lírica, em que a
Quando eles se partirem numa e o efêmero. Que confere “eternida- gravidade irônica, o coloquialismo, a
afinidade de estilhas de” ao humor. Que é uma reflexão cidade e a criança, confirmam a cons-
seremos apenas pó tapeando a sobre um eu que, focando a cidade, trução de um espaço confluente. (cf.
paisagem” (“Vidas” in Apontamen- questiona a morte com efeito hila- “Confluências”, in Antologia Poética).I
tos de HS).
Entendemos que nessa diversi-
Elizabeth Marinheiro, é uma escritora, crítica literária e professora doutora
dade especular seria muito exaus- brasileira. “Imortal”, ocupa desde 2 de maio de 1980 a cadeira de número
tiva uma abordagem em torno do 20 da Academia Paraibana de Letras - APL, tendo sido a primeira mulher a
humor e da ironia, bases da poética ocupar um de seus assentos.

30 | João Pessoa, setembro de 2020 Correio das Artes – A UNIÃO


6 crônica

Quintais
Renata Escarião
Especial para o Correio das Artes

G
osto dos varais... e dos quintais. Do filho desnudo, descalço e despreocupado brin-
cando com a terra do vaso da planta que acabei de mudar, enquanto o perfume da
roupa recém lavada que penduro no varal atravessa para o muro do vizinho de
onde vem cheiro de pão assado e café fresco.
Estendo cada peça com cuidado, mas gosto mesmo é do balé dos lençóis e das
saias ao vento, saias do Terreiro que parecem que ainda giram com a fumaça do
defumador.
Gosto dos sons do meu mundo nessas manhãs. Do balançar dos galhos da goia-
beira que, vindas do outro lado, se debruçam sobre o muro e dão sombra às minhas
plantas (o que me consola quando preciso, em dada época do ano, limpar a infini-
dade de frutas que se espatifam no chão).
Enquanto o vizinho briga com o cachorro, presto atenção aos diálogos fantásti-
cos que meu pequeno trava com as minhocas que encontra na terra.
Levamos a manhã inteira nisso. O barro, as plantas, o vento, o varal. A vida pas-
sando mansa e simples, como tudo que importa.
Depois de tudo feito, com a sombra do muro se estendendo depois que o sol
do meio dia passa, eu volto lá solenemente apenas para observar as roupas quase
prontas de balançar no varal. I

Ilustração: domingos sávio

Renata Escarião Parente nasceu em Patos e vive em João Pessoa há 16 anos.


É jornalista, professora, escritora e doutoranda em Letras. Lançou o romance
Sandálias Vermelhas em 2017, vencedor do prêmio literário José Américo de
Almeida, organizado pela Fundação Espaço Cultural (Funesc).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, setembro de 2020 | 31


6 festas semióticas
Amador Ribeiro Neto
amador.ribeiro@uol.com.br

As
pretinhas
são o melhor que há

E
le tem 35 anos. É paulistano da Zona Norte de São uma fusão de “MC” e “homici-
Paulo. Nasceu “em uma casa bem pobrezinha. Sua da”: Emicida.
imaginação foi sua melhor amiga e o fez visitar Uma das maiores revelações do
mundos incríveis, transformando-o em astronau- hip-hop brasileiro da década de
ta, desenhista, guerreiro, pirata, rei, pintor, samu- 2000. Um rapper, compositor e can-
rai e muitas outras coisas”. tor que rapidamente ganhou o re-
Isso quem diz é ele mesmo, Leandro Roque de conhecimento público e da crítica.
Oliveira, pai de duas meninas, uma com nove e Na levada de sua criatividade, logo
outra com dois anos de idade. Devido às suas fa- preencheu de sentido as iniciais de
cilidades em rimar, seus amigos começaram a di- seu nome artístico: Enquanto Mi-
zer que Leandro matava os inimigos nas batalhas nha Imaginação Compuser Insa-
de improvisações. Daí surgiu seu nome artístico, nidades Domino a Arte. c
fotos: divulgação

Emicida, rapper
que se aventurou
na literatura
infanto-juvenil
com ‘Amoras’:
músico que tem
como projeto o
princípio didático
de cidadania
plena

32 | João Pessoa, setembro de 2020 Correio das Artes – A UNIÃO


6 festas semióticas
c De Triunfo, sua primeira apa- E a narrativa corre na leveza
rição na mídia, até AmarElo, seu da poesia e no encanto da relação
mais recente trabalho, Emicida de um pai com sua filha. Ambos
tem colecionado não somente estão sob uma amoreira e ele lhe
elogios, como tem diversificado explica que “as pretinhas são o
sua linha de trabalho. A partir melhor que há. Então a alegria
da canção “Amora”, feita para sua acende os olhos da menina”. E o
primeira filha, escreveu seu pri- mais não digo porque não traio
meiro livro infanto-juvenil, ho- narrador de histórias – e muito
mônimo, publicado em 2018 pela menos a poesia.
Companhia das Letrinhas, com Mas a verdade é que Emicida
ilustrações de Aldo Fabrini. conta a história de uma menina
Com o isolamento social ad- ‘Amoras’: narrativa
e seu pai, numa conversa apra-
vindo da Covid 19, Emicida co- corre na leveza da zível, leve, maneira, recheada de
meçou a produzir queijo e hoje poesia e no encanto elementos da cultura. Há os re-
não somente abastece o mercado da relação de um pai ligiosos: o budismo, islamismo
com sua filha
local, como já atende a pedidos e culminam nas religiões afri-
de mais longo alcance. No meio canas. Há os histórico-sociais:
disso criou uma grife de moda e Zumbi dos Palmares, Martin Lu-
tem já o projeto de uma revista de ther King. Há... etc. e etc.
HQ, já que desenha e conhece as As ilustrações de Aldo Fabrini
HQs como poucos. do momento, com bom humor, são o outro lado do livro. Têm au-
Para um garoto que viu ami- simpatia característica e aguda tonomia e criam um novo modo
guinhas de escola sendo estu- consciência social. Sua inteligên- de ler a história. Assim, sem se
pradas e mortas, amiguinhos cia e facilidade de verbalização distanciar do eixo da narrativa
assassinados, que passou fome e destacam-se a cada programa. central, apresentam uma com-
vagou pelas ruas enquanto a mãe Lançar um livro infanto-juve- plementação e não um mero es-
trabalhava como empregada do- nil não surpreende. Em especial pelhamento do que o autor diz.
méstica, já que o pai, alcoólatra, para quem tem como projeto o Assim, não pode ser desvincu-
falecera quando tinha seis anos princípio didático de cidadania lada do texto escrito sob pena
de idade, ele foi distante. O tí- plena: “Precisamos encontrar pa- de empobrecimento do livro. Da
tulo de uma mixtape, de 2009, é lavras inspiradoras, positivas e capa à quarta capa, ilustração e
significativo: Pra quem já mordeu convidativas que façam com que texto formam uma unidade que
um cachorro por comida, até que eu as crianças tirem conclusões por agrada, diverte, faz pensar e sen-
cheguei longe. elas mesmas”. tir belezas.
O bom humor e o mais sublime E é isso que ele põe em prática, Ainda falando das crianças,
lirismo sempre estiveram presen- com desempenho e competência Emicida disse num depoimen-
tes na obra de Emicida. Mesmo admiráveis, em seu livro Amoras. to: “Se a gente conseguir criar
quando a ordem era denunciar A frase de abertura é um verso um campinho de força em volta
as mais caóticas, inviáveis e de- poético que salta em beleza e fica delas para que elas tenham suas
sumanas situações sociais. Sabe pedindo que o leitor se detenha convicções de igualdade preser-
pôr o dedo na ferida sem a agres- um pouco mais. Que curta, que vadas, conseguimos pontuar que
sividade que só distancia e assus- entre em si. Que pare o tempo quem ataca qualquer diferença
ta o público. O viés de denúncia por um momento. Que se des- que duas pessoas tenham, essa
de sua obra faz refletir e intenta vincule dos compromissos com a pessoa é que está errada”.
a mudança. realidade. E que se permita voltar “Amoras” é um livro afetuoso
Brincando, até repórter ele a ser a criança que traz adorme- e poético sobre o universo cultu-
foi. No programa Manos e Mi- cida em si. ral negro. A identidade das crian-
nas da TV Cultura, e no Sangue Se o leitor aceitar este convite, ças negras é seu ponto chave.
B, da MTV, pegou o microfone já é um presentão que se dá. Pensado e escrito com a mais su-
e reportou. Sem jamais deixar O livro inicia-se assim: blime delicadeza. Aquela que só a
a música e a poesia, tá ligado? “Não há melhor palco alguns poetas é dado ter. Emicida
Tanto é que em 2015 seu nome para um pensamento que dança em “Amoras” é um desses. I
chegou ao Grammy Latino na do que o lado de dentro (Este texto é dedicado a Laís Vitória
categoria de Melhor Álbum de da cabeça das crianças”. Gonçalves Ferreira, 10 anos).
Música Urbana.
Atualmente está todas as se-
gundas, ao vivo, na telinha da
Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico de literatura
TV, no programa Papo de segun- e professor da Universidade Federal da Paraíba.
da, do GNT. Opina sobre temas Mora em João Pessoa (PB)

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, setembro de 2020 | 33


ilustrações: tonio

6 conto

Casar
Meu nome é Dolores, Maria Dolores. Para as
amigas, apenas Dolô. Aliás, de amigas estou por
aqui. Uma decepção atrás da outra. Não sei em
quem mais confiar. Minha sorte ou sei lá, talvez
seja uma urucubaca mesmo, é ter me casado com

com homem bonito homem bonito. Bonito? Bota bonito nisso. João
Augusto é tudo de que se pode querer de um ho-

dá nisso
mem, pelo menos fisicamente, porque em se fa-
lando da fidelidade que se espera de alguém com
quem vai dividir casa, ele é um verdadeiro mala
sem alça.
Está fazendo um pouco mais de três anos que
Luiz Augusto Paiva me casei com João Augusto. Conheci essa cria-
Especial para o Correio das Artes
tura quando entramos juntos para o curso de
Direito, no mesmo turno, na mesma sala. Havia
um equilíbrio de gênero nessa turma, metade de
Se eu vou a uma festa sozinha homens e nós mulheres preenchendo a outra me-
Procurando esquecer o meu bem tade. Éramos criaturas absolutamente normais,
algumas bonitas, outras nem tanto. Estou falan-
Nunca falta uma engraçadinha do dos meninos e das meninas. Exceção era João
Perguntando ele hoje não vem Augusto, bonito de morrer.
Desde o primeiro dia de aula foi um alvoro-
Lupicínio Rodrigues ço, quando apareceu aquele deus grego vindo lá c

34 | João Pessoa, setembro de 2020 Correio das Artes – A UNIÃO


c de Floripa. Os rapazes nem se rar pelos cantos até que um dia que era bonita, era. Tinha cacife
incomodaram tanto, pois João abriu o bico e todo mundo ficou para encarar a empreitada.
Augusto era além de tudo muito sabendo. Quando terminamos as fo-
simpático, gostava de um chiste, A terceira, pelo menos ao que tografias, chamei João Augusto
fazia amizade fácil. Logo se en- me consta, foi Selminha. Essa fi- para um particular e perguntei
trosou com a rapaziada. Ficou cou na dela. Só muito tempo de- se ele não podia me dar uma
amigo de todo mundo. pois foi que descobrimos que a carona até em casa. Claro que
No primeiro dia, aula de In- pegada durou bem uns três me- sim, senhorita, é só aguardar
trodução e lá estava João Augus- ses. Detalhe: Selminha era noiva. um pouquinho que a gente vai,
to, arguindo, contestando, era o Safadinha que só. respondeu ele. Aguardei aquele
centro das atenções. Foi assim do Já devem estar perguntando: e tal de “pouquinho” e o “senho-
começo ao fim do curso. Em dia você, Dolores? Calma! Antes de rita” me soou como uma falsa
de prova, todo mundo queria se mim teve a Cida, Isadora, Nor- formalidade. Não demorou qua-
sentar nas cercanias dele. Não se minha, Rosilda, pelo menos as se nada minha espera. A carona
incomodava de passar cola aos que eu sei. Ia me esquecendo da não ia gastar muito tempo já que
colegas. Salvou muita gente de Goreti que era a mais safada de dali até em casa não dava cinco
pegar dependência em Constitu- todas. Doutora Carmem, dizem minutos. Estava me esquecendo
cional. Doutora Carmem, titular que rolou, mas ninguém prova. de contar, meus pais e minha
da cadeira, era uma jararaca, ser João Augusto me jurou que nun- irmã Cíntia estavam viajando, o
aprovado na disciplina dela não ca. Dá para acreditar? que dava uma bela ajuda para os
era fácil. Até essa peçonhenta Estou contando isso para que meus planos. No caminho con-
arrastava a asinha para o lado entendam onde é que eu fui versamos o trivial, como o tem-
de João Augusto, mas também amarrar meu cavalo. Podia não po passa depressa, parece que foi
quem não arrastava. Nosso pro- dar certo. Quando a gente toma ontem que começamos o curso e
fessor de Civil, meio barro, meio uma decisão, tem que pensar nas outras coisas assim. Quando es-
tijolo, também. conseqüências. Eu não pensei. távamos chegando perguntei se
Muito cordato, educado, João Meu pai já dizia: passarinho que ele não queria entrar. Vi que ele
Augusto não dava mole para come pedra, sabe a croaca que ficou meio surpreso, então eu
nós, as colegas de curso. Uma tem. Esse dito é meio jocoso, mas disse: quero mostrar uma coisa
vez, num churrasco da turma, nunca vi algo tão verdadeiro. para você, uma surpresa. Sur-
eu as meninas fizemos um bolão Voltando a esse tempo de fa- presa? Ele perguntou. Sim, só
para ver quem conseguia ficar culdade, eu estava mais focada posso dizer que é um brinquedo,
com ele. Não teve jeito, nosso de- em terminar meu curso. Já no fi- confirmei. Um brinquedo? Ele
sejado apareceu com uma loira nalzinho é que rolou a história. ficou curioso. Um brinquedo de
daquelas de levantar defunto. Ele era presidente da comissão fazer menino! Quando eu disse
Linda e ele todo cheio de chame- de formatura e escolhido orador isso ele ficou perplexo. Perplexo
go em cima dela. Foi um balde de da turma. Convites, baile, cola- e animado. Perguntou: tem cer-
água fria. Tempos depois desco- ção de grau, aula da saudade, teza, Dolores? Tenho sim, quero
brimos que a loira era moça de tudo na responsabilidade dele. dar um trato daqueles em você
programa. João Augusto deve ter No dia de tirarmos a fotografia para ver se essa fama toda tem
feito aquilo só para dar um freio para álbum, fiz maquiagem, me- procedimento. Ele riu e depois
em nossas investidas. cha no cabelo e estava eu lá toda disse: deixa comigo, senhorita.
E vejam como João Augusto pimpona de beca, borda e cape- Não era a primeira vez que eu
era ardiloso, dissimulado. Fazia- lo para tirar a chapa quando ele ia com um homem para a cama.
-se de desentendido só para ar- apareceu todo cerimonioso à mi- Comecei com Waldemar (olha só
mar seus botes. No fundo ele nha frente e foi dizendo: a senho- o nome da figura) numa excur-
queria mesmo era passar o rodo, rita está muito bonita. Obrigado, são do colégio para Porto Segu-
como se diz por aí. Aquele jeitão são seus olhos, respondi. Tudo ro. Também era meu colega de
respeitoso de quem não aceita podia ter acabado aí, mas me sala. Sabem disso, não é? Excur-
assédio era conversa para boi bateu algo estranho. Se me per- são de escola para Porto Seguro,
dormir. Ou seja, era o maior co- mitirem, serei muito sincera, não ninguém sai de lá como chegou.
me-quieto que já ouvi falar, um quero constranger quem se deu Quem vai, vai pensando “naqui-
danado. ao trabalho de ler este meu de- lo”. O meu primeiro “naquilo”
A primeira vítima foi Raquel. poimento, mas o que passou pela nem foi lá essas coisas. Tínhamos
Vítima? Ela? Nesse caso, acho minha cabeça naquela hora, foi o cheirado lança perfume e aconte-
que a vítima foi João Augusto, seguinte: vou dar para esse cara. ceu à noite numa construção, um
porque Raquel saiu contando Então resolvi ali comigo: vou predinho que estava sendo re-
para todo mundo que tinha dado aplicar um freio de arrumação formado. Entramos, e aconteceu
para ele. Ele por sua vez fazia-se nele, pensei. Como se diz, vou comigo encostada numa pilha de
de leso e não comentava a respei- chegar junto. Como fiz? Bem, an- tijolos. Não poderia mesmo ter
to. Depois foi Ana Lúcia. Aninha tes é razoável entender o seguin- sido lá essas coisas. No outro dia
tentou ser discreta, mas depois te: ainda não fiz essa colocação eu e Waldemar reprisamos no
que descobriu que ele não queria aqui, mas sempre fui bonita. Não mesmo local e horário. Tivemos
compromisso, começou a cho- era a mais bonita da turma, mas que nos adaptar porque os tijolos c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, setembro de 2020 | 35


c não estavam mais lá e me ajeitei o senhor tem vontade de me co- rótulo para ele e perguntei: gos-
sobre três sacos de cimento. Mas mer? Ele se assustou e rebateu: ta de “Periquita”? Gosto, ele res-
enfim, ficamos por quase uma como, menina? Tive que apertar pondeu. Aí eu disse: estou falan-
semana no segmento da constru- o nó e perguntei: como? Como? do do vinho, da outra eu sei que
ção civil. De volta à nossa cida- Isso mesmo professor eu tiro sua você gosta. Ele riu com esse meu
de e às aulas, procedemos como roupa, o senhor tira a minha e chiste. Quando acabamos de to-
nada daquilo tivesse acontecido. depois deixa comigo. Pareceu mar a garrafa todinha estávamos
Depois do Waldemar foi o Fran- que o cérebro dele entrou em en- os dois nus. Esbaldei-me naquele
ciswaldo. Eu não dava mesmo tropia, suou e então o tranqüili- homem. Começamos no sofá da
sorte com nomes. Fran queria zei: sei guardar segredos, sei que sala, depois na minha cama e ter-
me namorar firme. Eu só queria está querendo, não está? Ele esta- minamos nos chuveiros. Fizemos
namorico, sem compromisso Eu va e duas horas depois nós dois de tudo. Minha amiga aí que está
tinha só dezessete anos e mais debaixo dos chuveiros no “Cê Ki lendo sabe o que eu quis dizer
ainda, eu não tinha coragem de Sabe” , um motelzinho de ter- com esse “tudo”. Pois foi assim. E
apresentar lá em casa um namo- ceira linha, mas que serviu bem assim fomos nos dias seguintes.
rado com o nome de Franciswal- aos nossos propósitos. Professor Esgotei aquele homem. Até que
do. Fiquei com ele uns quatro Davi, era bom de serviço, sabia chegou o dia da formatura e ve-
meses e cá entre nós, o bichinho conduzir com delicadeza o antes, jam o que aconteceu na colação
era ruim de cama, tipo coelho, o durante e o depois, e que “du- de grau:
bem rapidinho, sem a sedução rante”! Durou bons cinco meses João Augusto era o orador da
do antes, nem o conforto do de- essa nossa safadeza. Um dia ele turma. Foi ao púlpito com uma
pois. falou que iríamos parar por ali maçaroca de papeis nas mãos.
No cursinho conheci Davi que porque ia ficar noivo. Entendi, Começou seu discurso conforme
era professor de química. Lin- desejei boa sorte. Também esta- recomendava o protocolo, cum-
dão, solteiro e muito atencioso. va perdendo meu entusiasmo. primentando as autoridades,
Naquelas de tirar alguma dúvi- Então, minhas experiências com os professores, o reitor, o para-
da, fui chegando bem pertinho. homens foram essas. Nunca tive ninfo, o patrono, os colegas e os
Encostava meus seios nos braços um namoro convencional. De- convidados.. Depois relembrou
dele toda vez que ia sanar uma pois disso, só João Augusto no os anos ali passados, as dificul-
eventual dificuldade, sempre último ano de faculdade. dades e o encantamento com o
cheirosa e um botão a menos Vamos voltar ao João Augus- saber jurídico que os mestres
no decote. Ele de início, fazia-se to. Levei aquela coisa linda para despertaram nele. Lembrou que
de desentendido, mas percebia minha casa. Ele entrou de mãos no último semestre todos os que
que eu não tinha dificuldades dadas comigo, mas todo cautelo- haviam feito o exame da Ordem
na disciplina dele. Com o tem- so. Dei um beijo naquela boca e haviam sido aprovados, o que
po foi fraquejando. Nas aulas eu senti o hálito de safadeza que ela mostrava a qualidade do ensino
não tirava os olhos dele e quan- tinha. Uma delícia. Pedi que ele que havíamos recebido. Foi mui-
do percebia que ele me olhava, se sentasse no sofá. Fui buscar to aplaudido nessa hora, Depois
cruzava as pernas e abria um uma garrafa de vinho, mostrei o prometeu solenemente levar a
pouquinho o decote. Ele respi-
rava fundo e demorava para re-
tomar as explicações. Até que
um dia peguei pesado e na saída
do cursinho esperei em frente à
sala dos professores. Ao sair ele
percebeu minha presença e foi
logo perguntando: alguma dú-
vida, Dolores? Eu disse que não
e perguntei se ele dava aulas
particulares. Ele estranhou por-
que eu entendia química.mui-
to bem e tirar dúvidas era um
pretexto para chegar perto dele.
Chegar perto? O que eu gosta-
va mesmo era me encostar nele,
sentir que ele se arrepiava. Não
entendo Dolores, você tem notas
excelentes nos simulados, não
precisa dessas aulas suplemen-
tares, disse ele se fazendo-se de
inocente, mas sabia das minhas
intenções. Foi quando resolvi dar
meu cheque-mate e tasquei a se-
guinte pergunta: professor Davi, c

36 | João Pessoa, setembro de 2020 Correio das Artes – A UNIÃO


c justiça aos excluídos, aos injus- Meu pai deu um festão. Ele gos- frita e lá pelas duas ou três da
tiçados e sentia que como pro- tou de João Augusto. Convidei tarde voltávamos para nosso
fissional se via na obrigação de muita gente, ele também convi- apartamento. Nesses domingos
lutar por um país melhor, mais dou. Convidei até “as meninas”, de praia, fui observando algu-
justo e mais cheio de esperança. mas delas, só Ana Lúcia veio. mas coisas. Como já disse, sou
Muito aplaudido novamente. En- Foi no dia do casamento que uma mulher bonita, sem exa-
tão veio a minha surpresa. Vou conheci os pais dele que vieram geros, mas sou. Era natural que
tentar reproduzir o que ele disse de Florianópolis. O pai, a mãe, o na praia, de biquíni, alguns ho-
e o que aconteceu. Vejam só: irmão (dois anos mais novo e lin- mens me olhassem. Fazia-me de
Neste momento quero com do como ele), uns tios e uns ami- desentendida e não dava corda.
vênia de todos, pedir que venha gos da família. Simpatizaram-se Mas com João Augusto era dife-
até aqui ao meu lado a nossa co- comigo, pelo menos foi o que rente, as mulheres não tiravam o
lega Dolores (disse meu nome pareceu. O pai de João Augusto olho, estivessem acompanhadas
completo). Por favor, Dolores, ve- era bem de vida, tinha uma cons- ou não. Quando as circunstân-
nha. Sem entender o que ocorria trutora e devem me perguntar: cias permitiam, ele dava suas en-
e muito constrangida, fui. Fique o que esse rapaz veio fazer tão caradas, retribuía algum sorriso,
aqui bem ao meu lado, pediu ele. longe de casa? O clima, dizia ele, como se eu não estivesse perce-
Fiquei ao lado dele, então ele con- gosto muito de praia. E Floripa bendo. Não gostava daquilo, mas
tinuou se dirigindo a mim. Do- não tem praia? Perguntávamos. relevava e fazia de conta que não
lores, hoje sou um homem cheio Mas aqui dá praia o ano todo, lá via.
de sonhos, quero ser um bom não dá para entrar na água nos No escritório tínhamos um
advogado. Preciso construir uma tempos de frio. acerto. Eu ficava enquanto ele
biografia para que esses nossos Fomos passar a lua de mel em ia às audiências. Raramente era
professores venham a se orgu- Itamaracá. Uma semana. Pouca eu. O problema estava aí. Al-
lhar de mim. De mim e de você. praia e muita cama. Qual a mu- gumas clientes davam em cima
Vai ser um longo e pedregoso lher com João Augusto do lado dele, clientes e até advogada da
caminho à nossa frente. Para ia querer praia nessas situações? outra parte. Sempre cheiroso,
que eu saia vitorioso dessa em- Praia só quando ele pedia trégua elegante, vestindo ternos feitos
preitada, quero com o testemu- para recompor as energias. Umas sobre medida (ele não compra-
nho de todos...Adivinhem o que doze horas de bandeira branca e va roupa pronta) e lindo daque-
aconteceu. Ele se ajoelhou à mi- depois o armistício cessava e re- le jeito o que eu podia esperar?
nha frente, diante de toda aque- tomávamos os combates. O problema é que ele começou
la gente, como uma caixinha de Bem, e o trabalho? Meu sogro a colocar as asinhas de fora, as
veludo numa mão e o microfone montou um escritório para nós, asinhas e pelo que sei, outras
na outra disse para que todos no prédio comercial mais caro coisas também. Aí eu tive que
ouvissem: Dolores, estou aqui da cidade. Pagou à vista, mobi- tomar alguma atitude depois de
humildemente pedindo você em liou, colocou computadores em receber uns recados sem o nome
casamento. Quero que seja mi- rede, tudo o que precisávamos dos remetentes. Num jantar che-
nha companheira nessa jornada. para dar início à nossa vida pro- guei junto: Jo-ão Au-gus-to! Você
Você aceita? fissional. E ainda disse, se vocês está me traindo? Que pergunta?
Tomei o microfone da mão forem bem sucedidos e felizes, Acho que eu seria capaz de algo
dele e disse: claro que sim. Ali considero pagas essas despesas. assim? Trair você, nunca!
diante de todos e sob o aplauso Os clientes foram chegando e nos Que cara de pau! Mas não me
de toda aquela gente demos um dedicamos ao Direito de Família dei por vencida: João Augusto,
longo e apaixonado beijo. Sim, fi- e o Trabalhista. O que não falta olha nos meus olhos e diz que
cará comigo e para sempre (pelo é casal se separando, briga pela não. Ele olhou nos meus olhos
menos era o que eu esperava) o guarda dos filhos e gente demiti- e foi contundente: já disse que
objeto de desejo de toda aquela da do trabalho. Os clientes foram NÃO! Você é a mulher da minha
mulherada. Ao retornarmos jun- aparecendo, tivemos sucesso em vida. Será que não entende? De-
to aos formandos para o instan- muitas causas e em menos de pois abriu aquele sorriso mais
te do juramento, fomos de mãos um ano tínhamos uma boa car- lindo do mundo e foi tirando a
dadas, quando pude ver a cara teira de clientes. Foi quando me minha roupa. Quase me conven-
de Raquel, Ana Lúcia, Selminha, engravidei de Joãozinho. Antes ceu, quase.
Goreti, Cida, Isadora, Norminha, disso... Assim fomos levando a vida,
Rosilda e até de doutora Car- Depois que nos casamos, todo eu na cola, vigiando e ele esca-
mem, todas muito surpresas e domingo que não chovia, íamos pando. As audiências cada vez
me olhavam com aquela cara de à praia, sempre a mesma, e tam- demorando mais. Tinha certeza
espanto fazendo o tipo “como é bém a mesma barraquinha, a do que ele estava dando umas ra-
que você conseguiu?”. Deu uma Seu Wanderlei e de Dona Matil- pidinhas quando chegava ale-
vontade de chamar uma por uma de. Suco de abacaxi com hortelã gando dor na coluna. Olha, Dolô,
e dizer: minha filha, eu fiz de para preparar o organismo, de- nem consigo me mexer. Ia para
tudo. E depois sair rindo a mais pois as cervejas na temperatura casa comigo reclamando do des-
sonora das gargalhadas. ideal, caranguejo no coco, mais conforto, nem pedia para jantar,
Casamos dois meses depois. tarde almoçávamos uma cioba tomava um analgésico e caia c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, setembro de 2020 | 37


c no sono. No outro dia acordava gusto não vai comer. Muito tem-
todo faceiro, fazia seu desjejum, po depois do casamento dela fui
escovava os dentes, me beijava saber que Giselane também não
e dizia, vem meu amor, vamos escapou. Essa e outras.
dar um tapa na macaca. Achava Foram tantas as peripécias até
engraçadas essas metáforas in- que um dia tomei uma atitude:
decentes de João Augusto: dar pus João Augusto para fora de
um tapa na macaca, bater na per- casa. Era fim de ano, Joãozinho
seguida, afogar o ganso e tan- já gatinhando. Dias depois, fes-
tas outras. Dentre outras coisas, ta do condomínio lá do prédio
devo admitir, João Augusto era onde moro. O maior churrasco
divertido. Nessas horas eu não com comes e bebes, cada vizinha
resistia, me entregava toda e fos- que aparecia para me cumpri-
se o que Deus quisesse. mentar, perguntava pelo meu
Quando contei que estava grá- marido. Cadê João Augusto? E
vida nem imaginam a festa que ele, não vem? Aí vinha a dúvida
ele fez. Abraçou-me, beijou-me e na minha cabeça: será que essa
com os olhos cheios de lágrimas, ele comeu também? Tinha vira-
agradeceu a Deus por ter me co- do paranóia.
locado na vida dele. Pensei comi- No escritório éramos muitos
go, agora ele apaga o facho. Que formais, como sócios em que o
nada. Era todo atenção comigo, único vínculo eram aqueles es-
mas quando podia dar uma esca- tabelecidos pela Associação Co-
padela, não perdia a oportunida- mercial. Foi para um flat. Dia de
de. Eu acabava sabendo, sempre Santo Reis ele apareceu com um
havia alguém para me contar, buquê de rosas no escritório, pe-
não por alguma solidariedade diu para Giselane sair por uns
comigo, mas sim para ver circo minutos e me disse: não posso
pegar fogo. viver sem você. Eu também não
Ao lado do nosso escritório podia viver sem ele.
ficava o de Guiomar que era Quando faço esse relato, não
contadora. Quando sobrava um posso negar que amo João Au-
tempinho no final de tarde, eu a gusto, e por incrível que pareça
convidava para um chá, e por es- sou forçada a dizer que ele me
sas delicadezas de minha parte, estagiária para ir adiantando ama. Do jeito dele, mas ama. Dias
fomos fazendo amizade, ou qua- alguma coisa, mas o pesado eu depois que reatamos, na cama
se isso. Conversa vai, conversa dava conta em casa e continuei entre lençóis e lágrimas pergun-
vem, fomos revelando nossas in- fazendo depois que Joãozinho tei a ele: por que você faz isso co-
timidades, até que um dia contei nasceu. A mãe de João Augusto migo? Então ele disse: amo você,
minhas preocupações em relação ficou conosco quase umas dez adoro Joãozinho, mas isso é mais
a João Augusto. Eu a essa altura semanas, sempre muito gen- forte do que se possa imaginar.
com um barrigão de sete meses. til, Nesse período, seis da tarde Quando faço, me arrependo, dois
Guiomar achou um absurdo eu eu via meu marido chegando dias depois a vontade volta. Eu
aceitar uma coisa dessas. Se eu cheio de mimos comigo e com nunca procurei. Elas que me pro-
souber que Carlos Alberto saiu Joãozinho. Foram três meses de curam, não foi assim com você?
com alguma sirigaita, mando o resguardo. Voltei ao escritório O pior é que tinha sido mes-
pé nos traseiros dele, disse Guio- quando completou esse período. mo. Deixar aquele homem eu
mar e ainda concluiu: não sei Dez da manhã e três da tarde eu não ia. Mudar o jeito de ser, im-
como você se sujeita a esse cons- dava um pulinho em casa para possível. Então achei melhor
trangimento. Bem, dias depois amamentar. Resolvemos conti- deixar quieto. Teria de aprender
conheci o tal de Carlos Alberto. nuar com a estagiária, Giselane. a conviver com isso. Quem me
Que horror! Primeiro eu não ca- Gostei dela, estava noiva, com mandou casar com um homem
saria com uma coisa daquelas, casamento marcado, aliança no bonito daquele jeito?
feio de doer. Segundo, e se me dedo e montando apartamento É isso minha amiga, melhor
casasse com aquilo, bastava ele para casar com Danilo, um rapa- dividir minha goiabada com
fazer xixi fora do vaso que eu gão de boa presença que acaba- umas e outras do que comer
metia o pé na bunda do infeliz. ra de se formar em engenharia. “aquelas coisas” sozinha. Per-
Querer comparar Carlos Alberto Pensava comigo, essa João Au- guntem à Guiomar. E
com João Augusto era só o que
me faltava. Nunca mais falei des-
sas coisas com Guiomar.
Luiz Augusto Paiva é professor de matemática, escritor. Atualmente é
Assim que completei oito me- presidente da União Brasileira de Escritores – Sessão Paraíba. Escreve todas as
ses, combinamos de eu me afas- quartas-feiras para o Jornal A União. Tem livros publicados, um de contos e dois
tar um tempo. Contratamos uma de crônicas. Natural de Campos do Jordão, reside em João Pessoa.

38 | João Pessoa, setembro de 2020 Correio das Artes – A UNIÃO


6 ao rés da página
Tiago Germano
tdgermano@gmail.com

Prefácios
R
achel de Queiroz costu- do bolo e vão embora à francesa, passando por casas do tipo: “Foi
mava dizer que, quan- quase despercebidos. Outros che- convidado para uma coletânea –
do um livro é bom, ele gam já roubando a cena, fazendo avance uma casa”; “foi convidado
prescinde de prefácio; valer qualquer festa. para escrever uma orelha – avan-
e quando é mau, não há prefácio Um dos textos canônicos so- ce duas casas”; “foi convidado
que o salve. O curioso é que seu bre a crônica (cujo título não por para escrever um prefácio – avan-
primeiro livro de poemas, Man- acaso batiza esta coluna) é um ce três casas”...
dacaru (1928), tinha não apenas prefácio escrito por Antonio Can- Era um livro sobre micronar-
um prefácio como, pasmem, um dido para um dos volumes da rativas e tentei honrar os meus
prefácio assinado pela própria inesquecível coleção Para Gostar mestres, fazendo um breve es-
autora. Inédito até uns anos atrás, de Ler. Quando convidei Braulio tudo sobre o gênero. Pensei em
o livro havia sido doado para Tavares para escrever o prefácio falar algo sobre prefácios, mas
uma amiga que morreu num do meu livro de estreia, Demô- meu grande dilema era que o
acidente de avião, antes de con- nios Domésticos (2017), quis ter de texto estava começando a ficar
seguir publicá-lo. Ironia das iro- volta a sensação deliciosa que eu mais longo que alguns dos mi-
nias: Mandacaru saiu em 2010, no tinha, trabalhando diariamente crocontos. Comecei a me sentir
centenário de Queiroz, com dois como jornalista, de abrir ansio- como a convidada de um casa-
prefácios: o da escritora e o de ou- so o jornal e ler sempre um texto mento querendo ir para a igreja
tra organizadora que enfim con- dele antes de ler os meus. Braulio com uma roupa branca, um véu
seguiu levar o projeto adiante. fez mais por mim: me presen- e um arranjo de flores, e uma
O prefácio é algo como a ore- teou com uma peça que coloco cauda no vestido muito mais
lha do livro, só que com uma no mesmo patamar do ensaio de longa que a da noiva. Ou o mes-
certa pitada de erudição. Claro Candido e que até hoje eu não sei tre de cerimônias que demora
que, em se tratando de orelhas, como agradecer por ser melhor a passar o microfone, e acaba
há vários tipos de cabeças, e para que o meu livro. fazendo um discurso antes da
cada cabeça um leitor: há os que Recentemente me vi no outro cerimônia em si.
as leem antes e os que as leem de- lado do tabuleiro: o de ser convi- Deixei o meu recado: a virtu-
pois de concluir os livros; os que dado para escrever um prefácio. de de toda literatura é dizer em
se recusam a lê-las e até os que Digo do outro lado do tabuleiro algumas linhas o que a teoria le-
as leem no lugar do livro inteiro porque a sensação foi essa mes- varia páginas para explicar. Um-
e já se acham no direito de opi- ma: de estar no meio de um jogo, berto Eco dizia, aliás, que toda
nar. Em se tratando de prefácios, esse jogo que no caso da litera- tese deveria ser escrita como um
porém, costuma haver um só tipo tura seria algo como um Banco romance policial. Um prefácio
de leitor: aquele que pula e vai Imobiliário em que é impossível jamais chegaria a tanto. Mas na
direto para o texto literário. Daí fazer fortuna ou um jogo da vida certa prefácios seriam mais lidos,
a minha teoria de que o prefácio que não te dá o direito a carro. se fossem escritos também como
é algo como aquele convidado Certamente eu estava avançando, literatura.I
da festa que só conhece o dono
da casa e fica por ali no canto da Tiago Germano é escritor, autor do romance “A Mulher Faminta” (Moinhos, 2018)
sala, sem saber como se compor- e do livro de crônicas “ Demônios Domésticos ” (Le Chien, 2017), indicado ao
tar. Alguns ficam só até a hora Prêmio Jabuti. Mora em João Pessoa.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, setembro de 2020 | 39


POE

Daniel Az

Pintassilgo 
 
Moeda
 
Sobrevoavas tu minha coroa Não há dissabor que não se acabe.
de espinhos, e eu ouvia teu lamento A ânsia, a insônia, a insanidade,
a arrancar-me a dor que de meu corpo nada resiste ao instante fatídico
retinha, de me sangue, tuas penas. das vicissitudes do suicídio.
Vejo-te agora, meu pequeno amigo, O tiro, o estampido, o furo, o vício,
entre as mãos de João numa oferenda o instantâneo arroubo do sentido,
sem sacrifícios, medo ou fratricídio. que se instala no coração, abre
Apenas por amar sem penitência. um istmo de nada e se acaba.
Podes cantar, meu doce Pintassilgo, Não há sabor mais doce de vida
estás em bom abrigo, no aconchego que não seja do abraço, do beijo,
dos prados, dos riachos e dos vales. da memória salgada da saliva
Estás em redor do Azul e Vermelho a lembrar um mar sob um veleiro.
da túnica de minha Mãe, que, sagrada, Entrelaçadas, a vida e a morte
sagra-nos à Santíssima Trindade. rodopiam entre o azar e a sorte.

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SIA

l Azevedo

Ilustração: tonio
Treliças
 
Diletantes
 
Acorda e vem comigo, segue meus A sala, meio clara, meio escura,
passos. Embora já noite, vem, segue. acomoda seus quatro visitantes.
Vem que a Lua se espicha contra o breu No espaço turvo, o clima se defuma.
e desfibrila o espesso pez do céu, Com charutos em mãos, os elegantes
que a terra em que pisas é firme e seca, senhores tratam temas diletantes.
nela se refugia o olor de bétulas, Além do azul da fumaça, uma música
a fragrância arenosa da ribeira, se espaçava em silêncios webernianos,
um buquê que se espalha pelas pétalas. até que a sala, se antes era dúbia,
Estende tuas mãos, dá-me as mãos logo. entre sombras e luz, agora vibra
O caminho clareia como um lógico timbres variados, cores profusas,
argumento talhado em chiaroscuro numa melodia do menos quase
numa aurora de estrelas. E, contudo, surda – seus visitantes, aos vapores
como treliças, nossas mãos se trançam azulados do fumo, se entreolham
e entre si o ilumimenso da manhã. na vaga panaroma dos sabores.

Daniel Sampaio de Azevedo, natural


de João Pessoa (PB), é autor da
plaquete Terror Sagrado sob o Sol
de Meio-dia (Mondrogo), lançado
em 2019, participou da antologia
Todo Começo é Involutário: a poesia
brasileira no início do século 21
(Lumme editor), organizada por
Claudio Daniel, e já teve poemas
publicados pelo Correio das Artes

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, setembro de 2020 | 41


6 clarisser
Analice Pereira
marianalice@hotmail.com

Entre
a confissão
e a ficção

E
scrito por Fernanda Torres e publicado pela Com- 20 e das décadas iniciais do sé-
panhia das Letras em 2017, o romance A glória e seu culo 21.
cortejo de horrores conta a história do a tor Mario No caso desse livro de Fernan-
Cardoso, em sua trajetória profissional que alterna da Torres, a motivação para refle-
momentos de glória, reconhecidos pela presença tir sobre “escrita de si” e/ou “au-
nas mídias, pelos convites de trabalho etc., e muitos toficção” decorreu de uma fala
momentos de “horrores”, representados por seus da própria autora quando, em
dessabores, frustrações e perdas. Para esse perso- entrevista ao canal do YouTube
nagem, os altos e baixos transcorridos em sua vida da Revista Época, em novembro
são perfeitamente ilustrados pela imagem expressa de 2017, justificava a sua opção
na frase “Fundo de poço tem mola” (p. 189). por um narrador-protagonista
Segundo a escritora, em entrevistas concedidas masculino pelo fato de, em sen-
para diversas canais midiáticos, por ocasião do do uma personagem e narradora
lançamento do livro, esse título é creditado à sua feminina, poder enunciar a sua
mãe Fernanda Montenegro, de quem ouviu duran- própria história de vida, em seu
te a vida a fatídica frase “a glória e seu cortejo de caráter pessoal, já que se trata de
horrores”. Assim como a mãe, Fernanda Torres é uma história ambientada no uni-
atriz e, assim como a mãe, é, também, reconhecida verso da dramaturgia, do teatro,
pelos seus trabalhos em teatro, cinema e televisão, do cinema e da televisão.
e por meio de diversas premiações. Vejamos o referido depoimen-
O fato de ser protagonizado to da escritora: “o negócio do
por um ator que é, ao mesmo narrador masculino é que logo
tempo, narrador da história você se afasta de você, quanto
faz com que esse livro se mais sendo um ator. Se fosse uma
apresente como um aconte- atriz, era muito colado ou em
cimento literário bastante mim ou na minha mãe. Então... é
interessante para quem se horrível quando é confissão”.
interessa por discussões A questão que se levanta, so-
sobre “escrita de si”, sobre bretudo no trecho em que ela
“autoficção”, tão eferves- declara ser “horrível quando é
centes nos debates sobre confissão” é: a que aspectos da
produções literárias con- confissão a escritora-atriz se re-
temporâneas, das últi- fere? O romance pode levar o
mas décadas do século leitor ao entendimento de que
há algum tipo de confissão, sim.
Portanto, Torres não se livra to-
talmente disso que ela qualifica
Capa de ‘A glória
e seu cortejo de
como “horrível” e que, por isso,
horrores’, romance opta por uma voz narrativa mas-
de Fernanda Torres: culina que também faz a vez de
escrita de si e personagem. O que Torres quali-
autoficção
fica como “horrível” poderíamos c

42 | João Pessoa, setembro de 2020 Correio das Artes – A UNIÃO


6 clarisser
c chamar de “demônio de escri- apresenta o sujeito autor na socie- esse tipo de interpretação de au-
tor”1, e observar como positivo o dade contemporânea. toficção como uma performance
que a própria escritora evidencia No Brasil, Diana Klinger3, por do autor, uma vez que se trata de
como negativo. exemplo, auxilia no debate par- uma história ficcional que apre-
Façamos um pequeno adendo tindo “da hipótese de que a auto- senta possíveis elementos da vida
e recorramos ao que dizem José ficção se inscreve no coração do da escritora Fernanda Torres. Por
Saramago, Antonio Candido e paradoxo deste final de século exemplo: o acesso de riso descon-
Diana Klinger sobre esse caráter XX: entre um desejo narcisista de trolado a que o personagem Ma-
confessional na/da literatura. falar de si e o reconhecimento da rio Cardoso é submetido ao ence-
José Saramago2 contribui, e impossibilidade de exprimir uma nar o Rei Lear, de Shakespeare, foi
muito, para esse debate, quan- ‘verdade’ na escrita. Assim, a au- experienciado pela escritora-atriz
do lança mão de uma ideia pela toficção se aproxima do conceito ao encenar o mesmo texto. Em li-
qual defende serem autor e nar- de performance, que [...] também nhas gerais, essa “experiência ex-
rador as mesmas figuras, argu- implica uma desnaturalização do tracorpórea” do Mario Cardoso,
mentando que “um livro não está sujeito” (p. 18). Essa ideia de lite- conforme se refere ele próprio,
formado somente por persona- ratura como performance se ex- parece ter sido o leitmotiv para o
gens, conflitos, situações, lances, plica quando a autora afirma que processo de criação literária de
peripécias, surpresas, efeitos de a “autoficção participa da criação Fernanda Torres.
estilo, exibições ginásticas de téc- do mito do escritor, uma figura Onde termina, então, a confis-
nicas de narração; um livro é, aci- que se situa no interstício entre a são e começa a ficção? c
ma de tudo, a expressão de uma ‘mentira’ e a ‘confissão’. A noção
parcela identificada da humani- do relato como criação da subjeti-
dade: o seu autor. Pergunto-me vidade, a partir de uma manifes-
até, se o que determina o leitor ta ambivalência a respeito
a ler não será uma secreta espe- de uma verdade pré-
rança de descobrir no interior do via ao texto, permi-
livro mais do que a história que te pensar a auto- Fernanda:
lhe será narrada a pessoa invi- ficção como uma “O negócio
sível mas omnipresente do seu performance do do narrador
autor”. (p. 27). O escritor portu- autor”. (p.24) masculino
é que logo
guês considera, portanto, entre Mesmo op- você se
outros aspectos, as motivações tando por afasta de
do leitor ao realizar determina- uma voz você. Se
das leituras. Daí a possibilidade, masculina, A fosse uma
atriz, era
por exemplo, de o leitor se sentir glória... permite muito colado
motivado a ler o romance de Fer- ou
nanda Torres, também, pelo que em mim ou
suscita sua própria história de na minha
mãe
vida, bem como pelos seus depoi-
mentos nas mídias acerca do seu
fazer literário.
Discussões bastante amplia-
das, fervorosas e, até, pouco
foto: Bob Wolfenson/Divulgação

consensuais sobre o conceito de


“autoficção” ocupam lugar de
destaque na produção teórica,
crítica e histórica da literatura
contemporânea, e auxiliam no
debate sobre essa questão que
tem a ver com a forma como se

1 A expressão é creditada a Mario Vargas Llosa que, em


sua tese de doutoramento sobre Gabriel García Márquez,
observa, na obra do escritor colombiano, certas motivações
a que chama de “demônios de escritor” em prol de um projeto
literário. LLOSA, Mario Vargas. García Márquez:
historia de un deicidio. 1971. Livro em PDF.
2 SARAMAGO, José. “O autor como narrador”. Revista Cult.
Dezembro de 1998.
3 KLIGER, Diana. “Escrita de si como performance”. Revista
Brasileira de Literatura Comparada. n.12, 2008.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, setembro de 2020 | 43


6 clarisser
c Antonio Candido4 escreveu um argumento que vai de encontro ao configuração de um narrador-pro-
livro de ensaios sobre a obra de que Fernanda Torres observa como tagonista masculino um tanto ata-
Graciliano Ramos no qual discute negativo na literatura, sobrelevan- balhoado, conforme descrição aci-
sobre uma “visão do homem”, na do que não se trata, exatamente, de ma, deve-se a uma lente feminista
obra do escritor alagoano, no sen- fazer do exercício crítico-analítico da autora e, por isso, o tom irônico
tido de traçar um raciocínio sobre uma mera especulação, no texto que perpassa o romance.
a transição da “ficção para a au- ficcional, sobre o que há de verda- Na segunda parte do livro, que
tobiografia como desdobramento de e de mentira. Isso tornaria a crí- constitui as pouco mais de quin-
necessário da sua obra”, e defen- tica um tanto medíocre. ze páginas finais, muda-se radi-
dendo que ambas não apresentam A opção por uma crítica ana- calmente a perspectiva narrativa
“o mesmo nível literário”. Candido lítica da voz narrativa, a partir de que passa a ser comandada por
considera que em Infância o literá- uma provocação da própria auto- um narrador em terceira pessoa.
rio se mantém e que em Memórias ra em depoimento concedido em Essa mudança de perspectiva se
do Cárcere, romance puramente uma entrevista, dá-se pelo fato de deve a um elemento de causali-
biográfico, não. Sendo que Infância o foco narrativo masculino não dade interessantíssimo e que não
é um livro autobiográfico, também, excluir totalmente o caráter confes- pode ser revelado aqui, pois in-
mas com tratamento literário, pois sional do romance como queira a fluenciaria na expectativa daque-
“cada vez mais preocupado pelas autora, mas, também, pelo fato de les que ainda não o leram.
situações humanas, substituiu-se não ser essa questão confessional Como forma literária, o roman-
ele próprio aos personagens e re- (a ausência dela) que confere qua- ce goza de liberdades plenas. Sua
solveu, decididamente, elaborar-se lidade ao romance. Como procedi- regra é não ter regras. Sua exigên-
como tal em Infância, aproveitando mento formal, o romance de Fer- cia é, portanto, ser livre. Nesse
os aspectos facilmente romanceá- nanda Torres vai muito além disso desvelo, o escritor e a escritora
veis que há nos arcanos da memó- porque permite reconhecer, nesse podem compreender que, sendo
ria infantil”. (p. 92) tipo de narrador, a configuração confissão ou ficção, isso é o que
Essas reflexões de Candido po- de uma cumplicidade entre autora menos deve lhe importar no mo-
dem nos auxiliar no entendimento e narrador, o que representa um mento de sua escrita criativa e
da obra de Fernanda Torres, uma engenho excepcional nessa obra, que a qualidade do que constrói
vez que apresentam uma ideia cujos detalhes narrativos (ações não deve estar restrita ao conteú-
de romance que passa pelo con- dos personagens, espaços e tempos do que expressa, nem tampouco à
fessional, sem, necessariamente, narrativos) estão devidamente im- forma, mas deve abranger os dois
ser confissão, quando reconhece brincados para contar a história de aspectos numa relação dialética.
os “aspectos facilmente roman- horrores e de glórias de Mario Car- O diálogo que se propôs esta-
ceáveis que há nos arcanos da doso. Compreende-se, assim, que, belecer aqui com Fernanda Torres
memória”. A cena do Rei Lear ro- ser ou não ser a história da própria parte, portanto, de um argumen-
manceada no livro de Torres pode autora, ou seja, confissão, é o que to que envolve três ideias que se
ser interpretada, assim, como um menos importa. subsequenciam: 1. é possível não
desses “arcanos da memória” ao O que podemos depreender ser horrível quando é confissão;
qual a escritora deu corpo literá- como aspecto positivo na opção 2. porque em narrativa ficcional
rio. Vendo dessa forma, parece por uma voz masculina, para além não deve importar, apenas, a his-
não haver muito mistério nisso. de um procedimento estético que tória que se conta, ou seja, o seu
Afinal, conforme o próprio Anto- demanda uma mudança de pers- conteúdo e seus condicionamen-
nio Candido afirma: “o escritor vê pectiva bastante inventiva, é essa tos sociais; 3. e que, em obra de
o mundo através dos seus proble- imersão num universo masculino ficção, são os elementos formais,
mas pessoais; sente necessidade e, no caso específico de A glória..., os recursos narrativos e de lin-
de lhe dar contorno e projeta nos de homem branco heteronormati- guagem que atribuem a ela, tam-
personagens a sua substância, de- vo da Zona Sul do Rio de Janeiro. bém, o seu caráter estético. Com
formada pela arte” (p. 89). Para isso, Fernanda Torres lança base nessa “equação”, entende-se
É impossível dar conta dessa mão de uma ironia cortante, o que A glória... como um romance que
discussão aqui. Mas os três argu- torna seu personagem um tan- se destaca, pela sua qualidade
mentos apresentados, apesar de to atabalhoado, não só nas ações, estética, na história da literatura
diferentes e, em certa medida, so- mas nas suas reflexões mais exis- brasileira contemporânea. I
bre fenômenos literários diferen- tenciais. Isso, sem dúvida, confere
tes, comunicam-se no que se refere ao romance um caráter bastante
aos traços do confessional no texto inventivo ao misturar humor, iro-
ficcional e, trazê-los a essa discus- nia e dor, pois é pelos sentimentos Analice Pereira é professora de
são, é uma forma de embasar um e reflexões do próprio narrador, Língua Portuguesa e Literatura
Brasileira do Instituto Federal
portanto, pelo seu ponto de vista de Educação, Ciência e Tecnologia
4 CANDIDO, Antonio. Ficção e confissão:
narrativo, que perpassam as ações, da Paraíba (IFPB). Escreve sobre
ensaios sobre Graciliano Ramos. 4 ed. Rio de sentimentos e reflexões dos demais literatura e, vez ou outra, aventura-se
Janeiro: Ouro sobre Azul, 2012. personagens. Provavelmente, a pela ficção. Mora em João Pessoa (PB).

44 | João Pessoa, setembro de 2020 Correio das Artes – A UNIÃO


P O E S I A

Jefferson Araújo de Lima

Ilustração: tonio
Girafa
Modelo de inspiração
De que devemos sonhar alto
Mas manter os pés no chão.

Lua cheia
Beleza em forma de esfera
O abajur de Deus
A luminária da Terra.

Chuva
A tinta incolor
Que Deus usa
Para colorir
O meu jardim.

Bolas de gude
Planetas de vidro
Que se colidem
Nas trajetórias criadas
Por seus deuses-meninos.

O poeta
O poeta é um artesão das palavras Jefferson Araújo de
Sílaba a sílaba cria nas mãos Lima é natural da cidade
de Sapé-PB, tem 24 anos,
Um universo de metáforas é poeta em iniciação e em
devir, e é aluno do curso
de Letras/Português da
O poeta tricota com proeza UFPB, Campus I.

O velho e patético mundo


Que nos rodeia.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, setembro de 2020 | 45


6 conto

Varrendo
no burro. Talvez na próxima
tenhamos novidades.
Às 11h e meia mais um
toque na campanhia: era o
vendedor de vassouras. Um

a vida homem alto de pele escura,


usava um face shield, vestia
uma camisa de futebol de time
Foto: Jesuíno andre desconhecido e carregava um
Jesuíno André molhe de vassouras.
Especial para o Correio das Artes – Quanto é a vassoura? Tô
precisando de uma.
– 25 reais.
Hoje a manhã foi bastante mo- Enquanto escolhia per-
vimentada.  guntei:
Lá pelas 9hs a campanhia to- – Você vem de onde?
cou. Imaginei quem seria. Corri – Santa Rita.
antes para cozinha, separei a – E essa vassoura é feita pelo
garrafa de água congelada e um Val? - vi na manga da camisa a
pacote de biscoito. Depois fui na propaganda Val Vassouras.
janela da frente e vi que era ele. – É não. Ele não vende mais
– Diga aí?! - falei grosso. Sem- não. Essa camisa era do time
pre faço isso para manter a pos- de futebol de salão que eu jo-
tura, mas não nego a ajuda. gava e a loja dele patrocinava.
– Ei pai, me arrume uma água! – E o time acabou?
Era o mesmo rapaz dos dias – Não. Agora é futebol de
anteriores no mesmo horário e campo.
com os mesmos pedidos. Esse ví- – E o Val deixou de vender
rus do momento é café pequeno – Sou eu Reginaldo! - era vassoura?
diante da doença da indiferença um velho conhecido na men- – Deixou!
e da persistente ignorância. dicância. – E o que foi? Quebrou na
– Um momento, vou ver o que Aparece vez ou outra e emenda?
posso fazer. - já ouvi algumas me sempre com novidade. – Não. Foi a cachaça!
aconselhando a não fazer nada, – Diga aí o que você quer? – E foi?
mas na minha idade tento ser li- – Comprei uma carroça de – Só quer saber de tomar
vre, pelos menos na mente. burro e tô precisando de 35 cachaça. A cachaça só faz mal
Fui pegar o que tinha separa- reais para ajeitar o pneu. - ele quando é muita - ponderou
do. Voltei e lhe entreguei o que sempre é direto no assunto.  com firmeza.
foi pedido. Não abri o portão, É pobre de Jó. Desconfiei do – Pois é, quando é pouca
ainda sou do grupo de risco. Só pneu, da carroça e do burro. faz até bem. - concordei na
não sei de qual lado. – E pra que comprou a car- simpatia.
– Obrigado pai! - a saudação roça? - ensaiei inocência. Paguei o valor e ainda per-
é a mesma, mas não sou paterno – Pra trabalhar! guntei:
nem para mim. O sujeito com um – Tudo bem. E cadê o burro? – Ainda vai rodar muito?
boné, magro, de dedos sujos pelo – Ainda vou comprar. É – Só mais uma hora, depois
vício e um olhar sem brilho, só caro, sai pra uns 500 reais. vou pra casa. Com esse vírus
faz pedir. – E onde você vai deixar ninguém sai e depois do almo-
– Tudo bem. - respondo lacôni- essa carroça e o burro? ço tá todo mundo descansan-
co, não há perguntas. – Na frente de casa, amarra- do ou dormindo.
– Que Deus lhe abençoe! - dis- do numa corrente. Ainda bem que tava termi-
se e foi embora. Dei-lhe 12 reais para con- nando a manhã. Assim teria
Nem deu meia hora e mais sertar o pneu e prometi ajudar meu merecido descanso. I
uma  tocada na campanhia. Os
parentes e amigos não aportam
mais. Na certa, outro pedinte.
Demoro a ir atender e a insistên-
cia do chamado. Jesuino André de Oliveira nasceu no interior da Bahia e mora em João Pessoa
(PB) desde os anos 1980. É redator-publicitário, produtor cultural e editor
– O que é? - lá vou eu com o do podcast MeuSons. Publica suas crônicas nas redes sociais: Instagram: @
mesmo tom. jesuinoaoliveira; Twitter: @jesuinoandre.

46 | João Pessoa, setembro de 2020 Correio das Artes – A UNIÃO


6 artigo

Alcalá
e Taperoá:
Ariano e O Final Perfeito de
‘Dom Quixote de La Mancha’
Thélio Queiroz Farias
Especial para o Correio das Artes

O
fotos: reprodução
Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de “...o sonho que
La Mancha, cujo primeiro volume foi converte Alonso
publicado em 1605, do escritor espa- Quijano em Dom
nhol Miguel de Cervantes, é um dos Quixote de La
maiores clássicos do planeta, um dos Mancha não consiste
livros mais importantes de toda a em re-atualizar o
passado, mas em
história, traduzido em mais de 70 lín-
algo ainda muito
guas e com mais de três mil edições.
mais ambicioso:
Em 2002, o Instituto Nobel promoveu realizar o mito,
uma eleição, tendo Quixote vencido o transformar a ficção
título de “maior obra da literatura de em história viva”
todos os tempos”, com mais de 50% (Mário Vargar Llosa,
dos votos. Cervantes, nascido na ci- escritor peruano,
dade de Alcalá de Henares, é consi- premio Nobel de
derado o pai do romance moderno e Literatura/20101).
a obra continua a ser publicada, lida,
debatida e elogiada, mesmo após
mais de 400 anos de sua publicação.
O filósofo Miguel de Unamuno consi- “Dom Quixote é uma obra tão original que
dera Quixote como a “Bíblia espanho- quase quatro séculos depois continua a ser a
la” e que “nosso senhor Dom Quixote obra de ficção em prosa mais avançada que exis-
é um autêntico Cristo”. O crítico lite- te. E mesmo assim é subestimada: é ao mesmo
rário Harold Bloom escreveu sobre o tempo o romance mais legível e, definitivamen-
livro, asseverando: te, o mais difícil.”2 c

1
Citado no texto de Vargas Llosa, publicado como apresentação da Edição do IV Centenário,
intitulado “Uma Novela para el Siglo XXI” (Don Quijote de La Mancha, edición del IV centenário,
ed. Alfaguara, Madri, 2005).
2
In O Cânone Ocidental, Ed. Objetiva, Rio de Janeiro, 2010.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, setembro de 2020 | 47


c Eu particularmente adoro Entretanto, alguns leitores, eu Quixote volta para casa quan-
(amo!) Dom Quixote e toda obra inclusive, consideram o final do do vencido em batalha por outro
de Cervantes, que considero livro muito desalentador, com a Cavaleiro da Branca Lua e é força-
inigualável, tanto que passei a derrota dos sonhos, nocauteados do a abandonar sua luta, lamen-
colecionar edições do livro, pos- pela lucidez súbita de Alonso tando que “aqui se escureceram
suindo mais de 100 exemplares Quijano. Não sei se a conclusão as minhas façanhas; aqui, enfim,
distintos, muitos dos quais em da obra se deu para tentar driblar caiu a minha ventura, para nun-
idiomas como japonês, hebrai- a censura da Inquisição espanho- ca mais se levantar”. Longe da
co, árabe, chinês, coreano, viet- la, que era profundamente rigo- cavalaria e de seus sonhos, Dom
namita, croata, tailandês, dentre rosa e certamente autorizou a Quixote fica doente, também de-
outros. A forma que o livro foi publicação em virtude das aven- primido, e acaba falecendo. Nos
escrito, as histórias intercaladas, turas serem de um homem louco, instantes finais de sua existência,
a intertextualidade e, especial- que no final reconhece seus erros recupera a consciência, deixa de
mente, a mensagem humanística e sua insanidade. Cervantes co- lado a loucura-sonhadora e pede
de fé nos sonhos exercem, sobre nhecia bem a burocracia ibérica, perdão por seus atos aos amigos
mim, uma atração irresistível. tinha astúcia para tal. Essa pos- e familiares. Sancho, exemplo de
Corroboro com o pensamento de sibilidade não retira a marca de- lealdade, fica ao seu lado, até o
outro gigante da literatura, o rus- cepcionante nas últimas linhas último suspiro.


so Fiódor Dostoiévski: de El ingenioso Hidalgo don Quijo- A escritora catalã Ana Ma-
te de La Mancha. ria Matute (1925-2014), tercei-
ra mulher a receber o Prêmio
Essa decepção com o final do Cervantes e considerada como
Cavaleiro da Triste Figura é com- uma das maiores romancistas
partilhada por grandes escrito- do pós-guerra, confessor que “o
Não existe nada mais pro- res, como o peruano Mario Var- Quixote foi o primeiro livro com
fundo e poderoso do que este li- gas Llosa, agraciado com o Nobel que chorei, com a morte de Dom
vro. Representa até hoje a mais de Literatura em 2010, como bem Quixote, por tudo o que signifi-
grandiosa e acabada expressão da analisa Eduardo César Maia Fer- ca: deixar a loucura desaparecer.
mente humana. Se o mundo aca- reira Filho: Isso é terrível. O triunfo da sen-
basse e no Além nos perguntas- satez”6 em detrimento da utopia


sem: ‘Então, o que você aprendeu de todo o restante do livro.
da vida?’, poderíamos simples- Eu sempre sonhei com o Qui-
mente mostrar o D. Quixote e xote com um final épico, gran-
dizer: ‹Esta é a minha conclu- dioso. Encerrar a leitura do livro
são sobre a vida. E você? O Dom Quixote, mantendo acesa a
que me diz?”3 chama da esperança no sonho e
“A ilusão de Dom Quixote, na utopia. Agora, ao ler Romance
(...) – sua fome de irrealidade – é de Dom Pantero no Palco dos Peca-
Machado de Assis, numa crô- contagiosa e propagou ao seu re- dores7, tal qual a obra de Cervan-
nica de 1876, publicada em His- dor o apetite de ficção” (VARGAS tes, dividida em dois livros: O
tória de Quinze Dias4, escreveu LLOSA, Quixote; XVIII). Não Jumento Sedutor e O Palhaço Tetra-


sobre o personagem principal de obstante, o fim dessa ‘loucura’, ou fônico, deparei-me com o escritor
Cervantes: seja, passar a ver a realidade tal paraibano Ariano Vilar Suassuna
qual ela se apresenta para o senso (1927-2014) discordando do final
comum, significou, para o pro- do livro imortal e idealizando
tagonista, a morte. Vargas Llosa um novo deslinde para a história
chega a sugerir que há algo de do Cavaleiro da Triste Figura.
inverossímil no final do livro, no Ariano Suassuna ficou co-
...amos ri de ti, outra vez, ge-
momento em que Alonso Quijano nhecido como o “Dom Quixote
neroso cavalheiro; vamos ri de tua
abandona a fantasia quixotesca, arcaico”, e tinha muito orgulho
sublime dedicação, Tu tens o pior
renunciando à loucura e voltan- de assim ser chamado. Admi-
que pode ter um homem em todos,
do à realidade “quando esta, ao rava profundamente Miguel
sobretudo nesse século – tu és qui-
seu redor, já está mudada, em de Cervantes e considerava as
mérico, tu não vives da nossa vida,
boa parte, em ficção” (VARGAS histórias do fidalgo da Mancha
não és metódico, regular, pacato,
LLOSA, Quixote: XVI).”5 o maior livro de todos os tem-
previdente; tu és Quixote. “
pos, o romance dos romances. c

5
3 No ensaio “Mario Vargas llosa lê Dom
Citado na edição de Dom Quixote da editora 34 (bilíngue), com tradução de Sérgio Molina e Quixote”, publicado em “Perspectivas y
apresentação de Marua Augusto da Costa Vieira (São Paulo, 2016). Análisis sobre Cervantes y el Quijote,
4
Em julho de 1876, Machado iniciava uma série de crônicas quinzenais na Revista Illustração organização de José Alberto Miranda Poza,
Brasileira, para qual deu o título de “História de Quinze Dias”. Escreveu ininterruptamente até ed. Coleção & Letras, edição eletrônica do
abril de 1878, quando mudou de nome para “História de Trinta Dias”. A edição que tive acesso Programa de Pós-Graduação em Letras,
foi publicada pela Editora da UNICAMP, tendo como organizador Leonardo Affonso de Miranda Universidade Federal de Pernambuco,
Pereira (Campinas-SP, 2009). Recife, 2010.

48 | João Pessoa, setembro de 2020 Correio das Artes – A UNIÃO


foto: reprodução

c O paraibano confessou numa veu em Dom Pantero, seu livro-


crônica publicada em 6 de ju- -testamento.
lho de 1999, na Folha de São Assim, Ariano Suassuna ou-
Paulo, que “tenho pelo grande sou refazer o deslinde do livro
autor espanhol do século 17 Dom Quixote. Fê-lo como queria
uma admiração quase obsessi- que fosse, na forma que sonhava
va”. “Mas também, com todo ler, desde que conheceu a obra
respeito”, ressaltava sua “dis- pela primeira vez nos seus dezes-
cordância que sempre mantive sete anos. Escreveu da seguinte
em relação ao fim destinado forma o final das aventuras do
por Cervantes ao Cavaleiro da cavaleiro-fidalgo das terras ári-
Triste Figura”, conforme escre- das de La Mancha:

“ “Como as coisas humanas não são eternas e vão sempre em declina-


ção desde o princípio até seu último fim, especialmente a vida humana;
e como a de Dom Quixote não tivesse privilégio do Céu para deixar de
seguir o seu termo e acabamento, veio-lhe uma febre que o teve seis dias
de cama, sendo visitado muitas vezes pelo Cura, pelo Bacharel e pelo Bar-
beiro, seus amigos, sem se lhe tirar da cabeceira o seu bom Escudeiro,
Jornal chama
Ariano de
“Quixote
Sancho Pança. brasileiro”

Ao anoitecer do sexto para o sétimo dia de sua doença, seus amigos


chamaram o Médico; tomou-lhe este o pulso e disse-lhe que, pelo sim, pelo Em 23 de julho de 2014, a onça
não, cuidasse da salvação da sua alma porque a do corpo corria perigo. Caetana8 abraçou Ariano. Ele dei-
xou o mundo de ossos e carnes,
Ouviu-o Dom Quixote, que logo se confessou com o Cura, a que fez subiu ao Reino do Encantamen-
de ânimo sossegado; mas não se portaram da mesma forma a Sobrinha to. A Compadecida fez questão
e Sancho, que principiaram a chorar ternamente, como se já o tivessem de recebê-lo, encaminhando-o ao
morto diante de si. Baronato Divino dos Escritores e
Poetas. Lá, foi abraçado por um
“Dom Quixote pediu que o deixassem só, porque queria dormir um maneta espanhol que andava
pouco naquele começo de noite. Obedeceram-lhe e saíram, fechando a com dificuldades. Sim, era Mi-
porta. Mas ele, assim que se viu só, levantou-se com dificuldade, tomou guel de Cervantes Saavedra. Os
a Armadura e a Lança, pulou a janela, vestiu a primeira, empunhou a dois falaram com sorrisos. Aria-
segunda e, arrastando-se, conseguiu chegar à Estrebaria, onde Rocinante no disse: “- Gostou do novo final
cochilava. que dei ao seu Quixote!”. Miguel
respondeu: “Sí... es la versión de
Arreou o Cavalo, montou-o e, andando a passo, chegou à Estrada, um lugar em Cariris Velhos, cuyo
onde estacou, de Lança em riste, esperando que lhe aparecesse algum Gi- nombre no quiero recordar.”
gante a enfrentar, alguma injustiça contra o qual lutasse, para levar até o Gargalharam! O riso a cavalo e o
fim a generosa e bela Empresa à qual dedicou toda sua vida. galope do sonho continuam firme
e forte nos territórios áridos e pe-
Ali, ao amanhecer, Sancho, com seus preocupados parentes e amigos, dregulhos da Mancha espanhola
foi encontra-lo morto, montado, de Lança em punho, com os primeiros e do sertão paraibano. Talvez por
raios do Sol a lhe iluminares o rosto magro por uma ‘estranha luz de isso, Alcalá rime com Taperoá... I
devaneio’ – como chegou a dizer o Cura, afastando-se, por um instante,
de seu tacanho bom senso habitual, o que somente fora possível graças à
indômita coragem do Cavaleiro, fiel a seu insano mas generoso Sonho até Thélio Queiroz Farias é advogado
diante da Morte.” militante. Possui 15 livros publicados.
Foi membro-consultor da Comissão de
Estudos Constitucionais do Conselho
Federal da OAB e Presidente da
Comissão de Filosofia e de Literatura
e Direito da OAB/Paraíba. Integra
a Confraria dos Bibliófilos do Brasil
(CBB), União Brasileira dos Escritores
6
El País: https://elpais.com/elpais/2014/06/25/icon/1403703145_880287.html. No original: (UBE), da Academia de Letras de
“El Quijote es el primer libro com el que he llorado, com la muerte del Quijote, por todo lo que Campina Grande (ALCG), Instituto
significa: El dejar que la locura desaparezca. Eso es terrible. El triungo de la sensatez”. Histórico do Cariri Paraibano,
7
Romance de Dom Pantero no Palco dos Pecadores, ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2017. Instituto Histórico de Geográfico
8Na tradição do cancioneiro popular do Nordeste brasileiro, a morte é chamada de “Caetana”, de Areia (IHGA), dentre outras
uma mulher, ou da “onça Caetana”, figuras que são constantes na obra de Ariano Suassuna. instituições.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, setembro de 2020 | 49


6 cantinho do conto
Rinaldo de Fernandes
rinaldofernandes@uol.com.br

Mulher no
acostamento
S
ão duas da tarde. Uma mulher solitária caminha no acostamento. Carrega
uma mochila esfrangalhada e segue com os pés toscos, numas chinelas em-
poadas. Uma mulher que, olhando para a frente, não vê a montanha que
margeia a estrada. Uma mulher que, vista contra a montanha, é apenas
uma miniatura. Uma rocha de pernas curtas. Pisa brusco nas pedras, edita
poeiras. Tem na cabeça um lenço amarelo - labareda de língua grossa. Tem
uns joelhos de quebrar o sol. O casal que mora no casebre, curioso, a obser-
va. O casal nunca a viu por ali. Ela veio da curva mais distante, onde, à su-
bida, os caminhões fervem fumaça escura. De onde evaporou a mulher que
caminha como quem interroga o fundo da estrada? O casal agora espia os
gravetos do acostamento. Há estalos que faíscam? O casal não sabe, desco-
nhece de que vento a mulher marchou. Mulher que em breve irá sumir na
curva de altas árvores à frente, contornar a sombra da montanha. Mulher
cujo rastro será cama para ínfimos insetos. A mulher irá sumir – e as rochas
desse fim de mundo continuarão rochas, respirando para melhor endure-
cer. E a luz de sangue do casebre, único ali ao pé da montanha, continuará
nas madrugadas sendo lambida pelos morcegos.I

Rinaldo de Fernandes
é escritor, crítico de literatura e professor da Universidade
Federal da Paraíba. Mora em João Pessoa (PB).

50 | João Pessoa, setembro de 2020 Correio das Artes – A UNIÃO

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