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Dos filmes

que ainda
não fizemos

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Dos filmes
que ainda
não fizemos
Dos filmes
que ainda
não fizemos
organição

Rober Corrêa

escrito por

Flávio Voight
Clóvis Brondani
Fabiana S. Beltrame
Vanessa Bertoncello M.
Eduardo Ramos C.
Eliane Belani
Darci Zuffo
Angelo Brocco
Sharon Caleffi
produção
Tamara Alff
organizador
Rober Corrêa
consultorias
Denise Maria Bueno Ponzoni
Flavio Voight
Sharon Caleffi
revisão
Denise Maria Bueno Ponzoni
ilustrações
Camila do Rosário
projeto gráfico
Carolina Secco

Primeira edição. mês de 2020


Primeira impressão, mês de 2020

Direitos autorais tal e tal

dosfilmesqueaindanaofizemos@gmail.com

Ficha catalográfica
alizaram a expectativa do devir-filme. Não procuramos nas ofi-
cinas que guiaram a produção das obras, explorar o devir-filme,
mas sim o devir-roteiro. Um roteiro cinematográfico não ne-
cessariamente precisa ser rodado para "cumprir seu papel".
Um roteiro cinematográfico pode conter - e contém - em si
sua própria potência literária (seja na forma, no estilo, no em-
prego de figuras de linguagem, nos diálogos ou mesmo nas ru-
bricas). Pode existir poesia mesmo em uma rubrica! Da mesma
forma, um único roteiro pode gerar centenas de filmes dife-
APRESENTAÇÃO rentes. Não existe também uma maneira exclusiva de escre-
ver roteiros de cinema e o padrão hollywoodiano de master
Há quem afirme que o roteiro de audiovisual não passe de uma scene, apesar de hegemônico, não representa nem a única nem
"receita de bolo" ou uma mera ponte entre um argumento e um mesmo a mais adequada forma de escrita, se pensarmos que o
filme. Há ainda quem defenda seu caráter absolutamente fun- cinema não necessariamente deve ser arte industrial.
cional, de simples guia e literariamente estéril. Existe ainda Nessa perspectiva, alguns pontos do debate encontram-se
quem postule sobre a impossibilidade do roteirista converter- pacificados. O próprio Ministério da Educação já concebeu o
-se em poeta, por não poder recorrer à elementos de lingua- roteiro como um dos gêneros possíveis em um concurso lite-
gem como a metáfora, símile, assonância, aliteração, ritmo ou rário promovido em 2005 e, no ano corrente, diversos entes fe-
rima (sob prejuízo da subversão de sua pragmática). O roteiro derados contemplam o roteiro cinematográfico em prêmios de
deve, segundo essa visão, conter toda a substância da litera- literatura através da Lei Aldir Blanc, como é o caso do próprio
tura sem de fato sê-la, pois de um trabalho literário espera-se estado do Paraná.
a completude em si mesmo, ao passo que um roteiro esperaria É certo que a produção cinematográfica se concentra nos
uma câmera. grandes centros, por questões principalmente técnicas e finan-
Partimos aqui de uma premissa oposta, mesmo que contra- ceiras. Ao fazermos um levantamento da produção cinemato-
majoritária, através da pergunta: "Onde habita a literatura?". gráfica no sudoeste paranaense, percebemos que ela é inci-
Contemporaneamente, muitos autores vêm desenvolvendo piente e por vezes nula. Assim, a preocupação com a escrita de
a ideia do roteiro cinematográfico também como literatura. roteiros cinematográficos se faz pouco presente e a proposta
Essa transformação é próxima à legitimação que a peça de tea- em tela é uma oportunidade tanto de explorar as temáticas re-
tro passou a possuir ao canonizar-se também como gênero li- gionais e a cor local quanto de abertura para que os autores lo-
terário. Por que, então, um roteiro cinematográfico não possui cais desenvolvam seu potencial técnico e narrativo.
"elementos literários" suficientes para compreender-se como O processo de construção dessa obra contou com uma sé-
literatura? rie de encontros, presenciais e virtuais, de técnicas narrativas
Existem centenas de filmes que não foram feitos. Milhares de para elaboração de roteiros audiovisuais e também de editora-
roteiros cinematográficos, engavetados ou não, que jamais re- ção de livros. A primeira parte, consistiu em oferecer aos parti-
cipantes o entendimento das condições formais, hegemônicas
e industriais daquilo que se configura como "padrão" de escrita
para audiovisual, para depois desconstruí-las e, por que não,
subvertê-las. Os participantes do curso interessados em publi-
car as peças que compõem a presente obra passaram então por
um longo período de maturação das ideias, através de consul-
torias com leitores e pareceristas qualificados. A segunda parte
dos trabalhos abordou técnicas de diagramação e editoração
de livros, de modo a possibilitar que não apenas essa, mas tan-
tas outras obras possam ser criadas e replicadas na região. NOTA DA PRODUTORA
Durante o processo de diagramação, optamos por respeitar “Dos filmes que ainda não fizemos” é o resultado de alguns
ao máximo as escolhas formais de cada autor, de modo a va- porquês.
lorizar o texto como matéria concreta, com escolhas próprias O porquê ao qual me compete falar, trata-se da resposta ao
a cada autor, sem negligenciar um corpus coerente que per- convite de participar desse projeto como produtora cultural.
passa por todos os textos. Por fim, após o árduo trabalho de Percebi uma importante oportunidade de disponibilizar co-
toda a equipe e participantes do programa, entregamos à co- nhecimento técnico e novas experiências para o público local a
munidade de leitores "Dos filmes que ainda não fizemos", que partir de um elemento que é tão importante para produções ar-
para além de um livro é também um documento histórico que tísticas, o roteiro.
revela camadas do espírito do tempo presente em nossa região. Desde a inscrição do projeto no Prêmio Funarte Descen-
trarte, visualizei que o conteúdo repassado e desenvolvido du-
Rober Corrêa rante as oficinas trariam benefícios de ordem prática, intelec-
tual e social para a comunidade patobranquense.
Como produtora, realizo e planejo ações que buscam a troca
de saberes e que, para além dos embasamentos técnicos, pos-
sam nos mostrar que as experiências de vida de cada um, são
matéria-prima para qualquer atividade que desempenhamos
em nossas vidas.
Creio que em conjunto de toda a equipe e dos participan-
tes do projeto, foi possível concretizar o proposto. O resultado
é um pouco de cada pessoa neste livro, que agora está pronto
para transpor o tempo e o espaço, alcançando outros olhos e
mentes.

Tamara Alff
sua participação para atuar como consultora nesta iniciativa. Passado
tantos anos, esta professora foi lembrada e ficou imensamente emocio-
nada com o convite e, com a voz embargada, aceitou. Quando desliga o
telefone, diz para si mesma: “Fiz a escolha certa ao ser professora e este
meu aluno fez a opção certa ao escolher o Cinema”.

É... quem sabe esta história poderia estar em um roteiro de ci-


nema, com ações e personagens envolventes, histórias instigantes,
comoventes, tendo como temas a escolha da profissão, a dedicação,
PARTILHAR PARA CONSTRUIR o estudo, as parcerias, e principalmente a presença da arte na for-
mação humana.
Era uma vez uma professora de língua portuguesa que se aposentou
Durante a minha trajetória acadêmica e profissional, deparei-me
com o coração sereno, tranquilo, com a sensação de dever cumprido.
com diferentes tipologias textuais, tanto na verificação como
Esta professora atuou em todos os níveis de ensino, desde a pré-es-
na produção dos mais variados textos e confesso, não havia me
cola até os cursos de pós-graduação. Mas ela costumava dizer toda
dedicado à leitura, aos estudos, à verificação de roteiros como “Dos
animada que “o seu chão era o Ensino Médio”, e se realizava com os Filmes que Ainda Não Fizemos” proporcionou durante este ano
colegas de trabalho, com os quais organizava as mais variadas ati- conturbado de 2020.
vidades de língua portuguesa e literatura para aplicá-las em sala de Foi um ano perturbador para todos nós e, em contra partida, foi
aula, juntamente com os seus alunos. Teve a felicidade de trabalhar um ano de muito aprendizado. Enquanto o abraço, os encontros, os
em uma instituição de ensino que proporcionou (e proporciona) a afetos e afagos fizeram falta, a arte do cinema se fez mais que ne-
inovação, o ensino com pesquisa, o aprendizado e a construção do co- cessária. Mesmo que inconsciente para alguns, o cinema em casa
nhecimento como tarefas coletivas, dialógicas, imprescindíveis para nos ajudou a nos manter em contato com o “lado humano” exis-
a formação humana. E no ensino médio, dentre as atividades de lín- tente em todos nós.
gua portuguesa e literatura, a arte da palavra esteve sempre pre- Participar em “Dos Filmes que Ainda não Fizemos” foi desafia-
sente, através da poesia, da crônica, do conto, do romance, do teatro, dor, pois durante a minha atuação profissional, os romances, a po-
esia, o poema, os textos técnicos e acadêmicos eram uma rotina, e
do cinema... Mas chegara o momento de optar: aposentar ou não. E
vez e outra havia apenas a leitura de texto dramático. A princípio,
a aposentadoria veio para proporcionar a outras professoras e pro-
a empolgação abriu espaço para a preocupação, mas esta durou
fessores essa mesma realização profissional através da licenciatura.
pouco tempo. Rober e Tamara disponibilizaram um valioso mate-
E eis que um dia, passados cinco anos de sua aposentadoria, esta
rial de leitura em uma Pasta Compartilhada através do e-mail com
professora recebe o telefonema de um aluno seu do Ensino Médio, todos os envolvidos no projeto. Roteiros de curta e de longa-metra-
convidando-a para participar de um projeto de oficina de roteiro, gem, guias de filmes, livros como o “Manual de Roteiros”, de Syd
pois ele, graduado em História e Cinema, está produzindo com sua Field, “Me alugo para sonhar”, de Gabriel Garcia Marques, “A jor-
equipe o projeto “Dos Filmes que Ainda Não Fizemos” e gostaria da nada do escritor”, de Christopher Vogler, “A linguagem secreta do
cinema”, de Jean Claude Carrière, entre outros títulos, expandiram
os horizontes de leitura e me fizeram voltar um olhar ainda mais
significativo para a arte cinematográfica. Aflorou em mim uma
nova perspectiva para a leitura de textos, em especial, para a leitura
de roteiros de cinema, aflorou a relevância que o texto cinemato-
gráfico representa e que passa despercebido (e até mesmo esque-
cido) nos conteúdos escolares.
Acredito que, tanto a leitura das bibliografias, quanto os encon-
tros virtuais, as consultorias e a verificação dos textos expandiram
as leituras de mundo de todos os envolvidos neste projeto e o resul-
tado é a publicação deste trabalho para que os seus leitores sejam
convidados a também expandirem os seus horizontes e percebe-
rem que é imprescindível a leitura, o estudo, o aprendizado desta
produção textual, a qual tivemos a oportunidade de conhecer gra-
ças a “Dos Filmes que Ainda não Fizemos”.

Gratidão,
Denise Maria Bueno Ponzoni
na ponta dos dedos laura
Vanessa Bertoncello M. ou
& Fabiana S. Beltrame do medo e desejo
Eliane Belani
p. 18

p. 12

pressão popular
ou nem pombos... nem amores
os limites da liberdade artística
Darci Zuffo
Clóvis Brondani

p. 12
p. 12

bibinho
Flávio Voight

p. 12

praia vazia
Eduardo Ramos C.

p. 12
PERSONAGENS

BERENICE ALBUQUERQUE. 70 anos. Tia-avó materna de Júlia.


Robusta e com poucos fios de cabelos brancos, apesar da idade.
Seus olhos são negros e sua sobrancelha é tatuada. Fumante
contumaz. Escritora que mora em Nova Iorque. Quando não está
sendo irônica está de mau humor, às vezes é os dois.
JÚLIA DOS SANTOS. 22 anos. Pianista. Seus cabelos são loiros e
encaracolados. Possui algumas sardas em suas faces rosadas, o
que a torna ainda mais encantadora. É dona de um par de olhos
esverdeados que lembram duas esmeraldas. Trabalha em uma
floricultura, em Curitiba. Por onde passa, sua energia irradia
uma alegria sincera e contagiante. Quem está ao seu lado sente-se
bem e vê nela uma amiga. Sua mãe foi embora quando Júlia era
criança.
ROBERTO DOS SANTOS. 43 anos. Pai de Júlia. Morreu de câncer
de pulmão, que adquiriu por ser fumante. Sempre foi um grande
incentivador de Júlia.
ALICE. 23 anos. Melhor amiga de Júlia. Trabalha em um banco,
também na cidade de Curitiba. Tem como hobby viajar.
CLARICE ALBUQUERQUE. 67. Avó materna de Júlia e irmã de
Berenice. Confeiteira. De estatura baixa e delicada, sempre
sorridente.
VITÓRIO. 70 anos. Avô materno de Júlia. Aposentado. Apesar de
gentil, está sempre com um semblante sério em seu rosto. É um
homem de poucas palavras.
DIEGO. 22 anos. Primo de Júlia por parte de mãe. Administrador
dos negócios da família. Vive em função de seu trabalho.
TIA FERNANDA. 39 anos. Tia materna de Júlia e mãe de Diego.
Enfermeira. Sempre bem-humorada, é conhecida por apaziguar
na ponta dos dedos os conflitos familiares.
TIA AMÉLIA. 45 anos. Tia materna de Júlia. Dona de casa. Não tem
afeição pela sobrinha. É conhecida como a tia “barraqueira” da
Vanessa Bertoncello M. família e fala sempre gritando.
& Fabiana S. Beltrame

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.
TIO JOÃO. 42 anos. Tio materno de Júlia. Casado com tia Amélia. JÚLIA
Trabalha em uma empresa de software. Tem como hobby cavalgar A senhora não devia ainda fumar tanto, lembra do que o médico
nos fins de semana. te disse?
TIA ROSE. 40 anos. Tia de Júlia. Cozinheira. Casada com tio Carlos, BERENICE
tem uma filha adulta com ele. Suas duas maiores paixões são sua Eu não te chamei para se meter na minha vida e sim para me
família e cozinhar. ensinar a tocar Bach. Se eu morrer, morro feliz. Não fumaria um
TIO CARLOS. 45 anos. Tio materno de Júlia. Casado com tia Rose.
cigarro a menos só para viver mais.
Trabalha como técnico em segurança do trabalho. É doente por JÚLIA
futebol, e adora os churrascos de domingo com a família. Mortos não tocam piano.
JÚLIA CRIANÇA. 7 anos. Gorducha de cabelos curtos.
Júlia encara a parede oposta do quarto com o semblante carregado
MOTORISTA. 46 anos. Motorista particular de Berenice. de melancolia.
NARRADOR. Voz de mulher.
JÚLIA
A senhora não se sente sozinha?
CENA 1
NOVA IORQUE / QUARTO DE BERENICE / INTERNA / DIA Berenice entrega o copo e se ajeita na cama.

O quarto é pintado de um cinza claro. Perto da cama há uma BERENICE


mesa em que pode se ver um romance de João Guimarães Rosa. Tirou o dia para importunar mesmo, você parece a sua
Berenice está sentada na cama com dois travesseiros nas costas, vó  —  O gato pula na cama e deita ao lado de berenice. Berenice
enquanto Júlia alcança um copo d’água. A senhora vira o rosto suspira.  —  Não me sinto sozinha, tenho meu gato e tenho minhas
ignorando-a. lembranças. Quando a solidão bate, elas me fazem companhia. Não
BERENICE
tenho medo de morrer, aguardo ansiosa esse dia chegar. Por isso,
Não quero tomar — Tosse. — O médico que vá para o inferno com fumo bastante e escrevo pouco. Sabe, não quero deixar nenhum
essas porcarias. Tomo isso todo dia e não resolve em nada. texto inacabado para quando publicarem minha obra póstuma, e
muito menos meus cigarros para outra pessoa fumar.
JÚLIA
JÚLIA
Como a senhora é teimosa! Percebi que eles estavam na pia do
banheiro da mesma maneira que estavam ontem, e antes de Bem, se continuar assim, as notas musicais serão a única coisa
ontem e na semana passada. que aprenderá antes de morrer.

Júlia tenta mais uma vez alcançar o copo, mas é ignorada Berenice sorri e fecha os olhos. Júlia balança a cabeça e sai.
novamente. Solta um suspiro e senta na cama. Berenice a observa
por cima dos óculos e começa a tossir, após isso, faz um sinal com
CENA 2
a mão para que Júlia alcance a água.
ELEVADOR / INTERNA / DIA

Júlia encara seu reflexo no espelho do elevador. As portas

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de inox com abertura central se abrem uma para cada lado, Júlia faz o sinal da cruz. Ao virar-se, Júlia percebe uma mulher de
automaticamente, e ela permanece parada ali dentro por alguns preto e óculos escuros sentada longe de todos. Os cabelos presos
segundos. em um coque firme. A mulher tira os óculos e olha para Júlia
franzindo a testa. Júlia se vira novamente e encontra Alice, sua
JÚLIA
melhor amiga. As duas se abraçam.
Acho que estou tendo um déjà-vu!  —  Júlia apoia-se no espelho
do elevador e fecha seus olhos. Abre-os lentamente.  —  Parece ALICE
que estou de novo pela primeira vez aqui  —  Júlia arregala os Júlia, eu sinto muito. Como você está, meu bem?
olhos.  —  Nossa! Como passaram rápido esses anos.
JÚLIA
Tentando compreender isso. Ontem mesmo ela ligou me
FUSÃO PARA FLASHBACK convidado para almoçar no sábado. Não entendo o porquê dessas
coisas acontecerem.
CENA 3
ALICE
CURITIBA / FLORICULTURA / INTERNA / NOITE
Eu quero que saiba que estou aqui para o que precisar. Agora
Júlia está atendendo uma senhora. Há alguns clientes que venha aqui e me dê mais um abraço.
conversam animados. O celular de Júlia toca, mas ela não atende.
Júlia termina o atendimento, entrega o vaso de orquídeas à Tia Amélia vai até onde o caixão está.
senhora e observa a cliente ir embora. O ambiente fica vazio.
Júlia retorna à ligação perdida de Diego ouve atentamente o que TIA AMÉLIA
Diego diz ao telefone, em silêncio. Após alguns minutos, Júlia Em alguns minutos vamos rezar a missa de corpo presente.
abre a boca e arregala os olhos, está assustada. Júlia desliga e fica Júlia encontra Diego. Ambos encaram um ao outro. Nenhum dos
encarando a praça pouco iluminada à frente. O céu está nublado. dois demonstra interesse na tia. A missa começa e Júlia olha ao
Encostada na parede, desliza seu corpo até o chão e começa a seu redor, mas não vê a mulher desconhecida.
chorar desesperadamente, apertando as laterais do corpo com as
mãos. No mesmo instante começa a chover. Ela não se levanta.
CENA 5
NOVA IORQUE / EXTERNA / NOITE
CENA 4
Nova Iorque vista de cima. Luzes iluminam a cidade. É possível
CAPELA MORTUÁRIA / INTERNA / DIA
ver o Empire State Building.
Júlia encara Clarice deitada ali. Clarice está com um rosário nas
mãos e um leve sorriso. A avó de Júlia aparenta estar dormindo.
Júlia se dirige ao caixão, e põe a mão direita sobre o corpo da CENA 6
avó. Júlia abaixa a cabeça, uma lágrima escorre. Ela começa a SALA DO APARTAMENTO DE BERENICE / INTERNA / NOITE
movimentar a boca enquanto reza uma ave-maria.
A sala está sem nenhuma iluminação. Berenice está sentada em
JÚLIA uma poltrona de couro preta. O gato está ao seu lado como de
Descanse em paz, vó. costume. A única iluminação do local são as luzes da cidade. A

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senhora está com os cabelos soltos. Termina o cigarro e o coloca no JÚLIA
cinzeiro. Meu pai morreu de câncer de pulmão.
BERENICE
BERENICE
Pensei que eu iria primeiro, irmã. Veja que ironia, você sempre Que pena  —  Para com o cigarro a alguns centímetros da boca
foi mais saudável do que eu. Só você para me fazer voltar para e franze a testa.  —  Por que isso é algo para se dizer a uma
aquele lugar. desconhecida?
JÚLIA
O gato mia e ela o pega no colo. Estou cansada de ver todos ao meu redor morrer.
BERENICE
BERENICE
Bem, acho que ver as pessoas morrerem faz parte de se estar viva.
Deve me achar louca por ficar aqui falando sozinha, mas deixa eu
É óbvio.
te contar uma coisa... minha irmã era a criatura mais pura desse
mundo. Era religiosa e acreditava na vida eterna das almas. Eu sei
Júlia encara a senhora e algo em seu rosto parece familiar. Então,
que a primeira pessoa que ela visitaria na morte, sou eu. Aliás, ela
resolve se sentar no túmulo ao lado dela.
deve estar na cozinha fazendo chá.
JÚLIA
Espero que ele não se incomode.
CENA 7
BERENICE
CEMITÉRIO / EXTERNA / DIA
Como sabe que é ele?
O caixão da avó é posto no túmulo. Júlia olha fixamente e chora.
O primo a consola. Tia Fernanda a olha com pena, enquanto tia Diz encarando Júlia.
Amélia olha para Júlia com uma expressão séria e com os lábios
cerrados. Júlia segue para a saída do cemitério com lágrimas JÚLIA
nos olhos. Anda entre lápides e passagens estreitas. Lê nomes Eu li  —  Júlia aponta para o nome na lápide.
e vê fotos de pessoas. Atravessa uma passagem e leva um susto
quando vê a mesma mulher de preto da capela. A mulher fuma Berenice ri dela e abre a carteira para fumar outro cigarro. Júlia
calmamente sentada em um túmulo qualquer. apenas suspira. Berenice acende o cigarro.

BERENICE
BERENICE
Não estou morta. Ainda. Você é a neta pianista da Clarice.
JÚLIA
JÚLIA
Eu vi a senhora lá dentro, você conhece a minha avó? Como você me conhece?
BERENICE
Berenice balança a cabeça enquanto solta a fumaça. Júlia afasta a
fumaça com as mãos e tosse. Ela amava falar de você e de seu enorme talento.

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Berenice sussurra para Júlia com a mão em concha na lateral da oportunidade como você mesma disse, Julinha, acredito. – Diego
boca. sorri para Júlia.  —  Se você se sentir confortável, vai ser na casa
da minha mãe no próximo sábado.
BERENICE
Você era a neta preferida dela. Júlia dá um sorriso tímido e segue Diego.
JÚLIA
A senhora é minha tia-avó?
CENA 8
BERENICE
CASA DA TIA FERNANDA / INTERNA / DIA
Se me chamar de tia-avó eu chuto você. Me chame de Berenice.
Todos estão conversando sem parar. Júlia encontra o avô em um
JÚLIA
canto da sala. Antes de dizer qualquer coisa ela o abraça.
Prazer em conhecê-la.
JÚLIA
Berenice se levanta e limpa a calça. Eu sinto muito. Palavras não mudam muito as coisas, não é?
VITÓRIO
JÚLIA
A vó nunca falou de você. As palavras trazem um certo conforto. Sabe, Júlia, hoje eu
perdi um pedaço meu. A última vez que me senti assim foi
BERENICE
há muito tempo  —  Ele olha para Júlia, que balança a cabeça
Não tinha motivo para falar. Eu morri para toda essa família afirmativamente.
quando fui embora. Até as gerações mais novas crescem
detestando a tia Berenice  —  Berenice ouve vozes e parece as Diego se junta a eles. Está sorrindo.
reconhecer.  —  Bem, agora preciso ir, Júlia. Tenha uma ótima
vida. DIEGO
Há quanto tempo eu não falava contigo, Julinha. Lamento que
Berenice caminha na direção oposta das vozes. nosso reencontro seja nessas condições. Nosso avô continua em
forma, não?
Júlia continua sentada na lápide, quando percebe alguém ofegante
JÚLIA
se aproximar. Ao virar-se, ela vê Diego.
Ele está ótimo.
DIEGO
DIEGO
Te achei! Gostaria de se juntar a nós em um almoço em família?
Desculpe não ter ido ao enterro do seu pai. Eu só fiquei sabendo
JÚLIA
bem depois.
Ah, não sei. Faz tempo que não falo com eles, desde
JÚLIA
que...  —  Júlia se move repentinamente e não termina a
frase.  —  Mas essa seria uma boa oportunidade. Está tudo bem.

DIEGO
Júlia está com olheiras e com a cabeça baixa. Aparenta estar
Eu entendo  —  Diego olha para o chão.  —  Essa é uma boa cansada e triste.

26 27
DIEGO Júlia.  —  Pensei que fosse ter o mesmo fim que ela quando parou
Uma coisa que sempre dizem sobre as pessoas queridas que estão de falar com todos nós.
mortas, é que elas não gostariam de ver quem amam triste.
Júlia levanta os olhos do prato rapidamente e deixa o garfo cair no
Tia Fernanda se aproxima com um sorriso no rosto. chão fazendo um barulho enorme. Ela se abaixa para pegar, mas é
interrompida por tia Fernanda.
TIA FERNANDA
O almoço está pronto. TIA FERNANDA
Não comece, Amélia, por favor.

CENA 9 Júlia encarou o prato em silêncio.


MESA DE ALMOÇO DE TIA FERNANDA / INTERNA / DIA

Algumas pessoas já estão na mesa e outras estão puxando as TIA AMÉLIA


cadeiras. Tia Rose e tio Carlos, tia Amélia e tio João já estão Só estou falando o que todo mundo pensa. Se o Roberto não fosse
sentados. Júlia fita Diego com olhar interrogativo. tão fraco…
JÚLIA
JÚLIA
Eu acho que você não conheceu meu pai o bastante para chamá-lo
E Berenice, não veio?
de fraco.
DIEGO
Ah, sim. Você sabe, ela não conversa com ninguém da família. Não A voz de Júlia era baixa, porém, firme. Tia Amélia abre a boca para
sei exatamente o porquê, acho que é coisa de gente rica. responder, mas se cala. Todos continuam a almoçar em silêncio.
JÚLIA Júlia se levanta da mesa.
Entendo.

Todos estão acomodados ao redor de uma mesa farta. Há uma CENA 10


lasanha ao centro, junto com um frango assado, e vários tipos QUARTO DE JÚLIA / INTERNA / NOITE
de salada. Os pratos brancos com talheres nas laterais estão Júlia está deitada na cama. Ela checa sua caixa de e-mail indo até
em frente a cada uma das pessoas presentes na mesa. Júlia está os mais antigos. Depois levanta e aproxima os olhos do notebook.
sentada entre Diego e tia Fernanda. Júlia se concentra no próprio
JÚLIA
prato com um pedaço de lasanha, frango e salada. Ao olhar para
Como eu não vi isso antes? O que será que ela quer comigo?
cima, vê tia Amélia observando-a. Júlia se mexe na cadeira e
balança a perna repetidamente, ao perceber-se alvo da atenção da
tia. Todos estão em silêncio. O único som presente é o de talheres CENA 11
batendo nos pratos. E-MAIL

TIA AMÉLIA A tela do celular mostra um e-mail aberto. Fundo branco, letras
Você é bem parecida com a sua mãe  —  Amélia olha firme para pretas.

28 29
“Júlia, você não me conhece, mas sua avó sim, pergunte a ela sobre barulho de buzina. Olha novamente e vê o carro de Alice. Alice
mim, não vou perder tempo dizendo quem sou. Ouvi dizer que é cumprimenta Júlia com um beijo no rosto.
uma ótima pianista e que gostaria de estudar na famosa Juilliard.
ALICE
Tenho uma proposta para você. Venha para New York me dar aulas
de piano e então poderá correr atrás do seu sonho. É uma boa Jules, Como você está?
proposta, não acha? E para constar, não precisa se preocupar com JÚLIA
o dinheiro das passagens. P.S: espero que tenha passaporte. Estou levando. Depois de muito tempo revi a família da minha
Berenice.” mãe. Foi um almoço um tanto... estranho.
ALICE
Como assim?
CENA 12
QUARTO DE JÚLIA / INTERNA / NOITE As duas caminham lentamente pela calçada em direção ao bar.
Júlia encara as palavras por algum tempo com a mão sobre os
JÚLIA
lábios. Com um salto caminha até a janela e olha para o céu.
Parecia que eu era uma estranha. Todo mundo me olhando o
JÚLIA tempo todo. Uma tia minha foi totalmente grossa comigo, como
O que eu faço, papai? Em um momento as coisas parecem que se meu pai e eu tivéssemos culpa de alguma coisa.
nunca irão dar certo e quando começam a dar certo eu não sei o ALICE
que fazer. Jules, todo mundo tem uma tia vaca. Qualquer pessoa que não
souber reconhecer como você é incrível não merece estar contigo.
Júlia tinha um sorriso enorme. Apoiou-se na janela. E lembre-se, você sempre terá a mim, para o que der e vier.

JÚLIA As duas param na calçada esperando um carro passar e depois


Acho que está na hora de arriscar. atravessam a rua.

Júlia volta para a cama, pega o notebook e começa a digitar. Após JÚLIA
finalizar, fecha o notebook, vai até o armário e tira um vestido. Eu recebi um e-mail de uma tia, chamada Berenice, que eu
Júlia olha no relógio: ainda não conhecia. Na verdade, conheci ela segunda passada,
no funeral. Ela me fez uma proposta maravilhosa. Ir para Nova
JÚLIA Iorque dar aulas de piano.
Meu Deus! Preciso me apressar, daqui a pouco Alice chega.
Júlia exclama em tom eufórico.

CENA 13 ALICE
PRÉDIO / EXTERNA / NOITE Sei que você deve estar pensando em recusar, pois não gosta
Júlia está em pé, em frente ao portão do prédio onde mora. de se arriscar, mas é uma chance maravilhosa. Esse tipo de
Olha de um lado para outro repetidas vezes, até que ouve um oportunidade surge uma vez na vida. Então, me promete que vai
pensar com carinho?

30 31
Alice olha para Júlia com os olhos cheios de expectativa e levanta Júlia aparece pedindo informação para o porteiro.
uma sobrancelha.
PORTEIRO
JÚLIA You must be Berenice’s teacher.
Na verdade eu já tomei a minha decisão. Vou arriscar.
Ele conversa com alguém ao telefone e em seguida se dirige à Júlia
Os olhos de Júlia começam a lacrimejar. novamente.

ALICE PORTEIRO
Júlia, para com isso. Ninguém chora indo pra New York. Shes’s waiting for you.
JÚLIA
As duas sorriem. Thanks.

CENA 17
CENA 14
APARTAMENTO DE BERENICE / INTERNA / DIA
AEROPORTO / EXTERNA / NOITE
Ao abrir a porta, Júlia fica boquiaberta com a decoração do local. A
Júlia se dirige até o avião. Olha para trás. Seus olhos movem-se de
sala de estar é pintada de um cinza claro. Há uma enorme estante
um lado para o outro. Dá uma volta de trezentos e sessenta graus.
de livros. Júlia nunca tinha visto algo planejado nos mínimos
Está confusa no meio da multidão. Uma senhora, que caminha de
detalhes. Toda a mobília da sala é clara e moderna. Berenice está
cabeça baixa esbarra em Júlia que está de costas. Júlia pisca várias
sentada de óculos lendo um livro, próxima a lareira.
vezes e respira profundamente. Então, dá um passo para o lado
para que o homem, que a está olhando com impaciência, possa BERENICE
passar. Ela assume uma postura ereta e segue até o avião sem Gostou da minha casa, pelo jeito.
olhar para trás.
JÚLIA
Ah, sim... é linda! Acho que só vi coisa parecida nos filmes.
CENA 15
Há várias fotos espalhadas pelo cômodo, algumas penduradas,
NOVA IORQUE / TÁXI / INTERNA / DIA
outras em porta-retratos. Júlia olha admirada para cada uma
Júlia está descabelada com a cabeça apoiada na janela do táxi, tem delas. Então, faz uma pausa brusca.
um sorriso bobo na cara. Está com fones de ouvido e começa a
tocar “empire state of mind”. O carro então para em frente a um JÚLIA
luxuoso prédio. Você conhece o Al Pacino?
BERENICE
Sim.
CENA 16
ENTRADA DO PRÉDIO / INTERNA / DIA JÚLIA
Isso é incrível!

32 33
BERENICE JÚLIA
Deixe suas coisas no quarto ao final do corredor, ele é o único com Tem na Netflix?
a porta aberta. Vamos conhecer a cidade. Estou cansada de ficar BERENICE
aqui dentro. Pelo amor de Deus, não. Enfim, a protagonista do filme, Holly
Golightly, interpretada pela maravilhosa Audrey Hepburn, vem
Não havia emoção na voz de Berenice. Júlia a encarou por um tomar café aqui.
instante. Berenice a olhou por cima dos óculos e fechou o livro.
JÚLIA
BERENICE Eles servem café lá dentro?
Primeira regra: se você vem a New York, precisa conhecer a BERENICE
cidade. Não importa o motivo da viagem, precisa conhecer New Eu mereço. Ela não come lá dentro, fica aqui fora olhando a
York nas primeiras vinte e quatro horas. vitrine. Eu quis conhecer New York por causa dela. Só não gosto
muito do final. Ela deveria ter ficado só com o gato.
Júlia suspira.
Júlia balança a cabeça como se estivesse entendendo tudo.
JÚLIA
Posso trocar de roupa? BERENICE
BERENICE Aprenda uma coisa, Júlia, um lugar é apenas um lugar até darmos
E pentear os cabelos. Parece que estava viajando em cima do avião um significado a ele. Vamos?
e não dentro.
Berenice está na porta da joalheria.

BERENICE
CENA 18
TIFFANY & CO / EXTERNA / DIA Vamos dar uma olhada nas novidades.
JÚLIA
O motorista de Berenice deixa as duas em frente a Tiffany & Co.
Eu não posso abrir mão de nenhum rim.
Júlia olha admirada. Pessoas entram e saem com o nariz em pé.

BERENICE Berenice olha confusa para ela. Então move os ombros para cima.
Esse é o lugar mais incrível da cidade.
BERENICE
JÚLIA
Você tem senso de humor, afinal.
Uma joalheria?  —  Júlia responde não muito impressionada.
Berenice revira os olhos.
BERENICE CENA 19
Em que mundo você vive, criatura? Não é só uma CENTRAL PARK / EXTERNA / DIA
joalheria  —  Berenice olha para o céu e suspira.  —  Você nunca
Júlia e Berenice estão sentadas em um banco. Júlia está ofegante.
assistiu “Breakfast at Tiffany’s”?

34 35
JÚLIA CLARICE (OFF)

É realmente tudo aquilo que eu achei que fosse, só que melhor. Minha querida irmã, como vão as coisas aí? Estou escrevendo
para te pedir um favor. Sinto que minha Júlia não encontra mais
BERENICE
felicidade aqui. Uma parte da menina alegre que ela costumava
Que bom que gostou. ser se foi junto com as pessoas que ela perdeu. A menina é um
JÚLIA encanto, você verá quando a conhecer. Por isso, estou a pedir-lhe
Posso fazer uma pergunta? um importante favor. Se puder, faça-o por mim e eu serei grata a
você aonde quer que eu esteja. O sonho de Júlia sempre foi estudar
Berenice não responde. em uma famosa escola de artes aí de Nova Iorque, você mora
sozinha, então pensei que talvez pudesse convidá-la para morar
JÚLIA aí, assim você terá uma ótima companhia e ela também. Sempre
Por que convidar uma estranha para morar em sua casa? com amor, Clarice.
BERENICE
Somos família, não? Júlia começa a chorar e suas lágrimas molham o papel da carta.

Berenice solta uma risada irônica sem desviar os olhos de várias BERENICE

crianças que correm pelo parque com um cachorrinho. Não chore. Há tragédias maiores no mundo.
JÚLIA
JÚLIA A vozinha continua sendo um anjo em minha vida. Como
Você não parece se importar... Hum... Com a família. consegue não se abalar com nada?
BERENICE
A resposta de Júlia tem um ar de interrogação. Berenice começa a
Tenho quase setenta anos e sobrevivi a cada um dos meus piores
procurar algo na bolsa.
dias  —  Berenice tira da bolsa um lenço e entrega à Júlia que
BERENICE
assoa o nariz.
Sua avó sempre gostou de escrever cartas. Nunca gostou muito de BERENICE
tecnologia. O que você tem de sentimental falta-lhe de bons modos. Minha
irmã era muito importante para mim. Há muitos anos ela me
Berenice estende um envelope para Júlia. ajudou. Eu devia isso a ela.

BERENICE
Essa carta ela me mandou há alguns meses. CENA 20
TIMES SQUARE / EXTERNA / DIA
Ao ouvir as palavras de Berenice, os olhos de Júlia ficam Júlia abraça Berenice, que resmunga e tenta afastá-la.
marejados. Júlia segura firme a carta. Uma lágrima solitária cai
pelo seu rosto JÚLIA
Por favor, só uma foto!

36 37
BERENICE BERENICE
Só uma. Desce daí, estrela. Oscar deu poucos minutos. Vamos.

Júlia fotografa as duas com a camêra frontal de seu celular. Seu


sorriso é escancarado. Berenice apenas forma uma linha fina com CENA 23
os lábios. SALA DE ESTAR DE BERENICE / INTERNA / MANHÃ

Berenice entra na sala, onde está localizado o piano de cauda,


JÚLIA
o qual Júlia está tocando “ária na corda de sol”. Ao vê-la se
Você poderia sorrir mais.
aproximar, Júlia corre para ajudá-la a sentar-se.
BERENICE
E você poderia falar menos. BERENICE
Achei que depois do passeio de ontem tivesse percebido que
minhas pernas funcionam muito bem.
CENA 21
BROADWAY THEATER /EXTERNA / DIA Quando as duas estão nos seus devidos lugares, Júlia começa sua
primeira aula.
Júlia aguarda ansiosa a tia falar com o segurança.
BERENICE
BERENICE
Vamos entrar? Vamos, pode começar sua aula. Estou pronta para aprender o que
quer que você tenha a me ensinar. Só não se demore muito com
JÚLIA
mesquinharias. Quero logo aprender Bach.
Como conseguiu isso?
JÚLIA
BERENICE
Bom... primeiramente, titia.
Sou uma velha influente aqui.
Berenice dá um chute na canela de Júlia.
JÚLIA
CENA 22 Ai! JÚLIA GRITA. Por que fez isso?
BROADWAY THEATER / INTERNA / DIA
BERENICE
Júlia dá uma volta de trezentos e sessenta graus, pasmada. Te avisei que se me chamasse de tia eu ia te chutar.

JÚLIA Júlia balança a cabeça e coça a canela que está levemente


Pode tirar mais uma foto? vermelha. Berenice vira os olhos.
BERENICE
Sim, a garota irritante. BERENICE
Prossiga.
Júlia sobe ao palco. Berenice a fotografa. JÚLIA

38 39
Bem, como ia dizendo, precisamos começar com os primeiros Vovó também gostava, principalmente quando eu tocava “Inventio
passos. Vou lhe ensinar a localização de cada nota. Você tem No. 15 in B Minor”. Ela amava essa peça.
alguma ideia do nome delas? BERENICE
BERENICE Aquela velha te adorava, e tudo o que você fazia para ela, era
Sei que aqui fica o dó  —  Berenice aponta para a tecla branca perfeito. Você foi a neta e a filha que ela sempre sonhou. Ela foi a
localizada antes do conjunto de duas teclas pretas.   —  Mas o única pessoa que eu senti ter que deixar para trás no dia em que
resto, não sei. fugi.
JÚLIA JÚLIA
Bom, se você sabe onde se localiza o dó, fica mais fácil. A Imagino que vocês eram muito unidas. Calma aí, você fugiu?
sequência é a seguinte: dó, ré, mi, fá, sol, lá, si, e dó novamente. BERENICE
A sequência de sete notas se repete até o final. Vou te passar uma Acha mesmo que meu pai me deixaria vir para New York sozinha?
escala e uma sequência de acordes para hoje, assim, você pode Não. Eu precisava casar. Ele me arrumou um noivo  —  Berenice
treinar para a aula de amanhã. faz cara de nojo.  —  Era um aspirante a político, arrogante e
idiota. Eu descobri que no final eu só representava o objeto da
Júlia toca a escala de dó maior, e pede que Berenice repita. mulher ideal ao lado dele e como não queria me casar com um
Berenice possui os dedos finos e longos. Suas mãos se tolo, fugi no dia do casamento. Minha irmã me ajudou.
movimentam com rapidez pelas teclas do piano, o que facilita na
JÚLIA
execução. A primeira tarefa é bem sucedida. Berenice se atrapalha
ao tentar alcançar as notas mais agudas com mais velocidade. ela Mas com que dinheiro?
ri de si mesma, e Júlia a acompanha.
Berenice ri, mas dessa vez sua gargalhada é sincera.

BERENICE
CENA 24 Eu vendi a aliança de noivado e umas joias que eu tinha.
SALA DE ESTAR / INTERNO / MANHÃ
JÚLIA
Berenice e Júlia estão sentadas no sofá. A postura de Berenice é Você vendeu a aliança? – Disse Júlia espantada.
ereta enquanto Júlia está sentada de maneira despojada.
BERENICE
BERENICE Sim. Era minha, não? Ele me deu   —  Berenice faz ênfase
Lembro-me bem que papai adorava ouvir Bach. Pagou um na palavra “deu”   —  uma aliança de compromisso, não me
pianista para dar aulas a meus dois irmãos mais velhos, agora emprestou  —  Berenice enfatiza também a palavra “emprestou”.
falecidos. Dizia que piano não era coisa de mulher tocar, pois elas JÚLIA
não deveriam aprender coisas desnecessárias. Você é muito esperta.
BERENICE
Júlia se atenta ainda mais no olhar distante de sua tia.
Você aprenderá com o tempo, que ser uma mulher esperta é a
JÚLIA única forma de sobreviver nesse mundo. Sua avó e eu saíamos

40 41
escondidas à noite para ouvir os discos de nosso pai. Ele não BERENICE
deixava ninguém mexer. Mas a música nos unia. Mas o que é isso menina? Não estou preparada para isso.
JÚLIA JÚLIA
A música realmente tem esse poder. Ela une polos distantes, e Mas você não queria tocar Bach? Você precisa aprender isso para
abraça os desabrigados. Ela tem o poder sobre-humano de tocar o tocá-lo.
nosso íntimo como ninguém. BERENICE
BERENICE Mas olha quantas notas há aqui. Eu mal aprendi a tocar o dó.
Você é realmente muito sensível. Mas me conte, e seu pai, como JÚLIA
era? Eu vou ler com você aos poucos, e vamos tocando de mãos
JÚLIA separadas. Com a mão direita, você tocará às notas da clave de sol.
​ ra um homem bom, cheio de espírito. Trabalhava bastante, mas
E BERENICE
sempre feliz. Ele foi quem sempre me incentivou a lutar por isso. Clave de sol? Mas que diabo é isso, afinal?
Sou grata a ele por tudo.
BERENICE Júlia aponta para o sinal que antecede as notas da partitura.
Ok, mas acho que preciso fazer meu momento de leitura.
JÚLIA
Essa é a clave de sol. E essa  —  Júlia aponta novamente, mas
CENA 25 agora para o sinal que antecede as notas que estão abaixo, no
SALA DE ESTAR DE BERENICE / INTERNA / MANHÃ Pentagrama,   —  é a clave de fá. A clave de fá é tocada com a mão
esquerda.
Júlia está sentada em frente ao piano. Berenice anda cambaleante
até o outro acento próximo ao piano. Berenice senta com a ajuda Berenice murmura algo e manda Júlia prosseguir. Júlia começa a
de Júlia e coloca suas mãos no colo. Respira profundamente, e tocar suavemente.
começa a dedilhar as teclas do piano.
JÚLIA
JÚLIA
Entendeu Berenice? É assim que gostaria que você concluísse o
Estou impressionada. Você fez tudo isso no tempo em que saí?
exercício.

Berenice balança a cabeça afirmativamente. Berenice se enraivece e volta a reclamar.

JÚLIA BERENICE
Você vem progredindo muito desde que começou. Agora vamos Eu não consigo, inferno!  —  Berenice esbraveja e soca as teclas do
tentar tocar essas partituras simples, mas bastante práticas, para piano fazendo um som estridente.
que então você aprenda a ler as notas.
Júlia a olha boquiaberta. Berenice levanta o punho para repetir
Júlia apanha a partitura de Beethoven, “Für Elise”, e coloca em o movimento. Ela para antes de concluir o movimento. Olha por
frente à Berenice, que se espanta. cima dos óculos para o piano.

42 43
BERENICE as cobertas e se levanta, quase saltitante, da cam
Você tem sorte de ter custado caro, se não, ia ver uma coisa.
Objeto maldito.
CENA 28
JÚLIA
SALA DE ESTAR / INTERNA / DIA
Acalme-se, o piano não tem culpa. Está bem? Vamos tentar de
novo. Júlia entra na sala dando passos silenciosos. Júlia vê na sala a tia
cantando e dançando em frente a TV que está ligada.
Berenice começa a tocar. Então, solta um grito abafado ao
JÚLIA
conseguir executar a peça e sorri com o canto da boca. Júlia
Sua disposição ao acordar é bem maior do que a
também sorri ao percebê-la.
minha  —  Sussura.

Berenice usa uma bengala no lugar do guarda-chuva e Júlia


CENA 26
esconde o riso com a mão.
QUARTO DE BERENICE / INTERNA / NOITE

Berenice entra em um quarto todo escuro. Abre uma gaveta ao BERENICE


lado de sua cama e pega um grosso álbum de fotos. Achei que ia demorar mais para acordar  —  Grita um pouco
ofegante.
BERENICE
JÚLIA
A sua velha câmera, Clarice, eternizou vários momentos. E posso
concluir que nossos rostos jovens são totalmente estranhos Como não acordar com sua adorável voz? Vou deixá-la sozinha.
quando admirados por nossos rostos já cansados. Afinal, as BERENICE
pessoas dessas fotos não existem mais, assim como a pessoa que Você está tensa e sonolenta, vamos dançar.
vi ainda hoje no espelho, pela manhã. JÚLIA
Eu não sei dançar.
No meio de tantas fotos antigas, amareladas, e com alguns
BERENICE
amassados, há uma quase muito recente que Berenice olha e
depois a abraça. Por favor, não banque a velha de setenta anos.

BERENICE Berenice tosse.


Só você para me fazer voltar para o Brasil todas as vezes que a
JÚLIA
saudade batia. Esse será sempre nosso segredinho.
Está bem.
JÚLIA
CENA 27 Estou começando a gostar desse seu jeito.
QUARTO DE JÚLIA / INTERNA / DIA
BERENICE
Quando Júlia abre os olhos percebe que “Umbrella” está tocando. Você gosta de todo mundo.
Há a voz de outra pessoa acompanhando. Apressadamente ela tira

44 45
CENA 29 Eu já sou, papai bobinho.
SALA DE AUDIÇÕES DA JUILLIARD / INTERNA / DIA

O hall de entrada é pintado em cores neutras, e, no palco, há um ROBERTO


dourado radiante. Estão à frente do palco, composto de madeira Ah, esqueci que você já é mesmo.
rústica, os três jurados sentados em cadeiras pretas. As luzes
deixam o lugar pouco iluminado fora do palco, e o foco está VOLTA DO FLASHBACK
sempre em quem está em cima, a executar a peça.
Alguém que está no palco para de tocar piano. Júlia ouve passos CENA 31
em sua direção. Uma mulher passa e lhe dirige um aceno de SALA DE AUDIÇÕES DA JUILLIARD / INTERNA / DIA
cabeça. Júlia percebe que é chegada a hora dela entrar. Então,
PAI DE JÚLIA
caminha em direção ao palco, enquanto olha fixamente para o
piano preto, de madeira que a espera. Ao chegar lá, se depara com Eu disse que você seria uma grande pianista.
dois olhos negros, a fitar-lhe em um lado do piano. é seu pai.
Os dedos de Júlia começam a deslizar suavemente pelas teclas do
piano preto, de cauda. Júlia está concentrada com a postura ereta.
FUSÃO PARA FLASHBACK
Ela percebe os olhares perscrutadores de um dos jurados. O outro
está anotando algo com uma expressão séria, sem olhá-la. Ainda
CENA 30 sim, ela toca pausadamente “o noturno op. 9, n. 2, de chopin”,
COZINHA DA CASA DO PAI DE JÚLIA / INTERNA / NOITE em uma versão dela, sem fugir ao original. Júlia finaliza sua
A Júlia de sete anos está sentada no chão com seu pianinho de apresentação e olha para a banca examinadora. A única mulher
brinquedo. Enquanto seu pai corta um tomate. E ouve-se uma que compõe o juri sorri. E neste ponto todos voltam sua atenção
peça de bach. à Júlia. Ela retira-se do palco com aplausos e, atrás de si, deixa os
jurados conversando.
JÚLIA
Eu consigo tocar igual a ele, papai.
ROBERTO
CENA 32
Aposto que sim. CASA DE BERENICE / INTERNA / DIA

Roberto vira e sorri para a filha. Júlia, então, começa a tocar as O relógio marca 9 horas da manhã, quando o porteiro toca a
teclas de seu pianinho de animaizinhos. O som não tem nenhuma campainha de Berenice. Júlia corre para atendê-lo.
semelhança. Ouve-se barulhos de animais misturados. Ela para e
JÚLIA
olha para o pai ansiosamente. Ele começa a bater palmas.
Good morning, Mr. Ganter.
ROBERTO PORTEIRO
Belíssimo! Adorei o acompanhamento dos animais. Exclama Roberto. Good morning, dear Júlia. A letter to you, miss.
Um dia você será uma grande pianista. Diz em tom confiante.
Ele entrega uma carta à Júlia, que a recebe, aflita.
JÚLIA

46 47
JÚLIA começa a tocar lentamente a peça, e vai aumentando a velocidade
Thank you very much. à medida que a música alcança o seu mais alto grau de expressão.
Ao terminar a abertura, Júlia recebe palmas e sorri. Procura um
Júlia fecha a porta, após o porteiro ter virado as costas. Júlia, que velho par de olhos cansados. Berenice sorri de volta. O show
está sozinha na sala enorme de Berenice, abre a carta com o selo continua e Júlia acompanha com seu piano.
da Juilliard. Júlia passa apressadamente os olhos pela carta e
deixa seus braços penderem ao lado do corpo. Berenice, que está
a entrar na sala para estudar piano, se apressa em pegar a carta CENA 35
das mãos da menina. Seus olhos se arregalam, em seguida bate BROADWAY THEATER / EXTERNA / NOITE
palmas. Abraça uma Júlia imóvel.
Berenice está aguardando Júlia do lado de fora do teatro, enquanto
fuma um cigarro.
JÚLIA
Eu consegui! Eu consegui! Eu estou sonhando. BERENICE
BERENICE Tenho que concordar que você é realmente boa.
Quer que eu a belisque? JÚLIA
Para a senhora ter me convidado para dar aulas, deve me
Berenice dá um passo em direção à Júlia. Júlia balança a cabeça considerar realmente boa.
afirmativamente.
Berenice solta a fumaça do cigarro.
Júlia abraça Berenice que faz uma careta de dor. Em seguida,
começa a pular ao redor de Berenice que estende as mãos para o JÚLIA
céu. Acho que nunca vou conseguir agradecer tudo que fez por mim.
BERENICE BERENICE
Eu mereço, um canguru feliz na minha sala. Não. Você fez por si mesma. As suas escolhas te trouxeram aqui.
Eu só te dei alguns a privilégios a mais, e a chance de mostrar a
que veio ao mundo.
CENA 33
ESTÁTUA DA LIBERDADE / EXTERNA / NOITE JÚLIA
Sempre sonhei que a minha mãe pudesse voltar um dia e estar
Nos braços da estátua está escrito com letras brancas “alguns anos
na plateia me vendo. Mas não. Ela nunca esteve em nenhum dos
depois”.
momentos mais importantes de minha vida  —  Júlia enxuga uma
lágrima solitária que escorre por seu rosto e olha firmemente para
Berenice.   —  Você deu outro sentido para a palavra mãe.
CENA 34
BROADWAY THEATER / INTERNA /NOITE
Berenice a abraça para o espanto de Júlia. Ela não faz isso com
As cortinas se abrem. Júlia está tocando “Liebesträume 3”, uma muita frequência.
peça de Liszt. Na cena inicial do musical, o local está lotado. Júlia

48 49
BERENICE quatro horas, garota irritante.
Ótimo. Não tenho nenhuma vocação para ser mãe, mas estou JÚLIA
grata. Gosto de você do meu jeito, Júlia. Já que hoje é a sua estreia, Esse é o grande mandamento dela. Está preparada?
eu tenho uma surpresa.
ALICE
Se eu estou preparada? Hoje sou toda sua querida.
CENA 36
BROADWAY STREET / EXTERNO / NOITE
CENA 37
Berenice caminha ao lado de Júlia. Olha para trás por um QUARTO DE BERENICE / INTERNA / DIA
momento. E sorri.
Júlia abre a porta do quarto da tia. Ela está dormindo sentada com
BERENICE um álbum de fotos na mão. Júlia corre para abrir as janelas.
Por favor não chore. Ao terminar a fala, Alice aparece..
JÚLIA
ALICE
Como sei que você adora a luz matinal, vou abrir as cortinas.
Jules  —  Grita Alice e Júlia gira o pescoço.  —  O piano foi
inventado para ser tocado por você! Júlia provoca Berenice de modo irônico, mas a senhora não
JÚLIA protesta como faz de costume.
Não acredito que esteja aqui.
JÚLIA
Corre para abraçar a amiga. Berenice?  —  Júlia corre até a cama.  —  Acorde, já está na
hora.   —  Júlia fica agitada ao ver que berenice não se mexe
ALICE
Que saudade Jules, você está radiante. Meu Deus, que A jovem aproxima seu rosto ao dela para sentir a respiração. Põe
saudade. a mão na boca. Ao checar os pulsos em p nico, vê que a página
JULIA
que ela encara há várias fotos com a avó. Berenice tem um leve
Pare com isso, está me deixando constrangida  —  Júlia sorri desenho de sorriso no rosto.
quando Alice dá um tapa em seu braço. Olha para o lado e vê
Berenice revirando os olhos.  —  Quero que você conheça uma
pessoa, que se tornou muito importante para mim. CENA 38
QUARTO DE BERENICE / INTERNA / NOITE
ALICE
Querida, chegou tarde. Nós já nos conhecemos. Quem você acha Berenice digita rapidamente em seu computador com um misto
que pagou a minha passagem? de concentração e empolgação. Para por um momento, retira
BERENICE
os óculo e esfrega os olhos. Toma um gole da xícara de café que
Se eu soubesse que você era tão irritante e barulhenta não teria está ao lado. Faz uma careta feia e volta a escrever. Barulho de
feito. Vamos, você precisa conhecer a cidade nas primeiras vinte e teclado.

50 51
NARRADOR (OFF)
Seja qual foi a última coisa que se passou na mente tão complexa
de Berenice, era sem sombra de dúvidas uma coisa alegre. O mais
engraçado a respeito dela, é que ela não era do tipo de pessoa
que se pensa que irá morrer sorrindo. Mas ela era imprevisível.
Naqueles últimos anos, Júlia e ela criaram uma relação, dizem
as pessoas que acreditam firmemente na maternidade, de mãe
e filha. Embora Berenice nunca tivesse desejado ter filhos,
encontrou no final de sua vida a filha que nunca procurou e Júlia a
mãe que nunca teve.
Júlia, pela primeira vez, ao perceber que tinha perdido alguém
para sempre, não chorou. Sabia que Berenice não tinha medo
de morrer e que neste exato momento estaria reclamando
da aparência desajeitada da morte. Júlia não chorou naquele
momento. Ela sabia que a velha Berenice estaria realizada.
Conhecendo bem a tia-avó, que Deus quisesse que não a ouvisse
chamando-a assim, sabia que ela considerava a morte a mais bela
conclusão. Aquele era o seu final.
Berenice para de digitar e olha para a cidade através da janela.

FIM

52
PERSONAGENS

XAVIER. O autor da novela que está sendo transmitida. 40 anos.


Magro. Estatura mediana. Cabelo castanho, ondulado.
ALBERTO. Diretor da novela. Magro. Em torno de 40 anos. Bem
vestido. Terno e gravata. Cabelo preto, penteado para trás. Bigode
bem aparado.
CLIENTE 1. Homem. 50 anos. Calvo. Cliente da cafeteria.

CLIENTE 2. Homem. Em torno de 50 anos. Usa óculos de aros


grossos. Cliente da cafeteria.
GARÇONETE. Jovem. Magra.

ANÔNIMO 1. Homem, em torno de 50 anos. Um pouco obeso,


careca, de óculos. Usa um terno com um sobretudo. É um dos
líderes da tentativa de linchamento de Xavier.
ANÔNIMO 2. Homem, 40 anos. Alto, magro. Com barba espessa.
ANÔNIMO 3. Homem, 50 anos. Baixinho, magro. Usa óculos. De
terno e gravata. Segura uma pasta de executivo nas mãos.
ANÔNIMO 4. Homem, 40 anos. Gordo, Calvo.
ANÔNIMO 5. Homem, 30 anos. Magro.
ANÔNIMA 6. Mulher, 60 anos. Bem vestida. Cabelos brancos,
amarrados.
PASTOR. Homem, alto, magro, cabeça raspada, 35 anos. Veste
terno preto e gravata. Está presente na multidão que ataca
a novela.
ANÔNIMO. Homem. Em torno de 30 anos, magro.
SILVA. Amigo de Xavier. Dono de um estabelecimento comercial.
50 anos. Gordo. De óculos.
pressão popular ATENDENTE. Atendente da loja de Silva. 20 anos. Cabelos
ou castanhos. Magro.
os limites da liberdade artística TENENTE. Tenente da polícia que faz a negociação para a
libertação de Xavier. 40 anos. Alto, forte. Bigode sobressalente.
Clóvis Brondani POLICIAIS. Demais policiais que auxiliam na proteção de Xavier.

54 55
TRANSEUNTES. Duas pessoas que observam a cena da saída de é tratar de uma dama da sociedade traindo o marido. Não sei
Xavier escoltado pela polícia. Não participam da perseguição não... Aliás, você não tirou isso do Madame Bovary?
a Xavier. XAVIER
Em parte, Alberto! Madame Bovary é uma história universal.
CENA 1 Traição ocorre desde sempre. Zeus traía Hera, Afrodite traía
INTERNA / ESTÚDIO / NOITE Hefesto... Aliás, até a Bíblia está cheia de histórias assim. Se
fôssemos moralistas, ninguém leria nem a Bíblia.
Estúdio de televisão dos anos 50, onde ocorre uma transmissão
ALBERTO
ao vivo de uma novela. O início da cena começa dentro da
Mas e o que aconteceu com o Flaubert?
dramatização da novela. A “cena” específica da novela é um beijo
entre um casal. Após o beijo, a dramatização termina. Em um XAVIER
canto do estúdio, atrás das câmeras, Alberto e Xavier conversam. Não é para tanto. Não estamos mais no século XIX. As coisas
Alberto está sentado em uma cadeira de set. Xavier está em mudaram, a sociedade evoluiu, nossa cidade é...
pé, tomando um café. Ao fundo, após o término das filmagens, ALBERTO (interrompendo)
algumas pessoas trabalham desmontando o cenário. Nossa cidade é ainda provinciana, não esqueça. É a mais provinciana
das nossas capitais. Não é porque a televisão chegou por aqui que
XAVIER
nossos costumes automaticamente mudaram.
Então, me parece que o primeiro capítulo ficou bom, o que acha?
XAVIER
ALBERTO
Também não podemos ser reféns do público, Alberto. Temos
Ficou bom sim, mas tenho receio pelo tema. Você não acha que a
que ter também a nossa liberdade para fazer ficção. Além do
coisa é meio polêmica, um caso de traição assim já na abertura?
mais, tudo isso é ficção. Não vamos orientar toda a nossa criação
XAVIER artística por um julgamento moralista desses. São duas coisas
Não tem problema, já tivemos outros temas polêmicos antes. bem distintas.
ALBERTO ALBERTO
É, mas por isso mesmo a minha preocupação. Esses temas Eu concordo contigo Xavier, na teoria. No entanto, lembro que
geraram reações bem contundentes, não te lembras? aqui, sobretudo, somos como uma espécie de operários. Somos
XAVIER funcionários de uma empresa, que busca lucro. E para ter lucro, a
Ô Alberto, não vamos nos preocupar antecipadamente. Além aceitação do que apresentamos é essencial. Eu tenho família para
disso, o povo gosta do que é polêmico. Isso atrai audiência. É o sustentar. Se eu perco o emprego, não sei no que vou trabalhar,
que move o drama, Alberto. Não dá para fazer novela só com bom entende?
mocismo. Isso não vende. O povo quer sangue, quer traição, quer XAVIER
bandidos e mocinhos... Perfeitamente. Mas tenho a impressão de que vai dar tudo
ALBERTO (Interrompendo) certo. O público vai gostar, acredito que eles saibam distinguir
É, mas não é a mesma coisa. Aqui a gente está em terreno entre ficção e realidade. O que estamos fazendo é uma diversão
perigoso. Uma coisa é história de bandido e mocinho, outra coisa inocente, nada mais.

56 57
ALBERTO encostados no balcão.
Assim espero, Xavier.
XAVIER
XAVIER
Bom dia, bom dia. Nada como um café para começar o dia.
Bem, amanhã mesmo eu já terei uma ideia da reação. Sabe que eu
CLIENTE 1 E CLIENTE 2
tenho os meus métodos para medir a opinião pública.
Bom dia. Bom dia.
ALBERTO
XAVIER
Que método seria esse?
E aquela novela que começou ontem, o que me dizem? Viram?
XAVIER
CLIENTE 1
Um dia desses eu te falo. Mas você verá que amanhã vou ter uma
ideia do que o povo está achando. Qual? Aquela que começou na TV aqui da cidade?
XAVIER
ALBERTO
Certo, Xavier, faça como bem entender. Mas eu preciso do novo Esta mesma... Parece que estreou ontem, mas não
capítulo amanhã até às três da tarde para podermos começar a consegui ver.
ensaiar e assim termos tudo pronto para a transmissão da noite. CLIENTE 1

XAVIER
Eu vou ser franco viu, aquilo não me agradou nem um pouco.
Perfeitamente. Até as três terás o novo capítulo. XAVIER
E por quê?
CLIENTE 1
CENA 2
EXTERNA / RUAS / DIA Ora, não é coisa que se mostre para as famílias! Uma mulher
casada que trai o marido? E ainda por cima dá dinheiro ao
No início da manhã fria e ensolarada, Xavier anda pelas ruas do amante.
centro da cidade. Veste um chapéu, óculos escuros e um pesado
CLIENTE 2 (interrompendo)
casaco. Primeiro, ele para junto a um grupo de cinco pessoas
Isso é uma pouca vergonha, isto sim. Tamanha safadeza ser
que conversam em torno de um banco de praça. Duas pessoas
mostrada assim sem mais nem menos. Que exemplo passam aos
estão sentadas, as outras em pé. Xavier fica dois minutos apenas
nossos jovens? Em casa, inclusive, já determinei que está proibida.
observando e volta a caminhar. Sai da praça em que estava,
Permito apenas os programas de notícias.
atravessa uma rua e entra em uma cafeteria.
CLIENTE 1
Pois faz bem. Onde vamos parar desse jeito?
CENA 3
INTERNA / CAFETERIA / DIA A jovem garçonete, servindo o café para Xavier, se intromete na
conversa.
Xavier entra na cafeteria, que está lotada. A conversa flui
continuamente nas mesas repletas de pessoas que bebem café GARÇONETE
e comem. Ele pede um café e entabula uma conversa com dois Desculpem a intromissão, mas eu gostei. Hoje, inclusive, não
clientes ao lado, que assim como ele estão

58 59
quero perder o novo capítulo. ANÔNIMO 3
É esse bando de artistas que chegaram à nossa cidade junto com
CLIENTE 2
a televisão. Eu sempre disse que essa gente é pervertida, não tem
Veja só. Se fosse filha minha não teria permissão. moral, não tem princípios, não é temente a Deus.
CLIENTE 1
ANÔNIMO 4 (Gritando em meio a multidão, sem ser possível identificar
A que ponto chegamos. E os jovens é que gostam. quem fala)
CLIENTE 2 Hereges!
É uma indecência mesmo. Se fosse para isso, melhor que a ANÔNIMO 1
televisão não tivesse chegado aqui. É a corrupção dos nossos Pois concordo, é gente sem princípios, que vive para corromper
costumes. a nossa sociedade. Este bando de atores e atrizes, que mais
CLIENTE 1 poderiam se chamar de depravados. Meretrizes
São os novos tempos, meu amigo. e cafetões.
CLIENTE 2 ANÔNIMO 5
Que novos tempos? É a indecência, isto sim. É inadmissível! É um atentado contra a família, contra os bons
XAVIER costumes. Qual será o efeito dessa pouca vergonha em nossos
Pois bem, meu café terminou. O trabalho me chama. Bons dias a jovens?
todos... ANÔNIMA 6
É o mau exemplo! É o mau exemplo!

CENA 4 ANÔNIMO 1

EXTERNA / PRAÇA / DIA De minha parte eu já proibi que minhas filhas e minha esposa
assistam.
Na praça central, que tem ao entorno lojas, bares, cafés, há um
grupo relativamente numeroso de pessoas ao lado de uma banca Neste momento um homem de terno e de bíblia na mão,
de jornal, dispostas mais ou menos em círculo. A maioria do marcas típicas dos pastores que pregam nas ruas, toma a frente
grupo são homens adultos. Há apenas quatro mulheres. Algumas da multidão.
pessoas leem o jornal, que traz a notícia da estreia da novela.
Desse modo, o assunto em questão é justamente a repercussão PASTOR (Gritando)
negativa da novela de Xavier, que se aproxima do grupo, Irmãos, Irmãos, vivemos os tempos em que as marcas da besta
juntando-se aos presentes, e fica em silêncio apenas ouvindo o do apocalipse dão sinais muito claros. São os discípulos de Satã
que se conversa. que operam, não esqueçam. Está escrito no livro sagrado que
chegará o momento em que a legião liderada por Satanás tomará
ANÔNIMO 1 (Segurando o jornal aberto)
a terra, disseminando o veneno da serpente entre os homens. Mas
Vejam só, saiu até no jornal. Isto é uma afronta contra nossos
o livro sagrado também diz: Conheceis a Verdade e a Verdade vos
costumes. Como é que pode uma coisa dessas?
libertará. Pelo sangue de Cristo que tem o poder de curar todas as
ANÔNIMO 2 chagas abertas no seio do nosso povo, não devemos nos calar. Pelo
É falta de vergonha na cara, isso sim. sangue de Cristo nós temos o dever de levar a verdade. Unamo-
nos, irmãos. Temos o dever de começar a luta contra esta heresia.

60 61
A multidão se exalta respondendo ao discurso do pastor. Algumas pessoas começam a empurrar Xavier, enquanto outros
tentam evitar que ele seja agredido. Nesse momento, outro
PESSOAS NA MULTIDÃO
anônimo na multidão grita.
Amém. Amém. Vamos acabar com essa imoralidade.
ANÔNIMO 1 ANÔNIMO 7
Vamos nos acalmar, todos. Precisamos de uma ação coordenada. Ei, mas eu conheço esse aí. É o Xavier. É ele quem escreve as
Sugiro que agora mesmo façamos uma caminhada até a sede da novelas. Eu conheço porque trabalho na portaria do prédio ao lado
emissora de televisão para exigirmos o fim desta pouca vergonha. da televisão. Ele anda sempre por lá.
MULTIDÃO ANÔNIMO 1
Isso mesmo! Concordo! Vamos agora! Tem certeza?
ANÔNIMO 7
Neste momento, tomado pela emoção do momento, Xavier resolve
Certeza absoluta. Ele até está tentando se disfarçar com esse
interferir.
chapéu e esses óculos, mas é ele, tenho certeza.
XAVIER
O Anônimo 7 se aproxima de Xavier, arranca seus óculos e seu
Mas esperem todos, também não é para tanto. É apenas uma
chapéu.
novela feita para diversão. Também ninguém é obrigado
a ver.
ANÔNIMO 7
ANÔNIMO 1 Vejam só, é ele mesmo. Eu tinha certeza de não estar enganado.
O senhor não sabe o que fala! E que exemplo isso dá aos nossos
filhos? A confusão se instaura. Alguns homens avançam sobre Xavier
XAVIER e começam a empurrá-lo. Alguns tentam intervir para evitar
Mas tem duas questões. Primeiro, ninguém é obrigado a ver. que seja espancado, mas não conseguem diante da fúria das
Segundo, é uma obra de ficção, não significa que quem assiste pessoas. Xavier leva um murro no rosto e imediatamente vemos
sairá imitando o que se passa na novela. Se fosse assim, imaginem o sangue escorrer pela face. Uma senhora idosa desfere um golpe
o que seria dos gregos com as tragédias, onde os personagens de guarda-chuvas em sua cabeça. Com esforço, ele consegue se
matam os pais, casam com a mãe, traem esposas e maridos, livrar dos agressores e inicia uma fuga em meio à praça repleta de
matam os filhos e outras coisas mais arrepiantes. E nem por isso pessoas que caminham em várias direções. Uma massa enfurecida
os gregos saiam por aí repetindo o que se passava no palco. Isso se forma e começa a persegui-lo. Ouvem-se gritos incitando
é muita ingenuidade. É preciso separar uma obra artística das a captura.
questões morais. Inclusive, Aristóteles dizia que a representação
MULTIDÃO
de atos infames no palco servia como uma espécie de purgação
dos desejos... Pega! Pega o safado! Não deixa escapar! Lincha! Lincha!

PASTOR (interrompendo a fala de Xavier e estendendo a bíblia com as Muitos jogam objetos (pedras e pedaços de madeira que arrancam
duas mãos em sua direção) das floreiras que estão instaladas ao lado da banca de jornal) na
É satanás! Ele fala a língua de Satanás! direção de Xavier. Ele é atingido na cabeça por uma pedra, cambaleia,

62 63
quase indo ao chão, mas consegue se equilibrar e segue na fuga. Ele ATENTENDE
atravessa a praça com a multidão em seu encalço e a perseguição se Tudo bem, sente aqui, se acalme  —  Gritando.  —  Oh, Silva,
estende por umas três quadras. Uma pedra atinge a cabeça de Xavier, venha aqui, por favor, é urgente.
de onde outro jorro de sangue escorre. Subitamente, entra em uma
loja de eletrônicos, que tem em suas prateleiras principalmente Silva, o dono da loja, chega apressadamente. Assusta-se ao
aparelhos de rádio e televisão. reconhecer Xavier.

SILVA

CENA 5 Meu Deus, Xavier! Mas o que foi que te aconteceu?


INTERNA / LOJA / DIA XAVIER
Querem me matar, Silva. Querem me linchar. Veja o que já me
Xavier entra correndo na loja, que não tem clientes. Atrás do
fizeram.
balcão há uma única pessoa, o empregado da loja.
SILVA
XAVIER Mas por que motivo, o que foi que você fez?
Socorro, me ajudem.
XAVIER
ATENDENTE Nada, estão irritados devido à novela que estreou ontem. Quando
Minha nossa, Senhor Xavier, o que aconteceu? descobriram que eu sou o autor, começaram a me agredir. Não
XAVIER morri porque por sorte consegui chegar até aqui.
Querem me linchar. Tranque as portas. Tranque, ou irão invadir. SILVA
Mas que absurdo  —  Olha para a porta, onde consegue ver os
O atendente apressadamente corre e consegue fechar a grade manifestantes tentando forçar a entrada.  —  Não pode ficar aqui.
de ferro e depois a porta de vidro, antes que a multidão invada. Vamos lá para trás, vamos?
Ouvem-se gritos, batidas, sons de objetos sendo jogados contra a
XAVIER
grade de ferro. As pessoas pressionam a grade de ferro tentando
Tem uma saída pelos fundos?
forçar a entrada.
SILVA
PESSOAS NA MULTIDÃO (em off) Não temos, Xavier. Só pela frente mesmo. Venha comigo, vamos
Sai daí, bandido! Safado! Imoral! Venha aqui para fora! Covarde! lavar esse sangue  —  Dirigindo-se ao atendente.  —  Enquanto
isso ligue agora para a polícia.
XAVIER
Cadê o Silva?
Silva e Xavier desaparecem pelo corredor que dá para os fundos da
ATENDENTE loja, enquanto vemos o atendente pegando o telefone.
Está lá atrás.
ATENDENTE
XAVIER
Chame por favor. Alô, é da polícia?

64 65
CENA 6 ANÔNIMO 2

EXTERNA / FRENTE DA LOJA / DIA Estamos aqui pelo bem da moral. Não estamos cometendo crime
algum.
Uma pequena multidão está em frente à loja de eletrônicos. Aos
TENENTE
gritos, alguns tentam forçar a entrada. Ouve-se uma sirene de
Se vocês agrediram uma pessoa, então cometeram crime sim.
polícia. Em segundos chega o tenente da polícia acompanhado
por um grupo de seis policiais e começam a conter a multidão. ANÔNIMO 1
Os policiais afastam as pessoas da entrada da loja e formam O senhor pode ficar tranquilo, ninguém agrediu ninguém. Apenas
uma corrente em frente à porta, impedindo que tenham acesso protestamos contra a pouca vergonha que ele fez. Só isso. Afinal,
a ela. temos ou não liberdade de manifestar nossa opinião como bons
cidadãos que somos?
TENENTE (gritando)
MULTIDÃO
Vamos afastar, vamos afastar! Ou vai todo mundo para a
Liberdade! Liberdade!
delegacia.
TENENTE
TENENTE
Liberdade todos têm. Mas vocês não podem agredir uma pessoa
O que está acontecendo aqui? Estão querendo invadir um
mesmo que esta tenha cometido um crime. E, além disso, também
estabelecimento comercial, por que motivo?
estão aqui tentando invadir uma propriedade particular, então
ANÔNIMO 1 não venham me dizer que não estão cometendo crimes.
Estamos aqui só para fazer justiça. Aí dentro se esconde um
ANÔNIMO 3
corruptor dos costumes.
Aqui ninguém tentou invadir nada, policial. Apenas estamos
MULTIDÃO exercendo nosso livre direito à manifestação.
Isso mesmo! Sai daí, bandido!
TENENTE
TENENTE Mas afinal, o que foi que esta pessoa fez?
Tivemos uma denúncia de que vocês estariam tentando linchar
ANÔNIMO 1
uma pessoa. Sabem que isso é crime? Nos informaram que foi
Ele é o responsável pela pouca vergonha daquela novela que está
agredida e tem vários ferimentos.
passando na televisão! É uma afronta aos nossos jovens, às nossas
ANÔNIMO 2 famílias, aos nossos costumes, à nossa moral, senhor policial. Não
Ninguém aqui agrediu ninguém, senhor policial. Somos todos estamos fazendo nada mais do que reclamar que ele pare com essa
cidadãos de bem. Estávamos apenas exigindo uma explicação imoralidade.
deste homem que corrompe a moral da nossa sociedade. Afinal,
TENENTE
vocês não deveriam estar perseguindo bandidos?
Então vocês estão fazendo toda essa confusão só por causa de uma
As pessoas seguem gritando. novela de televisão? Vocês não tem vergonha? Sabem que temos
outras coisas mais importantes para fazer?
MULTIDÃO
Isso mesmo! Pela moral! Pela família! A multidão volta a se exaltar. Pessoas gritam. Alguns tentam

66 67
forçar a barreira de policiais novamente. CENA 7
INTERNA / LOJA / DIA
TENENTE
O atendente da loja abre a porta de vidro e depois a grade de ferro.
Todo mundo para trás. Para trás! Ou levo todo mundo para o O tenente entra. Dentro da loja estão apenas o atendente, que está
camburão, já disse. vigiando a porta, e Silva, que está atrás do balcão.
ANÔNIMO 2
TENENTE
Daqui não saímos. Vocês vão usar a força contra cidadãos de bem?
O que é que aconteceu? Cadê o rapaz que estava sendo perseguido.
Novamente a multidão se exalta. SILVA
Está lá nos fundos escondido. Ele está ferido na cabeça, foi
MULTIDÃO agredido por esses selvagens.
Isso aí. Daqui não saímos.
TENENTE
TENENTE Vamos tentar resolver. Eles querem que ele assuma um
Já mandei todo mundo para trás. Vamos nos acalmar. Afinal, o que compromisso para mudar alguma coisa na novela, não sei bem
vocês querem então? direito o que querem. Pode chamá-lo aqui para ver se podemos
ANÔNIMO 2 tentar solucionar a questão e retirá-lo daqui com segurança?
Queremos que ele se comprometa a mudar a novela. SILVA
TENENTE Pois não.
Se ele fizer isso, vocês se comprometem a debandar e terminar
essa confusão? Caso contrário, vou ter que levar todo mundo para Silva entra no corredor e em instantes volta com Xavier, que está
a delegacia e registrar boletim. bastante assustado. Está com uma toalha segurando o ferimento
na face, tentando estancar o sangue. Percebe-se que a roupa está
As pessoas conversam entre si. bastante manchada de sangue.

ANÔNIMO 2 XAVIER
Concordamos! Mas ele precisa se comprometer a terminar com Veja o que fizeram, policial. Tentaram me matar, tentaram
essa pouca vergonha. me linchar.

TENENTE TENENTE
Vou entrar e conversar com ele. Mas não quero ninguém tentando Calma senhor. Vamos fazer o possível para tirar o Senhor daqui
invadir. Não quero ouvir gritos, nem empurra-empurra, senão eu com segurança. Mas afinal, o que realmente aconteceu?
levo todo mundo para o xadrez. XAVIER
Eles estão enlouquecidos, policial! Descobriram que eu sou o
O policial se dirige para a porta da loja. Faz sinais para abrirem a autor da novela que está passando na tevê, e como não gostaram
grade. da história, resolveram me agredir.

68 69
TENENTE Depois o senhor vê o que faz. Conversa com o pessoal da tevê,
Só por isso? O senhor não provocou eles não? enfim, isso não nos importa. Queremos apenas acabar com a
XAVIER
confusão e evitar mais violência. Veja que o grupo é grande. Se
De maneira nenhuma! Quando descobriram quem eu era, eles resolvem invadir, nossa força policial não vai dar conta, é
simplesmente começaram a me agredir. Felizmente consegui muita gente.
fugir e entrar aqui, o que salvou minha vida.
Xavier baixa a cabeça, fica pensativo. Segue pressionando o rosto
TENENTE
com a toalha para evitar o sangramento.
Mas afinal, o que tem nessa novela que os deixou irritados assim?
XAVIER TENENTE
Nada demais. É uma história de um caso extraconjugal, nada Senhor, eu sei que a questão é complicada. Mas eu sugiro que pelo
demais. Foi só por isso. menos agora diga que aceita. O senhor precisa ir ao hospital com
urgência. Depois o senhor resolve isso.
TENENTE
Ah, mas também né, meu Senhor? Era visto que uma coisa SILVA
dessas ia provocar essa indignação. Ainda mais bem no horário Eu concordo, Xavier. Tens que ir para o hospital fazer um curativo
que passa, com toda a família assistindo. (Fica alguns segundos nesses ferimentos. Depois você vê o que faz. Senão vão também
em silêncio). Bem, mas agora isso é o de menos. Vamos tentar me destruir a loja.
resolver isso e deixá-lo no hospital em segurança para tratar XAVIER (Suspirando)
desses ferimentos. Tá certo. Pode dizer que aceito. Tirem-me daqui então. Afinal
XAVIER eu preciso entregar um capítulo hoje à tarde, e já é quase meio
E não vão prender esses bandidos? Tentaram me assassinar. dia. Diga que eu mudo a história. Hoje mesmo, no capítulo desta
noite. Mas eles precisam me deixar sair agora, senão não há
TENENTE
tempo suficiente para escrever o novo capítulo.
Veremos isso depois, vamos abrir um inquérito. Mas primeiro
temos que evitar que eles invadam aqui e ocorra uma tragédia. TENENTE
Não temos homens suficientes para evitar que invadam. O Muito bem. Espere aqui enquanto eu converso com eles. Quando
número de pessoas é muito grande. Eles me garantiram que se o a multidão dispersar, nós lhe conduziremos até o carro em
senhor assumir um compromisso de mudar a novela, eles deixam segurança. Fique tranquilo.
o local e o senhor pode sair.
O policial se dirige para a porta, que é novamente aberta
XAVIER
pelo atendente.
Mas que absurdo! Eles tentam me matar sem motivo nenhum
e eu tenho que me comprometer com algo? É inaceitável. Eles
deveriam ser presos!
CENA 8
TENENTE
EXTERNA / FRENTE DA LOJA / DIA
Veja bem, eu entendo, senhor. Mas eu aconselho apenas dizer que
aceita os termos deles, para evitarmos mais confusão e violência. O policial sai da loja, enquanto as portas são fechadas atrás dele.

70 71
Ele se dirige aos manifestantes. bandido. Não sei se ele roubou alguma coisa. Mas eu só vi que ele
conseguiu escapar entrando nessa loja aí. Depois a polícia chegou.
TENENTE
Mas por pouco não foi linchado.
Escutem. Ele se comprometeu em mudar a novela hoje mesmo.
Vai mudar tudo, conforme vocês querem. Mas a condição é que Os dois transeuntes seguem pela rUa.
vocês acabem com essa aglomeração agora mesmo. Senão ele não
tem como fazer isso. Precisamos levá-lo ao hospital antes. Então,
vamos todos circulando. CENA 10
INTERNA / ESTÚDIO DE TELEVISÃO / DIA
Ouvem-se murmúrios entre a multidão. Aos poucos as pessoas
começam a deixar o local e a aglomeração se desfaz em alguns Estúdio de televisão, onde há um intenso trabalho sendo feito.
minutos. Algumas poucas pessoas do grupo, quatro ou cinco, Pessoas trabalham nos cenários, nas câmeras, na iluminação.
entre eles o Anônimo 1 e Anônimo 2, permanecem no local, mas Percebe-se que o trabalho é intenso para preparar a filmagem da
um pouco distantes, observando o que acontece. Depois que a noite. Xavier adentra o estúdio e é recebido por Alberto. Xavier
multidão se dispersa, as portas se abrem e três policiais entram está com um enorme curativo na testa e outro no nariz.
na loja e em seguida saem com Xavier escoltado. Ao sair para a
ALBERTO
calçada, os outros três policiais se juntam e formam um círculo
Minha nossa, Xavier! O que foi que aconteceu?
em torno de Xavier e assim o conduzem até um dos carros de
polícia, que está estacionado a alguns metros do local. Algumas XAVIER

pessoas que ainda seguem nas imediações ainda gritam alguns Nem queira saber, Alberto. Por pouco não me lincham em praça
xingamentos a ele. pública.
ALBERTO
ANÔNIMOS Como assim, Xavier, quem tentou te linchar?
Sem vergonha! Imoral! Bandido!
XAVIER
Uma massa enfurecida de fanáticos moralistas! Não sei como
CENA 9 descobriram que eu era o autor da novela. Veja só, me agrediram.
EXTERNA / RUA / DIA Tive que fugir para não ser espancado e por sorte encontrei abrigo
na loja de meu amigo Silva. Caso contrário não estaria aqui para
Xavier é escoltado pelos policiais e entra no carro da polícia. Em contar história.
seguida a viatura parte com as sirenes ligadas. A multidão se
ALBERTO
dispersa em alguns segundos. A alguns metros de distância, duas
pessoas observam a cena de longe. E fostes ao hospital? Está em condições de trabalhar? Não é
melhor tirar o dia de descanso hoje?
TRANSEUNTE 1
XAVIER
O que aconteceu aí? Não tem necessidade. Já fui ao pronto socorro, não foi nada grave.
TRANSEUNTE 2 Só ferimentos superficiais.
Não sei bem, só vi de longe. Mas parece que perseguiram um

72 73
ALBERTO E vamos nos render assim, Alberto? Sem lutar. Simplesmente
Tem certeza? baixar a cabeça e fazer o que eles querem?
XAVIER ALBERTO
Claro. Vou começar a escrever o capítulo da noite. Você veja só o E o que podemos fazer? Ele é o diretor geral, quem somos nós
absurdo da situação, Alberto. Esse bando de carolas exigiu que eu para nos opormos assim?
mudasse a novela, veja se pode? Tentaram me matar só por isso. XAVIER
ALBERTO Ora, mas e a nossa liberdade artística? Cadê aquela liberdade que
Xavier, eu estava te esperando justamente para falar sobre isso. o próprio Claudio sempre se refere quando quer falar do nosso
A emissora foi inundada de telefonemas de gente furiosa com a setor de dramaturgia?
novela a manhã toda. Isso chegou aos ouvidos da direção geral. E ALBERTO
há pouco recebi um telefonema da direção exigindo que a gente Tudo tem limites, Xavier. Tudo tem limites. Você não está
mude... entendendo que a emissora é, antes de tudo, uma empresa que
XAVIER (interrompendo) tem anunciantes, lucros e prejuízos envolvidos. E não é só isso.
O quê? O Cláudio te ligou? Olha quanta gente sustenta suas famílias com o trabalho que
ALBERTO
realizam aqui. Não podemos colocar tudo isso em risco pelo teu
O próprio. Disse que diante de toda a repercussão negativa, temos idealismo.
que mudar a partir de hoje. Dar um jeito no rumo do enredo. XAVIER

XAVIER
Então quer dizer que você, no fundo, está ao lado deles? Olha, no
E você, o que disse? final das contas você não é muito diferente dos fanáticos que me
atacaram hoje.
ALBERTO
ALBERTO
E o que eu ia dizer?
Calma, Xavier, não é nada disso. Você sabe que aqui é um trabalho
XAVIER para todos. Eu tenho família, todos aqui têm. Então a gente não
Não sei? Argumentar, defender nosso trabalho, defender o meu pode também colocar um ideal romântico acima do sustento das
texto. nossas famílias.
ALBERTO XAVIER
Eu tentei Xavier, mas ele estava irredutível... Não se trata de ideal romântico, Alberto, por favor! Isso tem a ver
XAVIER com a nossa vida, com o nosso trabalho também. Afinal se formos
Mas você conhece bem o Cláudio, Alberto, ligue de volta, vamos cedendo, daqui a algum tempo você só vai filmar sermões bíblicos.
explicar a situação. ALBERTO
ALBERTO Eu te entendo, mas eu recebi um ultimato do Cláudio. Ou
Eu tentei, Xavier, claro que tentei. Mas ele também tem que você muda o enredo hoje ou eu terei que colocar um roteirista
responder aos acionistas. E vários anunciantes ameaçaram o substituto.
cancelamento dos anúncios. XAVIER
XAVIER O Cláudio disse isso?

74 75
ALBERTO tudo aqui.
Não só disse, ordenou! Então eu não quero que você fique sem
emprego agora, Xavier. Onde mais você vai trabalhar como Xavier sai do estúdio.
roteirista aqui?

Xavier suspira, coloca as mãos na cabeça. Anda um pouco pelo CENA 11


estúdio, pensativo. INTERNA / QUARTO / NOITE

Cena final do capítulo da novela daquela noite. Reproduzindo


ALBERTO
os episódios finais de Madame Bovary. A protagonista da
Vamos lá, Xavier! Também não é o fim do mundo. Você é uma
novela, sentada na cama, bebe um vidro de Arsênico. Ela coloca
pessoa criativa, tem muita história para contar. Além disso, pode
o vidro vazio, com o rótulo evidenciando o nome “Arsênico”,
colocar tuas ideias de outra maneira, indiretamente. Eu também
sobre o aparador ao lado da cama. Em cima do aparador, há um
já te disse que você trata isso como uma grande arte e não é bem
assim. Trata-se de uma novela televisiva, uma diversão popular. exemplar de Madame Bovary. A mulher deita e fecha os olhos.
Não estamos aqui fazendo alta literatura. Nós dependemos do Sobem os créditos finais.
público, Xavier, e você sempre soube disso.
XAVIER
CENA 12
Tá bom, tá bom. INTERNA / PROSTÍBULO / NOITE
ALBERTO
Um prostíbulo com muitos clientes e inúmeras mulheres vestidas
E você consegue fazer até o horário dos ensaios?
com roupas íntimas. As mulheres conversam com os clientes
XAVIER (olhando no relógio) em mesas e poltronas espalhadas pelo local. Há um aparelho
Consigo sim. Eu já tenho uma solução para tirar essa parte que de televisão ligado no qual a novela está passando e sendo vista
irritou as pessoas sem mudar muito o andamento que eu por alguns clientes. Um dos clientes que está vendo a novela é o
tinha previsto. Anônimo 1, o mesmo que liderou a tentativa de linchamento de
ALBERTO Xavier. Ele está sentado em uma poltrona e uma mulher seminua
E como vai fazer? está sentada em seus joelhos.
XAVIER
ANÔNIMO 1
Ora, fazer o que se fez desde sempre: vou matar a protagonista
Finalmente colocaram fim nesta pouca vergonha. A moral e os
hoje mesmo, e pronto.
bons costumes venceram, que grande dia!
ALBERTO
É a melhor saída?
XAVIER CRÉDITOS FINAIS
Com certeza, no fundo eu só estou adiantando o final de Madame
Bovary. E vai ser a mesma coisa: veneno.
ALBERTO
Está certo Xavier, vai lá escrever enquanto vamos preparando

76 77
78 79
CENA 1
CASA DE ANTONIA / DIA

ANTONIA, 52 anos, cabelos mal penteados e com a raiz branca


aparecendo, está sentada no sofá da sala de estar de uma casa
simples, falando ao telefone. Ela veste um camisetão e uma
bermuda.

ANTONIA
Você tem certeza que não precisa de nada? A mãe pode te levar, se
você quiser eu passo uns dias aí...

INTERCUT
EXTERIOR / DIA / RUA DE UMA CIDADE GRANDE

JULIA, 17 anos, de calça jeans e mochila nas costas, caminha


apressadamente enquanto conversa ao celular:

JULIA
Mãe, se você perguntar mais uma vez se eu preciso de algo eu vou
ficar um mês sem te ligar. Tá tudo bem, pode ficar tranquila.
ANTONIA
É que eu sei que é difícil se adaptar a morar sozinha, filha, a
pessoa pensa que vai dar conta… mas acaba pirando, sabe?
JULIA
Tipo você tá pirando agora?
ANTONIA
Besteira, filha. Eu tô ótima. Só me preocupo com você fazendo
faculdade em outra cidade. Eu te amo, mas filho dá muito
trabalho. Ainda mais depois que o seu pai morreu. Eu estou é
aproveitando a casa só pra mim, isso sim. É o primeiro descanso
que eu tenho na vida!
JULIA

bimbinho A senhora promete que não vai ficar deprimida no sofá o dia
inteiro? Não vai beber? Eu não quero passar meus primeiros dias
de aula preocupada com a minha mãe.
Flávio Voight

81
ANTONIA ROBERTA (rindo)
Filha, não sei de onde você tira que eu sou tão incapaz! Eu tenho É, Bimbinho! Seu brincalhão!
que ir ao mercado, arrumar a casa, tanta coisa… BIMBINHO
JULIA É fácil ser brincalhão quando a comida é boa que nem a sua!
Tá bem, mãe. Se cuida, tá? Fica com o telefone, se você precisar, ROBERTA
me liga. Ai, Bimbinho, só você! Agora, antes de botar o fermento...
ANTONIA
Você também, filha. Beijo, bom...
CENA 3
CASA DE ANTONIA / DIA
ANTONIA escuta o som do telefone sendo desligado por Julia.
Termina a frase mesmo assim. No sofá de casa, Antonia ri e balança a cabeça.
ANTONIA
ANTONIA
Ai, ai, esse Bimbinho, gente...
...bom primeiro dia de aula.
Antonia levanta do sofá e vai até um aparador onde repousam
Antonia olha ao seu redor e respira fundo. Liga a televisão.
uma garrafa térmica e uma cuia de chimarrão. Antonia pega a
cuia e a enche de água, mas desiste.Repousa a cuia no aparador,
olha ao redor, respira fundo e abre a portinha do aparador. Retira
CENA 2 de lá um garrafão de vinho colonial.
ESTÚDIO DE TV / DIA

No cenário do programa culinário, a apresentadora ROBERTA, de ANTONIA

roupa e cabelos impecáveis, faz um bolo. Ao seu lado, BIMBINHO, Se é pra ficar sozinha nessa casa mesmo...
um fantoche de pano representando um menino, com a voz bem
aguda e infantilizada. CENA 4
ROBERTA CASA DE ANTONIA / DIA
...é importante derramar o leite na massa bem devagarinho, Antonia está deitada no sofá com o garrafão de vinho e uma
enquanto continua batendo. pequena taça de vidro no chão, ao seu lado.
BIMBINHO
ANTONIA (bêbada, imita a voz da filha)
Senão a massa fica dura, Tia Roberta?
Não vá ficar o dia inteiro no sofá! Ah, que abuso, como se eu
ROBERTA fizesse isso! Eu faço tanta coisa, porra.
Isso mesmo, Bimbinho!
BIMBINHO Antonia toma todo o conteúdo da taça em um gole só e tenta
De dura já basta a vida, né, tia? levantar do sofá. Cambaleia, se apoia, e caminha titubeante até a
cozinha. Bêbada, Antonia fala para uma câmara que não está lá.

82 83
ANTONIA BIMBINHO
Senhoraaaassss e senhoresssss, bom dia! A receita de hoje é Sem vergonha?
galinha assada!
Antonia toma mais um grande gole de vinho.
Bimbinho surge subitamente ao seu lado. Antonia se espanta.
ANTONIA
BIMBINHO Isso mesmo, Bimbinho! Gente sem vergonha que não aceita que
Galinha assada? Que delícia, tia Antonia! uma mulher viúva completamente desimpedida tenha um novo
amor. Gente inútil. Mas vamos falar de coisa boa, vamos pra
Antonia fica em silêncio. Olha para os lados, estranhando a receita da galinha assada. Você vai precisar de um frango inteiro...
situação. Pisca os olhos como quem tenta enxergar melhor e
continua enxergando Bimbinho ao seu lado. Antonia faz uma Bimbinho abre a geladeira.
expressão de “que seja” e toma mais um gole de vinho.
BIMBINHO
ANTONIA Não tem nenhum frango aqui, tia Antonia...
Isso mesmo, Bimbinho! Essa receita é de família e não tem erro ANTONIA
nenhum! No fundo do freezer, Bimbinho!
BIMBINHO
BIMBINHO
Você vai cozinhar pra família inteira, tia? Não tem nada aqui também não...
ANTONIA
ANTONIA
Não, Bimbinho, hoje é só pra mim. Minha filha está fazendo Caralho... Vem, Bimbinho, vamos fazer compras.
faculdade na capital, sou só eu mesmo.
BIMBINHO
CENA 5
Só você? E o seu marido?
SUPERMERCADO / DIA
ANTONIA
Meu marido morreu, Bimbinho, faz dez anos já. Antonia caminha bêbada empurrando um carrinho de compras.

BIMBINHO ANTONIA
E namorado? Odeio vir no mercado de manhã...
ANTONIA BIMBINHO
Não tenho namorado. Por que, tia Antonia?
BIMBINHO ANTONIA (falando alto)
Você é sozinha? E a sua irmã? Por que só tem velho aqui! Ninguém interessante! Só velho!
ANTONIA (irritada, ainda arrastando a fala por causa do vinho)
Nem comece a falar da minha família, aquele bando de gente sem Pessoas ao redor olham com desconfiança e reprovação. Vemos
vergonha! Antonia pelos olhos dos outros clientes do supermercado,

84 85
gritando sozinha, sem Bimbinho ao seu lado. Antonia vai até o novamente.
açougue.
ANTONIA
ANTONIA Só tem maluco nessa cidade.
Moço! Me vê o maior frango inteiro que você tiver, por favor! BIMBINHO
BIMBINHO Só maluco, né, tia?
Você vai comprar um frango inteiro pra comer sozinha, tia Antonia?
ANTONIA (furiosa)
CENA 6
EU NÃO SOU SOZINHA! CASA DE ANTONIA / ENTARDECER
BIMBINHO
ANTONIA
Desculpe...
Eu gosto muito de fazer receitas com vinho, Bimbinho!
Antonia se inclina e sussurra no ouvido de Bimbinho. BIMBINHO
E vai quanto vinho nessa receita, tia?
ANTONIA
ANTONIA
Além disso, é melhor ser sozinha do que ser que nem a mãe desse
Na receita não vai nada, mas em mim vai a garrafa inteira!
daí…

Antonia aponta para o açougueiro, um rapaz jovem. Antonia toma um gole direto do garrafão.

BIMBINHO
BIMBINHO
O que tem a mãe dele? Você não tá bebendo demais, tia?
ANTONIA
ANTONIA
Vagabunda de marca maior, conhecida aqui na cidade. Assim que Para de me julgar, moleque enxerido! Eu tô só me divertindo! A
o marido morreu, não deu dois meses e já tava casada com outro. vida inteira cuidando de filho, respeitando luto de marido! Agora
Nem esperou o cadáver esfriar... eu vou curtir!
BIMBINHO
O açougueiro se vira e enxerga Antonia inclinada sobre o seu A senhora já tá bem curtida, hein?
carrinho de compras, sussurrando para o nada.
Antonia faz uma cara feia e volta-se para a câmera que não existe
AÇOUGUEIRO
na parede da cozinha.
A senhora falou alguma coisa?
ANTONIA ANTONIA
Nada não! E vamos para a receita!

O açougueiro volta a pesar o frango e Antonia volta-se a Bimbinho Antonia tenta pegar algo no balcão, mas não consegue. Se
desequilibra e cai no chão, bêbada. Bate com a cabeça no piso.

86 87
CENA 7 ANTONIA
CASA DE ANTONIA / NOITE Que é isso?!?
A casa de Antonia está com a iluminação diferente, como em um
sonho. Ao abrir os olhos, Antonia percebe que está deitada no colo Bimbinho passa as mãos pelo rosto de Antonia.
de Bimbinho
BIMBINHO
BIMBINHO Deixa acontecer, tia... Deixa acontecer.
Finalmente você acordou...
ANTONIA
Os dois se beijam.
Ai, minha cabeça... Bati feio. Eu fiquei apagada muito tempo?
ANTONIA
BIMBINHO Mas você é uma criança!
Algumas horas.
BIMBINHO
ANTONIA Sério? Sério que você tá de pegação com um boneco de pano e o
E você não foi embora? problema é a idade?
BIMBINHO ANTONIA
Eu nunca mais vou embora. Fiquei aqui olhando pra você... Pros Uhn… Então você não é criança?
seus olhos... Você é linda quando dorme.
BIMBINHO
ANTONIA (encabulada) Eu posso ser o que você quiser…
Nossa, Bimbinho...
BIMBINHO Os dois se beijam no chão da cozinha. Enquanto os dois se
Foi muito bom ter a sua companhia hoje. Você é muito especial! abraçam e a mão de Bimbinho desliza sobre as pernas de Antonia,
toca uma música romântica.
Antonia sorri.
ANTONIA
BIMBINHO
Só você me entende, Bimbinho... Só você...
Madura, independente... Linda...
BIMBINHO (romântico)
ANTONIA
Você não é difícil de entender… É só tentar te ver como uma deusa,
Linda? não como uma mulher.
BIMBINHO
Sim, linda. Como você podia estar sozinha aqui o tempo todo e Bimbinho beija a boca de Antonia e vai descendo pelo corpo dela
ninguém ter percebido? lentamente, enquanto ela sorri e geme.

Antonia fica encabulada. Bimbinho se inclina e lhe dá um beijo na Várias cenas ocorrem rapidamente ao som da música romântica e
boca. Antonia se assusta. animada, e Antonia demonstra-se muito feliz. Os dois se beijam.
Antonia fica de quatro, com Bimbinho por trás. Antonia fica de

88 89
joelhos no chão. CENA 9
CASA DE ANTONIA / DIA
ANTONIA
Bate na minha cara! Julia abre a porta e encontra a casa bagunçada. Entra com
expressão tensa e encontra Antonia caída no chão.
BIMBINHO
Sua louca! JULIA
Mãe! Acorda, mãe, você tá bem? Acorda, mãe!
Enquanto isso, no balcão da cozinha toca o celular de Antonia.
É Julia. Antonia abre os olhos e repara ao redor. Fecha os olhos e abre
novamente.
Antonia se contorce no chão da cozinha, gemendo, aos beijos com
Bimbinho. O celular segue tocando. Agora Antonia está no chão, ANTONIA
mas dessa vez sozinha, caída, ao lado do garrafão de vinho e com Tô ótima filha… O que cê tá fazendo aqui?
as mãos por dentro da calça. A cozinha está escura, bagunçada,
sem o tom etéreo da sequência anterior. Julia não parece acreditar na mãe. Olha ao redor, para a garrafa de
vinho e para a bagunça na cozinha.
ANTONIA (gemendo)
Ai, Bimbinho! Só você, Bimbinho! Só você!
JULIA
Ótima, mãe? Ótima? Olha essa bagunça! Você dormiu bêbada no
Na mesa, o telefone continua a tocar.
chão!
ANTONIA

CENA 8 Eu passei um pouquinho do ponto, filha, me deixa me divertir.


RODOVIÁRIA DA CIDADE GRANDE / NOITE Não tem nada pra se preocupar aqui.
JULIA
Julia caminha segurando o celular no ouvido.
Parece muito divertido mesmo ficar bêbada no chão. Mãe, eu não
VOZ DA MENSAGEM AUTOMÁTICA (em off) posso ficar aqui cuidando de você. Eu preciso voltar pra faculdade,
Deixe seu recado após o sinal. eu não posso perder aula! Mas eu não vou te deixar assim. Vou te
levar no psiquiatra agora.
JULIA
Mãe, se você não atender esse telefone agora, eu vou pegar uma ANTONIA
passagem de ônibus e vou aparecer na sua casa. Era pra você estar Eu não preciso de psiquiatra, filha!
preocupada comigo aqui, não eu com você! JULIA
Tô vendo que não precisa. Toda largada! Você se importa de fazer
Julia caminha até um guichê da rodoviária. um movimentozinho que seja pra se cuidar, ou prefere que eu
largue a minha faculdade de tão preocupada com você?
JULIA
Moço, qual o próximo horário que você tem pro interior? Antonia fica séria.

90 91
ANTONIA ANTONIA
Tá bem, filha. Por você eu vou. Eu não tenho problema nenhum, filha. Eu tô ótima.

Antonia sorri.
CENA 9
SALA DE ESPERA DO CONSULTÓRIO MÉDICO / DIA

Antonia e Julia estão sentadas nas cadeiras da recepção. Em frente


a elas está uma TV ligada, transmitindo o programa de culinária
com Roberta e Bimbinho.

JULIA
Mãe, o primeiro passo é admitir que você tem um problema. Você
precisa admitir que não está bem.

Antonia fica com o olhar vazio diante da TV. Na tela, Roberta e


Bimbinho conversam.

CENA 10
ESTÚDIO DE TV / DIA

ROBERTA
E daqui a pouco a gente vai acompanhar uma matéria linda! Eu
fui na casa de uma telespectadora e a história dela vai emocionar
vocês!
BIMBINHO
Eu amo as nossas telespectadoras, tia.

Bimbinho olha para a câmera.

CENA 10
SALA DE ESPERA DO CONSULTÓRIO MÉDICO / DIA

A imagem de Bimbinho olhando para a câmera ainda está na TV.


Antonia olha fixamente, como que correspondendo ao olhar de
Bimbinho.

92
Cena 1  (interna / Rômulo / quarto / dia)
Rômulo (20, tem altura mediana, pele parda e rosto inexpressivo
com uma aparência de mais jovem que sua idade. Usa roupas
de segunda mão com toques próprios) acorda de um pesadelo.
Está em sua cama, em sua casa na periferia. Ainda é manhã.
O lençol que desprendeu da cama está envolvido em suor. Pelo
chão latinhas de cerveja barata espalhadas se misturam a roupas,
embalagens de plástico e poeira. Está evidentemente de ressaca,
buffando.

Cena 2  (interna / Rômulo / banheiro / dia)


Rômulo lava seu rosto na água da pia, se apoia na cerâmica
cabisbaixo enquanto toma coragem para olhar o próprio rosto no
espelho. Puxa o ar e solta. Levanta a cabeça para a própria imagem
e a encara de forma confusa.

Cena 3  (interna / Rômulo / ônibus / dia)


Dentro do Ônibus, Romulo está escutando música em seus
fones (música abafada, Wish fulfillment - Sonic Youth, de fundo)
enquanto cochila. Logo a música se interrompe e Rômulo acorda.
Vê o céu fechado entre nuvens enquanto o ônibus chega mais
perto da pequena cidade na praia. Será um dia nublado.

Cena 4  (externa / Betânia e Rômulo / rodoviária / dia)


Rômulo desce do ônibus e Betânia (21, estatura baixa, cabelos
pretos e longos, cara de coxinha e sempre com um ar de otimismo)
se joga em um abraço.

BETÂNIA:  Oi lindo! Como foi a viagem?


RÔMULO:  Ah, longa e entediante. A bateria do meu radinho
praia vazia (mostra o celular) morreu. Vamos sair daqui logo não aguento
mais esses velhos falando.
BETÂNIA:  Só essa mochila? Cadê a mala?
Eduardo Ramos C.

94 95
RÔMULO:  Quis fazer rápido, e acho melhor viajar leve mesmo, RÔMULO:  Como você consegue?
bora. BETÂNIA:  O que foi?
RÔMULO:  Seu otimismo é demais pra mim...
Cena 5  (externa / Betânia e Rômulo / praia com céu nublado / dia) BETÂNIA:  Você que é um fresco. Só quem pode colocar vida na sua
Os dois amigos estão sentados na areia de uma praia. Olham para vida é você.
o mar. Betânia ri. RÔMULO:  Eu nem me sinto vivo.
BETÂNIA:  Mas então? Qual foi dessa pressa toda? Aconteceu BETÂNIA:  Eu estou te vendo Rômulo, você está aqui.
alguma coisa? RÔMULO:  Certeza disso?
RÔMULO:  O de sempre sabe? Mas cada vez pior. Não sei o que é
real mais. Tive um pesadelo essa noite. Cena 9  (externa / rua / noite)
BETÂNIA:  Meu bem… o que você sonhou? As ruas vazias, a luz de um dos pequenos postes que decoram o
RÔMULO:  Não sei…não consigo lembrar. Parece que a cada dia eu calçadão da cidade pisca por poucos segundos. Continua ventando
me sinto um pouco mais apagado. Minhas memórias não estão na cidade.
fazendo sentido.
BETÂNIA:  Você precisa ser mais positivo… não dá para viver Cena 10  (interna / Betânia / bar / noite)
assim. E precisa me visitar mais também.
Betânia está sentada na mesma posição, sozinha. Seu semblante é
Rômulo sorri forçadamente. de arrependimento. Ela olha para a praia na janela ao lado.

Cena 11  (externa / praia / noite)


Cena 6  (externa / Betânia / praia com céu nublado / dia) As ondas batem na praia, os coqueiros se movem com o vento.
Betânia está no mesmo lugar, sozinha. Está tomando uma cerveja
enquanto contempla o mar agitado e o céu nublado. Seus olhos
estão tristes.

Cena 7  (externa / praia / final de tarde)


As ondas batem na praia, os coqueiros se movem com o vento.

Cena 8  (interna / Betânia e Rômulo / bar / noite)


Sentados na mesa de um bar, os dois amigos estão em silêncio
olhando para suas bebidas. Há uma janela aberta ao lado deles, com
a paisagem do mar. Rômulo apaga um cigarro no fim no cinzeiro.

96 97
1  INTERNA / VAGÃO DE TREM / NOITE

No vagão, quase vazio, em pé, segurando-se em uma barra


vertical, Laura (30 anos, cabelos lisos castanho médio, retraída,
melancólica. Arquivista. Solteira) volta do trabalho, com olhar
perdido pensa em algo distante, quase triste. O trem para e Laura
parece deixar um transe, sai do vagão devagar, mas resoluta, com
passos firmes.

2  INTERNA / ESTAÇÃO / NOITE

Laura anda pela estação em meio a pessoas em sentido contrário,


parece ter receio de tocar outros corpos, esquiva-se de qualquer
contato. Chega à saída, inspira profundamente, apreciando o ar
noturno e o som do tráfego intenso e das buzinas.

3  INTERNA / APARTAMENTO / NOITE

Laura abre a porta do apartamento, sempre com semblante


melancólico, com sacolas de compras que deixa sobre o aparador
e retorna à sala já com os pés descalços, segue suavemente o som
do jazz melancólico que toma o ambiente enquanto rega sua única
planta.

4  INTERNA / BANHEIRO / NOITE

Laura entra no banheiro e coloca roupas meticulosamente


dobradas, pijama, sobre a privada, de costas se despe, liga o
chuveiro e entra no banho. Coloca a cabeça debaixo da água, passa
a mão pelo rosto, lágrimas escorrem, chora silenciosamente.
laura
ou
5  INTERNA / VAGÃO / NOITE
do medo e desejo Laura entra no vagão, com uma olhada rápida identifica que não
há lugar para sentar, ocupa a mesma posição de quase todos os
dias, em pé com o corpo encostado na barra metálica. Olha de
Eliane Belani

99
forma vazia, distraída e triste, para um ponto fixo e se perde em do caixão, a mão do Pai de Amália (45 anos, cabelos escuros,
seus pensamentos. sério e fechado. Mecânico. Casado) sobre os ombros da esposa.
Mas sente, como facas penetrantes, os olhares das colegas que
No fundo do vagão uma moça sorridente, Beatriz (mais ou
conversam entre sussurros de maneira acusatória.
menos 30 anos, cabelos curtos cacheados, expansiva, destemida
e sorridente) olha de maneira interessada para Laura, que não a
percebe. As luzes da cidade cortam a janela do vagão de tempos
8  INTERNA / ESCRITÓRIO / DIA ENSOLARADO
em tempos.
Na sala tomada por sons abafados de tráfego, digitação e
conversas esparsas Laura está sentada digitando algo em um
6  EXTERNA / COLINA / DIA ENSOLARADO / FLASHBACK computador, calma e familiarizada com o espaço, com a mesa de
madeira dura, os arquivos e gavetas metálicas. Laura confere o
Em um gramado sob uma árvore frondosa, Laura, (14 anos,
documento que acabou de digitar e envia para a impressão, não
cabelos lisos castanho médio, tímida, solitária desde criança, sem
se incomoda com o som da impressora matricial, age como um
amigos próximos) e sua colega Amália, (14 anos, de longos cabelos
autômato, sem expressão: abre a gaveta, retira um envelope, fecha
cacheados, alegre, destemida, extrovertida, não muito religiosa,
a gaveta, levanta, retira o documento da impressora, destaca
está no  INTERNAto a contra gosto) estão de uniforme escolar,
e retira os picotes, coloca a folha no envelope, caminha para os
saia azul, camisa branca, meias brancas longas e sapatos pretos,
arquivos, abre uma gaveta superior, coloca o envelope em uma
deitadas rindo e arfando como se tivessem acabado de correr
pasta suspensa, fecha a gaveta.
muito. Não muito distante dali, é possível ouvir os sons da escola,
vozes indistintas e canto de pássaros. A luz do sol é entrecortada
pelas folhas secas da árvore quando Amália pega a mão de Laura,
9  INTERNA / SALA DA DIREÇÃO DO  INTERNATO / DIA / .
que retrai os ombros, tensa, todos os sons silenciam.
FLASHBACK

Na sala escura, com móveis pesados, a gaveta de uma escrivaninha


7   EXTERNA / CEMITÉRIO / DIA NUBLADO / FLASHBACK é aberta e dela é retirado um envelope com o nome de Laura
escrito com letras trabalhadas. Laura, 14 e sua Mãe estão sentadas
Laura, 14, está em um funeral, toda de preto com as mãos unidas
diante da Diretora (60 anos, amável e tranquila. Freira) que
em frente ao corpo e cabeça baixa em posição de oração, sua Mãe
estende a carta para a adolescente. Laura, pega e alisa o envelope
(40 anos, cabelo longo castanho, magra e de óculos, aparência
olhando longamente, levanta da cadeira e aperta a carta contra
simples, séria, conservadora, muito religiosa. Costureira. Viúva)
o peito, como uma relíquia, enquanto olha pela janela para um
está ao seu lado, mas parece indiferente ao sofrimento da filha.
ponto fixo, parece absorta, distante e bastante triste, lágrimas
Laura morde os lábios, se sente terrivelmente só. Tudo que ela
silenciosas escorrem de seu rosto. A Mãe e a Diretora conversam,
vê é o caixão branco que ainda não baixou à cova, não presta
mas não é possível ouvi-las com nitidez.
atenção ao padre que reza e gesticula mecanicamente, aos sons
de oração monocórdicos que embalam a cerimonia, não percebe a
Mãe de Amália (40 anos, cabelos cacheados na altura dos ombros,
10  EXTERNA / FRENTE DO PRÉDIO DO  INTERNATO / DIA / .
vaidosa. Dona de casa. Casada) que chora baixinho do lado oposto
FLASHBACK

100 101
Laura, 14, e a Mãe saem do prédio da escola, a Mãe parece de supetão e vai em direção ao banheiro do quarto, chorando e
apressada carregando a mala pesada da filha, Laura, em estado de esfregando os lábios como se quisesse retirar deles o calor e o
torpor, caminha pesadamente, para e olha para o prédio. O som sabor do beijo.
de uma sirene escolar anuncia o fim do período. Mas, em seus
pensamentos, Laura sabe que, uma parte dela, continuará naquele
prédio, naquele tempo. Dá as costas para o prédio e caminha 13  INTERNA / BANHEIRO / DIA PELA MANHÃ
cabisbaixa em direção ao carro estacionado no pátio.
Laura está de pijama, acende a luz, abaixa-se em direção à pia e
molha o rosto, ergue a cabeça, enxuga a face com a toalha, olha
fixamente para o espelho, de maneira pensativa, admirando-se, e
11  INTERNA / VAGÃO / NOITE
passa a mão, a ponta dos dedos, sobre os lábios.
Laura entra no trem, quase que instintivamente, não se
surpreende quando encontra, enfim, um lugar para sentar no
fundo do vagão. Ela suspira enquanto retira de sua bolsa um livro 14  INTERNA / QUARTO / DIA PELA MANHÃ
de poemas ultrarromântico. Quando levanta a cabeça, seus olhos,
O quarto está à meia luz, tudo é bege e opaco. Laura para no
por um momento, encontram um sorriso. É quase como se visse
centro do cômodo e observa o ambiente como se visse algo que
uma aparição fantasmagórica. Não há surpresa ou medo, mas
já não lhe agrada. Caminha para a janela, abre violentamente as
Laura não pode conter a curiosidade de olhar, repetidas vezes,
cortinas e o sol banha o ambiente. Laura se sente estranhamente
para aquela moça dos lábios vermelhos. Nem deixa de sentir
feliz ao trocar de roupa para o trabalho. Para diante do espelho, no
os olhos de Beatriz percorrendo o vagão, ora disfarçando, ora
qual parece não se olhar há muito tempo.
sondando Laura com curiosidade, mesmo que não voltem a cruzar
olhares. Laura fica ansiosa, não sabe como agir, nem percebe que
deixou o livro cair quando, de canto de olho, acompanha o sorriso 15  INTERNA / ESCRITÓRIO / DIA
descer do vagão.
Laura anda pela sala e volta a se sentar, repetidamente. Está
nervosa, não consegue se concentrar, tamborila com os dedos
12  INTERNA / QUARTO DO  INTERNATO / DIA / FLASHBACK sobre a mesa. O tempo parece não passar, olha seguidamente
para o relógio na parede. São seis horas, Laura pega sua bolsa
Pela porta entreaberta vê-se o quarto sóbrio, duas camas
do mancebo próximo à saída, teme perder o trem, sai apressada
paralelamente posicionadas encostadas nas paredes, com duas
batendo a porta.
mesas de cabeceira voltadas ao centro do cômodo, um armário
encostado na parede aos pés das camas. Laura, 14, e Amália estão
sentadas sobre a cama e sorrindo, Laura, tem um disco no colo, 16  INTERNA / VAGÃO / NOITE
Amália se curva, apoiada nas mãos, em direção à colega e a beija
nos lábios. Embora Laura permaneça com o corpo imóvel ela Laura entra no trem, procura com os olhos algo além de um
retribui o beijo. A colega de quarto de Laura entra e se depara, acento livre. Como não encontra lugar para sentar ocupa a mesma
de forma surpresa e assustada, com o beijo. A jovem sai em posição de quase todos os dias, em pé, com o corpo encostado na
disparada para o corredor e é seguida por Amália. Laura se levanta barra metálica. Tenta não olhar fixamente para o sorriso no fundo

102 103
do vagão, mas é difícil parecer indiferente, ela já conhece esse
sentimento de mistura entre medo e desejo. O trem segue viagem,
Laura se deixa embalar pelo som cadenciado das rodas nos trilhos
e se perde em pensamentos do passado e presente. O trem para
e no fundo do vagão Beatriz se levanta e caminha em direção a
Laura. Nesse momento, como se saísse de um transe, Laura vê
Beatriz que sorrindo lhe estende um papel dobrado e depois desce
do vagão. Laura lê o papel e enrubesce. O trem ainda está parado,
Laura desce apressada do vagão indo atrás de Beatriz. A porta do
vagão se fecha.

FIM

104
nesse roteiro, no original, tem duas cenas não numeradas, e logo dps estava pulando da 5 para FADE IN
a 7. E também pula do 27 para o 29. Eu consertei a continuidade, mas depois fiquei pensando se
as cenas não numeradas foram intencionais ou não. 1 EXTERNA / NO MEIO DA MATA / DIA

Placa na beira da estrada: “Sejam bem-vindos a Itapuca”.


Serra Gaúcha, segunda década do século XX. Árvores nativas
se destacam na paisagem. Distante, ao longe, rapazes cantam
em dialeto italiano e ouve-se o barulho de machados cortando
árvores.

FERDINANDO
Puxa vida, está difícil cortar essas árvores, estou com muita fome.
JÚLIO
Pare de se queixar e continue o trabalho, você não vê que eu já
cortei mais de 10 árvores.

2 EXTERNA / JARDIM / CASA DO SR. FRANCISCO IZOTON / DIA

Senhor FRANCISCO (45) para de podar as plantas do jardim e fica


ouvindo as vozes de FERDINANDO (18) e JÚLIO (19) que cantam
quase que sem parar uma música do folclore italiano.

FRANCISCO
Poxa vida, que belas vozes! Fico admirado em como esses rapazes
cantam.
IZABELA (18)
Pai   —  Izabela interrompe o trabalho de ajudar o pai na poda
das plantas,  —  são nossos vizinhos, estão cortando o mato para
plantar milho  —  Volta a fazer o serviço.  —  Não sei quando
vieram morar por aqui.
FRANCISCO
Mas então, filha, gostei muito da cantoria deles. Que tal a gente
convidar esses scapoloni para virem jantar aqui em casa e fazer
nem pombos... nem amores umas cantorias?
IZABELA

Darci Zuffo Sim, pai. Se quiser posso ir até lá para convidá-los.

107
FRANCISCO JÚLIO
Nada disso sua assanhada, deixe que eu mesmo irei fazer o Muito prazer em conhecê-lo, a que devemos a honra da sua visita?
convite. Vá chamar sua mãe. FRANCISCO
Sabe pessoal, é costume aqui por essas bandas que a gente convide
INTERNA CASA DO SR. FRANCISCO IZOTON / COZINHA / DIA os novos vizinhos para uma janta. Além disso, ouvi vocês cantando
nos últimos dias. Será que vocês aceitariam jantar conosco hoje à
DOMINGA (40), esposa de Francisco, lava as louças do café da
noite e fazer umas cantorias? Meu pai sempre costumava cantar
manhã na cozinha. Izabela entra correndo, ofegante. no coral da igreja, ele faleceu há muito tempo... eu, minha esposa
IZABELA e minha filha Izabela gostaríamos de ter uma noite animada.
Mãe, o pai tá te chamando. Sabe, temos um bom vinho da última safra. Que tal? Posso
mandar preparar o brodo de galinha?
Dominga pega uma toalha de prato, seca as mãos e vai
rapidamente atender ao chamado do marido. Ferdinando e Júlio se entreolham. Estão famintos.

FERDINANDO
EXTERNA / JARDIM / CASA DO SR. FRANCISCO IZOTON / DIA
Sim, sim, será um prazer lhe fazer uma visita hoje à noite.
FRANCISCO
JÚLIO
Mulher, prepare uma boa janta, com brodo, cuca e bastante vinho. Será um prazer beber alguns copos de vinho, por aqui só temos
Hoje vamos convidar os nossos vizinhos para jantar e fazer uma tomado água ultimamente.
cantoria por aqui. Essa casa anda muito quieta ultimamente... vá,
Domingas, vá... vá...
4  INTERNA / CASA DO SR. FRANCISCO / NOITE
Izabela sorri e fica contorcendo as mãos.
Os irmãos Zuffos cantam La Verginella, enquanto isso Francisco
oferece-lhes mais vinho. Dominga traz queijo, batatas doces e
3 EXTERNA / NA MATA PRÓXIMA À CASA DOS ZUFFOS / DIA
uma cuca.

Francisco segue por uma estrada e se aproxima do local onde os FRANCISCO


irmãos Zuffos estão derrubando mato. Mas que músicas bonitas, onde aprenderam a cantar tão bem
assim.
FRANCISCO
FERDINANDO
Bom dia pessoal, eu sou o vizinho de vocês, me chamo Francisco
Aonde a gente morava, lá pelas bandas de Garibaldi... lá perto de
Izoton. Tudo bem por aqui?
Bento Gonçalves. Nos reuníamos sempre e frequentávamos o coral
FERDINANDO da igreja. Durante as festas nós nos reuníamos para cantar, com
Bom dia Senhor Francisco, muito prazer em conhecê-lo. Eu sou muito vinho e galinhada.
Fernando Zuffo  —  e dirigindo-se a Júlio  —  e este é o meu irmão
FRANCISCO
Júlio Zuffo.
E viva la Italia. Mulher, mais vinho aqui! E vamos cantar La bella

108 109
violeta. FERDINANDO
Boa noite senhorita, me chamo Ferdinando Zuffo, viemos de
E a cantoria prossegue. Num canto da mesa, Izabela observa e Garibaldi há poucos dias e fomos até a casa do Sr. Francisco jantar
sorri para Ferdinando. e fazer umas cantorias. Será que a Senhorita não se importaria de
me dar um copo d’água? Aquele brodo que comi na janta estava
bastante salgado.
5 EXTERNA / PORTA FRENTE CASA FRANCISCO / NOITE
A senhorita sorri e faz um sinal de que vai descer para oferecer a
JÚLIO água. Ferdinando, demonstrando satisfação e alegria, decide abrir
Senhor Francisco, foi uma noite muito agradável, obrigado pela o portão da casa e espera a moça diante da porta fechada.
janta, fazia dias que a gente não comia tão bem assim. Sabe, desde
que chegamos aqui, é a primeira vez que temos um jantar como Júlio também se aproxima da porta onde Ferdinando está.
esse. Aguarda até a senhorita chegar com uma jarra de água. CELESTA
(19) se aproxima e ao observar os dois rapazes na porta traz a água
FRANCISCO
Que nada meu rapaz, vocês sempre serão bem-vindos aqui, essa e dois copos.
casa precisava de um pouco de ânimo. E viva a Itália. JÚLIO
Agradecido. Boa noite senhorita, sua graça?
Izabela aproxima-se de Ferdinando, sorri e disfarçadamente,
CELESTA
escondida do pai, coloca num dos bolsos dele uma grande batata
doce. Ferdinando encabulado retribui o sorriso. Me chamo Celesta, sou filha do dono do armazém. O Senhor
Antonio Poletto.
FERDINANDO FERDINANDO
Obrigado, Senhor Francisco, foi uma noite muito agradável Muito encantado senhorita, me chamo Ferdinando.
também.
Celesta alcança os copos e os dois irmãos bebem bastante água.
Ferdinando dirige-se para a esposa de Francisco.
FERDINANDO
FERDINANDO Muito obrigado, senhorita.
Obrigado senhora, gostei muito do seu brodo e as cucas então…
estavam uma delícia, qualquer dia desses vou lhe pedir a receita. Ferdinando devolve o copo e sorri para ela. Ela também sorri
para ele.

6 EXTERNA / PORTÃO DA FRENTE CASA DO SR. ANTONIO / NOITE JÚLIO


Obrigado, senhorita. Muito boa noite. Ah... o meu nome é Júlio,
Os dois irmãos seguem por uma estrada cantando. Passam em
sou irmão do Ferdinando  —  Celesta se mostra desinteressada e,
frente de outra casa que pertence ao Senhor Antonio Poletto.
encabulada, volta a olhar sorrindo para Ferdinando.
Ao longe, vê-se uma senhorita na janela do andar superior que
observa os dois cantores. Ferdinando olha, para e sorri para ela.
Os dois irmãos se afastam noite adentro.

110 111
7 EXTERNA / ESTRADA DE TERRA / DIA ANTONIO (continuando)
E aí rapazes, vocês são recém-chegados por aqui, né? De onde
Ferdinando e Júlio caminham por uma estrada para chegarem
vocês vieram?
até o centro da vila de Itapuca onde fica o Armazém do Senhor
Antonio Poletto. Ao longe ouve-se o sino da Igreja central. JÚLIO
Atravessam várias ruas. Numa das ruas da vila, várias moças e Viemos de Garibaldi, mas antes disso trabalhamos na construção
crianças conversam em voz alta. Uma delas é Celesta, que para e de uma estrada de ferro. Aquela que vai de Porto Alegre até Bento
olha na direção de Ferdinando. Gonçalves. Não sei se o senhor conhece. Sou Júlio Zuffo e este é
meu irmão Ferdinando.
JÚLIO
ANTONIO
Olha só quantas senhoritas, senti vontade de me casar.
Benvenuti ragazzi.
Júlio vira-se em direção de Ferdinando e vê que ele está com o
Antonio estende a mão e cumprimenta os Zuffos.
semblante sério e com o olhar fixo.
ANTONIO (continuando)
JÚLIO (continuando)
Muito prazer eu me chamo Antonio Poletto, nasci no interior de
Bah, parece que viu um raio... tá hipnotizado meu irmão?
Bento Gonçalves, lá na vila de Faria Lemos, mas por lá as terras
eram muito difíceis por isso resolvi me mudar para essa nova
Ferdinando nada fala. Celesta retorna para o meio das moças
vila onde espero conseguir bons resultados, pois a vida não anda
e segue caminhando ao mesmo tempo em que fica olhando
fácil  —  malicioso.  —  E como anda a caça?
interessada, mas com alguma timidez, na direção de Ferdinando
que está parado, observado-a.
Júlio toma um copo de vinho e dirige o olhar para Antonio.
JÚLIO (continuando)
JÚLIO
Se cuida mano, às vezes olhar demais dá muito problema. E é falta
Sabe Senhor Antonio, estávamos vindo por uma estrada e aí
de respeito. O que as pessoas daqui podem pensar?
vimos umas moças passeando. Foi então que o fratello aqui ficou
hipnotizado por uma delas.
8  INTERNA / SALA / ARMAZÉM DO SR. ANTONIO / DIA
Júlio toma outro copo de vinho rapidamente.
Júlio e Ferdinando finalmente chegam até o armazém. Os dois se
sentam numa mesa. O SR. ANTONIO (60), dono do armazém, fala JÚLIO (continuando)
em voz alta. Ela era bonita… tinha olhos claros, cabelos loiros e compridos.
Sabe como é hoje em dia esses jovens solteiros estão loucos para...
ANTONIO
Mulher, traga uma garrafa de vinho aqui para essa mesa. Antonio muda de expressão.

Antonio também se senta junto dos rapazes e começam a ANTONIO (furioso)


conversar. Santo Dio o que você está falando, as moças daqui costumam ser

112 113
muito virtuosas. 10 EXTERNA / QUINTAL / NA CASA DE ANTONIO / DIA

Ferdinando é apresentado para cada membro da família de


Antonio se afasta e entra na cozinha. Ao longe, ouvem-se gritos e
Antonio: esposa, filhos, tios e tias. Finalmente Celesta aparece
falas incompreensíveis.
junto à mesa dos convidados e senta-se próxima de sua mãe.
FERDINANDO
Ela está vestindo seu melhor vestido, aquele que as moças usam
Irmão mio, vá lá dentro chamar o Senhor Antonio. Vá lá que eu no domingo. Ferdinando se aproxima e lhe entrega o pacote
quero falar com ele. embrulhado. Ela olha para sua mãe que balança suavemente a
cabeça dando-lhe permissão para abrir o pacote. Ela desembrulha
Júlio se levanta e vai até o balcão do armazém e chama o Senhor e sorri admirada, levando a mão direita nos lábios. Seus olhos
Antonio. brilham quando vê um colar de madrepérolas com uma ponteira
dourada. Ela coloca o colar e olha para Ferdinando.
JÚLIO
Senhor Antonio, meu irmão quer falar com o Senhor. CELESTA
Agradecida.
Antonio sai da cozinha com uma expressão raivosa na face e vai
em direção à mesa onde Ferdinando está sentado.
11 EXTERNA / QUINTAL / NA CASA DE ANTONIO / DIA
ANTONIO Antonio, demonstrando alegria e satisfação, conversa bem
O que o jovem ragazzo deseja falar comigo? animado com os convidados. Convida Ferdinando, Júlio e alguns
FERDINANDO parentes (um tio e dois primos) para irem até o porão ver o que
Senhor Antonio, eu e meu irmão somos do interior de Garibaldi. ele e a família produziram nos últimos dias e todos acompanham
Talvez temos demonstrado desrespeito com o Senhor e sua filha. Antonio.
Eu lhe peço desculpas, mas ficaria honrado em poder conhecer
sua filha e sua família. Com sua permissão e a supervisão sua e de
sua família, claro... 12  INTERNA / PORÃO / NA CASA DE ANTONIO / DIA
ANTONIO
No porão, Antonio continua conversando animadamente, mostra
Se é assim então podemos conversar. Vá até minha casa no as pipas de vinho e as varas cheias de salame que estão secando.
domingo após a missa.

9 EXTERNA / QUINTAL / ESTRADA NA VILA DE ITAPUCA / DIA 13 EXTERNA / QUINTAL / NA CASA DE ANTONIO / DIA

Música Italiana. Surge Ferdinando vestido com roupas novas. Traz Retornam para a mesa do almoço, cheia de restos de comida.
no bolso do paletó um pacote amarrado com fita de presente. Os Ferdinando olha para Celesta que está sentada junto da mãe e das
dois irmãos andam a cavalo por uma estrada da Vila de Itapuca. O tias, respeitosamente quieta.
sino da igreja de Itapuca soa distante. É domingo. Ela está usando o colar de madrepérolas e num gesto suave toca
no objeto.

114 115
14 EXTERNA / QUINTAL / NA CASA DE ANTONIO / DIA 18  INTERNA / IGREJA / VILA ITAPUCA / DIA
Ferdinando e Celesta caminham em direção do parreiral próximo Dentro da igreja, ao lado direito, os bancos estão ocupados por
da casa, mantendo certa distância entre eles. homens e no lado esquerdo as mulheres estão cobertas com véus
Celesta olha para algumas videiras, escolhe um grande cacho de brancos e negros. No altar, o PADRE CATELLI (70), vestido de todos
uvas, corta-o e oferece para Ferdinando. os paramentos sacerdotais da época, aguarda o término do canto
dos fiéis para proferir o sermão. Ferdinando olha na direção do
CELESTA lado das mulheres e pisca levemente o olho esquerdo, ao que é
Lá onde vocês moravam vocês tinha parreiral? correspondido, com um piscar de olhos e um sorriso de Celesta.

Ferdinando saboreia o cacho de uva rapidamente. PADRE CATELLI


Sentai-vos.
FERDINANDO
Não, nada. Hum… essa uva está uma delícia! O Padre se dirige até o parlatório situado no lado esquerdo da
igreja. Sobe. Observa a multidão.

15 EXTERNA / QUINTAL / CASA DE ANTONIO / DIA PADRE CATELLI (continuando, com sotaque italiano)

Próxima da mesa, sentada numa cadeira de balanço está a Hoje só tenho a lhes dizer três coisas; se fizerem o bem irão para o
matriarca da família, VERGINIA (85), a qual observa atentamente a céu; se fizerem o mal irão para o inferno, e por minha parte façam
caminhada de Ferdinando e Celesta. o que vocês quiserem.

VERGINIA O Padre desce rapidamente do parlatório, dirige-se até o altar,


Varde fioi, non va mia far carobole su tel vinhal. Su co le retche, abre um livro preto.
Santo Dio.
PADRE CATELLI (continuando)
Ferdinando e Celesta se entreolham sorrindo. Querem se casar Ferdinando Zuffo com Celesta Poletto, o
casamento será realizado na próxima quarta-feira quando
estarei rezando missa lá na Linha Quarta. Se alguém tem algum
16 EXTERNA / QUINTAL / CASA DE ANTONIO / DIA impedimento que fale agora ou cale-se para sempre.

SIMONA (50), mãe de Celesta conversa com suas irmãs voz alta. Ao
O Padre fecha o livro, faz o sinal da cruz, sai do altar e dirige-se
longe, observa-se uma visão extensa da propriedade. até a sacristia.
O povo sai da igreja, as mulheres se reúnem em pequenos grupos
para conversar. Os homens fazem o mesmo.
17 EXTERNA / MONTES / PAISAGEM DE ITAPUCA / DIA

De longe se vê a Igreja da Vila de Itapuca, de onde vozes emanam


num canto intitulado Hosana. 19 EXTERNA / NUMA ESTRADA / ITAPUCA / DIA

Os jovens Ferdinando e Celesta caminham a pé por uma estrada

116 117
com barro, seguidos por Antonio e o pai da noiva. ARSANELO
Padre, o que é um genu…?
A noiva, vestida com o melhor traje, carrega em suas mãos os
chinelos, seus pés estão com lama. Ao seu lado segue o noivo que PADRE CATELLI
também veste o melhor traje, mas está com botas cheias de lama. É um banquinho onde as pessoas se ajoelham em frente do padre,
vai..vai que eu estou com fome.
Eles chegam à capela da Linha Quarta. Em seguida, os fiéis que
recém tinham assistido à missa saem.
Celesta procura um local para lavar os pés enquanto observa os 21  INTERNA / SALA DE DESPENSA DA CAPELA DA LINHA
fieis saindo e se reunindo em pequenos grupos para conversar. QUARTA / ITAPUCA / DIA
Encontra uma pequena bica. Seu pai se aproxima. Ferdinando
Arsanelo procura pelo banco, de um lado para outro e nada
acena distante.
encontra.
ANTONIO De repente, enxerga uma caixa de madeira com o dizer
Aguarde aqui enquanto irei falar com o Padre para realizar o "querosene".
casamento.
CELESTA
Sim pai, pode deixar. 22  INTERNA / CAPELA DA LINHA QUARTA / ITAPUCA / DIA

Arsanello apanha o caixote e coloca na frente do casal de noivos


que recém tinha entrado na capela.
20  INTERNA /CAPELA DA LINHA QUARTA / ITAPUCA / DIA
Ferdinando observa o caixote e percebe que está sujo de esterco de
Antonio entra na capela de madeira, dirige-se até o Padre que pombos e fica confuso, olha para a noiva que também está confusa
está guardando os apetrechos da missa. Ao seu lado, um sacristão sem saber o que fazer.
chamado ARSANELO (80) auxilia o padre.
O Padre sai da sacristia e se aproxima do casal de noivos. Ao ver o
ANTONIO caixote, o Padre tem um acesso de fúria.
Bom dia Padre, trouxe os noivos para o Senhor dar a benção do
PADRE CATELLI (irritado)
casamento.
O que é isso Arsanelo, eu não te pedi um simples banquinho para
os noivos se ajoelharem, madonna mia.
O Padre continua nas suas tarefas, olha para os lados e se dirige ao
sacristão.
O sacristão balbucia e tenta proferir algumas palavras
Antonio retorna para os noivos.
ARSANELO
PADRE CATELLI
Mas padre...
Arsanelo procure um genuflexório para os noivos se ajoelharem,
eu irei na sacristia para tomar um café e comer algumas bolachas, O Padre então, num ato de fúria, desfere um coice no caixote.
pois estou de jejum e abstinência desde ontem. Restos de ninhos de pombas, esterco voam sobre o vestido da

118 119
noiva e o traje do noivo que se apressam em limpá-los. montados em cavalos. Atrás deles, um pequeno grupo de pessoas
também a cavalo. A nona Verginia segue numa charrete atrás do
PADRE CATELLI pai da noiva. Cantam alegremente canções italianas. Na frente da
Estão contentes em se casar. Se sim então vos declaro marido e caravana segue um gaiteiro, tocando e cantando.
mulher, ide em paz e que o Senhor Deus vos acompanhe.
De repente, começa uma tempestade. As pessoas tiram as capas
de chuva de cavaleiro e procuram vesti-las rapidamente, mas não
O padre, aborrecido, retira rapidamente a estola, coloca-a sobre
é o suficiente.
o altar e dirige-se até a porta da sacristia, sem falar qualquer
palavra. Os cavalos relincham, se movem agitados e se assustam com os
trovões. Cai uma chuva torrencial.

23 EXTERNA / CAPELA DA LINHA QUARTA / ITAPUCA / DIA


26 EXTERNA / PRÓXIMO A UMA PONTE / ITAPUCA / DIA
O Padre sobe em um cavalo e sai em ritmo acelerado.
As pessoas observam o volume de água aumentar e começam a
O sacristão grita através da porta lateral.
passar sobre a ponte. A charrete com a nona Verginia atrasa a
ARSANELO caravana, o cavalo dela se assusta e se recusa a andar. Antonio
Padre, padre espere o senhor foi convidado para a festa do retorna com seu cavalo, agarra os arreios do animal da charrete e
casamento… consegue levar a nona Verginia para fora da ponte. A noiva Celesta
fica apreensiva, mas segue logo atrás e consegue também sair.
O Padre nem ouve o que Arsanelo diz e se afasta do local a galope. Abruptamente, a pequena ponte de madeira se parte em vários
O casal Ferdinando e Celesta saem da igreja. pedaços e é levada pela correnteza do rio.
O noivo se agita ao perceber que não pode mais continuar a
24 EXTERNA / NA FRENTE DA CAPELA DA LINHA QUARTA /
travessia. Celesta está do outro lado do rio.
ITAPUCA / DIA Antonio faz gestos nervosos em direção ao noivo.
Um grupo de pessoas, dentre os quais um gaiteiro, se aproxima ANTONIO
e começa a cantar e a tocar para os noivos, que recebem os Pessoal, vamos sair rápido daqui, temos que chegar até a casa de
cumprimentos. A noiva recebe um abraço do pai. um vizinho próximo daqui.
ANTONIO VERGINIA
Seja feliz, minha filha Santo Dio, mamma mia, che brute robe.
CELESTA
Agradecida, pai. Do outro lado da ponte, Ferdinando indignado, desolado e
impedido de estar perto de sua amada, brada com alguns gestos.

25 EXTERNA / NUMA ESTRADA / ITAPUCA / DIA FERDINANDO


Celestaaa! Celestaaa!
Um grupo de pessoas caminha, os recém-casados agora estão

120 121
Antonio, Celesta, a charrete da avó e alguns dos acompanhantes
saem em disparada pela estrada.
Ferdinando hesita por uns momentos dá meia volta com o cavalo.
Ele e os demais cavaleiros se dirigem em disparada em outra
direção.

27  INTERNA / QUARTO DA CASA DO VIZINHO DE ANTONIO


/ NOITE

Celesta se remexe na cama. Fica de bruços. Encosta o braço


esquerdo em um travesseiro e mexe na aliança de casamento.
Agita-se e tenta dormir.

28  INTERNA / QUARTO DA CASA DE FERDINANDO / NOITE

Ferdinando se remexe na cama. Fica de bruços. Encosta o braço


esquerdo em um travesseiro e mexe na aliança de casamento.
Agita-se. Solta um longo suspiro e tenta dormir.

FADE OUT

122
O uso de caixa alta nesse texto me deixou confusa, as vezes o nome do personagem aparece com
EXTERNA / Varanda da casa de DONA FÁTIMA / final da manhã
caixa alta, as vezes nao. E como ela usa a caixa alta pra dar destaque em palavras muitas vezes

Outro comentario, que vou falar só porque depois desse processo todo fiquei com pena, pois Década de 90. Num dia de sol, numa pequena varanda de casa
se as oficinas tivessem rolado do jeito seria pre pandemia, eu poderia ter visto cada texto com térrea, com algumas plantas plantadas em vasos e latas envolvidas
as autoras e ter pensado junto em como podemos usar os mil recursos da tipografia que temos com papel de presente, vemos ELIS (ELISÂNGELA PICCININ),
a nossa disposição. Nesse texto o recurso de usar aspas sempre para marcar as falas poderia mulher, 30, vestida com calça jeans e camiseta polo da EPAPES
ser retirado, pois a fala começa sempre depois de dois pontos (:), de forma que nao precisaria (Empresa Paranaense de Pesquisas), cabelos amarrados, sentada,
usar outro simbolo (") para indicar isso. E quando precisar marcar o fim da fala e o começo de postura atenta, está com uma prancheta no colo, conversando
uma descrição, poderia ser usado só o travessão. Nesse momento de marcar o fim de uma fala com DONA FÁTIMA, 70, e MEU VELHO, 80, tomando chimarrão
a autora usou diversos recursos, tem partes do texto que depois de fechar as aspas está sendo numa cadeira de balanço, as mulheres em cadeiras comuns.
usado parenteses, tem partes que só fecha as aspas mesmo, tem partes que fecha as aspas e
usa-se um travessão. Alguns trechos acho que ajuda a construir a poetica do texto, as vezes acho ELIS: 
“E como é a rotina dos senhores? O que a senhora faz
que atrapalha, vira poluição e distração. durante o dia? E o senhor?”
DONA FÁTIMA:  “Ah, menina… a gente passa o tempo é cuidando
da criação, os netos visitam… Meu velho terminou de pintar a casa
não tem três dias, né meu velho?” MEU VELHO acena, RONCA a
cuia e passa para a esposa. Dona Fátima pega a garrafa térmica ao
seu lado e enche novamente a cuia. “A menina aceita uma cuia?”

ELIS aceita a cuia, olha para o quintal. Um PERU passa com


as penas eriçadas pela terra nua do quintal, próximo a casa.
Mais adiante, chegando na rua, começa um jardim. O PERU
aparentando desconfiança, olha bravo para Elis.

ELIS demonstra apreensão:  “Seu peru não gostou de mim, Dona


Fátima!”
DONA FÁTIMA desdenha:  “Liga não, não faz nada, os perus todos
olham assim enviesado mesmo!”
ELIS continua com uma feição de medo, mas volta ao
questionário:  “A última pergunta: quantas vezes por semana
vocês ficam com os netos?”

dona fátima
EXTERNA / QUINTAL DE DONA FÁTIMA

Sharon Caleffi Vê-se a casa de frente, pintada de uma cor laranja forte, nova.

125
ELIS RONCA a cuia, entrega a dona Fátima, recolhe a prancheta, ELIS para de cantar ao ver quatro PMs saindo do restaurante.
se despede, desce devagar dois degraus de escada que levam para São COMANDANTE GETÚLIO, SARGENTO ALMEIDA, SOLDADO
o quintal. Ela dá dois ou três passos e o PERU a ataca, fazendo BELLINI E SOLDADO 1. Todos cumprimentam Elis com “bons dias”
GLUGLUGLUGLU, olhos fixos. DONA FÁTIMA pula a varanda educados. Os PMs entram em duas viaturas e Elis no restaurante.
correndo, segura o PERU pelo pescoço e doma o bicho sem
machucá-lo, como um desses pequenos e idosos mestres dos
filmes de artes marciais. ELIS para, assustada, mas encantada com
a cena que acaba de ver. O PERU se debate mais e tenta fugir. EXTERNA / RESTAURANTE SCHNEIDER
SEU SCHNEIDER, 70 anos, alemão, branco e gordo, está atrás de
DONA FÁTIMA:  “Não fica parada aí, menina, anda logo” ELIS corre um balcão. O restaurante é pequeno, tem apenas 8 mesas e o
para a rua. balcão, com uma porta para a cozinha. A TV está ligada na Rede
Manchete, com anúncios locais. O FILHO DO SEU SCHNEIDER
(branco, 50, tímido, um homem cujo destino é continuar o
trabalho do pai sem muito entusiasmo), está entregando um
INTERNA / PARATI DA EPAPES
comercial a la carte (arroz, feijão, um grande bife, batatas fritas
ELIS entra em uma Parati branca, pelo vidro da frente vemos a e salada simples de tomate e alface) para CLIENTE 1, homem, 40.
moça respirando com dificuldade, mas rindo também. Acena Um CASAL com CRIANÇA, 8, está em outra mesa, com os mesmos
na direção de Dona Fátima e do Peru que agora, solto, anda pelo pratos.
terreiro procurando alguma coisa. Elis arruma os questionários
numa pasta executiva da EPAPES, e dá a partida, saindo e SEU SCHNEIDER olha para ELIS, fala com sotaque carregado
levantando poeira pela estrada de terra. “alemón”:  "Mas se não é a moça Piccinin da EPAPES! Como a
menina está! Quanto tempo!"
ELIS, sorrindo, bem acolhida:  “Tudo bem, seu Schneider, e o
senhor como está?”
EXTERNA / Frente do HOTEL E RESTAURANTE SCHNEIDER
FILHO DO SEU SCHNEIDER:  “O pai é teimoso, continua comendo
/perto do meio-dia
porcaria e o médico disse…”
Parati com a logo EPAPES para em frente a uma casa tradicional
SEU SCHNEIDER grita irritado: 
“Oh bom! Deixa de bobagem! Meu
do sul, com térreo em alvenaria pintado com cor forte, vermelho-
pai morreu com 90 anos comendo banha de porco todo dia!”
amarronzado e piso superior em madeira de cor mais clara. O
restaurante é na parte inferior.
FILHO DO SEU SCHNEIDER faz aceno decepcionado com a cabeça,
ELIS sorri.
ELIS desce do carro e se dirige ao restaurante cantarolando a
música “Comida”, dos Titãs:  “A gente não quer só comida, a gente
ELIS:  “Quantos policiais almoçando aqui hoje… o posto daqui não
quer comida, diversão e arte / A gente não quer só comida, a gente
tinha só dois? Aconteceu alguma coisa?”
quer comida do seu Schneider”.
SEU SCHNEIDER:  “Menina… teve um assalto a um ônibus na

126 127
rodovia aqui perto! Essa madrugada! O Debastiane lá do Paraíso assistindo à TV na programação de Pato Branco. Chega seu
encontrou as sacoleiras todas presas no bagageiro, mas o pior almoço em várias travessas, ela se serve e come com gosto.
é que mataram os dois motoristas!!! Um horror! Vieram uns Começa o programa policial do meio-dia, Repórter Cidadão. Na
bandidos não sei de onde atacar o ônibus bem aqui!” TV, PARANGOLÉ, moreno, 35 anos, encorpado, rosto sempre um
FILHO DO SEU SCHNEIDER, parecendo orgulhoso:  “Até o pouco vermelho, como se estivesse sempre cansado ou irritado,
Parangolé veio pra cá de manhã fazer reportagem…” fala rápido, com trejeitos de narrador policial antiquado, puxando
muito o “r” das palavras.
ELIS: “Mas prenderam os assaltantes, então? Eles pareciam
tranquilos, os policiais…”
PARANGOLÉ:  “E agora, amigos e amigas, notícias quentes de
SEU SCHNEIDER:  “Ainda não! O Comandante Getúlio acredita que
Saudade da Serra! Nesta madrugada um ônibus de sacoleiras
sejam de fora e já fugiram pra longe! Foi de madrugada, já estão
do Paraguai foi assaltado perto da cidade. Passei a manhã lá na
no Paraguai, em Foz do Iguaçu, em São Paulo! A essa hora, estão
região. Vamos ver a reportagem.”
bem longe!”
SEU SCHNEIDER vai até a TV e aumenta o volume num botão. A TV
FILHO DO SEU SCHNEIDER, concordando:  “Isso, já estão longe.
não tem controle remoto:  “Opa!!! Tá na hora!”
Não tem mais nenhum desses bandidos aqui na cidade, não”.
ELIS um pouco preocupada ainda:  “Espero que seja assim mesmo, Todos no restaurante olham para a TV interessados.
que estejam longe… porque eu ainda tenho bastante trabalho
aqui… Estamos fazendo uma pesquisa sobre os hábitos dos idosos
paranaenses, deixei o senhor por último hoje, seu Schneider. Vou
voltar lá pelas 4 horas, depois de ver (olha num papel que tira do EXTERNA / Posto da PM de Saudade da Serra / meio da
bolso) um tal de Jair Fernandes e uma Otília Pasquali." ELIS pega manhã
uma caneta e olha para SEU SCHNEIDER, que já entende que ela
Mostra COMANDANTE GETÚLIO em pé e PARANGOLÉ ao lado, com
quer indicações.
microfone na mão, entrevistando.
SEU SCHNEIDER para o filho:  “O Jair é aquele meio bugre que
mora no barranco?”
PARANGOLÉ, olhando para a câmera da TV:  “Estamos aqui no
FILHO DO SEU SCHNEIDER, meio envergonhado com o jeito Posto da Polícia Militar de Saudade da Serra para conversar com
preconceituoso do pai:  “Esse, pai, mora com os filhos. Eles são o Aspirante Getúlio, comandante do 21o. Batalhão da Polícia
meio chucros”  —  faz sinal de beber com uma mão:  “mas devem Militar de Dois Vizinhos, sobre o assalto de um ônibus na rodovia
estar trabalhando, estão fazendo uma obra fora.” próxima à cidade”  —  vira-se para o policial:  “Aspirante Getúlio,
SEU SCHNEIDER:  “Então, é esse, mora do lado de lá da cidade, como foi que a polícia soube do assalto?”
depois do rio, na última rua. A moça acha fácil. A dona Otília mora COMANDANTE:  “Recebemos no começo da manhã um telefonema
perto da igreja.”  —  ELIS anota as informações e guarda o papel. de um morador da zona rural da cidade, relatando que havia
SEU SCHNEIDER bate as mãos uma na outra uma vez, mudando de encontrado numa estrada rural próxima a sua propriedade
assunto:  “Vamos de comercial, então?” um ônibus com pessoas gritando dentro. O morador soltou as
mulheres que estavam presas no bagageiro e elas contaram sobre
ELIS acena tranquila e escolhe uma mesa próxima à janela, o assalto. Esse agricultor encontrou então dois homens mortos na

128 129
parte de dentro do ônibus, nos bancos da frente, que descobrimos ônibus na parada Três Pinheiros em Guarapuava, onde podem
depois que se tratavam dos dois motoristas.” ter visto que as passageiras vinham de longe e teriam um bom
PARANGOLÉ:  “Então foi um latrocínio, aspirante Getúlio?” dinheiro. Recomendamos que as pessoas que viajam para compras
no Paraguai não tragam dinheiro no ônibus, mas façam seus
COMANDANTE:  “As evidências mostram que sim. Devido à
saques em Foz do Iguaçu, para evitar esse tipo de crime.”
urgência da situação contatamos o posto policial de Saudade
da Serra para atender as primeiras providências e partimos PARANGOLÉ:  “Muito obrigado, comandante.” Vira para a câmera
para lá imediatamente. O sargento Almeida e o soldado Bellini da TV:  “E aqui foi o repórter Parangolé para o Repórter Cidadão.”
foram os primeiros a chegar e colheram os primeiros relatos das O programa retorna ao estúdio, o mesmo PARANGOLÉ comenta
testemunhas.” o assalto em tom animado, indignado:  “Nós sempre escutamos
PARANGOLÉ:  “As testemunhas conseguiram descrever os sobre esse tipo de assalto mas nunca havia acontecido aqui! Isso é
sujeitos?” bandidagem de cidade grande, querendo dominar nossa região!
Mas a força policial do Sudoeste não vai deixar isso acontecer!
COMANDANTE:  “Não com muita clareza. Eram 5 homens
Mais informações após os comerciais!”
armados, encapuzados. Cercaram o ônibus com um carro preto
e duas motos, e fizeram o motorista parar. Dois deles entraram SEU SCHNEIDER diminui o volume da TV, em silêncio. Todo o
no ônibus com as armas e falaram para o motorista seguir os restaurante permanece em silêncio por uns momentos.
outros, enquanto ameaçavam as passageiras. Quando chegaram CRIANÇA diz com medo:  “Mãe, os bandidos estão aqui em
ao local onde o ônibus foi encontrado pela manhã, revistaram as Saudade?”
passageiras e colocaram no porta-malas, levando como produto PAI DA CRIANÇA finge calma, finge desdém:  “Não filho, imagina,
do ato uma grande soma em dinheiro, e todas as joias, relógios e já estão no Paraguai. Já foram embora. Você viu o que o policial
celulares das senhoras.” falou né?”
PARANGOLÉ:  “E sobre o assassinato dos dois motoristas, o que a CRIANÇA não parece satisfeita, abraça a MÃE, que faz carinho em
polícia pode averiguar?” sua cabeça.
COMANDANTE:  “As passageiras relataram que ouviram os tiros, FILHO DO SEU SCHNEIDER:  “Quando vieram aqui almoçar,
mas não sabiam o que estava acontecendo. Elas agora estão falaram que não estão nem procurando esses bandidos aqui não.
aguardando a empresa mandar um novo ônibus para retornar a Devem ter ido embora mesmo.”
Piracicaba.”
SEU SCHNEIDER, espantado:  “Sim, sim, aqui não tem bandidage
PARANGOLÉ:  “E agora, como estão as investigações?” desse tipo, não, que mata dois homens! Meu Deus! Dois homens
COMANDANTE:  “Passamos a descrição do carro preto e das duas de família, trabalhadores! Onde já se viu!”
motos para a polícia de todo estado e de Santa Catarina. Mas
acreditamos que os suspeitos se evadiram do local em direção ELIS permanece em silêncio, não consegue comer muita coisa.
a Foz do Iguaçu e Paraguai. Não acreditamos que os indivíduos
sejam da região.” FILHO DO SEU SCHNEIDER:  “A moça quer um café? Está tudo
PARANGOLÉ:  “A polícia então acredita que são bandidos de fora bem?”
da cidade?” ELIS: “Tudo bem sim, só estava aqui pensando… que horror né? E
COMANDANTE :  “Sim, imaginamos que tenham escolhido o tão perto!”

130 131
FILHO DO SEU SCHNEIDER:  “Ah, mas não tem perigo não… a moça ELIS:  “Ô de casa! É da casa de Jair Fernandes? Seu Jair!!! Ô de
pode ficar tranquila… qualquer coisa corra pra cá, a gente fica por casa!”
aqui o dia todo”
Chegando ao final da subida vê-se um quintal bastante sujo e
uma casa mista mal acabada, com cômodos em várias etapas
de construção e de diferentes materiais. Alguns cômodos estão
EXTERNA / ORELHÃO / logo após o almoço pintados de branco, outros no tijolo, outros sendo construídos.
ELIS:  “Seu João, é a Elis. O senhor assistiu ao Repórter Cidadão? No quintal há garrafas quebradas, cigarro, restos de construção,
Estou com um pouco de medo.” (Ouve). “Sim, todo mundo diz que ferramentas. Como é um lugar alto, é possível ver grande parte
devem ter fugido, sim.” (Ouve). “Claro, se acontecer alguma coisa das ruas desse lado da cidade ali de cima, a vista é bonita. ELIS
eu ligo sim.” (Ouve). “Já fiz três, agora à tarde mais três.” (Ouve). para a uma distância segura da casa, ainda gritando as mesmas
“Tudo bem comigo sim, não precisa mandar o seu Valdir não. Para palavras. Aparece SEU JAIR, 70 anos, pele morena clara, com calça
o senhor também.” (Ouve). “Até amanhã.” social, sapato e camiseta de cooperativa. Manca um pouco, parece
doente.

SEU JAIR:  “Boa tarde, moça, eu sou o Jair!”


INTERNA / CARRO DA EPAPES, EM MOVIMENTO ELIS, simpática: “Boa tarde! Meu nome é Elisangela Piccinin”
ELIS dirige devagar a Parati pela cidade. Toca Nova York de Mostra o crachá. “Trabalho para a EPAPES, nós estamos fazendo
Chrystian e Ralf no rádio, ela acompanha cantando junto. Todas uma pesquisa com os idosos aqui de Saudade da Serra, o senhor
as ruas da cidade são calçadas com pedras irregulares. A cidade pode conversar um pouco?”
vai mudando aos poucos, as casas tornando-se mais espaçadas, SEU JAIR:  “De onde a moça é? Da prefeitura?”
aparecem porções de terreno com hortas. O terreno começa a ELIS: 
“Não, da EPAPES, Empresa Paranaense de Pesquisas… é
inclinar, a rua sobe um pouco e parece dividir um lado de uma em como o IBGE, só que do Paraná.”
dois barrancos. Uma placa caseira com o número 120 pintado a
SEU JAIR mostra no olhar que ainda não entendeu.
mão aparece ao lado de uma estradinha inclinada do lado direito
da estrada. Elis para e desce. ELIS: “ Como se fosse o Censo, mas só do Paraná, e só com
idosos!”
SEU JAIR ilumina o rosto: 
“Um Censo para os velhos? Eu nunca
respondi um Censo, nunca vieram na minha casa!”
EXTERNA / RUA EM FRENTE À CASA DO SEU JAIR / começo ELIS:  “Isso! O senhor pode conversar?”
da tarde
SEU JAIR:  “Claro, claro! Vou buscar umas cadeiras para a gente
Não se vê a casa da rua, é preciso subir a estradinha inclinada. sentar.”
Elis faz isso com alguma dificuldade, a terra solta, fina, está
escorregadia. ELIS sobe batendo palmas com a mão e a prancheta Sentada em sua cadeira com o questionário no colo e lápis na mão,
e gritando. ELIS tenta não reparar, mas repara na braguilha aberta do seu Jair.
Ela não demonstra tanto conforto quanto na casa de dona Fátima,

132 133
está se sentindo um pouco mais tensa, senta mais ereta, na ponta ELIS olha no relógio: “Bom, seu Jair, muito obrigada, era isso.
da cadeira, como se fosse levantar a qualquer momento. Atrás Seus filhos não tem idade para responder, então vou indo, tudo
dela e de seu Jair, a casa é escura, com poucos móveis, difíceis de bem? Ainda tenho mais duas casas para visitar”
distinguir. SEU JAIR:  “Tudo bem, moça, obrigado pela visita! Passar bem!”

ELIS:  “Seu nome é Jair Fernandes, isso? E a idade?”


SEU JAIR:  “73 anos.”
EXTERNA / RUA EM FRENTE A CASA DE SEU JAIR / meio
ELIS:  “ O senhor mora sozinho?”
da tarde
SEU JAIR: “Não, moro com meus dois filhos. Sou divorciado,
mas minha ex-mulher já faleceu, há muito tempo… A gente se ELIS desce devagar o barranco de volta para o carro, com medo

separou…” de escorregar no barranco de terra bastante solta e fina. Quando


chega na Parati e põe a chave na porta, o carro preto para bem
ELIS tenta ser educada ao cortar para a próxima pergunta:  “E qual
próximo a ela. Dentro dele, ANTONIO FERNANDES, 48, e JOSÉ
o nome e a idade dos seus filhos seu Jair?”
FERNANDES, 45, ambos bêbados, olham para Elis. JOSÉ permanece
SEU JAIR:  “Os nomes são Antonio e José… A idade… não sei bem… quieto, anestesiado.
O Tonho é mais velho, deve ter uns… 50, 48? O Nego, quer dizer,
o José, tem uns… 45? Acho que é por aí. A moça quer ver nos
ANTONIO, irritado:  “A dona é da prefeitura? Tava incomodando o
documentos?”
pai de novo?”
ELIS: 
“Não precisa… se o senhor não se importa, preciso terminar
ELIS:  “Não, não, eu sou da EPAPES… o IBGE do Paraná… Como
um pouco rápido aqui que ainda tenho duas entrevistas…”
se fosse um Censo, mas do Paraná… meu nome é Elisângela” –
SEU JAIR: “Desculpa as divagação, moça… é que meus filhos são mostra o crachá pendurado ao pescoço por um cordão.
pedreiros e trabalham fora a semana toda… fico muito sozinho…
ANTONIO lê o crachá, tentando focar, está visivelmente bêbado,
mas pergunte! Pergunte!”
mas consegue:  “Elisângela Piccinin…”
O questionário vai sendo preenchido por Elis de forma automática
JOSÉ FERNANDES, que estava quieto no banco do carona, também
e rápida, a conversa fica inaudível enquanto as páginas vão
visivelmente bêbado, parece acordar e diz:  “Então a dona tem que
passando até chegar à última. ELIS faz a última pergunta:  “E
perguntar pra gente também, o Censo nunca veio na nossa casa!”
como é a rotina do senhor? O que o senhor faz durante o dia?”
SEU JAIR:  “Quase nada, moça… tenho as costas machucadas… ANTONIO olha enraivecido para o irmão, que continua atento,
ouço o rádio, faço almoço… lavo a louça se as costas deixam… e o olhando ELIS, solícito. ELIS olha para o banco de trás do carro,
dia passa…” SEU JAIR levanta a cabeça, olha na direção da rua e muito sujo, com várias ferramentas de pedreiro jogadas de
sorri. “Olhe lá! Meus meninos estão chegando!” qualquer jeito. Duas bolsas grandes de mulher chamam atenção
de Elis.
ELIS olha também. Um carro preto vem pela rua, devagar, em
ziguezague e freando com frequência, como se o motorista ELIS: “Não, não dessa vez. Dessa vez é só com idosos. Obrigada
estivesse muito bêbado e incapaz de dirigir. pela atenção, tenho mais lugares para ir...”

134 135
ELIS começa a abrir o carro para entrar e vê pelo retrovisor, não a INTERNA / RESTAURANTE DO SEU SCHNEIDER / meio da
uma longa distância, aparecerem duas motos. Ela olha para trás. tarde
Olha para os filhos do seu Jair. Os rostos de ANTONIO e JOSÉ se
Não há mais clientes, apenas SEU SCHNEIDER e o FILHO, que
fecham por um instante e os olhos dos três se cruzam. ELIS ouve
contam dinheiro no balcão.
a voz do policial na reportagem:  “Um carro preto e duas motos”.
Tenta fingir que não percebe nada e abre a porta do carro, mas
ELIS, gritando: “Seu Schneider! Os filhos do seu Jair roubaram o
ANTONIO agarra seu braço.
ônibus! Eles estão atrás de mim, socorro! Acuda!”
ELIS puxa o braço com força e se solta. ANTONIO joga o corpo pela
FILHO DO SEU SCHNEIDER:  “O quê? Mas não é possível… é o quê?”
janela, tenta puxar ELIS pela roupa e acaba puxando o cordão, que
machuca o pescoço da moça. ELIS grita. ANTONIO solta o cordão, Ouve-se SOM DE MOTOCICLETAS chegando e parando.
mas se recupera e segura novamente, machucando mais. ELIS, ELIS:  “São as duas motos! O carro preto, duas motos!”
gritando, puxa o cordão com uma mão, consegue entrar no carro FILHO DO SEU SCHNEIDER, compreende e age:  “Vamos para o
e trancar a porta. O crachá não está mais pendurado no final do hotel, aqui pelos fundos, vem, pai, rápido, leva a Elisângela pros
cordão, mas ELIS não percebe. Nesse momento, as motos param últimos quartos”
atrás do carro e um dos homens desce.
ELIS respira fundo, olhando para a ranhura da chave e dá a SEU SCHNEIDER e ELIS correm pela porta dos fundos, o FILHO DO
partida. Olha para ANTONIO, que está descendo do carro, e o SEU SCHNEIDER corre trancar a porta do restaurante, olhando de
homem da moto está se aproximando, acelera. SEU JAIR surge fora os motoqueiros já vem na direção deles. O FILHO DO SEU
de repente na frente do carro, ELIS tenta desviar, mas bate nele. SCHNEIDER corre também. Ouvem-se MURROS E PONTAPÉS na
Ouve-se uma PANCADA e dois SONS de pneus passando pelo porta do restaurante.
corpo de SEU JAIR. O carro morre.
ELIS está aturdida, assustada, e vai colocar a mão na maçaneta
para descer quando vê os homens se aproximando. Agora JOSÉ
também está saindo do carro. ANTONIO e o motoqueiro tentam INTERNA / CORREDORES E QUARTO DE HOTEL / meio da
abrir as portas, um de cada lado. ELIS consegue desligar o carro e tarde
ligar novamente, acelera e foge. O Hotel é uma casa de madeira organizada em vários quartos. O
FILHO DO SEU SCHNEIDER alcança ELIS e SEU SCHNEIDER num
dos últimos quartos, tranca a porta e corre para o telefone.

EXTERNA / HOTEL E RESTAURANTE DO SEU SCHNEIDER


FILHO DO SEU SCHNEIDER:  “Aqui é do hotel do Schneider, acho
/ meio da tarde
que os assaltantes estão aqui!” — as palavras dele se tornam
ELIS para o carro na frente do restaurante do Seu Schneider e inaudíveis enquanto narra o que aconteceu.
entra correndo. ELIS senta-se no chão, num canto, e começa a chorar:  “Matei o
seu Jair, matei o seu Jair”.

SEU SCHNEIDER está sentado em uma cama com a mão no peito.

136 137
Parece sentir uma dor forte. ELIS não percebe isso. Continua a Na rua em frente ao Posto Policial, uma aglomeração de pessoas.
chorar. O FILHO acalma o pai e o faz deitar. Fora, barulhos de DONA FÁTIMA se destaca da multidão e corre na direção de ELIS.
DESTRUIÇÃO DE PORTAS se aproximando. O FILHO arrasta um ELIS ao vê-la recomeça a chorar, DONA FÁTIMA a abraça e ajuda a
móvel para fechar a porta quando alguém começa a CHUTÁ-LA. levá-la para dentro.
Ouve-se a SIRENE da polícia. GRITOS:  “Parados! Polícia!” Um
TIRO. CORRERIA. Silêncio. PASSOS pelo corredor.

Voz do SARGENTO ALMEIDA:  “Seu Schneider! É o Sargento INTERNA / POSTO POLICIAL DE SAUDADE DA SERRA /
Almeida!” minutos depois
O lugar é pequeno. Um saguão está separado da sala do Sargento
FILHO DO SEU SCHNEIDER afasta o móvel que estava na frente da por um balcão. Atrás do balcão estão ANTONIO e JOSÉ, algemados.
porta e sai correndo. Volta com o SGT ALMEIDA e os dois carregam Os dois observam ELIS entrando.
SEU SCHNEIDER, com muitas dores. ELIS continua chorando
no chão, percebe tudo, mas não levanta. SOLDADO BELLINI se JOSÉ, gritando e correndo na direção de Elis: 
“Você matou meu
aproxima dela com cuidado. pai sua puta! Vou te matar! Sua puta! Sua puta! Vou dar um tiro na
sua testa!”
SOL BELLINI:  “Moça, sou o Soldado Bellini. O que houve?”
ELIS:  “Eles estavam atrás de mim… os bandidos… eu fugi… o seu JOSÉ consegue chegar perto e bate em ELIS com as mãos
Jair apareceu… eu matei o seu Jair… eu matei o seu Jair...” algemadas, ela cai no chão. SGT ALMEIDA e SOL BELLINI seguram
SOL BELLINI com voz calma:  “Moça, já chamamos a ambulância o homem. SGT ALMEIDA bate várias vezes na cabeça de José com
para levar o Seu Jair para Beltrão… Vamos rezar para tudo dar o cassetete. José fica desacordado. DONA FÁTIMA ajuda ELIS a
certo…” levantar. ELIS encontra os olhos de ANTONIO a encarando.
ANTONIO segura um olhar enraivecido, mas controlado. Ergue
ELIS, mais calma, lembrando assustada:  “Mas e os bandidos?
Cadê os motoqueiros?” alguma coisa numa das mãos algemadas e mostra:  o crachá.
Lemos em letras grandes:  “ELIS” e, logo abaixo “Elisângela
SOL BELLIN:  “Os motoqueiros já estão sendo levados para a
Piccinin”. ELIS olha para seu peito e só agora percebe que
delegacia de Dois Vizinhos. O comandante ainda estava aqui
ANTONIO havia conseguido arrancar seu crachá do cordão na luta.
quando tudo aconteceu. Pegamos quatro. Venha, moça, vamos
para o posto de polícia, lá você pode ligar para alguém vir buscar a
ANTONIO, apenas com os lábios, sem som:  “Elisângela Piccinin.
senhorita.”
Vou te matar, piranha.”
DONA FÁTIMA, gritando para os policiais:  “Fernando Almeida
ELIS levanta e sai com SOLDADO BELLINI.
e Luciano Bellini, que vergonha! Como vocês deixam essa moça
junto com esses bandidos! Onde já se viu! Isso é uma delegacia de
respeito ou vocês são a guarda mirim? Vamos menina! Fora daqui!
EXTERNA / POSTO POLICIAL DE SAUDADE DA SERRA / Vamos pra outro lugar!”
hora do café da tarde

138 139
ELIS e DONA FÁTIMA saem do posto. INTERNA / PARATI DA EPAPES / anoitecer

ELIS está no banco do carona, JOÃO dirige. O outro carro da


EPAPES aparece atrás deles às vezes. Ela olha quieta a paisagem
pela janela. Vai anoitecendo devagar. Ela pega no sono.
INTERNA / BAR E RODOVIÁRIA SAUDADE DA SERRA /
Final da tarde, um pouco antes do pôr do sol
ELIS e DONA FÁTIMA estão num bar com uma tabela de horários
de ônibus em uma parede. Várias fotos de Saudade da Serra, SONHO DE ELISÂNGELA / dia
em diversos anos diferentes, 1974, 1980, 1986, 1990, 1993, estão ELIS está conversando com DONA FÁTIMA e MEU VELHO na casa
pendurados na parede. Na mesa delas, uma garrafa de vidro de laranja quando aparece ANTONIO, com uma arma na mão.
Coca-cola e dois copos.
ANTONIO fala “GLUGLUGLUGLU” como um peru. Som de TIROS,
ELIS tem um hematoma no rosto onde levou a pancada de José. acerta MEU VELHO e DONA FÁTIMA. Se aproxima devagar de ELIS
Olha preocupada para o relógio de pulso. falando “Elisângela Piccinin… GLUGLUGLUGLU… Elisângela
Piccinin… GLUGLUGLUGLU.
ELIS: “Dona Fátima, já faz uma hora. O seu João e o seu Valdir já
estão chegando pra me buscar. A senhora pode ir pra sua casa, eu
espero sozinha.”
INTERNA / CASA DE ELIS, 30 anos depois / madrugada
DONA FÁTIMA:  “Imagina só. Eu fico aqui com a menina. Não
custa.” ELIS acorda do pesadelo. Seu quarto é todo de madeira, simples.

ELIS fala assustada: “Eu matei ele mesmo, Dona Fátima, senti Apenas a cama, uma cadeira, um guarda-roupa. No cabelo, alguns
as rodas passando, bum! Bum! Duas vezes. Matei. Não dá pra cabelos brancos se misturam aos escuros. Rugas na pele mostram
sobreviver… os filhos dele, dona Fátima… sabem meu nome… eles a passagem dos anos. Levanta e coloca um roupão
vêm me pegar...”
ELIS, murmurando:  “Eu matei o seu Jair, eu matei o seu Jair”.
DONA FÁTIMA:  “Vêm nada, menina, é tudo cachorro que ladra e
não morde...”
ELIS vai até a cozinha. Toda a casa é de madeira. Começa a mexer
ELIS:  “Eles mataram dois homens. O que custa matar uma mais?”
no fogão para acender o fogo. Liga o rádio. Toca “Nova York” de
Cesar Menotti e Fabiano.
DONA FÁTIMA só fica quieta. Outra Parati da EPAPES para na
frente do bar. Descem JOÃO, 45, e VALDIR, 47, com camisas sociais
ELIS murmura:  “Estragaram toda a música”.
com o mesmo emblema da camiseta polo de ELIS, entram no bar.
Toca um TEMA DE RESOLUÇÃO. Os quatro conversam, não se
ouve o quê, ELIS entrega uma chave a JOÃO e os três voltam ao
carro. EXTERNA / CASA DE ELIS, em algum lugar não conhecido da
zona rural / amanhecer
O sol vai nascendo revelando o campo, algumas colinas,

140 141
pinheirais. A casinha de Elis é pequena, pintada no mesmo tom de continua até um viveiro, onde estão os perus mais pequenos.
laranja da casa de Dona Fátima e Meu Velho. Fica perto da estrada. Enquanto pega, beija, acaricia cada um dos pintinhos de
A música termina, o radialista entra. Enquanto ele fala, entramos peru:  “Vocês vão cuidar a mamãe Fátima, né filhotes? TITITI…
na casa. Nenhum enfeite, muitos espaços vazios. Em um canto Você vai cuidar… TITITI… Você vai cuidar também… TITITITI…
da sala, uma pilha de caixas de ovos grandes, maiores que ovos Vão cuidar sim, vão cuidar sim...”
de galinha. Elis sentada na mesa, olhando para os pinheirais pela
janela, com uma xícara na mão. Elis, que agora é Dona Fátima, sorri.

RADIALISTA:  “E agora informações do setor policial. A região


Sudoeste do Paraná está em expectativa para a soltura dos irmãos FIM
Antonio e José Fernandes, que cumpriram 30 anos por assalto a
mão armada e assassinato de dois motoristas de caminhão em
Saudade da Serra. Eles serão soltos a qualquer momento. Mais
informações você confere no Repórter Cidadão com Juliano
Mitrut, ao meio dia e meia! Outra música começa.
Ouve-se um MENINO, 10, gritar:  “Dona Fátima! Ô Dona Fátima!”
ELIS levanta devagar e grita: 
“Tô indo ô peste!” – Vai devagar até a
porta e olha para o menino zangada:  “Que é?”
MENINO com um pouco de medo, estende um pote de sorvete e
uma nota de 20 reais:  “A mãe pediu meia dúzia de ovos, Dona
Fátima, tá aqui o dinheiro”.

ELIS desce a escadinha e pega as coisas na mão do menino, quieta.


O menino também se cala. Quando ela vira as costas, ele faz um
sinal da cruz. ELIS volta, entrega o pote ao menino e 10 reais de
troco.

ELIS:  “Pronto! Chispa daqui!”


MENINO, na bicicleta:  “Obrigado Dona Fátima!”. Um pouco mais
longe grita:  “Bruxa, bruxa!”.

ELIS não demonstra ter escutado. Vai até uma portinha no porão
da casa, retira uma tigela com grãos e caminha até um dos lados.
Abre uma portinha, joga os grãos no chão e chama:  “TITITI,
vem, vem, TITITI…” Aparecem vários perus, de vários tamanhos
diferentes, e começam a comer. ELIS passa por eles sorrindo e

142 143
CENA 1
INTERNA / MANHÃ / QUARTO DE LUCA

Luca, 39, alto, esguio, detetive de polícia, está deitado sobre


sua cama de casal e, debaixo dela, existem algumas camisetas
amassadas. Há duas garrafas de uísque e um copo de vidro em
cima da cômoda ao lado da cama. Uma dessas garrafas está vazia
e a outra pela metade. Luca levanta-se com muita dificuldade
devido à ressaca e pega um cigarro de seu bolso e o acende. Ele se
desloca para a janela e olha alguns instantes para o horizonte.
Laura, 34, baixa, magra, professora de história, se aproxima
seminua por trás de Luca abraçando-o pelo ventre e beijando seu
pescoço.

LAURA
Você vai me esperar hoje à noite também?
LUCA
Só se você me levar para jantar (sorri).
LAURA
Talvez eu te ensine a ter bons modos com uma mulher.
LUCA
De novo?

Os dois riem ainda abraçados sem desviar o olhar do horizonte.

LAURA
Então eu vou me trocar pra trabalhar e poder te levar a um bom
restaurante.

Laura solta o ventre de Luca e dá um beijo em seu ombro, indo em


direção à cama para se vestir.

LUCA
a v í bora da C antareira Tem certeza? Eu dou muito prejuízo. A última vez que uma
mulher teve que pagar a conta foi quando eu ainda usava um anel
em meu dedo e, hoje em dia...
Angelo Brocco

145
Laura vira-se apreensiva para Luca e olha para sua mão. Luca Luca entra em seu carro e retira sua carteira do bolso da jaqueta.
levanta sua mão esquerda e a balança para Laura. Abre a carteira e saca uma aliança de casamento. Na aliança está
gravado o nome de sua ex-esposa.
LUCA
[...] Não uso mais nada nela, como pode ver (sorri).
CENA 4
Laura abana a cabeça e sorri enquanto ainda se veste. INTERNA / NOITE / QUARTO DE AMARA (FLASHBACK)

Flashbacks da imagem de sua mulher e momentos eróticos com


ela começam a surgir na mente de Luca. As imagens se misturam
CENA 2
com o momento em que ele descobre a traição dela com outro
EXTERNA / MANHÃ / FACHADA DA CASA DE LUCA
homem.
Luca e Laura saem de dentro da casa. Laura aguarda enquanto
Ele coloca a aliança sobre o painel do carro e olha fixamente para o
Luca tranca a porta. Após isso, Luca acompanha Laura até o táxi
objeto por alguns instantes com uma expressão triste e apreensiva
que a está esperando.
no rosto. Em seguida engata a chave na ignição, liga o motor do
LUCA carro e arranca com ele em direção à delegacia.
Laura, não quer mesmo que eu leve você?
LAURA
Não precisa, o motorista já é meu conhecido. É até bom porque ele CENA 5
me atualiza das coisas que ouviu no rádio (sorri). INTERNA / MANHÃ / TÁXI

LUCA O táxi percorre um longo trecho da rua durante um trânsito


Bom, você que sabe... A gente conversa. intenso. Após duas quadras dirigindo, o taxista para em um
semáforo. Ao lado da rua, encontra-se o IML da cidade.
Laura se afasta de Luca e abre a porta traseira do táxi para entrar Laura, que estava prestando atenção no percurso do taxista, olha
no carro. para a localização do IML. Ao lado da entrada do prédio estão
Amara (37, ex-mulher de Luca) e um policial conversando.
LUCA
E ó... Eu vou cobrar o restaurante, hein... Promessa é dívida (abre
um sorriso).
CENA 6
Laura retribui o sorriso e fecha a porta do táxi, que logo arranca o EXTERNA / MANHÃ / IML
motor do carro, deixando Luca sozinho. Dois colaboradores do IML saem dos fundos do local com uma
maca com rodas carregando um cadáver coberto por uma lona
preta. Eles chegam até os dois e o policial abre o zíper mostrando
CENA 3 o cadáver. Amara inclina-se para observar o corpo.
INTERNA / MANHÃ / CARRO DE LUCA

146 147
CENA 7 azucrinar a gente. Mas diga lá, o que tem pra mim dessa vez.
INTERNA / MANHÃ / TÁXI
O delegado alterna o olhar entre os relatórios e a televisão que
Laura faz uma expressão de desgosto em seu rosto. O semáforo dá
ainda passa a notícia do assassinato.
sinal verde e o motorista arranca com o motor do carro.
LUCA
Algum caso novo pra mim?
CENA 8
DELEGADO
EXTERNA / MANHÃ / IML
Sim, nós recebemos uma notificação de caso de assassinato perto
O policial fecha o zíper preto cobrindo o cadáver. Os dois da Serra da Cantareira. Eu preciso que você vá até lá junto com o
colaboradores voltam com a maca pelos fundos do IML. Amara Jean (31, auxiliar investigativo) pra investigar. Parece muito sério.
aproxima-se do policial e lhe dá um beijo discreto, logo em
LUCA
seguida olhando para os arredores da rua como se estivesse
Tudo bem, pode me adiantar alguma coisa?
preocupada com que alguém lhe observasse. Em seguida, os dois
se despedem e Amara desaparece andando. DELEGADO
Não, você vai ter que ir até lá para descobrir. Eu tô muito ocupado
aqui nessa delegacia. Não demore muito, talvez eu precise de mais
gente por aqui pra acalmar essas pessoas.
CENA 9
INTERNA / MANHÃ / DELEGACIA

Luca entra na tumultuada delegacia onde trabalha. Há uma CENA 10


movimentação constante dentro do ambiente. Telefones tocam EXTERNA / MANHÃ / LOCAL DO CRIME
sem cessar. Pessoas resmungam para um agente que está
segurando alguns arquivos. Luca chega com a viatura policial acompanhado por seu
ajudante Jean. Eles desembarcam da viatura e vão lentamente
Luca olha para uma televisão instalada na delegacia e começa em direção à casa localizada em uma periferia. A fachada do
a prestar atenção nas notícias. A televisão mostra imagens lugar está assegurada por dois policiais que estão conversando
censuradas da cena de um assassinato e da vítima. O delegado e rindo, segurando um copo descartável com café. Luca e Jean
surge da porta de seu escritório e encontra Luca. cumprimentam os dois policiais com a cabeça e entram.
DELEGADO
Tá uma loucura essa cidade ultimamente... (ele fala enquanto olha
os documentos em mãos) Parece que todos os casos vieram parar CENA 11
nessa delegacia. Haja energia e paciência pra lidar com toda essa INTERNA / MANHÃ / LOCAL DO CRIME
gente desesperada. Dentro da casa há várias manchas de sangue espalhadas pelo chão
LUCA e outra única e enorme, como se um corpo tivesse sido arrastado.
Calma, delega. Isso ai já passa. É só dar uma massageada no A sala está totalmente desorganizada, entretanto, os móveis estão
ego e na esperança desses pobres coitados que eles já deixam de intactos, apenas o tapete está encharcado de sangue. Em cima

148 149
dele há o corpo da vítima com a face totalmente queimada, sem as Amara fazia num lugar desses? Ela nunca entraria nesse muquifo
duas mãos, os seios e os dois pés. sem uma boa razão.
Luca olha para o corpo e cobre sua boca com a mão. Os olhos JEAN
começam a lacrimejar enquanto se aproxima do cadáver. Um dos A investigação ainda não tem pé e nem cabeça. É difícil tirar
policiais do local se aproxima para informar sobre a situação da alguma conclusão agora, ainda mais no estado em que você tá...
investigação. Além disso, pode ser que ela não tenha vindo aqui. Pode ser que os
bandidos só arrastaram o corpo e largaram nesse lugar.
POLICIAL
LUCA
Meus pêsames, detetive. Infelizmente ela não tem como ser
É verdade...
identificada porque o rosto é irreconhecível. Mas os documentos
foram encontrados e achamos isto dentro da bolsa que estava ao
Jean aproxima-se de Luca e chacoalha seu corpo após agarrá-lo
lado do cadáver.
pelo ombro.
O policial mostra a aliança de casamento que contém o nome
JEAN
de Luca gravado. Luca toma a aliança do policial e a analisa
Vai pra casa, tira o dia de folga que eu cuido daqui... Pode ficar
cuidadosamente.
tranquilo que você vai ficar sabendo de tudo o que aconteceu.
LUCA LUCA
Não tenho dúvidas. É da minha ex-mulher. Eu preferia que nada tivesse acontecido.
POLICIAL
Luca esboça um sorriso sem graça para Jean e vai em direção à
Vou deixar com você, então.
porta da casa enquanto Jean o observa.
O policial chefe reúne os outros envolvidos na investigação do
local e saem da casa, deixando apenas Luca e Jean.
CENA 12
JEAN EXTERNA / MANHÃ / PARTE DE FORA DO LOCAL DO CRIME
Luca, se você não estiver bem, eu posso tomar conta sozinho, você Luca se despede vagamente dos policiais que estão no local
sabe que não precisa seguir em frente com isso... conversando. Ele se move com rapidez até seu carro. Luca fecha
LUCA os olhos por alguns segundos, suspira e aciona o motor do carro,
Eu sei, eu sei... Eu realmente não tô bem com tudo isso, mas... saindo do local com um arranque rápido. Todos os policiais voltam
seus olhares para o carro que acabou de sair.
Luca observa os espaços da cena do crime e em seguida circula
pelo lugar com passos apressados.
CENA 13
LUCA INTERNA / FINAL DA MANHÃ / CARRO DE LUCA
Parece que tem alguma coisa errada aqui, eu não sei. O que é que a
Luca está dirigindo seu carro na Avenida Paulista em direção à sua

150 151
casa. Ele olha seguidas vezes para o painel de seu carro enquanto copo e o observa por alguns instantes.
ainda encontra-se em movimento. Luca desacelera o carro na
mesma medida em que os barulhos de buzinas e murmúrios
começam a soar mais altos. Ele está preso em um engarrafamento. CENA 16
INTERNA / NOITE / CORREDOR DO QUARTO DE MOTEL
LUCA
(FLASHBACK)
Mais essa pra melhorar meu dia... Merda mesmo!
Luca caminha lentamente pelo corredor até chegar à porta
Luca olha para o painel do carro e enxerga a sua antiga aliança ao número 37. Ele aproxima-se da porta para ouvir os murmúrios
lado da aliança de sua ex-mulher. Encara os objetos por alguns que estão dentro do quarto.
segundos e repentinamente começa a bater suas mãos com força
AMARA (OFF)
no volante do carro e chora desesperadamente, gritando vários
Você acha mesmo que isso vai dar certo? Não é muito arriscado?
palavrões.
IAGO (OFF)
Após o acesso de raiva, ele abandona as mãos do volante e as
Não, minha querida. Você só precisa confiar em mim.
coloca em seu rosto, chorando descontroladamente. Após alguns
segundos nessa posição, as buzinas começam a soar em direção AMARA (OFF)
ao seu carro. Luca limpa suas lágrimas com as mãos e suspira Não sei, não me sinto bem fazendo isso com ele. Ainda gosto dele,
lentamente. Ele retira do bolso uma carteira de cigarro, saca uma por mais que as coisas tenham esfriado durante a nossa relação.
unidade e acende com seu isqueiro. As buzinas começam a ficar
mais intensas na medida em que Luca traga seu cigarro. Luca fecha os olhos e os punhos, fazendo uma expressão de dor.

CENA 14 CENA 17
INTERNA / TARDE / SALA DA CASA DE LUCA INTERNA / NOITE / QUARTO DE MOTEL (FLASHBACK)
Luca abre a porta de sua casa tossindo. Após entrar, tranca a Amara está deitada em uma cama de casal, seminua e com seu
fechadura e joga a chave sobre o sofá. Ele vai até a geladeira e corpo coberto por um edredom. Iago, 43, alto, parceiro de Amara,
retira um sanduíche, abocanhando-o imediatamente. Após comer está de pé a alguns passos da cama fazendo um drink para Amara.
totalmente o seu almoço, segue em direção ao seu quarto.
IAGO
Bom, se você não o ama mais, não tem por que se sentir mal.
CENA 15 AMARA
INTERNA / TARDE / QUARTO DE LUCA É, talvez...
O quarto está tão desarrumado quanto esteve durante a estadia de
Laura. Luca pega um copo de vidro ao lado de sua cama e o enche Laura fica um pouco cabisbaixa e Iago aproxima-se dela com
de uísque com a mesma garrafa da primeira cena. Ele bebe todo o o drink. Eles trocam olhares por alguns instantes. Iago dá um
líquido em apenas um gole e enche novamente o copo. Ele ergue o grande gole de sua bebida e inclina sua mão até o copo de Amara

152 153
para que ela também tome. Após Amara ter tomado um gole, os Em seguida, ele estende a mão esquerda para Amara.
dois começam a trocar beijos.
LUCA
Alguns instantes após os beijos, ouvem-se três toques na porta.
A aliança.
Amara e Iago ignoram os toques e continuam juntos na cama,
cada vez mais próximos do ato sexual. AMARA
Não, Luca, por favor... Vamos conversar.
Mais três batidas são escutadas na porta, e dessa vez parecem um
pouco mais fortes. Iago levanta-se do chão e tenta sorrateiramente chegar até Luca.
Entretanto, Luca saca sua pistola com a mão direita e aponta para
IAGO
Iago.
Não precisamos de nada, obrigado!
LUCA
As batidas ficam ainda mais intensas e com um som muito alto.
Não se mete aqui, seu merda.
Iago levanta-se repentinamente da cama e vai até à porta falando
enquanto a destranca.
Iago ergue as mãos e caminha em direção à cadeira que está mais
IAGO próxima. Ele se senta na cadeira apalpando as partes que ainda
Eu já disse que não precisamos de nada! O que afinal você quer de... estão doloridas pela surra.
Luca volta-se para Amara novamente e olha para a sua mão
A porta se abre e a figura de Luca aparece na frente de Iago com esquerda à procura da aliança em seu dedo. Ela não a tem.
os olhos avermelhados e cheios de lágrimas. Luca imediatamente
soca o rosto de Iago, e após isso o empurra ao chão com o pé. O AMARA
detetive ainda aplica alguns chutes nas costelas de Iago enquanto Por favor, Luca! Me escuta, vai!
ele está caído. Amara solta alguns gritos de “Parem” enquanto tudo
acontece. Luca abana negativamente sua cabeça para Amara sem olhá-la.
Ele começa a chorar novamente e solta um berro extremamente
Iago se contorce de dores no chão enquanto Luca caminha em
alto. Após isso, ele cola seu rosto no de Amara.
direção à cama, onde está Amara. A mulher fica sem reação,
apenas olha para o marido.
LUCA

AMARA Você... Não... Presta...


Me desculpa, me desculpa...
Luca afasta-se rapidamente de Amara e caminha em direção à
Amara abaixa a cabeça e começa a chorar. porta enquanto guarda sua pistola. Após sair do quarto, Luca bate
a porta com força.
LUCA
Você não merece desculpas.
CENA 18
Luca derruba e quebra os copos com os drinks de Iago e Amara. INTERNA / TARDE / QUARTO DE LUCA

154 155
Luca termina de fitar o copo e bebe todo o líquido de uma vez só. Luca fecha os olhos e dá um breve suspiro.
Ele enche novamente seu copo, esvaziando a garrafa. Em seguida,
LUCA
deita em sua cama equilibrando o copo com as duas mãos e fecha
os olhos. Após alguns segundos, ele recebe uma notificação em seu Então é melhor conversarmos durante a janta, acho que vai levar
celular. A notificação é de Laura. Ela pede a confirmação do jantar um pouco mais do que alguns minutos.
à noite. LAURA (OFF)
Tudo bem. Então a gente se vê à noite... E sou eu que pago agora,
Luca observa a mensagem por alguns segundos e então resolve
lembra disso.
ligar para Laura ao invés de responder.
LUCA
Laura atende rapidamente o celular.
Tudo bem, até mais! Um beijo.
LAURA (OFF) LAURA (OFF)
Oi, Luca. Outro pra você, gatinho. Até!
LUCA
Oi, Laura. Te liguei pra confirmar a janta. Queria ouvir sua voz... Luca termina a ligação, coloca o celular sobre a cômoda e deita
novamente em sua cama.

CENA 19
EXTERNA / TARDE / RUA CENA 21
Laura ainda está vestida com o jaleco branco que contém o nome EXTERNA / TARDE / RUA
da instituição de ensino onde trabalha. Ela dá um sorriso após Laura guarda seu celular em sua bolsa e esbarra em Amara. Amara
ouvir as palavras de Luca pelo celular. está vestida totalmente de preto e usa um óculos de sol.
LAURA
LAURA
Nossa, é tanta saudade assim? Eu só fiquei algumas horinhas Perdão, eu não te vi!
longe...
LUCA (OFF) Amara e Laura trocam olhares. Amara ajeita sua roupa e segue seu
Sim, já tô com muita saudade! Mas, além disso, eu preciso caminho. Laura fica um pouco confusa com o silêncio de Amara e
conversar com você, é por isso que te liguei. foca seu olhar na moça por alguns instantes, como se já a tivesse
LAURA
visto antes. Porém, termina de ajeitar suas coisas dentro de sua
Tudo bem, pode falar. Ainda tenho alguns minutinhos antes de bolsa e continua caminhando.
voltar pra sala.

CENA 22
CENA 20 EXTERNA / TARDE / RUA
INTERNA / TARDE / QUARTO DE LUCA
Amara continua seu caminho até o final da rua e dobra a esquina.

156 157
Atrás da murada, um homem a está esperando. É o mesmo Laura e Luca entram pela porta do restaurante. Um atendente
policial que apresentou a primeira notícia do suposto cadáver de vai ao encontro dos dois. Eles trocam algumas palavras e o
Amara para Luca. empregado os leva até uma mesa aos fundos do local. O casal se
senta e o atendente entrega os cardápios. O atendente sai.
POLICIAL
Achei que você não vinha mais, tava malhando? LUCA
Nossa, você gosta mesmo de mim, hein...
Amara dá um sorriso de canto.
Luca dá uma olhada superficial pelos arredores do restaurante
AMARA enquanto Laura apenas sufoca um riso olhando para ele.
Vou levar isso como um elogio. Você sabe que eu não me exercito.
LAURA
POLICIAL
Imagina se esse corpo fosse trabalhado... Você deveria confiar mais em mim quando eu te faço promessas...

O policial olha de cima abaixo o corpo de Amara e em seguida faz Os dois abrem os cardápios e observam as opções do menu.
uma cara de aprovação.
LAURA

AMARA
Eu acho que vou pedir o macarrão à carbonara com bacon e
E aí onde você quer me levar hoje? salada. E você?

POLICIAL
Luca olha por mais alguns instantes o cardápio e o fecha. Ele
Hoje é um dia especial, acho que você vai gostar do que eu reservei ergue a cabeça fitando Laura.
pra nós.
LUCA
Amara dá um sorriso para o policial. Ele estende a mão para O mesmo que você (sorri)
Amara e ela o acompanha. Os dois caminham juntos pela calçada
da rua. O policial envolve seu braço ao redor do pescoço de Amara. Laura ergue a mão para o garçom, que rapidamente vai ao
encontro dela. Laura mostra o pedido para o garçom. Eles trocam
alguns gestos e o garçom recolhe os cardápios e sai da mesa para a
CENA 23 realizar o pedido.
EXTERNA / NOITE / AVENIDA
Luca cruza os braços olhando fixamente para a mesa.
Imagens de carros se movimentando freneticamente pela Avenida
Paulista. Muitas buzinas e sons de motores de carros e motos. LAURA
O que foi, aconteceu alguma coisa?
LUCA
CENA 24 Muita coisa, eu nem sei reagir a isso ainda...
INTERNA / NOITE / RESTAURANTE

158 159
LAURA (INTRIGADA) Luca vira-se para Laura um pouco assustado com a pergunta.
Nossa, é tão grave assim? Pode falar pra mim...
LUCA
Luca suspira profundamente. Ah, sim... Tava ótimo, você escolheu bem. (força um sorriso)

LUCA Laura cerra os olhos ao olhar para Luca.


Eu não quero estragar a nossa janta com esse assunto. É muito
pesado. LAURA
Ok, o que tá acontecendo? Agora vamos conversar, sem desculpa.
LAURA
Quero que me fale tudo.
Você não tá ajudando, assim eu fico cada vez mais curiosa...
LUCA (suspira)
LUCA
É que... Bem, hoje eu fui notificado pelo meu chefe sobre um
Desculpa... Olha, acho melhor a gente aproveitar a comida antes
crime lá na Serra da Cantareira. Quando cheguei lá, descobri que
de falar sobre isso, ok?
era a Amara... (engole em seco) O corpo tava todo carbonizado,
LAURA irreconhecível...
Tá, tudo bem, então.
Luca fecha os olhos e fica cabisbaixo. Laura faz uma expressão de
Laura e Luca fazem a mesma posição de apoiar os braços sobre espanto e fica sem palavras por um breve momento.
a mesa e repousar o queixo sobre o punho. Eles se encaram por
alguns segundos. LAURA
Sua ex-mulher... Oh, meu deus... Por que você deixou pra me
contar isso só agora?
CENA 25 LUCA (ainda cabisbaixo)
INTERNA / NOITE / RESTAURANTE Eu ainda tô muito mal com tudo isso, não raciocinei direito a
tarde toda. Até me deram uma folga do trabalho. Aliás, foi o Jean
Laura e Luca já estão terminando de fazer sua refeição. O garçom
que pediu pra mim.
passa pelo casal rapidamente, cumprimentando-os com um
sorriso. Luca e Laura retribuem. LAURA
O seu parceiro?
LAURA
Muito bom, não achou? Luca levanta sua cabeça ainda sem olhar para Laura.

Luca está na mesma posição de antes: com o braço apoiado na LUCA


mesa e o queixo sobre o punho, dessa vez com um olhar vazio. Ele Sim, ele mesmo.
não presta atenção na fala de Laura.
Laura olha para Luca com uma expressão de pena em seu rosto.
LAURA
Alô... LAURA
Não gosto de ver você desse jeito, Luca. Você não parece bem...

160 161
LUCA No meio da fala de Luca, Laura o interrompe.
Eu sei... Olha, me desculpa. É que com a morte dela, tudo o que LAURA
tava no passado veio à tona na minha cabeça. Por favor, depois eu não vou te pedir mais nada. Não quero te
LAURA incomodar com isso. É só isso e depois vamos esquecer, ok?
Luca, você vai ter que ser mais claro comigo. Eu não sei o que LUCA
aconteceu entre vocês no passado. Tudo bem.

Luca levanta seu rosto e olha para Laura com lágrimas nos olhos. Luca retira seu celular do bolso e abre rapidamente um arquivo
com a foto de sua ex-mulher, mostrando-a para Laura. Laura fixa
LAURA
seu olhar na foto. Ela está confusa.
Eu sei que você confia em mim, pode desabafar, vai...
LAURA (murmúrio)
Luca fecha os olhos e dá um longo suspiro. Ele abre os olhos Não pode ser...
lentamente em direção à Laura.
LUCA
LUCA O quê?
Tudo bem... LAURA
Nada... Pelo menos você tinha bom gosto (sorri).
Luca começa a falar e o áudio da cena emudece.
LUCA
A beleza dela é tão grande quanto o orgulho que ela teve e a
frustração que eu senti depois que descobri tudo.
CENA 26
LAURA
EXTERNA / NOITE / CARRO DE LUCA (FRENTE À SUA CASA)
Ah, desculpa, não falei por mal, você sabe...
Laura e Luca estão sentados nos bancos frontais do carro. Luca
fica com um olhar perdido no horizonte e está com as mãos ao Laura aproxima-se de Luca passando seus braços sobre o ombro e
volante. Laura olha com pena para Luca. o pescoço dele e beijando-o lentamente.
LAURA
LAURA
Posso te fazer um pedido? Vamos esquecer isso juntos?
LUCA
Claro, o que é? Os dois riem.
LAURA
Posso ver como era sua mulher?
CENA 27
LUCA
INTERNA / NOITE / QUARTO DE LUCA
Pra que...
Laura e Luca estão abraçados debaixo de uma coberta,

162 163
aparentemente nus. Ambos cobrem a parte superior do peito. Eles CENA 30
estão olhando um para o outro e trocando carícias. INTERNA / TARDE / TÁXI

LUCA O taxista olha para Laura um pouco acanhado. Laura não tira seus
Obrigado. olhos do carro do policial.

TAXISTA
Após proferir a palavra, Luca dá um demorado beijo em Laura.
Vai pra onde, senhora?
LAURA

CENA 28 Eu quero que você siga aquele carro ali da frente. Mas não fica tão
INTERNA / MANHÃ / QUARTO DE LUCA em cima dele.

Luca está deitado sozinho sobre a cama enrolado por uma coberta. O motorista sorri.
Ele lentamente acorda e olha para os lados a procura de Laura.
Há um bilhete escrito à mão por Laura. O bilhete diz: “Precisei
sair para me arrumar em casa. Obrigada por confiar em mim e
CENA 31
pela noite maravilhosa. Amo você, Laura”. Luca pega o bilhete, lê e
EXTERNA / TARDE / RUA
sorri.
O semáforo acende a luz verde e os carros começam a se
movimentar. O taxista persegue o carro por muitas quadras até
CENA 29 chegar em um condomínio vazio
EXTERNA / TARDE / RUA (MESMO LOCAL ONDE AMARA O taxista para o carro uma quadra atrás.
ESTEVE)

Laura está no mesmo lugar e hora em que havia encontrado


Amara sem conhecê-la. Laura veste seu jaleco escolar e fica de CENA 32
braços cruzados encostada em uma parede à espera de Amara. INTERNA / TARDE / TÁXI
Ela olha para o seu relógio demonstrando ansiedade. Alguns Laura e o taxista observam o carro e o desembarque de Amara e o
segundos depois, Amara atravessa a rua e passa em frente à Laura. policial.
Laura espera Amara se afastar e começa a segui-la. Ao virar a
LAURA
esquina, Laura vê Amara com o mesmo policial. Os dois trocam
Você pode esperar aqui?
carícias e caminham em direção ao carro do policial. O policial
arranca com o carro e o para após o semáforo ficar vermelho. TAXISTA
Claro, sem pressa...
Laura fixa seu olhar na placa do carro e começa a procurar
desesperadamente por um táxi na rua. Ela encontra o táxi e entra LAURA
rapidamente no carro. Obrigada, acho que não demora.

164 165
CENA 33 TAXISTA (resmungando)
EXTERNA / TARDE / HORIZONTE Onde foi que eu me meti...
O céu aparece até o entardecer e início do anoitecer.
O taxista liga o motor do carro e arranca com ele.

CENA 34
CENA 37
INTERNA / ENTARDECER / TÁXI
EXTERNA / NOITE / RUA
TAXISTA
O carro em que Amara entra desaparece em meio ao trânsito do
Olha, senhora, eu acho que já esperamos tempo demais. Se você
fim de tarde. O táxi fica preso entre a fila de carros e o semáforo
me dá licença, preciso voltar pro meu ponto.
vermelho.
LAURA
Por favor, não vamos ainda, só mais um pouco... Eu vou pagar por
tudo, acredite em mim. CENA 38
INTERNA / NOITE / TÁXI
Laura saca a carteira de sua bolsa e retira algumas cédulas de
dinheiro, entregando-as ao motorista. LAURA
Esquece, eles já foram...
LAURA TAXISTA
Fique com essa quantia como parte da minha gratidão. Preciso Desculpe, mas não deu de acompanhar aquele carro, muito
muito da sua ajuda. rápido. Com esse trânsito, então...
LAURA
Eu que peço desculpa por fazer você rodar a cidade por minha
CENA 35
causa. Você pode me levar pra um bar próximo? Tô muito cansada.
EXTERNA / ENTARDECER / FACHADA DO CONDOMÍNIO
TAXISTA
Amara sai acompanhada pelo porteiro do condomínio. Um carro Claro, claro...
chega até a frente do condomínio e a mulher embarca no carro. O
veículo fica alguns segundos parado e arranca. O semáforo abre e o taxista arranca com o carro dobrando à
esquerda.
CENA 36
INTERNA / ENTARDECER / TÁXI
CENA 39
Laura aponta para o carro que Amara embarca. INTERNA / NOITE / BAR
LAURA
O garçom do bar chega com uma lata de refrigerante para Laura.
Segue aquele carro agora. Ela agradece. Na televisão do local aparecem as notícias de um

166 167
delegado morto e ao lado um retrato descrevendo o suposto CENA 41
assassino. Laura arregala os olhos. EXTERNA / NOITE / LAGO

Iago move o carro até a beira do lago e o desliga. O carro está todo
empoeirado.
CENA 40
INTERNA / NOITE / CASA DE LUCA

Laura e Luca estão sentados à mesa. CENA 42


INTERNA / NOITE / CARRO DE IAGO
LUCA
IAGO
Não pode ser verdade, você tem certeza mesmo disso?
E agora o que fazemos?
Laura ergue a foto de Amara e abana a cabeça.
Amara retira dois passaportes de sua bolsa e mostra para Iago.
LAURA
AMARA
Nunca tive tanta antes.
Eu já tenho nossos passaportes, você tá com o dinheiro?
LUCA
IAGO
Mas e o corpo, o anel, tudo...
Já foi depositado naquela conta que fiz mês passado.
LAURA
Os exames de autopsia já chegaram? Amara veste uma luva preta, saca uma pistola de sua bolsa e a
LUCA entrega para Iago.
Ainda não... Por quê?
IAGO
LAURA
Por que isso?
Eles nunca vão chegar, porque não é o corpo dela. Você não viu o
jornal? AMARA
Preciso da sua. Essa ai quase me deixou na mão com aquele
LUCA
delegado.
Não liguei a TV hoje.
LAURA Iago pega a arma da mão de Amara a joga para o banco de trás.
Teve uma descrição da suposta assassina. Mas como ela já está Em seguida, ele saca sua pistola pessoal e a entrega nas mãos de
morta no papel, é impossível da polícia achar. Amara.

Ambos ficam em silêncio encarando-se. IAGO


Vai precisar do silenciador?
LAURA
AMARA
Confia em mim.
O que você acha?

168 169
Iago aponta para o porta-luvas e Amara o abre. Ela pega o CENA 46
silenciador e encaixa na pistola. INTERNA / DIA / COZINHA

Laura passa ferro em seu jaleco branco escolar. Ela termina o


IAGO
serviço e recompõe a mesa com o ferro de passar dobrável na
Preciso pegar um ar. lateral da sala de cozinha.

CENA 43 CENA 47
EXTERNA / NOITE / LAGO EXTERNA / DIA / SACADA DA CASA
Iago sai do carro e caminha até a beira do lago para urinar. Laura caminha em direção à ponta da sacada. Ela se estica e
Amara o olha de dentro do carro e sai lentamente de seu assento, em seguida olha para baixo avistando uma mulher. Amara está
caminhando até Iago. Ela aponta a arma com silenciador para a subindo a rua com uma bolsa preta. Laura reconhece Amara e
cabeça do homem e dispara uma vez. rapidamente sai da sacada.

CENA 44 CENA 48
INTERNA / DIA / QUARTO DE LUCA INTERNA / DIA / COZINHA
Luca e Laura acordam juntos. Luca levanta da cama e cobre a parte Laura e Luca estão se encarando em pé de frente para a mesa de
das costas descobertas de Laura com o cobertor. Luca segue em jantar.
direção à saída do quarto.
LAURA
Você precisa acreditar em mim, essa mulher quer fazer alguma
CENA 45 coisa má pra você!
INTERNA / DIA / COZINHA
Luca permanece olhando nos olhos de Laura sem dizer palavra
Laura está sentada à mesa. Luca serve o café para Laura e senta-se alguma.
para comer. Laura prova o café e sorri.
LAURA
LAURA
Luca, acorda! Ela já vai bater nessa porta... Ela quer matar você!
Já pode casar...
Ela já matou aquele delegado, e deve ter matado mais gente...
LUCA
LUCA
Com quem?
Como você tem tanta certeza disso?
Ambos riem.
Laura suspira longamente fechando os olhos.

170 171
LAURA LUCA
Se você me ama você vai fazer exatamente o que eu falar, Você precisa me contar o que está acontecendo. Por que eu achei a
entendeu? sua aliança em um muquifo lá na Cantareira?
AMARA
Laura apalpa as duas mãos de Luca. Ele retribui Laura apertando Porque eu mando e desmando naquele lugar. Porque eu me
fortemente suas mãos. escondi durante nosso casamento. Porque eu tava cansada de
fingir quem eu não era ao seu lado... Porque eu queria ser livre.
LUCA
CENA 49
E você precisou matar pra ser livre?
INTERNA / DIA / SALA DE ESTAR
AMARA
Luca abre a porta de sua casa e Amara aparece em frente a Luca. Às vezes a liberdade custa a vida de uma ou mais pessoas, meu
LUCA amor.
Amara!?
Amara saca uma pistola automática com silenciador e aponta para
AMARA
Luca.
Como vai, amor?
LUCA AMARA
Espera... Eu vi você no chão e... Só resta você pra eu finalmente ficar livre. Prefere na cabeça ou no
peito?
Amara coloca a mão no peito de Luca e agarra sua camisa
puxando-o para um beijo. Luca fica sem reação e retribui o beijo Luca engole em seco e olha para a arma de Amara.
de Amara.
LUCA
LUCA Amara, por que você tá fazendo isso?
O que você tá fazendo aqui? Como você tá viva? AMARA
AMARA Tem muita coisa que você não sabe sobre mim... Decide de
Eu nunca morri... Pelo menos não pra você, não é mesmo? uma-...

Amara aproxima-se ainda mais de Luca e apalpa sua região Laura surge por trás de Amara com um ferro de passar e golpeia
genital. a mulher na cabeça. Amara cai no chão atordoada e larga a arma.
Laura chuta a arma caída para longe. Amara fica desmaiada e
AMARA começa a sangrar no local da batida. Luca corre até Laura e a
Você parece que não quis me esquecer também... abraça.

Luca afasta Amara de si com as mãos. LUCA (gaguejando)


Desculpa por não ter acreditado desde o começo em você... Me

172 173
perdoa. Moradores andam pelo local tranquilamente. Enquanto as pessoas
andam, o texto começa a aparecer sobre a imagem.
Laura abraça Luca mais forte enquanto olha para a mulher
Texto: Alguns meses depois.
desmaiada ao chão.

CENA 50 CENA 52
EXTERNA / DIA / FACHADA DA CASA DE LUCA INTERNA / DIA / CASA DE LUCA
Várias pessoas cercam o local. Luca recebe mais convidados em
Várias viaturas cercam a rua onde se encontra a casa de Luca. Três
sua casa. A cozinha está lotada de salgadinhos, refrigerantes
paramédicos acompanham Amara em uma maca até a ambulância
e bebidas alcoólicas. Luca passa entre os cômodos da casa
com o auxílio de dois policiais. Luca e Laura estão abraçados em
chamando a todos para fora da casa.
frente à casa ao lado de Jean.

JEAN
Quem diria que um casamento seria insuficiente pra conhecer CENA 53
uma pessoa... Parece que finalmente pegamos a tal da “Víbora da EXTERNA / DIA / CASA DE LUCA (GRAMADO)
Cantareira”.
Luca reúne todos os convidados em frente à casa. Laura está ao
LUCA lado de Luca.
Você nunca me falou disso, Jean...
LUCA
JEAN
Peço a atenção de todos, por favor! Só um pouquinho, já voltamos
Eu não podia, Luca. O delegado pediu pra eu auxiliar com as
lá pra dentro, eu sei que tá divertido (sorri).
investigações em segredo em outro departamento. Ele sabia que
você tava em processo de divórcio e não quis sobrecarregar seu
Todos ficam em silêncio.
serviço.
LAURA LUCA
Ninguém imaginaria que a ex-esposa de um policial seria uma Essa é uma data muito especial, pois celebra o dia em que eu e
assassina, vigarista... Laura nos conhecemos. Por isso, hoje, oficialmente...
JEAN
É verdade... Luca retira uma aliança de seu bolso, ajoelha-se diante de Laura e
agarra sua mão.
Os três apenas observam a retirada das viaturas e da ambulância
LUCA
do local.
Quer casar comigo?

CENA 51
Os convidados começam a gritar “Sim” como incentivo à Laura.
EXTERNA / DIA / SERRA DA CANTEREIRA
Laura cora a face e olha para Luca abanando a cabeça já com

174 175
lágrimas nos olhos. Luca coloca a aliança no dedo anelar de Laura porventura encontrar alguma mulher para passar a noite. Luca
e levanta-se. Os dois se beijam na frente da multidão e todos é um homem charmoso para sua idade e faz sucesso entre as
aplaudem. mulheres, especialmente com as mais novas. Entretanto, tem
problemas com álcool e cigarro.
Seus vícios se explicam por um trauma emocional que sofreu
CENA 54 durante seu casamento com sua ex-mulher. Luca descobriu que
INTERNA / DIA / SALA (CASA DE LUCA) estava sendo traído após fazer um trabalho como freelancer e
A TV encontra-se ligada. A foto de Amara fica estampada na tela. investigar o caso de uma mulher que estava desconfiada de seu
Abaixo da foto de Amara está escrito “Víbora da Cantareira”. O namorado. Por coincidência, a traição do sujeito estava ocorrendo
jornalista anuncia a notícia enquanto imagens das vítimas e dos com sua própria mulher às escondidas em um motel de luxo.
itens apreendidos são mostrados. Após isso, Luca terminou seu casamento sem nem olhar para
sua esposa. Escreveu várias cartas relatando como se sentia em
JORNALISTA relação àquela situação, porém deixou apenas uma das cartas em
A Víbora da Cantareira foi condenada por vários crimes, entre eles sua casa e saiu.
os mais graves envolvem uma série de assassinatos a empresários
Com isso, sua capacidade de acreditar nas pessoas ficou
e figuras da elite. Ex-esposa do investigador Luca Fiori, a Víbora
comprometida, e o significado de fidelidade ficou confuso para o
teve acesso a dados confidenciais da polícia sem a permissão do
detetive. Assim, Luca tenta firmar uma relação estável com todas
agente, seu ex-marido, o que facilitou sua não identificação pela
as mulheres com quem se envolve para tentar dissipar de sua
equipe investigativa. Entre as vítimas da mulher está Iago Salles,
mente o seu passado recente.
empresário conhecido em São Paulo. Teve seu corpo encontrado
em um lago perto da marginal paulista. As outras vítimas ainda
LAURA ADORNO. Laura tem 34 anos e também é de São Paulo. Ela
não foram encontradas. Entretanto, Amara Fiori já confessou
seus crimes e a localização dos corpos. Junto com Amara, foram trabalha como professora de história em um colégio particular da
encontrados dois passaportes falsos com nacionalidade europeia; zona norte paulistana. A professora é apaixonada pelo que faz,
três armas de fogo; duas maletas contendo trezentos mil dólares mas, acima de tudo, gosta muito de sair à noite com suas amigas.
e itens pessoais das vítimas assassinadas. As famílias das vítimas Tem como hobby as atividades físicas na academia e a corrida. É
pedem por justiça. O julgamento foi prolongado pelo Estado após uma jovem atlética e muito bonita.
o surgimento de novas denúncias envolvendo figuras públicas e Ela vem de uma família de classe média-baixa e tem um gosto
traficantes em um esquema ilegal de tráfico de pessoas. obsessivo pela história dos países latinos. Seu passado amoroso
tem um teor de “proibido”, devido ao fato de que constantemente
se relacionava com seus alunos durante o período em que foi
PERSONAGENS professora titular de um curso preparatório para vestibulares.

LUCA FIORI. Luca tem 39 anos de idade, é de São Paulo e atua Durante dois anos, Laura esteve se encontrando secretamente
como detetive da polícia há mais de 10 anos. Sua personalidade com um de seus alunos, chamado Augusto. Porém, tudo veio
é condizente a de uma pessoa silenciosa, mas bem humorada. abaixo quando alguns boatos começaram a ser espalhados pelo
Ele gosta de sair nas noites para encontrar os amigos, beber e, ambiente onde trabalhava, o que a levou até o diretor do curso e,

176 177
consequentemente, à demissão de seu cargo. ele passou a cultivar um terrível sentimento de raiva por Luca,
pois não aceitava o fato de que fora descoberto e de que esta
AMARA FIORI. Amara é uma mulher de 37 anos, mora em São descoberta acarretou no término de sua recente relação com uma
Paulo junto com seu amante em uma zona nobre. Ela é vaidosa e, socialite da elite paulista.
embora não faça muitos esforços para manter uma boa aparência
(como ir à academia, correr, pedalar, etc), tem um físico invejável. JEAN COSTA. Tem 31 anos e é o fiel parceiro de Luca. Desde
Amara é ex-esposa de Luca. Entretanto, os papéis do divórcio seu ingresso na polícia como detetive, foi designado para
ainda não estão prontos. ser assistente de Luca Fiori. Ambos cresceram juntos em
suas carreiras dentro do departamento investigativo. Jean
É uma mulher ambiciosa e orgulhosa, sempre estampando um
sempre cuidou da parte da coleta de evidências, enquanto seu
largo sorriso no rosto. Amara estava insatisfeita com o casamento,
companheiro se ocupava de traçar uma linha de raciocínio para
sentia o desejo de se aventurar em um romance extraconjugal com
resolver os casos através das informações adquiridas.
Iago, um homem que conheceu em um bar enquanto Luca teve de
sair para cumprir com seu compromisso na delegacia. Amara é Jean é um homem de pele morena, cabelos e olhos negros e um
seduzida e convencida por Iago a dar um golpe em seu ex-marido porte físico mediano. Possui um forte senso de companheirismo
enquanto ainda está em processo de separação. e é totalmente fiel a Luca e aos princípios da polícia. Jean também
tem uma grande sensibilidade para com as pessoas, tornando-o
Entretanto, o plano sai errado e Amara acaba cometendo vários
ainda mais atencioso e prestativo quando precisa lidar com os
crimes que a deixam em uma posição de assassina em série. Ela
recorrentes familiares das vítimas de crimes.
precisa juntar recursos para sair do país o quanto antes.

DELEGADO. Tem 54 anos, uma estatura mediana e um porte físico


IAGO SALLES. Tem 43 anos, cabelos um pouco grisalhos, estatura
regular. Ele comanda a delegacia onde Luca e Jean trabalham.
média e um porte físico saudável. É um homem elegante, amante
de Amara e arquiteto do plano para arrecadar uma grande
quantia em dinheiro de Luca. Iago trabalha como advogado. É um POLICIAL. Tem 39 anos, estatura baixa, gordo e tem cabelos
homem cético, racional e egoísta, tendo suas ambições voltadas grisalhos. Ele está envolvido na fraude do corpo queimado na
apenas para a construção de uma grande fortuna em dinheiro. De Serra da Cantareira e tem uma queda amorosa por Amara.
comportamento sedutor, Iago se utiliza disso para satisfazer seus
prazeres e alcançar seus objetivos.
Iago conhece Amara por acaso em um bar de São Paulo após
perceber que Luca havia se afastado para cumprir seus serviços.
Após alguns minutos de conversa, Iago soube que Amara estava
infeliz em seu relacionamento e resolveu se aproveitar da
situação para satisfazer seus desejos. Porém, o caso tomou outras
proporções e eles prolongaram o caso, o que resultou na separação
de Amara e Luca.
Após ser pego em flagrante durante o sexo em um motel de luxo,

178 179
Impresso em 2020

Papel Supremo &Polén Bold


Fontes Droid & Domine CC & Alegreya
Impressão Polo Printer
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