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Roteiro e Narrativa

Material Teórico
Conceitos Fundamentais de Roteirização

Responsável pelo Conteúdo:


Prof.ª Me. Mirian Aparecida Meliani Nunes

Revisão Textual:
Prof.ª Me. Natalia Conti
Conceitos Fundamentais de Roteirização

• O Começo de Tudo;
• O que é mesmo um Roteiro?
• Conceitos de Jogos;
• O Conceito de Roteiro de Ficção;
• Introdução aos Elementos Básicos e Regras do Roteiro;
• Características Técnicas do Roteiro.

OBJETIVO DE APRENDIZADO
· Assimilar as funções narrativas de um roteiro de ficção; ser capaz de
identificar as funções da roteirização nas diferentes produções ficcio-
nais; compreender o roteiro inserido no universo dos jogos digitais;
conhecer as técnicas de estruturação de um roteiro básico.
Orientações de estudo
Para que o conteúdo desta Disciplina seja bem
aproveitado e haja maior aplicabilidade na sua
formação acadêmica e atuação profissional, siga
algumas recomendações básicas:
Conserve seu
material e local de
estudos sempre
organizados.
Aproveite as
Procure manter indicações
contato com seus de Material
colegas e tutores Complementar.
para trocar ideias!
Determine um Isso amplia a
horário fixo aprendizagem.
para estudar.

Mantenha o foco!
Evite se distrair com
as redes sociais.

Seja original!
Nunca plagie
trabalhos.

Não se esqueça
de se alimentar
Assim: e de se manter
Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte hidratado.
da sua rotina. Por exemplo, você poderá determinar um dia e
horário fixos como seu “momento do estudo”;

Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar; lembre-se de que uma


alimentação saudável pode proporcionar melhor aproveitamento do estudo;

No material de cada Unidade, há leituras indicadas e, entre elas, artigos científicos, livros, vídeos
e sites para aprofundar os conhecimentos adquiridos ao longo da Unidade. Além disso, você
também encontrará sugestões de conteúdo extra no item Material Complementar, que ampliarão
sua interpretação e auxiliarão no pleno entendimento dos temas abordados;

Após o contato com o conteúdo proposto, participe dos debates mediados em fóruns de discus-
são, pois irão auxiliar a verificar o quanto você absorveu de conhecimento, além de propiciar o
contato com seus colegas e tutores, o que se apresenta como rico espaço de troca de ideias e
de aprendizagem.
UNIDADE Conceitos Fundamentais de Roteirização

O Começo de Tudo
Iniciar um texto, como este que você acompanha agora, é sempre um processo
que causa certa angústia ao autor. Ele pensa geralmente durante muito tempo
como e por onde começar a contar a sua história. Vasculha referências, relembra
as narrativas que já ouviu, leu ou assistiu, reúne as memórias.

A escolha das palavras é importante, pois usar termos desconhecidos vai dificultar
o entendimento, ao passo que excesso de modéstia narrativa pode colocar em
dúvida a seriedade e o rigor da prosa. Levados pelo nosso tema, a construção de
um Roteiro, vamos navegar por águas turbulentas onde bifurcações como essa
deverão surgir, exigindo escolhas. Ou, talvez melhor, portas misteriosas podem
se abrir e oferecer mil e uma visões de galáxias próximas ou distantes. Basta você
encontrar a resposta que a esfinge certamente exigirá.

Caro aluno, a aventura de desbravar os processos criativos ligados à construção


de um roteiro começa agora mesmo. Você é meu convidado a percorrer esse
caminho munido do seu joystick, “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”.1

Figura1 – Roteirizar é um processo que se assemelha a mapear um caminho, em uma


aventura cujo destino final pode se modificar profundamente durante o trajeto
Fonte: iStock/Getty Images

O que é mesmo um Roteiro?


Compreender a função do Roteiro em um jogo digital exige o entendimento
prévio da função do roteiro como elemento central de organização da ação e
do desenvolvimento de uma produção artística ficcional que envolve o uso de
tecnologia audiovisual. São produções complexas que demandam planejamento

1 “Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça” é uma frase célebre do cineasta brasileiro Glauber Rocha, um dos
idealizadores do movimento do Cinema Novo, que se propunha a retratar a realidade brasileira, mesmo com baixos
orçamentos, na década de 60 do século XX.

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para otimizar os recursos humanos e financeiros e o roteiro é o mapa que será
seguido por todos os envolvidos no processo de criação.

Imagine só uma equipe de cinema que reúne um diretor, vários atores escalados
para cenas diferentes, operadores de câmeras, de áudio, iluminação, maquiadores
etc. Eles precisam não apenas conhecer toda a história que será contada, cena a
cena, mas também os detalhes referentes a cenário, locação (onde as gravações
serão realizadas), diálogos, cortes e outros recursos que um bom roteirista deverá
indicar de acordo com a narrativa que construiu.

Há cenas que apenas apresentam os personagens, outras pretendem deixar claro


o cenário ou o tempo em que a trama se desenrola; existem aquelas que conduzem
ao clímax da história e, claro, às cenas finais de desenlace. Ao conhecê-las previa-
mente, o diretor e sua equipe poderão planejar as gravações de maneira adequada.

Mas como isso acontece em um roteiro criado para games, uma vez que as
equipes e etapas de produção são essencialmente distintas do cinema?

Alguns autores acreditam que a linguagem desenhada para uma determinada


mídia (como o cinema) acaba sendo incorporada e reinventada por novas mídias
emergentes (como os games): “Do mesmo modo que os games absorvem as lingua-
gens de outras mídias, estas também passaram a incorporar recursos semióticos
e estéticos que são próprios dos games. É por isso que a interação entre filmes e
games é cada vez mais frequente.” (SANTAELLA, 2013)

Nos jogos digitais, o Roteiro assume o papel de fio condutor da ação do player
e da jogabilidade, orientando todos os profissionais das equipes artística, técnica e
gerencial. A programação do game só pode ser iniciada, portanto, quando o rotei-
ro aponta o caminho a ser seguido, como uma bússola.

Saber contar uma boa história por meio da ação, das escolhas oferecidas aos players
e dos níveis projetados torna-se um desafio à altura dos mais ousados jogadores.

Figura 2 – Uma história criada para ser um livro pode se transformar em um seriado, que pode se transformar
em um game e em inúmeros produtos derivados. Esse fenômeno é conhecido como transmídia
Fonte: iStock/Getty Images

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Games e seriados, seriados e cinema, cinema e teatro, teatro e literatura. Todas essas
diferentes produções artísticas têm como ponto em comum o desafio de levar o público para
“dentro” da sua história. A narrativa e o roteiro são as ferramentas essenciais para chegar lá.
Quais exemplos de obras que transitaram de uma mídia a outra você conhece? Reflita sobre
os elementos originais da trama e como eles foram traduzidos por meio de um roteiro para
a nova mídia.

Conceitos de Jogos
Agora, vamos abordar algumas das principais características dos Jogos. Jogar é
uma atividade quase tão antiga quanto a própria formação da sociedade humana.
Faz parte da nossa História a necessidade de buscar atividades lúdicas, divertidas,
capazes de auxiliar o processo de integração social, de gerar aprendizado por meio
do prazer e da compensação.

A recompensa psicológica proporcionada pelo jogo normalmente se apre-


senta na sensação de vitória sobre um adversário ou na realização de um desa-
fio, além da simples satisfação de brincar com outras pessoas. Por meio des-
sa resposta positiva, aprendemos a aceitar as regras estipuladas previamente,
respeitando o grupo e adotando uma conduta ética acordada coletivamente. É
por isso que os games tornaram-se uma ferramenta muito utilizada em processos
educacionais nas escolas e nas empresas, além de um negócio que movimenta
quase um bilhão de dólares na indústria do entretenimento2. Vamos acompa-
nhar como isso tudo começou?

Os gamers de 2600 a.C.


Um dos registros oficiais mais antigos de jogos de tabuleiro refere-se ao Jogo
Real de Ur, datado de 2.600 a.C.. Descoberto pelo arqueólogo inglês Sir Leonard
Woolley, em uma expedição organizada pelo Museu Britânico e pela Universidade
da Pensilvânia ao sul do Iraque, local da antiga Mesopotâmia, entre 1922 e 1934,
foi encontrado junto ao túmulo de membros da nobreza, atestando a importância
dada aos jogos nas sociedades mais antigas.

Este jogo pode ser testado online no site do The British Museum’s Mesopotamia:
Explor

https://goo.gl/E0rhJ

2 A expectativa de crescimento anual do mercado global de games é de cerca de 12% até 2020, atingindo a cifra de
US$ 1 bilhão em lucro, considerando apenas os jogos e a publicidade que é realizada neles. Isso deve fazer com que
o Brasil ultrapasse o México e se torne o maior mercado da América Latina. Fonte: PwC.

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A tradição dos jogos com autores anônimos
Assim como os Jogos de Ur, vários outros chegaram até nós sem que conhecês-
semos seus autores. Eles não possuem um plano original documentado, portanto
seus projetistas são anônimos. Há pequenas variações nas regras e sua versão atual
geralmente é o resultado de várias pequenas inovações testadas e introduzidas ao
longo do tempo e da experiência de jogabilidade. Jogos de tabuleiro, como xadrez,
damas e gamão, encaixam-se nessa definição.

Figura 3 – Vários jogos de tabuleiros atravessaram o tempo sendo reinventados, sem possuir um projetista
conhecido. Eles fazem parte da tradição do jogo como elemento de diversão, aprendizado e sociabilidade
Fonte: iStock/Getty Images

Olhar com curiosidade para toda a experiência acumulada na criação, desenvol-


vimento e execução dos mais variados jogos é uma atitude que oferece repertório,
inspiração e conhecimento. Sem dúvida, algo que precisamos para projetar jogos
digitais capazes de responder aos desafios humanos que, em sua essência, conti-
nuam muito parecidos ao longo do tempo: desejo de compartilhar momentos de
diversão; vontade de colocar à prova a própria capacidade; habilidade e coragem
de tomar decisões; possibilidade de abrir horizontes para romper limites, experi-
mentar a vitória e a superação.

Jogos projetados
Os jogos projetados são aqueles que foram criados por um autor conhecido,
cujas origens chegaram até nós. O basquete, por exemplo, foi elaborado por James
A. Naismith, professor de Educação Física, em 1891. Ao longo do tempo, várias
regras foram aperfeiçoadas, gerando uma acomodação do desenvolvimento do
jogo à experiência acumulada pelos jogadores.

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UNIDADE Conceitos Fundamentais de Roteirização

Figuras 4 e 5 – À esquerda, Naismith segura a cesta utilizada para os primeiros jogos de basquete.
À direita, é possível conferir o quanto o design facilitou o andamento do jogo
Fonte: Wikimedia Commons e iStock/Getty Images

Se você comparar o projeto inicial do basquete ao modelo atual, notará como


a prática tornou o jogo mais fluido e coerente, capaz de oferecer uma experiência
estimulante tanto para quem joga quanto para quem assiste às disputas.

Jogos como Monopoly, War e Detetive são marcas patenteadas por grandes
empresas de brinquedos e adotam versões projetadas pelos seus profissionais, que
também passam por atualizações e adequações de marketing ao longo do tempo.

Nos projetos de Jogos Digitais, veremos mais à frente o quanto é importante


testar aspectos de coerência narrativa e jogabilidade antes de lançar um produto
no mercado.

Você Sabia? Importante!

Que algumas competições de jogos digitais, os chamados e-sports, podem ser incorpo-
radas às Olimpíadas em breve? O Comitê Olímpico Internacional (COI) já introduziu em
2018 disputas de StarCraft2 na programação prévia dos Jogos de Inverno, realizados na
Coreia do Sul.

Os primeiros jogos eletrônicos


Algumas das primeiras experiências com jogos eletrônicos datam da década de
50 do século XX, no período da Guerra Fria entre EUA e URSS. É dessa época, por
exemplo, o Tennis for Two, projetado por William Higinbotham para ser jogado em
um protótipo de computador analógico, no Brookhaven National Laboratory.
O jogo incluía botões, com duas barras verticais representando as raquetes e um
ponto piscando no meio da tela representando a bola de tênis.

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Explor
Brookhaven National Laboratory: https://goo.gl/w7S35B

No entanto, somente com a chegada do Atari, em 1977, a era dos Jogos Digitais
irá, de fato, começar a valer, com 8 milhões de unidades vendidas até o início da
década de 80.

Figura 6 – Console do Atari 2600, uma febre dos anos 80 que marca o início da “era moderna” dos Jogos Digitais
Fonte: iStock/Getty Images

A partir de sua disseminação em massa, os games passam a ser classificados


de acordo com o suporte utilizado, que interfere na jogabilidade e proporciona
experiência específica de interação:
• jogos para consoles, que possuem um controle acoplado ao monitor de uma
TV, como o pioneiro Atari;
• jogos para computador, que ocorrem no monitor de um PC a partir de seu
próprio hardware;
• jogos para arcades, que alguns chamam de ‘fliperama’, são grandes máquinas
que integram console e um monitor, expostas em lugares públicos, como sho-
ppings centers e outros;
• jogos online definem todos aqueles que necessitam de uma conexão à internet.

Com suportes cada vez menores e mais mobilidade, essa classificação pode ser
ampliada, ainda, pelo uso de celulares e tablets, além das especificidades propor-
cionadas pelos games compartilhados nas redes sociais.

Importante! Importante!

A popularização do videogame, que deixa de ser visto como um brinquedo e é aceito


como um produto cultural, exige dos estudiosos uma definição mais específica, capaz
de dar conta das pesquisas que surgiram sobre a relação entre games, TV, cinema, HQ
e toda a cultura pop. As narrativas são incorporadas a esse debate, pois os games gan-
ham linhas condutoras cada vez mais complexas, mas que devem atender às exigên-
cias da jogabilidade.

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UNIDADE Conceitos Fundamentais de Roteirização

Assim, são retomadas as discussões que colocam em perspectiva as características


essenciais do Jogo, como você pode conferir na tabela a seguir.

Tabela 1 – Conheça algumas das diferentes definições de Jogo apresentadas por vários autores nesta tabela
Fonte Definição
“... (o jogo é) uma atividade livre, conscientemente tomada como ‘não-séria’ e exterior à
vida habitual, mas ao mesmo tempo capaz de absorver o jogador de maneira intensa e
total. É uma atividade desligada de todo e qualquer interesse material, com a qual não
Johan Huizinga se pode obter qualquer lucro, praticada dentro de limites espaciais e temporais próprios,
segundo uma certa ordem e certas regras. Promove a formação de grupos sociais com a
tendência a rodearem-se de segredos e a sublinharem sua diferença em relação ao resto
do mundo por meio de disfarces ou outros meios semelhantes.”
“(o jogo) é uma atividade que é essencialmente: livre (voluntária), separada (no tempo
Roger Caillois
e espaço), incerta, improdutiva, governada por regras, fictícia (faz-de-conta).”
“Jogar um jogo é se engajar em uma atividade dirigida para causar um estado específico
de ocorrências, usando somente meios permitidos por regras, onde as regras proíbem
Bernard Suits
meios mais eficientes em favor de meios menos eficientes, e onde tais regras são aceitas
apenas porque elas tornam possível tal atividade.”
“No seu nível mais elementar, podemos definir jogo como um exercício de sistemas
Avedon & Sutton-Smith de controle voluntário, nos quais há uma posição entre forças confinada por um
procedimento e regras, a fim de produzir um resultado não estável.”
“Eu percebo quatro fatores comuns: representação (um sistema formal fechado, que
Chris Crawford subjetivamente representa um recorte da realidade), interação, conflito e segurança (o
resultado do jogo é sempre menos severo do que as situações que o jogo modela).”
“Um jogo é uma forma de recreação constituída por um conjunto de regras que
David Kelley
especificam um objeto (objetivo) a ser almejado e os meios permissíveis de consegui-lo.”
“Um jogo é um sistema no qual jogadores engajam-se em um conflito artificial, definido
Salen & Zimmerman
por regras, que resultam em um resultado quantificável.”
Fonte: LEMES, 2009

Entre as características destacadas pelos estudiosos citados na tabela, quais são aquelas
Explor

verdadeiramente essenciais a um Jogo Digital? Como seria a sua definição?

O Conceito de Roteiro de Ficção


A partir da compreensão dos conceitos introdutórios da ideia de Jogos, passa-
mos agora a explorar o conceito de Roteiro. Já conversamos anteriormente sobre
a similaridade entre a escrita de um roteiro e o desenho de um mapa. Nos dois
casos, precisamos deixar claro não apenas o direcionamento a ser tomado, mas
também o sentido da trajetória que escolhemos e o destino ao qual nos lançamos.

O roteiro pode ser definido, ainda, como o produto final de uma narrativa, seja
ela adaptada ou criada exclusivamente, cujo objetivo é guiar a criação de um de-
terminado produto audiovisual. O formato é baseado na linguagem verbal escrita e
serve para conduzir a história, a produção e o gerenciamento de qualquer espetá-

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culo audiovisual. Deve conter, sempre, a descrição objetiva das cenas, sequências,
diálogos e indicações técnicas do filme, vídeo, programa ou jogo.

O Roteiro de Ficção parte de uma história não-verídica e pode ser direcionado a


diferentes mídias de audiovisual, cada uma com suas particularidades de linguagem.
Na língua inglesa, a palavra que o define é Script e veremos essa grafia em muitos
manuais e textos sobre roteirização.

Para o escritor, dramaturgo e professor Doc Comparato, o roteiro é uma com-


binação de três aspectos fundamentais, que ele empresta da definição de Retórica,
em Aristóteles, filósofo grego do período Clássico: Logos, Pathos e Ethos.

Logos: termo de origem grega, significa a Palavra ou o Verbo. Na Filosofia, passa a ser
Explor

identificado com a Razão. Na tradição cristã, há uma associação entre Jesus e o Logos: “No
princípio era a Palavra, e a Palavra estava com Deus, e a Palavra é Deus”. João 1:1
Pathos: termo de origem grega, normalmente associado à ideia de paixão e desejo, mas
que inclui ainda a noção de passagem lenta e dolorosa por algo, travessia. Também pode
significar emoção ou drama.
Ethos: termo de origem grega que remete à ideia de um conjunto de hábitos e costumes
compartilhados por um determinado grupo ou comunidade e que serve como parâmetro de
boa conduta. A palavra ética é derivada de Ethos.

O elemento que dá forma e estrutura ao roteiro, segundo Comparato, é o


Logos, que representa a Palavra, a organização verbal. Pathos é o drama, ou seja,
a história que ativa a ação. O Ethos, por fim, é a moral, o significado por trás do
desenrolar dos fatos, e está sempre presente, queiramos ou não (COMPARATO,
2009). A combinação desses três elementos gera a alquimia capaz de criar uma
obra a partir de um roteiro.
Para concluir esta etapa, é importante ressaltar que
o Roteiro de Ficção não é uma obra literária. Ele não A origem da palavra
Roteiro remete ao
é projetado para ser lido – a não ser pelos membros
verbete “rota” (caminho),
da equipe de produção do audiovisual. Sua elaboração cujo original em latim
tem como finalidade específica a indicação do caminho é “rupta”, caminho
para a criação do filme, do programa, seriado ou, no aberto à força. Podemos
nosso caso, do Jogo Digital. concluir que a ideia
de Roteiro nasce da
Esse entendimento é necessário para evitar erros necessidade de abrir um
clássicos na construção de um roteiro, como excesso caminho onde antes
de textos não-dialogados que nada acrescentam à en- não havia nenhum.
cenação. Dito isso, lembre-se que a leitura de roteiros Ele indica a trajetória a
ser seguida por toda a
clássicos é parte essencial da formação de um bom
equipe de produção de
roteirista e, por essa razão, vamos indicar vários deles uma obra audiovisual.
ao longo de nosso curso.

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UNIDADE Conceitos Fundamentais de Roteirização

Introdução aos Elementos


Básicos e Regras do Roteiro
Alguns elementos oferecem o ponto de partida para a elaboração de um roteiro,
embora cada roteirista encontre caminhos muito particulares para colocá-los em
prática. A ordem em que se apresentam, o modo como são desenvolvidos e os
resultados esperados podem variar de acordo com os processos de criação de cada
autor. Ao lançar-se à tarefa de escrever um roteiro, assim como qualquer outra obra
de cunho artístico, as regras acabam sendo reinventadas e devem sempre estar a
serviço da criação e não acima dela.

A ideia
Toda criação parte de uma ideia inicial. Mas não se engane: ela não emerge do
nada e nunca é fruto de pura genialidade. Na maior parte das vezes, as grandes
ideias surgem da recombinação de elementos que já existem e fazem parte do seu
repertório mais próximo. Para chegar até elas, é preciso juntar as partes, associar
obras já conhecidas, complementar as linguagens. “A originalidade não é senão
uma imitação prudente”, já dizia Voltaire, ou François Marie Arouet, poeta, filósofo,
dramaturgo e historiador francês, expoente das ideias iluministas do século XVIII.

Alguns hábitos, portanto, podem auxiliar no processo de elencar ideias para


buscar aquelas que poderiam se tornar bons roteiros:
• Leitura: bons conhecimentos literários facilitam o processo de escrita e cons-
trução de projetos
• Repertório: assistir a filmes, jogar vários tipos de games, ouvir diferentes es-
tilos musicais e acumular referências culturais diversificadas multiplica seu po-
tencial criativo
• Conhecimento: buscar aprofundar o que sabe sobre as obras que despontam
para você como modelos criativos é etapa importante do processo
• Persistência: insistir no processo criativo, não desistir diante das primeiras
dificuldades e pensar em diferentes alternativas criativas são atitudes capazes
de garantir a continuidade de um projeto

Sinopse
A sinopse é um resumo do argumento de uma obra, seja ela um livro, um filme
ou um jogo. Deve ser redigida de modo a deixar claro o enredo da história, mostrar
os principais personagens, cenário e recorte temporal. É uma breve ideia geral,
normalmente não ultrapassando de cinco a sete linhas - ou de uma a duas páginas,
de acordo com o tempo de duração da obra.

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Confira, a seguir, um exemplo de Sinopse do filme Batman, de Tim Burton (1989):
“No seu 200ª aniversário, Gothan City assiste Batman, ou Bruce Wayne,
enfrentar o Coringa, ex-executivo e gangster da corporação Axis Chemical.
Numa Gothan City de estilo dark, quase gótico, há uma sociedade bur-
guesa degradada pela corrupção policial, abusos ambientais, excessos
corporativos, ganância e imprensa sensacionalista e manipulada. Batman,
o homem-morcego, é a proteção da sociedade civil diante da inoperân-
cia policial. Em face da crise social e do Estado, apela-se para o extraor-
dinário: o herói Batman.”

Fonte: Projeto Tela Crítica. Disponível em http://www.telacritica.org/letraB.htm#alex2. Acessado em 15 de janeiro de 2018.

Figura 7 – Roteiro original do filme “Batman” (1989), de Tim Burton, exibido no London Museum Film
Fonte: Wikimedia Commons

Argumento
O Argumento é um desdobramento da Sinopse, cuja função é descrever deta-
lhadamente a história do filme, programa ou jogo, elencando ao máximo todos os
seus elementos. Deve ser mais longa que a Sinopse e é um meio caminho para o
desenvolvimento do Roteiro. É na redação do Argumento que as ações são colo-
cadas na sequência exata em que serão apresentadas no audiovisual, apresentando
o enredo.

Geralmente, a função do Argumento é apresentar a história aos produtores, ou


seja, tentar “vender” o roteiro. Nos EUA, costumam ser mais extensos, mas no
Brasil vários roteiristas adotam a média de uma página de Argumento para cada
10 páginas de Roteiro. Como sempre, o bom senso e as características específicas
de criação vão determinar essas escolhas. Além disso, o Roteiro e o Argumento de
um Jogo Digital envolvem etapas e bifurcações que o Roteiro e o Argumento de
cinema nem sempre precisam prever.

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UNIDADE Conceitos Fundamentais de Roteirização

Aqui, você pode conferir (em inglês) o argumento do filme Mr. & Mrs. Smith (Jan/2001).
Explor

https://goo.gl/AtguWs

Características Técnicas do Roteiro


Muitas dúvidas povoam o imaginário sobre o formato que o Roteiro deve as-
sumir em sua versão final. Vamos introduzir, aqui, os elementos técnicos e sua
apresentação formal no Roteiro, ressaltando que o mais importante é a clareza no
apontamento das condições prévias para a organização de gravações ou, no caso
de Jogos Digitais, instruções específicas para modelagem, construção de persona-
gens e cenários.

Um dos aplicativos que indicamos para a construção formal do Roteiro é o Celtx,


um programa de uso free, multiplataforma, capaz de auxiliá-lo na construção do
formato da sua história.

“Preparado você não está”, diz Yoda para Luke Skywalker ao iniciar os treinos
do futuro jedi em Star Wars. Essa frase é usada pelos roteiristas Leandro Saraiva
e Newton Cannito em seu Manual de Roteiro (SARAIVA e CANNITO, 2004) para
tranquilizar e inspirar o início do processo de criação, que sempre envolve tentativa
e erro. A partir desse ponto de vista, o resultado só surge com o reconhecimento
inicial de que temos um longo caminho pela frente e de que a jornada será
especialmente proveitosa se corrermos o risco da imperfeição.

O que é o Cabeçalho?
O Cabeçalho da Cena, como o nome indica, deve estar na abertura de cada
cena do Roteiro. Será ele que vai indicar onde e quando a cena vai acontecer.
Inicialmente, é preciso mostrar se a gravação será no ambiente Interno (INT.) ou
Externo (EXT.).

Também é necessário indicar o Tempo, ou seja o momento do dia (manhã/


tarde/noite) ou a hora exata do acontecimento quando necessário. Se a descrição
visual do momento exato da cena for importante para o enredo, é possível criar
indicações como “relógio marcando 12 horas” na etapa de Descrição Visual.

A numeração das cenas pode ser feita apenas na etapa final, uma vez que a
redação do Roteiro deverá sofrer muitas alterações ao longo do processo. Alguns
roteiristas optam por dar títulos a cada cena.

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Veja o exemplo:

CENA 1: INT. APARTAMENTO DE IRENE. SALA. DIA. FINAL DE TARDE

A cada mudança de ambiente e/ou tempo, deve ser inserido um novo cabeça-
lho, com novas indicações, sinalizando uma mudança de CENA. A exceção é quan-
do a personagem se desloca dentro do mesmo ambiente/tempo (por exemplo:
Irene sai da SALA e vai para a COZINHA). Entende-se que as demais indicações
permanecem as mesmas. Outro exemplo:

CENA 2: EXT. CENTRO DE SÃO PAULO - AVENIDA PAULISTA – NOITE

Ação e descrição visual


A ação ou descrição visual deve indicar no Roteiro aquilo que o público verá
na tela. Isso inclui o que os personagens estão fazendo, detalhes do cenário e, se
necessário, indicações de sons. Uma falha comum nos roteiros é indicar aquilo que
não se passa na tela. Na descrição da cena, não deve haver exagero nos adjetivos
e nos detalhes, pois concisão e clareza são fundamentais. Mais uma vez, devemos
lembrar que o Roteiro não é um produto literário, seu público não vai ler o texto,
mas sim assistir ao resultado final do audiovisual.

Alguns gêneros de filmes, programas e, principalmente, games exigem uma


descrição mais detalhada, pois os cenários dependem de criação artística, como no
caso de ficção científica. Para Jogos Digitais, há todo um cuidado na construção
de um “universo” capaz de dar veracidade à história e proporcionar imersão ao
jogador. Veja o exemplo abaixo.

CENA 3: INT. SALA DE ESTAR – NOITE

Escuridão. Pouco pode ser visto dessa ampla e luxuosa sala de estar.
SOM de um portão metálico sendo aberto lentamente e depois fechando.
OUVIMOS passos oriundos do lado de fora da residência.

UMA SOMBRA passa pela janela, do lado de fora da casa, depois mais
outras duas. A janela é aberta pelo lado de fora. Três pessoas pulam,
silenciosamente, para o interior da sala através da janela. Os três
estão com roupas negras, luvas de couro e com máscaras de esqui.

O 1º Mascarado usa uma máscara com apenas uma fenda para os olhos. O
2º Mascarado e o 3º Mascarado usam máscaras com uma fenda para cada
olho. Eles adentram no recinto em passos lentos.

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UNIDADE Conceitos Fundamentais de Roteirização

Repare: na descrição da cena, a roupa do primeiro Mascarado é diferente dos demais


e isso é ressaltado no roteiro. O roteirista só deve fazer isso se for necessário para a
história, se em algum momento isso vai ser importante para a compreensão da cena.
Caso contrário, é dispensável.

Diálogos
A etapa de construção dos diálogos é uma das mais delicadas e deve ser pre-
parada com todo rigor, sempre conectada à descrição visual/ação e ao enredo do
filme. Encontrar o tom certo para um diálogo coerente, dentro de determinada
trama e construção de personagens é uma tarefa que exige habilidade e persis-
tência. Muitos diálogos aparentemente displicentes e banais são fruto de muita
dedicação criativa. Observe estes diálogos extraídos do filme Cidade de Deus, de
Fernando Meirelles:

EXT. RUA PRÓXIMA - DIA 2

BUSCA-PÉ, o narrador da história, tem nas mãos uma câmera fotográfica


profissional. É negro e tem aproximadamente 18 anos. Ao lado dele o
amigo BARBANTINHO.

Eles caminham por uma rua do conjunto.

BARBANTINHO

Aí, Busca-Pé... Tu acha mesmo que os


cara vão te dar emprego no jornal se tu
conseguir tirar essa foto?

BUSCA-PÉ

Eu tenho que arriscar.

BARBANTINHO

Porra! Tu tá arriscando é a vida. Por


causa de uma foto, mermão! Dá um tempo!

Observe que os erros de concordância, as gírias e as expressões escolhidas


já dão, por si só, o ritmo ao diálogo, cuja estrutura ajuda a montar o perfil das
personagens e o clima da trama. Como detalhe técnico, o diálogo é sempre escrito
no centro da folha, com as margens mais estreitas e o nome do personagem em
letras MAIÚSCULAS.

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Explor
Leia, aqui, o roteiro completo do filme Cidade de Deus, de Bráulio Mantovani, disponibiliza-
do pelo site Roteiro de Cinema, mantido pela Associação de Roteiristas e Autores de Cinema.
Veja com especial atenção a Cena 1, conhecida como “a fuga da galinha”, que abre o filme e
é considerada antológica: https://goo.gl/28nMJf

Finalizando esta primeira Unidade, é importante ressaltar que o Roteiro deve ser
sempre claro, dinâmico e objetivo. Ele não é a única condição para o bom planeja-
mento de uma produção audiovisual, mas certamente é uma das mais importantes.
A marcação visual é um dos elementos que facilitam a compreensão das diferentes
etapas do Roteiro, por isso todas as CENAS e mudanças devem ser rigorosamente
indicadas. O conteúdo visual precisa ser cuidadosamente descrito, de modo que
fique fácil para diferentes membros da equipe realizarem a leitura e identificarem
providências a serem tomadas.

Por fim, lembre-se que, mais do que em qualquer outro projeto artístico, a
linguagem verbal usada no Roteiro deve ser a matéria prima para a construção
de uma IMAGEM. Se a sua descrição de cena, diálogos e locações for capaz de
traduzir com o máximo de precisão as imagens que definirão o produto audiovisual,
sem dúvida seu trabalho como roteirista terá sido bem feito.

Para refletir sobre as questões da dramaturgia ficcional e da construção do roteiro, agora é


Explor

hora de buscar uma leitura. Comece pelo Capítulo 1 (pp. 13-26) da obra de Doc Comparato,
Da criação ao roteiro. Teoria e Prática, que faz parte da nossa bibliografia. Disponível na
Biblioteca Virtual Pearson: https://goo.gl/VJjqf9

21
21
UNIDADE Conceitos Fundamentais de Roteirização

Material Complementar
Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade:

Sites
Celtx
https://www.celtx.com/index.html
Brookhaven National Laboratory
Site do Brookhaven National Laboratory detalhando a experiência do Tennis For Two.
https://goo.gl/w7S35B
The Internet Movie Script Database (IMSDb)
Leia (em inglês) alguns dos melhores roteiros de cinema já escritos, eleitos pelo
Sindicato dos Roteiristas (Writers Guild of America).
https://goo.gl/k7EXfC

Vídeos
O que tem dentro de um Atari ft. Marcelo Tas
O jornalista e apresentador Marcelo Tas é o convidado do Manual do Mundo para
desvendar os segredos do Atari.
https://youtu.be/1ZMDs-FLQb8
Leonardo Torres Quevedo Chess Automaton Cybernetics Conference in Paris
Assista ao vídeo que registra experimento realizado por Leonardo Torres Quevedo, de
automação de um jogo de xadrez, realizado em Paris, em 1914.
https://youtu.be/HbjdNSy2kIA

Leitura
Museu Nacional de Arqueologia
O Museu Nacional de Arqueologia oferece mais dados sobre as regras e os artefatos
associados ao Jogo Real de UR.
https://goo.gl/8BQv4H
Basquetebol. Aspectos históricos e funcionais
Aqui, é possível conferir os aspectos de desenvolvimento do basquetebol como jogo coletivo.
https://goo.gl/2CvqH8

22
Referências
COMPARATO, Doc. Da criação ao roteiro: teoria e prática. São Paulo: Summus,
2009. Disponível na Biblioteca Virtual Pearson: <http://sites.cruzeirodosulvirtual.
com.br/biblioteca>.

LEMES, David de Oliveira. Games Independentes: fundamentos metodológicos


para criação, planejamento e desenvolvimento de jogos digitais. São Paulo,
2009. Disponível em: <http://www.dolemes.org/material/Ebooks/Ebook_Games_
Independentes_Dolemes.pdf>.

SANTAELLA, Lúcia. Linguagens líquidas na era da mobilidade. São Paulo,


Paulus, 2007.

SANTAELLA, Lucia. Comunicação Ubíqua: repercussões na cultura e na educa-


ção. São Paulo: Paulus, 2013.

SARAIVA, Leandro e CANNITO, Newton. Manual de Roteiro, ou Manuel, o primo


pobre dos manuais de cinema e TV. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2004.

23
23
Roteiro e Narrativa
Material Teórico
Conceitos Fundamentais de Narrativas em Jogos Digitais

Responsável pelo Conteúdo:


Prof.ª Me. Mirian Aparecida Meliani Nunes

Revisão Textual:
Prof.ª Me. Natalia Conti
Conceitos Fundamentais de Narrativas
em Jogos Digitais

• Narrativa como Fio Condutor da Ação;


• Tipos de Narrativas.

OBJETIVO DE APRENDIZADO
· Compreender de que forma as narrativas conduzem o jogador ao
longo da ação;
· Identificar as escolhas narrativas em relação aos objetivos do jogo;
· Projetar diferentes níveis de jogabilidade por meio da narrativa;
· Redigir um projeto básico de Jogos Digitais.
Orientações de estudo
Para que o conteúdo desta Disciplina seja bem
aproveitado e haja maior aplicabilidade na sua
formação acadêmica e atuação profissional, siga
algumas recomendações básicas:
Conserve seu
material e local de
estudos sempre
organizados.
Aproveite as
Procure manter indicações
contato com seus de Material
colegas e tutores Complementar.
para trocar ideias!
Determine um Isso amplia a
horário fixo aprendizagem.
para estudar.

Mantenha o foco!
Evite se distrair com
as redes sociais.

Seja original!
Nunca plagie
trabalhos.

Não se esqueça
de se alimentar
Assim: e de se manter
Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte hidratado.
da sua rotina. Por exemplo, você poderá determinar um dia e
horário fixos como seu “momento do estudo”;

Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar; lembre-se de que uma


alimentação saudável pode proporcionar melhor aproveitamento do estudo;

No material de cada Unidade, há leituras indicadas e, entre elas, artigos científicos, livros, vídeos
e sites para aprofundar os conhecimentos adquiridos ao longo da Unidade. Além disso, você
também encontrará sugestões de conteúdo extra no item Material Complementar, que ampliarão
sua interpretação e auxiliarão no pleno entendimento dos temas abordados;

Após o contato com o conteúdo proposto, participe dos debates mediados em fóruns de discus-
são, pois irão auxiliar a verificar o quanto você absorveu de conhecimento, além de propiciar o
contato com seus colegas e tutores, o que se apresenta como rico espaço de troca de ideias e
de aprendizagem.
UNIDADE Conceitos Fundamentais de Narrativas em Jogos Digitais

Narrativa como Fio Condutor da Ação


Alguns dos maiores pensadores de todos os tempos já se debruçaram sobre a
definição de Narrativa. Se pensarmos que narrar é um verbo que remete imediata-
mente ao ato de contar uma história, é fácil imaginar os primeiros grupos de hu-
manos a dominar o fogo, sentados à noite em círculos, criando narrativas capazes
de relatar e dar sentido as suas descobertas diárias.

Considerado pai das narrativas míticas do mundo ocidental, Homero, autor


das obras épicas Ilíada e Odisseia, da Grécia Antiga, é visto hoje como um pos-
sível personagem criado na Antiguidade para personificar dois ou mais autores
perdidos na linhagem de uma longa tradição de histórias transmitidas pela lin-
guagem oral.

O autor convertido em personagem é uma ironia presente em várias obras fic-


cionais contemporâneas e, sem dúvida, pode ser uma metáfora para a interação
entre o player e a ação narrativa em um jogo digital. Isso se levarmos em conta
que o jogador, em última instância, é quem verdadeiramente dá vida à história
por trás do Jogo.

A partir do que vimos anteriormente sobre Jogos e Roteiros, é importante es-


tabelecer algumas fronteiras para avançar. De que forma a Narrativa difere do
Roteiro? Uma possível tradução, inspirada no filósofo grego Aristóteles, seria que
a Narrativa é a alma da história que você vai contar, enquanto o Roteiro é o corpo,
o conjunto formado por pele, músculos e ossos, capaz de mantê-la em pé.

Aristóteles foi um dos primeiros a desenvolver estudos sobre narrativa. Sua obra
Poética, escrita por volta do ano 330 a.C., continua sendo fonte de debate e reflexão.
Para o filósofo, a Narrativa é definida como a representação épica que possui um Nar-
rador, seja em primeira pessoa, seja por meio de um personagem. O gênero épico,
por sua vez, se refere à imitação (mimesis) de seres apresentados de forma superior
ao homem real, enquanto a comédia estaria baseada em seres apresentados de forma
inferior à realidade. Ele define, ainda, a Narrativa como uma história dividida em Três
Atos: Começo, Meio e Fim. Tal constatação, simples e intuitiva, leva a uma sucessão de
versões de outros autores sobre as etapas de desenvolvimento básico de uma história
a ser narrada.

CLÍMAX

Elevação da Ação Declínio da Ação

Introdução Desfecho
Figura 1 – Os momentos de desenvolvimento da Narrativa,
a partir da definição básica de Três Atos de Aristóteles

8
Como demonstrado no quadro, a Narrativa em Três Atos é iniciada com uma In-
trodução ou apresentação do contexto da história, personagens, ambiente e recorte
temporal. Algo na trama leva a uma Complicação, eixo do desenrolar da ação nar-
rativa. A trama chega a seu Clímax, com posterior declínio da ação e, finalmente, o
momento do Desfecho ou Desenlace.

Em Síntese Importante!

• Apresentação: oferece ao leitor informações relativas ao “pano de fundo” da narrativa,


ou seja, apresenta o lugar onde ocorre a ação (espaço), em qual momento (tempo) e
com quem (personagens);
• complicação: é a parte da ação em que acontece o conflito que precisa ser resolvido
pelo protagonista;
• clímax: momento crítico da narrativa, quando o desfecho se mostra inevitável;
• desfecho: é a parte da ação em que o protagonista consegue ou não resolver o conflito
encontrado na complicação.

Embora essa seja a estrutura clássica do desenvolvimento da Narrativa, existem


variações, algumas muito mais complexas. As narrativas contemporâneas, muitas
vezes, desconstroem a linearidade da trama, introduzindo elementos que vão e vol-
tam no tempo descritivo do desenrolar da ação. Algumas iniciam a obra com uma
cena do desfecho, por exemplo, para voltar ao passado narrativo e explicar a situ-
ação que levou a tal resultado. Ainda assim, para realizar essa escolha dramática, o
autor geralmente precisa manter o foco na sequência linear da trama, sob risco de
perder a coerência narrativa.

Figura 2 – Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941), de Orson Welles, inaugurou um tipo
de narrativa não-linear considerada revolucionária para o cinema. Até hoje
é apontado como um dos mais importantes filmes da história
Fonte: Wikimedia Commons

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9
UNIDADE Conceitos Fundamentais de Narrativas em Jogos Digitais

A Desconstrução da Narrativa Clássica


A partir do final dos anos 60 do século XX, vários autores, como Roland
Barthes, Michel Foucault e Umberto Eco, entre outros, escreveram sobre a
desconstrução da Narrativa aristotélica. Mais do que abordar a linearidade do
enredo, vieram à tona novas interpretações sobre as relações entre a tríade
autor-obra-público. O conceito de “obra aberta”, título de um livro de Umberto
Eco lançado em 1962, jogava luz sobre o papel do leitor/público sobre a cons-
trução final da narrativa. Em última instância, a verdadeira conclusão de uma
história não estaria no instante em que o autor escreve “fim”, mas no momento
da recepção. Não mais compreendida como uma recepção passiva, mas uma
recepção capaz de realinhar sentidos.

Ainda mais recentemente, com a influência das tecnologias digitais e da Cibercul-


tura, ganhou destaque a ideia de uma cultura da participação, em que “a circulação
de conteúdos – por meio de diferentes sistemas de mídia, sistemas administrativos
de mídias concorrentes e fronteiras nacionais – depende fortemente da participação
ativa dos consumidores” (JENKINS, 2009).

Figura 3 – As tecnologias digitais introduziram novos elementos ao debate sobre as narrativas.


A participação do público/consumidor não apenas na “recepção” do produto cultural, mas
também em sua reformulação, é uma das características da cultura da convergência
Fonte: iStock/Getty Images

Assim, hoje parece natural que fãs se apropriem dos meios de produção criativos
e remixem músicas, efeitos sonoros e audiovisuais, em seus quartos e nas garagens
de suas casas. A popularização de gadgets ou dispositivos tecnológicos como ferra-
mentas de criação de produtos culturais faz parte do que o professor e pesquisador
do conceituado Massachusetts Institute of Technology (MIT), Henry Jenkins, chama
de “cultura da convergência”. Algo que faz toda a diferença no entendimento desse
conceito é que a convergência para esse autor não se dá por meio de aparelhos
(como o celular ou o computador) que agrupariam todas as demais mídias, mas sim
na construção de uma inteligência coletiva, na interação cultural entre grupos de
produtores e consumidores do mundo todo - lembrando que a fronteira que separa
criadores e fãs é cada vez mais tênue.

10
Sobre a relação entre videogames e os meios de comunicação mergulhados na
cultura do Do It Yourself (DIY – Faça você mesmo), Jenkins ressalta a ânsia da indústria
em explorar todo o potencial imersivo e a fidelidade do público gamer para expandir
suas narrativas. “Cada vez mais, os magnatas do cinema consideram os games não
apenas um meio de colar o logotipo da franquia em algum produto acessório, mas um
meio de expandir a experiência narrativa” (JENKINS, 2009, pp. 35-36).

Em meio ao amplo debate e à possibilidade de criação de universos narrativos


mais ou menos abertos, precisamos lembrar, ainda, que o roteirista de Jogo Digital
deverá lidar com uma ampla complexidade adicional no desenrolar de sua trama.
Afinal, cada escolha criativa do autor será intensificada pelas escolhas do Player,
pela introdução dos Níveis e, claro, pela adaptação da história à jogabilidade e aos
recursos tecnológicos ou suportes específicos.

Para compreender o contexto da cultura de participação, conceito essencial no universo


Explor

gamer, leia “Criatividade alternativa encontra a indústria midiática” e “Cultura Tradicional,


Cultura de Massa, Cultura da Convergência” (pp. 187-196), no livro Cultura da Convergência.
(JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. São Paulo: Aleph, 2009).

Matrizes da Linguagem Verbal e suas Funções


Nos estudos de Linguagem, aprendemos que a Narrativa é um dos gêneros da
Matriz da Linguagem Verbal, da qual fazem parte tanto a linguagem escrita quanto
a oral. Mas ela não é a única, como vemos abaixo. Além do gênero narrativo, exis-
tem, ainda, os gêneros descritivo e dissertativo.

Matriz Verbal

Descrição

1. Qualitativa 2. Indicial 3. Conceitual

Narração

1. Espacial 2. Sucessiva 3. Causal

Dissertação

1. Conjectural 2. Relacional 3. Argumentativa

Figura 4 – Gêneros que compõem a Matriz Verbal da linguagem e suas características


Fonte: SANTAELLA, 2005

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UNIDADE Conceitos Fundamentais de Narrativas em Jogos Digitais

A matriz verbal tem como eixo fundamental tanto o discurso escrito quanto o oral,
sempre dirigidos aos efeitos interpretativos que são capazes de produzir em processos
comunicativos. Embora os linguistas e semióticos estabeleçam categorias separadas
entre cada gênero, sabemos que a maior parte dos textos é resultado do uso híbrido
de todos eles.

Veja as principais características de cada Matriz Verbal:

Quadro 1

Apreende e apresenta as qualidades das coisas, pessoas,


Descrição ambientes e situações.

Traduz ações, eventos e conflitos que se desenrolam e


Narração impulsionam a história.

Apresentação de argumentos e passagem de premissas para


Dissertação uma conclusão.

Em linhas gerais, a Descrição busca reconstruir, com palavras, as qualidades


das coisas, dos objetos e dos cenários. Tais qualidades são aquelas captadas pelos
sentidos da audição, visão, tato, paladar e olfato. A essa percepção, acrescenta-se
a visão subjetiva sobre a cena. Por meio desses filtros, busca-se a TRADUÇÃO de
determinada realidade para nosso interlocutor, criando um modo de REPRESEN-
TAÇÃO da história a ser apresentada na obra ficcional.
A Narração, gênero central de um Roteiro de Audiovisual, desenvolve um relato
linear (cronológico, progressivo e sequencial) ou alinear (a partir da desconstrução
dos elementos lineares da trama, como já vimos nesta Unidade) de ações que se
desenrolam dentro de um determinado recorte de tempo. A narrativa apresenta,
geralmente, o encadeamento de fatos baseados em ação e reação.
Já a dissertação faz uso da argumentação, por meio de redes conceituais ligadas
estruturalmente pela lógica. Dissertar é criar um discurso baseado na defesa de um
ponto de vista e no convencimento do outro. Este é um aspecto menos utilizado na
construção de Roteiros Ficcionais, pelo menos de maneira formal. Porém, como vimos
anteriormente, o significado moral por trás do desenrolar dos fatos está sempre pre-
sente na trama, queiramos objetivamente ou não.
Para concluir esta etapa, vale destacar que, ao dar corpo a uma Narrativa por
meio da redação de um Roteiro, o autor usará, alternadamente, todos esses gêneros.
A Descrição Visual é parte fundamental da caracterização da obra audiovisual e o
direcionamento que proporciona à equipe técnica e artística do estúdio de criação de
games é, talvez, uma função tão importante quanto o desenrolar narrativo. Portanto,
estudar os recursos de estilo e montagem faz parte dos preparativos para colocar em
prática os seus processos de criação.

Veja um vídeo com a jornalista Flávia Gasi em que ela mostra a relação entre Narrativa e
Explor

Interatividade nos games. Disponível em: https://youtu.be/V2Msb5a7gIg.

12
Tipos de Narrativas
Existem diferentes tipos de Narrativas, cada uma delas desempenhando um papel
específico dentro do objetivo geral de comunicar uma mensagem ou, simplesmente,
contar uma história.

A Narrativa Poética é uma das mais antigas, pois está ligada à tradição oral.
Ritmo, cadência e rimas são os elementos utilizados para facilitar a transmissão, uma
vez que a narração no período clássico dependia intrinsecamente da memorização
do texto. Hoje, as canções populares ainda utilizam recursos de linguagem próximos
aos da poesia, a fim de obter ritmo, emoção e memorização.

Poesia
Ritmo, Cadência, para facilitar a
Tradição Oral (Memória)
memoriazação do texto.

Exemplos
Grandes Poemas Épicos
ILÍADA – ODISSEIA - HOMERO
Gregos (Epopeias)

Forma
A poesia pode ser lírica (canções, estados de
Composição baseada
espírito descrição de coisas belas) ou épica
em Versos
(Grandes Aventuras com Deuses e Heróis).

Figura 5 – Fluxo da narrativa poética


Fonte: GUIMARÃES NETO e LIMA, 2014

O Drama, por sua vez, criou as representações teatrais como alternativas na Gré-
cia Antiga. Cada qual à sua maneira, Tragédia e Comédia eram estilos que procura-
vam provocar choro ou riso, como abordamos no início desta Unidade, na Poética
de Aristóteles. Essa separação absoluta entre os gêneros servia ao propósito clássico
de gerar uma catarse no público, provocada por uma lição moral que deveria ser
apreendida. Até hoje, inúmeros produtos culturais continuam sendo elaborados a
partir dessa premissa.

A adoção de uma narrativa capaz de unir esses dois elementos, tragédia e comé-
dia, riso e choro, é creditada por muitos ao dramaturgo inglês William Shakespeare
(1564-1616), ainda em tempos pré-modernos.

13
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UNIDADE Conceitos Fundamentais de Narrativas em Jogos Digitais

Tragédia x Comédia
Choro separa do riso, para melhor Aristóteles e a Poética: a narrativa
compreensão da “mensagem” moral. ficcional deve ter uma MORAL.

Catarse
Purgação, purificação: o choro para superar
SENSACIONAL causado pelo espetáculo. os males cotidianos e aprender a virtua/ o riso
para elevar o moral.

Tragédia + Comédia
SHAKESPEARE, no século XVI, vai mistura
Proximidade com a “realidade”.
tragédias comédia na mesma narrativa.

Figura 6 – Fluxo da narrativa dramática


Fonte: GUIMARÃES NETO e LIMA, 2014

Nossa forma de contar histórias também sofre transformações provocadas


pelas novas tecnologias e mídias. É assim que a invenção da prensa e a popu-
larização do livro vão estimular uma nova onda de romances com personagens
baseados em pessoas comuns.

Com os jornais, aparecem as Narrativas em Série no estilo folhetim. Cinema,


histórias em quadrinhos, rádio e TV vão reunir narrativas baseadas em texto e ima-
gens, muitas vezes influenciadas pelas vanguardas do século XX.

A era digital, por sua vez, introduz uma lógica cultural de convergência e parti-
cipação, dentro da qual os games ocupam posição de destaque.

Jornais • Vanguardas: impressionismo/


• Gutemberg e a invenção da prensa; expressionismo/cubismo;

• Romances, que incorporam pessoas • Narrativas em série: folhetins; • Dadaísmo, Marcel Duchamp e Do
comuns às narrativas. It Yourself (DIY)
• HQ e cinema na virada do século
XIX para o século XX inauguram Século XX
Entretenimento nova fase narrativas.

Figura 7 – Novas mídias e as transformações narrativas


Fonte: GUIMARÃES NETO e LIMA, 2014

14
Coerência Interna
Como vimos, o uso da narrativa ficcional no sentido de apresentar determinada
lição moral ou educacional remonta à Antiguidade Clássica e à instituição da Tragédia
e da Comédia grega. Aprendemos que as narrativas pré-modernas de Shakespeare
começaram a desmontar essa oposição, com histórias humanas mais complexas e
contraditórias. Por fim, descobrimos que os autores contemporâneos questionam a
própria estrutura da narrativa linear e da relação autor-obra-público.

Esse conhecimento sobre as diferentes possibilidades que possuímos para contar


uma história é fundamental para embasar as escolhas criativas que deverão ser rea-
lizadas durante todas as etapas de criação de um Jogo Digital. Assim, se você optar
por uma narrativa clássica para um determinado Jogo, dividida em três atos e com
desenvolvimento linear, é importante manter a coerência interna entre a linguagem
adotada, os recursos tecnológicos, a moral e a motivação narrativa.

Seus personagens serão construídos como peças de um determinado ensi-


namento moral? Qual é, exatamente, essa lição? Essas perguntas devem estar
presentes desde o início da roteirização, a fim de evitar incongruências. Um erro
comum é introduzir elementos e/ou personagens que não desempenharão papel
algum no enredo.

Um recurso de construção narrativa muito utilizado para manter a coerência


cênica foi retirado das lições deixadas por Anton Tchekhov (1860-1904), drama-
turgo russo considerado revolucionário exatamente por dar vazão à consciência
dos personagens, em um fluxo aberto, fugindo das dualidades e oposições morais
entre tragédia e comédia (Revista Cult, 2017).

Trata-se da chamada “arma de Tchekhov”, em que o autor, ao introduzir um


determinado elemento à composição de cenário de sua peça, filme ou audiovisual,
deve pensar em sua função narrativa. Assim, se introduzir uma “arma” no cenário de
seu jogo, pense no papel que ela desempenhará na trama. Somente assim você dará
consistência e coerência à história. Lembrando que Tchekhov usou “arma” como um
modelo exemplar, mas a lição funciona para um personagem, um ambiente, uma
trama paralela etc.

Foco narrativo
O foco da narração é dado a partir da perspectiva que o autor empresta ao Nar-
rador. Quando este assume a tarefa de contar a história na primeira pessoa do sin-
gular (eu) ou do plural (nós), torna-se um dos personagens da trama. Portanto, ele
participa da história. O ponto de vista sobre o desenrolar dos fatos é apenas o seu.

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UNIDADE Conceitos Fundamentais de Narrativas em Jogos Digitais

Ao adotar o Narrador em terceira pessoa, ele não é um dos personagens e, por-


tanto, está fora da história e tem acesso a todas as ações. Neste modelo, ele pode
assumir duas funções distintas:
• O Narrador Observador, que apenas descreve o desenrolar dos fatos;
• O Narrador Onisciente, que descreve tanto os pensamentos dos personagens
quanto as ações da história.

Figura 8 – Em jogos de corrida, o player vive a sensação de estar imerso


na narrativa, dirigindo o carro, e não olhando para o piloto
Fonte: iStock/Getty Images

No universo dos Jogos Digitais, a narrativa sempre é vivida como uma experiên-
cia interativa. Tal interação pode estar presente em toda e qualquer relação entre
narrativa-jogador, tanto no aspecto do design do cenário, na relação com o suporte,
na adoção de um personagem como seu avatar, nas escolhas e nos níveis alçados.

Da mesma forma, o jogo sempre oferece um determinado grau de imersão, pro-


porcionando ao jogador uma maneira de “experenciar” melhor a mensagem dos
autores. Na imersão, o jogador/leitor/público encontra uma forma de experimentar
outra realidade. Para isso, são usados inúmeros recursos, como estímulos senso-
riais, que podem ser dados por joysticks e diversos dispositivos de entrada. “Com o
joystick Dual Shock 2, do Playstation 2 (PS2), pode-se perceber até 128 níveis de
pressão no controle, além de ser capaz de fazer com que o controle vibre de acordo
com situações do jogo, como por exemplo quando um carro passa raspando na pa-
rede ou entra no banco de areia da pista” (LEMES, 2009).

Baseadas nessas características específicas da linguagem, há experiências narra-


tivas sendo desenvolvidas de maneira inovadora o tempo todo, inclusive promoven-
do encontros entre dois ou mais formatos, gerando uma “hibridização” dos roteiros
para jogos.

Se na narrativa autoral a história ficcional é 100% conduzida de forma linear pelo


roteirista, as narrativas integradas ou embutidas começam a relativizar esse domínio.
Nesses casos, a partir de escolhas do jogador, outras histórias, escondidas em um
segundo plano narrativo, oferecem algum grau de autonomia ao player.

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Na narrativa emergente, porém, o jogador é visto, de fato, como coautor.
Suas escolhas transformam o rumo da narrativa e trazem à tona uma história
singular, fruto da interação jogo-jogador. Um exemplo clássico desse tipo de nar-
rativa é aquela adotada por The Sims, criado em 2000 por Will Wright.

Ideias Chave
As características do ambiente digital oferecem uma série de oportunidades nar-
rativas, que podem enriquecer a experiência de jogabilidade e a própria construção
da história presente em um jogo, independentemente do grau de sua complexidade.
Vamos elencar algumas delas abaixo.
• A potencialidade de construir uma narrativa e uma interação não-linear é in-
trínseca à experiência no mundo digital, embora nem sempre seja utilizada;
• Para isso, usamos links, hipertextos e níveis, multiplicando camadas de senti-
dos, caminhos e escolhas;
• Translação e repetição: relações são estabelecidas por meio de repetições,
referências e ritmo da narrativa a partir da experiência proporcionada pelos
links e diferentes níveis. Para estabelecer coerência entre essas camadas
narrativas, é possível usar mapas conceituais, esquemas e visualizações de
esquemas narrativos;
• A polifonia, ou multiplicidade de vozes, é um conceito útil para as narrativas
embutidas ou emergentes: representam diferentes perspectivas da história,
apresentadas sem que nenhuma seja necessariamente mais importante do
que a outra;
• É fundamental estabelecer que a prioridade sempre é a história a ser con-
tada e a jogabilidade, mais do que o uso dos recursos. Estes devem estar a
serviço da narrativa e da imersão do jogador;
• A conexão proporcionada pelos links e pela passagem de níveis deve levar
a diferentes formas de interagir com o conteúdo: novas experiências, surpre-
sas, complementaridade, diferentes sentidos e camadas;
• O autor/roteirista deve não apenas aprender a lidar com o imponderável da
leitura/interpretação do leitor/jogador de um link/nível a outro, mas desejar
que tal imprevisibilidade esteja presente em sua obra.

Os limites entre arte e entretenimento já dominaram debates sobre o cinema, a foto-


Explor

grafia, HQ e toda a cultura pop do século XX. No caso dos Jogos Digitais, qual é a sua
opinião: há um limite entre eles? O que define tais fronteiras? A mensagem, a moral, o
formato, as escolhas narrativas? Redija um pequeno texto para organizar suas ideias. Se
quiser, mapeie argumentos contraditórios em um quadro, a fim de dar maior profundi-
dade argumentativa a sua reflexão.

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UNIDADE Conceitos Fundamentais de Narrativas em Jogos Digitais

Elementos Criativos e Processos de Criação


Para reunir os elementos criativos específicos de uma determinada mídia, é
preciso conhecê-la e desvendar seu modo de produção ou techné (modo de fazer).
O domínio técnico é parte importante da criação em Jogos Digitais, mas faz parte
de uma combinação de habilidades e repertório. Esta será nossa tarefa na etapa
final desta Unidade.

Em primeiro lugar, é preciso saber que a equipe de criação de um jogo geral-


mente envolve um grupo multidisciplinar, com profissionais de diferentes áreas, en-
carregados de desenvolver as várias etapas de criação. Saber dialogar e criar uma
comunicação eficaz com toda essa variedade de visões são habilidades necessárias
para emplacar um bom roteiro e chegar aos resultados esperados.

Game
Design

Infraestrutura
de Software

Elementos Técnicos
Gráficos, IA, Animação, Física...

Figura 9 – Estrutura básica de criação e desenvolvimento de games

A estrutura de um estúdio de Jogos Digitais pode envolver, em média, de dez a


cem profissionais. As realidades corporativas são as mais distintas possíveis, mas há
algo em comum sempre: todos, sem exceção, trabalham em equipe. Assim, tanto em
pequenos quanto em grandes estúdios, teremos as seguintes áreas: Gestão, Produção,
Design, Programação, Arte, Som e Teste de Qualidade.

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Funções e Atribuições
Em cada uma dessas áreas, estão distribuídos profissionais com habilidades es-
pecíficas e funções a desempenhar. Veja quais são os principais na lista abaixo.

Game Designer
Funções desempenhadas:
• Level designer: desenvolvimento de mapas de níveis;
• Feature designer: desenho de funcionalidades;
• Interface designer: desenho de interfaces;
• Writer: escritor, autor, roteirista.

Habilidades e áreas de conhecimento desejadas para desempenhar a função:


comunicação escrita e oral, escrita criativa, arte, História, Ciências e Literatura.

Programador
Função desempenhada: escrita dos códigos e programação de sistemas.

Habilidades e áreas de conhecimento desejadas para desempenhar a


função: linguagens de programação: C, C++, Assembly, Java, C#, Trigono-
metria, Cálculo, Física.

Artista de Jogos
Função desempenhada: criar todas as etapas artísticas.

Habilidades e áreas de conhecimento desejadas para desempenhar a


função: pintura e desenho digital, design gráfico, modelagem 3D, domínio de
Animação Maya, Studio Max, Photoshop, Flash e Sketching.

Sound Designer
Funções desempenhadas: criação de som e música; trabalha em múltiplos projetos.

Habilidades e áreas de conhecimento desejadas para desempenhar a


função: domínio de MIDI, Sampling, SoundForge, Sequenciadores (cakewalk),
Física, Lógica, Matemática e Scripting.

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19
UNIDADE Conceitos Fundamentais de Narrativas em Jogos Digitais

Produtor
Funções desempenhadas: direção e gestão de RH, coordenação de produção,
gerência de marketing, planos de projetos, desenho de marcos.

Habilidades e áreas de conhecimento desejadas para desempenhar a fun-


ção: domínio da comunicação escrita e oral, básico de computadores, matemática,
línguas, marketing e administração.

Garantia de Qualidade
Funções desempenhadas: gestão de garantia de qualidade, desenvolvimento
de planos de testes, gestão do banco de dados de bugs, identificação de crashes,
problemas de texto e outros erros.

Habilidades e áreas de conhecimento desejadas para desempenhar a fun-


ção: saber jogar, comunicação escrita, básicos de computação, seguir instruções
à risca, manter o foco, aplicar testes de compatibilidade, conhecimento de serviço
ao consumidor.

Artistas

Programadores Designers
Figura 10 – As principais funções criativas desenvolvidas dentro de um estúdio de games podem ser
reunidas no que alguns chamam de “trindade dos jogos”: artistas+programadores+designers

Para obter os melhores resultados em um processo criativo dentro do estúdio de


games, no entanto, é necessário criar um fluxo de envolvimento capaz de dar conta dos
diferentes profissionais e equipes. Quanto maior é a integração, maiores as chances de
chegar mais rapidamente ao objetivo.

Designers Programadores Artistas QA

Design Implementação Teste

Início do Projeto Fim do Projeto


Figura 11 – Modelo de equipe com envolvimento e integração médios

20
O desenvolvimento de um projeto com alto nível de integração da equipe de-
manda maior capacidade de gestão dos processos, mas multiplica as capacidades
de interação criativa.

Para roteiristas e artistas envolvidos na criação, este é o modelo ideal, pois possi-
bilita ajustes e perfeita adequação entre a narrativa, o roteiro programado, criação de
personagens e cenários, além do pleno uso dos recursos tecnológicos disponíveis.

Designers Programadores Artistas QA

Design Implementação Teste

Início do Projeto Fim do Projeto


Figura 12 – Modelo de equipe com alto envolvimento e integração

Projeto Interativo
Para desenvolver um Projeto Interativo de Jogos Digitais, os estúdios partem,
geralmente, de um objetivo inicial, desenvolvendo, então, um refinamento sucessivo
e complementando o ciclo com a avaliação em função do objetivo inicial.

Identificar requisitos
de jogo/técnicos

Jogar Formalizar ideais


Avaliar Criar Especialidade

Testar ideias
implementar
Figura 13 – O método de desenvolvimento de um projeto interativo em games prevê a realização de ciclos
completos e contínuos, nos quais o jogo deve ser constantemente aperfeiçoado, testado e avaliado

21
21
UNIDADE Conceitos Fundamentais de Narrativas em Jogos Digitais

Já o Modelo em Espiral é uma metodologia adotada pela área de Engenharia de


Software para testar os mais variados programas. Por ser extremamente detalhado,
subdividindo as etapas de avaliação em quatro quadrantes (Veja a Figura 14), é conside-
rado uma ferramenta importante de análise de viabilidade para o lançamento de Jogos.

DETERMINA OBJETIVOS, AVALIA ALTERNATIVAS


ALTERNATIVAS E E RISCOS
Restrições4 Análise de Riscos4
RESTRIÇÕES

Restrições3 Análise de Riscos3


Alternativas4

Alternativas3 Restrições2 Análise de Riscos2

Alternativas2 Restrições1 Análise


Alternativas1 de Riscos1
Orçamento4 Orçamento3 Orçamento2 Orçamento1 Protótipo1 Protótipo2 Protótipo3 Protótipo4

START Requisitos, Concepção da


Plano do Ciclo Operação Requisitos Projeto
de Vida de Software Detalhado
Projeto de
Plano de Software
Validação de
Desenvolvimento Requisitos Código

Plano de Testes Projeto verificado Teste de


e de Integração e validado Unidades

Teste de Sistema
Plano de Implementação Teste de Aceitação
PLANEJA DESENVOLVE E TESTA

Figura 14 – O modelo em espiral foi definido por Barry Boehm no artigo


A Spiral Model of Software Development and Enhancement, de 1988

É claro que tais estratégias de processos precisam estar alinhadas aos objetivos
criativos iniciais. A elaboração de um Roteiro de Jogo coerente, com uma narrativa
bem delineada e em diálogo com todas as etapas de produção depende também de
um processo criativo eficaz do autor/roteirista.

Algumas estratégias podem ser adicionadas a tudo o que você viu até aqui. Pro-
cure adquirir habilidades de Design Thinking, montando uma arquitetura visual
do projeto, capaz de alimentar criativamente a escrita do roteiro. Um storyboard
construído no estilo HQ ou em um flipchart, por exemplo, pode ajudar muito du-
rante os momentos de transição narrativa.

Realizar reuniões de Brainstorm (a famosa “chuva de ideias”, usada há décadas


nos processos criativos de redatores e publicitários em geral), em que toda a equipe
é convidada a elaborar ideias livremente, é outra estratégia muito proveitosa.

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Por fim, um mapa conceitual da narrativa e da jogabilidade também pode ser eficaz,
indicando os “nós” da criação e suas relações com todas as etapas, como você pode
conferir abaixo.

Mapas Conceituais

Como criá-los?
PASSO 1 - Pesquisa
Procedimentos:
PASSO 2 - Anotação dos pincipais termos ou conceitos

PASSO 3 - Identificação dos conceitos gerais, intermediários


e específicos

Conceito geral no topo


Usar palavras ou frases simples
Usar fontes (tipo de letras) legíveis
Dicas:
Usar cores para separar ideias diferentes
Usar símbolos e imagens sugestivas
Usar formas diferentes para diferentes grupos de informação

Figura 15 – Mapas Conceituais

Agora, é hora de buscar o Material Complementar, realizar as Atividades Avalia-


tivas e começar a esboçar o seu próprio projeto. Uma boa ideia é conectar-se com
os colegas do curso de regiões mais próximas através dos Fóruns de Discussão.
Bons estudos!

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UNIDADE Conceitos Fundamentais de Narrativas em Jogos Digitais

Material Complementar
Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade:

Sites
Daily Script
Script/ Roteiro do filme Cidadão Kane, de Orson Welles (inglês). Considerado por mui-
tos críticos como o melhor filme de todos os tempos, a narrativa aposta na não lineari-
dade e surpreende até hoje.
https://goo.gl/hQ5aYG

Livros
O Aleph
Jorge Luís Borges é um autor argentino (1899-1986) considerado precursor do estilo de
literatura fantástica na América Latina e influenciador de escritores como Gabriel Gárcia
Marquez e Mario Vargas Llosa. No conto O Imortal, que faz parte da coletânea O Aleph,
Homero é transformado em personagem-chave de uma trama estranha e envolvente.
Uma obra que remete a mitologia, narrativa, labirintos, escolhas, vida e morte. Inspirador.
BORGES, Jorge Luís. O Aleph. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

Vídeos
Paper Prototype Demonstration - Angry Birds Mobile App Redesign
Veja um exemplo de prototipagem feita em papel como etapa de criação e desenvol-
vimento de um app do Angry Birds para celular.
https://youtu.be/pvg8GpdQZSQ
Conheça os processos de criação de um jogo independente
Aqui, você pode acompanhar uma reportagem sobre os processos criativos de games
independentes, produzida pela Globo News.
https://goo.gl/swW6u5

Leitura
Construindo Mapas Conceituais
Artigo “Construindo Mapas Conceituais”, de Romero Tavares. Departamento de
Física, Universidade Federal da Paraíba (UFPB), João Pessoa, Paraíba, Brasil.
https://goo.gl/J6NFhH

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Referências
Aristóteteles. Poética. São Paulo: Edipro, 2011. (Original publicado em torno de
330 a.C.)

ECO, Umberto. Obra aberta. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1968.

GOSCIOLA, Vicente. Roteiro para as novas mídias: do cinema às mídias


interativas. Capítulo V – Modelos para a roteirização e a análise de hipermídia.
São Paulo: Senac, 2003. (pp. 189-225).

GUIMARÃES NETO, Ernane Alves; LIMA, Leonardo Souza. Narrativas e


personagens para jogos. São Paulo: Erica, 2014.

JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. São Paulo: Aleph, 2009.

LEMES, David de Oliveira. Games Independentes: fundamentos metodológicos


para criação, planejamento e desenvolvimento de jogos digitais. São Paulo,
2009. Disponível em: <http://www.dolemes.org/material/Ebooks/Ebook_
Games_Independentes_Dolemes.pdf>.

SANTAELLA, Lucia. Matrizes da Linguagem e Pensamento. São Paulo:


Iluminuras: Fapesp, 2005.

VÁSSINA, Elena. Anton Pavlovitch Tchekhov. Revista Cult. Dossiês. São Paulo,
2017. Disponível em: <https://revistacult.uol.com.br/home/anton-pavlovitch-
tchekhov/>. Acesso realizado em 15/01/2018.

25
25
Roteiro e Narrativa
Material Teórico
Processos de Criação de Enredo, Ambientação e Personagens

Responsável pelo Conteúdo:


Prof.ª Me. Mirian Aparecida Meliani

Revisão Textual:
Prof.ª Dr.ª Selma Aparecida Cesarin
Processos de Criação de Enredo,
Ambientação e Personagens

• Construindo a sua História;


• O Tempo, Senhor do Destino;
• A Encruzilhada Narrativa x Jogabilidade;
• O Enredo;
• A Ação;
• Sequência;
• Personagens;
• O Narrador-Personagem;
• Atribuições de Papeis;
• Diferentes Formatos de Personagens;
• NPC e Player;
• Cenário.

OBJETIVO DE APRENDIZADO
· Dominar os vários elementos narrativos de um roteiro para Jo-
gos Digitais;
· Adquirir habilidade de relacionar e construir uma ação narrativa a
partir de um projeto específico.
Orientações de estudo
Para que o conteúdo desta Disciplina seja bem
aproveitado e haja maior aplicabilidade na sua
formação acadêmica e atuação profissional, siga
algumas recomendações básicas:
Conserve seu
material e local de
estudos sempre
organizados.
Aproveite as
Procure manter indicações
contato com seus de Material
colegas e tutores Complementar.
para trocar ideias!
Determine um Isso amplia a
horário fixo aprendizagem.
para estudar.

Mantenha o foco!
Evite se distrair com
as redes sociais.

Seja original!
Nunca plagie
trabalhos.

Não se esqueça
de se alimentar
Assim: e de se manter
Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte hidratado.
da sua rotina. Por exemplo, você poderá determinar um dia e
horário fixos como seu “momento do estudo”;

Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar; lembre-se de que uma


alimentação saudável pode proporcionar melhor aproveitamento do estudo;

No material de cada Unidade, há leituras indicadas e, entre elas, artigos científicos, livros, vídeos
e sites para aprofundar os conhecimentos adquiridos ao longo da Unidade. Além disso, você
também encontrará sugestões de conteúdo extra no item Material Complementar, que ampliarão
sua interpretação e auxiliarão no pleno entendimento dos temas abordados;

Após o contato com o conteúdo proposto, participe dos debates mediados em fóruns de discus-
são, pois irão auxiliar a verificar o quanto você absorveu de conhecimento, além de propiciar o
contato com seus colegas e tutores, o que se apresenta como rico espaço de troca de ideias e
de aprendizagem.
UNIDADE Processos de Criação de Enredo, Ambientação e Personagens

Construindo a sua História


Após compreender os principais aspectos narrativos presentes nas histórias,
vamos mergulhar nos seus elementos constitutivos, ou seja, naquelas etapas de
construção da narrativa capazes de estruturar o Roteiro.

Já sabemos que a Apresentação oferece ao leitor informações relativas ao “pano


de fundo” da narrativa, que a Complicação é aquela etapa da ação em que acontece
o conflito a ser resolvido pelo protagonista e que o Clímax revela o momento crítico
da narrativa, quando o Desfecho se mostra inevitável. Este, por sua vez, representa
a parte da ação em que o protagonista consegue ou não resolver o conflito encon-
trado na Complicação.

Ao alinharmos essas etapas dentro de uma narrativa, seja dentro de uma concepção
clássica e linear, seja a partir da desconstrução da linearidade cronológica, estamos
desenvolvendo o Enredo, o conjunto de acontecimentos que se desenrola num deter-
minado espaço e tempo.

A presença do Enredo é o primeiro elemento essencial ao texto narrativo. Vamos,


então, saber quais são os componentes que precisamos definir para construir o enre-
do da história que queremos contar.

Figura 1 – Todas as histórias podem ser escritas de diferentes maneiras e é natural que o processo de definição do
enredo seja marcado por tentativas e erros, com diversas versões sendo substituídas por outras mais adequadas
Fonte: iStock/Getty Images

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O Tempo, Senhor do Destino
A definição da temporalidade do enredo envolve diferentes dimensões e será
fundamental para delinear cenário e personagens, além da própria abordagem
da narrativa. Além de escolher o período histórico em que o Roteiro vai encaixar
a ação, é preciso saber de antemão qual a temporalidade da ação: a sucessão de
cenas será desenvolvida dentro de um período recortado de um ano? Um dia?
Uma vida? Um século?

A ordenação temporal será linear do ponto de vista cronológico, isto é, a história


vai se passar em uma sequência exata, do fato mais antigo para o mais recente, até
o desfecho final?

Ou, como vimos no roteiro de Cidadão Kane, iniciaremos a ação com seu desfe-
cho final, voltando no tempo para desvendar o mistério, a partir de flashbacks não
necessariamente contínuos?

Grandes histórias podem ser criadas a partir dessa definição inicial, pois a decisão
temporal vai imprimir o ritmo e o direcionamento da ação. Em um jogo, essa pode
ser uma grande oportunidade para mapear narrativa e jogabilidade com originalidade.

Figura 2 – A passagem do tempo durante a ação narrada pelo roteiro


pode ser um dos aspectos principais para definir o enredo
Fonte: iStock/Getty Images

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UNIDADE Processos de Criação de Enredo, Ambientação e Personagens

A Encruzilhada Narrativa x Jogabilidade


Neste ponto, para que você possa compreender algumas das discussões que
permeiam o universo gamer de produção profissional, é importante lembrar que
há correntes de estudos que apontam caminhos diferentes no planejamento dos
jogos contemporâneos.

Se, por um lado, a ascensão de uma visão baseada na importância da narrativa


(Narratologia) aponta para as mais recentes estratégias adotadas pelos grandes es-
túdios, que compreendem o videogame como uma mídia próxima das linguagens de
HQ, cinema e literatura, outros estudiosos acreditam que o aspecto lúdico da joga-
bilidade (Ludologia) deve ser visto como preponderante no projeto do videogame.

Se analisarmos a história dos videogames, partindo de jogos como Tetris e Pong,


percebemos que há ali menos envolvimento narrativo e maior ênfase na pura joga-
bilidade, desenvolvida de forma abstrata, com o jogador interagindo com objetos e
marcando pontos.

É claro que existe um grande mercado dirigido a esse segmento de Jogos Digitais,
especialmente com a popularidade dos jogos para celular, mas também é impossível
negar o espaço que as narrativas mais complexas e baseadas no repertório ficcio-
nal ganharam com a sofisticação tecnológica na área de games:
Existem duas coisas que constituem os videogames: regras reais e mundos
ficcionais. Ao construir mundos ficcionais, videogames ficam distantes de
jogos tradicionais não-eletrônicos, que são geralmente abstratos; e isso é par-
te da novidade fornecida pelos videogames. A interação entre as regras e a
ficção do jogo é uma das características mais importantes dos videogames.
(JUUL, 2005, p. 12. Tradução livre)

O que tal Discussão Aponta?


Ao criar um projeto de jogo com ambições narrativas mais complexas, o rotei-
rista e/ou game designer deverá sempre ter em mente que a clareza e a coerência
das regras e da mecânica devem estar em consonância com as escolhas narrativas
idealizadas no início do processo.

A efetividade da história será testada a cada jogador que, por meio de sua
subjetividade e repertório próprios, for capaz de decodificar as regras do jogo,
interpretando os signos narrativos carregados pelo desenvolvimento do cená-
rio, modelagem dos personagens, desenvolvimento de níveis, desafios e solu-
ções, todos simultaneamente mecânicos e ficcionais.

Assim, correndo por fora de um debate baseado na superioridade de uma ou


outra categoria criativa, estão pesquisadores e profissionais que preferem afir-
mar que é da integração entre narrativa e jogabilidade que nascem os projetos
mais interessantes e desafiadores.

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Figura 3 – As escolhas relacionadas às regras e mecânicas de um jogo
devem estar alinhadas ao roteiro e à narrativa da história
Fonte: iStock/Getty Images

Para compreender o contexto do debate entre a Narratologia e a Ludologia, leia o artigo


Explor

Uma tipologia dos games. Disponível em: https://goo.gl/aBZnfw.

O Enredo
O Enredo, ou intriga, é a organização dos acontecimentos que compõem a história
dentro de uma determinada trama, que lhe dá forma. Essa organização, geralmente,
se faz em torno de um tema que atua como elemento unificador da narrativa. Na orga-
nização do enredo, desenvolvem-se momentos de descrição que assumem importância
na caracterização de personagens, objetos, cenas e situações.

Para dar os primeiros passos na construção do enredo, é necessário definir a rela-


ção tempo-espaço, estabelecendo o contexto histórico, o período de tempo em que
a ação transcorrerá e o lugar/cenário em que a narrativa do jogo vai se desenvolver.

Tal espaço será situado em uma localidade real? Há elementos suficientes para
desenhar esse espaço-temporal ou será necessário realizar uma pesquisa?

No caso de uma localidade real, é esperado que haja algum grau de correspondên-
cia com a realidade, pelo menos em linhas gerais. Uma história que se passa no Rio
de Janeiro deve respeitar as características dessa cidade. Se a ação estiver dividida
em diferentes cenários, mais pesquisa será necessária.

Um exemplo interessante de relação entre uma narrativa de fantasia unida a


um cenário realista é a obra de Neil Gaiman, Lugar Nenhum (veja indicação de
leitura nas Referências).

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UNIDADE Processos de Criação de Enredo, Ambientação e Personagens

O autor da famosa série de HQ Sandman baseia a ação de sua história nos


subterrâneos de Londres, mostrando um mundo de esgotos e buracos que podem
levar tanto a uma estação de metrô quanto ao museu mais famoso da cidade. Essas
correspondências que unem uma narrativa em formato de fábula e um contexto ur-
bano são capazes de despertar alto envolvimento no público, atuando no âmbito do
imaginário, que busca sustentação nas referências cotidianas.

Trocando ideias...Importante!
A definição científica de espaço-tempo sofre transformações ao longo da história e
influencia a maneira como roteiristas e escritores definem essas características nos
seus trabalhos. Narrativas com tempo cronológico linear, tempo circular ou tempo
multifacetado são experiências que se alternam nas histórias contadas em filmes,
peças teatrais, seriados e games. Exercite sua potencialidade criativa imaginando e
reescrevendo uma determinada história a partir de diferentes recortes espaço-temporais.

Além disso, uma das características dos bons textos ficcionais é a coerência inter-
na, em que, ao contrário da vida real, a sucessão de fatos, as referências espaço-tem-
porais e o destino dos personagens devem adquirir, ao longo da trama, um sentido
maior, capaz de justificar o relato daquela história.

Os teóricos da linguagem dão o nome de diegese ao processo de definição da


dimensão ficcional de uma narrativa, o universo criado dentro da ficção, que lhe dá
unidade e coerência:

A diegese é, portanto, em primeiro lugar, a história compreendida como


pseudomundo, como universo fictício, cujos elementos se combinam para
formar uma globalidade. A partir de então, é preciso compreendê-la como
o significado último da narrativa: é a ficção no momento em que não ape-
nas ela se concretiza, mas também se torna uma. Sua acepção é, portanto,
mais ampla do que a de história, que ela acaba englobando: é também tudo
o que a história evoca ou provoca para o espectador. Por isso, é possível
falar de universo diegético, que compreende tanto a série de ações, seu su-
posto contexto, quanto o ambiente de sentimentos e motivações nos quais
elas surgem. (AUMONT, 1995, p.114)

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Figura 4 – Com referências ao traçado real do metrô da cidade de Londres,
o escritor e roteirista Neil Gaiman alinhava a trama de Lugar Nenhum
Fonte: iStock/Getty Images

A Ação
A Ação do Enredo se desenvolve a partir da interação entre o acontecimento,
o tempo relacionado e o espaço ocupado pelo desenrolar dos fatos. Uma lição de
economia, que é herdada do Teatro Clássico, é investir em uma única unidade de
ação, de tempo e de espaço. Isso vai constituir maior facilidade narrativa e viabilidade
de produção, reduzindo custos. Muitos videogames, filmes e peças alcançaram
enorme sucesso graças a essa síntese temática, capaz de reduzir custos e ampliar o
acesso do público, desde que a trama da ação justifique a opção.
Um exemplo que vem do Cinema e mostra uma história com um único cenário
é o filme Janela Indiscreta, de Alfred Hitchcock, em que o protagonista está
confinado em seu apartamento em uma cadeira de rodas. A partir do minimalismo
espaço-temporal, Hitchcock criou um dos grandes clássicos cinematográficos.

Veja um aperitivo das soluções encontradas por esse roteiro genial no trailer do filme Janela
Explor

Indiscreta, de Alfred Hitchcock. Disponível em: https://youtu.be/VfCMzmoQn4o.

13
13
UNIDADE Processos de Criação de Enredo, Ambientação e Personagens

Por outro lado, lembre-se que, para desenhar a Ação, podemos lançar mão de his-
tórias que seguem caminhos paralelos, encontrando-se em algum momento (ou não)
e que são necessárias para a compreensão do contexto. Essa escolha deve servir ao
Roteiro como um recurso para contar melhor a história e envolver o público.

Assim, a Ação Principal do Enredo integra o conjunto de sequências narrativas que


detêm maior importância ou relevo, geralmente relacionadas ao protagonista.

A Ação Secundária relata os acontecimentos de menor relevo; é desenvolvida para-


lelamente e sua importância será definida em relação à ação principal, da qual depen-
de, muitas vezes.

Sequência
A Ação é constituída por um número variável de Sequências, compreendidas como
segmentos narrativos com princípio, meio e fim, que podem aparecer articuladas dos
seguintes modos:
• Encadeamento ou organização por ordem cronológica;
• Encaixe, quando uma ação é introduzida em outra, que já estava sendo narrada
anteriormente e que será retomada em seguida;
• Alternância, em que várias histórias ou sequências vão sendo narradas
alternadamente.

Vamos retomar, aqui, o elemento Tempo como fator definidor da organização


formal em que os fatos se estruturam uns após os outros no Enredo.

Já sabemos do componente definidor da diegese narrativa, ou seja, do univer-


so ficcional arquitetado pelo autor. Vimos, ainda, que existe a possibilidade de
demonstrar no Roteiro o tempo psicológico dos personagens, seja no monólogo
interior, seja nos flashes.

Acompanhe, a seguir, agora de forma mais sintética, algumas das maneiras como
o Tempo interfere na construção das Sequências dentro do Enredo de seu Roteiro:
• Tempo cronológico: estabelecido pela sucessão exata dos acontecimentos narra-
dos, do mais antigo para o mais recente;
• Tempo histórico: é relativo à época ou ao momento histórico em que a
ação se desenrola;
• Tempo psicológico: percepção subjetiva da personagem, que acontece de acor-
do com seu estado interior;
• Tempo do discurso: forma como o narrador irá conduzir a elaboração do tem-
po da história. Entre os possíveis modos de narrar, estão:
»» A ordem linear;

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» Alteração da ordem temporal (anacronia), que pode lançar mão da analepse
(recuo a acontecimentos passados) ou da prolepse (antecipação de aconteci-
mentos futuros);
» No ritmo dos próprios acontecimentos (isocronia) como, por exemplo, na
cena dialogada;
» Com um ritmo diferente (anisocronia), a partir da apresentação de uma es-
pécie de resumo ou sumário (condensação dos acontecimentos), da elipse
(omissão de acontecimentos) e da pausa (interrupção da história para dar
lugar a descrições ou divagações).

Para concluir, imagine que as escolhas relativas ao plano de espaço-tempo do


Roteiro fazem parte da própria gênese (nascimento) da ideia, mas podem ser recons-
truídas e reavaliadas ao longo do processo de criação.

Assim, é comum criar uma narrativa cronológica linear e, posteriormente, alterar


a ordem de apresentação dos fatos, contribuindo para a surpresa e para o suspense
da trama, fatores mais do que importantes para o sucesso de um videogame.

Personagens
Para Courtes e Greimas (2008), a narrativa é um discurso em que personagens
realizam ações. Essa definição permite a adaptação das histórias contadas para
diferentes mídias.

Paredes/Papiro

Computador/
Papel
digital

Cinema/TV Rádio

Figura 5 – Dos papiros para o papel, deste para o Rádio, TV e Cinema e, finalmente, para o computador, chegando
aos múltiplos suportes dos Jogos Digitais: histórias continuam sendo contadas por meio de personagens

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UNIDADE Processos de Criação de Enredo, Ambientação e Personagens

A tarefa das personagens é conduzir a ação, amarrando o enredo e emprestando


sentido às sequências que compõem a trama. Ao desenhar suas características, tanto
do ponto de vista da modelagem quanto da delimitação psicológica e do papel a ser
desempenhado no Enredo, o roteirista deve voltar à sua ideia original e refletir sobre a
Moral/Motivação inicial do processo criativo do Roteiro.

Os personagens serão peças de um ensinamento moral?

Se a resposta for positiva, toda a construção de ações e reações deverá obedecer a


uma lógica que busca a chamada coerência interna ou a própria diegese do universo
ficcional elaborado. Isso não quer dizer que não possa haver surpresas e revelações
que mudam as peças de lugar, muito pelo contrário.

Os chamados “pontos de virada”, que se interpõem ao longo de uma narração


audiovisual, são muito utilizados nas ficções seriadas para marcar a passagem de uma
temporada a outra, oferecendo algum ponto de vista novo sobre a história e mantendo
a atenção do público, geralmente, introduzindo aspectos pouco explorados das per-
sonagens, motivações desconhecidas até então, e até mesmo uma Ação Secundária,
capaz de transformar a Ação Principal.

Nos videogames, esse recurso pode ser utilizado na passagem de um nível a ou-
tro, mantendo o interesse do Player ao longo de todo o desenvolvimento da Ação.

O Narrador-Personagem
Existem definições clássicas das variações de personagens presentes em uma Nar-
rativa. Além do Protagonista (personagem principal), do Antagonista (aquele que
se interpõe à ação do protagonista, mas que nem sempre pode ser caracterizado
como um Vilão) e dos personagens secundários, deve-se destacar o Narrador como
elemento criado pelo autor e responsável pela relação com o acontecimento narrado
a partir de seu ponto de vista.

Além dele, existe, ainda, na Teoria Literária, o leitor virtual, ou Narratário, per-
sonagem idealizado como aquele a quem se destina a narrativa.

E como podemos classificar as diferentes perspectivas oferecidas pelo Narrador


ou o chamado Foco Narrativo?
• Primeira pessoa: eu ou nós. O narrador é um dos personagens. Ponto
de vista único;
• Terceira pessoa: o narrador não é um personagem, está fora da história e,
portanto, tem acesso a todas as ações;
• Narrador observador: relata as ações;
• Narrador onisciente: relata pensamentos e ações.

O uso da primeira pessoa, nos Jogos Digitais, é aplicado como mais um recur-
so de imersão, para que o Jogador se sinta parte integrante do desenvolvimento.

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É o recurso utilizado em jogos de corrida, por exemplo, quando a sensação é
de estar dirigindo o carro e não olhando para o piloto.

Nos ambientes de Realidade Virtual (VR, em inglês) e 3D, o Player experimen-


ta plenamente a sensação de ser um dos elementos da ação:
Uma tecnologia é interativa ao refletir as conseqüências de nossas ações
ou decisões, devolvendo-as para nós. O meio não apenas reflete, mas
também refrata aquilo que lhe é dado; o que retorna somos nós mesmos,
transformados e processados. Na medida em que a tecnologia nos reflete
de forma reconhecível, proporciona uma auto-imagem, um sentido do eu.
Na medida em que a tecnologia transforma nossa imagem, no ato da
reflexão, proporciona um sentido de relação entre esse eu e o mundo
vivenciado. (ROKEBY, 1997, p. 67)

A narrativa dos videogames é baseada, antes de mais nada, na ideia de interação. A iden-
Explor

tificação do jogador com o personagem, segundo alguns teóricos, gera envolvimento


emocional e afetivo, talvez mais intenso do que outras mídias e formatos. Deve existir um
consentimento prévio emocional em assumir momentaneamente a identidade do person-
agem, a fim de experienciar plenamente os vários níveis do jogo. Em sua opinião, o jogador
é também co-autor da narrativa de um game? E o leitor de um livro?

Atribuições de Papeis
De maneira geral, podemos afirmar que o Protagonista é o herói da história.
Nos enredos de ação e aventura, muito frequentes nos Jogos Digitais, vários autores
apontam a predominância do modelo narrativo baseado na Jornada do Herói. Esta-
belecida teoricamente pelo estudioso de mitologia comparada, Joseph Campbell, a
Jornada do Herói foi apresentada por ele como um Monomito (CAMPBELL, 2004),
ou seja, um mito de origem, presente nas tradições e religiões das mais variadas
partes do mundo.

Para o autor, o Monomito do Herói é uma história solar cuja estrutura está sem-
pre presente nas narrativas de aventura e conquista.

Há elementos da Jornada do Herói na Ilíada, de Homero, e em Star Wars.


George Lucas, criador desse enorme sucesso do Cinema e referência da cultu-
ra pop, declarou publicamente que baseou seus roteiros na estrutura apontada
por Campbell.

No primeiro filme da saga, lançado em 1977, o herói Luke Skywalker vive uma
vida tranquila e reclusa com a família, mas sonha com a aventura. Ao ser desafiado
pelo destino, assume o papel de herói quase sem querer e passa por todas as eta-
pas do Monomito, que somam 12 em seu contexto original (veja Figura 6).

17
17
UNIDADE Processos de Criação de Enredo, Ambientação e Personagens

Para Campbell, a Jornada do Herói exemplifica o Monomito, em torno do qual


todas as histórias orbitam. Segundo o estudioso, podemos definir o herói como “al-
guém que deu a própria vida por algo maior do que ele mesmo”.

É por isso que tais histórias ganham enorme atenção, pois, em última instância,
a saga do herói trata da “aventura de estar vivo”.

1.Pessoa comum
12. retorno às suas origens
2.quebra da normalidade
com o “elixir” ou a “cura” e chamado à aventura

11. ressurreição ou recusa ao chamado


transformação
profunda

10. encontro com


o mentor
caminho de volta

9. recompensa 5. protagonista cruza o


primeiro limiar,
enfrentando perigosa

8.provação traumática
7. 6. realiza provas,
aproximação da conquista aliados
caverna escura e inimigos
(reclusão e dúvida)

Figura 6 – Estrutura dos 12 Passos da Jornada do Herói, de Joseph Campbell

Diferentes Formatos de Personagens


Após conhecer a estrutura de construção do Protagonista Heróico, vamos reite-
rar que esse não é o único formato à disposição de roteiristas e criadores.

Nas narrativas contemporâneas, o anti-herói, que possui características ambíguas


e nem sempre 100% aprováveis do ponto de vista moral, ganha espaço adicional.
Nesse caso, a construção da personagem ganha nuances, torna-se menos plana e
rasa e mais próxima do humano.

Também é possível construir narrativas com mais de um protagonista ou sem pro-


tagonistas definidos previamente. Jogos multiplayer pedem personagens com impor-
tância equilibrada e muitas vezes são baseados na cooperação, superando a estrutura
básica da oposição entre Bem X Mal.

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Existe, ainda, a necessidade eventual de criar personagens com face-over, a partir de
atores reais. Quando o jogo é uma adaptação de um filme ou uma série pré-existente, a
criação será feita em cima dos atores originais, com uma série de cuidados específicos.

Questões de gênero, étnicas e de faixa etária também oferecem diversidade à cons-


trução dos heróis, que não precisam mais seguir os estereótipos do homem, nórdico,
jovem ou adulto. Hoje, mesmo nos filmes e videogames de aventura, podemos torcer
por heróis mais velhos, negros, mulheres e gays, entre outros.

Além disso, há os heróis híbridos, homem-máquina, homens-deuses, homem-animal,


além dos heróis não-humanos, alienígenas, divindades, seres fantásticos etc.

Os Antagonistas
Nem sempre o Antagonista é um vilão. Há situações de Enredo em que, sim-
plesmente, existem interesses divergentes entre o Protagonista e o Antagonista.

O vilão clássico, malévolo por natureza, capaz de cometer crueldades sem qualquer
tipo de motivação e contra o qual todo o discurso narrativo se volta, tornou-se menos
frequente, embora haja ainda todo um Mercado focado nesse tipo de caracterização.

Figura 7 – As relações entre protagonista e antagonista podem ir muito além da simples oposição Herói X Vilão
Fonte: iStock/Getty Images

Nos jogos em que há alternância de protagonistas, com uns transformando-se em


antagonistas num determinado nível da narrativa, há a necessidade de equilíbrio, para
não causar estranhamento no jogador, quando necessário mudar de personagem.

Os Coadjuvantes
Os Coadjuvantes são personagens secundários que ajudam ou atrapalham o Prota-
gonista, no sentido de fazer a história avançar. Muitas vezes, roubam a cena e geram
mais empatia com o público do que o próprio Herói, pois a identificação é maior.

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UNIDADE Processos de Criação de Enredo, Ambientação e Personagens

Já os Figurantes são personagens sem função no desenvolvimento da história, a


não ser fazer parte do cenário e proporcionar veracidade às cenas.

No caso de videogames, os Figurantes podem estar distribuídos ao longo de dife-


rentes níveis e sua criação e modelagem vai obedecer à lógica da construção da cena.

Uma definição bem feita de Coadjuvantes e Figurantes é essencial para o bom de-
senrolar do Enredo do seu Roteiro.

NPC e Player
É claro que há características muito específicas na construção de personagens
para Jogos Digitais. A Figura do Player é, sem dúvida, a mais importante, pois
representa o personagem comandado pelo interador, ou seja, o próprio Jogador,
integrado à trama, executando suas escolhas e ações.

Nesse sentido, o conceito de Avatar, ou identidade assumida pelo jogador, é


um ponto de inflexão na trama, pois pode ser o ponto de união entre uma nar-
rativa autoral e emergente.

Para alguns teóricos, essa característica específica é o que fornece a originalidade


e a essência do Videogame, transformado em uma mídia poderosa e capaz de vei-
cular experiências únicas de imersão e interação.

Outros, em busca da aproximação mais eficaz para dar conta de definir a “lei-
tura” ou “experiência” proporcionada pelo Jogo Digital, fazem uma comparação
entre “jogar” e “performar”, compreendido aqui como um ritual de simulação com
roteiro prévio:
Entender a performance como uma forma de comportamento destacado
devido ao seu caráter roteirizado – roteiro que pode assumir a forma das
regras de um jogo – e que assume um caráter auto-reflexivo ao receber
esse destaque é então crucial para compreender o jogar como atividade
de produção de sentido. É claro que, se um jogo exige do jogador apenas
reflexos, em vez de reflexão, é provável que o ato de jogar não gere ne-
nhum tipo de interpretação. O importante é que, ao reconhecer a possi-
bilidade de uma dimensão interpretativa do ato de jogar, podemos então
reconhecer que vídeo games podem ser expressivos por serem jogos, ou
seja, podem comunicar através de seus aspectos lúdicos, como regras e
objetivos de jogo. ( FREITAS, 2017, p. 56)

Por fim, cabe dizer que, dentro do universo gamer, os Personagens Não-Con-
troláveis ou NPC (Non-Player Characters) exercem funções na narrativa/jogo sem
interatividade, similares às desempenhadas pelos Figurantes num filme ou seriado.

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Tipos, Arquétipos e Estereótipos
A criação de personagens leva em consideração o repertório que possuímos e,
muitas vezes, o modo como vemos determinados grupos. Basear a definição de um
personagem em Estereótipos, por exemplo, pode gerar problemas como generaliza-
ções e preconceito, além de falta de profundidade.
Estereotipar é o ato de categorizar algo ou alguém com base em falsas generaliza-
ções, expectativas e hábitos de julgamento. Algo que inclui, por exemplo, caracterizar
o brasileiro como indolente, o judeu como acumulador, o alemão como autoritário e
assim por diante.
Utilizar os Arquétipos como fontes de inspiração para a composição de perso-
nagens, por sua vez, pode ou não proporcionar bons resultados.
O que seria um Arquétipo? O psicanalista Carl Gustav Jung é o responsável
pelo resgate contemporâneo da ideia de Arquétipos, muito presente na constitui-
ção dos mitos de fundação nas diferentes civilizações humanas.
Eles são uma espécie de modelo universal de comportamento, categorias às quais
recorremos em busca de referências para os grandes papéis desempenhados pelos
seres humanos.
Para Jung, o arquétipo é “Uma espécie de aptidão para reproduzir constantemente
as mesmas ideias míticas; se não as mesmas, pelo menos parecidas. Parece, portanto,
que aquilo que se impregna no inconsciente é exclusivamente a ideia da fantasia subje-
tiva provocada pelo processo físico. Logo, é possível supor que os arquétipos sejam as
impressões gravadas pela repetição e reações subjetivas” (JUNG, 2008).
Entre os Arquétipos mais difundidos e usados pela ficção, estão a Figura da Grande
Mãe, o Pai, a Criança, o Herói, o Fora da Lei, o Sagrado etc. São modelos capazes de
gerar reconhecimento imediato e, quando utilizados com sabedoria, podem gerar bons
recursos dramáticos.
Tabela 1 – Concepção de personagens a partir de generalizações de Tipos

· Criados a partir de moldes;


· Mais simples, prontamente identificáveis;
Tipos · Menor profundidade;
· A ação é mais importante, os personagens são mais planos e rasos.

· Personagens planos, sem profundidade, apresentados como tipos sociais fixos;


Tipos Sociais · Rico X pobre, conservador X rebelde;
· São usados como símbolos de todo um grupo.

· Figuras prontamente identificáveis: herói usacores claras, vilão com cores escuras,
Estereótipos brasileiro malandro;
· Mais aceitáveis em comédias, caricatura, usados com ironia.

· Modelo original;
· Universal;
Arquétipos · Personagens arquetípicos dialogam com suas origens;
· São fontes às quais os autores sempre recorrem como inspiração.

Fonte: Guimarães Neto; Lima, 2014

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UNIDADE Processos de Criação de Enredo, Ambientação e Personagens

Cenário
Como último elemento da nossa apresentação sobre o Enredo, figura a ideia de
Cenário, fundamental para os bons resultados de um Jogo Digital.

O termo, usado para definir o ambiente em que a ação se desenvolve, vem do Ci-
nema. Relaciona-se simultaneamente à narrativa e à sequência de cenas.

Para desenhar o cenário de forma coerente e instigante, o game designer precisa


usar todas as referências anteriores, trabalhando simultaneamente com a diegese
da narrativa, a fim de inserir o cenário dentro do universo ficcional elaborado pelo
roteirista, e a jogabilidade.

Em linhas gerais, o esperado é que o cenário não seja priorizado a ponto de desviar
a atenção do principal ator da cena. Em jogos de ação e simulação, o cenário fornece o
contexto e está 100% integrado a todo o projeto. Em muitos casos, pode ser reduzido
a uma sequência de objetivos a serem alcançados, um caminho, mas, é fundamental
para o bom desenvolvimento do enredo, junto com a definição temporal.

Para delinear o Projeto de Níveis de um Jogo Digital, a geometria do espaço e


as conexões entre os diferentes cenários são a chave para o bom desenvolvimen-
to da trama, assim como para desenhar as posições e as ações associadas com
os objetos do nível.

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Material Complementar
Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade:

Livros
Lugar Nenhum
Neste livro, o criador da série Sandman apresenta uma história fantástica que se passa
nos subterrâneos de Londres, construindo a ação de sua fábula a partir de referências
do cotidiano urbano: GAIMAN, Neil. Lugar Nenhum. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016.

Vídeos
Entrevista: Gonzalo Frasca
Entrevista com o game designer e pesquisador Gonzalo Frasca.
https://youtu.be/7pyWfXBSJS8
Sobre Gonzalo Frasca
Para saber mais sobre o pesquisador, acesse o site a seguir.
https://goo.gl/J3rygM
Jornada do Herói: Luke, Katniss e Harry são a mesma pessoa? | Segredos do Cinema #4
Veja o vídeo do site Omelete, sobre o uso da estrutura da Jornada do Herói em dife-
rentes histórias, de Harry Potter a Jogos Vorazes.
https://youtu.be/b-oT7upunUw

Leitura
O potencial significativo de games da educação: análise do Minecraft
https://goo.gl/r3E5DK

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UNIDADE Processos de Criação de Enredo, Ambientação e Personagens

Referências
AUMONT, Jacques. A estética do filme. 6.ed. São Paulo: Papirus, 1995.

CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Pensamento-Cultrix, 2004.

COURTES, J.; GREIMAS, A J. Dicionário de Semiótica. São Paulo: Con-


texto, 2008.

FREITAS, Filipe Alves de. Video Game como comunicação: perspectivas sobre
a produção de sentido a partir de jogos digitais casuais. Belo Horizonte: PPGCOM
UFMG, 2017.

GOSCIOLA, Vicente. Roteiro para as novas mídias: do cinema às mídias intera-


tivas. São Paulo: SENAC, 2003.

GUIMARÃES NETO, Ernane Alves; LIMA, Leonardo Souza. Narrativas e persona-


gens para jogos. São Paulo: Érica, 2014.

JUNG, Carl G. Psicologia do inconsciente. 18. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.

JUUL, Jesper. Half-real: videogames between real rules and fictional worlds.
Cambridge: The MIT Press, 2005.

ROKEBY, David. Espelhos transformadores. In: DOMINGUES, Diana (org.). A


Arte no século XXI: a humanização das tecnologias. São Paulo: Fundação Editora
UNESP, 1997.

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Roteiro e Narrativa
Material Teórico
Gêneros, Estrutura Dramática e Construção
de Game Design Document (GDD)

Responsável pelo Conteúdo:


Prof.ª Me. Mirian Aparecida Meliani Nunes

Revisão Textual:
Prof. Me. Luciano Vieira Francisco
Gêneros, Estrutura Dramática
e Construção de Game Design
Document (GDD)

• Criação como Processo;


• Cultura e Conexão com o Outro;
• Gêneros de Ficção;
• Escolhas e Ética na Narrativa;
• GDD: O Que É.

OBJETIVO DE APRENDIZADO
• Identificar e dominar o processo de escolhas criativas a fim de
conduzir o projeto de roteirização do game.
• Compreender os processos de pesquisa e aquisição de conheci-
mentos narrativos para a construção de um roteiro.
• Ser capaz de construir com coerência os elementos narrativos de
um Game Design Document (GDD).
Orientações de estudo
Para que o conteúdo desta Disciplina seja bem
aproveitado e haja maior aplicabilidade na sua
formação acadêmica e atuação profissional, siga
algumas recomendações básicas:
Conserve seu
material e local de
estudos sempre
organizados.
Aproveite as
Procure manter indicações
contato com seus de Material
colegas e tutores Complementar.
para trocar ideias!
Determine um Isso amplia a
horário fixo aprendizagem.
para estudar.

Mantenha o foco!
Evite se distrair com
as redes sociais.

Seja original!
Nunca plagie
trabalhos.

Não se esqueça
de se alimentar
Assim: e de se manter
Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte hidratado.
da sua rotina. Por exemplo, você poderá determinar um dia e
horário fixos como seu “momento do estudo”;

Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar; lembre-se de que uma


alimentação saudável pode proporcionar melhor aproveitamento do estudo;

No material de cada Unidade, há leituras indicadas e, entre elas, artigos científicos, livros, vídeos
e sites para aprofundar os conhecimentos adquiridos ao longo da Unidade. Além disso, você
também encontrará sugestões de conteúdo extra no item Material Complementar, que ampliarão
sua interpretação e auxiliarão no pleno entendimento dos temas abordados;

Após o contato com o conteúdo proposto, participe dos debates mediados em fóruns de discus-
são, pois irão auxiliar a verificar o quanto você absorveu de conhecimento, além de propiciar o
contato com seus colegas e tutores, o que se apresenta como rico espaço de troca de ideias e
de aprendizagem.
UNIDADE Gêneros, Estrutura Dramática e Construção
de Game Design Document (GDD)

Criação como Processo


Durante muito tempo, a criatividade foi apresentada ao mundo como um dom
reservado a poucos. Alguns grandes gênios, escolhidos por obra da intervenção
divina ou do acaso, eram alçados ao Olimpo dos seres capazes de desenvolver
atividades criativas. Aos demais, o caminho já estava traçado desde o nascimen-
to: uma vida dedicada ao trabalho repetitivo, muitas vezes braçal ou operacional.
Ainda hoje, muitos continuam a acreditar nessa separação entre pessoas criativas
e não criativas.

Mas a verdade é que a partir do estudo dos processos de criação praticados nas
artes, na Ciência e nos mais diversos âmbitos da cultura, uma compreensão diferente
veio à tona. Para a pesquisadora Cecília Almeida Salles (2008), o processo criativo
é desenvolvido por inúmeros indivíduos, em sistema de rede, de forma encadeada
e complementar, ainda que o produto possa ser atribuído a determinado autor.
Esta abordagem do movimento criador, como uma complexa rede de
inferências, reforça a contraposição à visão da criação como um revelador
e inexplicável insight sem história. A criação como processo de inferências
mostra que os elementos aparentemente dispersos estão interligados; já a
ação transformadora dos elementos mediadores envolve o modo como um
elemento inferido é atado a outro. A criação é, sob esta ótica, um processo
de transformação que envolve uma grande diversidade de mediações, como
já foi tantas vezes mencionado (SALLES, 2008, p. 162).

Assim, mais do que produto de um único gênio inalcançável, passamos a estudar


obras inseridas em um longo processo de debate e construção. Ao autor, cabe
participar desse processo e, muitas vezes, até mesmo à distância, finalmente trazer
à luz o produto ou obra decorrente daquele encadeamento do pensamento criativo.

Qual é a importância desse debate no momento em que estamos de nosso


Curso? Em primeiro lugar, é frutífero para demonstrar o quanto está ao alcance
de cada um de nós a apropriação dos diversos elementos presentes no processo
criativo para chegar à execução de nossos projetos. Em segundo lugar, apresenta
a necessidade de estar inserido no debate coletivo e cultural no qual a obra que
desejamos trazer à tona está ou estará inserida.

Como você estará apto(a), então, a elaborar um roteiro para jogos digitais?
Essa, certamente, é uma das várias perguntas que passam pela sua cabeça neste
exato instante. Entre um conjunto diverso de variáveis, certamente se destacam os
seguintes pré-requisitos:
• Conhecer o universo dos games e, em especial, o gênero que você pretende
desenvolver com seu roteiro;
• Buscar criar o seu próprio repertório de referências criativas, que deve beber
nas fontes dos próprios jogos digitais, mas não apenas, incluindo, ainda,
referências literárias, do cinema, de Histórias em Quadrinhos (HQ), ou até
mesmo de musicais e das artes plásticas;

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• Tudo pode ser inspiração para criar como, por exemplo, um cenário baseado
nas obras surrealistas do pintor espanhol Salvador Dalí; ou uma narrativa
entrecortada baseada no modelo de desconstrução de Pablo Picasso; ou ainda
uma história com diferentes narradores, baseada na polifonia e no sistema
musical dodecafônico.

Leia o artigo sobre música dodecafônica e entenda como transforma o modo de compor,
Explor

fornecendo inspiração para projetos inovadores em diferentes áreas do conhecimento.


Disponível em: https://goo.gl/UTkG9R

Figura 1 – A obra de Salvador Dalí, pintor modernista do início do século XX, influencia artistas das mais variadas
origens, em diferentes formatos e linguagens, como neste grafite, localizado na Cidade de Paris, França
Fonte: iStock/Getty Images

Cultura e Conexão com o Outro


“A originalidade não é senão uma imitação prudente. Os mais originais escrito-
res pegaram emprestado uns dos outros”. Essa frase é atribuída a François Marie
Arouet, que se tornou conhecido como Voltaire, nascido em Paris, em 21 de no-
vembro de 1694. Foi ensaísta, poeta, filósofo, dramaturgo e historiador, além de
um grande expoente das ideias iluministas. O que estava querendo dizer Voltaire ao
associar originalidade e imitação, palavras aparentemente incompatíveis?

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UNIDADE Gêneros, Estrutura Dramática e Construção
de Game Design Document (GDD)

Certamente, não queria estimular o plágio, prática muito comum atualmente


por conta da facilidade de buscar referências na internet, copiá-las e colar em
seu próprio texto, sem citar claramente a fonte. Algo que deve ser absolutamente
evitado, pois é classificado como um crime contra os direitos autorais.

Na verdade, Voltaire diz sobre algo que os pesquisadores atuais destacam como
o diálogo entre as obras, com autores contemporâneos buscando conexões com
seus pares ou com criadores distantes na cronologia linear. É muito comum que
roteiristas e escritores busquem referências em modelos de narrativa considerados
superados em determinada fase, acrescentem elementos atuais e consigam
resultados inovadores. Pense em todos os jogos baseados em histórias medievais,
de resgate dos temas da cavalaria, mas com uma leitura muito mais próxima da
realidade do século XXI.

Remixar ideias e conceitos, realinhar elementos pré-existentes e buscar um


formato final próprio são caminhos capazes de indicar soluções para os problemas
de criação de um roteiro. Mas para não correr o risco de acreditar estar fazendo
algo absolutamente original e, depois, descobrir que muitos estão realizando
exatamente o mesmo, quais precauções devem ser tomadas?

Em primeiro lugar, conectar-se à produção cultural da sua área de atuação e


ao próprio tempo-espaço que ocupa como produtor cultural. Conversar com o
maior número de pessoas, criadores e produtores. Ler sobre o tema que pretende
desenvolver e buscar fontes confiáveis para fornecer uma leitura das tendências na
área. Você não precisa, necessariamente, seguir as tendências, mas é fundamental
conhecê-las e compreendê-las para, inclusive, ser capaz de criticá-las e buscar
formatos alternativos.

Figura 2 – Aprender a trabalhar em equipe, de forma colaborativa, é um dos desafios para a criação na área
de jogos digitais. É preciso dialogar de forma aberta com profissionais de diferentes áreas, adquirindo um
vocabulário comum capaz de facilitar o entendimento mútuo. A melhor parte é que, comumente, toda a
equipe é movida pela paixão em torno dos games.
Fonte: iStock/Getty Images

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Participar de grupos de criação, trocar impressões e textos de apoio podem
ser excelentes escolhas para desenvolver um bom trabalho de criação. A criação
colaborativa em rede, quando bem organizada, com um acordo claro e transparente
do papel de cada membro, é igualmente uma arma poderosa no processo criativo
de elaboração de roteiros.

Em relação aos demais membros da equipe de produção de um jogo digital, é


claro e certo que o roteirista deve ter um relacionamento muito próximo, a fim de
alinhar recursos narrativos, técnicos, conceituais e artísticos da melhor maneira.
Nesse sentido, o Game Design Document (GDD) é uma ferramenta que procura
auxiliar esse processo e será apresentada mais à frente.

Gêneros de Ficção
Os gêneros de ficção são adaptados às mídias que os veiculam, embora guardem
similaridades entre si. A literatura, por exemplo, desenvolveu durante anos o gênero
seriado, por meio de folhetins publicados regularmente em jornais e revistas. Tal
gênero revelou no Brasil nomes como os de Machado de Assis e José de Alencar,
entre outros. Na televisão, a novela adaptou a tradição dos folhetins e transformou
a teledramaturgia brasileira em uma das melhores do mundo.

Com a chegada do streaming – fluxo de dados multimídia transmitidos em


pacotes pela internet –, o gênero seriado ganhou novo impulso no mundo todo e
multiplicou o consumo de séries audiovisuais por meio de serviços oferecidos por
empresas como a Netflix.

A literatura costuma ser a referência mais tradicional para a definição dos gêneros
textuais que, por sua vez, servem de base para delimitar os gêneros ficcionais,
de modo que a partir da ideia de narrativa, podemos dividir os gêneros textuais
narrativos em:
• Romance, ou seja, textos de grande extensão, geralmente divididos em capítu-
los, com um conflito central e várias personagens;
• Novela ou folhetim é um desdobramento do romance, porém com mais
agilidade no desenrolar dos fatos, geralmente divididos em episódios. É a fonte
de origem de toda a produção ficcional seriada;
• Contos são os textos de pequena extensão, com um conflito e poucas
personagens, geralmente com final surpreendente;
• Crônica é um relato de fatos do cotidiano, com um cunho literário ficcional ou
baseado em notícias esportivas e sociais;
• Fábula e apólogo são textos com personificações em que seres não humanos
agem como se fossem humanos, em que animais e objetos são os protagonistas;

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UNIDADE Gêneros, Estrutura Dramática e Construção
de Game Design Document (GDD)

• Textos moralizantes são aqueles que trazem uma lição de moral. A parábola é,
basicamente, um texto bíblico ou moralizante, que age por meio de ensinamentos.

O gênero dramático tem a sua origem no teatro grego e pode ser caracterizado
como uma ação capaz de ser representada diretamente por meio do diálogo e da
interação dos personagens, abrindo mão da intermediação do narrador. O drama
pode ser representado, principalmente, por meio dos seguintes desdobramentos
de estilo:
• Comédia, quando o homem é descrito como menos honroso do que de fato
é, gerando o riso, a exposição ao ridículo e à sátira, segundo Aristóteles.
A catarse provocada por esse tipo de espetáculo leva à elevação do moral, à
sensação de que o ridículo exposto coloca o público em um patamar superior;
• Tragédia, definida pelo mesmo Aristóteles como “[...] a imitação de uma
ação de caráter elevado, suscitando o terror e a piedade. Tendo como efeito
a purificação dessas emoções”. Os desfechos capazes de gerar a “catarse”
causam uma sensação de purgação: o choro para superar os males cotidianos
e aprender a buscar a virtude.

Ao serem adaptados para o universo mais recente dos jogos digitais, os gêneros
ficcionais ganham novos contornos e podem assumir diferentes definições para
cada autor. O roteirista Doc Comparato (2009), por exemplo, acredita que os
gêneros no game estão intrinsecamente ligados à jogabilidade, ao andamento do
desafio proposto ao jogador e à própria personagem jogadora.

Gêneros Estrutura Elementos


• Ação; dramática indispensáveis
• Investigação; • Personagem jogadora;
• HQ;
• Mistério; • Cenário; universo;
• Poucos diálogos e
• Mitologia; mundo;
mais cenas de ação;
• Esporte; • Desafio: ordem
• Games individuais
• Ficcção científica; crescente de
e coletivos.
• Misto; dificuldade;
• Outros. • Premiação.

Figura 3 – Para o roteirista Doc Comparato (2009), os games apresentam gêneros próprios,
que devem dar conta da estrutura dramática e dos elementos indispensáveis ao universo do jogo

Do ponto de vista da divisão comercial dos jogos digitais, quanto mais específica
for a sua classificação, mais eficaz será o direcionamento ao público-alvo e maiores
as chances de se tornar um sucesso de vendas. O Quadro 1 apresenta uma divisão
baseada nos principais gêneros oferecidos ao grande público, com uma descrição
detalhada, definição de mecânica, qualidades e exemplos.

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Quadro 1 – Gêneros de jogos digitais
Gênero Descrição Mecânica Qualidade Exemplo
Um mundo grande e
Jogos baseados em histórias, Nem sempre são em tempo
complexo para se explorar,
geralmente voltados para real – híbrido com ação –,
Adventure com computadores Monkey Island
solucionar enigmas para seguir ousam mais o cérebro e menos
interessantes e uma
seu curso a destreza e os reflexos
boa história
Dominado pelo First Person
Explosões de adrenalina e
Jogos em tempo real, nos quais Shooter (FPS), menos
ação que exigem rápidas
Ação o jogador deve responder com intelectual que jogos de Half-Life
escolhas
velocidade ao que ocorre na tela puzzles, estratégia, adventure
e bons reflexos
e outros
Gerenciamento dos
Geralmente, o jogador dirige Grande universo do jogo com
personagens: escolha de
um grupo de personagens em história não linear; sistemas
RPG equipamentos e armas; Ultima Online
alguma missão, em diversas de evolução dos poderes e
amplo e complexo sistema
tramas e cenários forças dos personagens
de magias
Dois estilos: turnbased –
onde o adversário espera as
O principal fator é o
suas ações para agir, sendo
Gerenciamento de recursos para balanceamento das
o jogo 100% de estratégia
atingir determinado objetivo – “variáveis” – os recursos,
mental/Real Time Strategy Civilization;
Estratégia esses recursos são comumente como obtê-los, como
(RTS), em que a ação ocorre Starcraft
usados para a construção de adquirir unidades e qual
de forma simultânea,
unidades de combate o custo-benefício de
exigindo reflexos e agilidade
cada qual
no controle de tropas, além
de estratégia
Quanto mais “sério” o
Jogos que simulam condições O realismo e a precisão
simulador, mais próximo à
do mundo real, principalmente dos controles das Flight
realidade espera-se que seja;
Simulador operações de máquinas máquinas e de sua Simulator
jogos de estilo “arcade sims”
complexas, tais como aviões operação são os principais 2002
são menos realistas, com
ou automóveis fatores
controles simplificados
Podem tanto simular o
Espera-se a completa
Jogos que representam os esporte pelo lado do atleta,
reprodução das regras e
Esporte esportes “reais” coletivos praticando-o, ou pelo lado do Fifa
principais peculiaridades
ou individuais técnico, gerenciando
de cada esporte
a sua equipe
Têm um conjunto básico
Jogos para dois jogadores, de ataques, defesas e
Jogos geralmente de
onde cada um controla um contra-ataques de rápida
perspectiva lateral e de
personagem que usa uma aprendizagem, além de
Luta curta duração, com ampla Tekken 3
combinação de movimentos e um grupo de manobras
variedade de personagens
manobras para ataque e defesa e combinações mais
e manobras
contra o oponente complexas, exigindo mais
prática
Adaptações dos jogos Jogadores esperam
tradicionais, tais como xadrez, Jogos de interface simples, que as regras sejam
Chess; Show do
Casual gamão e paciência; são também geralmente com baixa curva exatamente as mesmas
Milhão
considerados os jogos dos shows de aprendizagem dos jogos em suas versões
televisivos “reais”
Chamados também de “softwares Como um brinquedo
Geralmente, não há critérios
toys”, são jogos que não possuem convencional, espera-se The Sims;
“God” game de vitória ou derrota, ou
um real objetivo além do apenas e simplesmente Minecraft
mesmo de erros e acertos
passatempo que seja divertido

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UNIDADE Gêneros, Estrutura Dramática e Construção
de Game Design Document (GDD)

Gênero Descrição Mecânica Qualidade Exemplo


O conteúdo deve ser
muito bem elaborado
Geralmente voltados ao
em conjunto com
Jogos cujo objetivo é ensinar público infantil, utilizam uma
Educacional especialistas, para Coelho Sabido
enquanto o jogador se diverte estrutura semelhante
que realmente atinja
à dos desenhos animados
o objetivo de ensinar
brincando
Gênero de jogos de enigmas Problemas de lógica,
Jogos puramente voltados ao
e problemas, sem contexto matemática ou mesmo The Incredible
Puzzle desafio intelectual na solução de
de história, cenário ou outro enigmas filosóficos são Machine
problemas
objetivo apreciados
Comunidades inteiras estão
Jogos que podem ser de qualquer aparecendo em torno desses Um gênero novo e com
On-line /
gênero anterior, com a diferença jogos, que são desenvolvidos diversas características
massive Everquest
de serem jogados por meio da com o objetivo de favorecer de jogabilidade ainda em
multiplayer
internet justamente o surgimento fase de transformação
desses grupos
Fonte: adaptado de Lemes (2009).

Mesmo assim, é fundamental lembrar que nem todos os games podem ser
classificados dentro desses parâmetros, de modo que alguns poderiam figurar em
mais de um dos quais. O mais importante, neste caso, é buscar referências ao
seu processo criativo. É possível, ainda, ignorar essas divisões e arriscar novas
fronteiras ou produzir um mix de características, com um resultado híbrido.

Assista ao trailer oficial de Battleborne, disponível em: https://youtu.be/-tIb3HoNuMQ,


Explor

apontado como um game híbrido; e leia uma crítica sobre a mistura de estilos experimentados
em: https://goo.gl/BHq2EY.

Escolhas e Ética na Narrativa


Como vimos, a narrativa usada para construir o roteiro de um jogo digital ganha
alguns elementos que não fazem parte dos processos tradicionais de construção de
enredos para audiovisual. Há novas preocupações a serem levadas em conta.

A não linearidade da ação, que pode ser conduzida a diferentes níveis, de acordo
com as escolhas do jogador, é uma dessas questões – mas não a única. O modo
como o personagem será assumido pelo player transforma toda a concepção da
narrativa do game. Para Comparato (2009) os mundos virtuais proporcionados por
jogos como Second Life, funcionando quase no limite entre o jogo e a interação

14
social, partiram da inspiração de reality shows como Big Brother Brasil (BBB,
veiculado pela Rede Globo de Televisão desde 2002). A possibilidade de fazer
parte da trama e de escolher os caminhos narrativos oferece a uma parcela do
público um atrativo a mais para consumir novas categorias de games.

Mundos virtuais
Second Life (2003): criação de um avatar, presença Diálogos-chave padronizados, empresas reais,
do dinheiro, transposição de desejos do mundo real cursos ou rede social
ao virtual

Tipos
Institucional; educacional; cultural e histórico; Usos científicos – estudo DNA (EAD) realida-
religioso e espiritual; fantástico e mitológico; de virtual – experiências imersivas: roteiris-
fantasia, infantil, pedagógico; ficcional, literário, ta com atuação mais complexa, multidisci-
imaginativo; comportamental; erótico; misto plinar e criativa

Novas formas e formatos


Histórias participativas e interativas; ideia de Assistir e interagir em um único ambiente
convergência de mídias

Figura 4 – A partir da construção de mundos virtuais, há uma oferta de produtos publicitários e


oportunidades de monetarização dos jogos. Os tipos de formatos são os mais variados, com histórias
participativas e interativas que usam o espaço digital para abrigar conteúdo multimídia
Fonte: adaptada de Comparato (2009).

Embora a redação do roteiro, especialmente na fase de elaboração do enredo,


possa ser feita ainda de forma isolada por um dos membros da equipe, a concepção
de criação na área de jogos digitais é essencialmente coletiva. O trabalho em equipe
envolve diferentes áreas do conhecimento, troca de impressões e ajustes constantes,
inclusive na fase final de controle de qualidade, quando todos os aspectos do game
são colocados à prova.

Atualmente, dependendo do grau de complexidade e do segmento a que o jogo


se destina, é comum reunir escritores, artistas, educadores, tecnólogos, cientistas e
designers para conceber os variados aspectos do game. Entre os grandes desafios
estão as narrativas destinadas a ambientes imersivos, a adaptação a todo o aparato
de Realidade Virtual – Virtual Reality (VR) – e da Inteligência Artificial – Artificial
Intelligence (AI).

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UNIDADE Gêneros, Estrutura Dramática e Construção
de Game Design Document (GDD)

Equipe multidisciplinar:
roteiristas, escritores, artistas,
educadores, cientistas

Jogos de ação:
Ambientes estruturas de
imersivos e labirintos e
interativos vários níveis

IA + elaboração de roteiros. Ruptura de fronteiras:


Autoria versus liberdade de contracenar com os
ação dos usuários personagens

Figura 5 – As possibilidades de criação a partir do cruzamento de tecnologias vindas


da AI e VR trazem novos elementos para a elaboração do roteiro. O grande desafio é
colocá-las a serviço da boa narrativa, fugindo de todas as armadilhas.

Para Gosciola (2003) o desenvolvimento do game deve estar centrado no aspecto


humano, a partir do estudo do usuário e de suas necessidades. Assim, a prioridade
a ser estabelecida, sempre, é a história a ser contada e a jogabilidade, mais do
que o uso dos recursos disponíveis – estes devem estar a serviço da narrativa e da
imersão do jogador.

Esse autor acredita que o tipo de leitura/navegação/interação proporcionado


pelos links no espaço digital e, mais especificamente, pela arquitetura de níveis
nos games, é baseado em elementos de conexão capazes de gerar diferentes
formas de interação com o conteúdo. Novas experiências, surpresas, comple-
mentaridades, sentidos e camadas de interpretação surgem dessa dinâmica entre
autor-narrativa-público.

Para colher o que de melhor essa relação proporciona, é necessário abrir mão
de parte do poder que durante tanto tempo foi monopolizado pelo roteirista/autor,
aprender a lidar com o imponderável da leitura e interpretação do nosso leitor/
jogador, de um nível a outro, não apenas como possibilidade de múltiplas escolhas,
mas também como possível reinvenção de significados.

De resto, uma lição de humildade e ética no relacionamento coletivo que pode


ser fonte de inspiração aos ambientes socioculturais em que nos deslocamos como
criadores-criaturas em permanente interação.

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GDD: O Que É
Chegamos a um dos momentos culminantes do processo de criação do jogo
digital. Game Design Document (GDD) é uma ferramenta de planejamento do
game cuja principal função é tentar prever todos os detalhes do processo de
sua produção. Envolve diferentes profissionais de um estúdio, tal como o game
designer, responsável por detalhar a descrição das características do jogo, a
jogabilidade – gameplay –, os controles, as interfaces, personagens, armas, golpes,
inimigos, fases etc. Inspirado na metodologia cinematográfica, o GDD é um roteiro
maximizado, incluindo as demais etapas de criação de um jogo digital.

Assista a uma entrevista com o game designer Shigeru Miyamoto, criador de Mario, falando
Explor

sobre o seu processo criativo e a modernização do personagem clássico da Nintendo;


disponível em: https://youtu.be/K-NBcP0YUQI.

O momento de preencher o GDD é aquele em que o roteiro e o processo de game


design já estão em pleno andamento. Para isso, é necessário definir os principais
aspectos do universo do jogo, seu contexto, época, estilo, referências históricas ou
míticas, o cenário global, a topologia, navegação global, as personagens principais,
a natureza e hierarquia dos níveis.

Partindo dos princípios de gameplay, o game designer mapeará as modalidades,


os objetivos e as principais decisões estratégicas a serem tomadas pelo jogador,
assim como o conjunto de características conhecido como look&feel, reunindo o
design das imagens e dos efeitos sonoros. No quesito dos princípios ergonômicos,
é necessário estabelecer os critérios de interface, aprendizado e modos de salvar/
carregar. Por fim, na definição das classes de objetos, o papel da integração entre
profissionais de criação, tanto roteiristas quanto game designers, com o pessoal da
área de programação é fundamental. Somente assim serão alcançadas as soluções
para a execução de modelagens adequadas para a narrativa e as personagens.

Tão importante quanto é o projeto de níveis, os quais definidos pela geometria


do espaço. Assim, a elaboração dos níveis, ou level design, tornou-se uma das
funções mais relevantes dentro da área de desenvolvimento de jogos. Determina
a arquitetura da narrativa e jogabilidade simultaneamente, por meio de mapas que
ordenam e fornecem a dinâmica dos games. As posições e ações associadas com
os objetos dependem dessa estrutura e podem funcionar com objetivo implícito
ou explícito. Ainda que o jogador seja conduzido por um cenário implícito, que
determina o número de ações possíveis/efetivas, o level design tem o desafio
duplo de manter a sensação de liberdade, promovendo ações independentes, que
podem ser executadas em qualquer ordem e permitindo que o jogador possa, no
mesmo espaço, perseguir vários objetivos em paralelo.

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UNIDADE Gêneros, Estrutura Dramática e Construção
de Game Design Document (GDD)

Dentro da definição do gameplay, deve-se estabelecer uma hierarquia de obje-


tivos dados ao jogador, com decisões táticas e estratégicas mais ou menos visíveis
já nos momentos iniciais. O jogador precisa entender intuitivamente quais decisões
são ineficientes, assim como as decisões mais importantes, os aspectos positivos e
outros não previsíveis. Deve haver um problema estratégico dominante e é desejá-
vel que o jogador possa cumprir os objetivos de modo justo e não muito complexo.
A dinâmica de equilíbrio entre esses elementos é o que garante o sucesso ou fra-
casso de um jogo.

Sabendo que, basicamente, o jogo é um sistema de aprendizado, torna-se evidente


que entender as leis do universo do game é parte do seu encanto. O processo não
deve nem ser muito simples, a fim de fornecer algum grau de mistério e desafio; nem
muito complexo, para permitir a descoberta por meio da prática.

Preenchimento do GDD
O preenchimento do GDD pode seguir o passo a passo indicado a seguir; trata-
se de um modo de organizar o seu processo de criação e alinhar as etapas de
produção, mas não deve “engessar” a construção dos mapas e demais ferramentas
criativas. Use com sabedoria e procure adequar o modelo aqui apresentado – e
disponibilizado como arquivo para você baixar e usar – às suas próprias necessidades.

Para começar o seu GDD, lembre-se de caprichar no nome do projeto/roteiro


que estará na capa do game design document, pois é a “porta de entrada” ao
público. O interesse pode brotar com a opção acertada ou desaparecer por meio
de uma escolha inadequada. Coloque os nomes dos autores, cidade de origem e
data para documentar o processo.

Agora, é arregaçar as mangas e colocar no papel todo o trabalho desenvolvido.


Acompanhe a seguir.
Sumário:
1 História 3
2 Gameplay 4
3 Personagens 5
4 Controles 6
5 Câmera 7
6 Universo do Jogo 8
7 Inimigos 9
8 Interface 10
9 Cutscenes 11
10 Cronograma 12

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1 História:
• Descrição detalhada da história – lembre-se de que toda história deve conter
um começo, meio e fim, ainda que esta ordem seja invertida;
• Deve conter uma breve descrição do ambiente onde o jogo acontece e das
principais personagens envolvidas na história;

2 Gameplay:
• Descrição da mecânica do jogo;
• Quais são os desafios encontrados pelo jogador e quais os métodos usados
para superá-los?
• Como o jogador avança no jogo e como os desafios ficam mais difíceis?
• Como o gameplay está relacionado com a história? O jogador deve resolver
quebra-cabeças para avançar na história? Ou deve vencer chefões para progredir?
• Como funciona o sistema de recompensas? Pontos, dinheiro, experiência,
itens colecionáveis, armas, poderes? Quais os benefícios que o jogador tem
com cada um desses itens?
• Qual é a condição de vitória? Salvar o Universo? Matar todos os inimigos?
Coletar cem estrelas? Todas estas alternativas?
• Qual é a condição de derrota? Perder três vidas? Ficar sem energia?

3 Personagens:
• Descrição das características das personagens principais – nome, idade, tipo;
• História do passado das personagens;
• Personalidade das personagens;
• Habilidades características de cada personagem – poderes especiais, golpes
especiais, armas;
• Ilustração visual das personagens;
• Ações que as personagens podem executar – andar, correr, pular, pulo duplo,
escalar, voar, nadar;
• Métricas de gameplay da personagem principal.

4 Controles:
• Como o jogador controla a personagem principal?
• Utilize uma imagem de um joystick ou teclado para ilustrar todos os coman-
dos disponíveis.

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de Game Design Document (GDD)

5 Câmera:
• Como é a câmera do jogo? Como o jogador visualiza o jogo?
• Ilustre como o jogo será visualizado.

6 Universo do jogo:
• Descrição e ilustração dos cenários do jogo;
• Como as fases do jogo estão conectadas?
• Qual é a estrutura do mundo?
• Qual é a emoção presente em cada ambiente?
• Qual tipo de música deve ser usado em cada fase?
• Inclua ilustrações de todos os mapas e fases do jogo.

7 Inimigos:
• Descrição e ilustração dos inimigos que existem no universo do jogo;
• Em qual ambiente/fase cada inimigo aparecerá?
• Como o jogador supera cada inimigo?
• O que o jogador ganha ao derrotar cada inimigo?
• Qual é o comportamento e as habilidades de cada inimigo?

8 Interface:
• Design e ilustração do Head-Up Display (HUD);
• Posicionamento dos elementos do HUD;
• Design e ilustração das interfaces do jogo: tela inicial, menu de opções, tela de
pause, menu de itens, tela de loading etc.

9 Cutscenes:
• Descrição dos filmes-narrativas que serão incluídos no jogo;
• Descrição dos roteiros;
• Qual método será usado para a criação dos filmes?
• Em quais momentos serão exibidos?

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10 Cronograma:
• Descrição detalhada do cronograma de desenvolvimento;
• Modelo de cronograma:

Quadro 2
Março Abril Maio Junho
Tarefa/semana 1 2 3 4 1 2 3 4 1 2 3 4 1 2 3 4 Progresso
Escrever o GDD Completo
Apresentar GDD Completo
Selecionar/desenhar a
Em progresso
arte dos personagens
Selecionar/desenhar
Em progresso
a arte dos cenários
Desenvolver o sistema
Planejado
de controle do jogador
Desenvolver sistema
Planejado
de mapas e fases
Implementar a
Planejado
detecção de colisão
Desenvolver sistema
Planejado
de pontuação
Implementar inimigos Planejado
Fonte: elaborado pela professora conteudista

Lembre-se de que alguns dos itens do GDD vão além da construção do roteiro
e da narrativa apresentada nesta Disciplina. Utilize o documento – fornecido como
anexo – para construir o seu próprio projeto, realizando as conexões de aprendi-
zado ao longo de todo o Curso. Para começar, solte a sua imaginação, encare de
frente o desafio e dê um passo de cada vez. A recompensa ao final desta trajetória,
mais do que um roteiro absolutamente perfeito, será o seu crescimento profissional
e pessoal.

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UNIDADE Gêneros, Estrutura Dramática e Construção
de Game Design Document (GDD)

Material Complementar
Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade:

Sites
Entertainment Software Association
http://www.theesa.com
Entertainment Software Rating Board (ESRB)
http://www.esrb.org
International Game Developers Association (IGDA)
http://www.igda.org
Gamasutra
http://www.gamasutra.com
Slashdot
http://games.slashdot.org

Vídeos
How the inventor of Mario designs a game
Assista a uma entrevista com o game designer Shigeru Miyamoto, criador de Mario,
falando sobre o seu processo criativo e a modernização do personagem clássico da
Nintendo.
https://youtu.be/K-NBcP0YUQI

Leitura
Game Design Document: “As Aventuras de Jackie e Tony”
Como Material complementar eis um Game Design Document (GDD) desenvolvido
para o curso de Engenharia de Computação da Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp).
https://goo.gl/iTEpDD

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Referências
COMPARATO, Doc. Da criação ao roteiro: teoria e prática. São Paulo: Summus,
2009. Disponível em: <http://sites.cruzeirodosulvirtual.com.br/biblioteca>. Acesso
em: 28 ago. 2018.

GOSCIOLA, Vicente. Roteiro para as novas mídias: do cinema às mídias


interativas. São Paulo: Senac, 2003.

GUIMARÃES NETO, Ernane Alves; LIMA, Leonardo Souza. Narrativas e


personagens para jogos. São Paulo: Erica, 2014.

LEMES, David de Oliveira. Games independentes: fundamentos metodológicos


para criação, planejamento e desenvolvimento de jogos digitais. São Paulo, 2009.
Disponível em: <http://www.dolemes.org/material/Ebooks/Ebook_Games_
Independentes_Dolemes.pdf>. Acesso em: 28 ago. 2018.

SALLES, Cecília Almeida. Redes da criação. Construção da obra de arte. São


Paulo: Horizonte, 2008.

SARAIVA, Leandro; CANNITO, Newton. Manual de roteiro, ou Manuel, o


primo pobre dos manuais de cinema e TV. São Paulo: Conrad, 2004.

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