Você está na página 1de 49

Literatura

Comparada

Éderson da Cruz

Unidade 1

Livro Didático
Digital
Diretor Executivo
DAVID LIRA STEPHEN BARROS
Diretora Editorial
ANDRÉA CÉSAR PEDROSA
Projeto Gráfico
MANUELA CÉSAR ARRUDA
Autor
ÉDERSON DA CRUZ
Desenvolvedor
CAIO BENTO GOMES DOS SANTOS
O AUTOR
Éderson da Cruz

Olá. Meu nome é Éderson da Cruz. Sou formado em Letras-


Português (UNISINOS, 2010), Mestre e Doutor em Educação (UNISINOS,
2015; 2019), Especialista em Gestão Escolar – Orientação e Supervisão
(Faculdade São Luís, 2017) e Pedagogo (UFRGS, 2020), com uma
experiência técnico profissional nas áreas de Letras, Linguagens e
Educação de mais de dez anos. Passei por instituições públicas (estaduais
e municipais) e privadas, de Educação Infantil, Ensinos Fundamental
e Médio, Ensino Técnico e Ensino Superior, no estado do Rio Grande
do Sul, atuando como docente e também como supervisor escolar.
Sou apaixonado pelo que faço e adoro transmitir minha experiência
de vida àqueles que estão iniciando em suas profissões. Por isso, fui
convidado pela Editora Telesapiens e integrar seu elenco de autores
independentes. Estou muito feliz em poder ajudar você nesta fase de
muito estudo e trabalho. Neste material, estudaremos os fundamentos
teóricos da Literatura Comparada. Você verá que a literatura, além de
uma forma artística, é um campo de saber muito rico e conectado com
nossa realidade de diferentes formas, possibilitando o gosto estético e
também o repensar e realidade e a forma como percebemos o mundo
que nos cerca. Vamos nessa? Conte comigo para o que precisar. Bons
estudos!
ICONOGRÁFICOS
Olá. Meu nome é Manuela César de Arruda. Sou a responsável pelo
projeto gráfico de seu material. Esses ícones irão aparecer em sua trilha
de aprendizagem toda vez que:

INTRODUÇÃO: DEFINIÇÃO:
para o início do houver necessidade
desenvolvimento de de se apresentar um
uma nova com- novo conceito;
petência;

NOTA: IMPORTANTE:
quando forem as observações
necessários obser- escritas tiveram que
vações ou comple- ser priorizadas para
mentações para o você;
seu conhecimento;
EXPLICANDO VOCÊ SABIA?
MELHOR: curiosidades e
algo precisa ser indagações lúdicas
melhor explicado ou sobre o tema em
detalhado; estudo, se forem
necessárias;
SAIBA MAIS: REFLITA:
textos, referências se houver a neces-
bibliográficas e links sidade de chamar a
para aprofundamen- atenção sobre algo
to do seu conheci- a ser refletido ou
mento; discutido sobre;
ACESSE: RESUMINDO:
se for preciso aces- quando for preciso
sar um ou mais sites se fazer um resumo
para fazer download, acumulativo das
assistir vídeos, ler últimas abordagens;
textos, ouvir podcast;
ATIVIDADES: TESTANDO:
quando alguma quando o desen-
atividade de au- volvimento de uma
toaprendizagem for competência for
aplicada; concluído e questões
forem explicadas;
SUMÁRIO
Conhecendo o Campo da Teoria Literária......................................11
A Linguagem Literária..................................................................................................................14

Identificando as Marcas da Linguagem Literária.....................22


Características da Linguagem Literária....................................................................22

Ambiguidade..........................................................................................................22

Multissignificação........................................................................................................22

Ficção............................................................................................................................23

Conotação..............................................................................................................23

Criatividade..............................................................................................................25

Estruturação..............................................................................................................25

Literaridade..............................................................................................................25

Verossimilhança...........................................................................................................26

Conceituando Literatura Comparada ..............................................29


Um Pouco de História.................................................................................................................29

Contribuições Teóricas para a Área – parte I...........................................................32

Manuais franceses......................................................................................................32

Manual brasileiro...........................................................................................................32

Função da Literatura Comparada..................................................................................33

Crises teóricas................................................................................................................35

Relacionando Literatura Comparada E Tradução Literária.......37


Contribuições Teóricas para a Área – parte II.............................................................41

Teoria literária e comparativismo..................................................................41


Intertextualidade...........................................................................................42

O papel da tradição..................................................................................................42

Das Relações entre Literatura Comparada e Tradução Literária:


Algumas Considerações............................................................................................................43

A Língua Espanhola ao Redor do Mundo......................................49


8 Literatura Comparada

01
UNIDADE

LIVRO DIDÁTICO DIGITAL


Literatura Comparada 9

INTRODUÇÃO
Ao longo dos tempos, o ser humano sempre teve a necessidade de
se expressar, de deixar sua “marca” no mundo. Podemos perceber isso se
olharmos os registros das pinturas rupestres, datados há milhares de anos.
Com o desenvolvimento das civilizações e da linguagem, a humanidade
buscou lançar mão de diferentes técnicas para registrar elementos que
considerasse importantes de serem transmitidos às próximas gerações,
registrando cerimônias, ritos religiosos e de passagem e outros, que
pudessem ter significado dentro das culturas em que estavam sendo
produzidos. Assim, com o passar do tempo, técnicas artísticas cada vez
mais elaboradas foram sendo desenvolvidas, dentre as quais destacam-
se, por exemplo, a pintura, a escultura, a dança, a música, entre outras.
A literatura, por sua vez, surgiu como uma forma de registro artístico
dependente de uma matéria-prima oriunda de uma outra técnica: a escrita.
Claro, também no contexto literário, não podemos nos esquecer de que
essa forma de arte usa como fonte de produção também a imagem, a
sonoridade, a oralização e a dramatização, dentre outros elementos. No
entanto, podemos afirmar que, em linhas gerais, a literatura seria uma forma
artística que explora a palavra em seus diferentes recursos. Entendeu? Ao
longo desta unidade letiva você vai mergulhar neste universo!
10 Literatura Comparada

OBJETIVOS
Olá. Seja muito bem-vindo à Unidade 1. Nosso objetivo é auxiliar
você no desenvolvimento das seguintes competências profissionais até o
término desta etapa de estudos::
1. Estudar as Teorias da Literatura Comparada, observando
os discursos literários entre mídias, para a questão da
interdisciplinaridade e da intertextualidade.
2. Relacionar texto, contexto e linguagem literária.
3. Estudar a natureza e a função da literatura comparada.
4. Estudar as relações entre Literatura Comparada e Tradução
Literária, abordando a influência das traduções na cultura,
língua e sociedade de uma nação.

Então? Preparado para uma viagem sem volta rumo ao


conhecimento? Ao trabalho! Não se esqueça de que, como popularmente
se costuma dizer, a persistência é o caminho para o sucesso. Estabeleça
uma rotina de estudos, tenha a mão um bom dicionário (recomendo o
Minidicionário Houaiss da Língua Portuguesa, qualquer edição conforme
o Novo Acordo Ortográfico) e material (físico ou virtual) para anotações.
Não desanime, em caso de dúvidas e dificuldades: utilize esse material
e sua vontade de aprender como seus aliados. Tenha certeza de que, ao
final desse estudo, você estará habilitado, com as ferramentas teóricas
necessárias para desbravar o mundo literário com confiança!
Literatura Comparada 11

Conhecendo o Campo da Teoria Literária


OBJETIVO
Ao término deste capítulo você será capaz de observar
os discursos literários entre as mídias, para a questão
da interdisciplinaridade e da hipertextualidade. Isto será
fundamental para o exercício de sua profissão. As pessoas
que tentam analisar textos literários sem a devida instrução
tiveram problemas ao analisar textos literários com
profundidade, ao realizar leituras mais elaboradas sobre
elementos intertextuais ou ainda para ler elementos que
podem estar nas entrelinhas das obras. E então? Motivado
para desenvolver esta competência? Então vamos lá.
Avante!

Você já assistiu a alguma adaptação cinematográfica que tenha


surgido de algum livro literário? Já teve a experiência de ler o livro do
filme a que assistiu, ele já se deparou com pessoas que disseram “ah,
mas eu li o livro e é diferente, tem mais detalhes”? Há quem diga preferir
ler o livro antes de assistir ao filme, inclusive, por acreditar que a visão
do cinema influenciará na imaginação leitora… todos esses elementos, de
modo geral, configuram nosso objeto de estudo, a literatura comparada.

Já sabemos que a literatura, em linhas gerais, é uma forma de arte


que utiliza a palavra como seu elemento fundamental. O pesquisador
Massaud Moisés, em seu Dicionário de Termos Literários (Editora Cultrix,
São Paulo, 2004, p. 264), define a literatura como a arte da escrita, porém,
ao longo das várias páginas seguintes, problematiza esse conceito, uma
vez que a palavra literatura é polissêmica, e seu significado depende de
seu contexto de uso.

Apesar da multiplicidade de significados - já que as palavras têm


história – vamos delimitar a literatura àquele trabalho técnico e artístico,
que não possui compromisso direto com a realidade, e que se constitui
como obra a partir do campo da ficção, sendo formada por arranjos
estéticos que exploram diferentes dimensões das palavras.
12 Literatura Comparada

É essa forma de literatura que atravessa épocas, que se cria e se


recria ao longo dos séculos, e que, por meio de diferentes linguagens
(dentre as quais está o cinema), produz efeitos de sentido sobre nossos
modos de ser e de viver, possibilitando-nos ver a realidade sob diferentes
ângulos. É como diz o poema de Carlos Drummond de Andrade:

Não faças versos sobre acontecimentos.

Não há criação nem morte perante a poesia.

Diante dela, a vida é um sol estático,

não aquece nem ilumina.

As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais

não contam.

Não faças poesia com o corpo,

esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso

à efusão lírica.

[…]

Penetra surdamente no reino das palavras.

Lá estão os poemas que esperam ser escrito.

Estão paralisados, mas não há desespero,

há calma e frescura na superfície intata.

Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.

Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.

Espera que cada um se realize e consume

com seu poder de palavra

e seu poder de silêncio.

(ANDRADE, 1945, p. 6)
Literatura Comparada 13

Em linhas gerais, entende-se que o poema nos aconselha a


fecharmos os sentidos para os significados tradicionais, dicionarizados
das palavras que nos cercam, para que possamos deixar fluir a arte da
escrita literária, transformando e reinventando o significado das palavras.
Esse mundo à parte, o mundo que o poema afirma ser o dos versos, não
é um mundo em movimento, mas um lugar estático, que está lá para ser
descoberto, sem pressa.

Da mesma forma, a literatura não existe para cumprir uma função


objetiva, mas para explorar as palavras, criar novas e outras formas de
linguagem e de compreensão, e para possibilitar que cheguemos à
compreensão de que enquanto a humanidade existir, a arte será produzida,
como forma de registrar nossa passagem por esse mundo e como modo
de registrar nossas angústias, anseios e nossa qualidade humana.

Mas qual seria a natureza do texto literário? Sabemos que, em


linhas gerais, todo sistema que foi criado pelo homem serve para a
comunicação humana, e pode ser denominado como uma linguagem. A
linguagem por sua vez, pode ser entendida como um grande sistema de
signos, dos quais uma de suas materialidades é a língua. As regras que
regem os sistemas de signos representam e constituem visões de mundo
e possibilidades semânticas, que podem ser possíveis em determinadas
culturas e em outras não.

Nesse sentido, a literatura pode ser considerada como um sistema


linguístico secundário dentro da cultura, pois ela é uma forma de expressão
da linguagem, criada com um fim específico. Uma das diferenças entre a
literatura e as demais linguagens, como será abordado mais adiante, está
no significado das palavras, que adquirem outro sentido, o conotativo.

Isso significa que a linguagem literária não possui a mesma forma


que ela adquire em contextos e situações reais de uso. Por isso, essa
linguagem possibilita múltiplas interpretações, tornando-se subjetiva.
14 Literatura Comparada

A Linguagem Literária
Você conhece o mito da torre de Babel? Esse mito perpassa a
consolidação da Babilônia na Antiguidade, onde hoje se localiza o Iraque.
Vamos à leitura?

Naquele tempo, toda a humanidade falava uma só língua.


Deslocando-se e espalhando-se em direção ao oriente,
os homens descobriram uma planície na terra de Sinar e
depressa a povoaram. E começaram a falar em construir uma
grande cidade, para o que fizeram tijolos de terra bem cozida,
para servir de pedra de construção e usaram alcatrão em vez
de argamassa. Depois eles disseram: “Vamos construir uma
cidade com uma torre altíssima, que chegue até aos céus;
dessa forma, o nosso nome será honrado por todos e jamais
seremos dispersos pela face da Terra!”

O Senhor desceu para ver a cidade e a torre que estavam a


levantar.

“Vejamos se isto é o que eles são capazes de fazer; sendo


um só povo, com uma só língua, não haverá limites para
tudo o que ousarem fazer. Vamos descer e fazer com que a
língua deles comece a diferenciar-se, de forma que uns não
entendam os outros.”

E foi dessa forma que o Senhor os espalhou sobre toda a


face da Terra, tendo cessado a construção daquela cidade.
Por isso, ficou a chamar-se Babel, porque ali foi que o Senhor
confundiu a língua dos homens e a espalhou sobre a Terra.

(GÊNESIS, s/d, 11:1-8.)


Literatura Comparada 15

Figura 1: A torre de Babel - Pieter Bruegel

Fonte: @Commons

Como o texto é mais antigo, uma figura dessa torre demonstra a


interpretação literária de um leitor do texto sobre a lenda da torre de Babel.
Ilustramos dessa forma para mostrar que o código escrito, mesmo sendo
único, não garante que todos tenham a mesma interpretação dos fatos.

Observe atentamente o texto. O que você vê? Há uma progressão


narrativa, que pode ser percebida pelo uso dos verbos no pretérito
perfeito do modo indicativo, o que significa que para o narrador, a história
tem caráter verídico. Temos, como referência a personagens “os homens”,
o que nos traz a noção de grupo, de vários seres humanos. Nesse sentido,
“os homens” pode ser compreendido como a raça humana, por se tratar de
uma denominação ampla. Eles (os homens) estavam em um determinado
lugar, no tempo em que todos falavam uma só língua (situação inicial).
Descobriram, então, uma planície na terra de Sinar, onde começaram a
construir uma grande cidade, na qual tiveram a ideia de construir uma
grande torre para chegar até o céu, e para que não se espalhassem sobre
a Terra (nó).
16 Literatura Comparada

Foi a partir daí que, segundo o texto, Deus resolveu visitar a cidade
para ver o que ocorria e, então, vendo a construção da torre, decidiu
confundir a língua dos homens, para que esses se espalhassem sobre a
Terra (clímax) e, com a separação dos homens pelas diferentes línguas, a
cidade parou de ser construída (desfecho).

Temos, no texto, uma sequência narrativa completa, rica em


detalhes. Na pintura de Bruegel, por sua vez, percebemos uma parte
dessa história, mais focada na construção da torre. Observa-se que as
proporções do monumento em relação à cidade são gigantescas. Nuvens,
inclusive, estão mais baixas do que a torre. No lado esquerdo da torre,
que ocupa o centro e o primeiro plano da pintura, vemos a fabricação
de tijolos sendo interrompida pela visita de uma figura masculina que,
acompanhada de uma comitiva e tendo causado a parada da produção,
revela ser alguém muito importante, o que pode ser percebido tanto pelas
roupas como pela coroa que usa.

A arquitetura da torre, imponente, não remonta técnicas orientais


de construção, mas remete à cultura romana, símbolo de perseguição
aos cristãos, num formato que chega a assemelhar-se ao Coliseu romano,
um dos grandes símbolos do orgulho e da opulência de Roma. Com isso,
chegamos à conclusão de que o artista, ao retratar a obra, quis enfatizar a
arrogância de seus construtores, considerando merecido o castigo divino
que os acometeu.

Usaremos a torre de Babel como metáfora para explicarmos que a


literatura comparada pressupõe analisar a obra literária sob a perspectiva
de diferentes línguas, ou seja, analisar uma obra literária comparando-a
com as formas como os outros a apresentam por meio de outras
linguagens.

Caso você tenha notado, o que já realizamos aqui foi um exercício


de literatura comparada: partimos do texto para uma de suas releituras,
buscando, ao analisar essa releitura, realizar conexões com o texto
original. Observemos, a seguir, mais um exemplo:
Literatura Comparada 17

Exemplo:

Ainda que eu falasse a língua dos homens


E falasse a língua dos anjos sem amor eu nada seria
É só o amor, é só o amor
Que conhece o que é verdade
O amor é bom, não quer o mal
Não sente inveja ou se envaidesse

O amor é o fogo que arde sem se ver


É ferida que dói e não se sente
É um contentamento descontente
É dor que desatina sem doer

Ainda que eu falasse a língua dos homens


E falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria

É um não querer mais que bem querer


É solitário andar por entre a gente
É um não contentar-se de contente
É cuidar que se ganha em se perder

É um estar-se preso por vontade


É servir a quem vence, o vencedor
É ter com quem nos mata lealdade

Tão contrário a si é o mesmo amor


Estou acordado e todos dormem, todos dormem, todos
dormem
Agora vejo em parte, mas não vejo face a face
É só o amor, é só o amor
Que conhece o que é verdade
Ainda que eu falasse a língua dos homens
E falasse a língua dos anjos, sem amor nada seria
(Legião Urbana, 1989)
18 Literatura Comparada

ACESSE
Vale sempre ouvir essa música. Se você quiser relembrá-la
ou mesmo conhecê-la, acesse: https://bit.ly/2wQLVzd.

Ninguém pode discordar do lirismo da canção de Renato Russo. O


tema do texto é a descrição do amor. Percebemos o tom descritivo do texto
pela ampla utilização do verbo de ligação “ser”, flexionado na forma “é”. Ao
mesmo tempo, o amor, no texto, não é vinculado à noção de amor sexual,
mas de amor fraternal, como algo que deve ser naturalizado e universal.

Outro detalhe importante que chama nossa atenção nesse texto é


que ele dialoga com outros dois textos mais antigos. Vejamos:

Texto 1:

Ainda que eu falasse a língua dos homens e dos anjos, e não


tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que
tine. […]

O amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor


não trata com leviandade, não se ensoberbece.

Não se porta com indecência, não busca os seus interesses,


não se irrita, não suspeita mal;

Não folga com a injustiça, mas folga com a verdade;

Tudo sobre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. […]

(I CORÍNTIOS, s/d, 13:1)


Literatura Comparada 19

Texto 2:
Amor é um fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói, e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;


É um andar solitário entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É um cuidar que se ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;


É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor


Nos corações humanos, amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?
(CAMÕES, p. 15)

Observa as semelhanças temáticas? Um texto do século XX


dialogando com dois textos, sendo que ambos, já possuem, no mínimo,
cinco séculos! E o arranjo dos dois, juntos, constitui uma obra prima da
música brasileira.

O tema de ambos os textos é o amor. O texto de Luís Vaz de Camões


busca descrevê-lo por meio de uma série de figuras de linguagem, de
elementos marcados por contrastes, de uma atmosfera de tensão.

A canção escrita por Renato Russo, por sua vez, é marcada por um
tom descritivo acerca do amor, sendo que, em sua constituição, a mesma
se utiliza de paráfrases e de citações do poema “amor é fogo que arde
sem se ver”, de Camões, e também de elementos relacionados aos textos
bíblicos, que abordam o mesmo tema.

É possível perceber, na canção de Renato Russo, deste modo, uma


relação intertextual com o poema de Camões e com o texto bíblico, uma
20 Literatura Comparada

vez que os textos mais atuais - no caso, a letra da canção – retomam os


anteriores, citando-os, complementando-os, indo além daquilo que foi
dito.

Desde modo, a intertextualidade se manifesta como uma


possibilidade de “conversar” com outros textos, de modo a atribuir-
lhes determinados sentidos, ou mesmo, de “criar” novas possibilidades
interpretativas e semânticas.

No texto de Camões, por exemplo, o amor tratado é o amor


romântico; já na canção de Renato Russo, sua citação complementa
o sentido da definição de um amor mais fraternal. Com isso, modifica-
se também o sentido do texto de origem, reforçando ainda mais sua
literariedade.

Perceba que a intertextualidade só se torna possível quando o


diálogo estabelecido entre os textos é um diálogo literário. Outros textos,
do mundo real, com linguagem objetiva, talvez não tenham a mesma
possibilidade.

REFLITA
Nenhum texto surge do nada; antes, ele é o resultado das
interações de mundo que seu autor foi realizando ao longo
da vida.

SAIBA MAIS
O filme “Somos tão jovens” (direção: Antônio Carlos de
Fontoura, 2013) retrata a biografia de Renato Russo, bem
como suas produções de maior sucesso. Vale a pena
conferir.
Literatura Comparada 21

Vimos até aqui que a literatura comparada trata das relações


existentes entre uma obra literária e outras obras artísticas, sejam elas
literárias ou não, além de outros campos do saber, aspectos culturais e
históricos, dentre outros.

A literatura da qual falamos até aqui remete àquela produção artística


que utiliza a palavra como elemento principal, sendo caracterizada por
um tipo de linguagem específico, que caracteriza a obra literária como
objeto artístico.

RESUMINDO
E então? Gostou do que lhe mostramos? Aprendeu mesmo
tudinho? Agora, só para termos certeza de que você
realmente entendeu o tema de estudo deste capítulo,
vamos resumir tudo o que vimos. Neste capítulo, você
aprendeu que o texto literário é, antes de tudo, uma
produção humana, que utiliza a linguagem de um modo
diferente do cotidiano. A literatura pode ser definida como
a arte das palavras. As obras de arte (literatura, pintura,
escultura, música etc.) conversam entre si. Essa conversa
marca tanto formas de interpretação da obra anterior,
quanto um elemento denominado “intertextualidade”.
22 Literatura Comparada

Identificando as Marcas da Linguagem


Literária
OBJETIVO
Ao término deste capítulo você será capaz de observar os
as marcas linguísticas que tornam a linguagem literária.
Isto será fundamental para o exercício de sua profissão. As
pessoas que tentam analisar textos literários sem a devida
instrução tiveram problemas ao analisar textos literários
com profundidade, ao realizar leituras mais elaboradas
sobre elementos intertextuais ou ainda para ler elementos
que podem estar nas entrelinhas das obras. E então?
Motivado para desenvolver esta competência? Então
vamos lá. Avante!

Características da Linguagem Literária


Para avançarmos em nossos estudos, precisamos definir alguns
elementos que caracterizam a linguagem literária, possibilitando ao leitor
diferenciar textos literários de não-literários. Domício Proença Filho (2004)
nos ajuda a compreender esses elementos, vamos lá!

Ambiguidade
A ambiguidade, num texto literário, atinge uma dimensão de
multiplicidade de sentidos, possibilitando diferentes interpretações de um
dado texto, a partir da compreensão leitora e de mundo de quem lê. Um
exemplo clássico dessa ambiguidade é a eterna dúvida que o narrador de
“Dom Casmurro”, de autoria de Machado de Assis, deixa aos seus leitores:
afinal de contas, Capitu traiu ou não traiu Bentinho? Não há evidências
concretas, a não ser a desconfiança do personagem, por elementos que
ele deduz de sua própria observação.

Multissignificação
A linguagem literária não tem obrigação de seguir à risca o pacto
linguístico estabelecido entre os falantes de uma língua, o que permite
Literatura Comparada 23

que as palavras ganhem novos e outros sentidos, diferentes dos habituais.


Na frase proferida por Brás Cubas, narrador da obra “Memórias póstumas
de Brás Cubas”, de autoria de Machado de Assis, o narrador personagem,
ao falar sobre sua experiência com Marcela, afirma que ela o amou
“durante quinze meses e onze contos de réis”, tornando a lógica do amor
sensual em interesse financeiro.

Ficção
DEFINIÇÃO
Segundo o Dicionário Mini Aurélio (2008, p. 404) ficção é “1.
Ato ou efeito de fingir. 2. Coisa imaginária, fantasia, criação.”
Aqui, temos uma lição importantíssima: toda obra literária
é uma obra de ficção, ou seja, a literatura, ainda que seja
baseada em fatos reais, não tem absolutamente nenhum
compromisso com a realidade.

Certa vez, em 2011, no estado do Rio Grande do Sul, foi aberta,


por tempo limitado, a exposição “Titanic: A Exposição – Objetos Reais,
Histórias Reais”. Nessa exposição, uma das primeiras falas do guia era a
de que os personagens Rose DeWitt Bukater e Jack Dawson, dirigido por
James Cameron e Jon Landau, em 1997, não haviam existido. Com isso,
percebemos que o cinema adaptou uma história real para transformá-
la em arte, utilizando-se da liberdade artística e poética para criar uma
história ficcional. Com isso, também se pode definir a ficção como uma
imitação da realidade, nunca como a realidade.

Conotação
Essa é uma das características mais importantes do texto literário,
pois remete à noção de que um texto literário não deve ser interpretado
ao pé da letra, como se cada palavra ali existente tivesse o mesmo
significado que está cristalizado em nossa cultura. A linguagem conotativa
pode ser compreendida como figurada e, por conseguinte, como literária.
Por isso, o código literário se constitui na dimensão da subjetividade,
possibilitando que cada leitor dialogue com o texto de acordo com
suas próprias habilidades leitoras. Isso não acontece, por exemplo, num
24 Literatura Comparada

manual de instruções ou numa bula de remédio, que deve ser utilizada


como forma de orientação. Vejamos um exemplo:

Exemplo

Receita

Ingredientes:
2 conflitos de gerações
4 esperanças perdidas
3 litros de sangue fervido
5 sonhos eróticos
2 canções dos Beatles

Modo de preparar
dissolva os sonhos eróticos
nos dois litros de sangue fervido
e deixe gelar seu coração

leve a mistura ao fogo


adicionando dois conflitos de gerações
às esperanças perdidas

corte tudo em pedacinhos


e repita com as canções dos Beatles
o mesmo processo usado com os sonhos
eróticos mas desta vez deixe ferver um
pouco mais e mexa até dissolver

parte do sangue pode ser substituído


por suco de groselha
mas os resultados não serão os mesmos
sirva o poema simples ou com ilusões.
(Behr, 1958, s/p.)

O poema “Receita” pode ser interpretado ao pé da letra? Seus


elementos (ou ingredientes) são palpáveis e do nosso cotidiano físico?
Possivelmente, a receita não conseguiria ser “reproduzida”, uma vez que
trata de aspectos denotativos e ficcionais.
Literatura Comparada 25

Criatividade
Para que a linguagem literária se firme como tal, é imperativo que
ela se caracterize pelo desvio da norma linguística tradicional. Poremos
dizer que a linguagem literária “milita” contra a automatização do uso
linguístico, trazendo de volta expressões em desuso, lançando mão de
neologismos, criando metáforas, reorganizando o léxico e os sintagmas. O
livro “Grande Sertão: Veredas”, de Graciliano Ramos, é um exemplo do uso
criativo da linguagem literária, pois, o autor dá voz a um narrador-homem-
do-sertão, com suas nuances de linguagem sem a maquiagem linguística
dos grandes centros urbanos. Conforme D’Onofrio (2007, p. 19),

[...] o poeta produz uma linguagem que, mesmo usando


palavras comuns, recria essas palavras para tornar possíveis
relações sempre novas com a realidade. Daí os efeitos
surpreendentes, fascinantes, fantásticos da linguagem e da
cosmovisão artísticas.

A essa criatividade, também chamamos de liberdade poética e


entendemos que, mesmo que uma obra literária se utilize da realidade
para a criação, ela irá se desviar do curso sem que se atribuam juízos de
valor a isso.

Estruturação
Na literatura, ao contrário de outros gêneros textuais, a estrutura
da linguagem pode ser considerada intuitiva, personificada, individual e
subjetiva. A utilização metafórica da linguagem possibilita desvios, tanto
no campo da interpretação como da estruturação.

Literaridade
A literariedade pode ser entendida como um conjunto de
características que, juntas, conferem a um texto a à sua linguagem
a qualidade poética. Em linhas gerais, a um texto só será literário se
apresentar marcas de literariedade.
26 Literatura Comparada

Verossimilhança
Dizemos que a obra literária é verossímil porque se assemelha a
elementos do mundo exterior, porém não é verdadeira; apenas possui a
equivalência da verdade. Essa verossimilhança pode ocupar dois domínios
dentro do texto, a do “poder ser” e a do “poder acontecer”. São elas que
estabelecem a coerência interna e externa do texto. A verossimilhança
interna refere-se à sua coerência estrutural, enquanto a verossimilhança
externa remete à proximidade, fora do texto, com o mundo real. Deste
modo, a obra literária pode não possuir verossimilhança externa, porém,
sempre deverá ter verossimilhança interna, para estabelecer a relação
coesiva. Vejamos:

Exemplo: [...] Quando a noite caiu – morna, estrelada, pingada


de vaga-lumes e rascada de grilos – o alto da colina estava
completamente deserto de humanidade viva. Numerosas turmas
de formigas faziam serão. Lagartos corriam por entre macegas
e caraguatás. Aves noturnas, frechavam o ar em voos curtos,
acomodavam-se nas árvores ou nos túmulos, eventualmente
bicavam insetos ou vermes.
Cerca de três da madrugada, um vulto humano saiu do seu
esconderijo – um valo encoberto pela copa de árvores – e caminhou
meio agachado na direção do cemitério. O seu nome? Nem ele mesmo
se lembrava, direito, pois tinha usado muitos em sua vida, uma para cada
cidade onde operava. Estava sendo procurado pela polícia de muitos
municípios por delitos de furto e roubo. Soubera à tardinha que o mais
fino dos sete esquifes insepultos continha uma defunta ricaça, coberta
de joias valiosas. Fizera o seu plano e metera-se no valo, antes do sol
sumir-se. Agora, se conseguisse fazer o “serviço” rapidamente e fugir
para o estrangeiro, poderia ir vendendo as joias aos poucos, com a maior
precaução. Um cúmplice o esperava com um cavalo encilhado, numa
das muitas encruzilhadas nas vizinhanças de Antares. Ele tentaria cruzar
o rio perto da divisa com o Estado de Santa Catarina e tentar a sorte na
Argentina ou mesmo no Paraguai.
Literatura Comparada 27

Continuou a andar com toda a cautela, parando de quando em


quando para olhar em torno e ficar atento aos ruídos da noite. Levava no
bolso do casaco uma lanterna elétrica e no das calças um pé-de-cabra.
Era a primeira vez que ia espoliar um cadáver. O principal não era chamar
a atenção dos operários que guardavam as entradas das ruas, a uns
duzentos metros do cemitério. Só acenderia a lanterna quando o caixão
estivesse já aberto e ele precisasse localizar as joias no corpo da defunta.

Seu coração batia sereno. Tinha bons nervos. Se não tivesse, não
poderia exercer aquela profissão.

Chegou a uma das esquinas do cemitério e sondou com o olhar


a entrada das ruas fronteiras. A cidade estava às escuras. À fraca luz da
lua não divisou nenhum vulto humano. Felizmente a uns dez metros à
frente do muro principal, do cemitério estendia-se um longo renque de
cinamomos copados, que produziam uma zona de sombra onde ele
poderia trabalhar sem ser percebido. Teria o cuidado de esconder a luz da
lanterna com o próprio corpo.

Sempre colado ao muro (boa ideia, ter vestido a roupa clara) o


ladrão aproximou-se dos sete esquifes. O primeiro deles, bem à frente do
portão de entrada, era preto e havia sido trazido às cinco horas da tarde.
O seguinte – o claro e pequeno – era o que procurava. Ajoelhou-se ao
pé dele, desatarraxou-lhe a tampa e, contendo a respiração, ergueu-a,
fazendo-a depois escorregar de mansinho para um lado. Tirou a lanterna
do bolso e acendeu-a. focou primeiro as mãos da morta, pois ouvira falar
no famoso solitário de brilhante. Opa! Naqueles dedos cor de cera de
abelha não viu nenhum anel. Os pulsos estavam sem pulseiras. Iluminou
o peito da defunta e não viu nenhum broche. No pescoço, nenhum
colar... numa relutância supersticiosa focou o rosto do cadáver da dama
e estremeceu. Os olhos dela estavam abertos, seus lábios começaram a
mover-se e deles saiu primeiro um ronco e depois estas palavras, nítidas:
“Senhor, em vossas mãos eu entrego a minha alma.” O ladrão soltou um
grito abafado, ergueu-se rápido, deixou cair a lanterna acesa e o pé-de-
cabra, e rompeu a correr na direção dos campos desertos...

(Érico Veríssimo. Incidente em Antares, cap. XVIII).


28 Literatura Comparada

Observe que a estrutura do enredo narrativo nos leva a viajarmos


até a cena do ladrão, pronto para arrombar o esquife de dona Quitéria
Campolargo. Até o momento da abertura do caixão, não há nada que não
esteja no campo do “pode acontecer”, e não há dúvidas de que, ao longo
do texto, a verossimilhança interna funciona perfeitamente. O que nos
chama atenção, entretanto, é a morta falar, elemento que não condiz mais
com a noção do “pode acontecer”. O texto extrapola a verossimilhança
externa, porém sua estrutura e coesão interna continuam perfeitos. O
“acordar” de dona Quitéria faz com que a estrutura da narrativa ficcional
se torne fantástica.

VOCÊ SABIA?
A narrativa fantástica é uma forma de literatura cuja estrutura
narrativa apresenta todos os elementos convencionais,
porém, seu conteúdo é algo que não existe, ou que não
pode ser reconhecido em nossa realidade.

RESUMINDO
E então? Gostou do que lhe mostramos? Aprendeu mesmo
tudinho? Agora, só para termos certeza de que você
realmente entendeu o tema de estudo deste capítulo,
vamos resumir tudo o que vimos Neste capítulo, você
aprendeu que a linguagem literária, mesmo que se utilize
do mesmo sistema linguístico da linguagem não-literária,
é constituída por regras próprias, as quais fogem da
objetividade. O texto literário, embora seja semelhante à
realidade, não deve ser compreendido como tal, haja vista
sua possibilidade de ser interpretado a partir das visões de
mundo do leitor. Para se reconhecer a linguagem literária,
há algumas características que, resumidas, podem ser:
múltiplos sentidos, ambiguidade semântica e liberdade de
criação. Essas três características abrem-se para todas as
demais estudadas ao longo dessa seção.
Literatura Comparada 29

Conceituando Literatura Comparada


OBJETIVO
Ao término deste capítulo você será capaz de conceituar
Literatura Comparada. Isto será fundamental para o
exercício de sua profissão. As pessoas que tentam analisar
textos literários sem a devida instrução tiveram problemas
ao analisar textos literários com profundidade, ao realizar
leituras mais elaboradas sobre elementos intertextuais ou
ainda para ler elementos que podem estar nas entrelinhas
das obras. E então? Motivado para desenvolver esta
competência? Então vamos lá. Avante!

É comum que as pessoas representem a noção de literatura a partir


da leitura de um determinado livro. Aceitemos ou não, os livros são a
representação idealizada da literatura e, em se tratando de uma análise
literária, um grande volume de livros sobre uma mesa pode ser uma das
representações iniciais que se tem.

Em termos gerais, pode-se dizer que a Literatura Comparada é um


campo de estudos oriundo da Teoria Literária que compara diferentes
textos, buscando elementos transversais que se aproximam ou se afastam
entre essas obras.

Um Pouco de História
A literatura comparada, como campo do saber, tem sua origem
histórica a partir do século XVI, sendo uma ciência que se desenvolveu
paralelamente ao desenvolvimento dos estudos comparados realizados
pelo campo das Ciências Naturais.

Na virada dos séculos XVI e XVII, Francis Meres escreveu seu


“Discurso comparado de nossos poetas ingleses com os poetas gregos,
latinos e italianos.” Mais tarde, em 1602, William Fulbecke escreveu
“Um discurso comparado das leis” e, John Gregory publicou “Anatomia
comparada dos animais selvagens”.

A expressão “literatura comparada” surgiu a partir da corrente


cosmopolita de pensamento do século XIX, quando o campo das
30 Literatura Comparada

Ciências Naturais utilizava o método comparativo para extrair leis gerais.


Nesse período, obras como “Lições de anatomia comparada”, escrita
por Cuvier (1800), “História comparada dos sistemas de filosofia”, de
autoria de Degérand (1804) e “Fisiologia Comparada”, de Blainville (1833)
estabeleceram alguns marcos para o desenvolvimento da literatura
comparada.

Nesse mesmo século, na França, o termo “literatura comparada”


possui terreno fértil, já que o conceito de literatura para designar um grupo
de obras já estava sendo cunhado, publicado – inclusive – no Dictionnaire
philosophique de Voltaire.

É em 1816 que Noël e Laplace publicam várias antologias literárias,


sob o título de “Curso de literatura comparada”, ainda que não houvesse
em seu conteúdo, necessariamente, um confrontamento entre as obras.

A expressão ganhou popularidade na França a partir do curso


“Panorama da literatura francesa do século XVII”, ministrado por Abel-
François Villemain na Sorbonne, entre 1828 e 1829. Nessa época, os termos
usados pelo autor eram, além de “literatura comparada”, “panoramas
comparados” e “história comparada”.

Mais tarde, em 1830, J.-J. Ampère, aborda o que chama de “história


comparativa das artes e da literatura”, nas obras “Discurso sobre a
história da poesia (1830) e “História da literatura francesa na Idade Média
comparada às literaturas estrangeiras” (1841). Foi por meio desse autor que
a literatura comparada adentrou o campo da crítica literária, por meio de
um elogio feito por Sainte-Beuve, na Revue des Deux Mondes, nomeando
Ampère como uma espécie de fundador da história literária comparada.

Além disso, no âmbito francês, em 1835 Philarète Chasles fórmula


alguns dos princípios básicos da história literária comparada, que abrange
não só a história da literatura isoladamente, mas também a filosofia e
a política. Esses fundamentos foram divulgados por Chasles em seus
cursos ministrados no Collège de France, uma das instituições de ensino
mais tradicionais da França, pela qual já passaram inúmeros pensadores
franceses, em 1841.
Literatura Comparada 31

Em 1887, surge em Lyon a primeira cátedra de literatura comparada,


e, em 1910, na Sorbonne, tendo à sua frente nomes como Joseph Texte,
Fernand Baldensperger e J.-M. Carré.

No contexto alemão, Moriz Carrière adota a expressão vergleichende


Literaturgeschichte (história comparativa da literartura), como forma
de estudar a evolução da poesia para integrar a literatura comparada à
História Geral da Civilização. Entre 1887 e 1810, Max Koch edita o primeiro
períodico comparativista, intitulado Zeitschrift der vergleichenden.

Em 1886, na Inglaterra, Hutcheson Macaulay Posnett publica o


livro Comparative Literature e, na Itália, De Sanctis lecionará, em 1836, a
disciplina de literatura comparada em Nápoles. Nos Estados Unidos, são
criados Departamentos de Literatura Comparada em Columbia (1899) e
em Harvard (1904), sendo ambos bastante influenciados pelos estudos
de Irving Babbitt. Em Portugal, a literatura comparada foi introduzida
por Teófilo Braga, mas o estudo de Fidelino de Figueiredo, intitulado
“Literatura comparada”, como parte de seu livro “A crítica literária como
ciência” (1912), é considerado seu pioneiro metodológico.

Cabe lembrarmos que a Universidade de Harvard, na atualidade,


é uma das principais universidades do mundo, tendo alguns dos mais
brilhantes e importantes cientistas de nossa época.

Nas primeiras décadas do século XX, a literatura comparada, como


disciplina, foi ganhando forma, sendo introduzida nas universidades
europeias e norte-americanas.

Em 1921, o primeiro número da Revue de Littérature Comparée, de


autoria de Fernand Baldensperger e Paul Hazard, orientavam a validação
das comparações literárias pelo contato real e comprovado dos autores
com as obras, ou dos autores com países, o que abria espaço para que se
estudasse fontes e influências, ao passo que também começaram a surgir
estudos que se ocupavam com o destino das obras literárias fora de seu
país de origem.

Também nessa época se considerava importante filiar os estudos


literários comparados a uma perspectiva histórica, tornando essa forma
de literatura uma ramificação da história literária.
32 Literatura Comparada

Mas não se pode afirmar que essas formas de analisar a literatura


comparada foram unânimes. Elas faziam parte do que se pode chamar de
“escola francesa” de literatura comparada que, mais tarde, foi questionada
por outros pesquisadores, como no caso de René Wllek, cuja oposição
ao historicismo francês levou à divisão da literatura comparada, naquele
momento, em escolas francesa e norte-americana. Isso não significa,
porém, que os norte-americanos não seguissem orientações historicistas,
porém, não com a mesma ênfase francesa.

Ao lado das escolas europeia e norte-americana, destaca-se


também, como um dos “clássicos” da literatura comparada a escola
soviética. Essa escola, que teve como principal representante Victor
Zhirmunsky, procurou buscar compreender a literatura como um produto
social, procurando diferenciar analogias tipológicas e influências culturais,
que para eles seriam marcadores de evolução social. Destacamos como
especialistas nessas formas de análise o tcheco Dionýz Durisin.

Contribuições Teóricas para a Área – parte I


Manuais franceses
Da contribuição dos autores franceses para a literatura comparada,
podemos destacar o trabalho de Paul Van Tieghem (1931), que considerava
a literatura comparada uma preparação para a literatura geral. Além
desses, destacam-se os trabalhos de Marius-François Guyard (“A literatura
comparada”, traduzida em 1956), Claude Pichois e André-Michel Rousseau
(La littérature comparée, 1968) e Etiemble (Comparaison n’est pas raison,
1963; Essais de littérature (vraiment) générale, 1974).

Manual brasileiro
No Brasil, os primeiros estudos de literatura comparada, iniciados
por Tasso da Silveira, no livro “Literatura Comparada”, seguiram os traços
de Van Tieghen, além de autores como F. Baldensperger, Fr Loliée e A.
Doupoy. Há uma grande insistência na busca de fontes e de influências.
Na prática, considera-se o trabalho de Tasso da Silveira como uma
repetição dos manuais franceses, porém, cabe destacar que seu trabalho
Literatura Comparada 33

foi importante para a introdução da literatura comparada no Brasil, na


Faculdade de Filosofia do Instituto Lafayette. Outro brasileiro, João Ribeiro,
anteriormente, em 1905, havia escrito o livro “Páginas de Estética”, onde
traz ideias importantes para a literatura comparada, propondo que se
explore os aspectos históricos, críticos, linguísticos e literários nas análises.
Diferentemente de Silveira, João Ribeiro seguia uma linha mais germânica
em seus estudos. Além desses nomes, destacam-se os pesquisadores
Otto Maria Carpeaux, Eugênio Gomes e Augusto Meyer.

Função da Literatura Comparada


Em si, o termo “literatura comparada” não é, a grosso modo, de
difícil interpretação, por remeter a comparação entre obras literárias.
Se literatura, como já vimos antes, é a arte construída por palavras,
comparação significa estabelecer elos e confrontos entre objetos,
literaturas, obras etc. Porém,

[…] quando começamos a tomar contato com trabalhos


classificados como “estudos literários comparados”,
percebemos que essa denominação acaba por rotular
investigações bem variadas, que adotam diferentes
metodologias e que, pela diversificação dos objetos de
análise, concedem à literatura comparada um vasto campo
de atuação. (CARVALHAL, 2009, p. 5).

A literatura comparada (ou literaturas comparadas) consiste numa


análise literária que estabelece um diálogo entre duas ou mais obras.
Dada sua diversidade de metodologias de análise, ela se constitui como
um campo bastante eclético, tanto em termos de metodologias como
de materiais a serem comparados. Porém, não se pode reduzi-la a um
comparativismo livre. Segundo Carvalhal (2009, p. 7, grifos da autora),

Pode-se dizer, então, que a literatura comparada compara


não pelo procedimento em si, mas porque, como recurso
analítico e interpretativo, a comparação possibilita a esse tipo
de estudo literário uma exploração adequada de seus campos
de trabalho e o alcance dos objetivos a que se propõe.
34 Literatura Comparada

Desse modo, pode-se entender que a literatura comparada não


tem um fim em si mesma, mas pode e deve ser usada como um recurso
investigativo para se atingir um determinado fim.

Isso não significa dizer que não existem divergências em relação


à compreensão do que é literatura comparada, principalmente porque
esse é um estudo de natureza ambígua. Também, como já abordamos
na seção anterior, essa dificuldade se caracteriza pela diferenciação das
vertentes e dos manuais que a estudam, que partem de concepções mais
tradicionais ou mais generalizadas.

Divergências de entendimentos à parte, há uma questão na qual se


tem concordado: a literatura comparada abrange mais uma pluralidade de
procedimentos de análise literária do que propriamente um único método
ou teoria; estaria mais perto do que denomina Carvalhal (2006): seria um
“procedimento mental” e, como tal, generaliza ou diferencia.

O ato de comparação faz parte da natureza humana e consiste em


colocar “lado a lado” mais de um elemento, estabelecendo potencialidades
e limites entre eles, sendo estabelecidos, inclusive, padrões e juízos de
valor. Deste modo, a comparação existe para diferenciar ou para igualar
elementos.

Quando a comparação ocupa lugar central num estudo literário,


podemos dizer que estamos falando de um estudo comparado, pois:

[…] a literatura comparada compara não pelo procedimento


em si, mas porque, como recurso analítico e interpretativo,
a comparação possibilita a esse tipo de estudo literário uma
exploração adequada de seus campos de trabalho e o alcance
dos objetivos a que se propõe. Em síntese, a comparação,
mesmos nos estudos comparados, é um meio, não um fim.
(CARVALHAL, 2006, p. 7, grifos da autora).

Podemos entender que a literatura comparada trabalha não apenas


com temas históricos e nacionais, mas com temas sociais, filosóficos,
sociológicos e abrange diferentes vertentes, sejam literárias ou não. Tudo
a que o pesquisador se propuser a estabelecer semelhanças e diferenças
Literatura Comparada 35

com uma obra literária, desde que a obra literária seja o ponto de partida,
pode ser compreendido como uma forma de procedimento comparativo.

[…] os estudos literários comparados não estão a serviço das


literaturas nacionais, pois o comparativismo deve colaborar
decisivamente para uma história das formas literárias, para um
traçado de sua evolução, situando crítica e historicamente os
fenômenos literários. (CARVALHAL, 2006, p. 85).

Pode-se perceber, deste modo, que literatura comparada designa


não apenas a comparação despretensiosa entre as obras, mas, mais
do que isso, trata-se de um procedimento plural e sério, que contribui
significativamente para o campo de estudos da crítica literária.

Para Guyard (1994), um dos pensadores clássicos do tema, a


Literatura Comparada é a história das relações literárias internacionais.
Afirma o autor que:

O comparatista se encontra nas fronteiras, linguísticas ou


nacionais, e acompanha as mudanças de temas, de ideias, de
livros ou de sentimentos entre duas ou mais literaturas. Seu
método de trabalho deve se adaptar à diversidade de suas
pesquisas. (GUYARD, 1994, p. 97).

Assim, verifica-se que a literatura comparada auxilia e é auxiliada


pelo campo da Teoria Literária, realizando o trabalho de, durante a análise
de textos literários oriundos de diferentes culturas e nacionalidades,
estabelecer relações das mais diversas entre eles. Na prática, embora
bastante calcada na História da Literatura, os livros didáticos de Língua
Portuguesa, por exemplo, realizam exercícios de comparação quando
estabelecem, para um determinado período literário, comparações entre
obras francesas, portuguesas e brasileiras, por exemplo.

Crises teóricas
Ainda que os estudos comparados florescessem em outros lugares
longe da França, por décadas os manuais franceses obtiveram certa
hegemonia na orientação do campo teórico. Porém, esse terreno exclusivo
sofreu seu primeiro abalo no ano de 1958, durante o 2º Congresso da
36 Literatura Comparada

Associação Internacional de Literatura Comparada, durante a conferência


“A crise da literatura comparada”, proferida por René Wellek. Nessa
conferência, Wellek aborda as fragilidades da disciplina, bem como sua
dificuldade em estabelecer um objeto de estudo e uma metodologia,
opondo-se à literatura comparada e à literatura geral.

Segundo Wellek, a literatura comparada estaria reduzida à seleção


de fragmentos para análise, deixando de lado aspectos mais integrais das
obras. Além disso, a investigação dos aspectos internacionais das obras
levaria o pesquisador a se ocupar somente com aspectos externos às
obras. Ainda, Wellek rejeita o princípio causalista dos estudos clássicos,
considerando-os ineficientes.

Wellek propôs um modelo de análise inspirado nos princípios do


estruturalismo de Praga, o que foi algo inovador na época, divididos em
relações de solidariedade tipológica e em contatos externos.

A partir daí, embora o modelo proposto por Wellek, apesar de


inovador ainda possuísse fragilidades, durante a continuidade do século
XX, os estudos literários ganharam maior caráter científico, impulsionando
a teoria literária.

RESUMINDO
E então? Gostou do que lhe mostramos? Aprendeu mesmo
tudinho? Agora, só para termos certeza de que você
realmente entendeu o tema de estudo deste capítulo,
vamos resumir tudo o que vimos. Neste capítulo, você
aprendeu que a Literatura Comparada é um campo
de conhecimentos que busca analisar e estabelecer
proximidades e distanciamentos entre diferentes textos
literários. O estudo comparado da literatura começa a ser
desenvolvido a partir do século XIX. Desde seu surgimento,
a literatura comparada é palco de diferentes ênfases
teóricas que, mesmo discordantes, são importantes para
sua constituição e consolidação como campo científico.
Literatura Comparada 37

Relacionando Literatura Comparada E


Tradução Literária
OBJETIVO
Ao término deste capítulo você será capaz de relacionar
a Literatura Comparada com a tradução literária. Isto será
fundamental para o exercício de sua profissão. As pessoas
que tentam analisar textos literários sem a devida instrução
tiveram problemas ao analisar textos literários com
profundidade, ao realizar leituras mais elaboradas sobre
elementos intertextuais ou ainda para ler elementos que
podem estar nas entrelinhas das obras. E então? Motivado
para desenvolver esta competência? Então vamos lá.
Avante!

Nem sempre, ao comprarmos um livro literário, podemos ater


acesso ao original, especialmente no que se refere às barreiras linguísticas.
Diante disso, ou o leitor compra uma obra em língua estrangeira e se torna
uma espécie de autodidata, ou opta por uma tradução.

Neste segundo caso, há que se considerar uma série de elementos,


já que, nem sempre, as traduções, ou mesmo as adaptações literárias,
são fiéis ao original.

Isso pode acontecer por diversos fatores, entre eles, a fluência do


tradutor – um tradutor que conhece a cultura da língua que está traduzindo
pode possuir uma visão diferente de um tradutor técnico -, a existência de
expressões “intraduzíveis” em nossa língua, dentre outros fatores.

Algo que chama atenção, também, no que se refere à tradução, é


o contexto, já que a obra literária, como uma imitação da realidade, pode
remeter a situações típicas de uma região e de uma cultura, o que nem
sempre pode ser “legível” em outro espaço.

Daí, nesse caso, entra o trabalho da Literatura Comparada: oferecer


uma forma de tradução que seja capaz de traduzir não apenas a língua,
mas suas nuances e desdobramentos culturais, que nem sempre se
aprende nos manuais de estudo. Para esclarecer o que queremos refletir
38 Literatura Comparada

nesse espaço, trazemos uma reflexão a partir do texto “Entenda o perigo


de uma tradução literária ao pé da letra!”, disponibilizado pelo site 2tr e
que, embora fale apenas sobre a tradução, também pode ser pensado no
contexto da tradução literária:

Traduzir um texto de forma automática tem facilitado o dia a dia de


muita gente que necessita entender ou se fazer entender em outro idioma
de forma rápida e prática. No entanto, quem já se utilizou de um software
de tradução pelo menos uma vez sabe que sua tendência é traduzir as
palavras e expressões ao pé da letra, tornando os textos - por vezes – sem
sentido e engraçados.

Mesmo que seja relativamente inofensivo nas comunicações


informais do dia a dia, a tradução de uma palavra de forma literal pode ser
perigosa, especialmente para quem precisa emprega-las em contextos
mais complexos.

Historicamente, a chamada “tradução ao pé da letra” ser perigosa


não é nenhuma novidade para quem conhece ou necessita conhecer
uma segunda língua, especialmente para quem trabalha com tradução.
Os perigos da tradução literal – diga-se de passagem – são conhecidos
desde os primórdios da história da tradução.

Durante a Antiguidade, Cícero – que foi um dos primeiros tradutores


da história -, defendia que era necessário buscar repassar de uma língua
para outra o peso das palavras no lugar, apenas, de seu número, ou seja,
seu sentido geral no lugar da análise dos termos de forma separada.
Alguns séculos depois, São Jerônimo, que foi o primeiro tradutor da Bíblia,
considerado atualmente o patrono dos tradutores, procurou trabalhar
numa tradução por ideias ao invés de por palavras, com o objetivo de
preservar ao máximo o sentido original. E no período do Iluminismo, o
filósofo alemão Voltaire tencionou o mito de Babel, pela sugestão que
nele ficava implícita, de que todas as línguas teriam a mesma origem, o
que corresponderia também que todas tinham correspondência perfeita
entre elas e, por isso, poderiam ser traduzidas literalmente, sem nenhum
cuidado.
Literatura Comparada 39

Seu pensamento levou os estudiosos a perceberem a


impossibilidade de uma tradução sempre literal, especialmente, por
poder apresentar alguns perigos, tais como:

•• Compreensão com estranhamento: É óbvio que existe


a possibilidade – mesmo que remota – de uma frase ou
expressão de um determinado idioma ter o mesmo sentido
em outro, porém, isso é bem raro de acontecer, e o melhor
que pode ocorrer, numa tradução literal, quando não há
correspondência linguística, é que o falante da língua-alvo
(isto é, do idioma para o qual se está traduzindo) tenha
um entendimento parcial ou total do texto, ainda que
haja alguma confusão. Isso ocorre, por exemplo, quando
se traduz a expressão inglesa “seat belt” ao pé da letra,
que significa “cinto de assento”, ao invés de “cinto de
segurança”, em português. Conforme o contexto, o falante
de português possivelmente entenderia a expressão, mas
a estranharia.

•• Total incompreensão: Quando a tradução ao pé da


letra não tem nenhuma relação com o correspondente
da língua-alvo, o falante pode simplesmente não
compreender nada do que está sendo dito. Isso pode
acontecer, por exemplo, quando se traduz uma expressão
idiomática de maneira literal, como no exemplo da frase
francesa “les carrores sont cuites” que, embora signifique
“as cenouras estão cozidas, na realidade, expressa uma
situação que não é passível de ser mudada.

•• Inadequação na compreensão: Além disso, o maior


perigo da tradução literal é a criação de uma frase ou
expressão que na língua-alvo pode até fazer sentido,
porém, possuindo um significado completamente
diferente do que se pretende dizer, soando – por vezes
– até como ofensivo ao falante da língua-alvo, levando-o
inclusive a construir um significado exatamente oposto
àquele que se pretendeu ter. Um bom exemplo é a
40 Literatura Comparada

palavra alemã “Schwarzfahrer”, muito encontrada nos


trens e metrôs na forma do aviso “Schwarzfahrer zahlen
€40”. Se a traduzirmos ao pé da letra para o português, a
placa diz que “passageiros negros pagam 40 euros”, o que,
inclusive, pode soar como uma afirmação completamente
racista. Porém, “Schwarzfahrer” usa o adjetivo “negro”
para se referir a algo ilegal — isto é, pessoas que usam
o transporte sem pagar passagem —, da mesma forma
como, em português, usamos a expressão “mercado
negro”.

•• Evitando a tradução literal equivocada: Para se fugir


desses perigos, antes de qualquer coisa, é necessário
verificar se o trecho que foi traduzido ao pé da letra faz
sentido na língua-alvo, e ainda se esse sentido se esse
sentido é igual ou pelo menos equivalente ao do original.
Exemplificamos com a expressão “falando do diabo” que,
em inglês, significa “speaking of the devil”, cuja tradução
– nesse caso – tem realmente o mesmo significado em
ambas as línguas. No entanto, o melhor a se fazer é buscar
um correspondente que seja usado, na língua-alvo, mais
ou menos no mesmo contexto que aquele da língua-
fonte. Para a expressão francesa “les carrotes sont cuites”,
abordada anteriormente, poderíamos usar a expressão
“não adianta chorar sobre o leite derramado”, indicando
que agora é tarde para tentar mudar algo que ocorreu no
passado. Do mesmo modo, o aviso “Schwarzfahrer zahlen
€40” deve ser traduzido para outras línguas com a mesma
expressão usada no transporte público do país. No Brasil,
como esse tipo de aviso não é comum, seria possível dizer
simplesmente algo como “proibido viajar sem passagem”
ou “viajar sem passagem acarreta multa de 40 euros”.
De qualquer forma, o melhor é procurar saber qual é a
expressão exata usada pelos nativos da língua-alvo em
um contexto semelhante ao da língua-fonte.
Literatura Comparada 41

•• Traduções literais aceitáveis: Mesmo com todos esses


perigos, há situações em que a tradução literal é a melhor
escolha. Isso acontece especialmente em textos de
alto valor literário, de preferência com comentários ou
com notas explicativas do tradutor, ou ainda em textos
nos quais se pretende tratar exatamente das diferenças
entre dois ou mais idiomas. Nesses casos, a tradução
literal pode ajudar para que o leitor que possui pouco
ou nenhum conhecimento da língua estrangeira possa
se familiarizar com sua construção e também com sua
forma de expressão de certos significados. Em textos com
funções mais práticas e objetivas, entretanto, permanece
a regra de fugir da tradução ao pé da letra sempre que
isso for possível.

Compreende, caro aluno, porque a tradução literária (especialmente


a literal) pode ser um problema? É importante que prestemos atenção a
isso, a fim de que optemos sempre pela melhor escolha em se tratando
de obra literária, seja original, traduzida ou adaptada.

Contribuições Teóricas para a Área – parte II


Após a crise das contribuições teóricas sobre a Literatura
Comparada, algumas contribuições teóricas foram importantes para o
desenvolvimento da Literatura Comparada, dentre as quais destacam-se:

Teoria literária e comparativismo


Essas duas teorias, na medida em que foram adquirindo maior
caráter científico, inspiradas também pelo formalismo russo, abriram
caminho para que as noções básicas sobre literatura fossem reformuladas,
estabelecendo a linguagem poética como sistema, porém, muitas
discussões observaram que a análise do texto não poderia ser fechada
em si, haja vista esse texto ser uma produção histórica. É a partir daí que
surge a possibilidade de se estabelecer relações entre obras literárias e
obras não-literárias. Com isso, percebe-se que a literatura comparada não
é anti-histórica, mas também não se resume somente ao historicismo.
42 Literatura Comparada

Outro ponto que foi surgindo foi a percepção das dificuldades em se


estabelecer diálogo entre os textos, principalmente em relação àquilo que
os textos conversam entre si. Noções como paráfrase, paródia, estilização
e apropriação surgem fortemente, com o intuito de servirem de auxílio
para análise.

Intertextualidade
A noção de intertextualidade, que remete ao diálogo entre textos,
foi importante para fortalecer a Literatura Comparada. Segundo Carvalhal
(2006, p. 53-54), “toda repetição está carregada de uma intencionalidade
certa: quer dar continuidade ou quer modificar, quer subverter, enfim,
quer atuar com relação ao texto antecessor.” A repetição, por meio da
intertextualidade, ressignificaria o texto; traria à tona sua ideia original para
sacudi-la, desconstruí-la, reescrevê-la.

O papel da tradição
T. S. Eliot, em 1917, com a obra “A tradição e o talento individual”,
traz contribuições importantes para a definição do papel de tradição que,
segundo ele, não deve ser definida pela semelhança, mas como algo
obtido por meio de muito esforço, embasado por senso histórico.

NOTA
Perceba que a Literatura Comparada não se constituiu
cientificamente de uma única vez; ela é resultado de
muitas discussões teóricas, pesquisas e até mesmo viradas
teóricas e metodológicas, elementos importantes para a
constituição de um campo de estudos.
Literatura Comparada 43

Das Relações entre Literatura Comparada e


Tradução Literária: Algumas Considerações
Na seção anterior, a partir da explanação do desenvolvimento da
Literatura Comparada, abordamos de forma breve algumas observações
em relação à relação entre LC e tradução literária.

Considerar a relevância do papel da tradução literária na história da


literatura e cultural reflete levar em conta o papel transformador da obra
literária. Conforme Sandra Bermann (2010, s/p)

À medida que o papel da tradução no contexto pós-colonial,


pós-estruturalista e pós-, sub- e internacional se lança no
cenário mundial hoje, sua capacidade tanto de estender a vida
dos textos literários e culturais, mas também de intervir em
seus efeitos globais vem à tona.

Para a autora, é importante que se leia da mesma forma como se


traduz, estando-se atento aos níveis linguísticos do texto (fonemático,
semântico etc.), como também uma tradução requer atenção ao contexto
de produção da obra, reconhecendo na obra os aspectos que formaram
sua cultura.

Em parte, dizer que considerar os aspectos culturais de produção


de uma obra literária é importante no momento da tradução, significa ter
mais do que uma versão traduzida do texto. Alguns autores brasileiros do
século passado já haviam atentado para essa importância, chegando a
afirmar – inclusive – que há uma diferença entre os processos denominados
“escritura” e “tradução”, sendo a primeira uma reescrita decodificada, e a
segunda, considerada uma tradução também do contexto. Também, cabe
mencionar que questão da tradução se refere ao fato de que a residência
“oficial” da arte literária é a língua nacional, sendo a forma linguística
original um dos elementos artísticos do texto. Porém, isso não significa
que seja o único elemento a ser considerado.

Deste modo, a grande discussão em torno da utilização de


traduções para a comparação está no fato de que se acredita que
elementos linguísticos e até mesmo contextuais importantes podem ser
44 Literatura Comparada

perdidos com as traduções. Porém, a utilização dos originais linguísticos


também apresenta seus obstáculos, dentre os quais está o conhecimento
das línguas e um domínio muito maior das literaturas.

Sara Rodrigues (s/d) salienta a importância de que se leia como


se traduz, dando-se atenção para todos os níveis textuais, desde o
fonemático, ao semântico, considerando também os aspectos culturais e
situacionais dos textos.

A grande questão da tradução para a Literatura Comparada encontra-


se no reconhecimento do outro, no respeito às suas singularidades. Afirma
a autora que:

Ao tratar da (sempre presente) questão do papel da tradução


em sua relação com a literatura e a cultura (essencial, no caso
dos cursos superiores de tradução), […] pode-se concluir que a
literatura e as demais áreas humanas, embora com fronteiras
disciplinares delineadas, interpenetram-se continuamente.
O fator de definição desta relação é a tradução das teorias
que enformam essa relação. A tradução (a mais disciplinar
das atividades) vincula-se de maneira muito especial com
a literatura, especialmente com a Literatura Comparada. A
Literatura Comparada, em nosso ponto de vista, é um modo
de ler. Na Literatura Comparada há a primazia do confronto,
do estudo e da diferença. Este é o estudo que, sublinhando
a diferença, faz o diferente ser respeitado: de mãos dadas
com os Estudos de Tradução, foi uma das bases dos estudos
pós-coloniais. Juntamente com os Estudos de Tradução, pode
auxiliar a tornar nossos paradigmas e experiências no mundo
contemporâneo inteligíveis, o que é condição primeira para
transpor limites e avançar. (RODRIGUES, 2010, p. 25)

Na visão da autora, os Estudos de Tradução, considerando a


necessidade de que se realize uma tradução mais contextualizada das
obras, podem contribuir de forma significativa para o aperfeiçoamento da
Literatura Comparada.
Literatura Comparada 45

NOTA
Os estudos de tradução são um campo de conhecimento
que se ocupa do estudo de teorias relacionadas à tradução
e interpretação, relacionando conhecimentos das Ciências
Sociais e Humanas.

A tradução literária é um movimento bastante complexo, que não


pode ser simplificado, na atualidade, em se “jogar” trechos do texto num
tradutor online. Para uma tradução literária de qualidade, primeiramente,
o tradutor deve possuir um conhecimento avançado daquela língua
estrangeira, com um entendimento de suas nuances, gírias, estigmas etc.

Exemplo: Você já parou para pensar que expressões do nosso dia


a dia podem não ser entendidas tão facilmente por falantes de outras
línguas? É o caso da expressão “morrer de rir”, que pode não existir ou não
ser dita deste modo em outras línguas.

De modo geral, a tradução literária é um elemento bastante


importante no contexto da Literatura Comparada, porque uma análise
qualitativa dependerá da qualidade da tradução. Por isso, é importante
que o tradutor conheça não só a língua, mas – como já mencionado
anteriormente – as nuances linguísticas, as construções culturais, as
figuras de linguagem existentes naquela língua. Da mesma forma, a as
línguas estrangeiras também têm suas marcas sociais, esses detalhes são
importantes, tanto para a tradução, como para a análise comparada, uma
vez que esses elementos que ficam “nas entrelinhas culturais” da língua
possibilitam a construção de uma análise consistente.

Além disso, é relevante conhecer o contexto social que a obra


enfoca, assim como suas diferenças sociais, já que um determinado livro
literário pode abordar essas diferenças. Livros que abordam relações
entre personagens de diferentes classes sociais, por exemplo, necessitam
desse enfoque.

Para concluir nossa discussão, existem muitas reflexões acerca da


constituição da tradução literária, e essa se tornou objeto de estudos da
Literatura Comparada por considerar-se que, como um campo do saber
46 Literatura Comparada

que analisa obras de diferentes nacionalidades, para que se estabeleça


relações de comparação e de diferenciação fidedignas entre as obras, é
necessária uma tradução que seja profundamente conhecedora da língua
original em que a obra for escrita. Se o pesquisador próprio a traduzirá,
ou se utilizará um volume já traduzido, dele levar em conta que tipo de
tradução foi realizada, para que as preciosidades daquela língua não se
percam. Claro, isso também é complexo, pois se o pesquisador também
não conhece aquela língua, em sua análise podem passar despercebidos
elementos importantes daquela cultura.

Claro, como mencionamos anteriormente, a linguagem do texto


não é a única preciosidade que ele possui, mas é essencial para que,
juntamente com outras características literárias que a obra possui, a
Literatura Comparada possa estabelecer e exercer seu papel.

SAIBA MAIS
Quer se aprofundar neste tema? Recomendamos os
seguintes materiais complementares:
PERISEÉ, Gabriel. Literatura & Educação. 1 ed. Belo
Horizonte: Autêntica, 2006.
VEREDA LITERÁRIA – Tânia Franco Carvalhal fala sobre
Literatura Comparada. Disponível em: https://bit.ly/3cYfak3.

RESUMINDO
E então? Gostou do que lhe mostramos? Aprendeu mesmo
tudinho? Agora, só para termos certeza de que você
realmente entendeu o tema de estudo deste capítulo,
vamos resumir tudo o que vimos. Nessa unidade, você
aprendeu que os principais elementos que constituem
a linguagem literária, e que diferenciam textos literários
de textos não-literários. A definição e o contexto histórico
da Literatura Comparada, que como ciência, vem se
desenvolvendo desde o século XIX. Os principais autores
que contribuíram para o desenvolvimento da Literatura
Comparada. Os pressupostos em relação à Literatura
Comparada e à tradução.
Literatura Comparada 47

BIBLIOGRAFIA
ANDRADE, Carlos Drummond de. Procura da Poesia. Editora: Companhia das
Letras, 1945. Disponível em: https://books.google.com.br/books/about/A_
rosa_do_povo.html?id=flJioZ6hV0UC&printsec=frontcover&source=kp_
read_button&redir_esc=y#v=onepage&q&f=false. Acesso em: 13/03/2020.

BEHR, N., s/d Receita. Rádio Cultura FM. Disponível em: http://culturafm.
cmais.com.br/radiometropolis/lavra/nicolas-behr-receita Acesso em: 21
jan. 2020.

BERMAN, Sandra. Literatura Comparada: Algumas observações. In: Fórum


II: Traduction et Traducteurs / Translation and Translators, publicado
na Revista Recherche Littéraire / Literary Research da Associação
Internacional de Literatura Comparada (v. 26, Summer 2010) Disponível
em: <https://seer.ufrgs.br/translatio/article/view/36683/23750>. Acesso
em: 12 mar., 2020.

LEGIÃO URBANA. Monte Castelo. As Quatro Estações. Brasília, EMI, 1989.

CAMÕES, L. V. Sonetos. Clássicos da Literatura. Editora: Ciranda Cultural,


2017.

CARVALHAL, Tania Franco. Literatura Comparada. 4 ed. São Paulo: Ática,


Série Princípios, 2006.

D’ONOFRIO, Salvatore. Forma e sentido do texto literário. 1 ed. São Paulo:


Ática, 2007.

FILHO, Domício Proença. A linguagem literária. 7 ed. São Paulo: Ática,


Série Princípios, 2004.

GÊNESIS, 11:1-8. S/d. disponível em: <https://www.biblegateway.com/pas


sage/?search=G%C3%AAnesis+11%3A1-9&version=OL> Acesso em: 21 jan.,
2020.
48 Literatura Comparada

GUYARD, Marius-François. Objeto e Método da Literatura Comparada.


In: COUTINHO, Eduardo F.; CARVALHAL, Tania Franco. (orgs.). Literatura
Comparada: textos fundadores. 1 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p. 97-
107.

MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos Literários. São Paulo: Editora


Cultrix, 2004.

PERISEÉ, Gabriel. Literatura & Educação. 1 ed. Belo Horizonte: Autêntica,


2006.

RODRIGUES, S. V. A Literatura Comparada e os Estudos de Tradução:


Algumas direções da pesquisa ocidental contemporânea. UFRGS. Rio
Grande do Sul, 2010.

SOUZA, Roberto Acízelo de. Teoria da literatura. 9 ed. São Paulo: Ática,
Série Princípios, 2000.

VEREDA LITERÁRIA – Tânia Franco Carvalhal fala sobre Literatura


Comparada. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QhjMI-
0R9mI Acesso em: 26 jan., 2020.

VERÍSSIMO, Érico. Incidente em Antares. s/ed. São Paulo: Círculo do Livro,


s/d, cap. XVIII.

Entenda o perigo de uma tradução ao pé da letra! 2017. Disponível em:


http://2tr.com.br/entenda-o-perigo-de-uma-traducao-ao-pe-da-letra/ .
Acesso em: 12 mar., 2020.
Literatura Comparada 49

Livro Didático Digital

Éderson da Cruz

Você também pode gostar