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Aspectos

Socioantropológicos

A Função Social na Escola


Diretor Executivo
DAVID LIRA STEPHEN BARROS
Gerente Editorial
CRISTIANE SILVEIRA CESAR DE OLIVEIRA
Projeto Gráfico
TIAGO DA ROCHA
Autoria
WILLYANS MACIEL
AUTORIA
Willyans Maciel
Sou Mestre em Filosofia (UFPR), na área de Filosofia da Ciência e
Ciência Cognitiva, com formação complementar em Bioética (Georgetown
University), Transtorno do Espectro Autista (University of California,
Davis) e Fatores de Risco das Doenças (UCS). Tenho experiência na área
administrativa educacional e na docência, por isso conheço os desafios
que o educador enfrenta em diferentes níveis, e ministro aulas de Políticas
Públicas, Antropologia, Ética, Bioética e Deontologia, entre outras, desde
2012. Também sou autor de mais de 30 livros didáticos para Ensino Superior
(graduação e pós-graduação) para diferentes instituições de ensino. Em
minha trajetória profissional já passei por grandes universidades, como
a Pontifícia Universidade Católica do Paraná e por instituições iniciantes,
focadas no ensino à distância, como a Uninter e a Faculdade São Braz.
Também sou redator de entradas enciclopédicas de temas em ciência,
ética e políticas públicas, além de publicar diversos artigos em jornais e
revistas científicas, a fim de divulgar o conhecimento teórico-científico,
estimulando o aperfeiçoamento da sociedade brasileira. Tenho uma
abordagem prática e objetiva dos conteúdos teóricos e prefiro que o
estudante seja capaz de absorver uma única ferramenta que vai aplicar
no seu dia a dia do que decorar centenas de conceitos que não consegue
aplicar. Espero que este material lhe auxilie em seu desenvolvimento
profissional e que você seja capaz de aplicar os conhecimentos com a
presteza e coragem necessárias ao educador.
ICONOGRÁFICOS
Olá. Esses ícones irão aparecer em sua trilha de aprendizagem toda vez
que:

OBJETIVO: DEFINIÇÃO:
para o início do houver necessidade
desenvolvimento de de se apresentar um
uma nova compe- novo conceito;
tência;

NOTA: IMPORTANTE:
quando forem as observações
necessários obser- escritas tiveram que
vações ou comple- ser priorizadas para
mentações para o você;
seu conhecimento;
EXPLICANDO VOCÊ SABIA?
MELHOR: curiosidades e
algo precisa ser indagações lúdicas
melhor explicado ou sobre o tema em
detalhado; estudo, se forem
necessárias;
SAIBA MAIS: REFLITA:
textos, referências se houver a neces-
bibliográficas e links sidade de chamar a
para aprofundamen- atenção sobre algo
to do seu conheci- a ser refletido ou dis-
mento; cutido sobre;
ACESSE: RESUMINDO:
se for preciso aces- quando for preciso
sar um ou mais sites se fazer um resumo
para fazer download, acumulativo das últi-
assistir vídeos, ler mas abordagens;
textos, ouvir podcast;
ATIVIDADES: TESTANDO:
quando alguma quando o desen-
atividade de au- volvimento de uma
toaprendizagem for competência for
aplicada; concluído e questões
forem explicadas;
SUMÁRIO
Conceito de Função Social em sua Origem e Aplicação............. 10
Função Social: Relevância da Clareza..............................................................................10
Origem e Desenvolvimento.................................................................................. 13
Uso Técnico e Popular.............................................................................................. 15
Diferentes Tipos de Função.................................................................................. 16
Críticas e Reformulação.............................................................................................................. 19
Função Social não é Ideológica............................................................................................ 21
A Função Social na Escola........................................................................ 24
Retomada Pedagógica da Finalidade...............................................................................24
Transformações e Interdisciplinaridade.......................................................25
O Direito como Aspecto Sociológico.............................................................26
A Dupla Finalidade da Escola.................................................................................................28
Transmissão do Conhecimento Formal........................................................29
Formação Humanística............................................................................................. 31
Problemas Relacionados à Prática Pedagógica............................. 34
Complexidade da Sociedade..................................................................................................34
Bordieu e Kant sobre a Relação Entre Escola e Indivíduo.................................35
Filosofia Educacional Normativa.......................................................................................... 38
Filosofias Educacionais Normativas............................................................... 40
Combinação de Metodologias...............................................................................................44
O Trabalho Avaliativo Considerando a Questão da
Afetividade......................................................................................................46
A Questão da Afetividade na Antropologia e na Sociologia da
Educação............................................................................................................................................... 46
Barreiras e Interação Social - Uma Questão de Afetividade Prática..........47
Avaliação e Afetividade.............................................................................................................. 49
Afetividade e o Papel do Professor no Contexto Social do Estudante..... 51
Aspectos Socioantropológicos 7

04
UNIDADE
8 Aspectos Socioantropológicos

INTRODUÇÃO
Falar em aspectos socioantropológicos, especialmente em
Educação, não é apenas falar sobre Sociologia e Antropologia, como áreas
de pesquisa, mas também, falar sobre como a Educação se relaciona com
a sociedade (aspecto sociológico) e com a organização e comportamento
das pessoas (aspecto antropológico) e para fazê-lo é preciso adentrar em
outros aspectos do comportamento humano.

Antes de qualquer apresentação é preciso se perguntar:

•• Qual a finalidade das ações do educador?

•• Há uma estratégia para atingir essa finalidade?

Ao investigar estas perguntas, o estudante atento se depara


com diversas questões contemporâneas, entre elas a afetividade, o
equilíbrio entre os diferentes fatores de aprendizagem, a organização
e a complexidade da sociedade e as diversas interpretações dessa
complexidade.

A tarefa que se tem adiante não é fácil e nem deveria ser, muitas
das questões que serão abordadas estão em aberto ou não têm uma
resposta única, mas exigem a combinação de metodologias e uma mente
disposta a encarar desafios.

Não obstante, o resultado é gratificante, conseguir converter


elementos teóricos socioantropológicos em estratégias práticas que
podem levar sentido à educação de crianças, jovens e adultos brasileiros
em todos os níveis de ensino e condições, ajudando a aperfeiçoar a
sociedade e proteger o que já foi conquistado. Está disposto a vencer este
desafio? Eu espero que sim.
Aspectos Socioantropológicos 9

OBJETIVOS
Olá. Seja muito bem-vindo à Unidade 4 – A Função Social na
Escola. Nosso objetivo é auxiliar você no desenvolvimento das seguintes
competências profissionais até o término desta etapa de estudos:

1. Definir o conceito de função social em sua origem e aplicação.

2. Aplicar o conceito de função social à escola, como finalidade.

3. Identificar e solucionar problemas sociais relacionados à prática


pedagógica.

4. Executar com eficiência o trabalho avaliativo, considerando a


questão da afetividade.

Com estas competências em mente, avançaremos pela investigação


das questões contemporâneas que afetam o trabalho educacional de um
ponto de vista socioantropológico, de modo objetivo e prático.
10 Aspectos Socioantropológicos

Conceito de Função Social em sua Origem


e Aplicação

OBJETIVO:

Nesta unidade, você irá conhecer a origem do termo função


social, ainda utilizado e, por vezes, não compreendido,
nas discussões sobre o papel da escola na sociedade
contemporânea. Entenderá, ainda, algumas das implicações
desse conceito como originalmente concebido e como ele
tem mudado ao longo do tempo.

Função Social: Relevância da Clareza


O termo função social é, ainda hoje, muito utilizado em diversas
discussões sobre o papel da escola na sociedade, convertendo-se assim
em uma aparente questão sociológica e antropológica.

De modo simplista, se pode dizer que a função social é qualquer


contribuição de uma instituição para o todo de um sistema do qual essa
instituição faz parte. Esse sistema, naturalmente, é a própria sociedade
ou organizações menores da sociedade, como as esferas de uma
organização estatal, no Brasil, geralmente, se divide a organização em
esfera municipal, estadual e federal.

Descrita dessa forma, a função social parece relativamente simples,


mas, ao mesmo tempo, parece um conceito vago que não se consegue
visualizar, exatamente, como se aplica na prática.

O que essa dificuldade mostra é que há mais para se falar sobre


função social do que essa descrição genérica, embora ela possa funcionar
em um primeiro momento como uma definição operacional, ou seja,
vamos iniciar com ela por hora e mais adiante entraremos nas diversas
nuances desse conceito.
Aspectos Socioantropológicos 11

IMPORTANTE:

Ocorre com muitos conceitos, e a função social não é


exceção, que mesmo entre alguns pesquisadores, às
vezes, o termo é mal compreendido ou mal- empregado,
provocando distorções e dificuldade de dialogar com
outras áreas.

O trabalho com educação é multiprofissional em sua base, afinal,


cada professor é de uma área, a equipe administrativa é formada de
profissionais de diversas áreas. No caso de se trabalhar com alunos
com necessidades educativas especiais, frequentemente, é preciso
se relacionar com profissionais da saúde, e a lista poderia continuar,
indefinidamente.

DEFINIÇÃO:

Necessidade Educativa Especial é um conjunto de


necessidades apresentadas por um estudante, que difere
do que é típico para a sua idade ou nível educacional,
demandando atenção direcionada, frequentemente,
individualizada como resposta a uma dificuldade. Essa
dificuldade pode ter origem em uma causa biológica, como
uma deficiência, ou em uma causa não biológica, como as
diversas dificuldades de aprendizagem com origem no
ambiente.
12 Aspectos Socioantropológicos

Figura 1- Inclusão escolar

Fonte: Freepik

Assim, a falta de clareza conceitual sobre um termo que é,


amplamente, utilizado pode levar os profissionais a adotarem práticas
errôneas ou inadequadas e a não serem capazes de progredir em suas
áreas, abordando a educação de um ponto de vista, com base em
evidências, mas apenas trabalhando a partir de preferências pessoais.

VOCÊ SABIA?

Clareza conceitual é um dos pilares da filosofia analítica,


a forma contemporânea de realizar as investigações
especulativas na tradição anglo-saxã. Saiba mais sobre
esta linha de investigação, clicando aqui.

Não é preciso muita análise para compreender que, quando se trata


de um termo que parece tratar do próprio propósito da escola, isso pode
ser um problema ainda mais grave e mais urgente de ser sanado. Por essa
razão, vamos investigar a origem e o desenvolvimento do conceito de
função social.
Aspectos Socioantropológicos 13

Origem e Desenvolvimento
O termo função social tem sua origem com os pensadores
da Sociologia, conhecidos como funcionalistas estruturais. Desses o
mais famoso é Émile Durkheim, sobre o qual certamente já se tratou
extensivamente.
Figura 2 - Émile Durkheim

Fonte: Wikimedia
14 Aspectos Socioantropológicos

IMPORTANTE:
Não vamos nos prender apenas ao trabalho de Durkheim,
que já é relativamente antigo e carece de atualização.
Vamos abordar as investigações e desenvolvimentos mais
contemporâneos sobre a questão da função social da escola.

Não obstante, é necessário entender bem o que Durkheim e outros


funcionalistas tinham em mente, quando utilizavam o termo função social,
afinal, é neles que se origina esse termo e se desejamos apresentar uma
abordagem, a partir do paradigma da clareza conceitual, é necessário
compreender essa origem.

O conceito de função social é desenvolvido na sua forma complexa


no funcionalismo estrutural, proposto por Émile Durkheim, sob influência
de seu antecessor Auguste Comte, mas sem ignorar os desenvolvimentos
de educadores e antropólogos do final do século XIX, como Herbert
Spencer.

Os funcionalistas abordavam a sociedade como um organismo,


alegoricamente, o corpo e as instituições como seus órgãos.

Na sociedade funcionalista, as instituições trabalham a partir do


conceito de solidariedade orgânica, na qual cada instituição cumpre um
papel específico para a manutenção da sociedade como um todo, assim
como os órgãos cumprem cada um sua função para a manutenção do
corpo.

Existe uma interdependência que, segundo Durkheim, abre margem


para a mobilidade social e para a sofisticação das relações humanas.

IMPORTANTE:
O fato de que o termo função social tem origem funcionalista
não significa que toda vez que alguém usa esse termo
o faz em sentido funcionalista. Há outras abordagens e
reinterpretações do termo.
Aspectos Socioantropológicos 15

Uso Técnico e Popular


Para além da definição operacional descrita aqui, é preciso
compreender dois sentidos em que o termo função social é utilizado. São
eles:

•• Uso popular.

•• Uso técnico.

No uso popular, ou uso do senso comum, a ideia de função sempre


se liga a alguma coisa produtiva, uma atitude ou o resultado de uma
atividade que produz algo em sociedade, estimula o funcionamento das
relações humanas ou traz algum benefício.

O uso técnico, por outro lado, é a forma como os sociólogos


utilizam o conceito de função social. Esse uso nem sempre é benéfico,
uma função social pode ter caráter disfuncional, por mais contra intuitivo
que isso pareça.

Em seu uso técnico, o conceito de função social é visto como parte


de um conjunto complexo de causa que é adequadamente descrito, a
partir de um grafo em árvore, ou seja, uma representação gráfica de um
sistema em que diversas causas em conjunto geram efeitos que podem
vir a ser causas de outros efeitos.
Figura 3 - Grafo acíclico convexo em árvore

Fonte: Wikimedia
16 Aspectos Socioantropológicos

Como se pode ver na figura 3, o grafo representa um sistema mais


complexo do que uma situação de causalidade simples em que uma
atividade causa um efeito específico.

IMPORTANTE:

Os grafos são muito utilizados para representação


de interações complexas na Sociologia e podem ser
ferramentas interessantes de se utilizar, também, em sala
de aula.

Diferentes Tipos de Função


De acordo com Merton (1949), função social não é uma coisa só,
na acepção funcionalista, especialmente, na forma como ela é vista
atualmente. Cada instituição pode desempenhar mais de uma função na
sociedade e pode ter vários tipos de função.

As funções podem ser classificadas pela evidência ou pelos efeitos


que produzem. Quanto à evidência, elas podem ser:

•• Funções evidentes.

•• Funções latentes.

As funções evidentes são aquelas que os fundadores ou agentes


de uma instituição de fato almejam, quando mantêm essa instituição em
funcionamento. Então, por exemplo, uma função evidente da escola seria
a mediação do conhecimento.

Essa função é mais facilmente compreendida pelos usuários da


escola e pelas outras instituições da sociedade.

A função latente, por seu turno, é involuntária e nem sempre


percebida por todos os agentes envolvidos. No caso da escola, por muito
tempo, a socialização foi uma função latente.
Aspectos Socioantropológicos 17

As pessoas enviavam seus filhos para a escola para que


adquirissem conhecimento das ciências, da literatura, da matemática e
de todas as disciplinas do saber humano adequadas para o momento de
desenvolvimento humano daqueles indivíduos.

Mas uma vez lá, os indivíduos, além de receberem o conhecimento


formal, se relacionavam com outros e aprendiam sobre o comportamento
da sociedade. Eram expostos a culturas diferentes e se conectavam com
pessoas com as quais talvez não tivessem se relacionado em outras
situações.

Essas relações produziam uma sofisticada compreensão da


sociedade e de seu funcionamento e a essa compreensão, quase intuitiva,
chamamos socialização.

EXPLICANDO MELHOR:

A socialização não era o objetivo inicial da escola, mas ela


acabou por cumprir também essa função em sociedade e
hoje a socialização é de fato vista como parte do papel da
escola, como será abordado em detalhes no próximo item.

Quanto aos efeitos, as funções sociais podem ser:

•• Funções com efeitos positivos.

•• Funções com efeitos negativos.

Para Merton (1949), uma função social com efeitos positivos pode ser,
ainda, uma função com efeitos funcionais. Isto parece uma redundância,
mas indica que a instituição é recompensadora em relação a determinados
desenvolvimentos e ao sucesso em certos empreendimentos.

EXEMPLO:

A empresa também recompensa a qualidade do trabalho e o risco


assumido.
18 Aspectos Socioantropológicos

Uma função com efeitos negativos é dita disfuncional e trata das


instituições punitivas. Função disfuncional pode parecer um contrassenso,
mas o que é disfuncional não é a função em si, mas a instituição, pois ela
tem o papel de quebrar uma sequência de eventos por meio da punição.

EXEMPLO:

O exemplo clássico desse tipo de efeito é a prisão, pois trabalha a


partir do conceito de punição para proteger a sociedade, que segundo
Merton (1949) pode ter efeitos negativos na formação dos indivíduos ali
detidos.

Os desenvolvimentos de Merton(1949) nessa área foram importantes,


por exemplo, para o desenvolvimento da educação prisional, também,
chamada de pedagogia no sistema prisional, uma área relativamente
recente, mas que apresenta resultados dignos de nota na prevenção da
reincidência e na reintegração de criminosos de baixa periculosidade à
sociedade.

VOCÊ SABIA?

Embora pouco trabalhada na maior parte das graduações


em pedagogia e nas licenciaturas, a pedagogia prisional
é uma área em franco desenvolvimento com diversas
oportunidades de trabalho em todos os estados brasileiros.

A importância dessas classificações, feitas por Merton(1949), é


que os efeitos nas instituições podem parecer confusos, quando se
observa sem profundidade, mas ao investigar mais atentamente, pode-se
perceber que algumas delas estão desempenhando funções diferentes
daquelas que se esperava, às vezes, até contrárias às que se objetivava,
inicialmente.

Uma instituição pode ser vista como um empecilho para que certa
finalidade seja atingida e, com algum estudo, pode-se perceber que na
verdade, de modo latente, ela auxilia nessa finalidade.
Aspectos Socioantropológicos 19

O contrário também pode ocorrer: cria-se uma instituição para


auxiliar a eliminar um problema na sociedade e ela pode acabar por
contribuir para agravar o problema. Esse caso pode ser visto em diversas
políticas públicas ao longo da história humana, especialmente, aquelas
mais intervencionistas.

Devido a essa complexidade, é preciso tratar a educação de modo


metodológico e ter atenção constante a esses métodos utilizados, suas
interrelações e seus efeitos, como será abordado mais adiante nessa
unidade, ao se falar das Filosofias Educacionais Normativas, um tipo
de metodologia que une conhecimentos da Sociologia, Antropologia,
Psicologia, Pedagogia e Filosofia da Educação.

Críticas e Reformulação
A principal crítica ao conceito de função social, como abordado pelos
funcionalistas, é a de que se a sociedade é um organismo, semelhante a
um corpo, há uma seleção de órgãos prioritários.

Essa seleção pode levar aquelas instituições, consideradas de


menor importância pelo status quo, a se degradarem e desaparecerem,
um fenômeno que nem sempre se realiza e que, quando se realiza, tende
a destruir aspectos importantes da cultura e das tradições.

EXEMPLO:

Os positivistas, especialmente Comte, e, em menor medida os


funcionalistas estruturais, defendiam que conforme a ciência avançasse, a
religião perderia força, cada vez mais, até desaparecer. A primeira metade
do século XX provou que essa suposição era incorreta, pois as religiões
avançaram em número de fiéis, embora tenham de fato enfraquecido em
termos de influência na sociedade, um processo conhecido em Sociologia
como secularização.

A partir dessa crítica e da preocupação dos educadores em


não desperdiçar os avanços, conquistados por aspectos culturais da
civilização, desenvolveu-se uma nova forma de compreender o conceito
de função social, especialmente, quando aplicado à educação.
20 Aspectos Socioantropológicos

IMPORTANTE:

Essa nova forma teria por base a união dos dois usos do
termo função social: o uso popular e o uso técnico.

O uso técnico representa a compreensão dos conceitos da


Sociologia e da Antropologia que podem ser aplicados à educação
para melhor compreender as nuances do papel da escola e da própria
educação na sociedade.

O uso popular, por seu turno, garante a manutenção dos


aspectos culturais ou tradicionais da civilização que contribuíram para
os desenvolvimentos benéficos e produtivos, identificados nos séculos
anteriores e que trouxeram a civilização para o estágio atual.

REFLITA:

Trata-se de uma valorização da cultura, das diferenças


individuais, da relação entre a escola e a família, entre
diversos outros aspectos.

Essa abordagem leva em consideração alguns itens que serão


apresentados na próxima seção, mas que podem ser adiantados como:

•• Esclarecimento como conceito relevante.

•• Filosofia Educacional Normativa.

•• Influência de áreas outras, além da Sociologia e Antropologia.

•• Os aspectos empíricos verificados na educação.


Aspectos Socioantropológicos 21

Função Social não é Ideológica


É comum a preocupação de que a ideia de função social seja vista
como uma abordagem ideológica, que tem por objetivo implantar certo
tipo de padrão de pensamento na sociedade.

Isso pode ser utilizado de tal maneira, mas não é o propósito das
investigações sobre função social. A função social em si, especialmente
nessa nova abordagem, não depende de uma ideologia específica, mas
se liga à interpretação do funcionamento da sociedade.

IMPORTANTE:

Sempre haverá ideologia, mas o aprendizado que surge


dessa discussão é o de que a escola, como um ambiente
multicultural e de interação, deve manter-se aberta para as
discussões, sem limitar-se a alguma ideologia.

A escola e os educadores devem oferecer as ferramentas para


que os estudantes possam interpretar sua sociedade, observando os
diversos pontos de vista, mas a escola e os educadores nunca devem
dizer aos estudantes qual deve ser o conteúdo de suas convicções, ou
seja, é dever dos educadores não induzir os estudantes a aderir a uma
ou outra convicção ideológica. “Tenta-se levar essa análise até a medida
em que o próprio ouvinte se ache em condições de encontrar o ponto a
partir do qual poderá tomar posição, em função de seus ideais básicos”
(WEBER,1983 p. 18).

Progressistas ou conservadores, liberais clássicos, libertários


ou socialdemocratas, seja qual for a convicção ideológica com a qual
os estudantes irão se identificar, o educador deve, na medida de seu
conhecimento e capacidade, apresentar todas as nuances, vertentes,
vantagens e desvantagens conhecidas para que os estudantes tenham
ferramentas para entender “como pensar” e nunca coagi-los quanto ao “o
que pensar”.
22 Aspectos Socioantropológicos

Assim, o conceito de função social pode ter sido formulado pelos


funcionalistas, mas de modo algum se restringe a eles, é preciso uma
abordagem mais ampla para que se possa efetivamente discutir as
questões do nosso tempo e os debates nos quais se envolvem os
indivíduos dessa sociedade que é tão complexa quanto possível.

SAIBA MAIS:

Caso queira se aprofundar no assunto acesse o artigo


científico Ciência e ideologia na prática dos professores de
Sociologia no Ensino Médio: da neutralidade impossível ao
engajamento indesejável, ou seria o inverso?” de Amaury
Moraes, publicado na revista Educação & Realidade, que
faz uma importante reflexão sobre a relevância e o papel
dos conceitos e métodos da Sociologia na educação, na
escola e no trabalho dos educadores, clicando aqui.
Aspectos Socioantropológicos 23

RESUMINDO:

Neste capítulo, você deve ter compreendido o conceito


de função social em sua origem e aplicação. Essa é a
competência que procuramos trabalhar desde o início do
capítulo, desenvolvendo-a a partir de alguns tópicos de
relevância. Primeiro, exploramos a importância da clareza
conceitual, você deve manter essa abordagem sempre
em mente para ser capaz de relacionar os conceitos
da Sociologia e Antropologia com a educação, mas
também para dialogar de modo produtivo com diferentes
profissionais que compõem as equipes multiprofissionais,
presentes nas escolas e em outros ambientes educacionais.
Compreendido esse importante passo, exploramos a
origem e desenvolvimento do conceito de função social
para que você desenvolva a compreensão das nuances
de uso do termo, conhecendo sua história e as diferentes
interpretações. Dentre essas interpretações, algumas
tiveram mais relevância, especialmente, a classificação
proposta por Merton (1949) sobre os tipos de função
(evidente e latente) e seus efeitos (positivos e negativos)
que contribui para compreendermos a complexidade
das instituições que compõem a sociedade atual. Porém,
nada é livre de críticas, especialmente, quando se trata de
áreas do conhecimento tão amplas quanto à Sociologia
e a Antropologia, assim as críticas ao conceito de função
social foram abordadas e você descobriu como o conceito
foi reformulado para melhor atender à sociedade atual e os
objetivos da educação. Por fim, uma ressalva foi feita quanto
à importância de se manter a educação, em sua função
social, livre da influência ideológica direta, a importância
de oferecer aos estudantes as ferramentas, mas nunca os
coagir quanto ao que devem pensar ou a qual convicção
devem aderir.
24 Aspectos Socioantropológicos

A Função Social na Escola

OBJETIVO:

Ao final deste capítulo, você desenvolverá uma


compreensão mais aprofundada do propósito da escola, a
partir dos conceitos sociológicos e antropológicos, agora
não mais como função social, mas como finalidade. De
fato, uma dupla finalidade que se manifesta na mediação
do conhecimento formal e na formação humanística..

Retomada Pedagógica da Finalidade


A Pedagogia, como ramo de investigação e intervenção educacional,
considera as contribuições funcionalistas, mas retoma, também, conceitos
importantes, tanto anteriores quanto posteriores à Sociologia, para
compreender a sociedade complexa atual e poder oferecer contribuições
relevantes.

Ao se considerar os aspectos socioantropológicos da Educação,


uma das principais conclusões é que, ao mesmo tempo, que tem
uma função específica em nossa sociedade, a escola também age de
modo dinâmico, identificando as necessidades, compreendendo a
individualidade e o papel da cultura na formação dos indivíduos.

Assim, não poderia se prender a uma abordagem única, seja ela


da Sociologia, Antropologia ou de qualquer outra área, mas deve fazer
uso dessas abordagens para aperfeiçoar seu papel de transformadora e
influenciadora do aperfeiçoamento.

Tanto do aperfeiçoamento individual, quanto do aperfeiçoamento


da sociedade, por meio de cada pessoa que participa dos processos de
ensino e aprendizagem, o educando quanto o educador, e até mesmo as
famílias.
Aspectos Socioantropológicos 25

Para que isso possa ser feito é preciso utilizar-se de métodos


eficientes, pois método algum pode surtir efeito, se os objetivos não
forem claros.

Por essa razão, o próximo passo, nessa investigação das questões


socioantropológicas contemporâneas que afetam a educação, será a
questão da finalidade da escola.

REFLITA:

Se o conceito de função social teve de ser ampliado e revisto,


pois não estava totalmente adequado para a educação,
especialmente a educação inclusiva contemporânea, é
preciso agora encontrar outra finalidade, mais condizente,
para a educação, a escola e a motivação dos educadores.

Transformações e Interdisciplinaridade
O século XX foi de muitas transformações, de uma complexificação
sem par na sociedade. Entre as características desse século, que afetam
a Educação, destacam-se:

•• Ampliação da relevância da ciência no cotidiano.

•• Estudos estatísticos em educação.

•• Reformulação da filosofia.

•• Ampliação da diversidade cultural.

•• Aumento da mobilidade social.

IMPORTANTE:

Há outras características, mas essas já nos permitem


perceber o quanto a sociedade e a educação sofisticaram-
se no século passado, e como isso levou a um
desenvolvimento acelerado neste século.
26 Aspectos Socioantropológicos

Com esse desenvolvimento, a abordagem da Educação passou


a ser, cada vez mais, interdisciplinar. É claro que o papel das disciplinas
específicas não pode ser desprezado, afinal, uma sociedade com mais
conhecimento precisa organizar esse saber, pois ninguém seria capaz de
estudar todas as áreas de forma caótica.

Mas a relação entre as disciplinas, especialmente na pesquisa,


mostrou pontos importantes que antes eram menosprezados, por
exemplo, o papel da socialização na escola e a influência do ambiente
escolar na formação da conduta adequada dos indivíduos.

Essas contribuições vieram da filosofia, da sociologia, da estatística,


da psicologia, fisioterapia, medicina, antropologia e diversas áreas,
mas como afetam, principalmente, a forma como os seres humanos
interagem em sociedade, são geralmente classificadas como aspectos
socioantropológicos.

IMPORTANTE:

Tais desenvolvimentos levaram a mudanças de perspectivas


tão fortes que influenciaram a legislação brasileira.

O Direito como Aspecto Sociológico


Especialmente, por vivermos em uma sociedade deontológica, as
decisões têm base no dever, e por isso, os deveres devem estar bem
claros.

VOCÊ SABIA?

Uma sociedade deontológica é aquela que se baseia na


deontologia, também chamada de Teoria do Dever, que
tem no conceito de Imperativo Categórico o seu princípio
fundamental. Saiba mais, clicando aqui.
Aspectos Socioantropológicos 27

O Direito (sistema de leis), assim como a moral e a ética, é um


aspecto fundamental da sociedade, e por isso não pode ser ignorado,
quando se busca compreender a finalidade de uma instituição.

Para além da Constituição da República Federativa do Brasil,


a principal lei que regula a Educação é a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional, de 1996. Essa lei no Art. 22º define a finalidade da
Educação da seguinte maneira: “A Educação Básica tem por finalidade
desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável
para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no
trabalho e em estudos posteriores.» (BRASIL, 1996).

Seria possível argumentar, como o fazem alguns autores, que


essa passagem da LDB de alguma maneira apresenta uma descrição do
que seria a função social da Educação Básica, consequentemente, da
educação formal e da escola.

No sentido expandido do conceito de função social, é possível de


fato afirmar isso, mas não em sentido restrito. Em outras palavras, essa
finalidade, apresentada na LDB, conecta-se muito mais com o Princípio
da Individualidade e o papel voluntário que cada educando decidirá
desempenhar na sociedade, que depende dos conhecimentos mediados
na educação formal, do que uma função social em sentido orgânico,
como era o caso da função social no funcionalismo estrutural.

DEFINIÇÃO:

Princípio da individualidade: é o princípio segundo o qual


cada ser humano é único em suas habilidades, capacidades,
dificuldades e potencial, tanto de um ponto de vista
biológico, quanto comportamental. Em termos morais,
esse princípio exige que a autonomia seja respeitada como
expressão dos direitos individuais.
28 Aspectos Socioantropológicos

É uma visão de finalidade mais dinâmica do que aquela proposta


por autores como Durkheim, uma finalidade que depende dos anseios
e do melhor interesse dos indivíduos, mas que, ao mesmo tempo, os
direciona para o aperfeiçoamento.

Uma finalidade mais conectada com as características


contemporâneas e que, por isso pode ser incluída na legislação, para dar
orientação aos agentes educacionais.

A Dupla Finalidade da Escola


Reunindo os elementos até aqui abordados, pode-se concluir que
a escola não tem uma função simples na sociedade, mas um conjunto de
elementos que procura realizar.

Essa visão apresenta complexidade e gera margem às diferentes


interpretações da escola que se vê manifesta nas variadas metodologias
e abordagens educacionais, como será vista no próximo item, ao se tratar
das Filosofias Educacionais Normativas.

A forma mais simples de se descrever a finalidade, ou até mesmo


o propósito, da Educação, é dizer que ela tem uma dupla finalidade. Esta
dupla finalidade da Educação, conforme Zeedyk et al (2014), manifesta-se
na maneira objetiva e subjetiva que ela afeta os estudantes, ou ainda, nos
seus elementos de desafio individual e de interação coletiva.

Os dois aspectos dessa dupla finalidade são:

•• Transmissão do conhecimento formal.

•• Formação humanística.
Aspectos Socioantropológicos 29

IMPORTANTE:

Para estimular a melhor compreensão, exploraremos cada


um desses dois aspectos da dupla finalidade da educação,
separadamente, mas é importante manter em mente,
como alertam Zeedyk et al(2014) que a educação é um
processo único e completo, assim, na prática, esses dois
aspectos estão conectados de forma, muitas vezes, difícil
de distinguir.

Transmissão do Conhecimento Formal


A finalidade primária da Educação é a transmissão do conhecimento
formal. Essa finalidade é considerada primária não como um demérito
para a formação humanística, que é a finalidade secundária, mas porque
a transmissão do conhecimento formal é o que gera sentido e conteúdo
para a existência da escola.

Se de alguma forma fosse possível que os aspectos da formação


humanística, que serão abordados adiante, fossem removidos, a escola
continuaria existindo, mas se o conhecimento formal for removido, a
escola perde sua distinção e passa a existir como uma mera concorrente
de outras associações.

REFLITA:

Sem a presença do conhecimento formal, não há motivo


para o estudante frequentar a escola, em vez de frequentar
um clube ou associação cultural.
30 Aspectos Socioantropológicos

Sagan (1976) explica que a sociedade contemporânea baseia-se


em quatro elementos cruciais:

•• Ciência.

•• Tecnologia.

•• Economia.

•• Liberdade.

IMPORTANTE:

Cada pessoa tem suas aptidões e preferências, mas


esses quatro elementos são básicos e não podem ser
menosprezados.

A ausência da compreensão de um desses quatro elementos


dificultará a interação dos indivíduos em sociedade e, certamente, criará
barreiras para seu desenvolvimento.

Assim, primariamente, a escola deve atuar como uma transmissora


do conhecimento formal com base nesses quatro elementos cruciais.
Ao desenvolver essa base de conhecimento, o indivíduo será capaz de
atuar, adequadamente, em sociedade e criticar aquilo que não estiver
funcionando ou puder ser aperfeiçoado.

Kincaid (2014) afirma que muitos autores, especialmente, aqueles


da Teoria Social, falam em transformar a sociedade, mas, geralmente,
não citam os elementos necessários para transformar ou, na melhor das
hipóteses, acusam aspectos gerais dos problemas identificados.

Segundo Coulon (1995), o conhecimento formal deve ser a base de


qualquer transformação na sociedade e a sua desvalorização é um risco
grave para a autonomia dos indivíduos.
Aspectos Socioantropológicos 31

Formação Humanística
A finalidade secundária da Educação trata do que se convencionou
chamar, especialmente, a partir de John Holt e Charlotte Mason, de
Formação Humanística.

NOTA:

O conceito de formação humanística pode ser amplo e


os autores muitas vezes divergem sobre alguns aspectos,
seja na forma como se deve estimulá-la ou nos itens que
compõem tal formação.

Não obstante, há dois elementos que normalmente fazem parte


deste conceito, desde autores mais progressistas como John Dewey até
conservadores em educação, como Allan Bloom.

Estes dois itens são:

•• Socialização.

•• Formação para a conduta.

A socialização trata do contato com outros indivíduos, mas um tipo


de contato organizado, pelas normas e pela estrutura da escola, que
simula uma sociedade em menor escala.

EXPLICANDO MELHOR:

A partir do que podemos chamar de processo de


socialização, ou seja, a partir de um contato recorrente
com outros indivíduos, mantido em um ambiente
organizado e controlado, mas que ao mesmo tempo
permite relações espontâneas de amizade e colaboração,
cada estudante a sua maneira começa a desenvolver a
compreensão das muitas normas, escritas e convencionais,
e do comportamento adequado em sociedade, que dele é
esperado.
32 Aspectos Socioantropológicos

Este resultado do processo de socialização é o que chamamos


de formação para a conduta e trata de uma compreensão sofisticada da
moral, da ética e do direito, quando aplicados ao convívio em sociedade,
ou seja, dos aspectos socioantropológicos destas áreas.

Isso é possível, pois a escola é, em geral, o primeiro ambiente


multicultural frequentado pelos indivíduos, convertendo-se assim em um
local de autodescoberta e compreensão dos diferentes papéis que cada
um executa em sociedade.

EXEMPLO:

Quando as campanhas esforçam-se para, por exemplo, evitar o


bullying nas escolas, não é apenas para proteger as crianças, embora
este seja o principal objetivo, mas para ensiná-las que esta é uma forma
inadequada de relação social.

Em termos antropológicos, o bullying é visto como uma


manifestação primitiva da tentativa de subjugar possíveis competidores
para se posicionar melhor socialmente.

É claro para qualquer educador que tenha compreendido os


aspectos econômicos e de liberdade da sociedade atual, que este modelo
de posicionamento social primitivo já foi superado por formas mais
sofisticadas que permitem, inclusive, a colaboração e o posicionamento
em sociedade de modo que os dois lados ganhem.

Porém, as crianças nem sempre são capazes de ver esta relação


complexa, e a partir dessa dificuldade, surgem as relações inadequadas,
como neste exemplo, o bullying.

Assim, ao estimular a colaboração e gerar um ambiente no qual os


estudantes possam perceber o “jogo de ganha-ganha” que é a relação
social adequada, a escola gera uma socialização saudável e promove nos
estudantes a compreensão da conduta adequada, cumprindo assim sua
finalidade secundária, a formação humanística, e facilitando a finalidade
primária, a transmissão do conhecimento formal.
Aspectos Socioantropológicos 33

SAIBA MAIS:

Caso queira se aprofundar no assunto, acesse o artigo


“Afinal, qual é a função social da escola?” de Katia Machado
que traz uma abordagem da relação entre o conceito de
função social e a socialização nas escolas brasileiras,
discutindo a questão da educação domiciliar e como outras
instituições colaboram com a socialização dos estudantes
e a relação entre educação, socialização e uso da internet
nas crianças do século XXI, clicando aqui.

RESUMINDO:

Neste capítulo, você deve ter compreendido que a função


social não é suficiente para descrever a complexidade
socioantropológica da educação atual e da escola como
instituição. Para explorar este tema foram discutidos autores
e conceitos que expandem a visão sobre como a escola
atua e qual a sua finalidade. Começando pela retomada
pedagógica e a complexidade da sociedade, a partir do
século XX, passando pela questão da interdisciplinaridade
e transformação, discutiu-se o Direito (sistema de leis)
como um aspecto sociológico. A partir disto, pode-se
compreender como a finalidade da Educação aparece na
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996,
influenciando as possibilidades de ação dos educadores.
Com este conjunto de elementos, concluiu-se que a
Educação tem uma dupla finalidade, dividida em finalidade
primária e finalidade secundária. A finalidade primária trata
da transmissão do conhecimento formal, sem a qual a
escola deixa de existir e a educação formal perde sentido.
A finalidade secundária, por seu turno, trata da formação
humanística que é composta pelo processo de socialização
e pelo aprendizado da conduta (moral, ética e direito), que
se reflete no comportamento adequado em sociedade.
34 Aspectos Socioantropológicos

Problemas Relacionados à Prática


Pedagógica

OBJETIVO:

Neste item serão abordadas metodologias conceituadas,


com base na Sociologia e na Antropologia, combinadas ao
desenvolvimento de outras áreas relacionadas à Educação,
para tornar o trabalho pedagógico mais eficiente. Em
particular, serão discutidas as Filosofias Educacionais
Normativas que fazem uso da combinação entre Sociologia,
Antropologia e Educação para resolver diversos problemas
da prática docente..

Complexidade da Sociedade
É importante compreender os aspectos de complexidade da
sociedade atual que destacam a importância de métodos e metodologias
específicos para lidar com essa complexidade.

REFLITA:

A educação formal é uma atividade complexa, que


acontece em um ambiente não menos complexo, a escola.

Isto ocorre não apenas pela complexidade do conhecimento


formal propriamente, mas, principalmente, por ser a própria sociedade
contemporânea de grande complexidade, uma sociedade composta
por diferentes culturas, variadas preferências individuais e necessidades
e uma variação maior na forma como as diferentes comunidades se
relacionam.
Aspectos Socioantropológicos 35

Há diversos fatores que descrevem esta complexidade, mas do


ponto de vista da escola, de acordo com autores como Coleman (1990), é
possível destacar alguns exemplos mais comuns. São eles:

•• Presença de necessidades educativas especiais.

•• Desafios geográficos.

•• Diferenças culturais.

•• Diferenças religiosas.

•• Vulnerabilidade econômica.

•• Vulnerabilidade social (como a violência urbana).

Para lidar com esta complexidade, as áreas que trabalham com


os aspectos socioantropológicos da educação recorreram a autores
atuais e clássicos para encontrar métodos que possibilitem superar esta
complexidade sem, no entanto, padronizar excessivamente a educação.

Bordieu e Kant sobre a Relação Entre


Escola e Indivíduo
Pierre Bordieu apud Fuller, 2009 retoma a questão da relação entre
a estrutura e o agente, uma questão trabalhada, anteriormente, pelo
filósofo do direito e estudioso da educação, Immanuel Kant.

EXPLICANDO MELHOR:

A estrutura trata da forma da sociedade, incluindo suas


instituições, como é o caso da escola; o agente é o próprio
educador, o membro da equipe pedagógica ou da equipe
administrativa e mesmo os familiares do educando.

Assim, a Sociologia e Antropologia da Educação retomam


investigações anteriores à própria Sociologia para compreender como
aplicar métodos para realizar a finalidade da educação.
36 Aspectos Socioantropológicos

Uma destas investigações trata das contribuições do filósofo do


Direito e estudioso da educação, Immanuel Kant (1724-1804).

NOTA:

Kant foi um dos primeiros autores a dar tratamento


específico à questão da finalidade da escola e da educação
formal, naturalmente, de uma maneira diferente daquela
feita pelos sociólogos, imediatamente posteriores como
Auguste Comte.

Mas se comparado à Émile Durkheim e Albion Small, os trabalhos de


Kant são relevadores sobre diversos aspectos sociológicos da educação,
especialmente:

•• Organização e disciplina.

•• Treinamento versus educação.

•• Respeito pela cultura.

•• Aspectos individuais.

VOCÊ SABIA?

Albion Small fundou o primeiro departamento de Sociologia


do mundo, na Universidade de Chicago. Fato ignorado
pela maioria dos livros de Sociologia do Brasil, devido
à formação, majoritariamente, com base na Sociologia
francesa e alemã. Consciente do histórico de pesquisa sobre
o comportamento e as relações humanas em sociedade,
o professor Small defendeu em sua obra a relação entre
a Sociologia e as demais áreas, especialmente, Filosofia,
Psicologia, Economia e a História. Por seu trabalho pioneiro,
ajudou ainda a fundar uma importante linha de pesquisa em
Sociologia que ficou conhecida como Interação Simbólica.
Aspectos Socioantropológicos 37

Kant abordou a ideia de que uma das finalidades evidentes da


escola era a disciplina. A partir desta finalidade, a organização das escolas,
quanto a seus horários e salas de aula, buscava reproduzir padrões,
conhecidos nas áreas profissionais, na formação militar e em outras
instituições disciplinares da sociedade.

VOCÊ SABIA?

O padrão de salas de aula utilizado até hoje na maioria


das escolas, foi estabelecido pela corrente escolástica
na Idade Média, que não apenas organizou a educação
como uma instituição da sociedade, mas instituiu a ideia
de transmissão do conhecimento formal como uma das
finalidades da escola. Saiba mais sobre esta corrente de
formação das escolas, acessando aqui.

Kant afirmava que a educação formal trataria da apreensão dos


padrões comportamentais esperados dos cidadãos, muitas vezes,
tratando os estudantes, a partir apenas de sua cidadania e do papel que
desempenhariam na sociedade, não como indivíduos autônomos.

Para Bordieu apud Fuller, 2009, esta forma ainda é visto como o
padrão de funcionamento das escolas por muitos educadores.

IMPORTANTE:

A despeito destas dificuldades, estes autores reconhecem


nos processos educacionais, com base na maior parte
das vezes na disciplina, o potencial para ir além do mero
treinamento, promovendo a educação de fato.

A diferença é que o treinamento prepara o indivíduo para


desempenhar um papel em sociedade, enquanto a educação prepara o
indivíduo de maneira mais global, para que possa pensar por si mesmo,
acerca do que está aprendendo.
38 Aspectos Socioantropológicos

A escola, para estes autores, pode ser uma geradora de


esclarecimento ao oferecer aos indivíduos as ferramentas adequadas
para seu desenvolvimento intelectual e crítico.

Filosofia Educacional Normativa


A partir das investigações sobre os aspectos socioantropológicos,
se identificou a possibilidade um novo tipo de metodologia, que ficou
conhecida como Filosofia Educacional Normativa e tem por objetivo
direcionar a questão da dupla finalidade da educação a partir de métodos
específicos.

A Filosofia Educacional Normativa é uma área composta de várias


metodologias, não apenas uma metodologia específica que, por sua vez,
são compostas por métodos interdisciplinares testados.

Para se compor uma filosofia educacional normativa é preciso


considerar três elementos:

•• Pensamento filosófico.

•• Aspecto empírico.

•• Psicologia do aprendizado.

Em termos do aspecto empírico da educação, grandes contribuições


foram feitas pelo sociólogo da área James Samuel Coleman, em seu
livro Introduction to Mathematical Sociology (1964) e, posteriormente,
Foundations of Social Theory (1990), nos quais formulou formas rigorosas
de teorizar os aspectos sociológicos com base na escolha racional.

IMPORTANTE:

Assim, o aspecto empírico vai incluir resultados de estudos


estatísticos, análises populacionais, pesquisas quantitativas,
entre outros resultados do trabalho não só do sociólogo,
do antropólogo, do estatístico, do bioestatístico e de outros
profissionais que atuem nestas áreas, mas também da
experiência dos professores em sala de aula.
Aspectos Socioantropológicos 39

É neste aspecto que se encaixa a maior parte das contribuições


da sociologia da educação e da antropologia, mas há aspectos
socioantropológicos também presentes no item pensamento filosófico,
uma vez que, autores como Immanuel Kant já trabalhavam alguns
aspectos da relação entre a estrutura da sociedade e o comportamento
humano.

Além desses, ainda, se inclui, no pensamento filosófico, as questões


normativas, aquelas relativas à éticos e ao direito, em particular o que
é permitido fazer e o que se deve fazer em relação ao educando e à
comunidade da qual ele participa.

A psicologia do aprendizado, por sua vez, contribui para a melhor


compreensão do comportamento humano, a partir da forma como cada
pessoa aprende. Trata das investigações da área e da neurociência,
acerca do aprendizado eficiente e dos fatores que podem se constituir
como barreiras ao aprendizado.

VOCÊ SABIA?

Barreira ao aprendizado: é toda situação, condição, ação


ou atitude que impede ou atrapalha o aprendizado do
estudante. Estas barreiras são mais evidentes nos casos
de Necessidades Educativas Especiais, mas podem afetar
qualquer indivíduo. Elas se dividem em barreiras físicas
(arquitetônicas), comunicacionais e atitudinais. Saiba mais
sobre as barreiras e como preveni-las, clicando aqui.

As filosofias educacionais normativas como metodologias para


trabalhar os aspectos socioantropológicos da educação de modo
eficiente, devem ter como base quatro questões de orientação. Estas
questões servem para orientar a construção de uma filosofia educacional
normativa em particular e podem ser utilizadas para avaliar metodologias.

São elas:

1. O que a educação deveria ser?


40 Aspectos Socioantropológicos

2. Quais disposições deveria cultivar?

3. Por que e como cultivá-las?

4. Qual deveria ser a metodologia da educação?

É fácil perceber pelas questões que a Filosofia Educacional


Normativa está preocupada em expandir a ideia de finalidade da
educação, tornando-a em um propósito, ou seja, em uma atividade mais
concreta de busca desta finalidade, não apenas por ser benéfica, mas
pelo dever de educar.

Filosofias Educacionais Normativas


Entre as filosofias educacionais normativas mais conhecidas, quatro
se destacam por sua eficiência e, não por acaso, os formuladores ou
representantes destas metodologias são profissionais reconhecidos nas
áreas de educação, pesquisa, estatística ou antropologia.

•• Perenialismo - Allan Bloom.

•• Essencialismo - William Chandler Bagley

•• Progressismo - John Dewey

•• Educação clássica - Charlotte Mason.

O perenialismo foi proposto pelo educador Allan Bloom. Esta


metodologia baseia-se nos conhecimentos e habilidades, considerados
fundamentais para a humanidade em qualquer época e em qualquer
cultura.

Ao se pensar de um ponto de vista de uma sociedade multicultural,


esta metodologia busca encontrar pontos de união entre as diferentes
culturas e assim criar um sentimento de unidade que permite desenvolver
os aspectos individuais sem conflitos, oriundos das diferenças, mas ao
mesmo tempo respeitando estas diferenças.

Um exemplo de conteúdos trabalhados como prioritários no


perenialismo é a lógica. Independentemente da cultura, todos os seres
humanos compartilham uma estrutura de funcionamento em seus
cérebros, base das similaridades nos processos mentais.
Aspectos Socioantropológicos 41

O estudo da lógica permite compreender este funcionamento e


argumentar de maneira estruturada, promovendo o diálogo racional, ao
invés de reações emocionais, o que pode ser uma base útil para evitar
situações como o bullying e a discriminação religiosa.

IMPORTANTE:

A finalidade, ou função social, da escola e da educação no


perenialismo se concentra mais na formação humanística,
mas utiliza os conteúdos do conhecimento formal como
uma maneira de se chegar até essa formação.

O essencialismo foi proposto por William Chandler Bagley e foca no


ensino de temas considerados essenciais, ou seja, concentra-se em uma
base de conteúdos ferramentais bem-feitos, em vez de sobrecarregar o
estudante com conteúdo complexo.

Os conhecimentos considerados essenciais nesta metodologia são:

•• Leitura.

•• Escrita.

•• Matemática.

•• Ciência.

•• Geografia.

•• Tecnologia.

Nesta metodologia, há um enfoque grande na autoridade do


professor como representante da hierarquia que é, muitas vezes,
encontrada em sociedade, sempre com o cuidado de não confundir
autoridade com autoritarismo.

Harmon e Jones (2005) argumentaram que este modelo foi muito


influente nas escolas, da segunda metade do século XX, embora muitos
professores tenham sido criticados por confundir a ênfase nos conteúdos
estruturados com uma limitação da individualidade.
42 Aspectos Socioantropológicos

Os conteúdos essenciais são uma base importante e que não pode


ser relativizada, mas isto não significa que todos os estudantes aprendem
exatamente da mesma maneira.

Assim, nesta metodologia, a finalidade da escola é preparar os


indivíduos para desempenhar qualquer função na sociedade, preparando-
os com os conhecimentos de base.

O progressismo surge com John Dewey, um conhecido teórico da


educação que baseou seus trabalhos na ideia de que as áreas teóricas,
como é o caso das ciências sociais, poderiam fazer bom uso dos métodos
das ciências naturais.

Assim, na metodologia proposta por Dewey, cada estudante é


considerado um pesquisador e trabalha com níveis de pesquisa sobre os
temas propostos.

Dewey (1938) propôs cinco etapas para esse processo:

1. Conhecer o problema.

2. Definir e compreender o problema.

3. Criar hipótese para solução.

4. Avaliar as consequências.

5. Testar a hipótese.

IMPORTANTE:

Esta metodologia vê a finalidade da escola como formar


pessoas críticas, capazes de investigar os desafios e propor
soluções.

Finalmente, a Educação Clássica, cuja representante moderna


mais relevante foi a pesquisadora britânica Charlotte Mason, que se
concentra em atualizar uma metodologia que já é utilizada, desde a Idade
Média, e que sobreviveu a todas as críticas da Sociologia da Educação,
atualizando-se e aperfeiçoando-se por meio dessas críticas.
Aspectos Socioantropológicos 43

Esta metodologia foca nas tradições da civilização como a literatura,


a poesia, a filosofia, entre outras, para despertar no estudante o prazer na
aquisição de conhecimento e habilidades.

Existem muitas formas de se executar um programa de educação


clássica, mas, atualmente, um ponto central é a inclusão das artes liberais
e dos estudos de ciências, o que não pode ser confundido com a mera
transmissão do conhecimento científico.

EXPLICANDO MELHOR:

Semelhante ao que acontece no progressismo, na


educação clássica, o estudante é considerado um
pesquisador das tradições da civilização e deve se envolver
com essas tradições.

Ao mesmo tempo, a civilização aqui em questão é a civilização


humana como um todo e não apenas uma ou outra cultura, motivo pelo
qual esta metodologia também é uma boa forma de fazer com que
os estudantes se identifiquem entre si pela valorização dos tópicos de
estudos.

Além dos temas já elencados, também fazem parte da educação


clássica os seguintes temas:

•• Literatura / prosa.

•• Poesia / música.

•• Filosofia.

•• História.

•• Artes visuais.

•• Idiomas.
44 Aspectos Socioantropológicos

Nesta metodologia, como em outras, a finalidade da escola é a


formação humanística, o conhecimento formal é utilizado para estimular
a formação básica dos indivíduos de modo que eles se orgulhem de
serem membros da humanidade, que produziu belas coisas, e, assim,
desenvolvam o gosto pela aquisição de conhecimento, ao mesmo tempo,
em que aplicam a socialização e a conduta.

Combinação de Metodologias
É importante compreender que, dada a complexidade da sociedade,
as metodologias nem sempre cobrem todos os aspectos.

Assim, é importante estar disposto a combinar metodologias e


técnicas de diferentes áreas e filosofias educacionais normativas, levando
em consideração as diferentes visões sobre a finalidade da educação e as
diferenças locais da população com a qual se trabalha.

NOTA:

A Teoria da Escolha Racional é um parâmetro teórico


para descrever e investigar o comportamento social e
econômico. Tem como base a ideia de que cada indivíduo,
agindo de acordo com seu melhor interesse, tende a
influenciar o comportamento geral, ou comportamento
agregado, levando a sociedade, ou a instituição na qual
está inserido, a escolhas racionais, mesmo que estas não
sejam evidentes a princípio. Entre os principais defensores
desta teoria está Gary Becker, ganhador do Prêmio Nobel
de Ciências Econômicas de 1992. Disponível aqui.
Aspectos Socioantropológicos 45

RESUMINDO:

Neste capítulo, você compreendeu que não basta delimitar


a finalidade da educação de um ponto de vista sociológico
e antropológico, mas é preciso considerar a complexidade
da sociedade e da atividade de ensino, oriunda das muitas
variações às quais as comunidades estão sujeitas. Para isto foi
feito um retorno a autores como Bourdieu e Kant, verificando
como eles trataram a questão da relação entre o indivíduo e
a instituição escolar e quais as lições que se podem tirar dos
trabalhos destes autores para compreender a instituição
escola (um aspecto sociológico) e o comportamento
humano (um aspecto antropológico). A partir disto, a fim
de oferecer uma ferramenta prática, abordou-se a Filosofia
Educacional Normativa e suas diversas metodologias, para
que você compreenda os variados métodos que se podem
utilizar para efetivamente tirar algo objetivo desta disciplina
de aspectos socioantropológicos. Por fim, destacou-se a
questão da combinação entre as metodologias, respeitando
a individualidade e as necessidades de cada comunidade.
46 Aspectos Socioantropológicos

O Trabalho Avaliativo Considerando a


Questão da Afetividade

OBJETIVO:

Ao final deste item, você será capaz de compreender uma


das questões mais complexas e relevantes da Sociologia
e da Antropologia contemporâneas, a questão da relação
de afetividade no contexto escolar e como ela afeta o
funcionamento das avaliações e do processo de ensino e
aprendizagem..

A Questão da Afetividade na Antropologia


e na Sociologia da Educação
Um dos aspectos estudados pela Antropologia é a forma como os
seres humanos se relacionam, emocionalmente, com alguns processos
em sua comunidade e como esse relacionamento afeta o comportamento
e os padrões de conduta naquela comunidade.

Isso está de acordo com os estudos da psicologia que destaca


a importância do equilíbrio entre diversos fatores para que ocorra o
aprendizado, um destes fatores é a afetividade.

VOCÊ SABIA?

Alguns dos fatores que afetam o aprendizado e que


precisam estar equilibrados são: biológico; cognitivo;
emocional; social. A afetividade faz parte do aspecto
emocional, mas tem implicações para o aspecto social e,
em alguns casos, até para o aspecto cognitivo.
Aspectos Socioantropológicos 47

Tanto na Antropologia quanto na Psicologia, a afetividade tem sido


vista como um fator de coesão social, ou seja, quando bem-direcionada
faz com que os membros de uma comunidade se aproximem e confiem
uns nos outros, identificando mais aspectos em comum e trabalhando em
conjunto.

A afetividade é uma questão discutida não apenas na Sociologia ou


na Antropologia contemporâneas, mas em todas as áreas que investigam
o comportamento humano e, principalmente, as relações humanas no
processo de aprendizagem.

Neste tópico será abordada a questão da afetividade,


especificamente, no contexto educacional e como ela se relaciona com
o funcionamento da sociedade e das instituições (aspecto sociológico)
e com o comportamento humano em sociedades específicas (aspecto
antropológico).

Esta abordagem será complementada por alguns estudos sobre


o comportamento e a sua transformação, a partir das metodologias
utilizadas, enfatizando a escola como ambiente de transformar social e de
constituição de valores.

Barreiras e Interação Social - Uma


Questão de Afetividade Prática
De nada adianta falar sobre a presença das múltiplas culturas,
individualidade, autonomia e outros conceitos, se não forem tomados
cuidados para prevenir barreiras e fortalecer uma relação benéfica entre o
educador e o educando nos diferentes cenários escolares.

DEFINIÇÃO:

Uma barreira ao aprendizado é toda obstrução que impeça


o estudante de atingir seu máximo potencial, seja ela física
ou das atitudes das pessoas envolvidas com este estudante.
48 Aspectos Socioantropológicos

De modo geral, a literatura especializada considera três categorias


de barreiras. São elas:

•• Comunicacionais.

•• Físicas.

•• Atitudinais.

As barreiras comunicacionais são aquelas que se referem à forma


como a informação é disponibilizada para o estudante. Por exemplo, há
um estudante cego na escola e as informações são todas disponibilizadas
em um mural de avisos, sem versão em braile. Há aqui uma barreira
comunicacional.

Como esta barreira afeta a relação entre o estudante e a comunidade


escolar? Impedindo-o de acessar as informações e participar da vida em
comunidade.

As barreiras físicas são mais óbvias, mas nem por isto menos
frequentes. Trata-se das barreiras ao deslocamento e permanência do
estudante.

A primeira coisa que vem à mente são as rampas de acesso e os


banheiros adaptados, mas estas alterações, embora cruciais, dependem
de órgãos superiores da administração e, de modo geral, já são exigidas
pela Lei de Acessibilidade.

O caso é que, em termos de socialização, existem muitas barreiras


físicas que podem aparecer em sala de aula e que, sem um olhar atento,
podem ser ignoradas.

EXEMPLO:

A distribuição das carteiras pode constranger o estudante em


cadeira de rodas, fazendo-o temer a reação dos colegas, quando ele se
desloca na sala de aula, por chamar muita atenção, pedindo para que se
afastem.

Esta situação pode acabar por gerar um afastamento em relação


aos colegas, prejudicando a socialização do indivíduo em cadeira de
rodas e o aprendizado da conduta por parte dos colegas.
Aspectos Socioantropológicos 49

Em outro caso, pode-se pensar em um estudante autista, colocado


próximo à janela. Se há muito barulho, o estudante pode ter uma crise
nervosa e isto irá prejudicar não apenas seu aprendizado (finalidade
primária), mas sua inclusão na comunidade escolar (finalidade secundária).

Por fim, há as barreiras atitudinais que tratam da forma como as


pessoas se relacionam umas com as outras.

EXEMPLO:

Se o professor conclui que o estudante economicamente vulnerável


é, por isto, o estudante menos capaz em relação à sua disciplina,
apresenta-se uma barreira atitudinal por generalização.

É possível que alguns estudantes, economicamente mais


vulneráveis, tenham menos acesso aos recursos para realizar algumas
atividades, mas nada na condição do estudante permite concluir que
sempre será desta forma ou que todos os estudantes que têm dificuldade
de acessar esses recursos educacionais, por uma questão econômica,
terão sua capacidade de realizar uma tarefa escolar específica reduzida.

Esta é uma barreira por generalização apressada que pode impedir


que o estudante manifeste seu potencial para aquela tarefa, mas em
termos socioantropológicos pode levar também a uma divisão na turma
entre estudantes que dispõem de mais recursos financeiros e aqueles
com menos recursos.

Avaliação e Afetividade
Os estudos promovidos por Cotic; Zuljan (2009) encontraram
evidências suficientes para afirmar que os modelos de ensino e de
avaliação que se concentram mais na solução de problemas, mesmo que
não exclusivamente, são capazes de promover mudanças relevantes na
atitude que os estudantes apresentam em sua relação com os problemas
matemáticos.
50 Aspectos Socioantropológicos

VOCÊ SABIA?
A aprendizagem baseada em problemas (Problem Based
Learning) é uma metodologia educacional, focada em
estimular a relação entre os estudantes mais do que a
posição de comando do professor. Embora sofra críticas
quanto a ausência de um modelo profissional ou modelo
de adulto por parte do professor, tem se mostrado
eficiente em converter as classes em grupos de pesquisa
de temas relevantes do conteúdo. Combinando-a com
outras metodologias, as críticas podem ser superadas e os
objetivos alcançados com êxito.

Um dos principais elementos considerados por Cotic; Zuljan (2009) é


a aversão coletiva à matemática, normalmente, identificada pelos sujeitos
da pesquisa como uma disciplina difícil, mesmo antes destes encararem
os problemas a serem solucionados.

Ao se colocar os problemas em cenários cotidianos e realmente


relevantes para os estudantes, permitindo que trabalhassem juntos para
a solução, a maior parte dos estudantes passou a considerar solução de
problemas matemáticos como uma habilidade útil e mostrar-se disposto
a apreendê-la, mesmo que alguns ainda a considerassem difícil.

IMPORTANTE:

Conclui-se que um aspecto a princípio considerado


psicológico, como a emoção do estudante em relação às
disciplinas que envolvem cálculo, apresentou um efeito
na percepção individual e no posicionamento coletivo em
relação a ele, convertendo-se por isto em um aspecto
social.
Aspectos Socioantropológicos 51

Afetividade e o Papel do Professor no


Contexto Social do Estudante
As questões relativas à afetividade não afetam apenas o conteúdo,
mas também os indivíduos que se relacionam. O professor de matemática
é frequentemente associado a um perfil mais rigoroso, devido à própria
natureza de sua disciplina, uma disciplina com resultados exatos que
devem ser respeitados.

IMPORTANTE:

O que normalmente não se vê é que, embora os resultados


e funções da matemática não possam ser relativizados, o
método pode ser aprimorado.

Este aprimoramento pode partir da posição do professor como


modelo de adulto e como exemplo de conduta, enfatizando a finalidade
secundária da educação, a formação humanística.

Quando o professor aplica testes como prova ou exame que causam


angústia nos estudantes, isto pode quebrar a relação de afetividade que
se desenvolve entre o estudante e o professor, dificultando o exercício do
ensino da conduta adequada pelo medo e aversão.

IMPORTANTE:

O medo e a aversão representam o lado negativo da


afetividade e, não por acaso, aparecem entre as barreiras
ao aprendizado.

Ao mesmo tempo, não se pode apresentar um modelo de adulto


fraco e sem profundidade por meio de avaliações e conteúdo que não
ofereçam desafio ao estudante, pois isto pode fazer com que ele se
desinteresse pelo conteúdo e, consequentemente, pela educação.
52 Aspectos Socioantropológicos

O trabalho do professor como modelo de adulto em uma


comunidade específica, que é a comunidade escolar, é um trabalho
de equilíbrio, de um lado mantendo a relação de afetividade com o
estudante e de outro mantendo o rigor e o desafio dos trabalhos a serem
desenvolvidos.

IMPORTANTE:

Blumer (1969) argumenta que em todas as comunidades


humanas, do ponto de visto do interacionismo simbólico,
há pessoas que desempenham estes modelos nos quais
os outros indivíduos se espelham. O que há por traz do
modelo é a ideia de que ele funciona como um símbolo
das virtudes, valorizadas pela instituição a qual representa.

Quando o modelo falha como símbolo da instituição que deveria


representar, há uma ruptura social no sentido da instituição deixar de
cumprir sua finalidade e perder a capacidade de angariar o interesse dos
membros da comunidade.

Segundo Blumer (1969), os indivíduos interagem entre si, a partir


de uma percepção mútua das ações uns dos outros como símbolos
representativos do que se passa em suas mentes.

A interpretação destes símbolos define o que é relevante para


cada pessoa e se o comportamento deve ser ajustado ou não, dando
significado às ações. Se o significado atribuído ao símbolo, representado
pelo professor, é irrelevante do ponto de vista do estudante, ele tende
a não aderir à instituição que o professor representa, o que, por sua vez,
pode levar a evasão escolar.
Aspectos Socioantropológicos 53

IMPORTANTE:

Um aspecto aparentemente teórico, como a interpretação


do professor como símbolo e o significado desse símbolo,
acaba por levar a uma melhor compreensão de um aspecto
iminentemente prático da educação, a evasão escolar.

A interação simbólica é em grande medida explicada, a partir de


conceitos behavioristas, ou seja, da interpretação do comportamento
humano, mais uma área de intersecção entre a Antropologia e a Psicologia.

SAIBA MAIS:

Caso queira se aprofundar no assunto, acesse o artigo


Contribuições da análise do comportamento à educação:
um convite ao diálogo, clicando aqui. O texto explora
diversos temas da relação entre Antropologia, Psicologia,
Sociologia e a aplicação destas áreas para a educação. É
uma boa base para se discutir a questão da afetividade, do
ponto de vista da interação simbólica e do behaviorismo.
54 Aspectos Socioantropológicos

RESUMINDO:

Neste capítulo, você conheceu uma questão interdisciplinar


que faz uso de vários conhecimentos da Sociologia e da
Antropologia, a questão da afetividade. Conheceu também
alguns dos desafios e barreiras que surgem no processo
de ensino e aprendizagem em decorrência dessa questão.
Começamos por compreender a questão da afetividade
na Antropologia e na Sociologia da Educação, passando
então à relação entre as barreiras e a interação social
como uma questão de afetividade prática. A partir disso, foi
apresentado o estudo de Cotic; Zuljan (2009) que permite
entender como a avaliação e a estrutura do conteúdo
podem afetar a relação de afetividade do estudante com
o conhecimento formal, do ponto de vista da metodologia
Aprendizagem baseada em Solução de Problemas. Mas
como se trata de aspectos socioantropológicos, não
basta discutir o conteúdo, é preciso falar de pessoas
e suas relações sociais, assim, foi discutido o papel do
professor no contexto social do estudante, terminando
por uma apresentação das contribuições da interação
simbólica, utilizando-se do behaviorismo, para a questão
da afetividade em educação.
Aspectos Socioantropológicos 55

REFERÊNCIAS
BLOOM, A. The Closing of the American Mind. New York: Simon &
Schuster, 1987.

COULON, A. A Escola de Chicago. Campinas: Papirus, 1995.

DEWEY, J. Democracia e Educação: introdução à filosofia da


educação. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959.

DEWEY, J. Logic, the theory of inquiry. New York: H. Holt and


Company, 1938.

DURKHEIM, E. As regras do método sociológico. São Paulo:


Martins Fontes, 2014.

KAUFMANN, F. Metodologia das Ciências Sociais. Rio de Janeiro:


Francisco Alves, 1977.

LIMA, R. Introdução à sociologia de Max Weber. Curitiba:


InterSaberes, 2012.

MERTON, R. K. Social Theory and Social Structure. New York: The


Free Press, 1949.

MITTLER, P. Working towards inclusion education: social contexts.


London: David Fulton Publishers Ltd., 2000.

ZEEDYK, S. M., Tipton, L. A., & Blacher, J. (2016). Educational Supports


for High Functioning Youth With ASD: The Postsecondary Pathway to
College. Focus on Autism and Other Developmental Disabilities, 31(1), 37–
48. Disponível em: https://doi.org/10.1177/1088357614525435 Acesso em:
29 jul 2019.

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