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Linguística Básica

Leonardo Teixeira de Freitas Ribeiro Vilhagra

Unidade 3

Livro Didático Digital


Diretor Executivo
DAVID LIRA STEPHEN BARROS
Gerente Editorial
CRISTIANE SILVEIRA CESAR DE OLIVEIRA
Projeto Gráfico
TIAGO DA ROCHA
Autor
LEONARDO TEIXEIRA DE FREITAS RIBEIRO
VILHAGRA
O AUTOR
Leonardo Teixeira de Freitas Ribeiro Vilhagra
Olá. Meu nome é Leonardo Teixeira de Freitas Ribeiro Vilhagra.
Sou formado em Letras Português pela Universidade Federal do Espírito
Santo, tenho mestrado em Estudos Linguísticos pelo Programa de Pós-
Graduação em Estudos Linguísticos pela mesma instituição e também
MBA em Gestão de Projetos e Equipes E-Learning pela UNIFCV (em
formação). Possuo experiência técnico-profissional na área de ensino
de Língua Portuguesa a mais de dez anos. Passei por escolas de ensino
fundamental e médio, como a rede Salesiano, o Centro Missionário
Agostiniano, o Centro de Ensino União dos Professores, COC, de pré-
vestibular, como o Programa Universidade Para Todos (PUPT), e no ensino
superior, como a Universidade Federal do Espírito Santo e, atualmente, a
Universidade Vila Velha no Espírito Santo. Sou apaixonado pelo que faço
e adoro transmitir minha experiência de vida àqueles que estão iniciando
em suas profissões. Por isso, fui convidado pela Editora Telesapiens a
integrar seu elenco de autores independentes. Estou muito feliz em poder
ajudar você nesta fase de muito estudo e trabalho. Conte comigo. Desde
já desejo. Bons estudos a todos!
ICONOGRÁFICOS
Olá. Esses ícones irão aparecer em sua trilha de aprendizagem toda vez
que:

INTRODUÇÃO: DEFINIÇÃO:
para o início do houver necessidade
desenvolvimento de de se apresentar um
uma nova compe- novo conceito;
tência;

NOTA: IMPORTANTE:
quando forem as observações
necessários obser- escritas tiveram que
vações ou comple- ser priorizadas para
mentações para o você;
seu conhecimento;
EXPLICANDO VOCÊ SABIA?
MELHOR: curiosidades e
algo precisa ser indagações lúdicas
melhor explicado ou sobre o tema em
detalhado; estudo, se forem
necessárias;
SAIBA MAIS: REFLITA:
textos, referências se houver a neces-
bibliográficas e links sidade de chamar a
para aprofundamen- atenção sobre algo
to do seu conheci- a ser refletido ou dis-
mento; cutido sobre;
ACESSE: RESUMINDO:
se for preciso aces- quando for preciso
sar um ou mais sites se fazer um resumo
para fazer download, acumulativo das últi-
assistir vídeos, ler mas abordagens;
textos, ouvir podcast;
ATIVIDADES: TESTANDO:
quando alguma quando o desen-
atividade de au- volvimento de uma
toaprendizagem for competência for
aplicada; concluído e questões
forem explicadas;
SUMÁRIO
Sintagma e paradigma...............................................................................10

Dupla articulação da linguagem...........................................................19

Primeira articulação........................................................................................................................23

Segunda articulação......................................................................................................................25

Relação da economia linguística com a dinâmica das línguas..27

Relação entre gramática e linguística................................................ 30

Gramática tradicional nos estudos linguísticos............................. 36


Linguística Básica 7

03
UNIDADE
8 Linguística Básica

INTRODUÇÃO
Você já se perguntou qual é a ligação entre gramática e linguística?
Será que são a mesma coisa? Quais são os conceitos e as teorias envolvidas
nessas duas áreas? Conforme você verá, compreender a relação entre os
estudos gramaticais e os estudos linguísticos são essenciais, ainda mais
se tratando dos profissionais de Letras. Diante disso, a fim de atender
aos objetivos estipulados, em um primeiro momento veremos a última
dicotomia formulada por Saussure. Depois, estudaremos as influências
geradas por isso, sobretudo no conceito de dupla articulação proposto
pelo linguista francês André Martinet. Após conceituadas as contribuições
dos dois autores, teremos propriedades suficientes para refletir acerca
da relação entre a gramática e a linguística, evidenciando as suas
semelhanças e, principalmente, as diferenças. Em um último momento,
vamos nos ater sobre a abordagem que a gramática tradicional possui no
que diz respeito à linguística. Desejamos a você um bom estudo e que
tenha um ótimo aproveitamento do material.
Linguística Básica 9

OBJETIVOS
Olá. Seja muito bem-vindo à Unidade 3. Nosso objetivo é auxiliar
você no desenvolvimento das seguintes competências profissionais até o
término desta etapa de estudos:

1. Conceituar sintagma e paradigma;

2. Descrever a dupla articulação da linguagem;

3. Refletir sobre a relação entre gramática e linguística;

4. Discutir a abordagem da gramática tradicional nos estudos


linguísticos.

E aí? Ficou empolgado em relação ao que veremos nesta? Que bom,


então vamos aos estudos!
10 Linguística Básica

Sintagma e paradigma
INTRODUÇÃO:

Ao término deste capítulo, você entenderá a última dicotomia


de Saussure, o sintagma e o paradigma. Além disso, você
compreenderá a dupla articulação da linguagem e, por
fim, como isso se relaciona com os estudos gramaticais,
sobretudo no que diz respeito à gramática tradicional. Ter
conhecimento sobre isso é relevante, uma vez que muitos
desses conceitos que serão tratados nesta unidade não só
vão te ajudar no entendimento linguístico, mas também
vão te fornecer um arcabouço teórico, o qual impacta
diretamente na sua vida profissional, principalmente no
ambiente escolar. E então? Motivado para desenvolver essa
competência? Então vamos lá.

Dessa forma, nesta unidade você verá a última dicotomia: o


sintagma e o paradigma. Em função disso, também veremos os seus
desdobramentos para os estudos linguísticos futuros. Sabendo disso,
vamos, então, a essa última dicotomia.

Para Saussure (2012, p. 148), as línguas naturais, objeto de estudo da


linguística estruturalista, funcionam por meio

[...] de duas espécies de comparações; as aproximações são


ora associativas, ora sintagmáticas; os grupamentos de uma e
de outra espécie são, em grande medida, estabelecidos pela
língua; é esse conjunto de relações usuais que a constitui e
que lhe preside o funcionamento.

Explicando de outra forma, recorremos a Souza e Crestani (2017, p. 3):

A língua possui dois eixos de organização, o eixo sintagmático


e o eixo paradigmático. O eixo sintagmático é definido como
eixo da combinação e o paradigmático como o eixo das
escolhas, ou seja, são as possibilidades de combinações
escolhas disponíveis dentro do campo de alternativas. Esses
eixos contribuem para o funcionamento da língua.
Linguística Básica 11

Para entender melhor essa explicação de Saussure (2012) e de


Souza e Crestani (2017), vamos utilizar a metáfora das roupas.

Suponhamos que alguém queira sair de casa para ir a uma festa.


Assim, essa pessoa quer se vestir adequadamente. Para tal, há uma série
de roupas que podem ser utilizadas:
Figura 1: Metáfora das roupas

Fonte: Freepik

Nesse contexto, a pessoa que vestirá essa peça de roupa tem, no seu
armário, três tipos de camisas: cinzas, brancas e pretas:
Figura 2: Tipo de camisas

Fonte: Freepik
12 Linguística Básica

Contudo, a pessoa que vai se vestir só pode optar por uma camisa,
sendo que as outras duas ficam de lado. Isto é, ela escolhe a camisa branca
e, em decorrência disso, a cinza e a preta ficam guardadas. Além disso, essa
mesma camisa branca pode ser usada com uma jaqueta preta e uma calça
jeans, conforme a seguir:
Figura 3: Combinação de roupas

Fonte: Freepik

Em outra situação, por exemplo, tal camisa branca pode ser utilizada
com uma bermuda azul ou, ainda, com uma calça bege, por exemplo.

IMPORTANTE:

Agora, quero que você aplique a lógica dessa metáfora


junto ao conceito de sintagma e de paradigma.

Dentro de um guarda-roupa (a língua), existe uma série de peças


que podem ser escolhidas (paradigma) e, a partir disso, também podem
ser combinadas (sintagma).
Linguística Básica 13

Dessa forma, para Saussure (2012), uma língua natural se constitui


na prática comunicativa do falante por meio das escolhas e combinações
dos signos linguísticos.

Agora que isso está mais evidente, vamos esmiuçar cada uma
das partes dessa dicotomia. Como você viu antes, o paradigma é o eixo
das escolhas, isto é, as possibilidades de seleção que o falante de uma
língua tem ao se comunicar. Em relação a isso, Saussure (2012, p. 146)
afirma que “[...] os termos de uma família associativa (paradigmática) não
se apresentam nem em número definido nem numa ordem determinada”.

Realmente, mesmo que um dicionário seja publicado, no dia


seguinte a isso, ele se torna desatualizado, uma vez que a língua é viva e
se transforma continuamente.

SAIBA MAIS:

Sobre a questão da riqueza do vocabulário da língua


portuguesa, veja este vídeo do professor Carlos Alberto
Faraco: https://bit.ly/3uO5tO9.

No entanto, conforme aponta Saussure (2012), mesmo que o


número de escolhas não seja definido, isso não quer dizer que esses
signos linguísticos usados não possam ser associados, agrupados,
formando, assim, um paradigma (inclusive, é por causa disso que essa
parte da dicotomia leva esse nome) nas mentes dos falantes.

EXEMPLO: Um exemplo dessa associação, dessa formação de pa-


radigma, é o signo linguístico “empresária” da língua portuguesa:
14 Linguística Básica

Figura 4: Signo linguístico “empresária”

Fonte: Freepik

Esse signo linguístico pode ser agrupado em um paradigma:


“gestora”, “administradora”, “mulher de negócios”, “dirigente” etc. Ainda
seguindo esse raciocínio, diversos paradigmas distintos são formados,
os quais unem termos “[...] in absentia numa série mnemônica virtual”
(SAUSSURE, 2012, p. 143). Em outras palavras, ficam à disposição na
memória para serem escolhidos pelo falante.

Já a outra parte dessa dicotomia, o sintagma, diz respeito às


possíveis combinações dos signos linguísticos, de modo que “A relação
sintagmática existe in praesentia; repousa em dois ou mais termos
igualmente presentes numa série efetiva” (SAUSSURE, 2012, p. 143).

É interessante frisar a questão da combinação ligada à “série


efetiva”, uma vez que isso está associado ao ordenamento dos signos
linguísticos nos enunciados expressos pelos falantes de uma língua.

EXEMPLO: A fim de ilustrar isso, vamos utilizar o signo linguístico


“empresária” novamente.

Vamos supor que o falante da língua portuguesa quer dizer que


uma mulher que é dona de um negócio foi bem sucedida em seu ramo
de atuação. Para tal, ele não emprega os signos separadamente, mas sim
em um enunciado, conforme abaixo:
Linguística Básica 15

(1) Aquela empresária é próspera.

Porém, ele pode fazer outros tipos de combinação, como é o caso


a seguir:

(2) Aquela empresária bem-sucedida.

Dessa forma, na comunicação verbal por meio de uma língua


qualquer, não basta somente o falante selecionar qual signo linguístico
quer usar. Além disso, deve-se formular uma combinação sequenciada,
de maneira que um signo linguístico não se manifeste ao mesmo tempo
que outro.

Em relação a isso, Souza e Crestani (2017, p. 4) afirmam que:

Na cadeia sintagmática um termo passa a ter valor quando


se apresenta de forma distinta da outra, já que um termo não
pode aparecer ao mesmo tempo que outros, por causa de
seu caráter linear, onde os termos devem aparecer como uma
linha, numa sequência.

A partir da fala das autoras, somos levados a reconhecer outro


conceito derivado desse: a linearidade do signo linguístico. Consoante a
Saussure (2012, p. 70), a linearidade

É aquilo que faz com que, em toda forma, haja um antes e um


depois. Esse princípio é dado pela própria natureza das coisas:
não posso representar a palavra a não ser por uma só linha
formada de partes sucessivas.

Ou seja, as redes sintagmáticas se efetuam a partir da disposição


sequenciada linearmente dos signos linguísticos dentro da cadeia da fala.

EXEMPLO: Um exemplo disso é o seguinte enunciado:

(3) Ele estudou hoje.

Nesse caso, os três signos linguísticos não foram dispostos


simultaneamente. Muito pelo contrário, foi posto primeiro “ele”, depois
“estudou” e, por fim, “hoje”.

EXEMPLO: Isso se aplica também em unidades linguísticas


menores, como em “amor”. Se observarmos o nível fonético, temos os
seguintes fonemas:
16 Linguística Básica

(4) [a.m.o.R]

Da mesma forma que no enunciado (3), em (4) os fonemas são


dispostos em sequência, “[a]”, “[m]”, “[o]” e, por fim, “[R]”, comprovando,
portanto, a linearidade.

Após você ver separadamente o conceito de paradigma e


sintagma, vamos, neste momento, observar a maneira pela qual ambos
se comportam no momento da manifestação da língua pelo falante.

Carvalho (1997), parafraseando e explicando a relação entre


paradigma e sintagma de Saussure, afirma que essa dicotomia funciona
por meio de eixos. O paradigma representa uma linha vertical, na qual os
signos estão disponíveis para serem selecionados. Por sua vez, na linha
horizontal, está o sintagma. Nela, os signos são ordenados de acordo com
o enunciado a ser feito.

Acerca disso, Saussure comenta que

[...] desse duplo ponto de vista, uma unidade linguística é


comparável a uma parte determinada de um edifício, uma
coluna, por exemplo; a coluna se acha, de um lado, numa certa
relação com a arquitrave que a sustém; essa disposição de duas
unidades igualmente presentes no espaço faz pensar na relação
sintagmática; de outro lado, se a coluna é de ordem dórica, ela
evoca a comparação mental com outras ordens (jônica, corintia,
etc.), que são elementos não presentes no espaço: a relação é
associativa [paradigma]. (SAUSSURE, 2012, p. 143)

Para que você entenda melhor sobre o eixo paradigmático e eixo


o sintagmático, vamos lançar mão do esquema a partir do seguinte
enunciado:

(5) Garota joga futebol.

Diante desse enunciado, o eixo paradigmático e o eixo sintagmático


se relacionam da seguinte maneira. No eixo vertical do paradigma, cada
signo linguístico se ordena em grupos específicos.
Linguística Básica 17

Figura 5: Eixo vertical paradigmático

GAROTA JOGA BOLA


JOVEM TREINA FUTEBOL
MOÇA PRATICA ESPORTE

Fonte: Elaborado pelo autor.

Já no eixo horizontal sintagmático, os signos linguísticos são


combinados linearmente, formando uma cadeia estruturada específica,
lembrando que dois signos linguísticos não podem ser expressos
simultaneamente, mas sim intercaladamente.
Figura 6: Eixo horizontal sintagmático

Posição 1 Posição 2 Posição 3

Fonte: Elaborado pelo autor.

Dessa forma, ao unir esses dois eixos, temos a seguinte relação:


Figura 7: Eixo do paradigma e do sintagma

Eixo
sintagmático
Posição 1 Posição 2 Posição 3 (combinações)

GAROTA JOGA BOLA


JOVEM TREINA FUTEBOL
MOÇA PRATICA ESPORTE

Eixo paradigmático (escolhas)


Fonte: Elaborado pelo autor.
18 Linguística Básica

Portanto, o paradigma representa o conjunto de palavras


e expressões associadas, ou seja, assemelham-se em um grupo
específico, as quais os falantes das línguas podem selecionar durante o
ato comunicativo. Já o sintagma se refere à capacidade de combinação
desses signos linguísticos, os quais conseguem estabelecer entre si e,
por causa da linearidade, é possível formar enunciados variados, desde
simples frases, até textos extensos e volumosos.

SAIBA MAIS:

Dessa forma, para encerrarmos a discussão deste tópico,


sugerimos a leitura de Souza e Crestani (2017), que fazem
uma reflexão das contribuições de Saussure, principalmente
através da dicotomia em questão, relacionada ao
crescimento e desenvolvimento da linguagem das crianças.
Link: https://bit.ly/30bYhx7.

RESUMINDO:

Vamos recapitular o que estudamos neste capítulo?


Compreendemos a dicotomia de Saussure, o eixo vertical
paradigmático e eixo horizontal sintagmático. Assim, vimos
os conceitos de sintagma e paradigma com exemplos
práticos.
Linguística Básica 19

Dupla articulação da linguagem


INTRODUÇÃO:

Neste capítulo, vamos estudar a dupla articulação da


linguagem, além da relação da economia linguística com
a dinâmica das línguas. Além disso, vamos conhecer o
grande nome da Linguística Funcionalista, Martinet, cujo
objetivo era estudar a relação entre a estrutura gramatical
das línguas e os diferentes contextos comunicativos.

No tópico anterior, você viu o conceito da última dicotomia elaborada


por Saussure. Dessa forma, considerando as outras três dicotomias, bem
como os seus conceitos correlatos, o mestre genebrino forneceu um
amplo e consistente aparato teórico-metodológico, ainda que de viés
estruturalista, para analisar a linguagem verbal humana.

Sobre esse fato, Costa (2014, p. 61) afirma que:

[...] o trabalho realizado por Saussure de delimitar um objeto e


escolher uma metodologia adequada aos estudos linguísticos
representou um processo de cientificização daquilo que há
muito tempo vinha sendo realizado, mas de forma desordenada,
ou seja, os estudos linguísticos eram realizados mesmo sem o
caráter científico atribuído por Saussure.

Em função disso, não só a linguística se tornou uma ciência


independente, como também outras teorias se desenvolveram a partir do
estruturalismo saussuriano, conforme aborda Heloisa (2016, p. 23, grifos
nossos):

O estruturalismo saussureano constitui um marco para os


estudos linguísticos ao propor um método de análise e uma
ontologia para definir a natureza do objeto da nova ciência.
Sua importância se confirma pelas diferentes direções em que
se desenvolveram os estudos linguísticos, ao propiciar questio-
namentos em relação à adequação e validade dos conceitos
propostos.
20 Linguística Básica

Nesse contexto, um dos vários teóricos influenciados por Saussure


é o francês André Martinet.
Figura 8: Linguista André Martinet

Fonte: http://bit.ly/3sPHhsI
Nascido em 1908 em Saint-Alban-des-Villards, na França, Martinet
foi um dos teóricos mais importantes da linguística, sendo que, na década
de 1940, chegou a lecionar na Universidade de Sorbone (França) e na
Universidade de Columbia (EUA), publicando 25 livros e mais de 300
artigos em diversos periódicos acadêmicos de destaque mundial. Já em
1999 ele faleceu nos seus 91 anos de idade (HOYOS-ANDRADE, 2001).

Grande nome da Linguística Funcionalista, corrente linguística


iniciada na década de 1920 do século passado e cujo objetivo era estudar
a relação entre a estrutura gramatical das línguas e os diferentes contextos
comunicativos em que elas são usadas (CUNHA, 2008, p. 157), Martinet
desenvolveu um conceito que não só inspirou outros teóricos posteriores,
mas, principalmente, trouxe um novo olhar sobre os estudos e as análises
das línguas naturais. Esse conceito é o da dupla articulação da linguagem.

Publicado em seu livro Elementos de linguística geral (Éléments de


linguistique générale), Martinet atesta:
Linguística Básica 21

Diz-se por vezes que a linguagem humana é articulada.


Embora os que assim se exprimem nem sempre sejam
capazes de definir exatamente o que pretendem dizer, não há
dúvida de que aquela fórmula aluda a uma característica de
todas as línguas. Mas convém explicar a noção de articulação
linguística e observar que ela se manifesta em dois planos
diferentes: com efeito, as unidades resultantes de uma primeira
articulação articulam-se por sua vez em unidades doutro tipo.
(MARTINET, 1978, p. 10)

Em relação a isso, Martelotta (2010, p. 37) explica um pouco mais


sobre esse conceito:

Afirmar que a linguagem humana é articulada significa dizer,


portanto, que os enunciados produzidos em uma língua não
se apresentam como um todo indivisível. Ao contrário: podem
ser desmembrados em partes menores, já que constituem o
resultado da união de elementos, que, por sua vez, podem ser
encontrados em outros enunciados.

Em função disso, vamos detalhar um pouco sobre tal conceito. Em


primeiro lugar, vamos analisar etimologicamente o vocábulo “articular”,
do qual “articulação” é derivado. Essa palavra é oriunda do verbo latino
“articulare”, cujo significado é separar em partes.

EXEMPLO: Isso pode ser associado, por exemplo, ao esqueleto do


corpo humano.
22 Linguística Básica

Figura 9: Esqueleto humano articulado

Fonte: Freepik

Se o esqueleto humano é articulado, por sua vez, esse é formado


por unidades menores, a exemplo dos ossos da coluna vertebral.
Figura 10: Ossos da coluna vertebral

Fonte: Freepik
Linguística Básica 23

Dessa forma, será mais fácil para você entender o conceito de dupla
articulação da linguagem proposta por Martinet (1978). No momento
em que ele diz isso, o linguista afirma que todas as línguas naturais são
formadas por unidades menores, as quais podem ser agrupadas em dois
grandes grupos: as de primeira articulação e de segunda articulação.

Primeira articulação
Os elementos pertencentes à primeira articulação da linguagem,
segundo Martinet (1978, p. 12), são os morfemas, isto é, as unidades
mínimas de significação, como se pode ver a seguir:

[...] cada uma das unidades da primeira articulação tem um


sentido e uma forma vocal (fônica). Não podemos analisá-las
em unidades sucessivas menores dotadas de sentido: é o
conjunto cabeça que significa “cabeça”, e não a soma de even-
tuais sentidos de cada um dos segmentos em que podemos
dividi-lo – ca-, be- e –ça, por exemplo.

Observe que, no início da fala dele, Martinet (1978) disse que as


unidades da primeira articulação possuem um sentido e uma forma vocal.
Isso nada mais é do que a dicotomia significante e significado, um dos
indícios da influência de Saussure.

Aliás, acerca disso, Martinet (1978, p. 12-13, grifos do autor) nos


mostra que

Um enunciado como tenho uma dor de cabeça, ou uma parte


desse enunciado que, como tenho uma dor ou dor ou cabeça,
faz sentido, designa-se por SIGNO linguístico. Qualquer signo
linguístico comporta um SIGNIFICADO, que constitui o seu
sentido ou valor e que representamos entre aspas (“tenho
uma dor de cabeça”, “dor”, “cabeça”), e um SIGNIFICANTE,
graças ao qual se manifesta o signo e que transcrevemos
entre barras oblíquas (...). É ao significante que a linguagem
corrente costuma chamar de signo. Com os seus significado
e significante, as unidades da primeira articulação são signos,
24 Linguística Básica

e signos mínimos por não poderem analisar-se em sucessão


de signos menores.

Nesse contexto, a expressão “signo mínimo” diz respeito diretamente


ao morfema. Tal denominação é justificável, uma vez que não é possível
ter outra divisão que resulte em signos menores.

EXEMPLO: A fim de ilustrar isso melhor, vamos utilizar o mesmo


caso exemplificado por Martinet (1978). Observe a decomposição da
palavra “cabeça”. Essa pode ter outras decomposições morfológicas:
Quadro 1: Decomposição da palavra “cabeça”

“cabeç” morfema radical


Cabeça
“a” morfema vogal temática
“cabeç” radical
Cabeção
“ão” sufixo de flexão de grau aumentativo
“Cabec” radical
Cabecinha
“inha” sufixo de flexão de grau diminutivo
Fonte: Elaborado pelo autor.

Assim, é possível perceber que os morfemas são “signos mínimos”,


pois eles são o último nível de decomposição de alguma unidade
linguística que ainda possui certa significação.

Somado a isso, devemos frisar duas consequências advindas do


conceito de primeira articulação proposta por Martinet (1978). A primeira
diz respeito à questão da análise, ou seja, os morfemas não podem ser
examinados sozinhos, mas sim em conjunto, de modo a formar uma unidade
significativa própria.

A segunda consequência está ligada à organização das estruturas


significativas de uma língua. Acerca disso, Viegas (1988, p. 55) comenta que

O domínio, portanto, da primeira articulação estabelece


a organização específica de unidades significativas [...]. É
através dessas estruturas que podemos estabelecer que, em
língua portuguesa, o adjetivo se articula com o substantivo
num sistema de concordância nominal fixo, por exemplo,
o advérbio com o verbo permanecendo invariável, o sujeito
Linguística Básica 25

com o predicado e assim por diante, domínio em suma das


articulações sintáticas.

Isto é, a partir desse conceito do linguista francês foi possível


conceber unidades de análise palpáveis para examinar fenômenos
inerentes da língua.

EXEMPLO: Um exemplo disso é o fenômeno da concordância nomi-


nal. Na língua portuguesa, o adjetivo concorda em gênero e número com
o substantivo ao qual ele se relaciona, conforme você pode ver abaixo:

(6) Cabeça vazia.

(7) Cabeças vazias.

Em (7), ao substantivo “cabeça” passar para o plural, o adjetivo


“vazias” o acompanhou. Só que isso fica mais visível, uma vez que existe
uma unidade linguística com o menor significado, o morfema “s”, o qual é
responsável por tal fenômeno. Logo, retomando Viegas (1988), a primeira
articulação proposta por Martinet (1978) determina a organização dos
enunciados significativos das línguas naturais.

Segunda articulação
Já a segunda articulação formulada por Martinet (1978) está
associada aos fonemas. Para Lopes (1995, p. 49),

Os fonemas são unidades do nível linguístico inferior (unidades


de segunda articulação) que não possuem outra função além
da de poder ser combinadas para formar as unidades do nível
linguístico que lhes é imediatamente superior (morfemas,
unidades de primeira articulação).

IMPORTANTE:

É relevante que você não confunda a relação entre morfema


e fonema. Segundo Martinet (1978), o morfema é a menor
unidade significativa de uma língua. Ainda que o fonema
seja uma subdivisão do morfema, logo, uma unidade ainda
menor, o fonema não contém uma unidade significativa.
Esse serve apenas para a representação gráfica de um som
específico de uma língua.
26 Linguística Básica

Assim, em relação à segunda articulação, veja a importância dada por


Martinet (1978, p. 12) a ela:

Graças à segunda articulação podem as línguas contentar-se


com algumas dezenas de produtos fônicos distintos um dos
outros, que se combinam para se obter a forma vocal das
unidades de primeira articulação: assim em cabeça aparece
duas vezes a unidade que representamos por a – a mesma
que reencontramos em mesa, nos artigos, a e uma, etc.

EXEMPLO: A fim de exemplificar melhor o que o linguista francês


disse, observe novamente a palavra “cabeça” a partir da segunda
articulação:

(8) [k.a.b.e.s.a]

Note que o fonema [a] não só se repete na mesma palavra, mas


também ele mesmo pode servir como base para a articulação de outras,
como você pode ver no vocábulo “mesa”:

(9) [m.e.z.a]

Dessa forma, frisamos que, por meio de um conjunto fechado de


fonemas, pode-se formar quase infinitas unidades maiores do que eles.
Outro ponto interessante a ser ressaltado, o qual, inclusive, deriva do
anterior, é que cada língua natural contém fonemas específicos, cuja
origem se dá no sistema fonador humano.

SAIBA MAIS:

Para se aprofundar mais sobre o aparelho fonador que


todos os seres humanos possuem, sugerimos o link a
seguir: http://bit.ly/3e6g5BR.
Linguística Básica 27

Relação da economia linguística com a dinâmica


das línguas
Depois de você compreender acerca do conceito da dupla
articulação das línguas, detalharemos sobre um conceito que deriva do
anterior: o princípio da economia linguística.

REFLITA:

Antes de abordá-lo, convidamos você a pensar sobre a


seguinte questão: você já se questionou sobre a quantidade
de palavras que sabemos? Além disso, já se perguntou
como que, mesmo com as várias inovações e criações que
ocorrem diariamente, ainda conseguimos reter todas em
nossa mente?

Pois bem, pense nisso, pois, daqui a pouco, vamos retomar esse
assunto.

Segundo Martinet (1978, p. 14),

[...] a economia resultante das articulações [primeira e segunda]


permite obter um instrumento de comunicação de emprego ge-
ral, graças ao qual se pode transmitir tanta informação por tão
baixo preço.

Para o autor, a economia linguística está ligada à otimização entre a


combinação da primeira e da segunda articulação da linguagem voltada
à criação de inúmeras unidades linguísticas.

Aprofundando esse conceito, podemos utilizar as palavras de


Lopes (1995, p. 50), que diz:

Podendo qualquer sentido associar-se, por convenção semió-


tica a qualquer combinação de elementos fônicos, a língua
pode produzir mensagens sempre novas – ou seja, capazes de
traduzir teoricamente qualquer tipo de experiência – valendo-
-se de um número muito reduzido de fonemas. Com não mais
do que cinquenta fonemas, qualquer língua é capaz de formar
28 Linguística Básica

um número elevadíssimo de monemas: com a sequência [‘teli-]


formamos nos últimos tempos, em português, “telejornal”, “te-
leator”, “teledirigido”, “telenovela” etc. É a dupla articulação que
é responsável por essa extraordinária economia do sistema lin-
guístico”.

Para que esse conceito seja mais palpável, observe a palavra


“engenheiro”.
Figura 11: Palavra engenheiro

Fonte: Freepik

Essa unidade linguística do português faz referência a um ser


humano do gênero masculino graduado em engenharia. Porém, ao
nos referimos a um ser humano do gênero feminino a qual também é
formada nessa área, não precisamos criar outra palavra, com o intuito de
desempenhar esse papel, basta acrescentarmos o morfema “-a” no final
do radical.
Linguística Básica 29

Figura 12: Engenheiro e engenheira

Fonte: Freepik

Logo, esse é um caso de economia linguística. Por causa da


primeira articulação (os morfemas), aliada à segunda articulação (os
fonemas), permite que tenhamos uma quantidade significativa de
unidades linguísticas a “baixo preço”, de modo a não sobrecarregar a
nossa memória, muito menos comprometer a comunicação humana.

RESUMINDO:

Neste capítulo, estudamos sobre a dupla articulação da


linguagem, pois Martinet afirmou que todas as línguas
naturais são formadas por unidades menores, as quais
podem ser agrupadas em dois grandes grupos: as de
primeira articulação e de segunda articulação. Por fim,
vimos a relação da economia linguística, a qual está ligada
à otimização entre a combinação da primeira e da segunda
articulação da linguagem voltada à criação de inúmeras
unidades linguísticas, com a dinâmica das línguas.
30 Linguística Básica

Relação entre gramática e linguística


INTRODUÇÃO:

Neste capítulo, vamos estudar a relação entre a gramática


e a linguística no âmbito histórico e de articulação. Veremos
ainda a diferenciação entre o estudo da linguagem e da
gramática, citando estudiosos da área.

Estudamos o quanto as pesquisas de Martinet (1978) impactaram


as ciências da linguagem, promovendo uma verdadeira transformação na
área.

Sobre isso, Hoyos-Andrade (2001, p. 5) comenta que:

Também constitui uma inovação, em termos de Linguística


Geral, a visão martinetiana dos diferentes níveis de descrição
de uma língua qualquer. Esse quadro foi ampliando-se e mo-
dificando-se com os anos, a partir da própria reflexão do mes-
tre e das contribuições dos seus seguidores. Consolidado o
nível fonético-fonológico (não convém esquecer que Martinet
foi, em primeiro lugar, um fonólogo), vieram depois o nível do
inventário (ou seja, o das classes de unidades significativas)
e o da sintaxe, com o sentido específico que vimos antes. O
nome de morfologia fica reservado para o estudo das irregu-
laridades formais dos signos linguísticos. Quanto ao nível do
significado, foi necessário distinguir entre dois diferentes sub-
níveis: a axiologia, estudo dos valores linguísticos ou virtuali-
dades significativas das unidades; e a semântica, que constitui
o estudo dos sentidos que assumem as unidades nos contex-
tos e situações em que, de fato, acontecem. A axiologia está
para a semântica assim como a fonologia está para a fonética.

Nesse viés, Martinet (1978) desenvolveu (e outros a partir dele


ampliaram) princípios teóricos que muito auxiliaram em uma análise mais
técnica e operacional no que diz respeito ao funcionamento das línguas
em diferentes níveis, indo desde a fonologia até a semântica.
Linguística Básica 31

Porém, é interessante frisar um ponto que o próprio autor nos revela.


Ainda que todas as línguas sejam articuladas, cada uma “[...] ARTICULA A
SEU MODO enunciados e significantes (1978, p. 15, grifo do autor).

Ou seja, embora todas elas tenham, como condição de


funcionamento, a articulação de partes menores que estruturam unidades
maiores e mais complexas, cada idioma faz isso de uma maneira distinta
e particular.

IMPORTANTE:

E é nessa questão que desejamos uma atenção maior, pois,


a seguir, promoveremos alguns questionamentos acerca
da relação entre a gramática e a linguística.

Dessa forma, ao falarmos em maneiras distintas e particulares que


cada língua possui, somos levados a uma série de reflexões, como as de
Martelotta (2010, p. 43):

Como se dá essa combinação? Os falantes combinam os ele-


mentos na frase do modo como bem entendem ou existem
restrições impostas pelas línguas no que diz respeito a esse
processo? Se existem restrições, qual a sua natureza? Elas
provêm dos padrões de correção de uso da língua impostos
pela comunidade?

Desde já podemos afirmar que tais combinações e articulações


dos diferentes níveis de uma língua não são feitas de modo aleatório e
individual pelos falantes, mas sim seguem “[...] tendências de colocação
que parecem estar associadas ao conhecimento geral que possuem de
sua própria língua” (MARTELOTTA, 2010, p. 43).

Em relação a isso, ao longo da história, vários estudiosos almejaram


estudar esse conhecimento geral que os falantes têm de suas respectivas
línguas, formulando interpretações e descrições próprias. Sobre esse
conjunto de interpretações e descrições, Martelotta (2010, p. 43) dá o
nome de “gramática”.
32 Linguística Básica

Como vimos nas unidades anteriores, os estudos gramaticais


precederam a linguística e, mesmo enquanto essa se tornou ciência, as
gramáticas não foram deixadas de lado, inclusive, essas duas áreas do
conhecimento estão presentes até hoje.

Todavia, é importante questionarmos acerca de ambas, uma vez


que elas não são a mesma coisa, embora tenham traços em comuns
e, como você será um futuro graduando de Letras, compreender tal
distinção é fundamental tanto nas pesquisas acadêmicas quanto nas
práticas pedagógicas futuras.

Sabendo disso, vamos começar a discussão com a fala de Orlandi


(2009, p. 13). Nas palavras dela, “[...] há uma tendência em se identificar o
estudo da linguagem como o estudo da gramática”.

REFLITA:

Aproveitando a contribuição de Orlandi (2009), queríamos


instigar você a pensar sobre o que ela disse. Por acaso,
você já parou para pensar acerca dessa diferenciação entre
estudo da linguagem e estudo da gramática?

Então, após essa breve reflexão, vamos aprofundar um pouco


sobre a diferença entre esses dois campos de estudo. Em relação aos
estudos gramaticais, Garcia (2011, p. 224) nos mostra que:

Com efeito, até o advento do Cours de Saussure e da Linguística


Estrutural as pesquisas empreendidas acerca da linguagem,
além de motivadas por fatores outros que não a língua por
ela mesma, pouco mais faziam além de apresentarem
descrições ou notações do sistema de regras inerente a
uma língua natural [...]. Em outras palavras: a Protolinguística
[estudos sobre a linguagem feitas antes de Saussure] ia muito
pouco além do que atualmente compete ao âmbito das
gramáticas científicas ou descritivas.

Logo, os estudos sobre a linguagem feitos antes de Saussure,


inclusive muitos apoiados em pesquisas envolvendo as gramáticas (por
Linguística Básica 33

exemplo, os gregos da antiguidade, os comparativistas históricos, os


neogramáticos etc.), buscaram, sobretudo, descrever as línguas por meio
das suas regularidades, objetivando evidenciar regras e preceitos.

Agora, veja o que Bagno (2019, s.n.) nos diz acerca dos estudos
linguísticos:

Poucas pessoas têm ideia do que significa ser um linguista


e, mesmo entre elas, muitas costumam achar que os linguis-
tas “combatem” a tradição gramatical [...]. Ao linguista interessa
todo e qualquer fenômeno de linguagem.

Ou seja, não é descrever, mas sim analisar fenômenos em suas


variadas formas, pois, conforme vimos nas unidades anteriores, a
linguagem humana é complexa e multifacetada, não se restringindo
apenas à língua por ela mesma. Em virtude disso, teorias linguísticas
foram desenvolvidas, com o intuito de examinar e estudar tais fenômenos.

EXEMPLO: Para que você entenda melhor essa diferenciação


entre os estudos gramaticais e os estudos linguísticos, utilizaremos um
exemplo simples, que é o caso dos pronomes demonstrativos da língua
portuguesa.

Na visão de Bechara (2009), os pronomes, basicamente, são a


classe de palavras que acompanham e/ou substituem as palavras
nominais, principalmente, os substantivos. Entre os vários tipos, existem
os pronomes demonstrativos:

São os que indicam a posição dos seres em relação às três pessoas


do discurso. Esta localização pode ser no tempo, no espaço, ou no
discurso:

1ª pessoa: este, esta, isto

2ª pessoa: esse, essa, isso

3ª pessoa: aquele, aquela, aquilo. (BECHARA, 2009, p. 167)

Você pode observar que há uma descrição, isto é, um detalhamento


das características principais acerca desse elemento da língua portuguesa,
logo, o pronome demonstrativo é visto a partir do ponto de vista gramatical.
34 Linguística Básica

Por um outro lado, veja o caso em que o pronome demonstrativo


está associado a um fenômeno linguístico de ordem textual chamado
encapsulamento.

Segundo Koch (2006, p. 93), esse último

[...] sumariza as informações-suporte contidas em segmentos


precedentes do texto, sintetizam-nas sob a forma de um
substantivo-predicativo, atribuindo-lhe o estatuto de objetos-
de-discurso.

Com o intuito de deixar mais palpável essa definição de Koch (2006),


observe o trecho abaixo:

(10) Trump ameaça taxar o aço brasileiro novamente. Essa retaliação


se deve à negociação com a China.

No exemplo (10), observe que o trecho “essa retaliação”, o qual


é denominado de expressão nominal definida, retoma e encapsula um
trecho maior, no caso “Trump ameaça taxar o aço brasileiro novamente”.
Contudo, ele não só retoma, mas também atribui um estatuto de objeto
de discurso, isto é, há um posicionamento por parte do falante em relação
ao que foi dito, demonstrando um viés argumentativo dele.

Isso se deve não só por ele ter usado o adjetivo “retaliação”, mas
também o pronome demonstrativo “essa”, o qual direcionou a característica
de retaliar algo ao trecho anterior. Vale lembrar que, segundo Braganholo
(2009, p. 1),

As expressões nominais definidas são sintagmas nominais


formados por um determinante (artigo definido ou pronome
demonstrativo) e um nome, ou ainda por um determinante,
um modificador e um nome (sendo os dois últimos não
necessariamente nessa ordem).
Linguística Básica 35

VOCÊ SABIA?

As expressões nominais definidas são muito recorrentes em


vários tipos de texto. Porém, elas estão aparecendo mais
naqueles em que as interações entre os falantes são mais
comuns, como em tweets, postagens de Facebook e blogs
na internet. Para saber mais sobre isso, sugerimos o artigo
completo de Braganholo (2009), cujo título é As expressões
nominais nos comentários de blog: https://bit.ly/30fmKlf.

Dessa forma, observe que, diferentemente de descrever, esse caso


anterior analisou um fato linguístico, um fenômeno que ocorre no dia a dia
dos falantes. E, para tal, foi necessário se apoiar em uma teoria linguística
(mais especificamente, na linguística textual).

RESUMINDO:

Neste capítulo, vimos a relação da gramática com a


linguística. Dessa forma, percebemos que os conhecimentos
produzidos pelos estudos gramaticais podem ser utilizados
pelos estudos linguísticos, como também esses podem
empregar as contribuições daqueles, evidenciando uma
troca enriquecedora entre esses dois campos do saber.
36 Linguística Básica

Gramática tradicional nos estudos linguísticos


INTRODUÇÃO:

Após refletirmos um pouco sobre a diferença entre


estudos linguísticos e estudos gramaticais, neste capítulo
discutiremos sobre a abordagem da gramática tradicional e
seus desdobramentos nos estudos linguísticos.

Para isso, devemos relembrar da fala de Martelotta (2010). Conforme


o autor nos diz, a gramática representa o conjunto de interpretações e
descrições direcionadas a uma determinada língua.

Nesse viés, ele ainda aprofunda um pouco, dizendo que o termo


gramática “[...] é utilizado para designar os estudos que buscam descrever
a natureza desses elementos [que compõem a língua] e suas restrições
de combinação (MATERLOTTA, 2010, p. 44).

No que diz respeito a isso, vale ressaltar que não existe a gramática,
mas sim gramáticas, isto é, mais de um tipo delas. Inclusive, para Travaglia
(2003, p. 12) “[...] a gramática não é um fato ou fenômeno singular, mas um
fato ou fenômeno plural”.

Só para você ter uma ideia, podemos elencar aqui, por exemplo,
a gramática histórico-comparativa, a gramática gerativa, a gramática
funcional e, aquela que iremos detalhar agora, a gramática tradicional.
Linguística Básica 37

Figura 13: Exemplo de um tipo de gramática - gramática funcional

Fonte: Editora Contexto

Assim, é importante frisar que focaremos e discutiremos a influência


da abordagem da gramática tradicional no contexto brasileiro. Isso se
justifica, pois não só ela é a mais conhecida popularmente, como também
está mais presente tanto no ambiente acadêmico quanto na educação
básica nacional.

Inclusive, esse fato instiga pesquisas e questionamentos relevantes


e, de igual intensidade, causa confusões de entendimento, as quais
impactam, principalmente, no dia a dia dos falantes brasileiros e também
no cotidiano escolar dos estudantes de língua materna.

Considerando isso, vamos começar por uma possível definição a


partir de Martelotta (2010, p. 45) sobre a gramática tradicional:

A gramática tradicional, também chamada de gramática nor-


mativa ou gramática escolar, é aquela que estudamos na es-
cola desde pequenos. Nossos professores de português nos
ensinam a reconhecer os elementos constituintes formadores
dos vocábulos (radicais, afixos, etc.), a fazer análise sintática, a
utilizar a concordância adequada, sempre recomendando cor-
reção no uso que fazemos da nossa língua.
38 Linguística Básica

Conforme vimos em unidades anteriores, ela teve seu berço na


Grécia Antiga. Inicialmente, os pensadores gregos objetivavam filosofar
acerca da relação entre a linguagem e a lógica, estabelecendo leis e
regras do pensamento.

Em virtude disso, podemos destacar um desdobramento desses


estudos, o qual produz ecos até hoje.

Ao lado dessa preocupação de caráter filosófico, a gramática


grega apresentava uma preocupação normativa, ou seja,
assumia a incumbência de ditar padrões que refletissem o uso
ideal da língua grega. Podemos ver a tendência normativa da
gramática grega na atitude de impor o dialeto ático como o
ideal. (MARTELOTTA, 2010, p. 46)

VOCÊ SABIA?

O dialeto ático era uma modalidade do grego falado na


região central de Atenas

Figura 14: Dialeto ático falado na região de Atenas

REINO Bizâncio Calcedônia


ODRÍSIO
TRÁCIA Perinto Ástaco
MAR DE
Maroneia MÁRMARA Cio

Proconeso
ILÍRIA Abdera Eno
Neápolis Dascílio
Egospótamos (405) Cízico (410)
Anfípolis (422) Tasos
Epidamno Lâmpsaco FRÍGIA HELESPÔNTICA
Sesto
MACEDÔNIA Eião Tasos Samotrácia
Cinossema (411) Abidos
Estagira
Pela
Ímbros Escepse
Metone Olinto
Apolônia
Egas Potideia
Ténedos
Antandro MÍSIA IMPÉRIO
Toroneia Adramício
Mende Escione
Lemnos Asos
Metímna PERSA
Pérgamo
ÉPIRO Halonesos
Lesbos Mitilene

Geneu
Larissa Ilhas Arginusas (406) LÍDIA
Págasas Cime
Escíato Icos
FoceIa
Córcira
Dodona
Feras MAR EGEU Sardes
Esmirna
Córcira TESSÁLIA Pepáreto
Quíos
Eritras
Clazómenas
Esciro
Ambrácia Quíos Colofão
Eubeia Teos
Éfeso
Cálcis
ETÓLIA Delfos BEÓCIA Erétria Samos Priene
MAR JÔNICO LÓCRIDA FÓCIDA Tebas
Délio (424)
Caristo
Samos
CÁRIA
Leucádia Mileto
Naupacto Plateia
ÁTICA
Patras Andros Icária Iasos
Atenas
Cedras
Ítaca ACAIA Mégara Ceos
Tinos Patmos Cauno
Corinto Míconos Leros Halicarnasso
Egina
Cefalônia ÉLIS Epidauro Siro Calimnos
Delos
Élis ARCÁDIA Citno Cnido
Naxos Cos
Trezena
Argos
Zaquintos
Olímpia
Mantineia
Sérifo Paros DODECANESO Sime
Ialisos
(418) Sífno CÍCLADES Amorgo Nísiro
Camiros
Egeu às vésperas da Guerra Telos
Sícino Astipaleia Lindos
do Peloponeso (431 a.C.) Messênia Esparta
Íos

LACÔNIA Rodes
Cidade Pilos Melos Ánafe
Esfacteria Tera
Santuário pân-helênico
(425)
Vitória ateniense
Cárpatos
Vitória peloponésia
Atenas e seus aliados Cítera Casos
Esparta e a Liga do Peloponeso Itano
Estados gregos neutros Creta Cnosos
Império Persa Cidônia
Gortina
Reino da Macedônia
0 50 100 km

Fonte: Wikicommons
Linguística Básica 39

Observe que Martelotta (2010) não falou sobre o grego antigo, mas
sim de uma modalidade específica desse, o dialeto ático.

Assim, tal preocupação normativa acabou atravessando séculos


posteriores. Depois do dialeto ático do grego antigo, foi a vez do latim
na época da Roma antiga até o fim da era medieval e, em seguida, as
línguas faladas na Europa durante o século XVI até o início da época
contemporânea, período em que a gramática normativa começa a perder
“[...] força com o surgimento dos primeiros linguistas no século XIX, sendo
apenas mais tarde retomada por Chomsky e pelos linguistas gerativistas”
(MARTELOTTA, 2010, p. 46).

Logo, pode-se notar que a sua influência é grande até hoje, uma
vez que ela se faz presente desde muito tempo atrás, ainda que com
formas diferentes.

Todavia, a questão central que pretendemos aprofundar e


problematizar neste momento é a abordagem de natureza normativa que
a gramática tradicional possui.

A fim de detalhar isso, lançamos mão da citação de Görski e Coelho


(2009, p. 78):

Quando nos reportamos à gramática normativa, de imediato


nos vem à mente a palavra “norma”. Em termos gerais, a
noção de norma corresponde à regra. No caso da gramática
normativa, trata-se de prescrição de regras a serem seguidas
sob pena de se incorrer em erro.

De uma outra forma e indo ao encontro aos autores anteriores,


Travaglia (2001, p. 30) afirma que a gramática normativa é “[...] aquela que
estuda apenas os fatos da língua padrão, da norma culta de uma língua,
norma essa que se tornou oficial”.

EXPLICANDO MELHOR:

Em outras palavras, os autores afirmam que a abordagem


da gramática tradicional gira em torno da descrição e da
prescrição de uma forma ideal de se falar uma língua por
parte dos falantes dela.
40 Linguística Básica

Em relação a isso, vários autores questionam diretamente essa


postura, como menciona Martelotta (2010, p. 46):

Não há como negar que existe uma influência dos padrões de


correção impostos pela gramática [tradicional] sobre as res-
trições de combinação dos elementos linguísticos, que ten-
de a crescer à medida que aumenta o nível de escolaridade
do falante ou o grau de formalidade exigido pelo contexto de
uso. Entretanto, propor que as restrições de combinação se
explicam basicamente pelos ideias de correção não parece
ser uma boa estratégia, já que todas as línguas do mundo
apresentam, em número extremamente elevado, construções
alternativas aos padrões gramaticais.

Assim como Görski e Coelho (2009, p. 78-79):

[...] no âmbito dos estudos linguísticos, a norma diz respeito à


língua em funcionamento nas mais diferentes situações co-
municativas. Entende-se a norma linguística como o conjunto
de usos e atitudes (valores socioculturais agregados às for-
mas) comuns a determinados grupos sociais, que funciona
como um elemento de identificação de cada grupo (FARACO,
2002, p. 39). Em sociedades diversificadas como a nossa exis-
tem, então, várias normas: a norma linguística dos pescadores
de determinada região, a norma linguística das comunidades
rurais, a norma linguística dos moradores do morro, e assim
por diante.

Dessa forma, você pode notar que a gramática tradicional, no


caso da língua portuguesa, possui o objetivo de não só descrever uma
modalidade do português falado no Brasil, mas também de prescrevê-la,
isto é, determinar que tal forma ideal deve ser priorizada ao se falar e se
escrever a nossa língua materna.

Em virtude disso, as demais formas, uma vez que não existe só a


que foi idealizada, são excluídas e desprezadas. A partir dessa postura
é que nascem termos específicos, como “língua padrão” e/ou “língua
culta”, o “certo a se falar”, “você fala errado” etc. Conforme Mendes (2012,
p. 3) atesta,
Linguística Básica 41

[...] o termo norma designa uma variedade de língua que, em


determinado período, se impõe e é imposta por todo um
aparato prescritivo como o modelo por meio do qual todos
os comportamentos linguísticos devem ser medidos. Trata-
se da língua “correta”, do “bom uso”, definições que levam à
classificação de todas as outras formas possíveis como erros
ou incorreções.

Portanto, o que queremos frisar agora é a abordagem que a


gramática tradicional tem nos estudos linguísticos, isto é, o seu caráter
normativo e prescritivo, descrevendo não só uma forma de se falar/
escrever uma língua, mas também a estabelecendo tal qual a maneira
ideal e oficial a qual deve ser seguida pelos falantes de um idioma. Esse
fato gera bastante discussão, principalmente entre os cientistas da
linguagem até hoje e também produz consequências não só no contexto
acadêmico, mas também em inúmeros setores sociais. Mas isso é um
tema que veremos na próxima unidade.

ACESSE:

Antes de encerrarmos, convidamos você a ouvir a canção


da banda “O Teatro Mágico” denominada “zaluzejo” no link:
https://bit.ly/3qjEgPI.

RESUMINDO:

Para finalizar esta unidade, neste capítulo estudamos


a gramática tradicional e seus desdobramentos nos
estudos linguísticos. Para isso, discutimos a influência da
abordagem da gramática tradicional no contexto brasileiro
e de natureza normativa que ela tem. Assim, concluímos
que a gramática tradicional, no caso da língua portuguesa,
tem o objetivo de não só descrever uma modalidade do
português falado no Brasil, mas também de prescrevê-la,
isto é, determinar que tal forma ideal deve ser priorizada ao
se falar e se escrever a nossa língua materna.
42 Linguística Básica

REFERÊNCIAS
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Linguística Básica
Leonardo Teixeira de Freitas Ribeiro Vilhagra

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