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“ARTISTA É ARTISTA,

MANÉ É MANÉ”

LOPES, NHLHSIMAS, Luiz Antônio. Dicionário da História So-


cial do Samba. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015. 335p.
No meu dicionário, roqueiro é aquilo
que fica lá em cima da rocha
E fanqueiro é o cara que vende tecido
de linho e algodão.
Pra mim sertanejo é antes de tudo um forte
e axé é força e boa sorte [...]
Nei Lopes, Dicionário

Sou muito fã de Nei Lopes desde no Brasil, consolidou uma obra res-
o tempo que Dondon jogava no An- peitável, de consulta obrigatória por
daraí e nossa vida era mais simples todos os estudiosos do samba. O con-
de viver. Sobre seu parceiro neste junto é formado por mais de uma de-
Dicionário da História Social do zena de livros, entre ficção e obras de
Samba (mas não no samba “Dicio- referência ou análise cultural, o que
nário”), Luiz Antônio Simas, tenho é bastante raro entre seus pares nas
pouco a dizer — mas figurar ao lado rodas de samba do Salgueiro e ou-
do sambista na capa deste livro re- tros bairros populares da zona norte
força o seu perfil de intelectual apai- carioca que, desobrigados de refletir
xonado pelo tema da “cultura popu- sobre os significados de seu trabalho,
lar carioca”. Sim, porque, do século investem todo o esforço e criativida-
XX ao XXI, Nei Lopes acumulou de (não sem razão) nas rimas e nos
²DOpPGHFDQo}HVJHQLDLV²XPD compassos. Nei Lopes é, finalmente,
carreira invejável entre os especia- presença obrigatória nos debates que
listas no tema. Em primeiro lugar cercam a questão da consciência ne-
porque, ao contrário de todos os au- gra e da militância contra o racismo.
tores publicados nesta área (exceção Por tudo isso, tornou-se quase uma
feita a Candeia, talvez, cuja obra entidade a ser reverenciada.
escrita é bastante limitada), ele tem Não estando imune a isso, sin-
o dom de compor sambas que sedu- to-me pouco confortável para co-
zem antecipadamente os leitores de mentar, com o habitual rigor crítico
seus textos, desanimando possíveis das rodas universitárias, o livro que
críticas. Em segundo porque, como acaba de ser lançado — em meio
intelectual interessado nos temas da às efemérides em torno do centená-
DIULFDQLGDGHHVXDVUHODo}HVFRPDV rio da gravação do “Pelo telefone”,
PDQLIHVWDo}HV FXOWXUDLV GRV QHJURV considerado por muitos o primeiro

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samba registrado comercialmente autores adotaram novamente aqui o
no país. Publicado em 2015, ga- formato das “obras de referência”
nhador do Prêmio Jabuti em 2016, — com a aparência neutra do saber
o aparecimento do livro é oportuno universal e do domínio da informa-
neste momento em que há um es- ção. Mesmo assim, cabe lembrar
forço de diversos especialistas para que, na História Social, nem mesmo
efetuar balanços, trazer novidades dicionários podem aspirar à neutra-
H UHYHU LQWHUSUHWDo}HV1 A dupla de lidade. É necessário, assim, trazer à
autores optou, entretanto, por um luz do dia as ideias que norteiam os
formato já muito utilizado no con- critérios de seleção de verbetes e seu
MXQWRGDVSXEOLFDo}HVGH1HL/RSHV conteúdo, a escolha do que seria ou
Há entre elas um número bem avul- não pertinente ao campo escolhido,
tado de dicionários e enciclopédias, relevante ou irrelevante, importante
compostos por verbetes curtos que ou acessório. Elas não são evidentes
não favorecem uma discussão mais por si mesmas, nem tão indiscutí-
aberta dos conceitos e do que eles veis quanto a autoridade de Nei Lo-
implicam na análise do processo pes para falar do assunto.
histórico de formação do samba.2 Para isso, é preciso ler as entreli-
Talvez para evitar um debate que, nhas para explicitar e discutir aquilo
com boa dose de razão, pode lhes que está por trás dos verbetes des-
parecer enfadonho ou incômodo, os te dicionário, em sua maioria úteis
e interessantes. Não que eu (ainda)
1
Entre os títulos lançados nos últimos dois goste de discutir ou questionar: ao
anos: Lira Neto, Uma história social do contrário, como Cartola nos pri-
samba – as origens, São Paulo: Com-
SDQKLD GDV /HWUDV  )HOLSH &DVWUR
meiros versos de sua carreira, na
Janaína Marquesini, Luana Costa e Raquel maturidade estou mais para “chega
Munhoz, Quelé, a voz da cor, Rio de Ja- de demanda”. Mas é indispensável
QHLUR&LYLOL]DomR%UDVLOHLUD0DULD LQWHUURJDUQRVVDVFRQYLFo}HVDFDGD
Clementina Pereira Cunha, Não tá sopa.
Sambas e sambistas no Rio de Janeiro de momento quando se trata de Histó-
1890 a 1930. E-book. Campinas, Editora da ria, ou ficamos aprisionados a uma
8QLFDPSWHUHPRVDLQGDRSURYiYHO narrativa produzida pelos seus pró-
lançamento, em breve, da tradução do prios protagonistas, sem qualquer
livro de Marc Hertzman, Making Samba:
A New History of Race and Music in Brazil, inocência. Os profissionais da área
Durham e Londres: Duke University Press, consideram um costume saudável o
2013. de clarificar o mais possível, desde
2
Entre eles, além do livro aqui resenhado: R LQtFLR DV FRQFHSo}HV JHUDLV TXH
Dicionário da hinterlândia carioca:
antigos subúrbios e zona rural   servem de esteio a análises e inter-
Dicionário literário afro-brasileiro   SUHWDo}HV²RTXHQmRpH[DWDPHQWH
Dicionário escolar afro-brasileiro   o caso deste Dicionário. Entretanto,
Enciclopédia brasileira da diáspora afri- um trabalho que procura se definir
cana   Dicionário da antiguidade
africana   Novo Dicionário bantu dentro de uma área específica do co-
do Brasil (2003). nhecimento, a História Social, vê a

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sociedade como uma arena de con- se distinguia de formas ancestrais
flitos. Nela, o debate e o confronto associadas à africanidade. A década
GHLQWHUSUHWDo}HVVmRSURFHGLPHQWRV de 1930, sob a batuta (melhor dizer
constitutivos e ninguém estará livre o apito?) de Vargas, teria assistido à
deste escrutínio crítico. Caí no laço, consolidação deste samba verdadei-
portanto, e não há como contornar a ro e original, uma vez reconhecido
WDUHIDGHGLVFXWLUDVFRQFHSo}HVTXH pelo próprio Estado como a princi-
presidiram à escolha e o conteúdo pal expressão da música nacional.
dos verbetes ou, em outras palavras, Só esta forma de pensar pode
à versão que os autores defendem explicar o caráter sumário das in-
sobre a história social do samba. IRUPDo}HVRXPHVPRDDXVrQFLDGH
A introdução do volume, embora verbetes robustos em torno do sam-
bastante econômica, deixa perceber ba praticado no Rio de Janeiro em
os traços insistentes de uma forma tempo anterior à existência das “es-
de ver a questão que vem sendo, nos colas”. No quesito geográfico, não
últimos anos, afastada pela maioria há referência para a Cidade Nova,
dos especialistas acadêmicos. Já na lugar de fixação da primeira gera-
abertura do livro, vem o endosso à ção de sambistas – embora o Está-
ortodoxia cultural de José Ramos Ti- cio de Sá mereça a honra, já que o
nhorão: só se poderia falar em sam- bairro é concebido como o “berço
ba quando os compositores teriam do samba”, ao lado de outros locais
passado a cultivá-lo “consciente- TXHVHGLDPDJUHPLDo}HVFRQKHFLGDV
mente”, como portadores de algum como Madureira, o Morro do Bo-
um tipo de projeto. Por esta razão, já rel, a Serrinha.3 Tudo o que acon-
bastante discutível, os autores ado- teceu antes disso está condensado
tam uma datação comum a outros em um verbete genérico (pp. 27-8),
intérpretes: o final dos anos 1920, TXHFRQWpPLQIRUPDo}HVVREUHRHV-
com o aparecimento da fórmula do tado da Bahia e a presença de uma
Estácio para as escolas de samba, “comunidade baiana” naquela re-
seria o marco para o nascimento do gião, mencionando os terreiros de
gênero enquanto música urbana. As candomblé ali existentes e pouco
URGDV VDO}HV H WHUUHLURV GD &LGDGH mais. O papel da religião como polo
Nova comandados por migrantes aglutinador de um forte movimento
baianos e por cariocas como Sinhô, musical desde, pelo menos, o início
Pixinguinha ou Caninha nas déca- do século XX não é reconhecido —
das anteriores (que, aliás, convive-
ram e disputaram espaço no merca- 3
Na p. 138, lê-se: “O samba carioca, nascido
do cultural com Ismael Silva e seus no bairro do Estácio e logo estendido a
companheiros ao longo das décadas Oswaldo Cruz [...]”. Note-se que há verbete
de 1920, 30 e seguintes) são relega- dirigido à zona portuária, “Cais do Porto”,
que não atribui a esta parte da cidade a im-
das, indiretamente, à categoria de portância que efetivamente teve na história
primórdios, origens, algo que mal do gênero.

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e nem mesmo a relação disso com música oficializada dos anos 1930, o
as famosas “tias” baianas, com seus país vivia um período em que a pala-
trajes rituais do culto aos orixás, é vra cultura era associada a erudição
mencionada em outro verbete sobre (e não à forma popular dos setores
HODV S $VLQIRUPDo}HVDRLQ- excluídos). Por isso, a despeito de
vés de buscar os nexos na perspecti- consagrado como oriundo da popu-
va da história social, enfatizam an- lação negra, o samba era confronta-
tes a fixação das alas de baianas nas do pelo racismo em um movimento
escolas de samba atuais e os enredos pendular de culpabilização dos afro-
carnavalescos mais recentes que descendentes pelo atraso que, afinal,
aludem à Bahia ou às baianas. En- também era “coisa nossa”, como di-
tretanto, há muito o que explicar em ria Noel Rosa.
relação a este período e ao próprio A dupla de autores incorpora
esforço de legitimação do gênero ainda, na sua definição de sam-
musical empreendido por estes gru- ba, uma outra dimensão política:
pos. Além de frequentar botequins, apoiando-se no literato Marques Re-
terreiros e rodas de partido-alto, belo, não vacilam em afirmar que “o
eles atuaram para conferir ao samba samba urbano carioca nasceu como
e ao carnaval os traços da “respei- expressão dos anseios de uma clas-
tabilidade” que julgavam indispen- se” que “tomava consciência dos di-
sáveis à aceitação e generalização reitos adquiridos com a Revolução
do samba para além dos limites de de 1930”, em um processo no qual,
seus próprios círculos: não à toa, reafirmam os autores, sempre per-
deles vieram os primeiros registros sistiram a tensão e a subestimação
fonográficos conhecidos da música (pp. 12-3).
urbana carioca, cujo centenário se O jazz norte americano, segun-
comemora este ano. do eles, teria nascido de um modo
Seja como for, e com quais pro- muito semelhante ao samba carioca
tagonistas, tal processo de aceitação (negro, popular, nacional, contesta-
— abrindo caminho em meio ao tório) mas, ao contrário deste, logo
preconceito e à intolerância como se tornaria “um modo universal de
enfatizam os autores — não se daria expressão musical” (p. 13). Para ex-
sem conflitos. Para os autores, em plicar a inferioridade do samba nos
uma expressão que soa um tanto es- circuitos internacionais, valem-se de
tranha, a força do samba neste perí- Darcy Ribeiro: na década de 1980,
odo “transcendia o racismo” (p. 12): RGRPtQLRGDVFRUSRUDo}HVPXOWLQD-
simultaneamente, servia aos interes- cionais sobre os órgãos formadores
ses políticos dominantes e oferecia de opinião pública e seu controle
um canal de reconhecimento para os sobre as redes de comunicação de
seus criadores negros e marginali- massa teriam gerado uma progressi-
zados. Ao mesmo tempo, observam va descaracterização de “nossa” cul-
eles, quando o samba se tornava a tura e a alienação crescente da cons-

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ciência nacional. Descaracterizar o que aparentemente modernizadas
samba da sua forma original seria, em alguns momentos pelo emprego
para eles, como abdicar da identida- de palavras como “transnacional” ou
de brasileira (pp. 12-3).4 “multicultural” que aparecem aqui
Tudo isso teria levado à “recolo- e ali nos verbetes, as velhas ideias
nização do país” e à perda de espaço do samba como uma manifestação
do samba como sua expressão mais essencializada, racial e classista,
autêntica. Finalmente, face a este de resistência política movida por
processo violento, o samba surpre- vários níveis de “consciência” que
enderia ainda hoje, tanto no plano perfazem sua identidade nacional
artístico como no social, por seu -popular. Dir-se-ia que estamos de
poder de resistência à permanente volta aos tempos de Dondon, como
pressão derrogatória de que é obje- se, de alguma maneira, eles jamais
to. A evidência desta força estaria tivessem se ausentado das conversas
em sua renovação constante e na ap- sobre o samba e seus significados.
tidão de assimilar valores de outras Muitos autores acadêmicos e não
origens, enfrentando nas últimas acadêmicos, entretanto, apostaram
décadas a “música transnacionali- nesta construção, de modo que Nei
zada” como o funk e o hip-hop que Lopes e Luiz A. Simas não estão
³VRQRUL]DPDo}HVSUyFLGDGDQLDQDV sozinhos neste engano que já dura
comunidades excluídas e carentes muitas décadas na historiografia
dos guetos e periferias” — aparente- e musicografia brasileiras sobre o
mente para desgosto dos sambistas samba. Já é hora, portanto, de rever
de estirpe e de raiz (pp. 11-3). DOJXPDVGHVWDVLQWHUSUHWDo}HVHSHU-
Estão presentes nesta forma de mitir que novas possibilidades his-
argumentar todos os elementos de tóricas ocupem seu lugar (e talvez
uma ideologia cristalizada na calda deem espaço a outros verbetes em
açucarada do nacionalismo e uma uma próxima edição deste dicioná-
perspectiva que aprisiona a análise rio tão útil aos estudiosos e interes-
cultural a uma versão francamente sados no tema).
antiquada do marxismo. Os termos Como diz o próprio Nei Lopes
utilizados não permitem engano: em outro trecho do samba que abriu
autenticidade, resistência, cultura este texto: “É preciso cuidado com
nacional, classe e raça. Por vezes, o que a gente fala/ A boca mais sá-
povo ou popular aparecem como bia é aquela que cala/ E que pensa
sinônimos dos dois últimos elemen- bastante antes da canção”. Tenho
tos, mas isso não muda muito o es- discutido em meus últimos traba-
quematismo teórico. Aí estão, ainda OKRV DOJXPDV GHVWDV FRQFHSo}HV
argumentando que: a) a associação
4
entre samba e nacionalidade, ou
O verbete “Festivais da canção” (pp. 132-4)
é um bom exemplo desta concepção. Ver HQWUH DV QRo}HV GH ³SRSXODU´ H GH
também “Internacionalização”, p. 163. “nacional”, foi uma longa e eficaz

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construção empreendida por intelec- em uma linguagem musical que se
tuais e agentes políticos, nem sempre universalizou para exprimir as ten-
com propósitos idênticos ao longo V}HVHGLIHUHQoDVSUHVHQWHVQDVRFLH-
GR VpFXOR ;; E  TXH RV VDPELVWDV dade (e não apenas a visão de mundo
com diferentes perspectivas, inten- dos oprimidos ou da nação).5
o}HV H HVWUDWpJLDV IRUDP SDUFHLURV Nesta perspectiva, o samba deixa
nesta construção também com senti- de ser entendido como uma simples
dos que mudaram ao correr do tem- forma de resistência contra a desca-
SRF TXHDDVVRFLDomRHQWUHVDPED racterização imperialista da “nossa
e “cultura negra” (seja lá qual for a cultura” para constituir um lugar de
definição que se adote para este ter- embate entre seus próprios produto-
mo) é um tanto forçada, em vista das res, oriundos de diferentes lugares
FRQGLo}HV KLVWyULFDV HP TXH VH GHX no tecido social. Foi assim também
o surgimento do gênero em meio às com a música norte-americana, que
camadas subalternas da população parece soar um tanto ameaçadora
da cidade do Rio de Janeiro e à ine- aos autores do dicionário, a propó-
vitável convivência cotidiana entre sito. Nela cabem Louis Amstrong,
trabalhadores negros, brancos, bra- Billie Holliday, George Gershwin,
sileiros e imigrantes, igualmente nu- Cole Porter, Nina Simone e Frank
PHURVRV QDV KDELWDo}HV SRSXODUHV H Sinatra e quem mais vier — e nem
nos lugares de trabalho e lazer — ou mesmo a gigantesca indústria do en-
no xadrez das delegacias: a presença tretenimento norte-americana, que
destes sujeitos entre os sambistas não fez deles artistas que alcançaram
seria, nesta perspectiva, uma exceção e comoveram todo o mundo, pode
PDVVLPXPGDGRFRVWXPHLURG IL- jamais apagar suas diferenças sob
nalmente, que o samba não pode ser o rótulo comum de um (único?) gê-
visto como resultado de um proces- nero musical. Se comunidades dos
so unívoco: ele foi produto de uma morros e subúrbios, se o movimen-
disputa permanente entre diferentes to negro, a juventude dourada da
comunidades negras e populares, zona sul carioca e outros sujeitos se
com experiências, modos de vida e apropriaram do samba em diferentes
DVSLUDo}HV GLYHUVDV 0HVPR TXDQGR décadas e, com seus acordes, hastea-
foi erigido como expressão nacional ram as próprias bandeiras, é preciso
e fatia lucrativa no mercado cultu-
ral, o samba esteve longe de expres- 5
Desenvolvi estas ideias em “Não tá sopa”
sar univocidade, constituindo antes e, antes, em Ecos da Folia. Uma história
social do carnaval carioca entre 1880 e
um campo de embate cultural entre 1920, São Paulo: Companhia das Letras,
diferentes sujeitos sociais no qual  YHU WDPEpP ³&DQGHLD H R $QMR
elementos de tensão social como a Moreno”, in Sidney Chalhoub e Ana Flá-
SREUH]D R UDFLVPR DV UHODo}HV GH via Magalhães Pinto (orgs.), Pensadores
negros – pensadoras negras, Cachoeira:
gênero, a política e assim por diante (GLWRUD8)5%%HOR+RUL]RQWH)LQR7UDoR
recebem diferentes leituras expressas Editorial, 2016, pp. 319-44.

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entender estes embates não como sem deixar margem a dúvidas.7 É
tentativas de apropriação indevida, claro que houve, na maior parte dos
descaracterização, sintoma de pro- grupos de sambistas, uma preva-
cessos de subordinação e resistên- lência de indivíduos descendentes
cia. Como qualquer linguagem, o de africanos escravizados e isso foi
samba serve para exprimir diferen- decisivo na configuração do gênero
tes pontos de vista sobre a socieda- musical — mas talvez essa forma
de e seus conflitos – sem perder, é de entender sua história possa ser
bom que se diga, o frescor ou a au- temperada pela constatação de que
tenticidade. É um espaço múltiplo o racismo lhes fechou, mais que aos
e tenso de diálogo entre diferentes, pobres em geral, as oportunidades
um idioma comum que teve sempre de saltar para fora das favelas e bair-
sotaques diversos.6 ros populares onde o samba nasceu
Já posso ver os autores e muito e se firmou. Isso não confere auto-
mais gente torcendo o nariz. Por maticamente aos sambistas qualquer
isso, devemos explorar este campo perspectiva de consciência, e muito
pisando devagar, miudinho, deva- menos de classe, no interior de um
garinho — e pensando bem antes circuito cultural massificado. Tam-
da canção como sugere o mestre pouco torna possível lhes atribuir a
Nei Lopes. Até porque nada do que exclusividade do gênero, cuja difu-
VXS}HP RV DXWRUHV GR Dicionário são fez com que tivessem acesso a
constitui propriamente um erro. ambientes sociais antes vedados a
Evidentemente o samba tem um eles. Nos anos 30 já não era possível
elo inegável com a síncopa africa- aceitar tal perfil restrito para estes
na, como mostrou Carlos Sandroni músicos e compositores — ou te-
ríamos que excluir de seu convívio
nomes como Noel Rosa, Carmen
6
João José Reis, “Tambores e temores: a Miranda e tantos outros artistas que
festa negra na Bahia na primeira metade do
século XIX”, in Maria Clementina Pereira marcaram época —, assim como ne-
Cunha (org.), Carnavais e outras frestas. gar o rótulo de samba às harmonias
Ensaios de história social da cultura e à “batida” de João Gilberto.
(Campinas: Editora da Unicamp, 2002), Repetindo o refrão: sambistas
pp.101-55, descreve como esta percepção
estava presente na Bahia outocentista. Ao são artistas, não porta-vozes polí-
relatar “uma algazarra” ocorrida em janeiro ticos da nação ou dos oprimidos.
de 1844, por exemplo, um carcereiro da pri- Oriundos de lugares diversos da so-
são municipal de Salvador esclarece: “não ciedade, eles exprimem diferentes
podia perceber se era samba de africanos ou
de nacionais” (p.128). Além de evidenciar o experiências e modos de ver. Por
uso da palavra “samba” no mesmo campo
semântico de “batuque” e registrar o uso do
7
termo muito antes do que se costuma supor, Carlos Sandroni, Feitiço decente. Trans-
esta passagem (e outras no mesmo texto) formações do samba no Rio de Janeiro
sugere como, desde muito cedo, a prática (1917-1933)5LRGH-DQHLUR-RUJH=DKDU
SRGLDWHUGLIHUHQWHVVRWDTXHVHVLJQL¿FDGRV Editora da URRJ, 2001.

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isso, e não por outra razão, o samba racial e socialmente heterogênea das
constitui uma excelente fonte de es- ruas de prostituição nos anos 1920.
tudo para historiadores: ele expressa Algumas ausências chegam a espan-
PXVLFDOPHQWH DV WHQV}HV H DV GLIH- tar. A maior delas é a falta de uma
renças verticais (entre dominantes entrada especifica para discutir “Ra-
e dominados, por assim dizer), mas cismo”, ausente na sistematização
também as horizontais (entre seto- proposta pelos autores. Fica difícil
res diferentes de uma mesma clas- entender por que tal questão, crucial
se, por exemplo). Permite flagrar as para a própria perspectiva defendida
WHQV}HV FRQIOLWRV H DSUR[LPDo}HV por eles, é tratada de passagem em
TXH FHUFDP DV UHODo}HV HQWUH KR- outros momentos ou traduzida obli-
mens e mulheres, negros e brancos, quamente como “Desqualificação”
EUDVLOHLURV H HVWUDQJHLURV SDWU}HV H no verbete que enfrenta mais dire-
empregados, homens “de família” e tamente o problema (pp. 97-8). Ela
JHQWH GD RUJLD HQWUH D SROtFLD H RV poderia ser retomada em “Consciên-
pobres da cidade, entre as autorida- cia negra” (76-7), outra oportunidade
des e os cidadãos — o que, conve- perdida de deixar aflorar o tema: nes-
nhamos, é muito mais do que o olhar ta passagem, os autores limitam-se
binário que os autores sugerem aos a uma breve e genérica definição do
usuários do volume.8 termo, uma sumaríssima referência
Um passeio por alguns verbetes aos movimentos negros desde o final
pode exemplificar estes limites — dos anos 1930 e, finalmente, a arrolar
tanto quanto uma busca por aquilo compositores que adotaram este tipo
que faz falta no volume. Não há, por de temática em seu trabalho, como
exemplo, um dedicado ao teatro de Candeia.
revista — que serviu de base para a Cabe mencionar ainda dois ver-
popularidade de músicos como Si- betes, que deveriam ser o prato prin-
nhô, Pixinguinha e muitos outros cipal do volume, mas deixam bastan-
que se lançaram antes do sucesso te a desejar em termos de densidade
dos sambistas malandros do Estácio.9 analítica e mesmo em relação às in-
Sinto falta igualmente — retornando IRUPDo}HVTXHFRQWrP(PSULPHLUR
às referências geográficas do samba lugar, espanta a curta referência ao
na cidade — de um verbete “Zona “Carnaval”, que merece uma entrada
GR0DQJXH´TXHH[SOLFLWHDVUHODo}HV própria, mas resumida em oito linhas
entre os sambistas e a boemia carioca, — complementadas aqui e ali por in-
IRUPDo}HV LJXDOPHQWH WUXQFDGDV HP
8
O verbete “Fonte histórica”, p. 134, aborda outros verbetes (pp. 54-5). O dedi-
VXSHU¿FLDOPHQWHRWHPDDRLQGLFDURXVRGH cado ao termo “Cordão”, por exem-
sambas como testemunhos dos contextos plo, diretamente alusivo ao universo
em que foram produzidos, mas não desen- carnavalesco, não chega a mencionar
volve esta possibilidade.
9
As únicas referências, em todo caso indire- sua característica designada pela im-
tas, estão nas pp. 27-8 (verbete “Bahia”). prensa do início do século XX como

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“pancadaria”, devido ao uso forte da contribuição começa pelo peso do
percussão e cuja semelhança com verbete “Política”, em que as rela-
baterias de escolas mais recentes é o}HV HQWUH DV HQWLGDGHV GR VDPED
evidente (pp. 78-9). O verbete “Sam- com suas lideranças e os agentes
ba”, por outro lado, não por acaso é o públicos são exploradas (pp.222-
maior de todo o volume (pp. 247-55). 4). Certamente este é um tema es-
Seu conteúdo, entretanto, decepciona tratégico para compreender certos
o leitor mais exigente. Recorre-se mecanismos da política carioca, es-
longamente ao perigoso exercício da pecificamente, e também, em certa
etimologia (à qual os autores pare- medida, em outras partes do país.
cem aficionados, como convém aos Escolas de samba, com seus fortes
que apreciam dicionários e enciclo- vínculos comunitários, adquiriram
pédias). Há uma rápida apreciação um grande peso eleitoral disputado
morfológica para diferenciar samba por diferentes correntes, aspecto que
rural e outras modalidades do sam- tem sido pouco desenvolvido pelos
ba urbano carioca — apresentando pesquisadores da área. O conteúdo
uma visão evolutiva que faz com GHVWHYHUEHWHIRUQHFHLQGLFDo}HVLP-
que este último derive de cucumbis e portantes para quem se proponha a
FRUG}HVFRPVHXV³FRPSRQHQWHVGH mergulhar na tarefa de compreender
brasilidade, como a presença de ne- R LQWULFDGR WHFLGR GHVWDV UHODo}HV
gros fantasiados de índios” (p. 253). perigosas que datam, pelo menos,
Creio que incorrem em erro aí, pois dos anos 1920.11 Desconfio que este
negros fantasiados de índios bem po- caminho será precioso para enten-
diam derivar dos caboclos de terreiro der boa parte do que veio depois
— presentes em algumas formas de na história da cidade e do país, ao
religiosidade como o candomblé e sedimentar numerosos mecanismos
omolokô presentes na cidade do Rio que fizeram florescer o populismo
de Janeiro —, mais que revelar algu- nas décadas seguintes. Nei Lopes e
ma forma de “brasilidade”. Luiz Antônio Simas oferecem pers-
Apesar destes limites, o Dicio- pectivas mais recentes, mas não me-
nário tem pontos fortes e oferece nos importantes, para explorar estas
LQGLFDo}HV LPSRUWDQWHV DRV SHVTXL- possibilidades analíticas.
sadores do tema, tanto sob a forma Há ainda verbetes corajosos. O
GHVXJHVW}HVGHSHVTXLVDTXDQWRQR
fornecimento de instrumentos já de-
11
senvolvidos de investigação.10 Esta Desde os anos 1920, existiu na cidade um
movimento autodesignado “recreativismo”,
TXHPLVWXUDYD¿JXU}HVGDSROtWLFDFDULRFD
10
O verbete “Cinema”, por exemplo, traz um (alguns com projeção nacional) e grupos
LQYHQWiULRH[WHQVRGRV¿OPHVTXHWUDWDUDP de sambistas e carnavalescos, organizados
do samba de diferentes maneiras. “Escola HPDJUHPLDo}HVTXHVHIRUWDOHFLDPGHVWHV
de samba” (pp. 116-23) também traz infor- elos – ao mesmo tempo em que abriam
PDomRULFDVREUHDVDJUHPLDo}HVLQFOXVLYH canais de comunicação direta entre grupos
as que se extinguiram ao longo do tempo. políticos e setores populares.

Afro-Ásia, 54 (2016), 385-394 393

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termo “Violência”, por exemplo, zação — parecem considerar como
aborda um tema delicado e difícil sua tarefa primordial defender,
de tratar, mas relevante ou talvez PHVPRUHFRUUHQGRjVYHOKDVQRo}HV
até mesmo decisivo para entender o de autenticidade e resistência, uma
samba em nossos dias e sobre o qual experiência que foi e é ainda vital
é necessário falar: a criminalidade e SDUD DV SRSXODo}HV GHVWDV FRPXQL-
a força que ela adquiriu nas comu- dades esquecidas e vilipendiadas da
nidades que abrigam as escolas de cidade que se diz maravilhosa. Tal
samba (pp. 297-300). O tema está dimensão, que havia sido percebida
diretamente ligado à compreensão por Candeia, tem ainda um signifi-
da força comunitária e política das cado político e social que faz com
DJUHPLDo}HVFDUQDYDOHVFDVFDULRFDV ela possa se manter viva e fazer
HP VXDV LQWULQFDGDV UHODo}HV FRP sentido para tanta gente.12 Isso dife-
a política institucional e com o po- rencia a perspectiva de Nei Lopes e
der paralelo da criminalidade orga- Luiz Antônio Simas (ou de Candeia)
nizada, que invadiu inclusive estes do simples nacionalismo teimoso e
canais de comunicação oficiais. A antiquado de outros autores. Nei
força das escolas de samba no Rio Lopes não é propriamente um his-
de Janeiro, produzindo identidades, toriador, mas um artista com boa
sentimentos de pertença e de comu- formação intelectual, sensibilidade
nidade nas favelas e periferias, é um política e muita habilidade, tanto
tema subjacente a boa parte dos ver- na hora de versejar quanto na de
EHWHV TXH FRPS}HP R Dicionário. organizar o seu saber, resultado de
Este é, aliás, o ponto alto da inter- décadas de convívio com o mundo
SUHWDomR VXEMDFHQWH jV LQIRUPDo}HV que descreve e torna mais inteligível
trazidas pelo volume — uma espé- para os leigos. Assim, nada melhor
cie de visão organizadora que está para fechar estes comentários que os
por trás de boa parte de seus conteú- versos que encerram o mesmo sam-
dos. Se isso não chega a configurar ba que abriu este texto:
uma história social do samba, é por-
Artista, em meu ponto de vista,
que Nei Lopes e seu parceiro — que
é quem cria e conquista
têm domínio incontestável sobre as
E que sabe que, mesmo em capa de
TXHVW}HVHPWRUQRGDVTXDLVGHVHQ-
revista,
volvem seu trabalho de sistemati-
Artista é artista e mané é mané.

Maria Clementina Pereira Cunha


Universidade Estadual de Campinas
mcpcunha@terra.com.br

12
Cf. Maria Clementina Pereira Cunha,
“Candeia e o Anjo moreno”, op. cit.

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