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MON IQUE BOR IE • MARTI NE DE ROUGEMONT • JA C Q U ES SCHERER

ESTÉTICA TEATRAL
TEXTOS DE PLATÃO A BR ECHT

Trad ução de
HELENA BARBAS

SER V I<; O DE ED UCAÇ',';'O

FU N DAÇÃO CA LOUSTE GULBENK IAN I LI SBO A


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T rad ução do or iginal francê s intitu lado :

Esth étique Th éâtrale


Te xtos de Platon à Brc ch t

© 1982 C.D.U. et SE DES


Paris

NOTA À ED IÇÃ O PORTU G UESA

Esta antolog ia f oi o rg anizada essencialmen te em fu nção dos


interess es d os a lunos e leitores fran ce ses . Este a sp ecto é mais evi-
d ente no caso d e alguns textos (principalmente do século XI'!!) que
s áo reproduzidos com grafia e sintax e d e época. Dado que e m p o r-
tu guês n ão f aria sen tido esse tip o d e anacronismo . e va lo riza ndo a
leg ibilidade , a red acção fo i actua liza da tentando não ofe nder d e -
masiado o es tilo. Pro curou -se tamb ém, sem p re que necessário . / 10

caso d os texto s d e o r ig em in gl esa e alemã . faze r a co mpara ção CO /l1

o original ou re cor re r a o utras tradu çõ es já existe ntes em portug u ês


- que aparecem ref eridas após as indica ções bibliogr áficas do or i-
gi naI franc ês.
No que respeita às n otas. adoptaram -s e as seguintes siglas :
NA .. quando perten c e a o autor do exc e rt o : N. F.. quando é introdu -
zi da pelos antologiado rc s franceses , e N .T. . para as nota s da tradu -
ção p ortuguesa.
Rese rvados lodo s os dire itos de acordo co m a lei

Edição da
FUNDAÇÃO CALOU STE GULBE N K IAN
A v. de Berna - L is boa
1996

Depósito Legal n.o 92 :\h 1l9S


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NOTA PRÉVIA

E sta obra não é um tratado. Apre senta -se ante s s ob a forma


mai s mode sta d e uma colect ân ea. O s texto s, recolhido s e m todas as
civ ilizaç õ e s e e m todas as é poc as que no s legaram propostas úte is
so bre as que stõ es do teatro , foram reuni do s aquando d e um curso
qu e de correu po r vá rios an o s no In stituto de Es tudos Teatrais da an-
tig a S orbonne , e depois, m ai s tarde , na Uni vers idad e de Paris-Hl .
Par eceu-no s que a form a ção h ist órica, técnica e pr áti ca dos no ssos
a lunos deveri a se r com ple tada c o m uma reflexão so b re os grandes
p robl emas do teatro, tal como foram v iv idos e exp o st o s por criado -
re s, filósofo s o u escritore s. Por outro lad o, não e xi sti a , e m francês,
uma recolha de es crito s fund amentais qu e permiti sse es te tipo de re-
flexão, e sentimo s necessid ad e de preench er essa lacuna .
Na verd ad e , o s no ssos textos levantam mais pr oblemas do qu e
oferecem soluções. Se, para quem qu er qu e se int eresse pelo teat ro ,
cons t itue m um a es pécie de manual do estuda nte, a Sebe nta do Pro -
fesso r, c o mo se di zia anti g am ente , que d á re spo st a s às quest ões
co locadas , ainda es tá por escrever. Caso qui sesse ser com pleto, at in-
g iria dimensõe s g igan tescas, e pro vavelmente nunca o teríamos es -
c rito . Pensamo s que é mai s fecundo dei xar o leitor re sponder por s i
pr óprio aos de safios que lhe apresentam , d ado a sua riqu eza e densi-
d ad e, os texto s qu e reunimo s.
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Também não é fácil definir com rigor o próprio domínio a qu e I - PLAT ÃO : A R EPÚBLICA (e ntre 389 e 370 a.c.)
os te xtos co nt inuamente fazem alusão . Pode mesmo , inclusiv e , se r
contes tada a id éia de uma es tética teatral. As s uas antigas pret en- N est e lon go diálogo, qu e a tra diçã o divide em d ez livros , Pla-
sõe s normativas estão hoj e largamente desacreditadas, e até a sua tã o (429-34 7 a .Ci) apresenta o seu m estre, Sócrates , e 11m grupo d e
própria unidade pode se r posta em ca usa . A no ssa é poc a já não a te nienses a tentar definir a noção d e j ustiç a . Para aí chega rem , é-
ac re d ita m ai s numa form a única de bel e za tal como proclamada , -lh es necess ário recorrer ao paradigma d e uma cidáde ideal, onde a
co m conte údos ad e mais d iferentes, pel os impe rial ismos c u ltura is justiç a poderia desenvolver as suas características e efe itos . A fo rma
so frive lme nte ing énuos. M as tamb ém nã o ac re d ita qu e sej a po ssível d id áctica do d iá logo p erm ite 11m encadea men to rigoroso e su bt il
recu sar um se ntido a um co nj unto, e m qu e c ad a um dos elemento s dos argumentos.
parece arbitrário mas c uja co mpos ição , não o bstan te , adq uire ne ce s- A s p assagen s que citamos apresentam A di m anto, o irmã o se -
sa riame nte um a estrutura estética. Co nta nto que nã o seja sepa ra da, cundog énito de PIarã o , co mo interlo cutor d e Sócra tes . Esta beleceu-
nem da s di versas té cni cas , nem da hi st ória, n em da moral, ne m -s e que a C idade preci sará de guardi ã e s. quer di zer, de uma eli te
mesmo da metafísica, a es tética pode o fe re ce r-se corno o lugar co- g ue rreira e administrativa. Qual deve ser a forma çã o d esses gu ar-
mum em q ue é possível si tua r as declara ções válidas so bre a essên- diôes? A s artes imitativas ter ão aí lu gar ? E primei ro q ue tudo , qual
c ia do fenómen o teatral. É pel o menos assi m que a e nte ndemos. é a natureza dessas artes ?
A nossa aprese ntação dos textos segue e m ge ra l a ordem c ro -
nol ógica da sua difu são pública. Reduzim o s as inform aç ões hi st óri-
cas e as not as ao mínim o indi spen sá vel. A nossa esco lha foi feita I . N arra tiva e teatro
e m fun ção do a lca nce dos probl emas gera is que cada a uto r co loca, - O ra d iz-me: sa bes o começ o d a Il iada , qu ando o po eta d iz
ma s também da influên ci a exe rcida pel as ideias ve icu ladas so b re o que Crises impl orou a A gam émnon que lhe libertasse a filha, m as
desenvolvimento do teat ro . No caso de a lg u n s text os que não tiv e- es te lhe foi ho stil, e aqu ele, uma ve z que não alcanç ou o seu fim,
ram uma reedição moderna, optamos por não actual izar a grafia e a fe z uma inv oca ção à div indade contra os A q ue us?
pontuaçã o para co nse rva r o se u sabor anti g o . Trat a -se apenas de ex - - Se i, s im .
ce rtos, mas qu isemos qu e fosse m, tanto qu anto possí vel , de tama- - S ab es , portanto, qu e até es te pont o d a e po peia
nh o substanc ial, por m oti vos igualm ente pedag ógi cos e pr áti cos ; na E di ri giu súp licas a todos os A q uc us,
a ltura, tam bém tivemos e m cons ideração a dificuld ade de e ncon tra r
especialmen te a os do is A tri das, co m a nda ntes d os p o vos ,'
a lgumas das o bras nas livrari as. Demo s a cada passagem um títul o
é o própri o poe ta que fa la e não tent a vo lta r o nosso pensamento
que procura sig n ifi ca r o se u esse ncia l. C a d a text o é acom panha do
p ara outro lad o, como se fosse outra pes soa que di sse sse , e não e le.
por uma referência preci sa , e indicações que permitem recoloc á -Io
rapidamente no seu conte xto; em tal c irc un stâ nc ia, m encionamos
uma edição mod erna de fác il cons ulta . , N .T .: I/iodo , I. 15-16
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E depois disto, fala como se Crises fosse ele mesmo e tenta o mais porém, Agamérnnon, enfurecido, ordenou-lhe que se retirasse ime-
possível fazer-nos supor que não é Homero que fala, mas o sacer- diatamente e não voltasse, sob pena de nada lhe valerem o ceptro e
dote, que é um ancião. E quase todo o resto da narrativa está feito as bandas do deus. Antes de libertar a filha, havia de envelhecer em
deste modo, sobre os acontecimentos em Ílion, em Ítaca e as prova- Argos junto dele. E mandou-lhe que se retirasse, e não o excitasse,
ções em toda a Odisseia. a fim de que pudesse regressar a casa a salvo. O ancião, ao ouvir es-
- Absolutamente, declarou. tas palavras, teve receio e partiu em silêncio, e, afastando-se do
- Portanto, há narrativa, quer quando refere os discursos de acampamento, dirigiu muitas preces a Apolo, invocando os atribu-
ambas as partes, quer quando se trata do intervalo entre eles? tos do deus, recordando e pedindo retribuição, se jamais, ou cons-
- Como não seria assim? truindo templos, ou sacrificando vítimas, lhe tinha feito oferendas
- Mas, quando ele profere um discurso como se fosse outra do seu agrado. Como retribuição, pedia que os Aqueus pagassem as
pessoa, acaso não diremos que ele assemelha o mais possível o seu suas lágrimas com os dardos do deus»". É assim, ó companheiro,
estilo ao da pessoa cuja fala anunciou? que se faz uma narrativa simples sem imitação - concluí eu.
- Diremos, pois não! - Compreendo.
- Ora, tomar-se semelhante a alguém na voz e na aparência é - Compreende, portanto - prossegui - que há, por sua vez, o
imitar aquele com quem queremos parecer-nos? contrário disto, que é quando se tiram as palavras do poeta no meio
- Sem dúvida. das falas, e fica só o diálogo.
- Num caso assim, parece-me, este e os outros poetas fazem a - E compreendo, também, que é o que sucede nas tragédias.
sua narrativa por meio da imitação. - Percebeste muito bem, e creio que já se tomou bem evidente
- Absolutamente. para ti o que antes não pude demonstrar-te; que em poesia e em
- Se, porém, o poeta não se ocultasse em ocasião alguma, toda prosa há uma espécie que é toda de imitação, como tu dizes que é a
a sua poesia e narrativa seria criada sem a imitação. Mas, não vás tu tragédia e a comédia; outra, de narração pelo próprio poeta - é nos
dizer outra vez que não entendes, vou explicar-te como é que isso ditirambos que pode encontrar-se de referência; e outra ainda cons-
aconteceria. Se Homero, depois de ter dito que Crises veio trazer o truída por ambas, que se usa na composição da epopeia e de muitos
resgate da filha, na qualidade de suplicante dos Aqueus, sobretudo outros géneros, se estás a compreender-me.
dos reis, em seguida falasse, não como se se tivesse transformado
em Crises, mas ainda como Homero, sabes que não se tratava de 2. Sociologia da imitação
imitação, mas de simples narração. Seria mais ou menos assim (ex-
primo-me sem metro porque não sou poeta): «O sacerdote chegou e - Adivinho já - disse ele - que queres examinar se havemos de
fez votos por que os deuses lhe concedessem conquistar Tróia e sal- receber na cidade a tragédia e a comédia, ou não.
var-se, mas que lhe libertassem a filha mediante resgate, por temor aos
deuses. A estas palavras os outros respeitaram-no, e concordaram; N. T.: Todo este trecho parafraseia os versos 14-42 do Canto I da lIíada.
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- Talvez - decl ar e i - , tal vez até ainda mai s d o qu e isso. A inda - Por co nsegui n te, se conse rvar mos o pri meiro argumento, de
não se i ao ce rto ; ma s p or onde a razão , como uma brisa, nos levar, é q ue os nossos g ua rdi õcs , isentos de lod o s os o utros ofícios, devem
por aí qu e devem os ir. se r os artífi ce s mu it o esc ru pu los os d a libe rd ade d o Est ado , e d e
- Dizes bem . nada mai s se devem oc upar qu e não di ga respeit o a isso, não hão -d e
- Conside ra, poi s , ó A d imanto, o segu inte: se os gua rd iões de- faze r ou imitar qu al quer ou tra co isa. Se imitarem , qu e imitem o qu e
ve m se r imitadores ou não . Ou resulta d o que di s ~émos ante rio r- lh e s co nvé m de sd e a in fância - coragem , se nsatez, pure za , lib e r-
mente qu e ca da um só exerce bem uma profis são , e não mu ita s, d ad e , e todas as qu ali d ad e s dessa es péc ie . M as a ba ixeza, não de-
mas, se tentasse exercer mu itas, falharia e m a lc anç ar qu alque r repu - ve m prat icá-I a nem se r c a pazes de a im ita r, nem nenhum dos o utros
tação? víc ios, a fim de q ue , pa rtindo da im itação , passem ao gozo da reali -
- Como deixari a de se r assi m? dade. Ou não te ap ercebeste de qu e as imi taç õe s, se se persevera r
- E não é válido o mesm o raciocínio para a imitaçã o , de q ue a nelas desde a in fân c ia , se tr an sformam e m h á b ito e natureza para o
mesm a pessoa não é capaz de imita r muitas coisas tão bem com o corpo , a voz e a int el igên c ia?
um a só? - Transform am e muito.
- C laro que não. - Logo, não orde nare mo s a um daquel e s d e qu em queremo s
- Logo, dific ilme nte exercerá ao mesmo tempo um a das profis- ocupa r-nos e qu e é preci so que se tornem homens supe rio re s que .
sões de impo rtâ nc ia e imi ta rá muit as co isas e se rá im itador, um a se ndo homen s. im ite m um a mulher, nova o u ve lha, a injuriar o ma rid o ,
vez q ue nem se q uer as mesm as pessoas imitam bem ao me s m o o u a criticar os deu ses , o u a gabar-se , po r se supo r fe liz, o u domi nada
tem po duas artes miméti cas que parecem pró x im as um a da outra , a pel a de sgraça , pel o desg o st o e pel os ge m idos ; muito men os qu ando
comédia e a tragédi a. Ou não chamaste há pou co im itações a am bas? es tá doent e, o u apaixonada, ou co m as do res d a m atern idad e .
- Ch am ei , sim. E di zes a verdad e : as mesmas pessoa s não são - A bsoluta mente .
ca pazes d isso. - Ne m qu e imitem e scravas e esc ravos. p ro ced endo com o tai s.
- T ão-pou co se p od e ser ao mesmo tempo rap sod o e ac tor. - Nem isso.
- É verdade . - Nem homen s perve rsos e cobardes, m e parece , qu e fa zem o
- Ne m seq ue r os act ores são os mesmos nas coméd ias e nas co ntrá r io do qu e há po uco d isse mos, qu e fala m mal e troç am un s
tragéd ias. Ora, tud o isso são imitações, o u não ? dos o utros e d izem coisas ve rgonhosas . tanto qu an do es tão e m bria -
- São imi tações. g ados co mo só b rios . e tod a a es péc ie de erros qu e ta is pes s oa s
- Parece -me, Ad im anto, que a natureza hum an a es tá fragmen - comete m, em pa lavras e e m acções contr a s i m esm os e co ntra os
tada em parte s ainda mais pequenas, de modo que é incap az de im i- outros; entend o ai nda qu e não devem habitua r-se a assem e lhar-se
tar bem muitas coisas ou de executa r bem aquelas mesmas de qu e ao s loucos em palavras nem em actos . Poi s d ev em conhecer-se o s
as imi tações são cópia. loucos e os mau s, homens ou mulheres , m a s não fazer nem imitar
- A bso lutamente - respondeu. nada que seja del es.
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- É assim mesmo. - É natural - respondeu ele.


- Pois bem - prossegui. - Deverão eles imitar os ferreiros ou - Portanto, servir-se-á de uma forma de exposição no género
quaisquer outros artífices, os remadores das trirremes ou os seus ca- da que nós abordámos há pouco a propósito das epopeias de Ho-
pitães, ou qualquer outra coisa referente a estas profissões? mero, e o seu estilo participará de ambos os processos, a imitação e
- E como poderia ser isso se nem sequer lhes é lícito aplica- as outras formas de narração; mas, num discurso extenso, pouco lu-
a
rem-se 'qualquer destes ofícios? gar haverá para a imitação. Não está certo o que eu digo?
- E o relinchar dos cavalos, o mugir dos touros, o murmúrio - Está, e muito, pelo que respeita à necessidade desse tipo de
dos rios, o bramir do mar, os trovões, e todos os ruídos dessa espé- orador.
cie - acaso deverão imitá-los? - Logo - prossegui eu -, o orador que não for dessa espécie,
- Mas é que lhes foi proibido estarem loucos ou imitar a lou- quanto maior for a sua mediocridade mais imitará tudo e não consi-
cura. derará coisa alguma indigna de si, a ponto de tentar imitar tudo com
- Ora pois, se eu percebo o que dizes, há uma maneira de falar grande aplicação e perante numeroso auditório, mesmo até o que di-
e de narrar pela qual se exprime o verdadeiro homem de bem, zíamos há momentos: trovões, o ruído do vento, da saraiva, dos ei-
quando é oportunidade de o fazer; e outra maneira distinta desta, à xos e roldanas, trombetas, flautas e siringes, e os sons de todos os
qual está ligado e na qual se exprime o homem nado e criado ao in- instrumentos, e ainda o ruído dos cães, das ovelhas e das aves. Todo
vés daquele. o discurso deste homem será feito por meio de imitação, com vozes
- Quais são essas maneiras? e gestos, e conterá pouca narração.
- O homem que julgo moderado, quando, na sua narrativa, - Também isso é forçoso que seja assim - replicou.
chegar à ocasião de contar um dito ou um feito de uma pessoa de ~ São estas as duas espécies de narração que eu dizia.
bem, quererá exprimir-se como se fosse o próprio, e não se envergo- - São, efectivamente.
nhará dessa imitação, sobretudo ao reproduzir actos de firmeza e - Por conseguinte, destas duas, uma experimenta pequenas
bom senso do homem de bem; querê-lo-á em menos coisas e em alterações, e, desde que se dê à narração a harmonia e o ritmo con-
menor grau, quando essa pessoa tiver tergiversado, devido à doença, venientes, é fácil ao orador manter essa correcção e harmonia única
ou à paixão, ou mesmo à embriaguez ou qualquer outro acidente. - pOIS pequenas são as mudanças - e também o ritmo igualmente
Quando, porém, se tratar de algum exemplo indigno dele, não que- aproximado.
rerá copiá-lo afanosamente quem lhe é inferior, a não ser ao de leve, - E exactamente assim.
quando ele tiver praticado algum acto honesto; e, mesmo assim, - E agora quanto à outra espécie? Não precisa do oposto, de
sentir-se-á envergonhado, ao mesmo tempo por não ter prática de todas as harmonias, de todos os ritmos, se quer exprimir-se conve-
imitar seres dessa espécie e por se aborrecer de se modelar e de se nientemente, devido ao facto de comportar todas as formas e varia-
formar sobre um tipo de gente que lhe é inferior, desprezando-o no ções?
seu espírito, a não ser como entretenimento. - Forçosamente que sim.
IR
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- Mas tod os os poet as e aque les que q uerem contar alg uma menos aprazível , tendo e m conta a sua utilidad e , a fim de qu e e le imite
coisa não vão dar a um a o u outra dessas formas de ex pressão, o u a para nós a fala do homem de bem e se ex prima segundo aquel es mo-
um a m istura das du as?
delos qu e de início regul ámo s, qu ando tentávamos ed ucar os militares.
- É forço so - disse.
- Era ass im m esmo que faríamo s, se es tivesse no nosso poder.
- Então que havem o s de fazer? Havemo s de receb er na ci da de
tod as estas formas ou um a e outra das formas puras o u a mi stu ra? ( P la to n, Cl'/IITCS Co mple te s, T omo V I. La R épu bliq uc, trad . de Ém ilc C hambry, livres I·III :
I : 392d -3 94<:. pp. 102 -1 0 4 ; 2: 39 4d -39 Xb. 1'1" 104 -11 0 . co\. G uill a um e Rudé , Paris, 19 3 2,
- Se prevale ce r a minh a opinião, receberem o s a for ma se m
co m au torização das « Be lles Lcure s».
m istura qu e imit a o hom em de bem. Na ve rsão po rtuguesa for am re prod uz idos ex ce rto s da tradução de M aria Helena da Roc ha
- Mas na ve rdade, ó Ad ima nto , ta m bé m a forma m ista tem o Pe reira: P la tão , A República , Li shoa . Fun dação Ca louste Gu lbcnk ian . 1990 (6' . ed .): Liv ro
111 , I : 39 2d- 394c , 1'1" 116- 1 I X: 2 : 39 4d ·3 98 b, 1'1" 119 - 126 . Nu que re sp eita às notas , fora m
se u encanto, e é muito mai s apraz ível pa ra as c ria nças e preceptores
mantidas ape nas as 'l ue di ziam re sp eito à compreensão im ed iat a d o te xto .)
e para a multidão em geral a inversa da que tu prefer es.
- De facto, é a mais ap razível.
- No entanto, talvez me digas qu e ela não se adapta ao no sso 2 - ARISTÓTELES : PO ÉTICA (cerca de 330 a .c. )
go ve rno, porquanto não exi ste entre nós homem dupl o nem múlti -
plo , um a vez que cada um executa uma só tarefa. A ristóteles, na scid o em Estagira, na M a ce d ánia , em 384 antes
- Efec tivame nte, não se ada pta. da n ossa era, foi a lu no d e Pl atão , e d ep o is, ap ó s a lg umas via gen s,
- Não é por esse moti vo que só num a c id ade assi m e ncontra re - p recep to r de A lexandre «o Grande ». Entre 334 e 323 manteve uma
mos um sa pate iro qu e é sa pa teiro , e não p ilot o , al ém da arte de ta- escola em A te nas, di ta p eripa tética , o Liceu . Morreu em 322 a .c.
lhar ca lça do, e um lavrado r, lavrador e não j u iz, al ém da agricu ltura . A sua obra é im ensa . A borda a filosofi a em ge ral , as ciê ncias
e um gue rreiro , gue rre iro, e não co me rc ia nte, a lé m da arte mil itar , e [isicas c natura is . a lóg ica , a g ra má tic a. a m o ral . a p ol ítica, a retó-
assi m por di ant e? ri ca c a poét ica. O se u breve tratado intitulado Poéti ca é . se m d ú-
- De fac to - respondeu ele. vid a, uma recolha de notas , sem orna menta ções lit erárias , tomada s
- Se chegasse à nossa c idade um homem ap ar entem ent e capa z. na ocasião de um cu rso , p el o próprio A ristó te les o u p or um d os
devid o à sua a rte , de tomar todas as fo rma s e imitar toda s as CO iS;lS, se us a lunos. Trata sob re tud o da tragéd ia , repetidamente comp a -
a nsioso por se ex ibir j unta me nte com os se us poem as, pro ste rn á- ra d a á epopc ia : os desenvolv imentos a nuncia dos so bre a coméd ia
vamo -nos di ant e del e , co mo se de um ser sag rado, mara vilhoso, en - n ão fora m encontrados.
cantador, mas dir-Ihe- íam os que na no ssa cidade não há hom ens Embor a tradu zida p ara o árabe. a Po étic a j r» p ou co co nhecida
dessa es péc ie , nem sequer é lícit o qu e e x istam , e mand á-lo -Iamos durante a Idade M éd ia . A primeira traduçã o latina fo i imp ressa em
e m bora para outra cidade, de pois de lhe termos derramad o mirra finais do século XII. M as a partir do Renascimento a sua influência
sobre a ca beça e de o termos coroado de grinaldas. Mas, para nós, tornou-se decisiva e d omin a a reflexão sobre o teatro no Ocidente .
ficar íam os com um poeta e um narrad or de histórias mai s a ustero e Por tal reproduzim o s aqui excertos mais longos .
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l. A imitaçã o I suas imagen s o u sã o melhore s do que nó s, ou piores, o u sem e lhan-


tes. O s pintore s não fazem de o utro modo: Pai ignoto embelezava os
A epo peia , a poesia trágica , e também a comédia , o ditirambo ,
seu s modelo s, Pauson exa ge ra va o s seus defeitos, Di on ísio repre-
e mesmo, no qu e respeita ao essen ci al , a poesia au lética c a c itarís-
sentava-os tal qual eles são.
tica são tod as, no seu conj unto , imitações. Mas diferem umas d as
(... De igual modo), as pe rso n ag e ns de Homero são superiores
outras de três maneiras: ou imitam por meios diferente s, ou imitam
(à média), as de Cleofonte são-lhe semelhant es , as de Hé gemon de
de modos d iverso s e vari ávei s.
Tasso , q ue foi o primeiro autor de paródias, ou as de N ic ócare s, qu e
De fact o , da mesm a maneira que a lg uns , sej a pel a s ua arte , seja
escreve u um a Poltroniada, são piores ( ...).
pelo hábito , c riam im agen s imitando mu ito s obj ect o s através d as
A mesma d ifer ença se pa ra a tragédi a da coméd ia. A primeira
cores e das fo rmas, assim outro s, nas a rtes de qu e falei , imitam a tra-
vés da voz . Todas es tas artes real izam a im itação por inte rméd io do pret ende imita r homens superiores aos de hoj e, a segu nda homen s

ritmo, do d iscurso e da harm oni a, seja se paradame nte, sej a e m con- infe riore s (... ).
junto. Por e xe m p lo , o tocad or da flau ta , o u da cít ar a e o utro s an ál o- Por su a vez, Sófocles pod e se r con sider ado como um imitador
gos pela sua e ficácia, co mo o da sirín g ica , imitam serv ind o -se ap e- do mesmo tipo que Homero, j á que ambo s imitam homens respeitá-
nas da harmonia e do ritm o. A da nça im ita igualmente pelo ritmo , vei s, bem como um imitado r do mesmo tipo que Aristó fanes, poi s
ma s não pel a harmon ia; atrav és de r itmos figurati vo s, os bailarinos q ue am bos imita m hom en s e m acção , fazendo qu alquer coisa ...
imitam, de fac to , os ca racteres , os afec tos e as acções. Duas c a usas, e duas ca usas naturai s, pa rec e m es ta r n a origem
Qu ant o à arte qu e apenas se serve do di scurso , sej a e m p ro sa, de tod a a po e si a . Primeiro , a im itaç ão faz pa rte da nature z a dos ho-
seja em ve rso, qu er sejam de diver sa s es péc ies mi sturad o s, ou tod os men s desde a sua infânci a. É preci samente nisto qu e re side a dife-
do mesm o gé nero, essa ainda não recebeu nome a té agora 2 ( ••• ) . re nça e ntre o h omem e os o utros animai s : ele é o mai or d o s imita-
Há art es que utili zam tod os os m e ios de que fa lei , ou sejam, o dor es, e a imitação é o mei o pelo qual adq uire os se us primeiros
ritmo, o ca n to , o metro , como o fa zem a poesi a d itirâmbica , o co nhe cim e n tos. Em segundo lu gar, para todos os homens, a imita-
norno, a tragédi a e a com édi a; diferem na medid a e m que algum as ção é uma fon te d e prazer.
usam tod o s e sse s mei os ao mesm o tempo . e as o u tras se pa rad a- É ist o que demonstra o que acon tece nas obras de a rte: se os
mente (...). espec tác ulos e m si são re pu gn ante s , as s uas ima gen s pe rfe itamente
Qu and o se imita imitam -se homen s e m acção . Estes. ne cessar ia- exactas dão , contudo, prazer à no ssa v is ta ; tal ac ontece com as for-
mente. ou são respeitáveis, o u são m ed íoc res. De fac to, o s ca rac te- ma s do s anim ai s mai s repugn ante s, ou d o s ca dáve res.
res redu zem-se quase tod os a es tas duas ca tegorias: é pela maldad e Ex iste um a o utra ra zão: não é apenas para os fil ó so fo s qu e o
e pela virtud e qu e se d iferen ci am tod os os ca rac teres. Assi m , as aprender é um g ra nde pr aze r, tal é igu almente verdade iro para os
outros homen s, e m bora a sua participação no saber sej a reduzida.
I .
o te rm o g reg o . muitas vele s retom ado hoj e . é mi mc sc. (N .F.) O ra, e le s gost am de ver as im agens porque , o lhando -as, têm oportu-
?
- A ris t óte le s l.un cn ta a ausê ncia do nom e literat ura . (N.F .) nid ad e de aprender e de raci oc inar sobre ca da um d o s e le m e ntos,
22 23

por exempl o. de identifi car um indi v íduo. Se acontece que o o bje ct o e le também tem . ev iden te me nte, a sua efic áci a c o m p le ta. Por outro
não foi visto anteriormente , o prazer não na scerá da imitação m as lado , se a tra gédi a imita uma acção e se e la é praticada por homens
da execu ção, da co r, o u de um a outra cau sa dest e gé ne ro . que agem, é ne ce ssário que e stes homens sejam particularizado s
pel o se u carácter e pelo seu pensamento: tai s são com e fe ito os fac -
ro re s aos quai s no s referimo s quando fal amos das acções; o pensa-
2 . A tra gédia
m ento e o caracter são as du as c ausas das acçõe s , e el es faze m tudo
A ep op e ia tem e m co m um co m a tragédia o se r uma imitação te r êx ito, ou soçobrar. Enfim , a última im itação da acção é a fábula.
de homen s respei táv ei s , fei ta por int ermédio da ve rs ific ação, m as C ha mo fábula ao conj u nto d as acções. C hamo c a rácte r, ou psicol o-
difere na medid a e m q ue usa se m pre o mesm o m etro , e porqu e é g ia , àq u ilo qu e no s faz e mi tir um julgam ent o so b re as personagen s .
uma narrati va. Diferem , a lé m di sso , na ex tens ão : a tragédia es fo rça- C ha mo pensamento , o u papel, a tudo o qu e e las di zem para prova r
-se na ma ioria das ve zes e m cabe r de ntro de um a úni c a revolução ou p ara e xprim ir uma o pi n ião.
do Sol, ou em não a ultrap assar muito , enq uanto a epope ia não tem É portanto nece ssári o q ue toda a tra gé di a c o m porte se is partes ;
limite de tempo; isso é, poi s, uma out ra diferença. Todavia, na o ri- e é a pe n as em função delas qu e a tragéd ia ex iste . Sã o : a fá bula , a
ge m , a práti ca dos trág icos era a me sm a qu e a dos poet as épicos. psi cologia, o text o , os papé is , a encenação e o canto. Duas dessas
( ...) pa rte s são os m ei o s de imita r, um a outra é o modo de im itar e , po r
A tragédi a é a im ita ção de um a acção seria e co mp le ta; tem fim , as três o utras são o s objectos da im itaç ã o: nad a m a is pod e r ia
uma g ra ndeza eq ui librada ; a sua lin gu agem é ag rad ável e os e le- ex is tir. Prat icam ente todos os a uto re s usa ram es sas part es , porque
mentos diferem entre si nas diversa s part es; o s acontec ime ntos são e nco ntra-se igualmente por tod o o lad o a e nce na ç ão , a psicol ogi a. a
aí representados por pe rsonagen s e não co nta do s numa narrati va : fábul a, o texto , a músi ca e as personagens.
e nfim, e la susc ita a pi edade e o te rro r e, a trav é s del es , efec tua um a
verdadeira purgação I desse s dois tip os de se ntimento s. Chamo «lin-
g uage m ag rad ável» àquel a que tem ritmo , melodi a e canto ; a dife-
rença e ntre es tes elemento s seg undo as partes consi ste em qu e t ão
depressa o verso é e mpreg ue a sós , quanto se lhe j unta o canto . rc a c ção d o s a ud itore s Ü m ús ic a . (J pa sso é a ss im tradu z id o po r 1\1. Som vi llc no se u E v,va i s u r
la P o étiq u« d ' A risl u /c ( Pa ris , V ri n , 19 75 ), p .77 : Esta 111l111(' ; ,. (/ c/c ser alcl'tu clo ,lüo viva c I' rn -
D ad o q ue a im ita ção é feita por homens e m ac ção, um a part e fi o u /a nnlg umas p es soas , ex is te C 111 nos, c' niu» dif er e scnâ o /"/1"(/ mais 011 pa ra IH C' H OS : tal
da tra gédi a co nsistirá necessariam ente na e ncenação. dep ois seg ue m- a cont ece ('O / H a p ieda de . (J te rro r (' () entus ia smo . D e furto , fiei individuo» qu e selo pa rti cul a r.
li/elite scnsivci s li est a espécie d e 1I 10\ 'ilJl l' J1(o : silo l lt/ lIC !t',Ç {III(' \ 'enl O .\' to rna rem -se ca lmos
-se o c anto e o texto ; é exac tamc nte co m estes el ementos qu e é fei ta pelo efei to da s melodias sa g ra da s . a ssim q ue começam li 0 11\ ' ; 1" os cantos aprop riados [1(/ ,.a
acalm ar as paixô cs violen tas ; f iram ('O Il JO se Ji \' CS.H '11l cncont nulo a í remédio C ka tharsis . O s
a imit a ção . C hamo text o ao co nteú do dos ve rsos ; qu ant o ao ca nto ,
homens com di sp o sição para lJ piedade . " terror c. CI II gera l. para o s a fcctos vi vos, dc vern
necessariamente ex periment a r () m esm o ef ei to ; os o utros tombem, se g undo o gra u em q U l'
cada 11111 deles seja su sccpti vc l a estes d iv er sos afcctos: l ' todos devem experi m en ta r lima es -
p é c ie d i' a livio a com p anhado por um sen tim ento de pra ze r. É a ssim quc o s ca ntos destinad o s
I N .F .: O termo greg o , qu e de u or ige m a in úmeros co rn e nrár ios . é katliorsis . Ap a rec e
a produzir es te efeito propo rcio nam aos homens lima a lcgr!« inocen te (' pu ra .
n um a outra o hra de A rist ótc lc», ;\ l'ot ttico. nurna pa ssagem, no livro V III . c ru q ue se ev oca ti N.T.: A pa lav ra po rtug ue sa é catursc.
24 25

3 . Afábu la ( ... )

A parte mais importante da tragédia é a reun ião d a s acções; A tra gédi a é , port ant o , im ita ção de uma ac ção com ple ta, inteira
com efeito, ,I tragédia é um a im itação, não de homens, m as da ac- e tendo uma ce rta ex te nsão; porque uma co isa pod e se r intei ra e não
ção, da vida, da felicidade e da in felicidade; ora a felicidad e e a in- te r praticamente exte nsão.
feli cid ad e residem na acç ão , o o bjecti.vo é agir, não é se r, e os ho- Que quer di ze r «inteiro» ? É o que tem princípio , m eio e fim.
men s sã o o que são por cau sa do seu caracter, mas são fel izes ou O que é o princípio? É aqu ilo que , por si mesm o , não se segue ne-
não por ca usa das suas acções. Ass im, as personagen s não agem a cessariam e nte a outra co isa, e a segu ir ao qu al outra co isa ex iste ou
fim de imitar uma determinada psi c ologia: é através das suas acções se desenvol ve . In ve rsam ente , o que é o fim ? É aq uilo qu e, pela su a
qu e adquirem um certo ca rácter. As acções e a fá bula são, ass im, o natureza própria, se suce de a qualquer coisa, seja po r necessidade,
obj ectiv o da tragédia; e o objec tivo é sempre essenci al. seja a maior pa rte das vezes, e a seg u ir ao qu al não há mais nada.
O que é o meio? Aquilo que suced e a qualquer cois a e que é se -
( ...)
Mai s ainda, se as tirad as psicológicas forem colocadas umas a guido de qualque r coisa.
seguir às outras, por mais bem feit as que sejam pelo text o e pelo pensa- É então preci so qu e as fábulas bem compostas não comecem
nem acabem por acaso , mas utilizem as idei as ac ima referidas.
mento, não se realizará de modo alg um o trabalho da tragédi a; es te será
Há mais aind a : um bel o animal e no gera l todo o ob jec to belo
muito melhor conseguido numa obra e m que estas qualidades sejam in-
são compostos de part es; não de ve existir entre essas parte s ap enas
feriores, mas onde se encontrem a fá bula e a trama das acções. A lém
um a orga n ização defi nida ; é preci so também um a ex te nsão que não
disso, os mais potentes motores da acç ão da tragédia so bre as alm as são
seja a rbi trá ria; a bel e za cons iste tanto na ex te nsão quanto na o rga ni-
as partes da fábula, a saber, as peripécias e os reconheciment os.
zação; é por isso qu e um ani ma l belo não pod e ria se r nem e x tre ma-
Um o utro índice é qu e os principiantes em poesi a a lcançam a
mente pequeno, porque um o lhar limitad o a um tempo ins ta n tâ neo é
exactidão do texto e da psicolog ia , a ntes de sabe re m com b ina r as
co nfus o, nem ex tre ma me nte grand e, po rque a visão de conj un to não
acções: é igu almente o caso de qu ase todos os poet as anti go s.
pod e na scer e o objecto não aparece ao olhar dos espec tadores, nem
A fábula é, então, o prin cípi o e , de alguma man ei ra , a alm a da
co mo uno , nem como intei ro; tal se ria um ani ma l com o co m pri-
tragédi a. A psicologia ocup a ape nas o segundo lugar. .. Imit ação de
ment o de v ários qu il órnetros ! Ass im , os co rpos e os an ima is devem
uma acção, a tragédia é esse ncia lmente, por esse mot ivo , imi tação
ter uma ce rta g ra ndeza ada pta da ao n osso o lhar; pa s sa-se exacra-
de hom en s qu e agem. mente () mesmo com as fábul as, c uj a dimen são deve se r adaptada às
( ...) nossa s facu ld ades .
E en cenação, decerto sedutora, não é de modo a lg um uma obra
C..)
de arte c não pertence nunca à poética. De facto, a força d a tr ag édia Qual é o limite co nfo rme à própria nature za ela ucçã o? A fábula
é indep endente da represent ação dos actores. Além di sso , a arte do deve sempre ter a mai or ex te nsão possível, com pa tíve l com a sua
cenóg rafo é mais importante par a a disposição do esp ect ácul o que a inteligibilidaele; a sua bel eza crescerá com a sua a m p litude . Em re-
dos poet as. gra geral, uma ex te nsão em que os aconteciment o s, sucede ndo-se
26 27

seg undo a veros im ilha nç a o u a necessid ad e, fa zem pa ssar da feli ci- c ima. N ão é ve ro símil que tai s acontec imentos ocorram por acaso.
dade à in feli c idade ou inv ersamente, é um limite de grandeza sufi- O que é ne cessár io é que as fábulas de st e tipo sej am de uma beleza
ciente. A unidade da fábul a não nasce, co m o al guns o pensam, do su per io r.
facto de se re ferir a um indivíduo: as acç ões de um homem podem Por entre as fábulas, al gumas são s im p les e outras com plexas;
se r numerosa s, e mesmo infinitas, se m constituir uma unidade ... a s a cções qu e e las imitam pertencem evidentemente às mesmas
É por isso que, segundo m e parece, tod os os poetas qu e escreveram c at e gorias. Ch am o de simple s a acção coerente e un a tal como a
uma H era cleida ou um a Teseida ou outras o bras semelhantes se en- d efini , e ond e o desenlace interv ém sem pe ripécia nem reconhe-
gana ram: pensam qu e, dado que Hércul es é um só , segue-se qu e a ci mento. Ch am o de com plexa a acção c ujo desen lace resulta de um
fábula também é só um a! rec onhecimento o u de uma peripéci a, ou dest e s doi s proced im entos.
( ... ) Es tes devem nascer d a pr ópri a constitu iç ão da fábul a, de mod o
Nas o utras art es im itati vas , a imi tação de um o bjecto un o é a resultar de factos ante riores segundo a necessidad e o u a veros im i-
uma. Acontece ex ac tame nte o mesmo co m a fábul a, qu e é imi tação lh an ça ; há um a grande diferença entre a si mp les s ucessão e a causa-
de uma acção. Esta deve ser una e int eira; as suas partes devem se r lidade.
reunidas de tal maneira qu e , se forem deslocadas ou su prim idas a l- A peripé ci a é o inv erter das acç õ e s e m sentido c o n tr á r io
gum as, o co nj unto seja tran sformado e tra nstornado ; porque o qu e ( ..., e isso ... ) segundo a vero si m ilh ança ou a ne cessid ad e. Ass im , em
se pod e juntar, ou não junta r, se m conseq uê nc ia vis íve l, não é ver- Édipo [Rei ], o mensage iro pensa qu e va i d ar prazer a Édi po e li -
dad eiramente um a part e do co nj unto co nsidera do . bert á-lo d o se u temor pel a sua m ãe fazendo- o sabe r quem e le é; é o
contrár io qu e acontece. Em Linceu , o herói é co nd uz ido à morte e
D ána o segue -o para o m at ar ; mas o c urso d os acontec im entos fa z
4 . Estruturas dafábula
com que sej a este último quem m orre e o o utro sej a salvo .
Por entre as fábulas e as acçõe s simp les, as e p isó d icas são as O reconhec im ento, como o se u nome o ind ic a, é uma passagem
menos bo as. Chamo fábul a e pisódic a àq ue la em qu e a sucessão dos d a ig no rância ao co n he c imento, e por consequência para a afeição
episódios não é nem vero sím il, nem necessária. o u o ód io entre aq ue les que se o rie ntam e m d irecção à felicidade ou
( ... ) à infe lic idade . O mai s b el o reconhec ime nto é o que n asce da peripé-
A im itação não se circunscreve ape nas a uma acç ão comp leta. cia: é o caso e m Éd ipo [R ei] .
E la de ve também provocar o terror e a pied ad e . O ra estes se ntirne n- H á a inda o utros re c onhecimentos qu e podem produ zir-se diante
tos na scem sobretudo diant e dos fact os qu e se encade iam contra ria- de o bjectos inanim ados e ncontrados por acaso , ou d ia nte do fa ct o
m ente à nossa expec ta tiva. O mar avilhoso assim criado é superior de qu e a lg uém fez, o u não fez, qu alquer coisa.
aos autom at ismos do acaso . O c úm ulo d o mara vilh o so saído d o M as o reconhecimento q ue melhor convé m à fábula e à ac ção
acaso produz-se quando es te parece revel ar uma int en ç ão. Tal com o é , com o já di sse , o que sc aco m pa nha de um a peripéci a; e la susci-
a estátua de Mítis em Argo s que matou o homem resp onsável pel a tará piedade ou terror pelas ac çõe s de qu e a tragédia é im it ação, e
morte do próprio M ítis : aq ue le olha va a es tá tua , e e la ca iu-lhe em qu e provocarão, seg undo os casos, infelic id ad e e feli cidad e.
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Quando o reconhecimento se refere a pessoas, umas vezes só cai na desgraç a , n ão por causa da su a maior ou menor maldad e , mas
um reconhece o outro, quando a id entidade do sujeito é clara, m as por caus a de um determinado e rro ; é também preciso qu e estej a em
logo de seguida as duas personagens devem reconhecer-se uma à muita glória e prosperidade, como Édipo, Ti estes e os homens ilu s-
outra. Assim Ifi g énia é reconhecida por Orestes g raças ao envio da tres pertencendo a famílias assi m .
carta, ma s para que Ifig énia reconheça Orestes é pre ci so outra coisa. Portanto, é necessário qu e uma fábul a sej a simples e m vez de
A peripécia e o reconhecimento são, portanto, duas partes da dupla, como o dizem alguns, qu e a inversão tenha lugar, não da in -
fábula. O p atético é um a terceira. Expliquei as duas primeiras. feli cidade para a felicidade, mas , ao contrário , da felicid ade para a
O patético é uma acção de morte ou de sofrimento, com o as agoni as infeli cidade, e que a sua ca usa sej a, n ão a maldade , m as um erro
que aparecem e m cena, as g randes d ore s, o s ferimentos, etc. g rave atribuível a urna personagem co mo ac im a di sse , o u bem me-
lh or do que pior.
5. O terror e a piedade A evoluçã o o fe rec e um indício: no princípio, os poetas utiliza-
vam uma fábula qualquer; agor a, as tragédi as m ais belas cen tram -se
A tragédia mais bel a não deve ter uma composi ção simples, so bre um pequeno número de famílias: Alcméon, Édipo, Orestes,
mas complexa; ela é a imitação de acções assustadoras e lamentá- M eleagro, Tiest es , Télefo e outros que tais , a quem coube sofrerem ,
veis , poi s qu e aí re side o as pecto particular deste tip o de imitaç ão . o u ca us arem, infelicidades terr ívei s.
Daí resulta: ( ...)
1) Qu e ela não deve, ev idente mente, mostrar homens bons le- O terror e a piedade pod em nascer d o es pec t ácu lo , o u então da
vados da fe lic idade à infeli cid ade: tal não se ria assu st ad o r nem la- pr ópri a organ ização do s fact os , o que é pre ferível e m ostra um m e-
mentável, ape nas re voltante. lhor po eta. C om e fe ito , é preci so que a fábula seja com posta de tal
2) Qu e e la também não deve m ostrar homen s m au s passando maneira que , m esmo sem ver, o auditor das acções trema e tenha pie-
da infelicid ad e à felicid ade : seria a so luç ão menos trág ica de todas; dade; é o que experimentaria aq ue le que o uvisse a fábul a de Édipo.
não tem nad a do que é nec essário: n em humanidade , nem piedade , M as obter este re sultado com o espectáculo exige menos arte (lite-
nem terror. rária) e exige m e io s teatrai s.
3) Qu e e la não deve igualme n te m o strar o homem a bso luta- Aq ue les que pelo es pectác u lo provo cam. não o terro r, mas ap e -
mente mau pre cipitado da felicidade na infe lic idade : esta c o m bina- nas o se ntimento do monstruoso, não sa be m nada de tragédia; esta
ção satis fa ria a humanidade, mas não a pi ed ade nem o terror; se a não deve ofere cer um prazer q ualq ue r, m as ape nas o qu e lh e é pró-
piedade se assoc ia ao hom em que não m e rece a s ua infelicidade , e o pri o . Dado que o poet a, através da imitaç ão, deve propor cionar um
terror ao homem se me lhante a nó s , es te aconteciment o não se ria pra zer fund ado no terror e na piedade, é ev ide nte qu e é so b re as ac-
nem digno de piedade nem aterrorizado r. ções que deve trabalhar.
Não rest a mais do que o interm édio . Podemos de fini-lo assim: Tomemos e ntã o , de entre os acontecimentos que so brevê m ,
um homem qu e não brilh a nem pela s ua v irtude, nem pela justiça, aq ue les qu e p are cem poder se r ate rrad o res o u suscitar piedade.
30 31

Nece ssariamente, põem em confronto person agens amiga s ou O caso melhor é o último : e m Cresfo nt e , M é rope es tá à bei ra
inimigas , ou nem um a coisa nem outra. Se um ini m igo at aca um de m at ar o seu filho; ela não o m ata, ma s reconh ece-o ; em Ifigénia ,
inimigo , em act o ou em pensamento, não dá lugar a piedade al - há a m esma situ ação entre a irmã e o irm ão; em H elle, o filho está
guma, a não ser no patéti co. Acon tece o mesmo e ntre indifer entes. quase a e n treg ar a mãe quando a reconhec e .
Mas qu ando os acontecimentos patéticos surgem e n tre amigos, eis o É por isso que , como j á di sse , as tragédias se centra m so bre um
que é preci so buscar; as sim , um irmão m ata o se u irmão , ou es tá à pequeno número de família s.. Pro curaram aprese ntar nas suas fábu -
beira de o matar, ou fa z qualquer co isa do gé ne ro; igualmente de la s s ituações deste tip o , mas encontraram -nas por acaso , e não por
um filh o para co m seu pai, uma m ãe para com o seu filho ou um fi- arte. E ram forçadas a restringir-se às fam ílias em que tinham ocor-
lho pa ra com a sua mãe. rido ta is acontecime ntos pat ético s.
Não se pod em mod ifica r as fábulas tradi ci on ai s : é preci so qu e
Clitemnestra seja assassina da por O reste s, Erifila por A lcméon. Ma s (A risto te , Po étique , trad . de J acq ues Scherer. I: ca p. 1,2,3 e 4; 2 : ca p .5 e 6 . 1450a; 3: capo 6 .
1450a-b, e cap.7 e 8; 4: ca p.9 . 14 5 1b, e cap . IO e l i ; 5: capo 13 e 14 .
o poet a deve invent ar, e se rv ir-se estet icam ente dos dados da tradi ção . Veja-se també m Aristote, Po étique , lrad . d e J . Hard y, Pa ris , « Les Be lles Le ttres », 1932. c
O qu e e ntendo por esteti camente, vou dizê-l o mais cl aramente. A risto te , La Po étique, trad . de R o selyne D upon t-Roc e Jean La llot, P a ris , Se uil, 19 80 .)
Edição e m po rtug uês usad a em apo io à tradução: Aristóteles, Poética , trad ., pr ef. , int rod .. co -
A acção pod e de senvolver-se , como no s antigos , e ntre per sona-
me ntá rio e a pêndices de Eudoro d e So usa . Li sb oa. Imprensa Na ci o n al-C asa da Moed a. 1990
ge ns que se vêem e se co nhecem ; ass im Eurípides m o strou Med ei a (2'.ed .). (N.T.)
a matar o s se us filhos. Também é possível comete r um crime, mas
cometê- lo ign orando o horror e não reconhecendo se não dep oi s a
relação afe ctiva; tal co mo o Édipo de Sófocl es. A q ui isso produz-se 3 - BHARATA : TRATADO DO TEATRO (Cerca d a ép oca de Jesu s
fora de cena, mas também pode faze r part e da própri a tragédia, como C r isto)
no caso do Alcméon de Astídamas o u o Telégono e m Ulisses Ferido.
H á ainda um a terce ira possibil id ad e : es tar à bei ra de , por ign o- Esta obra é o m a is an tigo tratado qu e se con hece sobre o tea-
rân ci a , comete r um ac to irre pa ráve l, e c he gar ao recon he c imento tro da Índia e sobre o se u vínculo com a religião hindu . Só fo i es -
antes de agir. Além destes casos, não podem existir o utros : necessa- crito , em sâ nscrito, num a data bastante recente, mas segura mente
riamente, ag e- se ou nã o se age , e sabe-se ou n ão se sa be . foi tra nsmitido antes , d ura ntes lon gos séculos , a tra vé s da tradiçã o
O caso pior é aquel e em qu e a personagem sa be , prepara-se ora l. As estima tivas dos esp ecia lis tas para fixa r a sua origem variam
par a ag ir, e não age . Este caso é revolta nte; não é trági co porq ue co ns ideravelmente : do sécu lo IV a .C . ao séc ulo 1'1/ da nossa era .
não é patét ico. Por isso nenhum poet a o faz ass im; pel o men os é Id êntica in cert e za en vo lve o se u a uto r, Bli a rata , Seria inútil
ra ro , Co mo Hém on di a nte de Cre o nte e m A migona . Em se gundo procurar por detrás d esse nom e , que sugere rela çõ es simbólica s com
lugar, age-se. É prefer ível que a personagem aj a se m sa ber e nã o al gu m as divindades, uma ind ividua lidad e so bre a q ua l pudéssemos
reconheça sen ão depoi s de ter agido; evita- se o rev oltante, e o re - ter um conhecimento histórico. Bh arata não é mais que o sábio mítico
conhe c ime nto surpreende . a quem os deuses ord enaram que criasse o teatro .
322 323

ADELA quer levar o dramático. Mas, que nós tentemos, nós, no meio da
Vedes, senhor, que para vos defender, fostes gastar um tempo nossa sociedade moderna, sob o nosso fraque acanhado e encur-
que teria sido suficiente para desenvolver todo um sistema. tado, mostrar a nu o coração do homem, e não o irão reconhecer. ..
A semelhança entre o herói e a plateia será demasiado grande, a
analogia demasiado íntima; o espectador que siga no actor o desen-
EUGÉNIO
volvimento da paixão quererá pará-Ia aÚ; onde ela teria parado
E vós também, senhora, tende cuidado com isso ... Vós exi- nele; se ela ultrapassa as suas próprias faculdades de sentir ou de
giste-lo, não sou mais responsável pelo aborrecimento .. . Eis os exprimir, não a compreenderá mais, e dirá: «É falso; eu não sinto
meus motivos: a comédia é a pintura dos costumes; o drama a das assim; quando a mulher que amo me engana, sofro sem dúvida...
paixões. A Revolução, passando sobre a nossa França, tornou os ho- sim ... durante algum tempo... mas não a apunhalo nem morro, e a
mens iguais, confundiu as classes, generalizou os costumes. Nada prova é que estou aqui. » Depois os gritos de exagero, de melo-
indica a profissão, nenhum círculo encerra tais costumes ou tais há- drama, cobrindo os aplausos daqueles poucos homens que, mais
bitos; tudo está fundido em conjunto, os matizes substituíram as felizmente ou mais infelizmente organizados que os outros, sentem
cores, e são necessárias as cores, e não matizes, ao pintor que quer que as paixões no século xv são as mesmas no século XIX, e que o
fazer um quadro. coração bate com um sangue tão quente sob um fraque de tecido
como sob uma cota de aço...
ADELA
ADELA
Está correcto.
Então, senhor, a aprovação desses poucos homens compensar-
o BARÃO DE MARSANNE -vos-ia amplamente pela frieza dos outros.

No entanto, senhor, O Constitucional... (Alexandre Dumas. Antoll)'. Auffray, 1831, acto IV , ce na vi.)

E UGÉNIO (SCIII ouvir)

Dizia então que a comédia de costumes se tornava dessa ma-


neira, se não imposs ível, pelo meno s muito difícil de executar. 47 - HEGEL: ESTÉTICA (IR32)
Resta o drama da paixão, e aqui apresenta-se outra dificuldade.
A história lega-nos factos, pertencem-nos por direito de herança, Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) ensina filosofia
são incontestáveis, pertencem ao poeta: ele exuma os homens de lia Universidade de Berlim entre 1817 e 1831. O seu Curso de Esté-
antigamente, reveste-os com as suas roupas, agita-os com as suas tica (Vorlesungen über die Aesthetik) só foi publicado após a sua
paixões, que aumenta ou diminui de acordo com o ponto a que morte.
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A centena de páginas que se referem ao teatro constituem a SOBRE O PRINCÍPIO DA POESIA DRAMÁTICA
abordagem filosófica mais sistemática que jamais se conheceu sobre
estes problemas. Os seus termos servem ainda de referência. A poesia dramática tem a sua origem na necessidade que temos
de ver as acções e as relações da vida humana representadas sob os
nossos olhos por personagens que exprimam essa acção através dos
1. Natureza do drama
'seus discursos. Mas a acção dramática não se limita à simples reali-
O drama, considerado em termos de conteúdo como de forma, zação de uma empresa que prossegue pacificamente o seu curso.
oferece a reunião mais completa de todas as partes da arte. Também Ela corre essencialmente sobre um conflito de circunstâncias, de
deve ser encarado como o grau mais elevado da poesia e da arte em paixões e de caracteres que desencadeiam as acções e reacções, e
geral. Com efeito, quando comparado com os materiais das outras necessita de um desenlace. Assim, o que temos sob os nossos olhos
artes, tais como a pedra, a madeira, a cor e o som, sendo apenas a é o espectáculo móvel e sucessivo de uma luta animada entre perso-
palavra digna de servir de expressão ao espírito, por seu turno, a nagens vivas, que perseguem objectivos opostos, no meio de situa-
poesia dramática, de entre os géneros particulares de poesia, é a que ções cheias de obstáculos e de perigos; são os esforços dessas per-
reúne o carácter da epopeia com o da poesia lírica. Expõe uma sonagens, a manifestação do seu carácter, a sua influência recíproca
r ,

acção completa como concretizando-se diante dos nossos olhos; e as suas determinações; é o resultado final desta luta que, ao tu-
simultaneamente, esta parece emanar das paixões e da vontade ín- multo das paixões e das acções humanas, faz suceder o repouso.
tima das personagens que a desenvolvem, Da mesma maneira, o seu Ora, o modo de concepção poética deste novo género deve,
resultado é decidido pela natureza essencial das intenções que per- como já o disse, oferecer a aliança e a conciliação I do princípio
seguem, pelo seu carácter e as colisões em que estão envolvidos. épico com o princípio lírico.
Além disso, esta combinação do princípio épico com o princí-
pio lírico, pela representação directa da pessoa humana agindo sob I - Uma primeira observação, sobre este assunto, será feita
os nossos olhos, não permite que o drama se limite a descrever, i1 relativamente ao tempo em que a poesia dramática aparece e do-
maneira épica, o lado exterior, o lado da cena, a natureza circup- mina os outros géneros. O drama é o produto de uma civilização já
dante, bem como a acção e os acontecimentos. Exige, para que a avançada. Supõe necessariamente como já passados os dias da
obra de arte ofereça uma aparência verdadeiramente viva, a sua per- epopeia primitiva. O pensamento lírico e a sua inspiração pessoal
feita representação cénica. Enfim, a própria acção, no seu conjunto, devem igualmente tê-lo precedido, se é verdade que, não podendo
pelo seu conteúdo e pela sua forma, é susceptível de dois modos de satisfazer-se com qualquer dos dois géneros separados, ele os reúne.
concepção absolutamente opostos, cujo princípio geral, servindo de Ora, para que esta combinação poética se opere, é preciso que a
base ao trágico e ao cômico, fornece os diferentes géneros de poe- consciência dos fins e dos móbeis da vontade humana, que a expe-
sia dramática.
( ... ) I S. Jankélévitch traduz por: «urna união mediatizada». (NF.)
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riência das complicações ela vida e o conhecimento dos destinos aos ac ontecimentos ext eriores: el e põe em cena os sentimentos e as
humanos, tenh am sido perfeitamente acordados e de senvolvidos; o paixões íntim as da alma na sua realização exterior. Daí, por um
que só é po ssível em épocas médias ou tardias do de senvolvimento lado, o acontecimento não parece na sc er da s circunst ân cias ex te rio-
da vida de um povo. Além disso , as primeiras grandes fa çanhas ou res, mas da vo ntade interior e do carácte r da s personagens; e não
acontecimentos nacionais são de uma natureza mai s épica do qu e tem sentido dramático senão pela su a relação com objectivos e pai-
dramática. São, na maioria, expedições colectivas e lon g ínquas, como xõe s pessoais . Por outro lad o , no e ntanto, a personagem não fica fe-
a guerra de Tróia, ou as cruzadas, as migrações dos povo s, ou a chada em si mesma numa independência solitária. Pela natureza das
defesa do solo nacional contra as invasões estrangeiras, como as ci rc uns tâ nc ias no mei o das qu ai s o se u carácte r e a sua vontade se
guerras co ntra o s Persas. Não é senão mais tarde qu e aparecem es- manifestam, bem como pela do objec tivo indi vidual que per segue ,
tes heróis isol ad os e independentes, que concebem por si próprios encontra-se arrastada para uma luta com outras personagens; e, a
um objectivo de acç ão e real izam empreendimentos pessoais. partir di sso , a ac ção oferec e complicações e co nflito s que, por sua
vez, e contra a sua vontade e a sua previsão , conduzem a um desen-
II - No que respeita, em seg undo lugar, à própri a aliança do lac e no qual se manifesta a es sência própria e pro funda d as fin alida-
princípio épico com o princípio líri co, devemos concebê-la da se- de s, das pai xõe s e do s destinos humanos em ge ral. E ste e leme nto
guinte man eira : substancial é uma das faces do princípio ép ico; manifesta-se de uma
A epopeia j á apresenta um a acção a desenrol ar-se so b os nos- maneira activ a e viva na poesia dramática.
sos olhos; mas esta representa o esp írito nacional na sua subs tância b ) Por outro lad o, e m bora o homem moral e a sua natureza
e na sua totalidade, sob a forma de acontecimentos e acções de- íntim a sejam o ce ntro da representação dram át ica, e sta n ão pode
terminadas e objectivas, nas quais a vontade pessoal, o objectivo in- contentar-se co m as sim ples situações líri ca s, nem m e smo com a
div idual e a for ça das circunstâ ncias , bem como os ob stáculos exte- narrativa m ai s ou menos p at éti c a das acç õe s passadas , ou com a
riores , conservam um a importân cia igual. Na poesia lírica , pelo de scri çã o das alegrias, dos pensamentos e dos se nti m e ntos e m que o
contrário, é a pes soa que , na sua vontade independente , a parec e por homem se co nse rv a inacti vo. No drama, as situações só têm se ntido
si própria e exprime os sentimentos da sua alma. e valor pel o caracter das personagens que põ em e m relevo, e pelos
Ora, se o drama deve reunir em si estes doi s pontos de vista , só fins que persegu em . O s se nt ime ntos det erminad o s da alma humana
o pode fazer segundo duas condições: tomam e ntão. no drama. o carácter de motivações internas . de paixões
a) É preci so primeiro que , tal como a epopeia, ponha sob os qu e se des envolvem numa complicação de c irc unstânc ias ex te riores,
no sso s olhos um acontecimento, um facto , uma ac ção; mas este qu e assim se objecti vam e, por aí , rec ord am a forma é p ic a . Ma s es ta
acontecimento, que seg uia um curso fatal, deve aq u i de spojar-se acção exterior, em ve z de se con cretizar como um simples aconteci-
des se car ácter e xte rior. Como base e como princípio, deve aparecer ment o , e ncerra as inten çõe s e os es fo rços da vo ntade humana. A ac-
a pessoa moral em acção. Digo em acç ão , porque o drama não re- ção é essa mesma vontade per seguindo o se u obj cctivo, e as sim tendo
presenta o sentimento interior de uma maneira lírica em oposição apenas consci ência do resultado final. As conseq uê n ci as d os fa cto s
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recaem sobre ela, ex ercem sobre el a a sua retaliação. Esta relação princípio senão no movimento total, combinad o de tal maneira que a
perpétua do s acontecimentos com o ca rácte r moral das personagens, colisão principal se mostre, ao mesmo tempo , conforme aos carac te-
que as explica, que constitui o seu conteúdo e a sua substân cia, é, res e aos objectivos das personagens e que de strua a sua oposição.
falando com propriedade, o princípio lírico da poesia dramática. Este de senlace deve ser, como a própria acç ão, sucessivamente
c) Deste modo, apenas a acção aparece co m o acção, como de- subj ec tivo e objectivo. É exterior ou objectivo na medida em que o
.. senvolvimento real das intenções e do pensamento da s personagens combate dos objectivos opostos encontra em s i mesmo um fim fatal.
que, na pro ssecução do s seus objecti vos, colocam a totalidade da sua Por outro lado, as personagens tendo mai s ou menos colocado a sua
existência, e por tal devem também responder por tudo o qu e acon- vontade e a sua existência no empreendimento c uj a realização pre-
tece em resultado da sua própria acção. O herói dramático tra z em tendem , o êx ito ou o insucesso , a realização completa ou incom-
si o fruto dos seu s pr óprios actos. pleta, a ruína necessária ou a conciliação pacífica das suas intenções
determinam o seu de stino na medida em que se identificaram com
as acções que foram for çadas a realizar.
2 . A lei da unidade
Não haverá então um verdadeiro desenlace senão quando o ob-
A única regra verdadeiramente inviolável é a da unidade de ac- jectivo e o interes se da acção à qual tudo se liga sejam idênticos ao
çâ o, Mas em que consiste esta unidade? Sobre isso pode levantar-se cará c ter das personagens e estejam absolutamente ligados a elas .
mais do que uma di sputa. Explicarei e ntão o seu se ntido de uma Agora, segundo a diversidade e oposição dos caracteres dr amá-
maneira mai s precisa. ticos se mantenham s im p le s ou se ramifiquem em acções diversa-
Toda a acção, em geral, deve ter j á um object ivo det erminado . mente episódicas e em personagens sec undá r ias , a unidade pode se r
Porque, desde qu e o homem age , entra, mais ou menos voluntar ia- mai s ou menos estreita, m ais O ll menos lassa.
mente, nas complicações da vida real e então o campo da sua activi- A comédia, por e xe m p lo, na complicação das suas intrigas, não
dade deve condensar-se e limitar-se. tem nec essidade de uma co nde ns aç ão assim tão forte como a tra-
É então aqui que é preciso buscar a unidade, é na realização de gédia , que, na m aior parte do tempo , decorre sobre um pequeno
um objectivo determinado e perseguido no meio de circunstâncias e número de motivo s e se distingue por uma simplicidade plena de
relações particulares . Mas, como agora vimos, as circunstâncias da grandeza. No entanto, também a tragédia romântica, sob esta rela-
ac ção dramática são de tal espécie qu e cada personagem encontra ção, é m ais variad a e de uma trama menos cerrada qu e a tra gédia
ob stáculos vindos da parte das outras personagens. Descobre no se u antiga . Mas ainda aqui a ligação dos espisódios e da s personagens
caminho um objectivo oposto ao se u, qu e busca igualmente reali zar- acessóri as deve ser fácil de reconhecer. E co m o de senlace da ac ção
-se. Esta op osi ção en gendra nece ssariamente conflitos variados e as propriament e dita, o conjunto também de ve ser fe chado c acabado.
suas complicações . Assim, por ex emplo, e m Romeu e .lul icta , a di visão das famílias
A acção dramática decorre então, essencialmente, so bre um e stá fora da pai xão dos dois amantes, do se u objectivo e do se u
conjunto de conflitos, e a verdadeira unidade não pode ter o seu de stino; ma s não deixa de ser menos a base geral da acç ão. Deste
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modo, embora não seja o próprio assunto da peça, Shakespeare, ao


manifeste como tal, encontra a sua expressão adequada na linguagem
terminar, dá à reconciliação das famílias uma atenção menor e no
poética, a expressão mais ideal dos sentimentos e dos pensamentos.
entanto necessária. Da mesma forma, em Hamlet, o destino do reino
Mas, como o drama reúne em si o princípio da epopeia e o da
dinamarquês mantém-se apenas como um interesse subordinado, mas
poesia lírica, a dicção dramática deve também encerrar elementos
vê-se, pela aparição de Fortinbras, que não foi perdido de vista, e
líricos e elementos épicos. O lado lírico, em geral, no drama mo-
obtém uma conclusão satisfatória.
demo, encontra particularmente o seu lugar alí onde a personagem,
Agora, sem dúvida, o desenlace particular que termina as coli-
completamente preocupada consigo mesma, com os seus sentimen-
sões pode encerrar, por sua vez, a possibilidade de novos interesses
tos, com as suas resoluções e os seus actos, mostra nos seus discur-
e novos conflitos. No entanto, a colisão una de que se tratava, deve-
sos que conserva a consciência dessa concentração interior. No en-
ria encontrar o seu fim na obra completa em si. Deste género, por
tanto, ao mesmo tempo que exala assim os sentimentos que agitam
exemplo, são, em Sófocles, as três tragédias do ciclo tebano. A pri- o seu coração, se quiser manter-se dramática, não é preciso que pa-
meira conta a descoberta de Édipo como assassino de Laio; a se- reça unicamente preocupada consigo mesma, com as suas impres-
gunda, a morte pacífica no bosque das Euménides; a terceira o des- sões e recordações, e se entregue a divagações sem fim. Deve man-
tino de AntÍgona. E, no entanto, cada uma destas três tragédias ter-se constantemente em relação com a acção, seguir todos os seus
forma em si, independentemente das outras, um todo autónomo.
momentos. - Em oposição a este patético subjectivo ou sentimental,
existe uma patético objectivo que, por sua vez, recorda o elemento
3. A dicção dramática épico. Consiste numa linguagem menos pessoal que se dirige mais
aos espectadores, que exprime o lado substancial das relações, dos
o último ponto de que nos falta falar relaciona-se com os meios
motivos, e dos caracteres. Pode assim afectar por vezes o tom lírico;
exteriores cujo emprego é permitido pela poesia dramática, quando,
mas só se 'mantém dramático desde que não se afaste da marcha dos
ao desenvolver-se, ela se mantém no seu próprio domínio. Limitam-
acontecimentos e lhe fique estreitamente ligado. Ademais, como se-
-se, primeiro, ao modo especial de dicção que lhe pertence, depois,
gundo traço da poesia épica, as narrativas e as descrições de bata-
às distinções mais precisas do monólogo, do diálogo e da medida
lhas podem ainda entremear-se com o diálogo. Mas devem também
dos versos.
mostrar-se igualmente necessárias para o desenvolvimento da acção.
a) Com efeito, no drama, como já o disse várias vezes, não são Quanto à expressão dramática propriamente dita, é ela que me-
os factos em si mesmos que constituem o aspecto principal, mas a lhor dá a situação das personagens no combate dos seus interesses,
disposição do espírito interior da acção, tanto sob a relação das per-
o contlito dos seus caracteres e das suas paixões. Aqui, os dois ele-
sonagens e das suas paixões, dos seus sentimentos e das suas reso-
mentos podem aparecer na sua verdadeira harmonia. O que acres-
luções, dos seus conflitos e da sua reconciliação, quanto sob aquele
centa ainda ao efeito, é o movimento exterior dos acontecimentos
aspecto da natureza geral da acção, da colisão que lhe serve de base,
que é também expresso pelo discurso, dado que, na maior parte
e da catástrofe final. Este espírito interior, desde que a poesia o
das vezes, a saída e a chegada das personagens são previamente
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anunciadas, da mesma maneira que a sua presença exterior é tam- ralidades, estas formas da convenção, e esta manifestação natural
bém indicada por outras personagens. d as part icularidades d e um carácte r qu e co nserva toda a sua rudeza ,
Uma diferença principal, so b todas e stas relações, encontra-se encontra-se o verdadeiro, simultaneamente ge ral e individual, nem
no modo de expressão c h amad o o natural, por oposição a uma formalista nem privado de originalidade, que nos satisfaz dupla-
linguagem teatral co nve nc iona l e declamatória. Diderot, Le s sing, m ente pela determinação do car ácter e pela natureza subs ta nc ia l
Goethe e Schiller, na sua juventude, viraram-se principalmente para e verdadeira dos se ntime ntos ou das paixõe s do coração humano.
o lado do natural e do real; Lessin g com um talento perfeitamente A verdade poética consiste, então, em afasta r a realidade im ediata
cultivado e um a grande perspicácia de observação ; Schiller e Gcethe d o característico e do individual , em e levá-los à generalidade e
com uma predilecção pela vitalidade im ediata, a rudeza e a força combinar em conj unto os doi s lados. Porque, no qu e respeita à di c-
sem ornamentos. Que os homens pudessem falar entre si com o fa- ção, nós também senti m o s que, sem abandonar o terreno d a reali -
lam as personagens da s tra gédias g reg as e, so bre tudo, nas peças d ade e dos seus verdadeiros traços, no s encontramos, não obstante ,
fran cesas (nes te último caso , a repreen são tinha a sua ve rdade) , é o numa outra es fera, num outro mundo ideal , o mundo da arte. Tal é a
que lhes parec ia oposto à natureza. Mas, por sua vez, o seu género linguagem da po e sia dramática grega, a do próprio Gcethe que ele
de natural podi a faci Imente, por um o utro lado, co m o supé rfl uo de adopta em seguida, a de Schiller e também , à sua maneira , a d e
tra ço s simplesmente reai s, cair na sec ura e no prosai co . Os ca rac te- Shakesp eare, embora es te deves se , aqui e ali , adequadamente ao es -
res, e ntão, não de senvolvem a substân cia d a su a alm a e da s suas ac- tado do teatro de e ntão, endereçar uma parte do di scurso à di scrição
ções, mas apenas o c onj unto dos tra ços confusos qu e rev elam ime- do actor e ao seu talento inventivo.
diatamente a sua indi vidualidade, se m ter uma cons ciência mai s alta
de si próprios e da s ua situação. Qu anto mais as personagens pare-
4 . A qu estã o do envolvimento
cem naturais sob este aspecto, tanto mai s são prosaicas. Tomai os
homen s se m educação tal qual se co m portam nos se us encontros e Um último ponto que pode se r c o ns iderad o diz respeito ao
na s Suas disputas, a ma ioria das vezes não sae m da situação indivi- poeta dram ático na sua relação com o público . A po esia épica , na
dual. São incapazes de exprimir o qu e constitui o fundo e a su b st ân- sua forma primitiva e verdadeira, quer que o poeta se apague diante
cia. E aqui , a grosse ria e a co rtesia a fec tadas são , no fundo e defini- da su a obra e não nos dê se não a co isa em s i. O cantor líri co, pelo
tivaIl1ente, equ ival entes. Se, com efe ito, a grosseria nasc e de uma co ntrá rio, ex pr ime o se u própri o s e nt ime n to, o se u pens amento
personalidade que se deixa atrair por co isas deslocadas, por defeito pessoal.
de cultura e ob ed ecendo aos primeiros movimentos da natureza , a Ora, como o drama representa a acção passando-se diante de
cortes ia, pelo contr ári o , não discorre se não so bre generalidades ba - nós , so b os nossos olhos, e qu e as personagen s falam e agem e m
nais e form as convencionais, rel ativas ao respeito, às considerações se u próprio nom e, poderia parecer que, ne sse domínio, o po eta,
devidas às pesso as, ao amor, à honra, etc ., se m que , por isso , qual- mais ainda que na epopeia, onde pelo menos aparece como narrador
quer co isa de ver da de iro e de só lido sej a express o . Entre estas gen e- dos acontecimentos, se de ve ap agar co m p le tam e nte. Esta maneira
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de ver não é, no entanto, senão relativamente verdadeira. Porque,


culpa do desacordo não lhe deve ser imputada a ele, mas ao público.
como já o disse no início, o drama não deve o seu nascimento senão
Porque não tem outro dever senão seguir a verdade e o génio que o
às épocas em que, a nível do conteúdo e forma do pensamento, a
motivam. E, contanto que seja verdadeiro, a vitória, aqui como em
consciência individual já tinha atingido um alto grau de desenvol-
tudo onde se trata de verdade, em última instância, não lhe poderá
vimento. Então, a obra dramática não tem necessidade, como o
faltar.
poema épico, de parecer saída do pensamento popular, do qual não
Quanto a saber em que medida o poeta dramático se pode pôr
teria sido mais que o órgão privado de personalidade. Queremos, na
em cena face a face com o seu público, é o que não consegue ser
obra perfeita, reconhecer também a criação de um talento original
determinado de uma maneira precisa. Também, contentar-rne-ei
que tem consciência de si próprio e, por consequência também, a
recordar, em geral, que em várias épocas, a poesia dramática foi
arte e o virtuosismo de um poeta individual. É somente por aí que
igualmente utilizada para abrir caminho a ide ias novas, à política,
as produções dramáticas, em oposição às acções e acontecimentos
à moral, à poesia, à religião. Já Aristófanes, nas suas primeiras co-
reais, atingem o seu mais alto ponto de vitalidade e de acabamento
médias, empreende uma viva polémica contra a nova situação polí-
artísticos. Também nunca antes, sobre a questão dos poetas dramáti-
tica de Atenas e a guerra do Peloponeso. Voltaire, por sua vez, atra-
cos, se ergueram as mesmas disputas que sobre os autores das epo-
vés das suas obras dramáticas, procura propagar os princípios do
peias primitivas.
seu racionalismo. Mas antes de tudo Lessing, com o seu Nathan o
Mas sob outros aspectos, o público, desde que tenha conser-
Sábio, esforça-se por justificar a sua crença moral em oposição à es-
vado o verdadeiro sentido e o verdadeiro espírito da arte, não quer
treita ortodoxia religiosa. Recentemente, também Goethe nas suas
ver representados num drama, de alguma maneira, os caprichos e as
primeiras produções se elevou contra o prosaísmo das ideias alemãs
disposições acidentais, as tendências individuais e opiniões exclusi-
sobre a vida e sobre a arte; no que foi imitado muitas vezes por
vas cuja manifestação continua a ser mais ou menos permitida ao
Tieck. Se uma tal maneira de ver do poeta se revela como um ponto
poeta lírico. Ele tem o direito de exigir que, no curso e desenlace da
de vista elevado, que não se desliga da acção representada como in-
acção dramática, seja ela trágica ou córnica, o razoável e o verda-
tenção independente a ponto de que esta não surja mais do que
deiro apareçam sempre representados. Neste sentido, precedente-
como um meio, não são assim feitos nem violência nem prejuízo à
mente e primeiro que tudo, já impus ao poeta dramático essa condi-
arte. .se, pelo contrário, a liberdade poética da obra sofrer com isso,
ção capital: que saiba penetrar com um olhar profundo a própria
o poeta pode bem, por essa direcção da sua verdadeira tendência,
essência da natureza humana e o governo divino do mundo e, ao
mas independente da criação artística, produzir ainda uma grande
mesmo tempo, revelar, de uma maneira simultaneamente clara e
impressão sobre o público. Mas o interesse que excita é então de
verdadeira, a substância eterna que reside no fundo de todos os seus
um género grosseiro e tem pouca relação com aquele que pertence à
caracteres, paixões ou destinos. Com esta alta inteligência associada
arte. O caso pior é quando o poeta, cientemente e com intenção pre-
à faculdade viva de criação artística, o poeta pode, em certas cir-
meditada, quer lisonjear uma falsa tendência que domina no pú-
cunstâncias e sem contradição, colocar-se em oposição às ideias
blico, unicamente para lhe agradar, e peca assim duplamente contra
estreitas e ao mau gosto do seu tempo e da sua nação. Neste caso, a
a liberdade e contra a arte.
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Para acrescentar, enfim , uma nota mai s precisa , entre os dife- indi vidualidade desaparecem, os heróis trági cos, qu er sejam os re-
rentes gé neros de poesia dramática, a tragédia não oferece a mesma pre sentant es vivos dessas esferas elevadas d a ex istê nc ia hum an a ,
latitude para o desenvolvimento da per sonalidade do poeta qu e a qu er sej am j á grandes e fort es por si mesm os na sua livre indep en -
comédia, na qual o acidental e o arbitrário da individualidade repre - dência , estão, de alguma maneira, co loc ados ao ní vel da s obras da
se ntam naturalmente um papel essencial. Assim, por exemplo, Ari s- escu ltura. Também, sob es te as pec to, as es tá tuas e as imagen s dos
tófanes, nas parábases, põe-se em relação de diversos modos com o deu se s, como se ndo ad emais de uma natureza mai s simples, ex pli-
público ateni ense do tempo. Ali , não esconde as suas opiniões polí- ca m muito melh or do qu e todas as nota s e co mentá rios os grandes
tica s, os acontecim entos e as situações do dia. Dá conselhos sábios ca rac te res trágicos dos Gregos.
ao s se us con cid adãos, descompõe os seu s ad versários e os seus ri - Assim , em ge ral, pod emos dizer qu e o ve rd ade iro tema da tra-
vais na arte, por vezes mesmo descobre publicam ente a sua própria gé d ia primitiva é o d ivino, não o divino tal qual constitui o obj ecto
pesso a e as parti cularidades da sua vida. do pen sam ent o reli gi oso e m si, mas tal co mo aparece no mundo e
na acç ão indi vidual , se m sac rificar o se u carácte r univer sal e ve r-se
5. O conflito trágico trans formado no seu co ntrário . Sob es ta forma , a substânc ia divina
da vo ntade e da acção é o e leme nto moral . Porque a moralidade ,
O verdade iro fundo da ac ção trági ca , quanto aos fins qu e per- quando a captamos na sua realidade viva e imediata e não sim ples -
seg ue m as personagen s trá gica s, compreende- se no círcul o da s po- mente do ponto de vista da refl exão pessoal c o m o verdade abs-
tências, em si legítimas e verdadeiras, qu e det erminam a vontade tract a, é o divino reali zado no mundo. É a subs tâ nc ia e terna, da qu al
humana. São os afec tos de família, o amor co nj ug al, a piedade filial , os lad os, simultane ame nte particulares e ge ra is, co ns titue m os gran-
a ternura paternal e mat ernal, o amor fratern al , etc .; igualmente, as de s m óbei s da actividad e ve rdade iramente humana. Na acção de-
pai xões e os interesses da vida civil, o patrioti smo de cidadãos, a se nvo lve m-se, reali zam a sua essênc ia.
autoridade do s chefes de Estado. Há mai s, é o próprio se ntime nto Ora , e m virt ude d o princípio da parti cularidade à qu al es tá
religioso, não toda via so b a forma de um mi sti ci sm o resignado o u submetido tud o o qu e se desenv olv e no mundo real, as pot ên cias
co rno obedi ên cia pa ssiva à vontade divina , m as pel o co n trário, morai s qu e co nstitue m o ca r ácter das person agens são, prim ei ro ,
co mo ze lo ardent e pelos interesses e rela ções co m a vida rea l. Eis o defe rentes q uanto à s ua essência e à sua m an ifest ação individu al.
qu e faz a bondade moral do s verdade iros caracteres trágicos. Eles A lé m d isso, se essas pot ên cias particul ares, como o ex ige a poesia
são ass im o que podem e devem ser seg undo a sua ideia. Não o fere- dramática, são cha madas a ag ir à luz do dia, a re al izar-se co mo fim
ce m um co nj unto co mpleto de qualidades desen vol vendo-se em d i- de te rm inado de um a paixão hu m ana qu e passa à acç ão, o seu
versos se ntidos de uma man eira épica. Em bo ra vivos e ind ividu ais acordo es tá destru ído, e nt ra m em luta um as con tra as o utras, a sua
em s i, representam uni camente a pot ên ci a de sse carác te r det e r- hostil id ade rebent a de di versa s mane iras. Enfim, a acção indi vidu al
min ad o qu e se identifico u co m qualquer lad o particular do fund o deve re present ar, em c irc uns tânc ias determinad as, um fim ou heró i
substanc ia l da vida. A es ta altu ra em que os simples acid entes da principal. Ora, nesta s co nd ições, precisam ente este, porque se isol a
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na sua detenninação exclusiva, s usc ita necessariamente contra si a 6. A comédia


paixão oposta e , por aí, geram-se conflitos implacáveis.
Originariamente, o trágico consiste em que, no círculo de uma Na tragédia, o princípio eterno e substancial das coisas aparece
coli são deste tipo, os partidos em oposição, tomados em si mesmos, vitorioso na sua harmoni a íntima, dado que , destruindo na s indi-
têm a justiça do seu lado. Ma s, por outro lado, não podendo realizar vidualidades que se combatem o se u lado fal so e ex cl us ivo, repre-
o que há de verdadeiro e de po siti vo no seu fim e no se u carácter senta, no se u acordo profundo, as ide ias verdadeiras qu e perseguiam
sen ão como negação e violação da outra potência igualmente justa, as personagens. Na Co média , pelo contrário, é a per sonalidade ou a
encontram-se, apesar da sua moral idade ou antes por c a us a dela, subjcctividade que , na sua segur ança infinita, conserva a preponde-
arra stados a cometer erros. rânc ia. Pois não há mai s do qu e esses dois momentos principais da
Já indiquei anterionnentc a razão deste conflito. Ora, em bora acç ão que podem. na divi são d a poesia dramát ica , op or-se um ao
form ando o fundo substancial e verdadeiro da exi stência re al, ele só outro como g éneros diferentes .
se justifica e legitima destruindo-se como contradição. Portanto, Na tragédia, as personagens consumam a sua ruína pelo meio
quanto mais legítimo é o fim e o carácter trágico, tanto m ais é ne- exclusivo da sua vontade e do seu carácter por outro lado sólido, ou
então devem resignar-se a admitir aquilo a que se op õem. Na comé-
cessári o o desenlace deste conflito. Através dele, com e fe ito, exer-
di a, que nos faz rir de per sonagens que falham no s seus próprios
ce- se a justiça eterna sobre os m oti vos individuais e as pai xões dos
es forços, aparece no entanto o triunfo da personalidad e a po iad a for-
homens. A substância moral e a s ua unidade restabel ecem-se pela
tem ent e so bre si própria.
de stru ição das ind ividualidades que perturbam o se u repou so . Por-
O terreno ge ra l qu e co nvé m à coméd ia é, por consequênc ia,
que, embora os caracteres se proponham um obj ectivo legítimo em
um mundo no qual o homem, com o pessoa livre, se tomou perfeita-
si, não podem, no entanto, reali z á-lo se não violando outros d ireitos
mente se nh or daquilo qu e , além do mais , forma o fund o essencial
que se excluem e contradizem .
do seu pensamento e d a sua ac tividade, um mundo e m qu e o s fin s
Deste modo, o princípi o verd ad eiramente subs tanc ia l que se
se de stroem porque têm falta de uma base sólida e verdadeira. Um
deve realizar, não é o combate dos interesse s particul ares, embora
povo democrático, por exe m p lo, co m o s se us burgue se s ego ís tas,
es te enco ntre a sua razão de ser na própria ide ia do mundo real e da
bisbilhoteiros, frí vol os, fanfarrões e va id osos nã o se pode re velar,
actividade humana; é a harm onia na qual as personagens, com os destrói -se na sua própria tont ice .
seu s fins det erminados, agem de ac ordo , se m violação nem oposição. No entanto, toda a acção não é logo cómica só porque é vã e
O que é destruído no desenlace trágico é apenas a individual idade falsa. Sob est e aspect o, o risivct é muitas vezes confundido com o
exclusiva , que não se pod e acomodar a essa harmonia. M as então verdadeiro cômico . Tod os os co ntraste s entre o conteúdo e a forma,
(e é isso que faz o trágico dos se us actos), não podendo renunciar a si o objectivo e os meios pod em ser risíveis. É um a co ntrad ição pela
própria e aos seus projectos, e la vê- se condenada a uma ruína total, qual a acção se destrói a si própria c o objectivo se aniquila ao reali-
ond e ao menos é forçada a resignar-se, como pode, ao cumprimento zar -se. Mas, para o c ômico, devemos exigir uma condição mais pro-
do se u destino. funda. Os vícios do homem , por exemplo, não têm nada de cômico.
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A sá tira, qu e traça , com cores enérgicas, o quadro do mundo real na sa lie ntes e desgastá-l os um com o outro. A personal id ad e individua l,
sua o posição à virtude, dá-nos uma prova manifesta. A tontice, a em ve z de agir co m um a maldade c órnica, com pe netra-se da se rie -
extrav agância, a inépci a tomadas por si , não podem de facto se r c ó- dade das relações só lidas e dos ca racteres firmes. E nq uanto adoça e
rnicas , e mbora às vezes faç am rir. Em gera l, não há nada de mai s ap la na a força trágica da vo ntade e da pro fund idade da s col isões, a
oposto que as co isas da s qu ais os hom en s cost umam rir. Os gracej os ponto d e pode r che gar a uma conc iliação d o s interesses e a um a
mai s se nsaborões e do p ior mau gos to têm esse pri vilégio. Muitas harmon ia dos fin s e das personagen s.
vezes se ri igua lme nte das coisas ma is importantes e da s verd ad es O teatro e o Drama m odernos têm part icularmente a sua OrI-
mai s profundas, quando um pequeno lad o insignificante aí se des- ge m ne ste modo de concepção. A profundidade, ne ste prin cípio, é
cobre qu e es teja e m contradição co m os nossos há bitos e as nossas es ta ide ia : que , apesar d as o posições e do s con fl itos, um a ex istê nc ia
idei as diári as. O riso n ão é, ent ão, mais do qu e um a manifestação da e m s i c heia de harm oni a se reali za pel a ac tividade humana. Já os
sa bedoria satisfe ita, um s inal que anunc ia q ue so mos tão sá bios qu e antigos tinham tragéd ias que o ferec iam um desen lace seme lha nte
compreende mos o co nt ras te e nos damos conta del e . Do mesmo dado qu e as per sonagens, e m vez de sere m sacr ificadas , conserva-
modo , existe um riso de troça, de desdém, de desespero, etc . Pelo vam aí a sua existê ncia e o s seus d ireitos. Assim, por exemplo, o
contrário, o que carac ter iza o cómico é a sa tisfação infinita, a seg u- A re ópago, na s Eu m énides de Ésq uilo , con cede às duas parte s, a
ran ça qu e experi me ntamos por nos se ntirmos e levados ac ima da pró- A polo e às virge ns vi ngadoras, um igua l dire ito a receber honras.
D a m esm a manei ra no Filoctetes, o de bate entre Fil o ct etes e Neopt ó-
pri a co ntradição e de não es tarmos num a si tuação c ruel e infeli z. É a
lemo acalm a-se co m a ap ari ção e co m o conselho de Hércul es, que
feli cidade e a satisfação da pessoa que, segura de si mesm a, supo rta
os le va aos dois par a o cerco de Tr óia. M as, aq ui, a conc iliação ve m
assisti r ao falh anço do s se us proje cto s e a da sua reali zação . A razão
do exte rior por orde m d os deuses, não tem a sua fonte interior na
estreit a e afectada é a menos capaz dis so, precisamente aí onde, na
determ in ação das próprias partes; ao passo que , no teatro moderno,
sua sa tisfação de si pró pria, se toma ma is risível pa ra os o utros.
são as person agen s qu e , pelo conc urso das s uas próprias ac ções, são
cond uzi das a es sa cessação do com bate e a esse acordo mútuo do s
7. O g énero interm édio se us fin s e dos seus caracteres. Sob es te asp ec to , a Ifig énia de Goethe
é um ve rdadei ro modelo poéti co des te gén e ro de es pectác ulo, mai s
Na poe sia dramát ica mod ern a, o trá gi co e o c órnico estão ainda
a ind a qu e o seu 7llSS0. Porque, nesta última peça, primeiro, a rec on-
mai s e ntretec idos , porqu e aqui, mesmo na tragédia , o prin cí pio d a
c iliação com A ntónio é um a q uestão se ntimenta l. R esulta de qu e se
per son alidade qu e, no có mico. se dese nvo lve sozi nho , se reve la na-
reconhece qu e Antó nio possui a razão po siti va qu e fa lta ao caracte r
turalment e co mo dominante e recalca o e le me nto substa ncia l q ue de Ta sso . Por o utro lad o , os d ireit os da vida ide a l, qu e tinham lan -
faz o fundo das potê nc ias mora is. çado Tass o em opos ição à realidade, à habilid ad e vu lgar e às co nve-
Ma s a co mbinação ma is pro funda do trágico c do c ómico, para niências, são con servadas. Mas es ta conci liação e st á antes sim ples-
form ar um novo todo, não con siste em co loc ar os dois element os ao m ente no es pírito do e spect ador; esta idei a só aparece sob a fo rm a
lad o um do outro ou em e ntrelaçá-los, mas si m em suprimir as arestas de ad mi ração pelo poet a e do int eresse qu e se liga ao se u dest ino .
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Em geral, os limites deste género interm édio são mais flutuantes os libretos e participava na sua encenação . Deixou alguns textos
do que os da tragédia e da comédia. Depois corre-se aqui o perigo, teóricos importantes, em particular A Obra de Arte do Futuro (1850)
seja de sair do tipo puramente dramático, seja de cair no prosaico. e Ópera e Drama (1851) . É nestes textos que propõe a noção de
Com efeito, como os conflitos, pela simples razão de que, atra- Gesamtkunstwcrk ou síntese das artes: o que define o drama, a arte
vés do seu próprio desacordo, devem acabar na paz, não oferecem total, é a união da música, da mímica, da arquitectura e da pintura
desde o início o espectáculo de um a violenta ho stilidade trágica, para a realização de um fim com um - oferecer ao homem a imagem
parece as sim que o poeta terá facilmente preparado a ocasião de do mundo (é a partir destas ideias de hase que será con cebido o
fazer desenrolar todo o interesse da s ua representação sobre o lado Festspielhaus d e Bayrcuth}. A obra de Wagner intervirá com o ponto
interior dos caracteres, e fazer do avanço das situações um simples privilegiado de referência em te óricos co mo Appia e , em menor
meio para esses retratos de caracteres. Ou então, pelo contrário, vira- gra u , em Craig . ou nas tentativas d e «tea tro total» e d e «tea tro abs-
-se para o lado e xterio r e dá às situações e aos co stumes do tempo tracto » como as da Bauhaus .
uma importância preponderante. E se acha ainda um e outro muito
difíceis, limita-se a excitar a aten ção pel o simples int eresse das
o Drama e a união das artes
complicações dos acontecimentos marcantes.
A este círculo pertence uma multidão de peças modernas que Assim, a ilusão das arte s plásticas tomou-se a verdade no drama:
têm menos pretensões à poe sia do que ao e fe ito teatral . e que, em o artista plástico estende a mão ao bailarino , e ao mimo , para se
vez de aspirar à emoção verdadeiramente poética e verdadeiramente tomar ele próprio, para ser ele mesmo b ailarino e mimo. - Tanto
humana, têm por único fim, tanto o divertimento, quanto o melhora- quanto esteja no seu poder, este deverá manifestar à vista do homem
mento moral do público, ma s sobre tud o porque fornecem ao actor a interior o que vê e o que sente. É a ele que pertencem, em toda a
ocasião variad a de mostrar, de uma maneira brilhante, o v irtuosi smo sua extensão e profundidade , a superfície da cena, onde m o stra a
do seu talento e a sua habilidade. sua forma e o se u movimento pelo meio da representação plástica,
seja isolada, seja em sociedade com os colaboradores da represen-
(Hegel, La Po étiquc; trad . de C h. B énar d, Librair ie Philosophique de Ladr an ge, 1855 , tom o se
gundo ; I: pp, 2-9 ; 2: rr. 17-20; 3: rr- 24 -28; 4 : pp. 41-44 : 5: pp, 70 -13; 6: pro76 -7X: 7: pp . 83-
tação. Mas, ali onde acaba o seu poder, a li onde a plenitude do seu
-85. Veja-se tam bém H e g e l.l:"stllétir///C. trad. de S . J ank él évit ch. Ch arnp s-Fl ammar ion , vo l. 4 .; querer e do seu se ntimento o obriga a fa zer manifestar-se o homem
Te xto usado e m a po io it tradu ção po rtu gue sa : He g el . E suinca -Pocsia , Ir ad . d e A lva :o
Ribe iro. Lisb oa , Guimar ãe s, 1980. pr. 277 -372 . (N.T.)
interior pela linguagem, a palavra e x prim irá conscientemente a sua
intenção : ele será poeta, e para ser poeta, músico. Bailarino, músico
e artista, ele não é mais que uma e a mesma co isa, e nada mais do
qu e um homem artista que representa , que se co m unica. de a cordo
48 - WAGNER : A OBRA DE ARTE DO F UTURO (1850 ) com a soma d e todas as suas faculdades , co m a mais alta fa culdade
da imaginação.
Richard Wa gn er (1813 -/ 883) , m úsico al emão, não se co nten- Nele, actor [agindo) se m intermediário, confundem-se as três
lava em escre ve r a m úsica das suas óp eras , mas co mp unha tamb ém artes irmãs, para uma acção c om um em que a faculdade suprema de
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cada uma atinge o seu mai s alto de sabrochar. Agind o em conjunto , com um, todas as três e lev arão a vo ntade do drama a act o direct o ,
cada uma delas obtém o poder de ser e de poder faz er precisamente poderoso. Porque ha verá um a coisa para todas elas, para os três
o que e las desejam se r e poder faz er segundo o se u carácter parti- gé ne ros de art es reunidas. uma coisa qu e e las deverão qu erer para
cular. Pelo fact o de qu e cada uma se pode ab sorver na outra, quando se tomarem livres no s se us poderes, e isto é preci samente o Dram a :
o se u poder particular acaba, conse rva-se pura, livre e independente, é importante para elas alcançar a intenção do drama. Se estão cons -
tal qual é . O bailarin o mi mo fica livre da sua incapacidade a partir cie n tes desta intenção, se não fazem mai s qu e conc e ntra r o se u qu e-
do momento em qu e pode cantar e fal ar ; g raç as ao mimo, as cri a- rer na execução desta int enção , receberão também a força de cor tar
ções da mú sica alcançam uma interpretação int eligível para todos, de todos os lados do seu próprio tronco os rebentos eg oístas da su a
da me sma man eira qu e pela palavra do p oeta e isto, na medid a natureza particular, para ev ita r qu e a árvor e cresça informe em todas
mesmo e m que la m úsica] e la própria pode pa ssar no gesto do pan - as direc çõe s, e a fim de qu e se eleve orgulhosamente até ao ci mo a
tomimo e na pal avra do poeta. Ma s o poeta não se torna verdadeira- sua coroa de troncos, ramo s e folhagem.
mente homem senão qu ando pas sa para a carne e sangue do actor; O homem isolado , são de corpo , de coraç ão e de espírito , nã o
se ele designa par a cada m an ifestação art ísti ca a inten ção qu e as pode experimentar uma necessidade mais elevada que aquela que é
une todas em conjunto e as dirige para um fim co m um, essa inten- com um a todos o s se us semelhantes; porque es ta nece ssidade , se for
ção de querer só se torna poder pelo facto de qu e essa vontade p o é- um a verdade ira nece s sidade, não pod e ser se não aq ue la qu e e le
tica desaparece /l O p oder da interp reta ção , só poderá satisfazer na co m u n id ade . O ra , a necessidade mai s ur-
Não haverá uma fac uldade ricamente de senvolvida de cada uma gen te e mai s forte do homem perfeito, artista, é a de se com unicar a
das artes qu e fique inutilizada na o bra de a rte universal do futuro, s i me smo na plenitude d a s ua nature za, à com uni d ade tod a inteira e
po rqu e é nela qu e alcançará o seu valor pleno. Assim, so bretudo a não conseg ue fazê-lo por um e nte ndime nto ge ra l necessário senão
art e mu sical, qu e se desenvolve de um a maneira tão particular e tã o no dram a. No drama , e le e nriq uece o se u caráct er p arti cular re pre-
variada na música instrumental, poderá de senvol ver-se da manei ra
se nta ndo um carácte r ind ividu al d iferen te de si m esmo, co mo um a
mais ri ca nesta obra de arte ; por sua vez , ela própria s ugerirá à
personalidade humana d e carácter ge ral. Dev e sa ir d e s i pr ópri o
dan ça pantom ím ica inven çõe s abso lutame nte nova s e dará ao fôleg o
para a barc ar um a personalidad e qu e lhe sej a es tranha e m todas as
da poes ia uma abundâ nc ia não menos inesp erada. (... )
suas característi ca s própri as, tão co m pletame nte quanto nec essári o
A ssim, com pletando -se mutuamente na sua ronda alt ernada, as
a fim de pod er repre sent á-l a ; nã o o co nseg u irá se nã o perscrutar
artes irmãs reuni das far-se-ão ver e valer, tanto [todas] em conj unto,
esse indivíduo nas suas rel ações e no se u contacto com os outros, e
tanto a pa r, quanto isoladam ente, seg undo a nece ssidade da ac ção
descortinar o se u com ple mento noutras individualidades; ass im, por
dramática que, so zinha. imporá a medid a e a le i. Ora a pantomima
co nseq uê nc ia, es tuda e observa o ca rác te r dessas outras ind ivid ua-
plásti ca esc utará os raci ocíni os se m pai xão do pensamento, ora a
lidades, e m s i, co m tanta minúcia e vivac iade qu e lhe sej a possível
vontade do pen samento decidido se difundirá na e xpre ssão imediata
dar-se conta dessa s rel açõe s , desse co ntac to e desse co m pleme nto,
do gesto; ora a mú sica te rá que ex primi r sozin ha o c urso do sen-
por sim pa tia, no se u próprio se r; o ac to r arti sta perfeito é por conse-
timento, o arre pio da e moção; ma s e m bre ve também, num e n lace
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guinte O indivíduo acrescido até ao carácter da espécie, segundo a O Coro e o herói


riqueza do seu carácter individual.
No fundo, o fenómeno estético é simples: se temos o dom de
O lugar onde este acontecimento maravilhoso se realiza é a
perceber sempre o jogo vivo das figuras e de viver sem cessar cer-
cena teatral; a obra de arte universal que ele engendra é o drama.
cados de toda uma coorte de espíritos ~ somos poetas; se experi-
Para desenvolver nesta obra de arte una e suprema o conteúdo da sua
mentamos a necessidade instintiva de nos metamorfosearmos e de
natureza particular até ao seu máximo, o artista isolado, da mesma
nos exprimirmos através de outros corpos e outras almas - somos
maneira que a arte isolada, deve suprimir em si toda a tendência
dramaturgos.
egoísta arbitrária que procura usurpar o espaço e comprometer o
Ora, este dom, esta faculdade de nos vermos assim cercados de
conjunto, a fim de tanto melhor poder concorrer para o fim superior
uma coorte de espíritos com os quais nos sentimos em comunhão
comum que, de outro modo, seria absolutamente irrealizável caso
profunda, a emoção dionisíaca é capaz de a comunicar a uma multi-
cada indivíduo não se moderasse de tempos a tempos.
dão inteira. Está aí o processo mesmo da formação do coração
Ora, esta intenção [que é] a do drama, é ao mesmo tempo a
trágico - e é este o fenómeno dramático original: assistirmos nós
única intenção verdadeiramente artística que pode ser realizada: o
próprios à nossa própria metamorfose e agir desde então como se
que lhe é estranho deve perder-se necessariamente no oceano do in-
tivéssemos efectivamente entrado num outro corpo, numa outra
certo, do ininteligível, do não-livre. E esta intenção não é atingida
pessoa. Assim se inaugura a evolução do drama. Passa-se aqui uma
por um só género de arte, mas unicamente por todas ras artes I em
coisa diferente do que acontece com o rapsodo, o qual não se
comum; é por isso que a obra de arte mais geral é, ao mesmo tempo,
confunde com as imagens que produz, mas que, à semelhança do
a única que é real, livre, quer dizer universalmente inteligível.
pintor, as olha à distância com um olhar prescrutador: porque aqui,
(R. Wagner. Oeuvres cn prose Ill, trad. de J. G. Prodhomme e Dr. Phil. F. Holl, Paris, Dela- a penetração numa natureza estranha supõe já que o indivíduo tenha
r
grave, 1907. L' CCllvre d' art de avenir, pp. 224·227.) renunciado a si mesmo. E de facto, um tal fenómeno impõe-se
como uma epidemia; toda uma multidão fica possuída. Aqui, de
resto, está o motivo pelo qual o ditirambo difere essencialmente de
todas as outras formas de canto coral. - As virgens que vão a cantar
49 - NIETZSCHE: A ORIGEM DA TRAGÉDIA (1871) solenemente o seu hino processional até ao templo de Apolo com
um ramo de louro na mão, mantêm-se o que são e guardam a sua
Friedrich Nietzsche (1844-1900), filósofo alemão, ocupa 11m identidade. Mas o coro ditirâmbico já é um coro ele seres mctarnor-
lugar importante /lO campo da estética teatral com A Origem da Ioseados, que esqueceram completamente o seu passado de cidadãos
Tragédia (1871 ). A célebre distinção que estabelece entre o apolinio e a sua posição social e que, pondo-se a viver fora ele qualquer es-
e o dionisíaco - dos quais, segundo ele, a tragédia grega representa trutura social, se tornaram nos servidores intemporais do seu deus.
a síntese - não deixará de alimentar a reflexão contemporânea so- Todas as outras formas elo lirismo coral nos Gregos não são mais
bre o teatro, C/1/ particular em Artaud e alguns dos seus herdeiros. elo que uma imensa amplificação do aedo apolíneo. No ditirambo
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defrontamo-no s com uma co munida de de actores inconscientes, qu e importante mesmo que a acção propriamente d ita. Não é ra mos mais
são mutuamente testemunhas da s suas própria s metamorfoses. capazes de estar de acordo em dar-lhe esta importân cia e esta origi-
A po ssessão é, por consequên cia, a condição prévia de toda a nalidade tradicionalmente atestad as, porque o co ro e ra com posto de
arte dramática; possuído, o exaltad o por Diónisos vê- se como sá tiro seres sub alte rn os e servos - e m esmo, no início, de sátiros com as-
- e co mo sá tiro, então, ele vê o deus. O que sign ific a qu e, metamor- pecto de bodes. E a situ aç ão d a orquestra, diante da cena, mantinha-
foseado, e le apercebe, exterior a si, uma nova visão que é a concre- -se para nós um enigma. A gora, em contrapartida, sa be mos que a
tização apolínea do seu estado. É co m es ta no va vi são que o drama ce na, aí incluindo a ac ção , foi , no fundo , sim plesmente pensada, na
acaba de se constituir. o rigem , co mo visão e que a única realidade é, just amente, o coro
Robustecidos por esta ce rteza, é- nos agora nece ss ári o com - qu e faz nascer fora de s i essa vi são e que fala del a com todos os re-
preender que a tragédia grega não é outra coisa se não o co ro di on i- c urso s s im bólicos da dan ça , da música e do ve rbo. N a sua visão, é
síaco a carregar-se incessantem ente de imagens num mundo apolíneo Di ónisos quem o coro a pe rcebe, o seu Senhor e m estre - e é por isso
constantemente renovado. As part es corais entrelaçadas na tragédia qu e se mantém sempre um coro de servos. Mas e le vê- o, esse deus,
são então, de uma certa maneira, a matriz de tudo o qu e se chama a sofrer e a tornar-se magnífico - e é por isso qu e e le próprio não
diálogo - quer dizer, a matri z do conjunto do mundo c énico, do age. E embora ele estej a enfim nessa posição de se rv id ão total rela-
drama propriamente dito. Por des cargas suce ssivas, es se fund o ori - tivamente ao deus, não é m enos a expressão mai s alta da natureza,
ginário da tragédia irradia a visão do dr ama, a qual é seguramente, quer dizer, a sua expressão dioni síaca - e é por isso qu e , como ela,
de parte a pa rte , uma mani festação de sonho - e , nesta medida, de so b a influência da insp iração profere oráculos e se nte nç as . Porque
natureza épi ca - , mas que , por outro lado, v isto que é obj ecti vação ele é o compassivo , é também o sá bio que anuncia essa ve rdade jor-
de um es ta do dionisíaco, representa não a libertaç ão ap olínea na rando do mais fundo d o mundo. Porque é assim qu e toma nasci-
aparên cia, mas , pelo contrári o, a deslocação do indivíduo e a s ua m ento essa figura, fantástica e tão chocante à primeira vista, do sá-
união com o ser originário. Por aq ui mesmo, o drama é a materiali - tiro sá b io e inspirado qu e é ao m esmo tempo , por opos ição ao deus,
zação apolíne a de tudo o qu e pod e se r co nhe c ido ou experiment ad o o « h um ano estúpido», - a imagem da natureza e d as suas pulsões
no estad o dioni síaco, - o qu e o se pa ra, como por um abi sm o inso n- mai s v igo ros as, ou melhor, o s ím bo lo da nature za e mensageiro da
dável , da epope ia. sua sa bedo ria e da sua arte - músico , poeta, bailarino e vide nte numa
Ma s é o coro da tra gédia grega, o sím bo lo da multidão tod a in- só pesso a.
teira presa da emoção dioni s íaca, qu e enc ontra na nossa man ei ra de Desta interpretação , com o da tradição , re sulta qu e Di ánisos. o
ver a sua explicação plena. Habituados como estávamos até aq ui herói propriament e dit o d a cena e o centro d a vi sã o, nã o está de iní-
à fun ção reservada ao coro so bre a cena moderna, em parti cular c io , no período mai s anti go da tragédia, verdadeiramente presente
na óp era, não podíamos ab solutamente compreender - da maneira e m cena, mas é simplesmente representado como presente. Por outras
que ap esar de tudo ressalta claramente da tradição - como o coro palavras, a tragédia na sua origem é apenas «coro » , e não «drama».
tr ágico dos Gregos podia se r mai s antigo , mais originári o , m ai s Todavia, mais tarde, es fo rça r-se-ão por mostrar re a lme nte o deus e
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apresentá-lo em cena, visível a todos os olhos, a própria figura da figur a épica, clara e firme; e não é m ais daí em diant e por int erm é-
visão com o cená rio que o exalt a. É entã o qu e começa o «d ram a» dio ap en as das fo rças qu e se ex prime Di ónisos , mas como heró i
no sentido restrito. Daí em diante , o coro ditirâmbi co terá po r tarefa épico, quase na língua de Homero.
estimular a disp osição dionisíaca do aud itór io até ao ponto em qu e.
(F . Nie tzsche, La naissance de la tra g édie , trad . de Mi ch el Haar , Phil ipp e La coue-Labart he e
aparecend o o herói trágico sobre a cena, não seja o homem enfarpe-
Jean -Luc Nancy, Par is. Galli ma rd, 1977. pp. 73 e se g uintes :)
lado ridiculamente com uma máscara d isforme que ele veja, m as a Edição portuguesa : F. Nie tzschc, A Orig em da T ragédia . trad, de Á1~aro R ibe iro , Li sboa.

figura de um a visão por assim dizer nascida do seu próprio êx tas e. G uim arães, 1988. (N.T.)

Pensemo s em Adme to, imaginem o-lo abismando-s e na rec o rdação


de Alce ste, a esposa desaparecid a, e con sumindo-se a evocar se m
fim os seus traços: de repente aproxi m am del e , dissimulad a so b um
vé u, a im agem de um a mulh er c om a m esma e st atu r a, c o m o 50 - ZOLA: O NATURALISMO NO TE ATRO (1881)
mesmo mod o de andar. Imaginem os então a sua pertu rba ção s úbi ta ,
a sua inqui etaçã o tem ero sa, a sua co m paração febril e a sua certe za Émile Z ola (1 840-190 7) escrito r fran cês , f oi o teórico do na-
instintiva - e ter em os o próprio ana logon do sentimento qu e arre- tu ralism o. P rin c ip alm ente co nhecido pela s ua o bra roman es ca ,
bata o espec tador em presa de Diónisos qu ando via avan çar so bre a preocupou-se no entanto , desde mu ito cedo , com a introduç ã o do
ce na o deu s ao so frimento do qual se tinha já assoc iado . Involunta- naturalism o no teat ro , e a pa rtir de 1865 toma posição contra Dumas
riamente, tran sferia sobre essa fig ura m ascarad a a imagem m ági ca Filho para afirmar que o teatro pode representar o real em toda a sua
do deu s que vibrava diante da sua a lma e di ssol via a realid ad e numa brutalidade . C hega m esm o a esc rever um a p eça , Madalena (1865),
espéc ie de irreal ida de espectral. Tal é o es tado do so nho apolíneo, que será levada à ce na em 1889 por A ntoine no Th éâtre Libre, mas
no qual velando -se o mund o do di a , um o utro mun do se oferece aos trabalha so bretudo na adaptação dos seus romance s p ara a cena
nossos olh os numa incessante tran sformação, mais claro, m ais di s- (po r exe mp lo, Th érese Raquin , em 1873 ). A p artir de 18 76 , na su a
tinto, mais arrebatad or e portanto m a is se melhante a um a so mbra .
Revista dramática do Bem Público e depois em Voltaire , emp reende
Daqui vem a opo sição estilística nítid a qu e o bse rvamos na tra géd ia :
lima verdadeira batalha p elo na turalismo no teatro . É adema is o
linguagem , cor, movim ento, dinami smo do d iscurso partilham -se.
título que dará ao primeiro de do is volumes nos quais reun irá , em
entre o lirism o do co ro e o sonho apo líneo da ce na, em esfe ras de
1881 , os se us arti gos . Se mpre em conflito co m o crítico Sarccy, sus -
ex pressão radicalmente di stint as . As aparições apo líneas e m qu e
te ntáculo do teatro reinante herdado do passado , Zola opõe-lhe a
Diónisos se objectiva não são mai s um mar eterno , lima trama mu-
necessida de de um teatro 110\'0 qu e seria «o verdadeiro drama da
tável , lima vida arde nte como o é a mú sica do coro. Não são m ai s
so ciedade mo derna », ca paz de ultrapassar o psi cologi smo pa ra
as forças qu e ape nas se pressentem e q ue ainda não se co ndensaram
em imagens, em qu e o servo inspirad o por Di ónisos ex pe rimenta a «descer à aná lise experimenta l e ao es tu do a na t ômico de cada se r»
pro ximidade dos deu s. O qu e agora lhe fal a , vi ndo da ce na , é a _ cada ser tomado na rea lidade do se u m eio e da sua psicologi a .
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o meio e a personagem atravanca a nossa literatura. Pelo contrário, o esforço toma-se muito
custoso quando se quer um herói real, sabiamente analisado, de pé e
Todas as fórmulas antigas, a fórmula clássica, a fórmula ro-
agindo. Eis sem dúvida a razão por que o naturalismo aterroriza os
mântica, baseiam-se no arranjo e amputação sistemáticos do verda-
autores habituados a pescar os grandes homens nas águas turvas da
deiro. Tomou-se por princípio que o verdadeiro é indigno; e tenta-se
história. Ser-lhes-ia necessário escavar a humanidade demasiado
retirar dele uma essência, uma poesia, sob pretexto de que é preciso
expurgar e engrandecer a natureza. Até agora, as diferentes escolas profundamente, aprender a vida, ir direito à grandeza real e pô-Ia a
literárias bateram-se apenas sobre a questão de saber com que más- trabalhar com mão poderosa. E que não se negue esta verdadeira
cara se devia vestir a verdade para que ela, em público, não tivesse poesia da humanidade; foi libertada no romance, pode sê-lo no tea-
o ar de uma desavergonhada. Os clássicos tinham adoptado o peplo. tro; só falta encontrar-lhe uma adaptação.
os românticos fizeram uma revolução para impor a cota de malha e ( ...)

o gibão. No fundo, estas mudanças de vestuário são pouco impor- Seguramente, não me posso pronunciar sobre a forma que to-
tantes, o carnaval da natureza continua. Mas, hoje, chegam os natu- mará o drama de amanhã; é ao génio que é preciso deixar o cargo de
ralistas e declaram que o verdadeiro não tem necessidade de roupa- falar. Mas permitir-me-ei, no entanto, indicar a via pela qual penso
gens; deve avançar na sua nudez. Aqui, repito-o, reside a querela. que o nosso teatro se encaminhará.
( ... ) Trata-se primeiro de abandonar o drama romântico. Seria de-
Tomai então o meio contemporâneo e tentai fazer os homens sastroso retomar os seus processos de exagero, a sua retórica, mesmo
viver aí: escrevereis belas obras. Sem dúvida, é preciso fazer um a sua teoria da acção, às custas da análise dos caracteres. Os mais
esforço, é preciso libertar da confusão da vida a fórmula simples do belos modelos do género não são mais, como foi dito, do que ópe-
naturalismo. Eis aqui a dificuldade, fazer coisas grandes com assun- ras de grande espectáculo. Creio portanto que se deve recuar até à
tos e personagens que os nossos olhos, acostumados aos espectá- tragédia, mas não, bom Deus!, para lhe retomar agora a sua retórica,
culos de cada dia, acabaram por achar pequenos. É mais cómodo, o seu sistema de confidentes, de declamação, de narrativas intermi-
eu sei, apresentar uma marioneta ao público, chamar à marioneta náveis; mas para regressar à simplicidade da acção e ao único es-
Carlos Magno e enchê-Ia a um tal ponto de tiradas, que o públ ico tudo psicológico e fisiológico das personagens. O quadro trágico as-
imagina estar a ver um colosso; isto é mais cómodo do que pegar sim entendido é excelente: um facto desenrolando-se na realidade e
num burguês da nossa época, um homem grotesco e mal arranjado e suscitando nas personagens as paixões e os sentimentos cuja análise
tirar dele uma poesia sublime. fazer dele, por exemplo, o Pai Goriot, exacta seria o único interesse da peça. E isto no meio contemporâ-
o pai que dá as suas entranhas às suas filhas, uma figura enorme de neo, com o povo que nos cerca.
verdade e amor, que nenhuma literatura pode oferecer igual. Se não retornamos ao cenário abstracto, é porque, sinceramente,
Nada é tão fácil como trabalhar com padrões, com fórmulas não podemos. Não há o mínimo embaraço da nossa parte. O cenário
conhecidas; e os heróis, no gosto clássico ou romântico, custam tão exacto impôs-se por si, pouco a pouco, como a roupa exacta. Não é
pouco esforço que se fabricam à dúzia. É um artigo corrente que uma questão de moda, é uma questão de evolução humana e social.
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Não podemos mais regressar aos dísticos de Shakespeare, da mesma personagens. Pode se r um quarto , um vestíbulo, uma floresta, uma
maneira que não podemos tomar a v ive r no século dezasseis. Is so encruzilhada; m e smo um dístico bastará. O drama reside unica-
está-nos proibido. Sem dúvida que obras-primas nasceram nessa mente no homem , neste homem convencional que foi despojado do
convenção do cenário, porque estavam nela como no seu solo na- seu corpo, que não é mais um produto do solo , que não se embebe
tural. Mas esse solo não é mais o nosso, e desconfio que um autor no ar natal. Assistimos apenas ao trabalho de uma máquina intelec-
dramático de hoje não criará nada de vivo se não plantar solida- tual, posta de parte, funcionando na abstracção.
mente a sua obra na no ssa terra do século dezanove. Não discutirei aqui se, em literatura, é mais nobre manter-se
Como é que um homem com a inteligência do senhor Sarcey nest a abstracção do espírito ou dar ao corpo o seu grande lu gar, por
não tem conta do movimento que transforma continuamente o tea- amor da verd ade. De momento , trata-se de constatar sim ples factos .
tro? Ele é muito letrado, muito erudito; conhece como nenhum ou- Pouco a pouco, produziu-se a evolução científica, e vimos a persona-
tro o nosso reportório antigo e moderno; tem todos os documentos gem ab stracta desaparecer para dar lugar ao homem real , com o seu
para seguir a evolução que se produziu e que continua. Está aqui um sangue e os seus músculos. A partir dest e momento, o papel dos
estudo de filosofia literária que o deveria tentar. Em vez de se fechar meios tomou-se cada vez mais importante. O movimento que se ope-
numa retórica estreita, em vez de não ver no teatro senão um género rou nos cenários parte disso, porque, em suma, os cenários não são
submetido a lei s, porque é que ele não escancara a sua janela e con- mai s do que o s meios onde nascem, vivem e morrem as per sonagens.
sidera o teatro como um produto humano, variando com as socieda-
des, alargando-se com as ciências, indo cada vez mai s em direcção (E. Zola, Le naturalisme GU th éâtre , Paris, Fasqu ell e. 1907 , pp . 18, 21-23 e 98-99.)

a essa verdade que é o nos so objectivo e o nosso torm ento?


Fico-me pela questão dos cenários. Vede como o cenário abs-
tracto do séc ulo dezassete corresponde à literatura dramática do
tempo. O meio não conta ainda. Parece que a personagem anda no 51 - STRINDBERG: PREFÁCIO A MENINA JÚLIA (18 88)
ar, liberta dos objectos exteriores. Não tem influência sobre eles, e
nunca é determinada por eles. Mantém-se sempre no estado de ti po , Au gust Strindb erg (1849 -19 12) , esc ritor su eco , fo i a u to r de
nunca é anal isada como indivíduo. Mas, o que é mai s característ ico, novela s e p eça s d e teatro. Depois de se ter interessado p el o na -
é que a personagem é então um s im p les mecanismo cerebral ; o turalism o , e ter mesm o considerado esc reve r peças naturalistas . de-
corpo não intervém, apenas a alma funciona, com as sua ideias, os finiu a sua óp tica própria: simplific ar os elem ento s materiais para
seus sentimentos, as paixões. Numa pal avra, o teatro da época usa o conce ntrar a at enção sobre o drama psíquico . De fa cto , a sua p sico -
homem psicológico, ignora o homem fisiológico. Daí, o meio não logia «científica>' (muito influenciada p ela s ideias de Cha rcot e os
tem qualquer papel a de sempenhar, o cenário toma-se inútil. Pouco progressos da p sicologia no fim do século XIX ) faz mais ou menos re-
importa o lugar em que a acção se passa, a partir do momento em bentar o molde naturalista. É esta definição de uma nova psicologia
que se recu sa aos diferentes cenários qualquer influência sobre as qu e dá o seu interesse ao célebre prefácio a Menina Júlia ( 1888).

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