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pequenas biografias não-autorizadas

Leonardo Marona

pequenas biografias não-autorizadas


© 2009 Leonardo Marona

Produção editorial
Debora Fleck
Isadora Travassos
Marília Garcia
Valeska de Aguirre

Editora-assistente
Larissa Salomé

Revisão
Pedro Hollanda

Produção gráfica
Isabella Carvalho

Capa
Victor Hugo Cecatto

Cip-Brasil. Catalogação-na-fonte
sindicato nacional dos editores de livros, rj

M312p
Marona, Leonardo
Pequenas biografias não-autorizadas / Leonardo Marona. Rio
de Janeiro: 7Letras, 2009.

ISBN 978-85-7577-571-4

1. Poesia brasileira. I. Título.

09-0617. cdd: 869.91


cdu: 921.134.3(81)-1

2009
Viveiros de Castro Editora Ltda.
R. Jardim Botânico 600 sl. 307 Rio de Janeiro RJ cep 22461-000
(21) 2540-0076 | editora@7letras.com.br | www.7letras.com.br
sumário

primeira parte
vinte e cinco 11
adeus 12
roçam-se os pés 14
casal pula da ponte em nome
do amor proibido 16
atriz 17
ana c. 18
kerouac 19
chet baker 20
aviso da balada do café triste 22
rita hayworth 23
neruda 25
murilo mendes 27
poeminha quântico 29
rilke 30
natércia 32
cortázar 34
antonioni 35
descartes 37
napoleão 38
bukowski 39
maiakovski 41
skip james 44
ulisses 46
o pequeno suicídio de e.e. cummings 47
evolução do anjo 48
segunda parte
vinte e seis 51
são paulo não está 52
whitman 54
quatro doses de conhaque 56
1982 57
orangotangos 58
lou reed 59
billie holiday 63
gene 65
nara leão 67
helena ignez 68
otelo 70
parapeito 71
samurai 72
zelda fitzgerald 73
carta de um estudante de belas-artes 74
strindberg 76
beethoven 77
augusto dos anjos 79
baudelaire 80
victor hugo 81
shakespeare 82
clint eastwood 83
zé ramalho 84
bergman 86
para Rose Abdallah
e Fausto Wolff
primeira parte
“vinte e cinco”

eu passava
leite de aveia
nos bagos
para que tudo
estivesse muito
limpo caso algo
de inesperado
acontecesse.

e raramente
algo inesperado
me acontecia
mas quando
por algum acaso
acontecia algo
os bagos estavam
sempre sujos.

11
“adeus”

hoje estou
contando dias e horas
com a ligeira impressão
de que me cortaram fora
os dedos da mão.

existe um ônibus
à minha espera
do outro lado
do pensamento.

ouço seu freio-


motor antecipando
uma curva fechada
onde repousa meu
óleo essencial.

pelas curvas
dessa
nova estrada
queria
encontrar
no lugar das
placas
marcas
de pneus gastos
e nas marcas

12
rastros
do meu amor.

mas ninguém
conhece o que
ama.

ama-se
surpreendentemente
como quem acolhe
um tiro.

13
“roçam-se os pés”

acho que todo mundo


um pouco no fundo
sem saber como
quer o amor
como o fruto
de outro sigilo
secreto defunto
mal-estar no outro
sem saber que quer
mesmo e sem dúvida
um canto de vírgula
que sirva de túnica
às tardes esquecidas
que curam e ardem
nas noites sem lua
nuas como aquela
silhueta sem foco
que falta na cama
ao lado do cheiro
do beijo de olhos
do fim de semana:
herança de traças.

agora é tarde e frio


os cílios se dobram
e existe certo vazio
que só preenchemos

14
com calor hesitante
e os pés enlaçados
carregam o instante,
gelado contra gelado
é igual a dois lados
para sempre sólidos
inquebrantáveis que
quando penetram poros
marcam nossa distância
com hematomas lilases
como flores de inverno
na estampa do lençol.

mas bem lá no fundo


quando a luz falece
todos nós esperamos
alguém que nos ame
como se não soubesse.

15
“casal pula da ponte em nome
do amor proibido”

cobrei dos teus olhos o que


não cobraria da tua alma.
lá fora o vento deságua,
fraco como a memória.
restam apostas ganhas
perdidas nos bolsos.
estamos sozinhos
agora que somos
a cor da junção.
e isso é tudo:
você e eu.
e lá fora
peixes
azuis.

16
“atriz”

as palavras,
se elas saem doloridas,
é a tinta negra que sangra
as frases como feridas.

pouco me adiantam
as palavras floridas
que desabrocham no ar:
pétalas amorfas
na solução do armário.

prefiro um dedo direito


e uma intenção sinistra.

quero de ti
a palavra comida.
quero as palavras
pelos poros da página,
pelo meio da tua virilha.

quero enfim,
segundos antes das cortinas,
escrever aquilo que te cala.

17
“ana c.”

a poesia,
se persiste,
quando cisma,
(instinto?)
é um passo
na direção
do abismo,
(infinito?)
ou então são
dois passos
e um colapso
(suicídio?)
nos casos
de poesia
mais rara,
(primitiva?)
ou então coice,
patada de pena.
porque as asas
(comprimidos?)
estão na cabeça
e não nas pedras
portuguesas.

18
“kerouac”

teu erro foi me fazer pular etapas


para chegar mais cedo à tua velhice
e sentar tranquilo – desesperado –
outro bêbado genioso na cadeira de balanço
alisando um gato exultante da própria beleza.

teu erro foi me dar tanta certeza,


tão falha quanto a bravura dos covardes,
de que as coisas podem dar certo,
se estiverem de um lado e nós do outro.

teu erro foi talvez o meu aborto,


a geração depois da geração seguinte,
o buraco negro na camada de ozônio,
a carga triste de um movimento abjeto.

teu erro, por fim, foi meu remédio.


porque se não sou o que pude ser,
pelo menos ficou uma certa brisa,
uma esquina que permanece aberta.

ficaram bares enfumaçados, e a ilha.


ficaram cigarros pela metade, e foices.
por fim, a magia pálida de um grito,
de um abraço, de um soco no estômago,
de um vulto secreto no olho da noite.

19
“chet baker”

é um sopro
de soldado ferido.
desordenado, ávido,
silencioso, firme.

é um sopro
que se refugia
no presídio tênue
da dor desmedida
– o parto do som.

não são mais notas,


são sobrancelhas verticais
voltadas ao vértice
de contusões permanentes.

pois que dele a pobreza parideira


do ínfimo da maior entrega brota,
e enfim podemos, anti-vivos, ser.

é sempre tarde lacrimosa sob o seco


fatigado de um estúdio em cor sépia
quando a silhueta rasga o ar de ecos.

a corneta aponta:
segue a cadência.

20
(apoio o ouvido na desatenção dele,
que circunda a vida com reticências
atrás das agulhas iludidas do perdão,
em busca da raiz das consequências).

e, surdo, ele irrompe,


com a minha falência.

21
“aviso da balada do café triste”
dedicado às múltiplas almas de Carson McCullers

o firme silêncio
de uma carta
sem paixão
foi interrompido
enquanto a moça
embebedava
palavras no papel.

CATAPLOFT!

um livro pesado
caiu no chão
como para lembrar
que há tanto perigo
em palavras embriagadas
quanto nas mentiras
de uma carta sem paixão.

22
“rita hayworth”

talvez fosse a tarde fria e ensolarada


ou os versos de Guillaume Apollinaire,
mas desisti por um minuto da estrada,
espera tediosa na busca de um sentido,
só para assistir à dança do teu amor.

que lindos versos te trazem


do assobio do primeiro amor
até o grito feroz da tua carne
passando da origem à sensação
sem dar atenção às palavras?

amado lindo,
me ame para sempre
e deixe que para sempre
comece nesta noite...

era o que o vento soprava


da caverna de batom sangria
na fumaça do café cigano
– Montevidéu, talvez –
não me lembro o ano,
acho que era 1946.

naquele tempo fui feliz:


os olhos do teu ventre e
o engano das tuas ondas.

23
incomoda-me um pouco
que a película do mundo
tenha feito da tua desmesura
faca fria que mata os homens
todos zumbis ocos de paixão
pelo teu mar ruivo de abismos:
tu – personificação do ópio.

porque o homem que te ama


o faz também – e principalmente
– para poder amar a si próprio.

24
“neruda”

que acupuntura
nua será essa
da tua agulha
na minha testa?

tuas perguntas
me trouxeram
de volta à sala antiga.

vim sem medo, poeta.

é um lugar estranho
onde os mortos
vestem-se de vivos
e aos vivos é dito
que estão mortos.

tarefa dura ser simples, poeta.

na mesma sala branca


onde ronca o azul –
cordilheira lacrimosa,
síndrome de papoulas,
ferrão de abelha, mil musas,

25
fico paralisado, quieto
– vacilo feito o mar
do eterno regresso
pelo qual você foi
no badalo do sino
sobre a cama infinita
deixando-me perdido
dentro da minha boina,
com teu sonho de pipas.

26
“murilo mendes”

sei que não sou “nós”,


e não somos por eras.

simples e livre, falo,


mas por mim gaguejam
sob olhares eunucos.

lendo-te a mente, pergunto:

vale a poesia que seja


explicação explícita?

27
“poeminha quântico”

somos todos costurados


neste mundo plano feito
efeito de um só estilhaço
que explodiu para dentro.

se não olharmos,
tudo são possibilidades.
quando olhamos,
partículas de existência.

coisas não
são coisas:
são tendências.

quero me libertar totalmente


como se todo caminho fosse fluxo,
carga inconsequente em transe fixo.

você já viu a si mesmo


através dos olhos vesgos
de quem você se tornou?

um ser humano saber


sobre a origem das coisas
é como um peixe saber
sobre a origem das águas
ou as bombas saberem
sobre a origem da guerra.

28
enquanto os espaços infinitos
forem vontades normatizadas,
seremos apenas antipromessas.

29
“rilke”

como a paz que não envergonha...


vulto cego de verdade inaudita,
se do teu fruto sem folhas
serves a mim com metade infinita,
meus olhos duvidam da tua métrica,
de como tuas lágrimas vêm dela,
mesmo quando a mão vacila.

aliás, outro dia,


pensando em trevas,
li tuas cartas tão claras
a um novo poeta.

serviram para amar meu pai


pelos erros da falta de calma
e engrandecer a busca estética
sem medo da contra-contagem
expressa no que se fecham
as asas tímidas de um anjo.

tu: anjo assassino.


simples assim...
amar as perguntas em linha,
em quartos fechados ou livros cegos,
como se toda a tua vida fosse espera,
como se por toda a minha vida
nosso encontro fosse idioma sem letras,

30
ou fosse arroubo de um livro e meio
para reconhecer no teu ponto fugidio
meu próprio destino inteiro,
no entanto um destino proibido,
como a paz que não envergonha...

31
“natércia”

foi por causa de você que parei de pensar.


foi por causa de você, dos dentes separados,
sim, a mesma e sempre você, lindas unhas,
para mulheres e homens não terem dúvida.

contigo aprendi a, sem pisar, comer cacau


de mentira no Aterro do Flamengo.

contigo aprendi a esperar a sílaba fugidia,


a engasgar com dignidade o tumor eterno.

contigo, principalmente e fundamentalmente,


aprendi a cavalgar – em todos os sentidos e riscos
– incluir-me rei, cores na parede, sinos ao luar.
tu da cara larga que olha feito índio, e me contenta.

a corda do que aprendemos juntos, ao mesmo tempo.


a comunicação falha ou a corda arrebentada de nós
– quem sabe um amor forte olhado com desprezo.

mesmo assim gotejamos


álcool, Luiz Melodia,
a primeira idéia que fica,
agora algo numerosa,
da primeira fase plena
do adeus sem fim, jazigo,

32
do que nos faz prosseguir
sem saber mais como
(mesmo assim obrigados).

33
“cortázar”

estou há dias procurando


um livro de Julio Cortázar.

sei que o perdi, sei bem onde


(e, afinal, nem bem quero ler),
mas isso tornou-se uma obsessão:
a procura do que se sabe onde,
já que, perto, estamos ocupados.

um livro que tinha um conto


sobre a atriz americana Lana Turner,
de quem um amigo um dia me falou
e eu nem mesmo me impressionei
e nem mesmo prestei muita atenção
e, afinal, nunca vi Lana Turner,
mas de alguma forma estranha
sabia exatamente quem era ela.

e esta nova rotina, uns dias atrás,


de procurar coisas já encontradas,
perdidas de estarem tão próximas,
essa de querer o livro com o conto
sobre a atriz americana Lana Turner,
sem saber quem é afinal Lana Turner,
sem nunca nem ao menos ter ouvido
falar em Lana, a não ser naquele dia
dentro do ônibus quando meu amigo

34
falou e eu nem mesmo prestava atenção
e acho até que nem era Lana Turner
no conto que li – de fato era inglesa.

35
“antonioni”

essas árvores do Flamengo


(sejam frágeis ou tão firmes)
parecem tanto com prédios
ou com mãos que não tocam
cada ferida que se consome
cada véu sobre cada dúvida
cada cílio sobre cada despejo
cada mão amiga esfacelada:
escuridão nos portos do além.

a negação do rito ameaçado


em cada pedaço de tentativa
em cada falácia chá-das-cinco,
quando ninguém mais entende
e as pessoas sofrem e seguem
descoloridas, mas ainda falam
com o gosto da vida embotado
e calmantes debaixo da língua.

eu passo então por debaixo


dessas árvores do Flamengo,
essas tão parecidas com prédios,
tão comuns quanto pontas de gelo
e repentinamente paro – e fico
por um tempo procurando ângulos,
refazendo polaroides silenciosas,
para deixar o centro, chegar à borda.

36
“descartes”

no escuro da noite
onde não há perdão
permanece o amor.

somos um pedaço
do que não restou
no escuro da noite.

onde não há perdão


somos um pedaço.

do que não restou


permanece o amor.

37
“napoleão”

foram-se as baionetas imaginárias,


baixaram a meio pau as bandeiras,
deitaram a correr o velho infame.
os heróis acabam sempre nas ilhas,
os verdadeiros impérios do oriente
foram roídos pela decadência, e tu
estás gordo, a riscar velhos mapas.
muitas são tua face nos hospícios,
o mundo ainda é o das debilidades
e mendigos provocam ira nas ruas.
precisávamos talvez da tua loucura
para encarar de frente o apodrecido
e remover as manchas da nossa fé.

que constantinoplas foram precisas


para alcançar o centro de si mesmo?
Novo Prometeu, agora bem sentado,
atado em uma rocha onde um corvo
lhe rói as entranhas, e ali o homem,
as entranhas da democracia furiosa.
a imaginação faz perder as batalhas,
você disse, e amou, e foi até a guerra.
você tornou incrível a nossa verdade,
depois trancafiou o Marquês de Sade,
e quanto não ficou trancafiado em ti,
homem interditado, Leão da Córsega?
o que vem do fogo para o fogo torna.

38
“bukowski”

não fale sobre o que


você já fez.
não fale sobre o que
você não fez.
não fale.

não dê bom-dia
a alguém com ressaca.
não dê boa noite
a alguém com insônia.
não dê.

não jogue pedrinhas


na minha janela.
não falseie a voz, Romeu,
não toque o violão.
não faça.

não discuta arte


com poetas mortos.
não se aproxime
dos que se dizem vivos.
não se aproxime.

não me fale sobre


os filmes que você viu.
não cubra esse bocejo

39
amarelo de agonia.
não cubra.

não guarde panfletos.


não distribua panfletos.
não aceite panfletos.
não seja um panfleto.
não seja.

seja sensível e não sentimental


mas jamais tente ser sensível.
evite discussões filosóficas
mas, se inevitáveis, esteja armado.
não atire!

não pergunte o que uma pessoa disse


depois que ela disser alguma coisa.
se você não entendeu de imediato
não vai entender em um milhão de anos.
não tente.

não fale em alma ou em deus


como se fossem coisas separadas.
não fale em alma ou em deus
como quem falasse de uma arma.
não fale.

tente não ficar velho o bastante


para se sentir velho o bastante.
mas, se isso for inevitável,
compre uma espingarda.
não ouse!

40
não discuta ou queira entender os fatos.
não leia jornais nem assista ao noticiário.
é sua única chance de escapar ileso, mas
isso não significa que você vai escapar.
não escape.

mergulhe sempre o mais fundo que puder.


não guarde o ar com medo de não ter ar.
não tema.

não se esqueça: acima de tudo


nunca deixe que te digam
o que é certo ou absurdo.
martele o prego da cruz exclusiva,
não pare.

41
“maiakovski”

andei
escrevendo
uns poemas
obscuros.

eles me
apanharam.

primeiro
eles tentaram
me ameaçar
com panfletos.

depois me jogaram
atrás das grades –
pão e água, chicote.

depois me
escorraçaram.

esfregaram
na minha cara
meu próprio povo
– meus camaradas.

finalmente
eles me mataram

42
com um tiro no peito,
que dei pelo meu amor,
pelo desespero de perder a
ternura para sempre em meu peito.
e não pelo ódio com o qual
eles tentaram me acusar
enquanto eu punha
a bala no revólver
e o espelho me
fazia rir.

43
“skip james”

há um homem nu sentado
numa cadeira de balanço pensando
numa mulher triste num sofá.

o homem nu pensa
que pensa sozinho
– não está.

existe algo que vai


entrar pela sua porta.
existe uma satisfação
pela neutralidade da cena.
há um amor arrancado
a fogo de dentro da pele.
existe uma pele esquecida
castrada pelo amor às entranhas.
existe uma música – um tremor?
não, não existe música ou tremor,
apenas um estado de fechar piano,
um blue mais fundo que o fim do som.

há o tremeluzir de algo pairante,


que vai avante com violência.
a mulher triste num sofá
está pensando em Skip James,
no câncer maligno de Skip James.

44
o homem nu que está sentado
numa cadeira de balanço pensando
numa mulher triste num sofá

não sabe que ela está pensando


no câncer maligno de Skip James.
o homem nu que está sentado
numa cadeira de balanço está pensando
também no câncer de Skip James.

e assim os dois morrem


de pensar sem saber juntos
e Skip James sobrevive
na última nota de um blue.

45
“ulisses”

com que olhos agora me veste


o pálido coração amedrontado?
com que boca não me disseste:
o que nos leva à morte é o fardo
de manter na cama a discrepância,
essa corda tensa na laringe tísica.
ecoe, portanto, no sino do câncer
a poesia eterna da poesia extinta.

na horda de santos que apontam crucifixos,


por quantas portas você – eu bem mais velho
– não foi jogado na lama por olhos injetados,
no desejo enclausurado das horas em pânico?

você de quem herdei no sangue


harmonia e maldição, luz e veias,
você que a noite clareou, alheia,
no estertor da vela embalsamada
e do coração necessitado coberto
de cinzas cristalinas, apaziguadas.

meu assassino, minha flecha preciosa,


que morreu no dia de ter nascido poeta.
filho boêmio, pai esteta, avô indígena,
se me falta poesia é porque meus olhos
marearam agora que te vejo tão repleto,
tão cheio de deus, com gaze no nariz.

46
“o pequeno suicídio de e.e. cummings”

r
o
o
m
suicide rose (a sel)forgot
sometimes imagine but i
somehow real smiles not

for moment blood hands


easier would who dance

cloud midnight t(ear) t(error)


trigger crash mirror near narrow
this is myself on the way of
a
n
t
s.

47
“evolução do anjo”
para Uirá dos Reis

mais forte do que eu,


treme o anjo decaído.
entre gritos e gemidos
vaga lento pelas ruas
arruinado pelo crack.

corre frágil o coração


no fio fácil da navalha.
cheira cola de sapato
com as unhas pintadas:
limparam seus bolsos.

de mãos dadas com outro,


segue o amor, fica o anjo.
rumo à trilha desconhecida
ele tenta voar, ir embora.
anjo dos olhos que dizem:

“mate-me, por favor, agora”.

estrelas no sangue escorrem


pela glote do anjo sem vida.
a sigla do abandono é a bile,
suas tripas fustigadas, horas.
anjo dos olhos que suplicam:

“mate-me, por favor, agora”.

48
segunda parte
“vinte e seis”

um dia, inevitavelmente, aconteceria.


o antigo poeta das linhas apócrifas
sobre fantasmas internos e naufrágios,
o infante terrível, o descabelado, o vil
sem regras daria lugar ao homem grave,
à besta milenar – homem sem pernas,
meio doce meio amargo meio homem,
a boca sem fim inclinada para baixo,
as leituras eslavas, a sutura do ódio
que prolifera para dentro em pústulas
e adquire a petulância de um mar parado.

51
“são paulo não está”

São Paulo não está


nas discussões acaloradas
sobre o que não é São Paulo.

São Paulo nunca estaria


nas cabeças esmagadas sobre os meios-fios,
nos postes apagados, nós sozinhos à procura,
na fumaça que respiramos em silêncio e seguimos,
no som que faz pensar em deus e vem do Chá,
nas catacumbas submersas, nos assustados que
[apenas vão,
em Mario de Andrade atrás de amor na Consolação,
no casal que não conversa há anos e sorri igual,
nas mulatas Di Cavalcanti, aquele punheteiro genial,
nos dedos grossos de Candido não tão cândido
[Portinari.

São Paulo não está


nos risíveis senhores mijados e alegres,
na perda da virgindade pelo gênio baiano,
nos arranha-céus iguais a Tóquio ou Hong Kong,
nos seus japoneses de Quixeramobim.

São Paulo não está


entre uma esquina escura e a história forjada,
nos olhares caipiras para seus corredores vazios e
[largos,

52
suas pessoas como formigas,
seus colaboradores imaginários,
sua caretice e suas matinês de putaria,
sua rotina supervalorizada e poética,
suas mensagens engarrafadas lançadas ao mar podre,
seu mar uma fila interminável de concreto em
[movimento.
muito menos São Paulo estará
nos seus mimetismos e sua marginália.

São Paulo não está


nas ruas de São Paulo,
na solidão indiscutível de São Paulo,
muito menos São Paulo está
nas pessoas que habitam São Paulo,
no beijo único sem abraço,
no cumprimento entre estranhos.

São Paulo não tem tamanho,


não é grande nem pequena,
não está em mim ou em você.
por isso é possível amar São Paulo.
porque São Paulo não está em nós.

53
“whitman”

permita-nos mergulhar de cabeça


na fonte e nos arbustos densos
de uma nova delicadeza revoltada
– nós também precisamos passar.

fomos por muito tempo presas


assustadas, engolindo os erros
acumulados pela fé decapitada.
e por muito tempo ficamos fora
dessa tal “Grande Equalização”.

por favor, deixe-nos passar agora.


falo por nós e não só por mim,
pois, como eu, são, foram muitos.

não nos deixe, delicadeza, voltar


à casa, infestados e desprovidos
desse líquido seminal que, cegos,
chamamos de amor entre os seres.

você, velho libidinoso, que vê


bondade em tudo – mas a visão
será somente do poeta – você
nos abriu os corpos paralisados
diante de um precipício lento.

54
nós somos os das entranhas malogradas,
aglomerados em redomas achatados por
grandes perdas – enormes corporações.

muitos falaram, inclusive você, por nós,


não duvidamos de suas boas intenções.
mas nunca um de nós falou por nós e já
não podemos mais esperar, abre já a porta
portanto sem demorar mais e nos arranque
de todo esse equivocado, antigo sacrifício.

você tocou o primeiro clarinete de fogo.


deixe-nos sair do fogo, recuperar a casa.

55
“quatro doses de conhaque”

gosto de lamber impurezas


no meio de dobras quebradiças
e certamente alguma alma antiga,
algum espírito recém-decapitado,
fala por mim nessas noites ou tardes
escuras de vento semelhante a vozes
no timbre das quais em vão procuro
o sal do tesão, a boca falsa do amor.

56
“1982”

nós viemos abortados


para recolher a culpa
de séculos não-vividos.

viemos encarnados,
faróis cegos, ardentes,
responder pela dúvida
com o próprio sangue.

encurralados seguimos,
se nos veem, estamos,
se não, troca-se a pele,
veste a face outra roupa,
para seguirmos intrépidos,
entre o susto e a epilepsia.

viemos hoje, ontem,


viemos antes, sempre,
estamos vindo ainda.

olhe para baixo e veja:


estamos nas dobras,
nossa cor carmesim,
chegue mais perto e toque
nosso fogo brando, e morra.

57
“orangotangos”

herdeiros da poesia enlatada e da urina impura,


colheremos o excremento de mentes inseguras.

engoliremos o escárnio de anos em banho-maria.

as tradições tribalistas dos hinos de guerra e paz,


nós as criamos todas, e estávamos desacordados.

não tente entender as convicções que ressonavam,


carinhosas como abutres sobre a carne entorpecida.

herdeiros da poesia sem olhos, tatearemos por trás.


navegaremos incertos, horizonte em mil naufrágios.
e de nossos olhos, ao menos – pobres – os abutres
herdarão um resto magro – de uma arte ancestral.

58
“lou reed”

era início de verão,


toda hora parecia meio-dia.
eu estava desempregado,
sem namorada, sem saco,
sem dinheiro obviamente.

meus amigos haviam viajado,


eles foram para muito longe,
e mesmo os que estavam perto,
acenavam de cima dos navios.

mesmo assim era de manhã,


uma dessas manhãs de verão,
e o tempo estava quente demais,
mas eu andava escutando Lou Reed,
chutando pequenas pedras,
assobiando para as garças,
enquanto nos cantos mais escuros
pessoas pediam esmolas,
pessoas sem pernas, sem olhos,
pessoas falavam sozinhas no calor,
sem amor, sem afeto, largadas,
mas eu sabia que era preciso
continuar andando e, se possível,
ainda tentar mostrar um mínimo
de alegria por não ser ainda
minha vez.

59
Lou Reed falava sobre piranhas e travestis
que rodavam pela Western com Hollywood.
Lou Reed falava também sobre garotos ricos
que virariam padres, sobre cartas de tarô
e muitas mulheres que falavam demais.
de alguma forma ele me ajudava a seguir.

a mim restava continuar andando,


entregar dois filmes na locadora,
pagar por eles já que eu não havia
morrido ainda.

entrego os filmes, a menina da locadora


é magra e tem bafo, mas foi simpática
e, afinal, é bom que nem todo mundo
tenha que ser perfeito e precise
de uma grande causa.

saio da locadora dentro de uma redoma


que anda sempre que eu também ando.
entro num bar e peço uma cerveja.

o dinheiro está no fim, portanto, foda-se.


mortos passam andando com pressa e,
de algum jeito estranho, isso é bom:
apenas sentar no meio-fio do inferno
e simplesmente sorrir.

ao meu lado há uma senhora de cabelo duro,


cerca de cinquenta anos e um longo passado,
provavelmente de abortos e bêbados injustos.

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ela usa um vestido colorido,
moda na solidão dos tempos.
a paisagem parece derreter.
tarde demais, terça-feira nula.

a mulher ao meu lado joga todo


seu dinheiro fora em caça-níqueis,
garrafas de vidro e promessas,
no que talvez um dia tenha sido
alguém que está perdida mas,
de certa forma, mantém um pouco
de ternura – e nem mesmo sabe.

aquela mulher apodrecida,


aquela alma esburacada,
aquelas apostas jamais ganhas,
aquele despejo de ternura,
mais Lou Reed e uma cerveja,
aquela mulher que fuma sem parar
– eu sei, alguns de nós sabemos –
o quanto ela chora e choramos todos
e alguns não choram, mas sangram dentro,
e não temos empregos, foram-se os amigos,
dentro dos bolsos uma notificação de despejo,
a última frase da amante: “te amo, adeus”.

pessoas assim, como era aquela mulher,


a quem os mortos taxam como perdidas,
têm às vezes a missão de salvar meu dia.

61
eu não a conheço.
provavelmente para ela
eu seria apenas mais um
bêbado vil e injusto.

mesmo assim a amo


e preciso dela tanto
quanto deste poema,
que não é nada, mas
é meu e de todos nós,
como o dia seguinte,
que talvez não venha.

62
“billie holiday”

nanicos pisaram as gardênias


nascidas da pedra e do suor
e mesmo o solo esmorecido
ajudava a situar a precoce
figura de mulher em que vibra
dor dos séculos, sinos da terra.

entre brancos e pretos, a filha,


amante preciosa, pele de vison
sem saber que poucos homens
poderiam ouvir a verdade bruta
sem pasmarem com o derrame
de tanta violência, tanta ternura
como dizia aquele outro poeta
que morreu de acidente e afinal
você tantas vezes quase se foi
que agora me parece fácil falar
assim como de alguém a quem
se pode verdadeiramente amar
por estar morta e por isso dentro
de cada um que por tantas vezes
quase se foi e não sabe onde está.

mas eles fecharam as cortinas,


os nanicos que cospem moedas.
mesmo assim ali há uma fresta,
uma luz cansada tremula ainda.

63
não foi mesmo possível, Billie,
corrigir o coração dos homens,
escapar ao terror a cada esfinge,
mas essa luz cansada é a prova
de que onde houver amor e fome
haverá aquela música de marfim,
essa brutal melancolia africana
para lembrar que vivemos muito,
muito pouco, e não temos demais.

64
“gene”

há que se tratar o corpo do poema


como se tratasse do corpo da mulher.
para os homens, guerras e máquinas:
morram os homens como quiserem.
o poema é todo ele fêmea escachada.

uma noite com ele, a vida presa a ele.


jamais diga algo de que ele se lembre
e quando ele gritar – e ele vai gritar –
cale-se, não revide, sorria se possível.

permita ao poema passar livremente.


a nós cabe apenas o rebolar do poema,
enquanto ele escapa de nós outra vez.

deve-se quem sabe apunhalar o poema


talvez por desespero ou pura vaidade –
e aos criminosos será o fim da poesia.

olhe no fundo dos olhos do poema.


massageie sua pele, cheire seus pelos.
depois observe como o poema dorme:
os olhos trêmulos, a face tranquila.

então será possível ouvir seu coração.

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finalmente, acordar o poema,
acordá-lo com um susto bom.
lamber, massagear, mordiscar
o clitóris do poema ainda sonolento,
até deixar a língua do poema gelada
e fazê-lo gozar aos prantos,
como se fosse morrer de prazer.

66
“nara leão”

um cantinho, Nara Leão,


pros teus dentes de pijama,
pra tua fama de proveta.
Nara triste, Nara alheia,
Nara vem, me dá tua mão.

tão só na capa do disco,


de gravata borboleta.
Nara linda, Nara feia,
Nara calma, descabelada.

se a vida não for mesmo nada,


Nara, que será da tua voz pequenina
quando o barquinho naufragar?

Nara rindo, Nara exausta,


o leão de Nara dormindo
sozinho na beira do mar.

67
“helena ignez”

chovia, sim, chovia hoje,


e ninguém mais sabia
onde chovia, se era dentro
ou se era fora do corpo.
fora certamente chovia,
dentro era um presságio,
e talvez porque eu usasse
meu fantástico sobretudo
talvez isso fosse chover.
era uma padaria, era sim,
era uma padaria e lá eu vi
a eterna musa do cinema
brasileiro, quando havia
cinema brasileiro, cinema
de vários lugares e ela era
a musa do cinema brasileiro:
Helena Ignez – e eu a vi
com meu sobretudo e ela
talvez achasse legal pois
olhou para mim sorrindo
um sorriso longe de musa
e ela estava velha, a musa
parecia fruta seca, poética,
e como no caso das grandes
aparições eu não fiz nada
mas pensei que gastamos
muito pouco nosso corpo

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preocupados em durar algo
e ao morrer não sabemos
porque levou tanto tempo.

69
“otelo”

querer o que não se pode dar.


querer tudo, demais, para sempre.
depois nunca mais querer nada.

querer jamais como se melhor não ouvir a voz.


rejeitar o que nos espelha à superfície
dos olhos nas estátuas decapitadas.
almejar pureza, forçar pureza como virtude.
mas que vagos poros pontuam os corpos sonâmbulos?
que hora exata é essa: se olhar diante do espelho
ao fim de uma noite de prevaricações?

e logo depois a náusea de ter sede alguma.


ter o que não é possível denominar.
apropriar-se em sangue de ofensas emudecidas.
a compaixão por aceitar a própria indiferença.
o enterro da semente não plantada.

70
“parapeito”

eles vieram de longe, os sensíveis,


para enfeitar coroas de espinhos.
vieram para dizer como o mundo
é complicado e que precisamos
nos envolver com o que há nele.

eles vieram tristes, os sensíveis,


para dizer como amar a loucura.
vieram deliberadamente forçados
a espremer uma laranja sem suco
e oferecer ao coração dos pobres.

por que não até mim, os sensíveis?


quando estendi a eles meus braços
como num filme de beijos suecos.

que devemos abraçar, eles disseram.


que devemos tomar tudo como nosso,
eles disseram e pularam, os sensíveis.

71
“samurai”

eu sou o samurai.
um homem sozinho
com ganas de sangue.
o herói sem atitude,
potência indiferente,
espécime de vidro.
de verso em verso
a lâmina: o suicídio.

vilão sem identidade,


pária social, rasgado,
refrão sem codinome,
eu sou o samurai.
o passo além do corpo
o osso que interrompe
o medo: o fiel servo.

ao me ver não mova


a face sutil – espere.
lá do alto das colinas
vejo o vale em chamas
à espera de um milagre.
conto sete respirações
e vou morrer no fogo.
eu sou o samurai.

72
“zelda fitzgerald”

today i feel poetry in my bones


and i’m just ashamed.
why poetry only in my bones?

today i feel like talking


to strangers in suspicious alleys.
and, sure, i’m ashamed.
cause streets are empty so early
and poetry fits none.

you that once was poetry itself


and like poetry went on fire
in a restless sanatorium bed.

today i feel like dancing naked


like the once flapper Zelda
and i’m just complete.
cause shame is nothing more
than reaching poetry.

73
“carta de um estudante de belas-artes”
Só a emoção perdura.
Ezra Pound

Ezra Pound dizia


nos seus ensaios sobre poesia
que a poesia era uma ciência
assim como química, medicina.
ele acreditava piamente
no ritmo absoluto
de cada ser humano.

nas formas sólidas e fluidas do poema


– como árvore ou água despejada –
concebia a poesia como arte exata
e cada homem como seu próprio poeta em si,
sem diferença entre amadores e profissionais.

dizia que não devíamos esperar demais


por ter nosso valor artístico reconhecido
antes de havermos descoberto algo novo.

dizia que devíamos ler os franceses,


sobretudo os gregos, os florentinos,
que devíamos ler Confúcio inteiro,
Homero inteiro, as versões latinas,
Ovídio e os poetas latinos “pessoais”
Catulo e Propércio.

74
ele veio do alto e nos disse, pousando:
não percam tempo com o que não presta,
vão direto ao talo do osso primordial!

não esquecer de François Villon, ele disse,


(esboço da Renascença, sinos medievais)
nem de Voltaire, Stendhal, Flaubert, Gautier,
Corbière – Corbière? – Rimbaud.

devíamos ocupar nossa juventude com isso,


nada além de três ou quatro anos, os únicos.

o pupilo Eliot, cabelo dividido ao meio, espinhas,


disse que “nenhum verso é livre para quem queira
fazer um bom trabalho”. Ez aplaudiu emocionado.

Pound esperava do futuro uma poesia mais austera,


versos diretos, geométricos, sem deslizes emocionais.

quero que você, Pound, se foda.


quero escrever tua poesia austera.

75
“strindberg”

súmula abstrata
de jeito licoroso.
no céu da boca
inicia o percurso.

que do inferno foi ao fundo


nos trazer o grave presságio.
amante cético, químico selvagem,
rocha nórdica de lascas romanas.

adentro o labirinto em lusco-fusco,


indiferente ao afeto e à loucura.
minha mão treme, ela não decide,
e se inclina sobre teu fogo-fátuo.

resta agarrar a outra mão em ciranda,


estalar os dedos, seguir a valsa patética.
essa linha tão fina, de divisa insólita –
um deus cego, vendado entre montanhas.

76
“beethoven”

a palavra “peripatético”, a belíssima


palavra “peripatético” era muito
usada para defini-lo.

seu rugido alto, os braços sacudindo


enquanto andava à procura
da nota perdida no bosque, ao lidar
com as provações do mundo –
e as suas eram provações enormes.

hoje resolvi escrever para você, Beethoven,


o salteador de monarcas, o impulso pagão,
a pista mais concreta do que deus pode ser.
avarento inconcebível, crateras no rosto,
atarracado e de andar inclinado para frente,
como quem espera por um raio ou surto,
os cabelos crespos, a pele flamenga, imunda.

quem sentiu-se bem só mesmo em sua gruta


e estabeleceu a síndrome do dilema contínuo
entre céu e inferno: o gênio sendo inferno puro,
o céu pouso suave em meio ao sangue derramado.

hoje resolvi escrever sobre você com fome.


porque também eu me sentia traído por algo
sem forma muito definida, anterior à forma.
sem nenhuma culpa sentia-me enjaulado,
a mesma síndrome: mais um surdo crônico.
77
na minha ilusão de mundo possível
talvez com fome eu pudesse sentir
um pouco da fome que você sentiu
e quem sabe ouvir o ruído mágico
para então continuar até o cancro.

78
“augusto dos anjos”

queria ter nascido augusto dos anjos


para compreender a sífilis parnasiana
que se antepõe e rói os nossos ossos.
queria ter nascido anjo para compreender
os vermes na essência da ideia positiva.
talvez fosse preciso uma tal maldição,
um tal querer talvez um dia ter sido,
para que eu pudesse pensar em augusto
– tão pouco augusto, pobre augusto –
como ramificação do sumo de uma raça
na crucificação irrevogável do que passa –
e ainda somos todos a mesma quimera.

79
“baudelaire”

após visita à China – um porto,


Baudelaire estica o corpo morto
e finalmente verifica a paz falsa

que tanto pintou em seus poemas


sobre a burguesia, que censurava,
pelas fraudes de amor e progresso.

não mais o antídoto contra a causa,


não mais o afeto pela circunstância.
seu corpo jaz e nós nem nascemos.

mas suas narinas ainda se mexem.


o gato das arábias, um dia o louro,
agora os lábios cortados, e o ópio

tomou-lhe os sonhos, trouxe de lá.


ele já não volta, o poeta, a poesia,
essas coisas não existem, são fotos

desbotadas, um certo jeito de andar


nos mais afetados, os ditos sensíveis.
panos tubérculos: cheiro de almíscar.

80
“victor hugo”

o último dia de um condenado,


não do célebre francês, a barba,
ou mesmo das gargantas azuis.
apenas um que acorda em pintura
e se frustra com a cor do mundo,
mas acredita nele, mente por ele.
o da vida fátua, tão rente à retina,
desejo ante uma revolução inapta.
não o inaudito – antes de tudo
o cálido, o poeta sem remorso,
a violência sem resposta, o muro,
amigo de quem se cuida, algo assim
como eu – um pouco mais de todos nós,
irreconhecível todo em branco, morto,
diante de garrafas e flores pisadas.
me falta o ar, as pernas já bambas.
talvez você esteja aqui, talvez nós.

81
“shakespeare”

se nós escrevêssemos
tudo o que sentíssemos
estaríamos sempre sós
e para sempre ocupados
porém não tão infelizes.

82
“clint eastwood”

importante esperar pelo último minuto,


pela dor inexplicável que nos fará jus
à cruz que carregamos, invisível ferro,
que gela nas artérias e antecipa o tiro.

importante esperar pelo momento vazio


em que a dor trespassa então por pouco
e já não é mais dor, é tensão do mundo
– enxergar sem rédeas o terreno aberto.

não se colocar entre este e aquele século.


seguir sem nome (pois o nome na pele)
então engolir os séculos, regurgitar mais.

para remexer o caldo fundo sob a terra


aparentemente árida, de cerne difícil,
e só então cuspir o sumo – dar o tiro.

83
“zé ramalho”

roubando castanhas
de um pote vulgar
no que amanhecem
morangos na mesa
em dadaísmo tardio.

e o pano imundo
do fim da festa
lembra a frase
daquela música
e um pouco mais,
além, para o lado
misterioso do nosso
conhecimento: tarda.

baby, nossa relação


acaba assim, assim...
conte para as amigas.

aquelas simpáticas
aquelas prestativas
aquelas ordinárias.

conte para as amigas


que tudo, tudo foi mal.

84
conte que no vão sutil
entre os novos sentidos
repousa eterna escuridão
como enxame violento
sob o couro das horas.

talvez que ainda antes


de sepultada a beleza
estivesse num sorriso
desabado de silêncios.

novas palavras
como gárgulas
salivando rosas.

85
“bergman”

agora será o fim,


mesmo que momentâneo,
da cientificidade do sentimento,
de tudo que for felicidade e tristeza.

fomos homens por milênios,


felizes e tristes, cal de um tempo surdo.
recorremos sempre aos mesmos temas:
corações subjugados, almas que sangram.
e por ternura não fomos além da redundância.

cabe a nós agora


a tarefa difícil de dar um fim
a todos os temas de felicidade e tristeza:
obrigado, consciência, já cumpriu seu dever.

cabe a nós talvez


o sacrifício da juventude que ainda rasteja,
talvez o envelhecimento precoce do espírito,
para sentir a leveza do contínuo-renovável.

cabe a nós, enfim,


dar fim aos precipícios e ritos de passagem,
aos improváveis suicídios, às ilhas de ópio,
para dar início aos temas, sem reticências.

86
pequenas biografias não-autorizadas
foi impresso sobre papel Pólen Bold 90 g/m2
(miolo) e Cartão Supremo 250 g/m2 (capa) na
Imprinta Express Gráfica para a Viveiros de
Castro Editora em março de 2009.

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