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P O E M A S
3
4
[ JOGOS]
MEU JOGO 11
POESIA DA MATÉRIA 12
O ANACOLUTO 13
A POESIA HÁ 14
ARTIFÍCIO 15
O EDIFÍCIO DO POEMA 18
VEIA POÉTICA 20
EMBRIAGUEZ 22
ALUCINAÇÃO 23
PANTOMIMA 24
O GESTO 28
A PREGUIÇA DA TARDE 29
OUTROS ZEUS 30
O PIANO 32
PARA LEMBRAR PESSOA 33
MEU VERSO 34
LIÇÕES SOBRE UM RATO 35
A INQUILINA 36
DESERTOS 37
METAFÍSICA DA MÚSICA 38
A MÚSICA 39
O GUENZO ERRADO 40
INTEMPESTIVO 42
LABIRINTO 44
DO APRENDIZ 45
AO PÉ DA LETRA 46
ENGODO 48
O NOBEL DE LITERATURA 49
PARA A POESIA QUE SAIA 50
A DOR DO POETA 52
PARA UM FAZER POEMAS 54
GAME OVER 55
5
[TEIAS]
O TEMPO 59
DIREIS 60
A ESPIRAL DO G 62
BAÚ DE PEÇAS ÍNTIMAS 63
REGAÇO 64
O EXISTIR 65
AOS MAIS VELHOS AMIGOS 66
SENHOR MARIA 69
INTEMPÉRIE 70
JOGO DE DAMAS 71
INTIMIDADE 72
GESTAÇÃO DO TEMPO 74
O BEIJO 75
CASA DOS AVÓS 76
ALVORADA 78
HERANÇA 79
AMIZADE 80
VAIDADE 81
NUM BOTEQUIM 82
POSSÍVEL 83
BIOGRAFIA DE FICÇÃO 84
SUBLIME 86
ELEGIA 87
ODE AOS BARES 88
A DOBRA 90
POEMA PARA AMANDA 91
O JOGO DE AZAR 96
VAZIO 97
DONA DA CAMA 98
HOMEM DO POVO 100
SOLITÁRIO 102
O TRANSEUNTE 103
A CENA DO FILME 104
6
NOTURNO EM RECIFE 105
NA ESTAÇÃO 106
EMBARAÇO 107
A ROUPA VELHA 108
O GIZ DA QUESTÃO 110
NEM OITO NEM OITENTA 111
O VENDEDOR 112
PÉ DE POEIRA 113
VERÃO 114
RETRATO FALADO 116
BREVIDADE 117
PAUPÉRIE 118
JARDIM DA INFÂNCIA 119
OUTONAIS 120
[MOTIVOS]
7
Prefiro o ridículo de escrever poemas
Ao ridículo de não escrevê-los.
(Wislawa Szymborska)
[ JOGOS]
9
MEU JOGO
11
POESIA DA MATÉRIA
para Lírida e o grupo Matéria da Poesia
O que é matéria?
Substância, por certo.
O que é poesia?
Condensação de espectros?
12
O ANACOLUTO
13
A POESIA HÁ
14
ARTIFÍCIO
I
Disse num verso o vício
Atirei-me num precipício
De palavras
Sem travas
Sem suplício
A língua solta
Não douta
Jamais escrava
Do ofício
Sem desperdício
Envolta num puro exercício
Factício
Fictício
De sinais
À sua volta
O bulício
Com o benefício da dúvida
Essa dívida da vida
À dádiva suprema
Que é o artifício do poema
15
II
O que diz um verso?
O que soa?
O algo do que é
Que não é
Algo do ontem
No agora
Do agora
No ulterior
Algo do ser
No fingidor
De falso
No lídimo
De aparente
No íntimo
Do “não sou”
No que é
Algo da palavra
Que não trava
16
Do verbo
Que atravessa sentidos
Que diz disso aquilo
Diz nada disso
Naquilo que arrisca
No traço daquilo
Diz do não vivido
Noutros idos
Diz do vivido
O revivido
Nega a negação
Da palavra o perdão
Afirma do “mim”
O retorcido
Joga ao chão
O esfarrapado
Como um tecido
Intumescido sujo molhado
Faz do verso
O gato e sapato
E do poeta
Esse humilhado artífice da palavra
17
O EDIFÍCIO DO POEMA
para Andre N. Soares
18
Ter da poesia algo de vício
Algo de exílio
E de hospício
Já de início
Sem sucumbir num exício
Do poema em edifício
19
VEIA POÉTICA
De poesia me embriago
O agro verso
O longo caminhar
Lento e magro
Palavra por palavra
Achadas, perdidas
Um gole de bebida
O cigarro que não trago
A praga alheia
A crença cética
A veia poética
A vaga folha do papel
20
O cruel entorno
Transtorno do mundo
O verbo em desadorno
O corpo na ginga
O som no que vingar
No que respingar da língua
Mandinga da loa
A lua à deriva
Um pé na caatinga
O outro no mar
Canoa sem zinga
Sem uma restinga
A encalhar
21
EMBRIAGUEZ
Eu faço samba
E me pinto de bamba
Bambo
Embriagado de vida
22
ALUCINAÇÃO
Da terra é só o talvez
De perfumada dor
E redundante alucinação
23
PANTOMIMA
Talvez só seja eu
Pelos enganos que me vêm
Por meu pranto seco
De lágrimas
Que nem caem
Nem se retém
24
Talvez não seja isso
E eu só precise escrever
Dizer poemas
Que nada digam
Ou não se liguem ao dizer
Que digam só o que ninguém lê
A palavra nova
A mais antiga
A palavra nobre
A mais ralé
Em toda a forma do viver
O que me caiba escrever
25
II
Talvez seja eu
Meu fariseu
Talvez seja engano
Meus planos
Os danos
Nenhum pranto
Nem lágrimas
26
Talvez nada disso
Talvez uns poemas
Tudo que eu precise
Palavras num viço
Que digam do nada
E que nada digam
Só o escrever
As palavras novas
As mais antigas
As palavras nobres
As mais reles
Meu vocabulário
Agasalhado corpo
O corpo a nu
27
O GESTO
28
A PREGUIÇA DA TARDE
29
OUTROS ZEUS
Conversa nenhures
Com seu espelho
O outro
De seu duplo
Por meia face do opaco
Um homem por trás dos óculos
A olhos nus
Do replicante
Tão elegante
Em seu sombrio semblante
30
Nada afronta por temer
A outra face
Do poeta
Que costuma dar alface
Não fosse
Ao que parece
Uma pequena amostra
Do seu duplo
Múltiplo reflexo
Do especular
31
O PIANO
32
PARA LEMBRAR
PESSOA
O conhecer
Para os conhecidos
O amigar
Para os amigos
33
MEU VERSO
para Solano, interlocutor poeta
34
LIÇÕES SOBRE
UM RATO
Por fragmentos
Fiz uns versos
Como um tiro
Versos
Em fragmentos
Mundo ruiu
35
A INQUILINA
36
DESERTOS
37
METAFÍSICA
DA MÚSICA
para Andre N. Soares
Ouço a música
Algo da física
Da metafísica
Faço a mímica
Algo de metáfora
De diáfora
Quase mágica
Abstrata e plástica
Música elástica
38
A MÚSICA
para Marília N. Soares
A música sai
Da foz da garganta
A música vai
Aos meus ouvidos
A música cai
Como um mantra
A música atrai
Os meus sentidos
39
O GUENZO ERRADO
para Felipe Barreiros
40
Nosso poeta de menos
Com sua poesia vária
Nutria-se da palavra veneno
Era tido como um pária
Pela crítica literária
41
INTEMPESTIVO
Não me defino
Não sei o que me é demais
Se esse homem de meia
E já de idade
Ou se o menino
Que dita à voz
Os meus poemas
42
Bem mais que um jogo
De fonemas
As sensações extremas
Da palavra em meus poemas
Como uma imagem que roda
Na tela do cinema
43
LABIRINTO
44
DO APRENDIZ
Ensina-me a namorar!
45
AO PÉ
DA LETRA
I
Meia pá
Não lavra
Vasto
O campo
Céu cai
O tempo
Verte
A chuva
Passeia
O gado
A bosta
Espalha
E o verde
Pasto
A perder
De vista
46
II
Palavra
E meia
Gera
Palavrão
Ao pé
Da letra
A meia
É gasta
A par
De tudo
O decifrado
Palavreio
Para meio
O bom
Entendedor
Basta
47
ENGODO
Soltas linhas
Cruzam outras
Poucas
Viram muitas
Desalinham-se
Alinham-se
Umas noutras
Paralelas
Obliquas retas
Emaranhadas curvas
Tufo de fios
Enlaçados nós
X da questão
Jogo
Efeito dominó
Puro engodo
E só
48
O NOBEL DE
LITERATURA
Escorreguei na gramática
Caí na chacota
Virei piada do dia
Pra gargalhada geral
Segui em frente
Catei palavras ao léu
Fiz uns versos de cordel
Fiz canções para bordel
49
PARA A POESIA QUE SAIA
50
Miro o fervor da cidade
Na janela de tocaia
Depois escancaro a porta
Antes que a tarde caia
Visto a fina cambraia
Para a poesia que saia
51
A DOR DO POETA
Em conta do arvoredo
Há sombras de infância e medo
Nas sombras do jardim
52
A casa como território
De tão irrisório calendário
A poça d’água da rua espelha
53
PARA UM FAZER POEMAS
para Cristiano Ramalho
54
GAME OVER
Jogo autêntico
O placar idêntico
Ao anoitecer
Game over
55
56
[TEIAS]
57
58
O TEMPO
O tempo é já
No irresoluto
Segundo do minuto
O tempo é já
Sem demora
No minuto da hora
O tempo é já
Não adia
Qualquer hora do dia
O tempo é já
E talvez
A cada dia do mês
O tempo é já
Sem engano
Pelos meses do ano
59
DIREIS
I
Amanhã
Ou depois
Pois é
Não sei
Nesse baião de dois
O que é feijão
O que é arroz
Amanhã
Ou depois
Direis
Pois, pois
Tanto faz Zé
Como Cazuza
Não importa a musa
Como a peste
Que nos empesta
Do que não presta
Salvo a fúria
De quem acusa
Hoje ou amanhã
Penúria e luxúria
60
II
Amanhã talvez
Amanhã quem sabe
Amanhã ou depois
Nenhuma manhã desabe
Nenhum por do sol
Sem o seu arrebol
A manhã de um dia
Amanhã à noite
Que amanhã não seja
Instrumento de açoite
Seja-nos só de bandeja
O que o sonho enseja
61
A ESPIRAL DO G
para Gilberto Gil
A espiral do G
É uma curva aberta
O sol do amanhecer
A lua num dublê
À parte o que encoberta
A espiral do G
Não tem borda nem centro
Expõe-se em dupla face
A fita de Möbius
Sem um fora ou dentro
A espiral do G
Por vibrações várias
Ecoa o som que soa
Em necessária ária
Senhora de mil loas
A espiral do G
Recria-se em compassos
Da canção passageira
Por um Gilberto em passos
De algum Gil Moreira
62
BAÚ DE PEÇAS ÍNTIMAS
Revigorado e sereno
Logo é acometido de um novo ímpeto,
Que o faz lembrar
Aquele riso solto perdido na multidão.
63
REGAÇO
para Rose
A música convida
Ao vinho que nos compõe
Um estar sem despedidas
Ao que repõe vida
E uma comida para depois
64
O EXISTIR
para Caio
Existir
Não hesitar
Persistir
Único exitoso feito
Seguir
Perseguir
Ir ao fundo
Confundir tudo
Esgrimir
Farejar
Fruir
O existir
É do fazer
É do possível
65
AOS MAIS VELHOS AMIGOS
para Jório, Paulo, Diderot, Fernando,
Vandinho e Aluízio.
À boca da noite
Ao cair do dia
Sob um véu aparentemente brando
A cidade se precipita
No seu corre-corre
À procura de acolhimento
Noutro compasso
Amigos de já uma data
Reúnem-se de 15 em 15
Para um prosear de happy hour
Aqui no ali na cantina Dalí
Num ponto central
Enervado do lugar
Falam do agora
E do extemporâneo
Lembram seus mortos
E suas histórias
Traçam um mapa de memórias
66
Desenham o arco da velha
Erguem taças de vinho
Brindam doses de uísque
E da vida o que valha
67
Não importa o fim
E sim o que paira
Como cintilações
- disperso lume dos vaga-lumes!
Indizível momento
Inenarrável sentimento
Indescritível amizade
Que se faz
Da territorialidade
Desses encontros
E não há depois
E não há espera
Pois cada nova data
É sempre a primeira
68
SENHOR MARIA
69
INTEMPÉRIE
Ouço da palavra
O que em silêncio diz
Não como um jeito do negar
Pelo que afirma
Nem como amarga dor
De uma existência em si
Assim e por si só ensimesmada
Ouça a palavra
No que se sobressai
Dentre o alarido das ruas
Em meio aos gemidos
Furtivos gozos
Do que se vive na alcova
E miro esse olhar insaciavelmente farto
Ouço palavras
Palavra alguma há
Somente um se saber só
Nem gozo nem dor
Não mais que um ir adiante
Refratário às intempéries de um tempo
Que não se tarda em vencer
70
JOGO DE DAMAS
para Rose
71
INTIMIDADE
para Paulo Soares, nos seus 85 anos
Há presenças e ausências
Silêncios, vozes, distâncias
Desencontrados encontros
Reencontros
E sempre a música
Nosso diálogo de ouvidos
Da infância
Imagem-memória
Do arco-íris que pintastes
No céu do Rosário Novo
Com tintas da Kings Mosaico
Da adolescência
Minha mudez
Qual sepulcro
Não fosse a música
A nos guiar as vozes
72
Da vida adulta
O nosso aperto de mão
E a descoberta íntima da amizade
E sempre a música
A encantar diálogos e mediar o elo
Já não te cobro
Já não te ofendo
Já não me culpo
Pelo que não entendo
Posto que agora sei da vida
O pouco que aprendo
E até ensino
Um pouco
E assim
Ao seguirmos
Fica o amor
Como a mais viva invenção
De nosso cotidiano
73
GESTAÇÃO
DO TEMPO
para Naiana
Os pés do tempo
O que sustenta
Em gravidade
E leveza
Em calmaria
E tormenta
O que o tempo inventa
Em asserções
Incertezas
Na instância que se gesta
O tempo é sesta
Tempo é estância
O tempo é gesto
Brusco e lento
Incorpórea substância
Intertexto do contexto
Tempo o que se presta
Ao movimento
Em moto-contínuo
Em intermitências
74
O BEIJO
O beijo ao dente
Ardente
A noite toda
O que lhe fora
O prazer
Da meia-luz
Sabe-se lá
A que custo
As garras da paixão
Não lhe marcaram
O pescoço
Unha a unha
A saia justa
Não curta
Pela justa reserva
Do pudor
Que lhe encobrira
O manto roto
75
CASA DOS AVÓS
Japonês! Japonês!
Gritava o vendedor de quebra-queixos
Por calmas ruas da tarde às 15 da hora exata
Olha o munguzá!
Era o grito de guerra de outro vendedor
Que ao passar acordava as manhãs
E a todos apressava com um “eu já vou viu?”
76
Da cozinha a minha avó provocava o aroma do que comporia
a mesa:
Tapioca ovos banana comprida munguzá leite cuscuz
linguiça queijo coalho bode guisado pães bolachas batata
doce ou macaxeira ou cará café ao ponto carne de sol
77
ALVORADA
78
HERANÇA
I
Do pai guardara um pé-de-meia
Sapato furado na marca do calo
E um silêncio nas veias
Como o traço genético que traz
Do fio do cabelo à medida do falo
II
Da mãe ficara uma meia-calça
A salsa que lhe calça o pé-de-valsa
No dancing do cabaré
Dama da noite em jarro pintado
Xale nos ombros, a solidão, a pensão Chalé
79
AMIZADE
para Cidinha
80
VAIDADE
Vai idade
Avança e destrói
Pouco a pouco
O que restou
De minhas vaidades
Vai idade
Deixa-me o que dói
Põe-me longínquo
Só não me tires o humor
Da mocidade
81
NUM
BOTEQUIM
82
POSSÍVEL
83
BIOGRAFIA DE FICÇÃO
Um por um
E para meu espanto
A contar os atuais sessenta e um
Se não me engano
Lembro-me apenas de alguns
Ainda que em momentos tantos
Desses meus vívidos anos
84
Recordar não é reviver
É a montagem daquelas dispersas imagens
No gênero biografia de ficção
Onde dispomos paisagens
Personagens e bagagens na viagem
Algumas libertinagens
Paragens diversas e nada mais
Um por um
Tenho vivido da sorte de ter nascido
85
SUBLIME
E a vida vai
86
ELEGIA
Meditabundo fico
A olhar o mundo
Indecifrável improvável
Simplório iracundo
Da segunda ao segundo
Do primeiro ao último
Do esperado ao súbito
Dorsal decúbito
87
ODE AOS BARES
88
Lunáticos que digo
Não do que se diz
Na voz da maioria.
Lunáticos os diurnais
Que nos habitam.
Ou seriam selenitas ancestrais
Na popular astronomia?
E corrijo a sentença
Mas não baixo a poeira
Já perdidas as estribeiras.
Se sabáticos os bares são
Também o são das domingueiras
E de todas as feiras.
Que todo tempo
É templo de comemoração.
89
A DOBRA
para Sotero Caio, Marcio e Paula Santana
90
POEMA PARA
AMANDA
Amanda manda
Eu obedeço
Ela quer um poema
Eu faço versos
Fragmentos desconexos
A depender do contexto
Tão simples
Por mais complexo
Termos que desconheço
A palavra pelo avesso
E não gesso
Palavras de A a Z
91
II
92
Amanda é liberta
Boa de briga
Tem braços fortes
E um vulcão na barriga
Seja noite
Seja dia
Amanda com seu sorriso
Não dá aviso
Faz a folia
93
III
Mesmo sozinha
Está acompanhada
Amanda e sua risada
A mando de Deus
Cuida de nós os ateus
E saduceus e fariseus e essênios
94
Cuida de nós os idiotas
Tolos simplórios e gênios
Burgueses e operários
Plebeus e nobres
Espertalhões e ingênuos
Cuida de nós vagabundos
E “sustenta cinco mil pobres”
95
O JOGO DE AZAR
Apesar do silêncio
O murmúrio
A tacada
Depois de tudo
Só o silêncio
Mais nada
96
VAZIO
97
DONA DA CAMA
98
Aprendiz que sou e mestre
Cubro-lhe e lhe dispo as vestes
Nem urbano nem agreste
Em nossa inconteste entrega
99
HOMEM DO POVO
Pelos vagões
A multidão
As vogas do mundo
A exaustão
100
Ele segue assombrado
Entre escombros
Ele segue acordado
E moribundo
101
SOLITÁRIO
102
O TRANSEUNTE
(envolto em casimira)
Henrique Macedo
103
A CENA DO FILME
104
NOTURNO EM RECIFE
para Emílio Negreiros
Do concreto armado
Pontos de luzes cintilam existências
De um ponto qualquer
Revelam-se imagens em noturno
Da cidade como cartão postal
105
NA ESTAÇÃO
Quando te vi
O rosto em risos
Indisfarçável aflição
Foi-me o aviso
Daquele momento único
De todo prazer e alívio
Pra minha solidão tão funda
Cravada no peito
Guardada em silêncio
Como a emoção que inunda
Como uma cicatriz íntima
Por um instante
Esquecida
Nesse lugar da vida
106
EMBARAÇO
Conversas se intercalavam
Por entre olhares cruzados
Sem a clareza do que ali se dizia
Algo da vida e do tempo
Sem as palavras do embaraço
Sem o que soa à toa
Nas contas de um aplacável silêncio
107
A ROUPA VELHA
Na gaveta de baixo
Na cômoda
Num canto ao fundo
Uma roupa velha
Amarrotada
E cheiro de guardada
Surge-me à mão
108
Vesti-la foi assim
Algo de estranho
Como abrir um baú
Sem memória precisa
Entrar num túnel
De tempos
Uma montanha russa
109
O GIZ DA QUESTÃO
O dizer mais
Do que se sabe
O saber mais
Do que se diz
A hora é o xis do H
A hora é o agora
Dos pontos nos is
Na hora desmedida da vida
110
NEM OITO NEM OITENTA
E me atrapalho
Nem oito nem oitenta
Ou quase um dente de alho
No molho de pimenta
Migalhas de pão
Taças de vinho espalhadas
Tudo conta sua história
Por memórias renegadas
Memórias de um fim
Bons tempos num tempo ruim
Não mais que uma janela escancarada
Paisagem desbotada em aquarela
111
O VENDEDOR
Enganou um tolo
Ou dois
Rio de si
Sem alma que valha
Queimou a fogueira
De palha
Das vaidades
Negou da idade
A vida em suas falhas
A malha fria dos dias
O chão duro do não
Vendeu viva a própria alma
Não aceitou devolução
112
PÉ DE POEIRA
para Ricardo Santiago
Seguir caminhos
Mesmo sem rumo
Apesar dos tombos
Erguer-se em sonhos
Mesmo sem telos
E sob escombros
113
VERÃO
(Sob o sol)
Pelas ruas
E outras vias
Peles em brasa
À brisa
Circulam
Sem camisa
Não por acaso
Esses rapazes
Essas rapazas
No chão raso
Sob o sol
Do verão
De um dia
Em anarquia
À beira mar
Em quase eclise
No vão das calçadas
Sob as marquises
114
No entra e sai
Das casas
Com suas asas
Vão-se então
Em pleno gozo
Esses rapazes
Essas rapazas
O espírito ocioso
Da forma lúdica
O jeito típico
Do que é sagaz
Nesses rapazes
Nessas rapazas
A pele em brasa
O gesto audaz
Que compraz à vida
Ao tom fugaz
Do tempo voraz
115
RETRATO FALADO
116
BREVIDADE
O sonho da vida
Entre a chegada e a partida
Como todos os dias guerreiros do ser
117
PAUPÉRIE
118
JARDIM DA INFÂNCIA
Cambaleante andou
A voz atormentada do amargo sabor das lembranças
E a esperança de não o saber
A noite é de pesadelos
Embora os sonhos lhe soem um jardim da infância
Incógnita imagem sem desvelo
Cambaleante andou
Andar andara os meandros que dera de andar sem bandos
Agora é solo o chão da dor
Tão só e só assim se viu por toda vida que pudera ter viver
Em tudo aquilo que o possível foi
Mais improvável que o dizer
119
OUTONAIS
(roteiro)
Aos bons momentos na casa de Cidinha
Claquete Cena I
Sobre o assoalho
Em contraste
Mais folhas mortas
Mais que o baste
120
Folhas ao relento
Movidas ao vento
Como flashbacks
Memórias em fragmentos
Um fonema
Um poema
Um tema
Um teorema
Um aceno no tempo
Uma cena de cinema
121
&
Claquete Cena II
122
&
Claquete cena III
Acenos na partida
De novo o silêncio do vivido
Do que há por viver
Do que jamais será dito
E que não cala
E que não quer esquecer
Varrer da memória
O que quer reviver
Ter do tempo
O que no tempo existir
O que não se exaurir
O que não fenecer
Limpar as gavetas
Dos resíduos incômodos
Pernas de rã
Torneira quebrada
Botões e ratos
Cartas recebidas e jamais enviadas
Seguir em frente
Laboriosamente
Discretamente
Suavemente
Remapear caminhos
Desvendar ambientes
123
Lifestyle
Um mal de séculos
Como uma obra romântica
A fina camada do espelho de Alice
Para a vaidade dos eleitos
124
125
126
[MOTIVOS]
127
PRUM SAMBA, MEU!
128
RECIFE 30 GRAUS
Cidade litorânea
De centro portuário
Encrostada de recifes
E arranha-céus
Essas muralhas
Destinadas ao atual
A conter ondas de vento
A cobrir o sol
Cidade sombreada
E fervilhante
Já sem passos de frevo
Ágora de lutas por seus cais
Canais de brisas
Agora em ameaça
Rendidos ao estelionato
De gangorras financeiras
129
NOVES FORA
Ingênuo é se pensar
Ou se sentir
A salvo de tudo
Membrudo, ornado
Aliado agradado
Sem se dar conta
Pobre coitado
Que não há lado seguro
Passo para o futuro
Num campo minado
130
Pueril é não se ver
Com o pescoço à prova
Com a cabeça a prêmio
Animado parvo
A cavar sua cova
Até onde caiba o corpo
Em desova
Pendão roto
Que medra o regresso
À ordem em progressão
131
COMUA
132
EM TEMPOS
EXTREMOS
para Fagner Andrade
Corre o boato,
Onde há fumaça há fogo.
Reza a lenda, sem prendas:
Ruiu a Virtú e a Fortuna?
Urge a desonra do Príncipe,
Por seu desgoverno.
Tempos extremos!
Ordem e desordem,
Sob as cinzas do carnaval.
133
DESOLAÇÃO
Deserto cenário
Substrato de paisagens
Concreto armado
Desarma-se no abstrato
134
Seguir falto os passos
Por extrema incerteza
Crua estranheza
Em traços tortos vários
135
O HOMEM DE MAIAKOVSKI
136
CARTÃO POSTAL
No centro comercial
Desta cidade apartada de sua gente tísica
Na fachada de um prédio executivo
Próximo ao hall de entrada
Quatro pombos se postam e arrulham metafísicas
Enquanto ficam à espera de Godot
137
VESPERTINO
138
NOTURNO
A lua é soberana
Rainha das sombras
Passeio livre dos notívagos
Seus fiéis súditos
Que sabem bem o que lhe destina a vida
139
A MOSCA
Nenhures
Onde há uma esquadria de vidro e metal
Mosca lentamente desenha
No espaço havido da janela
Toda a atenção que dispenso
Noutra manhã de sol
E me põe opaca
A bela paisagem de fora
Da vida a perseguir sonhos
Rumos rumores amores
Encantos e dores
Em todas as paixões e sons
Alheio a isso
O díptero mantem-se
Na superfície da vidraça
Como um trompe l’oeil
De algo solto no ar
Com suas asas imóveis
Atento a isso
Ponho-me a pensar o sopro de liberdade
Que a vidraça obsta
Como uma vitrine
Que promete o que transluz
Naquilo que espelha
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AEROPORTO
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O JANEIRO DA MANHÃ
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EFEITO COLATERAL
para Glauber Rocha
e Jomard Muniz de Britto
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FALSAS PROMESSAS
Passada a ventania
O calor da hora
O minuto seguinte
Paralisa o dia
Na tarde do agora
A vomitar brasa
Nessa casa estufa
De minha morada
Manhã já chega
E acordada com a estiagem do olhar
Faz do bom dia o pão dormido e duro
Na sacola de pano bordada
E a vida segue lenta no lugar
144
Fico à espera do aconteça
Uma ventania
Uma tempestade alta
Um copo d’água
A derramar surpresas e melodias
Passada a ventania
No seguinte da hora
O calor do minuto
A tarde em paralisia
No dia do agora
Vomitadas brasas
Bocas de sapos
Pássaros sem asas
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FÚRIA
A roda do tempo
O ouvido da mata
A prata da lua
O ato que desata
O nó do silêncio
No que insinua
A voz que em murmúrio
No fim compactua
Verdade e perjúrio
Aos olhos da lei
Nas vozes da rua
De impassível fúria
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ESPERANÇA
Cabeça de medusa,
Um sem saber para onde ir
(Nenhum mapa, lupa, bússola)
Na noite longa e de chuva.
Joaquim Izidro
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