Você está na página 1de 147

ENTRE[DITOS]

P O E M A S

Paulo Marcondes Ferreira Soares


Cego na Escuta
Edições
2
Uma POETICIDADE Jamais Interdita

O novo livro de Paulo Marcondes Ferreira Soares é nosso desafio


a ser compartilhado por leitores de todas as mentes e horas. Com a
exigência de que não sejamos dementes nem impacientes.
Tudo nele repercute de modo inclusivo entre devoções e maldições.
Nosso desejo de não imitá-lo e muito menos tentar paródias. Por quê?
Para enfrentar dúvidas permanentes. Nosso desafio não pode desafinar.
Considerando que seu POLIMORFISMO atravessa grutas, abismos, tensões,
horizontes do convivido aos deleites da imprevisibilidade. Para quem?
Persisto na palavra em ação mutante: PO-LI-MOR-FIS-MO.
Reinventando abismos em mesas de bar, grutas em salas de aula,
ônibus quase desesperados. Tudo – não quase tudo – girando e motivando
o múltiplo artesanato de leituras, paixões, pulsações cotidianas.
Nosso poeta sabe percorrer das heranças modernistas ao PÓS-TUDO
das errâncias na contemporaneidade. Mesmo com a relativa pouca idade
que Paulo Marcondes tem e manterá sem pose nem posse.
Entre e dentro das maioridades em transe, trânsito e trapaças.
Por isso nada escapole das grutas imaginárias aos abismos com e sem
lições ou preleções. Da religião da amizade entre parentes próximos
e desejáveis confluindo para selvagens e domésticas psicanálises.
Sem medo. Sem e com TEMERidades enganosas. Sem divãs nas mesas de
bar ou mercados democratizadores. Pelo mais gozar, fruir, degustar.
Religações da província em chamas, pegações e passeatas. Do talvez
antiprovincianismo das universidades. Autoanálise de Paulo Marcondes
e nossa pauleira tão divertida sem esquecer os caminhos e desvios de
Freud, outros e outras. Religiões da amorosidade do tempo dos avós.
Prazer dos hábitos e nudismos. Da cidade mais próxima aos universais
cosmopolitismos.
Entre dedos musicais, dados reconfigurados, outros dardos fluentes.
De Rose ao fluxo de rosáceas, nosso PM, Paulo Marcondes libertário.
Ruas em crime. Taças de vinho espelhadas. Tudo por uma conversa
fiada e afiada poemação. Para todos confirmamos a POETICIDADE de
Paulo Marcondes Ferreira Soares. Rapazes e rapazas (?), acesa juventura,
TODOS em busca do tempo reencontrado pelos avessos, renegando homofobias
e politicagem de roubalheiras. Até quando? Continuaria indagando o
Palhaço REDEGOLADO, JMB ainda. – Jomard Muniz de Britto.

3
4
[ JOGOS]

MEU JOGO 11
POESIA DA MATÉRIA 12
O ANACOLUTO 13
A POESIA HÁ 14
ARTIFÍCIO 15
O EDIFÍCIO DO POEMA 18
VEIA POÉTICA 20
EMBRIAGUEZ 22
ALUCINAÇÃO 23
PANTOMIMA 24
O GESTO 28
A PREGUIÇA DA TARDE 29
OUTROS ZEUS 30
O PIANO 32
PARA LEMBRAR PESSOA 33
MEU VERSO 34
LIÇÕES SOBRE UM RATO 35
A INQUILINA 36
DESERTOS 37
METAFÍSICA DA MÚSICA 38
A MÚSICA 39
O GUENZO ERRADO 40
INTEMPESTIVO 42
LABIRINTO 44
DO APRENDIZ 45
AO PÉ DA LETRA 46
ENGODO 48
O NOBEL DE LITERATURA 49
PARA A POESIA QUE SAIA 50
A DOR DO POETA 52
PARA UM FAZER POEMAS 54
GAME OVER 55

5
[TEIAS]

O TEMPO 59
DIREIS 60
A ESPIRAL DO G 62
BAÚ DE PEÇAS ÍNTIMAS 63
REGAÇO 64
O EXISTIR 65
AOS MAIS VELHOS AMIGOS 66
SENHOR MARIA 69
INTEMPÉRIE 70
JOGO DE DAMAS 71
INTIMIDADE 72
GESTAÇÃO DO TEMPO 74
O BEIJO 75
CASA DOS AVÓS 76
ALVORADA 78
HERANÇA 79
AMIZADE 80
VAIDADE 81
NUM BOTEQUIM 82
POSSÍVEL 83
BIOGRAFIA DE FICÇÃO 84
SUBLIME 86
ELEGIA 87
ODE AOS BARES 88
A DOBRA 90
POEMA PARA AMANDA 91
O JOGO DE AZAR 96
VAZIO 97
DONA DA CAMA 98
HOMEM DO POVO 100
SOLITÁRIO 102
O TRANSEUNTE 103
A CENA DO FILME 104

6
NOTURNO EM RECIFE 105
NA ESTAÇÃO 106
EMBARAÇO 107
A ROUPA VELHA 108
O GIZ DA QUESTÃO 110
NEM OITO NEM OITENTA 111
O VENDEDOR 112
PÉ DE POEIRA 113
VERÃO 114
RETRATO FALADO 116
BREVIDADE 117
PAUPÉRIE 118
JARDIM DA INFÂNCIA 119
OUTONAIS 120

[MOTIVOS]

PRUM SAMBA, MEU! 128


RECIFE 30 GRAUS 129
NOVES FORA 130
COMUA 132
EM TEMPOS EXTREMOS 133
DESOLAÇÃO 134
O HOMEM DE MAIAKOVSKI 136
CARTÃO POSTAL 137
VESPERTINO 138
NOTURNO 139
A MOSCA 140
AEROPORTO 141
O JANEIRO DA MANHÃ 142
EFEITO COLATERAL 143
FALSAS PROMESSAS 144
FÚRIA 146
ESPERANÇA 147

7
Prefiro o ridículo de escrever poemas
Ao ridículo de não escrevê-los.
(Wislawa Szymborska)
[ JOGOS]

9
MEU JOGO

Brincar com palavras


Meu jogo
Meu exercício
Meu gozo
Meu artifício
Minha festa
Minha sesta
Meu labor
Minha seresta
Meu borrão
Minha inspiração
Meu modo de ser
E crer

11
POESIA DA MATÉRIA
para Lírida e o grupo Matéria da Poesia

O que é matéria?
Substância, por certo.

O que é poesia?
Condensação de espectros?

12
O ANACOLUTO

Tudo entra pelo duto


Tudo sai devoluto
O absoluto dissoluto
Minuto a minuto
Minotauro hirsuto
Em labirinto astuto
Fajutos atributos
Do arguto anacoluto
Brita e bruto
Fruto soluto
Diz-se puta e puto
Sob a ponte-viaduto
No bico o charuto
Chapéu no cocuruto
Resoluto irresoluto
O verbo em usufruto
No jogo que disputo
O termo enxuto
Inverso construto
Verso que em luta luto

13
A POESIA HÁ

Ali onde há vida


Pelo que ainda pulsa
Mesmo se o humor rareia
O amor escasseia
E a dor não cessa
Mesmo se o poema é crasso
Em seus fragmentos
A poesia se avulta
Avulsa
Ao vento
Pelas ruas
Muros
Como vozes
Brados
De poesia que há
Por todos os lados

14
ARTIFÍCIO

I
Disse num verso o vício
Atirei-me num precipício
De palavras
Sem travas
Sem suplício
A língua solta
Não douta
Jamais escrava
Do ofício
Sem desperdício
Envolta num puro exercício
Factício
Fictício
De sinais
À sua volta
O bulício
Com o benefício da dúvida
Essa dívida da vida
À dádiva suprema
Que é o artifício do poema

15
II
O que diz um verso?
O que soa?
O algo do que é
Que não é
Algo do ontem
No agora
Do agora
No ulterior
Algo do ser
No fingidor
De falso
No lídimo
De aparente
No íntimo
Do “não sou”
No que é
Algo da palavra
Que não trava

16
Do verbo
Que atravessa sentidos
Que diz disso aquilo
Diz nada disso
Naquilo que arrisca
No traço daquilo
Diz do não vivido
Noutros idos
Diz do vivido
O revivido
Nega a negação
Da palavra o perdão
Afirma do “mim”
O retorcido
Joga ao chão
O esfarrapado
Como um tecido
Intumescido sujo molhado
Faz do verso
O gato e sapato
E do poeta
Esse humilhado artífice da palavra

17
O EDIFÍCIO DO POEMA
para Andre N. Soares

Ter da poesia o tom propício


Muito exercício
Algum bulício
Sem desperdício
Nem compromisso de ofício

Por mais difícil artifício


Não se dar em suplício
Nem da palavra por resquício
O sacrifício
Já disso disse

18
Ter da poesia algo de vício
Algo de exílio
E de hospício
Já de início
Sem sucumbir num exício

Ser algo de cômico comício


À beira de um precipício
Aquilo disso fictício
Do objeto maciço ao orifício
O verso num quê de interstícios

Do poema em edifício

19
VEIA POÉTICA

De poesia me embriago
O agro verso
O longo caminhar
Lento e magro
Palavra por palavra
Achadas, perdidas
Um gole de bebida
O cigarro que não trago
A praga alheia
A crença cética
A veia poética
A vaga folha do papel

20
O cruel entorno
Transtorno do mundo
O verbo em desadorno
O corpo na ginga
O som no que vingar
No que respingar da língua
Mandinga da loa
A lua à deriva
Um pé na caatinga
O outro no mar
Canoa sem zinga
Sem uma restinga
A encalhar

21
EMBRIAGUEZ

Eu mato a cobra e mostro o Paulo


Valente como uma manhã de sol
Errante como a lua
Sonante como o sustenido e o bemol
Sem dó nem piedade
Sem ré mi fá
Sei lá
Dono de si
Em diminuta maior

Eu faço samba
E me pinto de bamba
Bambo
Embriagado de vida

22
ALUCINAÇÃO

Mastiga ferrugem da seiva


Do laminado alumínio
De artificiais pretextos

Jorra ao barro pop


O natural sentido
De universais rasuras

Baba ao tronco do ócio


Aleatória máscara
De realismo cínico

Da terra é só o talvez
De perfumada dor
E redundante alucinação

O sol um descorado olho


De poeta morto
E um par de lentes de graus

E segue a favor do vento


Por chamados súbitos
De carne utilitária

23
PANTOMIMA

Talvez seja a chuva


O que cai e molha lá fora
Talvez seja o sol agora
Que nem sai
Nem vai embora
A luz cinzenta da manhã

Talvez só seja eu
Pelos enganos que me vêm
Por meu pranto seco
De lágrimas
Que nem caem
Nem se retém

Talvez seja a esgrima


Um passado sem memória
A glória num duelo
Que nem rima
História de ficção
Que não cria o elo

Talvez seja ela


Que só existe no papel
Nesse cordel sem verso
Imerso na sacola
E sem viola
Para se pontear

24
Talvez não seja isso
E eu só precise escrever
Dizer poemas
Que nada digam
Ou não se liguem ao dizer
Que digam só o que ninguém lê

A palavra nova
A mais antiga
A palavra nobre
A mais ralé
Em toda a forma do viver
O que me caiba escrever

Por meu castiço vocabulário


Pelo abecedário que eu pintar
Por vezes torpe rebuliço
Em meu torpor mais cru e imprescindível
Em meros versos desnecessários
Assaz ordinários

Pelo agasalho que me cobre


E que por dentro me conserva a nu
O pobre corpo insalubre
Nem de bronze
Nem de cobre
Trançado em fibra de babaçu

25
II

Talvez seja chuva


O que cai lá fora
Talvez seja o sol
De agora
Que nem sai
Nem vem
Nem vai embora

Talvez seja eu
Meu fariseu
Talvez seja engano
Meus planos
Os danos
Nenhum pranto
Nem lágrimas

Talvez seja esgrima


Passado e memória
Talvez pantomima
De algo que fora
Talvez no papel
Nesse cordel
Sem verso ou viola

26
Talvez nada disso
Talvez uns poemas
Tudo que eu precise
Palavras num viço
Que digam do nada
E que nada digam
Só o escrever

As palavras novas
As mais antigas
As palavras nobres
As mais reles
Meu vocabulário
Agasalhado corpo
O corpo a nu

27
O GESTO

Fazer de tudo um pouco


Nada fazer, no entanto
O vivo se faz de morto
O torto de elegante
Não digo coisa com quase
Não digo louça que ouço

Fazer de tudo um porco


Não se esquecer da farofa
Tristeza é pura alegria
Da vida quero a galhofa
Só digo o que dá na trela
Só ouço conversa rala

Fazer de tudo um palco


Nada que não seja o gesto
Um contratexto na arena
As variações de um trema
Vadiações da trama
Videações da mesma cena

28
A PREGUIÇA DA TARDE

A leitura era agradável


Nem difícil nem fácil
Mas de um prazer indescritível
Sem uma história que conduzisse a um lugar provável
Sem um lugar provável que existisse em tudo ali
Era um estar no mundo
Era um estar por aí
Pelos quatro cantos da escrita-pântano

Lia e relia e pulava algumas linhas


Uma página e meia uma ou outra história umas figurinhas
Voltava a um ponto qualquer já visto
Perdia o rumo
Incerto fio das coisas
Achados que me vinham
E em versos os compunha
Até a tarde transcorrer uma luz que amarelecia

29
OUTROS ZEUS

Sob o sol caminha


Anônimo e ligeiro
Homem da normalidade
Um pé no chão
Outro no ar
Como reza a lenda
De toda sanidade
Não sem um furtivo olhar
De alguém em fuga
De si

Conversa nenhures
Com seu espelho
O outro
De seu duplo
Por meia face do opaco
Um homem por trás dos óculos
A olhos nus
Do replicante
Tão elegante
Em seu sombrio semblante

30
Nada afronta por temer
A outra face
Do poeta
Que costuma dar alface
Não fosse
Ao que parece
Uma pequena amostra
Do seu duplo
Múltiplo reflexo
Do especular

31
O PIANO

O piano produz o toque em abstrato de um traço aleatório


Melodia e harmonia como o que se completa
Num completo exílio

Incoerente coerência do caos


Assim é o universo das notas imaginárias
De um piano estampado no papel

32
PARA LEMBRAR
PESSOA

O conhecer
Para os conhecidos

O amigar
Para os amigos

33
MEU VERSO
para Solano, interlocutor poeta

Minha poesia é jogo de palavras


Labor, invenção, ressignificação
Garimpo feito na profusão das falas
Do mais usual ao inusual
Da palavra alheia ao alheamento do familiar nas palavras

É a recolha dos cacos ditos e do silenciado


Da língua douta a mais chula
Do sublime ao mais abjeto
Tudo matéria da poesia
Esse exercício de transfiguração

E dela me valho como a um lamaçal fértil


O ambiente em que devo chafurdar
E a tudo recomponho e recombino
No meu caldeirão de bruxaria da linguagem
Numa condensação de imagens e sons e pensamentos

Disso resulta o meu objeto criado


Minha composição, reescrita, da palavra
E lanço mão de tudo em meu entorno
E verto os sentidos dados, atribuídos
Até tornar tudo a pura matéria da imprecisão e do inconstante

34
LIÇÕES SOBRE
UM RATO

Por fragmentos
Fiz uns versos

Como o que troa


Versos

Talvez por rito


Versos

Como um tiro
Versos

Meio sem rota


Versos

Num papel roto


Versos

Versos versos versos


E o rato roeu

Em fragmentos
Mundo ruiu

35
A INQUILINA

A poesia sem tréguas


Melodia e compasso
Um caminhar de léguas
Por traços sem cansaço
Sem regras nem réguas
Sem cantil sem cão sem égua
Na poesia que faço

Ela me domina e usa


Essa inquilina intrusa
Anda nua pela casa
Entregue de corpo e asa
Pelas ruas de mil dias
Nas noites da lua musa
De peito aberto e blusa

É a poesia que faço


A cada passo que traço
Nada profundo nem raso
Nem mera obra do acaso
Algo que soa e que sua
Da palavra que se lavra
Terreno fértil em decrua

Para minha poesia crua

36
DESERTOS

Meu horizonte é lâmina


De pedra
E mangue

Meu horizonte é linha


Que se perde
Ao longe

Meu horizonte é onde


Faz-se habitat
O deserto

Meu horizonte é gruta


O abismo
Em que se oculta

Do grito mudo e cego


Que me precipita
O vício

37
METAFÍSICA
DA MÚSICA
para Andre N. Soares

Ouço a música
Algo da física
Da metafísica

Faço a mímica
Algo de metáfora
De diáfora

Quase mágica
Abstrata e plástica
Música elástica

38
A MÚSICA
para Marília N. Soares

A música sai
Da foz da garganta
A música vai
Aos meus ouvidos

A música cai
Como um mantra
A música atrai
Os meus sentidos

Dá-me um sabor intemporal


Faz-me saber o nada
Dá-me o espaço espectral
Faz-me disso uma estrada

39
O GUENZO ERRADO
para Felipe Barreiros

O benzido era achacado


Tísico torto estrábico
Andava pra todo lado
Um rabistreco de nada
Dizem que poeta silábico

De bar em bar um poema


Sobre a mesa deixado
Rasgos de paixão extrema
As mãos trêmulas
Os pés inchados

Desde menino era penso


De estrutura precária
E sempre um tipo solitário
Com seus versos infensos
Ao sistema literário

40
Nosso poeta de menos
Com sua poesia vária
Nutria-se da palavra veneno
Era tido como um pária
Pela crítica literária

Um dia bateu as botas


Em suas rotas errantes
O bom poetinha tupi!
Um apelido elegante
Que ganhou com o Jabuti

41
INTEMPESTIVO

Não me defino
Não sei o que me é demais
Se esse homem de meia
E já de idade
Ou se o menino
Que dita à voz
Os meus poemas

Não me dou o tino


Não ligo a mínima
Sei que nada me é de menos
Comedimento ou desatino
Tudo me é dilema
Ninomem homenino

42
Bem mais que um jogo
De fonemas
As sensações extremas
Da palavra em meus poemas
Como uma imagem que roda
Na tela do cinema

Os versos por meu crivo


A corda bamba
O samba de antemão
Vibra o acorde
Em desacordo ou precisão
De uma canção que me lança o intempestivo

43
LABIRINTO

Após passeio de livros


Por entre páginas que não remendo
Tomo a coragem dos sábios
E os devoro como a uma presa de difícil captura
Por fim, devaneio imagens palavras gestos
E dou vivas ao que dos livros salta à luz
Do oculto labirinto das palavras

44
DO APRENDIZ

Ensina-me a namorar!

Antes que eu aprenda


A fazer renda.

45
AO PÉ
DA LETRA
I
Meia pá
Não lavra
Vasto
O campo

Céu cai
O tempo
Verte
A chuva

Passeia
O gado
A bosta
Espalha

E o verde
Pasto
A perder
De vista

46
II
Palavra
E meia
Gera
Palavrão

Ao pé
Da letra
A meia
É gasta

A par
De tudo
O decifrado
Palavreio

Para meio
O bom
Entendedor
Basta

47
ENGODO

Soltas linhas
Cruzam outras
Poucas
Viram muitas
Desalinham-se
Alinham-se
Umas noutras
Paralelas
Obliquas retas
Emaranhadas curvas
Tufo de fios
Enlaçados nós
X da questão
Jogo
Efeito dominó
Puro engodo
E só

48
O NOBEL DE
LITERATURA

Escorreguei na gramática
Caí na chacota
Virei piada do dia
Pra gargalhada geral

Fui manchete de jornal


No caderno literário
Por meu verso ordinário
Minha rima banal

Segui em frente
Catei palavras ao léu
Fiz uns versos de cordel
Fiz canções para bordel

Dia desses faço um verso de sucesso


Poemas sob moldura
Ganho algum prêmio local
E o Nobel de literatura

49
PARA A POESIA QUE SAIA

Tiro do coco o chapéu


Sem nem um franzir de testa
Faço a festa na praia
Para que Deusdeti espraie
Agito o mar que Deus deu
Para a poesia que saia

Sigo no bando a minha laia


Faço do samba um enredo
Na voz de Geraldo Maia
Canção de Henrique Macedo
Crio versos na gandaia
Para a poesia que saia

Canto florestas desertos


Rios marés oceanos
Canto jardins de orquídeas
Roseiras e samambaias
Todos os meses do ano
Para a poesia que saia

50
Miro o fervor da cidade
Na janela de tocaia
Depois escancaro a porta
Antes que a tarde caia
Visto a fina cambraia
Para a poesia que saia

Vejo o mundo em glosas


O meu telhado é de vidro
Não sei se trova ou prosa
Música que faço é de ouvido
Arrasto o pé rodo a saia
Para a poesia que saia

Canto alguma façanha


O meu poema sem fundo
Canto a beleza que assanha
A dor e a fome do mundo
Aceito aplausos e vaias
Para a poesia que saia

51
A DOR DO POETA

Os dias acordam mais cedo


Toda manhã é assim
A janela como um ecrã

Em conta do arvoredo
Há sombras de infância e medo
Nas sombras do jardim

O sol oblíquo é brando


A grama verde e molhada
As roseiras, o jasmim de cera

As horas a medirem o quando


Em seu ritmo insano
No seu tempo de espera

Geraldo Pinto Jr.

52
A casa como território
De tão irrisório calendário
A poça d’água da rua espelha

Praça central centenária


Abrigo de monumentos imponentes
E da gente precária em abandono

Indolente cidade dos patronos


Das folhas caídas do outono
Da dor do poeta insone

Restam os que voam e revoam


E trinam e grasnam e passam
Num passa passa dos pássaros

53
PARA UM FAZER POEMAS
para Cristiano Ramalho

Para um fazer poemas


Deve-se ter
Passo primeiro
O não se ater a um tema
Nem se emaranhar numa trama
Mas perseguir o signo
No seu exercício da linguagem
Em palavras, ritmos, imagens
Em jogos de associação
Por recombinacões
Ressignificações de objetos
Coisas

Para um fazer poemas


Deve-se nomadizar
Pelos meandros
Labirintos da linguagem
Colher achados no caminho
Seguir atalhos sem fim
Recompor o já comum
Da jóia gasta
À velha roupa em frangalhos
Recombinar
Ressignificar o prélio
Como um Parangolé do Hélio

54
GAME OVER

O jogo vai acabar


Questão de tempo

O jogo vai acabar


Questão de tento

O jogo vai acabar


No contratempo

O jogo vai acabar


Não a contento

O jogo vai acabar


Como passatempo

O jogo vai acabar


Ao relento

Jogo autêntico
O placar idêntico

Ao anoitecer
Game over

55
56
[TEIAS]

57
58
O TEMPO

O tempo é já
No irresoluto
Segundo do minuto

O tempo é já
Sem demora
No minuto da hora

O tempo é já
Não adia
Qualquer hora do dia

O tempo é já
E talvez
A cada dia do mês

O tempo é já
Sem engano
Pelos meses do ano

59
DIREIS
I
Amanhã
Ou depois
Pois é
Não sei
Nesse baião de dois
O que é feijão
O que é arroz

Amanhã
Ou depois
Direis
Pois, pois
Tanto faz Zé
Como Cazuza
Não importa a musa

Não importa o gesto


De quem proteste
De quem abusa
Do que usa
Hoje ou amanhã
Direis
É questão escusa

Como a peste
Que nos empesta
Do que não presta
Salvo a fúria
De quem acusa
Hoje ou amanhã
Penúria e luxúria

60
II

Amanhã talvez
Amanhã quem sabe
Amanhã ou depois
Nenhuma manhã desabe
Nenhum por do sol
Sem o seu arrebol

Amanhã logo cedo


Amanhã mais tarde
Da manhã que foi
Nenhum medo se guarde
Nenhum segredo
Nem surpresa se aguarde

A manhã de um dia
Amanhã à noite
Que amanhã não seja
Instrumento de açoite
Seja-nos só de bandeja
O que o sonho enseja

61
A ESPIRAL DO G
para Gilberto Gil

A espiral do G
É uma curva aberta
O sol do amanhecer
A lua num dublê
À parte o que encoberta

A espiral do G
Não tem borda nem centro
Expõe-se em dupla face
A fita de Möbius
Sem um fora ou dentro

A espiral do G
Por vibrações várias
Ecoa o som que soa
Em necessária ária
Senhora de mil loas

A espiral do G
Recria-se em compassos
Da canção passageira
Por um Gilberto em passos
De algum Gil Moreira

62
BAÚ DE PEÇAS ÍNTIMAS

O amigo era o da onça


A fantasia de um carnaval inteiro.
Do fevereiro ao fevereiro
A fantasia que lhe cabia.

A quarta-feira era um silêncio de entulho nas ruas


Depois de derramada toda alegria.
Em extrema desmedida
agora a lua é o que resta no céu da noite em maré alta.

Revigorado e sereno
Logo é acometido de um novo ímpeto,
Que o faz lembrar
Aquele riso solto perdido na multidão.

Como a fotografia colorida em preto e branco


Que guarda na memória,
Esse baú de peças íntimas
Que nos veste o existir.

63
REGAÇO
para Rose

Ser tão somente o agora


Esta agradável hora
De uma noite fria e rara
Num indecifrável sertão
De múltiplas searas

Apenas o que basta


Neste cenário vasto
E nada casto
De estrelas no céu
E uma lua orgiasta

A música convida
Ao vinho que nos compõe
Um estar sem despedidas
Ao que repõe vida
E uma comida para depois

Corpos se dão regaços


E entrelaçados braços
Fazem-se guarida
Num quase mesmo espaço
Este terraço avenida

64
O EXISTIR
para Caio

Existir
Não hesitar

Persistir
Único exitoso feito

Seguir
Perseguir

Ir ao fundo
Confundir tudo

Esgrimir
Farejar

Fruir
O existir

Que o feito não é


O satisfeito

É do fazer
É do possível

65
AOS MAIS VELHOS AMIGOS
para Jório, Paulo, Diderot, Fernando,
Vandinho e Aluízio.

À boca da noite
Ao cair do dia
Sob um véu aparentemente brando
A cidade se precipita
No seu corre-corre
À procura de acolhimento

Noutro compasso
Amigos de já uma data
Reúnem-se de 15 em 15
Para um prosear de happy hour
Aqui no ali na cantina Dalí
Num ponto central
Enervado do lugar

Falam do agora
E do extemporâneo
Lembram seus mortos
E suas histórias
Traçam um mapa de memórias

66
Desenham o arco da velha
Erguem taças de vinho
Brindam doses de uísque
E da vida o que valha

Que o tempo é pergaminho


Onde se escrevem amizades
Concebidas no ontem
Construídas no caminho
Afirmadas no agora
E lá estão Paulo Jório Fernando
Aluízio Diderot Vandinho

E por lá tantos passaram


(e se foram, tanto quanto ficaram)
Em todos os cantos do aqui
No agora de cada encontro
- esses outros do inominável!

Causos mil são por eles contados


Redivivos num entre-lugar
O descontínuo intermitente

Um puxa o fio da meada


Outro o cruza a outro e outro
E não se vai de fio a pavio

67
Não importa o fim
E sim o que paira
Como cintilações
- disperso lume dos vaga-lumes!

Não importa nada


Do dito e por dizer
Destronada palavra
Pelo decanto da imagem

Indizível momento
Inenarrável sentimento
Indescritível amizade
Que se faz
Da territorialidade
Desses encontros

E não há depois
E não há espera
Pois cada nova data
É sempre a primeira

68
SENHOR MARIA

Senhor Maria queixa-se do amor


Com a mesma dor de uma canção distante
Bebe um pingado quente pela manhã
À noite troca a sede por uísque
E logo adormece nos braços de algum amor barato

Senhor Maria ri do passado


O mar que havia de uma juventude perdida
A melodia em aparente descaso
Os cacos de amizades o transe
O caos do trânsito a vaga avenida a vida o fim

Senhor Maria é algo de nós


Outros Marias sim senhor

69
INTEMPÉRIE

Ouço da palavra
O que em silêncio diz
Não como um jeito do negar
Pelo que afirma
Nem como amarga dor
De uma existência em si
Assim e por si só ensimesmada

Ouça a palavra
No que se sobressai
Dentre o alarido das ruas
Em meio aos gemidos
Furtivos gozos
Do que se vive na alcova
E miro esse olhar insaciavelmente farto

Ouço palavras
Palavra alguma há
Somente um se saber só
Nem gozo nem dor
Não mais que um ir adiante
Refratário às intempéries de um tempo
Que não se tarda em vencer

70
JOGO DE DAMAS
para Rose

Dize-me por extremos versos


Alguns soluços do existir

O tom perverso das palavras


Revela a opacidade dos sentidos

Aquilo que dito pelo não dito


Explode aflito grito avesso à indiferença

Dize-me a jogada armada


No tabuleiro das palavras em xeque-mate

Não mais o xadrez nem o gamão a postos


Mas um clássico jogo de damas

71
INTIMIDADE
para Paulo Soares, nos seus 85 anos

Há algo do que és em mim


Há algo que imitei
Há algo que aprendi
Há algo que neguei
Há algo que segui
Há algo que chorei
Há algo que sorri

Há presenças e ausências
Silêncios, vozes, distâncias
Desencontrados encontros
Reencontros
E sempre a música
Nosso diálogo de ouvidos

Da infância
Imagem-memória
Do arco-íris que pintastes
No céu do Rosário Novo
Com tintas da Kings Mosaico

Da adolescência
Minha mudez
Qual sepulcro
Não fosse a música
A nos guiar as vozes

72
Da vida adulta
O nosso aperto de mão
E a descoberta íntima da amizade
E sempre a música
A encantar diálogos e mediar o elo

Já não te cobro
Já não te ofendo
Já não me culpo
Pelo que não entendo
Posto que agora sei da vida
O pouco que aprendo
E até ensino
Um pouco

E assim
Ao seguirmos
Fica o amor
Como a mais viva invenção
De nosso cotidiano

73
GESTAÇÃO
DO TEMPO
para Naiana

Os pés do tempo
O que sustenta
Em gravidade
E leveza
Em calmaria
E tormenta
O que o tempo inventa
Em asserções
Incertezas
Na instância que se gesta

O tempo é sesta
Tempo é estância
O tempo é gesto
Brusco e lento
Incorpórea substância
Intertexto do contexto
Tempo o que se presta
Ao movimento
Em moto-contínuo
Em intermitências

74
O BEIJO

O beijo ao dente
Ardente
A noite toda
O que lhe fora
O prazer
Da meia-luz

Sabe-se lá
A que custo
As garras da paixão
Não lhe marcaram
O pescoço
Unha a unha

A saia justa
Não curta
Pela justa reserva
Do pudor
Que lhe encobrira
O manto roto

75
CASA DOS AVÓS

Japonês! Japonês!
Gritava o vendedor de quebra-queixos
Por calmas ruas da tarde às 15 da hora exata

Olha o munguzá!
Era o grito de guerra de outro vendedor
Que ao passar acordava as manhãs
E a todos apressava com um “eu já vou viu?”

Com um toque de realejo


O vendedor de cuscuz seguia em ritmo maratonista
Sem palavra a dizer

No portão às 7 o meu avô recebia o leite


Em lombo de burro transportado
2 litros para a fervura + 2 para a coalhada
E algumas reclamações de que água havia em leite adulterado

76
Da cozinha a minha avó provocava o aroma do que comporia
a mesa:
Tapioca ovos banana comprida munguzá leite cuscuz
linguiça queijo coalho bode guisado pães bolachas batata
doce ou macaxeira ou cará café ao ponto carne de sol

E o dia assim começava na casa dos meus avós


Quando de meu retorno
E de alguns irmãos
De um longo passeio ao longe

Às 7 e meia íamos para a escola


A tarde inteira era do bate-bola
Nas peladas de um terreno baldio
E o tempo transcorria
Como tudo que passa
Para compor no agora as telas da memória

77
ALVORADA

A brisa fria na manhã que sopra


Traz um olor suave do agora
O sol nem bem se ergueu
Faz uma luz de alegre acordar
Como é estranhamente alegre
O choro de quem nasceu

O solo úmido dá o tom da chuva da noite


Contrastes de brilho e sombra
Na folhagem do arvoredo
Traduzem oblíquos raios
A alvorada é breve
No apressado gorjeio do passaredo

78
HERANÇA

I
Do pai guardara um pé-de-meia
Sapato furado na marca do calo
E um silêncio nas veias
Como o traço genético que traz
Do fio do cabelo à medida do falo

II
Da mãe ficara uma meia-calça
A salsa que lhe calça o pé-de-valsa
No dancing do cabaré
Dama da noite em jarro pintado
Xale nos ombros, a solidão, a pensão Chalé

79
AMIZADE
para Cidinha

O meu amigo me guarda


Como quem protege um filho
Com carinho e severidade
Com um sereno alarde

A minha amiga me abraça


Como quem amamenta
E me ampara e faz críticas
Do meu despreparo

Retribuo-lhes um afetuoso sorriso


E eles bem entendem
O meu mudo aviso
Que amor não é o que se aprende

E juntos seguimos a estrada


As mãos dadas da vida
A esperança do olhar
Canção que não se olvida

80
VAIDADE

Vai idade
Avança e destrói
Pouco a pouco
O que restou
De minhas vaidades

Vai como arco


E me lança
Num sem sentido
Num vácuo
Rumo ao desconhecido

Vai e me rouba tudo


O rubor da cara
As palavras raras
O homem que fui
O amor que me deras

Vai idade
Deixa-me o que dói
Põe-me longínquo
Só não me tires o humor
Da mocidade

81
NUM
BOTEQUIM

Você pra mim


E eu pra nada
Você clarim
E eu madrugada
Você mulher
E eu Baudelaire
Você o que quer
E eu já sem fé
Você passante
E eu passado
Você amante
E eu desamado
Como um camarim
Fora de moda
Num botequim
Sem foda

82
POSSÍVEL

Pudesse não voltar ao ponto


Pudesse não voltar ao mesmo
Pudesse não voltar

No entanto o ponto é cego


No entanto o mesmo é outro
No entanto tudo segue

Pudesse então dizer daquilo


Pudesse então dizer que disse
Pudesse então dizer

No entanto aquilo é isso


No entanto disso diz-se
No entanto cala-se

Como se possível fosse


Como que passivamente
Passível de ser e ausente

83
BIOGRAFIA DE FICÇÃO

Um por um
E para meu espanto
A contar os atuais sessenta e um
Se não me engano
Lembro-me apenas de alguns
Ainda que em momentos tantos
Desses meus vívidos anos

Por certo, e seletivamente


Daqueles que a memória põe cena
Como artifício da mente
A julgar e a dizer
O que vale a pena ser retido
Em meio à dispersão
Como imagens em reconstrução

Não me cabe aqui


Não me lamento
Quaisquer tentativas de enumeração
Caso a caso desses eventos
Estejam ou não curados
Para o vivente que vos fala
Velhos e simbólicos ferimentos

84
Recordar não é reviver
É a montagem daquelas dispersas imagens
No gênero biografia de ficção
Onde dispomos paisagens
Personagens e bagagens na viagem
Algumas libertinagens
Paragens diversas e nada mais

Um por um
Tenho vivido da sorte de ter nascido

85
SUBLIME

A tarde que cai vislumbra a noite sem fim


O sono me bate à cara e de súbito me acorda

O som agora soa em seus breves acordes


A corda vibrante se estende a pedir outra nota

E a vida vai

86
ELEGIA

Meditabundo fico
A olhar o mundo
Indecifrável improvável
Simplório iracundo

Fundo do que vejo


Incompatível vaso raso
Inquebrantável
Ventre rotundo

Da segunda ao segundo
Do primeiro ao último
Do esperado ao súbito
Dorsal decúbito

Mútilos sentidos múltiplos


Grunhidos aos ouvidos
A traduzir o fim
Pelo oriundo

87
ODE AOS BARES

Bares são sabáticos!


Permitam-me a licença poética
Da boêmia.
Afirmo não por credo
Por incúria ou heresia.
Só por ser aos sábados
O seu melhor dia.

Digo por mim


Não pela maioria.
Pois afora o sábado
A quinta à noite
sempre me foi um guia.
Lobo solitário
Com as garrinhas de fora.

E quando olho em volta


O gênio à solta
Lá pelas 11 do dia
Nesses bares sabáticos,
Percebo a enorme euforia
Dentre terráqueos e lunáticos
- mais uma dose, por garantia!

88
Lunáticos que digo
Não do que se diz
Na voz da maioria.
Lunáticos os diurnais
Que nos habitam.
Ou seriam selenitas ancestrais
Na popular astronomia?

Como somos, aliás,


Os notívagos nos luaus da freguesia
Nem menos nem mais
De gole em gole
Por alacridade ou nostalgia.
Tudo é mesmo uma total histeria
Nesse happy hour de cada dia.

E corrijo a sentença
Mas não baixo a poeira
Já perdidas as estribeiras.
Se sabáticos os bares são
Também o são das domingueiras
E de todas as feiras.
Que todo tempo
É templo de comemoração.

Salve-se então a bebedeira!

89
A DOBRA
para Sotero Caio, Marcio e Paula Santana

Qualquer esquina se desdobra em mil caminhos


Qualquer caminho esse infinito labirinto
Todo caminho é sonho é sanha e instinto
É o faro da matilha dos famintos

No horizonte que fervilha sol a pino


O solo seco errante o verde a rizoma
O peregrino da memória o sem mirante
Como o olhar caleidoscópio de menino

A ver um mar do outro lado da colina


A cada dobra do caminho que lhe ensina
Caminho é o que se faz em desatino
Nunca por obra e graça do destino

Manoel Sotero Caio Netto

90
POEMA PARA
AMANDA

Amanda manda
Eu obedeço
Ela quer um poema
Eu faço versos
Fragmentos desconexos
A depender do contexto

Tão simples
Por mais complexo
Termos que desconheço
A palavra pelo avesso
E não gesso
Palavras de A a Z

Palavra de quem ama


De quem se zanga
Da mana à dama
Amanda amada
E nunca amarga
Em seu sorriso
Que nos inflama

91
II

O sorriso de Amanda contagia


Não tem noite
Não tem dia
Que Amanda não sorria
Amanda sorri da varanda
Amanda sorri na fotografia
Nos anúncios de out door
Na Internet
Nas revistarias

Será o mito do Drummond?


Essa Amanda que nos guia
E nos deixa fartos
De ausência e dor
De tristeza e alagria
Será alguma passante
Que o Baudelaire cantaria?
Nunca a garota do Tom e Vinicius
Aprisionada nos discos

92
Amanda é liberta
Boa de briga
Tem braços fortes
E um vulcão na barriga
Seja noite
Seja dia
Amanda com seu sorriso
Não dá aviso
Faz a folia

Por onde passa


Depois de umas taças
Amanda é rainha
Quando pede, manda
E eu me desarmo
Com essa filha de Carminha
Que como outras Marias
Nas horas vagas é Do Carmo

93
III

Amanda anda e desanda


Por Leste e Este e Sul e Norte
Amanda tem muita sorte
Pelos tantos súditos
Que lhe fazem a Corte
Gigantes e anões
E de todos os portes
Que essa Amanda é demais
Abelha rainha
Aos zangões a morte!

Mesmo sozinha
Está acompanhada
Amanda e sua risada
A mando de Deus
Cuida de nós os ateus
E saduceus e fariseus e essênios

94
Cuida de nós os idiotas
Tolos simplórios e gênios
Burgueses e operários
Plebeus e nobres
Espertalhões e ingênuos
Cuida de nós vagabundos
E “sustenta cinco mil pobres”

Enquanto eu, poeta, me basto


Besta metido à bosta
Da epiderme ao fundo
Um busto de bronze
Esquecido nalguma praça do mundo

95
O JOGO DE AZAR

Apesar do silêncio
O murmúrio
A tacada

Uma sinuca de bico


Na degola
Do que apostara

Depois de tudo
Só o silêncio
Mais nada

96
VAZIO

Estou vazio de momento e de sentido


Nenhum símbolo signo me povoa
Não há imagem que eu tenha perseguido
E em meu vazio estou inerte estou à toa

Estou nublado densas nuvens estou neblina


Nesta primeira minha noite já sem lua
Não há conhaque nem amor nem aspirina
E nada avança nada para nem recua

Só o silêncio pode ouvir o meu cantar


Só ele canta a dor de amor do meu vazio
Mas sem ninguém que possa ainda me escutar
Sou triste como um lago morto um morto rio

Não tenho sono nem mais sonho e fantasia


Mas ainda vejo um horizonte que se curva
Ante o abismo de um vazio que principia
A imensidão daquele lago de águas turvas

Estou vazio neste único e só instante


Não temo o medo o espanto ou o nativo
Mas não sou um lago morto sou um rio errante
Abrindo fendas em solo subjetivo

97
DONA DA CAMA

Ela é a luz da noite


Meu instável poema
Ela é a tela do cinema
Que me prostra na poltrona

Ela é a mãe da lua


Por todas as luas do seu corpo
Seios e genitália
Olhos e boca
O adorno dos cabelos

Seus braços que me sufocam


Suas pernas que me prendem inteiro
Seu prazer que me desfalece
Seu gemido verdadeiro

Ela é a mãe da rua


Em todas as ruas da esquina
Ela é mais que uma menina
Na mais crua pele nua
É da vida o que me ensina

98
Aprendiz que sou e mestre
Cubro-lhe e lhe dispo as vestes
Nem urbano nem agreste
Em nossa inconteste entrega

Sob o sol, fica adormecida


Sob a lua, prateada
O mar a lambe na areia
O rio a serpenteia
Como na mata da passarada

Ela é a luz do dia


Minha provável poesia
Dama que me inflama
Dona da minha cama

99
HOMEM DO POVO

Ele segue sozinho


Num mundo vago
Um olhar de fundo
Um cigarro, o trago

Pelos vagões
A multidão
As vogas do mundo
A exaustão

Ele segue em vão


Num mundo de sombras
À sombra dos ombros
Os olhos no chão

100
Ele segue assombrado
Entre escombros
Ele segue acordado
E moribundo

Ele vai ao fundo do posso


Pele e osso
Ele segue a estrada
Sem parada

Ele vai ao nada


Ele vai com tudo
De cara lavada
O peito como escudo

101
SOLITÁRIO

Meus solitários olhos vários


Miram do tempo o ordinário
No existir do ser involuntário
Um existir na conta dum rosário

Meus solitários olhos vários


Mira-se no que há de refratário
Ao que se impõe adversário
A posta em causa e o corolário

Meus solitários olhos vários


Miram num todo o fragmentário
Veem naquilo do imprescindível
Algo em si do desnecessário

102
O TRANSEUNTE
(envolto em casimira)

Ele agora caminha entre becos


Sem um eco de voz que ressoa
É a mesma e outra pessoa
Pelos cantos do mundo e já peco

Passam dias de horas perdidas

Entre bêbados é só ouvidos


Para mais um chorão samba ruim

Mundo gira e segue o mesmo


Com a dor que em silêncio conspira
Mundo é lira mundo a esmo
E ele ermo envolto em casimira

Passa o tempo a mitigar a fúria


Das paixões que a si se entregava
Já não lembra a que veio a que dava
Qual verdade do mundo era espúria

Ele agora arrasta seus trecos


Entre becos e sambas sem nexo
Seco olhar que a tudo disseca

Henrique Macedo

103
A CENA DO FILME

De olhos nos olhos


Apalpam-se por olhares de desejo
Mapeiam-se intimidades
Tudo tão sincero em close
Tudo fingimento e pose

Mentem por convencimento


Cada momento como outro
Cada outro em dessemelhança
Tudo tão verossímil
Tudo em tal inverossimilhança

De olhos nos olhos


Como numa interminável cena
No espelho plano da tela em tema
Sobrancelhas de nenhum espanto
No beijo clássico do cinema

104
NOTURNO EM RECIFE
para Emílio Negreiros

Do concreto armado
Pontos de luzes cintilam existências

Janelas indiscretas figuram


Como um quase cinema
A traduzirem o íntimo

As ruas são como em chamas


E ainda servem ao acaso do olhar

De um ponto qualquer
Revelam-se imagens em noturno
Da cidade como cartão postal

105
NA ESTAÇÃO

Quando te vi
O rosto em risos
Indisfarçável aflição
Foi-me o aviso
Daquele momento único
De todo prazer e alívio
Pra minha solidão tão funda
Cravada no peito
Guardada em silêncio
Como a emoção que inunda
Como uma cicatriz íntima
Por um instante
Esquecida
Nesse lugar da vida

106
EMBARAÇO

Copos tilintavam uns nos outros


(As pedras de gelo do uísque)
A dose certa
O momento exato
O gole de virada
A derramar gotas de emoção
Da pele em flor

Conversas se intercalavam
Por entre olhares cruzados
Sem a clareza do que ali se dizia
Algo da vida e do tempo
Sem as palavras do embaraço
Sem o que soa à toa
Nas contas de um aplacável silêncio

107
A ROUPA VELHA

Na gaveta de baixo
Na cômoda
Num canto ao fundo
Uma roupa velha
Amarrotada
E cheiro de guardada
Surge-me à mão

Não mais dela lembrava


Nem em fotografia
E ela ali
Sem se dar conta
Sob tantas outras
Conservada
Pelo esquecimento

108
Vesti-la foi assim
Algo de estranho
Como abrir um baú
Sem memória precisa
Entrar num túnel
De tempos
Uma montanha russa

Nada mais fazia sentido


Naquela roupa
Suas lembranças
Do vivido
E do querido viver
Nem seu tamanho ao menos
Que encolhera absurdo

109
O GIZ DA QUESTÃO

No presente das horas que correm


O giz da questão
No entredito das coisas e causas
O caos de toda ordem

O dizer mais
Do que se sabe
O saber mais
Do que se diz

A hora é o xis do H
A hora é o agora
Dos pontos nos is
Na hora desmedida da vida

A vida sob medida


A vida por um triz

110
NEM OITO NEM OITENTA

Abro a janela ao sol


Que já não entra
Não mais que nuvens do desprezo
Espalham a manhã cinzenta

E me atrapalho
Nem oito nem oitenta
Ou quase um dente de alho
No molho de pimenta

Acerto no que falho


Os pés no tapete
O violão um clarinete
As manchas no assoalho

Migalhas de pão
Taças de vinho espalhadas
Tudo conta sua história
Por memórias renegadas

Memórias de um fim
Bons tempos num tempo ruim
Não mais que uma janela escancarada
Paisagem desbotada em aquarela

111
O VENDEDOR

Vendeu viva a própria alma


Obcecada
Urgente
Depauperada
De palmo a palma
A alma nua
Naufragada
Mergulhada em dúvidas
As dívidas na lama
Na mala os traumas
Alma em desmedida
Vencida
Fraturada

Enganou um tolo
Ou dois
Rio de si
Sem alma que valha
Queimou a fogueira
De palha
Das vaidades
Negou da idade
A vida em suas falhas
A malha fria dos dias
O chão duro do não
Vendeu viva a própria alma
Não aceitou devolução

112
PÉ DE POEIRA
para Ricardo Santiago

Seguir caminhos
Mesmo sem rumo
Apesar dos tombos

Erguer-se em sonhos
Mesmo sem telos
E sob escombros

Viver lutar criticar


Por vezes acreditar

Não se dar à cegueira


Nem tirar poeira dos pés
Cegos são os que se põem viseiras

Geraldo Pinto Jr.

113
VERÃO
(Sob o sol)

Pelas ruas
E outras vias
Peles em brasa
À brisa
Circulam
Sem camisa
Não por acaso
Esses rapazes
Essas rapazas

No chão raso
Sob o sol
Do verão
De um dia
Em anarquia
À beira mar
Em quase eclise
No vão das calçadas
Sob as marquises

114
No entra e sai
Das casas
Com suas asas
Vão-se então
Em pleno gozo
Esses rapazes
Essas rapazas
O espírito ocioso
Da forma lúdica

O jeito típico
Do que é sagaz
Nesses rapazes
Nessas rapazas
A pele em brasa
O gesto audaz
Que compraz à vida
Ao tom fugaz
Do tempo voraz

115
RETRATO FALADO

Agora você me olha


Retrato na parede
Com um sorriso congelado

Agora você me diz


Por páginas amareladas
O fio da piada

Agora não é nada


Mais que uma promessa
Uma conversa fiada

Agora estamos quites


Já não mentes
Já não te ouço os convites

Agora? O tempo exato


Do que cabe na moldura
Que guarda o teu retrato

116
BREVIDADE

Curto é o pavio que queima


Ao tempo que corre
A passos de não alcance dos pés

Breve é o amor em seu rumo


Sem direção alguma
Com a gratuidade que se quer perene

O sonho da vida
Entre a chegada e a partida
Como todos os dias guerreiros do ser

117
PAUPÉRIE

As mãos do tempo não usam luvas


As mãos do tempo são sem repouso
As mãos do tempo constroem abrigos
Abrem estradas cultivam frutos dão-se aos amigos

As mãos do tempo também dizem não


Guerreiam sangram matam dão ordens de execução
Fanfarram os clarins da barbárie
Nutrem os jardins de intempéries

Calejadas pelo garimpo do supremo bem


Colhem em sofrimento o cascalho de sonhos vãos

118
JARDIM DA INFÂNCIA

Cambaleante andou
A voz atormentada do amargo sabor das lembranças
E a esperança de não o saber

Encheu a praça vazia


Com os fantasmas de um diálogo mudo em alarido
E inanimados bancos de concreto

A noite é de pesadelos
Embora os sonhos lhe soem um jardim da infância
Incógnita imagem sem desvelo

Cambaleante andou
Andar andara os meandros que dera de andar sem bandos
Agora é solo o chão da dor

Tão só e só assim se viu por toda vida que pudera ter viver
Em tudo aquilo que o possível foi
Mais improvável que o dizer

119
OUTONAIS
(roteiro)
Aos bons momentos na casa de Cidinha

Claquete Cena I

Folhas caídas sobre a calçada


No Jardim
De árvore frondosa
Folhas e folhas entulhadas

Folhas sobre a tela


Em relevo e verniz
A simetria no espaço
De uma imagem cicatriz

Sobre o assoalho
Em contraste
Mais folhas mortas
Mais que o baste

120
Folhas ao relento
Movidas ao vento
Como flashbacks
Memórias em fragmentos

Um fonema
Um poema
Um tema
Um teorema
Um aceno no tempo
Uma cena de cinema

121
&
Claquete Cena II

O pianista em seus primeiros acordes


Um brinde de taças
Rostos em close up
Mesas lotadas
Por onde transitam garçons
Ao fundo o barman prepara o Gin
//Corta//
Silêncio súbito de olhos
Vívida lembrança colhida numa canção
Do tempo que passa
Como em Casablanca
“As time goes by”
//Stop, please! Stop!//
Entra em cena o mocinho
//Play it again, Sam!//

122
&
Claquete cena III
Acenos na partida
De novo o silêncio do vivido
Do que há por viver
Do que jamais será dito
E que não cala
E que não quer esquecer

Varrer da memória
O que quer reviver
Ter do tempo
O que no tempo existir
O que não se exaurir
O que não fenecer

Limpar as gavetas
Dos resíduos incômodos
Pernas de rã
Torneira quebrada
Botões e ratos
Cartas recebidas e jamais enviadas

Seguir em frente
Laboriosamente
Discretamente
Suavemente
Remapear caminhos
Desvendar ambientes

123
Lifestyle

O mercado é o canto das sereias


Para um Ulisses desavisado
Um mar de náufragos
Glamourizado

Um mal de séculos
Como uma obra romântica
A fina camada do espelho de Alice
Para a vaidade dos eleitos

Um Nosferatu mudo em p&b


Num expressionismo opaco
De espelho retorcido e sem luz
Para os excluídos

O mercado é um convite ao abismo


Em queda livre
Numa trip narcotizante
Suavizada pelos publicitários

124
125
126
[MOTIVOS]

127
PRUM SAMBA, MEU!

Vivo no agora do temor e da coragem


Nesses tempos desencontrados
A mente pensa o corpo padece
Sob a pressão dos acontecimentos

A prece do mando às pressas


Traduz-se na batuta cínica em razão de...
Miro um cenário precário ao longe
Não me cabe a fuga

E sigo ainda e provisoriamente refratário


Ante a tortura da intimidação
Do arbítrio pelo arbitrário
Da lei servida como um tecido esfarrapado

Ouço o pigarro das ruas


Saltam no ar os perdigotos
Baratas e ratos nos esgotos
Compõem nossa memória de subsolo

E sigo sob a vergasta da lua velha e gasta


Espelhada por um zinco fosco
E já tosco retorno abatido para casa
Um Vanzolini no bolso

128
RECIFE 30 GRAUS

Cidade litorânea
De centro portuário
Encrostada de recifes
E arranha-céus
Essas muralhas
Destinadas ao atual
A conter ondas de vento
A cobrir o sol

Cidade sombreada
E fervilhante
Já sem passos de frevo
Ágora de lutas por seus cais
Canais de brisas
Agora em ameaça
Rendidos ao estelionato
De gangorras financeiras

Lá a brisa já não sopra


Para Bandeira e Anarina

129
NOVES FORA

Aquele que brada


Com certa euforia
A vida longa do rei
Como a nova alvorada
Não entendeu
Por três vezes três
Noves fora nada
Que a vulnerabilidade
É a dinâmica da vida
Em suas descontinuidades

Ingênuo é se pensar
Ou se sentir
A salvo de tudo
Membrudo, ornado
Aliado agradado
Sem se dar conta
Pobre coitado
Que não há lado seguro
Passo para o futuro
Num campo minado

130
Pueril é não se ver
Com o pescoço à prova
Com a cabeça a prêmio
Animado parvo
A cavar sua cova
Até onde caiba o corpo
Em desova
Pendão roto
Que medra o regresso
À ordem em progressão

O pendor pelo poder


Esse ninho de cobras
Espetáculo das traições
Jogo de cartas marcadas
De descartáveis paixões
De regras sem normas
Acordos proforma
E o soçobrar
Da pobra à multidão
Pura massa de manobra

131
COMUA

Já não se diz do cobre


As sobras de horrores
E paixões
A voz do sábio é morta
Perdida é a dor das ruas
À multidão, o sabre
Em nome do que se perpetua

Já não se diz do sobre


Sombras de certezas
E dúvidas
O algoz que bate à porta
Algo que se insinua
Segredo que se abre
Jogo que se compactua

Já não se diz do nobre


O que encobre
De doce e salobre
O que na carne corta
A Corte em pele crua
A queda, o descalabre
O que endiabre essa comua

132
EM TEMPOS
EXTREMOS
para Fagner Andrade

Corre o boato,
Onde há fumaça há fogo.
Reza a lenda, sem prendas:
Ruiu a Virtú e a Fortuna?
Urge a desonra do Príncipe,
Por seu desgoverno.

Tempos extremos!
Ordem e desordem,
Sob as cinzas do carnaval.

133
DESOLAÇÃO

Deserto cenário
Substrato de paisagens
Concreto armado
Desarma-se no abstrato

Miragem do teu corpo


Discreto som vibrato
Torpor que me habita
Teu hálito em meu olfato

Ao longe tão por perto


Indiscernível o recato
Secreto escuro vão
Cacos num chão de pratos

134
Seguir falto os passos
Por extrema incerteza
Crua estranheza
Em traços tortos vários

A golpes de pedra e pau


A nau dos corsários párias
Tempo açodado de lutas
A trupe e o golpe de Estado

A história por descrença


Um cemitério opaco
O afeto por ausências
Resta-nos cagar no vácuo

135
O HOMEM DE MAIAKOVSKI

Diz-se que dorme o sonho dos justos


Não sem sustos de pesadelos
Dorme dos pés aos cotovelos
Quarto angusto e fria cama
Os olhos entreabertos
O busto augusto
Vetusto, a face em disfarce

Sabe-se por seus jeitos


Feitos desfeitos impasses
De seus modos disformes
Seus enlaces em desordem
Os inferninhos de sempre
A casa de show o Palace
A vida mansa de come e dorme

Noite em claro, o dia dorme


Morde perdizes e ananases
E seja lá o que engorde
Arrota, soluça, solta gases
Bebe a cachaça dos satanases
Diz-se que dorme mil acordes
A música dos sonhos de um milorde

136
CARTÃO POSTAL

No centro comercial
Desta cidade apartada de sua gente tísica
Na fachada de um prédio executivo
Próximo ao hall de entrada
Quatro pombos se postam e arrulham metafísicas
Enquanto ficam à espera de Godot

137
VESPERTINO

No horizonte perdido de avenidas


Bailam superfícies de gentes e automóveis
Edifícios precipitam-se em rotas suicidas
Enquanto o vento sopra a tarde pelas cinzas de um cigarro

138
NOTURNO

Lutar por causas perdidas


A lua, por exemplo,
Sem quaisquer bandeiras erguidas
Sem poemas a lhe ofuscar o brilho
Sem guardas noturnos a lhe guardar o que há de alheio

A lua é soberana
Rainha das sombras
Passeio livre dos notívagos
Seus fiéis súditos
Que sabem bem o que lhe destina a vida

Não há livro de maior sabedoria


Para quem puder ler
O que da lua traduz o oculto

O sol é farol que invade


A lua a opacidade impenetrável
Mais poderosa que o Cavalo de Tróia

139
A MOSCA

Nenhures
Onde há uma esquadria de vidro e metal
Mosca lentamente desenha
No espaço havido da janela
Toda a atenção que dispenso
Noutra manhã de sol

E me põe opaca
A bela paisagem de fora
Da vida a perseguir sonhos
Rumos rumores amores
Encantos e dores
Em todas as paixões e sons

Alheio a isso
O díptero mantem-se
Na superfície da vidraça
Como um trompe l’oeil
De algo solto no ar
Com suas asas imóveis

Atento a isso
Ponho-me a pensar o sopro de liberdade
Que a vidraça obsta
Como uma vitrine
Que promete o que transluz
Naquilo que espelha

E abro a janela para o entra e sai dos insetos

140
AEROPORTO

Malas no aeroporto seguem qual destino?


Múltiplas razões para voar
Não fossem só partida e chegada
Esse silêncio de bocas olhos ouvidos
Silêncios de mãos que não dizem mais que um aperto
Quiçá um afago
Irredutível solidão do eu no nós
E seguimos rota de leva e trás
A sós, acompanhados
As malas como adereços para o corpo

141
O JANEIRO DA MANHÃ

O sol se esconde por trás de nuvens densas


Que cobrem edifícios entremeados de árvores
E a chuva cai

São 5 horas de uma manhã-penumbra


Num Recife de quase filme do Kléber Mendonça
E a chuva cai

142
EFEITO COLATERAL
para Glauber Rocha
e Jomard Muniz de Britto

A terra é Glauber em transe


A vomitar delírios.

Colírio é a razão instrumental


A nos cegar os olhos com o veneno da indiferença.

143
FALSAS PROMESSAS

Passada a ventania
O calor da hora
O minuto seguinte
Paralisa o dia

Na tarde do agora
A vomitar brasa
Nessa casa estufa
De minha morada

Saio pras ruas


As mesmas ruas das sombras nas calçadas
(as árvores tombadas pela chuva)
Onde nada avança nem recua
Até às tantas da madrugada

Manhã já chega
E acordada com a estiagem do olhar
Faz do bom dia o pão dormido e duro
Na sacola de pano bordada
E a vida segue lenta no lugar

144
Fico à espera do aconteça
Uma ventania
Uma tempestade alta
Um copo d’água
A derramar surpresas e melodias

Algo que diga ao silêncio


Toda infância das ruas
A lua tão dela e sem dono
A vida por teimosia
Em tão precário abandono

Passada a ventania
No seguinte da hora
O calor do minuto
A tarde em paralisia
No dia do agora
Vomitadas brasas
Bocas de sapos
Pássaros sem asas

145
FÚRIA

A roda do tempo
O ouvido da mata
A prata da lua
O ato que desata
O nó do silêncio
No que insinua
A voz que em murmúrio
No fim compactua
Verdade e perjúrio
Aos olhos da lei
Nas vozes da rua
De impassível fúria

146
ESPERANÇA

E o dia se abriu em luz.


A hora da noite era inconclusa,
De mato sem cachorro,
Um corre-corre.

Cabeça de medusa,
Um sem saber para onde ir
(Nenhum mapa, lupa, bússola)
Na noite longa e de chuva.

E o dia se abriu em sol,


Raio brilhante.

Joaquim Izidro

147

Você também pode gostar