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DILEMAS TEÓRICOS DA SOCIOLOGIA (ENSAIO)∗

Paulo Marcondes Ferreira Soares


Prof. do Departamento de Ciências Sociais – CFCH – UFPE

A sociologia se apresenta como um dos mais importantes empreendimentos


intelectuais surgidos no bojo das grandes transformações histórico-sociais da nossa época.
Como tal, ela se apresenta, antes de mais nada, como um produto cultural por excelência;
que, só então, é chamada a atender, de uma perspectiva teórico-prática, às exigências
oriundas daquelas transformações: daí os primeiros esforços na configuração de um campo
científico de explicação sociológica.
Do ponto de vista intelectual, essa época encontra-se dominada pela crença
iluminista de que o histórico e o cultural estariam marcado de preconceito e superstição; e
de que só o “verdadeiro” é o “eterno”. Crença que possibilitou aos iluministas a elaboração
de uma concepção de metodologia científica baseada em princípios nomológicos: ou seja,
tendente à formulação de leis científicas de tipo invariante (HEKMAN, 1990).
Como se sabe, tais formulações obtiveram aparente sucesso no campo das ciências
naturais, levando a sociologia a copiar desta última, o naturalismo nomológico de seu
método: a procura de leis científicas do mundo social. E isto só foi possível mediante um
modelo de abordagem anistórico-sincrônico da concepção de natureza humana.
Com efeito, aí se encontra uma primeira ordem de problemas. De um lado, as
concepções naturalistas baseadas num modelo anistórico-sincrônico que pensa o indivíduo
apenas sob a ótica da sua determinação social: positivismo, funcionalismo, estruturalismo,
enfim, as abordagens sistêmicas e holísticas. De outro, as concepções hermenêuticas de um
modelo histórico-contingente, que pensa a sociedade como algo formada pela ação social
de indivíduos interativos e interdependentes; em que estruturas sociais são contingências ou


Ao tratar a questão dos dilemas teóricos da sociologia, optei menos pela identificação e apresentação formal de certos
paradigmas e suas contradições mútuas, e mais pela discussão de base epistêmica de alguns elementos que parecem constituir
problemas chaves próprios ao campo do conhecimento sociológico. Diz respeito, tais problemas, à sérios desafios que parecem se impor à
configuração do movimento teórico-social, a saber: problemas relacionados à natureza do campo científico do discurso sociológico;
problemas que concernem à discussão entre teorias globais especulativas e teorias setoriais acadêmicas e de médio alcance; além de
problemas relativos às dicotomias de tipo, por exemplo, explicação-compreensão, estrutura-ação (o micro e o macro), entre outros. A
recorrência a essa forma de encaminhamento parece tornar possível um tipo de elaboração mais sintética do desenvolvimento do assunto
em questão - sem que isso, creio eu, implique na perda da importância e do interesse que esse tema comporta.
estruturas de escolhas baseadas em ações opcionais: interacionismo simbólico,
fenomenologia, etnometodologia, individualismo metodológico, atomismo.
Para o conjunto das concepções desse segundo tipo, não se pode elaborar
metodologias para as ciências sociais com base em modelos “heterônomos”: modelos
tirados das ciências naturais. Cabe assim, às ciências sociais, não só o esforço de ruptura
com esses modelos heterônomos, tanto quanto com os de “visão ingenuamente
egocêntrica”; como também, cabe-lhes, ainda, identificar o caminho de orientação na
formulação de um modelo que apreenda a sociedade em termos de “representação de
indivíduos interdependentes” (ELIAS, 1980).
Um segundo dilema diz respeito à crítica que certos autores atualmente se utilizam
para estabelecer uma diferenciação entre as sociologias clássica e contemporânea. Aqui,
basta o exemplo de Merton, que vai apontar para a necessidade do abandono do projeto
ambicioso dos teóricos sociais clássicos, a saber: o das generalizações teóricas. Assim, o
que Merton propõe é um princípio mediano de análise das partes para o entendimento do
todo: em suas “teorias de médio alcance”. Para esse autor, a recorrência constante aos
textos clássicos por sociólogos da atualidade seria reveladora de indícios de imaturidade da
disciplina sociológica (GIDDENS, 1978; IANNI, 1990; MERTON, 1968).
Pode-se observar, contudo, que o que Merton tem como parâmetro para atestar tal
“imaturidade” da sociologia, é o de um princípio comparativo com a possível “maturidade”
das ciências naturais. Seu argumento supõe o princípio positivista da existência de uma
lógica única do desenvolvimento do conhecimento científico: em termos, assim,
heterônomos.
Uma terceira importante questão é introduzida por Agnes Heller (1991); e diz
respeito às relações entre filosofia, sociologia teórica, sociologia empírica. Em síntese, para
a autora, a filosofia é tendente a pretensões de verdades universais ou absolutas; ainda que
ela tenha consciência de suas coordenadas espaciais e temporais. Tais coordenadas
possibilitam à filosofia o poder de confiar um pouco mais na sua “boa intuição”; ao passo
que à sociologia se impõe processos de reificação como recurso à produção de
conhecimentos.

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Para Heller, isto se deve às distinções possíveis entre sociedades pré-modernas e
modernas. O contraste entre essas duas “formações” pode ser acentuado se se puder revelar
a especificidade e a gênese da modernidade: a sua racionalidade instrumental ou seu
funcionalismo racional. A autora se vale aqui da comparação feita por Luhmann quando
justapõe sociedades pré-modernas às modernas. O que Luhmann parece refletir a esse
respeito, consoante Heller, é o fato de que as sociedade pré-modernas se estruturam com
base na estratificação; enquanto as sociedades modernas se estruturam pela divisão de
funções.
Com efeito, a questão funcional nas sociedades modernas é, assim, de ordem
paroxista. Opera-se pela uniformização da dimensão da atividade humana em termos da
prerrogativa sempre dominante de um dado fator, distintamente apreendido pela Teoria
Social: por exemplo: os conflitos capital/trabalho são funções básicas da sociedade
moderna em Marx; a racionalização das instituições em Weber denuncia o funcionalismo
da sociedade; a divisão do trabalho em Durkheim se faz pela premissa da explicação
funcionalista.
Por outro lado, se a sociologia empírica se dá numa esfera do presentismo,
respondendo por excelência ao caráter funcional das sociedades modernas; o mesmo não
parece ser o caso da sociologia teórica, mais próxima da filosofia ou, mesmo, misturando-
se a ela.
Para Heller, as teorias sociais foram concebidas sob a égide da filosofia; a partir de
uma exigência central de produzir conhecimentos de verdades sobre a sociedade moderna.
Assim, enquanto a sociologia empírica reifica mais diretamente conhecimentos sobre o
sujeito; a sociologia teórica trabalha bem mais noções e conceitos gerais sobre ação e
estrutura. Em todo caso, Heller critica Adorno, pelo fato deste autor acusar a sociologia
empírica de incorrer numa dupla reificação: ou seja, no que se refere ao próprio método de
pesquisa e a da aceitação de sujeitos reificados como fontes de informações verídicas. Ora,
segundo pensa Heller, ainda que a sociologia teórica não reifique de modo direto sujeitos
individuais, ela não consegue, contudo, superar a própria reificação metodológica da qual
resulta sua funcionalidade. Com efeito, conclui a autora que se as teorias sociais precisam
trabalhar com categorias fetichistas (reificações), elas só se tornarão teorias verdadeiras se

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levarem adiante a sua tarefa orientada por uma metateoria (paradigma filosófico) que
desfetichize os sujeitos e as suas ações sociais.
Uma quarta ordem de questões dilemáticas presentes na teoria social pode ser aqui
esboçada, em linhas gerais, pela forma como Jeffrey Alexander (1987) as apresenta. Uma
primeira questão diz respeito à dicotomia discurso (teoria) e explicação (empiria): o autor
afirma que “argumentos sociológicos” não obrigam a explicações imediatas para serem
tidos como científicos.
Contrapondo-se aos princípios heterônomos da explicação, o autor lembra que, em
ciência social, “os objetos de estudo são estados mentais ou condições” que os envolvem.
Assim, há, endemicamente, “a possibilidade de confusão entre os estados mentais do
observador e do observado”. Por isso a importância do caráter discursivo na teoria social,
que ele caracteriza como “modos de argumentação (...) mais consistentemente
generalizados e especulativos”.
Para ele, a “onipresença” do discurso e as condições criadas para ele, possibilitam
uma situação de “sobredeterminação da ciência social pela teoria e sua subdeterminação”
pelo fato: posto que a ciência social não se encontra construída a partir de um campo
definido, “indiscutível” e claro de seus elementos. E o autor elenca uma longa série de
exemplos extraídos de estudos diversos a fim de demonstrar a importância da presença do
dissenso na ciência social.
Historiando o processo das formações discursivas no período recente do pós-guerra,
Alexander nota que os discursos sobre ação vs. estrutura surgem não só como contrapontos
entre si; são, na verdade, muito mais, uma reação ao estrutural-funcionalismo de Parsons,
predominante na época.
Teorias da contingência vs. teorias estruturais acirram assim o caráter pendular do
movimento teórico em ciência social. E esses conflitos se dão a partir de certos
pressupostos básicos da sociologia, como o princípio da ação ou mudança e o princípio da
ordem. Por exemplo, abordar o fenômeno da ação social a partir da consideração dos
processos de socialização é adotar para o conceito um princípio estrutural-normativo;
enquanto que abordar o mesmo fenômeno em termos de motivações e interesses é adotar
um princípio de escolha e estratégia dos indivíduos em interação num campo de possíveis.

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Para Alexander, mesmo atualmente é possível observar que a persistência da
dicotomia micro e macro na teoria social encontra-se ainda bastante acirrada. Seu
ressurgimento se dá na forma radical de como, por um lado, teorias micro vão privilegiar a
contigência e a negociação individual da ação: interacionismo simbólico, fenomenologia,
etnometodologia, teoria das trocas, individualismo metodológico. Bem como, por outro
lado, tal dicotomia se faz na maneira com que teorias macro tendem a acentuar o caráter
perene das estruturas e a consequente determinação social dos sujeitos: funcionalismo,
estruturalismo, marxismo ortodoxo.
Para o autor, contudo, é possível identificar esforços em estudos que, de uma ou
outra perspectiva, têm procurado se valer de algumas contribuições trazidas por modelos
oponetes. Assim, abordagens micro, como a etnometodologia, têm contemplado questões
estruturantes do processo social. Ao passo que abordagens macro têm se aproximado de
certas considerações da ordem contigente dos processo sociais.
No primeiro caso, por possíveis reconsiderações da obra de Parsons; No segundo,
pela influência talvez do pós-estruturalismo francês. Ainda assim, Alexander atesta a
insuficiência desse processo para a configuração de um novo movimento teórico: que pode,
segundo ele, “ser revelado pelo estudo do revisionismo dentro das tradições micro e
macro”.
Para Alexander, a necessidade de uma concepção teórica consistente de cultura, que
opere a matriz cultura-significado, é de vital importância para a constituição do novo
movimento teórico: que possa situar a teoria social, a partir do seu movimento pendular,
dentro de um quadro efetivo de teoria cultural capaz de revelar a situação atual das ciências
sociais.

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CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS

Contudo, uma conclusão inconclusiva que gostaria de deixar, particularmente no


que se refere à categoria da explicação em sociologia, leva-me a pensar as palavras de
Wanderley Guilherme dos Santos quando, em seu Discurso sobre o Objeto (1990), diz:
“Creio em nada, e jamais me deixaria queimar pela verdade de qualquer proposição, nem
mesmo por esta. (...) Quem pilota a ação são as representações, e as representações são de
origem confusa. Apaixonado interesse (...) transfigura o mundo em aleijão do que
efetivamente é”.
No que Norbert Elias complementa: “Até agora, a história não tem sido mais do que
um cemitério de sonhos humanos”.

BIBLIOGRAFIA

ALEXANDER, J. “O novo movimento teórico. Revista Brasileira de Ciências Sociais,


número 4 vol. 2, jun/87. São Paulo: ANPOCS.
ELIAS, N. Introdução à sociologia, Lisboa: Edições 70, 1980.
GIDDENS, A A Constituição da Sociedade, São Paulo: Martins Fontes, 1989.
_______. Novas Regras do Método Sociológico, Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
HELLER, A. “A sociologia como desfetichização da modernidade”. Novos Estudos,
número
30, jun/91. São Paulo: CEBRAP.
HEKMAN, S.J. Hermenêutica e Sociologia do Conhecimento, Lisboa: Edições 70, 1990.
IANNI, O. “A crise de paradigmas na sociologia”. Revista Brasileira de Ciência Sociais,
número 13, jun/90. São Paulo: ANPOCS.
MERTON, R. Sociologia: teoria e estrutura, São Paulo: Mestre Jou, 1968.
SANTOS, W. G. Discurso sobre o Objeto: uma poética do social, São Paulo: Companhia
das Letras, 1990.

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